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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
quarta-feira, 31 de outubro de 2018

E agora, Jair? Agora, olhe para o futebol!

Jair Bolsonaro obteve 57.797.847 votos, representativos de 55,13% dos votos válidos, e será o próximo presidente do Brasil. Não votaram nele, por outro lado, 89.508.447 eleitores, que escolheram entre seu opositor, Fernando Haddad, anular, branquear ou se abster. Ele enfrentará, a partir do primeiro minuto do seu mandato - ou melhor, já enfrenta - dois desafios do tamanho do país: primeiro, pacificar; e, segundo, governar para todos, sem distinções ideológicas ou preconceituosas. Se não o fizer, poderá até trazer paz momentânea aos mercados, mas desconstruirá a Nação. Dentre os temas prioritários que podem contribuir para superação de ambos os desafios, há um que, apesar de sua significância e relevância econômica e social, não apareceu nas campanhas de qualquer candidato e tampouco em debates: o futebol. Aliás, a omissão não foi privilégio dessas eleições; ao contrário, não houve candidato, desde 1989, que apresentasse o tema e propusesse o necessário enfrentamento público sobre futebol. A sua decadência, portanto, não decorre do acaso e os responsáveis somos nós, brasileiros, a começar pelo Estado. Sim, o Estado. Por isso, o ponta pé inicial da recuperação sistêmica também depende dele. Não há mais espaço para que o Estado subsidie clubes ineficientes e sustente a posição de cartolas que se apropriam do patrimônio futebolístico para a prática de atos em interesse próprio (ou que envolvem corrupção privada). O atual marco regulatório está sendo utilizado para aprisionar o futebol, para sufocá-lo. Movimentos libertadores pontuais - como, aparentemente, o do Botafogo de Ribeirão Preto - não servirão para impulsionar, no curto prazo, uma transformação sistêmica. Somente o Estado-legislador, com o impulso do Estado-executivo, detém o poder transformacional. Cabe ao Estado, portanto, reformular o anacrônico marco regulatório e oferecer os meios para que o futebol cumpra, de um lado, sua função social e unificadora, e, de outro, se projete como atividade econômica relevante, geradora de empregos e distribuidora de riquezas. Vale lembrar: os principais países europeus já enfrentaram o problema e entregaram soluções que se adaptam às realidades dos times locais; os Estados Unidos adotaram modelo semelhante ao dos demais esportes de massa; o México flerta com o sistema estado-unidense; e, na América do Sul, Chile e Colômbia saíram na frente e já apresentam casos de abertura de capital e negociação de ações em bolsa. Enquanto isso, Brasil e Argentina defendem o encastelamento dos donos do futebol. As soluções, por aqui, passam pela criação de um novo ambiente, de um novo sistema, sustentável, que pode abranger os times e jogadores, "apenas", ou, além deles, a própria estrutura de administração do futebol. No primeiro e fundamental plano, criam-se (i) a sociedade anônima do futebol (SAF), que é uma entidade distinta dos clubes, proprietária dos ativos futebolísticos e sujeita a um regime próprio de governança, (ii) a debênture-fut, que se trata de um instrumento de financiamento privado da empresa futebolística, (iii) um regime tributário transitório e, não menos importante, (iv) instrumentos de convênio voluntário entre a SAF e escolas públicas para estimular a educação de crianças e adolescentes. No segundo plano, oferecem-se incentivos para que a CBF se mutualize em favor dos times (mediante a criação e entrega de títulos patrimoniais), na sequência se desmutualize, com a transformação dos títulos em ações e, por fim, abra seu capital (CBF S.A.), gerando um mercado bilionário (sem exagero) que beneficiará a coletividade - especialmente os times, jogadores e torcedores. E ainda, nesse segundo plano, caso se reconheça que a CBF S.A. se aproveita de patrimônio nacional, determina-se a cobrança de royalties, que podem ser destinados a um fundo, a ser gerido por uma instituição financeira (pública ou privada), a qual, por sua vez, reverterá a arrecadação para projetos que desenvolvam o futebol no país. Pronto, aí estão, em brevíssimas palavras, os motivos para combater o estado de fim de festa do futebol, o apagar das luzes, o sumiço do povo; ao contrário, agora que se tem a chave na mão, é hora de abrir porta, antes que ela emperre. É hora de olhar para o futebol!
quarta-feira, 24 de outubro de 2018

O futebol na Era Temer

O presidente Michel Temer prometia reformar o país e recolocá-lo no caminho do crescimento. Grande parte de suas promessas, necessárias ou não - esse espaço não é adequado para uma análise qualitativa - era, no mínimo, polêmica. Dentre elas se destacavam as reformas da legislação trabalhista e do sistema previdenciário. A primeira foi realizada; a segunda, que caminhava para semelhante desfecho - para delírio do mercado -, foi interrompida por um dos mais surreais episódios da história do Brasil: o vazamento irresponsável de gravação (também irresponsável) realizada pelo controlador da companhia JBS, no âmbito de uma tentativa de entregar à Justiça personalidades públicas, em troca de beneficiamento de sua própria situação, que se complicara por conta de acusações de corrupção. Importante lembrar: o país, naquele primeiro semestre de 2017, parecia que - mesmo contra o desejo de parcela da população, indignada ou inconformada com o desfecho do processo de impedimento da presidente Dilma Rousseff - seguiria o rumo prometido por Michel Temer. No entanto, a partir daquele escândalo de proporção mundial, o cenário se alterou e o prosseguimento com os projetos impopulares se mostrou inviável - apesar das insistentes movimentações de determinados assessores presidenciais. E assim se caminhou, sem grandes perspectivas, até o início da campanha eleitoral de 2018, momento em que, talvez como nunca antes na história, todos os holofotes se desviaram do titular para os pretendentes ao seu cargo. Ou seja, a presidência se converteu, ao menos para o espectador externo, em posição decorativa. E o interesse pelo futebol no meio desse imbróglio? Dilma Rousseff havia promovido, em 2015, uma reformulação parcial do marco regulatório futebolístico, com a introdução do Programa de Modernização da Gestão e de Responsabilidade Fiscal do Futebol Brasileiro - o Profut - e a criação da Autoridade Pública de Governança do Futebol - a Apfut -, que tinha - e ainda tem - competência para (i) fiscalizar as obrigações previstas na própria lei, (ii) expedir regulamentação sobre procedimento de fiscalização do cumprimento de determinadas condições e (iii) requisitar informações e documentos às entidades desportivas profissionais. O Profut, conceitualmente, trouxe alguns avanços, mas não se prestava - e não se presta - a enfrentar o problema estruturante que, aliás, persiste. Seu objetivo foi prover uma solução de curto prazo para a insolúvel crise administrativa e financeira dos clubes de futebol. Esta constatação se demonstra, aliás, pelos resultados práticos obtidos: nenhum. É no âmbito desse cenário que se revelava, nos bastidores, que Michel Temer elegera o futebol como um dos símbolos de resgate e perpetuação dos valores de seu governo. O que se pretendia, dizia-se por aí, era a formulação de um novo marco regulatório, que oferecesse as condições para que o futebol prosperasse como atividade econômica, sem que fossem perdidas suas características culturais. Também se dizia, apesar das críticas de alguns técnicos que teriam sido ouvidos ou consultados, que esse marco abordaria temas de distintas naturezas, como trabalhista, imagem, criação de novo tipo de sociedade, financiamento, arbitragem, calendário, torcedores, etc. Sonhava-se, enfim, com algo marcante, glorioso, monumental, e, por isso mesmo, não necessariamente eficiente e viável. Os sonhos não se materializaram; menos pela arquitetura que se projetava do que pelo ambiente que envolveu a presidência desde o primeiro dia de sua posse - o que era esperado. Assim, o futebol, caso tenha mesmo integrado a lista de temas purificadores, não cumpriu - e não cumprirá esse papel; enquanto isso, os governantes que se sucederam desde o advento da Constituição de 1988 até o atual atentam, por ações inadequadas ou omissões, ou ainda por inações, contra o patrimônio cultural e histórico do país. Michel Temer integra, pois, a lista de presidentes que, voluntária ou involuntariamente, estão matando o futebol no Brasil e, com essa morte lenta e sofrida, a esperança de uma parcela considerável da população menos favorecida.
O programa de governo do candidato Jair Bolsonaro não trata do futebol. Nenhuma palavra a respeito. Aliás, também não apresenta projetos para o esporte em geral. Absolutamente nada. Por isso, o propósito desse texto, que se insere em uma série que aborda as iniciativas para o futebol apresentadas pelos principais candidatos à presidência, se esvai. Talvez nem devesse ter sido iniciado. Ou melhor: poderia ser apresentado em branco, contendo apenas o título, o vazio do papel (ou da tela) e a assinatura do autor. Essas soluções seriam, porém, um desperdício, pois a constatação merece reflexão. Governos já se apropriaram do futebol em diversos momentos para afirmar regimes ou suas políticas. Num passado que parecia distante, se cantou, com orgulho de ser brasileiro, que eram "Noventa milhões em ação/Pra frente Brasil/ Do meu coração/Todos juntos, vamos/ Pra frente Brasil/Salve a Seleção!". O futebol foi instrumentalizado, naquele momento, portanto, para legitimar o desconexo discurso oficial. Anos depois, na vizinha Argentina, a usurpação teve como propósito comprovar a supremacia de um sistema autoritário e corrupto. O tiro, no entanto, saiu pela culatra, pois a intensidade dos abusos cometidos maculou a história do País e do seu futebol. Coincidência ou não, de lá para cá, nenhum governo conseguiu resgatar o respeito de que outrora gozava no plano internacional - tampouco a confiança necessária para reunificar a nação. Recentemente, o também autoritário governo russo despendeu bilhões de dólares para organizar a copa do mundo e tentar criar, por meio do futebol, a aparência de um país aberto, moderno e democrático. Essas farsas poderiam ter estimulado, nas eleições brasileiras em curso, o movimento de apropriação do futebol para fins político-partidários; porém, nem para isso ele (o futebol) vem se prestando, o que revela a gravidade da situação: afinal, a importância que, de fato, tem, não é reconhecida por governos ou candidatos. Ou seja, para o bem ou para o mal, o futebol está desacreditado. Ninguém o quer. Isso mesmo: nenhum candidato - exceto, talvez, Guilherme Boulos, que trouxe em seu programa uma genuína, porém equivocada proposta organizacional - entendeu que o futebol poderia ser, neste país dividido e a caminho do colapso humano, uma legítima via contributiva de integração e de desenvolvimento econômico e social. Mesmo o ex-presidente Lula, pessoa que melhor se relacionou e se comunicou com as massas desde a Proclamação da República, não se convenceu da relevância estrutural do futebol para o povo. Verdade: em texto publicado no Blog do Juca, logo após a derrota da seleção brasileira para a Bélgica, tratou-o como atividade secundária. E Jair Bolsonaro, o que pensa sobre o futebol? Não me refiro, óbvio, ao time que torce, às escalações desse ou daquele jogador, ou a questões táticas e técnicas; a especulação envolve sua compreensão do papel transformacional que essa modalidade esportiva pode ter na sociedade brasileira. Será, aliás, que tem alguma? Sinto-me tentado a afirmar, com base em seu programa de governo, que não. Mas, como quase tudo que envolve o provável futuro presidente, a incerteza se sobrepõe à previsibilidade, e a dúvida se impõe à sociedade. Qualquer afirmação não passará, então, de palpite. Resta, assim, torcer (e lutar) para o bem do Brasil e do povo brasileiro, para que o combalido esporte não seja empurrado para o precipício, pois, de lá, nem Deus - para quem nele acredita ou quase acredita - o resgatará.
Texto de autoria de José Francisco C. Manssur A rica e quente cidade do interior de São Paulo vive a boa notícia que pode significar a fagulha da verdadeira mudança estrutural de que o futebol brasileiro tanto precisa. O centenário Botafogo Futebol Clube, time de Zé Mário, Raí e Sócrates, constituiu recentemente a sociedade anônima para gerir as atividades do seu tradicional futebol profissional. O Botafogo Futebol S.A. será o primeiro caso de Sociedade Anônima do Futebol a adotar, ainda antes da aprovação do PL das SAFs, 5.082/2016 e, portanto, com as limitações disto decorrentes, os princípios e conceitos que Rodrigo Monteiro de Castro explica e defende com maestria e constância neste valioso espaço que hoje me cede, gentilmente. O tradicional clube de Ribeirão Preto viveu recentemente situações de grande dificuldade, com dívidas aparentemente insolúveis, oficiais de Justiça comparecendo ao estádio em dias em dias de jogos para realizar penhora das rendas, disputas políticas acirradíssimas dificultando qualquer tentativa de administração do Clube, algo infelizmente corriqueiro para grande parte dos clubes de futebol do Brasil, atualmente. Diante dos problemas, um belo dia o Botafogo decidiu mudar. O marco da mudança se deu no momento em que os líderes políticos resolveram convergir em prol do interesse maior do Clube. O instrumento da mudança foi a aprovação de um novo Estatuto Social, no ano de 2017, que prevê expressamente a possibilidade e os procedimentos para a constituição de uma sociedade empresária para gerir as atividades do futebol profissional. O novo Estatuto Social provocou o interesse do mercado. Um investidor decidiu aportar montante significativos no Clube por meio da integralização de capital para a constituição do Botafogo Futebol S.A. e participação na gestão. Outros investidores se apresentam interessados em conhecer o projeto. Inicia-se um círculo virtuoso, com equalização das dívidas, geração de novas receitas e busca de resultados em campo. O Botafogo S.A. se pretende uma empresa que somente receberá oficiais de justiça em seu Estádio na condição de torcedores-clientes, para assistirem aos jogos comprando ingressos e se divertirem nos outros espaços de lazer que serão construídos por ali. O Botafogo Futebol Clube aportou em favor do Botafogo Futebol S.A. seus registros e vagas junto à Confederação Brasileira de Futebol e Federação Paulista de Futebol. O que não é pouca coisa, em se tratando de um Clube que hoje está na Série A do Campeonato Paulista e na Série B do Brasileiro. Aportou, ainda, os direitos - e deveres, logicamente - sobre os contratos de atletas e comissão técnica em vigor. Além do valioso direito de superfície para exploração da área e equipamentos do Estádio Santa Cruz. Estão em curso reformas que pretendem criar no Estádio uma área de entretenimento para a cidade e a região. O lado oposto às tribunas atuais será reformado para receber um setor de lazer, serviços, camarotes corporativos e uma Arena de shows que pretende colocar Ribeirão Preto na rota dos grandes eventos artísticos e musicais. A gestão do Botafogo S.A. já negociou os naming rights desse novo espaço, que passa a se chamar Arena Eurobike. E isso tudo também vai gerar mais recursos para o Botafogo. Os trâmites estatutários foram observados, com a realização de um estudo de viabilidade da constituição da nova empresa, aprovação do estudo pela Diretoria, pelo Conselho Consultivo, pelo Conselho Deliberativo e Assembleia Geral de Associados. O clube decidiu incluir no seu Estatuto Social norma que assegura que o controle da empresa que veio a ser constituída será sempre do Botafogo Futebol Clube. Logicamente, na constituição da S.A. tal determinação foi plenamente observada. Ou seja, o Botafogo comprovou na prática a tese de que constituir sociedade anônima para gerir o futebol não significa, automaticamente, ceder o controle do clube para "chineses", "árabes" e "forasteiros em geral". O clube cede o controle se e quando assim decidirem seus donos, ou seja, os seus associados, da mesma forma que os associados também têm a primazia de deliberar sobre a preservação do controle em favor da associação pelo período que assim desejarem. Toda a mudança que o Botafogo decidiu fazer foi coroada com o acesso do time de futebol da Série C para a Série B do Campeonato Brasileiro logo nos primeiros dias após o nascimento da empresa. O Botafogo Futebol S.A. entrará em campo em 2019 com um calendário que ocupará o ano todo, receitas de TV aberta, TV paga e, inclusive, pay per view, tudo isso gerido de forma profissional e buscando sempre a busca do aumento de receitas novas, incremento das receitas existentes e controle dos gastos. Afinal, a busca do resultado financeiro é da natureza da empresa, tanto quanto não é, conforme o art. 53 do Código Civil, objetivo de uma associação. Cheio de orgulho do momento que vive o seu Botafogo, contou-me o advogado Alexandre Bortolato, que ao lado de outros tantos abnegados e aguerridos advogados esteve à frente do Jurídico do Clube nos momentos de maior penúria financeira que - palavras dele: "até pouco tempo, eu era parado na rua pelas pessoas da cidade que me perguntavam quantas penhoras haveria ainda sobre receitas do Botafogo. Hoje eles me perguntam como podem fazer para comprar cotas do Botafogo Futebol S.A". Realmente, em Ribeirão Preto está acontecendo algo que pode significar um futuro próspero e vitorioso para o futebol brasileiro. __________ *José Francisco C. Manssur é advogado, coautor do livro "Futebol, Mercado e Estado" e do PL 5.082/16, que cria a sociedade anônima do futebol (SAF).
O republicano Antônio Augusto Borges de Medeiros dominou a política rio-grandense nas primeiras décadas do século passado. Sua ascensão, iniciada com a primeira eleição para o Governo, em 1898, se intensificou a partir da morte de seu mentor, Julio de Castilhos, em 1903. Desde aquela data, esteve fora da chefia do poder apenas entre 1908 e 1913. Em 1928, após o exercício de diversos mandatos, foi sucedido por Getúlio Vargas que, anos depois, se tornaria Presidente da República. Borges de Medeiros se associou à revolução constitucionalista de 1932 e, em 1934, foi derrotado em eleições indiretas para presidência da República. Teve seus direitos políticos cassados, em 1937, pelo Regime que, de algum modo, ajudou a criar. Desde a morte de Mario Covas, em 2001, Geraldo Alckmin construiu os alicerces da dominação política do Estado de São Paulo. Do poder formal se distanciou por curto período, para lançar-se à candidatura à presidência, em 2006. Derrotado por Luiz Inácio Lula da Silva, retomou o projeto de domínio local, reinaugurando novo ciclo de governação, que se encerrou em 2018. Ao contrário de Borges de Medeiros, que foi vencido pelo pupilo e (ex) aliado, Geraldo Alckmin enquadrou João Doria e, apesar da falta de unanimidade partidária, se impôs em mais uma corrida presidencial. De acordo com todas as pesquisas eleitorais divulgadas desde o lançamento da candidatura, deverá sofrer nova derrota, o que não deveria ser uma surpresa - sob os aspectos político, sociológico e histórico. Ora, o País não é uma projeção amplificada de São Paulo. Dos Brasis que se espalham pelo território, ou melhor, das gentes que habitam regiões com formações, características e necessidades próprias, poucas se identificam com o discurso de gabinete que satisfez, por quase duas décadas, o eleitorado paulista. Ou seja: o PSDB e, em especial, seu candidato, perderam a conexão com a realidade mundana, com o povo. O programa de governo confirma essas proposições. Nele não se encontra qualquer menção ao mais popular elemento de cultura do brasileiro: o futebol. Adota-se a técnica da generalização, para abranger tudo e não se comprometer com nada. O ponto único de partida é o esporte, que "sera' tratado como um instrumento de integrac¸a~o social, alinhado com as poli'ticas pu'blicas de Educac¸a~o, e tambe'm como uma plataforma capaz de atrair investimentos privados para modalidades esportivas de alto rendimento, visando reduzir a depende^ncia das verbas pu'blicas. Com essas duas vertentes bem definidas, poderemos instituir um planejamento pu'blico de longo prazo para o esporte brasileiro, com metas de resultado, monitoramento constante e participac¸a~o social. Acreditamos que o esporte oferece a` juventude brasileira uma oportunidade u'nica de crescimento pessoal, de reduc¸a~o de desigualdade e de desenvolvimento econo^mico para o pai's. E tambe'm uma poderosa ferramenta educacional para manter as nossas crianc¸as no caminho do desenvolvimento humano baseado na e'tica, no respeito ao pro'ximo e na vida sauda'vel, como forma de combater a obesidade e a ameac¸a das drogas." Para se atingirem tais propósitos, se indica como solução a educação. Veja-se: "Para isso, é necessário começar o trabalho nas escolas, local onde a maioria das crianças inicia a prática esportiva". Fala-se, porém, como se a escola pública não estivesse sucateada e abandonada; como se fosse uma referência de formação e inclusão. Não existe, como se vê, nada além de retórica. Se as premissas são genéricas, as diretrizes, por motivos lógicos, não poderiam ser diferentes, conforme se extraem do programa: - Associar o esporte a`s poli'ticas pu'blicas de educac¸a~o, em papel estrate'gico. - Instituir planejamento pu'blico de longo prazo para o esporte brasileiro, com objetivos claros, metas de resultado e monitoramento constante. - Propor a regulamentac¸a~o do Sistema Nacional do Esporte, definindo responsabilidades e deveres das instituic¸o~es envolvidas, poli'ticas de gesta~o e regras de financiamento. - Alterar a lei de incentivo ao esporte no sentido de incentivar e facilitar o aporte financeiro empresarial, sobretudo em projetos de longo prazo, desde o esporte de base ate' o de alto rendimento. - Fortalecer o desporto militar, incentivando os programas de alistamento de atletas pelas Forc¸as Armadas. - Adotar rating das entidades esportivas de alto rendimento para recebimento de recursos pu'blicos. - Incentivar o investimento privado no esporte de alto rendimento, para reduzir sua depende^ncia das verbas pu'blicas. - Criar um sistema nacional para a detecção e o desenvolvimento de talentos esportivos. - Atuar junto ao Ministério da Educação no sentido de manter a obrigatoriedade da educação física no currículo escolar do Ensino Fundamental e do Ensino Médio. Ou seja, a partir desse texto, qualquer iniciativa, por mais superficial que fosse, se tornaria estatística e justificaria o cumprimento de metas ou promessas. Não é disso, porém, definitivamente, que o Brasil precisa. Faltam ações e soluções para os problemas reais, e o futebol, que é, ao mesmo tempo, vítima e parte da solução, foi ignorado ou rejeitado. Geraldo Alckmin perdeu a oportunidade de dialogar - ou ao menos tentar dialogar - com 150 milhões de brasileiros, que, com maior ou menor intensidade, acompanham esse esporte, e, em muitos casos, apostam nele como forma de verdadeira e necessária inserção social.
quarta-feira, 26 de setembro de 2018

O futebol e a superficial proposta de Lula/Haddad

Lula poderia ter transformado o Brasil. Ele, como nenhum outro brasileiro, nem mesmo Getúlio Vargas, reunia carisma, astúcia, apoio, inteligência e poder para realizar um projeto realmente transformacional. Preferiu o continuísmo. Em relação ao futebol, as mudanças que se cogitaram não questionavam ou enfrentavam a estrutura secular de controle da propriedade da empresa futebolística, responsável pelo aniquilamento de uma potencialidade inerente ou inata. Lula e, aliás, a quase totalidade dos políticos brasileiros ainda não reconhecem, de verdade, o futebol como elemento de inserção, desenvolvimento social e econômico: portanto, um poderoso instrumento de transformação. Ao contrário, fez-se uma grande aposta nos eventos e espetáculos midiáticos e planetários, que serviram, afinal, para satisfazer os interesses de uma pequena elite política ou econômica, que se beneficiou à conta da população e do Estado. Não se construíram, enfim, políticas públicas; criaram-se, sobretudo, fatos políticos, para suportar um discurso eufemista. O Plano de Governo de Lula, que se tornou o de Haddad, reconhece, implícita ou explicitamente, aquelas afirmações, mas apresenta soluções equivocadas, contraditórias ou irrealizáveis para enfrentar os erros do passado. Veja-se o que ele diz: "Os governos do PT investiram muito no esporte. Destacam-se (...) a construção e requalificação de milhares de quadras esportivas e praças de esportes, e a organização dos grandes eventos esportivos. A Copa do Mundo (2014) e as Olimpíadas (2016), para citar apenas dois exemplos, induziram investimentos urbanos, modernizaram nossa infraestrutura esportiva, geraram investimentos em aeroportos e na economia do turismo. Mostramos ao planeta que, fora de campo, somos capazes de receber povos do mundo todo. (...) É preciso reconhecer que faltou o debate do legado, da utilização desses fatores para dar um salto organizativo de potencialização do esporte nacional, sobretudo o futebol. (...) Mais do que isso: parte das estruturas criadas está sendo sucateada pela crise fiscal dos Estados e Municípios, agravada pelo governo golpista. O presidente Lula entende que o desenvolvimento do esporte deve ser tratado como política de Estado. (...) Por fatores históricos e culturais, o futebol expressa a própria identidade nacional. Além de produto de lazer, é fator de desenvolvimento econômico regional e nacional. Por essa razão, o futebol é importante demais para continuar à mercê de interesses meramente privados, muitas vezes obscuros. No governo Lula, ele será priorizado e moralizado, e ganhará mecanismos efetivos de controle público e participação social na sua gestão. Por meio do BNDES, o governo implementará o Programa de Modernização da Gestão do Futebol, além de buscar a construção de um calendário anual e unificado para o futebol. Ademais, será promovida a viabilização das Arenas das Copas nos estados". Diante dessas proposições, mais valem perguntas do que comentários ou conclusões: 1. Quais foram os investimentos e os resultados? 2. Onde estão os investimentos urbanos úteis para a população? 3. Existe realmente um setor do turismo do futebol? Pessoas viajam, em número considerável, para o ou pelo Brasil a fim de assistir futebol? 4. Os equipamentos estão sendo sucateados ou, na verdade, já nasceram podres, porque superfaturados, mal construídos e absolutamente inviáveis operacional e economicamente? 5. Se o esporte faz parte dos grandes temas, quais são as propostas efetivas para sua implementação e seu desenvolvimento? 6. De quais interesses privados o futebol está à mercê? 7. Cabe ao Estado manejá-lo (o futebol) ou simplesmente estabelecer o marco regulatório para preservá-lo como patrimônio cultural, de um lado, e incentivar o investimento, de outro? 8. O Estado já não é o principal financiador, por meio de renúncias, perdões, parcelamentos e patrocínios de empresas públicas aos clubes? 9. Se o Estado subsidia o futebol há mais de século, o seu fracasso organizacional não está ligado às próprias intervenção e participação estatais no esporte? 10. Políticos e cartolas, no limite, não se confundem? 11. Como se irá moralizar o futebol? Quais as iniciativas pretendidas para tanto? Quais serão os agentes que substituirão os imorais? Quem são os imorais? 12. O Estado vai interferir na gestão dos clubes? Será esse o seu papel? 13. É papel do BNDES criar um programa de modernização da gestão de clubes? Como se colocará em prática, mediante a contrapartida em recursos públicos? Deve o contribuinte financiar clubes de futebol? E como isso se fará nas associações - entidades sem fins lucrativos, politizadas e compostas de conselhos e diretorias formados por dezenas ou centenas de membros, despreparados para os cargos que ocupam? 14. O Governo irá impor um calendário à CBF? E se ela não aceitar, o que fará? Intervenção? Criação de uma agência reguladora? 15. Qual é a fórmula milagrosa que tornará arenas como as de Brasília ou Manaus rentáveis? Os eleitores que pararam para ler o programa de governo oficial merecem respostas, antes da eleição, tendo em vista que esse discurso não é suficiente ao atingimento dos objetivos a que se propõe: recuperar (ou desenvolver) o futebol brasileiro.
A relação dos políticos brasileiros com o futebol pode ser desmembrada em três grandes grupos: (i) o maior deles, composto de pessoas que desconsideram sua importância social e econômica; (ii) o intermediário, que agrupa pessoas que se aproveitam dele para fins pessoais ou políticos; e (iii) o menor, integrado por pessoas que tentam, de algum modo, resolver um tema realmente fundamental. Essa divisão também se aplica aos candidatos à presidência da República. Para evitar o cometimento de injustiças, colocarei todos, menos um, no primeiro grupo. Para o último vai Guilherme Boulos. Em seu programa - o mais sincero e completo de todos os apresentados -, formulam-se, em relação ao futebol, dentre outras, as seguintes propostas1: "(...) 2. Romper com a política de conciliação com a cartolagem dos clubes, federações e confederações esportivas e auditar as contas das entidades esportivas (CBF, COB e federações); 3. Criar a Lei Prata da Casa: uma taxa decrescente para as transferências internacionais de jogadores até 23 anos, forma legal para interferir no êxodo dos jovens atletas e proteger os clubes de formação, garantindo maior qualidade técnica para o futebol disputado no país; (...) 11. Transformar Ministério do Esporte em Ministério do Esporte e Lazer; (...) 14. Promover a cooperação esportiva internacional, com prioridade aos países da América Latina, África e lusófonos; (...) 23. Auditar as contas das entidades esportivas (CBF, COB e federações); (...) 26. Redefinir os gastos tributários, com diminuição progressiva do volume de recursos que não transita pelo orçamento, inclusive a Lei de Incentivo do Esporte. Concentrar a renúncia fiscal em projetos do interesse da sociedade e não dos interesses de patrocinadores e dirigentes; 30. Estabelecer com as entidades esportivas uma política nacional de formação e desenvolvimento de atletas, com a utilização dos recursos das loterias; 31. Fomentar o processo de democratização dos clubes, federações e da CBF; 32. Exigir contrapartidas sociais dos recursos públicos e renúncias fiscais dos clubes com o estabelecimento de ingressos sociais, acessíveis à população de baixa renda; 33. Defender a regulamentação da negociação coletiva e centralizada da venda dos direitos de transmissão televisiva e que a distribuição dos pagamentos: 50% divididos igualitariamente entre todos os clubes, 25% baseados na classificação final do Campeonato anterior (o campeão recebendo 20 vezes mais o valor que recebe o último classificado) e 25% variáveis de acordo com o número de jogos transmitidos na televisão, como medida para combater a desigualdade da distribuição de tais recursos; 34. Destinar 5% do total arrecadado pela venda coletiva e centralizada dos direitos de transmissão a projetos sociais que promovam a prática do futebol, bem como a centros de formação para o futebol feminino; 35. Revisar o Estatuto do Torcedor, para reverter a criminalização dos torcedores, coibir manifestações preconceituosas racistas, homofóbicas, regionais e sexistas e garantir os horários de realização das partidas adequados aos interesses dos setores populares; 36. Promover a discussão acerca da reforma do calendário do futebol brasileiro e da organização de seus campeonatos estaduais, regionais e nacionais de maneira a constituir um verdadeiro sistema de competição nacional". A intenção é a melhor, não há dúvida, mas parte, em relação a certos pontos, de premissas ultrapassadas ou equivocadas. Em outros pontos, a partida revela alguma ingenuidade. Peguemos três exemplos. Primeiro, o rompimento com a cartolagem. A ruptura não se faz por declaração ou denúncia, pois inexiste um grupo formal e institucionalizado. O cartola é, na prática, o dirigente, em qualquer nível, de uma associação sem fins lucrativos. Para romper com ele - ou com um agrupamento abstrato -, há um, e apenas um caminho: a criação de um novo sistema, um novo ambiente, um novo mercado que, por suas características, reveja o modelo de propriedade do futebol e, a partir dessa revisão, imponha técnicas de governação, controle e verificação da adequação de práticas internas. Segundo, a tributação da negociação de jovens jogadores (ou Lei Prata da Casa). O verdadeiro problema não é a saída precoce de meninos que almejam a realização de sonhos materiais e imateriais. O problema, ou melhor, os problemas, no plural, são os seguintes: (i) os meninos não têm formação adequada e vão embora despreparados, reduzindo o índice de adaptabilidade (e, assim, amplificando a probabilidade de frustação); (ii) os meninos vão embora porque não têm opção de ficar; isso porque (iii) os clubes não conseguem mantê-los, pela disparidade de condições, ou porque estão quebrados e a negociação vem se transformando na principal fonte de receita; e (iv) em decorrência da falta de condição de investimento na formação e manutenção de meninos que podem, ou não, "dar certo", o sistema criou superagentes que, apesar de poucos quantitativamente, financiam o sistema e faturam, não raro, mais, muito mais do que os próprios times formadores, com a negociação e renegociação de jogadores. A saída para essa situação, portanto, não passa pelo esgotamento da fonte. A tributação, em outras palavras, resolverá a doença matando o doente. Por outro lado, se a porta se fechar, os "colonizadores" encontrarão alternativas, como já encontraram no passado, nos demais países latino-americanos e africanos, e o futebol brasileiro, ensimesmado, se tornará uma grande várzea - para delírio, é verdade, de algumas centenas de saudosistas. A leitura de Eduardo Galeano mataria essa proposição em sua origem. Novamente, a solução envolve a arquitetura de um sistema que reconheça a natureza econômica da empresa futebolística, ofereça os meios de financiá-la, preserve o futebol como bem (ou patrimônio) essencial de nossa cultura e permita que a atividade atinja seus fins sociais e econômicos. Foram-se os diamantes, o ouro e, agora, se aniquilará o que resta da prata (da casa). Terceiro, e não menos relevante, as exigências de contrapartidas sociais dos recursos públicos e renúncias fiscais. Aí está, enfim, o grande dogma e o principal fator do subdesenvolvimento atual do futebol no Brasil. A subvenção estatal fez sentido na origem do esporte e durante os tempos de amadorismo, mas não se justifica diante do fato que ele (o esporte) se tornou uma atividade global, altamente competitiva, profissional e demandadora de recursos, muitos recursos para o seu exercício. O fato de nenhum, repita-se, nenhum time brasileiro integrar a lista dos 40 maiores do planeta é sintomático. O Estado brasileiro, paquidérmico que é, ineficiente e, pior, capturado por interesses grupais ou individuais, não oferece meios para manutenção de uma concorrência minimante equilibrada. Assim, enquanto times europeus atraem recursos de todos os lados, os brasileiros imploram à Caixa migalhas para não fecharem suas portas ou traficam medidas legislativas para impedir a quebradeira geral. Por esses - e outros - motivos, o projeto de Guilherme Boulos, apesar de honesto e coerente com as suas ideias, levaria o futebol brasileiro de volta ao século XIX. _______________ 1 Disponível em: Vamos sem medo de mudar o Brasil; acesso em 18.9.2018.
quarta-feira, 12 de setembro de 2018

Abrem-se novas veias do futebol brasileiro

A insistência com que se trata, nesta coluna, da crise estrutural do futebol brasileiro é motivada pelos evidentes e recorrentes sinais internos e externos de deterioração do ambiente. Não bastasse o desperdício de atividade econômica única, pujante e universal, ainda se joga pelo ralo a possibilidade de sua utilização como instrumento de desenvolvimento social. No plano interno, algumas (poucas) pessoas ganham, eventualmente muito, com essa situação, e oferecem toda sorte de obstáculos para evitar o surgimento de um novo marco regulatório do futebol. Aliás, o modelo vigente, construído sobre pilares que deixaram de cumprir função de sustentação, serve, paradoxalmente, para manutenção do status quo. O dogma maior é o sistema tributário. Não que seja algo simples, pois não é. A passagem do modelo associativo para o de mercado tem consequências relevantes que somente se compensam, enquanto o Projeto da SAF não se tornar lei, pela organização de uma empresa econômica futebolística eficiente e competitiva. Esses requisitos, porém, deveriam estimular, e não obstaculizar, o processo. A potencialidade, aliás, é comprovada pelo sucesso organizacional do futebol europeu, que superou o mesmo dilema, e se posicionou como o principal - e talvez único - mercado realmente relevante do planeta. No plano externo, as evidências de que a nova ordem empurra o Brasil para a mais distante periferia são inequívocas. O Movimento se iniciou com a ruptura com o modelo clientelista e a compreensão de que, além de jogo, o futebol é um negócio global. Daí a concepção e a adoção de mecanismos de financiamento da empresa, que viabilizam inicialmente a importação de jogadores formados e, na sequência, a importação em massa de jogadores em formação. Esse modelo reforça a desigualdade que se revela nos confrontos entre clubes ou seleções. Esta situação, no entanto, decorre menos da localização geográfica e da instabilidade das moedas ou governos locais, do que da ineficiência sistêmica mantida e defendida pelos donos ocultos do futebol. O propósito, nos dias atuais, está muito claro: países como o Brasil devem fornecer matéria prima para o desenvolvimento europeu. Nada muito diferente do que se passa desde as invasões e conquistas ibéricas, como ensina Eduardo Galeano: "Os metais arrebatados aos novos domínios coloniais estimularam o desenvolvimento europeu e até se pode dizer que o tornaram possível". Não bastasse a redução dos times brasileiros a exportadores de matéria-prima, pretende-se, ademais, aniquilar o símbolo cambaleante de resistência, uma espécie de Palmares, abalada pelas interferências dos mesmos donos ocultos do futebol: a seleção. O instrumento é a Liga das Nações da UEFA, que servirá para isolar ainda mais a periferia do centro mundial do futebol, e reduzir as seleções sul-americanas a (indesejadas, porém necessárias) coadjuvantes. Portanto, o problema passou a ser também da CBF, e não apenas dos clubes. Seus dirigentes têm a oportunidade de impor um novo modelo e reconquistar o prestígio perdido, ou ficarão marcados na história como os algozes do futebol brasileiro.
quarta-feira, 5 de setembro de 2018

Exército, cultura e futebol

A cidade de São Paulo foi presenteada, no domingo, 2/9, com a performance de Chucho Valdés e Gonzalo Rubalcaba, na área externa do Auditório do Ibirapuera. As poucas centenas de pessoas que se deslocaram ao escultural projeto de Oscar Niemayer desfrutaram de uma fusão pianística que colocaria Miles Davis e Jimi Hendrix de joelhos. Realmente, a dupla cubana faria até o jornalista Juca Kfouri, ateu declarado, reafirmar que Deus quase existe. André Mehmari, reconhecido pianista brasileiro, foi escalado para fazer a abertura. Ao final de sua apresentação, diante de uma plateia paciente, atenta e, em sua quase totalidade, respeitosa, lançou uma proposição prenunciativa de um oportuno discurso político: a união do país não se realizaria pelo exército, mas, sim, pela cultura. Deixando de lado o que seja cultura, sua função na sociedade e como promovê-la, a continuação de sua fala desnudou, de modo involuntário, um preconceito histórico, responsável pela construção de um muro entre o povo e as elites intelectuais e artísticas. O músico pediu silêncio e educação à plateia durante a apresentação dos pianistas cubanos que logo subiriam ao palco, para que ambos pudessem sair dali com uma boa impressão do seu Brasil. Considerando, dizia ele, que as pessoas ali presentes deveriam ter uma certa educação, haveriam de compreender o pedido. Havia, é verdade, um motivo: durante o seu set, formou-se um pequeno distúrbio, promovido por apenas um egoísta que, mesmo contra pedidos coletivos e do próprio André, insistia em manter-se de pé, atrapalhando a vista de dezenas de espectadores que, atrás dele, acompanhavam sentados o espetáculo. Dois pontos do discurso chamam atenção. Primeiro, o inafastável complexo de vira-lata que atormenta o brasileiro, que além de servir como instrumento de apequenamento - presente, aliás, em quase todos os povos latino-americanos -, se projeta como uma construção improvável do dever ser, e não do ser. Em outras palavras, somos o que somos, e não o que os outros acham que deveríamos ser ou o que gostaríamos que os outros achassem que somos. Sempre que tentamos ser o que não somos, definhamos, como comprova a seleção brasileira de Tite. O segundo, e mais preocupante, revela o distanciamento de artistas e de intelectuais, do povo. Incluem-se, aqui, aqueles que pretendem falar pelo ou em nome dele, do povo. Aliás, apesar de fundamental - e, para um não ateu, Divina -, a grande arte é concebida como uma manifestação elitista e superior, decifrada em pequena escala e acessível a poucos privilegiados, geralmente intelectualizados ou educados, que passam, assim, a formar espécies de castas culturais - ou melhor, sociais. Daí o preconceito que se nutre em relação ao futebol, num país marcado por tantas desigualdades: apesar de tratar-se da manifestação máxima de sua cultura, a mais intensa e democrática, ainda é tido como tema menor e desprezado em sua função transformadora, por sua suposta insignificância intelectual. Curiosamente, essa postura se revela não apenas em quem o ignora, mas, também, em quem o pratica, exerce a torcida e manifesta paixão clubística; a incompreensão apresenta, portanto, características epidêmicas. Eduardo Galeano sintetizou o problema: "existem intelectuais que negam os sentimentos que não são capazes de experimentar nem, como consequência, compartilhar: só poderiam se referir ao futebol com um gesto de desgosto, asco ou indignação". O jogador de bola, em sua batalha pela afirmação como indivíduo (e/ou pela inserção na sociedade elitista), desconhece teses ou teorias, mas sente o peso de séculos de desigualdades e, quando se afirma, ainda assim não se vê ou é visto como um igual. Afinal de contas, não passará, aos olhos de seres superiores, de um futebolista. Isso explica, em certa medida, a aversão ao mais humano, brasileiro e falível produto futebolístico da década: Neymar. O país não se reconstruirá, é certo, pelo exército, pela força ou pelo medo. A reconstrução pressupõe uma concepção humanizada de Estado, que irradie essa característica por todos os campos de atuação política, especialmente o da cultura. Nesse campo (da cultura), ou nesse gramado, o futebol é o principal agente de transformação, muito mais do que a mandioca ou o samba, porque, além de genuinamente popular, não tem limites ou fronteiras, culturais, sociais ou econômicas. É realmente chocante e alarmante o fato de que os filhos deste solo - sobre o qual bolas não param de rolar -, que se apresentam como salvadores da pátria e dignos condutores dos destinos da Nação, não cuidem de tema tão fundamental. Eles, como, na verdade, nós, brasileiros, ainda achamos que futebol não passa de instrumento de alienação das massas ou de entretenimento de gentes evoluídas.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo Há algumas semanas, comentamos o projeto da Botafogo Futebol S.A. ("Botafogo S.A.") - uma sociedade anônima, constituída pelo Botafogo Futebol Clube ("Botafogo"), para gerir o futebol do clube e determinados ativos - e como ele poderia se tornar o embrião de um novo modelo organizacional da atividade futebolística no Brasil. Naquela oportunidade, ainda não havia sido disponibilizado o Estatuto Social da Botafogo S.A., de modo que algumas observações careciam de confirmação. Após acesso a esse documento, voltamos ao tema e passamos a tecer algumas considerações com maior precisão, acerca do modelo de governança idealizado. O capital social "inicial" - isto é, a soma dos recursos aportados pelos acionistas em contrapartida às ações que receberão (ações, em definição bastante simplória, são unidades de participação na sociedade, conferidoras de direitos de sócios) - é de R$ 20.000.000,00, divididos em 20.000.000 de ações, todas ordinárias, sem valor nominal. Desse montante, R$ 12.000.000,00 advieram de contribuições feitas pelo Botafogo, mediante a integralização de ativos como (i) registros do clube na Federação Paulista de Futebol e na Confederação Brasileira de Futebol, (ii) contratos com atletas, empregados e prestadores de serviços, (iii) bens móveis, (iv) contratos de locação, cessão ou comodato envolvendo imóveis utilizados para a prática do futebol, (v) direitos de propriedade industrial, e (vi) receitas de programas de sócios, entre outros listados no boletim de subscrição, os quais foram objeto de laudo de avaliação. Em razão desse aporte, o Botafogo subscreveu 12.000.000 de ações, correspondentes a 60% do capital social da Botafogo S.A. As 8.000.000 de ações restantes, equivalentes a 40% de participação no capital social, foram subscritas pela Trexx Sports Participações Ltda. ("Trexx"), tendo sido uma parte (R$ 800.000,00) integralizada em dinheiro e à vista, com previsão de integralização do restante em até 24 meses. Aos acionistas, reunidos em Assembleia Geral, compete aprovar, pelos votos representativos de, pelo menos, 75% do capital votante da Botafogo S.A., temas como (i) orçamento anual e plano de investimentos, (ii) dissolução, liquidação, transformação, fusão, cisão e incorporação da companhia, e (iii) investimentos ou desinvestimentos classificados como "relevantes" (aqueles que, individual ou conjuntamente, correspondem, em um mesmo exercício social, a 20% do ativo total consolidado da sociedade). Apesar da posição majoritária ostentada pelo Botafogo, o clube não detém o poder de decidir sozinho matérias importantes; algo comum em negócios dessa natureza e justificável em função da participação da Trexx no capital social. Além disso, foi celebrado um acordo de acionistas, que costuma versar sobre capitalização, diluição, endividamento, orientação de voto, preferência para aquisição de ações, indicação de administradores e outros aspectos. Em outras palavras, que trata do exercício do controle societário e, eventualmente, do empresarial. Por se tratar de documento privado, não pudemos acessá-lo, para consulta e comentários. Quanto à administração da Botafogo S.A., ela se divide em uma Diretoria e um Conselho de Administração. A Diretoria não é formada por 3 membros, como presumimos no último artigo, mas, sim, 4: Diretor Presidente Executivo, Diretor Administrativo Financeiro, Diretor de Marketing e Diretor de Futebol. Apesar da competência individual de cada Diretor, o Estatuto estabelece que determinadas matérias devem ser deliberadas pela Diretoria, em atuação colegiada. São exemplos disso os seguintes temas: (i) prestação de garantias; (ii) assinatura de contratos de atletas e membros da comissão técnica das equipes de futebol profissional e de base, sem limitação de valor; e (iii) assinatura de contratos que gerem obrigações financeiras para a sociedade e não ultrapassem o montante de R$ 500.000,00. A representação ativa e passiva da Botafogo S.A., em qualquer hipótese, incumbe a apenas 2 Diretores, um deles obrigatoriamente o Diretor Administrativo Financeiro. No entanto, como é uma prerrogativa do Diretor Presidente Executivo representar a sociedade em contratos de registro e de transferência de atletas, por exemplo, conclui-se que pactos dessa natureza só poderão ser assinados pelo Diretor Presidente Executivo em conjunto com o Diretor Administrativo Financeiro. O Conselho de Administração, por sua vez, é composto por até 7 membros. Somente podem fazer parte do Conselho pessoas com (i) reputação ilibada e conhecimento notório em marketing, futebol, finanças ou administração de empresas ou (ii) diploma em curso superior. As prerrogativas de indicação desses membros não foram definidas no Estatuto; provavelmente, estão alocadas no acordo de acionistas. Dentre outras atribuições, compete ao Conselho de Administração, por maioria dos votos dos seus membros presentes às respectivas reuniões: (i) fixar a orientação geral dos negócios; (ii) manifestar-se sobre o relatório da administração e as contas da sociedade; (iii) aprovar a celebração de contratos com valor entre R$ 500.000,00 e R$ 2.000.000,00; e (iv) aprovar a emissão de debêntures simples com valor entre R$ 500.000,00 e R$ 2.000.000,00. Foi prevista, ainda, a possibilidade de criação de comitês executivos pelo Conselho de Administração, para auxiliar a Diretoria na tomada de decisões, sendo permanente o funcionamento dos comitês de Auditoria e de Gestão Esportiva. Quanto aos resultados financeiros percebidos pela Botafogo S.A., em razão do seu desempenho empresarial - isto é, o lucro -, uma parte deles será distribuída aos acionistas (clube e investidor), a título de dividendos, na proporção de suas participações societárias (60% x 40%), como deve ocorrer em sociedades anônimas - afinal, o objetivo dessas entidades é gerar lucro aos seus sócios. Nos termos do art. 32º, serão distribuídos, no mínimo, e obrigatoriamente, 25% do lucro líquido apurado no exercício, após os ajustes e deduções exigidos pela Lei das Sociedades Anônimas (Lei nº 6.404/1976). O saldo, se houver, terá a destinação definida pela Assembleia Geral. Também existe previsão de instalação, a pedido dos acionistas, de um Conselho Fiscal com 3 membros efetivos e mesmo número de suplentes, eleitos pela Assembleia. Percebe-se, assim, que o modelo estruturado para a Botafogo S.A. se assemelha ao adotado por companhias que atuam no mercado. O Brasil olhará, com a devida atenção, aos próximos passos. Oxalá sejam exitosos.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo A notícia de que o time All Blacks Maori enfrentará a seleção brasileira masculina de rugby despertou nossa curiosidade acerca do funcionamento da entidade reguladora do esporte no país. Rapidamente, a curiosidade transformou-se em surpresa, com a leitura do Estatuto da Confederação Brasileira de Rugby ("CBRu" ou "Confederação"). A CBRu consiste em uma associação civil, sem finalidade lucrativa, que, constituída por suas filiadas, que dirijam ou venham a dirigir a modalidade de rugby no Brasil, representa a entidade nacional de administração de referido esporte. Dentre as suas finalidades, previstas no art. 7º do Estatuto, encontram-se as funções de difundir a prática do rugby no país, bem como organizar as suas competições. Os poderes da Confederação, de acordo com o art. 33 do Estatuto, são: (i) a Assembleia Geral; (ii) o Conselho de Administração; (iii) a Diretoria Executiva; (iv) o Conselho Consultivo; (v) o Conselho Fiscal; e (vi) a Comissão Disciplinar e o Superior Tribunal de Justiça Desportiva. A Assembleia Geral é formada por um representante de cada Federação Estadual ou Regional de rugby, filiada à CBRu e com direito de voto. Somente poderão participar das Assembleias Gerais, contudo, as Federações que sejam filiadas à Confederação há, pelo menos, 2 anos, constem da relação publicada pela CBRu anualmente e atendam às exigências legais e estatutárias. Além das Federações, os Atletas de rugby também terão representação nas Assembleias Gerais: os membros do Conselho de Administração eleitos pelos próprios Atletas serão os representantes no órgão assemblear, os quais deterão, em conjunto, direito a um voto. As principais atribuições de competência da Assembleia Geral consistem em deliberar alterações ao Estatuto Social da Confederação, aprovar as contas da administração da CBRu e dar posse aos membros eleitos do Conselho de Administração, da Diretoria Executiva e do Conselho Fiscal, além das outras listadas no art. 47. Já o Conselho de Administração, nos termos do art. 48, é o órgão decisório e hierarquicamente superior da CBRu, subordinado à Assembleia Geral; passagem que deixa clara a sua importância na estrutura de poder da Confederação. É composto por 12 membros, dos quais 5 são eleitos pela Assembleia Geral, 1 pelos Árbitros, 2 pelos Atletas - que, juntos, corresponderão a apenas 1 membro, tendo direito a apenas um voto - e os 5 demais, todos independentes (conforme definição constante do art. 49), indicados pela Comissão de Nomeação. O Presidente do Conselho de Administração será um dos independentes. A Comissão de Nomeação, por sua vez, é constituída por 4 membros, todos do Conselho de Administração, dentre os quais, obrigatoriamente, o Presidente do Conselho de Administração (que, ressalte-se, é um membro independente), e a forma de sua constituição está regrada no art. 65. A princípio, os 3 outros membros da Comissão são sugeridos pelo Presidente do Conselho. Contudo, os membros do Conselho de Administração também podem indicar seus candidatos à Comissão, desde que cada um desses candidatos seja indicado por, no mínimo, 3 membros do Conselho. Assim, se houver mais de 3 candidatos para fazer parte da Comissão, o Conselho de Administração decidirá a eleição, cabendo a cada membro do Conselho votar em 3 nomes, sendo eleitos os mais votados. Percebe-se, assim, que a Assembleia Geral - órgão formado pelas Federações, essencialmente - não dispõe da prerrogativa de eleger a maioria dos membros do Conselho de Administração: órgão de importância para a Confederação. Isto significa que o controle da CBRu não é garantido, pelo Estatuto, às Federações. Afinal, o Conselho de Administração, além da competência de eleger a Diretoria Executiva - que é composta por um único Diretor, denominado Superintendente Executivo -, detém a atribuição exclusiva de deliberar matérias relevantes para a Confederação, como a aprovação do orçamento e do relatório anual de gestão, além da assinatura de contratos, títulos e acordos que envolvam responsabilidade financeira da CBRu em valores superiores a R$ 100.000,00, e do auxílio na fixação das diretrizes da gestão da entidade. Assim, considerando que a Assembleia Geral - ou seja, as Federações, reunidas em órgão competente - não consegue, sozinha, eleger a maioria dos membros do Conselho de Administração, constata-se que os associados da Confederação abdicaram do poder de controlá-la. E é isso que surpreende. Trata-se de um modelo que, curiosamente, funciona de maneira diversa do que ocorre, com frequência, em outras estruturas, sejam associativas, sejam societárias, nas quais os associados ou os sócios, conforme o caso, fazem questão de preservar poderes políticos suficientes para assegurar o controle da entidade - algo que se perfaz, dentre outros aspectos, pela indicação, direta ou indireta, da maioria dos administradores. No caso da CBRu, os seus associados - isto é, as Federações -, de certa forma, abriram mão do poder de controlar a Confederação, tendo em vista que não conseguem exercê-lo sem a existência de um alinhamento com outras pessoas. Mais do que isso: o modelo direciona o poder a pessoas estranhas ao quadro associativo, que podem dominar, eventualmente sem possibilidade de resistência, as decisões internas, e se perpetuar - diretamente ou por meio de membros de um mesmo grupo de interesses. Isso pode ser bom ou ruim, dependendo do ponto de vista e, especialmente, da qualidade e da intenção dos escolhidos para exercer os quadros administrativos independentes. No entanto, esse modelo provocou algumas questões, que, com base nas informações disponíveis, não soubemos responder: (i) o que motivou a sua implementação? (ii) houve alguma contrapartida à perda de poder político ou as Federações o adotaram simplesmente por acreditarem que resultaria numa melhor forma de administrar o esporte? (iii) poderiam as Federações ter organizado uma administração independente e profissional, sem, contudo, perder parte de sua influência na Confederação? (iv) A perda de poder em favor de agentes externos não deveria estar associada ao aporte de recursos (logo, de uma eventual transformação da CBRu em sociedade empresária)? Enfim, não temos condições de avaliar se a modelagem - e a abdicação (ou o compartilhamento, a depender do contexto) do poder de controle pelas Federações - tem sido frutífera ou infrutífera ao rugby no Brasil. Porém, podemos afirmar que se trata de um caminho inusitado e realmente surpreendente.
quarta-feira, 15 de agosto de 2018

Raí

No início do ano, com resultados ainda pouco animadores, as cornetas esboçaram um movimento na direção de Raí (e de seus diretores Lugano e Ricardo Rocha) e de seu time. Lembremos: suas contratações foram questionadas, o sistema de jogo teimava em aparecer e o treinador escolhido para comandar o processo, Aguirre, foi recebido com pouco entusiasmo. Contra Raí pesava um fato, é verdade: era sua primeira experiência no cargo de direção de futebol. A favor dele, no entanto, contavam muitos aspectos, que não podiam - e não podem - ser ignorados: (i) como afirmou o jornalista Victor Birner no programa Cartão Verde, ele vinha de dentro, do conselho de administração, e sabia o tamanho do desafio; (ii) se preparara, desde que deixou os gramados, para a função; (iii) era - e é - boleiro, e fala o idioma dos jogadores; (iv) é respeitado e admirado; e (v) tem uma visão contemporânea da estrutura do futebol e sabe que, se não vier uma mudança, os times brasileiros não sairão da crise em que estão. Essas características deveriam contribuir para que se reconhecesse, no projeto, um desafio que transcendia uma questão pessoal e, de certo modo, do São Paulo, mas que se podia afirmar essencial para o futebol como um todo. O insucesso, por outro lado, serviria para apagar mais um ídolo tricolor - no caso o maior de todos os tempos -, e reafirmar a supremacia cartolarial na condução dos temas pseudo-clubísticos. Esse dilema foi ignorado e a demanda por resultados imediatos, como de costume, surgiu de todos os lados. O jornalista Menon apontou, em texto denominado "Raí precisa corrigir os erros que cometeu", publicado em 23 de abril de 2018, que "ídolos devem participar da direção dos clubes, após a aposentadoria? Não há nada contra. Há até uma torcida para que dê certo. A cobrança, porém, deve ser igual. Ídolos podem errar. E Raí errou muito. Contratou Trellez, Diego Souza e o time jogou sem centroavante no segundo tempo contra o Ceará. Como resolver? Não sei. Raí, Ricardo Rocha, Lugano e Leco são bem pagos para resolver o assunto (...)". O problema era de perspectiva; ou melhor, é. Neste momento, porém, com sinal trocado: uma perspectiva exageradamente otimista, pela posição de liderança no campeonato brasileiro. O projeto de Raí e de seus executivos, Lugano e Ricardo Rocha, não é de curto prazo. Isso deveria ser óbvio, ao menos aos mais atentos e iniciados analistas do esporte. O que agora se produz ali, sob a presidência de Leco, é um movimento estrutural de time, e não um time para um campeonato ou para um ano; são sintomas de atos anteriores que, apesar de mais lentos do que se imaginavam, já começam a se manifestar. De todo modo, a construção de alicerces não se finaliza em dias, semanas ou poucos meses. O que se projeta, portanto, é uma nova estrutura, que criará um padrão identificável da base ao profissional. Isso demandará tempo e (alguma) paciência. Ou seja, não podemos nos iludir: o trabalho de Raí está apenas começando. A ponta do campeonato veio antes do que o mais otimista dos são-paulinos podia imaginar. Melhor assim. Porém, a ele deve ser dado o tempo necessário para cumprir a sua longa missão, qualquer que seja a posição final na tabela. Raí merece - e merecerá - o apoio e a confiança dos dirigentes e dos torcedores. Pelo bem do São Paulo, pelo bem do futebol brasileiro.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo Defendemos, nesta coluna, o potencial do futebol brasileiro e a necessidade premente de sua transformação. O mundo já deu provas de que a atividade futebolística, atualmente, tem fundamentos e contornos empresariais e, por isso, precisa ser conduzida de maneira profissional, organizada sob um modelo adequado à finalidade lucrativa que, de maneira inevitável, está atrelada ao negócio futebol. Apesar da aparente facilidade que clubes de maior porte possam ter para implementar um projeto transformacional - em razão de sua atratividade para o mercado, por exemplo - essa não se trata de uma possibilidade restrita às grandes equipes brasileiras. O Botafogo Futebol Clube ("Botafogo") - sediado em Ribeirão Preto/SP e que disputa, hoje, a série "c" do campeonato brasileiro - aliás, é exemplo disso. Em maio de 2018, o Conselho Deliberativo do Botafogo aprovou a constituição do Botafogo Futebol S.A. ("Botafogo S.A."): uma sociedade anônima que irá gerir o futebol e determinados ativos. De acordo com informações veiculadas pelo clube e por meios de comunicação, o Botafogo S.A. terá como sócios o próprio Botafogo, que manterá a sua condição de associação civil, e um investidor privado: a Trexx Holding Empreendimentos e Participações Ltda. ("Trexx"). O Botafogo será titular de 60% (sessenta por cento) das ações de emissão do Botafogo S.A., enquanto a Trexx deterá a propriedade dos 40% (quarenta por cento) restantes. Isto é: o Botafogo cria uma sociedade anônima, conferindo a ela os ativos relacionados ao futebol (como contratos com atletas, licenças, patrocínios, equipamentos e outros bens e direitos), e permite que um investidor, mediante o aporte de capital, se torne proprietário de parcela minoritária das ações de emissão da companhia. A administração do Botafogo S.A. se dividirá em uma Diretoria e um Conselho de Administração. A Diretoria será composta por 3 (três) membros: 1 (um) Diretor Presidente Executivo; 1 (um) Diretor Financeiro; e 1 (um) Diretor de Futebol. O Conselho de Administração, por sua vez, terá 7 (sete) membros, dos quais 3 (três) indicados pelo Botafogo, dentre os membros do Conselho Deliberativo, 2 (dois) indicados pela Trexx e 2 (dois) independentes (isto é, sem vínculos com os acionistas Botafogo e Trexx). De acordo com informações obtidas no site da Junta Comercial do Estado de São Paulo ("JUCESP"), o Botafogo S.A. já teria sido constituído, inclusive. Há registro de arquivamento da ata de Assembleia Geral de constituição de mencionada sociedade anônima, datada de 04 de junho de 2018. Contudo, o ato ainda não está disponível no sítio eletrônico da JUCESP e, portanto, não pôde ser acessado e analisado. É impossível afirmar se o projeto será bem-sucedido. Ainda é cedo e há poucos dados disponíveis sobre a empreitada, o plano de negócios e os investimentos que se realizarão. De todo modo, só a idealização e a implementação do Botafogo S.A. já demonstram um avanço significativo, que merece atenção. Aliás, as suas aparentes características e dimensões indicam que se trata de um "projeto piloto", que pode ser o embrião do novo modelo organizacional do futebol brasileiro.
quarta-feira, 1 de agosto de 2018

Até tu, Lula?

A decepção com o resultado da Copa do Mundo talvez seja exagerada e somente se justifique pela incrível campanha que se construiu em torno de Tite. Antes de sua chegada, a seleção brasileira brigava, com dificuldade, por uma vaga no mundial e poucos acreditavam nela. Portanto, o fracasso era, até aquele momento, esperado. O treinador construiu, é fato, um discurso, imagens e um sonho. Muitos embarcaram. O tamanho do tombo é proporcional à expectativa que se criou. O problema é que essa construção não foi - e não é - estrutural. A estrutura do futebol brasileiro continua arrasada, como estava quando Tite se sagrou campeão mundial de clubes pelo Corinthians ou durante o processo construtivo de sua narrativa, que forjou uma perspectiva messiânica. Tite é um ser humano como qualquer outro e está fazendo o seu trabalho, movido pelos seus interesses pessoais - os quais não são, por isso, ilegítimos. A esperança que se depositava na propositura de um projeto transformacional era ingênua, pois nunca foi sugerida por ele. E, pelo que se extrai friamente de seu discurso, também não é e nem será o seu propósito. Devemos aceitar Tite como ele é: tentará ser campeão mundial, e nada mais. Para isso, ele não dependerá dos jogadores que participam dos campeonatos locais, pois os craques (ou não) que formam a seleção, geralmente, partem muito cedo e são formados no exterior. É de lá - do exterior, portanto - que ele importará a tecnologia para realizar o seu sonho. O problema é que a terra, por aqui, continua arrasada e o Brasil insiste em tratar o futebol como algo irrelevante, supérfluo e, até certo ponto, alienante. Apesar de ínfima parcela da sociedade alertar para a importância do futebol, quase ninguém o leva a sério. Nos poucos debates políticos em que se discutem ideias, ele não é suscitado. Aliás, antes disso, o tema do futebol também não costuma aparecer nos programas de governo de candidatos a cargos públicos. O que falar, então, de seu reconhecimento como tema de Estado? Aí se revela a distância entre as funções social e econômica do futebol e a percepção da classe política - logo, da sociedade - a seu respeito: num ano eleitoral, de disputas acirradas e ideológicas, nenhum candidato se prestou a oferecer uma proposta de solução para a atividade que dezenas, muitas dezenas de milhões de brasileiros acompanham e entendem. Nem mesmo uma proposta populista (ou eventualmente demagoga - não que eu defenda esse encaminhamento, obviamente) surgiu. Ninguém que não seja do futebol está, aparentemente, preocupado com o futebol. O cenário é ainda mais desolador, pois, retomado o campeonato brasileiro, as pessoas que pertencem ao futebol voltaram suas atenções para os impedimentos, dispensas de treinadores, negociação de jogadores, etc., e, apenas eventualmente, quando mais um jovem talento é exportado, lembram de criticar o modelo e pedir soluções. Pedido que se perde - ou se esquece - já no próximo impedimento não marcado ou no seguinte gol mal anulado. Essa indiferença é identificada até no ex-presidente Lula, o político que mais teve e tem identidade com o esporte, que viveu os louros e as mazelas futebolísticas e que teve legitimidade para propor a arquitetura de um modelo sustentável e adequado à sua importância. Essa afirmação se extrai do próprio Lula. Em artigo escrito para o Blog do Jucá, na sequência da derrota para a Bélgica, ele afirmou que "[o] Brasil já não é o melhor futebol do mundo. Os melhores jogadores brasileiros saem para o exterior aos 15, 16, 17, 18 anos de idade. O Brasil virou um exportador de matéria-prima, que será transformada em craques no exterior". Disse mais: "(...) que nós, brasileiros, aprendamos lições com as derrotas, olhando as virtudes dos adversários e também os nossos erros". E, para concluir, pede para que voltemos a "pensar no Brasil, nos grandes problemas que temos, e procurar as soluções para diminuir o sofrimento do povo". Pois é. Se nem para Lula o futebol é um grande tema, para quem será? Quem será, aliás, o iluminado que perceberá que além de elemento fundamental da cultura do país, o futebol, como nenhuma outra atividade, pode (i) integrar pessoas e regiões, (ii) contribuir para a atração e a assiduidade de crianças e jovens em sala de aula, (iii) oferecer alternativas de trabalho em atividades diretas ou indiretas (incluindo alimentação, hotelaria, turismo e indústria), (iv) criar riquezas, muitas riquezas, para a sociedade (e para o povo, como Lula pede), e (v) deixar de ser uma fonte pífia de exportação (de pessoas), para tornar-se uma fonte de geração de tecnologia? Talvez seja mesmo um projeto para um Messias, e não para um ser humano.
Em setembro de 2016, escrevi sobre o sonho de Tite (ou o salvamento do futebol)1. Ele acabara de aceitar o convite para treinar a seleção brasileira, no pior momento da historia da CBF: além dos episódios de corrupção, prisão de um ex-presidente e ordem de prisão contra outro, o Brasil corria o risco de não se classificar para a Copa do mundo. Tite, que pouco antes assinara um manifesto contra o seu novo empregador - a CBF -, preferiu seguir seu sonho, ao invés de renovar sua aparente insatisfação com o estado do futebol brasileiro. Lembre-se: ele era tratado como um salvador da pátria e a sua recusa talvez representasse o golpe de misericórdia em um modelo obsoleto, desgastado e insustentável, que não tinha - e não tem - motivo para continuar existindo. Ou não. Um substituto competente poderia, eventualmente, formar um bom time, classificá-lo e, quem sabe, até mesmo ganhar a Copa. Assim, o sistema se preservaria, a imagem de salvador se perderia e o sonho se esvairia. Exigir de Tite que, naquele momento, absorvesse as mazelas nacionais era um exagero. Por isso, ele seguiu seu instinto, seu sonho e assumiu o desafio de recuperar a confiança dos bons jogadores que teria à disposição e montar uma equipe. Aliás, mais do que isso: de recuperar, também, a confiança e a estima do torcedor. No processo de construção do discurso, surgiu uma entidade quase infalível, que passou a representar o novo, o moderno, o trabalho, a tecnologia, a ética, a Justiça. O problema é que isso tudo convivia - e convive - com um modelo de futebol incompatível com o discurso; um modelo que destruiu os times nacionais, que não se preocupa com os jogadores e que se mostra incapaz de manter ou resgatar a áurea da seleção. Conviveram, portanto, durante esses meses, a CBF de Tite e a CBF do Coronel, uma isolada da outra, como se fossem estruturas distintas. Mas não são. Tite é um empregado da CBF, que é una; faz parte dela, como todos os demais. Exerce, é verdade, uma função especial dentro da organização. Por isso, caso não concorde com algo essencial, deve partir ou exigir mudanças. E não há outra pessoa que tenha, apesar da derrota na Rússia, poder para exigi-las, como ele. O futebol brasileiro precisa se reinventar, pois chegou a um nível de mediocridade sem precedentes. Neymar, apesar das críticas, é um jogador espetacular. Mas é pouco para o Brasil. O time - ou a seleção - que depende de uma pessoa, raramente triunfa. A pressão e as expectativas que se colocaram sobre aquele jogador ilustra a falta de perspectivas atual e futura. Sim, pois quando se olha para frente, não há um único nome que possa sucedê-lo. Não há, então, futuro, seja pela aposta em um gênio, seja pela construção de um grupo. Aliás, com raríssimas - realmente raríssimas - exceções, futebol é jogo coletivo. O Brasil de 70 tinha vários grandes jogadores além de Pelé; o de 82 não era apenas Sócrates; e o de 94, mais do que todos, foi uma falange - apesar das intervenções decisivas de Romário e Bebeto. Tite pode exigir a reinvenção; pode mostrar que tem preocupações maiores do que o seu sonho particular. O movimento parte do fortalecimento da base, da valorização dos jogadores e dos times e da arquitetura de uma estrutura apta a financiar o futebol no Brasil. A seleção será a consequência, e não o propósito. Não se pode mais, por outro lado, ignorar a função do futebol para o desenvolvimento social do país. Não existe outra atividade com essa característica. Ignorá-la é um atentado imperdoável. O técnico da seleção também não pode, pois, fazer de conta que vive no país das maravilhas, no lado do bem do futebol. Aliás, o ex-presidente Lula escreveu, no Blog do Juca, que, após a eliminação, devemos "voltar a pensar no Brasil, nos grandes problemas que temos, e procurar as soluções para diminuir o sofrimento do povo"2. Concordo parcialmente. O futebol é um grande tema e um grande problema. Se manejado adequadamente, irá inserir milhares - sem exagero - de pessoas, sobretudo crianças, na sociedade. Trata-se de um tema maior, de um tema essencial. Tite, enfim, pode revelar-se um ser humano realmente diferenciado, com preocupações que extrapolam seu sonho, sua realização pessoal, sua exposição. Acredito que sua função, como líder da seleção, não se resuma à construção de um discurso politicamente correto que, agora, após o resultado na Rússia, se mostra comprometido. Se esse for o caminho, a história o reduzirá a um bom técnico que obteve alguns êxitos - e, talvez, grandes derrotas; nada além disso. Ele, porém, tem, como poucas pessoas tiveram, a oportunidade de escrever a história, pela transformação da sociedade pelo futebol. Basta condicionar a continuidade do seu trabalho à implementação de um novo modelo, que ele próprio pode, aliás, direcionar. Tite, e apenas Tite, indicará se ainda vive um sonho de um homem comum ou se será um transformador, um homem elevado, que deixará uma obra potencialmente grandiosa, capaz de contribuir para o desenvolvimento da sociedade brasileira. __________ 1 O sonho de Tite (ou o salvamento do futebol). 2 Perder é do jogo. Vamos pensar no país.
quarta-feira, 4 de julho de 2018

Em defesa de Neymar e a omissão do Estado

Se Mario de Andrade fosse vivo, saberia, penso eu, interpretar e descrever, como ninguém, esse herói que se chama Neymar. Um herói com traços macunaímicos. Não, não estou me referindo ao seu caráter. Longe de mim julgar alguém que não conheço. Refiro-me aos sentimentos antagônicos que ele incita. Antes, era apenas um menino que queria ser o melhor jogador do mundo - e será; hoje, uma personalidade que faz parte de um sistema irrefreável de interesses econômicos. A incompreensão decorre das projeções e das expectativas que se fizeram e se fazem sobre alguém que é o que é, e não o que deveria ser ou o que os outros queriam que ele fosse. Neymar é, pois, tudo aquilo que ele mostra e faz em campo. E daí? Daí a incompreensão, a intransigência e, sobretudo, algo que virou moda num país sem rumo: a falta de identificação, que justifica, em todos os planos, a intolerância e o ataque à diferença. Sua postura incomoda - a mim também, em vários episódios - por se esperar dele um padrão de conduta que ele não adota, porque não quer, porque não está disposto ou porque sequer compreende. Em qualquer caso, a culpa não é dele, pelo que esperam dele. Isso tudo não o desqualifica como jogador; mais do que isso: não o faz pior ou melhor em campo. Por outro lado, faz emergir um debate, presente em vários setores, como o das artes, a respeito de sua função, de seu valor: uma obra de arte tem valor extrínseco, puramente estético, ou somente se justifica pela sua origem ética? O propósito, ou a falta dele, desqualifica o resultado ou este tem valor próprio? Indo adiante: o caráter do artista afeta sua obra ou ela se desprende de seu criador? Um drible, uma jogada mágica, um desarme, um gol, uma vitória... se justificam pelo que representam no plano exterior ou apenas pelo que são, no mundo do futebol? As preocupações pessoais e sociais do protagonista mudam a intensidade do fato ou lhe oferecem, sobretudo, uma retórica midiática? Um jogador deve ser um exemplo ou não? Afinal, do que falamos: de um jogo, apenas, ou de algo mais? Se a resposta for um jogo, apenas, o debate para por aqui. Estamos todos perdendo tempo e energia com algo superficial e irrelevante. Por outro lado, caso se atribua ao jogo de bola algo mais, aí o debate ganha sentido, devendo, no entanto, ser redirecionado. Em outras palavras, se a função do futebol é transformadora - e eu não tenho a menor dúvida de que seja -, não cabe a um jogador carregar esse fardo. Neymar não é e não será Pelé, Tostão, Zico, Sócrates ou Ronaldo. Neymar é Neymar e será Neymar, o camisa 10 do Brasil dessa década e, provavelmente, em algum momento futuro, o melhor do mundo. Se ele não levanta bandeiras sociais - será que não? - ou se sua atuação, quando enfrenta ou apanha de adversários, incomoda, o problema é nosso, que projetamos nele aquilo que queríamos ser ou que gostaríamos que ele fosse, como herói. Deixemos que ele siga o seu caminho, e cobremos do Estado a formulação de uma política que possibilite o surgimento de um, vários ou cem mil grandes jogadores e cidadãos brasileiros, que possam compartilhar a responsabilidade que pesa, nessa Copa, sobre apenas um.
quarta-feira, 27 de junho de 2018

Será que vai, Brasil?

Período de Copa do Mundo costuma gerar um efeito interessante: muita gente resolve escrever sobre futebol. A imprensa e as mídias sociais trazem, diariamente, textos e mais textos sobre o tema, escritos por empresários, professores, sociólogos, historiadores, economistas, jornalistas que não costumam cobrir o esporte, advogados, etc. O conteúdo varia, evidentemente. Em alguns casos se fala apenas do futebol praticado - ou que se deveria praticar. Os mais interessantes, em minha opinião, tentam fixar teses para justificar diversas situações, positivas ou negativas. Nesse grupo se proliferam as tentativas de demonstrar que a - suposta - apatia do torcedor decorre da falta de identificação com os jogadores. Quando se oferecem caminhos para reversão desse cenário, a análise não atinge o verdadeiro problema da tal falta de identidade, que não é causada pelo êxodo prematuro de jovens promessas; o êxodo, ao contrário, é a consequência. O que causa esse estado de coisas é o modelo de propriedade. Em poucas palavras, o futebol no Brasil é organizado e mantido pelas associações sem fins lucrativos (os clubes), sujeitas a modelos de governação compatíveis com as relações sociais internas e políticas que motivaram suas criações, mas incompatíveis com a complexidade das empresas econômicas que se desenvolveram com o tempo. Soma-se a isso a impossibilidade jurídica de captação de recursos, tornando os clubes reféns da negociação de jogadores em formação e do fluxo de recursos provenientes de emissoras de televisão. Para concluir, os clubes concorrem, não mais no plano nacional, mas internacional, com os principais times europeus, em sua maioria empresas, que captam recursos e os despejam em fornecedores de commodities. Essa situação, aliás, não afeta apenas a periferia do futebol. O centro também não resiste à nova ordem. Times de países como França, Holanda e Bélgica raramente conseguem preservar seus principais jogadores, que partem, assim como os brasileiros, os demais sul-americanos e os africanos, para os três ou quatro países protagonistas mundiais. Não há, pois, alternativa realmente viável se não houver uma reformulação estrutural que contemple vias de atração de financiamento do futebol brasileiro. E, aí, surgem dois caminhos: a subvenção e a hegemonia do Estado ou o mercado. Quanto ao primeiro caminho, a realidade do esporte - e não apenas do futebol - demonstra a absoluta incapacidade do Estado brasileiro de prover a necessária política para formação de atletas de rendimento, como fazem países capitalistas, como os Estados Unidos, a Alemanha e, sim, a França. Isso não quer dizer que o Estado não deva interferir. Deve, claro, porém, como regulador do ambiente adequado para preservar o futebol e, ao mesmo tempo, para formar um pujante e sustentável mercado, capaz de atrair investidores e financiadores da empresa futebolística. Essa solução vai em sentido contrário da extravagante proposta de "taxação para valer [das] transferências de atletas jovens. É isso mesmo: medidas de intervenção no mercado. Sem medo de enfrentar o dogmatismo neoliberal que predomina nessas regras. Podia ser uma taxação pesada para venda de atletas de 17 até 20 anos. Aí iria diminuindo, pra zerar a taxa a partir, digamos, de 23 ou 24 anos. Não estou pensando na Lei do Passe, não é cercear o direito do atleta de se transferir e subir na vida. É cobrar o valor potencial do que o outro lado vai ganhar nessas transações internacionais"1. Trata-se da fórmula definitiva para acabar com o futebol no Brasil e do Brasil. Primeiro, porque, infelizmente, no modelo atual, os clubes dependem dessas negociações para manterem-se ativos. Segundo, porque o fenômeno não é local, mas, mundial, e o fechamento não servirá para reverter a tendência (apenas para se isolar). Terceiro, porque países concorrentes aproximam-se, cada vez mais, da qualidade do futebol brasileiro e competem pela exportação de jovens talentos. Quarto, e realmente fundamental, a tal taxação não se reverterá para o futebol ou para os times, e se perderá na injustificável estrutura estatal. Quinto, porque impõe uma brutal limitação ao direito dos jogadores de decidirem seu futuro, ou seja, de partirem ou de ficarem. Se o sistema contribuísse para que o futebol fosse forte, estruturado e rico, e os times pudessem não apenas manter seus ídolos, mas contratar ao estrangeiro, muitos dos jogadores que se aventuram, inclusive por países improváveis e sem tradição, ficariam por aqui, perto da família e dos amigos. A realidade, no entanto, é outra: os que ficam - geralmente por não terem a opção de partir -, enfrentam, em sua maioria, baixos salários, condições inadequadas de exercício da profissão, atrasos salariais e escassez de trabalho. O problema, portanto, é estrutural, e se combate, logicamente, com medidas estruturantes. __________ 1 Historiador pede leis para dificultar saída de jovens craques do país.
quarta-feira, 20 de junho de 2018

Vai, Brasil!

Eduardo Galeano costumava fechar por motivo de futebol. O fechamento ocorria durante Copas do mundo. Nesses períodos, sua atenção era exclusiva ao jogo de bola. A declaração contrasta com o inexplicável dilema que envolve o futebol e a intelectualidade. O autor uruguaio tratou disso em vários textos, com olhar insuspeito. Comentava sem paixão as posições de esquerda ou de direita, e fugia da tentação de emitir julgamentos. Portava-se, pois, como um narrador, não como juiz. Sobre Borges - o intelectual que mais brilhantemente desprezou o futebol - dizia que sua aversão decorria do fato de ser uma paixão de massas, e ele destetava as paixões populares, que produziam aglomerações e multiplicações. A imagem é realmente pertinente. Mais do que isso: revela a força (ou a magia) do futebol, pois é disso mesmo do que se trata. Borges entendia do que discorria e seu desprezo era racional, consciente; ao contrário da figura generalizada do intelectual de esquerda, construída por Galeano, que tende a negar os sentimentos de que não é capaz de compartilhar ou experimentar. Daí, para a fácil imputação das mazelas sociais à devoção esportiva, não leva mais do que um passo: assim não justificaria a sua introdução nas fábricas para alienar a massa trabalhadora, seu uso por governos totalitários com o propósito de afirmar sentimentos nacionalistas, e, nos dias atuais, sobretudo no Brasil, a associação a movimentos políticos elitistas. Esse embate é responsável por um modelo perdedor: perdem todos, perdemos todos. Em tempos de Copa do mundo, a seleção brasileira é o principal reflexo da perda. Aliás, o Brasil talvez protagonize o mais inexplicável caso de auto-rejeição da história contemporânea: sim, o mundo admira o seu futebol - será que a admiração realmente perdura? - e não poupa esforços para, a um só tempo, imitá-lo e domá-lo - e, de algum modo, destruí-lo. Esse processo está em cursos há anos, ou décadas, e se encontra em estágio avançado. Atinge não apenas o país, como a maioria dos países periféricos, que se tornaram exportadores de commodities. No nosso caso, as tensões políticas dos últimos anos intensificaram o distanciamento. A apropriação da camisa da seleção, como forma de manifestação de opinião, reforçou aqueles velhos dogmas justificadores da aversão. A tese estaria, pois, confirmada. Com isso, a demonização é necessária. O equívoco é brutal. A inversão é incompreensível. O futebol não é o problema. Como disse Galeano, "não é culpa do futebol que só no futebol essa 'garra' ofereça, ou tenha oferecido, resultados concretos, da mesma forma que não é culpa do futebol que tenha sido por causa do futebol que o Uruguai adquiriu certa relevância internacional". O problema é a incompreensão: de que o futebol é, no Brasil, o mais poderoso instrumento de integração, e, ao mesmo tempo, de desenvolvimento social e econômico. Por isso não consigo entender o desprezo de governantes e políticos ao tema; também não consigo compreender porque, pessoas supostamente intelectualizadas - ou elitistas -, sentem prazer em desprezar o futebol. Talvez seja verdade que o Brasil não tenha levado para Rússia um time nacional, mas, sim, um aglomerado de jogadores sem identidade com a população, com as torcidas locais, e sem grandes preocupações políticas. Também é verdade que são raros os jogadores que se associam a uma causa brasileira, mesmo que ela seja a melhoria das condições de trabalho da classe jogadora ou a arquitetura de planos de apoio a ex-jogadores. A falta de respaldo ao Bom Senso, movimento vanguardista que sugeriu uma agenda propositiva, ilustra essa narrativa. Mas, o que vemos aí, são sintomas; as causas são mais profundas e não justificam a referência ao futebol com um gesto de desgosto, asco ou indignação. Ao contrário, talvez comecemos a entender as raízes de nossos problemas quando passarmos a gritar, sem vergonha na cara, vai, Brasil!
quarta-feira, 13 de junho de 2018

Aspectos organizacionais do Besiktas

Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo Encerrando (pelo menos por ora) a sequência de textos sobre o futebol turco - que começou com a análise da relação entre referido esporte e o mercado e passou pelo estudo do modelo de governação do Galatasaray -, apresentam-se, por fim, algumas considerações sobre a estrutura organizacional do Besiktas, outro grande time da Turquia com projeção internacional. De 1903, ano de sua fundação, até meados da década de 90, todas as atividades relacionadas ao Besiktas, incluindo não só o futebol, mas, também, outras modalidades esportivas, eram conduzidas por uma associação civil, formada por torcedores e entusiastas da equipe turca: o BESIKTAS JIMNASTIK KULÜBÜ DERNEGI (o "Clube"). Isso mudou em 1995, quando o Clube constituiu uma sociedade anônima para assumir a gestão do futebol, mediante o aporte de ativos correlatos ao negócio futebolístico, principalmente: a BESIKTAS FUTBOL YATIRIMLARI SANAYI VE TICARET A.S. ("Besiktas S.A."). A partir de então, a Besiktas S.A. passou à condição de titular dos contratos firmados com atletas, dos direitos de propriedade industrial, como marcas, e de transmissão, e do estádio, dentre outros elementos patrimoniais, tornando-se, portanto, a responsável pela administração do futebol. Poucos anos depois, a Besiktas S.A. abriu o seu capital na Bolsa de Istambul. Juntamente ao Galatasaray, foi um dos primeiros times da Turquia a realizar uma oferta pública de ações no mercado de capitais, em 20 de fevereiro de 2002. Hoje, aproximadamente 49% das ações de emissão da Besiktas S.A. estão em circulação no mercado; isto é, à disposição para negociações entre quaisquer investidores interessados. Os 51% restantes são de titularidade do Clube, de modo que o controle societário - isto é, o poder de definir diretrizes, eleger a maioria dos diretores e influenciar as decisões da entidade - é detido, a princípio, pelo próprio Clube; o qual, imagina-se, congrega os torcedores e apoiadores do Besiktas. Incluídas nesses 51% estão as únicas ações de categoria especial, representativas de apenas 0,25% do capital social total, as quais conferem aos seus titulares 15 votos para cada ação nas assembleias gerais da Besiktas S.A., diferentemente, pois, das demais ações, as quais obedecem à correspondência de um voto por ação. Como consequência disso, o Clube concentra 52,67% de todos os votos em referidas assembleias. O objeto da Besiktas S.A. é a gestão do futebol. Por intermédio dela realizam-se investimentos e se administram contratos e outros ativos importantes. Além dela, há outras duas empresas, que cuidam da gestão da marca e dos direitos de transmissão: a BESIKTAS SPORTIF ÜRÜNLER SANAYI VE TICARET A.S. e a BESIKTAS TELEVIZYON YAYINCILIK A.S., respectivamente. A administração da Besiktas S.A. compete ao seu Conselho de Administração, composto por, no mínimo, 5 e, no máximo, 9 membros, todos com mandatos de 2 anos, sendo permitidas reeleições. Atualmente, o órgão é formado por 6 Conselheiros, dentre os quais 1 Presidente, 1 Vice Presidente e 2 membros independentes. A estrutura é composta, ainda, por comitês de apoio ao Conselho, que se ocupam de Auditoria, Governança Corporativa e Detecção de Riscos, e de um Gerente Geral (ou Coordenador). Destaque-se, por fim, recente projeto de sucesso, implementado pelo Besiktas, que culminou na inauguração, em 2016, do seu novo estádio: a Vodafone Arena. Com custo em torno de 110 milhões de euros, ela foi viabilizada pela venda, previamente ao início das obras, dos naming rights, por 145 milhões de dólares, pelo prazo de 15 anos1. A inauguração do novo estádio, vale ressaltar, marcou o fim de um jejum de títulos do time, que não se sagrava campeão da liga nacional desde a temporada de 2008/2009, e voltou a conquistá-la em 2015/2016 e 2016/2017. __________ 1 Melhor estádio de 2016 custou um terço da Arena Corinthians e vendeu naming rights antes da construção começar.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo Em continuidade ao texto publicado na última semana1, no qual foram expostos e comentados alguns aspectos da relação entre o futebol e o mercado na Turquia, analisa-se, nesta oportunidade, a governança de um dos maiores times do país: o Galatasaray. Maior ganhador da liga nacional (21 vezes), o Galatasaray rivaliza com Fenerbahçe e Besiktas - vencedores de 19 e 15 edições, respectivamente - não só dentro de campo. Esses três times (além do Trabzonspor, da cidade de Trabzon) estão configurados como companhias listadas na bolsa de valores de Istambul. Portanto, disputam posições também no mercado de capitais, competindo pela captação de recursos e pela atração de investidores. Em virtude de as ações de sua emissão estarem admitidas à negociação em bolsa de valores, o Galatasaray organiza-se sob a forma de uma sociedade anônima - a Anonim Sirket (A.S.), do direito societário turco ­-, denominada Galatasaray Sportif Sinai Ve Ticari Yatirimlar A.S. ("Galatasaray S.A."). A abertura de seu capital ocorreu em 20 de fevereiro de 2002; mesma data da primeira oferta pública de ações do Besiktas e 2 anos antes da emissão inicial realizada pelo Fenerbahçe, conforme tabela abaixo2 (as siglas utilizadas, na tabela, para Besiktas, Galatasaray, Fenerbahçe e Trabzonspor são, nessa ordem, BJK, GS, FB e TS): Referida sociedade anônima foi fundada pelo Galatasaray Spor Kulübü Dernegi - associação civil que compõe o clube Galatasaray ("Clube"), da qual fazem parte os seus torcedores -, com vistas à profissionalização da gestão das atividades esportivas e dos ativos correlatos, a exemplo do estádio, da marca, dos contratos e dos direitos de transmissão. Com essa transformação de modelo, operada no final dos anos 90, o futebol, que antes era administrado pelo Clube, passou a ser gerido pelo Galatasaray S.A. Atualmente, 66,42%3 das ações de emissão do Galatasaray S.A. - isto é, mais de 2/3 do total - são detidas pelo Clube, que figura como maior acionista e maior votante. Além das atividades principais, desempenhadas diretamente pela sociedade anônima, existem 3 subsidiárias, constituídas para a execução de negócios específicos, as quais são controladas pelo Galatasaray S.A. São elas a (i) Galatasaray Magazacilik ve Perakendecilik A.S., a (ii) Galatasaray Gayrimenkul Yatirim ve Gelistirme Ticaret Anonim Sirketi e a (iii) Galatasaray Iletisim Hizmetleri Anonim Sirketi, responsáveis pelas atuações nos segmentos de merchandising, imobiliário e de comunicação, respectivamente. O órgão máximo da administração do Galatasaray S.A. é o Conselho de Administração, composto por 5 membros, dentre os quais 1 presidente e 1 vice-presidente. Todos os conselheiros, deve-se ressaltar, colecionam experiências acadêmicas e profissionais. Há, também, no âmbito do corpo diretivo do Galatasaray S.A., profissionais com funções específicas, responsáveis por conduzir determinadas áreas de interesse da gestão da empresa. Destaca-se, nesse grupo, a existência de cargos equiparáveis aos de Diretor Financeiro, Gerente de Marketing, Diretor de Tecnologia da Informação, Diretor Administrativo e Consultor/Diretor Jurídico. A estrutura é integrada, ainda, pelos Comitês de (i) Auditoria, cujo funcionamento observa a cartilha intitulada "Princípios de Funcionamento para o Comitê de Auditoria"; (ii) Detecção de Riscos; e (iii) Governança Corporativa, composto por três membros e regido pelos "Princípios de Funcionamento do Comitê de Governança Corporativa". Esse sistema é construído com o intuito de oferecer credibilidade aos investidores e ao mercado como um todo e, tão ou mais importante, para transmitir a mesma confiança aos torcedores e à comunidade. __________ 1 Algumas (breves) considerações sobre a relação entre o futebol e o mercado na Turquia. 2 A comparison of the ipo methods for sport stocks: evidence from Istanbul stock Exchange Market. 3 GALATASARAY SPORTIF SINAI VE TICARI YATIRIMLAR A.S.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo Apesar da paixão e do fanatismo da população turca pelo futebol - que elevam o confronto Galatasary x Fernerbahçe à condição de um dos grandes clássicos do mundo -, a principal liga do país ainda se encontra distante da lista dos cinco maiores (ou melhores) campeonatos nacionais da Europa. Enquanto a Premier League, da Inglaterra (1ª colocada), e a Ligue 1, da França (5ª colocada), têm valores de mercado estimados em, respectivamente, 6,4 e 2,7 bilhões de euros1, a Super Lig, primeira divisão da Turquia, está avaliada, de acordo com o site especializado Transfermarkt, em 597,68 milhões de euros2. Não é um valor módico, de fato, considerando que a País não é uma potência econômica, nem futebolística. Mas, ainda assim, revela uma posição consideravelmente inferior às posições de outras ligas europeias de "segundo escalão", como a Eredivisie, da Holanda, que vale algo em torno de 734 milhões de euros e que, de acordo com o Ranking da UEFA, está na 14ª colocação entre os melhores campeonatos europeus, atrás da própria Super Lig (10ª colocada)3. Até mesmo o campeonato brasileiro da série A foi considerado mais valioso que a liga nacional turca: na avaliação do Transfermarkt, ele possui valor de mercado de 933,68 milhões de euros4. Por outro lado, notícias dão conta de que os direitos de transmissão televisiva do campeonato turco foram vendidos à companhia Digiturk, no final de 2016, por 600 milhões de dólares anuais, em acordo válido até o fim da temporada 2022/20235; ou seja, mais de 2 bilhões de reais para transmitir partidas de uma liga de clubes menos valiosa, a princípio, que a praticada no Brasil. Esse montante, inclusive, é superior ao valor que os clubes da primeira divisão brasileira receberão, da Rede Globo, por suas partidas transmitidas em canal aberto, negociado em 1,346 bilhões de reais (desconsiderados os valores relativos ao pay-per-view)6. É de se notar, também, a presença de estrelas do futebol mundial na liga turca. Jogadores como Pepe e Quaresma, na atualidade, e Drogba, Sjneider, Roberto Carlos, Lugano e Van Persie, no passado recente, além de Alex, em seu auge, que seriam grandes contratações e atrações no futebol brasileiro, contribuíram para o fortalecimento do futebol de clubes na Turquia. E, por fim, destaque-se: os seus 3 maiores times são companhias de capital aberto7; isto é, Galatasaray, Fenerbahçe e Besiktas são sociedades anônimas com ações emitidas na bolsa de valores de Istambul, aptas, portanto, a captar recursos com investidores no mercado, e submetidas a regras mais rígidas de transparência e governança, principalmente. Aliás, não só o "trio-de-ferro" referido acima, que se reveza na condição de campeão da liga nacional, está listado na bolsa de valores da capital turca: o Trabzonspor, equipe da cidade de Trabzon, também é uma companhia aberta. Dessas constatações surge o seguinte questionamento: se o campeonato brasileiro, como apontado pelo Transfermarkt, é consideravelmente mais valioso que o turco, por que nenhum time do Brasil quis (ou conseguiu) abrir o seu capital? As razões não são de ordem econômica. Afinal, tem-se aí um potencial gigantesco, porém, muito mal explorado. Imaginem as possibilidades: com a transformação do modelo organizacional dos times brasileiros, de associações para sociedades empresárias, e a sua aproximação do mercado de capitais, mediante a realização de aberturas de capital, os olhos dos investidores, no mundo todo, se voltarão ao Brasil. Esse processo transformacional permitiria às nossas equipes a captação de recursos até então não disponíveis para elas. A miopia do futebol, hoje, no Brasil, que o impede de enxergar esse potencial, é, ao mesmo tempo, o que atrasa o seu desenvolvimento. __________ 1 Ranking GE: Inglês é a melhor liga da Europa; Francês fica em último no top-5. 2 Clubes da Süper Lig 17/18. 3 Rankings das competições de clubes da UEFA. 4 Clubes da Eredivisie 17/18. 5 Digiturk lands major Turkish SuperLig rights deal. 6 A distribuição das cotas de televisão na Série A 2018, com bolo de R$ 1,3 bilhão. 7 Football clubs and the Stock Exchange in 2016.Borsa Istanbul.
quarta-feira, 23 de maio de 2018

Caráter

Há dois anos escrevo semanalmente sobre futebol. Raramente falo sobre pessoas. Acho que me aventurei a falar apenas de Raí, Sócrates, Casagrande, Juca Kfouri e Tite. Talvez tenha esquecido de alguém. Mas não haverá mais do que um ou dois esquecidos. Apesar de minha preferência por temas estruturais, mais um nome entrará naquela lista: Diego Lugano. A opção pelo tema não decorre de ligação clubística - apesar, é claro, da inegável associação e influência que exerce sobre mim. O motivo, ao contrário, é humanista. Para os são-paulinos, Diego Lugano não é humano; é Dio5. Essa também era a minha percepção até conhecê-lo e descobrir que, desconsiderada a mitologia, ele é um sujeito extremamente evoluído e consciente de sua missão social. Nos tempos atuais, em que o conceito de valor se perdeu ou corrompeu, sua utilização merece, sempre, cuidado. Mas é a partir dele, ou melhor, de um conjunto de valores, que se pode compreender o atual diretor do São Paulo. A gratidão talvez seja o mais acentuado deles. Gratidão pelo clube que o formou - o que, para os propósitos deste texto, fica em segundo plano; apesar de, para o autor, se destacar no primeiro - e, sobretudo, pelo esporte que o criou. É normal que profissionais de quaisquer áreas atribuam às suas profissões o crédito pelos sucessos pessoais. É comum que se diga, por exemplo: "devo tudo aos palcos"; ou "ao jornalismo"; ou ainda ao "futebol". É incomum, porém, que se reconheça, na profissão - ou na atividade profissional - algo maior do que o meio de satisfação de interesses ou sonhos pessoais. Não é disso, apenas, de que se trata o futebol. A realização de sonhos pessoais faz parte do processo, mas não se confunde com suas funções sociais e econômicas. E é justamente aí que se revela, novamente, e desta vez fora de campo, a grandeza de Diego Lugano. Ele sabe que não há, no Brasil - e na América do Sul - caminho mais adequado para inserção de crianças e formação de cidadãos do que pelo futebol. Essa constatação é manipulada, aliás, pelos donos do poder futebolístico, que erguem obstáculos para impedir o desenvolvimento humano e dos times, tornando-os reféns de um sistema hermético, interesseiro e corrupto. A dominação é mantida pela inaceitável conivência do Estado, que (i) não oferece a legislação adequada para formação de um ambiente sustentável, (ii) julga com o propósito de manter o status quo e (iii) não arquiteta e executa políticas públicas compassadas com a grandeza do futebol no Brasil. As consequências, todos já sabem. O que talvez nem todos conheçam é que, ao lado de poucos ídolos midiáticos, o futebol deixa, pelo caminho, milhares ou milhões de meninos que apostaram tudo, absolutamente tudo, numa carreira profissional não materializada, e produz um enorme contingente de jogadores que luta, como todo brasileiro, pelo duro sustento da família e que, após uma curta carreira, aumentará a estatística do desemprego. Esse triste modelo não se sustenta. Não é digno. É desumano. Acho - e aqui se trata de um achismo pessoal - que a luta contra esse estado de coisas será - ou já é - a nova missão de Diego Lugano.
O jornal Lance! publicou uma interessante matéria na edição de 11 de maio de 20181, em que trata dos problemas da estrutura do futebol argentino. O ponto de partida é um projeto apresentado pelo governo do presidente Mauricio Macri, que tem como propósito induzir - ou determinar - a passagem dos clubes associativos, sem fins lucrativos, para a forma de sociedades empresárias. De acordo com a matéria, o projeto deverá atrair, na ótica governamental, recursos da iniciativa privada para o desenvolvimento do esporte e, consequentemente, contribuirá para o fortalecimento da economia nacional. Porém, dezenas de clubes apontaram, em carta divulgada ao público, que o governo estaria privilegiando o capital privado em detrimento do Estado, e que, num contexto de fragmentação social, "a presença dos clubes, como articuladores e promotores", seria vital para a sociedade e para o futebol. As questões que se colocam, diante desse aparente dilema, são relativamente óbvias: vital para quem? E qual o conceito de vitalidade que se pretende adotar, diante da decadência do futebol argentino, que depende, como nunca antes em sua história, de um Messias para salvá-lo do abismo. A situação argentina se assemelha à brasileira. Todos os times profissionais daquele país adotam a forma de associações civis, sem fins lucrativos, e existe uma resistência, indisfarçada, à mudança do modelo, que abalaria, portanto, a secular estrutura de dominação que prevalece não apenas nos clubes, mas, sobretudo, na entidade local de regulação, administração e organização do futebol, a AFA - Asociacion del Futbol Argentino. Outro aspecto peculiar, também indicado na matéria, envolve o Racing Club ("Racing"). O Racing é um time tradicional e vitorioso, que já levantou uma vez a taça da Copa Libertadores. Após se atolar em uma crise financeira e passar por uma decretação de falência, estruturou um projeto que previa a administração do futebol por uma sociedade anônima. Apesar da restrição estatutária contida no estatuto da AFA, inventou-se, com o seu apoio, uma brecha para que o Racing, controlado por uma companhia, participasse de campeonatos profissionais. O modelo não deu certo, os investimentos não apareceram, dívidas voltaram a crescer e o controle foi retomado. Esse fracasso passou a servir, no imaginário coletivo, para demonstrar que propostas reformistas não são convenientes, que os clubes devem permanecer amadores sob a batuta de dirigentes não profissionais e que, no caso argentino, o Estado deve manter o protagonismo. Aí está a consagração da fórmula do insucesso. Insucesso vivido, aliás, por praticamente todos os times argentinos, que se tornaram, assim como os brasileiros, exportadores de commodities. O debate não evoluirá de modo adequado enquanto interesses corporativos e pessoais prevalecerem em relação aos verdadeiros valores que envolvem o futebol. O problema do Racing, por exemplo, não nasceu da sociedade anônima; ela foi usada como remédio miraculoso para o tratamento de doente terminal. Além disso, a "solução Racing" foi montada sobre uma estrutura casuística, que se prestava apenas a salvar um time tradicional e a pacificar uma possível crise social. O que se tentou, assim, foi o salvamento - ou a manutenção - do que existia. Não tinha como dar certo. Como também não funcionarão novas tentativas de resgate, que não forem construídas sobre um sistema sustentável, pensado para, de um lado, proteger o futebol como bem cultural e, de outro, atrair investimentos privados. O Brasil tentou, com a Lei Pelé, impor uma nova cultura. Também não funcionou porque se pensou apenas em aspectos formais. Achava-se que a transformação em empresa seria, por si só, a solução para os desmandos clubísticos. Não foi e não será, pois empresas que não têm acesso a recursos, a financiamentos, a meios de desenvolver suas atividades também não resistem e desaparecem. Assim como os clubes brasileiros e argentinos estão desaparecendo diante do poderio dos europeus, que se organizaram para captar, investir e dominar. Aí estão os motivos da crise do futebol no Brasil e na Argentina. Ambos os países, aliás, estão fazendo um esforço monumental para destruir ativos que europeus e asiáticos pagam bilhões para se apropriar. __________ 1 Clubes S/A: como funciona no mundo, a proposta de Macri na Argentina e o que se faz hoje no futebol brasileiro.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo Em texto publicado na última segunda-feira (7/5/18)1, o jornalista Rodrigo Capelo revelou que o Clube Atlético Paranaense ("CAP" ou "Atlético Paranaense") possui projeto de transformação do clube em uma sociedade anônima. De um lado, essa iniciativa demonstra o pensamento vanguardista de seus dirigentes, pois projeta uma ruptura com estado de coisas em que se insere o futebol brasileiro. A própria ideia de constituir uma sociedade anônima, que é estrutura mais aproximada da realidade de mercado, evidencia o descontentamento com a forma pela qual os times se organizam, atualmente, no país. Afinal, o modelo associativo, distanciado da finalidade lucrativa, é inadequado ao exercício de atividades econômicas relevantes, como as desempenhadas pelas entidades futebolísticas. De outro lado, contudo, o eventual vanguardismo coloca o CAP em um dilema. Isto porque ainda não existe, no Brasil, um ecossistema que estimule a transição do modelo antigo (de associação) para o novo (de sociedade empresária). O dilema reside, assim, na escolha entre (i) dar o primeiro passo agora, e ser pioneiro, ou (ii) aguardar iniciativa do Estado, mediante a criação de mecanismos legais fomentadores da transformação do futebol brasileiro, e concorrer, ao mesmo tempo, com todos os outros times do país que optarem pelo mesmo caminho. De acordo com o texto de Rodrigo Capelo, o Atlético Paranaense aguarda a aprovação do Projeto de lei 5.082/2016, criador da Sociedade Anônima do Futebol - SAF ("Lei da SAF"), para iniciar o processo transformacional. A lei propiciaria, portanto, a fertilidade sistêmica, conferindo maior segurança à passagem do modelo associativo para o societário. Sem a Lei da SAF não se construirá, realmente, o novo sistema de que o futebol precisa para se financiar e desenvolver, tanto no plano econômico como social. Isso não significa, porém, que iniciativas isoladas sejam inviáveis. Apesar das dificuldades e dos obstáculos existentes, é possível, sim, realizar essa passagem, de forma segura e eficiente, antes da instituição, por lei, da SAF. Há mecanismos e técnicas que podem ser utilizados no processo de criação de sociedades empresárias - pautados, aliás, nos mais modernos conceitos de gestão, como transparência e compliance, pilares da (boa) governança corporativa. Cite-se, como exemplo, a tentativa do São Paulo Futebol Clube, cujo projeto de constituição de uma nova companhia, que será proprietária dos ativos do futebol, está em andamento. Hoje em discussão no Conselho de Administração, esse seria o primeiro caso brasileiro de criação de uma estrutura apta não só a organizar a atividade futebolística, mas, principalmente, permitir o seu financiamento, expandindo as opções de captação de recursos e melhorando a sua posição perante torcedores, comunidade, financiadores e investidores. Portanto, o pioneirismo, fundado na técnica, deveria motivar o Atlético Paranaense a acelerar os seus planos, e iniciar o projeto de sua transformação antes mesmo da atuação estatal, com a edição da Lei da SAF. Ser pioneiro significa sair na frente, sem ou com muito menor concorrência, conferindo ao agente que assumiu esse risco um maior potencial de dominação da técnica e de retorno. Não ser pioneiro, por outro lado, confere, em tese, menos riscos; mas, em contrapartida, reduz a possibilidade do CAP de se diferenciar em relação a todos os demais grandes times do país e de se posicionar adiante deles - e, assim, quem sabe, superá-los em credibilidade, receita, conquistas e, no futuro, torcida. O dilema está posto. E, ao que parece, pode realmente impedir o vanguardismo do Atlético Paranaense. __________ 1 Com estrutura inédita no futebol, Atlético-PR se prepara para virar SA.
quarta-feira, 25 de abril de 2018

A elitização do futebol mundial

O projeto de elitização do futebol não é novo. O processo, aliás, está em curso, e o ritmo cada vez mais acelerado. Apesar da tentativa de o empacotar como uma consequência dos tempos modernos, uma coisa não se confunde com a outra. O futebol pode ser moderno e democrático ao mesmo tempo. Os efeitos no Brasil passaram a ser sentidos, com maior intensidade, após a Copa do Mundo de 2014. Estádios de concreto, desconfortáveis e ultrapassados, foram substituídos pelas arenas desalmadas. A falta de alma não decorre da modernização, mas da forma e do propósito com que se operou a substituição, e do incentivo ao processo de exclusão. O suposto conforto, portanto, não é o problema. A adoção de padrões idealizados, para atender às necessidades efêmeras de um evento irresponsável, deixou marcas (ou cicatrizes) indeléveis. A principal delas é o divórcio com as bases das torcidas. Restaram, portanto, cicatrizes urbanas, desprezadas e incompreendidas. O Maracanã é o principal símbolo desse processo. A mística que lhe sobra advém do passado, do que foi e do que ali se protagonizou. O torcedor, de modo geral, deixou de se identificar com aquele símbolo - assim como tem deixado de se identificar com o futebol brasileiro. Corinthians e Palmeiras passam pelo mesmo processo, mas o conduzem de outra forma. Não há dúvida de que também se tornam, a cada dia, mais elitistas. Isso se nota pelas características dos torcedores, capturados pelas câmaras de televisão. Porém, aproveitam a inevitabilidade do curso da história para se afirmarem. E aí está a chave para o futuro (ou para preservação): a afirmação e o protagonismo locais, como passaporte para participação de uma aglutinação internacional. Os caminhos de ambos os times paulistas são distintos, porém, similares na vulnerabilidade. O trajeto pode ser abalado pela falta de recursos ou pela ausência de um (ou mais) mecenas. Eles dificilmente resistem, pois, ao enfrentamento contra pares capitalizados e estruturados para ocuparem postos dominantes. Essa característica comum justifica o distanciamento entre o futebol brasileiro e o europeu. Não há, pois, como competir sem que se parta de uma base sólida. A falta de competividade pode começar a ser testada, sistematicamente, com a implementação de um campeonato mundial de clubes, aparentemente sugerido por um grupo de investidores internacionais, que pretende explorar esse formato. A sua eventual confirmação irá desnudar um problema estrutural, que vem sendo camuflado pelo sucesso individual de mercadorias exportadas. Afinal, os jogadores brasileiros distribuídos entre os principais times europeus emprestam a ideia de que o futebol, por aqui, ainda é forte. A força, no entanto, vem dos investimentos e da preparação a que se submetem no exterior; lá chegam como commodities e são transformados em preciosidades. Esse processo beneficia, paralelamente, a CBF, que monta poderosas seleções e oferece a sensação de higidez futebolística. Com o surgimento dessa Copa de Times, o hiato se evidenciará. Para concorrer com os grandes times internacionais, ou, ao menos, para montar elencos que não deixem uma sensação vexatória, os clubes locais terão de investir. Porém, suas estruturas jurídicas não permitem a captação de recursos no mercado. Restarão os mesmos instrumentos de sempre: mecenato, antecipação de receitas, subsidio estatal etc. Tais instrumentos, no entanto, são insuficientes para todos; daí, aliás, a crise sistêmica do futebol local. O caminho será a definição de poucos times que receberão os favores ou a simpatia do status quo, para representar ou justificar a posição de protagonismo que, exceto pela seleção, não existe mais. O resultado parece óbvio: a elitização do futebol, com o incentivo ao surgimento de pouquíssimas potências locais, que dominarão o cenário nacional e tentarão competir no internacional. O atual elenco do Palmeiras e a estrutura do Corinthians já demonstram que, num ambiente estéril, um palmo de fertilidade cria um hiato quase insuperável. Com a expansão da área fértil, se criará, ainda, um sistema irreversível de castas. Assim, além da elitização do campo, se projetará uma nova e reduzida elite clubística, num país que, sozinho, poderia ter uma liga comparável à europeia.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo Para realizar os seus fins - notadamente a prática do desporto em geral, em especial do futebol, profissional ou não, seja de forma direta ou mediante a outorga de concessão ou por meio de constituição ou a participação em outras associações ou sociedades - o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense ("Grêmio") - tricampeão da Copa Libertadores da América - se divide em 8 órgãos, nos termos do art. 54 do seu Estatuto Social ("Estatuto"): (i) Assembleia Geral; (ii) Conselho Deliberativo; (iii) Conselho Fiscal; (iv) Conselho Consultivo; (v) Conselho de Administração; (vi) Presidência; (vii) Vice-Presidência; e (viii) Gerência executiva. A Assembleia Geral, constituída pelos associados, é a responsável exclusiva por (i) eleger o Presidente e os Vice-Presidentes, bem como os membros efetivos e suplentes do seu Conselho Deliberativo, e (ii) deliberar sobre fusão, cisão, incorporação ou extinção do Grêmio. O Conselho Deliberativo, por sua vez, é competente para: (i) eleger os membros do Conselho Fiscal; (ii) discutir e votar o orçamento anual; (iii) analisar os balancetes trimestrais e as contas anuais do Conselho de Administração; (iv) decidir sobre propostas submetidas pelo Conselho de Administração, incluindo pedidos para dotação de crédito especial e suplementação do orçamento; (v) decidir sobre propostas de caráter financeiro que envolvam onerações ao patrimônio imobiliário do clube; (vi) votar o planejamento estratégico; (vii) decidir sobre limites de endividamento; e, dentre outras atribuições, (viii) autorizar a constituição de ou a participação em outras associações ou sociedades. O Conselho fiscal é um órgão autônomo e independente, composto por 6 associados, eleitos pelo Conselho Deliberativo, os quais não podem desempenhar outras funções no Grêmio, tampouco ter vínculo familiar (conforme art. 97, §4º do Estatuto) ou empregatício com o Presidente e os vice-presidentes ou, ainda, com gerentes executivos. Suas funções, basicamente, são fiscalizatórias, de modo que a referido órgão cumpre examinar as demonstrações financeiras, denunciar ao Conselho Deliberativo erros e fraudes, bem como emitir pareceres sobre as propostas orçamentárias e os movimentos econômico-financeiros. Diferentemente dos demais, o Conselho Consultivo é um órgão especial honorífico, composto, dentre outros, por ex-presidentes e ex-vice-presidentes, que opina sobre assuntos de alta relevância, sempre que convocado pelos presidentes do Conselho Deliberativo ou do Conselho de Administração. O Conselho de Administração, formado pelo presidente e pelos 6 vice-presidentes, detém a incumbência principal de coordenar a administração do Grêmio. O órgão é responsável, ainda, por organizar o orçamento anual do clube, aprovar investimentos, autorizar a celebração de contratos de aluguel ou arrendamento de dependências do Grêmio, contratar, em caráter permanente, auditorias externas independentes (conforme indicado pelo Conselho Deliberativo) e contratar e dispensar os Gerentes Executivos, além de fixar a remuneração e as atribuições desses. Ressalte-se que, no âmbito das funções dos membros do Conselho de Administração, são considerados atos de gestão irregular ou temerária os que revelem desvio de finalidade ou gerem risco excessivo e irresponsável para o patrimônio do clube, tais como os exemplificados no art. 87-A do Estatuto. Ao presidente do clube, por sua vez, cabe, por exemplo, fazer cumprir o Estatuto, os Regulamentos e os Regimentos, negociar contratos de concessão ou participação em outras associações ou sociedades (com autorização do Conselho Deliberativo), representar o Grêmio, bem como elaborar balancetes trimestrais, balanço e relatório anual. Já os vice-presidentes devem (i) colaborar com o presidente para o exercício das atribuições deste, substituindo-o em seus impedimentos e ausências, inclusive, e (ii) executar as delegações outorgadas e as tarefas que lhe forem por ele designadas. Por fim, a Gerência Executiva consiste em órgão de assessoramento dos Conselhos Deliberativo, de Administração e Consultivo. Subordinada ao Presidente e ao Conselho de Administração, atende, pelo menos, às áreas de esportes, administrativa e financeira, comercial e marketing, jurídica e planejamento e controle. Não se trata de um órgão de deliberação colegiada, mas, os Gerentes - que são remunerados em razão de suas funções - devem elaborar em conjunto demonstração de resultado e balanços, em periocidade mensal, de acordo com as normas nacionais de contabilidade, além de relatórios - com a finalidade de acompanhamento do planejamento estratégico - para apreciação pelos Conselhos de Administração e Fiscal. Afora as características orgânicas do Grêmio, merecem destaque a existência de um planejamento estratégico, de um portal da transparência e de um código de ética e disciplina, todos disponíveis em seu site, além de artigos do Estatuto que revelam a preocupação com a sua adequação aos mais modernos conceitos de gestão futebolística, como: (i) o art. 105, estabelecedor do regime econômico e financeiro do clube, a partir do qual se prevê a segregação do tratamento contábil e do orçamento do futebol profissional; (ii) o art. 118, que define a responsabilização pessoal dos membros dos órgãos do Grêmio pelos prejuízos decorrentes da prática de ações ou omissões contrárias à lei ou ao Estatuto; e (iii) os artigos 116 e 117, os quais, antecipando uma possível transformação do Grêmio em entidade revestida de outra forma jurídica, autorizaram tal reorganização e, ainda, definiram a destinação obrigatória do patrimônio, da marca e do acervo a essa nova entidade, que passaria, então, a ser titular dos referidos ativos.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo O Botafogo de Futebol e Regatas ("Botafogo"), atual campeão carioca, se encontra no 5º nível da distribuição de cotas televisivas entre os clubes brasileiros da série A, para o ano de 2018. Junto a Atlético Mineiro, Cruzeiro, Fluminense, Grêmio e Inter, tem direito ao recebimento de cerca de R$ 60 milhões1. Os valores não são tão modestos. Por outro lado, não permitem ao Botafogo se apoiar apenas nas suas receitas como garantia de um bom desempenho esportivo. E é aí que se encontra o desafio: aperfeiçoar a gestão e aprimorar a governança, para, assim, com menos dinheiro, encarar os clubes que dispõem de mais recursos. O problema é que o Botafogo se organiza como associação civil, espécie de pessoa jurídica inapta a captar recursos e financiar a atividade futebolística. O dilema, que se reproduz em todos os grandes clubes brasileiros, é, aqui também, praticamente insuperável. Seu estatuto social, aliás, também não é muito diferente do padrão adotado por outros clubes. Nele são previstos 5 poderes: Assembleia Geral, Conselho Deliberativo, Conselho Diretor, Conselho Fiscal e Junta de Julgamentos e Recursos. Todos eles são, por meio de seus membros, obrigados, formalmente, à observância de regras de probidade, diligência e lealdade, conforme previsto nos artigos 42 e 43, sob pena de responsabilização. À Assembleia Geral compete eleger os membros do Corpo Transitório do Conselho Deliberativo, o presidente e o vce-presidente Geral do Botafogo, destituir administradores, alterar o Estatuto, deliberar sobre a adoção de medidas judiciais contra dirigentes para ressarcimento de prejuízos, bem como sobre a instauração de procedimentos de apuração de responsabilidade de dirigentes. Composto pelo Corpo Permanente (formado pelos sócios beneméritos e grande beneméritos) e pelo Corpo Transitório (formado por sócios eleitos pela Assembleia Geral, a cada 4 anos), o Conselho Deliberativo do Botafogo detém, dentre outras atribuições, as incumbências de (i) autorizar a participação do clube em sociedades comerciais de natureza desportiva, assegurando-lhe a detenção da maioria do capital votante, (ii) votar o plano de metas e o projeto de orçamento, (iii) apreciar o relatório e julgar as contas anuais do Conselho Diretor, (iv) determinar a contratação de auditoria independente e (v) autorizar o Presidente do clube a praticar determinados atos de alienação e operações financeiras. Já o Conselho Diretor é constituído por um presidente (sempre o Presidente do Botafogo) e pelos vice-presidentes. O órgão é responsável pela administração ordinária, cabendo ao seu Presidente a administração geral, bem como a sua representação interna e externa. O Conselho Fiscal, por sua vez, é responsável, em linhas gerais, por fiscalizar a execução do orçamento, emitir pareceres sobre balanços e demonstrações financeiras, bem como sugerir providências, além de opinar acerca de aberturas e operações de créditos, analisar propostas orçamentárias e solicitar esclarecimentos ao Conselho Diretor. Como forma de tentar garantir a este órgão independência, o art. 91 do Estatuto veda a participação, no Conselho Fiscal, de membros do Conselho Diretor, ocupantes de cargos em qualquer dos poderes do Botafogo, membros da mesa diretora do Conselho Deliberativo e de suas comissões, membros da Junta de Julgamento e Recursos, e, ainda, parentes até 4º grau e afins dos ocupantes de cargo em qualquer dos poderes do Botafogo. Por fim, à Junta de Julgamento e Recursos cumpre julgar infrações, aplicar penalidades e decidir recursos, afetando membros dos poderes do clube e seus sócios. Há, ainda, um capítulo, no Estatuto Social - e esse é um aspecto positivo - dedicado às Práticas de Governança, em que são definidas regras acerca do planejamento de metas e orçamentário, da execução orçamentária, da responsabilidade na gestão do orçamento e das demonstrações financeiras. Além disso, o site oficial do clube conta com um Portal da Transparência, nos quais se divulgam Estatuto, regulamentos, organograma2, auditorias, aspectos financeiros e outros dados da gestão e do próprio clube. O Botafogo atingiu, nos últimos anos, alguns êxitos pontuais - a exemplo do campeonato carioca de 2018; sua missão, no entanto, é desenvolver um modelo sustentável. Isso depende, no entanto, de uma profunda transformação do modelo de propriedade e das perspectivas de financiamento da empresa futebolística. A separação do futebol, como atividade empresária e potencialmente lucrativa, e seu deslocamento a uma sociedade também empresária, com boas práticas de gestão, governança e foco na profissionalidade, é, por assim dizer, o último ato desta peça chamada "a transformação do futebol brasileiro". E aqui, destaque-se: trata-se de processo que demanda responsabilidade, e não pode, nem deve ser motivado para o atingimento de fins pessoais (ou escusos). A ideia é conferir credibilidade e segurança, para melhorar a percepção do mercado, dos financiadores, dos investidores e, claro, dos torcedores; e não o contrário. Assim o Botafogo poderá sonhar em resgatar os tempos de glória e transformar os êxitos eventuais em conquistas recorrentes. __________ 1 A distribuição das cotas de televisão na Série A 2018, com bolo de R$ 1,3 bilhão. 2 Botafogo - Portal da transparência.
Hesitei (e muito) antes de abordar esse tema. Não queria soar corneteiro. Superada a hesitação, pois, aqui, as cornetas não soarão, convenci-me de sua pertinência. Como (quase) todo brasileiro, (tenho certeza de que) sou um especialista em futebol. Acho que entendo tudo do esporte. E não é só isso: também acho que jogo muita bola e que sou o treinador mais capacitado para solucionar os problemas do meu time. Ah, faltou dizer que eu também seria a melhor pessoa para presidir o clube. Pois é, o futebol tem essa peculiaridade: transformar seres racionais em irracionais; intelectuais em ogros e, claro, ogros em intelectuais. Daí a dificuldade que temos (sim, no plural) de reagir adequadamente a certas situações. Torcedores, em sua grande maioria, são imediatistas; aliás, não apenas isso: realizam, também, avaliações delimitadas, que se traduzem, basicamente, em gols e títulos. Num país como o Brasil, em que o planejamento estratégico ainda é incipiente e que, sobretudo, a organização da empresa futebolística se sujeita ao modelo introduzido no século XIX, não resta, mesmo, outra possibilidade senão exigir, sempre e apenas, resultados imediatos. Portanto, o circo, desacompanhado do pão, é motivo suficiente, nesse setor da sociedade, para conter a ira coletiva; mas a sua ausência também é, por outro lado, justificativa para incitação da barbárie. Todo time vive - ou viveu - situações extremas. O São Paulo, por exemplo, ganhava tudo no período em que foi capitaneado por Raí e comandado por Telê Santana. Por outro lado, desde 2008, tem se portado como coadjuvante. Com exceção de um título secundário, passou mais tempo lutando contra o rebaixamento do que pelo topo. Esse cenário revela um problema estrutural, que vem lá de trás. Ou seja, não decorre de desajustes conjunturais ou de ações pessoais. Por isso, se a estrutura não for revista, não se resgatarão os tempos de glória. Aliás, quando se olha para a organização do futebol mundial, se conclui, sem muito esforço, que poucos times são protagonistas, e que a característica que os identifica é a capacidade de gerar (ou atrair) recursos para realização de investimentos realmente relevantes. Quem não tem dinheiro está murchando; o futebol atual é, gostemos ou não, concentrado em times-seleção. Porém, nenhum grande clube brasileiro está organizado para dar o passo que os europeus deram, e, assim, vão se consolidando como meros exportadores de commodities. O São Paulo talvez seja o único que vem tentando romper com esse estado de coisas - apesar das frustações em campo. No plano estrutural, iniciou-se e se concluiu um estudo de viabilidade da separação dos ativos sociais dos ativos do futebol, que seriam, estes, vertidos em uma sociedade empresária independente, autônoma e organizada de maneira profissional. Paralelamente, no plano operacional, a condução do futebol foi atribuída a uma pessoa que se preparou, e muito, para esse momento. O atual diretor de Futebol, Raí, abandonou o conforto de uma bem-sucedida carreira construída fora do campo de jogo para expor-se ao julgamento das massas que se desintegram nas mídias sociais. Nós (e aqui o plural é necessário), torcedores, reclamamos do amadorismo dos dirigentes, das relações promíscuas de apadrinhamento, da falta de profissionais na condução do futebol e de tantos outros movimentos erráticos, mas, quando um movimento transformacional se realiza, continuamos a falar de impedimento, cartão amarelo, pênalti e outros lances puramente esportivos. Somos, portanto, seletivos - e, aparentemente, superficiais - em nossas análises e preocupações. A ausência de títulos pesa nesse momento. Mas, Raí, de quem Sócrates se tornou irmão, é a pessoa certa, no lugar certo, no momento certo. Ele precisará, no entanto, de tempo para implementar as mudanças que darão uma nova perspectiva ao time (já iniciada com a vinda de uma dupla de executivos, coincidentemente ambos ex-zagueiros, Lugano e Ricardo Rocha), e essa implementação está associada ao outro movimento, tão ou mais importante, que é a separação do futebol. A conjunção desses movimentos indicará que algo novo - e realmente importante - poderá surgir: a necessária reforma estrutural.
quarta-feira, 28 de março de 2018

O fim da história do futebol no Brasil

Causou certo furor a matéria do jornal Estado de São Paulo, de segunda-feira, 26 de março de 2018, estampada na p. A22, intitulada "Alemanha cria o 'Vale do Silício' do futebol". O comentário mais comum gravitava ao redor da idealização de um projeto semelhante no Brasil, que poderia, com os seus "recursos humanos" (ou seja, com a sua formação quase espontânea de talentos), criar um centro acelerador e aperfeiçoador sem precedentes. Ao contrário do que pode parecer, esse caminho, considerando a estrutura organizacional do futebol local, poderia sacramentar o fim da história do futebol no Brasil. Por isso, o tema merece reflexão. O futebol brasileiro está fissurado. De um lado se posiciona a poderosa CBF, administradora de um dos maiores ativos do planeta, a seleção nacional; de outro, os times, de todas as divisões, da mais alta às mais baixas, atolados em problemas, dívidas e falta de perspectiva, pela ausência de um projeto sustentável e viável de desenvolvimento da empresa futebolística no país. A penúria dos clubes foi escancarada, em cadeia nacional, pelo ex-jogador e atual comentarista, Casagrande. Indignado, ele afirmou, durante a transmissão do jogo entre São Paulo e Corinthians no Morumbi, no dia 25 de março, por ocasião da semifinal do Campeonato Paulista, que o futebol jogado no país não tinha qualquer relação com o futebol praticado na seleção; seriam realidades de diferentes dimensões. E não parou aí: também disse que jogadores de primeiro e de segundo níveis, atuavam fora, prejudicando a qualidade da prática interna. O panorama da atividade futebolística local confirma a irresignação: estádios vazios e de má qualidade, com raras exceções; campeonatos regionais desinteressantes que prejudicam a preparação para os verdadeiros desafios da temporada; campeonato nacional sem visibilidade internacional; êxodo de jogadores em idade precoce e ainda em formação; escassez de grandes ídolos locais ou internacionais; produtos e serviços de baixa qualidade; ausência de oferta de patrocinadores sólidos; inexistência de instrumentos de financiamento da empresa do futebol; falta de governança... O diagnóstico poderia prosseguir. Enquanto isso, a CBF encontrou em Tite um instrumento de resgate da confiança e do orgulho de ser torcedor brasileiro, ou melhor, torcedor da seleção. Ali convivem, paradoxalmente, duas realidades, duas empresas, duas CBF's: uma maculada pela história de atos nada republicanos, e outra que, desgarrada dela própria, exala frescor, ética, trabalho, disciplina, governança, planejamento, respeito e sucesso. A situação é tão fantástica que turva a realidade: afinal, uma é a outra, mas, perante a sociedade, perante o torcedor, a outra não é a uma. O drama surge exatamente aí: o êxito, até o momento, da campanha de Tite - aliás, apesar do merecido reconhecimento, até agora não fez nada de excepcional, pois o Brasil jamais ficou fora de uma Copa do Mundo - não tem qualquer vinculação com o futebol praticado no Brasil e, muito menos, com a organização e a atuação da CBF. Os jogadores, em sua maioria, se formaram fora e se tornaram ídolos internacionais, e esse processo de "terceirização" e internacionalização beneficiou - e beneficia - justamente a CBF e seu principal produto, a seleção. Apenas a seleção, e não os times nacionais. Daí as inevitáveis (e tristes) conclusões: os jogadores brasileiros são commodities destinadas à exportação e, dentre os produtos exportados, sempre se formará uma equipe de 23, apta a disputar o título mundial. Logo, o êxito da seleção se dissociou da qualidade interna do futebol. Assim, a concepção de um centro de ponta desenvolvido pela CBF, a exemplo do que se planeja na Alemanha, intensificaria esse modelo fissurado, e reduziria o futebol local a um enorme fornecedor de matéria prima mundial. Como resolver esse dilema? Deveria ser muito simples. Aliás, a Alemanha serve como referência, pois, antes de anunciar o seu Vale do Silício futebolístico, ela arquitetou outro projeto, este sim, grandioso, de resgate e desenvolvimento do futebol local, a partir das escolas e dos times nacionais. Envolveu toda a sociedade, inclusive o Estado, o Mercado e a Confederação local. Com isso, criou-se um processo sustentável que deverá formar gerações e gerações de jogadores, que se substituirão sem a necessidade de surgimento de um Salvador da Pátria. Consumado e estabelecido esse projeto, aí veio a proposição de se criar um centro tecnológico, que permitirá à seleção preparar jogadores para que executem o projeto de dominação. A base de tudo, portanto, é a própria base, e não o topo. Daí a visão cética a respeito da inversão de valores (e de poder) no futebol brasileiro. Os jogadores, os times e os campeonatos são irrelevantes para manutenção do controle da CBF. O insucesso dessas estruturas alimenta o poder central. Por isso que as ligas não voam. Por isso que os times não se desenvolvem e não se beneficiam de um modelo que permita o financiamento de suas atividades. Por isso que o Brasil precisa de um projeto que resgate o seu futebol, para que a atividade se torne um poderoso meio de desenvolvimento econômico e social.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo O crescimento financeiro da Sociedade Esportiva Palmeiras (Palmeiras) nos últimos cinco anos é impressionante. Como responsáveis por essa recuperação, três fatores podem ser destacados: (i) a reorganização do endividamento; (ii) a inauguração do Allianz Parque; e (iii) as entradas de novos patrocinadores. O fato é que, hoje, o Palmeiras, além de possuir o elenco mais valioso dentre os participantes da Copa Libertadores da América 20181, é o segundo maior gerador de receitas do campeonato brasileiro de futebol2: foram R$ 531 milhões em 2017, conforme apontado em suas demonstrações financeiras3. Apesar desses números ainda serem pouco significativos em relação às potências europeias - para se ter uma ideia, o menor faturamento dentre os 20 clubes mais rentáveis da Europa na temporada 2016/2017 foi do Everton, time inglês que auferiu 199 milhões de euros (aproximadamente R$ 800 milhões)4 -, o Palmeiras merece atenção. Por isso, é importante identificar a sua estrutura organizacional - fator preponderante na captação de investimentos em condições normais de mercado -, a fim de entender se o êxito financeiro decorre de ações que tiveram motivações afetivas e/ou políticas, a exemplo dos movimentos de Paulo Nobre e Leila Pereira, ou poderia ser alcançado independentemente dessas figuras, por força de sua governança e consequente atratividade. Os poderes do clube se dividem em Assembleia Geral (AG), Conselho Deliberativo (CD), Conselho de Orientação e Fiscalização (COF) e Diretoria Executiva, nos termos do art. 4º do seu Estatuto Social. À Assembleia Geral - formada por todos os associados do Palmeiras - compete escolher, dentre os associados e a cada dois anos, membros titulares e suplentes do Conselho Deliberativo do clube, além de eleger o Presidente e os Vice-Presidentes da Diretoria Executiva - após aprovação, pelo CD, dos candidatos -, destituir os administradores e alterar o Estatuto Social. O Conselho Deliberativo, por sua vez, é formado por até 300 membros - eleitos pela Assembleia para mandatos de quatro anos, permitidas reeleições - dos quais 2/3, pelo menos, devem ser brasileiros. Referido órgão se reúne, ordinariamente, 3 vezes no ano: em janeiro, maio e outubro. Na reunião de janeiro, o CD delibera sobre relatório da administração, balanço financeiro e demonstração da receita e despesa do exercício anterior, documentos esses acompanhados de parecer do Conselho de Orientação e Fiscalização. Além disso, também em janeiro, mas, apenas bianualmente, o CD escolhe, entre os seus membros, Conselheiros para o COF. Já na reunião de outubro, cabe ao CD aprovar as chapas que concorrerão à Presidência e às Vice-Presidências da Diretoria Executiva. Além dessas responsabilidades, são atribuições do Conselho Deliberativo: (i) eleger seu Presidente e Vice-Presidente; (ii) deliberar sobre a previsão orçamentária; (iii) autorizar, após manifestação do COF, a contração de empréstimos ou a realização de operações financeiras acima de determinados patamares, bem como a abertura de créditos extraordinários; e, dentre outras, (iv) aprovar a constituição ou aquisição de participação societária em sociedade que tenha como objeto a prática esportiva profissional, e transferir a ela os bens e direitos necessários para o desenvolvimento da referida sociedade. Quanto ao Conselho de Orientação e Fiscalização, órgão cuja finalidade é orientar e fiscalizar a administração do Palmeiras, compete-lhe, por exemplo, (i) examinar mensalmente os livros, documentos e balancetes do clube, podendo convocar terceiros para realizar assessorias, (ii) apresentar ao CD parecer anual sobre o movimento econômico, financeiro e administrativo, (iii) opinar sobre as propostas orçamentárias, e (iv) autorizar a realização de operações financeiras enquadradas em determinados patamares. Por fim, a Diretoria Executiva tem um presidente e quatro vice-presidentes, todos considerados administradores do clube, os quais são eleitos pela Assembleia Geral, para mandato de dois anos, permitida apenas uma reeleição. Ao Presidente compete a administração social, com amplos poderes para presidir, dirigir e representar o clube, auxiliado por seus Vice-Presidentes. A administração do Palmeiras é composta, ainda, de Departamentos, dirigidos por Diretores - associados do clube -, todos nomeados pelo Presidente. São 26 Departamentos, dentre os quais administrativo, financeiro, jurídico, de patrimônio, de futebol e de auditoria interna. Anualmente, os Diretores devem apresentar ao Presidente o relatório das atividades dos seus respectivos Departamentos e colaborar com a organização do relatório geral da administração do Palmeiras. Assim, a Diretoria Executiva é composta pelo Presidente, pelos Vice-Presidentes e por todos os Diretores de Departamentos, funcionando como Conselho Diretor da administração social do clube, nos termos do art. 119 do Estatuto Social. Percebe-se, portanto, que a estrutura organizacional do Palmeiras se assemelha à de praticamente todos os outros clubes brasileiros; não apenas em razão da forma associativa adotada, mas, do próprio distanciamento de suas disposições estatutárias daquelas observadas, mundo afora, nos modernos sistemas de governo de entidades futebolísticas bem-sucedidas. A ausência de órgãos como conselhos de administração e fiscal, compostos por profissionais de mercado, comitês de compliance e auditoria totalmente independentes, além de outros mecanismos de controle, transparência e de aperfeiçoamento da gestão, revelam a incipiência do processo de adaptação dos clubes do Brasil à nova realidade do futebol mundial. Ademais, a dependência dos aportes de mecenas, cujas contribuições são transitórias e, muitas vezes, dependem de questões políticas, minam as chances de se manter em alto nível no longo prazo. Resta, como construção realmente sólida, o estádio (ou a arena), que trouxe de volta a torcida e o orgulho de pertencer ao time - e, por isso, receitas com bilheteria. Considerações como essas dão margem para o seguinte questionamento: o sucesso financeiro eventualmente verificado por um ou outro time brasileiro é, de fato, sustentável e pode se perpetuar, ou decorre, apenas, da conveniência, do interesse (ou do benefício) particular e da aleatoriedade? A situação do futebol, no Brasil, responde essa pergunta. __________ 1 Palmeiras tem o elenco mais valioso entre os clubes da Libertadores 2018. 2 Palmeiras aprova balanço de clube mais rico do Brasil. 3 Balancete. 4 Football Money League 2018.