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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
1. A sociedade anônima do futebol ("SAF"), criada pelo projeto de lei 5.516/19 ("PL 5.516/19"), de autoria do senador Rodrigo Pacheco, preocupa-se com a solução para três aspectos (problemáticos) fundamentais: (i) a apropriação indevida do time de futebol pelos dirigentes clubísticos; (ii) o perigo da invasão de capitais de origem desconhecida (ou de origem ilícita); e (iii) a inutilização de (ou a falta de acesso a) técnicas e instrumentos disponíveis no mercado de capitais. A modelação serve, assim, para, dentro de um marco regulatório próprio, evitar condutas indesejadas e estimular as desejadas, bem como para oferecer segurança jurídica aos atuais proprietários do futebol - os clubes e, numa visão idealizada, os torcedores - e aos investidores locais e internacionais. 2. No que toca à governança, optou-se por um sistema que privilegia a atuação colegiada e independente do conselho de administração, a profissionalização da diretoria e a efetividade do conselho fiscal. Conselho de Administração Enquanto o clube que tiver constituído a SAF for o único acionista desta (ou seja, da SAF), metade dos conselheiros deverá ser independente (portanto, grosso modo, sem vinculação com o próprio clube e os seus dirigentes). A partir do ingresso de investidor, os percentuais (entre membros independentes e não independentes) serão estabelecidos livremente pelos acionistas da SAF, que poderão, se quiserem, manter o parâmetro previsto no PL 5.516/19. Caso o clube indique para o conselho de administração, na quota de membros não independentes, associado que integre qualquer órgão do próprio clube (i.e., membro de conselho deliberativo, consultivo, administrativo, de diretoria ou de fiscalização), o indicado não poderá ser remunerado. Diretoria Todos os membros da diretoria deverão ser profissionais e ter dedicação exclusiva à administração da SAF. Ademais, não poderão ser eleitos empregados ou membros de qualquer órgão do clube, eletivo ou não. Nada impede que essas pessoas se demitam ou renunciem a cargos no clube para assumir novas posições na SAF; mas a cumulatividade não será permitida. Conselho Fiscal Outro órgão de existência obrigatória é o conselho fiscal. Para conferir-lhe efetividade fiscalizatória, não poderá ser eleito para integrá-lo o empregado ou o membro de qualquer órgão, eletivo ou não, de administração, deliberação ou fiscalização do clube, enquanto este (o clube) for acionista da respectiva SAF. 3. O PL 5.516/19 também trata de temas relacionados à concentração de poder e ao investimento em mais de uma SAF. As soluções se dividem em regras restritivas e informativas. Controle do Investidor O acionista controlador da SAF, seja ele quem for, não poderá deter participação, direta ou indireta, em outra SAF. Além disso, o acionista que detiver participação representativa de 10% ou mais do capital de uma SAF, e não for o controlador - ou seja, que não tenha participação societária suficiente para determinar os rumos da SAF -, se participar do capital social de outra SAF, não terá direito a voz nem a voto nas respectivas assembleias gerais, nem poderá participar da administração dessas companhias, diretamente ou por pessoa por ele indicada. Além dessas restrições, o estatuto da SAF poderá vedar a participação, em seu capital, de qualquer pessoa que participe de outra SAF. Revelação da identidade do Investidor Esse é um tema essencial em qualquer ambiente, especialmente no futebolístico. Para evitar a realização de negócios obscuros ou ilegais - como a lavagem de dinheiro - por meio do futebol, a pessoa jurídica que detiver participação igual ou superior a 5% do capital social da SAF deverá revelar o nome, a qualificação, o endereço e os dados de contato da pessoa natural que, direta ou indiretamente, exerça o seu controle ou que seja a beneficiária final do controlador. O investidor que não cumprir o dever de informar terá seus direitos políticos e econômicos suspensos enquanto não demonstrar o adimplemento desse dever. 4. O PL 5.516/19 resolve, ainda, a questão da falta de transparência e de publicidade ao exigir que a SAF mantenha, em seu sítio eletrônico, (i) sua composição acionária, com a indicação do nome, da quantidade de ações e do percentual detido por cada acionista, (ii) as informações relacionadas aos acionistas pessoas jurídicas e, pelo menos, (iii) o estatuto social e as atas das assembleias gerais. Aliás, essas informações deverão ser atualizadas mensalmente. 5. Por fim, o PL 5.516/19 determina que as demonstrações financeiras da SAF sejam submetidas, anualmente, a auditoria externa independente, realizada por auditor registrado na CVM. 6. Eis aí o modelo de governo da SAF.
O projeto de lei 5.516/19 ("PL 5.516/19"), de autoria do senador Rodrigo Pacheco, que tramita no Senado Federal, trata, no art. 3o, das obrigações do clube que constituir uma SAF. A regra geral está contida no caput: o clube permanecerá responsável pelas suas próprias obrigações, exceto aquelas que forem expressamente transferidas no ato constitutivo. Portanto, a decisão a respeito das relações passivas que - em conjunto com o ativo futebolístico - serão vertidas para SAF deverá ser formulada pelo próprio clube em função de sua realidade e da perspectiva do projeto que se implementará. Assim, um aspecto relevante do processo decisório envolverá, necessariamente, a manutenção - ou a criação - da capacidade de honrar as obrigações que permanecerem na esfera patrimonial do clube. Outro aspecto, igualmente importante, estará relacionado às características - e, como apontado acima, perspectivas - do projeto e do eventual investidor da SAF. Com base nesses elementos, a decisão poderá ser tomada de modo racional e no melhor interesse dos agentes envolvidos. De todo modo - e independentemente dos encaminhamentos privados, estabelecidos no âmbito do clube e de suas negociações com futuros sócios da SAF -, o PL 5.516 estabelece regras cogentes que oferecem solidez ao sistema e evitam estruturas oportunistas ou prejudiciais aos associados e aos credores do clube. Uma delas, prevista no art. 2o, estabelece que o Clube e a SAF deverão contratar, na data da constituição desta, acerca da utilização e eventual pagamento de remuneração decorrente da exploração, pela SAF, de direitos de propriedade intelectual (leia-se, sobretudo, marca). Com isso, se projeta a viabilização de uma renda permanente para manutenção do clube e de suas atividades sociais. Outro aspecto, também viabilizador da preservação clubística, consiste na obrigatoriedade de recebimento, pelo clube, enquanto permanecer acionista da SAF e registrar em suas demonstrações financeiras obrigações anteriores à constituição da SAF, em cada exercício social, de dividendos equivalentes a, no mínimo, 25% do lucro apurado. Tendo em vista que o direito ao dividendo mínimo está atrelado à existência de dívidas contraídas antes da criação da SAF, parte do ingresso oriundo deste recebimento deverá ser destinada à satisfação dessas dívidas. É o que estabelece o parágrafo 2o do art. 3o: "[o] clube deverá destinar à satisfação de obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol pelo menos 50% dos dividendos, juros sobre capital próprio ou outra remuneração recebida desta, na condição de acionistas". Essas regras tutelam interesses dos diversos agentes, tais como clube e seus associados, credores (incluindo jogadores), SAF e investidores, e oferecem um efetivo e necessário sistema de freios e contrapesos - verificável, aliás, ao longo de todo o PL 5.516 -, conferidor de segurança jurídica modelar.
Os clubes de futebol, constituídos sob a forma de associação civil sem fins lucrativos, operam, em muitos casos, atividades econômicas que faturam anualmente dezenas ou centenas de milhões de reais - e que logo atingirão a marca do bilhão, com o Flamengo. Ao contrário do que se passa com as empresas tradicionais, que batalham, diária e constantemente, pela preferência do consumidor, o processo de escolha de um time de futebol, pelo torcedor, costuma ocorrer apenas uma vez. Ao escolher o seu time, a pessoa, desde cedo, ainda criança, o carregará durante toda a sua vida. A vitória ou a derrota em campo poderá, eventualmente, abalar a constância da relação, mas não será condição suficiente para que se opere o abandono ou a troca de time. Essa característica revela a existência de dois pilares que devem ser compreendidos: o mercadológico e o passional. O primeiro sugere a existência de um mercado consumidor perpétuo, pouco aproveitado pelos clubes brasileiros. O segundo, que interessa a esse texto, revela uma relação transcendental, suportada por dogmas que, no passado, flertavam com a poesia (ou com o folclore), mas que, nos tempos atuais, impedem o desenvolvimento do futebol brasileiro (ou, em tom realista - e ao mesmo tempo alarmista -, o conduzem ao seu destruimento). O principal e mais maléfico dogma, persistente por conta da paixão clubística, consiste na convicção de que o time de futebol não pode ter dono. Essa proposição, todavia, não resiste a uma singelíssima análise da realidade, curiosamente evitada - ou manipulada - pelos agentes dominantes do sistema do futebol. A realidade é que todo time tem dono. No Brasil, o dono, desde a introdução do esporte, foi - e ainda é - a associação civil, ou seja, o clube. Ocorre que os donos do futebol brasileiro - os clubes - não têm condições de competir com os donos dos principais times globais. Faltam-lhes dois elementos essenciais, para que pudessem concorrer com alguma chance de igualdade: organização profissional e dinheiro para investir. Chega-se, assim, ao ponto central deste texto: a necessidade de conjugação da relação passional do torcedor com a formação de um ambiente empresarial, sustentável, concebido para prover aos times os meios de se readequarem e se reinserirem econômica e socialmente. E, assim, promover o abandono do plano dogmático e substituí-lo pelos planos da ciência e da tecnologia. A solução foi apresentada pelo projeto de lei 5.516/19 ("PL 5.516/19"), de autoria do senador Rodrigo Pacheco, em trâmite no Senado Federal, que reconhece, de um lado, a relevância cultural do futebol (que integra, aliás, o patrimônio nacional), e, de outro, também assume a necessidade de atração de recursos privados para investimento e desenvolvimento da atividade futebolística. De acordo com o art. 2º do PL 5.516/19, caso um clube constitua uma Sociedade Anônima do Futebol - SAF, ela emitirá duas espécies de ações, sendo uma delas denominada "classe A", que somente poderá ser subscrita pelo clube. Portanto, nenhum outro acionista - além do clube - será detentor (ou proprietário) de ação dessa classe. A ação classe A conferirá ao clube o direito de, enquanto representar pelo menos 10% do capital social da SAF, vetar as seguintes matérias: a) a alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de qualquer bem imobiliário ou de direito de propriedade intelectual conferido pelo clube para formação do capital social; b) qualquer ato de reorganização societária ou empresarial, como fusão, cisão, incorporação de ações, incorporação de outra sociedade ou trespasse; c) a dissolução, liquidação e extinção; e d) o pedido de recuperação judicial ou de falência. Além disso, enquanto o clube detiver ao menos uma ação classe A, poderá, ainda, vetar as seguintes demais matérias: a) a alteração da denominação; b) a modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluindo, símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; c) a utilização de estádio ou arena, em caráter permanente, distinto daquele utilizado pelo clube, antes da constituição da Sociedade Anônima do Futebol; e d) a mudança da sede para outro município. Assim se chega a um sistema harmônico, composto de freios e contrapesos, que atribui ao clube associativo, originador do time de futebol, a função de controlar e evitar a prática de determinados atos que poderiam atentar contra a história do time e a paixão do torcedor. Eis aí um sistema que derruba o maior dogma do futebol brasileiro; dogma esse que serve apenas para perpetuar a dominação cartolarial, de origem patrimonialista, que privilegia o interesse particular de pouquíssimas pessoas, em detrimento do interesse do país, dos times, dos torcedores e dos demais agentes que participam da atividade futebolística.
O projeto de lei 5.516/19 ("PL 5.516/19"), de autoria do senador Rodrigo Pacheco, elegeu a sociedade anônima do futebol ("SAF") como instrumento de segurança jurídica e de legitimação do novo mercado do futebol. Há motivos para isso, conforme se demonstrou na parte 2 desta série de textos. Esse caminho rompe com as experiências malsucedidas das Leis Zico e Pelé, que tentaram, sob diversos enfoques, induzir clubes associativos a transformarem-se em empresas ou a constituírem novas empresas. Em ambas as leis o clube poderia adotar, no ato transformacional ou constitutivo da empresa, qualquer um dos tipos societários previstos na legislação. A partir desse comando puramente formal, diversos clubes aventuraram-se por um ambiente inóspito e caíram em armadilhas societárias ou negociais montadas ora por seus próprios dirigentes, ora por agentes externos muito mais experientes, que reconheceram a fragilidade do sistema e a possibilidade de se aproveitarem da insuficiência regulatória. O PL 5.516/19 estabelece, assim, pela criação da SAF, meios para evitar os erros históricos de que foram e ainda são vítimas times brasileiros - sendo o caso do Figueirense o mais recente. Ele oferece, em resumo, um conjunto mínimo de regras arquitetadas para oferecer segurança aos clubes e aos seus torcedores, de um lado, e a investidores, de outro. Com a constituição da SAF, o conjunto normativo não poderá ser afastado, de modo que, tanto no plano do governo da empresa futebolística, como no plano da transparência e da publicidade informacional, não se poderá evitar a sua incidência. A SAF, seus administradores e investidores deverão observar e cumprir a lei. Aliás, a SAF foi concebida como via societária de organização da atividade do futebol e não poderá ser constituída para toda ou qualquer situação: ela deverá ter propósito específico e atender aos fins que justificaram sua propositura como tipo societário especial. Por isso, de acordo com o art. 2º do PL 5.516/19, sua constituição ocorrerá apenas nas seguintes hipóteses: (i) pela transformação de clube em SAF, hipótese em que todos os associados do clube serão acionistas da SAF, conforme indicado no gráfico abaixo: (ii) pelo clube, mediante a transferência de ativos para a SAF, hipótese em que os associados permanecerão vinculados ao clube, o qual, por sua vez, será acionista da SAF, conforme indicado no gráfico abaixo: pela transformação de sociedade empresária existente em SAF, caso em que os acionistas manterão suas posições acionárias, modificando-se apenas o tipo societário da entidade transformada. Isso se aplicaria, por exemplo, aos acionistas do Botafogo Futebol S.A., companhia constituída pelo Botafogo Futebol Clube, de Ribeirão Preto, e Trexx Holding Empreendimentos e Participações Ltda., que passariam a ser acionistas de Botafogo Futebol SAF, conforme indicado abaixo:  (iv) pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento, que se comprometeria, como acionista, a orientar a SAF a cumprir seu objeto específico. E aí revela-se outra virtude do PL 5.516/19: a especificação do objeto da SAF, que consiste, de acordo com o art. 2º: (i) na formação e na negociação de direitos econômicos de atletas profissionais; (ii) no fomento e no desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática do futebol; (iii) na exploração, sob qualquer forma, dos direitos de propriedade intelectual de sua titularidade ou dos quais seja cessionária, incluindo os cedidos pelo clube que a constituiu; (iv) na exploração de direitos de propriedade intelectual de terceiros, relacionados ao futebol; (v) na exploração econômica de ativos, inclusive imobiliários, sobre os quais detenha direitos; (vi) em quaisquer outras atividades conexas ao futebol e ao patrimônio da SAF, incluindo a organização de espetáculos esportivos ou culturais; (vii) na administração, direção, regulação ou organização do futebol e de competições profissionais de futebol (para o caso de transformação ou constituição de SAF por federação ou confederação); e (viii) na participação em outra sociedade, como sócio ou acionista, cujo objeto seja uma ou mais atividades das mencionadas nos incisos deste parágrafo. Assim, o PL 5.516/19 estabelece mecanismos para evitar o desvirtuamento da finalidade da SAF, que consiste na recuperação e no desenvolvimento dos times brasileiros de futebol.
O projeto de lei 5.516/19 (PL 5.516/19), de autoria do senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG), que cria o sistema econômico do futebol brasileiro, elege uma via societária como instrumento de segurança jurídica e de legitimação: a Sociedade Anônima do Futebol (SAF). Não se trata de uma invenção tupiniquim: na Espanha existe, desde o início da década de 1990, a sociedade anônima desportiva (SAD), resultante de iniciativa que pretendia atacar - e atacou - a crise dos times locais e estimular o surgimento de um modelo de responsabilidade jurídica e econômica. Portugal seguiu o mesmo caminho e tipificou a sua sociedade desportiva (SAD), constituída sob a forma de sociedade anônima, cujo objeto é a participação em competições profissionais. Todos os principais times locais, como Benfica, Sporting e Porto identificaram na SAD a forma adequada para financiar suas atividades futebolísticas. Aliás, em ambos os países se apresentava, por ocasião das respectivas proposições legislativas, a mesma problemática: crise estrutural, demandadora de soluções que envolvessem esforços coletivos, para arquitetura de um sistema sustentável, a partir de uma via societária legitimadora e fiadora de um ambiente seguro, eficiente e previsível. O PL 5.516/19 não nega essas, nem outras experiências internacionais, mas vai além, pois, em vez de simplesmente copiar ou adaptar modelos externos - que têm suas peculiaridades -, propõe uma solução que atende aos históricos e recorrentes desafios locais. O ponto de partida do modelo brasileiro é a consolidada sociedade anônima (ou companhia), cuja lei de regência (lei 6.404/76) ostenta mais de 40 anos, sem perder o frescor e a adaptabilidade às novas técnicas de organização econômica. As qualidades legislativas e as décadas de formação jurisprudencial e doutrinária justificam a opção, anunciada logo no art. 1º do PL 5.516/19, de submeter a SAF à Lei nº 6.404/76, conforme o seguinte enunciado: "Art. 1º É Sociedade Anônima do Futebol, sujeita às regras específicas desta lei e, naquilo que esta Lei não dispuser, às da lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976, a companhia cuja atividade principal consista na prática do futebol em competições profissionais". A SAF, que foi a via societária adotada no PL 5.516/19, não é, porém, um tipo de sociedade empresária totalmente novo, isolado ou desconectado do sistema existente; ela estabelece, sob o ângulo jurídico, um micro conjunto normativo que integra um conjunto maior, formado pelas normas da sociedade anônima. O gráfico plotado a seguir ilustra a proposição: Em outras palavras, a SAF será regida pelas normas de governo, de funcionamento e de financiamento que lhe são próprias e exclusivas, e, ao mesmo tempo, por todas as normas da sociedade anônima (exceto aquelas que forem expressamente reguladas no PL 5.516/19). Essa solução oferece segurança jurídica: ao clube associativo, que conhecerá o ambiente em que atuará em virtude da constituição da SAF; ao torcedor, que também saberá que seu time, ao adotar o modelo da SAF, estará sujeito a um ambiente regulado, construído sobre os princípios da transparência e da publicidade; e ao investidor, que encontrará, no próprio sistema, os instrumentos adequados para acompanhamento e controle do seu investimento. Anota-se, ademais, que o PL 5.516/19 não prevê a obrigatoriedade de constituição da SAF. Cada clube poderá, se e quando quiser, constituí-la, observadas as regras estatutárias para constituição de sociedade empresária. Uma vez constituída, as normas da SAF serão cogentes. Para concluir, registra-se que, caso um clube associativo entenda que o modelo da SAF não lhe seja adequado, por conta dos elevados padrões de governança ou de controle previstos no PL 5.516/19, poderá constituir qualquer outro tipo de sociedade empresária, previsto no Código Civil. Ou seja, a criação da SAF não exclui as demais alternativas societárias, mas se revela como uma via, ou a via específica arquitetada para formar o ambiente sustentável que o futebol brasileiro precisa.
O senador Rodrigo Pacheco (DEM/MG) apresentou o projeto de lei ("PL") que cria o sistema do futebol brasileiro, mediante a tipificação da sociedade anônima do futebol, o estabelecimento de normas de governança, controle e transparência, a instituição de meios de financiamento da atividade futebolística e a previsão de um sistema tributário transitório. Após a leitura do PL no plenário do Senado Federal, que ocorreu no dia 15/10/19, ele passou a tramitar sob o número 5.516. O fato é alvissareiro. Por isso, inaugura-se, com o presente texto, uma série que tem como propósito explicar o conteúdo do PL 5.516. Trata-se, aliás, neste ensaio inaugural, do conceito e da extensão do sistema que se pretende criar. Sistema, de acordo com o Dicionário Houaiss, é o "conjunto de elementos, concretos ou abstratos, relacionados entre si"; ou o "conjunto de unidades organizadas de determinada forma para alcançar um fim". Dentro do sistema, os seus componentes mantêm relações entre si, conferindo-lhe suporte e estabilidade. Um sistema ocupa determinado espaço e também interage (ou pode interagir) com outros sistemas. Por vezes, constitui uma subparte, ou um subsistema de um sistema principal. Diz-se, assim, por exemplo, que o direito é um subsistema de um sistema maior: a sociedade. É nesse contexto que se insere o PL 5.516: trata-se da criação de um microssistema (ou subsistema), composto de elementos que se inter-relacionam, com o propósito de alcançar um fim, e que, por integrar um ambiente maior, não deixará de interagir com outros subsistemas, sem perder suas características. A interação não implica, porém, interferência ou preponderância sobre outros subsistemas, que mantêm suas funções. No caso, os subsistemas compõem o sistema futebolístico. O gráfico apresentado abaixo, plotado com apenas alguns de seus subsistemas, ilustra essas proposições: Portanto, os limites espaciais do novo subsistema, apresentado no PL 5.516 - que pode ser denominado econômico (ou seja, o "subsistema econômico") - se conectarão, em alguns pontos, com os limites dos demais subsistemas essenciais ao funcionamento do futebol, sem adentrá-los; mas, ao mesmo tempo, o subsistema econômico se relacionará com todos eles a fim de oferecer-lhes os meios para que possam atingir suas potencialidades máximas. O subsistema econômico se justifica, assim, pela necessidade de potencializar o sistema como um todo, sem interferir em relações de outras naturezas, sejam trabalhistas, confederativas, regulatórias ou judiciárias. Daí, aliás, o seu ineditismo: realmente pela primeira vez, o legislador pretende criar, a partir de uma via societária legitimadora - a sociedade anônima do futebol (SAF) -, o ambiente (ou seja, o subsistema econômico) adequado a preservar os times de futebol, não por meio de recorrentes subsídios estatais, mas, sim, pelo oferecimento de um marco regulatório direcionado ao desenvolvimento da empresa futebolística. A SAF, que se traduz por segurança jurídica e previsibilidade, se sujeitará a um sofisticado modelo de governação e transparência informacional, e viabilizará o financiamento da atividade econômica do futebol. O subsistema econômico, enfim, é concebido para prover aos agentes que integram o sistema do futebol - ou que passarão a integrá-lo após a sua criação - o instrumental necessário para atuação em suas missões recuperacionais e transformadoras. Assim, e somente assim, o sistema do futebol se completará e o Brasil poderá voltar a protagonizar essa atividade - o futebol - que se transformou na mais globalizada das criações humanas.
Texto de autoria de Savério Orlandi A notícia mais alvissareira neste último final de semana passou fora das quatro linhas, com o protocolo do projeto de lei do senador Rodrigo Pacheco (DEM-MG), que veicula a criação de um novo sistema para o futebol brasileiro e tipifica a SAF - Sociedade Anônima do Futebol. Tomando a dianteira com relação ao propalado PL do deputado Pedro Paulo Teixeira (DEM-RJ), na prática a iniciativa legislativa significa verdadeiramente um projeto que não se traduz, como de costume, em tratar de "mais do mesmo". É bem verdade que o denominado "projeto de lei do clube empresa" de autoria do deputado Pedro Paulo, sequer logrou a mínima aderência por parte do "Colégio de Presidentes" que se reuniu ultimamente para encontros e debates em torno dos seus termos, no recente e mais notório exemplo de aglutinação desde a implosão, anos atrás, do Clube dos 13. E nem poderia ser diferente... Talvez menos pelo consenso comum que seria louvável e edificante, e mais pelas razões próprias de cada clube, vendo primeiro a parte que lhe tocaria no citado projeto, o fato é que maioria da cartolagem a ele torceu o nariz, em especial pela (logo descartada) ideia da constituição de um fundo garantidor, mas também pelos outros equívocos catalogados no PL, como o delicado e discutível mercado de créditos fiscais que criaria, as incertezas nas relações de trabalho com o tratamento diferenciado dos atletas conforme seus vencimentos, além da descabida possibilidade da utilização do instituto da (RJ) recuperação judicial para os futuros clubes empresas, como se estes fossem uma sociedade comercial na acepção jurídica de sua definição. Enfim, este malfadado projeto se destina, sobre o festejado manto de "lei do clube empresa", a servir mais uma vez ao refinanciamento dos clubes (para não dizer um novo socorro governamental e calote de colaboradores e fornecedores em geral), sem tocar naquilo que se faz realmente imperioso, vale dizer, a criação de mecanismos próprios para o financiamento do futebol, além da criação de condições estáveis e favoráveis ao desenvolvimento de um mercado específico. Importante assinalar, antes de avançarmos, que "clube empresa" por si só, não requer hoje em dia qualquer novo permissivo legal, sendo sua formação possível e totalmente autorizada pelas normas legais existentes, a propósito, basta que vejamos casos como o Red Bull, Botafogo de Ribeirão Preto, Figueirense, ou até mesmo o Bahia e a Companhia Botafogo (do Rio), aqui referidos unicamente para que sirvam de exemplos e não para deles discorrermos ou fazermos julgamentos. Existe atualmente uma falsa impressão quanto à profissionalização nos clubes de futebol, refletidas basicamente no aprimoramento das suas instalações físicas de treinamento, na participação de executivos mais preparados em cargos diretivos do departamento, na implantação de estruturas científicas, de comunicação e de apoio mais contemporâneas e bem aparelhadas. Mas é só isso mesmo... Os retrógrados processos políticos internos e a recorrente (e aparentemente insolúvel) crise financeira, que se revela pela indisponibilidade de caixa, na falta de recursos para investimento, em dívidas assombrosas e atraso no cumprimento de obrigações, ainda assolam de forma nociva os clubes das cinco regiões do país indistintamente, quer se dizer, desde aqueles que compõem a elite nacional até o baixo clero do futebol brasileiro, e evidencia as duas grandes mazelas a serem enfrentadas para o desenvolvimento do novo mercado futebolístico. E é justamente para reverter o esgotamento deste modelo, para socorrer esse quadro de penúria, para superar a "gestão de condomínio", que se apresenta o PL e o conceito da Sociedade Anônima do Futebol, como ferramenta embrionária da adoção definitiva do tipo empresarial próprio (S/A), que permitirá não só o melhor entendimento do negócio como também irá propiciar fatos e elementos que poderão redundar na consolidação de um novo mercado, que certamente desafiará outras formas de financiamento, performance e resultados. Não há, reconhecidamente, outro tipo societário que venha tornar essa realidade possível e palatável senão a SAF, com a sua adequada adaptação à realidade da empresa futebolística, a necessária transparência e o rigor dos seus mecanismos de controle e governança, os impeditivos legais (e estatutários que serão adotados) destinados à minimizar conflitos de interesse, malversação de recursos e gestão temerária, além de poder conferir credibilidade suficiente para permitir investimentos de terceiros, eventual realização de operações em mercado aberto, constituição de fundos, entre outras formas de financiamento. Espera-se, pois, que os clubes possam em rápido processo de amadurecimento assimilar a dimensão do Projeto de Lei e sua extensão no idealizado incremento de suas atividades e no desenvolvimento orgânico do "todo", para que tenhamos, quem sabe, um novo modelo vigente e exitoso já em curto e médio prazos. Mais do que isso, para que se antecipem em seus deveres domésticos elaborando o levantamento e a valoração dos seus ativos próprios, formatando analíticos confiáveis de seus passivos, promovendo estudos de reforma e/ou adequação dos seus Estatutos Sociais com vistas às futuras migrações para a SAF. E que derradeiramente tenham a convicção de que o futebol não comporta mais refinanciamentos, perdões ou casuísmos, mas sim reclama um marco inicial e consistente que permita a eles inovar e incrementar suas fontes de receita para que, no final do dia, seja fomentado um único e próspero mercado futebolístico. Savério Orlandi é advogado militante em SP, sócio filiado e consultor jurídico da ABEX (Associação Brasileira dos Executivos de Futebol), membro vitalício do Conselho Deliberativo, membro efetivo do Conselho de Orientação e Fiscalização e ex-diretor de Futebol Profissional 07/10 da Sociedade Esportiva Palmeiras, pós-graduado em Direito Empresarial pela PUC/SP, onde também se graduou.
quarta-feira, 9 de outubro de 2019

O Estatuto Social do Clube Náutico Capibaribe

Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo Há alguns dias, o Clube Náutico Capibaribe ("Náutico") conquistou o título da série C do campeonato brasileiro, coroando a campanha que culminou no seu acesso à segunda divisão da liga nacional. O clube pernambucano é organizado sob a forma de associação civil, desprovido, portanto, de qualquer finalidade lucrativa, não obstante admitir, no art. 3º de seu Estatuto, a possibilidade de constituir sociedade empresária para a gestão de suas atividades profissionais de prática desportiva. A sua estrutura organizativa divide-se entre os seguintes poderes: assembleia geral, conselho deliberativo, diretoria executiva e conselho fiscal; o que revela uma estrutura básica-formal bastante comum no futebol brasileiro. Composta pelos associados que preencham os requisitos estatutários, a assembleia geral tem a função de deliberar sobre temas como eleição de presidente e vice-presidente da diretoria executiva e dos membros do conselho deliberativo, destituição de administradores, penalizações do presidente e vice-presidente da diretoria executiva, celebração de determinados contratos imobiliários e extinção, cisão, fusão ou incorporação do Náutico. Já ao conselho deliberativo compete privativamente, nos termos do Estatuto Social, eleger os seus próprios presidente, vice-presidente e primeiro e segundo secretários, eleger os membros do conselho fiscal, decidir sobre o orçamento e o plano de trabalho da diretoria executiva (após parecer do conselho fiscal), aprovar (ou não) o balanço anual do clube (também após parecer do conselho fiscal), bem como deliberar sobre as seguintes propostas do presidente da diretoria executiva: (i) realização de obras de construção ou reformas; (ii) constituição, pelo Náutico, de sociedade empresária, prevista no art. 3º do Estatuto; (iii) operações de crédito de qualquer natureza; (iv) antecipações de receita que superem o prazo do mandato do presidente da diretoria executiva; e (v) a constituição de ônus sobre os bens do clube; além de outras matérias. Percebe-se que, do ponto de vista prático, o conselho deliberativo possui grande poder internamente, afigurando-se, talvez, o órgão de maior relevância decisória do clube. À diretoria executiva, por sua vez, compete gerir o Náutico, mediante planejamento estratégico, com planos de ação e metas, em observância a princípios de responsabilidade organizacional, transparência, eficiência e ética, nos termos do art. 36 do Estatuto. O presidente possui atribuições específicas como representação passiva e ativa do clube, elaboração do regimento interno (para deliberação pelo conselho deliberativo), definição e implantação da estrutura organizacional da diretoria e nomeação dos demais diretores (afora o vice, que é eleito pela assembleia). Também compõem a diretoria executiva as diretorias de futebol, esportes amadores, finanças, administração, jurídica, patrimonial e comercial. Exige-se para os cargos de presidente e vice da diretoria o atendimento aos requisitos de elegibilidade previstos na Lei da Ficha Limpa, além de outros critérios objetivos estabelecidos estatutariamente (como idade mínima e tempo de associação). O art. 45 prevê rito para apuração da responsabilidade do presidente e do vice-presidente da diretoria executiva (que também se aplica, naquilo que couber, para o presidente e o vice do conselho deliberativo). Pode resultar em suspensão ou destituição (a aplicação de advertência não se sujeita a esse procedimento, pelo que indica o Estatuto), por força de violação de deveres, sendo assegurada a ampla defesa, e inicia-se com apresentação de denúncia ao conselho deliberativo, contendo assinatura de pelo menos 10 conselheiros ou associados - denúncia essa que pode ser liminarmente rejeitada caso não esteja acompanhada de provas. Uma comissão é, então, constituída por três conselheiros (dentre os quais um relator), indicados pelo conselho deliberativo, para apurar a denúncia. Apresentada a defesa do acusado, a comissão analisa os documentos e informações e produz um relatório, que é submetido ao conselho deliberativo para decisão acerca da suspensão ou destituição do acusado. Essa decisão, contudo, fica sujeita à aprovação da assembleia geral, a fim de confirmá-la ou não. Independentemente do rito previsto no art. 45, conforme comentado acima, o art. 46 do Estatuto Social do Náutico dispõe que na hipótese de rejeição das contas da diretoria executiva, os membros "diretamente responsáveis pelas finanças do Clube" ficarão inelegíveis por 8 (oito) anos para o exercício de qualquer cargo no Náutico. Além do exposto, o art. 49 prescreve a responsabilização pessoal do presidente da diretoria executiva por prejuízos causados ao clube por ato doloso praticado em violação estatutária, legal ou regimental. Ainda quanto aos órgãos do clube, registre-se que o conselho fiscal detém a incumbência de fiscalizar os aspectos contábeis, financeiros e patrimoniais do Náutico (e de seu centro de treinamento - divisão que é feita no Estatuto), devendo examinar livros e documentos, emitir pareceres sobre os balancetes, solicitar esclarecimentos aos diretores e auditores independentes, examinar e opinar sobre as propostas orçamentárias, verificar o cumprimento do orçamento e a aplicação dos recursos, denunciar irregularidades e analisar e emitir parecer sobre o balanço anual. Por fim, o Estatuto Social do Náutico dispõe acerca das fontes de recursos, do orçamento e das demonstrações financeiras, propondo requisitos mínimos que devem ser contemplados por cada um desses temas. Verifica-se, diante do exposto, que apesar de conter alguns dispositivos interessantes, o Estatuto Social do Náutico, pelo menos do ponto de vista formal, estabelece uma estrutura de funcionamento que se repete em grande parte dos clubes brasileiros.
quarta-feira, 2 de outubro de 2019

Deu Liga

Texto de autoria de José Francisco C. Manssur O ano é 2007. O basquete brasileiro, com suas medalhas olímpicas e títulos mundiais de clubes e seleções, vive uma grave crise, que coloca em risco a própria realização do campeonato nacional masculino. Pano rápido. Agora estamos em 2019. A Liga Nacional de Basquete ("LNB") anuncia que, na próxima edição do principal campeonato de basquete masculino adulto do Brasil, disputado por 16 clubes de diversos estados e regiões do Brasil, todas as aproximadamente 300 partidas da competição serão transmitidas por alguma forma de mídia hoje existente. Vai ter basquete brasileiro na TV aberta, na TV fechada, pelas mídias sociais, streaming de esportes e até mesmo jogos sendo transmitidos com uma narração inovadora por uma plataforma chamada Tweet (não confundir com a famosa rede social) na qual o público, na maioria jovem, acessa para assistir a performance de seus contemporâneos jogando vídeo game. A LNB organiza, ininterruptamente, o Campeonato Brasileiro Masculino de Basquete desde o ano de 2008, quando ganhou o apropriadíssimo nome de Novo Basquete Brasil - NBB. Essa edição que terá início em outubro próximo e será integralmente transmitida pelas mais diferentes mídias será a décima-segunda. Será, então, o NBB 12. De 2008 até 2019, o NBB apresentou um crescimento exponencial no aumento de receitas, interesse do público, patrocínios e parceiras e, inclusive, é o ambiente no qual a LNB procura colocar em prática toda a experiência adquirida por consequência de um convênio que firmou com a principal liga de basquete do mundo, a NBA norte-americana, que escolheu a liga brasileira como uma das únicas com as quais mantém esse tipo de parceria. Enquanto escrevo esse artigo, dirigentes da LNB e dos seus clubes associados preparam-se para embarcar para Nova Iorque, onde participarão de uma semana de reuniões nos escritórios da NBA, palestras com seus executivos e, no final, assistirão a uma partida a ser disputada entre os Nets de Brooklin da NBA e o Sesi-Franca da LNB, tradicionalíssimo clube da Cidade mais "basqueteira" do Brasil. Sim, o brasileiro gosta de basquete e o mercado gosta muito de esporte bem organizado. Para que essa revolução acontecesse, foi preciso que os clubes de basquete do Brasil tivessem tomado uma posição e, mais do que isso, assumissem as rédeas do desenvolvimento e realização do seu campeonato, e muito mais do que isso, do seu desenvolvimento, do incremento da modalidade e formação de atletas. Sobre formação de atletas, desde 2011, a LNB organiza o principal campeonato de categorias de base do país, a Liga de Desenvolvimento do Basquete - LDB. E assim fizeram suportados no artigo 20 da lei 9.615/98, que dispõe expressamente sobre a possibilidade de os clubes organizarem ligas, mediante a simples comunicação à entidade nacional de administração da modalidade e, inclusive, equiparando-se às federações e confederações em todos os direitos e obrigações previstos na mesma Lei Pelé. Não se encontra um único dado ou número que não aponte para o fato de que os donos da LNB - os seus clubes associados - fizeram muito bem, quando decidiram pela criação da Liga e tomaram para si, por intermédio da LNB, a organização de torneios e o próprio desenvolvimento da modalidade. Quem participa dos fóruns de decisão da LNB, como é o caso deste subscritor na condição de advogado da LNB desde 2019, nota - e se surpreende positivamente - com o nível de responsabilidade e maturidade dos representantes dos clubes ao cuidarem de sua criação coletiva, muitas vezes até em detrimento de interesses individuais de cada Instituição. Quem é dono se sente mais responsável por cuidar do que aquele que se coloca em posição passiva, sempre a espera das decisões tomadas por uma instância superior responsável por definir e comunicar suas decisões aos que "apenas" irão realizá-las. Ainda mais especial é o processo de compartilhamento de experiências de gestão entre clubes e a LNB e entre os próprios clubes entre si. A troca de experiências é constante e enriquecedora. Em abril de 2019, tive a oportunidade de participar de um final de semana inteiro no qual os dirigentes dos clubes e da LNB, com assessoramento especializado, discutiram "os rumos da LNB para os próximos 10 anos". Confesso que, atuando com esportes desde 1998, nunca imaginei participar de planejamento estratégico realizado por diferentes entidades esportivas - que competem duramente entre si nas quadras - e pela liga que elas mesmas constituíram para organizar sua modalidade. Realmente, no basquete brasileiro, a Liga deu liga e eu aqui estou ansioso para chegar em 2029 e poder discutir novamente os outros 10 anos.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e José Francisco C. Manssur O deputado Federal Pedro Paulo (MDB/RJ) irá apresentar um projeto substitutivo ao projeto de lei 5.082/16 ("PL 5.082"), que terá, como pilar, o programa de recuperação fiscal das entidades de prática desportiva profissional do futebol ("Anteprojeto Pedro Paulo"). O anteprojeto Pedro Paulo, aliás, rejeita as propostas do mencionado PL 5.082, que pretende criar o novo ambiente sustentável do futebol e o seu instrumento de legitimação e segurança jurídica: a sociedade anônima do futebol - SAF. Trata-se o Anteprojeto Pedro Paulo, em síntese, de um superpacote de ajuda que oferecerá benefícios relevantes aos clubes devedores - e eventualmente inadimplentes - e incentivará a manutenção do atual sistema amador de gestão (responsável pela crise econômica e de reputação do futebol brasileiro). Aliás, é sempre bom registrar: esse novo superpacote será viabilizado, se o caso, pelo Estado Brasileiro, que se declara liberal e contrário à concessão de subsídios preservadores de ineficiências produtivas e empresariais, apenas 4 anos após a concessão de outro pacote de favores aos clubes - o Profut -, planejado em 2015, durante o Governo da Presidente Dilma Rousseff. Ambos os pacotes - o de 2015 e o que se pretende implementar agora em 2019, no mandato do Presidente Jair Bolsonaro - caracterizam-se - curiosa e contraditoriamente, por conta do distanciamento ideológico e das politicas econômicas de seus governos - pela manutenção de um sistema secular de subsídios estatais aos times de futebol, à conta do contribuinte. Transcrevem-se, assim, a seguir, algumas das características do superpacote de favores que integra o Anteprojeto Pedro Paulo, e se destacam, em negrito, determinados aspectos que envolvem prazo de pagamento de obrigações fiscais, reduções de multas ou juros e possibilidade de utilização de créditos de terceiros para liquidar obrigações fiscais originárias dos clubes associativos (dentre outros aspectos que merecem ser evidenciados). Aliás, apesar de o Anteprojeto sugerir que tais créditos sejam próprios, eles terão sido gerados, na verdade, por terceiro, isto é, pela empresa na qual o clube se fundir, incorporar ou realizar outra operação societária (e que será, para efeitos do Anteprojeto, o clube-empresa). Vejamos. O art. 10 do Anteprojeto prevê que, no âmbito da Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, o sujeito passivo que aderir ao Refis do Futebol poderá liquidar os débitos de que trata o art. 9º, mediante a opção por uma das seguintes modalidades: - Primeira Modalidade: pagamento em espécie de, no mínimo, 10% (dez por cento) do valor da dívida consolidada, sem reduções, em até 5 (cinco) parcelas mensais e sucessivas, vencíveis do 1º (primeiro) ao 5º (quinto) mês subsequente ao de adesão ao Refis do Futebol, e a liquidação do restante com a utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL ou de outros créditos próprios relativos aos tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil, com a possibilidade de pagamento em espécie de eventual saldo remanescente em até 84 (oitenta e quatro) prestações adicionais, vencíveis a partir do mês seguinte ao do pagamento à vista; - Segunda Modalidade: pagamento da dívida consolidada em até 144 (cento e quarenta e quatro) prestações mensais e sucessivas, calculadas de modo a observar os seguintes percentuais mínimos, aplicados sobre o valor da dívida consolidada: a) da 1ª (primeira) à 24ª (vigésima quarta) prestação: 0,2% (dois décimos por cento); b) da 25ª (vigésima quinta) à 48ª (quadragésima oitava) prestação: 0,3% (três décimos por cento); c) da 49ª (quadragésima nona) à 60ª (sexagésima) prestação: 0,4% (seis décimos por cento); e d) da 61ª (sexagésima primeira) prestação em diante: percentual correspondente ao saldo remanescente, em até 84 (oitenta e quatro) prestações mensais e sucessivas; - Terceira Modalidade: pagamento em espécie de, no mínimo, 10% (dez por cento) do valor da dívida consolidada, sem reduções, em até 5 (cinco) parcelas mensais e sucessivas, vencíveis do 1º (primeiro) ao 5º (quinto) mês subsequente ao de adesão ao Refis do Futebol, e o restante: a) liquidado integralmente no 6º (sexto) mês subsequente ao de adesão ao Refis do Futebol, em parcela única, com redução de 95% (noventa e cinco por cento) dos juros de mora e 75% (setenta e cinco por cento) das multas de mora, de ofício ou isoladas; b) parcelado em até 145 (cento e quarenta e cinco) parcelas mensais e sucessivas, vencíveis a partir do 6º (sexto) mês subsequente ao de adesão ao Refis do Futebol, com redução de 85% (oitenta e cinco por cento) dos juros de mora e 60% (sessenta por cento) das multas de mora, de ofício ou isoladas; ou c) parcelado em até 175 (cento e setenta e cinco) parcelas mensais e sucessivas, vencíveis a partir do 6º (sexto) mês subsequente ao de adesão ao Refis do Futebol, com redução de 65% (sessenta e cinco por cento) dos juros de mora e 45% (quarenta e cinco por cento) das multas de mora, de ofício ou isoladas, e cada parcela será calculada com base no valor correspondente a 1% (um por cento) da receita bruta do requerente, referente ao mês imediatamente anterior ao do pagamento, e não poderá ser inferior a 1/175 (um cento e setenta e cinco avos) do total da dívida consolidada; - Quarta Modalidade : pagamento em espécie de, no mínimo, 12% (doze por cento) da dívida consolidada em 24 (vinte e quatro) prestações mensais e sucessivas e liquidação do restante com a utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL ou de outros créditos próprios relativos aos tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil; ou - Quinta Modalidade: pagamento em espécie de, no mínimo, 15% (quinze por cento) do valor da dívida consolidada, sem reduções, em até 5 (cinco) parcelas mensais e sucessivas, vencíveis do 1º (primeiro) ao 5º (quinto) mês subsequente ao de adesão ao Refis do Futebol, liquidação do saldo remanescente com redução de 50% (cinquenta por cento) dos juros de mora e 70% (setenta por cento) das multas de mora, de ofício ou isoladas e, após essas reduções, a utilização de créditos de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL ou de outros créditos próprios relativos aos tributos administrados pela Secretaria Especial da Receita Federal do Brasil e o restante liquidado em até 235 (duzentas e trinta e cinco) parcelas mensais e sucessivas, vencíveis a partir do 6º (sexto) mês subsequente ao de adesão ao Refis do Futebol, calculadas de modo a observar o seguinte: a) da 1ª (primeira) à 55ª (quinquagésima quinta) prestação, cada parcela será calculada com base no valor correspondente a 1% (um por cento) da receita bruta do requerente, referente ao mês imediatamente anterior ao do pagamento; e b) a partir da 56ª (quinquagésima quinta) prestação, cada parcela: 1. será calculada com base no valor correspondente a 1% (um por cento) da receita bruta do requerente, referente ao mês imediatamente anterior ao do pagamento; e 2. não poderá ser inferior a 1/180 (um cento e oitenta avos) do saldo remanescente após o pagamento da 55ª (quinquagésima quinta) prestação. Importa registrar, ademais, que, na liquidação de determinados débitos com créditos oriundos de prejuízos fiscais e de base de cálculo negativa da CSLL, o Anteprojeto Pedro Paulo autoriza a utilização não apenas do crédito da própria empresa, resultante da fusão, mas, também, dos créditos de empresas controladora e controlada, de forma direta ou indireta, ou de empresas que sejam controladas direta ou indiretamente por uma mesma empresa. Essas são, enfim, apenas algumas das características do programa de favores e de ajuda financeira aos dirigentes e clubes de futebol, pilar do Anteprojeto Pedro Paulo, que resgata e preserva, em tudo e por tudo, a motivação e o direcionamento de programa anterior, formulado durante a presidência de Dilma Rousseff, e que propiciou a manutenção do ineficiente sistema amador de gestão do futebol, com o beneplácito do Estado - e do Governo; algo que, aparente e surpreendentemente, também poderá ser apoiado pelo atual Governo.
Rodrigo R. Monteiro de Castro e José Francisco C. Manssur A concepção do clube-empresa não é nova: foi inserida no sistema pela Lei Zico, preservada na Lei Pelé, remendada na Lei do Profut e, agora, no anteprojeto do deputado Federal Pedro Paulo, é apresentada como a solução para a crise sistêmica do futebol brasileiro; isto é, para resolver os (graves) problemas de endividamento e da governação dos clubes. Não há, porém, motivo para euforia: nessa nova proposta ("Proposta Pedro Paulo" ou, simplesmente, "Proposta") detectam-se os mesmos motivos e os mesmos problemas que justificaram a formulação de todas as leis do futebol, no Brasil, desde a Constituição de 1988. Leis essas que, ressalte-se, foram (ou são) responsáveis pela degradação da economia futebolística. Pior: mesmo após o fracasso dessas leis que antecederam a Proposta Pedro Paulo, não se prevê, em referida Proposta, a criação das estruturas que poderiam - e ainda podem - formar um novo sistema do futebol e, assim, corrigir os erros do passado. Trata-se, portanto, de mais um projeto de salvamento de clubes reincidentemente insolventes. O ponto de partida é o mesmo que motivou a Lei do Profut: um bilionário subsídio estatal, à conta do contribuinte, que arcará com o ônus das gestões amadoras e ineficientes dos clubes brasileiros. A figura do clube-empresa é introduzida na Proposta Pedro Paulo com a finalidade de viabilizar a concessão de novo e agressivo programa de parcelamento de obrigações fiscais, que vem acompanhado de reduções de multas e juros de mora: encargos incidentes sobre tributos que deveriam ter sido recolhidos, mas não foram. Há, desta vez, um aspecto mais grave e ousado: ao clube endividado será concedida a prerrogativa de fundir-se com empresa existente, que acumule créditos de prejuízos fiscais, os quais serão utilizados para liquidar as obrigações do clube fundido. Além de se tratar de prática questionável do ponto de vista jurídico - daí geradora de insegurança -, e de implicar importante renúncia, pelo Estado, de receitas, criará um mercado paralelo de empresas inativas, que serão precificadas e negociadas apenas para permitir a utilização de seus créditos para fins de redução de obrigações fiscais. A Proposta Pedro Paulo também indica a criação de um fundo garantidor do futebol, de contribuição obrigatória pelo clube-empresa participante de competição profissional. Funcionará assim: o clube-empresa deverá fazer uma contribuição inicial e, na sequência, realizar contribuições mensais ao fundo, que (i) será gerido por um órgão criado por autoridades competentes e (ii) destinará os recursos arrecadados para socorrer times em risco de insolvência. O fundo servirá como um mecanismo de premiação de clubes e de dirigentes ineficientes - e, muitas vezes, irresponsáveis -, que gastam o que não têm, à conta de uma coletividade de profissionais, de trabalhadores, de fornecedores e do fisco, e que serão socorridos - ou seja, premiados com recursos advindos de outros times -, em virtude de sua incapacidade gerencial. Outro pilar da Proposta Pedro Paulo é a construção de uma via jurídica para possibilitar ao clube requerer recuperação judicial: uma prerrogativa que, hoje, no nosso ordenamento jurídico, é concedida apenas ao empresário - algo que, por definição legal, o clube associativo não é. Esse é um ponto que, de fato, precisa ser revisto; afinal, algumas dezenas de clubes operam e administram empresas econômicas milionárias, mesmo estando organizados sob a forma associativa. Logo, a partir do momento em que se reconhece a natureza econômica (e empresária) da atividade futebolística, a recuperação judicial, como via de manutenção da atividade produtiva, deve ser considerada. O problema da Proposta, em relação a esse aspecto, está na forma. Adotou-se modelo tortuoso, que exigirá, para sua implementação, malabarismos jurídicos, criadores de ambiente de insegurança jurídica e de distanciamento de investidores. Nele se estabelece que o clube-empresa é sucessor de todas as obrigações do clube. Essa disposição tem um propósito: viabilizar a inclusão de tais obrigações, que foram contraídas por um clube, na recuperação judicial do clube-empresa. Pessoas que contrataram com o clube subitamente passarão a ser credoras de uma outra entidade, com a qual não contrataram e que, como indica a Proposta Pedro Paulo, será utilizada como veículo para negociação do plano de recuperação - e redução dos créditos. Os autores deste texto já escreveram sobre isso e defenderam, no passado, solução análoga. Porém, após profundos estudos e intensos debates com agentes que também militam na área recuperacional e falimentar, inclusive com juízes especializados, concluíram que esse caminho deverá inviabilizar a ideia de recuperação sistêmica e sustentável. Há uma forma, porém, para arquitetar um programa consistente e seguro, do ponto de vista jurídico: equiparar a situação do clube praticante de atividade profissional à do empresário (isto é, aquele que exerce atividade de empresa), permitindo-lhe a inscrição no registro público das empresas mercantis e, a partir daí, oferecer ao próprio clube a prerrogativa de recuperar-se. De todo modo, a ideia da recuperação judicial clubística deve ser inserida em um projeto maior de criação do novo mercado do futebol, como um de seus componentes, mas, jamais, como um favor estatal para o salvamento de times que afundam em seus próprios equívocos - e que já foram salvos antes e provavelmente voltarão a ser resgatados no futuro. Outro equívoco da Proposta consiste na equiparação (para fins tributários) do clube que não se tornar empresa, a uma empresa. Em relação a essa ideia, é muito importante registrar o seguinte: não se pode tratar os aproximadamente 700 clubes inscritos na CBF da mesma forma. Muitos deles não se viabilizarão como empresas e, com a nova carga tributária que incidirá sobre os clubes, eles não encontrarão meios de preservar a sua existência. A equiparação fomentará, assim, uma (nova) crise sistêmica - e eventualmente social. Poderíamos apresentar mais uma dezena de aspectos da Proposta que revelam unicamente o propósito de, em mais essa oportunidade, socorrer clubes que já vêm sendo socorridos de modo reiterado, à conta do Estado e do contribuinte. Por outro lado, não conseguiríamos apresentar qualquer indício de que se pretende, com a Proposta - socorrista e leniente -, criar um novo ambiente, dotado de instrumentos que transformem, enfim, o futebol em uma atividade sustentável. Aliás, mesmo que se abandonem algumas ideias originais da Proposta Pedro Paulo - como noticiado pela imprensa, em decorrência da resistência dos clubes, o fundo de solidariedade e a equiparação tributária podem ser eliminados -, a sua finalidade não mudará. O ponto de partida restará intocado e, ao final, ainda se correrá o risco de, com enxertos ou retalhos, gerar uma lei "capenga", sem coerência sistêmica. Enfim, a Proposta Pedro Paulo não arquiteta a construção de um novo sistema (um novo mercado), em que as futuras empresas futebolísticas se desenvolverão dissociadas dos clubes, mediante a captação de recursos privados, detidos e fornecidos por agentes de mercado, que se disponham a empregá-los no futebol, por conta da segurança jurídica e dos instrumentos oferecidos pelo próprio sistema. Esse conjunto de coisas revela o nítido distanciamento da Proposta Pedro Paulo de outro projeto, convertido no projeto de lei 5.082/2016 ("PL 5.082"), o qual, por sua vez, pretende construir um novo ambiente, um novo mercado sustentável, para viabilizar a recuperação e o desenvolvimento do futebol brasileiro. Nesse novo sistema, a sociedade anônima do futebol ("SAF") é a via de legitimação, que conferirá segurança jurídica (i) aos clubes que pretenderem passar ao modelo empresarial, e (ii) aos investidores, locais ou estrangeiros, que tiverem interesse em aportar recursos no futebol brasileiro. Além da SAF, são pilares do modelo proposto pelo PL 5.082: um sistema de governança próprio, com a exigência de adoção de níveis elevados de administração, controle e transparência, com a consequente criação de obstáculos ao encastelamento de dirigentes de clubes e à malversação do patrimônio futebolístico. Esse sistema contaria, por exemplo, com (i) a obrigatoriedade de conselho de administração, formado por número mínimo de conselheiros independentes, (ii) a criação de conselho fiscal com membros independentes, (iii) a exigência de que os diretores da SAF sejam profissionais e atuem com exclusividade, (iv) a proibição de que administradores do clube sejam, simultaneamente, diretores da SAF, e (v) a obrigatoriedade de que o investidor pessoa física revele quem ele é, mesmo que invista por meio de uma empresa ou fundo de investimento (ou seja, transparência quanto ao beneficiário final); criação de instrumentos de financiamento da atividade futebolística, a fim de que a SAF possa captar recursos disponíveis no mercado local e/ou internacional, para investimento na formação de jogadores, melhorias de suas estruturas, pagamento de dívidas e desenvolvimento de planos de crescimento. O PL 5.082 apresenta, assim, a debênture-fut: valor mobiliário setorial, que serviria para introduzir o futebol no mercado de capitais, possibilitando captação de recursos alternativamente aos financiamentos bancários, subsídios estatais, doações/empréstimos de torcedores e patrocínios; um regime tributário transitório, que ofereceria à SAF a possibilidade, durante prazo pré-fixado, de optar entre a sujeição ao regime de tributação convencional das empresas com fins lucrativos e o regime especial, que admitiria o recolhimento mensal e consolidado, conforme alíquota previamente estabelecida, de determinados tributos federais. Note-se que, nesse modelo - que fora apresentado e vetado por ocasião do Profut, aliás -, a SAF recolheria tributos, necessária e obrigatoriamente, com base em sua receita, mesmo que não apurasse lucro; e quinto e último pilar, previsto no PL 5.082, o aproveitamento do futebol, atividade que se espalha por todo o território - e que talvez seja o mais poderoso meio de comunicação com o povo - para incentivar a formação de crianças da rede pública de ensino, como plataforma educacional e de inclusão social. A esses pilares do PL 5.082 se soma a ideia de, conforme indicado acima, autorizar os clubes que atuam profissionalmente a assumirem, de forma espontânea, a natureza econômica e empresarial de suas atividades, permitindo-lhes, assim, passar a se beneficiar do regime da recuperação judicial. Essas são, enfim, as diferenças entre os modelos em discussão, hoje, no Congresso Nacional. A bola está com os congressistas.
O texto publicado semana passada (em 4/9/19), neste espaço, celebrava, sob o título desenha-se, enfim, o futuro do futebol, a expectativa do novo marco regulatório que o presidente da Câmara dos Deputados prometera. De lá para cá (em apenas uma semana, portanto), uma minuta do anteprojeto de lei passou a circular e surpreendeu o ambiente futebolístico: praticamente nada do que se vinha debatendo, nos últimos quatros anos, fora aproveitado. Surgiu, por outro lado, um projeto de salvação de determinados clubes, que será (se aprovado) imposto aos demais, à conta dos contribuintes, dos credores dos clubes e dos próprios clubes. Um dos caminhos sugeridos foi o abandono da criação de uma via jurídica legitimadora do novo sistema do futebol, capaz de oferecer-lhe segurança jurídica, credibilidade e transparência: a sociedade anônima do futebol (SAF). A decisão é um equívoco. Parte-se, assim, do texto publicado semana passada (eventualmente transcrevendo-o, em pequenas passagens), para apresentar os motivos que justificam o resgate e a regulação da SAF. O brasileiro não concebeu o futebol, mas o aperfeiçoou e o alçou à mais globalizada das manifestações humanas. O aperfeiçoamento não esteve vinculado a ações planejadas pelo Estado, pelos governos ou por agentes privados; decorreu da espontaneidade com que se praticou, no século passado, o jogo de bola. A qualidade do futebol brasileiro gerou, porém, uma reação (ou contrarreação) que se tardou a identificar: países concorrentes, sobretudo europeus, reformularam o modelo amadorístico e adotaram uma prática construída sobre pilares empresariais. O futebol passou a ser negócio, de natureza econômica. A partir daí o jogador brasileiro se converteu, paulatinamente, em coisa (no plano interno, virou commodity; no externo, matéria prima para transformação) e os times locais começaram a definhar. Sob qualquer ângulo, criou-se, no Brasil, uma indústria destrutiva da riqueza nacional, e nenhum Governo, desde a Constituição de 1988, ateve-se à destruição. Tentou-se, é verdade, estimular a conversão do clube em empresa. As Leis Zico e Pelé, inicialmente, e depois a Lei do Profut, propuseram soluções formais ou punitivas. Nenhuma delas, no entanto, arquitetou a construção de um novo sistema (um novo mercado), em que os agentes formadores de jogadores e de prática do futebol se desenvolvessem como empresas dissociadas dos clubes, mediante a captação de recursos privados, detidos e fornecidos por agentes de mercado, que se dispusessem a empregá-los no futebol, por conta da segurança jurídica e dos instrumentos oferecidos pelo próprio sistema. Os resultados daquelas tentativas foram - e ainda são - catastróficos: os clubes brasileiros acumulam dívidas da ordem dos R$ 7 bilhões; o Brasil passou à posição de exportador de "pé-de-obra"; os campeonatos locais não atraem interesse do consumidor mundial; crianças e jovens acompanham, preferencialmente, campeonatos internacionais; os times são incapazes de se financiar no mercado e, assim, dependem do subsídio estatal, que chega por meio de isenções, perdões e parcelamentos; dentre outros graves sintomas. Esse cenário de terra arrasada não condiz com a potencialidade do futebol brasileiro, que dispõe de todos os produtos da cadeia de valor: geração de jogadores, times, campeonatos, seleção, consumidor interno e possibilidade de acesso ao consumidor externo. Falta, porém, ao futebol brasileiro um sistema (ou um mercado), construído sobre a premissa de que o futebol é um negócio pujante, apto a contribuir de modo substancial ao desenvolvimento econômico e social do País. Esse mercado se construirá a partir de um novo marco regulatório, que fixe as regras do jogo e enderece, prioritariamente, três aspectos fundamentais: o modelo de propriedade do futebol - propriedade essa que atualmente é concentrada em associações sem fins lucrativos; um sistema de governança que ofereça segurança ao investidor privado; e instrumentos privados de financiamento da atividade futebolística. Para que esse ambiente se forme, é preciso conceber uma via jurídica própria - a SAF -, que trará confiança, previsibilidade e estabilidade sistêmica. Assim, ao se prover, por via legislativa, seu contorno mínimo, se oferecerá ao clube, de um lado, segurança para entrar no sistema, e, de outro, ao investidor, a mesma segurança, porém, para investir. A SAF se insere no sistema, portanto, como instrumento de legitimação, de confiança e, sobretudo, de segurança jurídica; elementos que inexistem no modelo atual do futebol brasileiro. O investimento privado, com ela, ficará menos vulnerável às incertezas e às instabilidades políticas inerentes a todo clube social. Destacam-se, por fim, dois outros aspectos que reforçam a relevância - e a necessidade - da criação da SAF: Primeiro: não se trata de um modelo intervencionista; ao contrário, a SAF será a resposta à atual crise sistêmica, que se resolverá com solução também sistêmica. Se determinado clube não quiser constitui-la, e optar pela constituição de outro tipo de sociedade empresária - uma sociedade limitada ou uma sociedade anônima -, será livre para fazê-lo. Segundo: a SAF se desgrudará dos modelos formais instituídos pelas leis anteriores (Zico, Pelé e Profut) e dos seus resultados catastróficos, que ainda assombram o ambiente futebolístico, a exemplo do recente episódio de que o time e os torcedores do Figueirense foram vítimas1. Enfim, esses são alguns dos motivos que justificam a criação da SAF, como instrumento de viabilização, legitimação, previsibilidade e segurança jurídica do novo mercado do futebol brasileiro. __________ 1 E agora, torcedor do Figueirense? - Parte II.
quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Desenha-se, enfim, o futuro do futebol

Unir é verbo transitivo direto, que denota o ato de unificar, reunir, aderir. Trata-se de atitude que, nos últimos tempos, vem sendo pouco praticada na sociedade brasileira. A união em torno de um tema ou de um ideal não implica, necessariamente, transigência sobre valores fundamentais, formadores de uma corrente de pensamento ou de uma determinada ideologia. Em ambientes plurais, esse caminho é o único que evita o absolutismo. O país está dividido como nunca esteve. Eventos e certezas pessoais (ou grupais) dificultam, neste momento, a necessária união em torno do que realmente importa: o bem-estar do povo brasileiro. Há uma atividade, porém, que, como nenhuma outra, tem essa característica. Mais do que isso, aliás. Além da vocação unificante, revela-se poderoso instrumento de desenvolvimento econômico e social: o futebol. O futebol não é uma manifestação autóctone. O brasileiro não o concebeu, mas o aperfeiçoou. O aperfeiçoamento não esteve vinculado a ações planejadas, de estado, de governos ou de agentes privados; decorreu da espontaneidade com que se praticou, no século passado, o jogo de bola. Naquele ambiente, ainda romantizado, o Brasil e os seus jogadores transformaram o futebol na mais globalizada das manifestações humanas. Esse feito gerou, porém, uma reação (ou contrarreação) que se tardou a identificar: países concorrentes impuseram, local e regionalmente, a revisão do modelo amadorístico e a concepção de uma prática construída sobre pilares empresariais. O futebol passou a ser negócio, de natureza econômica. A partir da nova modelagem, o jogador brasileiro se converte, paulatinamente, em coisa: no plano interno, vira commodity; no externo, matéria-prima para transformação. Sob qualquer ângulo, cria-se uma indústria destrutiva da riqueza nacional. Nenhum Governo, desde a Constituição de 1988, ateve-se à destruição. O tema não parecia à altura das grandes preocupações que embalavam Brasília, apesar dos constantes apelos públicos oriundos dos distintos setores que integram o sistema futebolístico. Eis que, enfim, acordou-se para relevância do futebol: Executivo e Legislativo deram-se conta dos inevitáveis impactos políticos, econômicos e sociais. Em termos práticos, o que isso significa? Significa que, nos próximos dias, o futuro do futebol brasileiro será redesenhado. Não se trata de frase de efeito; é a realidade. Isso é bom ou ruim? Poderá ser excelente, se o modelo for adequado; ou dramático, se a escolha do modelo se revelar equivocada. Na formulação do novo marco regulatório, a história dos mercados europeus serve como boa fonte de ensinamentos, e as iniciativas locais, desde a Constituição de 1988 - sobretudo os desacertos das Leis Zico, Pelé e do Profut -, também devem ser compreendidas, para que os seus erros sejam evitados. Naquelas oportunidades, adotaram-se soluções formalistas. Ora se pretendia obrigar o clube a transformar-se em empresa, ora se oferecia a faculdade. Depois, tentou-se um modelo baseado na punição. Em nenhum deles se propôs a construção de um sistema sustentável, em que os agentes formadores e de prática do futebol se desenvolvessem como empresas dissociadas dos clubes, mediante a captação de recursos privados, detidos por agentes que se dispusessem a empregá-los no futebol, por conta da segurança jurídica oferecida pelo próprio sistema. Não há mais tempo para testes ou equívocos. Não se trata de salvar um time ou viabilizar o ingresso de investidor em outro. O futebol clama por uma solução que, enfim, crie um sistema crível, seguro e transparente; que reconheça os problemas estruturais e ofereça respostas igualmente estruturais; e que compreenda e enderece as necessidades dos verdadeiros agentes que dele farão parte.
quarta-feira, 28 de agosto de 2019

E agora, torcedor do Figueirense? - Parte II

Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo É preciso advertir os leitores e leitoras que acompanham esta coluna: o que se vê, hoje, no Figueirense, e o modelo empresarial estruturado para aquele time, não refletem, em absoluto, a concepção do projeto de nova organização do futebol brasileiro que defendemos. Ainda em 2017, pouco tempo após o anúncio da parceria do Figueirense com um investidor à época desconhecido, tentamos lançar alguma luz - e algumas provocações - sobre as então muito misteriosas condições do negócio celebrado pelo time catarinense1. O texto não foi profético. Longe de nós, aliás, querer propagar qualquer habilidade (ou vocação) futurologista - que, é claro, inexiste. Infelizmente, contudo, nossos piores temores se revelaram mesmo realidade. A situação do Figueirense, pelo que dão contas as notícias, é calamitosa. Entristece qualquer amante do futebol ver o sofrimento dos funcionários (inclusive atletas), a impotência e a revolta da torcida, o descaso dos cartolas, a perda de um jogo por w.o. É grave. Muito grave. Mas não se pretende, neste texto, enunciar os culpados - por mais que se possa ter, intuitivamente, fortes receios sobre as causas do problema, e por mais nobre que possa ser tentar entregar ao Figueirense alguma solução fácil e imediata, como se "receita de bolo" fosse. Nossa missão é, talvez, um pouco mais ampla e essencialista. Não é focada em um caso, específico, como o do Figueirense, mas se endereça ao sistema do futebol brasileiro. Afinal, o problema que lá se manifestou, como um vulcão outrora adormecido que entra em erupção, é a dura realidade que muitos times brasileiros vivenciam ou estão, potencial ou concretamente, próximos de vivenciar. Dívidas, salários atrasados, condições estruturais precárias, gestões questionadas (ou até mesmo condenadas). Quantas dessas e outras mazelas não castigam os times do Brasil, de forma geral? O modelo estruturado pelo (ou para o) Figueirense - e o seu mau resultado, evidenciado pelos últimos episódios veiculados na imprensa - é um exemplo do insucesso da concepção estrutural que foi propagada pela Lei Pelé e que, por suas fragilidades, precisa ser entendida e compreendida, para, então, não ser repetida (jamais). Foi assim com outras iniciativas, anteriores. Está sendo assim com o Figueirense. São projetos que não se apoiam na transparência e em instrumentos regulatórios de controle, ou que não buscam resolver, de forma completa, os problemas estruturais que dão tom à precariedade da gestão futebolística. Esse é o mal do famigerado "clube-empresa", por exemplo. A solução organizativa para os times brasileiros não pode advir de uma iniciativa essencialmente desportiva, formalista, como a Lei Pelé. Tampouco deve despontar de um conjunto de ideias apenas empresariais, a exemplo de crua aplicação do nosso conjunto de regras societárias e comerciais em geral. É preciso um passo maior e mais cuidadoso - e, ao mesmo tempo, mais audacioso. É preciso que se crie um novo ecossistema, um novo mercado do futebol, que alie as preocupações desportivas - que são legítimas - aos conceitos e técnicas empresariais, observe as melhores práticas de governança corporativa e respeite as particularidades (culturais, econômicas e conjunturais) do futebol brasileiro, oferecendo-lhe, assim, uma via de transição. Só uma passagem bem estruturada do (desorganizado e inadequado) modelo atual para um novo modelo, vinculada à criação de um ecossistema do futebol, é que causará verdadeira transformação. Esse ecossistema, ou mercado do futebol, deve gerar, além de um ou mais tipos societários especiais para os times que assim desejarem se organizar, instrumentos de governança, transparência e mecanismos de controle. Tudo isso para permitir que os recursos cheguem até o futebol, a um custo adequado, e, dessa forma, suas atividades possam ser (melhor) desenvolvidas. Busca-se, por meio de medidas como as comentadas acima, evitar a apropriação dos times por agentes oportunistas, que já estão de olho em um mercado de gigante potencial e significativas proporções. O Figueirense, nesse modelo de parceria, pelo que dele se pôde notar, é velho futebol. Não tem nada de novo. Lá em 2017, concluímos nosso texto refletindo que "[e]nquanto não se refundar a estrutura do futebol brasileiro, as iniciativas - mesmo que, na essência, bem intencionadas - isoladas e pouco transparentes continuarão a estimular a sensação - ou a certeza - de que se mantém o aviltamento do patrimônio futebolístico nacional". Não mudamos de ideia. __________ 1 E agora, torcedor do Figueirense?
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo O Ceará Sporting Club ("Ceará") é uma das forças do nordeste que, hoje, disputa a serie "A" do campeonato brasileiro. Organiza-se sob a forma de associação civil sem fins econômicos e, nos termos do seu Estatuto Social, possui o modelo de governança que será delineado brevemente a seguir. Os poderes do Ceará se dividem entre Assembleia Geral, Conselho Deliberativo, Diretoria Executiva, Conselho Consultivo e Conselho Fiscal. Conforme disposto no art. 3 do Estatuto, a Assembleia é o "poder básico e de jurisdição máxima do clube", que se reúne, ordinariamente, para eleger os membros do Conselho Deliberativo, e, extraordinariamente, para, dentre outras funções, decidir sobre extinção ou fusão do clube. Ainda de acordo com as regras estatutárias, compete à Assembleia, em caráter privativo, autorizar o Presidente da Diretoria Executiva a alienar bens imóveis - desde que o Conselho Deliberativo tenha se manifestado previamente -, deliberar sobre desfiliação (do Ceará) de entes desportivos (por quórum de aprovação de 2/3, no mínimo) e alterar o Estatuto. O Conselho Deliberativo, por sua vez, atua como mandatário e representante dos associados, de acordo com o art. 18 do Estatuto, servindo como meio de manifestação coletiva daqueles, cuja administração cabe a um Comitê Administrativo, formado por presidente, 2 vice-presidentes e 2 secretários (um Geral e outro Adjunto): cada um deles com tarefas específicas. Afora outras competências atribuídas a esse órgão, é prerrogativa do Conselho apurar a responsabilidade de seus membros e diretores, por exemplo, por irregularidades praticadas no exercício de suas funções, aprovar a aquisição, alienação ou oneração de ações ou quotas de sociedades pelo Ceará, bem como os Estatutos ou Contratos Sociais (e respectivas alterações) de sociedades em que o clube possuir participação societária, e aprovar o orçamento. Ordinariamente, o Conselho Deliberativo se reúne para eleger o Conselho Fiscal, discutir o relatório da Diretoria Executiva relativo ao exercício social findo e a proposta de orçamento e eleger os membros da Diretoria Executiva. Já a Diretoria Executiva, na forma do art. 49 do Estatuto Social do Ceará, é o órgão superior executivo do clube, sendo responsável pela gestão e administração, e composto por 1 presidente, 2 vice-presidentes e 9 diretores com função específica (dos quais um é de Futebol, um de Finanças e outro de Administração, por exemplo). Os diretores são incumbidos de administrar o clube, deliberar sobre emissão de títulos, analisar e encaminhar ao Conselho Deliberativo a proposta orçamentária, e aprovar regimento interno do clube. Em caráter especial, compete ao Presidente da Diretoria Executiva elaborar a estrutura organizacional da Diretoria, fixar a remuneração dos funcionários e atletas profissionais do Ceará, aprovar e autorizar operações financeiras, bancárias e de câmbio - desde que gerem obrigações apenas no decorrer do seu mandato -, autorizar a cessão definitiva ou temporária dos direitos federativos de atleta profissional ou em formação e, dentre outras responsabilidades, representar, ativa e passivamente, judicial e extrajudicialmente, o clube. O Conselho Fiscal é órgão com poder de fiscalizar a administração do Ceará, composto por 3 membros efetivos e igual número de suplentes, os quais, além de terem, obrigatoriamente, capacidade técnica compatível com a função, não poderão ser integrantes do Comitê Administrativo do Conselho Deliberativo e da Diretoria Executiva, tampouco ascendentes, descendentes, cônjuges, irmãos, padrastos e enteados dos membros da Diretoria. Tem como competências específicas, nos termos do art. 63, §4º, examinar os documentos e informações relativos à prestação de contas anual do Ceará, supervisionar procedimentos contábeis, denunciar erros administrativo-financeiros e dar parecer, sempre que solicitado pelo Presidente da Diretoria Executiva, pelo Presidente do Conselho Deliberativo ou pela Assembleia Geral, a respeito de assunto relacionado à administração financeira. Já o Conselho Consultivo, por fim, é constituído por todos os ex-presidentes eleitos do Ceará, que tenham exercido o cargo por, pelo menos, de 6 meses. Trata-se de órgão meramente opinativo, como o próprio nome indica, de modo que seus membros podem até mesmo cumular sua posição com funções em outros órgãos. Os artigos 95 e seguintes do Estatuto - já depois de tratar dos poderes do clube - preveem regras que orientam o patrimônio e o orçamento do Ceará, admitindo-se, inclusive, mediante prévia aprovação do Conselho Deliberativo, a constituição de ou a aquisição, sob qualquer forma, de participação societária em sociedade que tenha por propósito a prática desportiva profissional e seja classificada como entidade de prática desportiva participante de competições profissionais. O art. 101 do Estatuto dispõe, assim, que, para tanto, o clube fica autorizado a transferir a essa sociedade bens móveis e direitos relativos à modalidade profissional que estiver contida no objeto social de tal sociedade, como forma de viabilizar o desenvolvimento de suas atividades. Sobre responsabilização pessoal dos administradores, ainda, o art. 102 reconhece que os dirigentes do Ceará somente responderão pelos prejuízos que causarem em virtude de ato praticado com infração à lei ou ao Estatuto. Percebe-se, assim, que o modelo adotado pelo Ceará é muito semelhante ao existente na grande maioria dos clubes brasileiros - o que não é uma surpresa, mas, nem por isso, mitiga a nossa frustração.
A Lei Pelé, promulgada em 1998, reconstruiu as bases das relações no plano esportivo e inaugurou o modelo que, de alguma forma, refletia as demandas e as preocupações da sociedade brasileira naquele momento histórico. Apesar da tentativa formal de induzir o clube a transformar-se em empresa, não se tratava do principal vetor das reformas legislativas. A bem da verdade, por mais que se promovessem medidas para disseminar a proposta transformacional, os agentes não estavam preparados para esse movimento. Aliás, não apenas os agentes, pois ainda se buscavam meios de construir um mercado de capitais robusto e eficiente - que começaria a se produzir a partir do ano 2000 com o lançamento do Novo Mercado pela Bovespa. De lá para cá, todas as iniciativas subsequentes tiveram como propósito modificações legislativas pontuais ou circunstanciais. O melhor exemplo é o Profut, que foi engendrado para salvar os clubes, à conta dos contribuintes, e não para oferecer-lhes os meios de reverter o estado generalizado de insolvência que justificou a sua criação (do Profut). Há, porém, um fato novo: após 21 anos, o futebol voltou ao centro do debate. E o que é importante: notícias auspiciosas sugerem que, enfim, se dará o devido direcionamento ao tema. O presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia, divulgou em sua conta no instagram, no dia 12 de agosto, o seguinte: "hoje visitei o CT do São Paulo. Ótima conversa com Raí e Lugano sobre a ideia de avançarmos em um projeto de clube-empresa. Agradeço o convite do presidente do São Paulo, Carlos Augusto Barros e Silva". Além do Poder Legislativo, também circulam notas a respeito da pretensão do Executivo em promover essa pauta, que interessa a milhões de brasileiros. No mesmo sentido, clubes de distintos portes e regiões se movimentam para entender os efeitos de eventual encaminhamento da criação do novo mercado do futebol, pretendida e arquitetada pelo PL 5.082/16, que institui a sociedade anônima do futebol (SAF) e esse novo mercado. Em casos mais avançados, o interesse já foi superado pelo início do processo de verificação de viabilidade econômica e adoção de trâmites internos. Parece que se está, pois, diante de um movimento irreversível, que deverá culminar com a instituição de um novo modelo, que fará bem ao país, aos brasileiros, aos times e aos torcedores. A adoção de um sistema forte e eficiente, elaborado para preservar a tradição futebolística e atrair recursos nacionais ou internacionais para o futebol, não pode (ou não deveria) encontrar resistência. Eventual oposição à realização do debate que já se iniciou ou à criação do novo ambiente do futebol, que viabilizará o investimento na formação de jogadores, a constituição de elencos poderosos e a projeção de times e do campeonato nacional ao mundo - a contratação de Daniel Alves pelo São Paulo, mesmo ainda se tratando de um caso isolado, comprova o potencial -, seria uma postura no mínimo indefensável e antipática. Daí a grande oportunidade que se apresenta à CBF. As assumir a importância da mudança - que já se operou nos principais centros de prática do futebol (Espanha, França, Inglaterra etc.) e os colocou num patamar muito além do brasileiro -, a entidade reforçaria o discurso que passou a formular, sobretudo após a eleição do atual presidente, Rogério Caboclo. Em sua na biografia, disponível no sítio eletrônico da confederação, consta que "sob seu comando foi executado o plano de Governança, Risco e Conformidade (GRC) da CBF. [Rogério Caboclo] foi idealizador da criação da área de Compliance da entidade e da CBF Academy, plataforma que subiu de seis para mais de 40 o número de cursos oferecidos em menos de três anos". Mais importante do que a instituição de instrumentos formais, que podem ter efeito prático, ou não - e que são adotados com frequência em companhias para legitimar discursos vazios -, a CBF se depara, agora, com a rara, raríssima oportunidade de apresentar-se ao Brasil como uma entidade que está materialmente comprometida com o desenvolvimento do futebol, dos times e de seus jogadores e, em última análise, do país. E Rogério Caboclo é premiado com a oportunidade de se consagrar como o presidente que liderará o processo de reconquista do protagonismo do futebol brasileiro num ambiente globalizado e extremamente competitivo. Poucas pessoas tiveram oportunidade tão grandiosa.
quarta-feira, 7 de agosto de 2019

Brasília e o destino do futebol brasileiro

Circulam notícias de que o futebol, enfim, entrará na pauta do Congresso Nacional. Apesar do atraso em relação aos países europeus, o Brasil ainda pode recuperar o tempo perdido. Para que não se desperdice a oportunidade que se anuncia, podemos - ou devemos - revisitar as medidas empregadas a partir da Constituição de 1988 e, com elas, evitar os erros que se repetiram nas últimas décadas - e que, em grande parte, conduziram o futebol para uma espécie de autodestruição ou, para evitar a hipérbole, para a condição de exportador de commodity. Paralelamente, também podemos - ou devemos - entender o que foi feito em centros concorrentes outrora inferiores ou comparáveis - como Inglaterra, Espanha, França, Portugal, Chile etc. - e aproveitar algumas das lições que os transformaram - ou mantiveram - em protagonistas do jogo de bola e da empresa futebolística. O ponto de partida - e de chegada - é a necessária distinção entre legislação esportiva e legislação formadora do mercado do futebol. A legislação esportiva consiste em um sistema próprio, voltado à regulação e organização dos agentes que o integram - como jogadores, treinadores, preparadores e árbitros - e dos demais fatores indissociáveis à atividade esportiva, como direitos de imagem e de arena, direitos econômicos e federativos, justiça desportiva e outros. A legislação formadora do mercado do futebol é substancialmente societária, e tem como propósito formar um novo sistema, um novo mercado, que terá como objeto oferecer confiança e segurança, e prover recursos para o desenvolvimento da empresa futebolística. Esse sistema se intersecciona, para que seja eficaz, com normas tributárias e de natureza recuperacional - visto que parcela relevante dos clubes se encontra, tecnicamente, em estado de insolvência. Portanto, um sistema não se confunde com outro, apesar de que, nesse momento da história do futebol brasileiro, o sistema que abriga a legislação esportiva depende da formulação do sistema do mercado do futebol para sobreviver em alto nível, e, por outro lado, o sistema que organizará o mercado do futebol não tem outro motivo para ser formulado senão prover os meios para que o Brasil volte a ser relevante - e grande - no cenário futebolístico internacional. A dissociação lógica e prática dos sistemas não foi observada nas Leis Zico e Pelé, que no âmbito de reformulações da legislação do esporte, apenas tentaram impor, de maneira formal e superficial, a transformação do clube em empresa - imposição que reapareceu, anos depois, de modo tentativo, por ocasião da propositura da Lei do Profut. Aí se revela, aliás, o segundo ponto que Brasília, na formulação do novo marco regulatório, deve observar para evitar a repetição dos equívocos históricos: a passagem do modelo associativo para o modelo da empresa não consiste em um comando formal. Para que funcione, o Estado-legislador deve dar-lhe consistência, com o oferecimento dos mecanismos necessários à construção de um sistema crível e sustentável. Assim, e somente assim, o investidor nacional ou estrangeiro empregará suas economias no futebol brasileiro; o clube se aproveitará, com eficiência, da criação do sistema; e o torcedor compreenderá e apoiará a necessária transformação estrutural de seu time. Esses instrumentos, viabilizadores da passagem de um modelo a outro, não foram providos pelas leis desportivas - e jamais serão, pois integrantes, como visto, de um sistema próprio. Daí os resultados desastrosos das tentativas transformacionais empreendidas por alguns clubes brasileiros com base nas Leis Zico ou Pelé. Espera-se, assim, que a lição, ou melhor, que as lições tenham sido absorvidas. Agora, o foco é a criação de algo que nunca se fez: um novo sistema, um mercado sustentável do futebol, que atraia recursos nacionais e internacionais para empresas futebolísticas que se submeterão a normas de organização, funcionamento, governação e captação conhecidas e confiáveis, e que, ao mesmo tempo, projete e preserve o futebol como expressão máxima da cultura nacional. Esses são os desafios que Brasília deve enfrentar para que a atual legislatura se registre na história como a que resgatou e recolocou o futebol brasileiro no ápice da escala mundial.
quarta-feira, 26 de junho de 2019

Características do neofutebol brasileiro

Circulam notícias de que dois rivais históricos, AC Milan e Inter de Milão - que já compartilham o mesmo estádio, de modo civilizado e colaborativo -, estariam organizando-se para construir, em conjunto, uma nova arena. A novidade envolve o esforço para captação de recursos e definição de um plano de negócios que viabilize (i) a utilização, pelos dois times, em seus jogos nas diversas competições de que participem, e (ii) a exploração econômica do equipamento. Esse negócio enquadra-se na definição de joint venture, que se trata de uma espécie de reorganização associativa, em que duas ou mais empresas, sem perder autonomia e independência em relação aos seus negócios, associam-se, mediante contrato ou constituição de uma nova empresa, para desenvolver determinada atividade ou explorar determinado ativo. A constituição de nova empresa, que é chamada de equity joint venture, apresenta algumas características interessantes: o surgimento de uma unidade autônoma de negócios; a contratação de administradores próprios e, em tese, especialistas na atividade que se desenvolverá; o propósito lucrativo, que implicará a distribuição do excedente aos sócios - portanto, aos times que a constituíram; e o direcionamento de recursos antes utilizados para manutenção do estádio (ou da arena) para conta de investimentos ligados ao futebol. Desse modo, os times podem dedicar-se, com exclusividade, aos seus negócios (a atividade futebolística) e, como sócios de uma empresa que atua na exploração da arena, cobrarão e receberão resultados e dividendos. Fato é que, sob a forma de joint venture ou mediante investimento isolado - caso da Juventus, que empregou montante da ordem de 155 milhões de euros para construção do Juventus Stadium, que logo passou a chamar-se Allianz Stadium -, o tema arena (ou estádio) também não resistiu à evolução e à globalização do futebol, e os principais times dos principais centros de prática deram soluções que se acomodam às diversas realidades e, sobretudo, que se integram nos respectivos planos de negócios - e de crescimento. No Brasil, o tema foi muito mal gerido; fora aproveitado para o cometimento de atentados ao erário e aos torcedores - e, em alguns casos, aos próprios times. Os resultados todos já conhecem: elefantes brancos, que consumiram bilhões de reais - os quais poderiam ter sido destinados à educação e à saúde, ou ao desenvolvimento do futebol -; e endividamentos impagáveis de determinados clubes. O pano de fundo dessa peça é a falta de colaboração: clubes não colaboram entre eles, entidades administradoras do futebol lavam as mãos, e o Estado não atua para executar a única função que lhe é destinada no sistema: a definição de novo marco regulatório. Portanto, cada agente corre para satisfazer seus interesses particulares, e, assim, se deixa, como legado, o caos. Essa situação propicia o fortalecimento de um ou outro time, que consegue, por via do fluxo de recursos oriundos de um ou outro patrocinador ou pelo tamanho de suas torcidas, distanciar-se dos demais, criando-se um hiato indesejável, sob a perspectiva da sustentabilidade e da higidez sistêmica. Aí está um retrato do neofutebol brasileiro. Aliás, o neofutebol brasileiro é a antítese do modelo inglês (que estimula a concorrência e a distribuição da riqueza interna), ou do modelo norte-americano - aplicável em geral aos esportes populares -, cujo lema é rivalidade em campo, sociedade fora dele. É isso, pois: a falta de colaboração, em todos os níveis, é um dos motivos do desmantelamento do invejável modelo de distribuição de forças entre times de diversos estados da federação e da transformação dos clubes brasileiros em exportadores periféricos de commodities.  
quarta-feira, 19 de junho de 2019

Chernobyl e o futebol

Monica de Bolle, economista e uma das mais lúcidas analistas da atual situação política do país, utilizou a minissérie Chernobyl, produzida pela HBO, para tratar de um tema que há décadas - ou melhor, séculos - corrói a sociedade brasileira: a mentira. A referência é pertinente: os discursos oficiais - e mesmo os oposicionistas - contêm, historicamente, mentiras que se adaptam aos interesses de quem os profere. A alternância no poder vem servindo, aliás, para legitimar as novas inverdades, que se sustentam pelo antagonismo com as mentiras pretéritas. Apesar de não se tratar de fenômeno exclusivamente brasileiro, aqui se atinge nível epidêmico. E a epidemia abalou o futebol. Para onde se olha, encontra-se catástrofe. Porém, como em Chernobyl, tenta-se construir um discurso oficial de que tudo está bem ou de que os eventuais problemas são insignificantes - ou conjunturais. Não são. Algumas verdades devem ser resgatadas e enfrentadas para que, a partir delas, se (re)construa uma indústria que, como já se repetiu à exaustão nesta coluna, tem enorme potencial econômico e social. Primeira mentira: o jogador brasileiro é o melhor do mundo. Já foi. Não é mais. Nos dias atuais, tornou-se commodity. Em sua maioria, sai do país despreparado e volta sem consagração. Os poucos jogadores que atingem o estrelato são transformados, por lá, em produto de ponta e, no final de suas carreiras, repatriados para iludir a massa torcedora. Segunda: os times brasileiros (ainda) têm apelo mundial. Não é verdade. Tornaram-se, hoje, meros exportadores de commodities. Pior: estão, em sua maioria, tecnicamente quebrados, e são preservados por benesse de uma legislação anacrônica e pela leniência do Estado, que os financia com isenções fiscais, perdões de dívidas, parcelamentos e reparcelamentos de débitos tributários, patrocínios e outras formas de transferência de recursos. Terceira: os campeonatos nacionais rivalizam com os organizados por países europeus. Mais uma inverdade. Os certames brasileiros foram rebaixados às divisões inferiores, em comparação com as principais ligas da Europa, e atraem, apenas, torcedores locais. A paixão clubística, ainda existente, cede espaço, em progressão geométrica, à oferta de produtos externos de altíssima qualidade - o que se prova, no cotidiano, pelo cada vez maior número de crianças e jovens que vestem camisas de times estrangeiros e idolatram craques de outros países. Quarta: o modelo associativo, adotado desde o século XIX, protege o futebol brasileiro de invasores bárbaros, que pretendem se apoderar da cultura nacional. Ao contrário: esse modelo é responsável pela propagação da ineficiência e da improdutividade, bem como pela prevalência do amadorismo sobre o profissionalismo. Sim: enquanto os times europeus ostentam estruturas administrativas (e organizacionais) sofisticadas e tecnológicas, os brasileiros são governados por amadores, que se projetam por suas habilidades político-associativas. Quinta: dinheiro, no futebol, não garante resultados. A ascensão de times antes inexpressivos - ou não tão relevantes historicamente -, como Manchester City e PSG, que, após o ingresso de vultosos recursos, passaram a figurar na lista dos 10 maiores do planeta em receitas e se tornaram os principais protagonistas de seus países e importantes competidores do futebol mundial, refuta a falácia. Em sentido contrário, times brasileiros tradicionais, como Vasco e Botafogo, atolados em dívidas, se apequenam a cada dia. Sexta: a seleção brasileira continua a encantar o mundo. Definitivamente, não. Mesmo o torcedor brasileiro vem demonstrando dificuldade de identificar-se com o símbolo que, em outros momentos, unificava pessoas de origens tão díspares. Ela perdeu a legitimidade representativa. Sétima: confederações e federações se preocupam com a sustentabilidade do esporte e o resgate de sua força. Na realidade, a máquina associativa se auto preserva e se apropria de técnicas e de conceitos de mercado, como governança e compliance, para reforçar o status quo. Nesse ambiente, o futebol e os futebolistas são apenas meios de sustentação de projetos de poder. A combinação dessas mentiras é responsável pela implosão do futebol brasileiro. Seu soerguimento depende do reconhecimento dessa realidade e da construção de um novo modelo, de um novo mercado, construído sobre os pilares (i) da sociedade anônima do futebol, (ii) de instrumentos de financiamento do futebol - a exemplo da debênture-fut -, (iii) de um programa de certificação de governança do futebol - outrora alcunhado de bovespafut -, (iv) de um regime tributário transitório e (v) de instrumentos de incentivo, por meio do futebol, à educação de estudantes da escola pública.  
quarta-feira, 12 de junho de 2019

A ascensão e o futuro do Londrina

Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo Depois de quase ir à "falência", em 2011, por dívidas trabalhistas - tendo, inclusive, sofrido intervenção da Justiça do Trabalho1 no período -, o Londrina Esporte Clube ("Londrina"), sediado na cidade que lhe dá nome, conquistou o campeonato paranaense em 2014, o título da Primeira Liga em 2017 e, atualmente, luta pelo acesso à série A do campeonato brasileiro. Muitos creditam a recuperação do clube paranaense ao contrato de parceria celebrado com a SM Sports - sociedade formada pelos empresários Sérgio Malucelli e Juan Figer2, ambos com experiência no futebol brasileiro -, por meio da qual a administração do futebol foi terceirizada à SM. Em razão desse contrato, o clube receberia repasses menores, advindos da responsável pela administração, que, por sua vez, ficaria com os maiores pedaços do faturamento da entidade gerida3. Não se duvida que, de fato, os recursos e expertise empregados, pela SM, foram importantes para ajudar na sobrevivência e no soerguimento do Londrina desde sua quase derrocada. Ocorre, no entanto, que, ao que parece, não foram implementadas mudanças verdadeiramente estruturais no clube. Como não tivemos acesso ao contrato, mas, apenas, ao estatuto - que, como se verá, delimita um modelo organizacional comum aos outros times brasileiros -, não é possível afirmar o contrário. O que sobreleva dessa discussão é que, quase 10 (dez) anos depois da firmação da parceria, notícias dão conta de que a SM Sports não renovará o seu contrato com o Londrina4. Assim, se, realmente, não foi implementado processo de modificação estrutural no clube, que tenha resultado em uma organização perene e estável, com modelo de funcionamento próprio, dispondo de sistemas de governança e controle eficazes, independentes de quem está no comando da administração, então, pergunta-se: qual seria o futuro do Londrina sem o apoio da SM Sports? É uma pergunta de dificílima resposta. Mas vale a reflexão. Com essa provocação em mente, passamos a expor breve descrição do Estatuto, a fim de demonstrar como se encontra, hoje, o seu modelo organizativo, e permitir análises futuras, acerca da utilidade dele, a despeito da SM Sports. O Londrina é uma "sociedade civil sem fins lucrativos" - isto é, entidade sem natureza empresária -, cujos poderes se dividem em Presidência, Conselho de Representantes, Assembleia Geral e Conselho Fiscal. A administração do clube compete, a princípio, ao seu presidente, que é auxiliado pelo vice-presidente e pelos diretores administrativo-financeiro, de Esportes, de Comunicação, de Marketing e Jurídico, responsáveis pela prática dos atos de gestão, cada um com funções próprias, previstas estatutariamente. Ocorre, no entanto, que o presidente - e, por consequência, todos os demais diretores - se submete ao Conselho de Representantes: órgão consultivo e deliberativo de nível hierárquico superior ao do Presidente do Londrina, que deve consultar o Conselho sobre todas as matérias de relevância para o clube. Desse modo, percebe-se que o órgão máximo responsável por determinar as diretrizes da administração do Londrina, não é a Presidência, mas, na verdade, o Conselho de Representantes, a quem compete autorizar, previamente, (i) celebração de contratos, (ii) venda, compra e empréstimo de (direitos de) atletas, (iii) venda e aquisição de bens móveis (acima de 10 salários mínimos) e imóveis, (iv) participação em campeonatos, e outras matérias. Trata-se de órgão formado por 50 membros, dentre os quais, necessariamente, um indicado pelo Prefeito do município de Londrina, um indicado pela OAB - Subseção de Londrina, outro pela Associação Comercial e Industrial de Londrina, um pela Associação dos Profissionais de Propaganda de Londrina e outro pela torcida organizada Falange Azul. A Assembleia Geral, por sua vez, tem competência apenas para deliberar sobre (i) realização das eleições, (ii) aprovação das contas, (iii) destituição de mandatários eleitos, (iv) alteração do estatuto e (v) dissolução da entidade. Há, ainda, capítulos sobre patrimônio, receitas e despesas, e orçamento, o qual deve ser analisado, previamente, pelo Conselho Fiscal, e submetido à deliberação do Conselho de Representantes. O Conselho fiscal, aliás, é, de acordo com o Estatuto, órgão independente, incumbido de realizar a fiscalização financeira do clube. Apesar de o futebol do Londrina, ao que parece, ter sido administrado profissionalmente nos últimos anos, por força da parceria com a SM Sports, depreende-se da leitura do Estatuto que, no plano do clube, não se cuidou de implementar mudanças transformadoras de sua estrutura organizacional. A conformação decorrente do Estatuto, como antecipado no início deste texto, em nada - ou muito pouco - diverge de tantos outros exemplos brasileiros. As mudanças aparentam ter se restringido àquelas operadas no espectro da terceirização do futebol à SM. E só. Esse descuido - ou desinteresse -, intencional ou não, não se sabe - nem se pode afirmar -, pode ter tornado o time paranaense refém de sua parceira. E, assim, pergunta-se, novamente: afinal, o que será do Londrina se a SM Sports estiver realmente indo embora? __________ 1 Londrina se prepara para vida sem SM. 2 SM Sports. 3 Terceira força? Conheça os métodos do Londrina para desbancar o Paraná. 4 Sergio Malucelli diz que não vai renovar contrato com o Londrina: "Estou 99% decidido".  
quarta-feira, 5 de junho de 2019

Neymar, Mike Tyson e o Tribunal Internético

Neymar é um fenômeno. Tudo o que faz (ou não faz), vira notícia. Roda o mundo. Além de fenômeno, poderia ser um herói. Mas parece que optou por encarnar Macunaíma. Ele é livre e pode escolher o seu caminho. Por enquanto, apesar da fama e da riqueza - merecidas, aliás -, trafega por via tortuosa. Talvez não alcance o destino que se imaginava traçado para ele, quando trocou Santos por Barcelona. Talvez a coleção de percalços o amadureça como jogador. Talvez, talvez. Ainda acho que dará a volta por cima, no plano futebolístico, e se sagrará o melhor jogador do mundo. Futebol, tem de sobra. Mas não acho que, no plano pessoal, mudará. Ele não será, pois, Sócrates ou Cantona; Romário ou Edmundo. Neymar é Neymar, e será sempre Neymar. Não deve ser crucificado por ser quem ele é, e não a figura que se pretendesse que fosse. A ruptura de expectativas parece estimular uma cruel satisfação com os seus tombos. Mais do que isso: também estimula a afirmação dos preconceitos históricos que pesam sobre os ombros dos jogadores de futebol. O suposto envolvimento de Neymar com um, até agora, contraditório - e pouco crível - caso de estupro, deverá potencializar todos esses fatores. Clama-se, nessa hora, por prudência. Muita prudência. A auto exposição e seus hábitos o deixam vulnerável a armadilhas. Pior: ele as arma, contra si. É o que se constata desse novo caso, que eventualmente não foi o primeiro - não me refiro à violência contra uma mulher, mas à complexa organização de uma viagem internacional apenas para a satisfação efêmera de desejos pessoais. Se realmente se tratou de uma noite de prazer ou de algo mais, caberá ao Poder Judiciário decidir. Enquanto não houver decisão, não se pode condená-lo por antecipação. Aliás, a Constituição Federal consagra o princípio da presunção da inocência. Esse princípio reconhece que, enquanto não for proferida decisão que tenha transitado em julgado - isto é, que, contra ela, não caiba mais recurso -, toda pessoa tem o direito de ser presumida inocente. Trata-se de pilar fundamental do Estado de Direito. Neymar não pode ser julgado e condenado pelo tribunal internético. Aliás, nenhuma pessoa pode, famosa ou anônima. Essas condutas são tão ou mais graves do que a que se imputa a ele. Sim, pois corrói a sociedade como um todo e demole a própria democracia. O perigo de corrosão me faz lembrar, de alguma forma, do episódio que levou ao fim da careira de Mike Tyson. Lá, é verdade, ele foi condenado por um Tribunal competente para julgá-lo. A condenação não afasta, porém, a percepção generalizada de que: (i) ele incomodava a sociedade conservadora e preconceituosa por sua origem e natureza indomável; (ii) precisava ser contido; (iii) caiu numa armadilha; e (iv) foi previamente julgado e condenado pela opinião pública, manipulada pelos mesmos conservadores e preconceituosos que pretendiam eliminá-lo, criando o ambiente para a condenação formal. O caso de Neymar pode ser diferente. Espero, sinceramente, que seja. Não fará bem ao futebol e ao país a comprovação de que um ídolo - sim, um ídolo de muita gente - tenha praticado crime realmente hediondo. Entretanto, sua vida continua. Cortá-lo da seleção, afastá-lo do time, rescindir seus contratos, tratá-lo como criminoso, por ora, implicaria o reconhecimento da denúncia e a antecipação da pena. Seriam atos que se aproximariam de um regime de exceção; e não de uma democracia.  
quarta-feira, 29 de maio de 2019

Mas e aí, o que fazer com o São Paulo?

Texto de autoria de José Francisco C. Manssur Estou absolutamente satisfeito (muito mais no sentido de saturado) com os inúmeros e, por que não dizer, precisos diagnósticos sobre a situação do São Paulo Futebol Clube. Ganhou seu último campeonato brasileiro em 2008, paulista não ganha desde 2005, o último título foi a Sulamericana de 2012 (que, parece que por algum motivo, esse ano, por enquanto, deve contar como título novamente), foi eliminado pela Penapolense, pelo Bala & Mistura e outros tantos vexames. De quando em quando, ou melhor, a cada eliminação - ou mesmo possibilidade de - algum São-paulino fanático ocupa os espaços nas mídias para contar uma mesma história: "tudo começou no (escolha aqui seu adjetivo) terceiro mandato do Juvenal, depois veio esse, veio aquele....". E nunca texto algum acaba propondo alguma solução real para o problema atual do Clube. Minto. Muitas vezes a solução proposta não vai além do "fora esse, fora aquele, fora aquele outro..." e nessa de "fora, fora" já foram três presidentes, dezenas de diretores de futebol, ainda mais dezenas de técnicos, jogadores então, cujo número dos que chegaram com foguetório da torcida no anúncio da contratação e saíram debaixo de vaias, dá para encher mais de um Boeing. Saiba você, se ainda não sabe, que o tal terceiro mandato do Juvenal foi aprovado pelos conselheiros. Os tais presidentes que agora pedimos "fora, fora", também foram escolhidos pelos conselheiros, estes, por sua vez, eleitos pelos por volta de 7 mil associados do São Paulo FC, que escolhem os dirigentes do Clube de 18 milhões de torcedores. Democrático, não? Pois é, meu amigo, lá vem o "chato da sociedade anônima", que mesmo fazendo o mea culpa por ter feito e fazer parte de tudo isso, ainda tem a pretensão de dar seu pitaco, para dizer, com algum conhecimento de causa, que nesse sistema político da associação a saída para o São Paulo Futebol Clube passa por uma porta estreita, onde dificilmente iremos encontrar a luz dos velhos tempos. Ou você realmente acredita que, em dezembro de 2020, quando os 7 mil sócios elegerem os 260 conselheiros e estes últimos consagrarem, entre eles, o presidente da associação, tudo vai mudar como que por milagre? Você não desconfia que na primeira eliminação de 2021, Você mesmo, cheio de raiva, não vai se manifestar nas suas redes sociais com o velho "fora esse, fora aquele, tudo começou no terceiro mandato do Juvenal, depois veio esse, depois aquele outro e agora este que foi eleito ano passado...." O São Paulo Futebol Clube precisa de uma mudança de verdade. Não só o São Paulo. O futebol brasileiro precisa de mudança de verdade, não o mais do mesmo do jogo político-associativo, com seus conchavos, suas nomeações em favor dos "partidos aliados" se sobrepondo à meritocracia da escolha, não dos mais populares, mas dos mais capazes. Existem muitos investidores só esperando quais serão os primeiros clubes do Brasil a adotarem a forma de Sociedade Anônima para aportarem por aqui com bilhões de dólares, visando lucrar (lucrar já não é mais pecado, faz tempo) com o nosso futebol tão rico na produção de talentos e tão incapaz na gestão. Deixando por aqui clubes mais capazes, especialmente financeiramente, de reter nossos maiores talentos, proporcionar melhores espetáculos e, por que não dizer, voltarem a brigar de igual para igual (ao menos dentro do campo), com os grandes da Europa como era nas décadas passadas. Porque no sistema da associação, com suas eleições entre os da piscina e os da quadra de tênis, nenhum investidor sério irá arriscar seu capital nas mãos do político de ocasião. Gestão pelos mais capazes, não pelos melhor aparelhados politicamente. Esse é o nome do jogo. Até por isso, tramita no Congresso Nacional Projeto de Lei 5.082/16, que pretende criar o modelo da Sociedade Anônima do Futebol, inclusive, com regime tributário especial e transitório para os clubes que constituírem as empresas para gerir seu futebol profissional. Estando nessa luta desde 2016, nunca sentimos um ambiente tão favorável para que o Projeto tramite e venha a ser colocado em vigor como nesses primeiros meses de 2019. Nesse cenário, vai ser o São Paulo Futebol novamente a exercer seu papel de vanguarda e tomar a frente da mudança que certamente atrairá em seguida outros importantes clubes brasileiros? Vai ser o São Paulo Futebol Clube que chegará primeiro às margens do rio para tomar água limpa? Há pouco mais de 1 ano e 1 mês, o Conselho de Administração do São Paulo Futebol Clube está estudando, até por disposição do Estatuto Social, proposta de separação do futebol profissional da área social do Clube, para que o futebol possa ser gerido por uma sociedade anônima detida, quando da constituição, 100% pelo São Paulo Futebol Clube. Ou seja, a semente da mudança está plantada, falta semear e colher. Se você, como eu, acha que esse modelo, que no passado trouxe tantas glórias e tantos dirigentes cuja História devemos sempre respeitar, hoje já não serve para trazer de volta o São Paulo para seus melhores dias. Você precisa lutar para que aconteça a verdadeira mudança. Você precisa se manifestar e pressionar para que os Poderes do Clube adotem a Sociedade Anônima para gerir o futebol. Sem a sua participação nessa luta, nada vai acontecer, até porque, quem decide hoje é quem participa da política interna do clube associativo. E ninguém gosta de perder poder. Você tem essa opção. Lutar pela mudança de verdade. Ou pode seguir no mais do mesmo, repetindo a ladainha (tão correta, quanto hoje em dia desgastada), do "fora esse, fora aquele", "tudo começou no terceiro mandato do Juvenal", "na próxima eleição vamos mudar isso aí..." tudo que você já deveria saber que não vai mudar nada realmente.
quarta-feira, 22 de maio de 2019

Futebol e democracia

No prefácio do livro Democracia Fútbol Club e Outras Histórias, de Roberto Jardim, o jornalista Juca Kfouri narra diálogo que manteve com Daniel Cohn-Bendit, líder das manifestações parisienses de 1968. Em síntese, o francês gostaria de entender o motivo da geração de grande quantidade de jogadores brasileiros preocupados com questões políticas e, em última análise, com a democracia. O jornalista, surpreendido, o desafia a preencher os dedos de duas mãos com jogadores que se encaixassem naquela descrição. A contagem vai até o número 8, mas é seguida de um contra-desafio: na Europa, quantos são? Contabilizam-se apenas 2. A conclusão é, portanto, contra-intuitiva: o Brasil geraria mais jogadores com preocupações humanistas do que os países europeus. A premissa não será, aqui, contestada. Não é o propósito. Abordam-se, por outro lado, três aspectos, próprios e internos, sem preocupação com a definição de um padrão mundial, mas que, de algum modo, apontam a insuficiência de representatividade do futebolista nos grandes temas sociais. O primeiro deles envolve a formação. O modelo brasileiro - e talvez de todo país subdesenvolvido ou em desenvolvimento - é cruel, pois não tem como propósito formar cidadãos. O processo envolve a coisificação da criança e do adolescente, que são submetidos a um rigoroso cronograma de treinamento e isolamento social. Poucos - realmente poucos - ultrapassam todos os obstáculos e, dentre os poucos, pouquíssimos atingem o estrelato. A maioria perambula entre clubes-zumbis, atrás de uma oportunidade eventual de trabalho. Os que sucumbem são despejados no mundo e vivem, com maior intensidade, a dura realidade mundana, tendo que competir por empregos para os quais não foram formados - técnica e psicologicamente. O segundo envolve a educação. A maioria dos principais times brasileiros obriga o jovem a frequentar a escola; aliás, mais do que isso: é comum que cuide do transporte e controle a frequência em classe. Porém, esse ensino formal, padronizado, não atende às necessidades dos alunos, que devem cursar currículos específicos, dirigidos à realidade da profissão futebolística, em programas que abrangem escola-futebol (como são oferecidos em países como a França e a Alemanha). O terceiro, e último aspecto, que se vincula aos anteriores, refere-se à negação do futebol como elemento da "alta cultura". Esse fenômeno é histórico no país. A fertilidade do intercâmbio artístico e cultural não se estende aos artistas da bola. As intersecções decorrem, na maioria das vezes, na forma de "licenças poéticas", para reverenciar algum marco ou excentricidade de certo jogador. O futebol e os futebolistas vivem, assim, à margem da sociedade ou constroem as suas próprias, pelo que costumam ser repreendidos ou ridicularizados. Esses são alguns dos motivos que justificam a pífia contagem de 8 democratas ativistas na história do futebol. A solução, para reverter esse cenário de exclusão, é, obviamente, a inserção, que se viabilizará apenas quando surgirem recursos para investimento na formação e educação dos jogadores, pelos times de futebol. E os recursos virão apenas quando o modelo de propriedade do futebol, monopolizado pelos clubes associativos, for modificado. Não há segredo e não há alternativa. Revela-se, aí, o ponto fundamental do debate: qual é o verdadeiro motivo que impede o empreendimento do necessário e profícuo movimento de transformação? Além daqueles que todos concordam - mas quase ninguém se mexe para mudar - como a apropriação do futebol pela cartolagem, a utilização do futebol para negócios pessoais, a corrupção privada, etc., há um que, consciente ou inconscientemente, talvez seja mais importante: o pavor do poder transformacional pela conscientização. Não interessa aos grupos de interesses dominantes a formação de uma classe de jogadores, que poderá - ou tenderá - a despertar e reivindicar o protagonismo que lhe está reservado. Daí o isolamento das poucas pessoas que tentam - ou tentaram - subverter esse modelo, como Paulo André, idealizador e líder do extinto Bom Senso, ou Sócrates, que foi, para utilizar uma expressão atual, um problema necessário.  
A arcaica estrutura do futebol brasileiro, mantida pelo dogma de que se trata de um bem inalienável, a ser protegido pelos clubes associativos, explica, em grande parte, o desnível em relação ao futebol europeu. Falar de futebol europeu, de modo generalizado, exige algum cuidado, pois, ali, se admira, na verdade, o futebol mundial. Todos os times minimamente importantes contam com jogadores estrangeiros e formam, de acordo com as suas condições financeiras, espécies de seleções. Mas eles têm outro elemento comum (em sua grande maioria): a substituição do modelo de propriedade da atividade futebolística, que se deslocou dos clubes para empresas. O início do processo, por lá, também teve seus traumas. A percepção de que "time é coisa coletiva, não mercadoria de um torcedor só, ou de dois", conforme as palavras de João Moreira Salles, não é um fenômeno apenas brasileiro. A diferença é que ela (a percepção) foi superada e o dogma deu lugar ao que se pode chamar de modernidade. Aliás, a percepção, de certo modo ingênua a respeito da natureza da propriedade do futebol, revelada na afirmação de João Moreira Salles, turva a compreensão da realidade: os times, no Brasil, não pertencem aos torcedores - ou ao povo. Ao contrário, há décadas estão todos, com raríssimas exceções, sequestrados por uma casta que, justamente ela, resiste à abertura e se beneficia com a transformação do jogador de bola em commodity. Essa é, infelizmente, a função atual do País no cenário do futebol: exportador de matéria-prima para transformação em produto de ponta. Essa inversão histórica gera outro efeito perverso: a importação do produto estrangeiro, de qualidade muito superior. A qualidade está necessária e definitivamente vinculada à captação e à geração de recursos para financiamento da empresa futebolística (nela incluídos todos os seus elementos, como jogadores, time, arena, uniformes etc). O AFC Ajax, por exemplo, um dos semifinalistas da liga dos campeões, é uma companhia cujas ações são negociadas em bolsa de valores (Euronext). A composição do capital, conforme informações públicas, é a seguinte1: Vereniging AFC Ajax  13,383,332  73.0%  NN Investment Partners BV  970,123  5.29%  Invesco Asset Management Ltd.  914,834  4.99%  Richard Strating  551,667 3.01%  I E Strating  551,667  3.01% Fischedick Monique Catharina Maria Strating-schulte  551,666  3.01%  Dimensional Fund Advisors LP  14,571  0.080%  O Tottenham Hotspur Limited, um dos finalistas da liga, também é uma companhia, controlada por outra empresa, denominada Enic International Limited. A Enic detém 85,55% do capital do Tottenham. Já o capital da Enic é detido por Joe Lewis (70,6%) e por Daniel Levy e certos membros de sua família (29,4%). Daniel Levy exerce, também, a função de "presidente"2. O outro finalista da liga, o Liverpool Football Club and Athletic Grounds limited, não foge à regra: é uma empresa, controlada pelo Fenway Sports Group. Detêm participações no grupo controlador uma série de investidores, dentre os quais John Henry, Tom Werner e Mike Gordon (que integram, também, a administração)3. O fato desses times terem donos não abalou a paixão e a fidelidade dos torcedores. Em certos casos, ao contrário, times sem tradição ou perspectiva de conquistas, tornaram-se super potências. O maior exemplo é o Manchester City. Vendido em 2008 ao Abu Dhabi United Group, deixou o papel de coadjuvante no passado e se tornou um dos principais protagonistas do futebol inglês (e mundial): levando-se em conta apenas os campeonatos realizados desde 1998, após nenhum título nas temporadas de 1998/1999 a 2010/2011, venceu 4 vezes nas temporadas de 2011/2012 a 2018/2019, sendo o atual bicampeão da premier league. Aparentemente, os torcedores desses times não os abandonaram pelo fato de terem donos. O orgulho, ao que parece, nunca foi tão intenso. Eles jamais deixaram seus times caminharem sós. Enquanto isso, no Brasil, ainda se luta a guerra do convencimento de que a regulação do novo mercado do futebol, para viabilizar a atração de investimentos, não implicará um ato de entreguismo. Pobre Brasil. __________ 1 MarketScreener. 2 Shareholder Information. 3 Liverpool.
quarta-feira, 8 de maio de 2019

O futebol brasileiro em nova dimensão

O título deste texto foi extraído de uma matéria publicitária veiculada na edição de sábado, domingo e segunda-feira, dias 13, 14 e 15 de abril, do jornal Valor Econômico. Talvez tenha sido divulgada em outros periódicos ou mídias, mas não fui atrás para verificar. O papel-jornal, sobre o qual se estampava longo texto informativo, espalhado em página inteira, permaneceu por semanas sobre a minha mesa de trabalho. Via-o todos os dias e chamava minha atenção o início do processo de envelhecimento e consequente "amarelização". Peguei-o algumas vezes para deitá-lo à lixeira, mas em todas as oportunidades surgia a ideia de guardá-lo para que fosse utilizado, no futuro, como objeto de comentário e de crítica. Confesso, porém, que essa ideia me dava preguiça. Não queria perder tempo com uma matéria paga, que celebra o próprio pagador, pelo fato de, conforme sua imodesta autopercepção, iniciar o novo ciclo de modernização e profissionalização do futebol brasileiro. Além disso, também não me sentia à vontade para falar de um contrato cujas condições não conhecia - e ainda não conheço. Mas resolvi, enfim, livrar-me do incômodo entulho e, ao mesmo tempo, realizar uma espécie de reflexão - breve e superficial, é verdade -, sobre a falta de respeito com o torcedor e o consumidor de futebol. Sim, é esse, ao final, o sentimento que, durante dias, não conseguia identificar. A matéria diz que a nova dimensão do futebol brasileiro, que justifica a celebração do novo ciclo de modernização e profissionalização, decorre da assinatura de contrato com a CBF e os clubes, que garante a determinado consórcio empresarial a exclusividade na venda das propriedades de arena do campeonato brasileiro, por prazo mínimo de 5 anos. Tais propriedades de arena serão exibidas em mais de 300 partidas transmitidas ao vivo por diversos canais e streaming. Isso, ainda de acordo com o texto, pode se expressar por diversos formatos, envolvendo ações de ativação em campo, nas redes sociais, branding, promoção, relação públicas e institucionais. Trata-se - prossegue - de um esforço para gerar audiência e maior engajamento para as marcas. E conclui: a parceria estabelece um novo patamar na relação entre marcas e propriedades, com o claro objetivo de alterar o cenário do marketing esportivo nacional e do futebol brasileiro em nível global. Entendeu? Então me explique, por favor, o que esse blábláblá significa, e como essa nova relação colocará o futebol brasileiro em nova dimensão. Num país em que a principal atividade esportiva, outrora motivo de orgulho nacional e admiração internacional, vem sendo destruída pelos desmandos e pelas omissões estatais e pelas apropriações de uma casta cartolarial, a divulgação do texto revela, apenas, um subterfugio, travestido de anúncio de interesse público, para justificar o início de uma relação empresarial que não modificará os rumos do futebol e não o mudará de dimensão. Seu conteúdo, aparentemente complexo, é um nada do ponto de vista material. Pior: parece que reforça o equívoco de décadas atrás, impulsionado pelo advento da Lei Pelé e pela euforia com a possibilidade de iniciação de um processo de transformação dos clubes em empresa, que, além de mal concebido, foi atropelado pela marketização do futebol. Esse é o caminho que, aparentemente, se pretende seguir: da reconstrução da história da administração do futebol, por meio de um ambicioso projeto de marketing, que apagará (ou tentará apagar) os desvios históricos, com o apoio de uma série de mecanismos e de ferramentas formais, justificadores de um discurso adequado para o atual momento sociopolítico, mas que, na prática, além de nada mudar, reforçará a preservação do status quo. É isso, e nada além disso, o significado da expressão "nova dimensão" do futebol brasileiro.  
Bruna Marquezine tem aproximadamente 34,6 milhões de seguidores nas mídias sociais1. O número é mais expressivo do que o número de qualquer time brasileiro. Os cinco maiores, nesse quesito, são, respectivamente, Flamengo (22.373.172), Corinthians (21.536.382), São Paulo (13.939.721), Palmeiras (10.271.468) e Santos (7.814.694)2. A marca da atriz impressiona ainda mais quando comparada aos maiores times do planeta. Ela fica em um hipotético 12o lugar, atrás apenas de Real Madrid (242.984.560), Barcelona (240.008.793), Manchester United (137.054.693), Chelsea (90.100.111), Bayern (79.219.881), Arsenal (76.210.718), Manchester City (72.330.250), Juventus (69.481.168), Liverpool (67.113.716), PSG (66.754.031) e Milan (44.419.893)3. Ela é, portanto, um fenômeno. De que natureza? A resposta não é óbvia: futebolística. Sim, trata-se de um subproduto do futebol. Não se afirma, aqui, que ela não seja boa atriz ou que não tenha mérito próprio; ao contrário. Porém, sua ascensão ao estrelato nacional - e, de certa forma, mundial - está associada ao seu relacionamento (e aos seus afastamentos) com outro fenômeno, Neymar. Neymar é um dos principais produtos futebolísticos do planeta e, seguramente, o mais relevante produto exportado pelo Brasil nos últimos anos. Sua importância transcende a desmaterialização das mídias sociais. Ele valia, conforme números de sua última negociação, 222 milhões de euros4, cifra que o colocou na primeira posição dos negócios mais vultosos da história do futebol. Desde então, pouco jogou por conta de sucessivas contusões. A expectativa de que liderasse seu time ao almejado título europeu ainda não se confirmou. Em duas oportunidades consecutivas, caíram - jogador e time -nas oitavas de final. Paralelamente, o projeto pessoal de ser reconhecido como o melhor do mundo também vem sendo adiado e começa a entrar numa zona de perigo, afinal, apesar de ainda jovem, não é mais um menino. Esse cenário poderia ter desvalorizado o produto Neymar no mercado. O efeito, porém, foi o inverso. Por se tratar de jogador (ou de ativo) único, ele vale, atualmente, mais5. Nele ainda se identificam características transformacionais, nos planos do jogo e da comunicação. Seu desempenho nas mídias sociais confirma essa afirmação: seguem-no aproximadamente 111 milhões de pessoas, número superior ao de todos os times do planeta, exceto Real Madrid, Barcelona e Manchester United. Aliás, em termos midiáticos, ele é muito maior do que todos os times brasileiros individualmente considerados, maior do que os 10 principais juntos (Flamengo, Corinthians, São Paulo, Palmeiras, Santos, Grêmio, Vasco, Atlético, Cruzeiro e Chapecoense)6 e 5,5 vezes maior do que a CBF (que contava, em maio de 2018, com 19.041.740 de seguidores)7. Apresentados esses números, não se pretende, adiante, investigar os motivos sociológicos da transformação de uma pessoa em ídolo global ou em símbolo midiático geracional, até porque não se trata de fenômeno restrito ao futebol e a jogadores brasileiros. Também não se especulará sobre o sucesso (ou insucesso) de Bruna Marquezine, caso não tivesse se afeiçoado a Neymar. A breve aventura investigativa tem outro propósito: confirmar a incapacidade atual do futebol brasileiro, em todos os níveis e sob todas as perspectivas, de se viabilizar no plano coletivo. O caminho que se passou a trilhar foi o da individualidade: a CBF só pensa nela, os principais clubes não cuidam da coletividade (e se dedicam à obtenção de benefícios particulares, em detrimento da evolução sistêmica) e os jogadores bem-sucedidos tendem a se tornar personagens de si próprios. A aparente grandeza do futebol do Brasil está vinculada, nos dias atuais, ao surgimento de produtos - e subprodutos - isolados, eventualmente geniais, mas ainda assim individuais, sobre os quais se constrói a esperança de um futuro digno. O eventual enfraquecimento - ou a ausência - desses produtos fará desaparecer a mística da infindável geração espontânea de craques. Sim, pois, sem Neymar em campo ou em circulação nas mídias sociais, a seleção se torna material e virtualmente um time mediano. Daí a relevância da perpetuação de novelas marquezineanas. Concluindo, a incapacidade de reação e de adaptação dos times brasileiros - e a falta de interesse da CBF - às evoluções tecnológicas e aos novos meios de financiamento da empresa futebolística aprisionaram e apequenaram o futebol, que passou a depender de produtos e subprodutos individuais e midiáticos para preservar a aparência de grandeza. Triste, muito triste. A história - se é que ela não se perderá na produção criminosa de fake news e de fake leaders - haverá de condenar os responsáveis pela destruição do verdadeiro sonho brasileiro. __________ 1 Anitta ultrapassa Bruna Marquezine e se torna brasileira mais seguida de todo o Instagram. 2 Ranking digital dos clubes brasileiros - Abr/2019. 3 Real Madrid é o maior clube nas redes sociais; e Corinthians e Fla lideram no Brasil, aponta pesquisa. 4 PSG anuncia Neymar e faz do brasileiro o mais caro da história. 5 Jornal revela valor astronômico que PSG aceita para vender Neymar. 6 Ranking digital dos clubes brasileiros - Abr/2019. 7 Brasil lidera ranking de inscritos em redes sociais das confederações de futebol.  
quarta-feira, 17 de abril de 2019

A estrutura de governo do Fluminense

Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo O Fluminense Football Club, ou apenas Fluminense, dispõe de uma complexa estrutura organizacional. Conforme o organograma constante de seu site oficial, diversos órgãos, posicionados hierárquica e/ou funcionalmente, alternam-se na execução de papéis relacionados à gestão do clube e, por consequência, ao próprio desempenho das suas atividades. Veja-se, abaixo, referido organograma1: Da leitura do estatuto social do Fluminense, depreende-se que são 4 os poderes do clube: Assembleia Geral, Conselho Deliberativo, Conselho Diretor e Conselho Fiscal. Afora esses, há também a previsão da existência de um Conselho Consultivo, incumbido de assessorar os Conselhos Deliberativo e Diretor. A Assembleia Geral, constituída pelos associados (observados os critérios previstos no art. 9º do estatuto), detém a competência de eleger e destituir o presidente e o vice-presidente Geral do Fluminense, bem como os membros efetivos e suplentes do Conselho Deliberativo, decidir sobre extinção e fusão do clube, e deliberar sobre reformas estatutárias. Já o Conselho Deliberativo é formado por 150 Conselheiros Natos, no máximo, e por 150 Conselheiros Eleitos, no mínimo, desde que totalizem 300 membros. É dirigido por seu Presidente que, junto ao Vice-Presidente, o Primeiro e o Segundo Secretários, todos eleitos pelo Plenário para mandatos de 3 anos, compõem a Mesa Diretora. A esse órgão colegiado compete eleger os membros do Conselho Fiscal, discutir e votar o orçamento anual, julgar as contas anuais do Conselho Diretor (administração), discutir sobre propostas de caráter financeiro que onerem o patrimônio imobiliário do clube e, dentre outras matérias, discutir e votar o impedimento do Presidente do Fluminense. O Conselho Deliberativo conta com o apoio de 6 comissões permanentes, compostas, cada uma, por 5 Conselheiros, com o objetivo de auxiliar a Mesa Diretora, mediante, principalmente, a emissão de pareceres - o que depende de determinação do Presidente do Conselho Deliberativo. Referidas comissões cuidam dos seguintes assuntos: legais e estatutários, econômico-financeiros, relativos ao patrimônio, relativos ao futebol, relativos aos esportes olímpicos e disciplinares. Também com existência, composição e funcionamento regulados pelo estatuto social, o Conselho Fiscal do Fluminense é formado por 3 membros efetivos e igual número de suplentes, todos eles advindos do Conselho Deliberativo e dos quais pelo menos um deverá ser "profissional afeito às atividades pertinentes a esse Conselho" (Fiscal, no caso), sendo vedada a participação de ascendente, descendente, cônjuge, irmão, irmã, padrasto, madrasta, enteado ou enteada do Presidente do clube. O art. 36 do estatuto social prevê que são atribuições do Conselho Fiscal, por exemplo, examinar as demonstrações financeiras e sobre elas opinar, emitir parecer sobre pedidos de suplementação de verba, opinar sobre concessão de créditos adicionais ao orçamento, examinar as situações econômica, financeira e administrativa do clube e emitir parecer sobre "qualquer operação financeira, assinatura de contrato ou antecipação de receita cujos vencimentos ultrapassem a legislatura vigente". O Conselho Diretor, por fim, é composto por um Presidente - que é, também, o Presidente do Fluminense -, um Vice-Presidente Geral, um Secretário, um Tesoureiro e 7 Vice-Presidentes, cada um desses responsável pelas seguintes áreas: (i) administrativa; (ii) finanças; (iii) futebol; (iv) esportes olímpicos; (v) interesses legais; (vi) marketing, publicidade e relações externas; e (vii) social, cultural e cívico. É responsabilidade do Conselho Diretor, nos termos do art. 40 do estatuto, dirigir o clube, nomear os diretores, contratar a auditoria externa, entre outras atribuições. Apesar de, a princípio, essa estrutura indicar, aparentemente, administração colegiada, ressalte-se que o Presidente goza de prerrogativas individuais, como (i) contratar, punir e demitir atletas profissionais, treinadores e demais empregados, (ii) representar o Fluminense, e, em caráter mais geral, (iii) administrar o clube, fazer cumprir o estatuto, os regulamentos e regimentos, e tornar efetivas suas próprias decisões, assim como as dos Conselhos Deliberativo e Diretor. Destaque-se, ainda, (i) a existência de artigo, no estatuto, dedicado a tratar, especificamente, das finanças do clube, reproduzindo, em boa parte, as orientações constantes da Lei do Profut, e (ii) a "possibilidade estatutária de constituição de sociedade comercial de natureza desportiva, independente e autônoma", que deverá ter maioria do capital votante "controlada" pelo Fluminense e cujo estatuto dependerá de aprovação prévia do Conselho Deliberativo. __________ 1 Fluminense.  
Rodrigo R. Monteiro de Castro e Leonardo Barros C. de Araújo O Cruzeiro Esporte Clube ("Cruzeiro") é, como todos os demais clubes que integram o mais alto escalão do futebol brasileiro, uma associação civil: entidade sem fins lucrativos, não empresarial. Apesar de sua forma de organização atual, baseada no modelo associativo - e não econômico, portanto -, o próprio estatuto social do Cruzeiro prevê a possibilidade de modificação organizativa, facultando ao clube "constituir e controlar sociedade empresária de prática desportiva profissional, celebrar contrato com sociedade empresária e com associação com ou sem fins econômicos", o que dependeria de aprovação pelo Conselho Deliberativo. Ressalva-se, contudo, que, em qualquer dessas hipóteses, ainda nos termos do estatuto, o Cruzeiro deverá ser sempre, obrigatoriamente e de modo permanente, o sócio majoritário e detentor do controle da sociedade que vier a explorar a atividade esportiva profissional, titularizando, pelo menos, 51% do respectivo capital social. Hoje, os poderes do Cruzeiro se dividem em 5 órgãos: Assembleia Geral, Conselho Deliberativo, Presidência e Vice-Presidência, Conselho Diretor e Conselho Fiscal. À Assembleia Geral, constituída pelos associados, compete privativamente, em caráter ordinário (trienalmente, em dezembro), eleger os Conselheiros e Suplentes do Conselho Deliberativo, e, em caráter extraordinário, destituir o Presidente ou os Vice-Presidentes do clube, alterar o estatuto social e deliberar sobre a extinção do Cruzeiro. Nas deliberações assembleares, no entanto, nem todos os associados terão o mesmo peso, para fins de cômputo dos seus votos. Dispõe o art. 7º que o Conselheiro Benemérito vota por 6, o Nato por 5, o Conselheiro por 4 e o Suplente de Conselheiro por 2. Já os associados "normais", sem qualquer traço de distinção, votam com apenas 1 voto. O Conselho Deliberativo, como se depreende do peso atribuído aos seus votos em Assembleia, detém importância política no clube. É formado (i) pelos atuais e ex-Presidentes do Cruzeiro e do Conselho Deliberativo, na condição de Conselheiros Beneméritos, (ii) por 280 membros, na condição de Conselheiros Natos, eleitos entre os Conselheiros, (iii) por 220 associados, eleitos pela Assembleia Geral, na condição de Conselheiros, e 110 na condição de Suplentes, e (iv) representantes dos atletas, indicados pela categoria para participar nos colegiados de direção e na eleição para cargos do clube. São atribuições do Conselho Deliberativo, dentre outras responsabilidades, eleger o Presidente e os Vice-Presidentes, eleger a sua Mesa Diretora, eleger os Conselheiros e Suplentes do Conselho Fiscal, aprovar as contas da Diretoria, autorizar alienação de bem imóvel e declarar, de maneira fundamentada, o impedimento do Presidente e dos Vice-Presidentes. Já o Presidente e os Vice-Presidentes - eleitos pelo Conselho Deliberativo, como exposto acima -, possuem mandatos de 3 anos, sendo admitida apenas uma reeleição. Referidos cargos são privativos, nos termos do estatuto social, dos associados integrantes dos quadros de Conselheiros Benemérito ou Nato com, pelo menos, 3 mandatos completos e ininterruptos como Conselheiros. Ao Presidente compete representar o clube, contratar, suspender e dispensar empregados e atletas, estabelecer a remuneração desses, assinar, com o Diretor Financeiro ou Supervisor Financeiro, documentos relacionados às finanças do Cruzeiro, praticar todos os demais atos necessários ao funcionamento do clube, bem como delegar parte de suas funções aos Vice-Presidentes. O Conselho Diretor, por sua vez, tem a missão, prevista estatutariamente, de auxiliar o Presidente na administração do Cruzeiro, sendo composto pelo Presidente e Vice-Presidentes ocupantes de cargo eletivo, pelos Vice-Presidentes de Futebol e Administrativo e pelos Secretário-Geral, Superintendentes e Diretores. Compete a referido órgão, por exemplo, indicar ao Presidente, para nomeação, os Diretores Voluntários setoriais, planejar, coordenar e fiscalizar as atividades auxiliares do Cruzeiro e incumbir-se da elaboração e aprovação do Regulamento Geral, o qual deve ser referendado pelo Conselho Deliberativo. O Regulamento Geral, aliás, definirá as atribuições e as responsabilidades específicas dos Vice-Presidentes de Futebol e Administrativo, Secretário Geral, Superintendentes e Diretores. Importante destacar ainda que, nos termos do estatuto social, os Diretores são pessoalmente responsáveis pelos atos praticados e pelas obrigações contraídas em nome do clube quando agirem com culpa ou dolo e/ou contra a lei ou o próprio estatuto. Assim, havendo praticado ato de gestão irregular ou temerária, o Diretor será afastado imediatamente, tornando-se inelegível pelo período de, no mínimo, 5 anos. O diretor ficará, ainda, sujeito à penalidade mais gravosa, de afastamento imediato e inelegibilidade por 10 anos, para desempenho de cargos e funções eletivas ou de livre nomeação, se for (i) condenado por crime doloso em sentença definitiva, (ii) inadimplente na prestação de contas de recursos públicos em decisão administrativa definitiva, (iii) inadimplente na prestação de contas do Cruzeiro, (iv) afastado de cargos eletivos ou de confiança de entidade desportiva ou em virtude de gestão patrimonial ou financeira irregular ou temerária dessa entidade, (v) inadimplente das condições previdenciárias e trabalhistas ou (vi) falido. O Conselho Fiscal, por fim, é, de acordo com o estatuto social do Cruzeiro, órgão autônomo, permanente e independente, composto por integrantes do Conselho Deliberativo (3 efetivos e 3 suplentes), todos eleitos pelo próprio Conselho Deliberativo, para mandatos de 3 anos, sem qualquer remuneração, sendo vedada, ainda, a participação do cônjuge e parentes consanguíneos ou afins, até o 2º grau, dos membros do Conselho Diretor. Compete ao Conselho Fiscal, principalmente, analisar os balancetes mensais, denunciar erros ou violações legais, estatutárias ou regulamentares, e emitir parecer anual sobre as demonstrações financeiras e contas da administração. As demonstrações financeiras, aliás, devem, conforme preconiza o estatuto social, (i) compreender Balanço Patrimonial, Demonstração do Resultado do Exercício, Demonstração das Mutações do Patrimônio Líquido, Demonstração das Origens e Aplicações de Recursos, e ser acompanhadas das respectivas Notas Explicativas, Relatório da Diretoria e do Parecer do Conselho Fiscal, bem como (ii) ser publicadas separadamente, por atividade econômica e por modalidade esportiva. Da leitura do estatuto social, nota-se que a sua estrutura organizacional segue o padrão dos demais clubes brasileiros. É mais do mesmo; o que, sem dúvidas, está longe de ser o arquétipo ideal para uma entidade da grandeza do Cruzeiro.
Pouca gente no Brasil observa com atenção os movimentos que ocorrem fora dos campos de futebol. O desinteresse pelo que não seja lance de jogo ou contratação de jogador turva, aliás, a visão da imprensa, dos dirigentes de clubes e da maioria dos torcedores. Mas há situações que merecem ser acompanhadas com lupa (ou telescópio). A do Palmeiras é uma delas. Proponho, assim, neste breve texto, a realização de uma análise do que se passa naquele clube a partir de um conceito de Direito Societário: o controle, ou melhor, o poder de controle. Não se trata de um exercício simplório, pois o Palmeiras, como se sabe, é uma associação sem fins econômicos. De todo modo, o empréstimo que se fará dos institutos do Direito Societário permitirá a formulação de uma tese. Vamos a ela. A lei das sociedades anônimas identifica como controlador de uma companhia a pessoa que é titular de direitos de sócios (normalmente por meio da propriedade de ações) que lhe assegurem, de modo permanente, a maioria dos votos nas deliberações da assembleia, e que usa o seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos de administração, inclusive elegendo a maioria dos administradores. O controlador costuma ser a pessoa que possui pelo menos 50% mais uma das ações com direito de voto. A participação societária relaciona-se, assim, com o tamanho do investimento. Quem investe mais na aquisição (ou subscrição) de ações, tem mais poder, e, se alcançar o percentual mágico, domina e determina a estratégia empresarial e a alocação dos recursos. O poder na associação sem fins lucrativos, que é caso do Palmeiras, segue, do ponto de vista jurídico-formal, outra lógica: todos os associados têm os mesmos direitos; nenhum deles pode ser privado do direito de voto; e o voto de cada um tem o mesmo peso. A dominação clubística não está associada, formalmente, ao poder econômico. O mais humilde dos associados detém o mesmo valor que o mais abastado dentre todos os demais. Em tese. Esse modelo jurídico-formal pode ser negado por dois fenômenos distintos: um político e outro econômico. A história dos clubes brasileiros de futebol se notabiliza pela prevalência do primeiro sobre o segundo. Daí a coleção de dirigentes que, mesmo sem o emprego de um real sequer para a formação do patrimônio social, souberam dominar e protagonizar o cenário político por longos períodos - eventualmente com a aniquilação de grupos de oposição -, mesmo detendo, cada um desses dirigentes, apenas um voto nas assembleias gerais ou nas reuniões de conselho deliberativo. O Palmeiras parece inovar em relação a essa matriz histórica. Talvez pela primeira vez em um grande clube brasileiro, o fenômeno econômico se sobreponha ao político - apesar de que, ao cabo do processo, ambos se fundirão, como se indicará abaixo. E aí se revela a astúcia - vocábulo empregado, aqui, em seu sentido positivo, sem qualquer intenção de se formular uma proposição ética ou moral - da possível controladora do Palmeiras, Leila Pereira. Astúcia que se expressa não apenas pelo controle que exerce sobre os órgãos internos e agentes externos, mas, especialmente, pelo momento em que lançou o seu projeto de dominação. O ponto de partida é a iluminada decisão do Palmeiras de colocar abaixo um estádio antiquado e inviável esportiva e economicamente, e em seu lugar construir uma arena que contribuiu para recobrar o orgulho de seus torcedores e reforçar o vínculo com o time e com o entorno. Depois veio um presidente-mecenas, Paulo Nobre, que não poupou energia e recursos para montar times que acompanhassem a expectativa criada com a perspectiva evolutiva da nova arena, e que, além disso, também iniciou o processo de profissionalização da administração. É nesse quadrante que aparecem Crefisa e Leila Pereira; e se inicia o movimento de dominação. Inicialmente, com o fluxo de recursos por meio de patrocínio. Depois, com o controverso reconhecimento da posição de conselheira. A seguir, pela articulação e controle do processo sucessório. Na sequência, com o apoio e a eleição da maioria dos membros do conselho deliberativo. E, por fim, com a indicação e a eleição também da maioria dos membros do conselho de orientação e fiscalização. Aliás, o processo não se encerra por aí: sua influência vai realmente além, extrapolando o ambiente interno, por via do relacionamento estabelecido com a torcida uniformizada - que poderia ser caracterizada como uma espécie de controladora externa -, sob a forma de apoio para organização de desfile carnavalesco. Esses fatores garantem a Leila Pereira o poder de influenciar a maioria dos votos nas deliberações dos conselhos do Palmeiras e de determinar a condução das decisões administrativas, sem resistência efetiva interna ou externa. Partindo-se dessas premissas, ela seria, respeitadas as diferenças entre uma associação sem fins econômicos e uma sociedade anônima, a controladora do clube e, assim, do futebol. Uma controladora que, ao contrário, de qualquer controlador de sociedade anônima, não pagou pelo controle. Sim, pois: patrocínio não é preço, visto que sua concessão implica alguma espécie de contrapartida, como visibilidade, aumento de clientela ou de receita; e empréstimo, por sua vez, haverá de ser devolvido. O controle que exerce, por outro lado, é precário, justamente por não se fixar na propriedade acionária, e, por isso, pode ser subjugado, se surgir novo fenômeno político que lhe sobreponha ou outro agente econômico que empregue mais recursos para tomar o poder. Ou seja, para preservação do atual estado de dominação, os fenômenos político e econômico devem convergir (ou se fundir). Em outras palavras, a intensificação da dependência econômica inviabiliza (ou dificulta) a atuação da oposição política, contribuindo para perpetuação do status quo. Esse processo deverá - ou poderá - atingir o ápice se e quando Leila Pereira, além do controle sobre os órgãos internos, assumir a presidência da diretoria, consolidando, assim, a dominação da associação (que corresponderia, na companhia, ao controle societário) e a dominação das decisões administrativas (correspondente ao controle empresarial). Eis, enfim, a tese: Leila Pereira controla o Palmeiras sem ter pago pelo controle de uma empresa que vale seguramente bilhões. Espero que este breve texto sirva para que os agentes que gravitam ao redor do futebol acordem para a sua relevância e a sua potencialidade extracampo - e a ineficiência do modelo atual. Aliás, o valor intrínseco e extrínseco que o futebol possui justifica, do ponto de vista econômico e empresarial, esse impressionante take over arquitetado por Leila Pereira, e demonstra como o Brasil perde ao desprezar seu mais valioso bem: o futebol.
O Red Bull Brasil não deve ser olhado como uma daquelas surpresas que, após uma participação expressiva ou a conquista de um título solitário, desintegra-se ou resiste no imaginário apenas por conta da fama momentânea (e do acaso). Em 1986, para citar apenas um exemplo, a Inter de Limeira bateu o Palmeiras, tornando-se campeã do campeonato paulista e, depois, sumiu. O projeto do Red Bull Brasil é diferente de todos os que por aqui já se tentaram ou executaram, e envolve, aparentemente, um propósito ambicioso, fruto de um modelo sem precedentes no país. Assiste-se à entrada de uma transnacional, conhecida não apenas pela comercialização da bebida enérgica que leva o mesmo nome, mas, também, pelo seu interesse pelo negócio do futebol. O Red Bull Brasil é, dentro do projeto global, mais uma iniciativa (e não a única), que se soma ao RasenBallsport Leipzig, na Alemanha, ao Fussball Club Red Bull Salzburg, na Áustria, e ao New York Red Bulls, nos Estados Unidos. Ao contrário dos times brasileiros, que pertencem a clubes associativos, sem fins econômicos, o Red Bull Brasil é titularizado pela Red Bull Futebol e Entretenimento Ltda., uma sociedade empresária que tem o seu capital social distribuído entre dois sócios estrangeiros: a RED BULL GmbH, titular de quotas representativas de 99,99% do capital social, e a RED BULL Hangar-7 GmbH, titular das quotas restantes. Apesar do relativo fracasso no campeonato paulista de 2019 - a eliminação pelo Santos não deveria receber esse rótulo, não fosse a expectativa que se criou em torno do padrão de jogo e dos números atingidos na primeira fase -, parece que, pelo que se noticia, a administração do time pretende acelerar o projeto e alçá-lo a outros patamares. Tem motivos de sobra para fazê-lo. Aliás, a imprensa vinha anunciando o interesse da Red Bull Brasil em associar-se a um time qualificado para disputar a segunda divisão do campeonato brasileiro. Aparentemente, tentou-se, primeiro, o Oeste, mas as negociações caminharam e se consumaram com o Bragantino1. Essa suposta associação deverá, em algum momento, resultar na incorporação de um pelo outro, ou no esvaziamento de um em favor de outro, ou na fusão de ambos, de modo que, ao final, o Red Bull Brasil exerça o controle das atividades futebolísticas por meio de uma empresa. Há vários meios legais e legítimos para que se execute esse propósito. Essa empresa, resultante da união (ou fusão ou associação) de times, poderá receber recursos do controlador ou levantar recursos no mercado para armar uma equipe competitiva e disputar, com qualquer outra, o acesso à primeira divisão e, na sequência, a própria primeira divisão. Mais do que isso: poderá se reforçar para pretender a disputa da liderança e do protagonismo da principal divisão do campeonato brasileiro. Sim: ao contrário dos tradicionais times locais, que se encastelam no modelo associativo, se apegam à politicalha clubística e dogmatizam a inviabilidade da passagem ao modelo empresarial por conta do impacto tributário - ou seja, insistem no secular subsídio estatal -, o Red Bull Brasil terá, à sua disposição, todos - e não menos do que todos - os instrumentos de mercado para se financiar e montar uma seleção de jogadores brasileiros - e/ou estrangeiros -, como fazem os principais times europeus. A controladora do Red Bull Brasil dará, aliás, um passo certeiro: o Brasil é o maior exportador de jogadores, que são exportados como commodities, submetidos a processo de adaptação e, depois, já "transformados", negociados por valores de tecnologia de ponta. A inserção do país em sua estrutura global propicia à Red Bull, dona do time brasileiro - de modo legitimo, é bom realçar -, acesso ao mercado local, um dos mais inexplorados do planeta. Propicia, além disso, a formação de uma nova potência futebolística - local e, para quem tem asas, mundial. E possibilita, por fim, a inauguração de um intercâmbio entre jogadores de times daquela mesma marca. Não é de hoje que se afirma que o futebol brasileiro entrou em estado de autodestruição. A sua forma organizacional não atende às necessidades de financiamento de uma atividade econômica altamente competitiva e globalizada, e o sistema político associativo corrói todas as possibilidades de libertação e desenvolvimento da empresa futebolística. A energia que poderia ser direcionada a essa empresa é permanentemente desviada para temas internos, politiqueiros, e de nenhuma importância para o futebol. Mas como praticamente todos os times brasileiros vivem a mesma realidade - talvez com apenas duas exceções, que, apesar de sua politicagem interna, porém, por motivos diversos, estão se distanciando dos demais (o Flamengo e o Palmeiras) -, medem-se pela desgraça alheia. É isso, portanto: a desgraça generalizada faz com que os menos desgraçados idealizem uma situação e um poder que já não detêm mais. Talvez se diga que certos times sempre terão camisa e, no final das contas, ela pesará. Talvez se diga ainda mais: que em países como a Alemanha, o projeto não foi capaz de desbancar times históricos como Bayern e Borussia. É verdade. Mas até mesmo esses times, tradicionalíssimos, abandonaram há muito tempo o modelo clubístico e se mantêm no topo porque encontraram e ainda encontram meios de financiar a empresa futebolística, o que lhes permite concorrer e se sobrepor a projetos audaciosos como o da Red Bull. Sorte do Red Bull Brasil. Azar do futebol e do torcedor brasileiros. __________ 1 Bragantino anuncia acordo com o RB Brasil para gestão do time na Série B.