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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
A CBF emitiu, em 18 de janeiro de 2022, o Ofício CBF 246/2022 ("Ofício 1"), direcionado aos presidentes de federações estaduais, em que trata, dentre outros temas, da constituição da sociedade anônima do futebol ("SAF"). O item 1 do Ofício 1 estabelece que, nos termos do art. 2º da Lei da SAF, a SAF pode ser constituída conforme as seguintes modalidades: - Modalidade 1: pela transformação do clube original em SAF; - Modalidade 2: pela cisão do departamento de futebol do clube original e transferência do seu patrimônio e direitos relacionados à atividade do futebol; e - Modalidade 3: pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento de criar uma SAF. No Ofício 1 se aponta, ademais, que: a constituição de SAF com base na Modalidade 3 seguirá os padrões de cadastro no sistema de registro de um novo clube; na Modalidade 1, a inscrição do clube transformado será a mesma da SAF, com a manutenção do código existente de inscrição no sistema Gestão WEB; e, no caso da Modalidade 2, promover-se-á nova inscrição em nome da SAF, além da inativação do cadastro do clube que a constituiu, para qualquer categoria. O Ofício 1 também orienta sobre as taxas incidentes em decorrência da constituição da SAF: isenção, para Modalidade 1; o dobro da taxa devida para os casos de profissionalização de clube, para Modalidade 2; e a mesma taxa cobrada para cadastro de novo clube, para Modalidade 3. Em relação aos registros de atletas e treinadores, informa-se, ainda, que, nas Modalidades 1 e 3, não se promoverá transferência porque, na primeira, a  SAF se manterá na mesma inscrição existente e, na terceira, o ato de inscrição será originário. Para Modalidade 2, considerando que a SAF terá nova inscrição, aí se passa a exigir a "alteração nos instrumentos contratuais registrados no sistema Gestão Web, mediante celebração e registro de novos instrumentos entre atletas e o novo empregador", qual seja, a SAF. Importante: determinava-se, também, que o processo aplicável à Modalidade 2 somente poderia se realizar em período em que o clube não estivesse disputando competição nacional. Isso, na prática, implicava a fixação de janelas, ao longo do ano, para que um clube pudesse efetivar a constituição da SAF, no âmbito daquela Modalidade. Por fim, indicava-se que a transferência do certificado de clube formador para a SAF estaria condicionada à emissão de declaração de manutenção de mesmas condições e estruturas apresentadas por ocasião do processo original de certificação. Meses após a emissão do Ofício, a CBF emitiu, em 29 de junho de 2022, o novo Ofício CBF 3205/2022 ("Ofício 2"), contendo esclarecimentos complementares sobre a constituição de SAF. O principal motivador do Ofício 2 consiste no afastamento da restrição, prevista no Ofício 1, para constituição de SAF durante a realização de competição nacional de que o clube constituinte participasse. Admitiu-se, então, o início do "processo de sucessão esportiva, em qualquer momento da temporada, desde que devidamente registrada a transformação ou a constituição formal da SAF, em qualquer das modalidades 1, 2 ou 3, mediante requerimento protocolado junto à DRT-CBF, por meio da respectiva Federação filiada". O Ofício 2 também estabelece, dentre outros temas (que não são abordados neste texto), que a sucessão esportiva não implicará - como de fato não deveria mesmo implicar - a "apreciação ou qualquer responsabilidade da CBF acerca do conteúdo dos atos constitutivos da SAF e/ou processo que autorizou a criação da SAF e efetivou a integralização de direitos (...)". Por fim, o Ofício 2 traz nova e relevante orientação, referente à afirmação da sucessão da SAF em "todos os procedimentos em curso, seja no polo ativo ou polo passivo, junto a quaisquer dos órgãos judicantes previstos no Estatuto Social da CBF, podendo inclusive o clube sob forma de SAF ser sancionado por qualquer descumprimento do clube original de decisões ou obrigações". Sobre essa imputação de sucessão, tratar-se-á oportuna e futuramente. Por ora, abordam-se, apenas, (i) o tema do rol de modalidades de constituição de SAF previsto nos dois Ofícios e (ii) o entendimento implícito a respeito do conceito de cisão que vem sendo adotado pela CBF no âmbito de constituição de SAF. No que toca ao rol de modalidades constitutivas, a Lei da SAF lista no art. 2º, com efeito, as três modalidades previstas nos Ofícios; mas também reconhece, ademais, no art. 3º, uma quarta modalidade, consistente no drop down (ou transferência de patrimônio do clube para uma SAF, sem que se opere a cisão da transferidora, ou seja, do clube). Lembre-se, a propósito: a cisão é uma espécie de operação societária tipificada e sujeita a normas específicas, previstas na Lei das Sociedades por Ações. A existência dessa quarta modalidade, no âmbito da Lei da SAF, que consiste, aliás, no caminho que vem sendo adotado pelos clubes brasileiros - como Cruzeiro e Botafogo -, também está consolidada, no plano infralegal, na Instrução Normativa DREI/ME 112, de 20 de janeiro de 20221. Isso não significa, do ponto de vista prático, que a CBF esteja rejeitando e afastando a quarta modalidade - algo que não poderia fazer, aliás, porque prevista e decorrente de lei federal. Mas parece indicar que ela (a CBF) entende que o termo cisão, aplicado à Modalidade 2, aplica-se tanto à cisão societária (na forma da Lei das Sociedades por Ações), quanto à modalidade que se chamará, aqui, de cisão atípica, consistente, nos termos do art. 3º da Lei da SAF, na possibilidade de integralização, pelo clube, de "sua parcela ao capital social na Sociedade Anônima do Futebol por meio da transferência à companhia de seus ativos (...)". Esta conclusão se evidencia do seguinte fato: de todas as principais SAFs constituídas até o momento, nenhuma resultou de cisão societária, mas por via do drop down (isto é, por cisão atípica). Apesar de os Ofícios estarem servindo, explícita e implicitamente, para orientação dos agentes esportivos e investidores envolvidos em operações de constituição de SAF, a CBF poderia, apenas para fins de esclarecimento - e para oferecer total segurança sistêmica -, promover a edição de orientação complementar, a fim de indicar que os procedimentos e reflexos relacionados à Modalidade 2 se aplicam tanto à cisão societária (art. 2º da Lei da SAF), quanto ao drop down (ou cisão atípica), na forma do art. 3º. A CBF, com isso, reforçaria a sua benfazeja atuação orientadora e normativa, no âmbito de suas competências, na formação do novo sistema instituído pela Lei da SAF. __________ 1 A constituição da Sociedade Anônima do Futebol poderá ocorrer por um único acionista. Nos termos do art. 2º da lei 14.193, de 2021, sem prejuízo de outras modalidades constitutivas, a SAF pode ser constituída pela: I - conversão do clube ou transformação da pessoa jurídica original em Sociedade Anônima do Futebol; II - cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol; ou III - iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento. Por sua vez, conforme prevê o art. 3º da mesma lei, uma SAF pode ser constituída, ainda, mediante o recebimento da transferência do clube ou da pessoa jurídica original de seus ativos, tais como, mas não exclusivamente, nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, inclusive registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica. Nessa hipótese, o clube ou a pessoa jurídica original irá constituir uma SAF e transferir-lhe patrimônio para integralização do capital subscrito, nos moldes do art. 27, § 2º da lei 9.615, de 1998.
Já tivemos a oportunidade de mencionar, em artigos anteriores, a gravidade da situação financeira dos clubes de futebol brasileiros, em geral, salvo honrosas exceções. Há clubes de futebol do Brasil que devem aproximadamente R$ 1 bilhão, enquanto seguem trabalhando com défice e receitais anuais inferiores à metade de tal valor. Segundo a consultoria E&Y, em estudo publicado em maio de 2022, a dívida líquida dos 27 mais relevantes clubes de futebol do Brasil ultrapassa R$ 10 bilhões. As receitas desses mesmos clubes atingem R$ 7,5 bilhões1. Diante de tal cenário, poderia o legislador simplesmente não abordar o tema, deixando de prever, na Lei da SAF, alternativas para a solução das dívidas de clubes em geral, mesmo sendo elas anteriores à vigência da Lei, por conseguinte, à própria constituição da Sociedade Anônima do Futebol? O tempo mostrou que a resposta à pergunta acima é um sonoro "não". E, nesse sentido, há que se fazer Justiça ao trabalho importante do Senador Carlos Portinho, enquanto relator do Projeto de Lei 5.516/2019 no Senado, uma vez que foi produto de sua relatoria a inserção no texto original de artigos relacionados aos modos de quitação das dívidas dos clubes. Também é de rigor ponderar o quão são injustos e absolutamente equivocados, com todo respeito, alguns entendimentos que pretenderam, ainda nos primeiros momentos de vigência da Lei da SAF, classificar os modos de quitação das dívidas na Lei da SAF como benéficos aos devedores, em detrimento dos credores.  Inegavelmente, sob a ótica dos clubes e pessoas jurídicas originais afundadas em dívidas e sofrendo a pressão das constantes penhoras de suas receitas, a possibilidade de reunir suas execuções perante um único juízo, apresentar um plano de pagamento que, enquanto estiver sendo cumprido, impedirá a realização de constrições pode ser enxergado como, efetivamente, uma "taboa de salvação" e, em alguns casos, um recurso vital à própria sobrevivência de tais entidades. O mesmo pode-se dizer em relação àqueles que vierem requerer recuperação judicial, outro modo de quitação de dívidas previsto na Lei da SAF, que remete, com suas particularidades, aos mecanismos da lei 11.101/2005, já recepcionada pelo mundo empresarial e jurisprudência. Sob o ponto de vista dos investidores interessados em adquirir ações das SAFs, a previsão expressa de que as dívidas anteriores à sua constituição e não relacionadas à prática do futebol profissional permanecem sob responsabilidade dos clubes ou pessoas jurídicas originais que constituíram a SAF - não se negando a responsabilidade das SAFs, mas em prazo e condições especiais que já foram comentadas aqui em artigos anteriores - é um instrumento de segurança jurídico-financeira fundamental para fundamentar a decisão pelo investimento. Os inúmeros casos de investidores interessados em trazer dinheiro novo para o futebol brasileiro a partir da Lei da SAF demonstram, na prática, a veracidade de tal constatação. Resta mencionar a situação dos credores, que, em alguns casos, tem sido mencionada como desfavorecidos pela Lei da SAF, ao nosso ver, inadequadamente. Os modos de quitação das dívidas dos clubes previsto na Lei da SAF não foi concebido apenas para trazer uma situação de menor instabilidade diante da situação desesperadora de boa parte dos clubes endividados, implicando, em consequência, maior confiança e interesse de possíveis investidores. Ao contrário, o modo de quitação de dívidas tem a inequívoca finalidade de proporcionar aos credores uma perspectiva clara de recebimento de seus créditos. Não se pode imaginar que, sendo credor de um clube-associação com dívida muito superior à receita - como em grande parte dos casos - um credor teria segurança em receber os valores que lhe são devidos. Muito mais provável seria a hipótese de insolvência civil, uma vez que a possibilidade de recuperação judicial das associações esportivas é construção jurisprudencial recente, também incorporada como modo de quitação das dívidas à Lei da SAF. Por isso, causa alguma estranheza, após mais de um ano de aprovação da Lei da SAF, ainda presenciarmos alguns pronunciamentos públicos formulados por brilhantes e combativos colegas que, na condição de advogados de credores de clubes de futebol - condição que o subscritor da presente também ostenta - ao pretenderem alegar que os modos de quitação das dívidas previsto na Lei da SAF "prejudicariam direitos dos credores". A adoção do Regime Centralizado de Execuções, um dos modos de quitação das dívidas previsto na Lei da SAF, traz a perspectiva real de recebimento observados critérios objetivos e justos para pagamento de TODOS os credores, sem distinção ou privilégio em favor daqueles com maiores possibilidade materiais para realizarem constrições sobre as receitas dos clubes ou acesso aos seus dirigentes para realização de acordos com alto grau de subjetividade. Isso porque, a adesão ao Regime Centralizado de Execuções implica a imposição de um prazo para pagamento integral das dívidas dos clubes, que será de 6 anos e, no caso de pagamento mínimo de 60% das dívidas, podendo ser prorrogável por mais 4 anos, a partir do qual, com o não pagamento das dívidas, a SAF ficará sujeita a ser subsidiariamente responsabilizada pelos pagamentos. Como forma de contribuir para o cumprimento do prazo acima, a Lei da SAF também prevê a destinação de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF ao clube que a constituiu, ou destinação de 50% dos dividendos, juros sobre capital próprio ou outra remuneração recebida pelo clube na condição de acionista da SAF para pagamento das dívidas. Ademais, a Lei da SAF traz um rol de credores preferenciais e ordem de credores que tira da subjetividade ou da capacidade econômica do credor - como já mencionado acima - a possibilidade de recebimento antes de todo um rol de pessoas com igual direito ao recebimento e, muitas vezes, maior urgência e necessidade. Também nas hipóteses de recuperação judicial, os critérios de justiça e sensibilidade social no estabelecimento da ordem de recebimentos também estão presentes, até porque já consolidados na Lei de Recuperações e Falência em vigor desde 2005. Por isso, na análise dos modos de quitação de dívidas previsto na Lei da SAF, o mais justo seria saudar o acerto na sua introdução ao texto legal e reconhecer que tem algumas qualidades fundamentais, sendo VITAIS para os devedores, SEGUROS para os investidores e JUSTOS em relação a toda classe de credores. __________ 1 Disponível aqui.
"(...) o Golpe de Estado é um ato realizado por órgãos do próprio Estado"1 O cartolismo teve, em momentos não tão distantes, mais do que a aceitação da sociedade: era, de algum modo, apreciado e folclorizado. Houve, e ainda há, é verdade, níveis e estratos dentro dessa classe, provenientes de distintas origens. Um exemplo, eternizado em série disponível na plataforma globoplay, é o de Castor de Andrade: bicheiro declarado, que desfilava em altas rodas (inclusive intelectuais e artísticas) com a mesma desenvoltura que pegava em arma para correr atrás de árbitro de futebol - dentre outras práticas que, hoje, são corretamente tidas como inaceitáveis (ou criminosas). Outro, também originado em clube carioca, foi Eurico Miranda. Suas estórias de mandos e desmandos são conhecidas em todos os cantos: desde a tentativa de agressão à economista Elena Landau ao suposto assalto que sofreu após uma partida do seu time, o Vasco da Gama, em que lhe surrupiaram a renda de bilheteria, por ele transportada em seu veículo.   O Estado de São Paulo também produziu os seus. O São Paulo Futebol Clube (SPFC), objeto deste texto, maior clube da história brasileira sob o modelo associativo - título que se integra às suas glórias do passado -, exemplo de todos e para todos, ostentou, durante anos, Juvenal Juvêncio, que tinha um perfil distinto daqueles indicados acima. Seu fetiche, acho eu, era o poder. Mais, talvez: a manipulação do poder. E foi assim que, em 2011, ele deu início ao movimento que mudaria a história de time tão vitorioso: um golpe, interno, para, mediante manipulação das estruturas institucionais, modificar as regras do jogo, em seu benefício, e ganhar mais um mandato para comandar o clube. Ali se rompeu o compromisso, ou pacto moral, ético e político que sustentava a instituição. Formou-se, então, uma tropa de choque que defendia, com argumentos pseudo-jurídicos, o que era (e é) indefensável - e que o judiciário refutaria, com efeito, muitos anos depois. Juvenal Juvêncio, em resumo, era um déspota esclarecido, temido pelos opositores e também pelos aliados, que, ao mesmo tempo, lhe reverenciavam. Com o seu afastamento, antes do pesaroso passamento, grupos politiqueiros se formaram ou se arranjaram para cobrar a fatura do apoio ao golpe. Infelizmente, esse tema já foi repisado, em diversas ocasiões, nesta coluna: de lá para cá, a estrutura interna apodreceu e os reflexos se projetam, ainda hoje, sobre o time e seu entorno. Conquistas, recordes e glórias deram lugar a derrotas, estatísticas negativas e vergonha. Na conta sobram, ainda, os feitos do passado (sim, e com orgulho para todo torcedor), um patrimônio - sobretudo imobiliário - sucateado, e uma torcida cada vez mais fanática e apaixonada - que lota estádios e segura, há anos, com fios de nylon, o time na divisão principal. Nesse ambiente desolador, a classe cartolarial não se acanha em demonstrar a falta de sintonia com o problema de que faz (e também é) parte. Ano passado, por exemplo, em meio a uma das piores campanhas da história, enquanto o torcedor se desesperava com o risco de rebaixamento - algo, que aliás, tem sido mais próximo da realidade tricolor do que a conquista de título relevante -, tentou-se reproduzir, sem o carisma e a força de Juvenal Juvêncio, outro golpe estatutário, mediante a propositura de nova reforma do recém reformado estatuto, para autorizar mais um mandato ao atual presidente; mudando-se, portanto, a regra do jogo durante o próprio jogo, em benefício de quem, por tempo determinado, detinha de forma legitima o poder. Lembre-se, pois muito importante: em 2016, por ocasião da mencionada reforma, trocou-se o mandato de dois anos, com direito a uma reeleição, por mandato único de três anos. Agora, pelo que se indica, pretende-se, com apoio do principal e único beneficiado, manter o prazo estendido e, sobre ele, autorizar uma renovação. Portanto, menos de um ano após a maior derrota política de um grupo situacionista, ou seja, a rejeição da reforma de 2021, eis que ressurge, apoiada em discurso falacioso, a proposta rejeitada. Uma espécie de vingança contra os 20 milhões de são-paulinos. Ela surge, com crueldade, em momento parecido ao do ano anterior: quando o time volta a flertar com a zona de rebaixamento, da qual se distancia por apenas 4 pontos; e se mantém vivo por conta da persistência e da resistência de sua torcida - e, verdade seja dita, de seu técnico, Rogério Ceni. A partir de agora, a metralhadora girará, como método de convencimento dos associados, com disparos de promessas e realizações fantasiosas, forjadas às custas de um endividamento que se torna impagável ou viabilizadas pelo ingresso milagroso de recursos oriundos de transferências de jogadores negociados ao exterior (como Anthony). O primeiro golpe, patrocinado por Juvenal Juvêncio em época de opulência e dominação, levou o clube à lona; o segundo, em período de penumbra, se efetivado, sacramentará o fim da história de grandeza - que não mudará com o eventual (e necessário, tanto para o sofrido e fiel torcedor, como, paradoxalmente, para os propósitos golpistas) título sul-americano, prêmio de consolação em mais um ano perdido. Resistência, mais uma vez, é o que se espera do associado são-paulino. Pelo SPFC (e jamais pelos interesses de agrupamentos cartolariais). __________ 1 Dicionário de política / Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino; trad. Carmen C, Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; ver. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1.a ed., 1998. Vol. 1, p. 545.
A Lei da SAF, apesar da torcida contrária dos donos do poder cartolarial e do reacionarismo, dá sinais, cada vez mais vigorosos, de que está pegando. Portanto, já é hora de tratar e de relembrar, aos agentes que integrarão o novo mercado, de um dos mais relevantes institutos que a compõem: o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE). Antes, porém, propõe-se uma rápida recapitulação. Em capítulo essencial para o desenvolvimento de sua narrativa, Brás Cubas, autor de suas próprias memórias póstumas, relata o delírio que o acometera - e que seria essencial para os eventos pessoais subsequentes, até o seu passamento. Nessa aventura psicodramática, deparou-se com um grande vulto, em forma de mulher, apresentada como Natureza ou Pandora; mãe e inimiga. Ela o guia, ou melhor, o apresenta aos eventos humanos passados e ao seu próprio destino. "Cada século trazia" - extrai-se da obra-prima - "a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde"1. A Lei da SAF é produto de um caminho semelhante: decorre, pois, e se viabiliza por conta das experiências legislativas pretéritas (bem ou mal-intencionadas, ingênuas ou maliciosas, corretas ou equivocadas, iluminadas ou sombrias, conjunturais ou pretensiosamente estruturais). Assim, os erros e acertos promovidos desde a Constituição de 1988, viabilizadora dos adventos da Lei Zico, depois da Lei Pelé e, muitos anos depois, da Lei do Profut, contribuíram, é preciso reconhecer, para iluminação da sombra estrutural do futebol no Brasil. A Lei Pelé, por exemplo, em sua origem, previa que todos os clubes se transformassem em, ou constituíssem uma empresa. Havia, ali, uma falha conceitual incorrigível, pois se partia da premissa de que um comando formal seria condição suficiente para se impor sobre o modelo cartolarial, existente desde o século retrasado. Mesmo assim, não resistiu às forças reacionárias, que souberam turvar as perspectivas transformacionais, mediante a negociação de contrarreforma operada durante a vacatio da própria Lei Pelé, resultando no sepultamento da idealização do clube-empresa. Eis que, mais de duas décadas depois, em 2021, surge a Lei da SAF: a primeira iniciativa, desde sempre, que pretende, a um só tempo, criar, organizar e regular um sistema com os propósitos de recuperar os times brasileiros e contribuir para o desenvolvimento econômico e social da Nação. O objetivo principal consiste na criação de um ambiente regulado em que agentes econômicos, de um lado, e proprietários dos ativos futebolísticos - em geral, os clubes -, de outro, possam se encontrar e entabular negócios que repercutam nos planos educacionais, sociais e econômicos.   Não é outra a finalidade do PDE, consistente em convênio obrigatório a ser celebrado pela SAF com instituição pública de ensino, para promover medidas em prol do desenvolvimento da educação, por meio do futebol, e do futebol, por meio da educação. As medidas podem envolver, dentre outras iniciativas, (i) a reforma ou construção de escola pública, bem como a manutenção de quadra ou campo destinado à prática do futebol, (ii) a instituição de sistema de transporte dos alunos qualificados à participação no convênio, na hipótese de a quadra ou o campo não se localizar nas dependências da escola, (iii) a alimentação dos alunos durante os períodos de recreação futebolística e de treinamento, (iv) a capacitação de ex-jogadores profissionais de futebol, para ministrar e conduzir as atividades no âmbito do convênio, (v) a contratação de profissionais auxiliares, especialmente de preparadores físicos, nutricionistas e psicólogos, para acompanhamento das atividades no âmbito do convênio, e (vi) a aquisição de equipamentos, materiais e acessórios necessários à prática esportiva. Originalmente, o Projeto de Lei instituidor da SAF previa a concessão de incentivo tributário para adoção do PDE, que não se impunha como obrigação. Ao cabo do trâmite legislativo, o Congresso Nacional seguiu outro caminho: tornou-o obrigatório, mas não fixou parâmetros de investimento. De modo que, em situação extrema, uma SAF com receita bilionária pode atender a lei ao empregar um punhado de reais em algum projeto com alguma daquelas finalidades. Não se pretende, aqui, criticar a solução final; ao contrário. Essa é a prática comum nesse país, que enaltece o que poderia ter sido com a intenção de desacreditar o que se realizou e, assim, manter as mazelas estruturais intocadas. De algum modo, essa conduta justifica o fracasso do clube-empresa, proposto nas Lei Zico e Pelé. Cabe, pois, às pessoas que acompanham o futebol, em especial à imprensa especializada, goste ou não do modelo instituído, a função de compreender e esclarecer, com isenção, os movimentos que estão sendo praticados. Para o bem do futebol, do torcedor e do país. E, sobretudo, a função de lembrar que, dentro da Lei da SAF, existe um instrumento, pioneiro, que pode, ou ao menos pretende, servir para apoio à formação de crianças e jovens, que, atualmente, são exportados, com raras exceções, sem a devida formação e conhecimento para construírem carreiras sustentáveis. E cobrar a adoção de projetos condizentes com a realidade e a grandeza do time operado pela respectiva SAF. É isso: pouco se fala da SAF e jamais se investiga o projeto interno de cada uma delas no âmbito do PDE. Aí está um tema que deveria constar da pauta permanente do jornalismo socialmente responsável. __________ 1 Assis, Machado de; Memórias póstumas de Brás Cubas - 1ª ed. - São Paulo: Penguim Classics Companhia das Letras, 2014, p. 55.
O jogo de futebol de domingo passado (14/8/22), realizado em pleno dia dos pais, entre São Paulo Futebol Clube (SPFC) e Red Bull Bragantino (Red Bull), representou, para muitos torcedores tricolores, uma espécie de revelação, motivadora de gritos irados, em redes sociais, contra o jornalista Flavio Prado, que vem afirmando, há tempo, que o time de Bragança - controlado por investidor transnacional - será maior (ou mais relevante do ponto esportivo) do que o tricampeão da Libertadores e do Mundo. Vive-se num país livre e democrático, em que qualquer cidadão, ainda mais um renomado jornalista e professor universitário, pode - e deve - expressar sua opinião. Mesmo que se tratasse de uma ideia eventualmente descabida - e em sua essência não é, sobretudo considerando a figuração de sua proposição, no exercício de sua função -, ele (Flavio Prado) teria e tem legitimidade para expressá-la e defendê-la; e o contraditório deveria se formar de maneira civilizada e construtiva.   A mesma legitimidade que outra jornalista, Milly Lacombe, tem para afirmar, em sentido de certo modo inverso, que clubes de futebol, em especial o Corinthians, deveriam indicar para sua diretoria, em substituição ao sistema eletivo cartolarial, uma junta formada por negras e negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, trabalhadores e trabalhadoras (foi, pelo menos, o que entendi da leitura de seu artigo disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/08/14/corinthians-o-pior-ainda-esta-por-vir.htm). Não se pretende, neste texto, subscrever uma ou outra opinião, ou apresentar uma posição contestatória em relação a qualquer uma delas. O propósito é menor: pretende-se, apenas, apresentar uma posição, a partir de uma imagem (ou fotografia) da situação atual do futebol, e cotejá-la com as perspectivas propiciadas pela Lei da SAF, em contraponto ao secular sistema associativo - e, assim, dialogar com o/a jornalista. Parte-se do atual campeonato brasileiro, que revela um desvio padrão histórico, pela ausência de, pelo menos, quatro (ou mais) times dos mais tradicionais do país, que disputam, atualmente, a segunda divisão nacional, a exemplo de Cruzeiro, Vasco, Grêmio e Bahia. Essa excepcionalidade não escapa ao resultado do final do primeiro turno da série A, conforme posições dos times que o integram: do primeiro colocado, o Palmeiras, ao décimo-primeiro, o Botafogo, todos são ou se tornaram grandes (incluindo o Athletico Paranaense e o mencionado Red Bull). Nas posições inferiores, posicionam-se times que costumam, pelo histórico, lutar contra o descenso ou, quando situados na série B, duelam pela ascensão, invariavelmente transitória. Com o resgate do que se chamava de normalidade, representativa do acesso de, pelo menos, quatro dos seis campeões nacionais que hoje disputam a segunda divisão (a exemplo dos times mencionados parágrafos acima), sobraria, em tese, apenas uma vaga para ser disputada, anualmente, pelos times considerados, neste momento, "menores" - pois outros quatro seriam, também em tese, preteridos e rebaixados. Sob outro ângulo, mais realista, ao se analisar a potencialidade de times que não eram considerados da "elite", como Fortaleza, Ceará, América-MG e Atlético Goianiense, talvez se possa supor que, se tiverem acesso a recursos e financiamentos para investimento na formação educacional e esportiva de jogadores, bem como no desenvolvimento da empresa futebolística, poderão se manter e protagonizar na divisão principal do campeonato nacional. E, assim, empurrar os grandes, endividados e mal estruturados, para baixo, que passariam, então, a lutar pela permanência, no lugar da luta por classificação para campeonatos internacionais ou por títulos nacionais - lembre-se, a propósito, que o SPFC, nos últimos anos, passeou, com frequência, pela zona intermediária, mirando, com maior proximidade, o "Z4" do que a pretensão a título. Ou seja: os rearranjos organizacionais que se confirmam, com a mudança de patamar de Athletico Paranaense e Red Bull Bragantino, além da potencialidade de outros times, indicam o início de uma nova era do futebol brasileiro e o fim da zona de conforto dos times maiorais.   A tradição não deveria implicar a negação evolutiva, característica intrínseca da humanidade. Os times que souberem se aproveitar desta perspectiva realística, protagonizarão os próximos anos - ou décadas -, até que outros dominem as mesmas técnicas e se equiparem, com atraso, aos que partiram na frente - e isso não implica a negação da torcida, do torcedor ou da história; ao contrário. Daí a conexão com a proposição do jornalista Flavio Prado (que coincide, em termos, com a visão do Presidente da Federação Paulista de Futebol, Reinaldo Carneiro Bastos, que afirmou, em evento promovido pelo Fórum Estadão, que o Red Bull integrava a lista dos cinco grandes de São Paulo): este time já tem estrutura, administração, recursos e confiabilidade que lhe permitem se manter, com alguma segurança e previsibilidade, entre os principais do país - em permanente disputa com o próprio SPFC, por exemplo. Por outro lado, clubes tradicionais, endividadíssimos, como Cruzeiro, Vasco e Botafogo, que foram ao fundo do poço, lançaram mão dos instrumentos criados pela Lei da SAF, menos por opção, mais por necessidade, e, ao que tudo indica, colherão os frutos com alguma rapidez. Não porque se socorreram de torcedores abnegados (ou mecenas) ou juntas de idealistas para reconduzi-los; mas, sim, porque, enfim, tiveram que aceitar a falência sistêmica do modelo associativo e impor profundas mudanças estruturais.   Outros, ainda, como o mencionado SPFC, insistem na afirmação da tradição, respaldada em glórias do passado (e numa fábrica de criar notícias e sonhos), para produzir uma narrativa que enfrenta enorme dificuldade para se sustentar - e que não desmorona, no caso desse time, apenas por conta de sua torcida. Assim emerge a dificuldade de enfrentamento da realidade e a consequente adoção de subterfúgios denegatórios. Uns partem para violência argumentativa, expressiva do patrulhamento ideológico que assola o país; outros para soluções utópicas, inviáveis teórica e praticamente; e, ainda, outros para a criação de narrativas fantasiosas, sustentadas pela figura de presidentes carismáticos. A fusão dessas posições ainda prepondera no futebol brasileiro e justifica o atual estado de coisas, que, em uma espécie de ensaio sobre a cegueira, insiste em negar a realidade e acaba por sustentar a irrealidade - ou a utopia. Não fosse o bastante, essa conjuntura ainda incentiva a promoção de ataques às novidades, derivadas de processos evolutivos, como meio de negação dos atrasos representativos de suas visões ou paixões. E, assim, somente assim, justifica-se a ira derivada da afirmação, representativa de determinada opinião pessoal, de que o Red Bull será mais relevante do que o SPFC e muitos outros clubes tradicionais, se estes se mantiverem no atual estado de letargia estrutural em que se encontram.
quarta-feira, 10 de agosto de 2022

O primeiro ano da Lei da SAF

A lei 14.193, de 6 de agosto de 2021, também conhecida como Lei da SAF ou Lei Rodrigo Pacheco, completou, semana passada, um ano. Haveria, assim, motivo para comemoração ou ainda é cedo para compreender a relevância da iniciativa? Antes do enfrentamento da questão, resgata-se, aqui, a experiência de outra iniciativa que transformou o mercado e a perspectiva de captação de recursos e de financiamento de companhias brasileiras. No ano 2000, a Bolsa de Valores de São Paulo lançou o Novo Mercado, consistente em segmentos diferenciados de listagem de ações, que previam, de modo resumido, (i) a adoção de níveis mais elevados de governança, (ii) a imposição de técnicas e instrumentos informacionais resultantes em maior transparência e (iii) o reconhecimento de determinados direitos aos acionistas, em especial minoritários, não previstos na legislação que então vigorava. Apostava-se que a medida atrairia interesse de investidores e financiadores locais e internacionais, que teriam meios adequados para avaliar ativos e quantificar ou projetar riscos e retornos. Sob a ótica das companhias e dos acionistas, também se apostava que a redução da assimetria informacional e a construção do novo arquétipo de governação - com deslocamento de poder ao conselho de administração, órgão essencialmente colegiado, e a abertura de espaços para conselheiros independentes (sem ligação com acionistas controladores) - contribuiria para atração de novos emissores, valorização das cotações de ações e aumento de liquidez. A adesão ao Novo Mercado não era, como ainda não é, impositiva. Aliás, nem mesmo decorre de lei. Após o seu advento, conviveu-se com um (longo) período de marasmo, sem aderência de qualquer companhia, motivando cogitações públicas e doutrinárias, no sentido de que a iniciativa sugerira uma intervenção artificial, desconectada da realidade local. Mas, em 2002, a situação começou a se reverter com a decisão da Companhia de Concessões Rodoviárias de aderir, de modo pioneiro, ao modelo. Atualmente, os três principais níveis de listagem (Nível 1, Nível 2 e Novo Mercado) contam com cerca de 250 companhias e se pode afirmar que não há caso de abertura de capital que se faça fora deles (ou seja, no ambiente convencional). Portanto, a partir de uma iniciativa autorregulatória contribuiu-se para transformação do ambiente mercadológico brasileiro e para afirmação do comprometimento - nem sempre respeitado - com princípios mais elevados de governo e de transparência. Retomando-se o mote deste texto, a Lei da SAF, em apenas um ano, motivou a constituição de, pelo menos, 26 sociedades anônimas do futebol, indicadas abaixo:  Mais importante do que isso, revelou-se a via de salvação - ainda em construção e que enfrentará, sem a menor dúvida, uma série de obstáculos - de grandes e tradicionais clubes, como Cruzeiro, Vasco da Gama e Botafogo. Também parece que a Lei se apresentará como o caminho para reorganização de outros times populares, tais quais Atlético Mineiro e Bahia. Ou para confirmação de um clube que se revela cada vez maior e protagonista, estrutural e esportivamente: o Athletico Paranaense. Para além desses eventos, e para que não se diga que a Lei da SAF surgiu para solucionar os problemas dos grandes clubes - o que não é verdade -, nela times regionais e de menor porte também procuram caminhos para enfrentar crises que, sem ela, seriam irreversíveis. Desse estado de coisas se extrai que, apesar de a hermética casta cartolarial jamais ter se organizado ou reclamado uma solução sistêmica para os times - e torcedores - que, estatutariamente, representa - pois se protege em busca de interesses pessoais ou grupais -, havia uma lacuna legislativa que oferecesse alguma luz para o redirecionamento dos modelos de propriedade e de governação do futebol brasileiro. Mesmo com o seu surgimento, o principal obstáculo para que o esporte se liberte de maneira sistêmica, após mais de 140 anos de encastelamento, ainda se concentra nessa mesma estrutura de interesses que implodiu a atividade e a converteu em um negócio de exportação de jovens (ou de pé-de-obra).  Não se trata - e aqui não se defende, ao contrário - de alienar, a qualquer preço e em qualquer circunstância, a riqueza futebolística nacional, distribuída por cada time, ao primeiro interessado, nacional ou estrangeiro, que se apresente como Messias. Aliás, nem se trata de defender a implementação de projetos de SAF se não houver, antes, em cada clube interessado, uma adequada planificação, que projete onde se está, o que se quer ser, e como e com quem atingirão os objetivos pretendidos. Mas se trata, sim, de reconhecer que o poder político interno de não poucos clubes, de grandes a pequenos, ainda se sustenta nas falácias que construíram o sucateamento da indústria e na formação de um estoque de dívida que supera a dezena de bilhões. Apesar das quase três dezenas de sociedades anônimas existentes no país - número nada desprezível, para o primeiro ano, considerando-se que a CBF conta com aproximadamente 775 clubes profissionais nela registrados -, o principal gargalo para que o novo mercado do futebol siga, respeitadas todas as diferenças, a benfazeja trilha que o Novo Mercado, criado há décadas pela então Bovespa, vem trilhando, ainda reside e resiste, lá, no cartolismo (que nada mais é do que uma faceta folclorizada do coronelismo). Mas que, como tal, não deveria ter espaço na sociedade contemporânea. 
quarta-feira, 29 de junho de 2022

Sobre Rogério Ceni

Este texto não irá passear pela espetacular carreira profissional de um dos melhores goleiros que o país produziu, que também foi o maior goleiro-artilheiro da história do futebol mundial, o maior goleiro da história do São Paulo e um dos dois mais importantes jogadores da história do clube - atrás apenas de Raí. Além de o propósito ser outro, reconheço minha incapacidade de transformar em palavras as magias que Rogério operou em campos brasileiros, sul-americanos ou mundiais, assombrando companheiros, adversários, espectadores e jornalistas. Eu haveria de ser possuído por Borges ou Neruda para sintetizar (ou poetizar) o que ocorreu em jogos disputados, exemplificando, contra o Rosario Central (Morumbi, 2005), o River Plate (Buenos Aires, 2005), o Athletico Paranaense (Morumbi, 2005), Cruzeiro (Mineirão, 2006) e a Universidad Católica (Chile, 2013). Sem falar, é claro, da atuação odisseica que garantiu o tri-mundial, contra o poderoso Liverpool, confronto em que se assistiu a uma das duas defesas mais inexplicáveis da história - a outra, ocorrida em 1970, em que o goleiro inglês Gordon Banks parou Pelé. Esse texto também não pretende analisar a ainda curta carreira de treinador, iniciada, talvez, com certo açodamento, ao assumir o time do qual fora - e ainda é - ídolo inconteste, em momento delicado, política e esportivamente. A pressa para se afirmar na nova profissão contribuiu, na visão deste espectador externo, para que as bases da contratação e a ruptura se passassem de modo insatisfatório, com sequelas para todos os envolvidos.   Mas foi essa pressa que o levou a outro tricolor, o Fortaleza, onde, em combinação com uma estrutura administrativa aparentemente conectada com as necessidades de seu tempo, Rogerio pôde iniciar uma bonita escritura, que lhe rendeu títulos e respeito. O sucesso cearense não aplacou a pressa, que o fez se desdizer e voar para o Rio de Janeiro, para assumir uma missão quase impossível - o esquecimento do treinador português Jorge Jesus, que voltara para seu país após conquistas nacionais e internacionais históricas. Lá sofreu, apesar do título do campeonato brasileiro, um tombo que, no final das contas, fez-lhe maior. Tombar, aliás, não deve trazer vergonha a ninguém; faz parte do processo evolutivo, como se extrai de narrativa que apresenta lição que teria sido proferida a Zumbi dos Palmares: "sem a mandinga, menino, a capoeira é só ginga e pernada. Se você não for malandro, não consegue levantar quando cair no chão... E pode ter certeza, um dia vai ter que levantar, porque todo capoeirista de verdade já caiu um dia"1. Todos realmente caem um dia. Até Pelé caiu. Importam o aprendizado e a superação. A oportunidade de soerguimento surgiu justamente no clube em que experimentara o primeiro tombo e que, paradoxalmente, viabilizara a transformação de um menino determinado em um mito2: o jogador Rogério Ceni. É sobre a sua missão, a partir do reencontro com o São Paulo, de que trata este texto. Rogério, feliz ou infelizmente, não deve ser visto, neste momento, apenas como o (excelente) treinador que é. Trata-se do muro que separa o São Paulo de se transformar em clube-zumbi. Não me refiro, aqui, é óbvio, ao herói popular. A referência, em realidade pejorativa, extraída da série "The Walking Dead", reflete a dramática (e revoltante) realidade clubístico-administrativa do São Paulo (a propósito, ver os artigos publicados neste mesmo espaço, nos dias 83 e 154 de junho). Nesse sentido, ninguém, além de Rogério, neste momento, seria capaz de revelar as mazelas, inclusive estruturais, que afetam um clube que, há alguns anos, conquistou a América e o planeta - e vem se tornando, a um só tempo, motivo de chacota e saco de pancada. Ninguém, além de Rogério, teria - após, lembre-se, a passagem de mais de 20 técnicos desde 2010 -, a força para declarar publicamente que, se mudanças não fossem feitas, partiria para novo projeto e, mesmo assim, fazer a diretoria curvar-se. Ninguém, além de Rogério, poderia enfrenar uma (in)explicável bipolaridade que, também há anos, parece acometer os jogadores são-paulinos, protagonistas, em curtos espaços de tempo, de partidas irritantemente passivas ou extremas do ponto de vista de entrega. Ninguém, além de Rogério, teria coragem para, após uma vitória sobre o Palmeiras, afirmar - com palavras cuidadosas, é verdade - que o São Paulo, sem os diversos jogadores entregues ao departamento médico, não tem time para ser o São Paulo que o foi no seu tempo e disputar, com chances de vitória, as competições de que participa. Ou seja: para reconhecer que o São Paulo se tornou um time de "meio de tabela" - a caminho de algo pior. Ninguém, além de Rogério, tem autoridade para, em suas incontáveis entrevistas quase melancólicas, revelar que o ilusório e maravilhoso mundo tricolor apresentado nas mídias sociais é mais fantasioso que o sonho de Alice. E ninguém, mais do que Rogério, sabe que, em breve, o clube deverá enfrentar uma nova batalha política, liderada por uma oposição mais retrógrada do que a situação - que, se, vitoriosa, sedimentará, talvez de modo irreversível, a filosofia do atraso. Não deve ser fácil para Rogério Ceni, neste momento, ser treinador do São Paulo. As toneladas de concreto do Morumbi pesam sobre os seus ombros. Justamente sobre ele que, olhando-se de fora, parece sofrer, cotidianamente, pela sua intransigência com a falta de comprometimento - e com o erro. Rogério trava, portanto, acho que com consciência, uma batalha muito maior do que a manutenção do time em nível aceitável; a sua missão envolve dignificar, novamente, o São Paulo (e para isso enfrenta os interesses da estrutura cartolarial) e permitir a abertura para um projeto viabilizador do acesso a financiadores - e o distanciamento de um conjunto de coisas que não faz mais sentido no atual estágio do futebol brasileiro e mundial.    O São Paulo nunca precisou tanto de Rogério Ceni como precisa agora. __________ 1 Chalub, Leonardo. Palmares de Zumbi - 1ª ed. - São Paulo: Nemo, 2019, p. 2 Atribui-se o adjetivo, que se tornaria marca, ao jornalista Victor Ernesto Birner. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui.
O jornalista Juca Kfouri escreveu e publicou, em seu blog, carta aberta ao presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco, autor da lei 14.193/2021, que instituiu no Brasil a Sociedade Anônima do Futebol ("SAF") e tratou dos instrumentos necessários à formação do novo mercado do futebol. A Carta tem como propósito externar seu inconformismo com a postura do torcedor brasileiro em geral, que desrespeita, em espetáculos futebolísticos, a liturgia de execução do Hino Nacional. Ele afirma, a propósito, que "não apenas ninguém canta, como, ao contrário, nem sequer se faz silêncio em respeito ao Hino". A prática de apresentação de um dos Símbolos Nacionais (formados pelo Hino, pela Bandeira, pelo Selo e pelo Brasão) não decorre de voluntarismo das entidades administradoras do futebol, como se pagassem tributo (ou reverência) pelo direito de explorar a atividade - e, no caso da CBF, organizadora do campeonato brasileiro, da copa do Brasil e da seleção, pela apropriação de cores, bandeira, representação e do próprio hino. A ordem veio do Congresso Nacional, por intermédio da lei 13.413, de 29 de dezembro de 2016 ("lei 13.413"), que reformou a lei 5.700, de 1º de setembro de 1971 (a qual dispõe sobre a forma e a apresentação dos Símbolos Nacionais), para determinar justamente que o Hino fosse executado na abertura de "competições esportivas organizadas pelas entidades integrantes do Sistema Nacional do Desporto". O tema não é óbvio - e, aqui, não se aborda, ainda, a motivação da Carta Aberta, mas o propósito da lei. O futebol em geral e, em especial, a seleção brasileira, simbolizavam, até pouco tempo atrás - e mais do que qualquer Símbolo, o território ou a moeda -, a ligação entre os diversos Brasis. A relação que o torcedor (ou o povo) mantinha com aquelas expressões esportivas, que se incorporaram à cultura e ao patrimônio imaterial locais, justificava, pelo menos por alguns momentos, o abandono de diferenças, por mais inconciliáveis que elas fossem. Nesse sentido, aliás, o cineasta Cao Hamburger mostra, em seu belo "O ano em que meus pais saíram de férias", o dilema de perseguidos políticos que, a despeito de suas convicções, torciam pela seleção de 1970, mesmo cientes de que o sucesso esportivo seria utilizado para afirmar o regime ditatorial que combatiam. Deixando a política, por ora, de lado, fato é que, com o tempo, tal sentimento foi se desmaterializando até que, nos dias de hoje, o torcedor chega a ter raiva da seleção e de seus principais jogadores. A causa, olhando para trás, parece evidente: o sistema construído a partir da Constituição de 1988 propiciou o encastelamento da classe cartolarial, nos clubes e nas entidades de administração, de modo que cada feudo se organizava em seu próprio benefício, sem preocupação com o coletivo - e com a sustentabilidade dos times e do sistema futebolístico. O individualismo exacerbado passou a opor, no plano maior, clubes às federações e confederação, que se tornaram, não sem razão, espécies de vilãs nacionais. Daí, para se iniciar o processo de identificação dos Símbolos com a arrogância e os desmandos centrais - que levaram alguns cartolas à prisão e outros a se refugiarem em seu país -, foi um pulo. Devo reconhecer, em um dolorido exercício de autocrítica, que, a partir do início de 1990, quando reconhecia na CBF a inimiga do meu time, passei a nutrir esse mesmo sentimento, que foi crescendo com o tempo, até o ponto de ... cantar o Hino Tricolor sobre a execução ordenada por lei. Percebo, hoje, que o alvo estava errado. A indignação, que deveria se dirigir às reminiscências de um período anterior à Lei Áurea - o cartolismo como via de dominação da atividade esportivo-econômica -, mirava na imagem que o futebol (involuntariamente) outrora esboçava cimentar: a projeção de Nação. Esse sentimento, infelizmente, ainda é compartilhado por muita gente, talvez a maioria, que, de maneira equivocada, não apenas comete o mesmo ato nos estádios, como, fora dele, rejeita as cores da Bandeira por associá-las aos usurpadores; e que passou a ter vergonha de ser brasileiro ao invés de se orgulhar de lutar para resgatar suas origens.    A lei 13.413 poderia, assim, ter servido como uma tentativa de reconstrução de uma ponte com a representatividade, com a emoção de ver (correndo-se, aqui, o risco do ufanismo), sobre o gramado, alguns brasileiros que romperam o apartheid econômico e se infiltraram no imaginário das classes mais abastadas. Talvez por isso que ninguém, ou quase ninguém, realmente dê bola para que os reflexos da Lei se limitem a uma execução protocolar, abafada pelo desrespeito de torcedores que acreditam vociferar um ideal ou uma moral superior. Por isso que, no lugar da revogação, que, em minha modesta opinião, apenas intensificaria o divisionismo - como querem os donos das estruturas clubísticas -, o melhor caminho talvez fosse, a exemplo do que se promove nos Estados Unidos da América, o enaltecimento da simbologia do Hino, da Bandeira e do próprio Futebol, com aparatos, se não similares aos que se produzem nos eventos daquele país - porque não se trata de copiar -, ao menos concatenados com as realidades locais. E assim, quem sabe, contribuir-se-ia para a construção de um movimento de tolerância e respeito às diferenças, que podem - e devem - conviver sob um mesmo regime democrático.
O professor e economista Luiz Gonzaga Belluzo publicou em sua coluna no Valor, veiculada na edição de 7 de junho, texto intitulado "a tirania dos homens de bem", em que ensina, com o acerto que lhe é comum, que desde a Era do Iluminismo e da Revolução Francesa não se admite aos cidadãos invocar a própria honestidade ou a boa consciência para contestar a universalidade da lei ou os procedimentos legais. Mais do que isso: ele afirma que "seria uma insanidade, no mundo moderno, substituir os preceitos e a força da lei escrita pela presunção de bondade intrínseca de um grupo social ou de um agrupamento de indivíduos". E arremata: "as reflexões mais profundas sobre a ética da modernidade repeliram sempre com energia as tentativas conservadoras de desmoralizar o formalismo da lei em nome da espontaneidade, dos bons sentimentos, da palavra de honra". Tais considerações se encaixam e explicam a situação e o momento de alguns (ou de muitos) clubes e do futebol brasileiro, que permanecem sob o jugo, há mais de 140 anos, de uma classe cartolarial que, quando não se afirma pela força, se preserva pela mesma narrativa despótica característica da tirania contemporânea. No plano do futebol, ambiente em que intelectuais se transmutam em ogros, e ogros em intelectuais, e todos se reencontram com suas personalidades ostensivas quando o tema se esvai, a sociedade e até rigorosos observadores se acostumaram a aceitar o inaceitável, e se tornaram condescendentes com os déspotas, que, não raro, passaram a ser tratados como figuras folclóricas, apesar do descaso (que não faziam questão de simular, aliás) com normas estatutárias e com a lei posta. Porém, a hegemonia dos déspotas-folclóricos e os tempos áureos de alguns clubes se dissiparam com o passamento da maioria daquelas figuras, e com o consequente enfraquecimento político dos poucos pares restantes, que acabaram sendo substituídos por substratos de mesma natureza, mas que se apresentavam (e se apresentam) com discursos moralizantes e pautados na boa intenção. A combinação das características passadas e atuais propiciou a formação dos "clubes-zumbis": expressão cunhada a partir de série disponível na Netflix, denominada Walking Dead (que, por sua vez, foi adaptada de quadrinhos com o mesmo nome). A série se situa em um período pós-catastrófico, ou apolítico, notabilizado pela propagação de zumbis, ou mortos-vivos, que se alimentam dos poucos seres humanos sobreviventes, os quais tentam se proteger em pequenos grupos de resistência, ou de sobrevivência, que convivem em ambiente anárquico - e selvagem -, sem leis gerais e abstratas ou poder central. Os sobreviventes, assim, reduzem suas ações às mais primitivas formas preservativas: a busca pela alimentação e a autodefesa, o que implica uma horrorosa e infindável sucessão de "assassinatos" de zumbis e de seres humanos, que, paradoxalmente, são vítimas dos mesmos atos instintivos. O clube-zumbi, que se identifica, com facilidade, pela sua situação patrimonial e financeira deteriorada pelos anos de cartolismo, inclusive de cartolas-folclóricos, se faz representar, com alguma frequência nos tempos atuais, por gente que aposta num discurso empresarial ético-moralizante, para enfretamento de uma crise que, como ocorre em Walking Dead, somente se resolverá de modo sistêmico e organizado. Aí se encontra, então, a conexão com o texto de Luiz Gonzaga Belluzo: o cartola contemporâneo invoca as boas intenções, as boas consciências e, eventualmente, a própria honestidade - algo que nem sempre é possível afirmar com o vigor das demais - para se diferenciar dos antecessores e para se sobrepor ao passado, mesmo sendo ele fruto e parte integrante da estrutura à qual pretende, discursivamente, se distanciar. Não apenas isso: aposta-se na publicização dos atributos pessoais, que constituiriam condição suficiente para o resgate de um passado quase imemorial, resistente nas lembranças e nos registros históricos. Ocorre que, conforme se extrai do texto de Luiz Gonzaga Belluzo, "no nosso Brasil [e também no futebol] as transições sempre acontecem para impedir que o passado fique no passado. A memória, enquanto reflexão sobre o que passou, vai se apagando depressa, na mesma velocidade com que se rearmam as forças e os interesses que comandaram os grandes desastres e desatinos". Foi assim com a Lei Zico (naquilo que oferecia de transformador), com a Lei Pelé (sobretudo no tocante à criação e à mutilação da ideia do clube-empresa), com a Lei do Profut (que serve para postergamento de obrigações), e assim seria com a Lei da SAF, se a crise sistêmica não tivesse abalado alguns dos times mais tradicionais, que se encontravam tecnicamente insolventes - e que lhe deram a eficácia que não se imaginava possível. Mas o clube-zumbi, que o Estado ajuda a preservar por diversos motivos e diversas vias (isenções, imunidades, parcelamentos etc.), ao invés de buscar uma solução estrutural, ainda insiste em fabricar, com base nas glórias do passado, soluções milagrosas, empacotadas por cartolas "de bem", quando não são eles próprios - os cartolas - a solução. Daí a falta de comprometimento com resultados, com soluções, com os agentes que dependem dos times, com a torcida, com a sociedade e com o país. Daí, também, a atual situação (quase que pós-apocalíptica, como em Walking Dead) do futebol brasileiro. 
O Corinthian Football Club (que deu origem, após uma fusão, ao Corinthian-Casuals) foi (ou é) um clube amador de futebol, de origem inglesa, que contribuiu para mundialização do esporte, a partir de valores éticos e morais que se perderam juntamente com a expansão, sem os devidos instrumentos de controle, do sistema globalizado futebolístico. Os conceitos que o norteavam, aliás, nunca foram tão atuais, mesmo que empacotados, nos dias de hoje, (apenas ou sobretudo) para responder a demandas externas e mercadológicas: amor ao jogo, fair play e cavalheirismo (ou companheirismo). O clube reuniu, na virada do século retrasado para o passado, alguns dos melhores jogadores amadores e chegou a ser considerado o melhor do planeta. Foi contra esse time que o Manchester United sofreu talvez a maior goleada de sua história: 11x3. Sua influência atravessou o Atlântico e o atraiu ao país. Em turnês brasileiras, em especial a ocorrida em 1910, amassou todos os times que encontrou pela frente. O poder que externava incentivou 5 trabalhadores locais a fundar um clube que marcaria a história do futebol: o Sport Club Corinthians Paulista. Dentre os times batidos (e alguns massacrados) pelo inglês naquela passagem pelo Brasil, listam-se, além de cariocas e seus combinados, o AA das Palmeiras, o São Paulo Athletic ("SPA") e o poderoso Club Athletico Paulistano ("CAP"). Os dois últimos já protagonizaram o futebol paulista. O SPA levou o tricampeonato nos anos 1902/1903/1904 - além de vários outros títulos -, e o CAP, de 1916 a 1921, levantou 5 dos 6 títulos disputados, dos quais 4 consecutivos (de 1916 a 1919), façanha jamais atingida por qualquer outro clube. Esses são exemplos de clubes que não souberam perceber as mudanças que abalariam a forma como se entendia e se administrava o futebol, ou que optaram, com alguma consciência, pelo caminho que os levaram para as posições em que se encontram hoje. O CAP, por exemplo, rejeitou os movimentos de profissionalização e se resignou a praticar o esporte no âmbito amador, o que ainda faz até hoje, para deleite de pequena parcela da elite paulistana que o frequenta. A rejeição correspondia, em seu tempo, à atual rejeição à SAF. A constituição de uma SAF, como já se afirmou diversas vezes nesse espaço, não representa um fim em si - como a profissionalização não nivelou todos os times protagonistas das décadas passadas em potências futebolísticas. Com efeito, a simples passagem do modelo associativo para o de companhia, como pretenderam as Leis Zico e Pelé, não configura condição suficiente (se bem que necessária) para solucionamento das mazelas internas e externas de cada e todo clube. A SAF consiste em um instrumento, isto sim, de viabilização de um processo transformacional, que somente se realizará se, em sua concepção, seus arquitetos considerarem, testarem e enfrentarem os seguintes aspectos: o que é o time em questão, o que se quer que ele seja, onde ele está, para onde se quer levá-lo, como se irá, com quem se irá e de que forma serão atingidos os planos fixados nos itens anteriores. Não custa lembrar: o Manchester City, clube fundado em 1880, operou, até 2008, um time irrelevante esportiva e economicamente. Naquele ano, foi adquirido por uma entidade ligada aos Emirados Árabes Unidos, que o alçou ao topo do planeta. É possível que alguns torcedores saudosistas, sobretudo os que se aproveitavam da ineficiência interna, ainda maldigam o sucesso, a formação de um time-seleção e a exposição mundial. Mas a torcida, a sociedade local e, num plano expandido, a sociedade inglesa passaram a se beneficiar direta e indiretamente, sob diversos ângulos, do movimento, que se tornou global, com muito maior intensidade do que se verificava, antes, sob outra forma de detenção da propriedade dos ativos do clube.  No Brasil da SAF, há quem peça para que se desconfie do investidor, mesmo que atenda pelo nome de Ronaldo Nazário, mas especialmente daquele que vier de outra terra, e mais ainda se for bilionário, por supostamente pretender extrair a riqueza local em seu proveito e, quando esgotada, esvair-se. Esse é o discurso do cartolismo, inclusive quando se apresenta empacotado em teses ideológico-políticas, que pretende preservar a sua influência e o poder gerencial do futebol, à conta do torcedor (e do povo). Lembro-me, nesse sentido, de ter mantido, há não muito tempo, correspondência com certo cartola, com passagem por clube e entidade de administração do futebol, que maldizia os modelos dos times europeus pela suposta fragilidade relacional entre proprietário e tradição. A lógica era (e ainda é): se um dia der prejuízo, ele abandonará o time e deixará a torcida na mão. Divergíamos, na ocasião, sobre os supostos malefícios, segundo o cartola, que o investidor do PSG causava ao time. O argumento, na verdade, é de uma superficialidade que nem mereceria consideração, se, nos últimos meses, o mundo não tivesse assistido a duas negociações substanciais, uma na Inglaterra e outra na Itália, envolvendo a saída e a entrada de novos investidores-proprietários, que desdizem, na prática, o que o cartola pretendia afirmar como dogma.    O Chelsea, após ter se tornado um time relevante no plano mundial em decorrência dos investimentos realizados por investidores internacionais, foi vendido, em uma situação extremada (e não desejada por seu dono), por aproximadamente 27 bilhões de reais. A movimentação no plano societário preservou a empresa futebolística e a perspectiva dos torcedores. Da Itália também vem um exemplo interessante e importante: o Milan experimentou anos de decadência, desde a saída de Berlusconi, tendo inclusive sido objeto de negócios malsucedidos, até que um fundo de investimento em "ativos estressados", o Elliott, conseguisse, não sem percalços, organizar a estrutura interna e levar o time, neste ano, ao campeonato nacional que não alcançava desde a temporada 2010/11. Na esteira dessa conquista, a companhia que opera o time foi vendida por valor divulgado de, em reais, aproximadamente 6,18 bilhões. O comprador é outro grupo estrangeiro, o RedBird, que já possuía investimentos no setor esportivo. Pelo que se noticia, o vendedor ainda manterá participação reduzida no Milan e elegerá membros para órgãos de administração - o que parece indicar alguma crença nas projeções futuras do time. Em ambos os exemplos são extraídas lições convergentes, sobretudo se aplicadas ao ambiente brasileiro que, com a Lei da SAF, passou a ter uma moldura regulatória que outros países, como o inglês, não têm: os movimentos de entrada e saída de investidor, se e quando realizados no âmbito de sistemas construídos para oferecer segurança jurídica aos agentes que o integram, não são necessariamente ruins, muito pelo contrário, aos times e, consequentemente, aos torcedores. Deverão, aliás, indicar o início de novos ciclos de investimentos, inclusive na base da estrutura futebolística.   Algo que, no âmbito do clubismo, não se realiza, apesar da insistente mania de associá-lo à preservação da cultura e dos interesses dos torcedores. Não, definitivamente não: o que se opera, na verdade, a cada troca de comando administrativo no âmbito de clubes de futebol - muitos deles transformados em clubes-zumbis -, ao cabo de mandatos eletivos, com raríssimas exceções, é a farra de gastos - e não de investimentos - que levou ao acúmulo de uma dívida da ordem de 13 bilhões de reais.
Toda nova lei passa por um processo (natural e necessário) de compreensão e acomodação, promovido pelos operadores do direito, tanto em âmbito acadêmico como judiciário. Enquanto não são produzidas decisões judiciais em primeira e segunda instâncias, aptas a pacificar entendimentos ou, na pior das hipóteses, a fixar divergências (que permitam ao menos a estimação do risco jurídico e a quantificação do impacto econômico), cabe ao advogado, ao jurista e ao doutrinador, conforme o caso, contribuir, dentro de suas atuações, com a adequada formação da compreensão da própria lei e de institutos nela previstos. Pois bem: em pouco tempo a Lei da SAF encerrará seu primeiro ano de vigência. Desde a sua promulgação, notou-se uma certa perplexidade, sobretudo pela ambição nela contida de revigorar as bases de uma atividade esportivo-econômica que vinha - e ainda vem - sendo jogada na lata do lixo pela casta cartolarial brasileira. Neste sentido, a lei de autoria do Senador da República (e Presidente do Congresso Nacional), Rodrigo Pacheco (PSD/MG), presenteou o país com uma perspectiva histórica - e que, pelos eventos posteriores, poderá se afirmar como uma das mais relevantes atuações legislativas contemporâneas. Aquela perplexidade foi, na sequência, substituída pela empolgação, por ocasião do anúncio da entrada de Ronaldo Nazário em projeto que envolvia - e envolve - o Cruzeiro. Na esteira da novidade, foram divulgados negócios com outros dois tradicionais clubes, Botafogo e Vasco, que fizeram com que não apenas agentes locais, mas também internacionais, percebessem que algo grandioso - nos planos esportivo, econômico e social - estava por vir. E pode mesmo estar. Essas oscilações na percepção do que se está construindo sempre foram - e jamais deixarão de ser - permeadas por manifestações proferidas, de acordo com as sábias palavras de José Francisco C. Manssur e Carlos Eduardo Ambiel (em texto publicado neste espaço), por gente interessada em "fomentar discursos apocalípticos", que se propõe "a fazer o papel de coveiro da SAF, a cada situação natural que imponha novos desafios ao indispensável processo de evolução do futebol brasileiro". O motivo da resignação da dupla de advogados (e doutrinadores) do direito esportivo envolvia a reação de grupos de interesse a uma decisão judicial de primeira instância, de natureza trabalhista, em desfavor da SAF constituída pelo Cruzeiro ("Cruzeiro SAF"), que atendia determinado pleito de reconhecimento de responsabilidade do próprio Cruzeiro SAF por obrigação do clube, a despeito de a Lei da SAF dispor de modo diverso. Com argumentos precisos, os dois demonstraram, em texto que merece ser lido e relido, os equívocos da decisão. Ocorre que, posteriormente à publicação do mencionado texto, adveio nova decisão, também envolvendo o Cruzeiro e o Cruzeiro SAF, em que outro magistrado de primeira instância decidiu de modo contrário a semelhante postulação - beneficiando, assim, nessa oportunidade, o Cruzeiro SAF. Importante: afirmou-se em ambos os casos a existência de um sistema atributivo de responsabilidade, construído pela Lei da SAF, mas, na segunda decisão, além de se reconhecer a natureza especial desta lei, a se sobrepor a diplomas genéricos ou anteriores, também se reconheceu a legalidade do sistema de "modulação" arquitetado pelo legislador. Fato é que, mesmo com o advento dessa decisão, que redireciona o enfrentamento de tema tão relevante no âmbito da Lei da SAF, ainda se conviverá com inevitável instabilidade decisória, ora para um lado, ora para outro, até que se comece a operar certa pacificação no âmbito de Tribunais Superiores. Fenômeno esse, aliás, comum a tudo aquilo que é novo em matéria legislativa. Daí a importância de se abordar um aspecto essencial da estrutura interna da Lei da SAF, que poderá contribuir para o afastamento de equívocos interpretativos, bem como para a formação de uma correta jurisprudência: refiro-me à forma de constituição da SAF e às suas (distintas) consequências. O texto original do PL 5.516/19 ("PL"), de autoria do Senador Rodrigo Pacheco, previa quatro hipóteses constitutivas da SAF: (i) transformação de clube em SAF; (ii) transferência de patrimônio do clube para SAF (ou seja, via drop down); (iii) transformação de empresa em SAF; e (iv) mediante iniciativa originária. Após o devido processo legislativo, o Senado Federal aprovou, por unanimidade, o Substitutivo do Senador Carlos Portinho (PL/RJ), que mantinha a estrutura e praticamente todos os institutos do PL, e inovava em relação a determinados aspectos. Uma das inovações se refere à substituição do conteúdo do supramencionado item (ii), pela seguinte redação: "cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol". Essa mudança poderia sugerir a proibição do drop down (operação alcunhada por alguns doutrinadores de cisão imprópria) como via de criação da SAF. Mas não foi isso que se promoveu. Com efeito, o art. 3º da Lei da SAF contempla, fora da lista expressa do art. 2º, uma quarta via constitutiva, representativa, justamente, daquela modalidade que se anunciava na redação original do PL, como se extrai da seguinte redação:   "O clube ou pessoa jurídica original poderá integralizar a sua parcela ao capital social na Sociedade Anônima do Futebol por meio da transferência à companhia de seus ativos, tais como, mas não exclusivamente, nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, inclusive registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica". Deve-se reconhecer, portanto, que a Lei da SAF autoriza, de modo expresso, quatro formas constitutivas (três listadas no art. 2º e uma contemplada no art. 3º); autorização essa, aliás, que foi reconhecida e manifestada na Instrução Normativa DREI/ME nº 112, de 20 de janeiro de 2022. Ao se admitir que a SAF pode ser constituída por cisão (art. 2º, incido II) ou drop down (art. 3º), assume-se, ao mesmo tempo, que, pela diversidade, o regime jurídico que incidirá sobre a operação cambiará em função do caminho adotado. É na Lei das Sociedades por Ações (lei 6.404/1976) que se encontra o conceito de cisão: "Art. 229. A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão". Para que se opere essa modalidade de constituição da SAF, o clube deverá observar a ritualística prevista na Lei das Sociedades por Ações, que pressupõe: (i) segregação patrimonial; (ii) redução de patrimônio da entidade cindida; (iii) versão do acervo cindido para ao menos uma outra entidade, existente ou criada para esse fim; (iv) sucessão da cindida pela receptora (variando a extensão da sucessão de acordo com as características da operação); e (v) possibilidade de responsabilidade solidária entre cindida e receptora, a depender do regramento dado no ato de cisão e da preservação ou não da cindida pós-cisão.   Ora, é justamente por esses motivos, evidenciadores da fragilização da perspectiva de satisfação de eventuais créditos, que se prevê um sistema protetivo de credores, contido no art. 233 da mesma lei, a evitar que a operação se realize para prejudicar terceiros. Ocorre, porém, que o efeito segregacionista - e, portanto, redutor do patrimônio garantidor de credores - não se opera no drop down (ou na cisão imprópria), catalogado no art. 3º da Lei da SAF. Nessa hipótese, o patrimônio do clube não será cindido e transferido para nova entidade, em relação à qual o clube deixará de ter vinculação societária (e patrimonial); ao contrário: trata-se, isto sim, de uma transferência "para baixo", em que, na partida, todo o patrimônio transferido pelo clube deverá ingressar na SAF, sob a forma capital, subscrito exatamente pelo clube - e que comporá o seu patrimônio. Portanto: não existe separação e redução patrimonial no plano do clube, mas uma mutação contábil, que passará a expressar, no lugar de vários elementos do ativo e eventualmente do passivo (formadores do patrimônio "dropado"), uma participação em outra sociedade: na SAF. Ou seja: troca-se a titularidade direta pela titularidade indireta, via participação societária na SAF, dos ativos do futebol. Não ocorre, portanto, esvaziamento, mas substituição patrimonial. Os credores, no caso, passam a ter, ao invés de ativos distribuídos em várias outras categorias contábeis, as ações de uma companhia investida pelo clube para satisfazer seus direitos. No caso de drop down para constituição de SAF, a proteção é, por determinação legal, mais ampla do que a que se oferece a um credor de uma companhia ordinária que verte parcela de seu patrimônio para formação de outra companhia, porque, somente no caso de SAF, determina-se, como exemplos, que (i) um percentual dos dividendos recebidos pelo clube seja obrigatoriamente revertido para satisfação de obrigações anteriores e (ii) ela, SAF, seja subsidiariamente responsável caso as obrigações não se liquidem em certas circunstâncias e em certo tempo. Daí as falhas verificadas em interpretações ou decisões reconhecedoras da cisão de clube, quando na verdade se opera um drop down, que não funciona como operação redutora do patrimônio de sociedade empresária ou de clube que o promove.   Para concluir, é importante que, na constituição da SAF, não se lancem palavras ou se façam remissões desnecessárias, capazes de gerar confusões interpretativas, onde elas não existem, como as que se verificam, aparentemente, no caso do Cruzeiro (e que talvez tenham motivado o encaminhamento da decisão judicial atribuidora da responsabilidade da SAF por obrigações do clube). Aliás, mais do que isso: ao se afirmar, no art. 1º, parágrafo primeiro, do estatuto do Cruzeiro SAF, que ele se constitui mediante segregação e transferência de atividade do futebol, "em conformidade com o disposto no art. 2º, inciso II, e art. 3º, da Lei da SAF", comete-se, no caso concreto, uma contradição insuperável, de natureza formal, pois a constituição decorre de um ou de outro evento, e não de ambos. E, ao se analisar a ritualística adotada pelo Cruzeiro, não resta dúvida de que se operou um drop down, e não a cisão, na forma da Lei das Sociedades por Ações, que autorizaria, aí sim - e somente aí -, a extensão da pretensão responsabilizadora ao Cruzeiro SAF.
Como pode alguém que gosta de futebol não celebrar tudo de bom que tem acontecido nos últimos meses com o Botafogo de Futebol e Regatas? Os últimos nos vinham sendo de enormes dificuldades para o Time da Estrela Solitária, em face de gestões com todas as características ruins do modelo associativo, que, de mais a mais, não souberam explorar o potencial de uma torcida cujo amor, "ninguém cala". Muito ao contrário, os dirigentes eleitos em processos políticos afundaram o Clube em dívidas astronômicas e o levaram ao ostracismo no contexto das grandes disputas, que foram substituídas por idas vindas à Série B do campeonato nacional. O Glorioso é o time que mais cedeu jogadores para as seleções brasileiras em copas do mundo. O time de Garrincha, Nilton Santos, Didi, Amarildo, Zagallo, Jairzinho e Paulo Cezar Caju é protagonista da História vencedora do futebol brasileiro. Não poderia continuar trilhando o perigoso caminho que vinha seguindo. O Botafogo estava longe de ocupar o lugar condizente com sua grandeza, a bem da justiça histórica com o próprio futebol brasileiro e mundial e flertava perigosamente com um cenário de irreversível insolvência. Eis que então, também em razão do desprendimento de dirigentes atuais, mesmo que também oriundos do modelo associativo - justiça seja feita - o Botafogo teve a coragem de realizar a necessária mudança estrutural. Constituiu a SAF nos moldes da lei 14.193/2021 e permitiu a alienação de ações da companhia recém-constituída em favor de investidor estrangeiro. John Textor assumiu o controle do Botafogo SAF com um cronograma de aporte de recursos que permitiu a contratação de atletas para reforçar o elenco que vinha do acesso da Série B e um plano efetivo de enfrentamento das dívidas, a partir da utilização da ferramenta dos Modelos de Quitação de dívidas previstos na Lei da SAF. Seria justificável acreditar que o início da virada do Botafogo teria resultado, exclusivamente, da capacidade e disponibilidade do investidor para o aporte de recursos financeiros. Entretanto, os fatos mostram que não foi apenas isso. Da mesma forma, também é precipitado constatar que a mudança estaria consolidada, quando, saudando o bom começo, devemos reconhecer que ainda há um longo caminho a percorrer. Ocorre que, John Textor, com a experiência no comando de negócios envolvendo a transmissão de modalidades esportivas populares nos Estados Unidos e participação acionária em equipe que disputa o Campeonato Inglês de Futebol, agregou rapidamente conceitos de Esporte & Entretenimento aos jogos do Botafogo, principalmente aqueles realizados no Estádio Nilton Santos, além de uma profunda mudança nos processos internos de gestão. A combinação entre a montagem de um time competitivo, a retomada da autoestima e da confiança do torcedor e o conceito de que uma arena esportiva deve oferecer uma experiência de entretenimento que vá além dos 90 minutos de jogo resultaram em um dos espetáculos mais bonitos de se presenciar no futebol brasileiro atual: o Nilton Santos lotado e o maravilhoso apoio que os botafoguenses dão ao time, com seus cantos que transformam o jogo em uma ópera popular emocionante mesmo para aqueles que não comungam de suas cores. O conceito do investidor "frio e calculista", que só pensa nos lucros e menospreza paixão que move o futebol cai por terra, e constrange seus ainda resistentes defensores, no momento em que o bilionário empresário norte-americano entra em campo, passeia pela pista de atletismo ostentando a bandeira da Estrela Solitária, visivelmente emocionado com a reação da massa. Como ninguém havia pensado antes na ideia de o time com o nome de Botafogo entrar em campo saudado por candentes lança chamas? Chega a ser daquelas invenções que são tão belas, uma vez que até um pouco óbvias. Quem conhece os conceitos de Esporte & Entretenimento aplicados com sucesso nas modalidades norte-americanas e, cada vez mais, no futebol europeu, sabe que a exploração econômica do negócio não pode prescindir da emoção e da paixão dos fãs. Basta assistir às disputas atuais entre Liverpool e Manchester City na Premier League Inglesa, para se notar o enorme desafio retórico de quem pretenda seguir defendendo que os clubes-empresa não priorizam o bom futebol, os anseios do torcedor apaixonado, a vitória em jogos e conquistas de títulos ou que a substituição do modelo associativo pelo empresarial irá tornar o futebol um "negócio frio", sem o componente emocional. Os fatos se impõem. E nesse ponto contribui para a discussão a ótima série veiculada na HBO com o título "Lakers: Hora de vencer". A série se passa no final dos anos 70 e começo dos anos 80. Mostra o cenário de uma NBA - a Liga Americana de Basquete - muito diferente daquela que o Mundo assiste maravilhado hoje em dia. A NBA daqueles tempos vivia anos de decadência, ginásios sujos e descuidados, muito mais voltados a criar ambientes hostis para adversários do que conforto para o público, atletas despreocupados com o exemplo e as mensagens a serem transmitidas aos fãs, espetáculos esteticamente pobres, enfim, uma Liga triste que só atraia a atenção e a presença dos apreciadores mais fervorosos da modalidade. É triste constatar, mas a NBA daqueles tempos faz lembrar em muito o ambiente soturno e temerário de várias partidas da Taça Libertadores da América ou da Copa Sul-americana de hoje em dia. Mas, isso é tema para outro texto. Voltando à série, o argumento relata a aquisição do tradicional time de basquete de Los Angeles - os Lakers - por um investidor, Jerry Buss, que passa a defender e aplicar conceitos de Esporte & Entretenimento. A compra dos Lakers por Buss não só muda completamente a face da franquia, para além da montagem de uma das equipes mais fantásticas que a NBA já teve - os Lakers de Earving "Magic" Johnson, Kareem Abdul-Jabbar e Cia. levaram ao extremo a alcunha que receberam, de "Show Time", dentro e fora das quadras - mas também, provoca o início de uma revolução na própria NBA, quando, impulsionada pela jovialidade do futuro Gerente Geral David Stern, olha para os Lakers de Buss e passa aplicar suas premissas de organização para toda a Liga. Buss menciona, em diversos momentos, que uma arena esportiva somente será atraente se oferecer ao público, mais do que o entretenimento do jogo em si, opções de lazer antes, durante e depois da subida da bola laranja. "As pessoas quando saem de casa precisam viver uma experiência", diz o novo dono do time de basquete em seus textos ditos na série pelo brilhante ator John C. Reilly, o que vai muito além de presenciar em um evento esportivo, por mais disputado em alto nível que seja. Então, o ginásio dos Lakers passa a absorver e pulsar toda a efervescência da Los Angeles daqueles tempos. Uma casa noturna que funciona não só antes, durante e depois das partidas, mas também, em dias nos quais não havia jogos, serve para tornar a arena esportiva um lugar frequentado por artistas e celebridades. A série mostra momentos em que Buss, conhecido bon vivant, cuida de cada detalhe da boate, às vezes, com mais atenção do que aquela que dispensa, por exemplo, ao processo de escolha do treinador do time. As celebridades que passam a frequentar a casa noturna, criam, então, o hábito de "aparecer" nas primeiras fileiras de cadeiras estrategicamente instaladas à beira da quadra nos jogos. Em dado momento, Buss afirma, ao determinar o enviou de ingressos para toda a temporada ao ator e torcedor fanático Jack Nicholson, que "quem está na arquibancada precisa ver que grandes estrelas também vieram aqui assistir ao mesmo jogo que eles". É a aplicação prática do conceito de experiência, que coloca o torcedor como protagonista e parte integrante do evento, não só um mero expectador passivo. O conceito absorve para o interior da arena esportiva e explora a fixação da população da Meca do Cinema por celebridades. É ou não é uma sacada de mestre? O futuro mostrou o tamanho do sucesso obtido. Além de uma ótima aula sobre gestão do esporte, "Lakers: Hora de Vencer" tem um elenco em grande forma - além de Reily e de Quincy Isaiah, mais que atuando, "incorporando" Magic dentro e fora da quadra, o lendário treinador Pat Riley é interpretado pelo brilhante Adrien Brody de "O Pianista" - a série tem um diretor consagrado que traz uma linguagem de filmagem e fotografia autoral e interessantíssima, além de um roteiro que aborda diversos assuntos fundamentais que se desenvolvem em paralelo à abordagem esportiva. É dramaturgia de grande qualidade. Tal qual o Lakers dos anos 80, o Botafogo SAF de 2022 pode ser a fagulha - com o perdão do trocadilho - do ressurgimento, não só do Glorioso, mas de todo um novo futebol brasileiro, para mostrar que o estímulo à chegada de novos agentes aos nossos times, mais do que o fundamental aporte financeiro, pode contribuir para a implementação de novos conceitos de gestão do espetáculo esportivo, para quem sabe, em breve, tenhamos estádios pulsando de forma tão efervescente como hoje, a torcida do Fogão, consegue fazer no Estádio consagrado com o nome do Gênio Nilton Santos. Sempre que o Botafogo esteve nos seus melhores dias, assim também esteve o futebol brasileiro. Oxalá!
A receita da CBF, oriunda dos times que compõem as divisões dos campeonatos que ela organiza, é marginal em relação aos recursos provenientes da seleção brasileira, que atingiram, no ano de 2021, 84% de toda a arrecadação, conforme aponta o jornalista Rodrigo Capelo. Os 16% restantes distribuem-se em outras linhas de produtos ou serviços e não advêm apenas da exploração daquelas iniciativas. Ou seja, o seu core business tem duas cores: verde e amarela.  Importa anotar, ademais, que, para manutenção em alto nível de sua empresa futebolística, a entidade se aproveita, em convocações, de modo majoritário, de jogadores exportados pelos clubes nacionais, que se aperfeiçoam e concluem suas formações no exterior (sobretudo na Europa). A seleção pouco depende, portanto, conforme o sistema atual, dos jogadores em atividade no país. Os campeonatos que a CBF organiza, sob essa ótica, servem de vitrines para promoção de jovens; são espécies de shopping centers de commodities - veja-se, a propósito, a atualíssima negociação de Marquinhos, mais um talento formado nas bases do São Paulo, em Cotia, que está a caminho do Arsenal. Por outro lado, tais campeonatos não cumprem o papel de fortalecer as estruturas dos clubes e, a partir deles, de criar centros de formação, de inserção e de desenvolvimento esportivo, econômico e social. Esse estado de coisas contribuiu, com efeito, para transformação (i) do Brasil em  exportador de jogadores ainda em estágio de formação - o que poderia não ser um problema se a prática, disseminada entre praticamente todos os clubes, não ocorresse pela necessidade de levantamento de recursos emergenciais para pagamento de dívidas insolúveis, mas, sim, como reflexo de política de geração e formação, capaz de aumentar o fluxo externo sem afetar a estrutura interna - e (ii) dos times locais em meros instrumentos de passagem ao exterior. Daí a revelação que aproximadamente 11% dos negócios mundiais envolvem brasileiros - incluídos, na estatística, contratos de repatriação e negociações de atletas nacionais entre times estrangeiros. Também, a constatação que a falta de identificação com a torcida transforma candidatos a heróis em anti-heróis. Um dos remédios para reversão desse estado de coisas seria a instituição da liga de times, que teria como propósitos zelar pelo resgate, pelo fortalecimento e pelo desenvolvimento da atividade no país e, consequentemente, pela formação de um ambiente pujante e sustentável. Com ela, talvez se passe a adotar o lema reinante no ambiente esportivo norte-americano, no sentido de que times são rivais dentro de campo (ou de quadra), mas sócios fora dele. A liga, ao mesmo tempo, viabilizaria o ingresso de recursos imediatos nos caixas dos cambaleantes clubes brasileiros1. É aí que reside um ponto de atenção, sobre o qual pouco - ou nada - se fala. Veja-se: os clubes sociais, proprietários de empresas futebolísticas, eventualmente representativas de faturamentos que atingem centenas de milhões de reais, beneficiam-se de uma relação inquebrantável com seu público "consumidor", que lhes proporciona - ou deveria proporcionar - renda perpétua. Mais do que isso: tais clubes, que em sua origem tinham finalidades sociais ou amadoras, continuam a gozar de isenções tributárias indisponíveis a outros agentes ou setores da economia. Apesar dessas características únicas, o que produziram à sociedade? Bilhões em dívidas, sucateamento da estrutura patrimonial (com raras exceções) e uma indústria exportadora pautada nas necessidades imediatistas de sobrevivência e nos interesses de intermediários (que faturam, não raro, mais do que os próprios clubes) e dos destinatários europeus. Além, é sempre bom frisar, do aparelhamento da estrutura clubística pela casta cartolarial e seus interesses próprios. Por esses motivos, a imprensa e a sociedade em geral não deveriam perder a oportunidade de lançar e promover o seguinte debate sobre elemento fundamental, justificado pela natureza suis generis do futebol: como se controlará ou fiscalizará a destinação dos rios de recursos que fluirão, em decorrência da liga, para os caixas dos clubes, que, historicamente, evaporam à luz do dia (e na ausência dela, também)? Imagine-se, por exemplo, o caso do Cruzeiro. A cartolagem local, até a chegada de Ronaldo e sua equipe, cometeu a façanha de reduzir um dos mais vencedores times do País em uma massa-falida, sem recursos internos para se soerguer. Corrigindo-me. Não foi capaz de aniquilar um recurso, porque não se apresentou viável durante o reinado: justamente o ingresso do clube em eventual liga. Tivesse ela sido implementada sob o (des)comando da gente que o quebrou, é possível (para não se afirmar inevitável) que as receitas tivessem o mesmo destino que levou o clube a uma dívida bilionária. Sei que cada torcedor ou dirigente dirá: cada um com os seus problemas. Ocorre que o problema, no caso, é coletivo e abrangente, pois toca toda sociedade - e a própria sobrevivência sistêmica do esporte no país. Assim, como muitos cartolas se apresentam como representantes de nações torcedoras e ousam afirmar que seus times pertencem ao torcedor - figura de linguagem que, na prática, pretende preservar o cartolismo -, talvez fosse o momento de se exigir transparência absoluta, permanente e em tempo real a respeito das receitas a alocação de ingressos provenientes, ao menos, da entidade comercializadora dos direitos da liga - que adquirirá, em contrapartida, a prerrogativa de representação e exploração econômica por décadas. Fica aí a ideia, que poderá ser facilmente implementada por cada clube, mediante inserção de campo próprio em seu sítio eletrônico, e acompanhada (e fiscalizada) pelos, como dizem os dirigentes esportivos, "verdadeiros donos" dos times, a coletividade torcedora. __________ 1 E ainda beneficiaria a CBF que disporia de mais opções de jogadores para compor a seleção - e, consequentemente, para transacionar seus produtos.
quarta-feira, 11 de maio de 2022

Pra não dizer que não falei da Liga

Caminhando e seguindo rumo ao aniversário do primeiro ano, a Lei da SAF vai se acomodando e assim começa a produzir efeitos práticos através da modelagem por parte de alguns clubes e a incursão por tantos outros em medidas preparatórias, análise e assimilação. Era de se esperar que associações esportivas que até ontem flertavam com verdadeiro estado "pré-falimentar" se antecipassem na assunção do modelo, e daí começamos a verificar a adesão de importantes clubes à SAF como Cruzeiro, Botafogo e Vasco, enquanto muitos outros pelo Brasil e suas Séries têm levado a efeito seus estudos, aprovações em Conselhos, sondagens de mercado e outras ações destinadas à transformação mediata. Com o advento da possibilidade de captação direta e estruturação de passivos, a urgência ditou a opção da insolvência pela SAF, ao tempo que alguns vem formatando com menor açodamento e para poucos tem sido algo a conjugar sem a premência de quem está "da mão para a boca". Agora a bola da vez é a Liga. Sempre idealizada, sempre recorrente, a panaceia inalcançável... No curso da pandemia, ao lado da aprovação da SAF e da Lei do Mandante (além do decreto que incluiu as apostas de quota fixa no PPI, que quase ninguém trata), sua formação voltou com força ao centro do debate como sendo a solução definitiva. Em verdade, para resultar exitosa a modelação do pretendido mercado futebolístico brasileiro, estes aspectos e/ou oportunidades haveriam de ser desenvolvidos todos em conjunto, com aplicação concomitante. O primeiro movimento foi forjado "à fórceps" na última semana com a criação da LIBRA, que não contou de saída com a adesão total dos clubes das Séries A e B, algo que não é alvissareiro muito embora se reconheça o fato que teria que começar de alguma forma... Falta, lamentável e notadamente, coesão, capacidade de tentar "enxergar a montanha por detrás da floresta". Ao que consta, porém, haverá uma nova rodada de tratativas, desta feita com a participação de um número maior de associações esportivas na sede da CBF para tentativas de alinhamento. Somos todos iguais, braços dados ou não: a regra de ouro inicial da combinação haveria de ser a sujeição de todos a revisões periódicas: "olha, o que for combinado nessa mesa será revisto x, y, z anos". Ponto. E outra, não há como validar na Barra sem que se tenha força, e não se tem força se não estiverem todos no barco. E sem a CBF, não se tem nada, não existe.  Simples assim. Evidente o abismo existente e a dificuldade de se encontrar meios e critérios para que se atinja o que é certo, justo, no fim das contas razoável a todos os clubes. Claro que com a garantia de revisão breve, a partir de conceitos pré-definidos, possa-se render atratividade e a certeza de participação em um bom negócio... além da coesão, é necessário que se tenha desprendimento e também muita tenacidade. Disponibilidade para o assunto, através de tempo e de argumento. Altruísmo para compreender como podem ser melhor renúncias pela divisão de um bolo maior.   Pena tenha sido sempre assim. Em breve retrospectiva, o surgimento da união de clubes teve sua marca principal na formação do Clube dos 13, no início do processo de redemocratização do país na década de 1980 com o esvaziamento da política do "onde a Arena vai mal, mais um time no Nacional". Coisas boas foram urgidas, a negociação em bloco, atuação como garantidora dos clubes, temas interessantes aplicados por aquela cartolagem composta de muitos "Il Capo" que davam as cartas nos clubes à época... A passagem dos anos e a transição dos mandatários fez o cometimento esfriar até a sua implosão, consequência do enfrentamento de dois presidentes paulistas, em parte justificada. Até recentemente, via-se somente a figura efêmera do tal CNC. Sob essa bandeira, os clubes patrocinaram algumas ações nos últimos tempos, carimbadas pelo caráter circunstancial das demandas de momento; assim se reuniram para glosar a proposição inicial do Deputado Pedro Paulo em 2019, depois para "chorar as pitangas" quando deflagrada a pandemia em 2020 e, ainda, para protesto e reinvindicação na carta conjunta de 2021 quando do episódio Carlos Caboclo. Muito pouco, invariavelmente com marcas da falta de compromisso e de firme propósito comum, frágil para suportar a primeira discussão ou embate de natureza casuísta, como não faltaram exemplos nesse período. Vem, vamos embora, que esperar não é saber. Admitindo que num lampejo os clubes venham a se cotizar e escolham por trilhar o caminho virtuoso, muita coisa há se ser estruturada, a partir não só da adoção dos requisitos básicos de formatação jurídica adequada, governança, desenho da participação individual, regras de "compliance" e outras questões hoje tão caras à ordem do dia corporativo e que são de amplo acesso e fácil implantação (verdade que trabalhosa, porém não de alta indagação), mas sobretudo de estratégia através do estabelecimento de um plano. Onde queremos estar em 5, 10, 20 anos? Como, quanto cabe a cada um? Mas não é só, claro... A definição de um planejamento estratégico conjunto é imperiosa, como também é revisitar ou buscar bons exemplos. Negociação em bloco é pressuposto, mas aquela função garantidora do Clube dos 13 poderia avançar para a constituição pela Liga de um fundo, convencionando-se os critérios de sua formação, regras de acesso após alguns anos, etc... Lembremos que o "CNC" torceu o nariz para a proposição neste sentido do Deputado Pedro Paulo na ocasião, mas outra coisa é a "futura" Liga através de uma gestora assumir esse papel e controle. No tocante às transmissões e as novas possibilidades derivadas da Lei do Mandante, o modelo da FPF que foi adotado para o Campeonato Paulista 2022 é uma boa referência, a ser aprimorada e amplificada para disputas nacionais, a propósito, o produto envelopado há de ser recriado com inovação, mesmo ainda tendo eficácia (o torcedor é teimoso) o modelo atual está esgotado. A transição geracional também é algo a ser curado com muito carinho, de forma científica, afinal, são os consumidores do produto; além de fidelizar o adepto é necessária sua perenização, e aqui não tratamos somente dos filhos integrantes de toda uma nova geração seduzida por diversos outros interesses, militantes de outras plataformas, mas também dos pais e dos avós, aqueles que vem se deparando com a novidade do streaming, a dificuldade de se entender na cesta dos canais, um contingente que está sendo convidado a concluir que ficou tudo mais difícil e o tempo é outro. Também o desenvolvimento de vias alternativas de geração de atratividade e ampliação da sua base de consumo através da inserção no mundo dos E-Sports, da realização conjunta de ações sociais afirmativas. Sem falar na possibilidade de monetização de um mercado de apostas, eliminando a miopia da classe dirigente que hoje aceita dando "como bom" receber em média 40M ano para estampar um "BET" qualquer na camisa, renunciando a um mercado próprio que é estimado em cerca de 4 BI ano, operado na sua quase totalidade por empresas offshore. Quem sabe faz a hora não espera acontecer... É mandatório um consenso mínimo agora! É preciso anuir e iniciar com a garantia de uma breve revisão e ajuste. Não se pode mais tangenciar o próprio negócio. Não precisa virar amigo e convidar para tomar chopp em casa. Mas sim, com a necessária civilidade, mínima razoabilidade e união pelo interesse comum, procurar evoluir. Como inspiração, salta à memória um trecho extraído do prólogo de Joshua Robinson e Jonathan Clegg no festejado "A Liga", ao fim reproduzido, quando narram um encontro havido em Londres no final do ano de 2017 em uma "das reuniões que nunca foram ou são simples", onde se discute invariavelmente o "direito divino de se receber mais dinheiro", tomara tenhamos êxito parecido. "Eles eram os proprietários, executivos e plutocratas dos vinte clubes de futebol que disputavam a Premier League. E estavam se reunindo para se certificar de que sua galinha dos ovos de ouro, que gera mais de U$ 5,6 bilhões por temporada, continuaria engordando no mesmo ritmo astronômico do último quarto de século. Desde 1992, as receitas combinadas da Premier League aumentaram em 2.500%. Nada mal para um grupo de caras que, na sua maioria, se detestam". (Obra citada, Editora Versal, 1ª Edição, página 1)
A primeira - e talvez principal - lição que se extrai da série Sunderland 'Til I Die, disponível na plataforma Netflix, consiste na revelação da importância que o time de futebol exerce em relação à população da cidade que ostenta o mesmo nome. Localizada no nordeste da Inglaterra, Sunderland se manteve, durante décadas, de três atividades principais: mineração, indústria naval e pesca. Todas apresentaram, por distintos motivos, sinais inequívocos de decadência e deixaram rastros de desilusão e desemprego - sendo um ou o principal desses motivos, segundo a convicção local, a integração à União Europeia, o que se reflete na massiva votação favorável ao Brexit. É nesse ambiente que se introduz o mote da série: a paixão - que não deixa de ser uma válvula de escape aos problemas sociais e existenciais - pelo time. Afirma-se, aliás, em certa passagem (que deve ser contextualizada), que o time de futebol é a coisa mais importante que restou aos habitantes locais; uma espécie de sopro de esperança por dias gloriosos que se conheceram no passado. Antes de passar ao tema principal do presente texto - a relação das gentes com o esporte -, vale chamar atenção para o fato de que, até o ano que antecedeu o recorte cronológico adotado pela série, o Sunderland jogara 10 temporadas seguidas na Premier League, mas vinha de ser rebaixado para a "segunda divisão" inglesa, denominada Championship. Atualmente, o time disputa a League One, correspondente à terceira divisão nacional. Nem por isso a paixão - embora eventualmente tumultuada - se arrefece (mesmo que, em momentos extremos, se transfigure em raiva). Partindo-se, agora, do Brasil, o tema pode ser encarado sob dois ângulos. O primeiro, relaciona-se ao papel que o futebol poderia cumprir como atividade relevante tanto econômica, como socialmente. O segundo, envolve o enfrentamento e o solucionamento da relação (quase) eterna entre o torcedor e o veículo de detenção da propriedade de sua paixão - o clube -, historicamente manipulada por uma classe intermediária: a cartolarial.  Sobre o primeiro ponto, deve-se, é óbvio, evitar comparações absolutas. Inglaterra e Brasil não se confundem, assim como as conformações históricas e econômicas de (e do) Sunderland não encontrarão paralelo fidedigno em rincões locais e os times que os representam. Mesmo diante das diferenças, um elemento se prolifera e se imiscui nas realidades não apenas de cidades dos dois países, como de milhares e milhares de outras - sem eufemismo - espalhadas pelo planeta: o futebol. E aí se revela o pecado que se comete contra o Brasil e o brasileiro, em geral, por sucessivos governantes, que ignoram, solenemente, a importância da atividade - ignorância que é subvertida, via de regra, apenas para aproveitamento momentâneo de oportunidades egoísticas ou de posições políticas. Ou seja: o futebol não deveria ser tratado ora como mera expressão de entretenimento e, em outros momentos, como um fardo econômico, dado o seu bilionário estoque de dívidas, que se acumula à conta do contribuinte; isto é, do trabalhador brasileiro. Não é isso, de modo algum: sob uma forma organizacional que se aproximasse dos modelos dominantes europeus, mas olhando-se para e se apropriando da essência e das realidades locais - em uma espécie de processo antropofágico, sob o enfoque popular, e não elitista -, poder-se-ia alçá-lo ao posto de atividade nacional fundamental, promovedora de ascensão social e de desenvolvimento econômico. O futebol, para o Brasil, não pode se transformar no que o pau-brasil, o diamante, o café ou a borracha, em outros momentos, representaram, sob regimes extrativistas ou de exploração avassaladora; ao contrário, ter-se-ia, nele, a possibilidade de construção de um ambiente sustentável, pujante e tecnológico, visando, inclusive, o protagonismo regional e global.  Sob o segundo prisma da análise, o Estado e as gentes sempre foram coniventes com o cartolismo e com a apropriação da coisa popular por algumas (poucas) pessoas que, do ponto de vista prático, preocupam-se apenas com elas e os seus projetos particulares. Claro que há gente idealista e comprometida com um bem maior, mas, mesmo nessas situações especiais, a estrutura vigente engolia os ideais (e os idealistas), moendo e expelindo, com raras exceções - dentre elas o Athletico Paranaense -, mais do mesmo.  De todo modo, nenhum governante, assim como nenhum cartola, têm o direito de destruir uma relação - ou um sonho -, que se oferece a milhares de famílias ou brasileiros que apostam no futebol como elemento ascensional. Daí o dever moral e ético, diante da falência sistêmica do associativismo, de se promover uma evolução modelar, capaz de inserir a atividade que, a despeito de sua importância, mantinha-se, até a Lei da SAF, numa espécie de marginalidade econômica. A resistência do cartolismo, no caso, que se iniciou de modo silencioso e começa a se expressar com mais vigor, não expressa ato de bravura, mas de pactuação com o atraso e com o, de certo modo, descaso com o torcedor e o cidadão comum. Nesse sentido, às falácias históricas que sustentaram o modelo - tais como "o futebol é nosso", "a situação no Brasil é diferente" e o que funciona na Europa não funcionará por aqui, e "o torcedor não aceitará a entrada de investidor" -, soma-se uma que já se ensaia para justificar a manutenção do poder cartolarial: "a história e as glórias do passado têm um valor subjetivo, impeditivo da precificação de uma operação monetária". Mas não adianta achar que, num ambiente globalizado, competitivo e demandador de capitais, times tradicionais em crise - e quase todos estão, em maior ou menor intensidade - conseguirão retomar, apenas com a boa vontade de abnegados (ou com uma plataforma supostamente pautada na honestidade, ética e trabalho), as glórias pretéritas. Ou que os times em ascensão, que poderiam subverter o eixo de força do futebol nacional, como o Fortaleza, conseguirão repetir, de modo recorrente, façanhas como a de 2021, no campeonato brasileiro. Não vão.  O sistema jurídico, pela primeira vez, oferece aos clubes um caminho para que a passagem ao modelo empresarial ocorra num ambiente regulado, em que o próprio clube poderá, em decorrência de lei, exercer a função de guardião das tradições do time, de modo inafastável por qualquer pessoa ou investidor, independentemente de seu poder econômico. Esse é o fato da realidade: a Lei da SAF, de autoria do Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco, oferece, de modo inédito desde a introdução do futebol no País, caminhos - e não apenas um - para que, levando-se em conta a realidade de cada time, estruturem, se quiserem, projetos de resgate e afirmação de importância econômica e social, local, regional e nacional do futebol. O não querer tem muito mais - senão apenas - a ver com a sustentação de interesses privados do que com a aderência cultural da torcida. Porque não é para um grupo político ou para uma pessoa, travestida de salvadora, ou mesmo para um clube associativo, que se torce - é para o time, que expressa, aliás, um conjunto de valores que somente o respectivo torcedor sabe capturar.
quarta-feira, 27 de abril de 2022

Salve o Tricolor Paulista - Parte II

Em maio de 2021, logo após a conquista do título do Campeonato Paulista, publiquei, neste espaço, texto em que, sem desprezar o feito - o qual, considerando a história recente do São Paulo, não era mesmo desprezível -, indagava: "e agora?". A indagação tinha uma destinatária: a diretoria (e, em especial, seu presidente); e se sustentava em alguns motivos, dentre os quais: (i) o título pouco (ou nada) mudaria a situação esportiva, financeira e estrutural do clube; (ii) a ilusória narrativa do associativismo se afirmaria como elemento suficiente para resgatar as glórias do passado; e (iii) o discurso oficial rejeitava - como aparentemente ainda rejeita - os caminhos da construção de uma empresa futebolística sustentável, independente e pujante. Afirmou-se naquele texto, ademais, que o hiato que se formava em relação a outros times, como Flamengo e Palmeiras - sem falar da incomparabilidade com os principais times mundiais, posição que já fora ocupada pelo São Paulo -, tinha origens estruturais - e não conjunturais -, de modo que, com o passar do tempo, a irreversibilidade se tornava um fato da realidade, e não proveniente da retórica ou da elucubração de segmentos de oposição. As proposições não ecoaram. Ao contrário: a partir daquele momento, (i) tentou-se forjar a construção de uma imagem presidencial com traços messiânicos, (ii) criou-se um inimigo público (ou bode expiatório) - Daniel Alves - para satisfazer as necessidades raivosas das massas, (iii) tentou-se plantar a ideia de que o êxito esportivo se fundava numa reformulação do sistema gerencial e da planificação redentora e, óbvio, (iv) lançou-se a ideia de que, para gratificar tanto trabalho - como se ninguém mais trabalhasse -, o escolhido haveria de ter mais tempo no poder. Acreditou-se, no mesmo sentido, que a batalha política seria vencida pela propagação, por via de mídias sociais, de uma narrativa enunciadora de um mundo encantado, intercalado com notas e notícias de que as mazelas que surgiam (e não eram poucas) advinham de gestões passadas (mas estavam em processo de conserto).   De lá para cá, a situação se deteriorou rápida e perigosamente. Em meio à luta pela permanência na primeira divisão, lançou-se e defendeu-se uma reforma estatutária alcunhada, por correntes importantes da imprensa, de golpista, que desviou a atenção do que realmente importava à coletividade são paulina, em benefício do que era caro aos poucos e (verdadeiros) donos do São Paulo: uma dezena de cartolas. Após uma das piores campanhas em campeonato brasileiro da história, e depois da maior derrota de um grupo político de situação (também na história) - refiro-me à rejeição da proposta de reforma do estatuto -, reorganizou-se, como se nada tivesse ocorrido, a narrativa do trabalho árduo e cotidiano, do planejamento e modernização da gestão e do direcionamento do futuro glorioso, com base na competência de determinadas pessoas. Apelou-se, para tanto, a uma campanha que ainda cobrará seu preço, envolvendo um dos maiores ídolos do clube, por via de uma insincera afirmação de que se estava ou está "fechado com Ceni". Com Ceni que, diga-se, apesar de não ser a origem do problema, o time sofre algumas de suas maiores humilhações, as quais são tratadas, no plano das mídias sociais, como se fossem normais - ou motivadoras de simples tristeza. Parece, assim, que, no ambiente de virtualização das relações, perdeu-se a vergonha do escancaramento das intenções dissimuladas. Talvez não seja adequado trazer como elemento de comparação a ultra exposição da elite abastada, enquanto milhões de pessoas perecem pela mais desumana das causas: a fome. Ou talvez seja, sim, adequado, pois, no plano esportivo, a humilhação a que a torcida vem sendo submetida, enquanto uma pequena casta se embriaga com o poder, não tem precedentes históricos. Mas já se conhece bem o caminho de apaziguamento coletivo: a cada novo percalço, surgirão viagens ou notícias de bilionários de países absolutistas que estarão prontos a aportar petrodólares na formação de um elenco estrelado, sem exigir a propriedade acionária de uma SAF - porque, no São Paulo, tudo é diferente, as pessoas são diferentes e a sua grandeza, soberana. Esse estado de coisas invoca a pergunta central do texto publicado em 2021, formulada, lembre-se, logo após a conquista de um título, representativo da quebra de longo jejum: e agora? E agora, antes que as "profecias" se realizem, e times sem tradição histórica se tornem realmente relevantes e superiores àqueles que o foram - e não adianta maldizer a opinião do jornalista Flavio Prado, que aposta que o Bragantino será maior do que o São Paulo, pois o próprio Ceni afirmou, em entrevista, que o time do interior é grande (e joga Libertadores) -, não resta outro caminho ao da segregação da politicalha clubística da atividade futebolística. Aí está, aliás, a origem da decadência, na trajetória são-paulina, e que se espalha, há anos, em metástase. Só não reconhece quem não quer. Ou quem tem interesse em não reconhecer. Portanto: se a diretoria realmente quisesse (ou quiser) salvar o Tricolor Paulista, deveria fazer o que deve ser feito (e sabe que deve), mesmo que a façanha desagrade um punhado de cartolas. Especialmente porque trará esperança (e felicidade)  a 20 milhões de torcedores.
Dando continuidade aos textos publicados neste espaço ("Parte 1", "Parte 2", "Parte 3" e/ou "Parte 4"), reproduzem-se novas perguntas relacionadas à Lei da SAF e se apresentam, na sequência, as respectivas respostas. A numeração das perguntas seguirá a ordem já exposta nas Partes 1, 2, 3 e 4. A quem se aplica o Regime Centralizado de Execuções ("RCE"), previsto no art. 13 da Lei da SAF?  R. Aplica-se apenas ao clube (ou à pessoa jurídica original) que, voluntariamente, optar pelo RCE. A opção implicará a sujeição ao concurso de credores, concentrado no juízo centralizador de execuções. Este juízo promoverá arrecadações de receitas do clube e as distribuirá aos respectivos credores, na forma da Lei da SAF.  O clube (ou pessoa jurídica original) que não tiver constituído ou não estiver envolvido em projeto de constituição de SAF poderá adotar o RCE?  R. Pela Lei da SAF, não. Ela não regula condutas próprias de clube, exceto de modo instrumental à constituição ou de forma reflexiva da existência da SAF. O propósito do RCE, inserido na Seção V do Capítulo I, que trata justamente da constituição da SAF, consiste na formulação de um mecanismo de pagamento de obrigações de clube associado à implementação de modelo empresarial de gestão do futebol, por intermédio da SAF, que ostenta natureza mercantil e deve ser manejada conforme a Lei da SAF e a Lei das Sociedades por Ações. Apesar desse propósito, externado pelo Relator da Lei da SAF (Senador da República Carlos Portinho) e contido na Lei da SAF, certos tribunais adotaram entendimento diverso, concedendo ao clube, que não tenha constituído ou não tenha aprovado um projeto de constituição da SAF, o direito de aderir ao RCE.  A destinação ao clube, de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF, é imposta a toda (e qualquer) SAF ou apenas na hipótese de o clube ter optado pelo RCE? R. A imposição se restringe à SAF cujo clube que a constituiu tiver aderido ao RCE. A redação é inequívoca: "o clube (...) é responsável pelo pagamento das obrigações anteriores à constituição da Sociedade Anônima do Futebol, por meio de receitas próprias e das seguintes receitas que lhe serão transferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, quando constituída exclusivamente: I - por destinação de 20% (vinte por cento) das receitas correntes mensais auferidas pela Sociedade Anônima do Futebol, conforme plano aprovado pelos credores, nos termos do inciso I do caput do art. 13 desta Lei (...)". Este inciso trata apenas do RCE. A conexão é inevitável. Se o clube não houver optado pelo RCE, a destinação legal, de 20%, não se aplica.   Qual o prazo previsto pela Lei da SAF para que o clube pague os credores sujeitos ao RCE?   R. O prazo de pagamento é de 6 anos (art. 15 da Lei da SAF). Importante: caso o clube comprove o pagamento de pelo menos 60% de suas obrigações sujeitas ao RCE (ou passivo original, conforme expressão da Lei da SAF), será permitida a prorrogação do prazo por mais 4 anos. Durante o período de extensão, o percentual de destinação de receita da SAF para o clube devedor poderá ser reduzido pelo juízo centralizador de 20% para 15%. A Lei da SAF prevê alguma consequência para o caso de o clube não pagar os credores no prazo que ela estipula? R. Sim. Como regra geral, contida no art. 9º da Lei da SAF, a SAF não responde pelas obrigações do clube que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição. Porém, no caso específico da opção pelo RCE, se o prazo de pagamento não for cumprido ao longo de 6 ou 10 anos, conforme o caso, a SAF passará a responder subsidiariamente pelo pagamento das obrigações cíveis e trabalhistas do clube anteriores à sua constituição. Um credor poderá converter crédito em ações da SAF? R. A Lei da SAF prevê expressamente a possibilidade. Mas não se trata de uma imposição à SAF ou ao clube. O processo de conversão deverá ser negociado e atender aos interesses de todos os envolvidos - credor, devedor (clube) e SAF.   A Lei da SAF prevê um regime de tributação específica? Se a resposta for afirmativa, qual é o seu conteúdo?   R. Sim. Trata-se do Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF), que impõe à SAF um recolhimento mensal dos seguintes tributos: IRPJ, CSLL, PIS, Cofins e determinadas contribuições previstas na lei 8.212/1991, calculados sobre a receita mensal. Nos 5 primeiros anos a contar da constituição da SAF, a alíquota aplicável será de 5% das receitas mensais. O conceito de receita mensal abrange todas as receitas da SAF, excluídas as oriundas de cessão dos direitos desportivos de atletas (que é, portanto, afastada da base de cálculo). Porém, a partir do sexto ano, a alíquota é reduzida para 4%, e incidirá sobre a receita mensal, acrescida dos valores oriundos da cessão dos direitos desportivos de atletas (que são, então, incorporados, após o decurso do prazo quinquenal, à base de cálculo). Do que se trata o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social ("PDE"), criado pela Lei da SAF? A SAF poderá ou deverá instituir o PDE?  R. Trata-se de programa que pretende promover medidas em prol do desenvolvimento do futebol, por intermédio da educação, e da educação, por intermédio do futebol. O convênio é mandatório. A SAF não poderá afastá-lo ou evitá-lo. A Lei da SAF lista, de modo exemplificativo, algumas ações que poderão ser adotadas no âmbito do PDE, tais como: (i) reforma ou construção de escola pública, bem como na manutenção de quadra ou campo destinado à prática do futebol; (ii) instituição de sistema de transporte dos alunos qualificados à participação no convênio, na hipótese de a quadra ou o campo não se localizar nas dependências da escola; (iii) alimentação dos alunos durante os períodos de recreação futebolística e de treinamento; e (iv) capacitação de ex-jogadores profissionais de futebol, para ministrar e conduzir as atividades no âmbito do convênio.   Outras dúvidas, ainda não abordadas nas Partes 1, 2, 3 ou 4, bem como nesta Parte 5, poderão ser apresentadas, em colunas futuras, à medida que forem surgindo no âmbito de debates ou de projetos que envolvam a SAF. Espera-se, assim, que, por ora, as 50 respostas ao lote de 50 perguntas formuladas neste e nos textos anteriores contribuam para compreensão e necessária afirmação da Lei da SAF. 
Dando continuidade aos textos publicados neste espaço ("Parte 1", "Parte 2" e/ou "Parte 3"), reproduzem-se novas perguntas relacionadas à Lei da SAF e se apresentam, na sequência, as respectivas respostas. A numeração das perguntas seguirá a ordem já exposta nas Partes 1, 2 e 3. Qual é a extensão da responsabilidade dos administradores da SAF? R: Os administradores da SAF sujeitam-se a um sofisticado regime de deveres e obrigações previstos, de modo específico, na Lei da SAF e, de modo geral, na Lei das Sociedades por Ações, que incluem deveres de diligência, lealdade, de não agir em conflito de interesses e de informar, além do dever de não promover desvio de atribuição e de poder. Como regra geral, o administrador da SAF - e de qualquer companhia - não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da SAF em decorrência de ato regular de gestão; mas responde pelos prejuízos que causar quando agir (i) com culpa ou dolo (mesmo dentro de suas atribuições) ou (ii) com violação da lei ou do estatuto. Quem responde pelas obrigações do clube, anteriores ou posteriores à constituição da SAF?  R: O clube é responsável por suas obrigações. A SAF, como regra geral, não deve responder pelo clube. Mas ela será responsável pelas obrigações do clube expressamente transferidas no ato de sua constituição, desde que sejam relacionadas ao seu objeto social. O que não for transferido, permanecerá sob a responsabilidade do clube. A SAF deverá transferir recursos para o clube? Em quais circunstâncias? R: Toda companhia - a SAF é uma espécie de companhia - tem como propósito a geração de excedentes para distribuição aos seus acionistas. Assim, parte do lucro do exercício deverá ser distribuída. O estatuto da SAF poderá fixar o montante de dividendo mínimo que somente deixará de ser distribuído em hipóteses especiais. Se o clube for acionista único da SAF, receberá 100% da distribuição; se sua participação for de 10%, esse será o montante que receberá. Além disso, a Lei da SAF prevê, no art. 10, que, na hipótese de opção pelo Regime Centralizado de Execuções ("RCE") (tema que será objeto de um artigo próprio) - e apenas nesse caso -, 20% das receitas correntes mensais devem ser direcionadas ao clube ou pessoa jurídica original, para pagamento de obrigações anteriores à constituição da SAF.  A Lei da SAF prevê modos de quitação das obrigações do clube, anteriores à constituição da SAF?  R: Sim. Além do pagamento direto de credores, com recursos próprios oriundos de todas e quaisquer fontes, a Lei da SAF prevê dois modos especiais de quitação em seu art. 13: o concurso de credores, por intermédio do RCE, ou a recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da lei 11.101/05. A SAF pode requerer recuperação judicial?  R: A recuperação judicial é disciplinada na lei 11.101/2005. Ela se aplica ao empresário e à sociedade empresária. A SAF é uma espécie de sociedade empresária, logo sujeita à incidência das normas contidas naquela lei. Portanto, sim, a SAF pode requerer recuperação judicial. O clube pode requer recuperação judicial? R: O clube costuma ser constituído sob a forma de associação sem fins lucrativos, e não se confunde com o empresário ou com a sociedade empresária - que sempre perquire a lucratividade para distribuição parcial aos seus sócios. Assim, o clube não poderia, em princípio, requer recuperação judicial. Mas a Lei da SAF trouxe uma novidade, ao prever, no art. 13, que o clube poderá pagar suas obrigações por meio de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos da lei 11.101/05. Portanto, com o advento da Lei da SAF, o clube poderá, como regra geral, requer sua recuperação, judicial ou extrajudicial. A SAF pode falir?  R: Sim, todo empresário ou sociedade empresária pode, eventualmente, falir. A SAF, pela sua natureza empresarial, sujeita-se ao mesmo destino.   O clube pode falir?  R: Se o clube pode requer recuperação judicial, também poderá falir. Ela pode decorrer (i) da convolação da própria recuperação judicial requerida pelo clube em falência, conforme alguma das hipóteses previstas na Lei 11.101/05 (como pela deliberação da assembleia geral de credores ou pela não apresentação de plano de recuperação pelo clube), ou (ii) de pedido de credor. Se o clube falir, a atividade futebolística será extinta?  R:  A falência tem, dentre outros, o propósito de preservar e de otimizar a utilização produtiva dos bens, dos ativos e dos recursos produtivos, inclusive os intangíveis, do falido. Trata-se, assim, de acordo com a Lei 11.101/05, de mecanismo de "preservação de benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial, por meio da liquidação imediata do devedor e da rápida realocação útil de ativos na economia". Liquida-se, pois, o devedor - SAF ou clube - e não necessariamente a atividade futebolística (o time), que poderá, conforme condições a serem verificadas em cada caso, ser adquirida e continuada sob o controle de outra sociedade empresária (ou SAF), preservando-se, pois, a relação entre torcedor e time. A Lei da SAF prevê meios específicos de financiamento da atividade futebolística desenvolvida pela SAF?  R: Sim, a debênture-fut, que é um valor mobiliário, representativo de uma obrigação (ou dívida) da SAF, e que confere ao seu detentor direito de crédito contra a própria SAF. Os recursos captados pela SAF por intermédio da emissão de debenture-fut "deverão ser alocados no desenvolvimento de atividades ou no pagamento de gastos, despesas ou dívidas relacionados às atividades típicas da Sociedade Anônima do Futebol" (art. 26, § 1º). A Lei da SAF prevê algum incentivo para fomentar a emissão e a formação de um mercado de debênture-fut, voltado ao financiamento da atividade futebolística no país?  R: O incentivo previsto na Lei da SAF foi vetado pelo Presidente da República. Previa-se que os rendimentos decorrentes da aplicação em debênture-fut ficariam sujeitos à incidência de imposto sobre a renda, com alíquotas de (i) zero quando auferidos por pessoa física residente no país, e (ii) 15% quando auferidos por pessoa jurídica ou fundo domiciliado no país ou por qualquer investidor estrangeiro. Com o veto, o incentivo caiu e os ganhos auferidos por investidores sujeitam-se às normas gerais e aplicáveis de tributação. Além da debênture-fut, a SAF poderá emitir outros valores mobiliários para financiamento de suas atividades?  R: Sim, poderá emitir qualquer valor mobiliário ou outro instrumento de dívida disponível às companhias em geral, observada a regulação própria, exceto aqueles concebidos especialmente para desenvolver setores específicos (p.ex., o certificado de recebível do agronegócio -CRA -, que se origina de relações entre produtores rurais e terceiros, vinculados à produção, comercialização, beneficiamento ou industrialização de produtos e insumos agropecuários). Outras dúvidas, ainda não abordadas nas Partes 1, 2 ou 3, bem como nesta Parte 4, serão apresentadas - e respondidas - nas colunas seguintes.
No último dia 17 de março de 2022, foi publicada sentença nos autos da ação trabalhista 0010052-44.2022.5.03.0012, julgada pela MM. Juíza da 12ª Vara do Trabalho de Belo Horizonte. A sentença, em síntese, reconheceu a responsabilidade da SAF constituída pelo Cruzeiro Esporte Clube (Reclamado) por valores supostamente devidos pelo Cruzeiro Esporte Clube, anteriores à constituição da SAF, ao Reclamante. O primeiro ponto a ser obrigatoriamente mencionado é o mais profundo respeito pela atividade jurisdicional exercida pela Douta Magistrada, no pleno e regular exercício de sua função de presidir os feitos judiciais e julgar as demandas de acordo com o seu melhor entendimento. Por mais que a sua decisão tenha sido, aqui e acolá, utilizada para fomentar "discursos apocalípticos", por aqueles que, desde a edição da Lei 14.193/2021, se propõem a fazer o papel de "coveiros da SAF" a cada situação natural que imponha novos desafios ao indispensável processo de evolução do futebol brasileiro - ora é uma decisão judicial, ora é a repactuação de termos do negócio em algum grande clube brasileiro - tais situações são absolutamente naturais e previsíveis. A Douta Magistrada julgou a ação trabalhista sob sua competência com fundamentos que lhe pareceram pertinentes. Refutáveis, sim? Respeitáveis, sempre! Discordar dos fundamentos da decisão, como pretendemos fazer, não configura, nem pode configurar, qualquer espécie de desconsideração, desrespeito ou qualquer tipo de argumentação - ad personam - que só serviriam para desqualificar o debate, como, infelizmente, muito se vê nesses tempos difíceis em que nos encontramos. Tampouco um entendimento emanado em uma ação judicial é capaz de inviabilizar todo o movimento de criação de uma norma de estímulo à adoção da organização profissional pelos clubes de futebol do Brasil, respaldada pela sociedade na edição pelos seus representantes legitimados. Aos pontos da decisão. A sentença menciona o artigo 9º da Lei 14.193/2022, apontando que "não se trata de vedação absoluta" à possibilidade de sucessão pela SAF das dívidas do Clube. E nisso tem razão. O artigo citado não veio extinguir a possibilidade de sucessão. Porém, criou situações especiais para a aplicação dos seus efeitos. A sucessão não foi extinta, mas sim, foi mantida, todavia em prazo e condições especiais definidas pela Lei. A Lei da SAF criou um Regime Centralizado de Execução para possibilitar a apresentação de um plano de pagamento das dívidas anteriormente contraídas pelo Clube, mediante diversas e determinadas condições e num prazo de 6 anos que pode ser prorrogado por mais 4 anos. Tanto a Lei da SAF não extinguiu a possibilidade de sucessão das dívidas do Clube pela SAF, que o artigo 24 da Lei prevê que a SAF responde pelas dívidas do Clube, subsidiariamente, se ao final do prazo que pode chegar a 10 anos do RCE, as dívidas não tiverem sido quitadas. Ou seja, há sucessão, como dito, mas diferida no tempo e em condições específicas. A Lei da SAF também impõe obrigações expressas a serem assumidas pela SAF quando do ingresso do Clube no RCE, tais como: a destinação de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF e a destinação de 50% dos dividendos, juros sobre o capital próprio ou outra remuneração recebida na condição de acionistas. Portanto, a Lei da SAF não aboliu a possibilidade de sucessão. Ao contrário, a manteve, mas em condições especiais. Com repasse de receitas da SAF ao clube - ou seja, obrigação da SAF -, com prazo para pagamento de 60% e depois de 100% da dívida, pela responsabilidade subsidiaria da SAF caso o pagamento não seja realizado pelo Clube no prazo. E, ainda, com responsabilização do Clube e dos dirigentes caso os valores dos repasses aqui mencionados não forem usados estritamente para amortização das dívidas. Não é correto dizer que o texto legal tenha mantido a SAF absolutamente indene em relação às dívidas anteriores do Clube que a constituiu. A SAF, em condições especiais, segue tendo obrigações em relação a tais dívidas e, no prazo, inclusive poderá assumi-las, subsidiariamente. Ou seja, e aqui é preciso que se diga, que o argumento de que "as mazelas do Futebol não poderão ser regularizadas à custa do sacrifício dos trabalhadores" é injusta se aplicável ao caso. Sob o ponto de vista da função social da norma, a Lei da SAF criou para o trabalhador com crédito diante do Clube uma perspectiva de recebimento que, em muitos casos, antes da SAF sequer existia. Antes da constituição da SAF, o Reclamante tinha a perspectiva longínqua de receber seu alegado crédito de uma associação, com dívida perto de 1 bilhão e tantos outros credores, sem nenhuma perspectiva de entrada de novas receitas. Com a SAF, o Reclamante pode se fiar no repasse de receitas e valores de dividendos, na adoção de um plano de pagamento a ser homologado em Juízo e com a obrigação da SAF de quitar a dívida no tempo. A sentença traz fundamento verdadeiro ao mencionar que a SAF poderá sofrer constrições pelas obrigações anteriores à sua constituição, caso o Clube não cumpra as condições de pagamento das dívidas anteriores previstas na Lei 14.193/21. Mutatis mutandis, esse mesmo fundamento também pode ser utilizado para amparar o entendimento de que, enquanto a SAF estiver realizando os repasses previstos em Lei e o Clube arcando com as demais obrigações legais, não há justificativa para aplicação imediata do preceito da sucessão. Sobre a alegação de que a ressalva "às atividades específicas de seu objeto social" serviria para tornar a SAF imediatamente sucessora em todas as dívidas decorrentes da atividade do futebol, é fato incontroverso que não foi essa a intenção do legislador. Por óbvio, as dívidas mais relevantes dos clubes de futebol são aquelas originadas da atividade do futebol. Se a ressalva prevista em Lei fosse suficiente para excetuar todas as dívidas decorrentes do futebol de todo o mecanismo de quitação de débitos trazido pela Lei 14.193/2022, teria o legislador criado e refletido na norma mecanismo inútil, porque inaplicável para o "grosso" das dívidas. Sobre o tema, aliás, vale a lição de Rodrigo Monteiro de Castro, um dos autores do texto legal: "No tocante às atividades específicas do objeto social da SAF, a determinação legislativa foi em outro sentido: a SAF responderá pelas obrigações que lhe forem (expressamente) transferidas (e que somente poderão estar associadas ao seu objeto), conforme disposto no parágrafo 2°, do art. 2° da Lei 14.193/21." (n.g.)1 A toda prova, a Lei 14.193/2021 expressamente afastou a possibilidade imediata de sucessão pela SAF de dívidas originadas por atividades não ligadas à prática do futebol profissional pelo Clube, bem como oriundas de relações que se extinguiram antes da constituição da SAF, como se verifica no caso que foi objeto da sentença. Porém, o afastamento da responsabilidade da SAF advinda da sucessão não é, nem jamais se pretendeu ser absoluta - e nisso também acertou a sentença - porque a mesma legislação incumbiu obrigações à SAF a partir da adesão do clube ao Regime Centralizado de Execução e prazo para pagamento das dívidas pelo Clube, antes que a SAF as assuma, subsidiariamente. Ao não aplicar norma expressa da Lei 14.193/2021, a sentença, com todo respeito, derroga legislação que foi aprovada pelo Congresso Nacional e sancionada pelo Poder Executivo, na estrita observância do regular processo legislativo, refletindo a vontade da sociedade, por seus representantes, em ver em vigor norma de estímulo à adoção do modelo empresarial pelos clubes de futebol brasileiro. A sociedade, por seus representantes, optou por inserir disposições específicas para o pagamento das dívidas dos Clubes de futebol anteriores à constituição da SAF, como forma de estimular a migração do modelo associativo para o modelo empresarial. Tal vontade e representação devem ser respeitadas, visto que sobre elas, a sentença não apontou sequer vício constitucional, o que poderia fazer em controle difuso. No que diz respeito ao conceito de grupo econômico previsto no art. 2º da CLT, o primeiro elemento a ser citado é que, lei especial e posterior à CLT - no caso a Lei 14.193/2021, veio afastar, não o conceito em si, mas seus efeitos imediatos para o caso de constituição da SAF e adesão pelo Clube ao RCE. Norma de hermenêutica aplica-se ao caso: lei posterior e especial prevalece em relação à lei anterior e geral. No caso, a Lei 14.193/2021, posterior e específica em relação à CLT, jamais pretendeu tornar letra morta a norma prevista no artigo 2º da CLT, mas sim, mitigar seus efeitos em condições especiais e no tempo. E isso já se dá na prática, na própria atividade do atleta de futebol. A Lei 9.615/98 prevê condições específicas para rescisão do contrato do jogador, que prevalecem em relação à norma geral da CLT. Nada mais consolidado em nosso ordenamento. O mesmo fenômeno se aplica à norma que regulamenta a atividade do artista, a atividade do trabalhador embarcado... vis-à-vis o que determina a regra geral anterior da CLT. __________ 1 Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol - Lei 14.193/2021 - São Paulo, Quartier Latin, 2021, pag. 142.
Dando continuidade aos textos publicados neste mesmo espaço ("Parte 1 ou Parte 2"), reproduzem-se novas perguntas relacionadas à Lei da SAF e se apresentam, na sequência, as respectivas respostas. A numeração das perguntas seguirá a ordem já exposta nas Parte 1 e 2. Como se constitui a SAF?  R: A SAF se constitui por 4 vias: (i) pela transformação do clube em SAF, operando-se uma mutação da natureza jurídica. Ou seja, a associação deixa de existir e em seu lugar surge uma empresa. Por isso, os associados passam à posição de sócios (ou acionistas) da SAF; (ii) pela cisão (ou separação) do departamento de futebol do clube, caso em que parcela do patrimônio do clube é segregada e direcionada à SAF, e, ao final, clube e a SAF coexistirão, com as seguintes características: o clube não terá participação na SAF, a parcela do patrimônio cindido do clube se incorporará ao patrimônio da SAF (reduzindo, consequentemente, o patrimônio do clube) e os associados serão, ao mesmo tempo, associados do clube e sócios (ou acionistas) da SAF, conforme indicado a seguir: (iii) pela iniciativa de pessoa física ou jurídica, ou de fundo de investimento, que cria SAF; e, por fim, (iv) mediante a transferência de ativos do clube para a SAF (drop down), sem redução patrimonial (pois o patrimônio transferido é substituído por ações de emissão da SAF), sendo que o próprio clube, e não os seus associados, torna-se acionista da SAF. Essa via está prevista no art. 3º da Lei da SAF, segundo o qual "o clube (...) poderá integralizar a sua parcela ao capital social na Sociedade Anônima do Futebol por meio da transferência à companhia de seus ativos (...)". O quadro abaixo expressa a estrutura dessa forma constitutiva: Quais elementos do patrimônio do clube deverão ser transferidos, na cisão ou no drop down, para SAF?  R: Obrigatoriamente, os direitos e deveres decorrentes de relações estabelecidas com entidades de administração (federações e confederação), bem como contratos de trabalho, de uso de imagem ou quaisquer outros contratos vinculados à atividade do futebol. Os demais ativos deverão ser tratados casuística e oportunamente, conforme a situação e a pretensão de cada clube, e as expectativas de eventuais parceiros ou investidores. Nesse sentido, temas como uso de marca e remuneração (royalty), e propriedade ou uso de instalações esportivas (estádio, arena e centro de treinamento), receberão o tratamento pactuado pelas partes envolvidas no negócio. Como fica a relação entre clube e federações ou confederação após a constituição da SAF?  R: A relação se interrompe. O clube não manterá relação com federação ou confederação. As posições passam a ser exercidas pela SAF, apenas. A SAF poderá exercer outras atividades, além do futebol? R: Não. A SAF não poderá exercer outras práticas esportivas. Seu objeto é, nesse sentido, monotemático. Dentro da abrangência futebolística, o objeto da SAF poderá compreender, dentre outras atividades, (i) o fomento e o desenvolvimento de atividades relacionadas com a prática do futebol, obrigatoriamente nas suas modalidades feminina e masculina, (ii) a formação de atleta profissional de futebol, nas modalidades feminina e masculina, e a obtenção de receitas decorrentes da transação dos seus direitos desportivos, (iii) a exploração, sob qualquer forma, dos direitos de propriedade intelectual de sua titularidade ou dos quais seja cessionária, incluídos os cedidos pelo clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, (iv) a exploração de direitos de propriedade intelectual de terceiros, relacionados ao futebol, e (v) a exploração econômica de ativos, inclusive imobiliários, sobre os quais detenha direitos.  A SAF poderá participar de outra sociedade?  R: Sim. O inciso VII do art. 1º autoriza a participação da SAF em outra sociedade, no território nacional, cujo objeto seja uma ou mais atividades mencionadas na resposta anterior. A SAF poderá participar de uma sociedade no exterior?  R: Diretamente, não. A vedação está prevista no inciso VII do art. 1º. O investimento em sociedade estrangeira somente se poderá realizar de modo indireto, por intermédio de outra sociedade brasileira, na qual a SAF detenha participação, a qual, por sua vez, participará e investirá na sociedade estrangeira. A Lei da SAF impõe um sistema próprio (e obrigatório) de governança?  R: Sim. Há uma seção na Lei da SAF (Seção III) dirigida ao governo da SAF. Na SAF - ao contrário do que ocorre nas demais companhias -, o conselho de administração e o conselho fiscal têm existência obrigatória e funcionamento permanente, em qualquer caso. De acordo com a Lei das Sociedades por Ações, compete ao primeiro órgão, dentre outras matérias, fixar a orientação geral da SAF e fiscalizar a gestão dos diretores. Já o conselho fiscal tem competência, por exemplo, para fiscalizar os atos da administração (inclusive do conselho de administração), opinar sobre o relatório da administração e denunciar os erros, fraudes ou crimes que descobrirem. Além desses órgãos, a SAF terá, obrigatória e necessariamente, uma diretoria. Os diretores deverão se dedicar exclusivamente à SAF - não podendo, portanto, exercer outras funções em outras empresas -, observados, sobre o tema, os critérios estabelecidos no estatuto. Quem pode e quem não pode ser eleito para os órgãos de administração (conselho e diretoria) e de fiscalização da SAF? R: Não poderão integrar qualquer um desses órgãos: (i) membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de outra SAF; (ii) membro de qualquer órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de um clube ou de uma pessoa jurídica original, salvo do clube que constituiu a própria SAF; (iii) membro de órgão de administração, deliberação ou fiscalização, bem como de órgão executivo, de federação ou de confederação (no caso, da CBF); (iv) atleta profissional de futebol com contrato de trabalho desportivo vigente; (v) treinador de futebol em atividade com contrato celebrado com clube, pessoa jurídica original ou SAF; e (vi) árbitro de futebol em atividade. Além dessas vedações, também não poderá ser eleito para o conselho fiscal ou para diretoria: (a) o empregado; ou (b) o membro de qualquer órgão, eletivo ou não, de administração, deliberação ou fiscalização do clube (ou da pessoa jurídica original), enquanto o clube for acionista da SAF. Ou seja: o diretor do clube ou o membro do conselho deliberativo, por exemplo, não poderá ser diretor ou integrante do conselho fiscal da SAF de que o clube for acionista. Os administradores poderão ser remunerados? Há alguma regra especial sobre o tema?   R: Mais do que isso: deverão. A SAF é uma companhia e, como tal, tem fim lucrativo. Os administradores se sujeitam a um sistema de deveres e responsabilidades, previsto na Lei das Sociedades por Ações. A contrapartida das posições que exercem, do trabalho a que se dedicam e da responsabilidade que assumem, é a remuneração. A remuneração é fixada pela assembleia geral de acionistas da SAF. O parágrafo 3º, do art. 5º da Lei da SAF estabelece exceções àquele princípio geral, com o propósito de evitar situações conflituosas ou de utilização da SAF para recebimento de vantagens, não admitidas no âmbito do clube. Assim, não poderá receber nenhuma remuneração o membro do conselho de administração que, cumulativamente, for (i) associado e (ii) integrar qualquer órgão, eletivo ou não, de administração, deliberação ou fiscalização do clube que constituir e for acionista da SAF. A pessoa que apresentar essas características poderá ser indicada e assumir a função de membro do conselho de administração, mas não poderá ser remunerada. A SAF deverá publicar informações e atas de assembleias ou reuniões realizadas por acionistas e administradores?  R: Sim. A SAF deverá manter em seu sítio eletrônico e atualizar, mensalmente (conforme aplicável), (i) o estatuto social, (ii) as atas das assembleias gerais, (iii) a composição e a biografia dos membros do conselho de administração, do conselho fiscal e da diretoria, e (iv) o relatório da administração sobre os negócios sociais e os principais fatos administrativos da SAF. A inobservância da obrigação de manutenção e atualização implicará responsabilização pessoal dos administradores da SAF.  Outras dúvidas, ainda não abordadas nas Parte 1 ou 2, bem como nesta Parte 3, serão apresentadas - e respondidas - nas colunas seguintes.
Não pretendia abordar o assunto, descrito no título, neste momento. Mas a assiduidade com que ele vem aparecendo na mídia, nos últimos dias, fez-me antecipá-lo. Antes, relato uma conversa que tive, há uns 5 anos, na B3 (à época denominada BM&FBovespa), por ocasião de reservado almoço oferecido pelo seu então Presidente, Edemir Pinto, a Raí. O propósito era, além do encontro de dois ícones em suas áreas de atuação, falar sobre o projeto de lei que criava a SAF e de seus impactos no mercado. Eu talvez não seja preciso - ou melhor, não serei preciso - nas referências que foram utilizadas, pelo Presidente da Bolsa, para apontar o desafio que envolve a formação do mercado do futebol, mas, disse ele, e espero que minha memória não me traia, que a companhia mais exposta na mídia brasileira não geraria mais informação, boato e especulação, em um ano, do que um grande time em apenas uma semana (ou talvez ele tenha dito em um mês). Daí a complexidade do enquadramento e do cumprimento, por uma SAF de capital aberto (com ações negociadas em bolsa), de normas de mercado, como como as que exigem a divulgação, por intermédio de fato relevante, de decisões, atos, fatos ou negócios que possam influir na cotação das ações ou na decisão de investidor de comprar, vender ou manter ações da SAF. Imagine-se, nesse sentido, que toda especulação relacionada à saída ou à chegada de um treinador ou de um jogador, ou mesmo um desentendimento interno entre jogador e comissão técnica, ou uma possível lesão de determinado craque, devesse ser explicada, em termos regulatórios, a acionistas e ao mercado em geral. Seria uma panaceia. A experiência internacional, envolvendo times controlados por companhias cujas ações são negociadas em bolsa, mostra que a utilização de tal expediente ocorre de modo parcimonioso, e quando se trata de algo realmente essencial. No mais, a boataria se mantém como uma prática inafastável da cobertura futebolística. A situação do Cruzeiro e de seu possível investidor, Ronaldo, pode ser analisada sob a mesma ótica. Numa operação societária, em que um agente se dispõe a investir recursos em outro agente, resultando na modificação da estrutura de poder do investido, é muito comum, para não se afirmar que é inevitável, que, desde a celebração de um memorando de entendimentos, por exemplo, até a consumação dos negócios pretendidos (com a celebração dos contratos definitivos), ajustes ocorram e desentendimentos a respeito de cláusulas iniciais gerem tensões negociais - eventualmente rupturas e reatamentos -, levando, eventualmente, a modificações da estrutura projetada. Faz parte do complexo processo de redução de assimetrias e de confirmação da convergência de propósitos, no âmbito de operações societárias. Até onde meu conhecimento vai, o modelo anunciado por Cruzeiro e Ronaldo continha indicações dos principais elementos do negócio, que não estava fechado (isto é, consumado, em definitivo). Ainda dependia, portanto, da implementação de uma série de condições, dentre as quais a realização de auditoria para verificação da real situação financeira, econômica e patrimonial do clube. Esse tipo de documento, quando celebrado por duas companhias atuantes em outros setores, costuma ser mantido em sigilo, até que se tenha alguma certeza de que, com base nas informações apuradas, a operação poderá ser consumada. Idealmente, essa prática também deveria ser seguida, penso eu, no caso do time mineiro. Até porque, a comunicação e a celebração de um documento ainda preliminar pode gerar, como gerou, a expectativa de um desfecho que pode não ocorrer ou, quando ocorrer, acabe revestido de características distintas. Mas os agentes envolvidos, inclusive experientes assessores financeiros, queriam ou precisavam dar publicidade ao evento. Há, ainda, outro fator, que não se pode desprezar no plano do futebol: a informação que no âmbito de uma empresa se consegue manter em sigilo, no ambiente do clube talvez não seja possível resguardar. Daí a necessidade de clubes e investidores anteciparem notícias ainda em construção e, sobretudo, de se acostumarem a negociar com a presença de "torcida". Esses fatores levam à seguinte conclusão: as pessoas envolvidas na negociação tomaram uma decisão aparentemente precipitada, mas calculada, e convocaram os milhões de torcedores e as dezenas de jornalistas que cobrem o time para acompanhar a sequência de um processo sujeito a revisão de condições e idas e vindas. Nesse caminho, repita-se, é comum, e nós, expectadores, devemos desde já saber - e conviver com esse fato -, que o investidor pode vir a descobrir que a situação anunciada pelo clube não reflete a sua realidade; ou que clube e investidor, na celebração do memorando de entendimentos, deixaram para momento posterior certas condições para tratamento futuro, após a superação de obstáculos iniciais; ou que esqueceram de abordar algum elemento relevante, passível de acarretar conflitos (eventualmente insuperáveis). Reconheçamos: o tratamento reservado a discussões que acontecem em uma sala de reunião, que costuma ocorrer entre companhias, provavelmente não se produzirá no plano do futebol, pela natureza quase pública de sua atividade. Daí a necessidade de se segregar o que é realmente importante do que não é, como se faz na Europa para efeito de publicação de comunicados por companhia aberta, e, assim, tentar isolar os elementos puramente midiáticos daqueles que podem abalar um negócio significativo para milhões de torcedores. Mais do que isso: a necessidade de se saber que, em uma negociação, os percursos não são sempre lineares, e as soluções nem sempre estão previstas numa lei, como a Lei da SAF, pois compete às partes envolvidas, a partir de determinado chassi regulatório, construir os modelos que lhe sejam adequados (e que não cabe ao legislador definir), mediante a atribuição e precificação de obrigações, deveres e direitos.   Espera-se, pois, pelo bem do Cruzeiro - e do futebol brasileiro -, que as divergências que se tornaram públicas - bem como outras que inevitavelmente surgirão - possam ser solucionadas, reservada ou publicamente, e o projeto conjunto confirmado.
Dando continuidade ao texto publicado semana passada neste mesmo espaço ("Parte 1"), reproduzem-se outras perguntas que surgem com frequência desde o advento da Lei da SAF, para as quais serão apresentadas, adiante, as respectivas respostas. A numeração das perguntas seguirá a ordem exposta na Parte 1, para que, ao final da série, tenha-se uma coletânea sequencial que facilite a compreensão do tema - e da Lei. O que é um clube-empresa?  R: O clube-empresa é um conceito derivado da Lei Zico (Lei 8.672/93), posteriormente reforçado na Lei Pelé (Lei 9.615/98), e que persiste, impropriamente, no sistema. Um clube, por sua natureza, jamais será uma empresa, e uma empresa não será um clube (sob pena de desvio de finalidade). O clube tem natureza associativa, recreativa e não econômica; não distribui, assim, seus excedentes - o lucro - aos associados. A empresa, ao contrário, tem como finalidade uma atividade econômica e, por essência a distribuição de lucros aos seus sócios. A expressão clube-empresa, mesmo após a Lei da SAF, contribui para confusão que se faz no ambiente esportivo - e que se pretende esclarecer nas respostas aos itens seguintes. A SAF é um clube-empresa? Se a resposta for negativa, qual a natureza da SAF?  R: Não, a SAF não é um clube-empresa. A SAF é um subtipo de sociedade anônima (ou de companhia). Ela é regida pela Lei 14.193/21 (a Lei da SAF), que lhe estabelece uma série de regras específicas (e incontornáveis), aplicáveis apenas à SAF - e a nenhum outro tipo de sociedade ou associação. Ademais, a SAF também é regida, de modo complementar, em relação aos aspectos não abordados na própria Lei 14/193/21, pela Lei das Sociedades por Ações (Lei 6.404/76). Assim se construiu um modelo inovador (sem precedentes no Brasil ou no exterior), que (i) oferece técnicas e instrumentos próprios para a organização da empresa futebolística, previstos expressamente na Lei da SAF e, em relação aos seus demais aspectos de funcionamento, (ii) aproveitam-se as quase cinco décadas de formação e afirmação da doutrina e da jurisprudência envolvendo a Lei 6.404/76. Quantos regimes jurídicos existem, no Brasil, para organização da atividade futebolística?  R: Há 3 regimes distintos. O mais antigo - cujas origens remetem ao século retrasado - consiste na organização da atividade por intermédio de uma associação (ou clube), que se rege pelos artigos 53 e seguintes do Código Civil. A associação é constituída pela união de pessoas que se organizam para fins não econômicos. Desde a década de 1990, introduziu-se no país o conceito de clube-empresa. Ele decorre de um comando formal, previsto na Lei Pelé, para que um clube (i) "vire" uma empresa ou (ii) constitua uma empresa. No primeiro caso, troca-se a natureza da pessoa, de modo que o clube (ou associação) desaparece e, em seu lugar, surge uma empresa, conforme desenho abaixo: No segundo, o clube continua a existir e passa a ser sócio de uma empresa criada pelo próprio clube, conforme se indica a seguir: Essa empresa (ou clube-empresa, conforme expressão que se repete) se sujeita ao regime jurídico aplicável ao tipo de sociedade escolhido pelo clube na constituição. Portanto, se for uma sociedade limitada, o regramento estará contido no Livro II - do Direito de Empresa, integrante do Código Civil; se for uma sociedade anônima, a regência será ditada pela Lei das Sociedades por Ações. Com o advento da Lei da SAF, surge uma terceira via organizacional da atividade do futebol. Ao optar por ela, as regras que lhe são próprias não podem ser afastadas - assim como não podem ser aproveitadas pela associação sem fins econômicos ou pelas empresas "ordinárias", constituídas conforme regras aplicáveis a qualquer empresário.  Qual a vantagem da Lei da SAF? R: Pela primeira vez, desde a Constituição de 1988, concebeu-se no país uma lei para criar um sistema sustentável e atrativo para os agentes que integram o ambiente do futebol (clubes, investidores, atletas, patrocinadores etc.). Nesse sentido, a Lei da SAF não tem como propósito apenas o estabelecimento de um comando formal para que clubes passem do modelo associativo ao empresarial, como se fez com as Leis Zico e Pelé - e que justificam, em parte, os respectivos insucessos. A SAF é o núcleo de um sistema formado por outros instrumentos, previstos na Lei da SAF, que a viabilizam econômica, patrimonial, social e esportivamente. Sua concepção envolve governação, controle, compliance, financiamento, tributação, reorganização de passivos e inserção no mercado e inclusão social. Somente a SAF - com exclusão de todos dos demais tipos societários e associativos - poderá se organizar e se aproveitar, em sua integralidade, do conteúdo da Lei da SAF.  O acionista controlador de uma SAF poderá deter participação em outra SAF?  R: Não. A proibição está prevista no art. 4º da Lei da SAF. Lá se estabelece que o acionista controlador individual ou o controlador que atinja essa posição por meio da celebração de um acordo de controle, não poderá participar de outra SAF. A proibição envolve não apenas a participação direta, mas também a indireta, hipótese em que se interpõe uma ou mais empresas entre o investidor e a SAF, para evitar a incidência da norma.   E o acionista investidor minoritário de uma SAF, portanto, que não a controle, poderá participar do capital de outra SAF?  R: Sim, porém se sujeitando às restrições previstas na Lei da SAF. Por exemplo, o acionista que detiver 10% ou mais do capital votante de uma SAF, e desde que, com este pequeno percentual, não a controle, poderá participar de outra SAF, mas não poderá se manifestar nem votar nas assembleias gerais. Também não poderá participar das administrações, direta ou indiretamente. Pretende-se, como essas normas, evitar situações conflituosas. A Lei da SAF criou algum instrumento de verificação da identidade do investidor da SAF? R: Sim. Quando o investidor for pessoa jurídica e detiver participação igual ou superior a 5% do capital social da SAF, deverá informar à SAF e à entidade nacional de administração do esporte - portanto, à CBF -, o nome, a qualificação, o endereço e os dados de contato da pessoa física que, direta ou indiretamente, exerça o seu controle ou que seja a beneficiária final do investimento. A Lei da SAF prevê alguma sanção ao investidor pessoa jurídica que não revelar a identidade do controlador ou do beneficiário final? R: Sim. Enquanto não cumprir o dever de informar, a pessoa jurídica investidora terá seus direitos políticos suspensos e os eventuais dividendos ou outros pagamentos que lhe forem declarados serão retidos até o cumprimento desse dever de transparência. Outras dúvidas, ainda não abordadas na Parte 1 ou neste texto, serão apresentadas - e respondidas - nas colunas seguintes.
Desde 2016, quando surgiu o tema da SAF (em livro denominado Futebol, Mercado e Estado1), que logo se converteu em projeto de lei, de autoria do Deputado Federal Otavio Leite2, e, posteriormente, com todas as evoluções e ajustes decorrentes de anos de debates com centenas de agentes e instituições de diversas naturezas (jornalistas, atletas, dirigentes, reguladores, magistrados, congressistas, membros do executivo etc.), pouca gente acreditava que a SAF seria efetivamente incorporada ao sistema jurídico brasileiro. Apesar da resistência (ou, em muitos casos, da inércia) do poder cartolarial, e de várias circunstâncias, coincidências e movimentos de sorte, há meses vigora a Lei 14.193/21 ("Lei da SAF"), fruto do Projeto de Lei 5.516/2019, de autoria do Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG) - daí a lei ser justamente denominada, além de Lei da SAF, Lei Rodrigo Pacheco. Guardadas as devidas proporções, a incredulidade em relação à proposta originária deu lugar, após o advento da Lei da SAF, a um certo ceticismo, que, por conta do anúncio de algumas recentes operações (Cruzeiro, Botafogo e Vasco) ou intenções (Atlético Mineiro), parece ter dado lugar a um otimismo com o porvir.   Esse estado de coisas aguçou, com razão, a curiosidade da sociedade - e de pessoas que gravitam ao redor do futebol. Daí o surgimento de uma série de dúvidas, que merecem, neste espaço, rápidas e objetivas respostas, as quais são apresentadas a seguir: Todo clube deverá constituir uma SAF?  R: Não, a Lei da SAF não obriga a transformação ou a constituição da SAF. A decisão, em relação a qualquer um dos caminhos, ou a nenhum deles - caso em que o clube permanecerá uma associação sem fins lucrativos - somente poderá ser tomada pelo próprio clube. Quem deverá decidir se um clube caminhará para constituição da SAF?  R: A competência para tomar a decisão final é da assembleia geral de associados do clube, que deverá se manifestar quando convocada. Todo clube deverá convocar uma assembleia para deliberar sobre tema relacionado à SAF?  R: Não. A decisão sobre a convocação seguirá o rito previsto no estatuto de cada clube. Geralmente, a competência convocatória, para matéria de importância como esta, é atribuída ao Conselho Deliberativo ou a determinado número de associados - mas pode ser diferente. Caso um clube decida constituir uma SAF, quem será o proprietário das ações de emissão da SAF?  R: Na largada, o próprio clube. Ele deverá transferir à SAF ativos relacionados ao futebol (mediante integralização de aumento de capital, por exemplo) e, em contrapartida, receberá todas as ações de emissão da SAF. O clube pode ser acionista único da SAF?  R: Sim, pode. Como um investidor se torna acionista da SAF? R: Basicamente, de três maneiras: (i) comprando ações de emissão da SAF que pertencem ao clube - caso em que o preço ingressa na conta do próprio clube; (ii) subscrevendo novas ações de emissão da SAF, que se somarão às ações detidas pelo clube - hipótese em que o pagamento das ações subscritas (a título de integralização de capital) será destinado exclusivamente aos cofres da SAF; e (iii) adotando-se um modelo híbrido, resultante das duas situações anteriores. A Lei da SAF fixa uma forma de cálculo do valor do clube ou da SAF? R: Não. A "valorização" será livremente negociada entre partes que resolverem negociar uma operação. Vários critérios podem ser adotados para avaliar uma empresa (logo, também uma da SAF), como: fluxo de caixa descontado, múltiplo de EBITDA (sigla de Earnings Before Interest, Taxes, Depreciation and Amortization), múltiplo de receita, dentre outros. Qualquer um poderá ser utilizado. É importante que o clube esteja bem assessorado para defender e negociar o maior valor possível e, consequentemente, obter o preço adequado numa negociação. Em qualquer caso, dois fatores deverão (ou poderão) ser considerados, sendo um negativo e outro positivo: o endividamento reduz o preço fixado para uma companhia - logo, à SAF, também; por outro lado, times de futebol são "ativos" únicos, e, assim, podem ser negociados acrescidos de valores "intangíveis" que não seriam obtidos em outras atividades. Afinal, existe apenas um Galo, um Furacão ou um Tricolor Paulista, por exemplo. O estádio, se pertencente ao clube, deverá, obrigatoriamente, ser transferido para SAF? R: Não. O conjunto patrimonial (ativos e passivos) transferido do clube para SAF poderá, observados os requisitos da Lei da SAF, ser definido em função de cada caso concreto. Se o estádio permanecer com o clube, então, a SAF e o clube deverão celebrar contrato de locação, de arrendamento ou de outra natureza, para disciplinar o uso do imóvel pela SAF, em troca, a princípio, da respectiva contrapartida financeira - que poderá ser utilizada para manutenção da estrutura e atividades clubísticas. E a marca, passará à propriedade da SAF?  R: Dependerá da negociação realizada e das características de cada clube. De todo modo, não há obrigatoriedade de transferência, a título de "propriedade", da marca. Ela poderá ser, por exemplo, objeto de licença de uso exclusivo à SAF, no âmbito do futebol, por prazo de longa duração, 50 ou 75 anos, por exemplo, em troca do pagamento de remuneração financeira (royalties). O investidor de uma SAF poderá vender suas ações?  R: As ações de emissão de uma companhia - logo, de uma SAF - integram o patrimônio de seu proprietário, e poderão ser vendidas, portanto. Na negociação de ingresso do investidor, o clube poderá, no entanto, condicionar a realização do negócio à sua permanência mínima por determinado prazo (5 ou 7 anos, por exemplo), caso em que a venda, nesse prazo, estará proibida (isso se chama, no jargão do mercado, "lock-up"). O clube também poderá exigir a realização de oferta prévia da venda a ele, caso em que terá preferência para aquisição das ações. E poderá tentar impor a restrição de venda a terceiros que ostentem (ou não) determinadas características, como reputação ilibada, patrimônio mínimo, experiência em abertura de capital etc. Toda SAF será bem-sucedida?  R: Assim como nem toda empresa é sustentável - e eventualmente quebra -, nem todo casamento resiste ao tempo ou nem todo filme produzido em Hollywood é lucrativo, nada (ou ninguém) pode garantir que toda SAF será exitosa. Mas, pela primeira vez desde a Constituição de 1988, há uma lei que não impõe um comando formal, apenas, autorizador da constituição de uma empresa ou mesmo obrigando o clube a constituí-la. A Lei da SAF, de forma pioneira, cria a SAF como elemento nuclear de um sistema dotado de uma série de instrumentos aptos a viabilizar a passagem ao modelo empresarial e a acomodar interesses, direitos e obrigações de clubes e investidores. A SAF não é um fim em si, mas a via jurídica de legitimação e de segurança para os agentes que fazem ou farão parte do sistema do futebol (clubes, investidores, jogadores etc.). A SAF que tiver um clube como acionista minoritário e um investidor na posição de acionista controlador ficará sujeita à vontade exclusiva do acionista controlador?  R: A resposta deve ser fragmentada. A Lei da SAF confere ao clube fundador da SAF uma série de direitos que não podem ser afastados ou ignorados. Assim, enquanto o clube detiver ao menos 10% das Ações Classe A representativas do capital social votante ou do capital social total, a aprovação das seguintes matérias dependerá, necessariamente, de seu voto afirmativo: (i) alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de qualquer bem imobiliário ou de direito de propriedade intelectual conferido pelo clube ou pessoa jurídica original para formação do capital social; (ii) qualquer ato de reorganização societária ou empresarial, como fusão, cisão, incorporação de ações, incorporação de outra sociedade ou trespasse; (iii) dissolução, liquidação e extinção; da SAF; e (iv) participação em competição desportiva sobre a qual dispõe o art. 20 da Lei nº 9.615, de 24 de março de 1998. Caso o clube passe a deter menos de 10% das ações Classe A, mesmo que seja apenas uma ação, ainda assim as seguintes matérias continuarão a depender de seu voto afirmativo: (i) alteração da denominação; (ii) modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional, incluídos símbolo, brasão, marca, alcunha, hino e cores; e (iii) mudança da sede para outro município. Além das imposições derivadas da Lei da SAF, o clube poderá, no âmbito da negociação com um investidor, negociar e fazer (ou tentar fazer) constar do acordo, outros direitos que lhe possam parecer relevantes para condução da associação.  Muitas outras dúvidas, algumas singelas, outras mais complexas, merecem explicações, e serão apresentadas - e respondidas - nas colunas seguintes. __________ 1 CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de; MANSSUR, José Francisco C. Futebol, Mercado e Estado. São Paulo: Quartier Latin, 2016. 2 Autor do Projeto de Lei 5.082, de 2016.
quarta-feira, 2 de março de 2022

A SAF: o dono e o povo

No último domingo, dia 25 de fevereiro, o Jornal O Globo trouxe editorial com o título "Clube-empresa já traz renovação ao futebol brasileiro - Cruzeiro, Botafogo e Vasco começam a implantar o novo modelo de Sociedade Anônima do Futebol (SAF)". A edição da lei 14.193, de 6 de agosto de 2021 ainda é bastante recente e seus efeitos expressivamente notáveis tendo em vista seu pouco tempo de vigência, seja pela adesão de diversos times - para além dos três citados no editorial - e, principalmente, pela discussão que tomou conta do futebol brasileiro sobre o modelo de organização dos nossos times. Como o futebol brasileiro está entrando numa nova era - e todos queremos seja uma era de prosperidade - toda discussão sobre como aprimorar o modelo introduzido pela Lei da SAF, evitando problemas já verificados em outros países, sem dogmas, sem mitos, sem imposição de supostas "verdades" é válido, é salutar e fará bem ao processo evolutivo. Um ponto importante levantado por alguns dirigentes merece reflexão. Alegam, alguns, que "seus" clubes não deveriam adotar o modelo da SAF, porque são do "povo" e não podem ter "donos". Vale a pena o debate sobre tal afirmação. A rigor, o primeiro ponto a ser apontado é que no exato momento em que o clube constitui a SAF - tratando de modo geral as formas previstas nos artigos 2º e 3º da lei 14.193/2021 - o clube se coloca como proprietário da totalidade (100%) das ações da SAF. Portanto, ao nascer, a SAF tem um único e exclusivo dono: o clube que a criou. A decisão de transferir, mesmo que seja uma única ação, 25% das ações, 51% das ações, 90% ou 100% das ações pertence tão-somente ao clube. E, para tomar tal decisão, a Lei da SAF combinada com a Lei Pelé são bastante claras: o clube só pode vender as ações se tal venda for aprovada pela Assembleia Geral de Associados. Portanto, não é correto dizer que, necessariamente, ao constituir uma SAF o time de futebol do clube passará a ter um "dono". Cruzeiro, Botafogo e Vasco realmente transferiram montante do percentual das ações suficiente para atribuir poder de controle ao investidor. E o fizeram porque tais clubes, levando em consideração o contexto de suas situações atuais, decidiram, soberanamente, que a atratividade ao investimento externo dependia de tal providência. O futuro mostrará se tomaram o caminho certo. Por agora, o que se vê depois de alguns anos muito difíceis, é que a esperança de dias melhores se mostra clara e potente para Vascaínos, Cruzeirenses e Botafoguenses. E isso, diante do cenário que se apresentava anteriormente, já é muita coisa.  Já o Athletico Paranense vem manifestando interesse em constituir a SAF, entretanto, disposto a vender não mais do 40% das ações, ou seja, o clube quer, e pode perfeitamente, exercer a opção de permanecer no controle da gestão do time de futebol, no caso, com o investidor aportando recursos para aumentar a capacidade de investimento do time e confiando na gestão atual do clube como capaz de produzir o retorno esperado. Trocando em miúdos: o clube que constitui a SAF nasce como único dono da SAF e só vai transferir propriedade a quem quer que seja se assim o quiser e decidir. Aliás, mesmo que o clube transfira mais da metade das ações ao investidor, a forma do exercício desse controle, a participação do clube nas decisões e tudo mais, pode também ser objeto de um acordo entre clube e investidor - o acordo de acionistas - que atribua maior ou menor ingerência do clube nas decisões. A SAF está longe de ser um modelo "engessado" porque, desde o início, levou em consideração o fato de que há mais de 800 clubes de futebol no Brasil e cada um tem suas condições próprias, seu tamanho, seu contexto e impor condições únicas para um ecossistema tão diverso seria tratar igualmente os desiguais, portanto, pavimentar o caminho para o insucesso de uma ideia que foi objeto de estudos por tantos anos até se tornar lei. A partir disso, é preciso também enfrentar o tema da suposta "democracia" como sistema político dos clubes-associação atuais versus a efetiva participação das partes interessadas - stakeholders - num modelo como o da SAF. Recentemente, o Advogado e Professor Ricardo Oliveira entregou ao Brasil mais uma preciosidade que só poderia vir da querida Bahia - "ah, mas que saudade eu tenho da Bahia", dizia Caymme com tanta razão - na forma do artigo "Clubes de futebol - Existe democracia na SAF?"1, em que conclui: "A mudança para um tipo societário com regras mais bem definidas tende a aumentar os padrões de transparência, controle externo e compliance, a fim de o clube se tornar realmente atrativo a investidores, chegando ao ponto, inclusive, de possibilitar, a depender do modelo adotado, que o torcedor possa se tornar um acionista da SAF, aportando recursos e tendo direitos típicos de sócios empresariais. Dentre tais direitos estão o de voz e voto nas assembleias e reuniões, direito de participar nos lucros, direito de pedir a prestação de contas, de eleger conselheiros de administração e fiscal, dentre outras maneiras de participarem mais ativamente do processo de tomadas de decisões estratégica e gerenciais, dentro da governança corporativa proposta pela Lei. Portanto, SIM! A Democracia nos clubes-empresas é possível de ser implementada!" Portanto, é falsa a existência de suposta dicotomia, ou mesmo impossibilidade, entre o modelo da SAF e a adoção de instrumentos de participação efetiva, e democrática, dos interessados nos fóruns decisórios dos times de futebol. Nos causa estranhamento, inclusive, ler e ouvir que tal ou qual clube não poderia constituir SAF, porque pertence ao "Povo", quando, na verdade, o que se verifica é que clubes com 10, 20 ou 30 MILHÕES de torcedores restringem a participação em suas assembleias, seja para eleição dos mandatários, seja para deliberação de quaisquer outros temas, a 800, 900 ou 1000 associados. Que democracia é essa na qual CENTENAS de dirigentes, conselheiros e associados, decidem os destinos de times sustentados pelo amor - do qual advém a maior parte das receitas - de DEZENAS DE MILHÕES DE TORCEDORES? Salvo melhor juízo, clube-associação, no qual o poder de deliberação está concentrado nas mãos de uns poucos dirigentes e suas oligarquias, muitas vezes mantidas no poder por si, familiares e aliados por mais de décadas, suportados pelo voto de outros poucos conselheiros e associados, no qual o torcedor em praticamente nada participa do processo de gestão para além de ser o "pagador das contas", está muito longe de ser uma democracia, muito menos pode afirmar com honesta convicção que pertence ao "Povo". Só pertence ao Povo o País, Estado ou Cidade, ou mesmo, uma Instituição que confere efetivamente ao Povo o poder de deliberar sobre seus destinos. __________ 1 Disponível aqui.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

SAF - realidade, ilusão e perspectivas

Desde o advento da lei 14.193/21 ("Lei da SAF"), de autoria do Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), produziram-se diversos textos e ensaios (e muitos palpites) sobre a pertinência ou a impertinência da proposição legislativa e do conteúdo final da lei (relatada pelo Senador da República Carlos Portinho - PL/RJ). A verdade é que, compostos de argumentos positivos ou negativos, todos eles reafirmaram, consciente ou inconscientemente, um fenômeno incontornável: a potencialidade do novo mercado do futebol. Temia-se (ou se criava um falso dogma de) que o ingresso de investidor, qualquer que fosse a sua procedência ou característica - mas em especial o estrangeiro -, ignorasse a relação sentimental estabelecida entre torcedores e times, e reduzisse a prática esportiva a uma atividade capitalista, norteada apenas pelo lucro. Um dos mais recorrentes exemplos da suposta incompatibilidade entre capital e futebol consistia na falaciosa ideia de que, às vésperas de uma final de campeonato (ou de uma etapa relevante de um torneio), o investidor não hesitaria em orientar (ou obrigar) a empresa a negociar o craque do time para fazer dinheiro - em detrimento do resultado esportivo. Essa ilustração se repete, aliás, ainda hoje, em programas de rádio e de televisão - assim como nas arquibancadas e em conversas de bar. A falsidade da proposição, alimentada pelos "donos do futebol" (cartolas que se aproveitavam dos frágeis modelos de governação de clubes para imposição de estruturas de poder e dominação), é evidente: aquela situação se verifica, e com alguma frequência, em clubes insolventes ou em crise - geralmente sediados em países que renunciaram à abertura do modelo associativo, tornando-se dependentes da exportação de pé-de-obra. Foi nisso, num exportador de riqueza em estado bruto, que o País se tornou. E foi para reformular esse secular estado de coisas que se concebeu, no Congresso Nacional, a Lei da SAF. Ela, porém, não deve ser vista como uma solução mágica para problemas, rasos ou profundos, dos times locais; trata-se, em essência, de um instrumento transformacional, que servirá aos propósitos organizativos e reorganizacionais de agentes que, até então, não se enxergavam (ou se relacionavam): clubes e investidores (e outros agentes, como financiadores de operações estruturadas). Apesar dessas características, a miopia, como se indicou acima, ressurgiu, após o surgimento da Lei da SAF, inicialmente sob a forma de ceticismo e de criticismo, expressivo do desejo (implícito ou explícito) do insucesso. Talvez a tendência tenha começado a se inverter com a notícia de que o investimento no Cruzeiro não seria liderado por um capitalista sem rosto, mas por Ronaldo, um ídolo mundial (e que carrega em seu currículo a propriedade de um time espanhol, o Real Valladolid); além de ex-atleta formado no próprio Cruzeiro. Ali se percebeu, ao que tudo indica, que, ao contrário da fracassada modelagem do clube-empresa, instituída pela Lei Zico, em 1993 (e reformulada pela Lei Pelé, em 1998), a proposição do Senador Rodrigo Pacheco poderia seguir o rumo da aderência sistêmica. Sim, pois ao contrário das tentativas pretéritas, a Lei da SAF não se fundava em um mero comando formal de transformação de uma associação em empresa, mas na concepção de um sistema apto a receber e a acomodar necessidades e interesses de quem investe e, na mesma escala, de quem viabiliza o investimento (o clube) e de quem é investido (a SAF, constituída pelo clube). Aquela percepção se aguçou com mais uma novidade: o surgimento de outro investidor com rosto, John Textor - igualmente envolvido em negócios esportivos, como o Crystal Palace, na Inglaterra -, no projeto de reorganização do Botafogo. Além desses dois casos midiáticos, e de uma dezena de outros em gestação, espalhados pelo País, nesta última semana de fevereiro o Vasco da Gama também anunciou o encaminhamento de uma negociação que envolve cifra bilionária, para ingresso de um fundo investidor de origem norte-americana; este, porém, sem rosto, mas que também ostenta envolvimento com times europeus. Esses eventos indicam que as premissas edificadoras da Lei da SAF estavam corretas: (i) o associativismo se mantinha por conta da ausência de um arcabouço jurídico qualificado à atração de capitais para desenvolvimento da empresa do futebol; (ii) o Brasil atrairia interesse local e internacional e se tornaria um efetivo mercado emergente (e pujante); (iii) o excesso de liquidez anteciparia alocações de recursos no futebol, mediante aplicação em SAF concebida no âmbito de projeto sustentável; e (iv) bastaria o projeto de um clube relevante e substancial para influenciar os demais - que, se ficarem para trás, correrão o risco de se apequenarem ou se tornarem irrelevantes, do ponto de vista de resultados. Ficar para trás não significa que clubes devam constituir a SAF, sem um projeto que lhe sustente. A constituição se justifica, a princípio, se, e apenas se, envolvida em uma proposta maior, de que participe ou não um investidor, mas, em qualquer caso, que tenha um objetivo material (e não puramente formal). Aí surgem oportunidades que não deveriam ser ignoradas pelos clubes locais, que passaram a conceber, aparentemente, um novo (e equivocado) dogma: a necessidade de o investidor ter raízes no exterior e participar de times europeus. Não há - e não haverá -, no ambiente do novo mercado do futebol, verdades absolutas; cada caso deve ser construído levando em conta as características do próprio clube e do seu time, bem como do que eles precisam e do que pretendem (ou podem) exigir e realizar. Daí, para que se evite a ilusão (ou armadilha) de que apenas estrangeiros funcionam, e ainda de que não haverá solução viável fora de estruturas integrantes do futebol - e, assim, criar-se uma nova dependência, não do cartolismo, mas do "futebolismo" -, a Lei da SAF se apresenta como uma espécie de "lego", que viabiliza estruturações jurídicas de modo a acomodar os interesses das partes envolvidas, mesmo que não sejam, no caso de investidores, originários do esporte. O tempo será útil para que a Lei da SAF (ou Lei Rodrigo Pacheco) seja testada em toda sua extensão. Enquanto isso, os clubes que perceberem, agora, a sua utilidade, deverão, além de acertar o rumo de seus caminhos, protagonizar, ao que tudo indica, o futebol nos próximos anos.
O DREI - Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração é competente para, dentre outras matérias, estabelecer e consolidar normas e diretrizes gerais do registro público de empresas mercantis e atividades afins. No âmbito de sua competência, dispôs, por intermédio da "IN 112" - Instrução Normativa 112/22, sobre o registro da sociedade anônima do futebol - SAF. Logo no preâmbulo da IN 112 se afirma que se aplicam à SAF, de modo subsidiário, todas as regras aplicáveis à sociedade anônima constantes do Manual de Registro de Sociedade Anônima, Anexo V à Instrução Normativa 81 ("Manual"). A lógica é a seguinte: em relação ao tratamento específico de matérias exclusivas da SAF, previstas na lei 14.193/21 ("Lei da SAF"), apresenta-se uma normatização própria, contida na própria IN 112; no mais, a SAF se submete às regras das companhias "ordinárias" - desde que, por óbvio, não sejam incompatíveis com a mencionada Lei da SAF. Portanto, as regras das companhias não substituem, mas complementam, no que for compatível, as normas da SAF. O primeiro parágrafo do item 1, inserido na Seção XIII, reafirma a possibilidade de constituição da SAF por acionista único. Não se trata, como se extrai da Lei da SAF, de obrigatoriedade, mas de possibilidade. Assim, um clube, por exemplo, poderá deliberar a constituição de uma SAF e subscrever a totalidade das ações de sua emissão, sem necessidade de adicionar ao processo constitutivo uma pessoa que se tornava sócia apenas para constituir a pluralidade societária (um homme de paille, conforme se designa em França, ou um laranja, como se prefere no Brasil). A unipessoalidade é admitida em qualquer modalidade de constituição da SAF; ademais, caso ela seja constituída, por hipótese, com mais de um acionista, não há vedação a que, em momento posterior, todas as ações se concentrem em apenas um acionista, por qualquer meio aquisitivo, como a compra e venda de ações (hipótese, portanto, de unipessoalidade superveniente). Aliás, o último parágrafo do item 1 joga cal sobre infrutífero debate que ameaçava se iniciar, consistente na equivocada interpretação de que o clube não poderia constituir a SAF por via de drop down (mediante subscrição da totalidade das ações emitidas pela SAF e transferência de ativos à SAF em integralização de ações subscritas). O texto contido na IN 112, que expressa o conteúdo da Lei da SAF, é inequívoco nesse sentido: "por sua vez, conforme prevê o art. 3º da mesma lei, uma SAF pode ser constituída, ainda, mediante o recebimento da transferência do clube ou da pessoa jurídica original de seus ativos (...)". O item 2 estabelece que o estatuto da SAF deverá conter os requisitos previstos no item 15 da Seção I do Capítulo II do Manual, podendo (i) estabelecer outros requisitos necessários à eleição para o conselho de administração, (ii) prever outros direitos para o titular das ações ordinárias classe A, quando constituída por clube ou pessoa jurídica original, (iii) estabelecer critérios para a dedicação exclusiva dos diretores à administração da sociedade e (iv) estabelecer outras matérias que estejam sujeitas à concordância do titular das ações ordinárias classe A. Essas 4 hipóteses estão previstas na Lei da SAF, de modo que não se trata - e nem poderia - de uma inovação da IN 112, e devem ser implementadas, quando o caso, nos limites estabelecidos pela própria lei. O item 5, que versa sobre a formação do capital social, reforça a existência da modalidade constitutiva por via do drop down e esclarece que o clube "poderá integralizar a sua parcela ao capital social por meio da transferência à companhia de seus ativos, tais como, não exclusivamente, nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, inclusive registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica". Anote-se que, nos termos do art. 8º da Lei 6.404/76, a contribuição de bens, de qualquer natureza, ao capital dependerá de avaliação a se realizar por empresa especializada ou por três peritos. O item 4 reforça, em nota destacada dos demais temas regulados, que os diretores da SAF deverão ter dedicação exclusiva, observados eventuais critérios estabelecidos no estatuto. O item 8, por fim, orienta sobre as publicações obrigatórias ordenadas em lei, que poderão se realizar por via eletrônica, exclusivamente, pela SAF que tiver receita bruta anual de até R$ 78 milhões, caso que em que a publicação deverá ser mantida no sítio eletrônico pelo prazo de 10 anos. A SAF que apurar receita brutal anual superior ao mencionado patamar deverá, no tocante à publicidade, observar o conteúdo do art. 289 da lei 6.404/76, segundo o qual as publicações serão efetuadas em jornal de grande circulação editado na localidade em que esteja situada a sede da SAF, de forma resumida e com divulgação simultânea da íntegra dos documentos na página do mesmo jornal na internet. Anota-se, por fim, que a publicação da IN 112 deverá contribuir para unificação de procedimentos e entendimentos no âmbito das juntas comerciais, e, com isso, oferecer aos clubes, investidores e demais agentes envolvidos em processos constitutivos de SAF, a necessária segurança em relação aos aspectos registrais.
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

A SAF e os recentes atos infralegais e regulatórios

Em participação no programa Roda Viva da TV Cultura, no ano de 1992, Telê Santana fez uma defesa contundente da passagem do modelo associativo ao empresarial, no âmbito e na gestão do futebol brasileiro. Mesmo quando confrontado, em perguntas formuladas pelos entrevistadores, com dogmas que impediram, por décadas, a evolução gerencial e o acesso aos mercados de capitais pelos clubes (constituídos sob a forma de associações sem fins lucrativos), Telê Santana não hesitou: a perspectiva do lucro e a sua distribuição entre os acionistas - dentre os quais pode ou deve estar incluído o próprio clube criador da empresa -, não seria jamais um problema; mas sim a solução. Curioso que ele utilizou como exemplo de patologia, impregnada no sistema associativo - e que deixaria de ocorrer em empresas futebolísticas -, a mais corriqueira, inexplicável e suspeita das práticas, consistente na aquisição irresponsável de direitos de jogadores. Dizia ele que os negócios dessa natureza ocorriam - como ainda ocorrem, com raras exceções - sem critério, sem embasamento técnico ou econômico, e geravam, na maioria das vezes, prejuízos, contributivos dos sucessivos déficits anuais. Ele apostava, pois, que isso deixaria de ocorrer com a mudança de modelo.  A entrevista foi concedida em período que antecedeu a Lei Zico, marco da tentativa de criação do clube-empresa no Brasil. Depois desta lei, datada de 1993, a Lei Pelé, de 1998, também pretendeu promover avanços importantes, mas sofreu mutilações justamente na parte relacionada ao tratamento da empresa do futebol, as quais foram patrocinadas pelos lobbys cartolariais. De lá para cá, o Brasil assistiu ao filme das transformações promovidas pelos países que se tornaram hegemônicos, fingindo não ter nada a ver com ele. A conta veio, como todos sabem, e se tentou, com a Lei do Profut, remediar o irremediável buraco financeiro. Não deu certo: o atual estoque de dívidas supera a dezena de bilhões de reais. Aliás, naquela lei também se tentou criar mais um mecanismo de obrigatoriedade de transformação de clube em empresa, em troca de um regime tributário setorial, o que acabou vetado pela Presidente Dilma Rousseff, aparentemente por recomendação do então Ministro da Fazenda, Joaquim Levy. A sofrida história do processo de libertação do futebol do associativismo, que teve como protagonistas alguns dos nomes mais importantes da história do esporte, dentro e fora de campo, como os mencionados ídolos Zico e Pelé, e o jornalista Juca Kfouri, poderá ter chegado ao fim com o advento da lei 14.193/21 ("Lei da SAF"), de autoria do Presidente do Senado Federal - e do Congresso Nacional -, Rodrigo Pacheco (PSD/MG). Desde que a Lei da SAF passou a compor o sistema jurídico, percebem-se movimentos de diversas ordens, que tendem a contribuir e a fazer com que o conteúdo legislativo se acomode e o novo mercado do futebol se organize. Casos como os de Cruzeiro, protagonizado pelo pentacampeão mundial Ronaldo Nazário, e Botafogo, encabeçado pelo norte-americano John Textor, sugerem ao Brasil - e ao mundo - que algo muito relevante pode estar a acontecer por estas bandas - e de fato está, com mais de 10 projetos em estudo. Mas não é apenas no plano clubístico que a movimentação se percebe. As instituições, aparentemente, começam a responder no tocante às suas competências, de modo a enriquecer o arcabouço normativo e, assim, a principiar a construção de ambiente seguro e mais previsível. O DREI - Departamento Nacional de Registro Empresarial e Integração, ao qual compete, dentre outras funções, "supervisionar e coordenar, no plano técnico, os órgãos incumbidos da execução dos serviços de Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; estabelecer e consolidar, com exclusividade, as normas e diretrizes gerais do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins; solucionar dúvidas ocorrentes na interpretação das leis, regulamentos e demais normas relacionadas com o registro de empresas mercantis, baixando instruções para esse fim; e prestar orientação às Juntas Comerciais, com vistas à solução de consultas e à observância das normas legais e regulamentares do Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins", dispôs, por meio da Instrução Normativa 112, de 20 de janeiro de 2022, sobre o registro da SAF, de modo que se espera uma padronização de entendimento e de procedimento perante as Juntas Comerciais, constituídas em "órgãos locais, com funções executora e administradora dos serviços de registro" do empresário. O Tribunal de Justiça de São Paulo, na esteira de caso envolvendo a Portuguesa de Desportos, baixou a Resolução 861/2022, modificando determinadas resoluções, para definir que (i) as Varas de Falências e Recuperações Judicias da Comarca de São Paulo serão competentes para processar, julgar e executar os feitos relativos às ações principais, acessórias e conexas relativas ao Regime Centralizado de Execuções ("RCE"), previsto na Lei da SAF, (ii) as Varas Empresariais e de Conflitos relacionados à Arbitragem da 1ª Região Administrativa Judiciária terão competência para todo o Estado de São Paulo, excluída a Comarca da Capital, para as ações principais, acessórias, e conexas relativas ao RCE, (iii) o RCE dar-se-á por intermédio de instauração de concurso de credores, sendo que os processos de execução em curso não serão redistribuídos ao juízo centralizador, e (iv) as Câmaras Reservadas de Direito Empresarial terão competência para julgar ações principais, acessórias e conexas relativas ao RCE. No plano da administração do esporte, a CBF, cujo estatuto prevê, no art. 5º, I, que constitui fim básico, dentre outros, "administrar, dirigir, controlar, fomentar, difundir, incentivar, melhorar, regulamentar e fiscalizar, constantemente e de forma única e exclusiva, a prática de futebol não profissional e profissional, em todo o território nacional", emitiu o Ofício 246/2022, de 18 de janeiro de 2022, mediante o qual pretende orientar os clubes que desejarem iniciar ou estiverem em processo de constituição da SAF, a respeito, dentre outros temas, de (i) cadastro no sistema Gestão Web, (ii) taxas aplicáveis, (iii) registro de atletas e treinadores, (iv) manutenção de vaga em competições e (v) efeitos da constituição da SAF. Começa-se, assim, a formar (mesmo que com algumas lacunas e inconsistências) o ambiente jurídico infralegal e regulatório necessário à implementação e à acomodação da Lei Federal - a Lei da SAF - que poderá, enfim, transformar o ambiente do futebol no Brasil (como, aliás, defendia o visionário Telê Santana).  
quarta-feira, 15 de dezembro de 2021

O fim do fim da história do São Paulo

Escrevi, neste mesmo espaço, em 20/2/19, artigo cujo título era "o fim da história do São Paulo Futebol Clube". O texto não foi bem recebido. Dirigentes do clube - alguns que considerava e ainda considero amigos - o tomaram como uma crítica dirigida. Não era esse o propósito. Pretendia-se, isso sim, provocar o necessário debate sobre a corrosão do sistema associativo, sustentado pela mais sórdida politicalha, que se refletia - e se reflete - sobre toda estrutura do futebol. Resgato, novamente, o tema. O ponto de partida, após quase três anos, é o mesmo; mas, infelizmente, o de chegada mudou, e para pior - como se antevia, aliás, naquela oportunidade. O São Paulo não vai acabar ou desaparecer. Ele continuará a existir, de algum modo, assim como o Botafogo, o Cruzeiro, a Portuguesa ou o Juventus (da Rua Javari) também permanecem existindo. Não apenas eles: como o Paulistano, primeiro tetracampeão paulista de futebol da história, que mantém sua atuação associativa. Portanto, em 20 ou 30 anos, o São Paulo ainda integrará o plano material. O fim que se afirmava, em 2019, tinha a ver com o encerramento de um ciclo, que chegara ao fim. E realmente chegou - apesar do esforço retórico e político dos dirigentes são paulinos de defenderem a sua continuidade e viabilidade.   O São Paulo foi o melhor do Brasil (e um dos melhores do planeta) enquanto a administração e o ambiente do futebol resistiram às transformações sociais e econômicas, criadoras de uma sociedade conectada, tecnológica, globalmente competitiva e dependente de novos recursos para financiamento da empresa futebolística. Mas deixou de ostentar a posição de vanguarda, que anteriormente lhe coube, a partir do momento em que se ensimesmou e passou a acreditar que, por ser (supostamente) diferente, poderia ignorar a realidade - e criar seu mundo próprio, alimentado por fantasiosas narrativas midiáticas. Lembre-se, a propósito, que, em outros setores, a arrogância (ou a negligência diante dos movimentos disruptivos) destruiu corporações ou instituições outrora reputadas inabaláveis (Blockbuster, Kodak, Atari, Pan Am etc.). Assim, aquele artigo - antecedido por outros com semelhante teor, aliás -, pretendia chamar atenção para o fato de que, se o vanguardismo havia chegado ao fim, dever-se-ia trilhar, necessariamente, um de dois caminhos: (i) o da decadência ou (ii) o da reafirmação de sua história gloriosa, pela reconstrução de suas bases, materializada pela implementação do processo de separação do futebol. Os resultados que (não) se colhem, dentro e fora de campo, há pelo menos 12 anos, comprovam, sem necessidade de qualquer esforço argumentativo, a opção que se fez. E o pior ainda está por vir. Trata-se do desfecho de um projeto de dominação de natureza absolutista, iniciado após as eleições presidenciais de 2020. Inicialmente, foi necessário eliminar os elementos que remetiam ao trabalho do presidente anterior, mesmo que fossem positivos. Daí o boicote, consciente ou inconsciente, ao êxito no campeonato brasileiro. Na sequência, promoveu-se um covarde processo de linchamento público de Daniel Alves, até a sua saída (ou expulsão), pelas portas do fundo. Simultaneamente, apostou-se num evento redentor, um campeonato sem expressão esportiva nos tempos atuais: o São Paulo fez do paulista a sua copa do mundo; e a venceu.   Com o título, formou-se o ambiente para imposição da narrativa da reconstrução e da limpeza das mazelas acumuladas pelas gestões anteriores - das quais, aliás, muitos dos atuais dirigentes fizeram parte, de maneira ativa e essencial. Ou seja: surgia uma administração vencedora que saberia levar o time ao topo, novamente. Apostava-se, porém, para encaminhamento do projeto, numa campanha ao menos razoável no campeonato brasileiro de 2021, sem vexame, para justificar o mais audacioso dos movimentos: a reforma estatutária do clube. Com ela, a direção defenderia que seria possível, enfim, realizar as ações necessárias para afastar a herança do passado e reconstruir as bases do futuro. Para azar de todos os são paulinos - e dos arquitetos da planificação -, os planos, nessa fase, fracassaram. O time realizou a pior campanha de sua história. Mas a politicalha cobra, mesmo assim, o seu preço. O conselho deliberativo estará amanhã, dia 16, diante de uma proposta que representa, na verdade, um explícito plano de dominação, que viabilizará, em resumo, o estrangulamento de qualquer movimento oposicionista, o emprego de técnicas estatutárias de coação de dissidentes, o aparelhamento político dos órgãos administrativos e do futebol e a reeleição, dentre outras medidas que fariam Hugo Chávez vibrar. Se se tratasse de uma questão puramente clubística, sem impactos no futebol, talvez ninguém, ou quase ninguém, se importasse. Mas não é o caso. Como não tem sido há anos. Todos esses fatos, que são apenas alguns no mar de barbaridades que inundam e afogam o futebol, confirmam que, com efeito, aqueles tempos de glória, sob o clubismo, chegaram ao fim. A política - ou a politicalha - se sobrepôs ao que realmente importa. O São Paulo está na mesma encruzilhada de 2019: renovar o pacto com a decadência ou se transformar - o que pressupõe o isolamento dessa realidade nefasta, que não combina com uma empresa futebolística da magnitude do São Paulo -, mediante a separação do futebol do clube.   Parece não haver, com exceção de um ou outro porta-voz envergonhado, uma manifestação pública de apoio à proposta que se votará amanhã. Mesmo assim, tudo indica que os veneráveis conselheiros são-paulinos lavarão suas mãos. Desafia-se, pois, o evidente fim de um ciclo. Pior: casa-se com ele, e se decreta, agora sim, o fim do fim do processo decadencial para mergulhar e incorporar, ao cotidiano são-paulino, a decadência como característica existencial. Enquanto isso, duas dezenas de cartolas festejam suas vitórias pessoais, à conta de quase 20 milhões de são paulinos.
quarta-feira, 8 de dezembro de 2021

Temporada da retomada

Com o retorno do público aos Estádios do Brasil no segundo semestre desse ano, inicialmente com as limitações percentuais e posteriormente com capacidade plena e observância somente dos protocolos definidos (máscara, vacina), o futebol brasileiro consolidou sua retomada em uma temporada que foi ainda confusa por conta do avanço do calendário anterior, conseguindo entregar no mês de dezembro todas as competições regularmente encerradas. O abalo verdadeiro do período pandêmico ainda não é possível ser aferido com exatidão, uma vez que a exemplo do público que ficou metade do exercício de fora, alguns outros fundamentos econômicos dos clubes ainda dependem de recuperação (programas de sócio torcedor, p.ex.), para então sabermos qual é a posição efetiva das associações esportivas no atual momento. Não pode deixar de se considerar, independentemente das contingências e prejuízos vividos por conta da crise sanitária, que o futebol brasileiro e a quase totalidade dos seus maiores clubes já experimentavam situação quase falimentar ao final de 2019, transcorrido dentro de absoluta normalidade, o que se evidenciava pelos números consolidados daquele exercício que por si revelavam o estrangulamento dos caixas em virtude do aumento dos custos dos departamentos de futebol (de 3,8 BI em 2018 para 4,7 BI em 2019) e a elevação das dívidas e obrigações que importavam em somatório devedor na casa de 8 BI, devidos pela elite do futebol doméstico. A temporada da retomada indica ainda a recorrência cada vez maior das equipes ditas grandes em flertar com o descenso e, ainda mais preocupante, a permanência de clubes tradicionais fora da elite e a enorme dificuldade em superar o susto e retornar ao topo logo no ano seguinte ao da queda, fatos que não deixam de ser, lamentavelmente, uma tendência contemporânea. Por outro lado, também vai se configurando a elevação do abismo entre as associações que tem primado pela organização e estruturação, assim despertando interesse de investimentos (cada uma dentro de modo operacional próprio), daquelas que vão se condenando às diminuições de receita, público e torcida, com a corrosão de fundamentos econômicos e, via de consequência, de competitividade e incremento ou fidelização de sua massa torcedora. Com efeito, somando-se ao Flamengo e ao Palmeiras que têm protagonizado grandes conquistas no último triênio, o Atlético Mineiro, a partir de um modelo de "clube de dono", tem trilhado o caminho da consolidação esportiva e financeira, confirmado pela conquista do Brasileiro e da participação na final da Copa do Brasil e, especialmente, pela busca de futuras receitas com a construção de seu próprio equipamento (estádio) esportivo. São várias as novas potencialidades de receitas, disponíveis e acessíveis para todos, a começar pelos próprios patrocínios que hoje vão além da publicidade na camisa e sua exposição em jogos e programas esportivos, mas igualmente na exploração da capilaridade das carteiras dos clubes que são patrocinados, através do interface com o público torcedor objetivando a maximização de lucros e negócios (Palmeiras / FAM - Crefisa é exemplo paradigmático, com o patrocinador usando dados de carteira para maximizar a operação de suas instituições de ensino e financeira).  Existem ainda dentro de um espectro de miríade e oportunidades, diversas outras possibilidades como a nova formatação das transmissões com base na Lei do Mandante, a desejada fundação da Liga, a exploração direta do mercado de apostas, e especialmente das novas relações que são advindas da denominada Lei da Sociedade Anônima do Futebol (Lei Federal 14.193/21). Mesmo não se tratando de panaceia, a legislação que cuida da adoção do modelo empresarial traduz provavelmente o maior êxito da temporada da retomada, aquele "gol" inspirador de uma reação, um permissivo legal que pode galgar as problemáticas associações esportivas, no que tange à sua administração e custeio, a um desejável patamar de sustentabilidade. Ao lado da sua abrangência para o desenvolvimento social e dos meios para seu alcance, referida legislação cuida principalmente da reorganização dos passivos dos endividados clubes e novas formas para seus financiamentos, o que pode render no final do dia, caso a transformação seja bem executada, a obtenção de dividendos e melhora da própria capacidade de manutenção e investimentos na busca de futuras glórias e conquistas, sentido existencial dos times de futebol.   Neste cenário, arrisca-se cravar que poucos clubes poderão não adota-la, outros podem pensar e concluir sem pressa pelo caminho que seja de sua melhor conveniência, enquanto a imensa maioria necessita a adoção imediata, sob pena do sucumbimento de sua própria existência, ao menos daquela existência com a qual figura nas enciclopédias e na história; certamente o novo modelo reverter-se-á não só no ajuste do clube optante, como também no aprimoramento do mercado futebolístico como um todo, mormente consideradas as necessidades de governança, transparência e defesa dos interesses envolvidos, sejam do clube como do seu investidor. A propósito do "novo mercado futebolístico", é evidente que reclama sua redefinição completa e urgente, através de ações como a revisão do produto, do modelo de transmissão, planos de monetização e cooptação de novos torcedores, inserção no E-Sports, estabelecimento de planejamento estratégico de curto, médio e longo prazos, adoção de ferramentas que venham assegurar a transição geracional, aderência a novos mercados como de apostas já citado; vê-se de forma cristalina neste último, a miopia da classe dirigente, que reputa como boa a situação atual onde empresas estrangeiras com sede em ilhas e oceanos exploram sua potencialidade faturando os seus bilhões, enquanto deixam as associações esportivas satisfeitas com migalhas, por exemplo o patrocínio das suas camisas: ora, tal visão não pode ser mais distorcida, clubes devem capitanear esse mercado e não se satisfazerem com ínfima parte de seu sucesso...       A classe dirigente, diante desse quadro, tem a responsabilidade de se organizar internamente e se cotizar conjuntamente, seja no primeiro caso para buscar reerguer os clubes dos quais são mandatários e, no segundo, para se preparar às mesas de negociações onde se pretende seja reinaugurado todo o estado geral do jogo - e das coisas, tarefa hercúlea que envolve tenacidade, desprendimento e coesão, além da convicção que a hora é de construir, empreender, edificar. Mais do que tudo, ou melhor, antes de tudo, é hora de mudança, de aproveitar o momento mais disruptivo da história do futebol brasileiro para torná-lo um grande e próspero negócio, para tanto, a cartolagem deve entender e assumir o seu papel, que é diverso das práticas tacanhas com as quais se guiaram através destes anos todos: como foi vaticinado (*) por Simon Kuper e Stefan Szymanski, "por muito tempo o futebol driblou o iluminismo, os clubes ainda são em sua maioria comandados por pessoas que fazem o que fazem porque sempre procederam da mesma forma": não há mais espaço para tergiversar o assunto, a hora é agora! Mãos à obra, pois! (*) Autores citados na obra - SOCCERNOMICS, Editora Tinta Negra, 2010)
Nos debates que antecederam à entrada em vigor da lei 14.193/2021 ("Lei da SAF") e mesmo após sua edição, discutiu-se a questão da efetiva possibilidade de constituição de clubes-empresa no Brasil, mesmo com a legislação vigente anteriormente. Não é totalmente falso o argumento de que nossos clubes-associação já poderiam se constituir em clubes-empresa mesmo antes da Lei da SAF. Porém, tal constatação não observa e contextualiza a questão como um todo. É, portanto, uma meia verdade. O ordenamento vigente antes da entrada em vigor da Lei da SAF trazia amarras e obstáculos de dificílima superação à constituição do clube-empresa pelos clubes de futebol do Brasil. Clubes como Botafogo de Ribeirão Preto, Red Bull Bragantino e os outros, pouquíssimos que fizeram tal movimento, são, na verdade, exceções que confirmam a regra. A Lei da SAF, visando atender a vontade do legislador enquanto representante da sociedade civil, procurou remover boa parte de tais entraves, como no caso dos aspectos tributários da transmutação. Dentre tais obstáculos, fundamental destacar a disposição vigente do artigo 27, parágrafo 2º da lei 9.615/98 ("Lei Pelé") como estava redigido antes da salutar alteração que lhe foi inserida pelo artigo 34 da Lei da SAF. Para melhor entendimento da questão, deve-se fazer breve digressão histórica. O texto original da Lei Pelé, de março de 1998, "caiu como uma bomba" na forma de organização do futebol brasileiro de então. A Lei Pelé extinguiu o "passe", mudando completamente o parâmetro de relacionamento entre atletas e clubes, entre tantas outras alterações profundas no modelo vigente àquela época. Uma das mudanças de maior relevância, aquela contida no artigo 27 da Lei Pelé original, causou enorme impacto ao estabelecer a obrigatoriedade de os clubes de futebol participantes de competições profissionais de adotarem uma das formas empresariais estabelecidas no Código Civil, abandonando o modelo associativo, conferindo, para tanto, prazo de dois anos contados da entrada em vigor da norma. O status quo do futebol brasileiro resistiu como pôde diante das mudanças propostas pela Lei Pelé. No caso da obrigatoriedade de criação do clube-empresa, o enfrentamento à norma posta se deu sob o razoável argumento da inconstitucionalidade em face da disposição contida no artigo 217, I, da Constituição Federal, que confere autonomia de organização e funcionamento às entendidas esportivas. No ano 2000, pouco mais de dois anos após a entrada em vigor da Lei Pelé, diversos dos seus dispositivos originais foram modificados pela lei 9.981/2000. No caso específico do artigo 27, a lei 9.981/2000 revogou a obrigatoriedade de constituição do clube-empresa, mitigando-a em faculdade. Todavia, a mesma norma introduziu o parágrafo 2º do artigo, que trouxe uma amarra de difícil solução para os clubes que optassem em se constituir como empresas, ao menos para aqueles mais tradicionais, que contam com milhares de associados em seus quadros associativos. O referido parágrafo 2º ao artigo 27 previa que: "a entidade a que se refere este artigo não poderá utilizar seus bens patrimoniais, desportivos ou sociais para integralizar sua parcela de capital ou oferecê-los como garantia, salvo com a concordância da maioria absoluta da assembleia geral dos associados ou sócios e na conformidade do respectivo estatuto ou contrato social." (n.g.)  A prática mostra que em alguns dos grandes clubes do futebol brasileiro, a reunião da maioria absoluta dos associados para a tomada de qualquer deliberação em assembleia geral é tarefa praticamente impossível. Para ilustrar tal quadro, no recém-lançado livro "Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol - lei 14.193/2021"1, ao discorrer sobre o artigo 34 da Lei da SAF, trouxemos dados sobre o comparecimento de associados em Assembleias Gerais de eleição de dois dos clubes de maior torcida do Brasil, o Clube de Regatas do Flamengo e o Sport Club Corinthians Paulista. Na última eleição para Presidente do Flamengo, havia mais de 7 mil associados aptos a votar. Porém, compareceram e votaram, efetivamente, à Assembleia Geral, apenas 3.048 eleitores: menos da metade, portanto. Já no Corinthians, em sua última eleição direta para Presidente, 10.550 associados compunham o colégio eleitoral, mas apenas 2.873 participaram da eleição. Ou seja, uma proporção ainda menor. A par da patente crise de legitimidade, constatada a partir do fato de que clubes com 30 ou 40 milhões de torcedores têm suas deliberações fundamentais, inclusive eleições de dirigentes, tomada por alguns milhares de associados, o fato objetivo indica que o associado que, mesmo tendo o direito, não tem interesse em participar da eleição do presidente do clube, dificilmente iria se mobilizar em número significativamente maior para deliberar em assembleia geral convocada para o fim de decidir sobre o árido e, muitas vezes complexo, tema relacionado à eventual destinação de ativos da associação para integralizar capital de companhia voltada à gestão do futebol profissional. Eleições e Assembleias Gerais em outras entidades tradicionais, com milhares de associados, como Clube de Regatas Vasco da Gama, São Paulo Futebol Clube, entre outros, demonstraram os mesmos percentuais de comparecimento de associados. Confirmam, pois, tal constatação. A exigência do quórum de maioria absoluta de todo o corpo associativo servia para sujeitar o interesse daqueles associados favoráveis à constituição da estrutura empresarial ao desinteresse refletido na ausência daqueles para os quais o assunto é irrelevante, inclusive daqueles que, como associados do clube, não são necessariamente torcedores do time de futebol da associação. Além de facilitar eventuais manobras de obstrução, no interesse daqueles que pretendem - e sempre haverá - resistir a toda mudança que implique renúncia de algum poder. Por isso, a mudança no texto do artigo 27, parágrafo 2º, da Lei Pelé, promovida pela Lei da SAF tem importância fundamental para possibilitar a efetividade prática da norma. O dispositivo passou a exigir voto afirmativo "de mais da metade dos associados presentes à assembleia geral, especialmente convocada para deliberar o tema." Sem jamais deixar de levar em consideração a relevância fundamental da consulta aos associados do clube acerca de eventual utilização dos bens da associação para integralização de capital de companhia que venha a gerir o futebol profissional, a correção da norma anterior, com a adoção de um quórum factível para aprovação acaba por ter importância fundamental, vai ao encontro da intenção do legislador de, por meio da Lei da SAF, criar um sistema através do qual o futebol brasileiro possa efetivamente evoluir em todos os aspectos. __________ 1 Vários Autores - Coordenação Rodrigo Monteiro de Castro - Editora Quartier Latin.