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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
Instalada no último dia 17 de maio na Câmara Federal, a CPI das apostas esportivas deverá nas próximas semanas protagonizar o debate que se trava em variadas frentes para a modelação do negócio em condições de segurança e legalidade. Entre "pavoneios" e "boleiragens" de costume que  certamente repetir-se-ão aos nossos olhos, irá atuar com a declarada intenção de investigar o mercado (viés penal) e encaminhar contribuições para a regulamentação (cunho propositivo). O enredo é o de sempre, uma situação nova com a aparência de "terra de ninguém", sem que alguém saiba efetivamente o que é certo ou errado, se tal coisa vale ou não, o quanto isso é ou não é legal... então vem um escândalo, uma operação (aqui a Penalidade Máxima), a intervenção do MP, a TV, as páginas policiais e uma CPI: não é que a história se repita, é que ela rima! E é invariavelmente marcada pelo carimbo brasileiro de inversão da ordem natural das coisas, da informalidade e oportunismo, da falta de rigor e imprecisão técnica, de destacada imperfeição. Essa "nossa história" recente não conta muitos anos de vida e teve uma inflexão decisiva a partir da assinatura pelo ex-Chefe do Executivo na metade do ano de 2020 do Decreto que autorizou a inclusão das apostas de quota fixa no PPI - Programa de Parcerias de Investimento, no âmbito do PND - Plano Nacional de Desestatização, enquadramento ao qual deveria seguir a edição de legislação específica para regular propriamente o mercado, o que até agora não ocorreu. Assim, o fato é que o decreto inicial serviu como espécie de salvo conduto revestindo de "legitimidade" a atuação (em tese) do mercado, momento em os seus operadores imediatamente passaram a fomentar a atividade ainda desempenhada timidamente e a fizeram ganhar força e relevância consolidando o mercado em pouco menos de 3 anos. E, mesmo sem regulação (o mercado não sucumbe à letargia legislativa), o negócio se fez próspero e se traduziu muito além do volume de apostas propriamente dita, como no patrocínio de várias camisas de clubes, naming rights de torneios oficiais, coberturas esportivas, etc., com isso movimentando cifras de bilhões. A estrutura, por incrível que possa parecer, é um arremedo, e envolve normalmente uma sede empresa offshore, uma operadora de pagamento local, as vezes uma sobreloja... direitos e contratos, em especial de patrocínio, do licenciamento da BetCo. para o Brasil, nada muito sofisticado. Se acaso eventual apostador lesado tiver que fazer valer um direito seu por exemplo, provavelmente terá dificuldade até mesmo para conseguir intimar "quem de direito"! A natureza da aposta de quota fixa em nada se assemelha a qualquer tipo de loteria, ela não se aperfeiçoa através de um concurso de prognósticos e da premiação através da distribuição de um rateio. Aqui se trata de um contrato direto entre o apostador e a casa de apostas, é preciso que se pense em um cassino, com uma banca pagadora. Assim funcionam as casas de apostas. O que se experimenta no momento atual brasileiro em relação ao mercado de apostas é uma situação onde vemos que, salvo os operadores com sua estratégia agressiva e aparentemente planejada quanto ao desenvolvimento do negócio, os demais agentes são atores que não sabem exatamente qual é o seu papel nem tampouco como desempenhá-lo, valendo-se então das oportunidades que lhes são franqueadas, tais como para os mendicantes clubes os contratos de patrocínio (a quase totalidade deles tem seu BET.com), cessão de naming rights por federações promotoras das competições para se financiar e divulgar, publicidade para os veículos de comunicação, renda extra para atletas que estrelem propagandas. O governo poderá até taxar, mas parece não ter pressa. Com tudo indo tão bem assim, para que complicar, discutir lei e tal... Exageros à parte, a necessidade da regulamentação é manifesta: antes de mais nada, imperiosa a mitigação das ameaças, graves e identificáveis, que a atividade sujeita o meio social em que está inserida. Manipulação de resultados, a "bola da vez", não é a única. Lavagem de dinheiro é outra preocupação, além do próprio distúrbio patológico derivado da compulsão, um pesadelo. Aqui mesmo não tratando o chamado vício social, até pela falta de credenciais ou conhecimento para tanto, não se deixe sem registro pois representa uma chaga enorme nas pessoas e dentro das famílias, vinte anos atrás à época dos bingos e caça níqueis essa faceta foi escancarada e lá mostrou merecer tratamento adequado em questões relacionadas à segurança e saúde pública. Quanto à lavagem de dinheiro, o ambiente desregulado torna-se propício à grande afluência de recursos por várias portas e sem comprovações, circunstância que igualmente tem demandado extrema preocupação das autoridades, não só as nacionais. É outro aspecto bastante vulnerável na experiência atual, seja porquanto aos valores ingressantes de forma pulverizada através das apostas, seja quanto ao lastro de origem dos pagamentos, tudo potencialmente muito nebuloso. E por fim a manipulação. A crueldade desta é que corrompe os agentes diretos, corrói as instituições envolvidas, pode fulminar a própria credibilidade do negócio. Esse é o tema mais aderente à possibilidade de plena regulação com o estabelecimento de padrões e critérios, por exemplo a vedação de que todo e qualquer palpite dependa de ação individual, ou a definição das competições que possam ser exploradas, entre outras medidas diretas e de fácil aplicação. É hora do legislador decididamente avocar a responsabilidade na edição deste marco regulatório em processo que conte com a participação de todas as partes interessadas, criando mecanismos para arrecadar e repartir, e também fiscalizar e punir. Por seu turno, os clubes e as federações igualmente devem desenhar o seu papel, seja em relação aos seus patrocinadores diretos, aos atletas que mantém ou as competições que promove, conforme é o caso e atuação de cada um. Propaganda, patrocínio, interesses, transações, conflitos, há muito a ser disciplinado, é extensa a lição de casa. Não é só prever multa na cartilha dos atletas, é mais que isso: é inclusão no mapa de riscos, verificação por controles internos, reclassificação continua do que pode e do que não pode. Estamos todos preparados? Aposto que não! Vejam que meses atrás a CBF com uma mão oficiou os afiliados para prestarem informações sobre os patrocínios, ao tempo em que com a outra cedia os direitos de uso do nome da maior competição do país; já os clubes estampam marcas bet.com nas camisas sem entender sua participação real além disso. Bem complicado! Como há meses os cartolas não têm logrado superar as intermináveis discussões acerca das tentativas de demonstrar ao coirmão o seu "sagrado e divino direito de valer e receber mais do ele", é certo que outras matérias não menos importantes que a(s) Liga(s), mas com potencial de contribuição direta aos fundamentos do novo mercado futebolístico brasileiro, nelas incluídas as apostas esportivas (junto do novo formato de transmissões, da SAF, da revisão do produto, da transição geracional, do e-sport, etc.) acabam ficando à margem dos debates e da própria ordem do dia. Porém a questão das apostas, circunstancialmente, voltará a ser priorizada.   Para situações na vida onde impera o açodamento, a deficiência na organização ou a inversão quanto à sequência lógica das coisas, o dito popular cunhou a expressão de "se colocar o carro na frente dos bois", algo que sugere o ocorrido com as apostas onde nos deparamos com um mercado em franca atividade de forma empírica e sem efetivo alicerce legal, em verdade uma estrutura precária que agora reclama ajustes e definições para afastar os embustes e ameaças. Para ficar no carro, é hora de acionar os freios de arrumação e materializar a base normativa, as alterações nos regulamentos de competições, Estatutos e afins. Essa é a aposta certa agora!
quarta-feira, 24 de maio de 2023

Racismo, futebol e transformação

"Já deram minha sentença e eu nem tava na treta / (...) / Sou eu mesmo e eu, meu Deus e o meu Orixá / No primeiro barulho, eu vou atirar / Se eles me pegam, meu filho fica sem ninguém / É o que eles querem, mais um pretinho na Febem / Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim / A gente sonha a vida inteira e só acorda no fim / Minha verdade foi outra / Não dá mais tempo pra nada (...)". O destino do narrador da canção dos Racionais MC's, cujo extrato se produziu acima, foi subvertido por Vinicius Júnior. E por outros futebolistas brasileiros que, invariavelmente, por esforços próprios ou de familiares (vez ou outra com a ajuda de alguém), sem participação do Estado ou da sociedade, rompem as barreiras dos apartheids sociais e raciais. A música e o esporte são, por motivos que já foram apresentados nesta coluna, no Brasil ou alhures, os caminhos mais evidentes para mudanças estruturais e para ilusória inserção. Mas o sucesso, e mesmo o estrelato, não se apresentam como condições suficientes, em ambientes conceituosos e desumanos, para que, além de uma aceitação interessada, o amalgamento ocorra. Não existiu, e ainda não existe, um processo de verdadeira integração. Mas, sim, de (in)tolerância jurídica, de um lado, e de compensação, de outro. Tolera-se porque a lei - e não por advir da consciência ou do coração - sanciona (ou deveria sancionar) o intolerante; e se compensa o que deveria ser incompensável: por exemplo, nobres famílias britânicas, "prejudicadas" no século retrasado pela perda de propriedades humanas escravizadas, ainda hoje recebem a contrapartida pela "perda patrimonial"; enquanto, no Brasil, o fim da escravidão alçou a mesma gente liberta a um outro regime de subjugação: a econômica. Por aqui, talvez ainda exista uma certa complacência com o movimento ascensional, desde que distante, de alguma forma associada (a complacência) ao próprio subjugo que se revela nas relações empregatícias. Aliás, mais do que isso: a manutenção do sistema depende das exceções, para justificar os privilégios e afirmar que a evolução se associa ao esforço, à vontade e ao enquadramento. Nas sociedades colonizadoras, o verniz da aceitação (ou da tolerância), aplicado não raro em decorrência de circunstâncias políticas vantajosas, é rompido com o surgimento de personalidades como Vinicius Júnior. O rompimento se espalha pelas classes abastadas e pelas classes oprimidas, que despejam suas frustrações sobre pessoas que julgam inferiores. Aliás, o prazer, quase doentio, com as mazelas - de distinta natureza, é verdade - de mais um brasileiro na Espanha, Daniel Alves, é revelador. Afinal, como se extrai daquela canção, é mais um pretinho, boleiro e tocador de pandeiro, que foi parar, não na Febem, mas na prisão - e já está condenado, midiaticamente, desde o primeiro dia, antes que o devido processo legal se encerre. Aí entra o futebol: enquanto não estiver inserido em programa de Estado, que o tome como instrumento educacional e de inserção, a formar milhares de crianças, que se espalharão, com o devido suporte e formação, não apenas pelos campos nacionais e mundiais, mas pelas empresas brasileiras (inclusive como empresárias), ele, o futebol, persistirá como parte do sistema de castas, e não como a via de transformação quase revolucionária que deveria ser. Não se duvide: o terror transmitido pela televisão, em estádio que mais parecia o coliseu, dominado pela turba que pedia ao imperador a morte de determinado gladiador, não representa "apenas" a continuidade de crimes cometidos exclusiva ou isoladamente contra uma pessoa. Ao contrário: brasileiros, que respondem por aproximadamente 11% das negociações mundiais no universo futebolístico, são vítimas constantes, e silenciosas, em diversas outras cidades ou países. O mencionado Daniel Alves, no auge de sua fama, também foi vítima de violência extrema, ao ser atingido, em campo, por uma banana arremessada por torcedor confortavelmente instalado em assento comprado por algumas centenas de euros. Mas não basta a indignação coletiva, facilitada - a expressão é, em si, problemática - por recair sobre celebridade pela qual se tem admiração, que rapidamente recebe, com razão, a solidariedade geral (e universal). A crueldade maior se desenrola no plano cotidiano, intensificada nas relações desiguais a que se sujeitam jogadores medianos ou de nível inferior, com carreiras curtas e erráticas, cujos sonhos atravessam ou não o Atlântico; jogadores que jogam pela comida dos filhos ou pelo remédio dos progenitores e que, ao cabo de suas carreiras, diante do despreparo (que lhe foi imposto, praticamente, aliás), tornam-se quase indigentes. Não se deve esperar um movimento corretivo real dos administradores mundiais do futebol, de ligas ou de governos estrangeiros. Virão respostas "necessárias" para o calor do momento. Assim, para que o grotesco episódio não sirva apenas para gerar tema de artigos, posts e manifestações em redes sociais, ou para que não sirva de substrato para ações políticas de efeito (oportunistas ou marqueteiras), as autoridades brasileiras, em âmbito privado e público, poderiam, ou deveriam, criar um projeto nacional permanente de formação, desenvolvimento e inserção por via do futebol, com premissas, pautas, objetivos e avaliação de resultados. E, nele, instituir instrumentos de acompanhamento e de defesa dos interesses de afirmação do Brasil e de brasileiros e brasileiras que expõem o país pelo mundo.
A Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro organizou, no mês de março do corrente ano, o XVII Seminário de Gestão Esportiva, em colaboração com a FIFA e o CIES. Os principais temas abordados no evento foram a SAF (Sociedade Anônima do Futebol) e o mercado que se está construindo a partir da promulgação da Lei da SAF. Participaram dos debates profissionais de (realmente) altíssimo nível, dentre eles ministros de tribunais superiores, magistrados, secretário do Ministério dos Esportes, senadores da república, deputados federais, membros do COAF, a diretora do departamento jurídico do Banco do Brasil, a diretora de regulação da B3, presidentes da CVM e da CBF, advogados, professores e o ex-jogador Zico. Estiveram presentes também: Domingos Soares de Oliveira, CEO do Grupo Benfica; Francisco Zenha, Vice-Presidente Executivo e CFO no Sporting Clube de Portugal; e Susana Dias, Diretora de Planejamento Financeiro e Controle de Gestão no Grupo Futebol Clube do Porto, que protagonizaram apresentações memoráveis, objeto do presente texto. Notou-se, logo na partida das exposições, que existe uma distância quase oceânica entre as proposições formuladas pelos dirigentes portugueses e o reacionarismo brasileiro, que, mesmo após o advento da Lei da SAF, ao invés de contribuir com a formulação de propostas que visem o desenvolvimento do sistema, persiste na busca de meios para inviabilizá-la. Assim, sociedade anônima, vias de financiamento da empresa futebolística, abertura de capital, governança, compliance, transparência e técnicas de controle interno são expressões, ou melhor, institutos que há muito tempo integraram a realidade do ambiente do futebol português; os quais, aliás, não desconfiguraram times como os próprios Benfica, Sporting e Porto, que continuam a ser e a representar, na sociedade local e perante seus torcedores, o que foram e sempre serão. Nenhum dos três expositores apresentou qualquer dúvida ou arrependimento em relação à passagem para o modelo de sociedade anônima desportiva - SAD, tipo de companhia arquitetada para organizar o esporte no país. Sobre ela e o acesso ao mercado de capitais, o CEO do Benfica indicou, como vantagens: acesso a investimento externo; estruturação de instrumentos de dívida adicionais; boa governança; transparência nos atos de gestão; informação regular e detalhada; rigor no nível de normas e processos; e controles interno e externo. Mas como "nem tudo são flores", num ambiente evoluído, após a detecção de ineficiências, propõem-se ajustes, para melhoria do sistema - ao contrário do que, não raro, verifica-se na antiga colônia, pródiga em contrarreformas estabelecidas para restaurar privilégios - como se passou, por exemplo, em quase todas as mudanças operadas na Lei Pelé. Naquele sentido, o Vice-Presidente e CFO do Sporting apontou que o Governo de Portugal irá avançar com reformas na Lei das SADs para: reequilibrar direitos na relação entre clubes fundadores e sociedades desportivas - algo que a Lei da SAF estabelece ao conferir prerrogativas exclusivas aos clubes enquanto permanecerem acionistas da SAF; reforçar requisitos de idoneidade; reduzir conflitos de interesses (ou incompatibilidades); reforçar a transparência; reforçar a publicidade; e criar um regime contraordenacional. Esses movimentos afirmativos tendem a intensificar a posição no cenário futebolístico de times como o tradicional Porto, que passou, conforme conteúdo da palestra proferida por sua Diretora, pelas seguintes etapas: - 1997: Constituição da SAD - 1997: Aumento de capital da SAD - 1998: Admissão em Bolsa de Valores - 2000: Redenominação do capital de Escudos para Euros - 2001: Novo aumento de capital - 2014: Mais um aumento de capital, que passou para 112,5 milhões de Euros (algo em torno de, conforme cotação atual, R$ 604 milhões). Susana Dias indicou, na linha do que fora dito pelo colega benfiquista, que constituem vantagens de uma SAD estar cotada em bolsa: acesso a fontes de financiamento externo; melhoria constante na operação e sujeição a procedimentos regulatórios que não podem ser protelados; proteção dos negócios e dos investidores; e credibilidade e transparência ao exterior. Desvantagens também foram elencadas por ela: dualidade de relacionamento com os stakeholders; obrigatoriedade de cumprimento de "imensidade" de regras de governança; necessidade de comunicações frequentes ao mercado via CMVM (tais como fatos relevantes); necessidade de produção de uma série de relatórios periódicos. Note-se que as desvantagens demandam, como regra, o emprego de pessoas e recursos para atendimento das exigências regulatórias, e não, muito ao contrário, a existência de aspectos que possam inviabilizar a SAD ou tornar o regime clubístico mais atrativo. Não pareceu haver, na experiência portuguesa, apresentada pelos representantes dos mais tradicionais times locais, qualquer nostalgia ou pretensão de regresso ao passado. Por outro lado, sentiu-se - ao menos foi a minha percepção - uma certa surpresa com o fato de que um país com a dimensão, a população e o PIB brasileiros, que dispõe de mais de 20 times com mais de 1 milhão de torcedores e que corresponde a (aproximadamente) 11% dos negócios mundiais envolvendo jogadores, não protagoniza (ou, ao menos, participa em alto nível) o mercado do futebol. A aparente surpresa (novamente, esta foi a minha impressão) se justifica, para quem tem mínimos conhecimentos do ambiente nacional, com alguma facilidade: ausência do Governo (minimamente preocupado com o tema); ausência de políticas públicas (em todos os níveis e esferas) com intuito de transformar o futebol em instrumento de desenvolvimento econômico e social; apropriação do bem futebolístico pelas arcaicas estruturas associativas; inexistência de vias de financiamento da empresa futebolística; e conflitos de interesses. Por esses e outros motivos, a sensação de quem participou do evento - ao menos essa foi a minha -, ao final, era de esperança e melancolia: esperança pela perspectiva daquilo que o Brasil poderia (ou poderá) ser; melancolia por aquilo em que se transformou (em função de sucessivos equívocos públicos e privados).
O recente decreto 11.498/23, de 25 de abril de 2023, pode viabilizar novos e eficientes mecanismos de financiamento para o futebol, e atenua - ainda que parcialmente - um equívoco histórico. Isto pois o Projeto de Lei 5.516/19, que deu origem à Lei da SAF, previa a criação da debênture-fut, valor mobiliário destinado ao financiamento da atividade futebolística. A debênture-fut resistiu, na íntegra, ao processo legislativo. O texto foi aprovado por unanimidade no Senado Federal e por ampla maioria na Câmara dos Deputados. Desse modo, os "rendimentos decorrentes de aplicação de recursos em debênture-fut [sujeitar-se-iam] à incidência do imposto sobre a renda, exclusivamente na fonte, às seguintes alíquotas: I - 0% (zero por cento) quando auferidos por pessoa natural residente no País; e II - 15% (quinze por cento) quando auferidos por pessoa jurídica ou fundo de investimento com domicílio no País, ou por qualquer investidor residente ou domiciliado no exterior (...)". Pretendia-se, com a debênture-fut, criar um mercado de emissões e negociações secundárias, para estimular o desenvolvimento do futebol no país.   Apesar da passagem pelas duas casas legislativas, a iniciativa foi vetada pela Presidência da República. Alegou-se, em fundamento do veto, que a estrutura de tributação da debênture-fut implicaria suposta renúncia fiscal, em face de regime tributário beneficiado. Isto, porém, não era realista, pois jamais esteve contemplada em orçamento qualquer previsão de arrecadação de tributos incidentes sobre emissões, no mercado de capitais, de títulos relacionados ao futebol. A perspectiva arrecadatória, aliás, nascia justamente com a Lei da SAF. Perdeu-se, ali, uma oportunidade histórica para estimular o surgimento de relações jurídicas que, ademais, sob o prisma puramente fiscalista, fomentariam atividades e relações econômicas, atraindo a incidência da norma tributária e gerando efetivo aumento, isto sim, da arrecadação. Aquela perspectiva, apesar de reformulada, voltou à pauta, com a publicação do decreto 11.498/23. O decreto 11.498/23 alterou o decreto 8.874, de 11 de outubro de 2016, que instituiu, com base no art. 2º da lei 12.431/11, setores prioritários, sujeitos ao enquadramento no projeto nacional de desenvolvimento da infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação. Os setores originalmente considerados foram: logística e transporte; mobilidade urbana; energia; telecomunicações; e radiodifusão. Com o advento do decreto 11.498/23, foram acrescentados os seguintes novos setores: equipamentos culturais e esportivos; saneamento básico; irrigação; educação; saúde; segurança pública e sistema prisional; parques urbanos e unidades de conservação; habitação social; e requalificação urbana. O enquadramento sujeitará os rendimentos auferidos por pessoas físicas ou jurídicas residentes no País à incidência do imposto sobre a renda, exclusivamente na fonte, às seguintes alíquotas: I - 0% (zero por cento), quando auferidos por pessoa física; e II - 15% (quinze por cento), quando auferidos por pessoa jurídica tributada com base no lucro real, presumido ou arbitrado, ou por pessoa jurídica isenta ou optante pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (SIMPLES). Apesar de o Estado insistir em não incluir o esporte (em especial o futebol) na lista de setores prioritários, reconheceu-se esse tratamento a equipamentos esportivos, consistentes em espaços ou construções destinadas à prática do esporte. Neste conceito se enquadram estádios, arenas, centros de treinamento e outros com finalidades análogas. A solução não atende de modo pleno às necessidades de desenvolvimento da atividade futebolística no país, pois, em muitos casos, certos (ou diversos) times, que passarem a ser organizados por meio de SAF, demandarão, mais do que recursos para emprego em equipamentos esportivos, financiamentos para renegociação e pagamento de dívidas caras, melhoria de plantel e outras destinações não inseridas no conceito de equipamentos. Mesmo assim, a nova regulamentação poderá viabilizar investimentos relevantes, com eventuais efeitos transformacionais e de impacto, em entidades que se revelem enquadráveis. Será o caso, para citar um exemplo, do São Paulo, que poderá empreender a reforma do Morumbi - tema que vem sendo tratado na imprensa -, com recursos oriundos de captação incentivada. Ou do Sport, cujo projeto de revitalização de seu estádio também costuma ser noticiado na mídia. Ou ainda do Coritiba, atualmente envolvido em operação de SAF que engloba, segundo informações públicas, robusto investimento em estádio. Importante: o clube, constituído sob a forma de associação, não poderá emitir debênture incentivada de equipamento esportivo, pois o art. 2º da lei 12.431/2011 vincula a emissão à constituição de sociedade de propósito específico, organizada sob a forma de sociedade por ações, que poderá ser uma SAF, por força do art. 1º, §2º da Lei da SAF, que admite a inclusão, no objeto social, da seguinte atividade: exploração econômica de ativos, inclusive imobiliários, sobre os quais detenha direitos. Enfim, o decreto 11.498/23 poderia ter reparado um equívoco histórico, com o reconhecimento da relevância e da prioridade do esporte e do futebol para o desenvolvimento social e econômico da Nação; não o fez e não adianta, agora, reclamar pela parte vazia do copo. Pois, sim, uma parte está cheia e, a partir dela, times e investidores poderão estruturar projetos viabilizadores de captações mais baratas e do seu emprego em equipamentos esportivos - que poderão, a exemplo do que ocorreu com a construção da arena do Palmeiras, marcar o início de novas eras em suas histórias.
Não custa lembrar, neste quarto e último texto relacionado à importância do Estado de Minas Gerais sobre o futuro do futebol, que, de lá, partiram movimentos essenciais para formação do País - e para consagração de ideais e valores da Nação. A inconfidência foi um deles. Tirante os ufanismos que embalam, não apenas no Brasil, as figuras históricas (e supostamente heroicas), utilizadas para justificar certas pretensões políticas, éticas ou morais que flutuam com o tempo - como Tiradentes -, a iniciativa promovida no final do século XVIII pretendia, dentre outros propósitos, resistir aos excessos da política fiscal praticados pela Coroa portuguesa.  A região (ou capitania) de Minas Gerais era a mais pujante da Colônia e contribuía, por meio de pesada carga tributária, para o financiamento da dívida pública Real, vinculada ao Reino Unido. A proposição separatista, subjugada pelas autoridades submissas a Portugal, serviu, porém, para enraizar o ideal de liberdade. No plano do futebol, liberdade é algo que não se conheceu desde a introdução do esporte, no século retrasado. Trata-se de uma atividade aprisionada em modelo associativo, organizado e liderado, como regra, por integrantes das elites político-clubísticas, que não cobram tributos, mas exercem poder absoluto sobre o patrimônio e o destino dos times (sem qualquer contrapartida, inclusive de dinheiro e, na prática, de responsabilidade por atos temerários e de outras espécies). A Lei da SAF, de autoria do Senador mineiro Rodrigo Pacheco (atual Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional), tem como objetivo oferecer alternativas (e soluções) àquele estado de coisas; e, como se supunha, vem encontrando resistência justamente nos grupos de interesses que se beneficiavam e continuarão a se beneficiar (caso não se consiga implementar a mudança necessária) da estrutura secular que impede o desenvolvimento da atividade futebolística e da sociedade brasileira. Os principais embates, como já indicado em textos anteriores, ocorrem, atualmente, no âmbito da Justiça do Trabalho, e, muito importante: não envolvem a supressão de direitos, garantidos na legislação própria; mas envolvem, sim, em muitos casos, a tentativa de alargamento interpretativo ou deturpação de conceitos com o propósito de atribuir responsabilidades a quem, sob o prisma jurídico, não as tem. Esta proposição, é óbvio, não ampara eventuais ilegalidades ou fraudes, praticadas casuisticamente, as quais, se e quando verificadas, deverão ser punidas com rigor. Mas deixemos as patologias de lado e voltemos à análise do sistema. A acusação de existência de grupo econômico é tema recorrente em reclamações trabalhistas e se expande, também, para o ambiente da Lei da SAF. A pretensão decorre do art. 2º, e seus parágrafos, da CLT: "Art. 2º (...) §2º Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego. §3o Não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes".         Para que a lei seja aplicada de forma adequada, deve-se compreender a origem e o conceito de grupo. O ponto de partida é a Lei das Sociedades Anônimas, de 15 de dezembro de 1976. O art. 265 desta lei estabelece que a sociedade controladora e suas controladas podem constituir grupo, mediante convenção. Convenção é ato formal, no qual as partes integrantes se obrigam a combinar recursos ou esforços para realização de seus objetos ou para desenvolvimento de empreendimentos comuns. Pela natureza do conteúdo convencionado, as partes podem ser compelidas a preterir interesses próprios em benefício do grupo ou da sociedade de comando (geralmente, a controladora). O preterimento do interesse próprio ocorre, assim, mediante autorização legal. Apesar de não haver ilegalidade em tal conduta, ela tem potencial de afetar a autonomia patrimonial e, consequentemente, os objetivos individuais da sociedade que se submete à orientação grupal. Tal arranjo é conhecido como grupo de direito, pois decorre de tipificação legal. Na prática, quase não existe um grupo de direito, formado a partir de uma convenção aprovada pelas sociedades envolvidas. Daí o surgimento do conceito doutrinário de grupo de fato. Caracteriza-se o grupo de fato quando se verifica a situação descrita na norma, mesmo sem a existência de uma convenção. O grupamento (de fato) se afirma, portanto, pela existência de ligações de natureza societária, entre controlador e sociedades controladas, e não oriundas de um acordo formal (a convenção).  No âmbito de um agrupamento de fato, não se encontrarão, assim, acordos expressos em que as partes se obrigam a combinar recursos ou esforços, mesmo em detrimento de interesses individuais, para realização, por exemplo, de uma atividade que interesse ao controlador - e que, para dar andamento, envolverá a sociedade controlada em situação que não se verificaria se a relação fosse independente. Por tais motivos, a caracterização do grupo de fato dependerá da avaliação casuística e da comprovação, mesmo que tácita, da combinação. Na esfera trabalhista, cível ou societária, a lei não autoriza o reconhecimento do grupamento de fato se os elementos da combinação não estiverem presentes. Esta afirmação se extrai, por exemplo, do parágrafo 3º do art. 2º da CLT: "[n]ão caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes". Desse modo, podem ser extraídas algumas conclusões fundamentais, as quais deveriam servir à orientação do(a) julgador(a) em tema que envolva a Lei da SAF, por ocasião da aplicação normativa: 1. O fato de o clube deter participação societária na SAF implica a formação de grupo econômico? R. Não, conforme a legislação vigente (e a melhor doutrina). 2. E se o a participação do clube for majoritária (o que não se verifica, por exemplo, em Cruzeiro, Botafogo, Vasco e outras operações de SAF)? R. A conclusão é a mesma. Haverá necessidade inafastável de demonstração do exercício do controle da SAF pelo clube, quando o caso, para execução combinada de atividades ou empreendimentos, sem observância da autonomia da própria SAF. 3. Quando, então, haverá caracterização de grupo, de fato ou de direito, que atrairá a incidência do parágrafo 3º, art. 2º da CLT? R. Na hipótese de - existindo ou não uma convenção (ou acordo) entre sociedades controladora e controladas -, a relação entre elas indicar que recursos ou esforços são combinados para realização dos respectivos objetos, ou para participação em atividades ou empreendimentos comuns. Em outras palavras, extraídas da normatização laboral, quando entidades que "estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico"; grupo econômico que se revelará com a combinação indicada na primeira parte desta resposta. 4. Existe combinação de esforços ou participação em atividade ou empreendimento comuns, pelo simples fato de um clube deter participação societária em uma SAF? R. Não. Pelo mesmo motivo que uma pessoa que, hipoteticamente, detém, 0,001% ou 10% das ações de uma companhia aberta, como o Banco Itaú, não empreende, com o Banco, uma atividade comum - que é exclusiva do próprio Banco, enquanto a pessoa é apenas uma acionista. O clube, no mesmo sentido, pela simples propriedade acionária, também não se revela participante do empreendimento, portanto, da atividade futebolística, que é desenvolvida pela SAF, em esfera patrimonial autônoma e segregada.
Já expus nos dois textos anteriores desta minissérie a opinião de que o futuro do futebol brasileiro será decidido, aparentemente, nos Tribunais do Estado de Minas Gerais. Mas o objeto das disputas não envolverá o jogo de bola ou normas esportivas que regulam as relações entre clubes, jogadores e demais agentes que integram o ambiente futebolístico. A tensão tem a ver com a possibilidade de afirmação de um sistema alternativo ao secular (e anacrônico) sistema associativo, que resiste, de modo predominante, apenas nos países periféricos, e se apresenta como uma oportunidade histórica e emergencial. Histórica porque, após mais de um século de apropriação do futebol pelas associações sem fins lucrativos, surgiu, em 2021, uma opção (salvadora) para clubes, torcedores e para o próprio país. E emergencial porque, após anos ou, conforme determinados casos, décadas de irresponsabilidade e malversação das coisas clubísticas, que geraram um endividamento consolidado superior a R$ 10 bilhões, a mencionada opção, consubstanciada na Lei da SAF, de autoria do Senador mineiro Rodrigo Pacheco (Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional), passa, como já se esperava, pelo sofrimento de ataques de forças reacionárias que pretendem manter tudo como estava antes do advento daquela Lei. A principal tese se evidencia e se coloca na Justiça do Trabalho. E o cerne dela envolve uma suposta obrigação solidária da SAF pelos passivos do clube que a constitui. Reconhecendo-se a solidariedade, o credor do clube poderá exigir a satisfação integral de qualquer dos devedores solidários (portanto, da SAF). Essa construção deriva do art. 264 do Código Civil, segundo o qual: "há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda". Aliás, o conceito de solidariedade, constante do Direito Civil, também se replica em outros ramos do direito, os quais, apesar de dotados de princípios e procedimentos próprios, devem estar restritos ao mesmo conteúdo. Neste sentido, a solidariedade, de acordo com o art. 265 do citado Código, não se presume. Ela decorre da lei ou da vontade das partes. Não se pode, assim, ampliar a sua extensão. Trata-se de pressuposto de segurança jurídica e de paz social. Em outras palavras: pessoas, físicas ou jurídicas, que não contribuíram diretamente para a constituição da obrigação não podem responder solidariamente por ela, exceto se por força expressa de lei ou de contrato. Isto é um pressuposto necessário para preservação da estabilidade das relações. No plano laboral, a temática é tratada no art. 2º da CLT. O §2o estabelece que "sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego". Não se propõe, aí - e nem poderia - um alargamento do conceito de solidariedade. Procura-se, porém, estabelecer seu enquadramento, para efeitos de responsabilidade derivada de obrigações trabalhistas. E assim se prevê uma espécie de "chave", necessária para abertura da porta da responsabilização: a existência de grupo econômico. Os excessos históricos na identificação da relação grupal resultaram na introdução do §3o ao mencionado art. 2º, que estabelece o seguinte: "não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes". Ou seja, se não houver demonstração de interesse integrado, não se configurará solidariedade. Mesmo que os sócios, por exemplo, sejam os mesmos. E mais ainda se não forem os mesmos. Isso não significa que, numa determinada situação, sócios e administradores não pratiquem atos fraudulentos, passíveis de solucionamento por vias pertinentes - que levarão, inevitavelmente, a alguma forma de responsabilização. Mas se tratará de patologia corrigível, como já se indicou, por outros meios. Trazendo isso ao plano da Lei da SAF, que não prevê, nem na mais forçada e interessada das interpretações, hipótese legal de solidariedade entre o clube e a SAF, esta situação somente se operaria se, e apenas se, (i) decorresse da vontade das partes envolvidas, manifestada, de modo geral, em contrato, ou (ii) houvesse a configuração de grupo econômico - algo para que, como a própria CLT estabelece, a mera de identidade de sócios não seria - e não é - condição suficiente. E como reconhecer o grupamento em situações que vêm sendo praticadas para salvamento de times brasileiros, tais como Botafogo, Vasco e Cruzeiro, em que sequer inexiste a identidade de sócios? Sim, pois os associados dos clubes não se confundem com os sócios da SAF, que costuma ter, na composição de seu capital, além do próprio clube constituinte com participação minoritária, investidores estranhos aos quadros associativos originários dos clubes. E não apenas isso. Também não costuma existir qualquer relação de ingerência, de participação em atos internos (exceto em deliberações colegiadas de conselheiros nomeados pelo clube na SAF) ou de interesse integrado entre o clube e a SAF, e vice-versa, a caracterizar um grupo econômico. Daí a importância que os Tribunais mineiros terão na solução de demandas em curso, algumas com decisões de primeiro grau já proferidas, que se afastam das hipóteses descritas na norma para, aparentemente, afirmar uma ideologia que, na prática, vai contra os ideais pretendidos. É o caso da Ação Trabalhista 0010098-37.2020.5.03.0001, promovida pelo ex-jogador Frederico Chaves Guedes (Fred) contra o Cruzeiro Esporte Clube, em que se praticam tremendos esforços interpretativos, com a evocação de artigos estranhos ao tema da solidariedade, para, ao final, alcançar a SAF, com base nos seguintes argumentos: "Posto que tenha havido a sucessão parcial do empreendimento, nos ditames da lei 14.193/21, permanece a garantia de que qualquer mudança empresarial não poderá afetar os contratos de trabalho (arts. 10 e 448, da CLT), de forma que se impõe a responsabilidade solidária in casu por expressa disposição celetista. Dessarte, a sociedade empresária Cruzeiro Esporte Clube - Sociedade Anônima do Futebol deve ser responsabilizada solidariamente pelo débito exequendo, nos termos do artigo 2º, § 2º, da CLT, pelo que determino a sua inclusão no polo passivo da demanda". Não se nega que a CLT declara a existência de solidariedade quando se demonstrar a existência de grupo econômico; mas a demonstração deverá ser feita casuisticamente, com base em elementos inequívocos do próprio caso, e jamais de modo presumido - sobretudo para se promover uma suposta justiça social (que, sem suporte legal, não deixa de ser uma forma de justiçamento). Enfim, Justiça se fará se, após o aprisionamento histórico do futebol, ele for, pelas forças do Estado (legislativas e judiciárias, em especial), libertado para constituir-se em atividade que contribua, em prol da coletividade, para o desenvolvimento econômico, social, educacional e, claro, esportivo da Nação.  
Nas duas últimas semanas, esta coluna se debruçou sobre os desafios que vêm sendo enfrentados pela lei 14.193/21, a Lei da SAF. O processo legislativo é essencialmente complexo, envolve etapas técnicas, longas e intrincadas, inclusive para equalizar interesses dos legisladores que são, muitas vezes, contrapostos. Há ainda uma etapa adicional, que nem sempre é considerada pelos operadores de direito ou pelos destinatários diretos da norma, que é aquela travada nos tribunais locais, após o início da vigência do novo diploma legal. É o que acontece hoje com a Lei da SAF em alguns tribunais locais, que irão definir os rumos da jurisprudência sobre o tema. O mais novo e rumoroso desdobramento que ganhou as manchetes pelo Brasil aconteceu no estado de Minas Gerais, onde tramita atualmente a recuperação judicial do Cruzeiro Esporte Clube. Frederico Chaves Guedes, ou Fred, foi jogador do Cruzeiro e, em sua última passagem pelo clube, desligou-se no começo de 2020. Atualmente, o ex-jogador processa o clube mineiro e demanda valores da ordem de R$ 30 milhões. A dívida foi constituída em reclamação trabalhista proposta no início de 2020, antes do processo de recuperação judicial da Associação Cruzeiro e da constituição da SAF Cruzeiro. Os recentes desdobramentos decorrem da quebra de um acordo celebrado exclusivamente entre a Associação Cruzeiro e Fred.  Há algumas semanas, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região proferiu decisão determinando que a SAF Cruzeiro efetue o pagamento da dívida da Associação. A determinação proferida nos autos reclamação trabalhista é consequência de decisão datada de outubro de 2022, quando referido Tribunal entendeu que a SAF deve responder solidariamente pelo débito da Associação. A nosso ver, o entendimento do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região parte de uma interpretação equivocada da Lei da SAF. A decisão citada, que responsabilizou a SAF Cruzeiro solidariamente, faz expressa menção aos arts. 9º e 10 da Lei da SAF, mas de forma equivocada. A limitação imposta pelo art. 9° é clara: a SAF não é responsável por repasses ou tampouco pelas dívidas das associações anteriores à sua constituição, com exceção da hipótese contida no art. 10. Este dispositivo, por sua vez, prevê que a SAF realizará repasses à Associação quando (i) a Associação adotar o Regime Centralizado de Execuções ("RCE"), hipótese em que serão vertidos 20% de suas receitas (inciso I) ou (ii) a Associação receber dividendos (ou outros pagamentos decorrentes da posição de acionista da SAF), caso em que 50% do montante recebido deverá ser destinado à satisfação de obrigações anteriores à constituição da SAF (inciso II). Em resumo, a legislação veda a responsabilização da SAF por obrigações relacionadas à Associação e prevê duas hipóteses em que poderão ser realizados repasses. E nenhuma dessas hipóteses se confunde com o que acontece hoje na recuperação judicial da Associação Cruzeiro ou na reclamação trabalhista proposta por Fred. Há dois principais equívocos no entendimento do Tribunal. O primeiro é o de que o art. 10 estabeleceria uma hipótese de responsabilização solidária da SAF, o que não ocorre. O dispositivo trata da possibilidade de repasse nas duas hipóteses acima, bem delimitadas pela letra da lei. O segundo é o de que a recuperação judicial seria equivalente às hipóteses contidas nos incisos do art. 10, mas essa não é a realidade. É bem verdade que a Associação Cruzeiro optou em um primeiro momento pelo RCE. Posteriormente, contudo, a Associação desistiu da medida e deu início ao processo de recuperação judicial hoje em curso.   O pagamento de credores da Associação Cruzeiro, sejam eles trabalhistas ou não, deve observar o plano de recuperação judicial que será ainda votado em assembleia, em atenção concurso universal dos credores. Essa importante conclusão não implica dizer que a SAF Cruzeiro não efetuará repasses ou aportes para garantir o pagamento dos credores da Associação, mas que inexiste regra legal que imponha a solidariedade, que, nos termos do art. 265 do Código Civil, não pode ser presumida. Originalmente, a intenção do legislador foi segregar a Associação da SAF, justamente para permitir o desenvolvimento da SAF e estimular investidores locais ou internacionais a alocar seus recursos nos clubes e no futebol brasileiro. Em outras palavras, a Lei da SAF intencionalmente não previu a responsabilização solidária da SAF justamente para que, em um ambiente seguro, sejam atraídos novos recursos para recuperar, estimular e desenvolver a atividade futebolística. Ao mesmo tempo, a Associação não deixará de receber valores da SAF ou de auferir rendimentos, mas suas dívidas serão readequadas para viabilizar investimentos. Essa foi a intenção do legislador. Além disso, a Associação deterá participação societária em uma SAF que tem valor econômico significativo e que lhe deverá gerar recursos, distribuíveis via dividendos, por exemplo. Assim se equilibram interesses:  ao mesmo tempo em que as associações devem reduzir ou eliminar as dívidas que acumularam ao longo de anos, procurou-se criar um ambiente de segurança jurídica para realização de negócios, de modo a garantir o desenvolvimento do futebol e dos clubes. O Poder Judiciário deve, nesse sentido, reforçar a segurança jurídica e não servir como elemento desestabilizador. Caso contrário, a jurisprudência que está se formando nos tribunais locais servirá apenas para a manutenção de um sistema que é intolerável nos dias atuais, com a ultrapassada lógica de benefícios de cartolas, intermediários e outros privilegiados.
A Escola Judicial do TRT - 3ª Região e a Revista Justiça e Cidadania organizaram, no dia 31 de março de 2023, em Belo Horizonte, seminário que tinha como mote "A Lei da SAF e a Profissionalização da Gestão do Futebol no Brasil". O evento foi organizado pelo Min. Alexandre Agra Belmonte e pela Des. Rosemary de Oliveira Pires Afonso. A irretocável organização reuniu um time de autoridades judiciárias que, se integralmente listadas, tomariam grande parte deste espaço, dentre as quais o Des. Ricardo Antonio Mohallem, Presidente do TRT-3; o Min. João Otávio de Noronha, ex-Presidente e Min. do STJ; o Des. Flávio Boson, do TRF-3; o Des. Paulo Sifuentes, desembargador aposentado do TRT-3; o Des. Moacyr Lobato, do TJMG; o Des. José Murillo de Moraes, do TRT-3; e o Min. Evandro Valadão, do TST. Também participaram do evento advogados, professores, congressistas e representantes dos principais times mineiros: Galo, Cruzeiro e América.   A pertinência do encontro foi antecipada no texto da semana anterior: é no Estado de Minas Gerais, terra do Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, além de autor da Lei da SAF, Rodrigo Pacheco, e do clube pioneiro na adoção dos mecanismos da Lei, o Cruzeiro, que se travam as mais avançadas disputas, no plano judicial, entre, de um lado, o continuísmo de um modelo futebolístico instituído pela elite excludente (que antecede, aliás, a Lei Aurea), e, do outro lado, a perspectiva revigorante da Lei da SAF. Um dos painéis do evento tinha como propósito tratar de eventuais "propostas de alterações legislativas". Toda nova lei passa por um período de compreensão e acomodação, até que dela se comece a extrair certa unicidade. A doutrina e a jurisprudência têm, como sempre, papel relevante na construção sistêmica. A questão que se coloca, então, é a seguinte: apesar da juventude, a Lei da SAF já precisaria de uma reforma? E se a resposta for afirmativa, de qual dimensão? Partindo-se da premissa de que ainda não houve tempo suficiente para que os Tribunais proferissem decisões em quantidade necessária para construção da segurança jurídica reclamada pelo jurisdicionado, talvez fosse o caso de se concluir que, por enquanto, o emprego de energia em movimento reformista é prematuro. Mas será que essa conclusão se manteria: (i) com a constatação de que a insegurança provém justamente da falta, mesmo que prematura, de uniformidade jurisprudencial?; e, ainda, (ii) se se reconhecesse que os times e os possíveis financiadores da empresa futebolística, com todo seu potencial esportivo, educacional, social e econômico, não aguentarão (ou aguardarão) o tempo do processo judicial e o percurso de todas as suas etapas até que, enfim, uma decisão superior, irrecorrível, estabilize o conteúdo normativo? Pois bem. É isso que ocorre no terreno em que, ao contrário, espera-se pacificação. Daí, aliás, as preocupações de agentes de mercado que se dispuseram a contribuir para construção do sistema (claro, em troca da perspectiva ou expectativa de obtenção de retornos financeiros, que se manifestarão sob a forma de dividendos ou ganhos de capital em eventual venda futura), mas que, pela instabilidade que não compunha a fórmula de cálculo do risco empresarial, podem rever suas posições, reduzir investimentos ou mesmo decidir que sequer entrarão no negócio. E, com isso, oportunidades de atração de recursos restarão dissipadas, em desfavor justamente dos times, dos torcedores, dos atletas, dos empregados e dos próprios credores de clubes. Incertezas, nesse sentido, surgem de temas que não deveriam suscitar dúvidas, como, para citar alguns exemplos, os destacados a seguir, que foram abordados no mencionado seminário: 1.  A SAF responde pelas obrigações do clube que a constituiu? Como regra geral, não, conforme previsão expressa do art. 9º da Lei da SAF. Mas este artigo prevê, sim, uma exceção, que se forma desde que uma (i) obrigação seja relacionada ao objeto da SAF (portanto, o futebol); e (a partícula conjuntiva está presente na Lei) (ii) a obrigação seja transferida da esfera patrimonial do clube para a da SAF. Sem a identificação de ambos os elementos, a responsabilidade, de acordo com a Lei, será preservada, de modo exclusivo, no clube. Esta foi a opção legislativa. Assim, ao se pretender estender à SAF a responsabilidade por obrigação mantida no clube, eventual decisão nesse sentido desconsiderará o texto expresso da própria Lei. 2. A SAF deverá direcionar ao clube que requerer recuperação judicial 20% de suas receitas correntes mensais, na forma do art. 10? A resposta está na própria Lei da SAF: não. Esta situação de repasse de percentual de receitas se aplica, conforme comando expresso, apenas no âmbito do regime centralizado de execuções ("RCE"). Portanto, a determinação judicial de direcionamento de recursos da SAF ao clube em recuperação judicial não encontra previsão legal. Isso não quer dizer que o plano de recuperação não poderá prever um fluxo especial, eventualmente até maior, de recursos ou receitas da SAF ao clube, para satisfazer obrigações anteriores, de responsabilidade exclusiva do clube. Mas eventual decisão nesse sentido competirá aos respectivos agentes envolvidos - e não por força de comando legal -, após as necessárias análises relacionadas ao plano recuperacional. 3. A SAF é ou será em algum momento responsável solidária pelas obrigações do clube? A Lei prevê, no art. 24, que, caso o clube adote o RCE - e apenas neste caso -, a SAF passará a ser responsável subsidiária (e não solidária), após o decurso do prazo de até 10 anos (e apenas após o decurso), pelas obrigações (e somente estas) que eventualmente remanescerem. O texto é cristalino. Portanto, não existe previsão de solidariedade e, quanto à responsabilidade subsidiária, ela só nascerá a partir da verificação, ao cabo do prazo legal, que ainda remanesce obrigação do clube com fato gerador anterior à existência da SAF. Esses são alguns exemplos de temas que vêm sendo suscitados em teses jurídicas, as quais são criadas, em regra, somente para viabilizar a satisfação de interesses individuais e desconectados do propósito principal da Lei da SAF, que é servir como solução sistêmica e coletiva, oferecida aos clubes e à coletividade. Caberá ao Poder Judiciário, em especial o mineiro, resolver esse (falso) dilema. Houvesse já um acúmulo de decisões, mesmo que de primeira instância, que contribuíssem para conferir a segurança jurídica necessária para a criação de um dos maiores mercados futebolísticos do planeta, em linha com os objetivos e com a essência da Lei da SAF, qualquer proposta de reforma legislativa soaria oportunista, neste momento. Diante, porém, dos ataques que sofre, ajustes cirúrgicos e pontuais - que, na verdade, apenas reforçariam o que já está previsto -, por mais absurdo que isso possa parecer, talvez façam sentido. 
O Estado de Minas Gerais sempre teve um papel fundamental nos destinos da República - e, aqui, para efeitos do presente texto, faz-se um recorte histórico, pois, muito antes da proclamação, a região e sua gente já participavam e protagonizavam eventos sociais, econômicos e políticos relevantes e determinantes. De lá saíram, ademais, diversos personagens incontornáveis - e mesmo - essências da história brasileira.  Costuma se dizer, até, e com razão, que um candidato à presidência não se elege se não ganhar a eleição naquele Estado. Assim se mostrou, na prática, desde o recobro do regime democrático, com as vitórias, em Minas Gerais, de todos os presidentes eleitos: Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso (em suas duas disputas), Lula (também em duas ocasiões consecutivas), Dilma Rousseff (igualmente duas vezes, sendo que, na segunda, contra o conterrâneo Aécio Neves), Jair Bolsonaro e, finalmente, Lula (em sua terceira vitória). No futebol, a importância histórica dos times mineiros dispensa qualquer textualização. Basta lembrar que o primeiro campeão brasileiro, em 1971, foi o Galo. E que, na década de 2010, o Cruzeiro enfileirou dois campeonatos brasileiros seguidos (2013 e 2014) e duas copas do Brasil, também consecutivas (2017 e 2018). Independentemente do êxito esportivo que se alcance anualmente - pois, sim, sempre haverá um campeão em qualquer ano -, o futebol brasileiro, aí incluídos todos os clubes que fazem parte de seu sistema até o advento da Lei da SAF, foi ficando para trás, em todos os níveis. De referência planetária, passou ao posto de exportador de pé-de-obra. No plano organizacional, manteve o que havia de mais obsoleto, enraizado desde o século retrasado, em um tempo antecedente à Lei Áurea. E, no plano financeiro, manteve-se dependente dos subsídios estatais e refém de vias heterodoxas de financiamento da atividade futebolística, pela incapacidade jurídica de acesso ao mercado de capitais. O resultado, todos conhecem: a formação de um enorme passivo social e financeiro, contabilizado em dívidas bilionárias, cujo ônus é distribuído, em última análise, aos contribuintes. Pois de Minas Gerais veio a solução, já mencionada acima: a lei 14.193/21 (ou Lei da SAF ou, ainda, conforme nome adotado nesta coluna, Lei Rodrigo Pacheco), de autoria justamente do mineiro Rodrigo Pacheco, Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional. Antes da Lei da SAF, não havia luz no final do túnel. Para ficar apenas nas Minas Gerais, o Cruzeiro, enterrado em dívidas, não tinha saída por seus próprios meios e caminhava para um colapso que seria muito mais grave do que o rebaixamento para segunda divisão. Logo após o advento da Lei, ainda coberta de desconfiança, espalhada pelos corneteiros do caos, que não querem mudar nada, e quando apoiam alguma mudança almejam, na verdade, a manutenção do status quo, o país - e o mundo - foram surpreendidos com a notícia de que Ronaldo Nazário investiria no time que o revelara - o Cruzeiro. Ali se deu o sinal de que algo estava acontecendo e chamou atenção de possíveis financiadores da atividade futebolística. Na sequência desembarcaram, advindos de distintos países, outros investidores. A perspectiva transformacional se iniciou, portanto, também no Estado de Minas Gerais. O pioneirismo costuma, no entanto, cobrar a fatura, aqui e em qualquer lugar. Os caminhos escolhidos estão, agora, sendo testados, no plano judiciário, em especial nos Tribunais mineiros, onde se poderá reconhecer e afirmar, imediatamente, o propósito social e econômico fundante da Lei da SAF ou, ao contrário, reafirmar a indústria parasitária que, sob o modelo associativo, erigiu uma dívida bilionária e, sem exagero, destruiu a esperança de milhares de famílias e crianças, esquecidas pelo Estado e por Governos. Nesse sentido, os Tribunais locais, em especial o do Trabalho, vêm sendo confrontados com teses que desconsideram não apenas o propósito, como o conteúdo da Lei da SAF. Dentre as teses que se produzem, uma pretende estender à SAF a responsabilidade por obrigações anteriores, contraídas única e exclusivamente pelo clube que a constituiu. Além de não ter amparo legal, esse esforço argumentativo desconsidera que a própria Lei da SAF oferece os meios para satisfação de credores do clube, que vão desde o estabelecimento de fluxos de recursos, contratados nas hipóteses de renegociação sem adoção de vias mais drásticas, até a transferência obrigatória de receitas da SAF para o clube, no âmbito do regime centralizado de execução ou o conteúdo previsto em plano de recuperação judicial, caso esse venha a ser o caminho adotado. Pior: tenta-se afastar, com a tese, a análise casuística de eventual fraude ou ilegalidade, eventualmente operada em caso concreto - que, se e quando demonstrada (não apenas no âmbito da constituição de uma SAF), merecerá ser reprimida -, para, no lugar, pressupor-se a essência patológica de uma lei salvadora. Afinal, essa análise deve ser feita apenas em cada caso concreto, e não em abstrato (ou presumida). O problema é que, sob argumento de preservação do crédito trabalhista, além da inobservância da própria lei (e essa proposição merece ser repetida), se produzirão efeitos contrários ao que, aparentemente, se pretende: o afastamento do investidor local ou estrangeiro, a escassez de recursos para financiamento da atividade produtiva (futebolística), crise, desemprego, incapacidade de satisfação de créditos, inclusive laborais, e assim por diante.   A Lei da SAF não foi arquitetada para prejudicar ninguém; fundamenta-se na relevância sistêmica do futebol e na possibilidade de torná-lo uma via de desenvolvimento econômico e social. Aliás, mais do que isso (e já não seria pouco): também um instrumento de inserção e de afirmação da cultura brasileira, local e internacionalmente (softpower). É isso, pois, que está em jogo, no ambiente dos Tribunais mineiros: o futuro de uma iniciativa promissora, apresentada por um mineiro, que foi pioneiramente testada por um clube mineiro, e que poderá contribuir para o desenvolvimento do país - e para a empregabilidade.
quarta-feira, 29 de março de 2023

Viola Davis, o futebol, a SAF e a Liga de times

Em bela produção disponível na plataforma Netflix, Viola Davis, que ainda será reconhecida como uma das maiores atrizes da história, vencedora de prêmios como Oscar, Emmy, Grammy, Sindicato dos Atores, Tony e Globo de Ouro, concede entrevista a Oprah Winfrey, que formula, durante pouco menos de 50 minutos, uma série de perguntas sobre o livro biográfico, intitulado "Finding me", que a entrevistada escreveu. Lá pelo meio da comovente e, ao mesmo tempo, agradável conversa - resultado nada óbvio por conta da complexidade e dureza dos assuntos abordados - Oprah invoca certa afirmação contida no livro: "os sonhos da menina Viola", que cresceu em situação de miséria extrema, "eram maiores do que os seus medos". Medo, por exemplo, das ratazanas que saltavam do telhado do cubículo em que morava, para devorar as poucas bonecas que seus pais podiam dar-lhe. Viola então afirma que sim, que precisava de um sonho, da mesma forma que precisava de água e comida. E vai além: o sonho era mais do que um objetivo, era sua saída, sua salvação. A atriz encontrou seu caminho, não apenas pelo talento e pela perseverança, mas porque teve sorte; sorte de não ter sido massacrada pelo sistema construído para excluir e explorar pessoas como ela: mulher, negra, pobre e sem conexões sociais. Sim: quantas pessoas talentosas, mais ou menos do que ela, não se perderam em suas caminhadas - se é que tiveram forma ou possibilidade de iniciá-las? E quantas pessoas sem talento artístico, científico ou esportivo - o que não revela qualquer demérito - que nutriam o simples sonho da dignidade, viveram à margem da sociedade dos favorecidos? Feita essa breve exposição, repito a frase tantas outras vezes formuladas nesta coluna: e o que o futebol tem a ver com isso? Tudo. Num país marcado pela desigualdade como o Brasil, em que (i) a perspectiva da educação como via de ascensão ou afirmação social e econômica vale, grosso modo, apenas aos filhos das classes favorecidas, (ii) os filhos das gentes desfavorecidas sonham em jogar futebol ou cantar funk para, além da fama, inserirem-se e oferecerem melhores condições aos familiares, e (iii) o futebol se tornou não apenas um passatempo ou atividade lúdica, mas uma manifestação de cultura e um softpower, o tema do futebol não poderia ser ignorado pelo Estado e pelos Governantes, como sempre foi. Da miopia, colhe-se o resultado: a exacerbação do individualismo e do patrimonialismo, estimulados pelo próprio Estado, que financia, à conta do erário (e do labor do homem e da mulher comuns, pagadores de tributos), a farra da vaidade e da irresponsabilidade - para ficar por aí. Ao invés de contribuir para o desenvolvimento da Nação e do seu povo, o esporte vem se transformando, assim, em contingência e, pior, em palco de tensões e desentendimentos provocados por interesses, como sempre, egoísticos.   A Lei da SAF, que desde sua origem oferece possibilidades de libertação do sistema associativo e do cartolismo, não surgiu de um programa de Estado ou de Governo. E agora que a SAF começa a abrir perspectivas a torcedores de Cruzeiro, Vasco, Botafogo, Bahia, dentre outros, e que, ao que tudo indica, trará novas e alvissareiras novidades a torcedores de Galo, Athletico Paranaense, Coritiba, América Mineiro, e alguns mais - e assim contribuir para que cumpram, de modo efetivo, suas funções sociais e econômicas, além de esportivas -, o Estado continua alheio aos seus desdobramentos. Já se afirmou nesta coluna, mais de uma dezena de vezes, que não cumpre ao Estado intervir no futebol. Seu papel, em relação a esta atividade, consiste na regulação, isto é, no provimento de arcabouço jurídico necessário para que agentes possam modelar negócios com segurança e previsibilidade.  Não bastasse Governos não estarem nem aí para os desdobramentos do mercado do futebol, pois sempre se aponta que há algo mais relevante a fazer - e assim se entrega, por nada, uma das maiores riquezas da Nação, que responde por 11% de todas as negociações planetárias, e cujos lucros se dividem entre intermediários e importadores -, também desprezam (e, portanto, não estão novamente nem aí) a magnitude que uma liga de times teria para o país. Tal movimento não envolve apenas o deslocamento da competência organizacional - de uma confederação para uma liga - ou a reformulação de calendário anual. Se bem que esse binômio, em si, já valeria o esforço. Envolve muito, muito mais: investimentos, empregos, novos negócios, visibilidade, exportação, tributos, redistribuição, educação, inserção, orgulho, softpower, afirmação ... Mas será que haverá um homem ou mulher que se disponha a abrir os olhos para a oportunidade e liderar, com ou sem medos, a transformação de um sonho em algo material e realmente grandioso? Grandioso para todos, e não apenas para algumas dúzias de cartolas e de intermediários - ou para três ou quatro clubes?
quarta-feira, 22 de março de 2023

E agora, torcedor do Figueirense? - Parte III

Publicamos em 2017, nesta coluna, um artigo cujo título era "e agora, torcedor do Figueirense?"1. Questionava-se, à época, o modelo de negócio anunciado pelo clube, envolvendo o ingresso de suposto investidor, que, desde a origem, foi pautado pela falta de transparência em relação ao que se pretendia e pela dúvida sobre os verdadeiros beneficiários (ou interessados) finais envolvidos na operação. As promessas, no entanto, eram audaciosas: assunção de dívidas pelo fantasmagórico investidor, injeção de recursos milionários, indicação de profissionais egressos do mercado paulista, incluindo o ex-CEO e o ex-técnico de um (ex) poderoso time de São Paulo, e outras coisas mais. As indagações que se multiplicavam a cada pronunciamento ou a cada movimento dos dirigentes do projeto eram esquivadas, sem revelação de elementos essenciais do que estava, de fato, acontecendo. O que tal projeto teve ou tem a ver com a Lei da SAF e com a própria SAF? Absolutamente nada. Primeiro porque foi estruturado muitos anos antes da entrada em vigor da Lei da SAF, que ingressou no sistema jurídico em 2021. Segundo porque os princípios e as premissas da Lei da SAF almejam exatamente enfrentar e evitar tal tipo de desfecho, como o tido no modelo de negócio adotado pelo Figueirense em 2017. Por isso, aliás, alertamos, à época, para o risco de que o sonho vendido ao torcedor terminasse em pesadelo, da seguinte forma: "o mais relevante deles (dos sinais negativos do negócio anunciado pelo Figueirense) diz respeito à similitude que essa parceria parece ter com os tantos outros projetos malsucedidos, que foram desenvolvidos logo após o advento da Lei Pelé (lei 9.615/1998)". Em 2019 retomamos o tema, com novo texto intitulado "e agora, torcedor do Figueirense? - Parte II"2. Naquele momento, a situação do clube, conforme notícias públicas, já era calamitosa: acumulavam-se atrasos salariais, dívidas, incertezas, questionamentos sobre o suposto investidor e o grupo de gestores contratados para manejar o contrato, dentre outras mazelas. Ali se anunciava, portanto, que, na esteira dos demais negócios obscuros realizados no país antes do advento da Lei da SAF, pela ausência de regulamentação adequada para organizar a atividade futebolística, o fim do poço havia chegado. Só que não - como se costuma dizer por aí... De lá para cá, o calvário do Figueirense, time tradicional de Santa Catarina, intensifica-se cotidianamente, dando ensejo, inclusive, às assustadoras imagens veiculadas pelas redes sociais nos últimos dias, envolvendo invasão de campo, ameaças e agressões. A indignação coletiva decorre de um processo que se expandiu pelo país, causado pelo encastelamento dos times de futebol em estruturas arcaicas, dominadas por políticas clubísticas, desassociadas do interesse do próprio time e dos torcedores. Por isso que, naquele texto de 2019, clamávamos pela criação de "um novo ecossistema, um novo mercado do futebol, que alie as preocupações desportivas - que são legítimas - aos conceitos e técnicas empresariais, observe as melhores práticas de governança corporativa e respeite as particularidades (culturais, econômicas e conjunturais) do futebol brasileiro, oferecendo-lhe, assim, uma via de transição". A resposta ao clamor veio em forma de lei, a Lei da SAF, concebida para, além da concepção legislativa da própria SAF (como veículo societário específico para determinado setor), também para dispor sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, além do tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas. Trata-se de um conjunto de normas que pretende instituir, de modo paradigmático, um sistema sustentável, nucleado pela SAF, e que faça o futebol no país cumprir suas funções esportiva, econômica e social. A Lei da SAF será a solução para todo time em crise ou mesmo para times que pretendam crescer e se afirmar local e regionalmente? Não necessariamente - e nunca em si mesma, apenas, pois depende da sua integração a um projeto que vise, de fato, a recuperação e o desenvolvimento, mediante o emprego de técnicas, regras e sistemas que busquem a inserção do futebol (e sua gestão) no ambiente empresarial, e a atenção a padrões elevados de mercado. Mas já se pode afirmar, após dois anos de seu manejo, que a sua correta utilização, com a associação a parceiros ou sócios conhecidos, com lastro, e que promovam a publicização dos planos imediatos e mediatos, tornou-se uma condição necessária (apesar de não suficiente) para sobrevivência de muitos dos principais times brasileiros. Voltando ao Figueirense, ainda haveria espaço e tempo para, a partir de algum mecanismo previsto na Lei da SAF, como a captação de recursos no mercado, a obtenção de aporte de investidor, a recuperação judicial ou extrajudicial, recobrar seu rumo e, com as dificuldades de um processo dessa natureza, resistir? Talvez. Independentemente do destino desse caso (que, espera-se, possa ser revertido), as lições que se extraem das operações mais relevantes ocorridas até o momento, como as protagonizadas, por exemplo, por Ronaldo Nazário, John Textor, 777 e Grupo City, apontam para, goste-se ou não de cada um deles, o surgimento de perspectivas antes inexistentes aos times e torcedores. É isso, pois: a falta de perspectiva de outros clubes, mesmo de alguns que acumulam as maiores torcidas do país, também pode levar, guardadas as respectivas diferenças e características, a desfechos devastadores. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
quarta-feira, 15 de março de 2023

Sim, aprendam a conviver com a SAF

O tema desta coluna sugere um diálogo com texto publicado recentemente pelo editor geral de esportes do Estadão, jornalista Robson Morelli, cujo título é "aprendam a conviver com a SAF"1. Aliás, como falta ao país a prática da dialética, visando à construção de ideias, projetos e políticas públicas no interesse da coletividade. Acostumou-se, por aqui, a uma espécie de monólogo, sobretudo intelectual e acadêmico, de modo que contrapontos construtivos raramente são estabelecidos; ou, quando ocorrem, são levados, pelos envolvidos, para o lado pessoal. Ao contrário do que se observa, por exemplo, nos Estados Unidos, em que é comum - ou, mais do que isso, é inevitável - o surgimento de posições e contraposições, quase sem fim, entre proposições ou teses lançadas por qualquer pensador. No plano jurídico, e mesmo econômico, formam-se antagonismos perenes, espécies de Fla-Flu ou São Paulo x Corinthians, entre intelectuais, esbarrando, até, num certo fetiche: basta um autor escrever algo que, na sequência, outro, e sempre o mesmo, já o rebate. Com isso se constrói uma sólida argumentação que reforça o funcionamento das instituições. O propósito deste texto é muito menos ambicioso e não se presta a uma oposição; pretende-se, apenas, um diálogo a partir das mesmas premissas, mas que, em função da lógica adotada, servirão para sugerir conclusões distintas. No mencionado artigo, o respeitado jornalista afirma que "ganhar jogos e valorizar o nome do clube e de sua marca (o distintivo) é o único objetivo dos donos das SAFs". Essa afirmação merece algumas considerações. Não parece que esses sejam os únicos objetivos, apesar de, sim, fazerem parte do propósito de qualquer investidor ou empresário (e deveriam fazer parte também dos objetivos de um clube). Mas, será que há algum problema naquela proposição? Ganhar jogos é um problema? E valorizar o nome da SAF e do time? Lembre-se que, atualmente, quase ninguém fora do país conhece os times brasileiros, assim como nós, brasileiros, não conhecemos, de modo geral, times marroquinos, australianos, chineses, senegaleses, algerianos ou árabes. Mais: pouca gente lembrará - ou terá dificuldade para lembrar - dos times não europeus que eliminaram Palmeiras, Internacional, Galo e, logo mais, Flamengo, do Mundial de Clubes. Mas quase qualquer criança, de qualquer país, saberá discorrer sobre o Real, o Barcelona, o Liverpool, os dois times de Manchester, Liverpool e PSG. Ser conhecido, no plano futebolístico, tornou-se uma necessidade. Ronaldo Nazário, no caso mencionado na matéria, ao ingressar no Cruzeiro (e tornar-se "dono" do time, além de um possível salvador da pátria), levou o nome de sua SAF, sem exagero, ao mundo todo. Se conseguir transformá-la numa potência, ganharão o próprio Ronaldo, a SAF Cruzeiro, o clube Cruzeiro, o time, os torcedores, o futebol brasileiro e o país. No mesmo texto, o jornalista afirma que Ronaldo Nazário e "todos os outros" investidores "visam o lucro". Sim, e com razão. A obtenção ou a busca pelo lucro, quando inserida no ambiente futebolístico brasileiro, costuma ser tratada como uma conduta maligna, portanto, intolerável. Porém, qual o mal no lucro, se obtido de forma legítima? Sob outro prisma, deve-se manter o modelo atual em que cartolas irresponsáveis, despreocupados com o equilíbrio, quebram seus clubes e subtraem a esperança de um contingente de torcedores, como fizeram os dirigentes anteriores do próprio Cruzeiro? Se uma SAF reportar lucro, indicará ao mundo que suas receitas superam suas despesas e que, quem negociar com ela, lidará com responsabilidade e perspectiva de cumprimento de deveres e obrigações. Mais do que isso: que deverá existir um projeto sustentável.   Também se aponta, no mencionado texto, que Ronaldo Nazário estaria vendendo, na alta, 20% de sua participação, para embolsar rápido lucro decorrente de seu investimento. Aceitando-se a premissa - a qual será, no entanto, questionada adiante - haveria um pecado ou uma quebra de confiança no investidor, pelo aproveitamento de uma oportunidade de mercado, após ter corrido o risco do negócio? Entendo que não. Aliás, ele jamais disse que não negociaria com suas ações, após socorrer e, ao que tudo indica (ou ao menos se espera), direcionar o salvamento do Cruzeiro. Dito isso, vale apontar que, em minha opinião: (i) o Cruzeiro ainda não está na alta, pois precisará se provar na série A; em uma edição que será, talvez, a mais competitiva deste século; (ii) a situação lá, como afirma com frequência Gabriel Lima, CEO da SAF Cruzeiro, continua muito complicada, e o objetivo de 2023 será se manter onde está (ou seja, não cair para a série B); e (iii) de acordo com informações públicas, contidas em matérias jornalísticas, Ronaldo não está vendendo ações; o investidor fará um aporte, conversível em participação na SAF, de modo que os recursos irão para a própria SAF Cruzeiro, e não para Ronaldo, o qual será, em decorrência da conversão, diluído. Destaca-se outra afirmação do texto: "elencos fortes vão valorizar o clube. Vitórias e conquistas também. Mas é inegável que a torcida vai ter de entender e se acostumar com a nova forma de gerir o futebol. Vendas de jogadores haverá o tempo todo. A SAF pressupõe esse tipo desprendido de ação. A dúvida, no entanto, é saber se haverá reposição à altura". Esta proposição merece algumas reflexões. A descrição não coincide com a realidade dos clubes brasileiros antes do advento da Lei da SAF e não continua a coincidir dois anos após sua promulgação? Clubes brasileiros não se tornaram, ao longo do tempo, exportadores de jogadores imberbes? Quem consegue reter um jovem talentoso, após meia dúzia de boas apresentações? Veja-se o caso do outrora poderosíssimo e hoje decadente São Paulo Futebol Clube: ele retem algum talento que cria? E, no ambiente de sua vocação contemporânea, qual seja, o comércio de jogadores, repõe à altura? Onde estão os substitutos de Casemiro, Militão, Neres, Antony, Sara ou Marquinhos? E de Endrick, perdido sem contrapartida ao rival? Exemplos semelhantes podem ser extraídos de todos os demais clubes brasileiros, que não têm investidores, mas dirigentes abnegados que administram, em muitos casos, quase massas falidas, às custas de toda a sociedade, ou seja, de pessoas físicas ou jurídicas que pagam seus impostos - inclusive as novas SAF's, que são tributadas com base em receitas. Portanto: o sucesso do time gerido pela SAF, as vitórias, a glória, o lucro, a distribuição de riquezas, a negociação de jogadores, o pagamento de tributo, o reinvestimento, o início de novos ciclos, e assim por diante, por mais contraintuitivo que possa parecer, são os pontos de convergência com a felicidade do torcedor. __________ 1 Disponível aqui.
Quase vinte dias se passaram desde a tragédia que abalou o litoral norte paulista, e a comoção, como se imaginava, já está em processo de dissipação. Logo mais, nada ou pouco se falará, em rodas de amigos ou nos meios de comunicação, com exceção de uma ou outra nota, publicada aqui ou ali, sobre os andamentos de projetos circunstanciais - e, a se levar em conta o histórico nacional de outras tragédias, sobre o esquecimento das populações afetadas, sobre promessas não cumpridas, sobre a entrega de moradias em que os próprios entregadores não morariam, (eventuais) casos de desvios e outras coisas mais que fazem parte de crônicas assemelhadas. Isso mesmo: colunistas já quase não tratam do tema, enquanto sobram poucas matérias, menos adjetivadas ou comoventes, que relatam as ações pós-diluvianas. A edição de 4 de março do caderno Cotidiano, da Folha, anuncia - parece-me que sem intenção - o que está por vir. São três textos, distribuídos em uma página inteira. O principal deles, intitulado "Governo quer casas pré-moldadas para vítimas das chuvas no litoral paulista", parece indicar que, como se diz por aí, não se fará do limão uma limonada: ou seja, ao invés de se partir para uma via estrutural - em que seriam arquitetadas soluções que não se resumiriam a tetos enfileirados para agrupamento populacional -, preferiu-se seguir por caminhos paliativos ou insuficientes. Afinal, pensar e implementar uma intervenção que envolva estrutura, saneamento, arquitetura, emprego, educação, cultura, acesso, locomoção, produção, alimentação, esporte, lazer e tecnologia dará muito trabalho e, no final das contas, as gentes esquecidas do país só merecem atenção quando passam por catástrofe. O segundo texto é reflexo daquela proposição: "Prefeitura e estado vão recorrer à PM e ao uso de imagens para evitar reocupação de morros". A grosseria não tem mesmo limite. População carente sobe morro, para construir ilegalmente em área de risco, poque não tem opção. Outras áreas desocupadas ou são inabitáveis ou pertencem a terceiros. E, agora, para assentar pessoas que se tornaram, a um só tempo, problema e trunfo, perdas e ganhos (públicos e privados), encontrar-se-ão "soluções" que, ao que tudo indica, não deixarão um legado - e não servirão como referência para formulação de políticas públicas corretas. Ao contrário: poderá ser a origem de um problema maior, inclusive de rejeição imediata ou mediata, pela coisificação e midiatização das necessidades humanas.     O terceiro e menor de todos os textos, encostado ao canto da página, relaciona-se com a proposição anterior, e é apresentado com o seguinte título: "Desabrigados irão ocupar 300 imóveis prontos em Bertioga". A notícia que poderia parecer um alento - em especial para quem, desde o sábado de carnaval, está sem teto - sintetiza, na verdade, a necessidade de resposta política a uma comoção pública e a um drama humanitário; pois, além de afetar o destino de pessoas que morariam em tais localidades - e serão preteridas em suas necessidades e sonhos -, também abala as vidas daquelas pessoas que trabalhavam e estudavam nas regiões afetadas e serão deslocadas, para outro munícipio, de modo involuntário. E não se diga que aí já é querer demais, pois, além de teto, vão exigir localização. Não; definitivamente, não! Além de dignidade, Governos e a sociedade devem oferecer, também, respeito e perspectiva. E o que isso tudo tem a ver com o futebol? Muita coisa. Lembre-se, inicialmente, que, há mais de 120 anos, o Estado subsidia o futebol, com imunidades e renúncias fiscais, programas de financiamento e parcelamento de tributos em atraso (decorrentes, muitas vezes, do não recolhimento de retenções realizadas), loterias, programas de incentivo, patrocínios diretos ou indiretos, dentre outras modalidades. Apesar disso, a maioria dos clubes pouco ou nada retorna à sociedade, além de um passivo multibilionário e a incapacidade de autogestão (mesmo quando presididos por associados qualificados ou bem-intencionados, que esbarram em anacrônicas estruturas internas de administração). Todo mundo vê a mesma a coisa e ninguém faz nada, tanto governantes como governados - em especial torcedores. E assim se constrói, com discursos falaciosos, uma narrativa que atenta contra o patrimônio nacional - e contra a nação. Uma parte do problema poderá ser solucionada com o advento da Lei da SAF. Ela oferece instrumentos para implementação de soluções sistêmicas, que poderão liberar times do associativismo retrógrado do século retrasado, e, assim, viabilizar a reorganização patrimonial, o acesso a financiamentos e a sustentabilidade. A outra parte do solucionamento adviria da formação de uma liga de sociedades anônimas do futebol (e de clubes que mantiverem o modelo associativo, eventualmente), que gerisse os interesses de modo coletivo - respeitadas certas características de seus integrantes - e distribuísse receitas de modo mais igualitário. Portanto, que se fundasse em princípios (i) menos individualistas - que norteiam muitos dos maiores clubes - e (ii) mais inclusivos e democráticos. Antes que se diga tratar-se de um encaminhamento socializante, tal caminho, ao contrário, foi projetado e implementado pioneiramente no berço do liberalismo, onde ainda impera o laissez-faire, inclusive no âmbito do futebol: a Inglaterra, exportadora do mais bem sucedido produto de entretenimento do planeta, a premier league. Pois bem, se os clubes não são capazes de, por conta própria, se organizarem e se acertarem, e se esses mesmos clubes, em sua maioria, são responsáveis por passivos sociais e econômicos (que se imputam direta ou indiretamente ao Estado e ao contribuinte), e se o Estado tem interesse (ou deveria ter) em que os times criem uma estrutura própria e privada que gerará formação, educação, distribuição, riquezas, exportação, soft power etc., já passou a hora de o Estado chamar os clubes a indicarem o que precisam para, de uma vez por todas, cumprirem suas funções sociais e econômicas, de modo organizado e coletivo, e passarem a ser fonte de riqueza, e não de contingência. Ou, em sentido contrário, acenar com o fim das benesses que nenhum outro tipo de empresa recebe, por mais produtiva que seja, e que, mesmo assim, não foram, nem são, suficientes para fazer com que as empresas do futebol sejam sustentáveis, neste modelo secular associativo e apoiado no subsídio estatal. No atual momento da história desta república, em que, desde a proclamação, já se passou por tudo (de democracias a ditaduras), não deveria mais haver espaço para respostas paliativas (ou a omissões) em relação a problemas estruturais, como os do Sahy e do futebol.
Em Orfeu da Conceição, obra prima da humanidade, adaptada da mitologia grega por Vinícius de Moraes, e mencionada por Barack Obama no livro Dreams from My Father: A Story of Race and Inheritance, Orfeu, um músico negro, desce o morro numa terça-feira de carnaval para encontrar Eurídice, por quem se apaixonara. Ao subir o morro, em regresso de sua empreitada, é morto por iniciativa de sua namorada anterior, enciumada da nova paixão do amado. No carnaval de 2023, no litoral Paulista, precisamente na região do Sahy e adjacências, centenas (ou talvez milhares) de pessoas foram involuntariamente descidas do morro. Não por amor. Um morro uivante, como a ele se referiu uma moradora local que tive a tristeza, pelas circunstâncias, de conhecer; um morro que soltava gritos guturais ao ser agredido pela força da água que se projetava, cortante e sem piedade, do céu. Seria apenas mais uma desgraça em um país que coleciona desgraças impingidas às populações carentes e desfavorecidas economicamente se, e apenas se, dessa vez, os impactos não tivessem se estendido às regiões e aos proprietários de imóveis de classes mais altas. Não, não pretendo cair aqui na tentação de simplesmente levantar o dedo aos integrantes dessas classes - da qual, não posso negar, faço parte e da qual muitos dos principais colunistas e periodistas que trataram do tema, independentemente de suas convicções ideológicas ou políticas, também fazem parte - que, não raro, também dedicaram suas forças laborais para conquistar um sonho naufragado na mesma ocasião. A eleição de um culpado, ou de um grupo de culpados, reduziria, indevidamente, o problema a algo episódico; pois, o que se vivenciou e ainda se vivencia no litoral não decorre de fato isolado. O território brasileiro está povoado de situações análogas de risco, que se transformam, ano após ano, em novas tragédias, sem que sejam promovidas soluções estruturantes. Em linguagem abstrata, a sociedade que se construiu, desde a invasão portuguesa, é, lato sensu, responsável pela desigualdade e pelas catástrofes brasileiras. Aliás, tudo ou quase tudo que se tinha a dizer, sobre as causas e os efeitos da desigualdade e o processo de segregação, foi dito em textos primorosos escritos, dentre outros, por Reinaldo Azevedo1, Antonio Prata2 e Oscar Vilhena3. Do ponto de vista pragmático, nos dias que se seguiram à trágica noite de sábado para domingo do feriado de carnaval, viu-se a criação de diversas redes de apoio e solidariedade, que contribuíram para anestesiar o sofrimento. O problema é que, passada a onda de empatia e de ações de caridade, as gentes que frequentam o litoral para veraneio, que lá estabeleceram suas segundas moradias, e os doadores esparsos, voltarão aos enfrentamentos cotidianos de suas vidas enquanto, nas regiões afetadas, famílias se depararão com as mazelas da nova realidade: sem chão, sem casa e talvez sem emprego. E, em alguns casos, sem membros da família e amigos. Para piorar, em região turística cuja população depende do fluxo de pessoas e da circulação de recursos, os desafios se expandirão direta e indiretamente às comunidades em geral, dificultando a reconstrução material e imaterial de projetos das gentes locais. A verdade é que a solução do problema exige esforços hercúleos e dificilmente (ou melhor, impossivelmente) os movimentos transformacionais necessários poderão ser promovidos sem a ativa participação do Estado. Estado, aliás, que se ausentou, nos anos passados - ou será nas décadas e séculos passados? -, ao testemunhar a formação, à beira da estrada, em zonas de risco, de crônicas de mortes anunciadas. Sim, todos os sinais estavam lá, visíveis, seja a quem morava, a quem trabalhava, a quem trafegava pela estrada, ou a quem tinha incumbência de fiscalizar ou de propor e implementar políticas públicas. Assim como os sinais estão em muitos outros locais ou regiões, incluindo-se as periferias de grandes cidades. Estado, ademais, que não soube (ou não quis) aplicar as centenas de milhares de reais, obtidas em royalties oriundos da exploração de petróleo e derivados, em soluções estruturais que, como se ouviu, não rendem votos. Vê-se, também, neste momento, uma série de propostas de soluções, algumas que já estariam idealizadas (e que não teriam se materializado por conta de burocracias ou contraposição de interesses, eventualmente legítimos), ou que foram simplesmente ignoradas pelo Poder Público, e mais algumas que surgiram no calor do drama, e assim por diante. Não se pode perder de vista que, ao lado do sofrimento humano - e das proposições bem-intencionadas -, também há quem abra os olhos para os lucros que poderão ser obtidos com toda a movimentação em torno da catástrofe (algo que, apesar de repugnante, está enraizado na sociedade patrimonialista brasileira e mundial, como se investiga, por exemplo, no âmbito de contratações realizadas por ocasião do enfrentamento da recente pandemia). Disso tudo se conclui que o público e o privado deveriam, talvez pela primeira vez na história, unir-se em torno de um ideal, de revisão e reconstrução, inicialmente, das famílias e comunidades atingidas, mas inserido em um projeto transformacional maior, a ser definido mediante a determinação de política pública, para execução em decorrência de concurso aberto aos principais especialistas e entidades qualificadas, de abrangência urbanística, arquitetônica, habitacional, ambiental, fundiária, logística, etc. E cujo modelo final possa ser replicado ou ao menos aproveitado em outras situações, de modo preventivo, sobretudo - enquanto, claro, adotam-se medidas transitórias imediatas de apoio às vítimas e à região. Apenas assim se afastarão dois problemas que corroem as bases da sociedade brasileira: o oportunismo, não apenas político; e a ganância, que pode estar a nortear movimentos infiltrados na problemática. Foi para fazer essa talvez ingênua proposta que este espaço, pela primeira vez em mais de seis anos, se fechou para o futebol; e não com a intenção de - como fazia o escritor Eduardo Galeano durante copas do mundo, que se fechava para tudo e todos - acompanhar jogos de futebol.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

"E-Sports?" E o primeiro abalo das apostas

O futebol brasileiro vai se acomodando desorganizadamente com as inovações legais havidas nestes últimos anos, em especial com a adesão de algumas associações esportivas ao modelo da SAF e aos novos formatos derivados da chamada "Lei do Mandante", sonhando também, apesar de não o "sonho dos justos", com a sempre propalada Liga, esta por enquanto ainda uma realização adiada (2025, será mesmo?). Salvo a adoção da modelagem da SAF, que cuida de uma decisão individual dentro do exclusivo interesse (ou por que não dizer necessidade) de cada agremiação, parece óbvio, embora na prática aos clubes assim não se revele, que a utilização dos outros institutos e a percepção de seu resultado exponencial é algo para o que se recomenda uma aplicação conjunta, a fim de desenhar, definir, e no tempo consolidar o novo mercado futebolístico brasileiro.  A SAF alcança a "primeira rodada" com poucas métricas de análise, em parte distorcidas já que os aderentes iniciais fizeram a transformação premidos pela necessidade existencial, e assim sem a necessária maturação, para então terem que vivê-la com "o carro andando"; passam pelo crivo as primeiras (e algumas conflitantes) decisões judiciais, enquanto uma parte significativa dos clubes se encontram em processo de conhecimento nos mais variados estágios (estudos, iniciação e debate com stakeholders,  aprovações estatutárias ou implantação em curso).  Em qualquer caso, trata de elevação interna, unilateral, uma ação intermuros observados somente critérios próprios da associação esportiva, independente do caótico ambiente em que se insere. Apenas para não ficar sem registro, o restante do arcabouço que vem sendo mal manejado sugere aplicação conjunta e inclui as tratativas para unificação da Liga, o acordo de implantação com a entidade organizadora do futebol nacional, a constituição jurídica propriamente dita e toda sua governança, sem esquecer a formatação e negociação do novo modelo de transmissão, estratégias para os desafios da transição geracional, revisão do produto, entre outras ações de curto, médio e longo prazo. Em meio a tanto e com tão pouca efetividade, é certo que muito acaba não sendo visto, ou como é mais comum, visto de forma míope ou enviesada. Este início de ano jogou luz sobre dois desses temas rigorosamente tangenciados, não devendo os clubes excluí-los da agenda de negócios. O próspero mercado de apostas sofreu seu primeiro enfrentamento ao se tornar um caso de polícia. Já havia sido "lembrado" em agosto do ano passado, quando a Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON) requisitou a clubes, federações e veículos de comunicação, a "cópia dos contratos", visando identificar as empresas atuantes e assim sinalizar alguma movimentação. Quando falamos de apostas e rapidamente lembramos as camisas de muitos clubes de futebol ou a massiva campanha de propaganda realizada nos eventos esportivos em todos os meios de comunicação, temos que ter em mente um negócio, atualmente emergente e não regulado. Esqueçamos para isso a figura da Megasena, da Loto, e muito menos a saudosa loteria esportiva. Pensemos apenas em um cassino, lembremo-nos então da "famosa" banca. O mercado de apostas, operado na sua grande maioria por empresas offshore, é estimado em cerca de 5 Bi ano, sendo a natureza da modalidade da aposta de quota fixa diversa do concurso de prognósticos, uma vez que o último pressupõe a divisão de um rateio, enquanto a primeira se traduz pela relação direta entre o apostador com a casa de apostas como pagador. Ainda que pareça, não são a mesma coisa. E sem definições e responsabilidades, abre espaço ao embuste. Certamente, o problema mais crítico atualmente sobre a novidade das apostas reside na falta de regulamentação do mercado, via de consequência, trazendo a enorme dificuldade de mitigar suas principais ameaças, quais sejam, a lavagem de dinheiro e a manipulação de resultados. Estes pontos sensíveis, ambos com enorme potencial de fulminar a credibilidade e perenidade do próprio mercado, só poderão ser dirimidos a partir de um marco regulatório, atualmente em gestação (dizia-se que "de 2022 não passa!") com todo o regramento e mínimas linhas de defesa instituídas. É possível que o tema pegue carona e venha integrar a "lei dos cassinos", em estágio legislativo mais avançado, prática que sempre traz a possibilidade de tratamento insuficiente. Enfim, cabe agora aos clubes entender qual o seu papel neste mercado, não só - e especialmente em termos de governança, uma vez que o mal que se relaciona à manipulação o implica mesmo que indiretamente, mas também como meio de custeio, afinal, será que basta o contrato anual de patrocínio do "BET" na camisa ou se pode ter maior participação na cadeia? Para reflexão... Outro assunto que foi iluminado é o "mundo dos E-Sport", a partir de declaração da ex atleta Ana Moser, atual Ministra dos Esporte, no início deste novo governo. Ao explicar porque este universo não haveria de ser contemplado para fins de incentivos, sugeriu que não se trata de modalidade esportiva, mas puramente de entretenimento, colocação que vista fora do contexto inaugurou diversos e acalorados debates. A questão central da ex jogadora, a par do seu pré-conceito, faz parcial sentido, se considerada não com o mero alijamento do e-sport para as fins de beneficiamento mas talvez com seu deslocamento para o fim da fila de prioridade, solução que parece mais sensata e pode inclusive ser revisitada a qualquer tempo, até porque para essa modalidade específica a iniciativa privada está sempre ávida por regulares inversões. A celeuma de fundo não pode ser desconsiderada, mas no fim do dia é contra producente... ora, o futebol não integra a indústria do entretenimento? Há tempos foi superada a discussão com o entendimento de que o esporte não requer atividade física, são reconhecidos sem distinção os esportes da mente, vide o xadrez, o poker, noutra linha o automobilismo, muito embora exija preparação física consistente, o ato de guiar o bólido demanda sobretudo a mente do piloto. Há outra questão que fomenta também os debates, sempre salutares.. esta diz respeito a falta de imprevisibilidade, como substrato da caracterização do esporte. Para ela, o fundamento é que nos e-sports, findos seus algoritmos e sequências, existe um resultado definido, um termo final já desenhado, faltando-lhe portanto uma condição existencial que se manifesta, no caso dos adeptos da bola, através do "Imponderável Futebol Clube". Sem vilipêndio, essa parte do debate se revela estéril, com pouco significado, na medida em que política pública é uma coisa e desenvolvimento e conceituação de mercado é outra! Já para o futebol, o importante neste ambiente é novamente o posicionamento. Talvez falemos aqui até menos de monetização, mas especialmente da real potencialidade de alimentação da sua base consumidora, mediante a captação do interesse das novas gerações e criação de atratividade a fim de perenizar o relacionamento clube torcedor. O modelo Madden NLF(*), seguramente, é um excelente benchmarking e exemplo para inspiração. As cartas estão na mesa e o poder da mente às ordens... ainda que periféricos, ambos temas são de destacada importância, notadamente integrantes do conjunto que se pretende construir para consolidação do novo mercado futebolístico brasileiro, seja em termos econômicos, como de governança e de estratégia. E nesta via se retorna às aplicações conjuntas de medidas, à desejada implementação da Liga, enfim, ao conhecimento e a realização, reclamando zeloso envolvimento e empenho da nossa classe dirigente, pouca interessada e nada coesa.   __________ (*) WIKIPEDIA - Madden NFL é uma série de jogos eletrônicos de futebol americano desenvolvida pela Electronic Arts para a EA Sports. Seu nome é uma referência ao antigo jogador e técnico vencedor do Super Bowl, John Madden.
A Lei da SAF vem promovendo uma transformação sem precedentes no ambiente do futebol brasileiro. Todos os principais times, de algum modo, debatem o tema, seja para (i) definir o respectivo caminho de implementação, (ii) aproximar conselheiros e torcedores do conteúdo normativo (e de suas perspectivas) ou (iii) fazer de conta que o tema está na pauta, com o propósito de despistar demandas internas e externas. Trata-se, pois, sob qualquer ângulo, de um fato da realidade. Mas ainda há muito a fazer em relação ao futebol, inclusive sob a ótica do Estado, que, como se afirma e reafirma neste espaço, não cuidou devidamente até hoje de uma atividade que, como nenhuma outra, pode contribuir, a partir da base da sociedade, à integração nacional e ao desenvolvimento social e econômico do país. Não se vislumbra, evidentemente, uma interferência estatal na forma de organização interna dos times ou, muito menos, para se tornar organizador de competições futebolísticas. O papel do Estado é outro; e, se adequadamente executado, levará à formação do maior - é o que se defende - mercado futebolístico do planeta. Melhor momento para isso, aliás, nunca houve.   Listam-se, a seguir, cinco iniciativas, de diversas naturezas, com o propósito de contribuir para a construção de tal mercado. Primeira, a abertura de linha de financiamento pelo BNDES, dirigida às sociedades anônimas do futebol, para investimento na formação de jovens e para aplicação em estrutura de prática esportiva, e que só pudesse ser acessada pela SAF que demonstrasse a correta destinação dos recursos e o respectivo impacto econômico e social resultante dos investimentos. Evidentemente que, em contrapartida, a SAF deveria preencher requisitos de admissibilidade e, conforme normas do banco, oferecer as devidas garantias - algo que, no âmbito do clube social (isto é, mantendo-se o modelo associativo), é inviável. Segunda, a emissão, pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM, de parecer de orientação, com base no art. 13 da lei 6.385/1976, com o propósito de orientar o mercado e os investidores a respeito de matérias relacionadas ao mercado do futebol (que se inserem, por conexão, em sua competência regulatória). Esta iniciativa foi aventada, aliás, pelo Presidente da autarquia, João Pedro Nascimento, em evento sobre a SAF ocorrido no dia 1º de fevereiro de 2023, na B3, e traria maior previsibilidade e segurança à SAF que pretendesse acessar o mercado de capitais, de um lado, e aos investidores, de outro, que vislumbrassem aplicar recursos em projetos relacionados ao futebol. Terceira - que, novamente, não se trata de e não poderia jamais envolver uma intervenção estatal -, diz respeito ao reconhecimento de que a formação de uma liga no país teria impactos econômicos brutais e, consequentemente, viabilizaria a produção e circulação de riquezas, e, daí, a legítima expectativa arrecadatória do Estado, por conta de novos negócios e relações jurídicas que se inaugurariam (e passariam a se sujeitar à incidência da norma tributária). Não se trata de falácia. Há exemplos concretos e bem-sucedidos. O principal deles é relatado na obra "A liga", a respeito da evolução histórica da Premier League (Inglaterra), em que os jornalistas Joshua Robinson e Jonathan Clegg tratam do período em que "o futebol passou de uma simples atividade comunitária local a um monstro do entretenimento mundial", cujos jogos (da liga inglesa) passaram a ser exibidos em 185 países, atingindo um público potencial de 4,7 bilhões de pessoas. Como fazer? Da forma mais simples: chamar os times para uma conversa coletiva e demandar como se poderia contribuir do ponto de vista regulatório para sua formação, sem intromissão na capacidade organizativa, e viabilizar a arquitetura de tal movimento. E, nessa linha, negociar contrapartidas que espalhassem os benefícios e perspectivas do futebol para as comunidades, em especial as menos favorecidas. Quarta, e talvez a mais disruptiva (para usar uma expressão desgastada), propor o debate sobre vias regulatórias incentivadoras da mutualização e posterior desmutualização das entidades de administração do futebol. Esse movimento, que passaria pela atribuição de títulos patrimoniais, posteriormente convertidos em ações de emissão de uma companhia desmutualizada - cujas ações, no limite, poderiam ser negociadas em bolsa de valores -, comprovaria a essência de Midas e distribuiria, entre times (e eventualmente federações), bilhões de reais. Por fim, a quinta iniciativa, de ordem mais política, passaria pelo reconhecimento de que todos esses movimentos, apesar de terem o futebol como pano de fundo, teriam preponderância econômica, de modo que poderiam ser alocados em uma subsecretaria especial do Ministério da Fazenda, criada com propósito específico de viabilizar a construção do mercado do futebol - e de fazer a roda da economia girar. Aí está um pacote de sugestões ao atual Governo, que tem, é verdade, muitos outros temas relevantes para cuidar, mas que poderia se diferenciar de todos, realmente todos, os que o antecederam, que não percebiam que estavam sentados sobre mina de ouro (ou de futebol), apesar de a procurarem no horizonte.
Não se pretende, aqui, delimitar a importância do Senador da República e Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, à sua contribuição, como congressista, ao futebol - que é a mais globalizada das atividades humanas. Isto não significa, obviamente, que o futebol não seja importante. Ao contrário: sua relevância, num país marcado pelas desigualdades, como o Brasil, é, sem exagero, monstruosa, não apenas no plano esportivo, como também nos planos econômico, social e educacional. Pena que, historicamente, o Estado - e os sucessivos governos - não percebem esse fato; governos, aliás, posicionados à direita ou à esquerda, nesse quesito, vêm convergindo na miopia e no astigmatismo. A primeira afirmação deste texto significa, na verdade, que a contribuição do Presidente reeleito extrapola a transformação que se vem operando a partir do advento da lei 14.193/2021 - alcunhada nesta coluna, desde sempre, Lei Rodrigo Pacheco (ou Lei da SAF). Sobre isso se tratará adiante. Foi durante o período pandêmico que ele se tornou, e logo em seu primeiro mandato, Presidente do Senado Federal e, consequentemente, do Congresso Nacional. Uma façanha prodigiosa.   Desde então, enfrentou fogo amigo e inimigo, direto e cruzado, proveniente de todas as correntes. Uma delas, por exemplo, que teria implodido o país com a insistência em prosseguir com processos de impedimento do então Presidente da República. Outra, alinhada com a própria presidência, que imaginava que o apoio à sua candidatura significaria subserviência a interesses pessoais, e, por isso, ativou campanhas que miravam sua desqualificação pessoal e política. Na função para qual foi designado e, posteriormente, redesignado, soube e sabe honrar as atribuições constitucionais que lhe são conferidas: fidelidade ao país e ao seu povo. Sobre isso cientistas e analistas políticos saberão registrar, com a devida autoridade, seu papel na história - que, parece-me, ainda está longe de atingir o ápice. Retomo o tema do futebol. Foi no ano de 2019 que o Senador Rodrigo Pacheco, em meio a um intenso debate público e midiático envolvendo projetos relacionados à SAF e ao clube-empresa (expressão ou conceito, aliás, que caminha para o desaparecimento), apresentou um Projeto de Lei alternativo que, rapidamente, conquistou a simpatia e o engajamento de importantes formadores de opinião.   O entusiasmo com a proposta foi atropelado pela pandemia. Durante mais de um ano a pauta congressual se limitou ao enfrentamento da crise; ocasião em que o Senador atuou em defesa das gentes e de soluções científicas a um problema desumanamente politizado. Até que, em 2021, o Congresso Nacional retomou outras pautas essenciais. Nesse momento, ele já estava empossado Presidente do Senado Federal. Logo em seus primeiros discursos avisou ao país que promoveria o debate acerca do mercado do futebol e seu sistema de governança. Indicou, acertadamente, o jovem Senador da República Carlos Portinho, advogado e notório conhecedor do assunto, para relatar seu Projeto de Lei (que promoveu um qualificado e enérgico processo de audiências e negociação política, e contribuiu para o andamento da pauta). No primeiro semestre de seu primeiro ano na presidência, Rodrigo Pacheco pautou o Projeto que foi aprovado unanimemente no Senado Federal e, posteriormente, por 427 votos favoráveis contra apenas 9 rejeições, também na Câmara dos Deputados. Após sanção presidencial com vetos que comprometiam a sistemática da Lei, ainda comandou o Congresso, em sessão conjunta, para derrubada parcial desses vetos, e, assim, entregou ao país a Lei que permitiu o início da reformulação do futebol brasileiro. Sem ela, Cruzeiro não teria atraído Ronaldo Nazário e dificilmente teria regressado à divisão de elite; Galo não teria iniciado seu processo de reorganização societária e atração de novos recursos (aparentemente em andamento, conforme notícias públicas); Bahia não faria parte do Grupo City; Botafogo não teria recebido o investidor internacional John Textor; Vasco continuaria a navegar sem os recursos aportados por investidor e que, ao que se indica, viabilizaram o retorno à divisão de elite; Coritiba não processaria, com segurança, sua recuperação judicial;  Athletico Paranaense, clube mais organizado e mais bem administrado do país, não sondaria (também conforme notícias de imprensa) aproximação do mercado para adoção de movimentos audaciosos, que poderiam, no limite, envolver, no futuro, abertura de capital; além de todos os demais clubes que, por conta da lei, já passaram (e não teriam passado) para o modelo de SAF ou que manejam (e não manejariam) seus processos internos de compreensão para, possivelmente, socorrem-se, também, da SAF e dos instrumentos previstos na lei. Talvez nenhuma lei no âmbito esportivo tenha produzido, em tão pouco tempo, tamanha transformação. E o movimento ainda está longe de atingir o ponto de maturidade. Muita coisa ainda virá, com impactos diretos e indiretos na sociedade. A Lei da SAF não oferece - e jamais se prometeu isso - solução para todas as mazelas de um sistema corroído pelo tempo (e pelas ações humanas, também). Mas ela foi (e é) condição necessária para o redirecionamento e resgate de uma atividade aprisionada em um modelo associativo que, com no máximo duas exceções, não tem mais condição de entregar as demandas do torcedor e da sociedade. O Senador Rodrigo Pacheco já gravou seu nome, por suas contribuições, na história do futebol e do País. Ainda há, porém, muito a fazer, e sua reeleição, espera-se, viabilizará a continuidade de construção do maior ambiente futebolístico do planeta.
Parece realmente que a circulação desenfreada de falsas notícias ou de opiniões pouco balizadas em mídias e redes sociais, prática esta que foi duramente criticada por Umberto Eco, passou a influenciar a conduta de pessoas que, ao contrário, deveriam prezar pela sobriedade e pelo respeito à informação. Uma pena, pois as relações sociais e políticas se inserem, assim, numa arena sem regras, em que, além de exigir um monumental exercício de depuração da verdade, também se notabiliza por condutas individualistas e irresponsáveis.  Nesse sentido, quem acompanha o ambiente do futebol, em especial relacionado à Lei da SAF (alcunhada, desde sempre neste espaço, Lei Rodrigo Pacheco), deparou-se com uma quase comoção decorrente de uma (mal interpretada) fala do investidor John Textor, da SAF Botafogo, amplamente divulgada pela imprensa e em redes sociais. Ao primeiro contato, até poderia parecer que se iniciava, a partir do investidor, um movimento de ataque à estrutura legislativa viabilizadora do seu próprio investimento. Isto não ocorreu, porém. Ouso afirmar que o pano de fundo da provocação consiste em um apelo por segurança jurídica, corolário do Estado de Direito. Aliás, a estrutura do Estado contemporâneo, consubstanciada na tripartição de poderes - legislativo, judiciário e executivo - decorre, justamente, de uma reação à insegurança jurídica promovida por monarcas absolutistas, que se confundiam com o Estado e, assim, ditavam normas em casos concretos de acordo com suas vontades.   Não apenas investidores, locais ou internacionais, mas qualquer cidadão necessita de segurança, em sentido amplo, para projetar suas ações e calcular as consequências delas. Toda nova norma, de qualquer hierarquia, costuma inaugurar, após sua inserção no sistema, certa maleabilidade, oriunda do natural processo de estabilização, que advirá da boa doutrina e da correta jurisprudência. Não será diferente com a Lei da SAF. Esta lei, aliás, no âmbito do futebol, já demonstra, apesar de sua curta existência, seu caráter transformacional e, após aproximadamente 18 meses, já fez muito mais para abertura sistêmica e para viabilizar meios de financiamento da atividade futebolística do que todas as leis que a antecederam, incluindo-se as Leis Zico, Pelé e do Profut.   Com efeito, mais de 30 sociedades anônimas do futebol foram anunciadas por clubes como Cruzeiro, Botafogo, Bahia, Vasco, Figueirense, dentre muitos outros, e outras estão a caminho. Mas disso pouco se fala pois, na verdade, a torcida contrária (ou a sabotagem) advém, em especial, das forças históricas (inclusive de grupos de interesses que se aproveitam da fragilidade ou da politização de clubes) que converteram o futebol brasileiro - que deveria ser uma fonte inesgotável de geração de riqueza para sociedade como um todo - em atividade que se desenvolve quase à margem da própria sociedade, do mercado e do Estado. É isso, pois, que está em jogo: o atraso secular de um modelo exportador de commodity, de um lado; ou a perspectiva de criação de um dos mais poderosos ambientes mundiais do futebol, de outro. Para que esta criação ocorra, aliás, o Poder Judiciário terá papel fundamental. É nele que desaguam as teses, mais ou menos bem construídas, que pretendem, aí sim, "quebrar" a Lei da SAF e preservar direitos, não adquiridos, de castas que vivem à custa da falta de transparência e das relações muito peculiares estabelecidas no ambiente de associações sem fins lucrativos. Nesse sentido, não se pode ignorar recente acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos de Agravo de Instrumento nº 2220944-39.2022.8.26.0000, em que figura como agravante o Botafogo de Futebol de Regatas ("Clube"). Em poucas palavras, resistia-se à tentativa de determinado credor que postulava a obrigatoriedade de direcionamento ao Regime Centralizado de Execução, instituído pelo Clube, de valores oriundos de contrato de patrocínio transferido para SAF; de modo que a SAF, e não mais o clube, se tornara parte da relação contratual. Em "voto-aula" sobre a Lei da SAF, o Des. Relator Azuma Nishi pronunciou que "(...) a SAF é pessoa jurídica que não se confunde com o clube; destarte, em relação ao cumprimento de sentença, a SAF deve ser considerada terceiro, não podendo ter seu patrimônio constrangido, sob pena de ofensa à regra segundo a qual o devedor responde com seus bens (art. 789 do CPC)". E, em suas conclusões, reforçou que o direcionamento de receita da SAF, para outra entidade - o clube - "é descabido e vai contra o texto legal, à medida que constitui constrição ao patrimônio da SAF Botafogo, cuja personalidade jurídica, como visto alhures, não se confunde com a do clube devedor". Não se pretende, aqui, avaliar o processo judicial em si; apenas jogar luz sobre a preciosa decisão do Tribunal Paulista, mais uma dentre outras que se acumulam e que contribuem para formação do benfazejo mercado do futebol, sobretudo pelo fato de expressar com a necessária clareza o que é a Lei da SAF, para que se presta e como ela funciona.   Mais do que isso, aliás: também se pretende jogar mais luz sobre a aparente falta de interesse da coletividade do futebol por fato tão relevante (que não lhe deu a importância e o mesmo espaço oferecidos às diversas interpretações de terceiros a respeito da fala de determinado investidor), o que, ao final, comprova as proposições inicias deste texto: menos do que informar, as reações desproporcionais, relacionadas àquele episódio, servem, na verdade, para tentar trazer o caos ao novo ambiente em formação.
Muito, realmente muito, se escreveu sobre Pelé após seu passamento. Aliás, sintoma de sua grandeza, em todos os veículos, quaisquer que fossem os setores, encontrou-se espaço para a exteriorização de opiniões sobre o Maior da história. No âmbito de textos que foram do excelente ao sofrível (passando pelo lirismo e pelo oportunismo), tudo se falou; requentar, pois, situações ou pretender trazer algo que não se expôs talvez soasse, agora, inaceitavelmente pretensioso. De modo que, sobre Pelé, não se dirá aqui mais do que o mínimo: sua existência, como jogador, abala a convicção de ateus (pois seus feitos, sim, não se justificam sob qualquer perspectiva humana) e, ao mesmo tempo e pelo mesmo motivo, reforça a crença em Deus, qualquer que seja o conceito pessoal da divindade. Este texto, por outro lado, pretende, apenas, formular algumas provocações decorrentes, em especial, do frenesi que se assistiu (ou se leu) nos dias seguintes ao fatídico evento, relacionando-as com a histórica postura entreguista ou de falta de sensibilidade em relação as coisas e as riquezas que se produzem no país (incluindo o futebol).   Pelé, como muitos outros jogadores que o antecederam ou sucederam - tirante o fato de ter sido o Escolhido -, é fruto da sorte; sua ascensão não decorreu de um programa público ou privado, voltado à formação de atletas. Poderia, com alguma probabilidade, ter desviado sua trajetória e ido para lugar em que ninguém jamais o conheceria (como ocorre aos montes).   Depois dele, o Brasil teve, no plano futebolístico, o privilégio de oferecer ao mundo referências como, para citar apenas os mais recentes que se tornaram estrelas globais, Romário, Kaká, Ronaldo, Ronaldinho, Roberto Carlos, Adriano e Neymar. Além de Raí, o maior jogador da história do PSG (conforme eleição de seus próprios torcedores, que ainda hoje o idolatram). Apesar da profícua criação de jogadores, que se inserem na mais globalizada das atividades - mérito, também (mas não apenas), da atuação de Pelé a partir do final dos anos 1950 -, insiste-se em ignorar a relevância social e econômica da atividade, num país em que a parcela menos favorecida da população aposta justamente nela (e na música que se cria nas comunidades, como o funk) para sair do nível inaceitável de pobreza. Veja-se, ademais, o desperdício (ou atentado) que se pratica contra o desenvolvimento do país: em Chicago, por exemplo, a obra de Frank Lloyd Right, um fantástico arquiteto, que seria banco de Oscar Niemayer, foi transformada em atração pública, geradora anualmente de centenas de milhares em negócios e em arrecadação. Por aqui, o genial brasileiro, ganhador do Prêmio Pritzker, autor de monumental obra espalhada por diversas cidades, será, a depender da (ausência) de políticas preservacionistas da memória e do legado de pessoas como ele, corroída pelo tempo. Com Pelé, a situação é pior. Antes do passamento, pouco se falava dele. Seu nome, porém, transcende a noção de fronteira ou de nação. Diz-se que foi o ser humano mais conhecido de seu tempo. Papas, artistas e presidentes de países não rivalizavam com ele.   Até mesmo os colonialistas europeus, responsáveis pela demarcação territorial global - e pelas atrocidades cometidas contra as gentes dominadas e escravizadas -, sentiam-se, diante de suas realizações, um pouco brasileiro (ou ao menos colocavam de lado a convicção interna de superioridade racial). Não haveria maior embaixador da brasilidade; maior esperança de resgate de um país que, a partir do final dos anos 1950, protagonizou um período quase ou tão grandioso quanto o renascentismo italiano, com sua música, com seu cinema, com sua literatura, com seu teatro, com sua política desenvolvimentista e, claro, com seu futebol. Pelé, neste sentido, que foi (e ainda é) uma marca, explorada erraticamente sob perspectiva apenas privada, poderia ter, paralelamente, cumprido um papel maior (e não apenas pessoal), inserido em política público-privada, voltada à formação e ao desenvolvimento social e econômico da Nação. Assim como, em plano maior, o próprio futebol deveria receber os adequados estímulos, sobretudo legislativo, para se converter num soft-power de expressão (e influência) global. O futebol, de modo geral, atividade que deve ser gerida e organizada privativamente, também deve, por outro lado, ser estimulado pelo Estado, naqueles campos que lhe competem (como, conforme indicado acima, legislativo); assim como Pelé não poderia ter sido ignorado pelo mesmo Estado que é absolutamente insensível à potencialidade de milhares de crianças espalhadas pelo seu território. Daí a inadequação, ao que parece, a respeito do direcionamento dos principais debates que emergiram. É óbvio que ele merecia - e sempre merecerá - reverência dos súditos. Teria sido no mínimo simpático, ou mesmo desejável, que gerações posteriores à dele manifestassem respeito, se não à pessoa (a Edson, portanto), ao menos ao grande símbolo do esporte que praticam, por suas redes e mídias sociais ou mediante o comparecimento físico ao seu funeral. Mas parece haver, aí, questões mais relevantes (até porque Pelé também não esteve no funeral de Garrincha): não será pela divisão e pela postura individualista, em todos os planos, inclusive dos grandes astros, que se construirá um projeto de futebol brasileiro (e de Brasil). O futebol deveria ser compreendido como uma espécie de parceria público-privada, a que se chamará de PPPF, no interesse da coletividade e como elemento essencial para reconstrução do sentimento (ou da convicção) de pertencimento a um projeto de Nação. Fica aí, pois, a sugestão para o novo Governo - que tem, é sempre bom lembrar, na pasta da Economia, exímios especialistas na matéria. 
quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

As intermitências das Copas

Por falar em argentino genial, Armando Bó na série "O Jogo da Corrupção" (Prime Vídeo) coloca na boca do narrador uma frase que cala fundo aos amantes do futebol: "Dizem que a vida é o que acontece entre uma copa e outra." A Copa do Mundo é um espetáculo de esplendor, uma apoteose mágica de brilho, luz e cores únicas, que mobiliza a humanidade como nenhum outro evento. É um sonho. A "vida real", no futebol, é o que acontece entre uma copa e a seguinte. Acaba o evento mundial, retoma-se o futebol dos clubes, o chamado futebol "quarta e domingo" (como dizem os boleiros), com as competições nacionais e continentais das quais participam os times pelos quais os "torcedores cotidianos" exercem a sua paixão (inexplicável para quem não é torcedor). A Argentina, vencedora da Copa com todos os méritos, celebra na semana corrente seus heróis nacionais pelas ruas do país. Porém, quando a bola voltar a rolar nos campeonatos locais, dos 26 Campeões do Mundo, somente o goleiro reserva Franco Armani atuará por um time argentino. Messi e todos os demais campeões mundiais jogam no exterior. A nós, brasileiros, restará acompanhar em nossos clubes apenas 3, dos 26 jogadores que estiveram no Catar. Dura vida real. O que nos diferencia, nesse momento, são os elementos concretos, construídos ao longo dos últimos anos, que nos trazem esperança e motivos para acreditar que estamos iniciando um novo ciclo entre copas com ótimas perspectivas. No Brasil, já há 30 times de futebol que percorreram todo o caminho, desde as aprovações internas até o registro na Junta Comercial, para constituição da Sociedade Anônima do Futebol, introduzida pela lei 14.193/2021. Um bom número deles disputarão as séries A e B do Campeonato Brasileiro de 2023. Outros tantos, estudam o assunto com seriedade, realizando debates em seus conselhos deliberativos e assembleias de associados. Podemos chegar, nos próximos meses ou anos, ao número expressivo de mais de uma centena de SAFs no futebol brasileiro. Isso significa a entrada de novos recursos, novos conceitos de governança e gestão, ou seja, a expectativa de um círculo virtuoso, com nossos times mais qualificados, aumentando sua capacidade de revelar e reter talentos por mais tempo, entregando ao torcedor-consumidor um produto de melhor qualidade. Os clubes são as células que compõem o organismo do futebol nacional. A medicina mais moderna nos ensina que não há corpo forte sem células fortes. O futebol brasileiro está realizando um trabalho efetivo para melhorar sua saúde geral. No contexto atual, onde ainda prevalece o modelo associativo, logicamente que há associações com melhores gestões e gestores, além de contarem com maior potencial para o recebimento de recursos. Essas associações, com absoluta justiça e merecimento, estão praticamente monopolizando a conquista dos principais campeonatos.   Porém, mesmo esses clubes deverão começar, em breve, a notar a aproximação técnica de seus rivais, constituídos como SAF, como um fator a estimular, ainda que no cenário extremamente vencedor, a discussão séria e responsável sobre o tema. E uma associação bem administrada tem muito mais argumentos para atrair e negociar melhor a aproximação de terceiros investidores. Com as SAFs, o futebol brasileiro poderá retomar sua vocação de ter, na competição nacional, mais de uma dezena de favoritos, revertendo tendência recente, e ruim para o produto, de apenas 2 ou 3 times iniciarem o torneio com chances reais de título. Ainda há que se saudar, a bem da esperança em dias melhores para o futebol brasileiro, que mesmo mais de 8 anos após o término da Copa de 2014, ainda haja clubes trabalhando na construção de novas arenas, entendendo que estádios novos e modernos também são uma fonte importante de recursos, além de inflar a autoestima de seus torcedores, o que sempre traz retorno positivo. No futebol brasileiro da "vida real", porém nem tudo são flores e esperança. Existem clubes cujos dirigentes, mesmo afogados até o pescoço em dívidas e insucessos em campo, batem os braços com toda a força para se manterem aferrados ao velho e obsoleto modelo da velha política das associações. Esses celebram as vitórias políticas e, com cada vez menor frequência, títulos e troféus. Seus cartolas administram para uns poucos associados, que votam para mantê-los no poder, e relegam ao quinto plano os milhões de torcedores que sustentam a instituição. Nesses casos, somente a criação de mecanismos de inserção dos sócios torcedores nas decisões fundamentais do clube, com o voto nas Assembleais Gerais, poderá ampliar democraticamente os colégios eleitorais - inclusive para aprovação de projetos de constituição de SAF -, salvando os clubes do domínio total dos "cartloligarcas", resgatando esses times históricos e recolocando-os no caminho da modernidade. Aguardemos. Em geral, contudo, o ano da Copa de 2022 se encerra com boas perspectivas para o Futebol Pentacampeão Mundial. Graças à Copa do Mundo realizada excepcionalmente no final do ano, o novo ciclo da vida futebolística coincidirá com a chegada do Ano Novo. E o ano de 2023 se iniciará, para alimentar nossas esperanças, com o futebol brasileiro com bases sólidas construídas nos últimos 2 anos, para uma mudança efetiva, para melhor, no fortalecimento dos clubes, para que esses também possam servir ao trabalho de formação de uma Seleção Brasileira que nos faça sonhar lindamente em 2026.
Certa noite, no alvorecer de 2009, recebi uma ligação por volta de 23h30 de uma quarta-feira. Era o jornalista Victor Birner, convidando-me para encontrá-lo num bar. Ele sabia que minha casa passara a ser dominada por Olivia, recém-nascida. Daí a minha resposta, quase indignada, invocando a preciosidade do sono. Uma pena, ele respondeu, pois acabara de deixar a TV Cultura, após participação no programa Cartão Verde, e se encaminhava ao..., acompanhado de Sócrates, Juca Kfouri, Chico Sá e Vladir Lemos. Não hesitei e perguntei em quanto tempo mesmo nos encontraríamos. Minutos depois, estava ao lado de um dos ídolos da minha vida - atrás, evidentemente, de seu irmão, Raí, o maior jogador da história do São Paulo e do PSG (de acordo, aliás, com a própria torcida francesa). Lá pelas tantas, e após uma incontável sequência de copos, tomei coragem e perguntei a Sócrates se Sarriá ainda lhe representava algo. Ele levava um gole à boca, mas o interrompeu. Sustentou o olhar para o nada durante alguns segundos (para mim pareceram minutos), virou-se em minha direção, com expressão fechada para os padrões da noite e desferiu um epíteto que jamais esquecerei: muitas noites de sua vida não dormia por conta de Sarriá. Apesar da pouca idade à época da tragédia - nove anos -, ainda me lembro ou sonho com Sarriá. Seria o evento histórico - ou poético - que, se eu tivesse o poder divino de modificar, escolheria, antes mesmo da mudança do destino de algum evento político ou batalha militar. Sócrates, o ativista, o craque, o democrata, o gênio, era, também, um indisciplinado. Todo indisciplinado tem algo de egoísta, pois a indisciplina disturba relações ou organizações. Diz-se, no entanto, que, para estar pronto para a Copa de 1982, teria largado os hábitos que atrapalhavam o desempenho esportivo e focado em sua preparação. A superação do suposto egoísmo (talvez a expressão seja inapropriada), contribuiu para o resultado que todos conhecem: uma das mais belas (ou a mais bela) combinações de jogadores da história, não obstante o fracasso, com 4 vitórias e uma derrota fatal, diante da pragmática e prosaica seleção italiana. Não se trata, aqui, de comparar Sócrates a Neymar, pois são pessoas, momentos e visões de mundo diferentes. Mais do que isso: da década de 1980 para a atual, o jogador de alto rendimento, em especial de nível mundial, deixou de ser apenas um jogador e se tornou um produto ou uma empresa - goste-se ou não desta constatação. Mas se pretende, por outro lado, reconhecer o esforço, ao menos para o espectador externo, empreendido, num momento crítico da história, pelo melhor jogador do país. Após uma sucessão de eventos negativos pessoais ou esportivos, Neymar parecia realmente focado na copa e, mais importante - em minha opinião -, com uma postura menos individualista e mais coletiva, de modo a superar seus próprios obstáculos. Logo no início, porém, mais um acidente profissional quase o afastou do objetivo. Não deixa de ser simbólico, nesse drama, o peso que se punha sobre os seus ombros, o fato de, mesmo lesionado, ter permanecido em campo até a exaustão. Ao retornar às suas funções, após duas ausências consecutivas, ficou evidente a sua importância, não apenas em fácil vitória contra a Coréia do Sul, mas, em especial, ao assumir a sua responsabilidade contra a atual vice-campeã mundial Croácia e encaminhar, com uma jogada brilhante, a classificação para semifinal - não fosse um erro tático incompreensível e imperdoável de um time que, embora frágil defensivamente, não havia, até então, falhado daquele jeito. Se Sócrates e/ou Neymar mudaram seus hábitos por amor ao povo, à seleção ou a si próprio, ou aos seus próprios (e nem por isso ilegítimos) interesses empresariais (que poderia ser o caso de Neymar), é questão que não se pretende, ao menos por ora, enfrentar - e que não modifica as conclusões do texto. Sócrates simbolizou a esperança democrática; Neymar a divisão de um país que se tornou intolerante, mas que precisa, desesperadamente, reunificar-se. Lembro-me de cena do filme "O Ano que meus pais saíram de férias", do diretor Cao Hamburger, em que perseguidos políticos da ditadura torciam, nos porões, pela seleção brasileira de 1970, apesar da indevida apropriação daquele símbolo por um regime inaceitável - o mesmo que os torturava e, eventualmente, matava. De algum modo, aquele sentimento brasilianista justificava a própria luta que se empreendia por um país livre e democrático; e que deveria, agora, sobrepor-se à afirmação (ou ao interesse) das diferenças. O futebol, nesse sentido, é muito mais do que apenas um esporte; ou a mais importante das coisas desimportantes. É uma via de ascensão social (uma das poucas, aliás, num país marcado pela desigualdade) e de desenvolvimento econômico, desprezada, historicamente, pelo Estado e pelas elites culturais e patrimonialistas, porque querem ora manipulá-lo, ora explorá-lo. É essencial, pois, para o Brasil e seu povo. Daí não ter razão Galvão Bueno, justamente ele que vive o futebol (e se tornou o que é por conta do futebol), ao afirmar que a vida segue, que o futebol não resolve o problema de país nenhum, de guerra nenhuma, de mundo nenhum. Qualquer pessoa que se distancia alguns poucos quilômetros das bolhas representadas pelos bairros chiques das capitais brasileiras (ou que assistiu a série Funkbol, produzida pela Kondzilla, disponibilizada na plataforma Prime Video), saberá que o futebol pode, sim, ser a solução para os problemas das gentes que enxergam na seleção, a cada 4 anos, um sonho - e não uma manifestação comercial ou política.
Está virando moda a publicação de cartas abertas ao Presidente eleito, provenientes das mais distintas e qualificadas origens: umas com ideias técnicas e estruturadas, outras com desejos pessoais. Assim, de Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan, expoentes da inteligência econômica do país, ao escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva, tenta-se comunicar, ou melhor, comunica-se, por aquelas vias, com o futuro Poder Central. O momento é adequado, pois, além do processo de transição em curso, arquitetam-se, a partir e ao redor de Lula, projetos e políticas que marcarão (ou não) o seu terceiro (e mais importante) mandato. Paralelamente, também é o momento de revisar desacertos que acompanham, de algum modo, a história da Nova República, em especial relacionados à falta de percepção da relevância e de apoio às expressões essencialmente populares, que deveriam se tornar, a partir de políticas de Estado, atividades essenciais - e produtos, a um só tempo, de exportação e de afirmação do País (soft power). Por esses motivos, aí vão mais alguns pitacos, para coleção dos milhares que o futuro Presidente deve receber, diariamente. Refiro-me ao futebol e à música das comunidades e suas variantes - temas, parece-me, que o empolgam. Sobre o primeiro, não se demanda muita atenção para identificar o tamanho do investimento que um país outrora desconhecido, como o Catar, empreende, no futebol, para se tornar um destino turístico e cultural - e, assim, criar fontes alternativas à exploração do petróleo. Os Estados Unidos também tentam, desde o projeto NY Cosmos (que reuniu Pelé e Beckenbauer nos anos 1970), e mais recentemente com a iniciativa de tornar as ligas locais interessantes a jovens promessas e jogadores consagrados em fim de carreira (como Kaká e David Beckham), participar da festa para, então, impor meios de comandá-la. Há não muito tempo, a China, mais longeva das potências mundiais, tratou de estimular o desenvolvimento da atividade, integrando ao ambiente local jogadores estrangeiros, para, com eles, absorver conhecimento e difundi-lo internamente, em processo que visa (ou visava), no longo prazo, a dominação. O Brasil, enquanto isso, único penta campeão mundial, único país relevante que ostenta mais de 20 times com mais de 1 milhão de torcedores, país cujos jogadores representam aproximadamente 11% das negociações mundiais e país de Pelé (dentre vários outros atributos), jamais concebeu uma política voltada à formação de uma atividade de base, viabilizadora do acesso de milhares (ou milhões) de crianças à escola, ao mercado de trabalho e ao protagonismo social e econômico. Basta assistir à série Funkbol, produzida pela Kondzilla e disponibilizada na plataforma Prime Video, para entender que o esporte é uma das duas únicas formas de esperança de crianças que carregam, sobre seus ainda frágeis ombros, todo o peso das desigualdades que assolam seus antepassados. O torcedor que acompanha a Copa do Mundo, esbanjando eventualmente centenas ou milhares de reais em festas caríssimas, não costuma ter ideia, ou sensibilidade, do duro percurso empreendido por quase todos os jogadores que representam o país, como Antony que, há três anos, morava, como se ouve na mencionada série, em uma favela e, segundo ele, sonhava em se profissionalizar para oferecer casa para mãe, tia e irmãos. A segunda esperança, também retratada na série, consiste na música das periferias, da população que não tem conexão, ao menos na origem, com a bossa nova, a MPB ou outros movimentos ou ritmos que nasceram (ou nascem) em níveis sociais intelectualizados (e não há, aqui, crítica; apenas uma constatação). Assim, o possível impacto econômico e social da estimulação do rap, do trap e, em especial, do funk, como indústrias transformacionais, passa longe de ser percebido pelo establishment. Esses segmentos ainda se desdobram em diversos produtos, por via do audiovisual, como se demonstra, por exemplo, o sucesso de mais uma iniciativa de Kondzilla, consistente na série Sintonia, disponibilizada na Netflix, que se tornou a produção brasileira com maior público da plataforma. A música, ao contrário do futebol, talvez não tenha, com algumas exceções, vocação à internacionalização; mas se insere num ambiente e num mercado relevante, formado por dezenas de milhões de brasileiros. Pois bem. O sucesso de alguns poucos jogadores ou funkeiros advém, em regra, deles próprios, de seus familiares ou de pessoas ao redor que os projetam e, eventualmente, bancam. Não há política pública ou ação privada voltada a essa gente que, depois, quando atinge o sucesso, é cobrada para atuar socialmente. Transfere-se (ou se imputa), pois, um dever do Estado àquelas pessoas que, desde cedo, foram desafiadas a resolver o problema da desigualdade, em seu entorno. Suas ações deveriam, quando o caso, integrar um sistema, não como solução, mas como complemento de projeto maior, instituído para promover a transformação geral, a partir de políticas públicas, e não de ações isoladas e ou voluntárias.   Daí a oportunidade de criação, no país, no plano do futebol, de espécie de "futewood" e, da música, de outra espécie de "funkwood". Se os norte-americanos se infiltraram em todos os países e em todas as televisões por intermédio de Hollywood, e a Coréia do Sul pretende se afirmar, culturalmente, pelo K-pop, o governo brasileiro pode - ou deve - inserir no seu projeto de Nação a música que nasce na periferia e ferve em todo território, bem como ressignificar o futebol, instrumento de inserção social e desenvolvimento econômico, no plano interno, e de afirmação cultural do país, no externo. Aí estão, pois, os meus pitacos ao presidente Lula.
quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O Brasil e a seleção brasileira

Por onde se olha, ou se lê, encontram-se afirmações ou apelos de pacificação do país. Apenas da Folha, para não citar outros veículos, extraem-se, nas últimas edições, as posições do Min. Lewandowski1 e do ex-editor de Opinião e escritor Hélio Schwartsman2. Não será fácil. A fissura é evidente. A vitória de Lula, sem dúvida incontestável, também revelou que há um contingente quase igual, ao menos em votos, que pretendia uma solução diferente. Em ambos os campos, dos vitoriosos e dos perdedores, somam-se eleitores que, menos adeptos dos candidatos, viam nos opositores ameaças maiores do que aquelas representadas pelos seus escolhidos. Ou seja: nem todo voto concedido ao atual Presidente derrotado representava uma convicção em suas políticas erráticas e desastrosas, nos planos humanos e ambientais (dentre outros); da mesma forma que, para vencer, o desafiante contou com o apoio de quem não necessariamente simpatizava com ele ou o seu partido, mas que nele (e não no partido) via o único caminho para o afastamento de um mal irreversível. Lula sabe disso. Aliás, com exceção de radicais que ameaçam a paz social, todos sabemos disso. E não há problema na constatação da realidade. Importa o tratamento que se dará à situação. Ignorá-la seria fatal: afinal, a compreensão de sua origem é o melhor remédio para evitar-se que, num futuro próximo ou longínquo (e 4 anos podem estar logo aí ou bem longe, conforme ponto de vista), não se repitam os erros que levaram o país a se tornar um quase pária internacional. O enfrentamento do tema da divisão, talvez a maior que já se tenha construído desde o fim do período ditatorial e recobro do regime democrático - em tal nível de o ameaçar - demanda o reconhecimento de que há, também, um descontentamento generalizado, de vencedores e de perdedores. Novamente, Lula sabe disso e, ao que parece, empreende esforço sobrenatural para reduzir as barreiras entre as diferenças. Além da indicação de Geraldo Alckmin para vice-presidência e liderança da transição - nome que, lembre-se, em 2018, era o porto-seguro do mercado e das instituições conservadoras -, o presidente eleito também se esforça para resgatar determinados símbolos da República, como o hino e a bandeira3 - e, consequentemente, a afinidade com a seleção de futebol. Isso não significa que a seleção terá um papel propagandístico no processo. Nem mesmo num regime autocrático caberia, nos tempos atuais, algo como "220 milhões em ação ...". Seria ingenuidade apostar no clichê para encobrir os desafios que se seguirão.  Não é disso de que se trata, pois. Trata-se, porém, de reconhecer que a seleção não deixa de ser uma projeção da sociedade, com todas as suas tensões, frustrações, ilusões e paixões. Sobretudo num período ainda afetado pelos (intoleráveis) atos de intolerância estimulados pelo poder central, como se viu, recentemente, contra, para citar apenas dois exemplos, o artista Gilberto Gil e o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.  Mais do que o hexacampeonato - que seria ou será importante para o país, pois o futebol é a maior atividade planetária e, com o surgimento do novo mercado do futebol, a partir da Lei da SAF, se afirmará como incomparável soft power - a seleção pode contribuir para uma tentativa de encontro de convergências, apesar das divergências. E aí está a questão: até onde convergir não implica trair ou abrir mão de princípios inegociáveis? E tão importante quanto: será que os atletas representantes do país, ganhem ou não o desejado título, em especial seus líderes, saberão compreender o momento histórico que se vive e contribuir para reconstrução - e não para divisão? Parece-me, por fim, sem que se tenha, neste texto, chegado a uma conclusão - pois não era a intenção -, que a radicalização, em um sentido ou outro, de algum modo contribui para manter viva a chama de posturas que a maioria da população pretende que fique no passado. Daí, talvez, Hélio Schwartsmann tenha razão: "(eu) diria até que, depois de quatro anos de trevas sob Bolsonaro, o país precisava de algo assim, um espaço simbólico no qual indivíduos com as mais diferentes orientações políticas e ideológicas possam se reunir civilizadamente para traçar diagnósticos e debater políticas públicas". E, talvez, sua razão se projete também ao campo de jogo e condutas pessoais, com uma seleção que, sem desmerecer (ao contrário) as qualidades futebolísticas geniais e a importância técnica e tática de Neymar, fique marcada pela coletividade e pela preocupação com o país e com o seu povo. Depende apenas de seus membros. Independentemente de posições políticas pessoais.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Cf. o art. 13 da Constituição da República Federativa do Brasil: "Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil. § 1º São símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais".
quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Reflexões a respeito de Neymar

Em 4 de julho de 2018, por ocasião da Copa do Mundo da Rússia, escrevi um texto, cujo título é "Em defesa de Neymar e a omissão do Estado"1, em que pretendia jogar luz sobre o fato de que Neymar era (e é), sob vários ângulos, reflexo da falta de sensibilidade do Estado, de governos e da própria população com as coisas do Brasil. Explico-me.   Num país em que heróis são necessários para acompanhar a vida cotidiana e justificar a perspectiva futurista de melhores condições - que chegam para poucos -, nada ou pouquíssimo se faz, no plano de políticas públicas, para produzi-los; e, quando esses heróis surgem, geralmente por esforços próprios ou de pessoas próximas, sujeitam-se ao tensionamento maniqueísta da elite cultural e, não raro, à tentativa de apropriação por agentes públicos do momento. Foi assim durante o regime ditatorial e continuou da mesma forma, sob os distintos presidentes eleitos democraticamente - apreciassem ou não a democracia.    Se antes Neymar era apenas um menino que queria ser o melhor jogador do mundo (tal qual Pelé e muitos outros) - e acho que ainda será -, e hoje se transformou, além do fenômeno futebolístico que é, numa das maiores personalidades do planeta, integrada a um sistema irrefreável de interesses econômicos (conforme anotei naquele texto de 2018), nada decorre, porém, de um esforço coletivo voltado ao bem comum, e muito menos de ações de Estado ou de Governos. E aí está o tema a se enfrentar: mesmo assim, sem ter qualquer contribuição para o desenvolvimento ou o sucesso alheio, quase todo torcedor ou cidadão passa a esperar ou cobrar uma conduta compatível com aquela que supostamente teria se estivesse na posição da pessoa de referência, no caso, um jogador. Por outro lado, uma pessoa pública, ainda mais da dimensão de Neymar, sempre estará sujeita ao escrutínio e terá que lidar com a problemática das cobranças e das projeções de natureza psicanalítica, quaisquer que sejam elas. Ocorre que, em relação a ele (a Neymar, portanto), desde a sua origem, parece não ter havido boa-vontade para construção de uma relação afetiva capaz de dar-lhe uma conotação menos vilanizada - talvez em decorrência da ultra exposição e da associação a diversas marcas, ou pelo fato de não ter sustentado um discurso com preocupação social (o que não significa que não a tenha), e de algumas condutas ainda juvenis. Perdeu-se, até hoje, por isso, a chance de aproveitamento de um gênio - não apenas de seu tempo, mas, no plano futebolístico, de todos os tempos -, como um poderoso soft power brasileiro. Aliás, essa expressão está por todos os lados, a justificar investimentos bilionários da Coréia do Sul e a exportação, por exemplo, do seu K-Pop, como na capa do Caderno Ilustrada, da Folha, na edição de 20 de novembro, em que se lê o seguinte: "além de sediar a Copa do Mundo, Qatar consolida soft power na cultura e recheia Doha de museus e obras opulentas como os seus arranha-céus". A própria aquisição do PSG, como a contratação de Neymar - considerado, à época, o mais promissor e especial dos jogadores em atividade para empreender um plano de dominação ou de distribuição cultural -, pelos mesmos controladores finais que dominam a Copa do Mundo, tem menos a ver com a última linha do balanço (ou com os lucros diretos do investimento) do que com esse processo de afirmação planetária que, nos dias atuais, se alcança por vias não belicosas. Melhor dizendo: não tão atual assim, pois os Estados Unidos já os produzem, ao lado da própria indústria bélica, aos montes, por intermédio, dentre outros, de Hollywood e da música. Voltando àquele texto de 2018, que me perece ainda atualíssimo, indagava: "se ele não levanta bandeiras sociais - será que não? - ou se sua atuação, quando enfrenta ou apanha de adversários, incomoda, o problema é nosso, que projetamos nele aquilo que queríamos ser ou que gostaríamos que ele fosse, como herói". E, ainda: "deixemos que ele siga o seu caminho, e cobremos do Estado a formulação de uma política que possibilite o surgimento de um, vários ou cem mil grandes jogadores e cidadãos brasileiros, que possam compartilhar a responsabilidade que pesa, nessa Copa, sobre apenas um". Há um equívoco, pensando bem, naquela formulação: deixar que siga o seu caminho é o que se fez e se faz, com praticamente todos os meninos e meninas que não tiveram condições semelhantes às de uma minúscula parcela da sociedade, nascida em berços esplendidos. Corrijo-me, pois: o Estado deve contribuir, não com favores de natureza pessoal, mas com programas e políticas que estimulem a educação por meio do esporte e o esporte, por meio da educação, e, além disso, com outras políticas que viabilizem a valorização posterior desses símbolos nacionais, em proveito do bem geral. No que toca especificamente a Neymar, enquanto parte da população brasileira ainda insiste em maldizê-lo ou desprezar sua grandeza no plano do futebol, ele vem, por outro lado, contribuindo para afirmação de cidades ou estados com os quais não tem identidade. Olhando sob outros prismas, se profissionais como Oscar Niemeyer e mesmo Pelé fossem, por exemplo, norte-americanos, teriam sido cuidados e trabalhados para se transformarem em identidades ou marcas perenes, geradoras de perspectivas, empregos, tributos e riquezas, para eles próprios, suas famílias e sociedade em geral. Justamente o que deveria ser feito com Neymar - e que, pode-se apostar, está sendo programado, de maneira inédita no país, por seu entorno.   Sem qualquer ufanismo: o sucesso de Neymar poderá fazer muito bem ao Brasil e, quiçá (aí sim, com uma certa esperança idealizada), chame atenção das gentes para o enorme equívoco que se comete ao tratar certas atividades e pessoas com o mesmo desdém que, historicamente, justificou a entrega às nações colonizadoras das riquezas locais. ___________________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/meio-de-campo/283073/em-defesa-de-neymar-e-a-omissao-do-estado
Daniel Alves não precisa provar nada para ninguém, apesar de os Tribunais das Redes Sociais tentarem condená-lo ou diminuir sua importância. Trata-se do jogador mais vitorioso da história. Sim, ele não foi, em nenhum dos títulos que conquistou (ou quase em nenhum), o condutor principal. Mas não há nisso demérito, até porque, como lateral, não se esperava dele essa função. Sempre foi a peça certa de engrenagens que, invariavelmente, apoiavam-se em suas funções. Aliás, já escrevi sobre o jogador, em uma série de textos em que demonstrava o covarde processo de linchamento público a que foi submetido no São Paulo, com o propósito de fundamentar o fim de seu ciclo no clube. Foi por este time, não se deveria esquecer, que ele assumiu funções que não eram as dele - meio-campista, capitão e líder - e as exerceu com dignidade, apesar de todos os problemas de um clube corroído pela politicalha interna - o qual, outrora ganhador, não conquistava um título desde 2012. Daniel Alves participava de todos os jogos, não pedia para ser substituído apesar da idade mais avançada que os demais, colocava a cara à tapa e não fazia corpo mole, mesmo sendo desrespeitado pelo não pagamento da remuneração a que tinha direito. Não fossem os gols inacreditavelmente (imperdíveis) perdidos em Porto Alegre por Brenner e Luciano, com passes milimétricos de Daniel Alves, contra o Grêmio, por ocasião da semifinal da Copa do Brasil de 2020; e/ou também não fosse, mais relevante de tudo, o desastroso processo (ou falta dele) de transição imposto pela atual diretoria, eleita com um time virtualmente campeão brasileiro, mas que não soube (ou talvez não tenha pretendido) conduzir o elenco, formado por outro presidente, à redenção; a percepção sobre Daniel Alves se alinharia ao seu verdadeiro tamanho. Deixe-se, porém, o passado. Antes de decidir-me pela escrita deste texto, procurei ler e ouvir os principais comentaristas esportivos - inclusive porque navegarei por águas turbulentas. Deparei-me, inicialmente, com um cenário quase Rodriguiano: a indignação pela convocação de um vencedor ecoava em quase uníssono. Acho que apenas em Tostão e Victor Birner encontrei dissidência - devo ter deixado alguém de fora, de modo não intencional. E foi no segundo que emergiram, do ponto de vista técnico, as palavras que me pareceram mais sábias. Apontou Victor Birner que a seleção tem diversos atacantes, sem dúvida qualificados, que atuam pelas pontas. Em jogos catimbados e fechados, marcados pela obstrução dos espaços laterais, pelos quais esses jogadores transitam, Tite poderá precisar de alternativa que saiba, vindo de trás, abrir clarões e surpreender pelo meio, e assim romper barreiras criadas em momentos adversos. Daniel Alves oferece, talvez como ninguém, essa perspectiva, e se apresenta como uma solução técnica única, não encontrável em outros jogadores da posição. Foi além o jornalista: num evento rápido, nervoso e decidido, não raro, pelos detalhes, como a Copa do Mundo, Daniel Alves, mesmo não sendo o líder grupal (que não sei de onde se cobra isso dele), poderá cumprir outra função, tão importante quanto aquela: a de para-raios. Num país em que sua população, talvez influenciada pelas mentiras e manifestações raivosas que se impregnam por todos os níveis, poderá ser implacável, durante o percurso, com uma palavra mal-empregada, um gesto inadequado ou uma partida insatisfatória de algum dos protagonistas (todos erram, não se pode esquecer disso, jamais!), pode-se apostar: ali estará a pessoa que poderá contribuir para rearrumar o ambiente. Para concluir, Victor Birner ainda indicou que, desde que findou a temporada no México, Daniel Alves vem treinando, no Barcelona B, com um e apenas um foco: estar pronto, física e mentalmente, para um evento, como se sabe, curto e intenso. Ele definitivamente estará preparado para encarar o desafio. Não se pode esquecer, a propósito, da confiança depositada em jogadores em situações ainda menos evidentes, e que não apenas honraram suas histórias e a engrandeceram, como Branco, por ocasião da Copa de 1994. A todos esses argumentos, apresentados por um especialista, ouso acrescentar mais cinco, que podem ser imputados à conta da paixão: (i) a escolha de Daniel Alves, ademais, não significa a prática de alguma injustiça pois não há, em atividade, um preterido que esteja voando e fosse uma escolha óbvia ou necessária, com atuação no Brasil ou no exterior; (ii) o escolhido é experiente, não costuma sentir a pressão em jogos grandes e conhece ou já enfrentou parte relevante dos adversários; (iii) ele não deverá ser titular - assim como não seria o seu eventual substituto - o que amainaria a preocupação com o suposto e incorreto problema de falta de ritmo; (iv) é um vencedor, o maior de todos os tempos, e recentemente mostrou sua afinidade com a seleção, ao sagrar-se campeão olímpico; e (v) ao que parece, tem muito bom entrosamento com o elenco, em especial com seus principais protagonistas, como Neymar. O tempo deverá, nas próximas semanas, coroar ou maldizer Tite pelas suas decisões. Como torcedor e, mais do que isso, um cidadão que vê no futebol um instrumento de desenvolvimento social e econômico, e na seleção um soft power poderosíssimo, a ser exercido independentemente da corrente política conjunturalmente predominante, espero - e torço - para que ele confirme seu acerto.
A situação financeira do futebol brasileiro provoca - ou deveria - provocar reflexões: como pode o país que mais gera jogador no planeta (aproximadamente 11% de todos os negócios envolvem brasileiros) produzir um endividamento bilionário e impagável, sob a perspectiva dos atuais clubes, constituídos sob a forma de associação civil? Mais do que isso - muito mais, aliás: como pode o país, que tem mais de 20 times com mais de um milhão de torcedores cada, reduzir sua perspectiva na estrutura mundial à mera exportação de jovens ainda em fase de formação? E, para arrematar (apenas pela dimensão deste espaço, pois as perguntas são quase infindáveis), como pode o país mais admirado (e temido) no plano das seleções nacionais, o único penta campeão mundial, "importar" mais de 90% dos seus selecionados junto a times estrangeiros (que contratam os jovens ainda em fase de formação; fato que, é verdade, coaduna-se com a posição exportadora assumida pelos times locais)? Essas e outras perguntas, voltadas ao ambiente esportivo, conectam-se com questionamentos dirigidos ao ambiente da economia; ambiente este que aparenta ter ignorado a existência de uma atividade global e bilionária, da qual o Brasil deveria se inserir como protagonista. Assim, em resumo: como se justificava, até o advento da Lei da SAF, a falta de interesse do mercado em geral, local ou internacional, em relação ao futebol brasileiro, que faz parte de sistema transnacional que atrai mais de 4,5 bilhões de pessoas e que, no plano institucional, congrega mais confederações associadas à FIFA do que países à ONU? Não houve, na verdade, falta de interesse. Houve incompreensão e inconformismo quanto à necessária mudança de um modelo, remanescente do século XIX - sim, do século XIX -, que encastelou a empresa futebolística em clubes sem finalidade lucrativa, controlados por dirigentes instáveis - fruto do processo eleitoral inerente ao modelo associativo - e incapazes de oferecer a necessária segurança jurídica e institucional a agentes interessados em financiar ou investir na empresa futebolística.  Mas o futebol, como qualquer outra atividade econômica, precisa de recursos para seu desenvolvimento; e, na ausência de provedores de capital, passa a depender de um "submercado", formado justamente por outros tipos de agentes que vivem e fomentam a crise alheia para, em condições não raro escorchantes, impor uma dependência da qual não se sairá sem a revisão estrutural do modelo. Por isso que, historicamente, não surgiu, de dentro do futebol, uma solução para o próprio futebol: pois, contra os interesses deste - e dos torcedores -, grupos de pessoas com intenções e anseios particulares se apropriaram das decisões, das formas de captação e de financiamento, e do processo de endividamento, e se alimentaram do caos esportivo e institucional. Diversos fatos novos, e relevantes, indicam, no entanto, que uma transformação estrutural pode estar em curso. Negociações como as conduzidas por Cruzeiro, Botafogo, Vasco e, mais recentemente, Bahia -  que atraiu, nada mais, nada menos, que o grupo controlador do Manchester City -, jogaram luzes sobre a perspectiva criada com o início da construção de políticas públicas que reconhecem e elevam o futebol a tema fundamental da sociedade, pelos seus atributos culturais, esportivos, econômicos e sociais. Aqueles clubes, bem como outros que desenvolvem atualmente seus processos internos de revisão modelar, inauguraram, pois, o que deverá se reconhecer como uma nova era do futebol brasileiro. É com esses propósitos construtivos que o Instituto de Direito Societário Aplicado - IDSA, a mais importante e atuante entidade dedicada ao estudo, desenvolvimento e aperfeiçoamento do direito societário no país, promoverá, amanhã, dia 10 de novembro, na e com o apoio da Comissão de Valores Mobiliários - CVM, evento com a intenção de, justamente, promover e colaborar com a formação de um ambiente regulatório adequado ao surgimento e afirmação de instrumentos de mercado. Participarão do evento legisladores, reguladores, presidentes de clubes e SAF's, banqueiros, advogados e professores.  O local de realização, sede da CVM, autarquia que se presta a "desenvolver, regular e fiscalizar o Mercado de Valores Mobiliários, como instrumento de captação de recursos para as empresas, protegendo o interesse dos investidores e assegurando ampla divulgação das informações sobre os emissores e seus valores mobiliários", simboliza e sintetiza os esforços que agentes privados e públicos empregam, desde a proposição do anteprojeto de Lei da SAF, para criação do já mencionado mercado do futebol. Mais do que isso: representa a ruptura de uma barreira, formada por distintos substratos (psicológico, sentimental, legislativo, regulatório etc.), que impedia o estabelecimento, em um ambiente seguro e previsível, do encontro entre os proprietários do futebol - os clubes - e os financiadores da empresa futebolística.  Festeja-se, assim, o aparente interesse do regulador (CVM), que não apenas abre suas portas para o futebol (e, consequentemente, para o torcedor e para o País), e, sobretudo, indica (ao menos esta é a minha percepção externa) que poderá colaborar, no âmbito de sua competência definida em lei, para a formação e regulação de um mercado que contribuirá - é sempre bom afirmar e reafirmar - para o desenvolvimento econômico e social da nação.
quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Pelé, Lula e o futebol

Juca Kfouri escreveu em seu blog que Pelé é o "brasileiro mais importante da nossa história e o mais conhecido pelo mundo afora". Nessa opinião se revela a importância intrínseca do futebol, não apenas no plano esportivo, mas também no social e no econômico. E é isso mesmo, como, em meu entendimento, afirmou certa vez Diego Lugano, o capitão da Seleção Uruguaia em duas copas do mundo: em países marcados pela intensa desigualdade, como os sul-americanos e os africanos, o futebol se revela, para milhares de pessoas e famílias, a única esperança de inserção e prosperidade. Daí a incompreensão com o desprezo do Estado e de Governos em relação à modalidade. Não à toa o atual posicionamento do Brasil no mercado mundial: exportador de pé-de-obra. Pé-de-obra que, lá fora, passa por processo de ambientação para, depois, ser comercializado com enorme excedente financeiro aos agentes e intermediários que em nada contribuem para o desenvolvimento da Nação; ou para vagar em centros de menor expressão, se não responder às expectativas eventualmente legítimas do comerciante. Paradoxalmente, o futebol se tornou, com o desenvolvimento de novas tecnologias e vias de acesso à informação, a mais global e intensa atividade de entretenimento. Não era assim nos tempos de Pelé; fato, aliás, que reforça a grandiosidade de seu feito. Pelé foi - e talvez ainda seja - o mais importante soft power do país. Assim como alguns de seus sucessores também o foram (e são) - um deles, Ronaldo, recentemente reverenciado no plano esportivo, com razão, pelo francês Karim Benzema, por ocasião da entrega da Bola de Ouro deste ano de 2022. Nenhum artista ou esportista, de qualquer setor de atuação, alcançou, interna ou externamente, de modo individual, a proeminência de Pelé. Aliás, nenhum brasileiro, a despeito de sua área de atuação.   Pelé, apesar de sua passagem pelo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, não se notabiliza por uma atuação política. A coisa pública parece não ter sido sua principal preocupação - posso estar errado e, inclusive, adorarei, se estiver. Ele deveria ter agido de outro modo? Assumido bandeiras, liderado movimentos, participado de debates políticos e atendido às exigências ideológicas de cada um de seus fãs? Se o fizesse, talvez deixasse de ser Pelé, e se revelaria, como afirmava lindamente o pai de Juca Kfouri (segundo o próprio jornalista), um Deus. De todo modo, é muito fácil tecer críticas ou sugerir formas de atuação no lugar de outra pessoa, assumindo-se que, na posição dele, far-se-ia de maneira diferente. Essa tentativa carrega em si alguns problemas insuperáveis (e despropositados). Cada pessoa sabe o que passou - esforços, dificuldades, tristezas, alegrias, medos, falta de recursos, sorte etc. - para firmar-se profissionalmente e, em especial, como ídolo de determinada atividade. E, em casos raros, para tornar-se uma referência mundial. Ademais, para essa pessoa, a causa pública talvez jamais tivesse sido uma preocupação - como não é, para parcela relevante da população.    Isso diminui, no caso, Pelé como ídolo e maior esportista (não apenas futebolista) da história planetária? Não. Ele continua sendo o maior. Por outro lado, o credencia como o maior brasileiro? Também entendo que não, pelos efeitos que sua existência causou (ou deixou de causar) para o povo em geral. E o motivo é relativamente óbvio: para concorrer a tal posto, a pessoa haverá de ter, como propósito de vida, ao lado de eventuais características esportivas ou artísticas quase divinas, justamente o bem-estar do povo, em geral. Esse é o ponto de partida, mas não condição suficiente; pois, além de sentir ou idealizar, haverá, sobretudo, de realizar, e com a realização, transformar. Transformação, em ambientes ainda marcados pelas feridas da sociedade elitista e escravocrata, como o brasileiro, implica redução de desigualdades, inserção, desenvolvimento social e econômico, e afirmação de uma Nação, apesar das diferenças regionais e geográficas (dentre outras). Por isso que, não raro, ídolos esportivos ou artísticos de países pobres se lançam em carreiras públicas, para, a partir delas, imporem-se como líderes (e, ao menos no discurso, como transformadores). É o caso do ex-jogador de futebol George Weah, atual presidente da Libéria.   Lula - que poderia ser definido como humanista e pragmático -, apesar de não ter sido jogador ou cantor, é o brasileiro que, pela sua história e lutas, mais se dedicou à construção de uma sociedade menos desigual.  É um santo? Óbvio que não. Errou em sua passagem pela presidência? Sim, e não há dúvida em relação a isso. Acertou? Muito mais do que errou, e seus acertos, se tivessem o mesmo tempo da imprensa e atenção das mídias sociais que os seus erros, talvez (ou certamente) o colocassem no topo da lista dos brasileiros mais importantes da história.   Não custa lembrar, conforme a Manifestação de Apoio às Liberdades, emitida domingo p.p. (dia 23.10), pelo Movimento de Defesa da Advocacia (MDA), que "os erros e acertos fazem parte do sistema e das instituições, na mesma medida que fazem parte da essência da pessoa humana". Lula dá sinais inequívocos de que, se eleito, não cometerá os mesmos erros - próprios ou de seus comandados -, e, mais do que isso, de que irá para seu grande e último capítulo público, com o propósito de reforçar e ampliar os seus acertos, em benefício, e não há como negar, do povo em geral, e não do seu partido. Isso, é muito importante frisar, como ele próprio frisou em discurso proferido segunda p.p. (dia 24.10), na PUC/SP, sem abandonar a responsabilidade econômica e fiscal.   A própria indicação para vice-presidência da chapa de um histórico e elogiável líder de centro-direita, Geraldo Alckmin, e o papel que ele vem exercendo desde então, reforçam, em minha opinião, a sinceridade e a grandiosidade das intenções de um brasileiro que deveria ter a chance de, não apenas reparar seus erros (inclusive mediante a formulação e a afirmação de política de Estado para transformar o futebol brasileiro no maior soft power do planeta), mas, sobretudo, de resgatar, intensificar e multiplicar seus inegáveis acertos. Será, assim, Lula o brasileiro mais importante da história? A resposta cada um de nós dará após a nova oportunidade que o povo deveria - ou deverá - conferir-lhe; assim como cada um poderá afirmar, ou não, que Pelé foi - ou é - o maior atleta da história.
A lei 14.193/21 ("Lei da SAF") completou, recentemente, seu primeiro ano de vigência no Brasil. Buscando promover uma ampla reforma nas estruturas jurídicas dos times de futebol do país, pode-se dizer, pelo que se viu até aqui, que o novo subtipo societário vem demonstrando impacto positivo, obtendo a adesão de gigantes do futebol brasileiro, como o Cruzeiro, Vasco da Gama, Botafogo, Bahia, entre outros. Esse breve comentário não pretende, nem de longe, atacar todos os desafios que a Lei da SAF tem encarado nesses últimos tempos. O objetivo aqui é levantar possíveis consequências de um dos pontos basilares para aplicabilidade da SAF no Brasil: a sua responsabilização solidária, pela justiça trabalhista ou mesmo cível, por obrigações do clube anteriores à sua constituição. Simplificando: serão as SAFs consideradas solidariamente responsáveis - ou, como alguns propõem, integrantes do mesmo "grupo econômico" - aos clubes associativos que lhes constituíram? O debate consiste, basicamente, na interpretação que será dada - e consolidada por tribunais superiores - ao artigo 9º da Lei da SAF. Relembrando-o: Art. 9º. A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no § 2º do art. 2º desta Lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no art. 10 desta Lei. Até o momento, há decisões judiciais para ambos os lados (deferindo e indeferindo a responsabilização solidária e inclusão das SAFs no polo passivo das demandas), especialmente na Justiça do Trabalho. Os credores em geral, e não apenas os trabalhistas, têm constantemente tentado atingir o patrimônio das SAFs, sob a justificativa de que, como seu crédito estaria relacionado "às atividades específicas do seu objeto social", a SAF deveria ser incluída no polo passivo das cobranças e, portanto, considerada devedora solidária (ou coobrigada) do clube associativo. Essa conclusão, em nosso entender, se dá por uma análise partida (e, assim, distorcida) do regramento disposto na Lei. Há, inegavelmente, a regra geral de que a SAF não responde pelas obrigações do clube anteriores ou posteriores à data de sua constituição, com a seguinte exceção: obrigações que lhes foram expressamente transferidas, desde que relacionadas ao seu objeto social1. Ou seja, o estar relacionado ao "objeto social" é, na verdade, um dos requisitos para que a responsabilização da SAF seja possível. Deve-se ter em mente, portanto, que a exceção legal, vista por uma interpretação sistemática da norma, exige, cumulativamente, que a obrigação (i) tenha sido expressamente transferida à SAF e (ii) seja relacionada às atividades específicas do objeto social dela. Apesar disso, as discussões tidas nas primeiras instâncias, como dito, geraram opiniões divergentes. Há quem se negue a reconhecer que responsabilizar a SAF quanto às dívidas antigas dos clubes seria, em termos simples, desconsiderar todo o cuidado legislativo para se criar uma estrutura e ambientes jurídicos capazes de fornecer solução à caótica situação de insolvência dos clubes brasileiros, oportunizando-os um caminho de soerguimento por meio da profissionalização e atração de investimentos. Caberá às instâncias superiores consolidar o entendimento a ser adotado pelos tribunais brasileiros, estabilizando a interpretação legal. Enquanto isso não acontece, é interessante ressaltar os possíveis impactos que uma utilização tortuosa da Lei da SAF pode provocar. Partimos, então, da situação em que o clube originário, após ter constituído a SAF, teve deferido pedido de processamento da recuperação judicial, ou mesmo teve aprovado seu plano de recuperação, nos termos da lei 11.101/05 (Lei de Recuperação de Empresas e Falência - "LRE") e do artigo 13, inciso II, da Lei da SAF. Em seguida, credores trabalhistas e cíveis começam a requisitar a inclusão da SAF no polo passivo e consequente responsabilização solidária dela, atingindo seu patrimônio para ter saldada a dívida contraída anteriormente com o clube. Se deferido o processamento da recuperação, em regra, restarão suspensas as execuções ajuizadas contra o devedor principal, conforme o inciso II do artigo 6º da LRE. Se o plano de recuperação já tiver sido aprovado, opera-se a novação dos créditos a ele submetidos, e os pagamentos se darão de acordo com seus termos. Há, portanto, um "estancamento" das cobranças e posterior repactuação das dívidas do clube. Mas, dentro desse contexto, como fica a SAF? A suspensão ou a novação dos créditos seriam suficientes para proteger o seu patrimônio caso a tese - em nosso entender equivocada - de responsabilização solidária2 das dívidas anteriores do clube seja acolhida? Aparentemente, não; e esse perigo precisa ser evidenciado. A resposta está na interpretação do artigo 49, §1º da LRE: Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. § 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. A jurisprudência é firme ao entender que o termo "coobrigados" inclui os devedores solidários, possibilitando a cobrança desses (mesmo estando o devedor principal em recuperação judicial). A súmula 581 do STJ dispõe que: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória"3. Ou seja, é necessário alertar que uma interpretação imprópria da Lei da SAF poderá trazer consequências graves até mesmo para os casos em que o clube associativo tiver o "estancamento" das cobranças e repactuação de seus débitos, por meio da recuperação judicial. Portanto, é possível imaginar, contraditoriamente, o seguinte cenário: o clube terá suas cobranças suspensas e, enquanto isso, a SAF (entidade sem qualquer relação com os fatos geradores das dívidas) terá seu patrimônio atingido por credores com quem jamais contratou. Esse risco só confirma a necessidade de cautela dos aplicadores do direito, em especial juízes, desembargadores e ministros, quanto à correta utilização da Lei da SAF, compreendendo os seus objetivos e sistemática. A Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho - TST -, em 19 de agosto de 2022, editou Provimento CGJT 01/22, que alterou os termos da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho. Esse Provimento, além de trazer considerações essenciais ao tratamento dado ao Regime Centralizado de Execução previsto na Lei da SAF, incluiu o seguinte parágrafo em seu artigo 153: § 4º Nos termos da Lei nº 14.193/2021, não haverá responsabilidade jurídica da SAF em relação às obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a tiver constituído, sejam elas anteriores ou posteriores à data da sua constituição, salvo quanto às atividades específicas do seu objeto social, respondendo pelas obrigações a ela transferidas na forma do § 2º do art. 2º da aludida lei, hipótese em que os pagamentos observarão o disposto nos arts. 10 e 24 da referida lei. Apesar de refletir o caput do artigo 9º da Lei da SAF, o Provimento parafraseia a regra; tornando-a talvez mais clara aos seus intérpretes. A paráfrase muda o trecho "e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas" por "respondendo pelas obrigações a ela transferidas". O gerúndio ("respondendo") evidencia a compreensão de que a exceção à regra geral de não responsabilização4 possui os requisitos expressos de que (i) a obrigação seja relacionada ao objeto social da SAF e (ii) tenha sido a ela transferida. Logo, a transferência da obrigação é condição sem a qual a excepcional responsabilização da SAF resta-se impossibilitada. Elogiável, portanto, a intervenção da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho, que busca indicar os caminhos para aplicação correta das novidades legislativas; aguarda-se, assim, a devida recepção de tais diretrizes pelos seus destinatários. _____________ 1 CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de. (Org.). Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol: Lei Nº 14.193/2021. São Paulo: Quartier Latin, 2021. P.124. 2 A discussão muitas vezes passa pela caracterização de grupo econômico entre o clube e a SAF, que culmina na responsabilização solidária. Focamos, aqui, em analisar a eventual responsabilidade solidária em si, visto que as implicações quanto à caracterização de grupo econômico poderão variar conforme a legislação que esteja em debate. Grupo econômico, na legislação trabalhista (art. 2º, §2º, da CLT) pode não ser grupo econômico para fins da consolidação substancial que trata a legislação falimentar (art. 69-J da LRE). São conceitos diferentes com consequências igualmente diferentes. 3 Cite-se também o Enunciado 43 da I Jornada de Direito Comercial realizada pelo CJF/STJ: "A suspensão das ações e execuções previstas no art. 6º da Lei nº 11.101/2005 não se estende aos coobrigados do devedor". 4 Note-se que a exceção de responsabilização prevista no artigo 9º da Lei da SAF é diferente daquela indicada no artigo 24 - que, por sua vez, não se aplica à hipótese aqui imaginada (clube em recuperação judicial).
Entra eleição, sai eleição, e o futebol continua a ser ignorado. Não vale, como afirmação de interesse, os constantes aparecimentos do Presidente Lula vestido com casacos de seu time preferido, em eventos públicos. Isto indica, apenas, uma paixão pessoal. Vale menos ainda a presença do Presidente Bolsonaro em partidas de times que não são o seu, paramentado com a respectiva camisa esportiva para atrair simpatia de torcedores. Trata-se, apenas, de oportunismo. O desprezo histórico, sob a ótica da estrutura do esporte, não foi e não é privilégio dos atuais contendores; ele se identifica em todos os candidatos relevantes de todas as eleições presidenciais, desde a redemocratização do país. É verdade que se encontram, nos programas de governo de praticamente todos eles, capítulos dedicados ao esporte; e, eventualmente, ideias abstratas, áridas ou demagogas dirigidas ao futebol. Nada que tenha (ou tivesse) alguma efetividade - o que se revela não por opiniões teóricas, mas pela constatação empírica do estado patrimonial, financeiro e econômico da quase totalidade dos clubes brasileiros. Daí a conclusão: o futebol, a despeito do envolvimento, com maior ou menor intensidade, de parcela majoritária da população - algo em torno de 140 milhões de pessoas -, não atrai interesse político. Curioso, realmente curioso, pois o contingente é maior do que o número de pessoas que se deslocou, por exemplo, para participar do atual pleito presidencial. O descaso, pois se trata mesmo de descaso, contrasta com a preocupação transformada em ação em diversos outros países. Os Estados Unidos da América associam o profissionalismo à atuação universitária, e estimulam a criação de indústrias universais do entretenimento; os Europeus, como a França, promovem programas de estudo-esporte, para incentivo de carreiras esportivas; a China incorpora o desenvolvimento de modalidades, dentre elas o tênis de mesa (dentre muitas outras), em programas de Estado. Nenhuma dessas potências, porém, domina, na escala do Brasil, a formação de futebolistas - que permanecem desprezados pelo Poder Público. Aliás, de certa forma, a geração de jogadores ocorre de maneira espontânea, sem, na origem, a intervenção de entidades privadas ou públicas. Elas se aproveitam, posteriormente, do talento inato para, aí sim, lapidá-lo e, tempos depois, comercializá-lo, sob a lógica cada vez mais colonialista das negociações futebolísticas. O Brasil tem todos os elementos de uma indústria que os países hegemônicos pretendem ter - e para isso empregam meios contemporâneos de apropriação, como já se fez, no passado, com o pau-brasil, o ouro, o diamante, o café, a borracha etc. Não se trata de ufanismo às avessas; portanto, de teoria conspiratória. Apenas, mais uma vez, de observação da realidade, evidenciada pela quantidade de negócios envolvendo jogadores brasileiros - aproximadamente 11% de todos os ocorridos no planeta - e pela distribuição, lá fora, da mais-valia obtida nas negociações subsequentes. Não apenas isso: também pela constatação de que, apesar do recente advento da Lei da SAF - que, pouco mais de um ano após sua promulgação, já começa a transformar a realidade dos times locais -, nenhum candidato se presta a compreender o fenômeno e, a partir dele, defender ações que contribuam para o desenvolvimento econômico e social da Nação. Lembre-se: a Lei da SAF afirmou-se como via de salvação de um clube popular de Minas Gerais, o Cruzeiro, e já se revela, no mesmo sentido, o caminho de seu principal rival, o Atlético, que mandatou uma grande instituição financeira para coordenar sua operação. No Rio de Janeiro, Botafogo e Vasco da Gama, duas das principais forças, seguiram a mesma trilha, e boatos indicam que o Fluminense pode ter, no futuro, destino semelhante. O Bahia também se aproveitou do sistema para atrair, nada mais, nada menos, que o Grupo City e, assim, projetar-se não apenas no plano local, mas internacional. E o Athletico Paranaense, exemplo de resiliência, competência e sucesso, foi atrás de uma instituição internacional para comandar a atração de investidor para afirmar-se como um dos principais times da América. Esses exemplos demonstram (i) que se carecia de uma legislação adequada à percepção da relevância da atividade e, lamentável e fundamentalmente, (ii) inexistia política pública aderente à realidade das gentes que não têm suas vidas afetadas ou melhoradas por jingles utópicos de campanha, mas sonham com a mudança de suas duras realidades (ou de seus familiares), por meio do futebol. Lula, o brasileiro que, na história do país, mais compreendeu e compreende as necessidades das pessoas desfavorecidas (portanto, do povo), e Bolsonaro, que, apesar de nada ter contribuído ou feito pela Lei da SAF (os créditos, no plano político, devem ser atribuídos ao autor da lei, senador Rodrigo Pacheco, e ao relator no Senado Federal, Senador Carlos Portinho), a promulgou, não perceberam que os efeitos visíveis dessa iniciativa representam a pontinha de um iceberg de proporções colossais, nos planos econômico e social, e a depender dos encaminhamentos que se façam, também educacional. Fica aqui, pois, uma proposta: nos dias que se seguirão, e sobretudo nos debates que se promoverão, que se deixem de lado, ao menos por algum instante, os ataques pessoais e se discutam as bases e os instrumentos de fortificação do novo ambiente do futebol que, de irrelevante ou alienante, nada tem - como quer fazer crer o cartolismo, justamente para manter o poder sobre uma riqueza que pertence aos brasileiros. 
quarta-feira, 28 de setembro de 2022

O Dia "D" - Eleições, mulheres e futebol

Estamos igualmente distantes do último e do próximo 8 de março.  Sem embargo, vivemos a semana que culminará no tão esperado 2 de outubro, dia das eleições que ficarão marcadas pela centralidade dos temas relacionados à defesa dos direitos das mulheres.  Aguardamos, com ansiedade, pela chegada do "Dia D" para as mulheres, o momento em que poderemos utilizar o instrumento mais potente ao nosso alcance - o voto - para exercermos nosso papel na luta por um País com mais igualdade e menos violência de gênero.  Que seja assim. Já não era sem tempo.  O trabalho com questões relacionadas à assistência social propaga conceito salutar na defesa de direitos de desfavorecidos: "nada sobre nós, sem nós".  São as mulheres quem têm lugar de fala para explanar sobre as questões que lhes trazem sentimento de injustiça e lutar pelos seus anseios. Aos demais gêneros, incumbe apoiá-las, em prol de uma sociedade mais justa para todos.  De tal sorte, que tal correlação positiva de forças somente se mostrará eficaz e equilibrada a partir do expressivo aumento da representatividade feminina no Parlamento e nos órgãos do Executivo.  Diante das urnas, poderemos mostrar que/se nossa sociedade já entendeu o conceito de "nada sobre elas, sem elas".  No esporte, tema central desse nobre espaço, quis o destino que o Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino tivesse sua Grande Final no último domingo antes das eleições.  Foi, sem dúvida, o campeonato que consolidou o interesse do torcedor pelo futebol brasileiro feminino local, representado pelas disputas entre clubes. O Brasileirão Feminino 2022 ficará marcado pelos grandes públicos, pela audiência nas transmissões, pela repercussão e seus ótimos jogos.  A CBF tem, e merece ter, os méritos pela forma como tem se esmerado na organização das últimas competições femininas, bem como, por fomentar, há tempos, a prática na categoria principal e na base. Justo reconhecimento. O mesmo se diga em relação aos clubes, as entidades protagonistas, que apostam e investem no futebol feminino, fortalecendo cada vez mais o vínculo com seus, atuais e novos, torcedores.  Sem que nunca possamos nos esquecer de reconhecer a luta de atletas, treinadoras e treinadores, componentes de comissão técnica e dirigentes, muitas delas, há tempos, engajadas no fortalecimento do futebol feminino.  Dias de luta. Dias de glória.  Desde 2017, a CBF determina critérios de obrigatoriedade de manutenção de equipe de futebol feminino da categoria, aos clubes que pretenderem pleitear licença para participarem de suas competições. Tal norma está contida no Regulamento de Licença de 20211. Excelente medida.  Em vigor desde agosto de 2021, a Lei da SAF fez com que a manutenção do time de futebol feminino fosse elevada à categoria de norma com a hierarquia de Lei Federal.  Logo no artigo 1º, na caracterização de SAF, está descrito que "constitui Sociedade Anônima do Futebol" a companhia cuja atividade principal consiste na prática do futebol, femininoe2 masculino (...)." (n.g.)  Ou seja, independente de se sujeitarem ao Licenciamento CBF - e de participarem das competições de âmbito nacional - todo e qualquer clube que pretenda constituir SAF, gozando do regime jurídico já amplamente mencionado anteriormente nesse espaço, deverão manter a equipe de futebol feminino.  Expande-se, assim, o conceito de "educação pelo futebol e futebol pela educação" expresso no texto do artigo 28 da Lei da SAF, também em favor de jovens brasileiras que, movidas pelo exemplo das craques que assistem no campo ou na TV terão tido acesso à formação esportiva, preparação física, alimentar, psicológica, social e cidadania por meio do esporte, mesmo que não se consolidem com atletas de alto rendimento.  Além, é claro, de ampliar o campo de trabalho para treinadoras, integrantes de comissão técnicas, médicas do esporte e dirigentes, para ocuparem espaços que até pouco tempo eram - como outros tantos - restritos apenas aos homens. Semana de eleição é tempo de sonhar. Sonhar um País mais justo, mais desenvolvido e com igualdade de oportunidades a todos. E todas. Porque nessa eleição, a igualdade de gêneros está em pauta com uma força que nunca havia tido.  Podemos, então, sonhar com um Brasil mais justo, igualitário e humano.  E também com uma "Pátria de Mulheres em Chuteiras", com o futebol feminino massificado, arrastando multidões aos estádios e, como resultado de tudo isso, conquistando títulos mundiais e o tão sonhado Ouro Olímpico, para o gáudio do País do Futebol. __________ 1 Disponível aqui. 2 Atenção ao "e", que não é "ou".