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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
Em Orfeu da Conceição, obra prima da humanidade, adaptada da mitologia grega por Vinícius de Moraes, e mencionada por Barack Obama no livro Dreams from My Father: A Story of Race and Inheritance, Orfeu, um músico negro, desce o morro numa terça-feira de carnaval para encontrar Eurídice, por quem se apaixonara. Ao subir o morro, em regresso de sua empreitada, é morto por iniciativa de sua namorada anterior, enciumada da nova paixão do amado. No carnaval de 2023, no litoral Paulista, precisamente na região do Sahy e adjacências, centenas (ou talvez milhares) de pessoas foram involuntariamente descidas do morro. Não por amor. Um morro uivante, como a ele se referiu uma moradora local que tive a tristeza, pelas circunstâncias, de conhecer; um morro que soltava gritos guturais ao ser agredido pela força da água que se projetava, cortante e sem piedade, do céu. Seria apenas mais uma desgraça em um país que coleciona desgraças impingidas às populações carentes e desfavorecidas economicamente se, e apenas se, dessa vez, os impactos não tivessem se estendido às regiões e aos proprietários de imóveis de classes mais altas. Não, não pretendo cair aqui na tentação de simplesmente levantar o dedo aos integrantes dessas classes - da qual, não posso negar, faço parte e da qual muitos dos principais colunistas e periodistas que trataram do tema, independentemente de suas convicções ideológicas ou políticas, também fazem parte - que, não raro, também dedicaram suas forças laborais para conquistar um sonho naufragado na mesma ocasião. A eleição de um culpado, ou de um grupo de culpados, reduziria, indevidamente, o problema a algo episódico; pois, o que se vivenciou e ainda se vivencia no litoral não decorre de fato isolado. O território brasileiro está povoado de situações análogas de risco, que se transformam, ano após ano, em novas tragédias, sem que sejam promovidas soluções estruturantes. Em linguagem abstrata, a sociedade que se construiu, desde a invasão portuguesa, é, lato sensu, responsável pela desigualdade e pelas catástrofes brasileiras. Aliás, tudo ou quase tudo que se tinha a dizer, sobre as causas e os efeitos da desigualdade e o processo de segregação, foi dito em textos primorosos escritos, dentre outros, por Reinaldo Azevedo1, Antonio Prata2 e Oscar Vilhena3. Do ponto de vista pragmático, nos dias que se seguiram à trágica noite de sábado para domingo do feriado de carnaval, viu-se a criação de diversas redes de apoio e solidariedade, que contribuíram para anestesiar o sofrimento. O problema é que, passada a onda de empatia e de ações de caridade, as gentes que frequentam o litoral para veraneio, que lá estabeleceram suas segundas moradias, e os doadores esparsos, voltarão aos enfrentamentos cotidianos de suas vidas enquanto, nas regiões afetadas, famílias se depararão com as mazelas da nova realidade: sem chão, sem casa e talvez sem emprego. E, em alguns casos, sem membros da família e amigos. Para piorar, em região turística cuja população depende do fluxo de pessoas e da circulação de recursos, os desafios se expandirão direta e indiretamente às comunidades em geral, dificultando a reconstrução material e imaterial de projetos das gentes locais. A verdade é que a solução do problema exige esforços hercúleos e dificilmente (ou melhor, impossivelmente) os movimentos transformacionais necessários poderão ser promovidos sem a ativa participação do Estado. Estado, aliás, que se ausentou, nos anos passados - ou será nas décadas e séculos passados? -, ao testemunhar a formação, à beira da estrada, em zonas de risco, de crônicas de mortes anunciadas. Sim, todos os sinais estavam lá, visíveis, seja a quem morava, a quem trabalhava, a quem trafegava pela estrada, ou a quem tinha incumbência de fiscalizar ou de propor e implementar políticas públicas. Assim como os sinais estão em muitos outros locais ou regiões, incluindo-se as periferias de grandes cidades. Estado, ademais, que não soube (ou não quis) aplicar as centenas de milhares de reais, obtidas em royalties oriundos da exploração de petróleo e derivados, em soluções estruturais que, como se ouviu, não rendem votos. Vê-se, também, neste momento, uma série de propostas de soluções, algumas que já estariam idealizadas (e que não teriam se materializado por conta de burocracias ou contraposição de interesses, eventualmente legítimos), ou que foram simplesmente ignoradas pelo Poder Público, e mais algumas que surgiram no calor do drama, e assim por diante. Não se pode perder de vista que, ao lado do sofrimento humano - e das proposições bem-intencionadas -, também há quem abra os olhos para os lucros que poderão ser obtidos com toda a movimentação em torno da catástrofe (algo que, apesar de repugnante, está enraizado na sociedade patrimonialista brasileira e mundial, como se investiga, por exemplo, no âmbito de contratações realizadas por ocasião do enfrentamento da recente pandemia). Disso tudo se conclui que o público e o privado deveriam, talvez pela primeira vez na história, unir-se em torno de um ideal, de revisão e reconstrução, inicialmente, das famílias e comunidades atingidas, mas inserido em um projeto transformacional maior, a ser definido mediante a determinação de política pública, para execução em decorrência de concurso aberto aos principais especialistas e entidades qualificadas, de abrangência urbanística, arquitetônica, habitacional, ambiental, fundiária, logística, etc. E cujo modelo final possa ser replicado ou ao menos aproveitado em outras situações, de modo preventivo, sobretudo - enquanto, claro, adotam-se medidas transitórias imediatas de apoio às vítimas e à região. Apenas assim se afastarão dois problemas que corroem as bases da sociedade brasileira: o oportunismo, não apenas político; e a ganância, que pode estar a nortear movimentos infiltrados na problemática. Foi para fazer essa talvez ingênua proposta que este espaço, pela primeira vez em mais de seis anos, se fechou para o futebol; e não com a intenção de - como fazia o escritor Eduardo Galeano durante copas do mundo, que se fechava para tudo e todos - acompanhar jogos de futebol.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.
quarta-feira, 22 de fevereiro de 2023

"E-Sports?" E o primeiro abalo das apostas

O futebol brasileiro vai se acomodando desorganizadamente com as inovações legais havidas nestes últimos anos, em especial com a adesão de algumas associações esportivas ao modelo da SAF e aos novos formatos derivados da chamada "Lei do Mandante", sonhando também, apesar de não o "sonho dos justos", com a sempre propalada Liga, esta por enquanto ainda uma realização adiada (2025, será mesmo?). Salvo a adoção da modelagem da SAF, que cuida de uma decisão individual dentro do exclusivo interesse (ou por que não dizer necessidade) de cada agremiação, parece óbvio, embora na prática aos clubes assim não se revele, que a utilização dos outros institutos e a percepção de seu resultado exponencial é algo para o que se recomenda uma aplicação conjunta, a fim de desenhar, definir, e no tempo consolidar o novo mercado futebolístico brasileiro.  A SAF alcança a "primeira rodada" com poucas métricas de análise, em parte distorcidas já que os aderentes iniciais fizeram a transformação premidos pela necessidade existencial, e assim sem a necessária maturação, para então terem que vivê-la com "o carro andando"; passam pelo crivo as primeiras (e algumas conflitantes) decisões judiciais, enquanto uma parte significativa dos clubes se encontram em processo de conhecimento nos mais variados estágios (estudos, iniciação e debate com stakeholders,  aprovações estatutárias ou implantação em curso).  Em qualquer caso, trata de elevação interna, unilateral, uma ação intermuros observados somente critérios próprios da associação esportiva, independente do caótico ambiente em que se insere. Apenas para não ficar sem registro, o restante do arcabouço que vem sendo mal manejado sugere aplicação conjunta e inclui as tratativas para unificação da Liga, o acordo de implantação com a entidade organizadora do futebol nacional, a constituição jurídica propriamente dita e toda sua governança, sem esquecer a formatação e negociação do novo modelo de transmissão, estratégias para os desafios da transição geracional, revisão do produto, entre outras ações de curto, médio e longo prazo. Em meio a tanto e com tão pouca efetividade, é certo que muito acaba não sendo visto, ou como é mais comum, visto de forma míope ou enviesada. Este início de ano jogou luz sobre dois desses temas rigorosamente tangenciados, não devendo os clubes excluí-los da agenda de negócios. O próspero mercado de apostas sofreu seu primeiro enfrentamento ao se tornar um caso de polícia. Já havia sido "lembrado" em agosto do ano passado, quando a Secretaria Nacional do Consumidor (SENACON) requisitou a clubes, federações e veículos de comunicação, a "cópia dos contratos", visando identificar as empresas atuantes e assim sinalizar alguma movimentação. Quando falamos de apostas e rapidamente lembramos as camisas de muitos clubes de futebol ou a massiva campanha de propaganda realizada nos eventos esportivos em todos os meios de comunicação, temos que ter em mente um negócio, atualmente emergente e não regulado. Esqueçamos para isso a figura da Megasena, da Loto, e muito menos a saudosa loteria esportiva. Pensemos apenas em um cassino, lembremo-nos então da "famosa" banca. O mercado de apostas, operado na sua grande maioria por empresas offshore, é estimado em cerca de 5 Bi ano, sendo a natureza da modalidade da aposta de quota fixa diversa do concurso de prognósticos, uma vez que o último pressupõe a divisão de um rateio, enquanto a primeira se traduz pela relação direta entre o apostador com a casa de apostas como pagador. Ainda que pareça, não são a mesma coisa. E sem definições e responsabilidades, abre espaço ao embuste. Certamente, o problema mais crítico atualmente sobre a novidade das apostas reside na falta de regulamentação do mercado, via de consequência, trazendo a enorme dificuldade de mitigar suas principais ameaças, quais sejam, a lavagem de dinheiro e a manipulação de resultados. Estes pontos sensíveis, ambos com enorme potencial de fulminar a credibilidade e perenidade do próprio mercado, só poderão ser dirimidos a partir de um marco regulatório, atualmente em gestação (dizia-se que "de 2022 não passa!") com todo o regramento e mínimas linhas de defesa instituídas. É possível que o tema pegue carona e venha integrar a "lei dos cassinos", em estágio legislativo mais avançado, prática que sempre traz a possibilidade de tratamento insuficiente. Enfim, cabe agora aos clubes entender qual o seu papel neste mercado, não só - e especialmente em termos de governança, uma vez que o mal que se relaciona à manipulação o implica mesmo que indiretamente, mas também como meio de custeio, afinal, será que basta o contrato anual de patrocínio do "BET" na camisa ou se pode ter maior participação na cadeia? Para reflexão... Outro assunto que foi iluminado é o "mundo dos E-Sport", a partir de declaração da ex atleta Ana Moser, atual Ministra dos Esporte, no início deste novo governo. Ao explicar porque este universo não haveria de ser contemplado para fins de incentivos, sugeriu que não se trata de modalidade esportiva, mas puramente de entretenimento, colocação que vista fora do contexto inaugurou diversos e acalorados debates. A questão central da ex jogadora, a par do seu pré-conceito, faz parcial sentido, se considerada não com o mero alijamento do e-sport para as fins de beneficiamento mas talvez com seu deslocamento para o fim da fila de prioridade, solução que parece mais sensata e pode inclusive ser revisitada a qualquer tempo, até porque para essa modalidade específica a iniciativa privada está sempre ávida por regulares inversões. A celeuma de fundo não pode ser desconsiderada, mas no fim do dia é contra producente... ora, o futebol não integra a indústria do entretenimento? Há tempos foi superada a discussão com o entendimento de que o esporte não requer atividade física, são reconhecidos sem distinção os esportes da mente, vide o xadrez, o poker, noutra linha o automobilismo, muito embora exija preparação física consistente, o ato de guiar o bólido demanda sobretudo a mente do piloto. Há outra questão que fomenta também os debates, sempre salutares.. esta diz respeito a falta de imprevisibilidade, como substrato da caracterização do esporte. Para ela, o fundamento é que nos e-sports, findos seus algoritmos e sequências, existe um resultado definido, um termo final já desenhado, faltando-lhe portanto uma condição existencial que se manifesta, no caso dos adeptos da bola, através do "Imponderável Futebol Clube". Sem vilipêndio, essa parte do debate se revela estéril, com pouco significado, na medida em que política pública é uma coisa e desenvolvimento e conceituação de mercado é outra! Já para o futebol, o importante neste ambiente é novamente o posicionamento. Talvez falemos aqui até menos de monetização, mas especialmente da real potencialidade de alimentação da sua base consumidora, mediante a captação do interesse das novas gerações e criação de atratividade a fim de perenizar o relacionamento clube torcedor. O modelo Madden NLF(*), seguramente, é um excelente benchmarking e exemplo para inspiração. As cartas estão na mesa e o poder da mente às ordens... ainda que periféricos, ambos temas são de destacada importância, notadamente integrantes do conjunto que se pretende construir para consolidação do novo mercado futebolístico brasileiro, seja em termos econômicos, como de governança e de estratégia. E nesta via se retorna às aplicações conjuntas de medidas, à desejada implementação da Liga, enfim, ao conhecimento e a realização, reclamando zeloso envolvimento e empenho da nossa classe dirigente, pouca interessada e nada coesa.   __________ (*) WIKIPEDIA - Madden NFL é uma série de jogos eletrônicos de futebol americano desenvolvida pela Electronic Arts para a EA Sports. Seu nome é uma referência ao antigo jogador e técnico vencedor do Super Bowl, John Madden.
A Lei da SAF vem promovendo uma transformação sem precedentes no ambiente do futebol brasileiro. Todos os principais times, de algum modo, debatem o tema, seja para (i) definir o respectivo caminho de implementação, (ii) aproximar conselheiros e torcedores do conteúdo normativo (e de suas perspectivas) ou (iii) fazer de conta que o tema está na pauta, com o propósito de despistar demandas internas e externas. Trata-se, pois, sob qualquer ângulo, de um fato da realidade. Mas ainda há muito a fazer em relação ao futebol, inclusive sob a ótica do Estado, que, como se afirma e reafirma neste espaço, não cuidou devidamente até hoje de uma atividade que, como nenhuma outra, pode contribuir, a partir da base da sociedade, à integração nacional e ao desenvolvimento social e econômico do país. Não se vislumbra, evidentemente, uma interferência estatal na forma de organização interna dos times ou, muito menos, para se tornar organizador de competições futebolísticas. O papel do Estado é outro; e, se adequadamente executado, levará à formação do maior - é o que se defende - mercado futebolístico do planeta. Melhor momento para isso, aliás, nunca houve.   Listam-se, a seguir, cinco iniciativas, de diversas naturezas, com o propósito de contribuir para a construção de tal mercado. Primeira, a abertura de linha de financiamento pelo BNDES, dirigida às sociedades anônimas do futebol, para investimento na formação de jovens e para aplicação em estrutura de prática esportiva, e que só pudesse ser acessada pela SAF que demonstrasse a correta destinação dos recursos e o respectivo impacto econômico e social resultante dos investimentos. Evidentemente que, em contrapartida, a SAF deveria preencher requisitos de admissibilidade e, conforme normas do banco, oferecer as devidas garantias - algo que, no âmbito do clube social (isto é, mantendo-se o modelo associativo), é inviável. Segunda, a emissão, pela Comissão de Valores Mobiliários - CVM, de parecer de orientação, com base no art. 13 da lei 6.385/1976, com o propósito de orientar o mercado e os investidores a respeito de matérias relacionadas ao mercado do futebol (que se inserem, por conexão, em sua competência regulatória). Esta iniciativa foi aventada, aliás, pelo Presidente da autarquia, João Pedro Nascimento, em evento sobre a SAF ocorrido no dia 1º de fevereiro de 2023, na B3, e traria maior previsibilidade e segurança à SAF que pretendesse acessar o mercado de capitais, de um lado, e aos investidores, de outro, que vislumbrassem aplicar recursos em projetos relacionados ao futebol. Terceira - que, novamente, não se trata de e não poderia jamais envolver uma intervenção estatal -, diz respeito ao reconhecimento de que a formação de uma liga no país teria impactos econômicos brutais e, consequentemente, viabilizaria a produção e circulação de riquezas, e, daí, a legítima expectativa arrecadatória do Estado, por conta de novos negócios e relações jurídicas que se inaugurariam (e passariam a se sujeitar à incidência da norma tributária). Não se trata de falácia. Há exemplos concretos e bem-sucedidos. O principal deles é relatado na obra "A liga", a respeito da evolução histórica da Premier League (Inglaterra), em que os jornalistas Joshua Robinson e Jonathan Clegg tratam do período em que "o futebol passou de uma simples atividade comunitária local a um monstro do entretenimento mundial", cujos jogos (da liga inglesa) passaram a ser exibidos em 185 países, atingindo um público potencial de 4,7 bilhões de pessoas. Como fazer? Da forma mais simples: chamar os times para uma conversa coletiva e demandar como se poderia contribuir do ponto de vista regulatório para sua formação, sem intromissão na capacidade organizativa, e viabilizar a arquitetura de tal movimento. E, nessa linha, negociar contrapartidas que espalhassem os benefícios e perspectivas do futebol para as comunidades, em especial as menos favorecidas. Quarta, e talvez a mais disruptiva (para usar uma expressão desgastada), propor o debate sobre vias regulatórias incentivadoras da mutualização e posterior desmutualização das entidades de administração do futebol. Esse movimento, que passaria pela atribuição de títulos patrimoniais, posteriormente convertidos em ações de emissão de uma companhia desmutualizada - cujas ações, no limite, poderiam ser negociadas em bolsa de valores -, comprovaria a essência de Midas e distribuiria, entre times (e eventualmente federações), bilhões de reais. Por fim, a quinta iniciativa, de ordem mais política, passaria pelo reconhecimento de que todos esses movimentos, apesar de terem o futebol como pano de fundo, teriam preponderância econômica, de modo que poderiam ser alocados em uma subsecretaria especial do Ministério da Fazenda, criada com propósito específico de viabilizar a construção do mercado do futebol - e de fazer a roda da economia girar. Aí está um pacote de sugestões ao atual Governo, que tem, é verdade, muitos outros temas relevantes para cuidar, mas que poderia se diferenciar de todos, realmente todos, os que o antecederam, que não percebiam que estavam sentados sobre mina de ouro (ou de futebol), apesar de a procurarem no horizonte.
Não se pretende, aqui, delimitar a importância do Senador da República e Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco, à sua contribuição, como congressista, ao futebol - que é a mais globalizada das atividades humanas. Isto não significa, obviamente, que o futebol não seja importante. Ao contrário: sua relevância, num país marcado pelas desigualdades, como o Brasil, é, sem exagero, monstruosa, não apenas no plano esportivo, como também nos planos econômico, social e educacional. Pena que, historicamente, o Estado - e os sucessivos governos - não percebem esse fato; governos, aliás, posicionados à direita ou à esquerda, nesse quesito, vêm convergindo na miopia e no astigmatismo. A primeira afirmação deste texto significa, na verdade, que a contribuição do Presidente reeleito extrapola a transformação que se vem operando a partir do advento da lei 14.193/2021 - alcunhada nesta coluna, desde sempre, Lei Rodrigo Pacheco (ou Lei da SAF). Sobre isso se tratará adiante. Foi durante o período pandêmico que ele se tornou, e logo em seu primeiro mandato, Presidente do Senado Federal e, consequentemente, do Congresso Nacional. Uma façanha prodigiosa.   Desde então, enfrentou fogo amigo e inimigo, direto e cruzado, proveniente de todas as correntes. Uma delas, por exemplo, que teria implodido o país com a insistência em prosseguir com processos de impedimento do então Presidente da República. Outra, alinhada com a própria presidência, que imaginava que o apoio à sua candidatura significaria subserviência a interesses pessoais, e, por isso, ativou campanhas que miravam sua desqualificação pessoal e política. Na função para qual foi designado e, posteriormente, redesignado, soube e sabe honrar as atribuições constitucionais que lhe são conferidas: fidelidade ao país e ao seu povo. Sobre isso cientistas e analistas políticos saberão registrar, com a devida autoridade, seu papel na história - que, parece-me, ainda está longe de atingir o ápice. Retomo o tema do futebol. Foi no ano de 2019 que o Senador Rodrigo Pacheco, em meio a um intenso debate público e midiático envolvendo projetos relacionados à SAF e ao clube-empresa (expressão ou conceito, aliás, que caminha para o desaparecimento), apresentou um Projeto de Lei alternativo que, rapidamente, conquistou a simpatia e o engajamento de importantes formadores de opinião.   O entusiasmo com a proposta foi atropelado pela pandemia. Durante mais de um ano a pauta congressual se limitou ao enfrentamento da crise; ocasião em que o Senador atuou em defesa das gentes e de soluções científicas a um problema desumanamente politizado. Até que, em 2021, o Congresso Nacional retomou outras pautas essenciais. Nesse momento, ele já estava empossado Presidente do Senado Federal. Logo em seus primeiros discursos avisou ao país que promoveria o debate acerca do mercado do futebol e seu sistema de governança. Indicou, acertadamente, o jovem Senador da República Carlos Portinho, advogado e notório conhecedor do assunto, para relatar seu Projeto de Lei (que promoveu um qualificado e enérgico processo de audiências e negociação política, e contribuiu para o andamento da pauta). No primeiro semestre de seu primeiro ano na presidência, Rodrigo Pacheco pautou o Projeto que foi aprovado unanimemente no Senado Federal e, posteriormente, por 427 votos favoráveis contra apenas 9 rejeições, também na Câmara dos Deputados. Após sanção presidencial com vetos que comprometiam a sistemática da Lei, ainda comandou o Congresso, em sessão conjunta, para derrubada parcial desses vetos, e, assim, entregou ao país a Lei que permitiu o início da reformulação do futebol brasileiro. Sem ela, Cruzeiro não teria atraído Ronaldo Nazário e dificilmente teria regressado à divisão de elite; Galo não teria iniciado seu processo de reorganização societária e atração de novos recursos (aparentemente em andamento, conforme notícias públicas); Bahia não faria parte do Grupo City; Botafogo não teria recebido o investidor internacional John Textor; Vasco continuaria a navegar sem os recursos aportados por investidor e que, ao que se indica, viabilizaram o retorno à divisão de elite; Coritiba não processaria, com segurança, sua recuperação judicial;  Athletico Paranaense, clube mais organizado e mais bem administrado do país, não sondaria (também conforme notícias de imprensa) aproximação do mercado para adoção de movimentos audaciosos, que poderiam, no limite, envolver, no futuro, abertura de capital; além de todos os demais clubes que, por conta da lei, já passaram (e não teriam passado) para o modelo de SAF ou que manejam (e não manejariam) seus processos internos de compreensão para, possivelmente, socorrem-se, também, da SAF e dos instrumentos previstos na lei. Talvez nenhuma lei no âmbito esportivo tenha produzido, em tão pouco tempo, tamanha transformação. E o movimento ainda está longe de atingir o ponto de maturidade. Muita coisa ainda virá, com impactos diretos e indiretos na sociedade. A Lei da SAF não oferece - e jamais se prometeu isso - solução para todas as mazelas de um sistema corroído pelo tempo (e pelas ações humanas, também). Mas ela foi (e é) condição necessária para o redirecionamento e resgate de uma atividade aprisionada em um modelo associativo que, com no máximo duas exceções, não tem mais condição de entregar as demandas do torcedor e da sociedade. O Senador Rodrigo Pacheco já gravou seu nome, por suas contribuições, na história do futebol e do País. Ainda há, porém, muito a fazer, e sua reeleição, espera-se, viabilizará a continuidade de construção do maior ambiente futebolístico do planeta.
Parece realmente que a circulação desenfreada de falsas notícias ou de opiniões pouco balizadas em mídias e redes sociais, prática esta que foi duramente criticada por Umberto Eco, passou a influenciar a conduta de pessoas que, ao contrário, deveriam prezar pela sobriedade e pelo respeito à informação. Uma pena, pois as relações sociais e políticas se inserem, assim, numa arena sem regras, em que, além de exigir um monumental exercício de depuração da verdade, também se notabiliza por condutas individualistas e irresponsáveis.  Nesse sentido, quem acompanha o ambiente do futebol, em especial relacionado à Lei da SAF (alcunhada, desde sempre neste espaço, Lei Rodrigo Pacheco), deparou-se com uma quase comoção decorrente de uma (mal interpretada) fala do investidor John Textor, da SAF Botafogo, amplamente divulgada pela imprensa e em redes sociais. Ao primeiro contato, até poderia parecer que se iniciava, a partir do investidor, um movimento de ataque à estrutura legislativa viabilizadora do seu próprio investimento. Isto não ocorreu, porém. Ouso afirmar que o pano de fundo da provocação consiste em um apelo por segurança jurídica, corolário do Estado de Direito. Aliás, a estrutura do Estado contemporâneo, consubstanciada na tripartição de poderes - legislativo, judiciário e executivo - decorre, justamente, de uma reação à insegurança jurídica promovida por monarcas absolutistas, que se confundiam com o Estado e, assim, ditavam normas em casos concretos de acordo com suas vontades.   Não apenas investidores, locais ou internacionais, mas qualquer cidadão necessita de segurança, em sentido amplo, para projetar suas ações e calcular as consequências delas. Toda nova norma, de qualquer hierarquia, costuma inaugurar, após sua inserção no sistema, certa maleabilidade, oriunda do natural processo de estabilização, que advirá da boa doutrina e da correta jurisprudência. Não será diferente com a Lei da SAF. Esta lei, aliás, no âmbito do futebol, já demonstra, apesar de sua curta existência, seu caráter transformacional e, após aproximadamente 18 meses, já fez muito mais para abertura sistêmica e para viabilizar meios de financiamento da atividade futebolística do que todas as leis que a antecederam, incluindo-se as Leis Zico, Pelé e do Profut.   Com efeito, mais de 30 sociedades anônimas do futebol foram anunciadas por clubes como Cruzeiro, Botafogo, Bahia, Vasco, Figueirense, dentre muitos outros, e outras estão a caminho. Mas disso pouco se fala pois, na verdade, a torcida contrária (ou a sabotagem) advém, em especial, das forças históricas (inclusive de grupos de interesses que se aproveitam da fragilidade ou da politização de clubes) que converteram o futebol brasileiro - que deveria ser uma fonte inesgotável de geração de riqueza para sociedade como um todo - em atividade que se desenvolve quase à margem da própria sociedade, do mercado e do Estado. É isso, pois, que está em jogo: o atraso secular de um modelo exportador de commodity, de um lado; ou a perspectiva de criação de um dos mais poderosos ambientes mundiais do futebol, de outro. Para que esta criação ocorra, aliás, o Poder Judiciário terá papel fundamental. É nele que desaguam as teses, mais ou menos bem construídas, que pretendem, aí sim, "quebrar" a Lei da SAF e preservar direitos, não adquiridos, de castas que vivem à custa da falta de transparência e das relações muito peculiares estabelecidas no ambiente de associações sem fins lucrativos. Nesse sentido, não se pode ignorar recente acórdão do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos de Agravo de Instrumento nº 2220944-39.2022.8.26.0000, em que figura como agravante o Botafogo de Futebol de Regatas ("Clube"). Em poucas palavras, resistia-se à tentativa de determinado credor que postulava a obrigatoriedade de direcionamento ao Regime Centralizado de Execução, instituído pelo Clube, de valores oriundos de contrato de patrocínio transferido para SAF; de modo que a SAF, e não mais o clube, se tornara parte da relação contratual. Em "voto-aula" sobre a Lei da SAF, o Des. Relator Azuma Nishi pronunciou que "(...) a SAF é pessoa jurídica que não se confunde com o clube; destarte, em relação ao cumprimento de sentença, a SAF deve ser considerada terceiro, não podendo ter seu patrimônio constrangido, sob pena de ofensa à regra segundo a qual o devedor responde com seus bens (art. 789 do CPC)". E, em suas conclusões, reforçou que o direcionamento de receita da SAF, para outra entidade - o clube - "é descabido e vai contra o texto legal, à medida que constitui constrição ao patrimônio da SAF Botafogo, cuja personalidade jurídica, como visto alhures, não se confunde com a do clube devedor". Não se pretende, aqui, avaliar o processo judicial em si; apenas jogar luz sobre a preciosa decisão do Tribunal Paulista, mais uma dentre outras que se acumulam e que contribuem para formação do benfazejo mercado do futebol, sobretudo pelo fato de expressar com a necessária clareza o que é a Lei da SAF, para que se presta e como ela funciona.   Mais do que isso, aliás: também se pretende jogar mais luz sobre a aparente falta de interesse da coletividade do futebol por fato tão relevante (que não lhe deu a importância e o mesmo espaço oferecidos às diversas interpretações de terceiros a respeito da fala de determinado investidor), o que, ao final, comprova as proposições inicias deste texto: menos do que informar, as reações desproporcionais, relacionadas àquele episódio, servem, na verdade, para tentar trazer o caos ao novo ambiente em formação.
Muito, realmente muito, se escreveu sobre Pelé após seu passamento. Aliás, sintoma de sua grandeza, em todos os veículos, quaisquer que fossem os setores, encontrou-se espaço para a exteriorização de opiniões sobre o Maior da história. No âmbito de textos que foram do excelente ao sofrível (passando pelo lirismo e pelo oportunismo), tudo se falou; requentar, pois, situações ou pretender trazer algo que não se expôs talvez soasse, agora, inaceitavelmente pretensioso. De modo que, sobre Pelé, não se dirá aqui mais do que o mínimo: sua existência, como jogador, abala a convicção de ateus (pois seus feitos, sim, não se justificam sob qualquer perspectiva humana) e, ao mesmo tempo e pelo mesmo motivo, reforça a crença em Deus, qualquer que seja o conceito pessoal da divindade. Este texto, por outro lado, pretende, apenas, formular algumas provocações decorrentes, em especial, do frenesi que se assistiu (ou se leu) nos dias seguintes ao fatídico evento, relacionando-as com a histórica postura entreguista ou de falta de sensibilidade em relação as coisas e as riquezas que se produzem no país (incluindo o futebol).   Pelé, como muitos outros jogadores que o antecederam ou sucederam - tirante o fato de ter sido o Escolhido -, é fruto da sorte; sua ascensão não decorreu de um programa público ou privado, voltado à formação de atletas. Poderia, com alguma probabilidade, ter desviado sua trajetória e ido para lugar em que ninguém jamais o conheceria (como ocorre aos montes).   Depois dele, o Brasil teve, no plano futebolístico, o privilégio de oferecer ao mundo referências como, para citar apenas os mais recentes que se tornaram estrelas globais, Romário, Kaká, Ronaldo, Ronaldinho, Roberto Carlos, Adriano e Neymar. Além de Raí, o maior jogador da história do PSG (conforme eleição de seus próprios torcedores, que ainda hoje o idolatram). Apesar da profícua criação de jogadores, que se inserem na mais globalizada das atividades - mérito, também (mas não apenas), da atuação de Pelé a partir do final dos anos 1950 -, insiste-se em ignorar a relevância social e econômica da atividade, num país em que a parcela menos favorecida da população aposta justamente nela (e na música que se cria nas comunidades, como o funk) para sair do nível inaceitável de pobreza. Veja-se, ademais, o desperdício (ou atentado) que se pratica contra o desenvolvimento do país: em Chicago, por exemplo, a obra de Frank Lloyd Right, um fantástico arquiteto, que seria banco de Oscar Niemayer, foi transformada em atração pública, geradora anualmente de centenas de milhares em negócios e em arrecadação. Por aqui, o genial brasileiro, ganhador do Prêmio Pritzker, autor de monumental obra espalhada por diversas cidades, será, a depender da (ausência) de políticas preservacionistas da memória e do legado de pessoas como ele, corroída pelo tempo. Com Pelé, a situação é pior. Antes do passamento, pouco se falava dele. Seu nome, porém, transcende a noção de fronteira ou de nação. Diz-se que foi o ser humano mais conhecido de seu tempo. Papas, artistas e presidentes de países não rivalizavam com ele.   Até mesmo os colonialistas europeus, responsáveis pela demarcação territorial global - e pelas atrocidades cometidas contra as gentes dominadas e escravizadas -, sentiam-se, diante de suas realizações, um pouco brasileiro (ou ao menos colocavam de lado a convicção interna de superioridade racial). Não haveria maior embaixador da brasilidade; maior esperança de resgate de um país que, a partir do final dos anos 1950, protagonizou um período quase ou tão grandioso quanto o renascentismo italiano, com sua música, com seu cinema, com sua literatura, com seu teatro, com sua política desenvolvimentista e, claro, com seu futebol. Pelé, neste sentido, que foi (e ainda é) uma marca, explorada erraticamente sob perspectiva apenas privada, poderia ter, paralelamente, cumprido um papel maior (e não apenas pessoal), inserido em política público-privada, voltada à formação e ao desenvolvimento social e econômico da Nação. Assim como, em plano maior, o próprio futebol deveria receber os adequados estímulos, sobretudo legislativo, para se converter num soft-power de expressão (e influência) global. O futebol, de modo geral, atividade que deve ser gerida e organizada privativamente, também deve, por outro lado, ser estimulado pelo Estado, naqueles campos que lhe competem (como, conforme indicado acima, legislativo); assim como Pelé não poderia ter sido ignorado pelo mesmo Estado que é absolutamente insensível à potencialidade de milhares de crianças espalhadas pelo seu território. Daí a inadequação, ao que parece, a respeito do direcionamento dos principais debates que emergiram. É óbvio que ele merecia - e sempre merecerá - reverência dos súditos. Teria sido no mínimo simpático, ou mesmo desejável, que gerações posteriores à dele manifestassem respeito, se não à pessoa (a Edson, portanto), ao menos ao grande símbolo do esporte que praticam, por suas redes e mídias sociais ou mediante o comparecimento físico ao seu funeral. Mas parece haver, aí, questões mais relevantes (até porque Pelé também não esteve no funeral de Garrincha): não será pela divisão e pela postura individualista, em todos os planos, inclusive dos grandes astros, que se construirá um projeto de futebol brasileiro (e de Brasil). O futebol deveria ser compreendido como uma espécie de parceria público-privada, a que se chamará de PPPF, no interesse da coletividade e como elemento essencial para reconstrução do sentimento (ou da convicção) de pertencimento a um projeto de Nação. Fica aí, pois, a sugestão para o novo Governo - que tem, é sempre bom lembrar, na pasta da Economia, exímios especialistas na matéria. 
quarta-feira, 21 de dezembro de 2022

As intermitências das Copas

Por falar em argentino genial, Armando Bó na série "O Jogo da Corrupção" (Prime Vídeo) coloca na boca do narrador uma frase que cala fundo aos amantes do futebol: "Dizem que a vida é o que acontece entre uma copa e outra." A Copa do Mundo é um espetáculo de esplendor, uma apoteose mágica de brilho, luz e cores únicas, que mobiliza a humanidade como nenhum outro evento. É um sonho. A "vida real", no futebol, é o que acontece entre uma copa e a seguinte. Acaba o evento mundial, retoma-se o futebol dos clubes, o chamado futebol "quarta e domingo" (como dizem os boleiros), com as competições nacionais e continentais das quais participam os times pelos quais os "torcedores cotidianos" exercem a sua paixão (inexplicável para quem não é torcedor). A Argentina, vencedora da Copa com todos os méritos, celebra na semana corrente seus heróis nacionais pelas ruas do país. Porém, quando a bola voltar a rolar nos campeonatos locais, dos 26 Campeões do Mundo, somente o goleiro reserva Franco Armani atuará por um time argentino. Messi e todos os demais campeões mundiais jogam no exterior. A nós, brasileiros, restará acompanhar em nossos clubes apenas 3, dos 26 jogadores que estiveram no Catar. Dura vida real. O que nos diferencia, nesse momento, são os elementos concretos, construídos ao longo dos últimos anos, que nos trazem esperança e motivos para acreditar que estamos iniciando um novo ciclo entre copas com ótimas perspectivas. No Brasil, já há 30 times de futebol que percorreram todo o caminho, desde as aprovações internas até o registro na Junta Comercial, para constituição da Sociedade Anônima do Futebol, introduzida pela lei 14.193/2021. Um bom número deles disputarão as séries A e B do Campeonato Brasileiro de 2023. Outros tantos, estudam o assunto com seriedade, realizando debates em seus conselhos deliberativos e assembleias de associados. Podemos chegar, nos próximos meses ou anos, ao número expressivo de mais de uma centena de SAFs no futebol brasileiro. Isso significa a entrada de novos recursos, novos conceitos de governança e gestão, ou seja, a expectativa de um círculo virtuoso, com nossos times mais qualificados, aumentando sua capacidade de revelar e reter talentos por mais tempo, entregando ao torcedor-consumidor um produto de melhor qualidade. Os clubes são as células que compõem o organismo do futebol nacional. A medicina mais moderna nos ensina que não há corpo forte sem células fortes. O futebol brasileiro está realizando um trabalho efetivo para melhorar sua saúde geral. No contexto atual, onde ainda prevalece o modelo associativo, logicamente que há associações com melhores gestões e gestores, além de contarem com maior potencial para o recebimento de recursos. Essas associações, com absoluta justiça e merecimento, estão praticamente monopolizando a conquista dos principais campeonatos.   Porém, mesmo esses clubes deverão começar, em breve, a notar a aproximação técnica de seus rivais, constituídos como SAF, como um fator a estimular, ainda que no cenário extremamente vencedor, a discussão séria e responsável sobre o tema. E uma associação bem administrada tem muito mais argumentos para atrair e negociar melhor a aproximação de terceiros investidores. Com as SAFs, o futebol brasileiro poderá retomar sua vocação de ter, na competição nacional, mais de uma dezena de favoritos, revertendo tendência recente, e ruim para o produto, de apenas 2 ou 3 times iniciarem o torneio com chances reais de título. Ainda há que se saudar, a bem da esperança em dias melhores para o futebol brasileiro, que mesmo mais de 8 anos após o término da Copa de 2014, ainda haja clubes trabalhando na construção de novas arenas, entendendo que estádios novos e modernos também são uma fonte importante de recursos, além de inflar a autoestima de seus torcedores, o que sempre traz retorno positivo. No futebol brasileiro da "vida real", porém nem tudo são flores e esperança. Existem clubes cujos dirigentes, mesmo afogados até o pescoço em dívidas e insucessos em campo, batem os braços com toda a força para se manterem aferrados ao velho e obsoleto modelo da velha política das associações. Esses celebram as vitórias políticas e, com cada vez menor frequência, títulos e troféus. Seus cartolas administram para uns poucos associados, que votam para mantê-los no poder, e relegam ao quinto plano os milhões de torcedores que sustentam a instituição. Nesses casos, somente a criação de mecanismos de inserção dos sócios torcedores nas decisões fundamentais do clube, com o voto nas Assembleais Gerais, poderá ampliar democraticamente os colégios eleitorais - inclusive para aprovação de projetos de constituição de SAF -, salvando os clubes do domínio total dos "cartloligarcas", resgatando esses times históricos e recolocando-os no caminho da modernidade. Aguardemos. Em geral, contudo, o ano da Copa de 2022 se encerra com boas perspectivas para o Futebol Pentacampeão Mundial. Graças à Copa do Mundo realizada excepcionalmente no final do ano, o novo ciclo da vida futebolística coincidirá com a chegada do Ano Novo. E o ano de 2023 se iniciará, para alimentar nossas esperanças, com o futebol brasileiro com bases sólidas construídas nos últimos 2 anos, para uma mudança efetiva, para melhor, no fortalecimento dos clubes, para que esses também possam servir ao trabalho de formação de uma Seleção Brasileira que nos faça sonhar lindamente em 2026.
Certa noite, no alvorecer de 2009, recebi uma ligação por volta de 23h30 de uma quarta-feira. Era o jornalista Victor Birner, convidando-me para encontrá-lo num bar. Ele sabia que minha casa passara a ser dominada por Olivia, recém-nascida. Daí a minha resposta, quase indignada, invocando a preciosidade do sono. Uma pena, ele respondeu, pois acabara de deixar a TV Cultura, após participação no programa Cartão Verde, e se encaminhava ao..., acompanhado de Sócrates, Juca Kfouri, Chico Sá e Vladir Lemos. Não hesitei e perguntei em quanto tempo mesmo nos encontraríamos. Minutos depois, estava ao lado de um dos ídolos da minha vida - atrás, evidentemente, de seu irmão, Raí, o maior jogador da história do São Paulo e do PSG (de acordo, aliás, com a própria torcida francesa). Lá pelas tantas, e após uma incontável sequência de copos, tomei coragem e perguntei a Sócrates se Sarriá ainda lhe representava algo. Ele levava um gole à boca, mas o interrompeu. Sustentou o olhar para o nada durante alguns segundos (para mim pareceram minutos), virou-se em minha direção, com expressão fechada para os padrões da noite e desferiu um epíteto que jamais esquecerei: muitas noites de sua vida não dormia por conta de Sarriá. Apesar da pouca idade à época da tragédia - nove anos -, ainda me lembro ou sonho com Sarriá. Seria o evento histórico - ou poético - que, se eu tivesse o poder divino de modificar, escolheria, antes mesmo da mudança do destino de algum evento político ou batalha militar. Sócrates, o ativista, o craque, o democrata, o gênio, era, também, um indisciplinado. Todo indisciplinado tem algo de egoísta, pois a indisciplina disturba relações ou organizações. Diz-se, no entanto, que, para estar pronto para a Copa de 1982, teria largado os hábitos que atrapalhavam o desempenho esportivo e focado em sua preparação. A superação do suposto egoísmo (talvez a expressão seja inapropriada), contribuiu para o resultado que todos conhecem: uma das mais belas (ou a mais bela) combinações de jogadores da história, não obstante o fracasso, com 4 vitórias e uma derrota fatal, diante da pragmática e prosaica seleção italiana. Não se trata, aqui, de comparar Sócrates a Neymar, pois são pessoas, momentos e visões de mundo diferentes. Mais do que isso: da década de 1980 para a atual, o jogador de alto rendimento, em especial de nível mundial, deixou de ser apenas um jogador e se tornou um produto ou uma empresa - goste-se ou não desta constatação. Mas se pretende, por outro lado, reconhecer o esforço, ao menos para o espectador externo, empreendido, num momento crítico da história, pelo melhor jogador do país. Após uma sucessão de eventos negativos pessoais ou esportivos, Neymar parecia realmente focado na copa e, mais importante - em minha opinião -, com uma postura menos individualista e mais coletiva, de modo a superar seus próprios obstáculos. Logo no início, porém, mais um acidente profissional quase o afastou do objetivo. Não deixa de ser simbólico, nesse drama, o peso que se punha sobre os seus ombros, o fato de, mesmo lesionado, ter permanecido em campo até a exaustão. Ao retornar às suas funções, após duas ausências consecutivas, ficou evidente a sua importância, não apenas em fácil vitória contra a Coréia do Sul, mas, em especial, ao assumir a sua responsabilidade contra a atual vice-campeã mundial Croácia e encaminhar, com uma jogada brilhante, a classificação para semifinal - não fosse um erro tático incompreensível e imperdoável de um time que, embora frágil defensivamente, não havia, até então, falhado daquele jeito. Se Sócrates e/ou Neymar mudaram seus hábitos por amor ao povo, à seleção ou a si próprio, ou aos seus próprios (e nem por isso ilegítimos) interesses empresariais (que poderia ser o caso de Neymar), é questão que não se pretende, ao menos por ora, enfrentar - e que não modifica as conclusões do texto. Sócrates simbolizou a esperança democrática; Neymar a divisão de um país que se tornou intolerante, mas que precisa, desesperadamente, reunificar-se. Lembro-me de cena do filme "O Ano que meus pais saíram de férias", do diretor Cao Hamburger, em que perseguidos políticos da ditadura torciam, nos porões, pela seleção brasileira de 1970, apesar da indevida apropriação daquele símbolo por um regime inaceitável - o mesmo que os torturava e, eventualmente, matava. De algum modo, aquele sentimento brasilianista justificava a própria luta que se empreendia por um país livre e democrático; e que deveria, agora, sobrepor-se à afirmação (ou ao interesse) das diferenças. O futebol, nesse sentido, é muito mais do que apenas um esporte; ou a mais importante das coisas desimportantes. É uma via de ascensão social (uma das poucas, aliás, num país marcado pela desigualdade) e de desenvolvimento econômico, desprezada, historicamente, pelo Estado e pelas elites culturais e patrimonialistas, porque querem ora manipulá-lo, ora explorá-lo. É essencial, pois, para o Brasil e seu povo. Daí não ter razão Galvão Bueno, justamente ele que vive o futebol (e se tornou o que é por conta do futebol), ao afirmar que a vida segue, que o futebol não resolve o problema de país nenhum, de guerra nenhuma, de mundo nenhum. Qualquer pessoa que se distancia alguns poucos quilômetros das bolhas representadas pelos bairros chiques das capitais brasileiras (ou que assistiu a série Funkbol, produzida pela Kondzilla, disponibilizada na plataforma Prime Video), saberá que o futebol pode, sim, ser a solução para os problemas das gentes que enxergam na seleção, a cada 4 anos, um sonho - e não uma manifestação comercial ou política.
Está virando moda a publicação de cartas abertas ao Presidente eleito, provenientes das mais distintas e qualificadas origens: umas com ideias técnicas e estruturadas, outras com desejos pessoais. Assim, de Armínio Fraga, Edmar Bacha e Pedro Malan, expoentes da inteligência econômica do país, ao escritor e jornalista Marcelo Rubens Paiva, tenta-se comunicar, ou melhor, comunica-se, por aquelas vias, com o futuro Poder Central. O momento é adequado, pois, além do processo de transição em curso, arquitetam-se, a partir e ao redor de Lula, projetos e políticas que marcarão (ou não) o seu terceiro (e mais importante) mandato. Paralelamente, também é o momento de revisar desacertos que acompanham, de algum modo, a história da Nova República, em especial relacionados à falta de percepção da relevância e de apoio às expressões essencialmente populares, que deveriam se tornar, a partir de políticas de Estado, atividades essenciais - e produtos, a um só tempo, de exportação e de afirmação do País (soft power). Por esses motivos, aí vão mais alguns pitacos, para coleção dos milhares que o futuro Presidente deve receber, diariamente. Refiro-me ao futebol e à música das comunidades e suas variantes - temas, parece-me, que o empolgam. Sobre o primeiro, não se demanda muita atenção para identificar o tamanho do investimento que um país outrora desconhecido, como o Catar, empreende, no futebol, para se tornar um destino turístico e cultural - e, assim, criar fontes alternativas à exploração do petróleo. Os Estados Unidos também tentam, desde o projeto NY Cosmos (que reuniu Pelé e Beckenbauer nos anos 1970), e mais recentemente com a iniciativa de tornar as ligas locais interessantes a jovens promessas e jogadores consagrados em fim de carreira (como Kaká e David Beckham), participar da festa para, então, impor meios de comandá-la. Há não muito tempo, a China, mais longeva das potências mundiais, tratou de estimular o desenvolvimento da atividade, integrando ao ambiente local jogadores estrangeiros, para, com eles, absorver conhecimento e difundi-lo internamente, em processo que visa (ou visava), no longo prazo, a dominação. O Brasil, enquanto isso, único penta campeão mundial, único país relevante que ostenta mais de 20 times com mais de 1 milhão de torcedores, país cujos jogadores representam aproximadamente 11% das negociações mundiais e país de Pelé (dentre vários outros atributos), jamais concebeu uma política voltada à formação de uma atividade de base, viabilizadora do acesso de milhares (ou milhões) de crianças à escola, ao mercado de trabalho e ao protagonismo social e econômico. Basta assistir à série Funkbol, produzida pela Kondzilla e disponibilizada na plataforma Prime Video, para entender que o esporte é uma das duas únicas formas de esperança de crianças que carregam, sobre seus ainda frágeis ombros, todo o peso das desigualdades que assolam seus antepassados. O torcedor que acompanha a Copa do Mundo, esbanjando eventualmente centenas ou milhares de reais em festas caríssimas, não costuma ter ideia, ou sensibilidade, do duro percurso empreendido por quase todos os jogadores que representam o país, como Antony que, há três anos, morava, como se ouve na mencionada série, em uma favela e, segundo ele, sonhava em se profissionalizar para oferecer casa para mãe, tia e irmãos. A segunda esperança, também retratada na série, consiste na música das periferias, da população que não tem conexão, ao menos na origem, com a bossa nova, a MPB ou outros movimentos ou ritmos que nasceram (ou nascem) em níveis sociais intelectualizados (e não há, aqui, crítica; apenas uma constatação). Assim, o possível impacto econômico e social da estimulação do rap, do trap e, em especial, do funk, como indústrias transformacionais, passa longe de ser percebido pelo establishment. Esses segmentos ainda se desdobram em diversos produtos, por via do audiovisual, como se demonstra, por exemplo, o sucesso de mais uma iniciativa de Kondzilla, consistente na série Sintonia, disponibilizada na Netflix, que se tornou a produção brasileira com maior público da plataforma. A música, ao contrário do futebol, talvez não tenha, com algumas exceções, vocação à internacionalização; mas se insere num ambiente e num mercado relevante, formado por dezenas de milhões de brasileiros. Pois bem. O sucesso de alguns poucos jogadores ou funkeiros advém, em regra, deles próprios, de seus familiares ou de pessoas ao redor que os projetam e, eventualmente, bancam. Não há política pública ou ação privada voltada a essa gente que, depois, quando atinge o sucesso, é cobrada para atuar socialmente. Transfere-se (ou se imputa), pois, um dever do Estado àquelas pessoas que, desde cedo, foram desafiadas a resolver o problema da desigualdade, em seu entorno. Suas ações deveriam, quando o caso, integrar um sistema, não como solução, mas como complemento de projeto maior, instituído para promover a transformação geral, a partir de políticas públicas, e não de ações isoladas e ou voluntárias.   Daí a oportunidade de criação, no país, no plano do futebol, de espécie de "futewood" e, da música, de outra espécie de "funkwood". Se os norte-americanos se infiltraram em todos os países e em todas as televisões por intermédio de Hollywood, e a Coréia do Sul pretende se afirmar, culturalmente, pelo K-pop, o governo brasileiro pode - ou deve - inserir no seu projeto de Nação a música que nasce na periferia e ferve em todo território, bem como ressignificar o futebol, instrumento de inserção social e desenvolvimento econômico, no plano interno, e de afirmação cultural do país, no externo. Aí estão, pois, os meus pitacos ao presidente Lula.
quarta-feira, 30 de novembro de 2022

O Brasil e a seleção brasileira

Por onde se olha, ou se lê, encontram-se afirmações ou apelos de pacificação do país. Apenas da Folha, para não citar outros veículos, extraem-se, nas últimas edições, as posições do Min. Lewandowski1 e do ex-editor de Opinião e escritor Hélio Schwartsman2. Não será fácil. A fissura é evidente. A vitória de Lula, sem dúvida incontestável, também revelou que há um contingente quase igual, ao menos em votos, que pretendia uma solução diferente. Em ambos os campos, dos vitoriosos e dos perdedores, somam-se eleitores que, menos adeptos dos candidatos, viam nos opositores ameaças maiores do que aquelas representadas pelos seus escolhidos. Ou seja: nem todo voto concedido ao atual Presidente derrotado representava uma convicção em suas políticas erráticas e desastrosas, nos planos humanos e ambientais (dentre outros); da mesma forma que, para vencer, o desafiante contou com o apoio de quem não necessariamente simpatizava com ele ou o seu partido, mas que nele (e não no partido) via o único caminho para o afastamento de um mal irreversível. Lula sabe disso. Aliás, com exceção de radicais que ameaçam a paz social, todos sabemos disso. E não há problema na constatação da realidade. Importa o tratamento que se dará à situação. Ignorá-la seria fatal: afinal, a compreensão de sua origem é o melhor remédio para evitar-se que, num futuro próximo ou longínquo (e 4 anos podem estar logo aí ou bem longe, conforme ponto de vista), não se repitam os erros que levaram o país a se tornar um quase pária internacional. O enfrentamento do tema da divisão, talvez a maior que já se tenha construído desde o fim do período ditatorial e recobro do regime democrático - em tal nível de o ameaçar - demanda o reconhecimento de que há, também, um descontentamento generalizado, de vencedores e de perdedores. Novamente, Lula sabe disso e, ao que parece, empreende esforço sobrenatural para reduzir as barreiras entre as diferenças. Além da indicação de Geraldo Alckmin para vice-presidência e liderança da transição - nome que, lembre-se, em 2018, era o porto-seguro do mercado e das instituições conservadoras -, o presidente eleito também se esforça para resgatar determinados símbolos da República, como o hino e a bandeira3 - e, consequentemente, a afinidade com a seleção de futebol. Isso não significa que a seleção terá um papel propagandístico no processo. Nem mesmo num regime autocrático caberia, nos tempos atuais, algo como "220 milhões em ação ...". Seria ingenuidade apostar no clichê para encobrir os desafios que se seguirão.  Não é disso de que se trata, pois. Trata-se, porém, de reconhecer que a seleção não deixa de ser uma projeção da sociedade, com todas as suas tensões, frustrações, ilusões e paixões. Sobretudo num período ainda afetado pelos (intoleráveis) atos de intolerância estimulados pelo poder central, como se viu, recentemente, contra, para citar apenas dois exemplos, o artista Gilberto Gil e o ex-presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia.  Mais do que o hexacampeonato - que seria ou será importante para o país, pois o futebol é a maior atividade planetária e, com o surgimento do novo mercado do futebol, a partir da Lei da SAF, se afirmará como incomparável soft power - a seleção pode contribuir para uma tentativa de encontro de convergências, apesar das divergências. E aí está a questão: até onde convergir não implica trair ou abrir mão de princípios inegociáveis? E tão importante quanto: será que os atletas representantes do país, ganhem ou não o desejado título, em especial seus líderes, saberão compreender o momento histórico que se vive e contribuir para reconstrução - e não para divisão? Parece-me, por fim, sem que se tenha, neste texto, chegado a uma conclusão - pois não era a intenção -, que a radicalização, em um sentido ou outro, de algum modo contribui para manter viva a chama de posturas que a maioria da população pretende que fique no passado. Daí, talvez, Hélio Schwartsmann tenha razão: "(eu) diria até que, depois de quatro anos de trevas sob Bolsonaro, o país precisava de algo assim, um espaço simbólico no qual indivíduos com as mais diferentes orientações políticas e ideológicas possam se reunir civilizadamente para traçar diagnósticos e debater políticas públicas". E, talvez, sua razão se projete também ao campo de jogo e condutas pessoais, com uma seleção que, sem desmerecer (ao contrário) as qualidades futebolísticas geniais e a importância técnica e tática de Neymar, fique marcada pela coletividade e pela preocupação com o país e com o seu povo. Depende apenas de seus membros. Independentemente de posições políticas pessoais.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Cf. o art. 13 da Constituição da República Federativa do Brasil: "Art. 13. A língua portuguesa é o idioma oficial da República Federativa do Brasil. § 1º São símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais".
quarta-feira, 23 de novembro de 2022

Reflexões a respeito de Neymar

Em 4 de julho de 2018, por ocasião da Copa do Mundo da Rússia, escrevi um texto, cujo título é "Em defesa de Neymar e a omissão do Estado"1, em que pretendia jogar luz sobre o fato de que Neymar era (e é), sob vários ângulos, reflexo da falta de sensibilidade do Estado, de governos e da própria população com as coisas do Brasil. Explico-me.   Num país em que heróis são necessários para acompanhar a vida cotidiana e justificar a perspectiva futurista de melhores condições - que chegam para poucos -, nada ou pouquíssimo se faz, no plano de políticas públicas, para produzi-los; e, quando esses heróis surgem, geralmente por esforços próprios ou de pessoas próximas, sujeitam-se ao tensionamento maniqueísta da elite cultural e, não raro, à tentativa de apropriação por agentes públicos do momento. Foi assim durante o regime ditatorial e continuou da mesma forma, sob os distintos presidentes eleitos democraticamente - apreciassem ou não a democracia.    Se antes Neymar era apenas um menino que queria ser o melhor jogador do mundo (tal qual Pelé e muitos outros) - e acho que ainda será -, e hoje se transformou, além do fenômeno futebolístico que é, numa das maiores personalidades do planeta, integrada a um sistema irrefreável de interesses econômicos (conforme anotei naquele texto de 2018), nada decorre, porém, de um esforço coletivo voltado ao bem comum, e muito menos de ações de Estado ou de Governos. E aí está o tema a se enfrentar: mesmo assim, sem ter qualquer contribuição para o desenvolvimento ou o sucesso alheio, quase todo torcedor ou cidadão passa a esperar ou cobrar uma conduta compatível com aquela que supostamente teria se estivesse na posição da pessoa de referência, no caso, um jogador. Por outro lado, uma pessoa pública, ainda mais da dimensão de Neymar, sempre estará sujeita ao escrutínio e terá que lidar com a problemática das cobranças e das projeções de natureza psicanalítica, quaisquer que sejam elas. Ocorre que, em relação a ele (a Neymar, portanto), desde a sua origem, parece não ter havido boa-vontade para construção de uma relação afetiva capaz de dar-lhe uma conotação menos vilanizada - talvez em decorrência da ultra exposição e da associação a diversas marcas, ou pelo fato de não ter sustentado um discurso com preocupação social (o que não significa que não a tenha), e de algumas condutas ainda juvenis. Perdeu-se, até hoje, por isso, a chance de aproveitamento de um gênio - não apenas de seu tempo, mas, no plano futebolístico, de todos os tempos -, como um poderoso soft power brasileiro. Aliás, essa expressão está por todos os lados, a justificar investimentos bilionários da Coréia do Sul e a exportação, por exemplo, do seu K-Pop, como na capa do Caderno Ilustrada, da Folha, na edição de 20 de novembro, em que se lê o seguinte: "além de sediar a Copa do Mundo, Qatar consolida soft power na cultura e recheia Doha de museus e obras opulentas como os seus arranha-céus". A própria aquisição do PSG, como a contratação de Neymar - considerado, à época, o mais promissor e especial dos jogadores em atividade para empreender um plano de dominação ou de distribuição cultural -, pelos mesmos controladores finais que dominam a Copa do Mundo, tem menos a ver com a última linha do balanço (ou com os lucros diretos do investimento) do que com esse processo de afirmação planetária que, nos dias atuais, se alcança por vias não belicosas. Melhor dizendo: não tão atual assim, pois os Estados Unidos já os produzem, ao lado da própria indústria bélica, aos montes, por intermédio, dentre outros, de Hollywood e da música. Voltando àquele texto de 2018, que me perece ainda atualíssimo, indagava: "se ele não levanta bandeiras sociais - será que não? - ou se sua atuação, quando enfrenta ou apanha de adversários, incomoda, o problema é nosso, que projetamos nele aquilo que queríamos ser ou que gostaríamos que ele fosse, como herói". E, ainda: "deixemos que ele siga o seu caminho, e cobremos do Estado a formulação de uma política que possibilite o surgimento de um, vários ou cem mil grandes jogadores e cidadãos brasileiros, que possam compartilhar a responsabilidade que pesa, nessa Copa, sobre apenas um". Há um equívoco, pensando bem, naquela formulação: deixar que siga o seu caminho é o que se fez e se faz, com praticamente todos os meninos e meninas que não tiveram condições semelhantes às de uma minúscula parcela da sociedade, nascida em berços esplendidos. Corrijo-me, pois: o Estado deve contribuir, não com favores de natureza pessoal, mas com programas e políticas que estimulem a educação por meio do esporte e o esporte, por meio da educação, e, além disso, com outras políticas que viabilizem a valorização posterior desses símbolos nacionais, em proveito do bem geral. No que toca especificamente a Neymar, enquanto parte da população brasileira ainda insiste em maldizê-lo ou desprezar sua grandeza no plano do futebol, ele vem, por outro lado, contribuindo para afirmação de cidades ou estados com os quais não tem identidade. Olhando sob outros prismas, se profissionais como Oscar Niemeyer e mesmo Pelé fossem, por exemplo, norte-americanos, teriam sido cuidados e trabalhados para se transformarem em identidades ou marcas perenes, geradoras de perspectivas, empregos, tributos e riquezas, para eles próprios, suas famílias e sociedade em geral. Justamente o que deveria ser feito com Neymar - e que, pode-se apostar, está sendo programado, de maneira inédita no país, por seu entorno.   Sem qualquer ufanismo: o sucesso de Neymar poderá fazer muito bem ao Brasil e, quiçá (aí sim, com uma certa esperança idealizada), chame atenção das gentes para o enorme equívoco que se comete ao tratar certas atividades e pessoas com o mesmo desdém que, historicamente, justificou a entrega às nações colonizadoras das riquezas locais. ___________________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/meio-de-campo/283073/em-defesa-de-neymar-e-a-omissao-do-estado
Daniel Alves não precisa provar nada para ninguém, apesar de os Tribunais das Redes Sociais tentarem condená-lo ou diminuir sua importância. Trata-se do jogador mais vitorioso da história. Sim, ele não foi, em nenhum dos títulos que conquistou (ou quase em nenhum), o condutor principal. Mas não há nisso demérito, até porque, como lateral, não se esperava dele essa função. Sempre foi a peça certa de engrenagens que, invariavelmente, apoiavam-se em suas funções. Aliás, já escrevi sobre o jogador, em uma série de textos em que demonstrava o covarde processo de linchamento público a que foi submetido no São Paulo, com o propósito de fundamentar o fim de seu ciclo no clube. Foi por este time, não se deveria esquecer, que ele assumiu funções que não eram as dele - meio-campista, capitão e líder - e as exerceu com dignidade, apesar de todos os problemas de um clube corroído pela politicalha interna - o qual, outrora ganhador, não conquistava um título desde 2012. Daniel Alves participava de todos os jogos, não pedia para ser substituído apesar da idade mais avançada que os demais, colocava a cara à tapa e não fazia corpo mole, mesmo sendo desrespeitado pelo não pagamento da remuneração a que tinha direito. Não fossem os gols inacreditavelmente (imperdíveis) perdidos em Porto Alegre por Brenner e Luciano, com passes milimétricos de Daniel Alves, contra o Grêmio, por ocasião da semifinal da Copa do Brasil de 2020; e/ou também não fosse, mais relevante de tudo, o desastroso processo (ou falta dele) de transição imposto pela atual diretoria, eleita com um time virtualmente campeão brasileiro, mas que não soube (ou talvez não tenha pretendido) conduzir o elenco, formado por outro presidente, à redenção; a percepção sobre Daniel Alves se alinharia ao seu verdadeiro tamanho. Deixe-se, porém, o passado. Antes de decidir-me pela escrita deste texto, procurei ler e ouvir os principais comentaristas esportivos - inclusive porque navegarei por águas turbulentas. Deparei-me, inicialmente, com um cenário quase Rodriguiano: a indignação pela convocação de um vencedor ecoava em quase uníssono. Acho que apenas em Tostão e Victor Birner encontrei dissidência - devo ter deixado alguém de fora, de modo não intencional. E foi no segundo que emergiram, do ponto de vista técnico, as palavras que me pareceram mais sábias. Apontou Victor Birner que a seleção tem diversos atacantes, sem dúvida qualificados, que atuam pelas pontas. Em jogos catimbados e fechados, marcados pela obstrução dos espaços laterais, pelos quais esses jogadores transitam, Tite poderá precisar de alternativa que saiba, vindo de trás, abrir clarões e surpreender pelo meio, e assim romper barreiras criadas em momentos adversos. Daniel Alves oferece, talvez como ninguém, essa perspectiva, e se apresenta como uma solução técnica única, não encontrável em outros jogadores da posição. Foi além o jornalista: num evento rápido, nervoso e decidido, não raro, pelos detalhes, como a Copa do Mundo, Daniel Alves, mesmo não sendo o líder grupal (que não sei de onde se cobra isso dele), poderá cumprir outra função, tão importante quanto aquela: a de para-raios. Num país em que sua população, talvez influenciada pelas mentiras e manifestações raivosas que se impregnam por todos os níveis, poderá ser implacável, durante o percurso, com uma palavra mal-empregada, um gesto inadequado ou uma partida insatisfatória de algum dos protagonistas (todos erram, não se pode esquecer disso, jamais!), pode-se apostar: ali estará a pessoa que poderá contribuir para rearrumar o ambiente. Para concluir, Victor Birner ainda indicou que, desde que findou a temporada no México, Daniel Alves vem treinando, no Barcelona B, com um e apenas um foco: estar pronto, física e mentalmente, para um evento, como se sabe, curto e intenso. Ele definitivamente estará preparado para encarar o desafio. Não se pode esquecer, a propósito, da confiança depositada em jogadores em situações ainda menos evidentes, e que não apenas honraram suas histórias e a engrandeceram, como Branco, por ocasião da Copa de 1994. A todos esses argumentos, apresentados por um especialista, ouso acrescentar mais cinco, que podem ser imputados à conta da paixão: (i) a escolha de Daniel Alves, ademais, não significa a prática de alguma injustiça pois não há, em atividade, um preterido que esteja voando e fosse uma escolha óbvia ou necessária, com atuação no Brasil ou no exterior; (ii) o escolhido é experiente, não costuma sentir a pressão em jogos grandes e conhece ou já enfrentou parte relevante dos adversários; (iii) ele não deverá ser titular - assim como não seria o seu eventual substituto - o que amainaria a preocupação com o suposto e incorreto problema de falta de ritmo; (iv) é um vencedor, o maior de todos os tempos, e recentemente mostrou sua afinidade com a seleção, ao sagrar-se campeão olímpico; e (v) ao que parece, tem muito bom entrosamento com o elenco, em especial com seus principais protagonistas, como Neymar. O tempo deverá, nas próximas semanas, coroar ou maldizer Tite pelas suas decisões. Como torcedor e, mais do que isso, um cidadão que vê no futebol um instrumento de desenvolvimento social e econômico, e na seleção um soft power poderosíssimo, a ser exercido independentemente da corrente política conjunturalmente predominante, espero - e torço - para que ele confirme seu acerto.
A situação financeira do futebol brasileiro provoca - ou deveria - provocar reflexões: como pode o país que mais gera jogador no planeta (aproximadamente 11% de todos os negócios envolvem brasileiros) produzir um endividamento bilionário e impagável, sob a perspectiva dos atuais clubes, constituídos sob a forma de associação civil? Mais do que isso - muito mais, aliás: como pode o país, que tem mais de 20 times com mais de um milhão de torcedores cada, reduzir sua perspectiva na estrutura mundial à mera exportação de jovens ainda em fase de formação? E, para arrematar (apenas pela dimensão deste espaço, pois as perguntas são quase infindáveis), como pode o país mais admirado (e temido) no plano das seleções nacionais, o único penta campeão mundial, "importar" mais de 90% dos seus selecionados junto a times estrangeiros (que contratam os jovens ainda em fase de formação; fato que, é verdade, coaduna-se com a posição exportadora assumida pelos times locais)? Essas e outras perguntas, voltadas ao ambiente esportivo, conectam-se com questionamentos dirigidos ao ambiente da economia; ambiente este que aparenta ter ignorado a existência de uma atividade global e bilionária, da qual o Brasil deveria se inserir como protagonista. Assim, em resumo: como se justificava, até o advento da Lei da SAF, a falta de interesse do mercado em geral, local ou internacional, em relação ao futebol brasileiro, que faz parte de sistema transnacional que atrai mais de 4,5 bilhões de pessoas e que, no plano institucional, congrega mais confederações associadas à FIFA do que países à ONU? Não houve, na verdade, falta de interesse. Houve incompreensão e inconformismo quanto à necessária mudança de um modelo, remanescente do século XIX - sim, do século XIX -, que encastelou a empresa futebolística em clubes sem finalidade lucrativa, controlados por dirigentes instáveis - fruto do processo eleitoral inerente ao modelo associativo - e incapazes de oferecer a necessária segurança jurídica e institucional a agentes interessados em financiar ou investir na empresa futebolística.  Mas o futebol, como qualquer outra atividade econômica, precisa de recursos para seu desenvolvimento; e, na ausência de provedores de capital, passa a depender de um "submercado", formado justamente por outros tipos de agentes que vivem e fomentam a crise alheia para, em condições não raro escorchantes, impor uma dependência da qual não se sairá sem a revisão estrutural do modelo. Por isso que, historicamente, não surgiu, de dentro do futebol, uma solução para o próprio futebol: pois, contra os interesses deste - e dos torcedores -, grupos de pessoas com intenções e anseios particulares se apropriaram das decisões, das formas de captação e de financiamento, e do processo de endividamento, e se alimentaram do caos esportivo e institucional. Diversos fatos novos, e relevantes, indicam, no entanto, que uma transformação estrutural pode estar em curso. Negociações como as conduzidas por Cruzeiro, Botafogo, Vasco e, mais recentemente, Bahia -  que atraiu, nada mais, nada menos, que o grupo controlador do Manchester City -, jogaram luzes sobre a perspectiva criada com o início da construção de políticas públicas que reconhecem e elevam o futebol a tema fundamental da sociedade, pelos seus atributos culturais, esportivos, econômicos e sociais. Aqueles clubes, bem como outros que desenvolvem atualmente seus processos internos de revisão modelar, inauguraram, pois, o que deverá se reconhecer como uma nova era do futebol brasileiro. É com esses propósitos construtivos que o Instituto de Direito Societário Aplicado - IDSA, a mais importante e atuante entidade dedicada ao estudo, desenvolvimento e aperfeiçoamento do direito societário no país, promoverá, amanhã, dia 10 de novembro, na e com o apoio da Comissão de Valores Mobiliários - CVM, evento com a intenção de, justamente, promover e colaborar com a formação de um ambiente regulatório adequado ao surgimento e afirmação de instrumentos de mercado. Participarão do evento legisladores, reguladores, presidentes de clubes e SAF's, banqueiros, advogados e professores.  O local de realização, sede da CVM, autarquia que se presta a "desenvolver, regular e fiscalizar o Mercado de Valores Mobiliários, como instrumento de captação de recursos para as empresas, protegendo o interesse dos investidores e assegurando ampla divulgação das informações sobre os emissores e seus valores mobiliários", simboliza e sintetiza os esforços que agentes privados e públicos empregam, desde a proposição do anteprojeto de Lei da SAF, para criação do já mencionado mercado do futebol. Mais do que isso: representa a ruptura de uma barreira, formada por distintos substratos (psicológico, sentimental, legislativo, regulatório etc.), que impedia o estabelecimento, em um ambiente seguro e previsível, do encontro entre os proprietários do futebol - os clubes - e os financiadores da empresa futebolística.  Festeja-se, assim, o aparente interesse do regulador (CVM), que não apenas abre suas portas para o futebol (e, consequentemente, para o torcedor e para o País), e, sobretudo, indica (ao menos esta é a minha percepção externa) que poderá colaborar, no âmbito de sua competência definida em lei, para a formação e regulação de um mercado que contribuirá - é sempre bom afirmar e reafirmar - para o desenvolvimento econômico e social da nação.
quarta-feira, 26 de outubro de 2022

Pelé, Lula e o futebol

Juca Kfouri escreveu em seu blog que Pelé é o "brasileiro mais importante da nossa história e o mais conhecido pelo mundo afora". Nessa opinião se revela a importância intrínseca do futebol, não apenas no plano esportivo, mas também no social e no econômico. E é isso mesmo, como, em meu entendimento, afirmou certa vez Diego Lugano, o capitão da Seleção Uruguaia em duas copas do mundo: em países marcados pela intensa desigualdade, como os sul-americanos e os africanos, o futebol se revela, para milhares de pessoas e famílias, a única esperança de inserção e prosperidade. Daí a incompreensão com o desprezo do Estado e de Governos em relação à modalidade. Não à toa o atual posicionamento do Brasil no mercado mundial: exportador de pé-de-obra. Pé-de-obra que, lá fora, passa por processo de ambientação para, depois, ser comercializado com enorme excedente financeiro aos agentes e intermediários que em nada contribuem para o desenvolvimento da Nação; ou para vagar em centros de menor expressão, se não responder às expectativas eventualmente legítimas do comerciante. Paradoxalmente, o futebol se tornou, com o desenvolvimento de novas tecnologias e vias de acesso à informação, a mais global e intensa atividade de entretenimento. Não era assim nos tempos de Pelé; fato, aliás, que reforça a grandiosidade de seu feito. Pelé foi - e talvez ainda seja - o mais importante soft power do país. Assim como alguns de seus sucessores também o foram (e são) - um deles, Ronaldo, recentemente reverenciado no plano esportivo, com razão, pelo francês Karim Benzema, por ocasião da entrega da Bola de Ouro deste ano de 2022. Nenhum artista ou esportista, de qualquer setor de atuação, alcançou, interna ou externamente, de modo individual, a proeminência de Pelé. Aliás, nenhum brasileiro, a despeito de sua área de atuação.   Pelé, apesar de sua passagem pelo governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso, não se notabiliza por uma atuação política. A coisa pública parece não ter sido sua principal preocupação - posso estar errado e, inclusive, adorarei, se estiver. Ele deveria ter agido de outro modo? Assumido bandeiras, liderado movimentos, participado de debates políticos e atendido às exigências ideológicas de cada um de seus fãs? Se o fizesse, talvez deixasse de ser Pelé, e se revelaria, como afirmava lindamente o pai de Juca Kfouri (segundo o próprio jornalista), um Deus. De todo modo, é muito fácil tecer críticas ou sugerir formas de atuação no lugar de outra pessoa, assumindo-se que, na posição dele, far-se-ia de maneira diferente. Essa tentativa carrega em si alguns problemas insuperáveis (e despropositados). Cada pessoa sabe o que passou - esforços, dificuldades, tristezas, alegrias, medos, falta de recursos, sorte etc. - para firmar-se profissionalmente e, em especial, como ídolo de determinada atividade. E, em casos raros, para tornar-se uma referência mundial. Ademais, para essa pessoa, a causa pública talvez jamais tivesse sido uma preocupação - como não é, para parcela relevante da população.    Isso diminui, no caso, Pelé como ídolo e maior esportista (não apenas futebolista) da história planetária? Não. Ele continua sendo o maior. Por outro lado, o credencia como o maior brasileiro? Também entendo que não, pelos efeitos que sua existência causou (ou deixou de causar) para o povo em geral. E o motivo é relativamente óbvio: para concorrer a tal posto, a pessoa haverá de ter, como propósito de vida, ao lado de eventuais características esportivas ou artísticas quase divinas, justamente o bem-estar do povo, em geral. Esse é o ponto de partida, mas não condição suficiente; pois, além de sentir ou idealizar, haverá, sobretudo, de realizar, e com a realização, transformar. Transformação, em ambientes ainda marcados pelas feridas da sociedade elitista e escravocrata, como o brasileiro, implica redução de desigualdades, inserção, desenvolvimento social e econômico, e afirmação de uma Nação, apesar das diferenças regionais e geográficas (dentre outras). Por isso que, não raro, ídolos esportivos ou artísticos de países pobres se lançam em carreiras públicas, para, a partir delas, imporem-se como líderes (e, ao menos no discurso, como transformadores). É o caso do ex-jogador de futebol George Weah, atual presidente da Libéria.   Lula - que poderia ser definido como humanista e pragmático -, apesar de não ter sido jogador ou cantor, é o brasileiro que, pela sua história e lutas, mais se dedicou à construção de uma sociedade menos desigual.  É um santo? Óbvio que não. Errou em sua passagem pela presidência? Sim, e não há dúvida em relação a isso. Acertou? Muito mais do que errou, e seus acertos, se tivessem o mesmo tempo da imprensa e atenção das mídias sociais que os seus erros, talvez (ou certamente) o colocassem no topo da lista dos brasileiros mais importantes da história.   Não custa lembrar, conforme a Manifestação de Apoio às Liberdades, emitida domingo p.p. (dia 23.10), pelo Movimento de Defesa da Advocacia (MDA), que "os erros e acertos fazem parte do sistema e das instituições, na mesma medida que fazem parte da essência da pessoa humana". Lula dá sinais inequívocos de que, se eleito, não cometerá os mesmos erros - próprios ou de seus comandados -, e, mais do que isso, de que irá para seu grande e último capítulo público, com o propósito de reforçar e ampliar os seus acertos, em benefício, e não há como negar, do povo em geral, e não do seu partido. Isso, é muito importante frisar, como ele próprio frisou em discurso proferido segunda p.p. (dia 24.10), na PUC/SP, sem abandonar a responsabilidade econômica e fiscal.   A própria indicação para vice-presidência da chapa de um histórico e elogiável líder de centro-direita, Geraldo Alckmin, e o papel que ele vem exercendo desde então, reforçam, em minha opinião, a sinceridade e a grandiosidade das intenções de um brasileiro que deveria ter a chance de, não apenas reparar seus erros (inclusive mediante a formulação e a afirmação de política de Estado para transformar o futebol brasileiro no maior soft power do planeta), mas, sobretudo, de resgatar, intensificar e multiplicar seus inegáveis acertos. Será, assim, Lula o brasileiro mais importante da história? A resposta cada um de nós dará após a nova oportunidade que o povo deveria - ou deverá - conferir-lhe; assim como cada um poderá afirmar, ou não, que Pelé foi - ou é - o maior atleta da história.
A lei 14.193/21 ("Lei da SAF") completou, recentemente, seu primeiro ano de vigência no Brasil. Buscando promover uma ampla reforma nas estruturas jurídicas dos times de futebol do país, pode-se dizer, pelo que se viu até aqui, que o novo subtipo societário vem demonstrando impacto positivo, obtendo a adesão de gigantes do futebol brasileiro, como o Cruzeiro, Vasco da Gama, Botafogo, Bahia, entre outros. Esse breve comentário não pretende, nem de longe, atacar todos os desafios que a Lei da SAF tem encarado nesses últimos tempos. O objetivo aqui é levantar possíveis consequências de um dos pontos basilares para aplicabilidade da SAF no Brasil: a sua responsabilização solidária, pela justiça trabalhista ou mesmo cível, por obrigações do clube anteriores à sua constituição. Simplificando: serão as SAFs consideradas solidariamente responsáveis - ou, como alguns propõem, integrantes do mesmo "grupo econômico" - aos clubes associativos que lhes constituíram? O debate consiste, basicamente, na interpretação que será dada - e consolidada por tribunais superiores - ao artigo 9º da Lei da SAF. Relembrando-o: Art. 9º. A Sociedade Anônima do Futebol não responde pelas obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição, exceto quanto às atividades específicas do seu objeto social, e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas conforme disposto no § 2º do art. 2º desta Lei, cujo pagamento aos credores se limitará à forma estabelecida no art. 10 desta Lei. Até o momento, há decisões judiciais para ambos os lados (deferindo e indeferindo a responsabilização solidária e inclusão das SAFs no polo passivo das demandas), especialmente na Justiça do Trabalho. Os credores em geral, e não apenas os trabalhistas, têm constantemente tentado atingir o patrimônio das SAFs, sob a justificativa de que, como seu crédito estaria relacionado "às atividades específicas do seu objeto social", a SAF deveria ser incluída no polo passivo das cobranças e, portanto, considerada devedora solidária (ou coobrigada) do clube associativo. Essa conclusão, em nosso entender, se dá por uma análise partida (e, assim, distorcida) do regramento disposto na Lei. Há, inegavelmente, a regra geral de que a SAF não responde pelas obrigações do clube anteriores ou posteriores à data de sua constituição, com a seguinte exceção: obrigações que lhes foram expressamente transferidas, desde que relacionadas ao seu objeto social1. Ou seja, o estar relacionado ao "objeto social" é, na verdade, um dos requisitos para que a responsabilização da SAF seja possível. Deve-se ter em mente, portanto, que a exceção legal, vista por uma interpretação sistemática da norma, exige, cumulativamente, que a obrigação (i) tenha sido expressamente transferida à SAF e (ii) seja relacionada às atividades específicas do objeto social dela. Apesar disso, as discussões tidas nas primeiras instâncias, como dito, geraram opiniões divergentes. Há quem se negue a reconhecer que responsabilizar a SAF quanto às dívidas antigas dos clubes seria, em termos simples, desconsiderar todo o cuidado legislativo para se criar uma estrutura e ambientes jurídicos capazes de fornecer solução à caótica situação de insolvência dos clubes brasileiros, oportunizando-os um caminho de soerguimento por meio da profissionalização e atração de investimentos. Caberá às instâncias superiores consolidar o entendimento a ser adotado pelos tribunais brasileiros, estabilizando a interpretação legal. Enquanto isso não acontece, é interessante ressaltar os possíveis impactos que uma utilização tortuosa da Lei da SAF pode provocar. Partimos, então, da situação em que o clube originário, após ter constituído a SAF, teve deferido pedido de processamento da recuperação judicial, ou mesmo teve aprovado seu plano de recuperação, nos termos da lei 11.101/05 (Lei de Recuperação de Empresas e Falência - "LRE") e do artigo 13, inciso II, da Lei da SAF. Em seguida, credores trabalhistas e cíveis começam a requisitar a inclusão da SAF no polo passivo e consequente responsabilização solidária dela, atingindo seu patrimônio para ter saldada a dívida contraída anteriormente com o clube. Se deferido o processamento da recuperação, em regra, restarão suspensas as execuções ajuizadas contra o devedor principal, conforme o inciso II do artigo 6º da LRE. Se o plano de recuperação já tiver sido aprovado, opera-se a novação dos créditos a ele submetidos, e os pagamentos se darão de acordo com seus termos. Há, portanto, um "estancamento" das cobranças e posterior repactuação das dívidas do clube. Mas, dentro desse contexto, como fica a SAF? A suspensão ou a novação dos créditos seriam suficientes para proteger o seu patrimônio caso a tese - em nosso entender equivocada - de responsabilização solidária2 das dívidas anteriores do clube seja acolhida? Aparentemente, não; e esse perigo precisa ser evidenciado. A resposta está na interpretação do artigo 49, §1º da LRE: Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. § 1º Os credores do devedor em recuperação judicial conservam seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados de regresso. A jurisprudência é firme ao entender que o termo "coobrigados" inclui os devedores solidários, possibilitando a cobrança desses (mesmo estando o devedor principal em recuperação judicial). A súmula 581 do STJ dispõe que: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória"3. Ou seja, é necessário alertar que uma interpretação imprópria da Lei da SAF poderá trazer consequências graves até mesmo para os casos em que o clube associativo tiver o "estancamento" das cobranças e repactuação de seus débitos, por meio da recuperação judicial. Portanto, é possível imaginar, contraditoriamente, o seguinte cenário: o clube terá suas cobranças suspensas e, enquanto isso, a SAF (entidade sem qualquer relação com os fatos geradores das dívidas) terá seu patrimônio atingido por credores com quem jamais contratou. Esse risco só confirma a necessidade de cautela dos aplicadores do direito, em especial juízes, desembargadores e ministros, quanto à correta utilização da Lei da SAF, compreendendo os seus objetivos e sistemática. A Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho - TST -, em 19 de agosto de 2022, editou Provimento CGJT 01/22, que alterou os termos da Consolidação dos Provimentos da Corregedoria-Geral da Justiça do Trabalho. Esse Provimento, além de trazer considerações essenciais ao tratamento dado ao Regime Centralizado de Execução previsto na Lei da SAF, incluiu o seguinte parágrafo em seu artigo 153: § 4º Nos termos da Lei nº 14.193/2021, não haverá responsabilidade jurídica da SAF em relação às obrigações do clube ou pessoa jurídica original que a tiver constituído, sejam elas anteriores ou posteriores à data da sua constituição, salvo quanto às atividades específicas do seu objeto social, respondendo pelas obrigações a ela transferidas na forma do § 2º do art. 2º da aludida lei, hipótese em que os pagamentos observarão o disposto nos arts. 10 e 24 da referida lei. Apesar de refletir o caput do artigo 9º da Lei da SAF, o Provimento parafraseia a regra; tornando-a talvez mais clara aos seus intérpretes. A paráfrase muda o trecho "e responde pelas obrigações que lhe forem transferidas" por "respondendo pelas obrigações a ela transferidas". O gerúndio ("respondendo") evidencia a compreensão de que a exceção à regra geral de não responsabilização4 possui os requisitos expressos de que (i) a obrigação seja relacionada ao objeto social da SAF e (ii) tenha sido a ela transferida. Logo, a transferência da obrigação é condição sem a qual a excepcional responsabilização da SAF resta-se impossibilitada. Elogiável, portanto, a intervenção da Corregedoria Geral da Justiça do Trabalho, que busca indicar os caminhos para aplicação correta das novidades legislativas; aguarda-se, assim, a devida recepção de tais diretrizes pelos seus destinatários. _____________ 1 CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de. (Org.). Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol: Lei Nº 14.193/2021. São Paulo: Quartier Latin, 2021. P.124. 2 A discussão muitas vezes passa pela caracterização de grupo econômico entre o clube e a SAF, que culmina na responsabilização solidária. Focamos, aqui, em analisar a eventual responsabilidade solidária em si, visto que as implicações quanto à caracterização de grupo econômico poderão variar conforme a legislação que esteja em debate. Grupo econômico, na legislação trabalhista (art. 2º, §2º, da CLT) pode não ser grupo econômico para fins da consolidação substancial que trata a legislação falimentar (art. 69-J da LRE). São conceitos diferentes com consequências igualmente diferentes. 3 Cite-se também o Enunciado 43 da I Jornada de Direito Comercial realizada pelo CJF/STJ: "A suspensão das ações e execuções previstas no art. 6º da Lei nº 11.101/2005 não se estende aos coobrigados do devedor". 4 Note-se que a exceção de responsabilização prevista no artigo 9º da Lei da SAF é diferente daquela indicada no artigo 24 - que, por sua vez, não se aplica à hipótese aqui imaginada (clube em recuperação judicial).
Entra eleição, sai eleição, e o futebol continua a ser ignorado. Não vale, como afirmação de interesse, os constantes aparecimentos do Presidente Lula vestido com casacos de seu time preferido, em eventos públicos. Isto indica, apenas, uma paixão pessoal. Vale menos ainda a presença do Presidente Bolsonaro em partidas de times que não são o seu, paramentado com a respectiva camisa esportiva para atrair simpatia de torcedores. Trata-se, apenas, de oportunismo. O desprezo histórico, sob a ótica da estrutura do esporte, não foi e não é privilégio dos atuais contendores; ele se identifica em todos os candidatos relevantes de todas as eleições presidenciais, desde a redemocratização do país. É verdade que se encontram, nos programas de governo de praticamente todos eles, capítulos dedicados ao esporte; e, eventualmente, ideias abstratas, áridas ou demagogas dirigidas ao futebol. Nada que tenha (ou tivesse) alguma efetividade - o que se revela não por opiniões teóricas, mas pela constatação empírica do estado patrimonial, financeiro e econômico da quase totalidade dos clubes brasileiros. Daí a conclusão: o futebol, a despeito do envolvimento, com maior ou menor intensidade, de parcela majoritária da população - algo em torno de 140 milhões de pessoas -, não atrai interesse político. Curioso, realmente curioso, pois o contingente é maior do que o número de pessoas que se deslocou, por exemplo, para participar do atual pleito presidencial. O descaso, pois se trata mesmo de descaso, contrasta com a preocupação transformada em ação em diversos outros países. Os Estados Unidos da América associam o profissionalismo à atuação universitária, e estimulam a criação de indústrias universais do entretenimento; os Europeus, como a França, promovem programas de estudo-esporte, para incentivo de carreiras esportivas; a China incorpora o desenvolvimento de modalidades, dentre elas o tênis de mesa (dentre muitas outras), em programas de Estado. Nenhuma dessas potências, porém, domina, na escala do Brasil, a formação de futebolistas - que permanecem desprezados pelo Poder Público. Aliás, de certa forma, a geração de jogadores ocorre de maneira espontânea, sem, na origem, a intervenção de entidades privadas ou públicas. Elas se aproveitam, posteriormente, do talento inato para, aí sim, lapidá-lo e, tempos depois, comercializá-lo, sob a lógica cada vez mais colonialista das negociações futebolísticas. O Brasil tem todos os elementos de uma indústria que os países hegemônicos pretendem ter - e para isso empregam meios contemporâneos de apropriação, como já se fez, no passado, com o pau-brasil, o ouro, o diamante, o café, a borracha etc. Não se trata de ufanismo às avessas; portanto, de teoria conspiratória. Apenas, mais uma vez, de observação da realidade, evidenciada pela quantidade de negócios envolvendo jogadores brasileiros - aproximadamente 11% de todos os ocorridos no planeta - e pela distribuição, lá fora, da mais-valia obtida nas negociações subsequentes. Não apenas isso: também pela constatação de que, apesar do recente advento da Lei da SAF - que, pouco mais de um ano após sua promulgação, já começa a transformar a realidade dos times locais -, nenhum candidato se presta a compreender o fenômeno e, a partir dele, defender ações que contribuam para o desenvolvimento econômico e social da Nação. Lembre-se: a Lei da SAF afirmou-se como via de salvação de um clube popular de Minas Gerais, o Cruzeiro, e já se revela, no mesmo sentido, o caminho de seu principal rival, o Atlético, que mandatou uma grande instituição financeira para coordenar sua operação. No Rio de Janeiro, Botafogo e Vasco da Gama, duas das principais forças, seguiram a mesma trilha, e boatos indicam que o Fluminense pode ter, no futuro, destino semelhante. O Bahia também se aproveitou do sistema para atrair, nada mais, nada menos, que o Grupo City e, assim, projetar-se não apenas no plano local, mas internacional. E o Athletico Paranaense, exemplo de resiliência, competência e sucesso, foi atrás de uma instituição internacional para comandar a atração de investidor para afirmar-se como um dos principais times da América. Esses exemplos demonstram (i) que se carecia de uma legislação adequada à percepção da relevância da atividade e, lamentável e fundamentalmente, (ii) inexistia política pública aderente à realidade das gentes que não têm suas vidas afetadas ou melhoradas por jingles utópicos de campanha, mas sonham com a mudança de suas duras realidades (ou de seus familiares), por meio do futebol. Lula, o brasileiro que, na história do país, mais compreendeu e compreende as necessidades das pessoas desfavorecidas (portanto, do povo), e Bolsonaro, que, apesar de nada ter contribuído ou feito pela Lei da SAF (os créditos, no plano político, devem ser atribuídos ao autor da lei, senador Rodrigo Pacheco, e ao relator no Senado Federal, Senador Carlos Portinho), a promulgou, não perceberam que os efeitos visíveis dessa iniciativa representam a pontinha de um iceberg de proporções colossais, nos planos econômico e social, e a depender dos encaminhamentos que se façam, também educacional. Fica aqui, pois, uma proposta: nos dias que se seguirão, e sobretudo nos debates que se promoverão, que se deixem de lado, ao menos por algum instante, os ataques pessoais e se discutam as bases e os instrumentos de fortificação do novo ambiente do futebol que, de irrelevante ou alienante, nada tem - como quer fazer crer o cartolismo, justamente para manter o poder sobre uma riqueza que pertence aos brasileiros. 
quarta-feira, 28 de setembro de 2022

O Dia "D" - Eleições, mulheres e futebol

Estamos igualmente distantes do último e do próximo 8 de março.  Sem embargo, vivemos a semana que culminará no tão esperado 2 de outubro, dia das eleições que ficarão marcadas pela centralidade dos temas relacionados à defesa dos direitos das mulheres.  Aguardamos, com ansiedade, pela chegada do "Dia D" para as mulheres, o momento em que poderemos utilizar o instrumento mais potente ao nosso alcance - o voto - para exercermos nosso papel na luta por um País com mais igualdade e menos violência de gênero.  Que seja assim. Já não era sem tempo.  O trabalho com questões relacionadas à assistência social propaga conceito salutar na defesa de direitos de desfavorecidos: "nada sobre nós, sem nós".  São as mulheres quem têm lugar de fala para explanar sobre as questões que lhes trazem sentimento de injustiça e lutar pelos seus anseios. Aos demais gêneros, incumbe apoiá-las, em prol de uma sociedade mais justa para todos.  De tal sorte, que tal correlação positiva de forças somente se mostrará eficaz e equilibrada a partir do expressivo aumento da representatividade feminina no Parlamento e nos órgãos do Executivo.  Diante das urnas, poderemos mostrar que/se nossa sociedade já entendeu o conceito de "nada sobre elas, sem elas".  No esporte, tema central desse nobre espaço, quis o destino que o Campeonato Brasileiro de Futebol Feminino tivesse sua Grande Final no último domingo antes das eleições.  Foi, sem dúvida, o campeonato que consolidou o interesse do torcedor pelo futebol brasileiro feminino local, representado pelas disputas entre clubes. O Brasileirão Feminino 2022 ficará marcado pelos grandes públicos, pela audiência nas transmissões, pela repercussão e seus ótimos jogos.  A CBF tem, e merece ter, os méritos pela forma como tem se esmerado na organização das últimas competições femininas, bem como, por fomentar, há tempos, a prática na categoria principal e na base. Justo reconhecimento. O mesmo se diga em relação aos clubes, as entidades protagonistas, que apostam e investem no futebol feminino, fortalecendo cada vez mais o vínculo com seus, atuais e novos, torcedores.  Sem que nunca possamos nos esquecer de reconhecer a luta de atletas, treinadoras e treinadores, componentes de comissão técnica e dirigentes, muitas delas, há tempos, engajadas no fortalecimento do futebol feminino.  Dias de luta. Dias de glória.  Desde 2017, a CBF determina critérios de obrigatoriedade de manutenção de equipe de futebol feminino da categoria, aos clubes que pretenderem pleitear licença para participarem de suas competições. Tal norma está contida no Regulamento de Licença de 20211. Excelente medida.  Em vigor desde agosto de 2021, a Lei da SAF fez com que a manutenção do time de futebol feminino fosse elevada à categoria de norma com a hierarquia de Lei Federal.  Logo no artigo 1º, na caracterização de SAF, está descrito que "constitui Sociedade Anônima do Futebol" a companhia cuja atividade principal consiste na prática do futebol, femininoe2 masculino (...)." (n.g.)  Ou seja, independente de se sujeitarem ao Licenciamento CBF - e de participarem das competições de âmbito nacional - todo e qualquer clube que pretenda constituir SAF, gozando do regime jurídico já amplamente mencionado anteriormente nesse espaço, deverão manter a equipe de futebol feminino.  Expande-se, assim, o conceito de "educação pelo futebol e futebol pela educação" expresso no texto do artigo 28 da Lei da SAF, também em favor de jovens brasileiras que, movidas pelo exemplo das craques que assistem no campo ou na TV terão tido acesso à formação esportiva, preparação física, alimentar, psicológica, social e cidadania por meio do esporte, mesmo que não se consolidem com atletas de alto rendimento.  Além, é claro, de ampliar o campo de trabalho para treinadoras, integrantes de comissão técnicas, médicas do esporte e dirigentes, para ocuparem espaços que até pouco tempo eram - como outros tantos - restritos apenas aos homens. Semana de eleição é tempo de sonhar. Sonhar um País mais justo, mais desenvolvido e com igualdade de oportunidades a todos. E todas. Porque nessa eleição, a igualdade de gêneros está em pauta com uma força que nunca havia tido.  Podemos, então, sonhar com um Brasil mais justo, igualitário e humano.  E também com uma "Pátria de Mulheres em Chuteiras", com o futebol feminino massificado, arrastando multidões aos estádios e, como resultado de tudo isso, conquistando títulos mundiais e o tão sonhado Ouro Olímpico, para o gáudio do País do Futebol. __________ 1 Disponível aqui. 2 Atenção ao "e", que não é "ou".
A CBF emitiu, em 18 de janeiro de 2022, o Ofício CBF 246/2022 ("Ofício 1"), direcionado aos presidentes de federações estaduais, em que trata, dentre outros temas, da constituição da sociedade anônima do futebol ("SAF"). O item 1 do Ofício 1 estabelece que, nos termos do art. 2º da Lei da SAF, a SAF pode ser constituída conforme as seguintes modalidades: - Modalidade 1: pela transformação do clube original em SAF; - Modalidade 2: pela cisão do departamento de futebol do clube original e transferência do seu patrimônio e direitos relacionados à atividade do futebol; e - Modalidade 3: pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento de criar uma SAF. No Ofício 1 se aponta, ademais, que: a constituição de SAF com base na Modalidade 3 seguirá os padrões de cadastro no sistema de registro de um novo clube; na Modalidade 1, a inscrição do clube transformado será a mesma da SAF, com a manutenção do código existente de inscrição no sistema Gestão WEB; e, no caso da Modalidade 2, promover-se-á nova inscrição em nome da SAF, além da inativação do cadastro do clube que a constituiu, para qualquer categoria. O Ofício 1 também orienta sobre as taxas incidentes em decorrência da constituição da SAF: isenção, para Modalidade 1; o dobro da taxa devida para os casos de profissionalização de clube, para Modalidade 2; e a mesma taxa cobrada para cadastro de novo clube, para Modalidade 3. Em relação aos registros de atletas e treinadores, informa-se, ainda, que, nas Modalidades 1 e 3, não se promoverá transferência porque, na primeira, a  SAF se manterá na mesma inscrição existente e, na terceira, o ato de inscrição será originário. Para Modalidade 2, considerando que a SAF terá nova inscrição, aí se passa a exigir a "alteração nos instrumentos contratuais registrados no sistema Gestão Web, mediante celebração e registro de novos instrumentos entre atletas e o novo empregador", qual seja, a SAF. Importante: determinava-se, também, que o processo aplicável à Modalidade 2 somente poderia se realizar em período em que o clube não estivesse disputando competição nacional. Isso, na prática, implicava a fixação de janelas, ao longo do ano, para que um clube pudesse efetivar a constituição da SAF, no âmbito daquela Modalidade. Por fim, indicava-se que a transferência do certificado de clube formador para a SAF estaria condicionada à emissão de declaração de manutenção de mesmas condições e estruturas apresentadas por ocasião do processo original de certificação. Meses após a emissão do Ofício, a CBF emitiu, em 29 de junho de 2022, o novo Ofício CBF 3205/2022 ("Ofício 2"), contendo esclarecimentos complementares sobre a constituição de SAF. O principal motivador do Ofício 2 consiste no afastamento da restrição, prevista no Ofício 1, para constituição de SAF durante a realização de competição nacional de que o clube constituinte participasse. Admitiu-se, então, o início do "processo de sucessão esportiva, em qualquer momento da temporada, desde que devidamente registrada a transformação ou a constituição formal da SAF, em qualquer das modalidades 1, 2 ou 3, mediante requerimento protocolado junto à DRT-CBF, por meio da respectiva Federação filiada". O Ofício 2 também estabelece, dentre outros temas (que não são abordados neste texto), que a sucessão esportiva não implicará - como de fato não deveria mesmo implicar - a "apreciação ou qualquer responsabilidade da CBF acerca do conteúdo dos atos constitutivos da SAF e/ou processo que autorizou a criação da SAF e efetivou a integralização de direitos (...)". Por fim, o Ofício 2 traz nova e relevante orientação, referente à afirmação da sucessão da SAF em "todos os procedimentos em curso, seja no polo ativo ou polo passivo, junto a quaisquer dos órgãos judicantes previstos no Estatuto Social da CBF, podendo inclusive o clube sob forma de SAF ser sancionado por qualquer descumprimento do clube original de decisões ou obrigações". Sobre essa imputação de sucessão, tratar-se-á oportuna e futuramente. Por ora, abordam-se, apenas, (i) o tema do rol de modalidades de constituição de SAF previsto nos dois Ofícios e (ii) o entendimento implícito a respeito do conceito de cisão que vem sendo adotado pela CBF no âmbito de constituição de SAF. No que toca ao rol de modalidades constitutivas, a Lei da SAF lista no art. 2º, com efeito, as três modalidades previstas nos Ofícios; mas também reconhece, ademais, no art. 3º, uma quarta modalidade, consistente no drop down (ou transferência de patrimônio do clube para uma SAF, sem que se opere a cisão da transferidora, ou seja, do clube). Lembre-se, a propósito: a cisão é uma espécie de operação societária tipificada e sujeita a normas específicas, previstas na Lei das Sociedades por Ações. A existência dessa quarta modalidade, no âmbito da Lei da SAF, que consiste, aliás, no caminho que vem sendo adotado pelos clubes brasileiros - como Cruzeiro e Botafogo -, também está consolidada, no plano infralegal, na Instrução Normativa DREI/ME 112, de 20 de janeiro de 20221. Isso não significa, do ponto de vista prático, que a CBF esteja rejeitando e afastando a quarta modalidade - algo que não poderia fazer, aliás, porque prevista e decorrente de lei federal. Mas parece indicar que ela (a CBF) entende que o termo cisão, aplicado à Modalidade 2, aplica-se tanto à cisão societária (na forma da Lei das Sociedades por Ações), quanto à modalidade que se chamará, aqui, de cisão atípica, consistente, nos termos do art. 3º da Lei da SAF, na possibilidade de integralização, pelo clube, de "sua parcela ao capital social na Sociedade Anônima do Futebol por meio da transferência à companhia de seus ativos (...)". Esta conclusão se evidencia do seguinte fato: de todas as principais SAFs constituídas até o momento, nenhuma resultou de cisão societária, mas por via do drop down (isto é, por cisão atípica). Apesar de os Ofícios estarem servindo, explícita e implicitamente, para orientação dos agentes esportivos e investidores envolvidos em operações de constituição de SAF, a CBF poderia, apenas para fins de esclarecimento - e para oferecer total segurança sistêmica -, promover a edição de orientação complementar, a fim de indicar que os procedimentos e reflexos relacionados à Modalidade 2 se aplicam tanto à cisão societária (art. 2º da Lei da SAF), quanto ao drop down (ou cisão atípica), na forma do art. 3º. A CBF, com isso, reforçaria a sua benfazeja atuação orientadora e normativa, no âmbito de suas competências, na formação do novo sistema instituído pela Lei da SAF. __________ 1 A constituição da Sociedade Anônima do Futebol poderá ocorrer por um único acionista. Nos termos do art. 2º da lei 14.193, de 2021, sem prejuízo de outras modalidades constitutivas, a SAF pode ser constituída pela: I - conversão do clube ou transformação da pessoa jurídica original em Sociedade Anônima do Futebol; II - cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol; ou III - iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento. Por sua vez, conforme prevê o art. 3º da mesma lei, uma SAF pode ser constituída, ainda, mediante o recebimento da transferência do clube ou da pessoa jurídica original de seus ativos, tais como, mas não exclusivamente, nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, inclusive registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica. Nessa hipótese, o clube ou a pessoa jurídica original irá constituir uma SAF e transferir-lhe patrimônio para integralização do capital subscrito, nos moldes do art. 27, § 2º da lei 9.615, de 1998.
Já tivemos a oportunidade de mencionar, em artigos anteriores, a gravidade da situação financeira dos clubes de futebol brasileiros, em geral, salvo honrosas exceções. Há clubes de futebol do Brasil que devem aproximadamente R$ 1 bilhão, enquanto seguem trabalhando com défice e receitais anuais inferiores à metade de tal valor. Segundo a consultoria E&Y, em estudo publicado em maio de 2022, a dívida líquida dos 27 mais relevantes clubes de futebol do Brasil ultrapassa R$ 10 bilhões. As receitas desses mesmos clubes atingem R$ 7,5 bilhões1. Diante de tal cenário, poderia o legislador simplesmente não abordar o tema, deixando de prever, na Lei da SAF, alternativas para a solução das dívidas de clubes em geral, mesmo sendo elas anteriores à vigência da Lei, por conseguinte, à própria constituição da Sociedade Anônima do Futebol? O tempo mostrou que a resposta à pergunta acima é um sonoro "não". E, nesse sentido, há que se fazer Justiça ao trabalho importante do Senador Carlos Portinho, enquanto relator do Projeto de Lei 5.516/2019 no Senado, uma vez que foi produto de sua relatoria a inserção no texto original de artigos relacionados aos modos de quitação das dívidas dos clubes. Também é de rigor ponderar o quão são injustos e absolutamente equivocados, com todo respeito, alguns entendimentos que pretenderam, ainda nos primeiros momentos de vigência da Lei da SAF, classificar os modos de quitação das dívidas na Lei da SAF como benéficos aos devedores, em detrimento dos credores.  Inegavelmente, sob a ótica dos clubes e pessoas jurídicas originais afundadas em dívidas e sofrendo a pressão das constantes penhoras de suas receitas, a possibilidade de reunir suas execuções perante um único juízo, apresentar um plano de pagamento que, enquanto estiver sendo cumprido, impedirá a realização de constrições pode ser enxergado como, efetivamente, uma "taboa de salvação" e, em alguns casos, um recurso vital à própria sobrevivência de tais entidades. O mesmo pode-se dizer em relação àqueles que vierem requerer recuperação judicial, outro modo de quitação de dívidas previsto na Lei da SAF, que remete, com suas particularidades, aos mecanismos da lei 11.101/2005, já recepcionada pelo mundo empresarial e jurisprudência. Sob o ponto de vista dos investidores interessados em adquirir ações das SAFs, a previsão expressa de que as dívidas anteriores à sua constituição e não relacionadas à prática do futebol profissional permanecem sob responsabilidade dos clubes ou pessoas jurídicas originais que constituíram a SAF - não se negando a responsabilidade das SAFs, mas em prazo e condições especiais que já foram comentadas aqui em artigos anteriores - é um instrumento de segurança jurídico-financeira fundamental para fundamentar a decisão pelo investimento. Os inúmeros casos de investidores interessados em trazer dinheiro novo para o futebol brasileiro a partir da Lei da SAF demonstram, na prática, a veracidade de tal constatação. Resta mencionar a situação dos credores, que, em alguns casos, tem sido mencionada como desfavorecidos pela Lei da SAF, ao nosso ver, inadequadamente. Os modos de quitação das dívidas dos clubes previsto na Lei da SAF não foi concebido apenas para trazer uma situação de menor instabilidade diante da situação desesperadora de boa parte dos clubes endividados, implicando, em consequência, maior confiança e interesse de possíveis investidores. Ao contrário, o modo de quitação de dívidas tem a inequívoca finalidade de proporcionar aos credores uma perspectiva clara de recebimento de seus créditos. Não se pode imaginar que, sendo credor de um clube-associação com dívida muito superior à receita - como em grande parte dos casos - um credor teria segurança em receber os valores que lhe são devidos. Muito mais provável seria a hipótese de insolvência civil, uma vez que a possibilidade de recuperação judicial das associações esportivas é construção jurisprudencial recente, também incorporada como modo de quitação das dívidas à Lei da SAF. Por isso, causa alguma estranheza, após mais de um ano de aprovação da Lei da SAF, ainda presenciarmos alguns pronunciamentos públicos formulados por brilhantes e combativos colegas que, na condição de advogados de credores de clubes de futebol - condição que o subscritor da presente também ostenta - ao pretenderem alegar que os modos de quitação das dívidas previsto na Lei da SAF "prejudicariam direitos dos credores". A adoção do Regime Centralizado de Execuções, um dos modos de quitação das dívidas previsto na Lei da SAF, traz a perspectiva real de recebimento observados critérios objetivos e justos para pagamento de TODOS os credores, sem distinção ou privilégio em favor daqueles com maiores possibilidade materiais para realizarem constrições sobre as receitas dos clubes ou acesso aos seus dirigentes para realização de acordos com alto grau de subjetividade. Isso porque, a adesão ao Regime Centralizado de Execuções implica a imposição de um prazo para pagamento integral das dívidas dos clubes, que será de 6 anos e, no caso de pagamento mínimo de 60% das dívidas, podendo ser prorrogável por mais 4 anos, a partir do qual, com o não pagamento das dívidas, a SAF ficará sujeita a ser subsidiariamente responsabilizada pelos pagamentos. Como forma de contribuir para o cumprimento do prazo acima, a Lei da SAF também prevê a destinação de 20% das receitas correntes mensais auferidas pela SAF ao clube que a constituiu, ou destinação de 50% dos dividendos, juros sobre capital próprio ou outra remuneração recebida pelo clube na condição de acionista da SAF para pagamento das dívidas. Ademais, a Lei da SAF traz um rol de credores preferenciais e ordem de credores que tira da subjetividade ou da capacidade econômica do credor - como já mencionado acima - a possibilidade de recebimento antes de todo um rol de pessoas com igual direito ao recebimento e, muitas vezes, maior urgência e necessidade. Também nas hipóteses de recuperação judicial, os critérios de justiça e sensibilidade social no estabelecimento da ordem de recebimentos também estão presentes, até porque já consolidados na Lei de Recuperações e Falência em vigor desde 2005. Por isso, na análise dos modos de quitação de dívidas previsto na Lei da SAF, o mais justo seria saudar o acerto na sua introdução ao texto legal e reconhecer que tem algumas qualidades fundamentais, sendo VITAIS para os devedores, SEGUROS para os investidores e JUSTOS em relação a toda classe de credores. __________ 1 Disponível aqui.
"(...) o Golpe de Estado é um ato realizado por órgãos do próprio Estado"1 O cartolismo teve, em momentos não tão distantes, mais do que a aceitação da sociedade: era, de algum modo, apreciado e folclorizado. Houve, e ainda há, é verdade, níveis e estratos dentro dessa classe, provenientes de distintas origens. Um exemplo, eternizado em série disponível na plataforma globoplay, é o de Castor de Andrade: bicheiro declarado, que desfilava em altas rodas (inclusive intelectuais e artísticas) com a mesma desenvoltura que pegava em arma para correr atrás de árbitro de futebol - dentre outras práticas que, hoje, são corretamente tidas como inaceitáveis (ou criminosas). Outro, também originado em clube carioca, foi Eurico Miranda. Suas estórias de mandos e desmandos são conhecidas em todos os cantos: desde a tentativa de agressão à economista Elena Landau ao suposto assalto que sofreu após uma partida do seu time, o Vasco da Gama, em que lhe surrupiaram a renda de bilheteria, por ele transportada em seu veículo.   O Estado de São Paulo também produziu os seus. O São Paulo Futebol Clube (SPFC), objeto deste texto, maior clube da história brasileira sob o modelo associativo - título que se integra às suas glórias do passado -, exemplo de todos e para todos, ostentou, durante anos, Juvenal Juvêncio, que tinha um perfil distinto daqueles indicados acima. Seu fetiche, acho eu, era o poder. Mais, talvez: a manipulação do poder. E foi assim que, em 2011, ele deu início ao movimento que mudaria a história de time tão vitorioso: um golpe, interno, para, mediante manipulação das estruturas institucionais, modificar as regras do jogo, em seu benefício, e ganhar mais um mandato para comandar o clube. Ali se rompeu o compromisso, ou pacto moral, ético e político que sustentava a instituição. Formou-se, então, uma tropa de choque que defendia, com argumentos pseudo-jurídicos, o que era (e é) indefensável - e que o judiciário refutaria, com efeito, muitos anos depois. Juvenal Juvêncio, em resumo, era um déspota esclarecido, temido pelos opositores e também pelos aliados, que, ao mesmo tempo, lhe reverenciavam. Com o seu afastamento, antes do pesaroso passamento, grupos politiqueiros se formaram ou se arranjaram para cobrar a fatura do apoio ao golpe. Infelizmente, esse tema já foi repisado, em diversas ocasiões, nesta coluna: de lá para cá, a estrutura interna apodreceu e os reflexos se projetam, ainda hoje, sobre o time e seu entorno. Conquistas, recordes e glórias deram lugar a derrotas, estatísticas negativas e vergonha. Na conta sobram, ainda, os feitos do passado (sim, e com orgulho para todo torcedor), um patrimônio - sobretudo imobiliário - sucateado, e uma torcida cada vez mais fanática e apaixonada - que lota estádios e segura, há anos, com fios de nylon, o time na divisão principal. Nesse ambiente desolador, a classe cartolarial não se acanha em demonstrar a falta de sintonia com o problema de que faz (e também é) parte. Ano passado, por exemplo, em meio a uma das piores campanhas da história, enquanto o torcedor se desesperava com o risco de rebaixamento - algo, que aliás, tem sido mais próximo da realidade tricolor do que a conquista de título relevante -, tentou-se reproduzir, sem o carisma e a força de Juvenal Juvêncio, outro golpe estatutário, mediante a propositura de nova reforma do recém reformado estatuto, para autorizar mais um mandato ao atual presidente; mudando-se, portanto, a regra do jogo durante o próprio jogo, em benefício de quem, por tempo determinado, detinha de forma legitima o poder. Lembre-se, pois muito importante: em 2016, por ocasião da mencionada reforma, trocou-se o mandato de dois anos, com direito a uma reeleição, por mandato único de três anos. Agora, pelo que se indica, pretende-se, com apoio do principal e único beneficiado, manter o prazo estendido e, sobre ele, autorizar uma renovação. Portanto, menos de um ano após a maior derrota política de um grupo situacionista, ou seja, a rejeição da reforma de 2021, eis que ressurge, apoiada em discurso falacioso, a proposta rejeitada. Uma espécie de vingança contra os 20 milhões de são-paulinos. Ela surge, com crueldade, em momento parecido ao do ano anterior: quando o time volta a flertar com a zona de rebaixamento, da qual se distancia por apenas 4 pontos; e se mantém vivo por conta da persistência e da resistência de sua torcida - e, verdade seja dita, de seu técnico, Rogério Ceni. A partir de agora, a metralhadora girará, como método de convencimento dos associados, com disparos de promessas e realizações fantasiosas, forjadas às custas de um endividamento que se torna impagável ou viabilizadas pelo ingresso milagroso de recursos oriundos de transferências de jogadores negociados ao exterior (como Anthony). O primeiro golpe, patrocinado por Juvenal Juvêncio em época de opulência e dominação, levou o clube à lona; o segundo, em período de penumbra, se efetivado, sacramentará o fim da história de grandeza - que não mudará com o eventual (e necessário, tanto para o sofrido e fiel torcedor, como, paradoxalmente, para os propósitos golpistas) título sul-americano, prêmio de consolação em mais um ano perdido. Resistência, mais uma vez, é o que se espera do associado são-paulino. Pelo SPFC (e jamais pelos interesses de agrupamentos cartolariais). __________ 1 Dicionário de política / Norberto Bobbio, Nicola Matteucci e Gianfranco Pasquino; trad. Carmen C, Varriale et al.; coord. trad. João Ferreira; ver. geral João Ferreira e Luis Guerreiro Pinto Cacais. - Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1.a ed., 1998. Vol. 1, p. 545.
A Lei da SAF, apesar da torcida contrária dos donos do poder cartolarial e do reacionarismo, dá sinais, cada vez mais vigorosos, de que está pegando. Portanto, já é hora de tratar e de relembrar, aos agentes que integrarão o novo mercado, de um dos mais relevantes institutos que a compõem: o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE). Antes, porém, propõe-se uma rápida recapitulação. Em capítulo essencial para o desenvolvimento de sua narrativa, Brás Cubas, autor de suas próprias memórias póstumas, relata o delírio que o acometera - e que seria essencial para os eventos pessoais subsequentes, até o seu passamento. Nessa aventura psicodramática, deparou-se com um grande vulto, em forma de mulher, apresentada como Natureza ou Pandora; mãe e inimiga. Ela o guia, ou melhor, o apresenta aos eventos humanos passados e ao seu próprio destino. "Cada século trazia" - extrai-se da obra-prima - "a sua porção de sombra e de luz, de apatia e de combate, de verdade e de erro e o seu cortejo de sistemas, de ideias novas, de novas ilusões; em cada um deles rebentavam as verduras de uma primavera, e amareleciam depois, para remoçar mais tarde"1. A Lei da SAF é produto de um caminho semelhante: decorre, pois, e se viabiliza por conta das experiências legislativas pretéritas (bem ou mal-intencionadas, ingênuas ou maliciosas, corretas ou equivocadas, iluminadas ou sombrias, conjunturais ou pretensiosamente estruturais). Assim, os erros e acertos promovidos desde a Constituição de 1988, viabilizadora dos adventos da Lei Zico, depois da Lei Pelé e, muitos anos depois, da Lei do Profut, contribuíram, é preciso reconhecer, para iluminação da sombra estrutural do futebol no Brasil. A Lei Pelé, por exemplo, em sua origem, previa que todos os clubes se transformassem em, ou constituíssem uma empresa. Havia, ali, uma falha conceitual incorrigível, pois se partia da premissa de que um comando formal seria condição suficiente para se impor sobre o modelo cartolarial, existente desde o século retrasado. Mesmo assim, não resistiu às forças reacionárias, que souberam turvar as perspectivas transformacionais, mediante a negociação de contrarreforma operada durante a vacatio da própria Lei Pelé, resultando no sepultamento da idealização do clube-empresa. Eis que, mais de duas décadas depois, em 2021, surge a Lei da SAF: a primeira iniciativa, desde sempre, que pretende, a um só tempo, criar, organizar e regular um sistema com os propósitos de recuperar os times brasileiros e contribuir para o desenvolvimento econômico e social da Nação. O objetivo principal consiste na criação de um ambiente regulado em que agentes econômicos, de um lado, e proprietários dos ativos futebolísticos - em geral, os clubes -, de outro, possam se encontrar e entabular negócios que repercutam nos planos educacionais, sociais e econômicos.   Não é outra a finalidade do PDE, consistente em convênio obrigatório a ser celebrado pela SAF com instituição pública de ensino, para promover medidas em prol do desenvolvimento da educação, por meio do futebol, e do futebol, por meio da educação. As medidas podem envolver, dentre outras iniciativas, (i) a reforma ou construção de escola pública, bem como a manutenção de quadra ou campo destinado à prática do futebol, (ii) a instituição de sistema de transporte dos alunos qualificados à participação no convênio, na hipótese de a quadra ou o campo não se localizar nas dependências da escola, (iii) a alimentação dos alunos durante os períodos de recreação futebolística e de treinamento, (iv) a capacitação de ex-jogadores profissionais de futebol, para ministrar e conduzir as atividades no âmbito do convênio, (v) a contratação de profissionais auxiliares, especialmente de preparadores físicos, nutricionistas e psicólogos, para acompanhamento das atividades no âmbito do convênio, e (vi) a aquisição de equipamentos, materiais e acessórios necessários à prática esportiva. Originalmente, o Projeto de Lei instituidor da SAF previa a concessão de incentivo tributário para adoção do PDE, que não se impunha como obrigação. Ao cabo do trâmite legislativo, o Congresso Nacional seguiu outro caminho: tornou-o obrigatório, mas não fixou parâmetros de investimento. De modo que, em situação extrema, uma SAF com receita bilionária pode atender a lei ao empregar um punhado de reais em algum projeto com alguma daquelas finalidades. Não se pretende, aqui, criticar a solução final; ao contrário. Essa é a prática comum nesse país, que enaltece o que poderia ter sido com a intenção de desacreditar o que se realizou e, assim, manter as mazelas estruturais intocadas. De algum modo, essa conduta justifica o fracasso do clube-empresa, proposto nas Lei Zico e Pelé. Cabe, pois, às pessoas que acompanham o futebol, em especial à imprensa especializada, goste ou não do modelo instituído, a função de compreender e esclarecer, com isenção, os movimentos que estão sendo praticados. Para o bem do futebol, do torcedor e do país. E, sobretudo, a função de lembrar que, dentro da Lei da SAF, existe um instrumento, pioneiro, que pode, ou ao menos pretende, servir para apoio à formação de crianças e jovens, que, atualmente, são exportados, com raras exceções, sem a devida formação e conhecimento para construírem carreiras sustentáveis. E cobrar a adoção de projetos condizentes com a realidade e a grandeza do time operado pela respectiva SAF. É isso: pouco se fala da SAF e jamais se investiga o projeto interno de cada uma delas no âmbito do PDE. Aí está um tema que deveria constar da pauta permanente do jornalismo socialmente responsável. __________ 1 Assis, Machado de; Memórias póstumas de Brás Cubas - 1ª ed. - São Paulo: Penguim Classics Companhia das Letras, 2014, p. 55.
O jogo de futebol de domingo passado (14/8/22), realizado em pleno dia dos pais, entre São Paulo Futebol Clube (SPFC) e Red Bull Bragantino (Red Bull), representou, para muitos torcedores tricolores, uma espécie de revelação, motivadora de gritos irados, em redes sociais, contra o jornalista Flavio Prado, que vem afirmando, há tempo, que o time de Bragança - controlado por investidor transnacional - será maior (ou mais relevante do ponto esportivo) do que o tricampeão da Libertadores e do Mundo. Vive-se num país livre e democrático, em que qualquer cidadão, ainda mais um renomado jornalista e professor universitário, pode - e deve - expressar sua opinião. Mesmo que se tratasse de uma ideia eventualmente descabida - e em sua essência não é, sobretudo considerando a figuração de sua proposição, no exercício de sua função -, ele (Flavio Prado) teria e tem legitimidade para expressá-la e defendê-la; e o contraditório deveria se formar de maneira civilizada e construtiva.   A mesma legitimidade que outra jornalista, Milly Lacombe, tem para afirmar, em sentido de certo modo inverso, que clubes de futebol, em especial o Corinthians, deveriam indicar para sua diretoria, em substituição ao sistema eletivo cartolarial, uma junta formada por negras e negros, mulheres, pessoas LGBTQIA+, trabalhadores e trabalhadoras (foi, pelo menos, o que entendi da leitura de seu artigo disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/colunas/milly-lacombe/2022/08/14/corinthians-o-pior-ainda-esta-por-vir.htm). Não se pretende, neste texto, subscrever uma ou outra opinião, ou apresentar uma posição contestatória em relação a qualquer uma delas. O propósito é menor: pretende-se, apenas, apresentar uma posição, a partir de uma imagem (ou fotografia) da situação atual do futebol, e cotejá-la com as perspectivas propiciadas pela Lei da SAF, em contraponto ao secular sistema associativo - e, assim, dialogar com o/a jornalista. Parte-se do atual campeonato brasileiro, que revela um desvio padrão histórico, pela ausência de, pelo menos, quatro (ou mais) times dos mais tradicionais do país, que disputam, atualmente, a segunda divisão nacional, a exemplo de Cruzeiro, Vasco, Grêmio e Bahia. Essa excepcionalidade não escapa ao resultado do final do primeiro turno da série A, conforme posições dos times que o integram: do primeiro colocado, o Palmeiras, ao décimo-primeiro, o Botafogo, todos são ou se tornaram grandes (incluindo o Athletico Paranaense e o mencionado Red Bull). Nas posições inferiores, posicionam-se times que costumam, pelo histórico, lutar contra o descenso ou, quando situados na série B, duelam pela ascensão, invariavelmente transitória. Com o resgate do que se chamava de normalidade, representativa do acesso de, pelo menos, quatro dos seis campeões nacionais que hoje disputam a segunda divisão (a exemplo dos times mencionados parágrafos acima), sobraria, em tese, apenas uma vaga para ser disputada, anualmente, pelos times considerados, neste momento, "menores" - pois outros quatro seriam, também em tese, preteridos e rebaixados. Sob outro ângulo, mais realista, ao se analisar a potencialidade de times que não eram considerados da "elite", como Fortaleza, Ceará, América-MG e Atlético Goianiense, talvez se possa supor que, se tiverem acesso a recursos e financiamentos para investimento na formação educacional e esportiva de jogadores, bem como no desenvolvimento da empresa futebolística, poderão se manter e protagonizar na divisão principal do campeonato nacional. E, assim, empurrar os grandes, endividados e mal estruturados, para baixo, que passariam, então, a lutar pela permanência, no lugar da luta por classificação para campeonatos internacionais ou por títulos nacionais - lembre-se, a propósito, que o SPFC, nos últimos anos, passeou, com frequência, pela zona intermediária, mirando, com maior proximidade, o "Z4" do que a pretensão a título. Ou seja: os rearranjos organizacionais que se confirmam, com a mudança de patamar de Athletico Paranaense e Red Bull Bragantino, além da potencialidade de outros times, indicam o início de uma nova era do futebol brasileiro e o fim da zona de conforto dos times maiorais.   A tradição não deveria implicar a negação evolutiva, característica intrínseca da humanidade. Os times que souberem se aproveitar desta perspectiva realística, protagonizarão os próximos anos - ou décadas -, até que outros dominem as mesmas técnicas e se equiparem, com atraso, aos que partiram na frente - e isso não implica a negação da torcida, do torcedor ou da história; ao contrário. Daí a conexão com a proposição do jornalista Flavio Prado (que coincide, em termos, com a visão do Presidente da Federação Paulista de Futebol, Reinaldo Carneiro Bastos, que afirmou, em evento promovido pelo Fórum Estadão, que o Red Bull integrava a lista dos cinco grandes de São Paulo): este time já tem estrutura, administração, recursos e confiabilidade que lhe permitem se manter, com alguma segurança e previsibilidade, entre os principais do país - em permanente disputa com o próprio SPFC, por exemplo. Por outro lado, clubes tradicionais, endividadíssimos, como Cruzeiro, Vasco e Botafogo, que foram ao fundo do poço, lançaram mão dos instrumentos criados pela Lei da SAF, menos por opção, mais por necessidade, e, ao que tudo indica, colherão os frutos com alguma rapidez. Não porque se socorreram de torcedores abnegados (ou mecenas) ou juntas de idealistas para reconduzi-los; mas, sim, porque, enfim, tiveram que aceitar a falência sistêmica do modelo associativo e impor profundas mudanças estruturais.   Outros, ainda, como o mencionado SPFC, insistem na afirmação da tradição, respaldada em glórias do passado (e numa fábrica de criar notícias e sonhos), para produzir uma narrativa que enfrenta enorme dificuldade para se sustentar - e que não desmorona, no caso desse time, apenas por conta de sua torcida. Assim emerge a dificuldade de enfrentamento da realidade e a consequente adoção de subterfúgios denegatórios. Uns partem para violência argumentativa, expressiva do patrulhamento ideológico que assola o país; outros para soluções utópicas, inviáveis teórica e praticamente; e, ainda, outros para a criação de narrativas fantasiosas, sustentadas pela figura de presidentes carismáticos. A fusão dessas posições ainda prepondera no futebol brasileiro e justifica o atual estado de coisas, que, em uma espécie de ensaio sobre a cegueira, insiste em negar a realidade e acaba por sustentar a irrealidade - ou a utopia. Não fosse o bastante, essa conjuntura ainda incentiva a promoção de ataques às novidades, derivadas de processos evolutivos, como meio de negação dos atrasos representativos de suas visões ou paixões. E, assim, somente assim, justifica-se a ira derivada da afirmação, representativa de determinada opinião pessoal, de que o Red Bull será mais relevante do que o SPFC e muitos outros clubes tradicionais, se estes se mantiverem no atual estado de letargia estrutural em que se encontram.
quarta-feira, 10 de agosto de 2022

O primeiro ano da Lei da SAF

A lei 14.193, de 6 de agosto de 2021, também conhecida como Lei da SAF ou Lei Rodrigo Pacheco, completou, semana passada, um ano. Haveria, assim, motivo para comemoração ou ainda é cedo para compreender a relevância da iniciativa? Antes do enfrentamento da questão, resgata-se, aqui, a experiência de outra iniciativa que transformou o mercado e a perspectiva de captação de recursos e de financiamento de companhias brasileiras. No ano 2000, a Bolsa de Valores de São Paulo lançou o Novo Mercado, consistente em segmentos diferenciados de listagem de ações, que previam, de modo resumido, (i) a adoção de níveis mais elevados de governança, (ii) a imposição de técnicas e instrumentos informacionais resultantes em maior transparência e (iii) o reconhecimento de determinados direitos aos acionistas, em especial minoritários, não previstos na legislação que então vigorava. Apostava-se que a medida atrairia interesse de investidores e financiadores locais e internacionais, que teriam meios adequados para avaliar ativos e quantificar ou projetar riscos e retornos. Sob a ótica das companhias e dos acionistas, também se apostava que a redução da assimetria informacional e a construção do novo arquétipo de governação - com deslocamento de poder ao conselho de administração, órgão essencialmente colegiado, e a abertura de espaços para conselheiros independentes (sem ligação com acionistas controladores) - contribuiria para atração de novos emissores, valorização das cotações de ações e aumento de liquidez. A adesão ao Novo Mercado não era, como ainda não é, impositiva. Aliás, nem mesmo decorre de lei. Após o seu advento, conviveu-se com um (longo) período de marasmo, sem aderência de qualquer companhia, motivando cogitações públicas e doutrinárias, no sentido de que a iniciativa sugerira uma intervenção artificial, desconectada da realidade local. Mas, em 2002, a situação começou a se reverter com a decisão da Companhia de Concessões Rodoviárias de aderir, de modo pioneiro, ao modelo. Atualmente, os três principais níveis de listagem (Nível 1, Nível 2 e Novo Mercado) contam com cerca de 250 companhias e se pode afirmar que não há caso de abertura de capital que se faça fora deles (ou seja, no ambiente convencional). Portanto, a partir de uma iniciativa autorregulatória contribuiu-se para transformação do ambiente mercadológico brasileiro e para afirmação do comprometimento - nem sempre respeitado - com princípios mais elevados de governo e de transparência. Retomando-se o mote deste texto, a Lei da SAF, em apenas um ano, motivou a constituição de, pelo menos, 26 sociedades anônimas do futebol, indicadas abaixo:  Mais importante do que isso, revelou-se a via de salvação - ainda em construção e que enfrentará, sem a menor dúvida, uma série de obstáculos - de grandes e tradicionais clubes, como Cruzeiro, Vasco da Gama e Botafogo. Também parece que a Lei se apresentará como o caminho para reorganização de outros times populares, tais quais Atlético Mineiro e Bahia. Ou para confirmação de um clube que se revela cada vez maior e protagonista, estrutural e esportivamente: o Athletico Paranaense. Para além desses eventos, e para que não se diga que a Lei da SAF surgiu para solucionar os problemas dos grandes clubes - o que não é verdade -, nela times regionais e de menor porte também procuram caminhos para enfrentar crises que, sem ela, seriam irreversíveis. Desse estado de coisas se extrai que, apesar de a hermética casta cartolarial jamais ter se organizado ou reclamado uma solução sistêmica para os times - e torcedores - que, estatutariamente, representa - pois se protege em busca de interesses pessoais ou grupais -, havia uma lacuna legislativa que oferecesse alguma luz para o redirecionamento dos modelos de propriedade e de governação do futebol brasileiro. Mesmo com o seu surgimento, o principal obstáculo para que o esporte se liberte de maneira sistêmica, após mais de 140 anos de encastelamento, ainda se concentra nessa mesma estrutura de interesses que implodiu a atividade e a converteu em um negócio de exportação de jovens (ou de pé-de-obra).  Não se trata - e aqui não se defende, ao contrário - de alienar, a qualquer preço e em qualquer circunstância, a riqueza futebolística nacional, distribuída por cada time, ao primeiro interessado, nacional ou estrangeiro, que se apresente como Messias. Aliás, nem se trata de defender a implementação de projetos de SAF se não houver, antes, em cada clube interessado, uma adequada planificação, que projete onde se está, o que se quer ser, e como e com quem atingirão os objetivos pretendidos. Mas se trata, sim, de reconhecer que o poder político interno de não poucos clubes, de grandes a pequenos, ainda se sustenta nas falácias que construíram o sucateamento da indústria e na formação de um estoque de dívida que supera a dezena de bilhões. Apesar das quase três dezenas de sociedades anônimas existentes no país - número nada desprezível, para o primeiro ano, considerando-se que a CBF conta com aproximadamente 775 clubes profissionais nela registrados -, o principal gargalo para que o novo mercado do futebol siga, respeitadas todas as diferenças, a benfazeja trilha que o Novo Mercado, criado há décadas pela então Bovespa, vem trilhando, ainda reside e resiste, lá, no cartolismo (que nada mais é do que uma faceta folclorizada do coronelismo). Mas que, como tal, não deveria ter espaço na sociedade contemporânea. 
quarta-feira, 29 de junho de 2022

Sobre Rogério Ceni

Este texto não irá passear pela espetacular carreira profissional de um dos melhores goleiros que o país produziu, que também foi o maior goleiro-artilheiro da história do futebol mundial, o maior goleiro da história do São Paulo e um dos dois mais importantes jogadores da história do clube - atrás apenas de Raí. Além de o propósito ser outro, reconheço minha incapacidade de transformar em palavras as magias que Rogério operou em campos brasileiros, sul-americanos ou mundiais, assombrando companheiros, adversários, espectadores e jornalistas. Eu haveria de ser possuído por Borges ou Neruda para sintetizar (ou poetizar) o que ocorreu em jogos disputados, exemplificando, contra o Rosario Central (Morumbi, 2005), o River Plate (Buenos Aires, 2005), o Athletico Paranaense (Morumbi, 2005), Cruzeiro (Mineirão, 2006) e a Universidad Católica (Chile, 2013). Sem falar, é claro, da atuação odisseica que garantiu o tri-mundial, contra o poderoso Liverpool, confronto em que se assistiu a uma das duas defesas mais inexplicáveis da história - a outra, ocorrida em 1970, em que o goleiro inglês Gordon Banks parou Pelé. Esse texto também não pretende analisar a ainda curta carreira de treinador, iniciada, talvez, com certo açodamento, ao assumir o time do qual fora - e ainda é - ídolo inconteste, em momento delicado, política e esportivamente. A pressa para se afirmar na nova profissão contribuiu, na visão deste espectador externo, para que as bases da contratação e a ruptura se passassem de modo insatisfatório, com sequelas para todos os envolvidos.   Mas foi essa pressa que o levou a outro tricolor, o Fortaleza, onde, em combinação com uma estrutura administrativa aparentemente conectada com as necessidades de seu tempo, Rogerio pôde iniciar uma bonita escritura, que lhe rendeu títulos e respeito. O sucesso cearense não aplacou a pressa, que o fez se desdizer e voar para o Rio de Janeiro, para assumir uma missão quase impossível - o esquecimento do treinador português Jorge Jesus, que voltara para seu país após conquistas nacionais e internacionais históricas. Lá sofreu, apesar do título do campeonato brasileiro, um tombo que, no final das contas, fez-lhe maior. Tombar, aliás, não deve trazer vergonha a ninguém; faz parte do processo evolutivo, como se extrai de narrativa que apresenta lição que teria sido proferida a Zumbi dos Palmares: "sem a mandinga, menino, a capoeira é só ginga e pernada. Se você não for malandro, não consegue levantar quando cair no chão... E pode ter certeza, um dia vai ter que levantar, porque todo capoeirista de verdade já caiu um dia"1. Todos realmente caem um dia. Até Pelé caiu. Importam o aprendizado e a superação. A oportunidade de soerguimento surgiu justamente no clube em que experimentara o primeiro tombo e que, paradoxalmente, viabilizara a transformação de um menino determinado em um mito2: o jogador Rogério Ceni. É sobre a sua missão, a partir do reencontro com o São Paulo, de que trata este texto. Rogério, feliz ou infelizmente, não deve ser visto, neste momento, apenas como o (excelente) treinador que é. Trata-se do muro que separa o São Paulo de se transformar em clube-zumbi. Não me refiro, aqui, é óbvio, ao herói popular. A referência, em realidade pejorativa, extraída da série "The Walking Dead", reflete a dramática (e revoltante) realidade clubístico-administrativa do São Paulo (a propósito, ver os artigos publicados neste mesmo espaço, nos dias 83 e 154 de junho). Nesse sentido, ninguém, além de Rogério, neste momento, seria capaz de revelar as mazelas, inclusive estruturais, que afetam um clube que, há alguns anos, conquistou a América e o planeta - e vem se tornando, a um só tempo, motivo de chacota e saco de pancada. Ninguém, além de Rogério, teria - após, lembre-se, a passagem de mais de 20 técnicos desde 2010 -, a força para declarar publicamente que, se mudanças não fossem feitas, partiria para novo projeto e, mesmo assim, fazer a diretoria curvar-se. Ninguém, além de Rogério, poderia enfrenar uma (in)explicável bipolaridade que, também há anos, parece acometer os jogadores são-paulinos, protagonistas, em curtos espaços de tempo, de partidas irritantemente passivas ou extremas do ponto de vista de entrega. Ninguém, além de Rogério, teria coragem para, após uma vitória sobre o Palmeiras, afirmar - com palavras cuidadosas, é verdade - que o São Paulo, sem os diversos jogadores entregues ao departamento médico, não tem time para ser o São Paulo que o foi no seu tempo e disputar, com chances de vitória, as competições de que participa. Ou seja: para reconhecer que o São Paulo se tornou um time de "meio de tabela" - a caminho de algo pior. Ninguém, além de Rogério, tem autoridade para, em suas incontáveis entrevistas quase melancólicas, revelar que o ilusório e maravilhoso mundo tricolor apresentado nas mídias sociais é mais fantasioso que o sonho de Alice. E ninguém, mais do que Rogério, sabe que, em breve, o clube deverá enfrentar uma nova batalha política, liderada por uma oposição mais retrógrada do que a situação - que, se, vitoriosa, sedimentará, talvez de modo irreversível, a filosofia do atraso. Não deve ser fácil para Rogério Ceni, neste momento, ser treinador do São Paulo. As toneladas de concreto do Morumbi pesam sobre os seus ombros. Justamente sobre ele que, olhando-se de fora, parece sofrer, cotidianamente, pela sua intransigência com a falta de comprometimento - e com o erro. Rogério trava, portanto, acho que com consciência, uma batalha muito maior do que a manutenção do time em nível aceitável; a sua missão envolve dignificar, novamente, o São Paulo (e para isso enfrenta os interesses da estrutura cartolarial) e permitir a abertura para um projeto viabilizador do acesso a financiadores - e o distanciamento de um conjunto de coisas que não faz mais sentido no atual estágio do futebol brasileiro e mundial.    O São Paulo nunca precisou tanto de Rogério Ceni como precisa agora. __________ 1 Chalub, Leonardo. Palmares de Zumbi - 1ª ed. - São Paulo: Nemo, 2019, p. 2 Atribui-se o adjetivo, que se tornaria marca, ao jornalista Victor Ernesto Birner. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui.
O jornalista Juca Kfouri escreveu e publicou, em seu blog, carta aberta ao presidente do Congresso Nacional, senador Rodrigo Pacheco, autor da lei 14.193/2021, que instituiu no Brasil a Sociedade Anônima do Futebol ("SAF") e tratou dos instrumentos necessários à formação do novo mercado do futebol. A Carta tem como propósito externar seu inconformismo com a postura do torcedor brasileiro em geral, que desrespeita, em espetáculos futebolísticos, a liturgia de execução do Hino Nacional. Ele afirma, a propósito, que "não apenas ninguém canta, como, ao contrário, nem sequer se faz silêncio em respeito ao Hino". A prática de apresentação de um dos Símbolos Nacionais (formados pelo Hino, pela Bandeira, pelo Selo e pelo Brasão) não decorre de voluntarismo das entidades administradoras do futebol, como se pagassem tributo (ou reverência) pelo direito de explorar a atividade - e, no caso da CBF, organizadora do campeonato brasileiro, da copa do Brasil e da seleção, pela apropriação de cores, bandeira, representação e do próprio hino. A ordem veio do Congresso Nacional, por intermédio da lei 13.413, de 29 de dezembro de 2016 ("lei 13.413"), que reformou a lei 5.700, de 1º de setembro de 1971 (a qual dispõe sobre a forma e a apresentação dos Símbolos Nacionais), para determinar justamente que o Hino fosse executado na abertura de "competições esportivas organizadas pelas entidades integrantes do Sistema Nacional do Desporto". O tema não é óbvio - e, aqui, não se aborda, ainda, a motivação da Carta Aberta, mas o propósito da lei. O futebol em geral e, em especial, a seleção brasileira, simbolizavam, até pouco tempo atrás - e mais do que qualquer Símbolo, o território ou a moeda -, a ligação entre os diversos Brasis. A relação que o torcedor (ou o povo) mantinha com aquelas expressões esportivas, que se incorporaram à cultura e ao patrimônio imaterial locais, justificava, pelo menos por alguns momentos, o abandono de diferenças, por mais inconciliáveis que elas fossem. Nesse sentido, aliás, o cineasta Cao Hamburger mostra, em seu belo "O ano em que meus pais saíram de férias", o dilema de perseguidos políticos que, a despeito de suas convicções, torciam pela seleção de 1970, mesmo cientes de que o sucesso esportivo seria utilizado para afirmar o regime ditatorial que combatiam. Deixando a política, por ora, de lado, fato é que, com o tempo, tal sentimento foi se desmaterializando até que, nos dias de hoje, o torcedor chega a ter raiva da seleção e de seus principais jogadores. A causa, olhando para trás, parece evidente: o sistema construído a partir da Constituição de 1988 propiciou o encastelamento da classe cartolarial, nos clubes e nas entidades de administração, de modo que cada feudo se organizava em seu próprio benefício, sem preocupação com o coletivo - e com a sustentabilidade dos times e do sistema futebolístico. O individualismo exacerbado passou a opor, no plano maior, clubes às federações e confederação, que se tornaram, não sem razão, espécies de vilãs nacionais. Daí, para se iniciar o processo de identificação dos Símbolos com a arrogância e os desmandos centrais - que levaram alguns cartolas à prisão e outros a se refugiarem em seu país -, foi um pulo. Devo reconhecer, em um dolorido exercício de autocrítica, que, a partir do início de 1990, quando reconhecia na CBF a inimiga do meu time, passei a nutrir esse mesmo sentimento, que foi crescendo com o tempo, até o ponto de ... cantar o Hino Tricolor sobre a execução ordenada por lei. Percebo, hoje, que o alvo estava errado. A indignação, que deveria se dirigir às reminiscências de um período anterior à Lei Áurea - o cartolismo como via de dominação da atividade esportivo-econômica -, mirava na imagem que o futebol (involuntariamente) outrora esboçava cimentar: a projeção de Nação. Esse sentimento, infelizmente, ainda é compartilhado por muita gente, talvez a maioria, que, de maneira equivocada, não apenas comete o mesmo ato nos estádios, como, fora dele, rejeita as cores da Bandeira por associá-las aos usurpadores; e que passou a ter vergonha de ser brasileiro ao invés de se orgulhar de lutar para resgatar suas origens.    A lei 13.413 poderia, assim, ter servido como uma tentativa de reconstrução de uma ponte com a representatividade, com a emoção de ver (correndo-se, aqui, o risco do ufanismo), sobre o gramado, alguns brasileiros que romperam o apartheid econômico e se infiltraram no imaginário das classes mais abastadas. Talvez por isso que ninguém, ou quase ninguém, realmente dê bola para que os reflexos da Lei se limitem a uma execução protocolar, abafada pelo desrespeito de torcedores que acreditam vociferar um ideal ou uma moral superior. Por isso que, no lugar da revogação, que, em minha modesta opinião, apenas intensificaria o divisionismo - como querem os donos das estruturas clubísticas -, o melhor caminho talvez fosse, a exemplo do que se promove nos Estados Unidos da América, o enaltecimento da simbologia do Hino, da Bandeira e do próprio Futebol, com aparatos, se não similares aos que se produzem nos eventos daquele país - porque não se trata de copiar -, ao menos concatenados com as realidades locais. E assim, quem sabe, contribuir-se-ia para a construção de um movimento de tolerância e respeito às diferenças, que podem - e devem - conviver sob um mesmo regime democrático.
O professor e economista Luiz Gonzaga Belluzo publicou em sua coluna no Valor, veiculada na edição de 7 de junho, texto intitulado "a tirania dos homens de bem", em que ensina, com o acerto que lhe é comum, que desde a Era do Iluminismo e da Revolução Francesa não se admite aos cidadãos invocar a própria honestidade ou a boa consciência para contestar a universalidade da lei ou os procedimentos legais. Mais do que isso: ele afirma que "seria uma insanidade, no mundo moderno, substituir os preceitos e a força da lei escrita pela presunção de bondade intrínseca de um grupo social ou de um agrupamento de indivíduos". E arremata: "as reflexões mais profundas sobre a ética da modernidade repeliram sempre com energia as tentativas conservadoras de desmoralizar o formalismo da lei em nome da espontaneidade, dos bons sentimentos, da palavra de honra". Tais considerações se encaixam e explicam a situação e o momento de alguns (ou de muitos) clubes e do futebol brasileiro, que permanecem sob o jugo, há mais de 140 anos, de uma classe cartolarial que, quando não se afirma pela força, se preserva pela mesma narrativa despótica característica da tirania contemporânea. No plano do futebol, ambiente em que intelectuais se transmutam em ogros, e ogros em intelectuais, e todos se reencontram com suas personalidades ostensivas quando o tema se esvai, a sociedade e até rigorosos observadores se acostumaram a aceitar o inaceitável, e se tornaram condescendentes com os déspotas, que, não raro, passaram a ser tratados como figuras folclóricas, apesar do descaso (que não faziam questão de simular, aliás) com normas estatutárias e com a lei posta. Porém, a hegemonia dos déspotas-folclóricos e os tempos áureos de alguns clubes se dissiparam com o passamento da maioria daquelas figuras, e com o consequente enfraquecimento político dos poucos pares restantes, que acabaram sendo substituídos por substratos de mesma natureza, mas que se apresentavam (e se apresentam) com discursos moralizantes e pautados na boa intenção. A combinação das características passadas e atuais propiciou a formação dos "clubes-zumbis": expressão cunhada a partir de série disponível na Netflix, denominada Walking Dead (que, por sua vez, foi adaptada de quadrinhos com o mesmo nome). A série se situa em um período pós-catastrófico, ou apolítico, notabilizado pela propagação de zumbis, ou mortos-vivos, que se alimentam dos poucos seres humanos sobreviventes, os quais tentam se proteger em pequenos grupos de resistência, ou de sobrevivência, que convivem em ambiente anárquico - e selvagem -, sem leis gerais e abstratas ou poder central. Os sobreviventes, assim, reduzem suas ações às mais primitivas formas preservativas: a busca pela alimentação e a autodefesa, o que implica uma horrorosa e infindável sucessão de "assassinatos" de zumbis e de seres humanos, que, paradoxalmente, são vítimas dos mesmos atos instintivos. O clube-zumbi, que se identifica, com facilidade, pela sua situação patrimonial e financeira deteriorada pelos anos de cartolismo, inclusive de cartolas-folclóricos, se faz representar, com alguma frequência nos tempos atuais, por gente que aposta num discurso empresarial ético-moralizante, para enfretamento de uma crise que, como ocorre em Walking Dead, somente se resolverá de modo sistêmico e organizado. Aí se encontra, então, a conexão com o texto de Luiz Gonzaga Belluzo: o cartola contemporâneo invoca as boas intenções, as boas consciências e, eventualmente, a própria honestidade - algo que nem sempre é possível afirmar com o vigor das demais - para se diferenciar dos antecessores e para se sobrepor ao passado, mesmo sendo ele fruto e parte integrante da estrutura à qual pretende, discursivamente, se distanciar. Não apenas isso: aposta-se na publicização dos atributos pessoais, que constituiriam condição suficiente para o resgate de um passado quase imemorial, resistente nas lembranças e nos registros históricos. Ocorre que, conforme se extrai do texto de Luiz Gonzaga Belluzo, "no nosso Brasil [e também no futebol] as transições sempre acontecem para impedir que o passado fique no passado. A memória, enquanto reflexão sobre o que passou, vai se apagando depressa, na mesma velocidade com que se rearmam as forças e os interesses que comandaram os grandes desastres e desatinos". Foi assim com a Lei Zico (naquilo que oferecia de transformador), com a Lei Pelé (sobretudo no tocante à criação e à mutilação da ideia do clube-empresa), com a Lei do Profut (que serve para postergamento de obrigações), e assim seria com a Lei da SAF, se a crise sistêmica não tivesse abalado alguns dos times mais tradicionais, que se encontravam tecnicamente insolventes - e que lhe deram a eficácia que não se imaginava possível. Mas o clube-zumbi, que o Estado ajuda a preservar por diversos motivos e diversas vias (isenções, imunidades, parcelamentos etc.), ao invés de buscar uma solução estrutural, ainda insiste em fabricar, com base nas glórias do passado, soluções milagrosas, empacotadas por cartolas "de bem", quando não são eles próprios - os cartolas - a solução. Daí a falta de comprometimento com resultados, com soluções, com os agentes que dependem dos times, com a torcida, com a sociedade e com o país. Daí, também, a atual situação (quase que pós-apocalíptica, como em Walking Dead) do futebol brasileiro. 
O Corinthian Football Club (que deu origem, após uma fusão, ao Corinthian-Casuals) foi (ou é) um clube amador de futebol, de origem inglesa, que contribuiu para mundialização do esporte, a partir de valores éticos e morais que se perderam juntamente com a expansão, sem os devidos instrumentos de controle, do sistema globalizado futebolístico. Os conceitos que o norteavam, aliás, nunca foram tão atuais, mesmo que empacotados, nos dias de hoje, (apenas ou sobretudo) para responder a demandas externas e mercadológicas: amor ao jogo, fair play e cavalheirismo (ou companheirismo). O clube reuniu, na virada do século retrasado para o passado, alguns dos melhores jogadores amadores e chegou a ser considerado o melhor do planeta. Foi contra esse time que o Manchester United sofreu talvez a maior goleada de sua história: 11x3. Sua influência atravessou o Atlântico e o atraiu ao país. Em turnês brasileiras, em especial a ocorrida em 1910, amassou todos os times que encontrou pela frente. O poder que externava incentivou 5 trabalhadores locais a fundar um clube que marcaria a história do futebol: o Sport Club Corinthians Paulista. Dentre os times batidos (e alguns massacrados) pelo inglês naquela passagem pelo Brasil, listam-se, além de cariocas e seus combinados, o AA das Palmeiras, o São Paulo Athletic ("SPA") e o poderoso Club Athletico Paulistano ("CAP"). Os dois últimos já protagonizaram o futebol paulista. O SPA levou o tricampeonato nos anos 1902/1903/1904 - além de vários outros títulos -, e o CAP, de 1916 a 1921, levantou 5 dos 6 títulos disputados, dos quais 4 consecutivos (de 1916 a 1919), façanha jamais atingida por qualquer outro clube. Esses são exemplos de clubes que não souberam perceber as mudanças que abalariam a forma como se entendia e se administrava o futebol, ou que optaram, com alguma consciência, pelo caminho que os levaram para as posições em que se encontram hoje. O CAP, por exemplo, rejeitou os movimentos de profissionalização e se resignou a praticar o esporte no âmbito amador, o que ainda faz até hoje, para deleite de pequena parcela da elite paulistana que o frequenta. A rejeição correspondia, em seu tempo, à atual rejeição à SAF. A constituição de uma SAF, como já se afirmou diversas vezes nesse espaço, não representa um fim em si - como a profissionalização não nivelou todos os times protagonistas das décadas passadas em potências futebolísticas. Com efeito, a simples passagem do modelo associativo para o de companhia, como pretenderam as Leis Zico e Pelé, não configura condição suficiente (se bem que necessária) para solucionamento das mazelas internas e externas de cada e todo clube. A SAF consiste em um instrumento, isto sim, de viabilização de um processo transformacional, que somente se realizará se, em sua concepção, seus arquitetos considerarem, testarem e enfrentarem os seguintes aspectos: o que é o time em questão, o que se quer que ele seja, onde ele está, para onde se quer levá-lo, como se irá, com quem se irá e de que forma serão atingidos os planos fixados nos itens anteriores. Não custa lembrar: o Manchester City, clube fundado em 1880, operou, até 2008, um time irrelevante esportiva e economicamente. Naquele ano, foi adquirido por uma entidade ligada aos Emirados Árabes Unidos, que o alçou ao topo do planeta. É possível que alguns torcedores saudosistas, sobretudo os que se aproveitavam da ineficiência interna, ainda maldigam o sucesso, a formação de um time-seleção e a exposição mundial. Mas a torcida, a sociedade local e, num plano expandido, a sociedade inglesa passaram a se beneficiar direta e indiretamente, sob diversos ângulos, do movimento, que se tornou global, com muito maior intensidade do que se verificava, antes, sob outra forma de detenção da propriedade dos ativos do clube.  No Brasil da SAF, há quem peça para que se desconfie do investidor, mesmo que atenda pelo nome de Ronaldo Nazário, mas especialmente daquele que vier de outra terra, e mais ainda se for bilionário, por supostamente pretender extrair a riqueza local em seu proveito e, quando esgotada, esvair-se. Esse é o discurso do cartolismo, inclusive quando se apresenta empacotado em teses ideológico-políticas, que pretende preservar a sua influência e o poder gerencial do futebol, à conta do torcedor (e do povo). Lembro-me, nesse sentido, de ter mantido, há não muito tempo, correspondência com certo cartola, com passagem por clube e entidade de administração do futebol, que maldizia os modelos dos times europeus pela suposta fragilidade relacional entre proprietário e tradição. A lógica era (e ainda é): se um dia der prejuízo, ele abandonará o time e deixará a torcida na mão. Divergíamos, na ocasião, sobre os supostos malefícios, segundo o cartola, que o investidor do PSG causava ao time. O argumento, na verdade, é de uma superficialidade que nem mereceria consideração, se, nos últimos meses, o mundo não tivesse assistido a duas negociações substanciais, uma na Inglaterra e outra na Itália, envolvendo a saída e a entrada de novos investidores-proprietários, que desdizem, na prática, o que o cartola pretendia afirmar como dogma.    O Chelsea, após ter se tornado um time relevante no plano mundial em decorrência dos investimentos realizados por investidores internacionais, foi vendido, em uma situação extremada (e não desejada por seu dono), por aproximadamente 27 bilhões de reais. A movimentação no plano societário preservou a empresa futebolística e a perspectiva dos torcedores. Da Itália também vem um exemplo interessante e importante: o Milan experimentou anos de decadência, desde a saída de Berlusconi, tendo inclusive sido objeto de negócios malsucedidos, até que um fundo de investimento em "ativos estressados", o Elliott, conseguisse, não sem percalços, organizar a estrutura interna e levar o time, neste ano, ao campeonato nacional que não alcançava desde a temporada 2010/11. Na esteira dessa conquista, a companhia que opera o time foi vendida por valor divulgado de, em reais, aproximadamente 6,18 bilhões. O comprador é outro grupo estrangeiro, o RedBird, que já possuía investimentos no setor esportivo. Pelo que se noticia, o vendedor ainda manterá participação reduzida no Milan e elegerá membros para órgãos de administração - o que parece indicar alguma crença nas projeções futuras do time. Em ambos os exemplos são extraídas lições convergentes, sobretudo se aplicadas ao ambiente brasileiro que, com a Lei da SAF, passou a ter uma moldura regulatória que outros países, como o inglês, não têm: os movimentos de entrada e saída de investidor, se e quando realizados no âmbito de sistemas construídos para oferecer segurança jurídica aos agentes que o integram, não são necessariamente ruins, muito pelo contrário, aos times e, consequentemente, aos torcedores. Deverão, aliás, indicar o início de novos ciclos de investimentos, inclusive na base da estrutura futebolística.   Algo que, no âmbito do clubismo, não se realiza, apesar da insistente mania de associá-lo à preservação da cultura e dos interesses dos torcedores. Não, definitivamente não: o que se opera, na verdade, a cada troca de comando administrativo no âmbito de clubes de futebol - muitos deles transformados em clubes-zumbis -, ao cabo de mandatos eletivos, com raríssimas exceções, é a farra de gastos - e não de investimentos - que levou ao acúmulo de uma dívida da ordem de 13 bilhões de reais.
Toda nova lei passa por um processo (natural e necessário) de compreensão e acomodação, promovido pelos operadores do direito, tanto em âmbito acadêmico como judiciário. Enquanto não são produzidas decisões judiciais em primeira e segunda instâncias, aptas a pacificar entendimentos ou, na pior das hipóteses, a fixar divergências (que permitam ao menos a estimação do risco jurídico e a quantificação do impacto econômico), cabe ao advogado, ao jurista e ao doutrinador, conforme o caso, contribuir, dentro de suas atuações, com a adequada formação da compreensão da própria lei e de institutos nela previstos. Pois bem: em pouco tempo a Lei da SAF encerrará seu primeiro ano de vigência. Desde a sua promulgação, notou-se uma certa perplexidade, sobretudo pela ambição nela contida de revigorar as bases de uma atividade esportivo-econômica que vinha - e ainda vem - sendo jogada na lata do lixo pela casta cartolarial brasileira. Neste sentido, a lei de autoria do Senador da República (e Presidente do Congresso Nacional), Rodrigo Pacheco (PSD/MG), presenteou o país com uma perspectiva histórica - e que, pelos eventos posteriores, poderá se afirmar como uma das mais relevantes atuações legislativas contemporâneas. Aquela perplexidade foi, na sequência, substituída pela empolgação, por ocasião do anúncio da entrada de Ronaldo Nazário em projeto que envolvia - e envolve - o Cruzeiro. Na esteira da novidade, foram divulgados negócios com outros dois tradicionais clubes, Botafogo e Vasco, que fizeram com que não apenas agentes locais, mas também internacionais, percebessem que algo grandioso - nos planos esportivo, econômico e social - estava por vir. E pode mesmo estar. Essas oscilações na percepção do que se está construindo sempre foram - e jamais deixarão de ser - permeadas por manifestações proferidas, de acordo com as sábias palavras de José Francisco C. Manssur e Carlos Eduardo Ambiel (em texto publicado neste espaço), por gente interessada em "fomentar discursos apocalípticos", que se propõe "a fazer o papel de coveiro da SAF, a cada situação natural que imponha novos desafios ao indispensável processo de evolução do futebol brasileiro". O motivo da resignação da dupla de advogados (e doutrinadores) do direito esportivo envolvia a reação de grupos de interesse a uma decisão judicial de primeira instância, de natureza trabalhista, em desfavor da SAF constituída pelo Cruzeiro ("Cruzeiro SAF"), que atendia determinado pleito de reconhecimento de responsabilidade do próprio Cruzeiro SAF por obrigação do clube, a despeito de a Lei da SAF dispor de modo diverso. Com argumentos precisos, os dois demonstraram, em texto que merece ser lido e relido, os equívocos da decisão. Ocorre que, posteriormente à publicação do mencionado texto, adveio nova decisão, também envolvendo o Cruzeiro e o Cruzeiro SAF, em que outro magistrado de primeira instância decidiu de modo contrário a semelhante postulação - beneficiando, assim, nessa oportunidade, o Cruzeiro SAF. Importante: afirmou-se em ambos os casos a existência de um sistema atributivo de responsabilidade, construído pela Lei da SAF, mas, na segunda decisão, além de se reconhecer a natureza especial desta lei, a se sobrepor a diplomas genéricos ou anteriores, também se reconheceu a legalidade do sistema de "modulação" arquitetado pelo legislador. Fato é que, mesmo com o advento dessa decisão, que redireciona o enfrentamento de tema tão relevante no âmbito da Lei da SAF, ainda se conviverá com inevitável instabilidade decisória, ora para um lado, ora para outro, até que se comece a operar certa pacificação no âmbito de Tribunais Superiores. Fenômeno esse, aliás, comum a tudo aquilo que é novo em matéria legislativa. Daí a importância de se abordar um aspecto essencial da estrutura interna da Lei da SAF, que poderá contribuir para o afastamento de equívocos interpretativos, bem como para a formação de uma correta jurisprudência: refiro-me à forma de constituição da SAF e às suas (distintas) consequências. O texto original do PL 5.516/19 ("PL"), de autoria do Senador Rodrigo Pacheco, previa quatro hipóteses constitutivas da SAF: (i) transformação de clube em SAF; (ii) transferência de patrimônio do clube para SAF (ou seja, via drop down); (iii) transformação de empresa em SAF; e (iv) mediante iniciativa originária. Após o devido processo legislativo, o Senado Federal aprovou, por unanimidade, o Substitutivo do Senador Carlos Portinho (PL/RJ), que mantinha a estrutura e praticamente todos os institutos do PL, e inovava em relação a determinados aspectos. Uma das inovações se refere à substituição do conteúdo do supramencionado item (ii), pela seguinte redação: "cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original e transferência do seu patrimônio relacionado à atividade futebol". Essa mudança poderia sugerir a proibição do drop down (operação alcunhada por alguns doutrinadores de cisão imprópria) como via de criação da SAF. Mas não foi isso que se promoveu. Com efeito, o art. 3º da Lei da SAF contempla, fora da lista expressa do art. 2º, uma quarta via constitutiva, representativa, justamente, daquela modalidade que se anunciava na redação original do PL, como se extrai da seguinte redação:   "O clube ou pessoa jurídica original poderá integralizar a sua parcela ao capital social na Sociedade Anônima do Futebol por meio da transferência à companhia de seus ativos, tais como, mas não exclusivamente, nome, marca, dísticos, símbolos, propriedades, patrimônio, ativos imobilizados e mobilizados, inclusive registros, licenças, direitos desportivos sobre atletas e sua repercussão econômica". Deve-se reconhecer, portanto, que a Lei da SAF autoriza, de modo expresso, quatro formas constitutivas (três listadas no art. 2º e uma contemplada no art. 3º); autorização essa, aliás, que foi reconhecida e manifestada na Instrução Normativa DREI/ME nº 112, de 20 de janeiro de 2022. Ao se admitir que a SAF pode ser constituída por cisão (art. 2º, incido II) ou drop down (art. 3º), assume-se, ao mesmo tempo, que, pela diversidade, o regime jurídico que incidirá sobre a operação cambiará em função do caminho adotado. É na Lei das Sociedades por Ações (lei 6.404/1976) que se encontra o conceito de cisão: "Art. 229. A cisão é a operação pela qual a companhia transfere parcelas do seu patrimônio para uma ou mais sociedades, constituídas para esse fim ou já existentes, extinguindo-se a companhia cindida, se houver versão de todo o seu patrimônio, ou dividindo-se o seu capital, se parcial a versão". Para que se opere essa modalidade de constituição da SAF, o clube deverá observar a ritualística prevista na Lei das Sociedades por Ações, que pressupõe: (i) segregação patrimonial; (ii) redução de patrimônio da entidade cindida; (iii) versão do acervo cindido para ao menos uma outra entidade, existente ou criada para esse fim; (iv) sucessão da cindida pela receptora (variando a extensão da sucessão de acordo com as características da operação); e (v) possibilidade de responsabilidade solidária entre cindida e receptora, a depender do regramento dado no ato de cisão e da preservação ou não da cindida pós-cisão.   Ora, é justamente por esses motivos, evidenciadores da fragilização da perspectiva de satisfação de eventuais créditos, que se prevê um sistema protetivo de credores, contido no art. 233 da mesma lei, a evitar que a operação se realize para prejudicar terceiros. Ocorre, porém, que o efeito segregacionista - e, portanto, redutor do patrimônio garantidor de credores - não se opera no drop down (ou na cisão imprópria), catalogado no art. 3º da Lei da SAF. Nessa hipótese, o patrimônio do clube não será cindido e transferido para nova entidade, em relação à qual o clube deixará de ter vinculação societária (e patrimonial); ao contrário: trata-se, isto sim, de uma transferência "para baixo", em que, na partida, todo o patrimônio transferido pelo clube deverá ingressar na SAF, sob a forma capital, subscrito exatamente pelo clube - e que comporá o seu patrimônio. Portanto: não existe separação e redução patrimonial no plano do clube, mas uma mutação contábil, que passará a expressar, no lugar de vários elementos do ativo e eventualmente do passivo (formadores do patrimônio "dropado"), uma participação em outra sociedade: na SAF. Ou seja: troca-se a titularidade direta pela titularidade indireta, via participação societária na SAF, dos ativos do futebol. Não ocorre, portanto, esvaziamento, mas substituição patrimonial. Os credores, no caso, passam a ter, ao invés de ativos distribuídos em várias outras categorias contábeis, as ações de uma companhia investida pelo clube para satisfazer seus direitos. No caso de drop down para constituição de SAF, a proteção é, por determinação legal, mais ampla do que a que se oferece a um credor de uma companhia ordinária que verte parcela de seu patrimônio para formação de outra companhia, porque, somente no caso de SAF, determina-se, como exemplos, que (i) um percentual dos dividendos recebidos pelo clube seja obrigatoriamente revertido para satisfação de obrigações anteriores e (ii) ela, SAF, seja subsidiariamente responsável caso as obrigações não se liquidem em certas circunstâncias e em certo tempo. Daí as falhas verificadas em interpretações ou decisões reconhecedoras da cisão de clube, quando na verdade se opera um drop down, que não funciona como operação redutora do patrimônio de sociedade empresária ou de clube que o promove.   Para concluir, é importante que, na constituição da SAF, não se lancem palavras ou se façam remissões desnecessárias, capazes de gerar confusões interpretativas, onde elas não existem, como as que se verificam, aparentemente, no caso do Cruzeiro (e que talvez tenham motivado o encaminhamento da decisão judicial atribuidora da responsabilidade da SAF por obrigações do clube). Aliás, mais do que isso: ao se afirmar, no art. 1º, parágrafo primeiro, do estatuto do Cruzeiro SAF, que ele se constitui mediante segregação e transferência de atividade do futebol, "em conformidade com o disposto no art. 2º, inciso II, e art. 3º, da Lei da SAF", comete-se, no caso concreto, uma contradição insuperável, de natureza formal, pois a constituição decorre de um ou de outro evento, e não de ambos. E, ao se analisar a ritualística adotada pelo Cruzeiro, não resta dúvida de que se operou um drop down, e não a cisão, na forma da Lei das Sociedades por Ações, que autorizaria, aí sim - e somente aí -, a extensão da pretensão responsabilizadora ao Cruzeiro SAF.
Como pode alguém que gosta de futebol não celebrar tudo de bom que tem acontecido nos últimos meses com o Botafogo de Futebol e Regatas? Os últimos nos vinham sendo de enormes dificuldades para o Time da Estrela Solitária, em face de gestões com todas as características ruins do modelo associativo, que, de mais a mais, não souberam explorar o potencial de uma torcida cujo amor, "ninguém cala". Muito ao contrário, os dirigentes eleitos em processos políticos afundaram o Clube em dívidas astronômicas e o levaram ao ostracismo no contexto das grandes disputas, que foram substituídas por idas vindas à Série B do campeonato nacional. O Glorioso é o time que mais cedeu jogadores para as seleções brasileiras em copas do mundo. O time de Garrincha, Nilton Santos, Didi, Amarildo, Zagallo, Jairzinho e Paulo Cezar Caju é protagonista da História vencedora do futebol brasileiro. Não poderia continuar trilhando o perigoso caminho que vinha seguindo. O Botafogo estava longe de ocupar o lugar condizente com sua grandeza, a bem da justiça histórica com o próprio futebol brasileiro e mundial e flertava perigosamente com um cenário de irreversível insolvência. Eis que então, também em razão do desprendimento de dirigentes atuais, mesmo que também oriundos do modelo associativo - justiça seja feita - o Botafogo teve a coragem de realizar a necessária mudança estrutural. Constituiu a SAF nos moldes da lei 14.193/2021 e permitiu a alienação de ações da companhia recém-constituída em favor de investidor estrangeiro. John Textor assumiu o controle do Botafogo SAF com um cronograma de aporte de recursos que permitiu a contratação de atletas para reforçar o elenco que vinha do acesso da Série B e um plano efetivo de enfrentamento das dívidas, a partir da utilização da ferramenta dos Modelos de Quitação de dívidas previstos na Lei da SAF. Seria justificável acreditar que o início da virada do Botafogo teria resultado, exclusivamente, da capacidade e disponibilidade do investidor para o aporte de recursos financeiros. Entretanto, os fatos mostram que não foi apenas isso. Da mesma forma, também é precipitado constatar que a mudança estaria consolidada, quando, saudando o bom começo, devemos reconhecer que ainda há um longo caminho a percorrer. Ocorre que, John Textor, com a experiência no comando de negócios envolvendo a transmissão de modalidades esportivas populares nos Estados Unidos e participação acionária em equipe que disputa o Campeonato Inglês de Futebol, agregou rapidamente conceitos de Esporte & Entretenimento aos jogos do Botafogo, principalmente aqueles realizados no Estádio Nilton Santos, além de uma profunda mudança nos processos internos de gestão. A combinação entre a montagem de um time competitivo, a retomada da autoestima e da confiança do torcedor e o conceito de que uma arena esportiva deve oferecer uma experiência de entretenimento que vá além dos 90 minutos de jogo resultaram em um dos espetáculos mais bonitos de se presenciar no futebol brasileiro atual: o Nilton Santos lotado e o maravilhoso apoio que os botafoguenses dão ao time, com seus cantos que transformam o jogo em uma ópera popular emocionante mesmo para aqueles que não comungam de suas cores. O conceito do investidor "frio e calculista", que só pensa nos lucros e menospreza paixão que move o futebol cai por terra, e constrange seus ainda resistentes defensores, no momento em que o bilionário empresário norte-americano entra em campo, passeia pela pista de atletismo ostentando a bandeira da Estrela Solitária, visivelmente emocionado com a reação da massa. Como ninguém havia pensado antes na ideia de o time com o nome de Botafogo entrar em campo saudado por candentes lança chamas? Chega a ser daquelas invenções que são tão belas, uma vez que até um pouco óbvias. Quem conhece os conceitos de Esporte & Entretenimento aplicados com sucesso nas modalidades norte-americanas e, cada vez mais, no futebol europeu, sabe que a exploração econômica do negócio não pode prescindir da emoção e da paixão dos fãs. Basta assistir às disputas atuais entre Liverpool e Manchester City na Premier League Inglesa, para se notar o enorme desafio retórico de quem pretenda seguir defendendo que os clubes-empresa não priorizam o bom futebol, os anseios do torcedor apaixonado, a vitória em jogos e conquistas de títulos ou que a substituição do modelo associativo pelo empresarial irá tornar o futebol um "negócio frio", sem o componente emocional. Os fatos se impõem. E nesse ponto contribui para a discussão a ótima série veiculada na HBO com o título "Lakers: Hora de vencer". A série se passa no final dos anos 70 e começo dos anos 80. Mostra o cenário de uma NBA - a Liga Americana de Basquete - muito diferente daquela que o Mundo assiste maravilhado hoje em dia. A NBA daqueles tempos vivia anos de decadência, ginásios sujos e descuidados, muito mais voltados a criar ambientes hostis para adversários do que conforto para o público, atletas despreocupados com o exemplo e as mensagens a serem transmitidas aos fãs, espetáculos esteticamente pobres, enfim, uma Liga triste que só atraia a atenção e a presença dos apreciadores mais fervorosos da modalidade. É triste constatar, mas a NBA daqueles tempos faz lembrar em muito o ambiente soturno e temerário de várias partidas da Taça Libertadores da América ou da Copa Sul-americana de hoje em dia. Mas, isso é tema para outro texto. Voltando à série, o argumento relata a aquisição do tradicional time de basquete de Los Angeles - os Lakers - por um investidor, Jerry Buss, que passa a defender e aplicar conceitos de Esporte & Entretenimento. A compra dos Lakers por Buss não só muda completamente a face da franquia, para além da montagem de uma das equipes mais fantásticas que a NBA já teve - os Lakers de Earving "Magic" Johnson, Kareem Abdul-Jabbar e Cia. levaram ao extremo a alcunha que receberam, de "Show Time", dentro e fora das quadras - mas também, provoca o início de uma revolução na própria NBA, quando, impulsionada pela jovialidade do futuro Gerente Geral David Stern, olha para os Lakers de Buss e passa aplicar suas premissas de organização para toda a Liga. Buss menciona, em diversos momentos, que uma arena esportiva somente será atraente se oferecer ao público, mais do que o entretenimento do jogo em si, opções de lazer antes, durante e depois da subida da bola laranja. "As pessoas quando saem de casa precisam viver uma experiência", diz o novo dono do time de basquete em seus textos ditos na série pelo brilhante ator John C. Reilly, o que vai muito além de presenciar em um evento esportivo, por mais disputado em alto nível que seja. Então, o ginásio dos Lakers passa a absorver e pulsar toda a efervescência da Los Angeles daqueles tempos. Uma casa noturna que funciona não só antes, durante e depois das partidas, mas também, em dias nos quais não havia jogos, serve para tornar a arena esportiva um lugar frequentado por artistas e celebridades. A série mostra momentos em que Buss, conhecido bon vivant, cuida de cada detalhe da boate, às vezes, com mais atenção do que aquela que dispensa, por exemplo, ao processo de escolha do treinador do time. As celebridades que passam a frequentar a casa noturna, criam, então, o hábito de "aparecer" nas primeiras fileiras de cadeiras estrategicamente instaladas à beira da quadra nos jogos. Em dado momento, Buss afirma, ao determinar o enviou de ingressos para toda a temporada ao ator e torcedor fanático Jack Nicholson, que "quem está na arquibancada precisa ver que grandes estrelas também vieram aqui assistir ao mesmo jogo que eles". É a aplicação prática do conceito de experiência, que coloca o torcedor como protagonista e parte integrante do evento, não só um mero expectador passivo. O conceito absorve para o interior da arena esportiva e explora a fixação da população da Meca do Cinema por celebridades. É ou não é uma sacada de mestre? O futuro mostrou o tamanho do sucesso obtido. Além de uma ótima aula sobre gestão do esporte, "Lakers: Hora de Vencer" tem um elenco em grande forma - além de Reily e de Quincy Isaiah, mais que atuando, "incorporando" Magic dentro e fora da quadra, o lendário treinador Pat Riley é interpretado pelo brilhante Adrien Brody de "O Pianista" - a série tem um diretor consagrado que traz uma linguagem de filmagem e fotografia autoral e interessantíssima, além de um roteiro que aborda diversos assuntos fundamentais que se desenvolvem em paralelo à abordagem esportiva. É dramaturgia de grande qualidade. Tal qual o Lakers dos anos 80, o Botafogo SAF de 2022 pode ser a fagulha - com o perdão do trocadilho - do ressurgimento, não só do Glorioso, mas de todo um novo futebol brasileiro, para mostrar que o estímulo à chegada de novos agentes aos nossos times, mais do que o fundamental aporte financeiro, pode contribuir para a implementação de novos conceitos de gestão do espetáculo esportivo, para quem sabe, em breve, tenhamos estádios pulsando de forma tão efervescente como hoje, a torcida do Fogão, consegue fazer no Estádio consagrado com o nome do Gênio Nilton Santos. Sempre que o Botafogo esteve nos seus melhores dias, assim também esteve o futebol brasileiro. Oxalá!
A receita da CBF, oriunda dos times que compõem as divisões dos campeonatos que ela organiza, é marginal em relação aos recursos provenientes da seleção brasileira, que atingiram, no ano de 2021, 84% de toda a arrecadação, conforme aponta o jornalista Rodrigo Capelo. Os 16% restantes distribuem-se em outras linhas de produtos ou serviços e não advêm apenas da exploração daquelas iniciativas. Ou seja, o seu core business tem duas cores: verde e amarela.  Importa anotar, ademais, que, para manutenção em alto nível de sua empresa futebolística, a entidade se aproveita, em convocações, de modo majoritário, de jogadores exportados pelos clubes nacionais, que se aperfeiçoam e concluem suas formações no exterior (sobretudo na Europa). A seleção pouco depende, portanto, conforme o sistema atual, dos jogadores em atividade no país. Os campeonatos que a CBF organiza, sob essa ótica, servem de vitrines para promoção de jovens; são espécies de shopping centers de commodities - veja-se, a propósito, a atualíssima negociação de Marquinhos, mais um talento formado nas bases do São Paulo, em Cotia, que está a caminho do Arsenal. Por outro lado, tais campeonatos não cumprem o papel de fortalecer as estruturas dos clubes e, a partir deles, de criar centros de formação, de inserção e de desenvolvimento esportivo, econômico e social. Esse estado de coisas contribuiu, com efeito, para transformação (i) do Brasil em  exportador de jogadores ainda em estágio de formação - o que poderia não ser um problema se a prática, disseminada entre praticamente todos os clubes, não ocorresse pela necessidade de levantamento de recursos emergenciais para pagamento de dívidas insolúveis, mas, sim, como reflexo de política de geração e formação, capaz de aumentar o fluxo externo sem afetar a estrutura interna - e (ii) dos times locais em meros instrumentos de passagem ao exterior. Daí a revelação que aproximadamente 11% dos negócios mundiais envolvem brasileiros - incluídos, na estatística, contratos de repatriação e negociações de atletas nacionais entre times estrangeiros. Também, a constatação que a falta de identificação com a torcida transforma candidatos a heróis em anti-heróis. Um dos remédios para reversão desse estado de coisas seria a instituição da liga de times, que teria como propósitos zelar pelo resgate, pelo fortalecimento e pelo desenvolvimento da atividade no país e, consequentemente, pela formação de um ambiente pujante e sustentável. Com ela, talvez se passe a adotar o lema reinante no ambiente esportivo norte-americano, no sentido de que times são rivais dentro de campo (ou de quadra), mas sócios fora dele. A liga, ao mesmo tempo, viabilizaria o ingresso de recursos imediatos nos caixas dos cambaleantes clubes brasileiros1. É aí que reside um ponto de atenção, sobre o qual pouco - ou nada - se fala. Veja-se: os clubes sociais, proprietários de empresas futebolísticas, eventualmente representativas de faturamentos que atingem centenas de milhões de reais, beneficiam-se de uma relação inquebrantável com seu público "consumidor", que lhes proporciona - ou deveria proporcionar - renda perpétua. Mais do que isso: tais clubes, que em sua origem tinham finalidades sociais ou amadoras, continuam a gozar de isenções tributárias indisponíveis a outros agentes ou setores da economia. Apesar dessas características únicas, o que produziram à sociedade? Bilhões em dívidas, sucateamento da estrutura patrimonial (com raras exceções) e uma indústria exportadora pautada nas necessidades imediatistas de sobrevivência e nos interesses de intermediários (que faturam, não raro, mais do que os próprios clubes) e dos destinatários europeus. Além, é sempre bom frisar, do aparelhamento da estrutura clubística pela casta cartolarial e seus interesses próprios. Por esses motivos, a imprensa e a sociedade em geral não deveriam perder a oportunidade de lançar e promover o seguinte debate sobre elemento fundamental, justificado pela natureza suis generis do futebol: como se controlará ou fiscalizará a destinação dos rios de recursos que fluirão, em decorrência da liga, para os caixas dos clubes, que, historicamente, evaporam à luz do dia (e na ausência dela, também)? Imagine-se, por exemplo, o caso do Cruzeiro. A cartolagem local, até a chegada de Ronaldo e sua equipe, cometeu a façanha de reduzir um dos mais vencedores times do País em uma massa-falida, sem recursos internos para se soerguer. Corrigindo-me. Não foi capaz de aniquilar um recurso, porque não se apresentou viável durante o reinado: justamente o ingresso do clube em eventual liga. Tivesse ela sido implementada sob o (des)comando da gente que o quebrou, é possível (para não se afirmar inevitável) que as receitas tivessem o mesmo destino que levou o clube a uma dívida bilionária. Sei que cada torcedor ou dirigente dirá: cada um com os seus problemas. Ocorre que o problema, no caso, é coletivo e abrangente, pois toca toda sociedade - e a própria sobrevivência sistêmica do esporte no país. Assim, como muitos cartolas se apresentam como representantes de nações torcedoras e ousam afirmar que seus times pertencem ao torcedor - figura de linguagem que, na prática, pretende preservar o cartolismo -, talvez fosse o momento de se exigir transparência absoluta, permanente e em tempo real a respeito das receitas a alocação de ingressos provenientes, ao menos, da entidade comercializadora dos direitos da liga - que adquirirá, em contrapartida, a prerrogativa de representação e exploração econômica por décadas. Fica aí a ideia, que poderá ser facilmente implementada por cada clube, mediante inserção de campo próprio em seu sítio eletrônico, e acompanhada (e fiscalizada) pelos, como dizem os dirigentes esportivos, "verdadeiros donos" dos times, a coletividade torcedora. __________ 1 E ainda beneficiaria a CBF que disporia de mais opções de jogadores para compor a seleção - e, consequentemente, para transacionar seus produtos.