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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
A curta - porém vibrante - história da sociedade anônima do futebol (SAF) já é, de algum modo, conhecida, direta ou indiretamente, do público e de torcedores brasileiros. O Botafogo, por via de sua SAF, lidera a primeira divisão do campeonato brasileiro e, desde 1995 - quase três décadas! -, tem pela primeira vez chances reais de sagrar-se campeão. Tão ou mais importante do que esse evento, a perspectiva do time - a partir da chegada de investidor qualificado, da concepção de projeto de empresa, de planejamento e da contratação de executivos de primeira linha - passou a ser de construção de uma nova fase de protagonismo. Outro exemplo importante, o Cruzeiro, após amargar longo período na segunda divisão - algo inadmissível para time com tanta tradição -, começou a reencontrar seu caminho, por via, igualmente, de sua SAF (formada, da mesma forma, por elenco de executivos de primeira linha). Verdade que sua posição na tabela não é tão confortável, mas, sobre isso, seu CEO, desde o retorno à primeira divisão, anunciara que, em 2023, o plano seria manter-se nela; e, a partir daí, os sonhos poderiam, nos anos seguintes, passar a ser mais ambiciosos. Vive-se, também, no ambiente da SAF, situações menos confortáveis, como a do Vasco, que, apesar de movimento recuperacional, ainda flerta com o rebaixamento apenas um ano após sua ascensão. Por ali parece que, olhando-se de fora, o processo de adaptação ao novo formato societário e a instituição da nova governação tomam mais tempo do que em outras estruturas de SAF - algo que, aliás, poderá ocorrer em outros casos. Por enquanto, mas apenas pouco mais de dois anos após o advento da Lei da SAF, os projetos de SAF, realizados por clubes de menor ou maior expressão, localizados nas mais distintas regiões do território nacional, já passam de 40, e, pelas movimentações em curso, não tardarão a contabilizar uma cinquentena. Enfim, sob qualquer ângulo, a Lei da SAF, de autoria do Senador da República e Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), transformou o futebol e fez renascer a esperança no resgate de atividade econômica (a futebolística) que, como nenhuma outra em países com as características sociais do Brasil, pode contribuir para a integração das gentes e para o desenvolvimento da Nação. Ocorre que a Lei da SAF passou a ostentar mais um atributo: elemento de conexão e de integração com o Paraguai, país vizinho e integrante do Mercosul. A novidade advém da apresentação, pela Senadora Lilian Samaniego (Partido Colorado), no dia 17 de outubro de 2023, de projeto de lei que cria a Sociedade Anônima do Futebol Profissional (SAFP); projeto este que adota, como referência, a bem-sucedida experiência brasileira. Ademais - e aí as semelhanças se acumulam -, a Senadora afirma, em sua exposição de motivos, encaminhada ao Presidente do Senado Federal, que o futebol, no Paraguai, não é apenas um jogo; trata-se de paixão que une comunidades, fomenta a camaradagem e promove valores fundamentais na sociedade. Mas adverte: para que o futebol siga sendo motor de bem-estar social e de desenvolvimento, é necessário que se construa ambiente adequado à sua prática e gestão. Assim, a SAFP atenderá às necessidades de modernização e profissionalização administrativa de clubes que se dedicam ao futebol profissional e se apresentará como instrumento essencial para que times locais possam competir em ambiente cada vez mais competitivo, sobretudo no plano internacional. O modelo paraguaio, que será esmiuçado em textos futuros, aproxima-se, portanto, do brasileiro, em sua motivação e seu conteúdo. Daí evitar comandos meramente formais que fracassaram por ocasião das Leis Zico e Pelé. A iniciativa tenderá a aproximar os dois países, no plano do futebol. Nesse sentido, as evoluções legislativas e as construções jurisprudenciais brasileiras poderão servir de substrato para eventuais ajustes no sistema paraguaio, observadas as peculiaridades de cada sistema. Além disso, a criação do mercado naquele país poderá viabilizar a extensão de negócios iniciados por aqui, que por lá encontrarão ambiente institucional, em princípio, comparável; e, com isso, induzir o fluxo de atletas, capitais e tecnologias. Ou mesmo a formação de grupos transnacionais, de origem sul-americana. Ainda - mas não menos importante -, o fortalecimento de times deverá, intuitivamente, contribuir para resgate de suas seleções e, assim, para reafirmação regional, perdida com o hiato econômico que separa a América do Sul da Europa. Enfim, a notícia que vem do Paraguai enaltece o acerto brasileiro ao apostar no desenvolvimento do mercado do futebol, com a Lei da SAF, e, ao mesmo tempo, insinua que ela servirá, ao menos nesse ambiente, para construção de um projeto de integração. Ojalá, como se costuma afirmar no idioma de nossos vizinhos, ojalá!
Depois de um longo período de calmaria e conquistas, o Palmeiras voltou a vivenciar um inferno astral dentro e fora dos seus muros, com a elevação da temperatura interna, reveses esportivos, destempero da mandatária, manifestações de ex-Presidentes, escalada no desentendimento com a torcida organizada, agitação nas redes sociais e na mídia palmeirense: a coletividade, cujo lírico histórico de rearranjos cunhou a expressão "acabou em pizza", se depara, a par da pujança atual, com a idiossincrasia da sua liderança e problemas de várias ordens como qualquer outro clube brasileiro, mesmo que aos olhos do grande público possa assim não parecer. Em termos financeiros, o clube, que até então não encaminhou qualquer estudo antecedente de transformação em SAF e sequer aderiu ao PROFUT à época do seu lançamento,  realmente detém situação de equilíbrio fiscal, sendo dono de uma expressiva receita já em vias de alcançar a cifra do seu primeiro "bilhão" anual, contudo, possui um exagerado conjunto de despesas que tem levado suas demonstrações praticamente "ao empate", a propósito, no exercício anterior ao da pandemia, seu balanço alcançou saldo positivo pela alocação até então inédita no ativo dos estoques de material esportivo. É verdade que os fundamentos econômicos do Palmeiras são muito consistentes, traduzidos pelo forte programa de sócio torcedor, por receitas de bilheterias e de premiações, patrocínios, direitos de transmissão e negociação de direitos econômicos de atletas, o último catapultado pelo exitoso trabalho realizado nas categorias de base; ainda assim, embora possa parecer difícil de acreditar, o comprometimento do seu fluxo de caixa é manifesto, fazendo com que o clube necessite de aportes, antecipações ou prorrogação no cumprimento das obrigações, práticas que revelam um "modus operandi" já de longa data conhecido e que é igualmente observado em várias outras associações esportivas do futebol brasileiro, identificando-se aqui a primeira similaridade: como consequência, além da redução da capacidade destes clubes investir, para o mercado suas demonstrações financeiras invariavelmente não são confiáveis, notadamente em face de inconsistências, alocações indevidas, alargamento na interpretação das regras contábeis, alteração ou supressão de rubricas, enfim, na sua maioria são tidas como carecedoras de rigor técnico, sem a observância das melhores práticas. Além do dinheiro, outra questão que se evidencia análoga é o propalado profissionalismo que as associações esportivas igualmente insistem em alardear e dele se vangloriar, mas cujo caráter é visivelmente falacioso: a profissionalização, em verdade, cinge-se apenas aos departamentos de futebol, com a excelência das áreas cientificas, de comunicação e de logística, com os quadros capacitados que os integram, os equipamentos de última geração e as ferramentas sofisticadas, isto é, encerrando-se por aí, tanto para o Palmeiras como para boa parte dos clubes brasileiros. De fato, interna e organizacionalmente, as estruturas de comando e deliberação são precárias, disfuncionais, passíveis de cooptação, imunes a qualquer tipo de fiscalização ou controle efetivo; especificamente em relação ao Palmeiras, muito embora se trate de uma organização robusta e complexa com faturamento de centenas de milhões, não existem instrumentos indispensáveis de governança, vale esclarecer, o clube sequer dispõe de regimentos procedimentais básicos, de um código de ética, de um bom mapa de riscos (não são poucos), de canais de denúncia...    Como se não bastasse, e daí outro aspecto característico de similitude, o conflito de interesses tem sido identificado, seja no Palmeiras como na gestão de alguns dos seus pares diretos, às vezes os guiando no caminho dos "clubes de dono", um sinal retrógrado e muito preocupante. Novamente tratando do Palmeiras, cuida de associação que nem mesmo dispõe de uma Política de Transação com Partes Relacionadas, muito embora a atual mandatária, ainda que negando peremptoriamente a existência de qualquer conflito de interesses, é também a patrocinadora exclusiva do clube, credora de dívida substancial, locatária de um camarote para relacionamento no campo de jogo, proprietária do táxi aéreo que transporta a delegação e os diretores do clube, concessionária do Estádio alternativo à casa onde são mandados seus jogos (Arena Barueri). Vê-se que a fragilidade nos requisitos e práticas de boa governança corporativa é recorrente nos clubes do futebol brasileiro, revelando outro aspecto de identidade, aqui nitidamente danosa, e que resulta muitas vezes em absurdos como o ocorrido recentemente no Palmeiras, quando um grupo de conselheiros (cerca de 10% do CD) encaminhou requerimento oficial à mandatária com pedido de esclarecimentos sobre temas diversos no estrito cumprimento das atribuições funcionais no exercício do cargo, não tiveram qualquer resposta ao pleito de parte da direção e, ao final, foram ainda retaliados, em um inaceitável e perigoso flerte com o autoritarismo. A inadequação se traduziu ainda na recente entrevista coletiva (seletiva) concedida, onde com o diversionismo de costume em suas narrativas, adotou o uso de tom beligerante que culminou com a esculhambação de Ex-Presidentes, vilipêndio à história pretérita e centenária do clube, total desrespeito às suas tradições, desapego ao caráter de pertencimento que só o amor de berço a um clube confere ("se eu sair a equipe cai, antes de eu chegar a alegria era não cair"). O traço comum do egocentrismo e da auto suficiência na gestão dos clubes é outro elemento de semelhança que se observa junto à classe dirigente, levando-a ao individualismo exacerbado, impeditivo por exemplo de sequer terem logrado a superação do debate inicial sobre o "sagrado direito" de um valer mais que o outro, receber mais do que o outro, circunstância que no caso brasileiro culminou com a recente acomodação momentânea das agremiações em dois blocos, ou melhor, em duas ligas, o que para muitos é um retumbante equívoco, na medida em que a consolidação do novo mercado futebolístico brasileiro demanda não só a definição da equação econômica, mas sim a necessidade de uma estruturação completa, com providências diversas (especificamente o desenho do novo formato das transmissões, revisão do produto, transição geracional, inserção no mundo dos games e E-Sports com estratégia de adesão e perenidade, licenciamentos diversos, participação no meio das apostas, ações e licenciamentos conjuntos). O futebol, como se diz, é muito dinâmico, na realidade o futebol é cíclico e assim o Palmeiras não tardará para superar o período sensível, algo que ocorre sempre e com todos, em maior ou menor tempo: mas o que também importa é que a superação dos desafios presentes contemple a necessidade do avanço imediato nas questões relacionadas à governança, sem as quais tanto o Palmeiras como os demais clubes não acessarão com o devido aproveitamento a miríade de oportunidades e um momento tão disruptivo em anos de existência da atividade futebolística, com tantos potenciais afluentes, possibilidades e alternativas para desenvolver o novo mercado.
Nós, brasileiros, herdamos dos colonizadores as práticas da crítica e do lamento. Não se trata de preconceito ou de xenofobia; ao contrário, pois, além de descendente de família que ainda tem raízes ibéricas, vivi por lá algum tempo. No plano político, a tendência ao criticismo se exponencia. Com exceção de aliados, incumbentes costumam ser metralhados pela oposição, a qual, por sua vez, será metralhada pelos outrora metralhados, quando estes assumirem o poder. Em ambiente belicoso, a população, influenciada por intenso fluxo de (des)informação, produzida anonimamente, ecoa ataques que se justificam por motivos muitas vezes patológicos ou pessoais. Nos tempos atuais, quase todo mundo se sente autorizado a debater sobre qualquer assunto; algo que não seria problemático se, antes do debate, debatedores buscassem compreender e estudassem o respectivo tema. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia reguladora do mercado de capitais, tem sido objeto da curiosidade pública - e política -, de tempos em tempos, por ocasião, invariavelmente, de evento externo e extremo. Assim foi, por exemplo, na alvorada da crise que envolveu uma gigante companhia brasileira de varejo. Naquele momento, vozes oportunistas se dirigiram à população em geral (ou a eleitores), com afirmações irrealistas e, em alguns casos, acusatórias, sobre algo que não conheciam e, principalmente, para o que não davam - e não dão - a menor bola. Esta é a realidade: governos, historicamente, não importam as correntes ideológicas, ignoram o papel e a importância da CVM e falham ao prover os meios necessários para que ela cumpra em sua plenitude os objetivos para os quais foi criada, em 1976. Políticos, então, lembram-se dela apenas em momentos extraordinários; e abandonam suas lembranças quando ela deixa de lhes dar ou propiciar (alguma) exposição. A CVM faz mágica com os limitados recursos humanos (em termos quantitativos, e não qualitativos) e financeiros que lhes são dispensados. Aliás, enquanto certas autarquias esbanjam espaços nababescos, ela ainda luta para ter meios adequados de acesso e de transmissão remotos. Não bastasse, é criticada por fatos sobre os quais não é responsável; como se lhe coubesse, seguindo no mesmo exemplo citado acima, auditar condutas de companhias listadas, que passam não apenas pelo escrutínio de auditores internacionais como, e aqui vem um dado relevante, por financiadores, banqueiros, investidores institucionais e empresas de rating. Deixando-se, a partir deste ponto, a crítica da crítica, e passando ao que interessa, o desenvolvimento do mercado de capitais não deveria ser uma opção, mas uma missão de qualquer governo realmente preocupado com o desenvolvimento estrutural, social e econômico. Aliás, é tema de Estado, que não deveria se subordinar a alternâncias partidárias. O país não sairá da sua condição de eterna promessa e, mais relevante, de aspirante a potência global sem o desenvolvimento do seu mercado de capitais, que oferece ao empreendedor, em ambientes desenvolvidos, recursos alternativos aos tradicionais produtos financeiros - que se sustentam, no Brasil, por taxas proibitivas - e, ao mesmo tempo, produtos eventualmente mais rentáveis à população poupadora e alocadora de economias. Com o advento da Lei da SAF, essa perspectiva, em relação à atividade do futebol, deixou de ser especulativa e se tornou um fato. Já circulam, nesse sentido, ofertas públicas lastreadas em receitas futebolísticas ou de notas comerciais, e outras operações deverão, em futuro próximo, expandir o mercado. A CVM não poderia, aí sim, manter-se inerte; em especial pelo fato de que o acesso da SAF ao mercado de capitais deverá incrementar a base de pessoas físicas investidoras, muitas delas (é o que se acredita) novatas e sem experiências pretéritas - e movidas, eventualmente, pela paixão. O Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto de 2023, objeto de uma série de 4 textos publicados nesta Coluna, expressa, assim, a percepção de relevância do tema - e de suas consequências, que já tinham justificado a realização, na sede da autarquia, em novembro de 2022, do 1º Seminário Brasileiro sobre Futebol, a Lei da SAF e o Mercado de Capitais. E, agora, a continuidade do esforço de construção de um ambiente seguro e sustentável, com a realização, no próximo dia 16 de outubro, do 2º Seminário Brasileiro sobre Futebol, a Lei da SAF e o Mercado de Capitais. Nesta empreitada, a CVM não andará sozinha. O evento, realizado pelo IDSA, AASP e Migalhas, e com apoio institucional da própria CVM e da B3, reunirá, mais uma vez, na sede da autarquia, nomes essenciais que atuam em política, nos mercados financeiro e de capitais, em clubes de futebol e em SAFs, além de professores, advogados e reguladores. Como já se afirmou neste espaço, lá na frente, quando o Brasil tiver formado, senão o maior, um dos maiores mercados do planeta, o papel da CVM não poderá ser esquecido; melhor dizendo, ela deverá ser enaltecida, pela responsável e elogiável atuação em prol do desenvolvimento do país.
A importância prática e histórica da iniciativa da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia reguladora do mercado de capitais, consubstanciada no Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto de 2023 ("Parecer 41"), foi apresentada nos dois primeiros textos desta série. O conteúdo da iniciativa começou a ser tratado no terceiro texto e, nesta quarta e última parte, apresentam-se os demais aspectos relevantes abordados pela autarquia. Acesso ao Mercado de Capitais Desde o advento da Lei da SAF, dezenas (sem exagero) de negócios foram realizados no país, desde a singela constituição de SAFs, sem o ingresso de investidores, até operações complexas e sofisticadas, como as que envolveram o Cruzeiro e o Botafogo. Até o momento, o mercado de capitais não teve participação relevante no financiamento de tais negócios ou das atividades desenvolvidas pelas SAFs; mas é uma questão de tempo (talvez, muito pouco) para que isso ocorra. Neste sentido, um capítulo específico do Parecer é dedicado ao "acesso ao mercado de capitais". Nele são indicadas algumas vias de acessibilidade, tais como: (i) abertura de capital; (ii) emissão da debênture-fut, criada pela Lei da SAF; (iii) crowdfunding; (iv) fundos de investimentos, dentre os quais se destacam (iv.i) fundos de investimento em participações - FIP; (iv.ii) fundos de investimento imobiliário - FII; e (iv.iii) fundos de investimento em direitos creditórios - FIDC; e (v) securitização. Importante: trata-se de lista exemplificativa, e não taxativa, cujas modalidades se sujeitam a normas específicas, que deverão ser observadas pela SAF - assim como por qualquer companhia - no âmbito da operação pretendida.      Divulgação de Informação e Suitability Ofertas públicas de SAF apresentam (ou apresentarão) uma característica peculiar, que não se verifica (ou se verificará) em qualquer outra situação: o interesse de torcedor, que não será, necessariamente, um investidor "padrão" do mercado de capitais (isto é, movido apenas ou prioritariamente por interesses financeiros), e poderá estar influenciado, de maneira significativa, por sua preferência clubística. Daí a orientação à SAF e aos assessores a "dedicarem especial atenção à descrição de fatores de risco das ofertas e dos emissores, bem como ao uso nos documentos da oferta de linguagem clara, concisa, objetiva e balanceada na ênfase a informações positivas e negativas, que auxiliem investidores a formar criteriosamente sua decisão de investimento". A CVM, aliás, estabelece que a linguagem de uma oferta pública deve ser serena e moderada, sem conteúdo exploratório da paixão e da relação do destinatário com seu time. Suitability consiste no dever de certificação de que o produto ofertado publicamente se encaixa no perfil do investidor. A resolução CVM nº 30, de 2021, estabelece que os distribuidores de valores mobiliários (de SAF) devem observar (i) a situação financeira, (ii) os objetivos de investimento, (iii) o conhecimento do cliente a respeito do valor mobiliário oferecido e (iv) o conhecimento do risco envolvido. Assim, agentes que atuem na distribuição de valores mobiliários de SAF deverão promover alertar sobres os riscos relacionados ao investimento.  Publicações e Transparência Uma das características do mercado de capitais consiste na busca pela eficácia de normas relacionadas à publicidade e transparência de negócios, atos ou fatos que possam influenciar na decisão de investidores em adquirir ou negociar valores mobiliários emitidos por determinada companhia (inclusive, desde o advento da Lei da SAF, da própria SAF). A fluência da informação, em igualdade de condição, de modo a evitar que agentes atuem com privilégio inadmitido no sistema para aumentar a perspectiva de obtenção de ganhos ilícitos, justifica a atuação de reguladores nas mais diversas jurisdições. A CVM, nesse sentido, reforça que a SAF se sujeita às normas vigentes aplicáveis às companhias abertas, além daquelas aplicáveis exclusivamente a ela, de maneira que, em princípio, são cumulativas. É o caso, por exemplo, do disposto no art. 7º da Lei da SAF, que obriga a SAF, fechada ou aberta, a manter informações em sua página na rede mundial de computadores. Trata-se de "obrigação similar à imposta às companhias de capital aberto por força do art. 14 da Resolução CVM 80"; porém, inconfundíveis. Apesar disso, a CVM entende que as exigências regulatórias possam ser cumpridas por meio da disponibilização em único local e forma, evitando-se redundâncias e custos. A solução pode se estender a outras situações de semelhança (mas deverão, em qualquer caso, ser avaliadas em função do caso concreto). Comunicados ao Mercado e Fatos Relevantes A Resolução CVM 44 trata da divulgação de informações sobre ato ou fato relevante, que consiste em "qualquer decisão de acionista controlador, deliberação da assembleia geral ou dos órgãos da administração da companhia aberta, ou qualquer outro ato ou fato de caráter político-administrativo, técnico, negocial ou econômico-financeiro ocorrido ou relacionado aos seus negócios que possa influir de modo ponderável" (i) na cotação de valores mobiliários, (ii) na decisão de investidores de comprar, vender ou manter o valor mobiliário ou (iii) na decisão de investidor de exercer qualquer direito inerente à condição de titular do valor mobiliário. Ciente de que a atividade desenvolvida pela SAF se sujeita a intensa cobertura midiática e a constante boataria, a CVM não espera que comunicados ao mercado e fatos relevantes sejam publicados a cada evento; mas que a SAF avalie criteriosamente as situações que poderiam ensejar as hipóteses descritas acima e, quando caso, realize a publicação pertinente.   Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE) A Lei da SAF instituiu o Programa de Desenvolvimento Educacional e Social (PDE), consistente em convênio obrigatório, a ser celebrado pela SAF fechada ou aberta com instituição pública de ensino, para promover medidas em prol do desenvolvimento da educação, por meio do futebol, e do futebol, por meio da educação. A CVM entende que - considerando que os recursos destinados ao atendimento do convênio poderão provocar efeitos econômico-financeiros relevantes, sobretudo porque a Lei da SAF não quantifica ou estabelece parâmetros objetivos de quantificação de recursos aplicáveis ao PDE -, a SAF que acessar o mercado de capitais deverá zelar pela transparência em relação aos compromissos assumidos e executados no âmbito do convênio. Deve-se, assim, promover divulgação de comunicado ao mercado ou fato relevante, conforme o caso, a respeito dos convênios celebrados, "indicando, pelo menos, a entidade beneficiária, os motivos da escolha da entidade beneficiária, o prazo do convênio, o volume de recursos que será destinado à beneficiária, o prazo de desembolso e as datas projetadas de desembolso". Ademais, a SAF aberta deverá estabelecer montantes máximos anuais a serem empregados no âmbito do PDE e reportá-los periodicamente, por intermédio do formulário de referência e do relatório da administração. Esses comentários encerram a série dedicada ao Parecer 41, que, pelos motivos expostos, deverá contribuir para formação de um dos maiores mercados do futebol do planeta.   
quarta-feira, 27 de setembro de 2023

A caminho do Morumbi e do grito de campeão

Perseguia-me a pergunta de João, proferida quando tinha uns 7 anos de idade: papai, nosso time nunca será campeão? A resposta, carregada de desconforto, era inevitável: ao contrário, somos os únicos tricampeões brasileiros e o maior ganhador de títulos internacionais; único tricampeão do mundo, de origem brasileira. Ele sabia. E não era sobre isso que perguntava. Queria saber quando gritaria "campeão". Esse diálogo não saia da cabeça do pai quando, no último dia 24, descia as escadarias do metrô, ao lado de Olivia e João, rumo ao estádio do Morumbi, para o jogo decisivo contra o Flamengo. Sim, o São Paulo já havia conquistado o paulista, mas o êxito se passara em período de isolamento social e, talvez por influência paterna, não era considerado, pelo filho, um título redentor. Sonhava com um evento substancial. Pela primeira vez preteriram o táxi (em favor do metrô). E a escolha foi acertada:  durante a viagem, a cada parada em uma estação, novo agrupamento se somava aos torcedores que lá estavam, em cânticos de apoio ao time do coração. O clímax do trajeto se deu quando as portas se abriram na Estação São Paulo-Morumbi. Naquele momento, como se houvesse ensaiado, a horda, em uníssono, começou a entoar o hino, que ecoou pelos corredores da estação, encontrou a malta que seguia adiante e, além de preencher o espaço, invadiu a rua, onde, de lá, se repetia, também em uníssono, a mesma melodia. Voltaram a ver a luz do dia por volta das 13h00. Dia sem nuvens, de temperatura desértica. Só faltavam camelos para fazer a ligação com o estádio. Na falta deles, camelôs vendiam de tudo, em especial produtos de origem duvidosa e comida, muita comida, cujos aromas se misturavam e produziam uma névoa agradável e afetiva - que remetia aos "comeu-morreu", servidos nos anos 1980, ali mesmo, ao redor do Morumbi. A caminhada até o estádio tomou uns 30 minutos. Flamenguistas andavam ao lado de tricolores, em paz. Paz que fez emergir outro episódio, também marcante para o pai. Quando Olivia tinha lá os seus 4 ou 5 anos, a programação futebolística considerava apenas João, 2 anos mais novo; quase um bebê, portanto. Naquela conduta se encontravam, involuntariamente, falta de sensibilidade e machismo, que não poderiam fertilizar. Aliás, a mãe avisou: não vá reclamar, depois, se ela passar a torcer para um rival. Pior, para o rival. O equívoco fora imediatamente redimido (e a lição passou a nortear a revisão de outras condutas, passadas ou futuras). Muitos jogos depois, e com um retrospecto impressionante de vitórias, lá estava Olivia, rumando para sua primeira final. Por volta de 14h, o trio estava sentado, no setor das cativas. O pai estranhou o silêncio da dupla, especialmente de João, menino falante e curioso. A resposta foi desconcertante: estou ansioso, preocupado e com medo. É natural, o pai respondeu. E continuou: sempre terá que lidar com tais sentimentos. Não há problema algum. El Dios, Diego Lugano, também os sentia (como revelou em uma live com o próprio pai). Mas aprenda a lidar com eles. E os supere (preferencialmente). Hoje, em especial - completou - pois o São Paulo tomará o primeiro gol. Mas virará. Minutos antes do apito inicial, João estava ajoelhado, no chão, em posição de reza. Um sinal da cruz, ao final do rito, confirmava a impressão. Uma prática pouco usual e, ao mesmo tempo, comovente. Olivia, ao lado, passou a exteriorizar empolgação. Talvez para encobrir semelhante apreensão. Como também comoveu o choro de ambos após o gol de empate anotado por Rodrigo Nestor, jogador adorado pela família, apesar de criticado e, em certos episódios, massacrado pela tontice coletiva, que costuma se cegar para atletas que jogam para o time, e não para a torcida. Naquele momento, ainda distante do final da partida, uma certeza (agora é fácil fazer tal afirmação) parecia unir o trio: nada ou ninguém tiraria a copa do São Paulo - e a alegria, ainda desconhecida, de ser campeão. Mais, muito mais: a alegria, indescritível, de gritar "é campeão" ao chute insubordinado de Gabi Neves, recusando-se a entregar ao árbitro a bola que estava em seus pés; bola que - e tinha que ser mesmo um uruguaio para entender e sentir isto -, pertencia à torcida, a quem, simbolicamente, Gabi Neves enviou. Campeão, campeão, campeão! Durante uns quarenta minutos essa foi a palavra que João e Olivia mais pronunciaram, como se o restante do vocabulário, ainda juvenil, lhes tivesse escapado. E assim se mantiveram durante o trajeto de regresso, até a mesma estação que desembarcaram na ida: São Paulo-Morumbi. Ali sentiram, porém, a sensação invertida, da força que exalava lá de dentro, proveniente de dezenas de centenas de torcedores que se enlatavam nos corredores subterrâneos. A cena não deixava de ser assustadora: não havia espaço para mais ninguém. Uma  massa compacta se movia, lentamente, de modo inercial. Qualquer faísca, ou melhor, desentendimento, pequeno tumulto ou situação semelhante, ocasionaria uma tragédia. Não haveria para onde correr ou como se proteger (ou aos filhos, alguns muito menores do que Olivia e João). Mas o risco não estava na pauta, ao menos aparentemente. Imperava a maior felicidade, pois era realmente muito lindo ver o São Paulo contagiar e sacudir a cidade. Após meia-hora ou mais na sauna metropolitana, enfim a catraca se abriu e João e Olivia puderam, em segurança, seguir para plataforma de embarque. Enquanto aguardavam a composição, ao som da torcida, que insistia em lembrar que São Paulo era sentimento que jamais acabaria, João e Olivia se viraram para o pai e agradeceram.   Agradeceram por serem são-paulinos. O pai, emocionado por dentro, sem saber o que fazer, lutando para conter as lágrimas, decretou: hoje é noite de festa, de hamburguer, batata-frita e o mais calórico dos milk-shakes. Bora!
Olivia e João foram acordados por volta de 03h30min. O encontro com a torcida, que seguiria no mesmo voo com destino ao Rio de Janeiro, fora fixado para 04h30min, em Cumbica. Antes de partirem, o pai sentiu falta da cédula de identidade da filha. Após alguma apreensão, ela se lembrou: estava com a mãe de uma amiga, com quem viajara dias antes. Era madrugada, ela estaria dormindo. O que fazer? O passaporte! O avião decolou no horário marcado. Por volta de 07h30min, pousou na pista do Galeão. Do aeroporto, deslocaram-se para o restaurante Fogo de Chão, situado na antiga sede do Botafogo. Ali se reuniria parte das pessoas que planejava invadir o campo do adversário. Serviu-se o café da manhã, às 10h: pão de queijo, polenta frita, coração de galinha, linguiça, cinco cortes de carne, outras frituras, farofa de ovo e uma respeitável mesa de salada que continha quase tudo, menos salada. A comilança se estendeu até 12h45min, horário marcado para partida dos ônibus. João e Olivia entraram no primeiro, que abriria alas ao Maracanã. O pai, um pouco apreensivo, notou que a prometida escolta policial era apenas uma promessa. Mas se ofereceu uma brilhante solução: o fechamento das cortinas, para que não se percebesse, de fora, que dentro reuniam-se torcedores provenientes da capital paulista, todos, sem exceção, vestidos discretamente com variações do uniforme tricolor. Sim: entrariam em território desconhecido, em caravana, com cortinas fechadas para despistar a preferência clubística, apenas com a proteção de SP. Poucos metros após a iniciação do trajeto, o motorista errou o caminho. Mas deu um jeitinho, com uma marcha à ré em via de difícil recuo, curva e em situação de pouca visibilidade. Todo mundo erra. Não havia, ainda, motivo para ilações. Vida, ou melhor, caminho que segue. A aproximação do destino se revelava pela aglomeração de pessoas vestidas de rubro-negro, mais ou menos interessadas no esquisito comboio que se fechara às belezas naturais e arquitetônicas da cidade. Nas imediações do estádio, o disfarce caiu e a presença de invasores tornou-se motivo de atração. O motorista, incumbido de despejar seus passageiros em determinado ponto protegido, ao lado do portão de acesso, empreendia caminho que, visualmente, exceto para ele, se distanciava do Maracanã. Pior: que seguia por vias cada vez mais estreitas e tomadas por flamenguistas. Diante de uma rua mais larga (talvez uma avenida), de mão única, que, aparentemente, levaria para longe do estádio, o ônibus parou e, por ali, permaneceu inerte. Os representantes da empresa promotora da viagem - e o próprio motorista - não sabiam o que fazer. A pior das ideias surgiu de alguma mente suicida: seguir, ou melhor, retornar a pé, entre os torcedores rivais. Afinal, as principais torcidas uniformizadas eram amigas e haviam anunciado, como se dispusessem de poder de polícia, que haveria paz. Sim: estava garantido o direito de ir e vir com camisa do time oponente no território do adversário, pelas leis das arquibancadas. Sozinho, o pai não teria hesitado. Até teria apoiado, pois seria mais uma história para contar. Mas com Olivia e João? Pensava: seria motivo para divórcio? E sem compartilhamento de guarda? Não havia alternativa. Marchariam, não como cidadãos franceses ao som da Marselhesa; mas como são-paulinos, pois ali estavam para apoiar, porque São Paulo é sentimento, que jamais acabará. Eis que, assim como o Mar Vermelho se rendeu a Moisés, a torcida rubro-negra, milênios depois, também se abriu aos torcedores tricolores, que, em fila pouco organizada, caminharam entre linhas flamenguistas. Os cariocas, uns maiores do que os outros, para estupefação geral, ofereciam as mãos para cumprimentos, faziam comentários respeitosos e posavam para fotos conjuntas. Naquele trajeto de aproximadamente 20 minutos, o pai se sentiu mais seguro do que em suas andanças pela Av. Faria Lima (não se trata de hipérbole pois, nesta via, sempre haverá alguém de olho no smartphone alheio). Enfim, chegaram ao portão destacado à torcida visitante. Olivia percorreria pela primeira vez a sinuosa rampa de acesso; João, a segunda - meses antes, assistira o massacre do Fluminense sobre o ... Flamengo, por ocasião da final do campeonato carioca. Dentro do estádio, uma experiência catártica se prenunciava. Três mil são-paulinos cantavam e vibraram, calando sessenta mil rivais (ao menos aos seus ouvidos), e não pararam até o final do jogo, momento em que, mantendo a vibrante cantoria, presenciaram o abandono coletivo da maior torcida do país. O pai não tinha palavras e jamais terá para verbalizar o sentimento que se revelava nos olhos de João e Olivia.  Por volta das 19h, os são-paulinos foram autorizados a deixar o estádio e seguiram ao ponto de encontro, para encaminhamento ao ônibus. O local, uma espécie de entroncamento, talvez fosse o mais populoso das imediações. Uma beleza: pessoas iam para lá e outras voltavam para cá, correria, tensão no ar, cavalaria da polícia em movimento de dispersão e resquícios de gás pimenta, inalado pela primeira vez pela dupla juvenil. Não muito distante dali, avistava-se o ônibus, com suas janelas obstruídas por cortinas desbotadas. Sim, o motorista encontrara o local que, pela tarde, parecia inalcançável. De lá, partiu-se para o Galeão. Minutos depois, uma parada inesperada. Desta vez, o condutor não estava perdido. Apenas aguardava o deslocamento do ônibus do time do São Paulo, que também deixava o Maracanã e se dirigia ao aeroporto. Por volta das 21h15min., Olivia e João contestaram a autoridade paterna e se postaram diante do McDonalds. Diziam que era noite de festa e era proibido proibir. Ganharam o debate. Aliás, conheceram, naquele lugar, talvez a única loja da rede que serve fast food em ritmo de slow food. Naquele momento, tudo seria bom. E foi realmente muito bom comer e comemorar uma vitória histórica ao lado de outros queridos amigos, que participaram da saga. Com quase uma hora de atraso, enfim, se iniciou o voo de regresso. Já passava das 2h00, e de banho tomado, quando João e Olivia fecharam os olhos e dormiram. Com o que terão sonhado? Possivelmente, com as tão desejadas glórias do futuro. Não, do presente.
A importância prática e histórica da iniciativa da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia reguladora do mercado de capitais, consubstanciada na divulgação do Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto de 2023 ("Parecer 41"), foi apresentada nos dois textos anteriores desta série. Passa-se, agora, a abordar seu conteúdo.  Constituição e formação do capital social da SAF A CVM reafirma no Parecer 41 a constatação feita nesta coluna desde o advento da Lei da SAF e igualmente formalizada no livro Futebol, Mercado e Estado - Projeto de Recuperação, Estabilização e Desenvolvimento do Futebol Brasileiro: Estrutura, Governo e Financiamento1, no sentido de que são previstas quatro vias constitutivas da SAF: três delas listadas no art. 2º (que trata justamente de constituição) e a quarta, esparsada, no art. 3º. No primeiro bloco reúnem-se (i) a transformação de clube em SAF, (ii) a cisão de patrimônio relacionado à atividade futebolística de clube para destinação à formação do capital social de SAF e (iii) a constituição originária de SAF, promovida por qualquer pessoa ou fundo de investimento. A quarta via envolve a utilização e transferência de elementos ativos (e eventualmente passivos) do clube para integralização de capital subscrito (ou seja, um aporte) em outra sociedade (uma SAF); ato que não implica redução patrimonial do próprio clube (apenas a mutação de contas contábeis, à medida em que o clube passa a titularizar, indiretamente, via SAF, patrimônio que, antes, detinha diretamente). Aliás, os principais casos de SAF ocorridos até o momento, dentre os quais de Cruzeiro, Botafogo e Vasco, adotaram esse caminho, costumeiramente chamado de "drop down". O Parecer 41 reforça, ademais, a necessidade de verificação da realidade patrimonial envolvida na versão ou transferência para SAF, mediante a obrigatoriedade de avaliação do patrimônio por três peritos ou empresa especializada, conforme regra geral prevista no art. 8º da li 6.404/76. Neste sentido, ademais, os assessores que participarem de projeto de constituição de SAF são orientados a observar as normas contábeis aplicáveis e a contratar auditores registrados na CVM, para avaliar o patrimônio integrado à operação. Ações de emissão da SAF De maneira bem simplista, uma companhia pode emitir ações ordinárias ou preferenciais, que se distinguem "conforme a natureza dos direitos ou vantagens que confiram a seus titulares". A Lei 6.404/76 proíbe a emissão pela companhia aberta de mais de uma classe de ação ordinária. A proibição não atinge a companhia fechada. Já a Lei da SAF admite, ou melhor, determina a emissão de ação ordinária A, para subscrição exclusiva pelo clube que a constituir, sem distinção entre a SAF aberta e a fechada. Caso a SAF emita ação ordinária para outro grupo de acionistas, deverá, necessariamente, criar uma classe distinta. Ou seja: cria-se uma estrutura especial para SAF. Essas proposições não são antinômicas e a CVM reconhece a possibilidade de compatibilização, enquadrada como "exceção autorizativa à regra geral, de natureza proibitiva". A autarquia estabelece, assim, e com razão, que a SAF que se registrar como companhia aberta (i) deverá (como já indicado acima) contar com uma classe específica de ação, denominada A, e (ii) poderá emitir outras classes de ação ordinária para subscrição por outros tipos de subscritores, com ou sem voto plural. Ainda sobre as ações de emissão da SAF, o art. 2º da Lei da SAF estabelece direitos especiais aos titulares de ações classe A (que serão, necessariamente, os clubes, sendo vedada a negociação dessas ações com terceiros), as quais, "portanto, não estarão admitidas à negociação em bolsa ou mercado de balcão". Com isso, o clube poderá vetar, a depender do tamanho de sua participação no capital social da SAF, dentre outras matérias, (i) a alteração de denominação, (ii) a modificação de signos distintivos do time e (iii) a mudança de sede. A Lei da SAF também autoriza a inclusão, no estatuto da SAF, de outros direitos, não previstos no texto normativo, inclusive de veto sobre situação não disposta na própria Lei. O Parecer 41 reafirma essa possibilidade (e não poderia ser diferente, pois inexiste ilegalidade), mas alerta: a CVM poderá, previamente à concessão de registro de emissor ou à oferta pública de valores mobiliários, analisar o conteúdo e, caso se verifique a violação de lei ou de normas regulatórias, exigir a reforma estatutária. Por último, mas não menos importante, o Parecer 41 também é inequívoco no sentido de que não há restrição à emissão pela SAF de uma ou mais classes de ações preferenciais e à titularização pelo clube, ao mesmo tempo, de ação ordinária classe A e de qualquer outra classe "comum" de ação ordinária.  Controle e governança A SAF se sujeita à Lei da SAF e, em tudo o que não for expressamente tratado naquela lei ou não for incompatível com o seu conteúdo, à Lei 6.404/76. Assim, o legislador, no âmbito dessa composição, seguiu o caminho da segurança jurídica: ao invés de criar um novo tipo societário autônomo, preferiu aproveitar a matriz bem estruturada e testada (doutrinária e jurisprudencialmente) das sociedades por ações e, a ela, incorporar os conceitos e normas aplicáveis exclusivamente à SAF, conferindo-lhe, portanto, a categoria de subtipo. Parte da aplicação exclusiva envolve a proibição (i) do acionista controlador de SAF de participar do capital de outra SAF ou (ii) de acionista não controlador de SAF, que detiver 10% ou mais do capital votante ou total de uma SAF, de se manifestar com voz ou voto em assembleia de outra SAF. Em tal sentido, a CVM orienta a SAF cujos valores mobiliários sejam admitidos à negociação em mercado a instituir mecanismos que contribuam para verificação do cumprimento de tais normas, como a implantação de sistema interno de acompanhamento e o envio periódico de declaração de conformidade pelos acionistas da SAF. Ainda no tocante à governança, o Parecer 41 reforça que, mesmo não se fazendo menção expressa na Lei da SAF, certas normas, contidas na lei 6.404/76, devem ser observadas (em decorrência, como visto acima, da estrutura legislativa), tais como: (i) vedação à acumulação de cargos de presidente do conselho de administração e diretor-presidente, observada a exceção às companhias de menor porte; (ii) participação necessária de membro independente no conselho de administração; (iii) envio regular de formulário de referência; e (iv) elaboração de comunicados ao mercado ou fatos relevantes, na forma da própria lei 6.404/74 e da resolução CVM n. 44, de 23 de agosto de 2021. Os demais temas tratados no Parecer 41 serão abordados na quarta e última parte desta série de artigos. __________ 1 Castro, Rodrigo R. Monteiro de; Manssur, José Francisco C. - São Paulo: Quartier Latin, 2016.
Na Parte I da série, publicada nesta coluna, tratou-se da importância prática e histórica da iniciativa da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia reguladora do mercado de capitais, consubstanciada na divulgação do Parecer de Orientação CVM 41, de 21 de agosto de 2023 ("Parecer 41"), no qual consolida-se o "entendimento da Autarquia sobre as normas aplicáveis às Sociedades Anônimas do Futebol (SAF) que desejarem acessar o mercado de capitais para financiar suas atividades". Desde a sua criação, em 1976, a CVM havia divulgado 40 pareceres que tratavam, todos, com apenas uma exceção, de temas inerentes a relações societárias, posições de acionistas, condutas internas das companhias ou de acionistas, demonstrações financeiras e outros aspectos diretamente derivados das leis 6.385/76 e 6.404/76. Nenhum abordava, nem de perto, determinado setor econômico ou a possível formação de novos mercados (ou ambientes ou formas de operar no mercado de capitais) em decorrência de tecnologias e práticas inovadoras. O Parecer de Orientação CVM 40, de 11 de outubro de 2022, foi a iniciativa que mais se distanciou das 39 anteriores e mais se aproxima (ou abre a porta) para a empreitada que lhe seguiu, objeto deste texto. Naquele parecer se apresentaram proposições orientativas a respeito de criptomoedas e suas interseções com o mercado de capitais. A divulgação do Parecer 41 se revela ainda mais fascinante pelo fato de que, conforme buscas realizadas desde o seu advento em sítios eletrônicos de reguladores do mercado de capitais de mais de vinte países, banco centrais, times de futebol estrangeiros que operam sob a forma de sociedades empresárias e entidades de administração do esporte (FIFA, CBF, etc), não se localizou, até o momento, nenhuma iniciativa similar. Talvez se diga, assim, que não havia necessidade de o regulador local preocupar-se com o tema. De forma alguma. A proposta de criação da SAF e do mercado do futebol (desde o surgimento do livro Futebol, Mercado e Estado - Projeto de Recuperação, Estabilização e Desenvolvimento do Futebol Brasileiro: Estrutura, Governo e Financiamento[1] e, na sequência, a iniciativa do PL 5.082/16, apresentado à Camara dos Deputados pelo Deputado Federal Otavio Leite), foi recebida com resistência e incredulidade - e, não raro, em tom de chacota. Contam-se nos dedos as pessoas que acreditaram ou apostaram em sua viabilidade. Aliás, afirmava-se em diversos meios (acadêmico, jurídico, financeiro e político, dentre outros) que o sistema jurídico já catalogava diferentes tipos societários que  poderiam ser adotados por qualquer clube que pretendesse constituir ou transformar-se em empresa e, a partir do ato de constituição ou transformação, que o mesmo sistema já viabilizaria o acesso ao mercado de capitais, a meios de reestruturação de passivos, a técnicas de governo e controle interno, além das demais matérias que viriam a ser tratadas na Lei da SAF (exceto a tributária). A pragmática desdizia, porém, o reacionarismo. Simples: se o sistema já oferecia, então, todas as soluções, por que não se formava um mercado no País? Por que clubes não buscavam soluções para seus endividamentos no mercado financeiro ou de capitais? Antes, por que não se promoviam constituições de empresas para operar o futebol? Por que investidores, de distintos perfis, não consideravam ou, quando ousavam considerar, fugiam do Brasil para países menos relevantes e sem tradição? Por que os clubes brasileiros acumulavam dívidas bilionárias e deixavam de cumprir seus papéis de condutores do desenvolvimento esportivo, social e econômico? Porque faltavam (i) política pública (que ainda não se manifesta de modo inequívoco a despeito da Lei da SAF, da Instrução Normativa DREI/ME 112, de 20 de janeiro de 2022, e do Parecer 41) e (ii) um conjunto normativo que oferecesse segurança ao proprietário do ativo futebolístico (o clube) e ao provedor de capital (instituição financeira ou investidor). É nessa perspectiva que se insere o Parecer 41.      De modo elogiável, a CVM se antecipou ao mercado, que está agitado com os eventos protagonizados por times como Bahia, Botafogo, Vasco, Cruzeiro, Atlético-MG e Coritiba (e com outros projetos em curso), que simbolizam, pode-se apostar, tão somente a pontinha do iceberg do ambiente em formação, e expressou sua orientação aos agentes e demais integrantes do sistema sobre matéria que, não se tem como negar, insere-se em sua competência. Projetam-se, atualmente, novos produtos, fundos de investimento, operações híbridas com emissão de dívida para financiamento de aquisição de SAF, o primeiro IPO do país e outras iniciativas que se sujeitarão ao poder fiscalizatório e sancionatório da CVM; de modo que, prudencialmente, cumpre-se a missão de evitar a ocorrência de condutas ou eventos indesejados que obstaculizem o processo de desenvolvimento do mercado de capitais e do país. Portanto, assim como já não se concebe um ambiente futebolístico sem a Lei da SAF e a SAF, o Parecer 41, com o tempo, deverá ser reconhecido e festejado por simbolizar um ato pioneiro que terá contribuído para viabilizar o acesso a capitais que, desde a origem do esporte no país, jamais ousaram chegar perto de dirigentes ou de seus clubes. _________ 1 Castro, Rodrigo R. Monteiro de; Manssur, José Francisco C. - São Paulo: Quartier Latin, 2016.
quarta-feira, 30 de agosto de 2023

A caminho do estádio do Morumbi

Não era um dia comum. Era dia de Majestoso, no Morumbi. Um enfrentamento que transcende a razão. Uma espécie de juízo final, que opõe o bem ao mal. Harry Potter a Voldemort (a referência se deve ao apreço que os personagens mirins que serão apresentados abaixo nutrem por aquela história). E não era um Majestoso ordinário: semifinal de Copa do Brasil; o jogo de volta, que se iniciaria com placar desfavorável ao São Paulo.  Expectativa e ansiedade dominavam a casa. Logo cedo, antes de partirem para escola, Olivia e João certificaram-se com o pai de que a logística estava organizada para o confronto da noite. Uma jornada cotidiana de estudos os separava, portanto, de evento tão extraordinário. Por volta do horário marcado, ambos chegaram ao escritório do pai, na Av. Faria Lima. Ponteiros indicavam 17h15min. Cedo, mas nem tanto: a bola começaria a rolar às 19h30min. Nos grupos de mídia social circulavam notícias de trânsito e paralisia nas principais vias de acesso, obras em corredores de via rápida e certa apreensão com o tumulto ao redor do estádio. Havia folga, porém, para vencer o percurso. Partiram. No ponto de táxi, não havia carro disponível. Os aplicativos não ajudavam: giravam, giravam e não localizam disponibilidade. Uma unidade, em trânsito, parou diante do farol vermelho. João a abordou e, para alívio do trio, aceitou a corrida. Morumbi, anunciou o pai. Pelo corredor da Francisco Morato, ele complementou. O motorista discordou e informou que obras obstaculizavam o trânsito. Com a autoridade de quem rodava há três décadas na praça, pediu confiança e afirmou que faria caminho mais célere. Não era um bom sinal. Poucas quadras adiante da partida, na própria Av. Faria Lima, diante do Clube Pinheiros, o carro quebrou. Pai, filho e filha desceram com a esperança de localizar novo veículo. Mas não havia, por ali, ponto à vista. Pior: centenas de carros se acumulavam, praticamente imobilizados, em ambos os sentidos. Renovou-se, então, a esperança no aplicativo, que insistia em rodar sua inteligência artificial, sem encontrar a solução. Eram 17h45min. Ainda havia tempo. Um táxi livre surgiu, quase como miragem no oásis. Ou não. O motorista informou que buscaria um cliente nas cercanias do Parque Alfredo Volpi, localizado na primeira terça parte do destino. Já era alguma coisa. Alguns quilômetros seriam vencidos. Todos entraram, com falso alívio. Faltavam 5 minutos para 18h e o avanço não passava de 50 metros. Olivia propôs que trocassem os pneus pelas pernas. O pai hesitou. Para subir uma montanha ou fazer uma trilha, seria o primeiro a apoiar; mas, ali, na cidade, após um dia de trabalho e com vestimentas inapropriadas, não. João ecoou a proposta. O pai cedeu. A caminhada se iniciou com algum entusiasmo: torcedores que seguiam o mesmo destino, pela Av. Cidade Jardim, buzinavam ou gritavam "tricolor" para a família, em especial à filha e ao filho, vestidos com a camisa do Tricolor. Bem que poderiam oferecer uma carona, dizia o pai. Eis que um obstáculo inesperado se apresentou: a travessia do Rio Pinheiros. De carro, como sempre se fazia, era moleza. A pé, um desafio desumano - e que não se supunha. A vida parecia integrar um jogo eletrônico, que poderia ser dizimada por movimentos frenéticos de veículos, em distintas velocidades, insensíveis aos pedidos de compreensão de 3 invisíveis pedestres que pretendiam, apenas, passar de uma calçada esburacada a outra, em dois pontos separados pelo rio. Por volta de 18h20min, enfim, chegaram à margem oposta, após uma brevíssima pausa no meio da ponte Cidade Jardim, para apreciação da nervosa imagem que se projetava pela Marginal, que começava a se iluminar com estáticos focos vermelhos em toda sua extensão. Retomou-se a caminhada rumo ao Templo Sagrado do futebol pela Av. dos Tajurás. Algumas centenas de metros adiante, Olivia e João acusaram vontade de ir ao banheiro. Por sorte, estavam diante de uma farmácia. E de um ponto de ônibus. Ali estava a solução! Após o aliviamento das necessidades, subiriam todos num coletivo. O primeiro a passar dirigia-se ao Palácio do Governo. Perfeito. Mas os dois continuavam no interior da loja. O segundo, para Av. Giovanni Gronchi. Melhor ainda. Mas o pai ainda restava solitário. Quando o terceiro se apresentou, o destino era o Butantã. Entraram, os três, mesmo assim. O ônibus partiu. Um breve diálogo com o motorista revelou que a decisão fora equivocada. O pai pediu para saltar no ponto seguinte, quase na trifurcação de Rua Eng. Oscar Americano, Av. São Valério e Av. Lineu de Paula Machado. Sensibilizado com a apreensão familiar, o motorista autorizou a descida, pela porta da frente. Renovavam-se, ali, as alternativas: aguardar outro ônibus ou continuar a pé (o que implicaria a superação de subidas e descidas íngremes, realmente íngremes, até o destino final - e com menos tempo pela frente). O pai foi vencido, mais uma vez: retomariam a marcha. Mas, antes, pediu para aguardarem alguns minutos, esperançoso de que outro ônibus os carregasse. Uma moça, plantada no ponto, ouviu o diálogo e, de modo cordial, avisou que as linhas que paravam por ali não subiam ao estádio. Teriam duas opções: retroceder ao ponto de origem ou prosseguir e aguardar no ponto seguinte, ao pé da ladeira. Voltariam a andar, como se fossem pagadores de promessa, que se deslocam de São Paulo a Aparecida; ou melhor, no caso, ao Morumbi, para, também no caso, provar a convicção tricolor. O relógio não colaborava: já eram 18h40min. Foi quando um veículo de passeio de grande porte estacionou ao lado do ponto. A janela do passageiro se abriu e um homem, vestido com a camisa do São Paulo e com sotaque carregado, ofereceu carona. Entre as lembranças de recomendações recebidas na infância de jamais aceitar ofertas semelhantes de estranhos - repetidas aos seus próprios filhos - e a perspectiva da caminhada (além da intuição paternal), os três se acomodaram, com conforto, no banco traseiro. Após curto diálogo de agradecimento e apresentação, notaram que os ocupantes dos bancos dianteiros eram estrangeiros. Libaneses, envolvidos em negócios com o Brasil há décadas. A narrativa poderia seguir direção cinematográfica, com ilações sobre a licitude (ou não) das atividades que empreendiam, a real intenção da suposta gentileza ou coisas parecidas. Mas, não. Os 20 minutos que se seguiram foram marcados por lições sobre gastronomia e culinária do Libano, eventos históricos do país, a origem da decadência econômica, os fardos do colonialismo norte-americano e a relação com o SPFC, time dos corações (que justificava, em certas ocasiões, até mesmo viagens internacionais). Enfim, sem muita dificuldade, estacionaram nos arredores do Morumbi (o motorista conhecia uma espécie de esconderijo para alojar seu carro). Após a despedida, o pai, um pouco constrangido, renovou a lição aos filhos, minutos atrás inobservada: nunca, nunca façam o que acabei de fazer - disse. Piedosos, João e Olivia externaram em suas faces, sem verbalizar nada, a inevitável pergunta: então, por que acabou de fazer? 19h10min: os três chegaram ao portão de acesso às cadeiras cativas, diante do qual se projetava uma fila jamais (ou poucas vezes) vista naquele setor, que deveria ser motivo de impropérios. Mas não havia como maldizer, naquele momento, a espera para, sem bater, adentrar a porta do céu.  
O Brasil caminha para formação do maior mercado do futebol do planeta. Recente movimento, que indica uma inequívoca integração de política pública, foi realizado pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia reguladora do mercado de capitais. Motivada pelo advento da Lei da SAF, a CVM divulgou o Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto de 2023, no qual consolida o "entendimento da Autarquia sobre as normas aplicáveis às Sociedades Anônimas do Futebol (SAF) que desejarem acessar o mercado de capitais para financiar suas atividades". Parecer de Orientação não tem natureza de lei. Trata-se de ato administrativo que visa orientar o mercado em geral, incluindo investidores e tomadores de capital, sobre matéria que cabe à CVM regular. A orientação tem mais um propósito: veicular as manifestações da própria CVM a respeito da sua interpretação da lei 6.385/1976 e da lei 6.404/1976. A primeira lei criou, em 1976, a CVM e dispôs sobre o mercado de capitais. A segunda reformulou, no mesmo ano, a sistemática das sociedades por ações, em especial da sociedade anônima (ou companhia), que é o tipo concebido para organizar empresas que pretendam acessar o mercado de capitais. De modo bem suscinto, mercado financeiro latu sensu engloba o mercado financeiro em sentido estrito e o mercado de capitais. O mercado financeiro em sentido estrito cuida de negócios em que se apresenta um intermediário, geralmente uma instituição financeira, que estabelece relações com um poupador, de um lado, e um tomador, de outro. O intermediário se interpõe, portanto, entre poupador e tomador, e com cada um deles estabelece uma relação autônoma. De modo geral, ele paga ao poupador uma remuneração pelo depósito de seus recursos e, em seguida, empresta os recursos (ou parte deles) ao tomador, mediante cobrança de taxas contratadas. No âmbito do mercado de capitais, o intermediário desaparece. Uma das finalidades desse mercado consiste justamente na desintermediação. O tomador acessa diretamente a poupança popular mediante operações de emissão de ações ou de instrumentos de dívida. O custo, em tese, tende a ser menor; e as alternativas, maiores. É no ambiente do mercado de capitais, grosso modo, que a CVM exerce competência regulatória; e é sobre ele, também, que se projeta o benfazejo Parecer de Orientação.  Nesse sentido, o art. 8º da Lei 6.385/1976 atribuiu à CVM competência para, dentre outras atividades, "I - regulamentar, com observância da política definida pelo Conselho Monetário Nacional, as matérias expressamente previstas nesta Lei e na lei de sociedades por ações; (...); III - fiscalizar permanentemente as atividades e os serviços do mercado de valores mobiliários, de que trata o Art. 1º, bem como a veiculação de informações relativas ao mercado, às pessoas que dele participem, e aos valores nele negociados (...); V - fiscalizar e inspecionar as companhias abertas dada prioridade às que não apresentem lucro em balanço ou às que deixem de pagar o dividendo mínimo obrigatório". Não parece haver dúvida, portanto, acerca da mensagem contida na iniciativa. Com o advento da Lei da SAF, que instituiu no Brasil a sociedade anônima do futebol (a qual, por sua vez, é um subtipo de sociedade anônima), a CVM anuncia que, pela primeira vez na história - não apenas do mercado brasileiro, mas mundial -, está de olho na formação do ambiente em que operações futebolísticas ocorrerão. Ainda - e não menos relevante -, que ela (a CVM) tem competência regulatória sobre operações de SAF no mercado de capitais e que, em relação a esses negócios, espera-se a observância a certo padrão de conduta compatível com a sistemática do mercado. A competência da CVM compreende a produção de normas infralegais - sob a forma, por exemplo, de Resolução - e as atividades fiscalizatórias e sancionatórias, conforme conteúdo da lei 6.385/1976. Com isso, clubes que pretendam estruturar operações de SAF combinadas com acesso ao mercado de capitais terão, com o advento do Parecer de Orientação, maior segurança em relação aos modelos que forem negociados com financiadores e ofertados ao mercado; e financiadores, por outro lado, poderão reforçar suas apostas no ambiente brasileiro do futebol mediante absorção e implementação do conteúdo orientativo. A CVM adverte, no âmbito do texto, que não lhe cabe a supervisão de operações privadas com ações - ou de quaisquer operações que ocorram fora do ambiente do mercado de capitais, a exemplo de aportes privados e diretos de capital em SAF (como aqueles ocorridos com Botafogo, Cruzeiro e Vasco). Isso não impede que agentes envolvidos em tais relações adotem como referência - e fonte - o conteúdo do Parecer, o qual, aliás, não inova ou cria novas normas (o que nem poderia), mas se trata de uma peça afirmativa de inegável qualidade, que servirá não apenas de orientação, como também para estabilizar a aplicação de certos conteúdos da Lei da SAF.   
Recente matéria do colunista do UOL, Rodrigo Mattos, informa que determinada consultoria brasileira estaria seguindo caminho inverso ao de diversos investidores nacionais ou estrangeiros que se interessaram, desde o advento da Lei da SAF, pelo mercado local do futebol; assim, o sentido da consultoria seria a aquisição de times no exterior, em especial na Europa, com recursos levantados, aparentemente, por lá e por aqui. Levantamento de recursos para investimento no exterior não é uma novidade. A notícia não teria maior interesse se o foco não fosse o futebol e se do grupo de idealizadores não participasse César Grafietti, um dos pioneiros - se não o pioneiro - na produção de relatórios financeiros sobre os times brasileiros. Trata-se, pois, de empresa que conhece o país e o negócio futebolístico. E, mais importante, pela motivação: a alegada desregulamentação do mercado brasileiro. O leitor apressado poderia concluir que o Brasil sofre de carência legislativa no âmbito do mercado do futebol, a despeito da novidade representada pela já mencionada Lei da SAF; mas não é disso que se trata. As considerações da consultoria, pelo que se depreende, referem-se, na verdade, à falta de regulação no plano esportivo, portanto, da própria atividade empresarial (que vem a ser a futebolística). Isto porque, ao contrário de alguns países europeus, que não se ocuparam da legislação do mercado do futebol, e de outros que seguiram modelos relativamente simplistas e dirigidos a uma determinada natureza de problema, o Brasil instituiu uma legislação sem precedentes, para formação de um ambiente sustentável, que já produz efeitos após pouco tempo de existência. Além disso, está em curso, no Senado Federal, uma proposta de reforma pontual da Lei da SAF, de autoria do Presidente da Casa, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que, uma vez consumada, reforçará a segurança sistêmica. Não se revela, por aqui, uma ineficiência no plano legislativo; ao contrário. A matéria, porém, voluntária ou involuntariamente, joga luz sobre o tema que esta coluna passou a abordar desde a semana passada: a necessidade de regulação infralegal, mas, no caso, do mercado que se está formando para financiar e deter a atividade e os ativos do futebol - abrangência distinta, portanto, da atividade profissional de prática esportiva. Para isso, a regulação (infralegal) deve, sim, se estender ao mercado do futebol, a partir do chassi inaugurado pela Lei da SAF, de modo a fomentar o desenvolvimento do setor e definir padrões de conduta que, ao cabo, protegerão, direta ou indiretamente, torcedores, clubes e os próprios investidores. A história oferece alguns elementos de referência, como a regulação por intermédio de agências, que tiveram origem nos Estados Unidos da América, no século XIX, para organizar setores que, dentre outros aspectos, se sujeitavam à concorrência predatória e ao desperdício de inciativas ou recursos. Décadas depois, sob a presidência de Franklin D. Roosevelt, as agências regulatórias independentes foram intensificadas no âmbito de programas que visavam, a um só tempo, retomar o desenvolvimento do país, após a grande crise do final da década de 20 e início da de 30, evitar distorções de mercado e neutralizar a influência de grupos de interesses sobre a política de setores essenciais e estratégicos. Tal caminho influenciou outras legislações. As modernas agências ou agências independentes, no Brasil, passaram a ter papel relevante a partir do Programa Nacional de Desestatização, nos anos 1990. Pretendia-se, ali, estimular a transferência à iniciativa privada de atividades ou serviços outrora monopolizados pelo Estado. Assim, as agências cumpririam diversas funções, como a de promotora e fiscalizadora dos serviços privatizados. Veja-se, nesse sentido, o que se extrai do sítio eletrônico da Anatel: "A Agência trabalha com o objetivo de promover o desenvolvimento das telecomunicações do País de modo a dotá-lo de uma moderna e eficiente infraestrutura de telecomunicações, capaz de oferecer à sociedade serviços adequados, diversificados e a preços justos, em todo o território nacional". Mas não apenas para tais fins que elas foram idealizadas. Outros propósitos também as justificaram, como o fomento setorial. A Ancine é um exemplo: foi criada em 2001 para fomentar, regular e fiscalizar o mercado do cinema e do audiovisual. E não para por aí. Existe, atualmente, iniciativa que pretende a criação de agência nacional para zelar pela integridade do mercado do esporte, voltada à prática esportiva, para torná-la livre de quaisquer influências prejudiciais ao próprio mercado - associada, aliás, à necessária regulação da atividade de apostas. Todos esses exemplos indicam que o mercado do futebol - que não se confunde com a atividade futebolística -, ambiente em que poupadores, provedores de capital (investidores) e tomadores (sociedades anônimas do futebol) se relacionarão, deve ser olhado como prioritário pelo Estado, a fim de regulá-lo, com o propósito de estabelecer padrões de condutas e evitar distorções que poderão afetar, mais do que consumidores, torcedores, muitas vezes passionais. E, assim, evitar ou diminuir a ocorrência de movimentos predatórios e, no limite, de crises sistêmicas.
No livro Futebol, Mercado e Estado - Projeto de Recuperação, Estabilização e Desenvolvimento do Futebol Brasileiro: Estrutura, Governo e Financiamento1, que foi o embrião da Lei da SAF e da própria SAF, sugeriu-se a criação de uma Comissão Nacional de Valorização, Integração e Desenvolvimento do Futebol e do Mercado do Futebol, com o propósito de criar e implementar normas infralegais para formação do ambiente em que clubes, investidores e demais agentes pudessem, com segurança, se encontrar, realizar negócios e desenvolver a atividade futebolística no país (e contribuir, portanto, para o desenvolvimento econômico e social). A proposta foi deixada de lado durante o processo legislativo, não por falta de mérito, mas por conveniência política (assim como também caíram outras sugestões igualmente relevantes, a exemplo da possibilidade de conversão de créditos tributários em participação societária em SAF, com a condição de que as ações de emissão da SAF recebidas pelo credor fossem subsequentemente vendidas em bolsa de valores, dentro de curto prazo previsto no próprio projeto). Entendeu-se, lá atrás - e com razão -, que o debate em torno da Comissão politizaria o trâmite e, talvez, inviabilizasse a consumação do propósito maior, consistente na criação da SAF. Importante lembrar: quando a ideia surgiu e, ainda, durante todos os anos em que perambulou como projeto de lei, quase ninguém acreditava que a SAF poderia prosperar, por conta da resistência de uma casta cartolarial hermética e intransigente, estabelecida especialmente em entidades de administração (mas presente também em entidades de prática esportiva), que dominava a pauta e impunha obstáculos à oxigenação do sistema.  Passados dois anos do advento da Lei da SAF, e após a ocorrência de dezenas de negócios, dos mais singelos aos realmente complexos, o tema merece ser resgatado. E há motivos para isso: a solução do futebol, como sempre afirmou nesta coluna, adviria - e advirá - de uma conjunção de forças do mercado e do Estado. Os papeis são claros: o Estado regula, fiscaliza e sanciona (para, assim, oferecer segurança, confiabilidade e previsibilidade), enquanto o mercado disponibiliza recursos e cria instrumentos para realização de financiamentos e investimentos (dentro de um ambiente jurídico conhecido e regulado). E é justamente por isso que a criação de uma comissão, uma agência reguladora ou outra figura - cuja natureza e sua alocação serão oportunamente investigadas neste espaço - faz mais do que sentido: representa, na verdade, a complementação estrutural (e necessária) do chassi instituído pela Lei da SAF. Neste sentido, a Lei da SAF cria o espaço de atuação dos proprietários do futebol (os clubes), bem como dos agentes econômicos, e, dentro dele, confere liberdade de atuação; porém, mesmo dentro de seus limites espaciais, a atividade, pela sua relevância econômica e social, deve ser objeto de normatização infralegal e, como já se afirmou acima, de fiscalização. O sistema já oferece estruturas mais ou menos semelhantes. Veja-se, por exemplo, a atribuição da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel): "cabe à Anatel adotar as medidas necessárias para o atendimento do interesse público e para o desenvolvimento das telecomunicações brasileiras, atuando com independência, imparcialidade, legalidade, impessoalidade e publicidade". No âmbito do mercado do futebol, há, de modo indiscutível, um interesse público a zelar; assim como também se deve desenvolver a atividade que é acompanhada com maior ou menor frequência por aproximadamente 150 milhões de brasileiros e que, talvez mais do que qualquer outra, pode contribuir para a inclusão das gentes e o crescimento de todas as regiões do país. Outros argumentos se somam aos anteriores: nenhuma autarquia, agência ou entidade pública ou privada (de qualquer natureza) tem competência para atuar da forma que se propõe, no âmbito do mercado do futebol, incluindo a CVM, a CBF ou federações estaduais, de modo que, conforme a arquitetura atual, inexistem orientações ou vias específicas de fiscalização do ambiente em formação. Sob outro enfoque (o sistêmico), o impacto positivo ou negativo, de distintas naturezas, que as operações em clubes podem gerar, justifica a definição de normas e vias fiscalizatórias, para que o mercado do futebol (que não se confunde com mercado regulado e fiscalizado pela CVM) se forme e, sobretudo, seja um ambiente sustentável e arredio às condutas inapropriadas que o colocariam em risco. Sem contar investidores, clubes, atletas, empregados, fornecedores, prestadores de serviços e outros, o mercado do futebol, mesmo em seu estágio inaugural, já teria o potencial de afetar mais de 25 milhões de pessoas (ou aproximadamente 5 vezes o número de CPFs cadastrados na B3), levando-se em conta, apenas, os torcedores de Cruzeiro, Coritiba, Galo, Vasco, Botafogo e outros times cujos processos de criação de SAF foram concluídos ou estão em andamento. Motivos não faltam, portanto, para resgate e implementação da proposta - a qual continuará a ser explorada nesta coluna. __________ 1 Castro, Rodrigo R. Monteiro de; Manssur, José Francisco C. - São Paulo: Quartier Latin, 2016.
Em continuidade aos textos publicados nas duas últimas semanas, abordam-se os últimos (porém, não menos importantes) aspectos do PL 2.978, de 2023, de autoria do Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que tem como propósito introduzir pontuais (e pertinentes) alterações à Lei da SAF. Eficácia do regime centralizado de execuções (RCE) O art. 15 da Lei da SAF estabelece que o clube que adotar o RCE deverá pagar seus credores em seis anos. Surgiram teses a respeito do fluxo de pagamentos dentro deste período. Houve quem ensaiasse afirmar que, desde que respeitado o limite máximo, o devedor poderia liquidar suas obrigações em parcela única, no último dia do prazo. Para afastar construções oportunísticas, pretende-se instituir, com a reforma, o novo §3º, segundo o qual "o pagamento referido no caput deste artigo deverá ser feito mensalmente, com observância do disposto no inciso I do art. 10 desta Lei, exceto se o plano de credores dispuser de modo diverso". Também se pretende instituir novo §4º para estabelecer que a mensalidade (portanto, o pagamento mensal) equivalerá a, no mínimo, 20% da totalidade das receitas correntes mensais auferidas pela SAF e transferidas ao clube na forma do art. 10, inciso I. Conversão de crédito detido contra o clube em ações da SAF A reforma sugerida para o art. 20 organiza os conceitos nele contidos. Já se previa, desde o advento da Lei da SAF, que o crédito contra o clube poderia ser convertido em capital da SAF. Aliás, a Lei das Sociedades por Ações estabelece, no art. 7º, que o capital de uma companhia pode ser formado com contribuições em dinheiro ou em qualquer espécie de bens suscetíveis de avaliação em dinheiro. Faltava instituir, porém, procedimento mínimo para conversão, especialmente pelo fato de que clube e SAF não se confundem, e credor do clube não é credor da SAF. De modo que, ao integralizar crédito em SAF, o credor, quando autorizado, levará uma obrigação de terceiro (do clube) para dentro da SAF. Daí o art. 20 prever que "ao credor, titular de crédito contra o clube ou pessoa jurídica original, é facultada a conversão, no todo ou em parte, de seu crédito, em ações de emissão da Sociedade Anônima do Futebol, desde que a conversão e os respectivos critérios sejam aprovados pela assembleia geral de acionistas da Sociedade Anônima do Futebol".  Responsabilidade subsidiária O art. 24 cria uma hipótese excepcional - a única, aliás - de responsabilização da SAF por obrigações do clube. A responsabilidade não nasce com a constituição da SAF; ela somente se apresentará se, cumulativamente, o clube que constituir a SAF adotar o RCE e, no período previsto na Lei da SAF, não quitar as obrigações constantes do plano de pagamento. Ao cabo do prazo de seis ou dez anos, conforme o caso, e somente ao cabo, persistindo obrigações no âmbito do RCE, a SAF passará a ser, a partir daí, subsidiariamente responsável. É o que se estabelece no art. 24: "superado o prazo estabelecido no art. 15 desta Lei, a Sociedade Anônima do Futebol passará a responder subsidiariamente pelas execuções anteriores à sua constituição, que não tiverem sido satisfeitas no âmbito do Regime Centralizado de Execuções, nos limites estabelecidos no art. 10 desta Lei". Conflito entre RCE e recuperação judicial Esse tema surgiu em decorrência da formulação de desistência do RCE, promovida por determinado clube, após o requerimento superveniente de recuperação judicial. No caso, o procedimento ainda era incipiente: não havia plano e nenhum ato fora praticado. Mesmo assim, chegou-se a suscitar que a manutenção do RCE era obrigatória. A convivência dos dois regimes seria caótica. Execuções contra o devedor são abrangidas pela recuperação judicial e se submetem a tratamentos próprios, como o previsto no art. 6º, II da Lei de Recuperações e Falências, que determina, em função do deferimento do processamento da recuperação, a suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor. De todo modo, para evitar insegurança em relação ao tema, cria-se, no âmbito da reforma, novo parágrafo ao art. 25, com o seguinte conteúdo: "deferido o processamento da recuperação judicial formulado pelo clube, será automaticamente extinto o Regime Centralizado de Execuções em curso, passando as execuções a se sujeitarem ao disposto na lei referida no caput deste artigo". Prazo para instituição do PDE Aí está mais uma louvável mudança pretendida com a reforma. A Lei da SAF criou o Programa de Desenvolvimento Educacional (PDE), que objetiva promover medidas em prol do desenvolvimento da educação, por meio do futebol, e do futebol, por meio da educação, mediante celebração de convênios entre a SAF e instituições públicas de ensino. O texto atual não fixa prazo para instituição do PDE pela SAF e não prescreve sanção para a SAF que não o instituir. A redação proposta no âmbito da reforma para o art. 28 e seus parágrafos 4º e 5º resolvem o problema: a SAF passará a ter, a partir de sua constituição, 12 meses para celebrar o convênio. Caso não observe o prazo ou, na hipótese de extinção de PDE existente, não celebre novo programa em seis meses, a SAF deverá abandonar o TEF (regime de tributação específica do futebol, criado pelo art. 31 da Lei da SAF). Conceito de receita mensal Promove-se, para concluir, uma cirúrgica intervenção no §1º do art. 32, com a finalidade de explicar o que já estava contido no texto original, a fim de evitar, pelos motivos adiantados acima, desgastes e insegurança em relação ao conteúdo normativo. O texto do mencionado parágrafo passa a ser o seguinte: "para fins do disposto exclusivamente no caput deste artigo, considera-se receita mensal a totalidade das receitas recebidas pela Sociedade Anônima do Futebol, inclusive as oriundas de prêmios e programas de sócio torcedor, excetuadas as relativas à cessão dos direitos desportivos dos atletas, que serão isentas durante o prazo ali previsto". Chega-se, assim, ao fim da série de textos explicativos da benfazeja reforma pretendida com o PL 2.978, de 2023, de autoria do Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG).  
Em continuidade ao texto publicado semana passada, abordam-se outros aspectos constantes do Projeto de lei  2.978, de 2023, de autoria do Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que tem como propósito introduzir pontuais (e pertinentes) alterações à Lei da SAF. Transparência O art. 8º, que relaciona informações ou atos que devem ser publicizados pela SAF, ganha três novos incisos. Com eles, a SAF deverá manter em seu sítio eletrônico:  (a) "as atas de assembleia geral, de reunião do conselho de administração, de reunião da diretoria e de reunião do conselho fiscal, sendo autorizada a publicação sem o conteúdo de matérias confidenciais ou que possam ser prejudiciais aos interesses das atividades da Sociedade Anônima do Futebol, observado que, nestes casos, a ata com conteúdo integral deverá ser transcrita no respectivo Livro Social, na forma do art. 100 da lei 6.404, de 15 de dezembro de 1976"; (b) o nome da pessoa natural que, direta ou indiretamente, exerça o controle ou que seja a beneficiária final de qualquer pessoa jurídica que detiver participação igual ou superior a 5% do capital social da SAF; e (c) os nomes dos acionistas da SAF, com a indicação da quantidade de ações e o percentual de cada. Trata-se de uma elogiável evolução do modelo, que tem como objetivo oferecer mais informação e transparência à sociedade em geral no tocante aos atos praticados pelos dirigentes de times (que, não raro, são trancafiados e submetidos a sigilos incompatíveis com a natureza de negócios realizados) e à identidade de pessoa que detenha, direta ou indiretamente, participação em SAF. Responsabilidade A reforma propõe ajustes à redação do art. 9º, que passa a expor, com clareza, o conteúdo que se instituiu desde a origem da Lei da SAF mas que, por interpretações erráticas, foi submetido a tentativas de desvirtuamento de finalidade. A SAF não responde pelas obrigações do clube ou da pessoa jurídica original que a constituiu, anteriores ou posteriores à data de sua constituição. Esta é a regra geral. Há exceção, porém: a SAF será responsável pelas obrigações que lhe forem expressamente transferidas pelo clube ou pela pessoa jurídica original nos atos de sua constituição. A transferência somente poderá envolver patrimônio (portanto, direitos e obrigações) relacionado ao objeto social da SAF. Responsabilidade dos clubes perante credores e fontes de recursos para pagamento de credores As alterações ao art. 10 reafirmam que o clube ou a pessoa jurídica original é integral e exclusivamente responsável por suas obrigações, que deverão ser liquidadas com receitas próprias (geradas pelo próprio clube), mas, também (e isso já existia), com receitas provenientes da SAF. Estas receitas (oriundas da SAF), poderão advir de: 20% dos valores mensais de qualquer natureza, exceto de natureza financeira, auferidos pela SAF, na hipótese de adoção pelo clube do Regime de Centralização de Execuções ("RCE"); e 50% dos dividendos, dos juros sobre capital próprio e de qualquer outra remuneração ou contrapartida recebida pelo clube ou pela pessoa jurídica original da SAF, na condição de acionista, vendedor, locador, arrendador, cedente de qualquer direito ou prestador de serviços para a Sociedade Anônima do Futebol. Acrescenta-se, assim, uma série de relações jurídicas originadoras de recursos financeiros (como a locação ou o arrendamento) que, ao ingressarem no clube, deverão ser por ele destinados à satisfação de seus credores. A reforma traz mais uma importante novidade, igualmente voltada à geração de receita aos clubes: enquanto o clube ou a pessoa jurídica original permanecer acionista da SAF e registrar em suas demonstrações financeiras obrigações anteriores à constituição da SAF, esta deverá distribuir, como dividendo mínimo obrigatório, em cada exercício social, pelo menos 25% do lucro líquido ajustado conforme o art. 201 da Lei das Sociedades Anônimas. Registra-se, ainda, que a integralidade das receitas e contrapartidas recebidas pelo clube, provenientes da SAF, deverá ser direcionada ao pagamento de credores anteriores à constituição desta, até a integral liquidação de todas as obrigações. Constrição ao patrimônio ou às receitas da SAF  Partindo-se da premissa de que o clube é responsável por suas obrigações e que a SAF é uma entidade jurídica autônoma, que poderá contribuir para satisfação dos créditos de credores por via das hipóteses previstas no art. 10 (apresentadas acima), e ainda que o funcionamento da SAF interessa à sociedade em geral pois se tornará um centro de geração de empregos, riquezas e arrecadação de tributos, o art. 12  veda "qualquer forma de constrição ao patrimônio ou às receitas da SAF, inclusive por penhora ou ordem de bloqueio de valores de qualquer natureza ou espécie, com relação às obrigações do clube ou da pessoa jurídica original, anteriores ou posteriores à constituição da SAF". Essa regra geral não é absoluta e poderá ser afastada em casos patológicos de fraude ou de confusão patrimonial entre SAF e clube (situações verificáveis com base no caso concreto).  Destinação do RCE  A Lei da SAF trata apenas da SAF e dos procedimentos de passagem do modelo associativo ao empresarial. Ela não institui mecanismo em benefício de clube (portanto, associação civil) que mantenha sua natureza, inclusive relacionado à adoção do RCE. O novo parágrafo 3º do art. 14 afasta qualquer dúvida (que não deveria ter existido) em relação a isso: "O Regime Centralizado de Execuções se destina apenas ao clube ou à pessoa jurídica original que tiver constituído a Sociedade Anônima do Futebol na forma dos incisos II ou IV do caput do art. 2º." Os demais itens da reforma serão abordados no texto final da série, que será publicado na próxima semana. 
O tema da evolução da Lei da SAF e de sua reforma pontual foi introduzido na coluna da semana passada (14 de junho), assinada por um dos autores do presente texto. A reforma, consubstanciada no projeto de lei 2.978, de 2023, de autoria do Presidente do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que também é o autor da própria Lei da SAF, tem como propósito dar continuidade à construção de ambiente seguro do ponto de vista jurídico-institucional e, assim, viabilizar a construção do - essa é a finalidade - maior mercado de futebol do planeta. Daí a pertinência da iniciativa, que se passa a comentar, em uma série de textos (da qual este consiste na primeira parte). Propriedade Intelectual A reforma traz uma mudança (quase) semântica, porém necessária, ao admitir de modo expresso que a SAF poderá prever, em seu objeto, a exploração de direito de propriedade intelectual, como marca ou patente, inclusive de terceiros. A novidade consiste na desvinculação expressa do ato exploratório com uma propriedade alheia, conforme redação atual: "a exploração de direitos de propriedade intelectual, inclusive de terceiros, relacionados ao futebol". Portanto, no âmbito de projeto de constituição de SAF, o clube criador pode manter a marca em sua esfera patrimonial e licenciar o uso para SAF ou transferi-la, a título de propriedade, para SAF. Em qualquer caso, a SAF estará autorizada a promover a sua exploração. Participação em outras sociedades Propõe-se, na reforma, apenas a eliminação de um obstáculo à expansão territorial da SAF. O texto original admite a participação de SAF em outras sociedades, desde que se localizem no Brasil. Veda-se, assim, a participação direta em sociedades estrangeiras. Em outras palavras, o texto atual não impede que uma SAF constitua uma sociedade empresária no Brasil que deterá, por sua vez, participação societária em sociedade no exterior, mas veda o investimento direto da SAF na mesma sociedade estrangeira. A reforma afastará, portanto, custos desnecessários para que uma SAF capitalizada adquira, por exemplo, um time em Portugal e intercambie seus jogadores dentro do mesmo grupo econômico. Com isso, poderá se apropriar dos ganhos que, atualmente, se dividem entre intermediários e clubes europeus de passagem. Constituição da SAF O art. 2º passará a prever, de modo expresso, quatro modalidades de constituição da SAF, com a inclusão do inciso IV, composto da seguinte forma: "pela subscrição, pelo clube ou pessoa jurídica original, de todas as ações em que se divide o capital social fixado no estatuto, e integralização do capital subscrito com patrimônio relacionado à prática do futebol". Não se trata de novidade, pois o art. 3º já autorizava a adoção da subscrição de ações de SAF pelo clube como via constitutiva. Apesar disto, a nova redação organiza de modo adequado em único dispositivo o cardápio de opções. Sucessão Os ajustes pontuais contidos no art. 2º, §1º, inciso I contribuem para organizar o regime jurídico da sucessão, no âmbito de processo constitutivo de SAF. A SAF, em primeiro lugar, sucederá o clube nas relações com entidades de administração. Não havia celeuma em relação a esta solução, que permanece intacta. A SAF também será sucessora do clube que a constituir nas relações contratuais existentes com atletas em formação, atletas profissionais e demais pessoas vinculadas à atividade do futebol, cujos contratos forem expressamente transferidos para SAF, no ato de cisão ou de subscrição de capital (conforme os incisos II ou IV do art. 2º). Ações Classe A A reforma oferece um interessante encaminhamento às ações classe A, que conferem ao seu titular direitos especiais, como todos aqueles relacionados à preservação das tradições esportivas e culturais, tais como hino, cor, marca, brasão, etc. Por conta destas características, apenas o clube fundador da SAF poderá deter tais ações classe A, sendo-lhe interditada a doação, venda, troca ou qualquer ato de disposição. Isso não significa que o clube não possa, eventualmente, pretender desmontar a sua posição de acionista. Para que isto ocorra, as ações classe A deverão ser previamente convertidas em ações ordinárias comuns, caso em que as restrições deixarão de ser aplicadas.   Grupo econômico A formação de grupo econômico, do ponto de vista prático, se verifica pela identificação de um feixe relacional que evidencia a preponderância de uma sociedade, geralmente controladora direta ou indireta, sobre outras. O abalo da autonomia, decorrente da situação grupal, implica a formulação de um regime especial de atribuição de responsabilidades. Porém, a mera identidade de sócios ou a participação de uma sociedade em outra não configura o grupamento. A existência decorre, portanto, da identificação de elementos inerentes ao grupo no âmbito de casos concretos. Esta proposição foi consolidada, aliás, no art. 2º, §3o da CLT: "não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes". Apesar da existência de normas inequívocas em tal sentido, a tentativa de rompimento sistêmico, que levará (ou levaria) a uma situação de intolerável insegurança - o que se revela pela multiplicação de ações judiciais de natureza cível ou trabalhista com base em tal tese - justifica a proposta da inclusão do seguinte parágrafo ao art. 2º: "§7º A constituição da Sociedade Anônima do Futebol não implica a formação de grupo econômico entre ela e o clube ou pessoa jurídica original que a constituir." Governança O aperfeiçoamento do sistema interno de governança da SAF está distribuído em dois novos dispositivos. O §6º prevê que ao menos um membro do conselho de administração e um membro do conselho fiscal deverão ser independentes, conforme conceito estabelecido pela CVM. A independência de ao menos um conselheiro e de um fiscal (que, pela natureza, já é independente) contribuirá para oxigenação administrativa e, sobretudo, para reforçar o processo de profissionalização dos órgãos de administração da SAF. Além disso, a reforma propõe a introdução do art. 5º-A, que estabelece que o "administrador residente ou domiciliado no exterior deverá, previamente à investidura no cargo, constituir representante residente no País, com poderes para, durante todo o prazo de gestão e, no mínimo, nos seis anos seguintes, receber citações, intimações ou convocações em quaisquer ações, processos administrativos ou procedimentos arbitrais ou judiciais, contra ele propostos". Demais pontos contidos na reforma serão apresentados nas colunas das próximas semanas.
O presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, Senador Rodrigo Pacheco (PSD/MG), autor da Lei da SAF, apresentou, no dia 7 de junho, novo projeto, que tem como propósito introduzir reformas pontuais na própria Lei da SAF. A iniciativa é louvável e contribuirá para ampliação do mercado do futebol, que já se vem formando desde o advento da lei original. Não só isso: também produzirá mais segurança jurídica aos agentes envolvidos e ao país. A Lei da SAF é recente: foi promulgada em 6 de agosto de 2021. De lá para cá, o Brasil vem se notabilizando, no ambiente futebolístico, pela construção de um ambiente sem precedentes no planeta. E não se trata de uma afirmação otimista ou eufemista. Decorre dos eventos que acontecem, desde então, com frequência animadora. Com efeito, nenhum movimento político-legislativo, promovido em outro país, atraiu, em tão pouco tempo, interesse local ou internacional, como o movimento inaugurado pela Lei da SAF. Em menos de dois anos, uma trintena de sociedades anônimas do futebol já foi constituída e investidores de diversas características e origens entraram no ambiente brasileiro, oxigenando-o e o projetando ao mundo. Notícias correm, nesse sentido, que outros projetos serão anunciados com brevidade. O ex-jogador Ronaldo, o poderosíssimo Grupo City, John Textor - que já participa de outros times em países europeus -, o fundo internacional 777 e fundos de investimento com DNA da Faria Lima, como Treecorp, são alguns exemplos. Nota-se, assim, a diversidade de propósitos e de interesses dos provedores de recursos aos times de futebol. E se nota, ademais, com alguma facilidade, que, após 140 anos de fechamento absoluto do sistema, a sua abertura, de modo adequadamente regulado, atraiu e atrairá o interesse em maior escala e intensidade. A Lei da SAF é um marco regulatório histórico, portanto. Dela, já se promoveram - e ainda se promoverão - normas infralegais que afirmam e conferem higidez sistêmica, como: a Instrução Normativa Drei/ME n. 112, de 20 de janeiro de 2022, que trata, no âmbito do Registro Público de Empresas Mercantis, da constituição da SAF, dentre outros temas; o Provimento n.1/CGJT, de 19 de agosto de 2022, do Corregedor-Geral da Justiça do Trabalho, Ministro Guilherme Augusto Caputo Bastos; e, quem sabe, conforme palavras do Presidente da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), João Pedro Nascimento, um eventual Parecer de Orientação ao Mercado. Esse contexto reforça a importância da nova iniciativa do Presidente Rodrigo Pacheco, pelos motivos que se seguem. Toda lei passa, quase que naturalmente, por período de acomodação, após sua promulgação. A doutrina e a jurisprudência prestam papeis importantes nesse sentido, até que eventuais divergências sejam pacificadas em Tribunais Superiores. Porém, enquanto não se atinge esse momento, o sistema provoca alguma insegurança, proveniente (i) das incertezas relacionadas às primeiras decisões judiciais proferidas, (ii) da manutenção ou reforma de decisões de segunda instância, (iii) da ausência de uniformização em Tribunais estaduais distintos, (iv) da demora na uniformização jurisprudencial no âmbito de Tribunais Superiores etc. Daí o surgimento de (poucas) vozes que sustentam que a reforma pode parecer prematura, pois ainda não se teria dado tempo para a revelação das tensões da jovem Lei da SAF. Muito pelo contrário: o momento é mais do que oportuno. Como se verifica no dia a dia, a Lei da SAF movimenta o noticiário esportivo e econômico e, mais relevante, o Poder Judiciário, que vem sendo provocado a decidir sobre temas legítimos e, outros, ilegítimos. Ilegítimos são aqueles que não tem nada a ver com SAF, mas cujo ordenamento específico é expandido para associações sem fins lucrativos. E mais perigosos ainda: aqueles que resultam da manipulação interpretativa, construída para manutenção de interesses e posições, em prejuízo da formação de um ambiente gerador de riquezas, empregos e tributos. É esse o dilema, após apenas dois anos de existência da Lei da SAF: embates entre a manutenção do arcaísmo histórico, de um lado, e o futuro (que mira o maior mercado de entretenimento do planeta), do outro, ameaçam inibir movimentos transformacionais de clubes e o interesse de financiadores da atividade futebolística. Lembre-se, aliás, que, numa economia globalizada e repleta de oportunidades, capitais que estão disponíveis hoje poderão não estar disponíveis amanhã, se a percepção de insegurança superar a perspectiva (ou expectativa) de retorno. Por isso que, pelas características da Lei da SAF, que não obriga nenhum clube a passar ao modelo de companhia, e muito menos um investidor a alocar parcela de seu patrimônio a um projeto de SAF, o tempo é fundamental - por mais que se preveja uma pacificação futura, no sentido correto, em Tribunais estaduais e superiores. A Lei da SAF deveria se tornar um patrimônio do país. Uma lei de todos e para todos que acompanham ou enxergam, no futebol, vias de desenvolvimento econômico e social. E a reforma poderá, assim, coroar o esforço do Congresso Nacional e de tanta gente que trabalhou para ela se tornar realidade, como o próprio presidente Rodrigo Pacheco e o relator da Lei da SAF, o Senador Carlos Portinho (PL/RJ).
O Governo do Presidente Lula pretende incentivar o desenvolvimento de projetos que envolvam equipamentos esportivos, como demonstra o Decreto n. 11.498, publicado em 25 de abril de 2023 ("decreto 11.498"), que alterou o decreto  8.874, de 11 de outubro de 2016 ("decreto 8.874"). Antes de abordar a pretensão governamental e, em especial, o conceito e a abrangência da expressão "equipamento esportivo", rememora-se a origem e o histórico do tema.  Em 30 de dezembro de 2010, o então Presidente da República, Lula, adotou a Medida Provisória n. 517 ("MP 517"), que dispunha sobre o imposto sobre a renda em diversas operações previstas em leis federais. A MP 517 foi convertida na lei 12.431, de 24 de junho de 2011 ("lei 12.431"), sob a presidência de sua sucessora, Dilma Rousseff. O art. 2º da Lei 12.431 estabeleceu que os rendimentos auferidos por pessoas físicas ou jurídicas residentes ou domiciliadas no País, decorrentes do investimento em setores prioritários, sujeitos ao enquadramento no projeto nacional de desenvolvimento da infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação, passariam a se sujeitar à alíquota de 0% (zero por cento), quando auferidos por pessoa física, e de 15%, quando auferidos por pessoa jurídica tributada com base no lucro real, presumido ou arbitrado (dentre outras pessoas). Tais investimentos devem ser feitos, para gozo do benefício, em: (i) debêntures emitidas por sociedade de propósito específico, constituída sob a forma de sociedade por ações; ou (ii) certificados de recebíveis imobiliários; ou (iii) cotas de emissão de fundos de investimento em direitos creditórios constituídos sob a forma de condomínio fechado. A lei 12.431 não fixou, porém, quais seriam os setores prioritários, mas atribuiu ao Poder Executivo Federal a prerrogativa de fixá-los. Isto ocorreu em 2016, por intermédio do mencionado Decreto 8.874, à época da presidência de Michel Temer. Naquela oportunidade, os setores elegidos foram: logística e transporte; mobilidade urbana; energia; telecomunicações; radiodifusão, saneamento básico e irrigação. De Lula a Michel Temer, manteve-se, pois, inequívoca política pública que visava a atração da poupança privada para ampliação dos recursos disponíveis para desenvolvimento de projetos de infraestrutura no país. Recentemente, e mais uma vez sob o comando de Lula, reforçou-se o interesse governamental na atração de (mais) recursos para direcionamento a projetos daquela natureza, criando-se oportunidade assim para a extensão a outros setores. A reforma promovida pelo Decreto 11.498 materializa promessas de campanha e de Governo, que anunciavam - e reafirmam - um modelo desenvolvimentista, que dependerá, para ser bem-sucedido, do emprego (e captação) de recursos públicos e privados. Foi nesse contexto que se inseriu, na lista de segmentos beneficiados, o setor de equipamentos esportivos. Não se trata, na verdade, propriamente de um setor ou de uma atividade autônoma e identificável; mas de uma destinação. Daí a ausência de conceituação inequívoca, em âmbito legal ou infralegal - ou doutrinário -, do que seria equipamento esportivo. Veja-se, como exemplo, o glossário do "Manual de Procedimentos para implantação, monitoramento e gestão de infraestrutura de esporte relativas ao programa de ações no âmbito da Secretaria Especial do Esporte do Ministério da Cidadania", aprovado pela Portaria ME nº 1.381/GM/MC, de 31 de julho de 2019 ("Manual"), que define como equipamento esportivo o "conjunto de instalações implantado em uma área contínua ou em áreas descontínuas, neste último caso desde que em áreas anexas ou muito próximas. No equipamento esportivo, além das instalações esportivas, podem existir instalações destinadas a serviços e apoio à prática do esporte (ambulatório, depósitos, áreas administrativas, refeitórios, alojamentos, restaurantes/lanchonetes, auditórios etc.)". Nesse sentido, no âmbito de equipamento esportivo podem existir instalações destinadas a serviços paralelos de apoio à prática do esporte, como os mencionados acima. Admite-se, pois, conforme tal dimensionamento, a integração, a projetos de finalidade esportiva, de espaços ou construções ancilares, voltados a atividades que, de modo isolado, não teriam conexão com a prática de esporte. Do próprio Manual - que serve apenas como referência - extrai-se, aliás, a definição de instalação esportiva, que circunda o conceito de equipamento: "unidade esportiva fundamental onde propriamente se realiza a atividade esportiva (quadra, campo de futebol, piscina etc.).  A instalação pode aparecer isoladamente ou como uma fração de espaço maior, o equipamento esportivo, que inclusive pode ser composto por um conjunto de instalações esportivas". Outras referências encontram-se espalhadas em âmbitos federal, estaduais ou municipais. A Pesquisa de Esporte, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, publicada em 2003, também sob a presidência de Lula, designa, por exemplo, o campo de futebol como "instalação esportiva destinada essencialmente à prática de futebol, configurada pela existência de área de jogo, gramada ou não, com dimensões oficiais ou não, existência ou não de arquibancada e de instalações adequadas destinadas a serviços e apoio à prática do esporte (banheiros, vestiários, ambulatórios, depósitos, áreas administrativas, restaurantes/lanchonetes, e demais áreas de serviço e apoio)". A existência, ou não, de estruturas complementares (ou ancilares) não deveriam, no entanto, desnaturar a finalidade esportiva primordial, o que se verificará casuisticamente. Assim, na ausência de regulamentação específica, para fins de definição de equipamento esportivo, tanto da lei 12.431 quanto do decreto 11.498, o enquadramento deverá ser feito em função do caso concreto (ou seja, dos elementos próprios de cada situação), pelo agente interessado, e admitido pelo Poder Público, quando verificadas as seguintes características: (i) estiver inserido em projeto de desenvolvimento da infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação; (ii) prever uma ou mais instalações, em área única ou áreas contínuas, direcionadas, de modo prioritário, à prática do esporte; e (iii) as instalações auxiliares, destinadas a outras atividades, que complementem ou reforcem a principal - como ambulatório, clínica médica,  depósitos, áreas administrativas, refeitórios ou restaurantes, hotelaria e alojamentos, auditórios, espaços de trabalho coletivo para acomodação de novas empresas e de tecnologia - não se revelarem tão ou mais relevantes, econômica ou estruturalmente, do que o propósito esportivo.
Instalada no último dia 17 de maio na Câmara Federal, a CPI das apostas esportivas deverá nas próximas semanas protagonizar o debate que se trava em variadas frentes para a modelação do negócio em condições de segurança e legalidade. Entre "pavoneios" e "boleiragens" de costume que  certamente repetir-se-ão aos nossos olhos, irá atuar com a declarada intenção de investigar o mercado (viés penal) e encaminhar contribuições para a regulamentação (cunho propositivo). O enredo é o de sempre, uma situação nova com a aparência de "terra de ninguém", sem que alguém saiba efetivamente o que é certo ou errado, se tal coisa vale ou não, o quanto isso é ou não é legal... então vem um escândalo, uma operação (aqui a Penalidade Máxima), a intervenção do MP, a TV, as páginas policiais e uma CPI: não é que a história se repita, é que ela rima! E é invariavelmente marcada pelo carimbo brasileiro de inversão da ordem natural das coisas, da informalidade e oportunismo, da falta de rigor e imprecisão técnica, de destacada imperfeição. Essa "nossa história" recente não conta muitos anos de vida e teve uma inflexão decisiva a partir da assinatura pelo ex-Chefe do Executivo na metade do ano de 2020 do Decreto que autorizou a inclusão das apostas de quota fixa no PPI - Programa de Parcerias de Investimento, no âmbito do PND - Plano Nacional de Desestatização, enquadramento ao qual deveria seguir a edição de legislação específica para regular propriamente o mercado, o que até agora não ocorreu. Assim, o fato é que o decreto inicial serviu como espécie de salvo conduto revestindo de "legitimidade" a atuação (em tese) do mercado, momento em os seus operadores imediatamente passaram a fomentar a atividade ainda desempenhada timidamente e a fizeram ganhar força e relevância consolidando o mercado em pouco menos de 3 anos. E, mesmo sem regulação (o mercado não sucumbe à letargia legislativa), o negócio se fez próspero e se traduziu muito além do volume de apostas propriamente dita, como no patrocínio de várias camisas de clubes, naming rights de torneios oficiais, coberturas esportivas, etc., com isso movimentando cifras de bilhões. A estrutura, por incrível que possa parecer, é um arremedo, e envolve normalmente uma sede empresa offshore, uma operadora de pagamento local, as vezes uma sobreloja... direitos e contratos, em especial de patrocínio, do licenciamento da BetCo. para o Brasil, nada muito sofisticado. Se acaso eventual apostador lesado tiver que fazer valer um direito seu por exemplo, provavelmente terá dificuldade até mesmo para conseguir intimar "quem de direito"! A natureza da aposta de quota fixa em nada se assemelha a qualquer tipo de loteria, ela não se aperfeiçoa através de um concurso de prognósticos e da premiação através da distribuição de um rateio. Aqui se trata de um contrato direto entre o apostador e a casa de apostas, é preciso que se pense em um cassino, com uma banca pagadora. Assim funcionam as casas de apostas. O que se experimenta no momento atual brasileiro em relação ao mercado de apostas é uma situação onde vemos que, salvo os operadores com sua estratégia agressiva e aparentemente planejada quanto ao desenvolvimento do negócio, os demais agentes são atores que não sabem exatamente qual é o seu papel nem tampouco como desempenhá-lo, valendo-se então das oportunidades que lhes são franqueadas, tais como para os mendicantes clubes os contratos de patrocínio (a quase totalidade deles tem seu BET.com), cessão de naming rights por federações promotoras das competições para se financiar e divulgar, publicidade para os veículos de comunicação, renda extra para atletas que estrelem propagandas. O governo poderá até taxar, mas parece não ter pressa. Com tudo indo tão bem assim, para que complicar, discutir lei e tal... Exageros à parte, a necessidade da regulamentação é manifesta: antes de mais nada, imperiosa a mitigação das ameaças, graves e identificáveis, que a atividade sujeita o meio social em que está inserida. Manipulação de resultados, a "bola da vez", não é a única. Lavagem de dinheiro é outra preocupação, além do próprio distúrbio patológico derivado da compulsão, um pesadelo. Aqui mesmo não tratando o chamado vício social, até pela falta de credenciais ou conhecimento para tanto, não se deixe sem registro pois representa uma chaga enorme nas pessoas e dentro das famílias, vinte anos atrás à época dos bingos e caça níqueis essa faceta foi escancarada e lá mostrou merecer tratamento adequado em questões relacionadas à segurança e saúde pública. Quanto à lavagem de dinheiro, o ambiente desregulado torna-se propício à grande afluência de recursos por várias portas e sem comprovações, circunstância que igualmente tem demandado extrema preocupação das autoridades, não só as nacionais. É outro aspecto bastante vulnerável na experiência atual, seja porquanto aos valores ingressantes de forma pulverizada através das apostas, seja quanto ao lastro de origem dos pagamentos, tudo potencialmente muito nebuloso. E por fim a manipulação. A crueldade desta é que corrompe os agentes diretos, corrói as instituições envolvidas, pode fulminar a própria credibilidade do negócio. Esse é o tema mais aderente à possibilidade de plena regulação com o estabelecimento de padrões e critérios, por exemplo a vedação de que todo e qualquer palpite dependa de ação individual, ou a definição das competições que possam ser exploradas, entre outras medidas diretas e de fácil aplicação. É hora do legislador decididamente avocar a responsabilidade na edição deste marco regulatório em processo que conte com a participação de todas as partes interessadas, criando mecanismos para arrecadar e repartir, e também fiscalizar e punir. Por seu turno, os clubes e as federações igualmente devem desenhar o seu papel, seja em relação aos seus patrocinadores diretos, aos atletas que mantém ou as competições que promove, conforme é o caso e atuação de cada um. Propaganda, patrocínio, interesses, transações, conflitos, há muito a ser disciplinado, é extensa a lição de casa. Não é só prever multa na cartilha dos atletas, é mais que isso: é inclusão no mapa de riscos, verificação por controles internos, reclassificação continua do que pode e do que não pode. Estamos todos preparados? Aposto que não! Vejam que meses atrás a CBF com uma mão oficiou os afiliados para prestarem informações sobre os patrocínios, ao tempo em que com a outra cedia os direitos de uso do nome da maior competição do país; já os clubes estampam marcas bet.com nas camisas sem entender sua participação real além disso. Bem complicado! Como há meses os cartolas não têm logrado superar as intermináveis discussões acerca das tentativas de demonstrar ao coirmão o seu "sagrado e divino direito de valer e receber mais do ele", é certo que outras matérias não menos importantes que a(s) Liga(s), mas com potencial de contribuição direta aos fundamentos do novo mercado futebolístico brasileiro, nelas incluídas as apostas esportivas (junto do novo formato de transmissões, da SAF, da revisão do produto, da transição geracional, do e-sport, etc.) acabam ficando à margem dos debates e da própria ordem do dia. Porém a questão das apostas, circunstancialmente, voltará a ser priorizada.   Para situações na vida onde impera o açodamento, a deficiência na organização ou a inversão quanto à sequência lógica das coisas, o dito popular cunhou a expressão de "se colocar o carro na frente dos bois", algo que sugere o ocorrido com as apostas onde nos deparamos com um mercado em franca atividade de forma empírica e sem efetivo alicerce legal, em verdade uma estrutura precária que agora reclama ajustes e definições para afastar os embustes e ameaças. Para ficar no carro, é hora de acionar os freios de arrumação e materializar a base normativa, as alterações nos regulamentos de competições, Estatutos e afins. Essa é a aposta certa agora!
quarta-feira, 24 de maio de 2023

Racismo, futebol e transformação

"Já deram minha sentença e eu nem tava na treta / (...) / Sou eu mesmo e eu, meu Deus e o meu Orixá / No primeiro barulho, eu vou atirar / Se eles me pegam, meu filho fica sem ninguém / É o que eles querem, mais um pretinho na Febem / Sim, ganhar dinheiro ficar rico enfim / A gente sonha a vida inteira e só acorda no fim / Minha verdade foi outra / Não dá mais tempo pra nada (...)". O destino do narrador da canção dos Racionais MC's, cujo extrato se produziu acima, foi subvertido por Vinicius Júnior. E por outros futebolistas brasileiros que, invariavelmente, por esforços próprios ou de familiares (vez ou outra com a ajuda de alguém), sem participação do Estado ou da sociedade, rompem as barreiras dos apartheids sociais e raciais. A música e o esporte são, por motivos que já foram apresentados nesta coluna, no Brasil ou alhures, os caminhos mais evidentes para mudanças estruturais e para ilusória inserção. Mas o sucesso, e mesmo o estrelato, não se apresentam como condições suficientes, em ambientes conceituosos e desumanos, para que, além de uma aceitação interessada, o amalgamento ocorra. Não existiu, e ainda não existe, um processo de verdadeira integração. Mas, sim, de (in)tolerância jurídica, de um lado, e de compensação, de outro. Tolera-se porque a lei - e não por advir da consciência ou do coração - sanciona (ou deveria sancionar) o intolerante; e se compensa o que deveria ser incompensável: por exemplo, nobres famílias britânicas, "prejudicadas" no século retrasado pela perda de propriedades humanas escravizadas, ainda hoje recebem a contrapartida pela "perda patrimonial"; enquanto, no Brasil, o fim da escravidão alçou a mesma gente liberta a um outro regime de subjugação: a econômica. Por aqui, talvez ainda exista uma certa complacência com o movimento ascensional, desde que distante, de alguma forma associada (a complacência) ao próprio subjugo que se revela nas relações empregatícias. Aliás, mais do que isso: a manutenção do sistema depende das exceções, para justificar os privilégios e afirmar que a evolução se associa ao esforço, à vontade e ao enquadramento. Nas sociedades colonizadoras, o verniz da aceitação (ou da tolerância), aplicado não raro em decorrência de circunstâncias políticas vantajosas, é rompido com o surgimento de personalidades como Vinicius Júnior. O rompimento se espalha pelas classes abastadas e pelas classes oprimidas, que despejam suas frustrações sobre pessoas que julgam inferiores. Aliás, o prazer, quase doentio, com as mazelas - de distinta natureza, é verdade - de mais um brasileiro na Espanha, Daniel Alves, é revelador. Afinal, como se extrai daquela canção, é mais um pretinho, boleiro e tocador de pandeiro, que foi parar, não na Febem, mas na prisão - e já está condenado, midiaticamente, desde o primeiro dia, antes que o devido processo legal se encerre. Aí entra o futebol: enquanto não estiver inserido em programa de Estado, que o tome como instrumento educacional e de inserção, a formar milhares de crianças, que se espalharão, com o devido suporte e formação, não apenas pelos campos nacionais e mundiais, mas pelas empresas brasileiras (inclusive como empresárias), ele, o futebol, persistirá como parte do sistema de castas, e não como a via de transformação quase revolucionária que deveria ser. Não se duvide: o terror transmitido pela televisão, em estádio que mais parecia o coliseu, dominado pela turba que pedia ao imperador a morte de determinado gladiador, não representa "apenas" a continuidade de crimes cometidos exclusiva ou isoladamente contra uma pessoa. Ao contrário: brasileiros, que respondem por aproximadamente 11% das negociações mundiais no universo futebolístico, são vítimas constantes, e silenciosas, em diversas outras cidades ou países. O mencionado Daniel Alves, no auge de sua fama, também foi vítima de violência extrema, ao ser atingido, em campo, por uma banana arremessada por torcedor confortavelmente instalado em assento comprado por algumas centenas de euros. Mas não basta a indignação coletiva, facilitada - a expressão é, em si, problemática - por recair sobre celebridade pela qual se tem admiração, que rapidamente recebe, com razão, a solidariedade geral (e universal). A crueldade maior se desenrola no plano cotidiano, intensificada nas relações desiguais a que se sujeitam jogadores medianos ou de nível inferior, com carreiras curtas e erráticas, cujos sonhos atravessam ou não o Atlântico; jogadores que jogam pela comida dos filhos ou pelo remédio dos progenitores e que, ao cabo de suas carreiras, diante do despreparo (que lhe foi imposto, praticamente, aliás), tornam-se quase indigentes. Não se deve esperar um movimento corretivo real dos administradores mundiais do futebol, de ligas ou de governos estrangeiros. Virão respostas "necessárias" para o calor do momento. Assim, para que o grotesco episódio não sirva apenas para gerar tema de artigos, posts e manifestações em redes sociais, ou para que não sirva de substrato para ações políticas de efeito (oportunistas ou marqueteiras), as autoridades brasileiras, em âmbito privado e público, poderiam, ou deveriam, criar um projeto nacional permanente de formação, desenvolvimento e inserção por via do futebol, com premissas, pautas, objetivos e avaliação de resultados. E, nele, instituir instrumentos de acompanhamento e de defesa dos interesses de afirmação do Brasil e de brasileiros e brasileiras que expõem o país pelo mundo.
A Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro organizou, no mês de março do corrente ano, o XVII Seminário de Gestão Esportiva, em colaboração com a FIFA e o CIES. Os principais temas abordados no evento foram a SAF (Sociedade Anônima do Futebol) e o mercado que se está construindo a partir da promulgação da Lei da SAF. Participaram dos debates profissionais de (realmente) altíssimo nível, dentre eles ministros de tribunais superiores, magistrados, secretário do Ministério dos Esportes, senadores da república, deputados federais, membros do COAF, a diretora do departamento jurídico do Banco do Brasil, a diretora de regulação da B3, presidentes da CVM e da CBF, advogados, professores e o ex-jogador Zico. Estiveram presentes também: Domingos Soares de Oliveira, CEO do Grupo Benfica; Francisco Zenha, Vice-Presidente Executivo e CFO no Sporting Clube de Portugal; e Susana Dias, Diretora de Planejamento Financeiro e Controle de Gestão no Grupo Futebol Clube do Porto, que protagonizaram apresentações memoráveis, objeto do presente texto. Notou-se, logo na partida das exposições, que existe uma distância quase oceânica entre as proposições formuladas pelos dirigentes portugueses e o reacionarismo brasileiro, que, mesmo após o advento da Lei da SAF, ao invés de contribuir com a formulação de propostas que visem o desenvolvimento do sistema, persiste na busca de meios para inviabilizá-la. Assim, sociedade anônima, vias de financiamento da empresa futebolística, abertura de capital, governança, compliance, transparência e técnicas de controle interno são expressões, ou melhor, institutos que há muito tempo integraram a realidade do ambiente do futebol português; os quais, aliás, não desconfiguraram times como os próprios Benfica, Sporting e Porto, que continuam a ser e a representar, na sociedade local e perante seus torcedores, o que foram e sempre serão. Nenhum dos três expositores apresentou qualquer dúvida ou arrependimento em relação à passagem para o modelo de sociedade anônima desportiva - SAD, tipo de companhia arquitetada para organizar o esporte no país. Sobre ela e o acesso ao mercado de capitais, o CEO do Benfica indicou, como vantagens: acesso a investimento externo; estruturação de instrumentos de dívida adicionais; boa governança; transparência nos atos de gestão; informação regular e detalhada; rigor no nível de normas e processos; e controles interno e externo. Mas como "nem tudo são flores", num ambiente evoluído, após a detecção de ineficiências, propõem-se ajustes, para melhoria do sistema - ao contrário do que, não raro, verifica-se na antiga colônia, pródiga em contrarreformas estabelecidas para restaurar privilégios - como se passou, por exemplo, em quase todas as mudanças operadas na Lei Pelé. Naquele sentido, o Vice-Presidente e CFO do Sporting apontou que o Governo de Portugal irá avançar com reformas na Lei das SADs para: reequilibrar direitos na relação entre clubes fundadores e sociedades desportivas - algo que a Lei da SAF estabelece ao conferir prerrogativas exclusivas aos clubes enquanto permanecerem acionistas da SAF; reforçar requisitos de idoneidade; reduzir conflitos de interesses (ou incompatibilidades); reforçar a transparência; reforçar a publicidade; e criar um regime contraordenacional. Esses movimentos afirmativos tendem a intensificar a posição no cenário futebolístico de times como o tradicional Porto, que passou, conforme conteúdo da palestra proferida por sua Diretora, pelas seguintes etapas: - 1997: Constituição da SAD - 1997: Aumento de capital da SAD - 1998: Admissão em Bolsa de Valores - 2000: Redenominação do capital de Escudos para Euros - 2001: Novo aumento de capital - 2014: Mais um aumento de capital, que passou para 112,5 milhões de Euros (algo em torno de, conforme cotação atual, R$ 604 milhões). Susana Dias indicou, na linha do que fora dito pelo colega benfiquista, que constituem vantagens de uma SAD estar cotada em bolsa: acesso a fontes de financiamento externo; melhoria constante na operação e sujeição a procedimentos regulatórios que não podem ser protelados; proteção dos negócios e dos investidores; e credibilidade e transparência ao exterior. Desvantagens também foram elencadas por ela: dualidade de relacionamento com os stakeholders; obrigatoriedade de cumprimento de "imensidade" de regras de governança; necessidade de comunicações frequentes ao mercado via CMVM (tais como fatos relevantes); necessidade de produção de uma série de relatórios periódicos. Note-se que as desvantagens demandam, como regra, o emprego de pessoas e recursos para atendimento das exigências regulatórias, e não, muito ao contrário, a existência de aspectos que possam inviabilizar a SAD ou tornar o regime clubístico mais atrativo. Não pareceu haver, na experiência portuguesa, apresentada pelos representantes dos mais tradicionais times locais, qualquer nostalgia ou pretensão de regresso ao passado. Por outro lado, sentiu-se - ao menos foi a minha percepção - uma certa surpresa com o fato de que um país com a dimensão, a população e o PIB brasileiros, que dispõe de mais de 20 times com mais de 1 milhão de torcedores e que corresponde a (aproximadamente) 11% dos negócios mundiais envolvendo jogadores, não protagoniza (ou, ao menos, participa em alto nível) o mercado do futebol. A aparente surpresa (novamente, esta foi a minha impressão) se justifica, para quem tem mínimos conhecimentos do ambiente nacional, com alguma facilidade: ausência do Governo (minimamente preocupado com o tema); ausência de políticas públicas (em todos os níveis e esferas) com intuito de transformar o futebol em instrumento de desenvolvimento econômico e social; apropriação do bem futebolístico pelas arcaicas estruturas associativas; inexistência de vias de financiamento da empresa futebolística; e conflitos de interesses. Por esses e outros motivos, a sensação de quem participou do evento - ao menos essa foi a minha -, ao final, era de esperança e melancolia: esperança pela perspectiva daquilo que o Brasil poderia (ou poderá) ser; melancolia por aquilo em que se transformou (em função de sucessivos equívocos públicos e privados).
O recente decreto 11.498/23, de 25 de abril de 2023, pode viabilizar novos e eficientes mecanismos de financiamento para o futebol, e atenua - ainda que parcialmente - um equívoco histórico. Isto pois o Projeto de Lei 5.516/19, que deu origem à Lei da SAF, previa a criação da debênture-fut, valor mobiliário destinado ao financiamento da atividade futebolística. A debênture-fut resistiu, na íntegra, ao processo legislativo. O texto foi aprovado por unanimidade no Senado Federal e por ampla maioria na Câmara dos Deputados. Desse modo, os "rendimentos decorrentes de aplicação de recursos em debênture-fut [sujeitar-se-iam] à incidência do imposto sobre a renda, exclusivamente na fonte, às seguintes alíquotas: I - 0% (zero por cento) quando auferidos por pessoa natural residente no País; e II - 15% (quinze por cento) quando auferidos por pessoa jurídica ou fundo de investimento com domicílio no País, ou por qualquer investidor residente ou domiciliado no exterior (...)". Pretendia-se, com a debênture-fut, criar um mercado de emissões e negociações secundárias, para estimular o desenvolvimento do futebol no país.   Apesar da passagem pelas duas casas legislativas, a iniciativa foi vetada pela Presidência da República. Alegou-se, em fundamento do veto, que a estrutura de tributação da debênture-fut implicaria suposta renúncia fiscal, em face de regime tributário beneficiado. Isto, porém, não era realista, pois jamais esteve contemplada em orçamento qualquer previsão de arrecadação de tributos incidentes sobre emissões, no mercado de capitais, de títulos relacionados ao futebol. A perspectiva arrecadatória, aliás, nascia justamente com a Lei da SAF. Perdeu-se, ali, uma oportunidade histórica para estimular o surgimento de relações jurídicas que, ademais, sob o prisma puramente fiscalista, fomentariam atividades e relações econômicas, atraindo a incidência da norma tributária e gerando efetivo aumento, isto sim, da arrecadação. Aquela perspectiva, apesar de reformulada, voltou à pauta, com a publicação do decreto 11.498/23. O decreto 11.498/23 alterou o decreto 8.874, de 11 de outubro de 2016, que instituiu, com base no art. 2º da lei 12.431/11, setores prioritários, sujeitos ao enquadramento no projeto nacional de desenvolvimento da infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação. Os setores originalmente considerados foram: logística e transporte; mobilidade urbana; energia; telecomunicações; e radiodifusão. Com o advento do decreto 11.498/23, foram acrescentados os seguintes novos setores: equipamentos culturais e esportivos; saneamento básico; irrigação; educação; saúde; segurança pública e sistema prisional; parques urbanos e unidades de conservação; habitação social; e requalificação urbana. O enquadramento sujeitará os rendimentos auferidos por pessoas físicas ou jurídicas residentes no País à incidência do imposto sobre a renda, exclusivamente na fonte, às seguintes alíquotas: I - 0% (zero por cento), quando auferidos por pessoa física; e II - 15% (quinze por cento), quando auferidos por pessoa jurídica tributada com base no lucro real, presumido ou arbitrado, ou por pessoa jurídica isenta ou optante pelo Regime Especial Unificado de Arrecadação de Tributos e Contribuições devidos pelas Microempresas e Empresas de Pequeno Porte (SIMPLES). Apesar de o Estado insistir em não incluir o esporte (em especial o futebol) na lista de setores prioritários, reconheceu-se esse tratamento a equipamentos esportivos, consistentes em espaços ou construções destinadas à prática do esporte. Neste conceito se enquadram estádios, arenas, centros de treinamento e outros com finalidades análogas. A solução não atende de modo pleno às necessidades de desenvolvimento da atividade futebolística no país, pois, em muitos casos, certos (ou diversos) times, que passarem a ser organizados por meio de SAF, demandarão, mais do que recursos para emprego em equipamentos esportivos, financiamentos para renegociação e pagamento de dívidas caras, melhoria de plantel e outras destinações não inseridas no conceito de equipamentos. Mesmo assim, a nova regulamentação poderá viabilizar investimentos relevantes, com eventuais efeitos transformacionais e de impacto, em entidades que se revelem enquadráveis. Será o caso, para citar um exemplo, do São Paulo, que poderá empreender a reforma do Morumbi - tema que vem sendo tratado na imprensa -, com recursos oriundos de captação incentivada. Ou do Sport, cujo projeto de revitalização de seu estádio também costuma ser noticiado na mídia. Ou ainda do Coritiba, atualmente envolvido em operação de SAF que engloba, segundo informações públicas, robusto investimento em estádio. Importante: o clube, constituído sob a forma de associação, não poderá emitir debênture incentivada de equipamento esportivo, pois o art. 2º da lei 12.431/2011 vincula a emissão à constituição de sociedade de propósito específico, organizada sob a forma de sociedade por ações, que poderá ser uma SAF, por força do art. 1º, §2º da Lei da SAF, que admite a inclusão, no objeto social, da seguinte atividade: exploração econômica de ativos, inclusive imobiliários, sobre os quais detenha direitos. Enfim, o decreto 11.498/23 poderia ter reparado um equívoco histórico, com o reconhecimento da relevância e da prioridade do esporte e do futebol para o desenvolvimento social e econômico da Nação; não o fez e não adianta, agora, reclamar pela parte vazia do copo. Pois, sim, uma parte está cheia e, a partir dela, times e investidores poderão estruturar projetos viabilizadores de captações mais baratas e do seu emprego em equipamentos esportivos - que poderão, a exemplo do que ocorreu com a construção da arena do Palmeiras, marcar o início de novas eras em suas histórias.
Não custa lembrar, neste quarto e último texto relacionado à importância do Estado de Minas Gerais sobre o futuro do futebol, que, de lá, partiram movimentos essenciais para formação do País - e para consagração de ideais e valores da Nação. A inconfidência foi um deles. Tirante os ufanismos que embalam, não apenas no Brasil, as figuras históricas (e supostamente heroicas), utilizadas para justificar certas pretensões políticas, éticas ou morais que flutuam com o tempo - como Tiradentes -, a iniciativa promovida no final do século XVIII pretendia, dentre outros propósitos, resistir aos excessos da política fiscal praticados pela Coroa portuguesa.  A região (ou capitania) de Minas Gerais era a mais pujante da Colônia e contribuía, por meio de pesada carga tributária, para o financiamento da dívida pública Real, vinculada ao Reino Unido. A proposição separatista, subjugada pelas autoridades submissas a Portugal, serviu, porém, para enraizar o ideal de liberdade. No plano do futebol, liberdade é algo que não se conheceu desde a introdução do esporte, no século retrasado. Trata-se de uma atividade aprisionada em modelo associativo, organizado e liderado, como regra, por integrantes das elites político-clubísticas, que não cobram tributos, mas exercem poder absoluto sobre o patrimônio e o destino dos times (sem qualquer contrapartida, inclusive de dinheiro e, na prática, de responsabilidade por atos temerários e de outras espécies). A Lei da SAF, de autoria do Senador mineiro Rodrigo Pacheco (atual Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional), tem como objetivo oferecer alternativas (e soluções) àquele estado de coisas; e, como se supunha, vem encontrando resistência justamente nos grupos de interesses que se beneficiavam e continuarão a se beneficiar (caso não se consiga implementar a mudança necessária) da estrutura secular que impede o desenvolvimento da atividade futebolística e da sociedade brasileira. Os principais embates, como já indicado em textos anteriores, ocorrem, atualmente, no âmbito da Justiça do Trabalho, e, muito importante: não envolvem a supressão de direitos, garantidos na legislação própria; mas envolvem, sim, em muitos casos, a tentativa de alargamento interpretativo ou deturpação de conceitos com o propósito de atribuir responsabilidades a quem, sob o prisma jurídico, não as tem. Esta proposição, é óbvio, não ampara eventuais ilegalidades ou fraudes, praticadas casuisticamente, as quais, se e quando verificadas, deverão ser punidas com rigor. Mas deixemos as patologias de lado e voltemos à análise do sistema. A acusação de existência de grupo econômico é tema recorrente em reclamações trabalhistas e se expande, também, para o ambiente da Lei da SAF. A pretensão decorre do art. 2º, e seus parágrafos, da CLT: "Art. 2º (...) §2º Sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego. §3o Não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes".         Para que a lei seja aplicada de forma adequada, deve-se compreender a origem e o conceito de grupo. O ponto de partida é a Lei das Sociedades Anônimas, de 15 de dezembro de 1976. O art. 265 desta lei estabelece que a sociedade controladora e suas controladas podem constituir grupo, mediante convenção. Convenção é ato formal, no qual as partes integrantes se obrigam a combinar recursos ou esforços para realização de seus objetos ou para desenvolvimento de empreendimentos comuns. Pela natureza do conteúdo convencionado, as partes podem ser compelidas a preterir interesses próprios em benefício do grupo ou da sociedade de comando (geralmente, a controladora). O preterimento do interesse próprio ocorre, assim, mediante autorização legal. Apesar de não haver ilegalidade em tal conduta, ela tem potencial de afetar a autonomia patrimonial e, consequentemente, os objetivos individuais da sociedade que se submete à orientação grupal. Tal arranjo é conhecido como grupo de direito, pois decorre de tipificação legal. Na prática, quase não existe um grupo de direito, formado a partir de uma convenção aprovada pelas sociedades envolvidas. Daí o surgimento do conceito doutrinário de grupo de fato. Caracteriza-se o grupo de fato quando se verifica a situação descrita na norma, mesmo sem a existência de uma convenção. O grupamento (de fato) se afirma, portanto, pela existência de ligações de natureza societária, entre controlador e sociedades controladas, e não oriundas de um acordo formal (a convenção).  No âmbito de um agrupamento de fato, não se encontrarão, assim, acordos expressos em que as partes se obrigam a combinar recursos ou esforços, mesmo em detrimento de interesses individuais, para realização, por exemplo, de uma atividade que interesse ao controlador - e que, para dar andamento, envolverá a sociedade controlada em situação que não se verificaria se a relação fosse independente. Por tais motivos, a caracterização do grupo de fato dependerá da avaliação casuística e da comprovação, mesmo que tácita, da combinação. Na esfera trabalhista, cível ou societária, a lei não autoriza o reconhecimento do grupamento de fato se os elementos da combinação não estiverem presentes. Esta afirmação se extrai, por exemplo, do parágrafo 3º do art. 2º da CLT: "[n]ão caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes". Desse modo, podem ser extraídas algumas conclusões fundamentais, as quais deveriam servir à orientação do(a) julgador(a) em tema que envolva a Lei da SAF, por ocasião da aplicação normativa: 1. O fato de o clube deter participação societária na SAF implica a formação de grupo econômico? R. Não, conforme a legislação vigente (e a melhor doutrina). 2. E se o a participação do clube for majoritária (o que não se verifica, por exemplo, em Cruzeiro, Botafogo, Vasco e outras operações de SAF)? R. A conclusão é a mesma. Haverá necessidade inafastável de demonstração do exercício do controle da SAF pelo clube, quando o caso, para execução combinada de atividades ou empreendimentos, sem observância da autonomia da própria SAF. 3. Quando, então, haverá caracterização de grupo, de fato ou de direito, que atrairá a incidência do parágrafo 3º, art. 2º da CLT? R. Na hipótese de - existindo ou não uma convenção (ou acordo) entre sociedades controladora e controladas -, a relação entre elas indicar que recursos ou esforços são combinados para realização dos respectivos objetos, ou para participação em atividades ou empreendimentos comuns. Em outras palavras, extraídas da normatização laboral, quando entidades que "estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico"; grupo econômico que se revelará com a combinação indicada na primeira parte desta resposta. 4. Existe combinação de esforços ou participação em atividade ou empreendimento comuns, pelo simples fato de um clube deter participação societária em uma SAF? R. Não. Pelo mesmo motivo que uma pessoa que, hipoteticamente, detém, 0,001% ou 10% das ações de uma companhia aberta, como o Banco Itaú, não empreende, com o Banco, uma atividade comum - que é exclusiva do próprio Banco, enquanto a pessoa é apenas uma acionista. O clube, no mesmo sentido, pela simples propriedade acionária, também não se revela participante do empreendimento, portanto, da atividade futebolística, que é desenvolvida pela SAF, em esfera patrimonial autônoma e segregada.
Já expus nos dois textos anteriores desta minissérie a opinião de que o futuro do futebol brasileiro será decidido, aparentemente, nos Tribunais do Estado de Minas Gerais. Mas o objeto das disputas não envolverá o jogo de bola ou normas esportivas que regulam as relações entre clubes, jogadores e demais agentes que integram o ambiente futebolístico. A tensão tem a ver com a possibilidade de afirmação de um sistema alternativo ao secular (e anacrônico) sistema associativo, que resiste, de modo predominante, apenas nos países periféricos, e se apresenta como uma oportunidade histórica e emergencial. Histórica porque, após mais de um século de apropriação do futebol pelas associações sem fins lucrativos, surgiu, em 2021, uma opção (salvadora) para clubes, torcedores e para o próprio país. E emergencial porque, após anos ou, conforme determinados casos, décadas de irresponsabilidade e malversação das coisas clubísticas, que geraram um endividamento consolidado superior a R$ 10 bilhões, a mencionada opção, consubstanciada na Lei da SAF, de autoria do Senador mineiro Rodrigo Pacheco (Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional), passa, como já se esperava, pelo sofrimento de ataques de forças reacionárias que pretendem manter tudo como estava antes do advento daquela Lei. A principal tese se evidencia e se coloca na Justiça do Trabalho. E o cerne dela envolve uma suposta obrigação solidária da SAF pelos passivos do clube que a constitui. Reconhecendo-se a solidariedade, o credor do clube poderá exigir a satisfação integral de qualquer dos devedores solidários (portanto, da SAF). Essa construção deriva do art. 264 do Código Civil, segundo o qual: "há solidariedade, quando na mesma obrigação concorre mais de um credor, ou mais de um devedor, cada um com direito, ou obrigado, à dívida toda". Aliás, o conceito de solidariedade, constante do Direito Civil, também se replica em outros ramos do direito, os quais, apesar de dotados de princípios e procedimentos próprios, devem estar restritos ao mesmo conteúdo. Neste sentido, a solidariedade, de acordo com o art. 265 do citado Código, não se presume. Ela decorre da lei ou da vontade das partes. Não se pode, assim, ampliar a sua extensão. Trata-se de pressuposto de segurança jurídica e de paz social. Em outras palavras: pessoas, físicas ou jurídicas, que não contribuíram diretamente para a constituição da obrigação não podem responder solidariamente por ela, exceto se por força expressa de lei ou de contrato. Isto é um pressuposto necessário para preservação da estabilidade das relações. No plano laboral, a temática é tratada no art. 2º da CLT. O §2o estabelece que "sempre que uma ou mais empresas, tendo, embora, cada uma delas, personalidade jurídica própria, estiverem sob a direção, controle ou administração de outra, ou ainda quando, mesmo guardando cada uma sua autonomia, integrem grupo econômico, serão responsáveis solidariamente pelas obrigações decorrentes da relação de emprego". Não se propõe, aí - e nem poderia - um alargamento do conceito de solidariedade. Procura-se, porém, estabelecer seu enquadramento, para efeitos de responsabilidade derivada de obrigações trabalhistas. E assim se prevê uma espécie de "chave", necessária para abertura da porta da responsabilização: a existência de grupo econômico. Os excessos históricos na identificação da relação grupal resultaram na introdução do §3o ao mencionado art. 2º, que estabelece o seguinte: "não caracteriza grupo econômico a mera identidade de sócios, sendo necessárias, para a configuração do grupo, a demonstração do interesse integrado, a efetiva comunhão de interesses e a atuação conjunta das empresas dele integrantes". Ou seja, se não houver demonstração de interesse integrado, não se configurará solidariedade. Mesmo que os sócios, por exemplo, sejam os mesmos. E mais ainda se não forem os mesmos. Isso não significa que, numa determinada situação, sócios e administradores não pratiquem atos fraudulentos, passíveis de solucionamento por vias pertinentes - que levarão, inevitavelmente, a alguma forma de responsabilização. Mas se tratará de patologia corrigível, como já se indicou, por outros meios. Trazendo isso ao plano da Lei da SAF, que não prevê, nem na mais forçada e interessada das interpretações, hipótese legal de solidariedade entre o clube e a SAF, esta situação somente se operaria se, e apenas se, (i) decorresse da vontade das partes envolvidas, manifestada, de modo geral, em contrato, ou (ii) houvesse a configuração de grupo econômico - algo para que, como a própria CLT estabelece, a mera de identidade de sócios não seria - e não é - condição suficiente. E como reconhecer o grupamento em situações que vêm sendo praticadas para salvamento de times brasileiros, tais como Botafogo, Vasco e Cruzeiro, em que sequer inexiste a identidade de sócios? Sim, pois os associados dos clubes não se confundem com os sócios da SAF, que costuma ter, na composição de seu capital, além do próprio clube constituinte com participação minoritária, investidores estranhos aos quadros associativos originários dos clubes. E não apenas isso. Também não costuma existir qualquer relação de ingerência, de participação em atos internos (exceto em deliberações colegiadas de conselheiros nomeados pelo clube na SAF) ou de interesse integrado entre o clube e a SAF, e vice-versa, a caracterizar um grupo econômico. Daí a importância que os Tribunais mineiros terão na solução de demandas em curso, algumas com decisões de primeiro grau já proferidas, que se afastam das hipóteses descritas na norma para, aparentemente, afirmar uma ideologia que, na prática, vai contra os ideais pretendidos. É o caso da Ação Trabalhista 0010098-37.2020.5.03.0001, promovida pelo ex-jogador Frederico Chaves Guedes (Fred) contra o Cruzeiro Esporte Clube, em que se praticam tremendos esforços interpretativos, com a evocação de artigos estranhos ao tema da solidariedade, para, ao final, alcançar a SAF, com base nos seguintes argumentos: "Posto que tenha havido a sucessão parcial do empreendimento, nos ditames da lei 14.193/21, permanece a garantia de que qualquer mudança empresarial não poderá afetar os contratos de trabalho (arts. 10 e 448, da CLT), de forma que se impõe a responsabilidade solidária in casu por expressa disposição celetista. Dessarte, a sociedade empresária Cruzeiro Esporte Clube - Sociedade Anônima do Futebol deve ser responsabilizada solidariamente pelo débito exequendo, nos termos do artigo 2º, § 2º, da CLT, pelo que determino a sua inclusão no polo passivo da demanda". Não se nega que a CLT declara a existência de solidariedade quando se demonstrar a existência de grupo econômico; mas a demonstração deverá ser feita casuisticamente, com base em elementos inequívocos do próprio caso, e jamais de modo presumido - sobretudo para se promover uma suposta justiça social (que, sem suporte legal, não deixa de ser uma forma de justiçamento). Enfim, Justiça se fará se, após o aprisionamento histórico do futebol, ele for, pelas forças do Estado (legislativas e judiciárias, em especial), libertado para constituir-se em atividade que contribua, em prol da coletividade, para o desenvolvimento econômico, social, educacional e, claro, esportivo da Nação.  
Nas duas últimas semanas, esta coluna se debruçou sobre os desafios que vêm sendo enfrentados pela lei 14.193/21, a Lei da SAF. O processo legislativo é essencialmente complexo, envolve etapas técnicas, longas e intrincadas, inclusive para equalizar interesses dos legisladores que são, muitas vezes, contrapostos. Há ainda uma etapa adicional, que nem sempre é considerada pelos operadores de direito ou pelos destinatários diretos da norma, que é aquela travada nos tribunais locais, após o início da vigência do novo diploma legal. É o que acontece hoje com a Lei da SAF em alguns tribunais locais, que irão definir os rumos da jurisprudência sobre o tema. O mais novo e rumoroso desdobramento que ganhou as manchetes pelo Brasil aconteceu no estado de Minas Gerais, onde tramita atualmente a recuperação judicial do Cruzeiro Esporte Clube. Frederico Chaves Guedes, ou Fred, foi jogador do Cruzeiro e, em sua última passagem pelo clube, desligou-se no começo de 2020. Atualmente, o ex-jogador processa o clube mineiro e demanda valores da ordem de R$ 30 milhões. A dívida foi constituída em reclamação trabalhista proposta no início de 2020, antes do processo de recuperação judicial da Associação Cruzeiro e da constituição da SAF Cruzeiro. Os recentes desdobramentos decorrem da quebra de um acordo celebrado exclusivamente entre a Associação Cruzeiro e Fred.  Há algumas semanas, o Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região proferiu decisão determinando que a SAF Cruzeiro efetue o pagamento da dívida da Associação. A determinação proferida nos autos reclamação trabalhista é consequência de decisão datada de outubro de 2022, quando referido Tribunal entendeu que a SAF deve responder solidariamente pelo débito da Associação. A nosso ver, o entendimento do Tribunal Regional do Trabalho da 3ª Região parte de uma interpretação equivocada da Lei da SAF. A decisão citada, que responsabilizou a SAF Cruzeiro solidariamente, faz expressa menção aos arts. 9º e 10 da Lei da SAF, mas de forma equivocada. A limitação imposta pelo art. 9° é clara: a SAF não é responsável por repasses ou tampouco pelas dívidas das associações anteriores à sua constituição, com exceção da hipótese contida no art. 10. Este dispositivo, por sua vez, prevê que a SAF realizará repasses à Associação quando (i) a Associação adotar o Regime Centralizado de Execuções ("RCE"), hipótese em que serão vertidos 20% de suas receitas (inciso I) ou (ii) a Associação receber dividendos (ou outros pagamentos decorrentes da posição de acionista da SAF), caso em que 50% do montante recebido deverá ser destinado à satisfação de obrigações anteriores à constituição da SAF (inciso II). Em resumo, a legislação veda a responsabilização da SAF por obrigações relacionadas à Associação e prevê duas hipóteses em que poderão ser realizados repasses. E nenhuma dessas hipóteses se confunde com o que acontece hoje na recuperação judicial da Associação Cruzeiro ou na reclamação trabalhista proposta por Fred. Há dois principais equívocos no entendimento do Tribunal. O primeiro é o de que o art. 10 estabeleceria uma hipótese de responsabilização solidária da SAF, o que não ocorre. O dispositivo trata da possibilidade de repasse nas duas hipóteses acima, bem delimitadas pela letra da lei. O segundo é o de que a recuperação judicial seria equivalente às hipóteses contidas nos incisos do art. 10, mas essa não é a realidade. É bem verdade que a Associação Cruzeiro optou em um primeiro momento pelo RCE. Posteriormente, contudo, a Associação desistiu da medida e deu início ao processo de recuperação judicial hoje em curso.   O pagamento de credores da Associação Cruzeiro, sejam eles trabalhistas ou não, deve observar o plano de recuperação judicial que será ainda votado em assembleia, em atenção concurso universal dos credores. Essa importante conclusão não implica dizer que a SAF Cruzeiro não efetuará repasses ou aportes para garantir o pagamento dos credores da Associação, mas que inexiste regra legal que imponha a solidariedade, que, nos termos do art. 265 do Código Civil, não pode ser presumida. Originalmente, a intenção do legislador foi segregar a Associação da SAF, justamente para permitir o desenvolvimento da SAF e estimular investidores locais ou internacionais a alocar seus recursos nos clubes e no futebol brasileiro. Em outras palavras, a Lei da SAF intencionalmente não previu a responsabilização solidária da SAF justamente para que, em um ambiente seguro, sejam atraídos novos recursos para recuperar, estimular e desenvolver a atividade futebolística. Ao mesmo tempo, a Associação não deixará de receber valores da SAF ou de auferir rendimentos, mas suas dívidas serão readequadas para viabilizar investimentos. Essa foi a intenção do legislador. Além disso, a Associação deterá participação societária em uma SAF que tem valor econômico significativo e que lhe deverá gerar recursos, distribuíveis via dividendos, por exemplo. Assim se equilibram interesses:  ao mesmo tempo em que as associações devem reduzir ou eliminar as dívidas que acumularam ao longo de anos, procurou-se criar um ambiente de segurança jurídica para realização de negócios, de modo a garantir o desenvolvimento do futebol e dos clubes. O Poder Judiciário deve, nesse sentido, reforçar a segurança jurídica e não servir como elemento desestabilizador. Caso contrário, a jurisprudência que está se formando nos tribunais locais servirá apenas para a manutenção de um sistema que é intolerável nos dias atuais, com a ultrapassada lógica de benefícios de cartolas, intermediários e outros privilegiados.
A Escola Judicial do TRT - 3ª Região e a Revista Justiça e Cidadania organizaram, no dia 31 de março de 2023, em Belo Horizonte, seminário que tinha como mote "A Lei da SAF e a Profissionalização da Gestão do Futebol no Brasil". O evento foi organizado pelo Min. Alexandre Agra Belmonte e pela Des. Rosemary de Oliveira Pires Afonso. A irretocável organização reuniu um time de autoridades judiciárias que, se integralmente listadas, tomariam grande parte deste espaço, dentre as quais o Des. Ricardo Antonio Mohallem, Presidente do TRT-3; o Min. João Otávio de Noronha, ex-Presidente e Min. do STJ; o Des. Flávio Boson, do TRF-3; o Des. Paulo Sifuentes, desembargador aposentado do TRT-3; o Des. Moacyr Lobato, do TJMG; o Des. José Murillo de Moraes, do TRT-3; e o Min. Evandro Valadão, do TST. Também participaram do evento advogados, professores, congressistas e representantes dos principais times mineiros: Galo, Cruzeiro e América.   A pertinência do encontro foi antecipada no texto da semana anterior: é no Estado de Minas Gerais, terra do Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional, além de autor da Lei da SAF, Rodrigo Pacheco, e do clube pioneiro na adoção dos mecanismos da Lei, o Cruzeiro, que se travam as mais avançadas disputas, no plano judicial, entre, de um lado, o continuísmo de um modelo futebolístico instituído pela elite excludente (que antecede, aliás, a Lei Aurea), e, do outro lado, a perspectiva revigorante da Lei da SAF. Um dos painéis do evento tinha como propósito tratar de eventuais "propostas de alterações legislativas". Toda nova lei passa por um período de compreensão e acomodação, até que dela se comece a extrair certa unicidade. A doutrina e a jurisprudência têm, como sempre, papel relevante na construção sistêmica. A questão que se coloca, então, é a seguinte: apesar da juventude, a Lei da SAF já precisaria de uma reforma? E se a resposta for afirmativa, de qual dimensão? Partindo-se da premissa de que ainda não houve tempo suficiente para que os Tribunais proferissem decisões em quantidade necessária para construção da segurança jurídica reclamada pelo jurisdicionado, talvez fosse o caso de se concluir que, por enquanto, o emprego de energia em movimento reformista é prematuro. Mas será que essa conclusão se manteria: (i) com a constatação de que a insegurança provém justamente da falta, mesmo que prematura, de uniformidade jurisprudencial?; e, ainda, (ii) se se reconhecesse que os times e os possíveis financiadores da empresa futebolística, com todo seu potencial esportivo, educacional, social e econômico, não aguentarão (ou aguardarão) o tempo do processo judicial e o percurso de todas as suas etapas até que, enfim, uma decisão superior, irrecorrível, estabilize o conteúdo normativo? Pois bem. É isso que ocorre no terreno em que, ao contrário, espera-se pacificação. Daí, aliás, as preocupações de agentes de mercado que se dispuseram a contribuir para construção do sistema (claro, em troca da perspectiva ou expectativa de obtenção de retornos financeiros, que se manifestarão sob a forma de dividendos ou ganhos de capital em eventual venda futura), mas que, pela instabilidade que não compunha a fórmula de cálculo do risco empresarial, podem rever suas posições, reduzir investimentos ou mesmo decidir que sequer entrarão no negócio. E, com isso, oportunidades de atração de recursos restarão dissipadas, em desfavor justamente dos times, dos torcedores, dos atletas, dos empregados e dos próprios credores de clubes. Incertezas, nesse sentido, surgem de temas que não deveriam suscitar dúvidas, como, para citar alguns exemplos, os destacados a seguir, que foram abordados no mencionado seminário: 1.  A SAF responde pelas obrigações do clube que a constituiu? Como regra geral, não, conforme previsão expressa do art. 9º da Lei da SAF. Mas este artigo prevê, sim, uma exceção, que se forma desde que uma (i) obrigação seja relacionada ao objeto da SAF (portanto, o futebol); e (a partícula conjuntiva está presente na Lei) (ii) a obrigação seja transferida da esfera patrimonial do clube para a da SAF. Sem a identificação de ambos os elementos, a responsabilidade, de acordo com a Lei, será preservada, de modo exclusivo, no clube. Esta foi a opção legislativa. Assim, ao se pretender estender à SAF a responsabilidade por obrigação mantida no clube, eventual decisão nesse sentido desconsiderará o texto expresso da própria Lei. 2. A SAF deverá direcionar ao clube que requerer recuperação judicial 20% de suas receitas correntes mensais, na forma do art. 10? A resposta está na própria Lei da SAF: não. Esta situação de repasse de percentual de receitas se aplica, conforme comando expresso, apenas no âmbito do regime centralizado de execuções ("RCE"). Portanto, a determinação judicial de direcionamento de recursos da SAF ao clube em recuperação judicial não encontra previsão legal. Isso não quer dizer que o plano de recuperação não poderá prever um fluxo especial, eventualmente até maior, de recursos ou receitas da SAF ao clube, para satisfazer obrigações anteriores, de responsabilidade exclusiva do clube. Mas eventual decisão nesse sentido competirá aos respectivos agentes envolvidos - e não por força de comando legal -, após as necessárias análises relacionadas ao plano recuperacional. 3. A SAF é ou será em algum momento responsável solidária pelas obrigações do clube? A Lei prevê, no art. 24, que, caso o clube adote o RCE - e apenas neste caso -, a SAF passará a ser responsável subsidiária (e não solidária), após o decurso do prazo de até 10 anos (e apenas após o decurso), pelas obrigações (e somente estas) que eventualmente remanescerem. O texto é cristalino. Portanto, não existe previsão de solidariedade e, quanto à responsabilidade subsidiária, ela só nascerá a partir da verificação, ao cabo do prazo legal, que ainda remanesce obrigação do clube com fato gerador anterior à existência da SAF. Esses são alguns exemplos de temas que vêm sendo suscitados em teses jurídicas, as quais são criadas, em regra, somente para viabilizar a satisfação de interesses individuais e desconectados do propósito principal da Lei da SAF, que é servir como solução sistêmica e coletiva, oferecida aos clubes e à coletividade. Caberá ao Poder Judiciário, em especial o mineiro, resolver esse (falso) dilema. Houvesse já um acúmulo de decisões, mesmo que de primeira instância, que contribuíssem para conferir a segurança jurídica necessária para a criação de um dos maiores mercados futebolísticos do planeta, em linha com os objetivos e com a essência da Lei da SAF, qualquer proposta de reforma legislativa soaria oportunista, neste momento. Diante, porém, dos ataques que sofre, ajustes cirúrgicos e pontuais - que, na verdade, apenas reforçariam o que já está previsto -, por mais absurdo que isso possa parecer, talvez façam sentido. 
O Estado de Minas Gerais sempre teve um papel fundamental nos destinos da República - e, aqui, para efeitos do presente texto, faz-se um recorte histórico, pois, muito antes da proclamação, a região e sua gente já participavam e protagonizavam eventos sociais, econômicos e políticos relevantes e determinantes. De lá saíram, ademais, diversos personagens incontornáveis - e mesmo - essências da história brasileira.  Costuma se dizer, até, e com razão, que um candidato à presidência não se elege se não ganhar a eleição naquele Estado. Assim se mostrou, na prática, desde o recobro do regime democrático, com as vitórias, em Minas Gerais, de todos os presidentes eleitos: Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso (em suas duas disputas), Lula (também em duas ocasiões consecutivas), Dilma Rousseff (igualmente duas vezes, sendo que, na segunda, contra o conterrâneo Aécio Neves), Jair Bolsonaro e, finalmente, Lula (em sua terceira vitória). No futebol, a importância histórica dos times mineiros dispensa qualquer textualização. Basta lembrar que o primeiro campeão brasileiro, em 1971, foi o Galo. E que, na década de 2010, o Cruzeiro enfileirou dois campeonatos brasileiros seguidos (2013 e 2014) e duas copas do Brasil, também consecutivas (2017 e 2018). Independentemente do êxito esportivo que se alcance anualmente - pois, sim, sempre haverá um campeão em qualquer ano -, o futebol brasileiro, aí incluídos todos os clubes que fazem parte de seu sistema até o advento da Lei da SAF, foi ficando para trás, em todos os níveis. De referência planetária, passou ao posto de exportador de pé-de-obra. No plano organizacional, manteve o que havia de mais obsoleto, enraizado desde o século retrasado, em um tempo antecedente à Lei Áurea. E, no plano financeiro, manteve-se dependente dos subsídios estatais e refém de vias heterodoxas de financiamento da atividade futebolística, pela incapacidade jurídica de acesso ao mercado de capitais. O resultado, todos conhecem: a formação de um enorme passivo social e financeiro, contabilizado em dívidas bilionárias, cujo ônus é distribuído, em última análise, aos contribuintes. Pois de Minas Gerais veio a solução, já mencionada acima: a lei 14.193/21 (ou Lei da SAF ou, ainda, conforme nome adotado nesta coluna, Lei Rodrigo Pacheco), de autoria justamente do mineiro Rodrigo Pacheco, Presidente do Senado Federal e do Congresso Nacional. Antes da Lei da SAF, não havia luz no final do túnel. Para ficar apenas nas Minas Gerais, o Cruzeiro, enterrado em dívidas, não tinha saída por seus próprios meios e caminhava para um colapso que seria muito mais grave do que o rebaixamento para segunda divisão. Logo após o advento da Lei, ainda coberta de desconfiança, espalhada pelos corneteiros do caos, que não querem mudar nada, e quando apoiam alguma mudança almejam, na verdade, a manutenção do status quo, o país - e o mundo - foram surpreendidos com a notícia de que Ronaldo Nazário investiria no time que o revelara - o Cruzeiro. Ali se deu o sinal de que algo estava acontecendo e chamou atenção de possíveis financiadores da atividade futebolística. Na sequência desembarcaram, advindos de distintos países, outros investidores. A perspectiva transformacional se iniciou, portanto, também no Estado de Minas Gerais. O pioneirismo costuma, no entanto, cobrar a fatura, aqui e em qualquer lugar. Os caminhos escolhidos estão, agora, sendo testados, no plano judiciário, em especial nos Tribunais mineiros, onde se poderá reconhecer e afirmar, imediatamente, o propósito social e econômico fundante da Lei da SAF ou, ao contrário, reafirmar a indústria parasitária que, sob o modelo associativo, erigiu uma dívida bilionária e, sem exagero, destruiu a esperança de milhares de famílias e crianças, esquecidas pelo Estado e por Governos. Nesse sentido, os Tribunais locais, em especial o do Trabalho, vêm sendo confrontados com teses que desconsideram não apenas o propósito, como o conteúdo da Lei da SAF. Dentre as teses que se produzem, uma pretende estender à SAF a responsabilidade por obrigações anteriores, contraídas única e exclusivamente pelo clube que a constituiu. Além de não ter amparo legal, esse esforço argumentativo desconsidera que a própria Lei da SAF oferece os meios para satisfação de credores do clube, que vão desde o estabelecimento de fluxos de recursos, contratados nas hipóteses de renegociação sem adoção de vias mais drásticas, até a transferência obrigatória de receitas da SAF para o clube, no âmbito do regime centralizado de execução ou o conteúdo previsto em plano de recuperação judicial, caso esse venha a ser o caminho adotado. Pior: tenta-se afastar, com a tese, a análise casuística de eventual fraude ou ilegalidade, eventualmente operada em caso concreto - que, se e quando demonstrada (não apenas no âmbito da constituição de uma SAF), merecerá ser reprimida -, para, no lugar, pressupor-se a essência patológica de uma lei salvadora. Afinal, essa análise deve ser feita apenas em cada caso concreto, e não em abstrato (ou presumida). O problema é que, sob argumento de preservação do crédito trabalhista, além da inobservância da própria lei (e essa proposição merece ser repetida), se produzirão efeitos contrários ao que, aparentemente, se pretende: o afastamento do investidor local ou estrangeiro, a escassez de recursos para financiamento da atividade produtiva (futebolística), crise, desemprego, incapacidade de satisfação de créditos, inclusive laborais, e assim por diante.   A Lei da SAF não foi arquitetada para prejudicar ninguém; fundamenta-se na relevância sistêmica do futebol e na possibilidade de torná-lo uma via de desenvolvimento econômico e social. Aliás, mais do que isso (e já não seria pouco): também um instrumento de inserção e de afirmação da cultura brasileira, local e internacionalmente (softpower). É isso, pois, que está em jogo, no ambiente dos Tribunais mineiros: o futuro de uma iniciativa promissora, apresentada por um mineiro, que foi pioneiramente testada por um clube mineiro, e que poderá contribuir para o desenvolvimento do país - e para a empregabilidade.
quarta-feira, 29 de março de 2023

Viola Davis, o futebol, a SAF e a Liga de times

Em bela produção disponível na plataforma Netflix, Viola Davis, que ainda será reconhecida como uma das maiores atrizes da história, vencedora de prêmios como Oscar, Emmy, Grammy, Sindicato dos Atores, Tony e Globo de Ouro, concede entrevista a Oprah Winfrey, que formula, durante pouco menos de 50 minutos, uma série de perguntas sobre o livro biográfico, intitulado "Finding me", que a entrevistada escreveu. Lá pelo meio da comovente e, ao mesmo tempo, agradável conversa - resultado nada óbvio por conta da complexidade e dureza dos assuntos abordados - Oprah invoca certa afirmação contida no livro: "os sonhos da menina Viola", que cresceu em situação de miséria extrema, "eram maiores do que os seus medos". Medo, por exemplo, das ratazanas que saltavam do telhado do cubículo em que morava, para devorar as poucas bonecas que seus pais podiam dar-lhe. Viola então afirma que sim, que precisava de um sonho, da mesma forma que precisava de água e comida. E vai além: o sonho era mais do que um objetivo, era sua saída, sua salvação. A atriz encontrou seu caminho, não apenas pelo talento e pela perseverança, mas porque teve sorte; sorte de não ter sido massacrada pelo sistema construído para excluir e explorar pessoas como ela: mulher, negra, pobre e sem conexões sociais. Sim: quantas pessoas talentosas, mais ou menos do que ela, não se perderam em suas caminhadas - se é que tiveram forma ou possibilidade de iniciá-las? E quantas pessoas sem talento artístico, científico ou esportivo - o que não revela qualquer demérito - que nutriam o simples sonho da dignidade, viveram à margem da sociedade dos favorecidos? Feita essa breve exposição, repito a frase tantas outras vezes formuladas nesta coluna: e o que o futebol tem a ver com isso? Tudo. Num país marcado pela desigualdade como o Brasil, em que (i) a perspectiva da educação como via de ascensão ou afirmação social e econômica vale, grosso modo, apenas aos filhos das classes favorecidas, (ii) os filhos das gentes desfavorecidas sonham em jogar futebol ou cantar funk para, além da fama, inserirem-se e oferecerem melhores condições aos familiares, e (iii) o futebol se tornou não apenas um passatempo ou atividade lúdica, mas uma manifestação de cultura e um softpower, o tema do futebol não poderia ser ignorado pelo Estado e pelos Governantes, como sempre foi. Da miopia, colhe-se o resultado: a exacerbação do individualismo e do patrimonialismo, estimulados pelo próprio Estado, que financia, à conta do erário (e do labor do homem e da mulher comuns, pagadores de tributos), a farra da vaidade e da irresponsabilidade - para ficar por aí. Ao invés de contribuir para o desenvolvimento da Nação e do seu povo, o esporte vem se transformando, assim, em contingência e, pior, em palco de tensões e desentendimentos provocados por interesses, como sempre, egoísticos.   A Lei da SAF, que desde sua origem oferece possibilidades de libertação do sistema associativo e do cartolismo, não surgiu de um programa de Estado ou de Governo. E agora que a SAF começa a abrir perspectivas a torcedores de Cruzeiro, Vasco, Botafogo, Bahia, dentre outros, e que, ao que tudo indica, trará novas e alvissareiras novidades a torcedores de Galo, Athletico Paranaense, Coritiba, América Mineiro, e alguns mais - e assim contribuir para que cumpram, de modo efetivo, suas funções sociais e econômicas, além de esportivas -, o Estado continua alheio aos seus desdobramentos. Já se afirmou nesta coluna, mais de uma dezena de vezes, que não cumpre ao Estado intervir no futebol. Seu papel, em relação a esta atividade, consiste na regulação, isto é, no provimento de arcabouço jurídico necessário para que agentes possam modelar negócios com segurança e previsibilidade.  Não bastasse Governos não estarem nem aí para os desdobramentos do mercado do futebol, pois sempre se aponta que há algo mais relevante a fazer - e assim se entrega, por nada, uma das maiores riquezas da Nação, que responde por 11% de todas as negociações planetárias, e cujos lucros se dividem entre intermediários e importadores -, também desprezam (e, portanto, não estão novamente nem aí) a magnitude que uma liga de times teria para o país. Tal movimento não envolve apenas o deslocamento da competência organizacional - de uma confederação para uma liga - ou a reformulação de calendário anual. Se bem que esse binômio, em si, já valeria o esforço. Envolve muito, muito mais: investimentos, empregos, novos negócios, visibilidade, exportação, tributos, redistribuição, educação, inserção, orgulho, softpower, afirmação ... Mas será que haverá um homem ou mulher que se disponha a abrir os olhos para a oportunidade e liderar, com ou sem medos, a transformação de um sonho em algo material e realmente grandioso? Grandioso para todos, e não apenas para algumas dúzias de cartolas e de intermediários - ou para três ou quatro clubes?
quarta-feira, 22 de março de 2023

E agora, torcedor do Figueirense? - Parte III

Publicamos em 2017, nesta coluna, um artigo cujo título era "e agora, torcedor do Figueirense?"1. Questionava-se, à época, o modelo de negócio anunciado pelo clube, envolvendo o ingresso de suposto investidor, que, desde a origem, foi pautado pela falta de transparência em relação ao que se pretendia e pela dúvida sobre os verdadeiros beneficiários (ou interessados) finais envolvidos na operação. As promessas, no entanto, eram audaciosas: assunção de dívidas pelo fantasmagórico investidor, injeção de recursos milionários, indicação de profissionais egressos do mercado paulista, incluindo o ex-CEO e o ex-técnico de um (ex) poderoso time de São Paulo, e outras coisas mais. As indagações que se multiplicavam a cada pronunciamento ou a cada movimento dos dirigentes do projeto eram esquivadas, sem revelação de elementos essenciais do que estava, de fato, acontecendo. O que tal projeto teve ou tem a ver com a Lei da SAF e com a própria SAF? Absolutamente nada. Primeiro porque foi estruturado muitos anos antes da entrada em vigor da Lei da SAF, que ingressou no sistema jurídico em 2021. Segundo porque os princípios e as premissas da Lei da SAF almejam exatamente enfrentar e evitar tal tipo de desfecho, como o tido no modelo de negócio adotado pelo Figueirense em 2017. Por isso, aliás, alertamos, à época, para o risco de que o sonho vendido ao torcedor terminasse em pesadelo, da seguinte forma: "o mais relevante deles (dos sinais negativos do negócio anunciado pelo Figueirense) diz respeito à similitude que essa parceria parece ter com os tantos outros projetos malsucedidos, que foram desenvolvidos logo após o advento da Lei Pelé (lei 9.615/1998)". Em 2019 retomamos o tema, com novo texto intitulado "e agora, torcedor do Figueirense? - Parte II"2. Naquele momento, a situação do clube, conforme notícias públicas, já era calamitosa: acumulavam-se atrasos salariais, dívidas, incertezas, questionamentos sobre o suposto investidor e o grupo de gestores contratados para manejar o contrato, dentre outras mazelas. Ali se anunciava, portanto, que, na esteira dos demais negócios obscuros realizados no país antes do advento da Lei da SAF, pela ausência de regulamentação adequada para organizar a atividade futebolística, o fim do poço havia chegado. Só que não - como se costuma dizer por aí... De lá para cá, o calvário do Figueirense, time tradicional de Santa Catarina, intensifica-se cotidianamente, dando ensejo, inclusive, às assustadoras imagens veiculadas pelas redes sociais nos últimos dias, envolvendo invasão de campo, ameaças e agressões. A indignação coletiva decorre de um processo que se expandiu pelo país, causado pelo encastelamento dos times de futebol em estruturas arcaicas, dominadas por políticas clubísticas, desassociadas do interesse do próprio time e dos torcedores. Por isso que, naquele texto de 2019, clamávamos pela criação de "um novo ecossistema, um novo mercado do futebol, que alie as preocupações desportivas - que são legítimas - aos conceitos e técnicas empresariais, observe as melhores práticas de governança corporativa e respeite as particularidades (culturais, econômicas e conjunturais) do futebol brasileiro, oferecendo-lhe, assim, uma via de transição". A resposta ao clamor veio em forma de lei, a Lei da SAF, concebida para, além da concepção legislativa da própria SAF (como veículo societário específico para determinado setor), também para dispor sobre normas de constituição, governança, controle e transparência, meios de financiamento da atividade futebolística, além do tratamento dos passivos das entidades de práticas desportivas. Trata-se de um conjunto de normas que pretende instituir, de modo paradigmático, um sistema sustentável, nucleado pela SAF, e que faça o futebol no país cumprir suas funções esportiva, econômica e social. A Lei da SAF será a solução para todo time em crise ou mesmo para times que pretendam crescer e se afirmar local e regionalmente? Não necessariamente - e nunca em si mesma, apenas, pois depende da sua integração a um projeto que vise, de fato, a recuperação e o desenvolvimento, mediante o emprego de técnicas, regras e sistemas que busquem a inserção do futebol (e sua gestão) no ambiente empresarial, e a atenção a padrões elevados de mercado. Mas já se pode afirmar, após dois anos de seu manejo, que a sua correta utilização, com a associação a parceiros ou sócios conhecidos, com lastro, e que promovam a publicização dos planos imediatos e mediatos, tornou-se uma condição necessária (apesar de não suficiente) para sobrevivência de muitos dos principais times brasileiros. Voltando ao Figueirense, ainda haveria espaço e tempo para, a partir de algum mecanismo previsto na Lei da SAF, como a captação de recursos no mercado, a obtenção de aporte de investidor, a recuperação judicial ou extrajudicial, recobrar seu rumo e, com as dificuldades de um processo dessa natureza, resistir? Talvez. Independentemente do destino desse caso (que, espera-se, possa ser revertido), as lições que se extraem das operações mais relevantes ocorridas até o momento, como as protagonizadas, por exemplo, por Ronaldo Nazário, John Textor, 777 e Grupo City, apontam para, goste-se ou não de cada um deles, o surgimento de perspectivas antes inexistentes aos times e torcedores. É isso, pois: a falta de perspectiva de outros clubes, mesmo de alguns que acumulam as maiores torcidas do país, também pode levar, guardadas as respectivas diferenças e características, a desfechos devastadores. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
quarta-feira, 15 de março de 2023

Sim, aprendam a conviver com a SAF

O tema desta coluna sugere um diálogo com texto publicado recentemente pelo editor geral de esportes do Estadão, jornalista Robson Morelli, cujo título é "aprendam a conviver com a SAF"1. Aliás, como falta ao país a prática da dialética, visando à construção de ideias, projetos e políticas públicas no interesse da coletividade. Acostumou-se, por aqui, a uma espécie de monólogo, sobretudo intelectual e acadêmico, de modo que contrapontos construtivos raramente são estabelecidos; ou, quando ocorrem, são levados, pelos envolvidos, para o lado pessoal. Ao contrário do que se observa, por exemplo, nos Estados Unidos, em que é comum - ou, mais do que isso, é inevitável - o surgimento de posições e contraposições, quase sem fim, entre proposições ou teses lançadas por qualquer pensador. No plano jurídico, e mesmo econômico, formam-se antagonismos perenes, espécies de Fla-Flu ou São Paulo x Corinthians, entre intelectuais, esbarrando, até, num certo fetiche: basta um autor escrever algo que, na sequência, outro, e sempre o mesmo, já o rebate. Com isso se constrói uma sólida argumentação que reforça o funcionamento das instituições. O propósito deste texto é muito menos ambicioso e não se presta a uma oposição; pretende-se, apenas, um diálogo a partir das mesmas premissas, mas que, em função da lógica adotada, servirão para sugerir conclusões distintas. No mencionado artigo, o respeitado jornalista afirma que "ganhar jogos e valorizar o nome do clube e de sua marca (o distintivo) é o único objetivo dos donos das SAFs". Essa afirmação merece algumas considerações. Não parece que esses sejam os únicos objetivos, apesar de, sim, fazerem parte do propósito de qualquer investidor ou empresário (e deveriam fazer parte também dos objetivos de um clube). Mas, será que há algum problema naquela proposição? Ganhar jogos é um problema? E valorizar o nome da SAF e do time? Lembre-se que, atualmente, quase ninguém fora do país conhece os times brasileiros, assim como nós, brasileiros, não conhecemos, de modo geral, times marroquinos, australianos, chineses, senegaleses, algerianos ou árabes. Mais: pouca gente lembrará - ou terá dificuldade para lembrar - dos times não europeus que eliminaram Palmeiras, Internacional, Galo e, logo mais, Flamengo, do Mundial de Clubes. Mas quase qualquer criança, de qualquer país, saberá discorrer sobre o Real, o Barcelona, o Liverpool, os dois times de Manchester, Liverpool e PSG. Ser conhecido, no plano futebolístico, tornou-se uma necessidade. Ronaldo Nazário, no caso mencionado na matéria, ao ingressar no Cruzeiro (e tornar-se "dono" do time, além de um possível salvador da pátria), levou o nome de sua SAF, sem exagero, ao mundo todo. Se conseguir transformá-la numa potência, ganharão o próprio Ronaldo, a SAF Cruzeiro, o clube Cruzeiro, o time, os torcedores, o futebol brasileiro e o país. No mesmo texto, o jornalista afirma que Ronaldo Nazário e "todos os outros" investidores "visam o lucro". Sim, e com razão. A obtenção ou a busca pelo lucro, quando inserida no ambiente futebolístico brasileiro, costuma ser tratada como uma conduta maligna, portanto, intolerável. Porém, qual o mal no lucro, se obtido de forma legítima? Sob outro prisma, deve-se manter o modelo atual em que cartolas irresponsáveis, despreocupados com o equilíbrio, quebram seus clubes e subtraem a esperança de um contingente de torcedores, como fizeram os dirigentes anteriores do próprio Cruzeiro? Se uma SAF reportar lucro, indicará ao mundo que suas receitas superam suas despesas e que, quem negociar com ela, lidará com responsabilidade e perspectiva de cumprimento de deveres e obrigações. Mais do que isso: que deverá existir um projeto sustentável.   Também se aponta, no mencionado texto, que Ronaldo Nazário estaria vendendo, na alta, 20% de sua participação, para embolsar rápido lucro decorrente de seu investimento. Aceitando-se a premissa - a qual será, no entanto, questionada adiante - haveria um pecado ou uma quebra de confiança no investidor, pelo aproveitamento de uma oportunidade de mercado, após ter corrido o risco do negócio? Entendo que não. Aliás, ele jamais disse que não negociaria com suas ações, após socorrer e, ao que tudo indica (ou ao menos se espera), direcionar o salvamento do Cruzeiro. Dito isso, vale apontar que, em minha opinião: (i) o Cruzeiro ainda não está na alta, pois precisará se provar na série A; em uma edição que será, talvez, a mais competitiva deste século; (ii) a situação lá, como afirma com frequência Gabriel Lima, CEO da SAF Cruzeiro, continua muito complicada, e o objetivo de 2023 será se manter onde está (ou seja, não cair para a série B); e (iii) de acordo com informações públicas, contidas em matérias jornalísticas, Ronaldo não está vendendo ações; o investidor fará um aporte, conversível em participação na SAF, de modo que os recursos irão para a própria SAF Cruzeiro, e não para Ronaldo, o qual será, em decorrência da conversão, diluído. Destaca-se outra afirmação do texto: "elencos fortes vão valorizar o clube. Vitórias e conquistas também. Mas é inegável que a torcida vai ter de entender e se acostumar com a nova forma de gerir o futebol. Vendas de jogadores haverá o tempo todo. A SAF pressupõe esse tipo desprendido de ação. A dúvida, no entanto, é saber se haverá reposição à altura". Esta proposição merece algumas reflexões. A descrição não coincide com a realidade dos clubes brasileiros antes do advento da Lei da SAF e não continua a coincidir dois anos após sua promulgação? Clubes brasileiros não se tornaram, ao longo do tempo, exportadores de jogadores imberbes? Quem consegue reter um jovem talentoso, após meia dúzia de boas apresentações? Veja-se o caso do outrora poderosíssimo e hoje decadente São Paulo Futebol Clube: ele retem algum talento que cria? E, no ambiente de sua vocação contemporânea, qual seja, o comércio de jogadores, repõe à altura? Onde estão os substitutos de Casemiro, Militão, Neres, Antony, Sara ou Marquinhos? E de Endrick, perdido sem contrapartida ao rival? Exemplos semelhantes podem ser extraídos de todos os demais clubes brasileiros, que não têm investidores, mas dirigentes abnegados que administram, em muitos casos, quase massas falidas, às custas de toda a sociedade, ou seja, de pessoas físicas ou jurídicas que pagam seus impostos - inclusive as novas SAF's, que são tributadas com base em receitas. Portanto: o sucesso do time gerido pela SAF, as vitórias, a glória, o lucro, a distribuição de riquezas, a negociação de jogadores, o pagamento de tributo, o reinvestimento, o início de novos ciclos, e assim por diante, por mais contraintuitivo que possa parecer, são os pontos de convergência com a felicidade do torcedor. __________ 1 Disponível aqui.
Quase vinte dias se passaram desde a tragédia que abalou o litoral norte paulista, e a comoção, como se imaginava, já está em processo de dissipação. Logo mais, nada ou pouco se falará, em rodas de amigos ou nos meios de comunicação, com exceção de uma ou outra nota, publicada aqui ou ali, sobre os andamentos de projetos circunstanciais - e, a se levar em conta o histórico nacional de outras tragédias, sobre o esquecimento das populações afetadas, sobre promessas não cumpridas, sobre a entrega de moradias em que os próprios entregadores não morariam, (eventuais) casos de desvios e outras coisas mais que fazem parte de crônicas assemelhadas. Isso mesmo: colunistas já quase não tratam do tema, enquanto sobram poucas matérias, menos adjetivadas ou comoventes, que relatam as ações pós-diluvianas. A edição de 4 de março do caderno Cotidiano, da Folha, anuncia - parece-me que sem intenção - o que está por vir. São três textos, distribuídos em uma página inteira. O principal deles, intitulado "Governo quer casas pré-moldadas para vítimas das chuvas no litoral paulista", parece indicar que, como se diz por aí, não se fará do limão uma limonada: ou seja, ao invés de se partir para uma via estrutural - em que seriam arquitetadas soluções que não se resumiriam a tetos enfileirados para agrupamento populacional -, preferiu-se seguir por caminhos paliativos ou insuficientes. Afinal, pensar e implementar uma intervenção que envolva estrutura, saneamento, arquitetura, emprego, educação, cultura, acesso, locomoção, produção, alimentação, esporte, lazer e tecnologia dará muito trabalho e, no final das contas, as gentes esquecidas do país só merecem atenção quando passam por catástrofe. O segundo texto é reflexo daquela proposição: "Prefeitura e estado vão recorrer à PM e ao uso de imagens para evitar reocupação de morros". A grosseria não tem mesmo limite. População carente sobe morro, para construir ilegalmente em área de risco, poque não tem opção. Outras áreas desocupadas ou são inabitáveis ou pertencem a terceiros. E, agora, para assentar pessoas que se tornaram, a um só tempo, problema e trunfo, perdas e ganhos (públicos e privados), encontrar-se-ão "soluções" que, ao que tudo indica, não deixarão um legado - e não servirão como referência para formulação de políticas públicas corretas. Ao contrário: poderá ser a origem de um problema maior, inclusive de rejeição imediata ou mediata, pela coisificação e midiatização das necessidades humanas.     O terceiro e menor de todos os textos, encostado ao canto da página, relaciona-se com a proposição anterior, e é apresentado com o seguinte título: "Desabrigados irão ocupar 300 imóveis prontos em Bertioga". A notícia que poderia parecer um alento - em especial para quem, desde o sábado de carnaval, está sem teto - sintetiza, na verdade, a necessidade de resposta política a uma comoção pública e a um drama humanitário; pois, além de afetar o destino de pessoas que morariam em tais localidades - e serão preteridas em suas necessidades e sonhos -, também abala as vidas daquelas pessoas que trabalhavam e estudavam nas regiões afetadas e serão deslocadas, para outro munícipio, de modo involuntário. E não se diga que aí já é querer demais, pois, além de teto, vão exigir localização. Não; definitivamente, não! Além de dignidade, Governos e a sociedade devem oferecer, também, respeito e perspectiva. E o que isso tudo tem a ver com o futebol? Muita coisa. Lembre-se, inicialmente, que, há mais de 120 anos, o Estado subsidia o futebol, com imunidades e renúncias fiscais, programas de financiamento e parcelamento de tributos em atraso (decorrentes, muitas vezes, do não recolhimento de retenções realizadas), loterias, programas de incentivo, patrocínios diretos ou indiretos, dentre outras modalidades. Apesar disso, a maioria dos clubes pouco ou nada retorna à sociedade, além de um passivo multibilionário e a incapacidade de autogestão (mesmo quando presididos por associados qualificados ou bem-intencionados, que esbarram em anacrônicas estruturas internas de administração). Todo mundo vê a mesma a coisa e ninguém faz nada, tanto governantes como governados - em especial torcedores. E assim se constrói, com discursos falaciosos, uma narrativa que atenta contra o patrimônio nacional - e contra a nação. Uma parte do problema poderá ser solucionada com o advento da Lei da SAF. Ela oferece instrumentos para implementação de soluções sistêmicas, que poderão liberar times do associativismo retrógrado do século retrasado, e, assim, viabilizar a reorganização patrimonial, o acesso a financiamentos e a sustentabilidade. A outra parte do solucionamento adviria da formação de uma liga de sociedades anônimas do futebol (e de clubes que mantiverem o modelo associativo, eventualmente), que gerisse os interesses de modo coletivo - respeitadas certas características de seus integrantes - e distribuísse receitas de modo mais igualitário. Portanto, que se fundasse em princípios (i) menos individualistas - que norteiam muitos dos maiores clubes - e (ii) mais inclusivos e democráticos. Antes que se diga tratar-se de um encaminhamento socializante, tal caminho, ao contrário, foi projetado e implementado pioneiramente no berço do liberalismo, onde ainda impera o laissez-faire, inclusive no âmbito do futebol: a Inglaterra, exportadora do mais bem sucedido produto de entretenimento do planeta, a premier league. Pois bem, se os clubes não são capazes de, por conta própria, se organizarem e se acertarem, e se esses mesmos clubes, em sua maioria, são responsáveis por passivos sociais e econômicos (que se imputam direta ou indiretamente ao Estado e ao contribuinte), e se o Estado tem interesse (ou deveria ter) em que os times criem uma estrutura própria e privada que gerará formação, educação, distribuição, riquezas, exportação, soft power etc., já passou a hora de o Estado chamar os clubes a indicarem o que precisam para, de uma vez por todas, cumprirem suas funções sociais e econômicas, de modo organizado e coletivo, e passarem a ser fonte de riqueza, e não de contingência. Ou, em sentido contrário, acenar com o fim das benesses que nenhum outro tipo de empresa recebe, por mais produtiva que seja, e que, mesmo assim, não foram, nem são, suficientes para fazer com que as empresas do futebol sejam sustentáveis, neste modelo secular associativo e apoiado no subsídio estatal. No atual momento da história desta república, em que, desde a proclamação, já se passou por tudo (de democracias a ditaduras), não deveria mais haver espaço para respostas paliativas (ou a omissões) em relação a problemas estruturais, como os do Sahy e do futebol.