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Meio de campo

Textos sobre Direito Esportivo e mercado.

Rodrigo R. Monteiro de Castro
No âmbito da apresentação e explicação do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, que vem tomando conta desta coluna, tratou-se, nos dois últimos textos, da posição dos agentes financiadores e provedores de capitais, lá chamados, coletivamente, de mercado. A inserção, não de uma entidade abstrata e irreconhecível (o mercado), mas de agentes interessados em participar de uma companhia com vocação para ser protagonista mundial, é condição necessária para que o protagonismo se realize. A realização, como se vem demonstrando, beneficiará clubes, sociedades anônimas do futebol, CBF Associação e a sociedade civil em geral. Mas o tal mercado - ou os agentes dispostos a financiar o desenvolvimento da seleção brasileira - não viabilizará a promoção de benefícios sem contrapartidas. Não se trata de mesquinharia, ganância ou insensibilidade; apenas de motivação para alocação de recursos próprios ou de terceiros. Esse debate, aliás, já se travou por ocasião do advento do anteprojeto de lei que propôs a criação da SAF: como se justificava - e ainda se justifica - que a maior atividade de entretenimento do planeta (o futebol), no país que já foi justamente o do futebol (o Brasil), não atraísse interesse de financiadores e investidores? Pois havia uma espécie de muro entre dois mundos, o mundo do futebol e o de capitais, inviabilizador da benfazeja (e necessária) comunhão. A Lei da SAF, que completa o seu terceiro ano, viabilizou, em sentido inverso, a criação de um ambiente, minimante regulado, cuja própria regulação forma uma espécie de novo mundo (ou moldura), composto por aqueles agentes outrora estranhos uns aos outros, como se ilustra abaixo: Aquele estranhamento, com algumas diferenças, se estende ao secular e ainda atual modelo organizacional da CBF, que a apequena interna e externamente, apesar dos excedentes gerados a cada ano e do caixa sobre o qual está montada - justificados, sobretudo, pela sua posição monopolística. O Brasil dispõe, porém, de um dos mais relevantes ativos planetários e a perspectiva de transformá-lo em softpower, para o bem geral - inclusive da CBF. Os caminhos já foram apresentados nos textos anteriores e estão à disposição dos dirigentes da CBF Associação e de Federações, para que a roda comece a girar. A disponibilidade, para que se revele eficiente e efetiva, deverá atrair, como dito, interesse de agentes financiadores e investidores. E aí está, portanto, a pedra de toque: um modelo de abertura de capital arquitetado para construção de uma relação segura, transparente e previsível, em favor de todos os partícipes do sistema. O trinômio (segurança, transparência e previsibilidade) se traduz em vias e técnicas jurídicas aptas a preservar as regras que forem instituídas, em todos os planos construtivos: governação, informação, compliance, fiscalização e proteção. Soma-se a esse conjunto relacional interno a necessidade de manutenção, no plano legislativo, das regras instituídas, de modo a preservar o ato jurídico perfeito e o cálculo de risco na alocação de recursos em atividade empresarial. E se completa a receita com a sempre esperançosa atuação judicial, mediante provocação e sem ativismo, (apenas) para conter ilegalidades e abusos ou para afirmar direitos, derivados de lei ou de contratos.  Parece complexo, mas definitivamente não é. A experiência internacional, que vai além do futebol, afirma o interesse global pelo esporte, em especial - e por diversos fundamentos - pelo próprio futebol. O Brasil também confirma a proposição. Desde a Lei da SAF, aproximadamente 70 sociedades anônimas do futebol foram constituídas, e agentes de diversas procedências e com as mais variadas características embarcaram na tese. E a história está apenas se iniciando. No embalo de tal movimento, a abertura de capital da CBF, que se trata de ativo único, não apenas colocaria o país na vanguarda do esporte - e do entretenimento -, como, no âmbito de um projeto devidamente estruturado, poderia atrair investidores institucionais, locais e internacionais, convergentes na criação do maior projeto esportivo da história.
No âmbito da apresentação e explicação do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, que vem tomando conta desta coluna, tratou-se, no último texto, da posição dos agentes financiadores e provedores de capitais, lá chamados, coletivamente, de mercado. O (relevante) posicionamento, que não se resume a uma mera atribuição de lugar, é ilustrado, uma vez mais, no seguinte gráfico: O papel (ou a função) do mercado é transformacional. Como já se afirmou, a CBF S.A. seria um ativo especial e único, sem comparação no planeta, pela história e as perspectivas da seleção de futebol (que seria, como explicado anteriormente, de propriedade da CBF S.A.). Mais: pelas riquezas que poderiam ser geradas em favor da própria CBF S.A., de seus acionistas (incluindo a CBF Associação, clubes, sociedades anônimas do futebol e federações) e do país. Sim, pois além de uma reunião dos melhores jogadores brasileiros, a seleção deveria servir, mesmo (ou especialmente) sob propriedade privada, como o mais poderoso soft power da Nação. Não há ilusão, utopia ou ufanismo nessa proposição; muito menos incompatibilidade entre a atuação privada, dirigida pelo mercado (em compasso com os demais acionistas da CBF S.A., que seriam, originalmente, a CBF Associação, as federações, os clubes e as sociedades anônimas do futebol), e o interesse público ou nacional, na disseminação cultural de um país. Repise-se o que Hollywood fez - e ainda faz - pelos Estados Unidos da América, mediante a inoculação cotidiana dos valores e interesses internos, que se projetam ao exterior e se fundem em praticamente todas as culturas, homogeneizando (para o bem e para o mal) manifestações outrora inconciliáveis. Essas conquistas, que no passado somente se viabilizariam por intermédio de mobilizações expansionistas, com uso da força ou de guerras, evidenciam a necessidade de aproveitamento de ativos únicos, espontâneos ou deliberadamente construídos, marcantes em certas culturas contemporâneas. É o caso, no plano da construção, do recente fenômeno do movimento pop sul-coreano (o K-pop), consumido planetariamente a despeito da dificuldade de compreensão linguística. Eis um bom exemplo, aliás, de como agentes privados podem, direta ou indiretamente, tornar-se embaixadores de seus países e lhes propiciarem influência, poder e renda. O futebol, muito além da música ou do cinema, é a mais global das atividades rotuladas como entretenimento, praticado em um número de países maior do que a quantidade de filiados à ONU, por exemplo. Esse fato, somado à incapacidade da CBF Associação de assumir funções de exportadora de produtos desejados em qualquer rincão do planeta - inclusive nos mais prósperos e propensos a consumi-los em larga escala - e de disseminadora de soft power, expressam o tamanho da oportunidade que se desperdiça. Não se pretende, aqui, atribuir a pessoas, passadas ou atuais, a responsabilidade por isto. Trata-se, apenas, de uma constatação: a CBF Associação jamais executará aquelas funções, pela sua natureza jurídica (e política) - motivadora de suas pequenas (e ao mesmo tempo grandes) querelas internas, regionais e político-administrativas. E é justamente aí que se reforça a pertinência do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, no qual a CBF Associação se posicionaria não só como acionista da CBF S.A., mas também guardiã de tradições e história. Foi no mercado, ou mediante apelo aos capitais disponíveis, que, desde tempos longínquos, Nações se expandiram via comércio marítimo (Inglaterra, como melhor exemplo) ou, na contemporaneidade, por intermédio de suas ideias e produtos (Hollywood e K-pop, dentre outros). A abertura de capital da CBF S.A., oriunda de um ato de vontade da CBF Associação, com a participação das federações, dos clubes e das sociedades anônimas do futebol, e realizada no âmbito de um plano qualificado de legítima expansão e dominação, forneceria recursos financeiros, jurídicos, governativos, relacionais e humanos para reprodução e adaptação, ao futebol, de empreendimentos expansionistas bem-sucedidos. Em outras palavras: o mercado, com as suas imperfeições e tendências históricas à apropriação da maior quantidade de lucros em favor de interesses próprios, poderia, no entanto, no âmbito de uma proposta convergente de pretensões coletivas e individuais, previamente arquitetada, viabilizar a adequada distribuição de ganhos, inclusive (e necessariamente) ao próprio mercado, e, assim, impulsionar a criação do maior sistema de futebol do planeta: o brasileiro.
Após apresentação e explicação do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, bem como da indicação das posições que federações, clubes (e sociedades anônimas do futebol) e CBF teriam no sistema, situam-se, desta vez, os agentes financiadores e provedores de capitais, aqui chamados, coletivamente, de mercado. No texto anterior da série, foram indicados dois caminhos. O primeiro deles parte da premissa de que a CBF Associação seria mutualizada, mediante a criação de títulos patrimoniais, para distribuição entre federações e clubes (e sociedades anônimas do futebol); na sequência, a CBF Associação seria desmutualizada, com a sua transformação em companhia (e aqueles títulos patrimoniais convertidos em ações); e, por fim, esta companhia, a CBF S.A., abriria capital, resultando na seguinte estrutura: O elemento de interesse deste texto, qual seja, o mercado, foi apresentado, portanto, como os outros acionistas que subscrevem ações, por ocasião da abertura de capital. No segundo caminho proposto, o organograma apresenta algumas diferenças, sendo a principal o fato de a CBF Associação não desaparecer. Isto porque ela constituiria uma companhia e subscreveria a totalidade das ações de sua emissão; depois, federações e clubes (e sociedades anônimas do futebol) subscreveriam novas ações da CBF S.A.; de modo que, ao fim e ao cabo, a CBF associação preservaria sua existência e manteria sua posição de acionista da CBF S.A., conforme indicado a seguir:   Na sequência, os acionistas aprovariam a abertura de capital para atração do mercado, conforme se apresenta abaixo: Esse movimento atrativo do mercado é o foco deste e do próximo texto. Sob a perspectiva do próprio mercado, a CBF S.A. seria um ativo único, sem comparação no planeta, pois proprietária da mais vencedora e, ao menos no plano popular, também a mais admirada seleção de futebol do planeta. Verdade que isso não seria motivo suficiente para que agentes supostamente racionais empregassem seus recursos na nova CBF S.A. Porém, os números também brilham; e atraem. Mesmo sendo administrada sob premissas político-associativistas, que dificultam a captura de oportunidades e de valores, e o desenvolvimento de tecnologias e produtos em escala global (fora de uma perspectiva de preservação grupal), a CBF Associação registrou, em 2023, receita da ordem de R$ 1,3 bilhão e superávit de R$ 238 milhões. O brilho se intensifica, pelas perspectivas futuras, ao se constatar que: - a seleção brasileira ainda é um produto local (apesar do seu potencial de internacionalização), consumido, essencialmente, por brasileiros, de maneira que resta um mundo de torcedores e consumidores a conquistar; - as receitas da CBF ainda são semelhantes às obtidas pelo Flamengo, por exemplo; ou seja, de apenas um time brasileiro; - os valores auferidos em 2023 com direitos de transmissão e propriedades comerciais, da ordem de R$ 538 milhões, são inferiores aos obtidos por times ingleses inexpressivos, como o Bournemouth e o Brentford, que auferiram, em 2023, £122 milhões (aproximadamente R$831 milhões) e £135 milhões (aproximadamente R$920 milhões), respectivamente1; - o volume de receitas da CBF com contratos de patrocínio, em torno de R$ 527 milhões, não engloba os grandes patrocinadores internacionais, ainda desinteressados na associação de suas marcas à seleção brasileira; e (além dentre outros fatores) - a natureza associativa da CBF problematiza (ou dificulta) o acesso a instrumentos e recursos disponíveis no mercado de capitais, que tendem a ser mais eficientes do que os acessados no mercado financeiro. Esse conjunto de coisas evidencia que, menos do que as cifras atuais, as perspectivas futuras devem atrair o mercado em um eventual chamamento promovido pela CBF, considerando que: - o modelo de negócio confirme a possibilidade de crescimento; - o modelo de governança confirme a passagem para uma estrutura de mercado; - a administração seja composta por profissionais ilibados, conhecedores da indústria futebolística e/ou oriundos de mercado, com independência para atuação no interesse exclusivo da CBF S.A.; - a CBF S.A. adote instrumentos de controle de condutas e de cumprimento de leis; e - a abertura de capital se realize em nível especial de listagem, como o novo mercado da B3, e com a assessoria de assessores de primeira linha, que seguirão as diretrizes do Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto 2023.  Esses são alguns argumentos que sustentam a viabilidade do ingresso do mercado no novo ambiente do futebol. O tema será retomado na próxima semana. __________ 1 Acessível aqui. Integram os números, além de direitos e propriedades, receitas oriundas do "match day". 
Os dois últimos textos desta série, que tem como propósito a apresentação e a explicação do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, identificaram as posições finais das federações e dos clubes (e sociedades anônimas do futebol). Chegou a vez de situar a (relevante) posição da CBF Associação. No início da série, foi reapresentado o modelo que partia da premissa de que a CBF Associação seria mutualizada, mediante a criação de títulos patrimoniais, para distribuição entre federações e clubes (e sociedades anônimas do futebol); na sequência, ela seria desmutualizada, com a sua transformação em companhia (e aqueles títulos patrimoniais, convertidos em ações); e, por fim, submetida a processo de abertura de capital, resultando na seguinte estrutura:  Por tal caminho, como se nota, a CBF Associação deixaria de existir e toda a sua estrutura administrativa se conservaria dentro da CBF S.A.  Outro caminho, igualmente explorado na série, oferece uma solução, ao mesmo tempo, diferente e mais simples do ponto de vista jurídico: A manutenção da CBF Associação como acionista da CBF S.A., que receberia, daquela, o patrimônio relacionado à seleção brasileira e o desenvolveria, com exclusividade, esportiva e comercialmente.   O desenho seria o seguinte (após a superação dos passos precedentes, explicados nos textos anteriores, consistentes: na constituição, pela CBF Associação, da CBF S.A.; na transferência patrimonial, pela CBF Associação, em troca de ações da CBF S.A.; e na subscrição de ações emitidas pela CBF S.A., pelos clubes, sociedades anônimas do futebol e federações):  O quadro seria incrementado, após a abertura de capital da CBF S.A., com o ingresso de novos acionistas que subscrevessem ações em oferta primária ou que adquirissem ações em secundária (seja na própria oferta ou, posteriormente, em bolsa). A imagem a seguir ilustra o resultado deste movimento:  Como acionista da CBF S.A., a CBF Associação resguardaria certas atribuições relacionadas à preservação da história e da tradição, que seriam, aliás, inalienáveis. Apenas ela, portanto, poderia exercer, a qualquer tempo, tais funções, independentemente do tamanho de sua participação no capital social.  Aliás, esse é um ponto relevante: A CBF Associação, ao constituir a CBF S.A., subscreveria, em contrapartida à versão de patrimônio associativo relacionado à seleção brasileira, a totalidade das ações de emissão da nova companhia (a CBF S.A.). Na largada, portanto, a CBF Associação seria a única acionista.  Posteriormente, com a subscrição de ações pelos clubes (e sociedades anônimas do futebol) e federações, e, na sequência, pelos novos acionistas no âmbito da abertura de capital, a participação da CBF Associação seria reduzida, em função das rodadas de subscrição, chegando-se ao percentual de participação que houver sido definido pela CBF Associação, previamente. A redução nessas fases seria, assim, controlada pela própria CBF Associação, ao ditar a estrutura do projeto como um todo.  Apenas para ilustrar, imagine-se que, ao término das rodadas de subscrição e de abertura da capital, a CBF mantivesse, por exemplo, 20% do capital total. Deste percentual, uma ou algumas ações seriam especiais e atreladas à sua posição histórica e futura no ambiente futebolístico (assim como o Estado, eventualmente, mantém posição especial em companhias privatizadas). As demais ações poderiam ser livremente negociadas, ou não, a critério da diretoria da CBF Associação.  Partindo-se, ademais, do modelo atual de governação da CBF Associação - que poderia ser reformulado, ou não, conforme decisão de seus afiliados -, a eleição da diretoria continuaria a derivar da votação de federações e clubes (e sociedades anônimas do futebol), com observância da pluralidade de votos atribuída no estatuto da CBF Associação.  O estatuto haveria de ser reformado, porém, para adaptação à nova estrutura, demandante de previsões específicas, a respeito de, exemplificando: forma de indicação, pela CBF Associação, de membros do conselho de administração ou do conselho fiscal, da CBF S.A.; e forma de definição da construção da posição da entidade em matérias que, no plano da CBF S.A., exigissem a concordância necessária ou a possibilidade de veto, por parte da CBF Associação.  Em relação aos seus propósitos sociais, que continuariam a ser exercidos no âmbito associativo, a CBF Associação resguardaria, dentre outras, as seguintes atividades: A gestão do próprio investimento na CBF S.A. e aplicação de dividendos; O desenvolvimento regional do futebol, em parceria com as federações; A realização de pesquisas para melhoria do ambiente e o desenvolvimento de ferramentas tecnológicas voltadas ao futebol; A gestão de copas e torneios que não fossem transferidos para ligas organizadas pelos clubes e sociedades anônimas do futebol;  Enquanto não fosse criada a liga de clubes e de sociedades anônimas para organizar o campeonato brasileiro, a organização deste evento.    Conclui-se, então, que a CBF Associação não apenas impulsionaria a formação do maior mercado do futebol do planeta (que gerará ganhos ao país, às federações, aos clubes e sociedades anônimas do futebol, aos torcedores, ao erário e ao povo em geral), como faria parte dele, com papéis significativos e essenciais. 
Após breve intervalo na série que tem como propósito a apresentação e a explicação do projeto de reorganização e ressignificação da CBF, retoma-se o tema e se passa a tratar da situação dos clubes e das sociedades anônimas do futebol no novo sistema. Importante relembrar, inicialmente, que, na estrutura atual de poder da entidade, as 27 federações estaduais ostentam, de modo permanente, 3 votos cada; os clubes ou sociedades anônimas do futebol que disputarem a série A, 2 votos cada; e os clubes ou sociedades anônimas do futebol que participarem da série B, 1 voto cada. O colégio é composto, portanto, de 141 votos (81+40+20). Conforme processo evolutivo descrito nesta série (que se iniciou com a proposição de movimento de mutualização, seguido de desmutualização para, em certo momento, tomar outra direção), o modelo que se vem abordando parte da constituição de uma companhia (a CBF S.A.) pela CBF Associação, conforme se indica abaixo: Ato contínuo, clubes e sociedades anônimas do futebol de séries A e B (portanto, com filiação esportiva ativa) e demais clubes de outras divisões (sem filiação esportiva ativa), subscrevem, em conjunto com as federações estaduais, novas ações de emissão da CBF S.A., mantendo-se, em relação ao primeiro grupo, ao mesmo tempo, filiação à CBF Associação e participação acionária na CBF S.A. Os integrantes do segundo grupo participam, enquanto permanecerem fora da série B, apenas da CBF S.A. O quadro abaixo ilustra o modelo: Ou seja, além das federações, que resguardam seus vínculos com a CBF Associação (conforme modelo apresentado na Parte IX da série), os clubes e as sociedades anônimas do futebol de séries A e B também podem (e devem) manter suas relações associativas e, assim, participar, no plano da acionista especial (a CBF Associação), das deliberações internas e das orientações de votos a serem proferidas nas assembleias (ou reuniões) da CBF S.A. Também participariam, mesmo que com quantidade menor de votos em relação às federações, da escolha da governação da CBF Associação. Além da participação no quórum deliberativo na CBF Associação, cada clube ou sociedade anônima do futebol de séries A e B disporia de votos em assembleias gerais da CBF S.A. equivalentes às ações que detivessem, observando-se a relação de um voto para cada ação titularizada. A distribuição de ações entre clubes, por exemplo, das séries A a D, observaria critérios que envolveriam fatores como torcida, títulos nacionais e audiência, respeitado certo coeficiente limitador da diferença entre o maior e o menor dos subscritores.  Após a subscrição de ações, a CBF S.A. abriria seu capital, oferecendo liquidez aos clubes e às sociedades anônimas do futebol que pretendessem vender, parcial ou totalmente, suas ações. A venda, se e quando o caso, viabilizaria a entrada de recursos (milionários e, em determinadas situações, multimilionários) para emprego no desenvolvimento da atividade futebolística, no investimento em formação e em estrutura, na contratação de atletas e no pagamento e renegociação de dívidas, dentre outras finalidades.  Por outro lado, as ações mantidas pelos clubes ou pelas sociedades anônimas do futebol incrementariam seus respectivos patrimônios, em função do (esperado) aumento do patrimônio líquido da CBF S.A. O ajuste se realizaria por equivalência. Exemplificando: se o patrimônio líquido dobrasse de um ano para outro, o valor da participação do clube, em seu balanço, também dobraria. E não é só. O clube ou a sociedade anônima do futebol também se beneficiaria do fluxo oriundo da distribuição de dividendos e, em momento futuro, de eventual venda parcial ou total de ações que não tivessem sido vendidas logo após a abertura de capital. Em outras palavras, o organograma seria o seguinte, em caso de venda total de ações: E o seguinte, quando a venda fosse parcial: E, na hipótese de venda total por alguns e parcial por outros, o resultado se apresentaria da seguinte maneira: Em nenhum dos modelos, o clube ou a sociedade anônima do futebol ostenta uma posição pior do que a que ostenta, atualmente, como (simples) associado (ou associada) à CBF Associação; muito pelo contrário, pois os ganhos são indisputáveis. Clubes, sociedades anônimas do futebol e, como visto na parte IX da série, também as federações ganham, e muito, com o processo, sem efeitos colaterais. Como ganham, também, o torcedor, os atletas, o país e o erário. Resta compreender a posição da CBF Associação, no sistema. É o que se fará no próximo texto.
quarta-feira, 22 de maio de 2024

Que país (do futebol) é este?

Semana passada foi, na falta de outro termo mais apropriado, animada para quem acompanha o desenvolvimento da SAF, subtipo societário criado pela Lei 14.193, de 6 de agosto de 2021, de autoria do Presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG). No mesmo dia que, em Brasília, a Comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aprovou o Projeto de Lei 2.978, de 2023 ("PL 2.978"), de autoria do próprio Presidente Rodrigo Pacheco, uma liminar foi concedida, no Rio de Janeiro, para afastar, como se verá adiante, o acionista controlador de uma SAF. O PL 2.987 tramitava em caráter terminativo e, com a sua aprovação, seguirá para Câmara dos Deputados. Seu propósito é inequívoco: aparar algumas arestas que naturalmente surgem em processos legislativos, evidenciadas, no caso, em disputas ocorridas nos quase três anos de vigência da lei, e, assim, oferecer ao país um ambiente ainda mais seguro para o desenvolvimento da atividade futebolística. Tal é, aliás, o sentido do parágrafo conclusivo da justificação apresentada pelo Presidente Rodrigo Pacheco: "Demos passos importantes para o crescimento do esporte, e o aprendizado é permanente. Estou seguro de que as alterações propostas irão fortalecer ainda mais a competitividade do setor futebolístico nacional em relação a outros mercados, trazendo mais investimentos, gerando mais empregos e renda, equilibrando os interesses dos envolvidos e, por fim, contribuindo para ampliar a qualidade do espetáculo aos torcedores". A pertinência e a precisão do PL 2.978, relatado pelo Senador da República Marcos Rogério (PL/RO), são reforçadas pela ínfima quantidade de propostas de emendas, ao contrário do que se costuma verificar em projetos de quase qualquer natureza. A única que foi corretamente incorporada ao texto, apresentada pelo Senador da República Carlos Portinho (PL/RJ) - que já havia relatado, no âmbito do Senado Federal, o projeto de lei que resultou, em 2021, na Lei da SAF -, autoriza a adoção do tipo organizativo de SAF também por liga de futebol, constituída ou organizada por entidades de prática desportiva. A elogiável inciativa reforça a perspectiva que a todos parece inexorável, consistente na unificação de pretensões, para formação de uma liga (unificada), composta por todos os times de séries A e B, semelhantemente às que dominam o ambiente global, como a inglesa. Enfim, naquele dia que deveria ser marcado (e comemorado) pelo novo passo que se dava no caminho para formação do mercado brasileiro, uma decisão liminar tomou o ainda incipiente mercado - e, seguramente, todas as pessoas que acompanham a Lei da SAF - de surpresa, transformando tal dia, como todos os seguintes, em puro suspense (outra vez, na falta de expressão mais apropriada).  Não se adentrará, aqui, em temas puramente jurídicos, visto que a própria decisão optou por abandonar esta premissa, que deveria informar o ato de julgar. Pinçam-se, dela, apenas alguns trechos reveladores (mantendo-se, neste texto, o emprego de termos imprecisos, pela falta de outros mais adequados).   Neste sentido, a matéria submetida à apreciação judicial esbordaria o direito puro, atingindo paixões e sentimentos que não poderiam ser desconsiderados. De modo que o alcance social da medida pretendida pelo clube seria mais amplo que o interesse contratual privado. Ela (a decisão) vai além, ao consignar que não apenas a gestão econômico-financeira importa no caso, sendo crucial o estabelecimento de um mutualismo benéfico, com entrega dos resultados esperados, tanto pelo clube que conferiu seu destino à SAF, como aos inúmeros torcedores, merecedores de respeito, carinho e amor pela instituição objeto de suas paixões. De modo que a SAF não se revelaria uma companhia (ou sociedade anônima) com objeto social limitado aos valores econômicos, mas incorporadora da necessidade de afeição entre os personagens que dela participam. Curioso que tais argumentos não serviram - e não servem - para promoção de intervenções salvadoras em clubes que, na mesma linha, não seriam meras associações civis com objeto limitado de organizar o futebol, e que, historicamente, foram geridos por políticos clubísticos que se apropriaram de instituições supostamente pertencentes aos torcedores (uma mentira secular, pois juridicamente, clubes pertencem aos associados, apenas, e não à coletividade da torcida), e as levaram, em conjunto com seus times, como no caso do próprio Vasco, à profunda decadência (e, também no caso, a 4 rebaixamentos num período de menos de 15 anos). Pois, no caso da recém-constituída SAF Vasco da Gama, encontrou-se fundamento para: suspensão dos efeitos do contrato e do acordo de acionistas celebrados entre clube e investidor; suspensão dos direitos societários (políticos e patrimoniais) do investidor; e afastamento dos conselheiros indicados pelo investidor. Espera-se, por fim (e apenas), que instâncias revisoras, assim como o sistema judicial, em qualquer localidade do país, julguem os temas que envolvam SAF em favor da parte que ostentar o bom direito, de acordo com a lei (e a constituição, para preservação do futuro da Nação), e não em conformidade com preferências ou, se a moda se inverter, com rancores clubísticos.
quarta-feira, 15 de maio de 2024

A Lei da SAF e a reação do clubismo

Mantenho a pequena pausa na longa série que vem tratando, nas últimas semanas, do projeto de reestruturação e ressignificação da CBF, para abordar certas situações que ocorrem no ambiente criado pela Lei da SAF. Desde o advento da Lei da SAF, mais de 60 projetos de SAF se estruturaram, em todas as regiões do país. Muitos, talvez a maioria, bem-sucedidos. Galo, Cruzeiro, Bahia e Botafogo são alguns exemplos. Sim, Botafogo. Não me cabe, aqui, falar sobre o controlador da SAF Botafogo, John Textor, e suas técnicas de tentativa de persuasão coletiva. Interessa-me, ao menos neste momento, a SAF da qual é controlador. Parece-me, então, que seja mesmo, sim (com o perdão da redundância), um sucesso. Há pouquíssimo tempo, o Clube Botafogo, antes da constituição da SAF Botafogo, brigava, ano após ano, para manter-se na primeira divisão e, com frequência, não atingia seu objetivo (caiu 3 vezes para 2ª divisão). Desde a entrada do empreendedor, a situação mudou. Para melhor. Ano passado, terminou em sexto lugar no campeonato brasileiro, posição que não foi comemorada - mas devia -, com acesso à copa libertadores, por conta da expectativa que se criou com a magnífica campanha durante grande parte da competição. Neste momento, aliás, a SAF Botafogo ocupa a 4ª colocação na atual edição do campeonato brasileiro, em melhor posição do que os demais clubes cariocas, exceto o poderoso Flamengo, que, na 3ª posição, contabiliza 1 ponto a mais. Além de Botafogo, mas por motivos diversos, a SAF Vasco, atualmente na 13ª posição do campeonato brasileiro - ou seja, a uma posição da vaga para copa sul-americana -, vem sendo exposta e tratada como um caso de insucesso. O resultado esportivo, por enquanto, não se pode negar, está aquém daquele esperado por torcedores, imprensa e, pode-se apostar, pela própria acionista controladora. Por conta do aparente (ou ainda prematuro) insucesso - lembre-se que, antes da constituição da SAF Vasco, o time frequentava a 2ª divisão (foram 4 rebaixamentos), não pagava jogadores e direitos em dia, perdera credibilidade para atrair talentos e realizar negócios, tinha dificuldade para liquidar obrigações cotidianas, dentre outras mazelas -, parece que ganha força um movimento para reafirmar e "canonizar" o clubismo, como se ele próprio, o clubismo, não fora, em passado recente e remoto, o responsável pela deterioração da história e da grandeza de seu futebol. Portanto, nada melhor do que a cautela e, em especial, a atenção, coletiva, em relação à reação do clubismo, dissimulado sob a imagem messiânica de mais um ex-jogador. Merece atenção, em tal sentido, o texto do jornalista Rodrigo Capelo, publicado na edição de 13 de maio, do jornal O Globo. Após expressar sua preocupação com a situação econômica e patrimonial da mencionada entidade, com um exemplo envolvendo a formação de uma frota de veículos de propriedade de jornalistas famosos, Rodrigo Capelo faz um alerta: se a 777 vacilar, será devorada por um agrupamento de "aliados [do clubismo] entre advogados e juristas", que, com apoio de torcida e comunicadores, estaria pronto para dar o bote. Ele parece antecipar, implicitamente, no último parágrafo do texto, outra preocupação, com as gravíssimas consequências para o futebol e para o país, de eventual movimento político desestabilizador de negócio jurídico realizado em conformidade com as regras vigentes. Em outras palavras, a preocupação com a quebra de confiança institucional. É isso, pois, que, aparentemente, está em jogo, e que se revela, em minha opinião, no texto do jornalista Rodrigo Capelo: a confiabilidade sistêmica. Sobre o sistema, vale lembrar - e a lembrança se estende e se aplica a qualquer situação de SAF -, que a Lei da SAF integra o microssistema das companhias, que se sujeitam à Lei 6.404/76. Ambas configuram, em conjunto, as normas primárias de regência da SAF. A Lei 6.404/76, que logo completará 50 anos, vem sendo testada e adaptada, em função de avanços tecnológicos, e representa um dos pilares de sustentação do ambiente empresarial brasileiro. Nela se encontram os instrumentos de contenção de atos abusivos, do acionista controlador ou da minoria acionária (pois sim, a minoritária também pode praticar atos configuradores de abuso), e nela também se indicam atos que, mesmo que aprováveis pela maioria, não podem ser praticados sem um prévio escrutínio assemblear. Ademais, em negócios societários como os que envolvem a SAF Vasco, a SAF Botafogo, a SAF Cruzeiro e muitos outros, as partes costumam contratar uma série de direitos e obrigações que, se eventualmente inobservados, por uma ou outra parte, ensejarão sanções, previstas no próprio instrumento contratual (ou na legislação civil, conforme a situação). Aí se forma, em princípio, o contorno dentro do qual desinteligências, resultantes de operação de SAF, devem ser resolvidas, pelas autoridades competentes, conforme, igualmente, as partes tenham estabelecido. Portanto, a perspectiva de afirmação de um pujante e possível maior mercado futebolístico do planeta está associada à percepção de que negócios jurídicos não serão abalados por motivações que não tenham amparo legal ou contratual.
Faço uma pequena pausa na longa série que vem tratando, nas últimas semanas, do projeto de reestruturação e ressignificação da CBF (ao qual retornarei em uma ou duas semanas), para abordar certo evento que causou alvoroço ao ser anunciado: a venda do controle da SAF Cruzeiro pelo empreendedor e investidor, Ronaldo Nazário ("Ronaldo"). Ronaldo, sobre quem eu já escrevi em outras oportunidades, foi o salvador da Associação Cruzeiro, que estava afundada em dívidas e a caminho da terceira divisão. Técnica e empresarialmente, também estava, por ocasião de sua entrada, falida. Aliás, sabia-se que seu passivo era bilionário, mas não se conseguia quantificá-lo com precisão, pelo descontrole gerencial e outros motivos mais graves. Importante lembrar, ainda, que, após o conselho deliberativo da Associação Cruzeiro aprovar uma operação em que ela mantivesse o controle da SAF a ser constituída, o sonho se desintegrou diante da falta de interesse de possíveis investidores nesse modelo. Os problemas e o riscos envolvidos não justificavam qualquer projeção de retorno. Daí a aceitação, ao final do processo, de uma posição acionária minoritária para a Associação Cruzeiro, negociada com Ronaldo; posição, aliás, que não foi objeto de cobiça de outros investidores (incluindo torcedores bilionários). Em suma, naquele momento, dizia-se que o novo controlador possivelmente se enrolaria num mar de lama e, dele, talvez não saísse. Nesse cenário, Ronaldo era - e realmente foi - o salvador da história do Cruzeiro. Algumas poucas vozes, é verdade, sustentavam que o negócio fora barato. Sim, talvez, se considerados os compromissos de investimento assumidos e o potencial de retorno de um time da dimensão do Cruzeiro. Mas ninguém, além do próprio Ronaldo, aceitou correr os riscos políticos e patrimoniais que ele encarou, em especial por conta do passivo, que já se sabia que era gigante, mas que poderia ser ainda maior do que se imaginava, naquele momento. Para ele, talvez, considerando o tamanho de seu patrimônio e de sua exposição, o negócio fosse caríssimo (à beira da insanidade). Com Ronaldo - e sua elogiável equipe, dentre ela, Gabriel Lima e Paulo André -, iniciou-se um inegável movimento de resgate, o qual ainda está em curso, importante ressaltar. E tomará algum tempo para atingir "nível de Cruzeiro". Tempo que se tomaria - e se toma - na reestruturação de empresa em crise, ainda mais falida, do ponto de vista técnico, como estava a Associação Cruzeiro. Em menos de três anos, o time deixou as páginas policiais e passou para as páginas econômico-empresariais, com a anunciação de um negócio expressivo, elogiado sob o prisma financeiro, mas questionado, no plano esportivo. Grande parte dos questionamentos - uns, compreensíveis; outros, maliciosos - decorre da falta de intimidade com um ambiente ainda em formação, e, por isso mesmo, sujeito a movimentos por ora inesperados. Ou aparentemente inesperados, pois Ronaldo jamais afirmou que não venderia sua participação na SAF; além de ser algo absolutamente comum, em outros mercados. Mas a sua saída é um problema? Ao contrário de alguns respeitadíssimos jornalistas, entendo que não. Justificarei a proposição pela ótica da Lei da SAF (e, portanto, do ambiente do futebol) e da SAF Cruzeiro (consequentemente, de sua torcida). Não abordarei a perspectiva do novo controlador, pois se trata de um problema (ou não) dele. A Lei da SAF foi recebida, no (e pelo) mercado, com incredulidade. Poucas pessoas ou instituições se mostraram, no início, interessadas. Curiosas, talvez; mas nada muito além disto. Os motivos envolviam o histórico de desmandos e de corrupção no setor, o apego cartolarial à apropriação clubística, a falta de percepção da segurança jurídica pretendida pela Lei da SAF, a dificuldade de precificação do ativo futebolístico e, dentre outros, a dificuldade de visualização de uma saída para o investidor, imediatista ou de longo prazo. A liquidez, derivada da probabilidade de saída de um investimento qualquer, justifica a existência, ou não, de um ambiente de trocas de posições; e quanto maior a probabilidade de saída, maior será a procura e, muito importante, maior será a atratividade para investidores institucionais ou mais conservadores. A venda do controle da SAF Cruzeiro sinaliza justamente a perspectiva, antes negada, de que investidores teriam (e terão) como liquidar suas participações e embolsar, se e quando quisessem, o produto da liquidação dos seus investimentos, lucrativos ou não (sim, pois, eventualmente, a venda ocorra com prejuízo). Mas não apenas isso. A venda sinaliza também que o acesso a financiamentos e capitais pode perfeitamente passar por estágios diversos de interesse, no decorrer de seu amadurecimento, com entradas e saídas de investidores com diferentes perfis e perspectivas de riscos, até que se consolide a participação em um investidor "final" (que pode ser o perfil do novo controlador da SAF Cruzeiro). Este investidor final, ou acionista referencial, terá maior propensão a manter sua posição por longos anos (eventualmente gerações), como ocorre com algumas famílias proprietárias de times de esportes norte-americanos. Paralelamente, sob a perspectiva da SAF e da torcida, a entrada, agora, de novo acionista, com sólida atuação no ambiente empresarial, sugere uma nova onda de energia (e de recursos), pois, sobre o entrante, não pesam os desgastes naturais de todo o esforço pretérito, que envolveu o processo político de constituição da SAF, a negociação com o investidor Ronaldo, a iniciação do processo de recuperação e os percalços enfrentados, não apenas no âmbito da própria reorganização, como também dos solavancos que foram causados pela ambientação da (ainda novíssima) Lei da SAF. Soma-se a isso o fato de que o novo acionista, pelo que se consta, tem patrimônio robusto e, tão ou mais importante, fluxo de caixa compatível com as necessidades de novos aportes e investimentos que serão demandados pela atividade futebolística. E há, ainda, outro (e intangível) fator: a rivalidade local, que poderá fazer com que esse novo acionista de origem empresarial olhe para o rival e pretenda, com bases sólidas, medir-se ou superar o que vem sendo feito, de maneira bem-sucedida, por outros acionistas empresários daquele lado. O que importa ao torcedor, no final das contas, é o sucesso de seu time. A imagem de Ronaldo foi útil, muitíssimo útil, na originação da SAF Cruzeiro, e na construção do seu processo de recuperação; mas o time do Cruzeiro construiu sua grandeza histórica por ser o Cruzeiro, e não pela dependência de uma ou outra pessoa. E aí está o ponto crucial, talvez único, que mereça atenção geral (da torcida, das instituições, do poder público e do país, pela relevância social e econômica do futebol): a certificação de que o novo negócio foi construído em bases sólidas, que reforçarão e eventualmente acelerarão o reposicionamento do Cruzeiro dentre as maiores potências do continente.  
As 27 Federações Estaduais mantêm papel crucial na estrutura de poder da CBF. Cada uma ostenta, no colégio eleitoral, de modo permanente, 3 votos, contra 2 votos dos times que disputarem, no momento de qualquer votação, a série A do campeonato brasileiro, e 1 voto dos que estiverem na série B. Portanto, o projeto proposto para reorganização da CBF não pode ignorar essa realidade e deve oferecer cenários para as federações estaduais, que continuarão, aliás, a exercer funções relevantes em âmbito regional, após a abertura de capital. Como indicado no texto anterior desta série, um dos caminhos que se pode seguir, no projeto de reorganização, e que aqui será adotado, envolve a constituição de uma companhia (a CBF S.A.) pela CBF Associação, seguida da subscrição de novas ações pelos clubes e federação estaduais - em substituição à mutualização e desmutualização da CBF. O caminho levaria ao seguinte quadro:  As federações não teriam vinculação direta com a CBF Associação e se ligariam, como acionistas, apenas à CBF S.A. Desta receberiam dividendos (direitos econômicos) e em suas assembleias gerais votariam (direitos políticos), enquanto mantivessem ao menos uma ação de emissão da CBF S.A. em seu patrimônio. Mas o vínculo com a CBF Associação não precisa terminar, de modo que cada federação estadual poderia sustentar duplo papel: um como acionista da CBF S.A., outro, como associada da CBF Associação. Nesta hipótese, o organograma seria o seguinte:  No plano associativo, as federações manteriam seus votos nas assembleias gerais da CBF Associação e poderiam ditar-lhe, como atualmente ditam, certas escolhas, dentre as quais a nomeação da diretoria e a forma como a CBF Associação se posicionaria em relação a determinados temas da CBF S.A. De fato, a CBF Associação seria acionista da CBF S.A. e acompanharia, nesta posição (portanto, de acionista), o andamento das atividades futebolísticas e empresariais. Teria o direito, como qualquer acionista, de participar de assembleias gerais e votar, além de dispor de direitos especiais, se implementados, sugeridos em texto anterior. Tais direitos especiais consistiriam em, por exemplo, vetos sobre matérias que afetassem a história e a tradição da seleção brasileira, dentre as quais alteração de cores, adoção de novo hino, mudança de sede para outro país, renúncia à participação em eventos internacionais e participação em campanhas políticas; e assento permanente em conselho de administração da CBF S.A., para exercício de veto sobre as matérias indicadas acima. As federações se tornariam duplamente beneficiadas com a reorganização da CBF porque: (i) em decorrência da subscrição de ações, as quais poderiam ser parcial ou totalmente vendidas, posteriormente, por ocasião da abertura de capital da CBF S.A., levantariam recursos robustos, advindos da própria venda, para emprego em suas atividades regionais e reforço dos campeonatos locais, e ainda receberiam dividendos das ações mantidas em sua propriedade; e (ii) guardariam a posição política, dentro da CBF Associação, que, além de acionista da CBF S.A., ostentaria direitos especiais pela sua atuação como guardiã da história e da tradição. O processo político de escolha de diretores da CBF Associação pelos seus associados (i.e., pelas federações) poderia ser adaptado do atual modelo ou reformulado, para trazer-lhe técnicas contemporâneas, concatenadas, inclusive, com a nova realidade da entidade, e assim oferecer-lhe um modelo de governação certificado. A escolha da governação deixaria, porém, de ser um problema dos times, da própria CBF S.A. ou do torcedor em geral, e passaria a ser um tema puramente privado, das federações. Parece, pelo exposto, que inexistem externalidades negativas para federações, no âmbito do projeto de reorganização da CBF; dele, ao contrário, somente se revelam positividades: econômicas, políticas e sociais.
O tema central da série não é novo. Ele foi apresentado no livro Futebol, Mercado e Estado (Quartier Latin), publicado no início de 2016. O livro continha, porém, um objetivo antecedente: a criação do mercado do futebol a partir da SAF. Retomou-se, posteriormente, a ideia de mutualizar e desmutualizar a CBF em algumas oportunidades, inclusive (e especialmente) nesta coluna, com o intuito, apenas, de manter a chama acesa, enquanto o debate acerca do PL da SAF se intensificava e, em alguns momentos, pegava fogo. O projeto foi convertido em lei e, desde então, vem promovendo uma benfazeja transformação no ambiente do futebol no Brasil. A SAF e a lei da SAF merecem e terão acompanhamento permanente, para promoção da defesa e do desenvolvimento do instituto. Passados quase três anos da promulgação da lei da SAF, já há espaço para a propositura de outros movimentos, complementares, que viabilizarão a inserção social das gentes, o desenvolvimento social e econômico da Nação e, claro, a eficiência esportiva, nos planos nacional e internacional. Dentre tais movimentos, destaca-se, pela grandiosidade, a reorganização (e consequente ressignificação) da CBF. A tese teve como fundamentos a mutualização e a desmutualização. Foi com base neles que se introduziu o debate pioneiramente no mencionado livro Futebol, Mercado e Estado, em 2016, e que ela reapareceu, semanas atrás, com a primeira parte da presente série.   Mas, no decorrer da construção da série, uma nova perspectiva se abriu. Pela obviedade e simplicidade teórica, passou a ser tratada, aqui, como o "Ovo de Colombo". Em suma, ela abre dois caminhos para que a CBF se transforme em companhia, sem a necessidade de prévia mutualização e posterior desmutualização. Um dos caminhos, que se desdobra em dois movimentos, foi apresentado no texto anterior.  De maneira sucinta, no primeiro movimento, a CBF Associação constitui uma sociedade anônima (CBF S.A.), da qual será proprietária da totalidade das ações: No movimento seguinte, a própria CBF Associação delibera o aumento de capital da CBF S.A. e faculta a subscrição das novas ações, por preço simbólico, pelas federações e pelos clubes: O segundo caminho, que agora se apresenta neste espaço de maneira inédita, consiste na transformação da atual CBF Associação em sociedade anônima (a CBF S.A.) e, no mesmo ato, na subscrição de ações, por preço também simbólico, pelos clubes e federações, de modo que, ao cabo, o organograma será o seguinte: Esse caminho afasta a necessidade de constituição de uma sociedade anônima pela CBF Associação, como ocorre no primeiro, e, pelas características da transformação da própria CBF Associação em companhia (CBF S.A.), elimina, da estrutura final, a figura de uma entidade associativa da composição acionária.  A permissibilidade, contida na lei das sociedades por ações, especialmente em companhias fechadas, de fixação do preço de emissão de ações com ágio ou deságio (e, assim, oferecendo o suporte para fixação do preço simbólico a ser pago no âmbito do aumento de capital da CBF S.A.), revelou-se, ao longo da série, uma técnica simplificadora do projeto de reorganização e uma alternativa à proposta original de mutualizar e desmutualizar a própria CBF ou uma associação por ela criada. Assim, chega-se ao seguinte desfecho, por ora: inexiste, do ponto de vista legislativo, obstáculo à implementação de reorganização da CBF, exceto a vontade política, ou a falta dela, de promover um amplo debate a respeito das vantagens e desvantagens da mudança do modelo associativo ao societário. A desinformação, possivelmente, talvez venha a ser a principal ferramenta de eventual reacionarismo, pois, considerando que (i) a própria CBF Associação pode permanecer acionista da CBF S.A., exercendo direitos políticos análogos aos que, por exemplo, o Estado exerce em uma companhia privatizada, inclusive mediante a titularidade de "golden share", (ii) as federações deterão ações da CBF S.A., que poderão ser vendidas parcial ou totalmente, e os recursos obtidos, seguramente milionários, destinados ao desenvolvimento regional do futebol, e (iii) os times de futebol, constituídos sob a forma associativa ou de sociedade anônima do futebol, também serão agraciados com ações, vendáveis no mercado; não há motivação plausível para o evitamento do debate e, ousa-se afirmar, a implementação do modelo, que repercutiria, nacional e internacionalmente, em função da distribuição, sem precedentes, de riquezas entre os integrantes do sistema.
Desde o início desta série de textos que pretende apresentar um grandioso projeto transformacional para a CBF - e, consequentemente, para o Brasil -, os temas tratados se sucedem, uns em função dos outros, em ordem lógica, no âmbito do modelo apresentado. Pela primeira vez, e pelos motivos que serão a seguir expostos, apresenta-se uma ideia lateral, que consiste, pois, em uma alternativa a uma ideia já apresentada anteriormente nesta série, e que se enquadra, com maior fidelidade, como uma variação de mesmo tema. Daí o subtítulo: Parte 7.2. A classificação faz todo sentido. No texto anterior, identificado como Parte 7.1, apontou-se determinado caminho no processo de mutualização, desmutualização e abertura de capital da CBF, que passava pela manutenção da atual associação civil existente, aqui denominada CBF Associação, a qual, porém, constituiria outra associação, que seria, posteriormente, mutualizada para, na sequência, ser desmutualizada (transformando-se em companhia: a CBF S.A.). Os gráficos abaixo ilustraram, naquele texto, as proposições: Gráfico 1:  Gráfico 2: Afirmou-se, ademais, que a manutenção da entidade original serviria para que fossem preservadas, na CBF Associação, (i) a organização de atividades não profissionais e (ii) as funções de interesse nacional e social, além das funções de guarda e de controle da história e da tradição da seleção e do futebol brasileiro. A CBF Associação seria, ainda, acionista da CBF S.A. A variação que se apresenta, aqui, revela-se como um outro caminho para chegar ao mesmo destino. Assim, no lugar da criação de uma nova associação, que seria, posteriormente, mutualizada e desmutualizada, a CBF Associação constituiria, diretamente, uma sociedade anônima, da qual seria, na largada, a única acionista, conforme se indica a seguir: Logo após, os times e federações que, no modelo anterior, receberiam, gratuitamente, títulos patrimoniais, subscreveriam novas ações e as integralizariam (ou seja, pagariam o preço de emissão), mediante a transferência de recursos para formação do capital social da CBF S.A. As quantidades de ações a serem subscritas pelos times e federações seriam idênticas aos títulos patrimoniais que receberiam no modelo anterior.   O preço de emissão das ações (e, consequentemente, o montante a pagar e transferir para CBF S.A.) seria fixado em parâmetro simbólico, de modo a evitar saída expressiva de caixa dos subscritores (e novos acionistas da CBF S.A.). A proposição é ilustrada a seguir: Como derradeiro passo, seria promovida a abertura de capital da CBF S.A, e, assim, chegar-se-ia, de maneira mais simples, ao modelo final, apresentado no texto anterior: Isso porque, no modelo anterior - que não estava e não está equivocado, e ainda pode, por diversos motivos, ser implementado, se assim os decisores do processo definirem -, a viabilidade dependeria de uma atuação estatal; atuação essa que, neste novo modelo proposto, torna-se prescindível. Explica-se. Primeiro, porque seriam dispensados os movimentos de mutualização - atribuição de títulos patrimoniais - e consequente desmutualização - conversão dos títulos em ações de uma sociedade anônima. Segundo porque, no âmbito da mutualização, isto é, da atribuição de títulos patrimoniais a times e federações, os beneficiados apurariam um acréscimo patrimonial, e, daí, sentiriam (a depender da natureza jurídica de cada um), em razão deste acréscimo, o peso da norma tributária, incidente sobre o evento. Por isso a proposta, contida na Parte II da série, de edição de nova lei que deslocasse (ou diferisse) o pagamento do tributo para o momento da venda dessas ações (oriundas da conversão dos títulos patrimoniais).    Paralelamente, optando-se pelo caminho de constituição de uma companhia pela CBF Associação, proposto neste texto, o mesmo objetivo seria atingido, mas sem que fossem enfrentados certos obstáculos ou demandadas participações estatais. Mesmo assim, e para que o jurisdicionado tenha opções, porém, com reflexos tributários semelhantes, a ideia de uma lei que incentivasse, aliás, não apenas a mutualização e desmutualização da CBF, mas de outras federações, permanece posta, válida e de pé. Seriam caminhos, ou variações temáticas, para se promover o fortalecimento da CBF e a valorização do futebol no (e do) Brasil.
Nas Partes 2 e 3 desta série de textos, em que se ousa propor um grandioso projeto para CBF, tratou-se da mutualização e da desmutualização da CBF, consistentes, respectivamente, na atribuição de títulos patrimoniais da própria CBF a times (clubes e SAFs) e federações, e na transformação da CBF, hoje ainda uma associação sem fins econômicos, em sociedade empresária (no caso, uma sociedade anônima), de modo que aqueles títulos patrimoniais seriam, consequentemente, convertidos em ações de emissão da nova CBF S.A. Ao cabo desses passos, a estrutura societária da recém-constituída companhia seria a seguinte, já indicada na Parte 4 da série:  Além dessa estrutura, já abordada previamente, vislumbra-se outra, que também poderia ser utilizada no âmbito do projeto. Ao contrário da anterior, em que a CBF tem sua natureza modificada - de associação sem fins econômicos para sociedade empresária, ou seja, uma entidade com finalidade econômica -, na estrutura que será indicada a seguir a natureza associativa é mantida. A manutenção da entidade original serve para que se preserve, na CBF Associação, a organização de atividades não profissionais, além da configuração daquela como acionista da CBF S.A. Em resumo, previamente à mutualização, a CBF Associação (portanto, a entidade que existe atualmente) constituiria outra associação sem fins lucrativos e lhe transferiria ativos ligados ao futebol profissional. Em decorrência da transferência, a nova entidade se tornaria responsável por todas as atribuições conferidas pela FIFA e pela Conmebol, além de organizadora de copas e campeonatos, enquanto a Liga Brasileira (introduzida no texto anterior) não estiver formada. Por outro lado, na antiga associação, ou seja, na CBF Associação, ficariam mantidas as funções de interesse nacional e social, além das funções de guarda e de controle da história e da tradição da seleção e do futebol brasileiro, pelos fundamentos que serão expostos ao final deste texto. O gráfico abaixo ilustra a proposição: Na sequência, títulos patrimoniais da nova associação seriam atribuídos à própria CBF Associação, às federações e aos times (processo de mutualização); ato contínuo, a nova associação seria transformada em sociedade anônima (CBF S.A.) e aquelas entidades receberiam, como já se sabe, ações de emissão da CBF S.A. (desmutualização). O resultado é ilustrado pelo seguinte gráfico: Nesse processo, seriam atribuídos direitos especiais de acionista à CBF Associação, que passaria a ser acionista da CBF S.A., conferindo veto sobre determinados temas, a exemplos de (i) reformas de estatuto para modificar número máximo de ações que poderão ser detidas por um acionista e número máximo de votos por acionista, (ii) alteração de denominação, (iii) modificação de signos, cores e outros elementos de identificação da seleção, (iv) cessão ou alienação de propriedade industrial e (v) transferência da sede para o exterior. Também poderia ser assegurado à CBF Associação assento permanente no conselho de administração da CBF S.A. para, em nível administrativo, exercer, quando o caso, os direitos previstos no parágrafo anterior; ou para exercício de voz e voto, mesmo sem veto, em outras matérias sujeitas à deliberação colegiada. A CBF Associação, ademais, na posição de acionista da CBF S.A., receberia dividendos, que podem ser fixados, no estatuto, em montante correspondente a, no mínimo, 25% do lucro apurado. Com tais fluxos de recursos, além de outros oriundos de ativos próprios ou licenciados, a CBF Associação reunirá condições para manter relevância social e econômica, no plano do desenvolvimento do esporte - além, conforme indicado acima, de preservar condições para executar sua função de guardiã de certos elementos culturais e históricos, petrificados estatutariamente. Por fim, com a abertura de capital, a CBF Associação passa a ter opção de (i) vender parcialmente suas ações de emissão da CBF S.A. e verter os recursos para suas finalidades próprias, sem perda dos vetos, ou (ii) mantê-las e perceber, por conta da manutenção, os resultados econômicos correspondentes. O gráfico abaixo ilustra a estrutura alternativa apresentada neste texto:
Como se vem apresentando nesta série de textos um projeto de (e para a) CBF, não se poderia deixar de avaliar suas próprias funções históricas (e atuais) e, conforme as premissas que venham a ser estabelecidas, propor novos caminhos. De modo resumido, a CBF se dedica, no plano do futebol profissional, (i) à gestão da seleção brasileira e (ii) à organização de campeonatos e copas. Dentre ambas as atividades, a principal, mais rentável e glamourosa, é a primeira. Dela se extrai parcela majoritária da receita, do lucro e do poder de influência local e internacional. A segunda, do ponto de vista pragmático, tornou-se, há tempos, um fardo; um fardo porque envolve a gestão de clubes de diversas regiões e divisões, com preocupações e necessidades distintas, em sua maioria sujeitos a crises permanentes, demandadores de recursos e favores. Pior: que deixaram de fornecer, de modo direto, os jogadores, que são as matérias essenciais ao desenvolvimento do principal produto da CBF: a seleção. Afinal, os selecionados costumam vir do exterior, onde terminam a sua formação e abrocham para o profissionalismo. Aliás, a incapacidade de gerir as necessidades locais do futebol - algo que, é sempre bom lembrar, não tem a ver com o atual Presidente, Ednaldo Rodrigues, mas com o arcaísmo secular, do qual ele e qualquer outro será refém - se reflete na performance dos times brasileiros, que deixaram de ter força econômica, tecnologia e tática para competir no plano global. O resultado, apesar do apego do torcedor, que lota estádios para acompanhar jogos independentemente da qualidade e da posição de seu time, não raro em ambientes pouco confortáveis (algo que não se confunde com a problemática elitização do espetáculo), consiste, de um lado, na crise sistêmica, evidenciada pela dívida coletiva da ordem dos bilhões, e, de outro, na oligopolização, produtora de três ou quatros agentes hegemônicos. Ou seja, o futebol no Brasil virou as costas às suas características continentais, que produziram forças locais e regionais e alta competitividade esportiva, e adotou um processo autofágico, indutor de uma outra espécie de competição, de natureza existencial, que estimula condutas individualistas e patrimonialistas, em detrimento de todos os demais pares. Parece evidente, assim, que já não faz mais sentido, no atual estágio do esporte, que se globalizou e se inseriu na indústria do entretenimento, que uma entidade associativa, sem fins econômicos, submetida a um processo político exacerbado, continue a gerir e definir o futuro dos times de futebol, os quais, na prática, são empresas futebolísticas.   Os times, em especial sob essa perspectiva mercantilista, podem (ou devem) se auto-organizar e, mediante a criação de estruturas próprias, específicas e profissionais, promover um profundo processo de reestruturação e reposicionamento de seus produtos. Tal movimento ainda traria um efeito positivo à CBF, que se dedicaria, de modo prioritário, também sob novo estatuto jurídico (resultante do processo de mutualização, desmutualização e abertura de capital), à motivação contemporânea de sua existência, que consiste, como indicado acima, na gestão, com primor, da seleção brasileira. Trocando em miúdos, a CBF "perde valor" com a administração, por exemplo, do campeonato brasileiro e, ao mesmo tempo, os clubes e sociedades anônimas do futebol não conseguem gerar valor, ao menos o verdadeiro valor que têm, e remanescem enjaulados num modelo que, conforme informações veiculadas pela imprensa, não vale praticamente nada no exterior (neste sentido, os direitos de transmissão internacional da série A, em 2023, teriam sido negociados por ridículos US$ 8 milhões). O caminho pressupõe, então, o desmembramento da CBF e a retenção e alocação de especialidades. Consequentemente, a CBF focaria e desenvolveria a seleção brasileira, que deveria ser um dos principais exemplos de softpower do país; enquanto os times, de outro lado, impulsionariam ligas fortes e pujantes, em especial a que chamarei aqui de Liga Brasileira, fruto da reunião e união dos times de primeira e segunda divisões. A Liga Brasileira também deveria se transformar num produto de exportação, influência e posicionamento do Brasil; e não há exagero nessa proposição. A Premier League serve como exemplo. Ela se tornou uma espécie de Hollywood inglesa, que se insere nos lares de cidadãos de aproximadamente 90 países e expressa - melhor do que a Família Real, envolta em crises mundanas -, a cultura e a ambição do país.   De modo suscinto, o gráfico abaixo ilustra como ficaria o modelo acima proposto: Nota-se, no modelo, a relação de cooperação entre CBF e Liga Brasileira, para fortalecimento do sistema como um todo, que geraria, ao final, impactos esportivos, sociais e econômicos, de modo generalizado. Para tanto, as estruturas de controle e societária da CBF, seu papel de guardiã da tradição e da cultura, assim como a função atribuída pela FIFA a uma entidade de administração do esporte, devem ser ressignificadas e compreendidas. E sobre isso se tratará no próximo texto.
O grande dilema da teoria da governação de companhias (ou da governança, conforme termo mal traduzido do inglês), consiste na aderência de proposições de gabinete às realidades de entidades heterogêneas. Aliás, mais do que isso: também envolve a necessidade de adaptação de formulações estrangeiras, construídas para problemas locais, à realidade dos ambientes em que serão introduzidas, como o brasileiro. A falta de sensibilidade, ou melhor, a utilização dogmática da matéria, inclusive por quem a conhece, mas que pretende encobrir uma série de imperfeições por detrás de um conceito mercadológico abstrato, vem contribuindo para falsear realidades complexas ou insustentáveis. Daí a falibilidade, ou melhor, o fracasso, ainda não admitido no âmbito do mercado, dessa tentativa de construção de um padrão (ou conjunto) de práticas uniformes que sejam extensíveis, de modo geral, aos agentes que dele (mercado) participam. Isso não existe e jamais existirá. Por outro lado, não se pretende, com tais alertas, negar a relevância - ou mesmo a indispensabilidade - da autogovernação das sociedades (bem como de associações sem fins econômicos), que pode ser construída a partir da boa doutrina, local ou internacional, isenta e não capturada por interesses específicos. Nesse sentido, um botequim de esquina - sem qualquer demérito, ao contrário, dos pequenos estabelecimentos que hospedam a alegria de trabalhadores (ou notívagos) - pode, eventualmente, implementar, dentro de sua realidade, uma governação que lhe propicie uma perspectiva de perenidade; enquanto uma enorme companhia que fornece os produtos ao mesmo botequim, eventualmente, estará sujeita a um modelo interno superficial, que a levará, no tempo, ao desaparecimento. Partindo dessas premissas e, novamente, levando-se em conta os reais avanços propiciados por uma teoria independente, a governação da CBF (de modo amplo e com abrangência sobre todos os órgãos ou estruturas de poder), no âmbito da proposta que vem sendo apresentada nesta série de artigos (envolvendo, pois, sua mutualização, desmutualização e abertura de capital), teria um papel relevante em sua transformação, estabilização e projeção planetária. Em primeiro lugar, com relação à estrutura de capital e às consequentes restrições à apropriação societária por uma ou outra pessoa, mediante, como já se aventou, a oferta de ações a pessoas integrantes de programas de sócios torcedores ou assinantes, apenas como exemplo, de planos de transmissão de jogos de campeonatos disputados no Brasil. Além disso, por meio da imposição de limite de votos por acionista, independentemente do número de ações de que seja titular. E, ainda, a eventual fixação de número máximo de ações por acionista. Em segundo lugar, mas não menos importante, com relação à estrutura interna, mediante a arquitetura de órgãos de administração, consubstanciados em conselho de administração (com ou sem membros independentes), comitês executivos (ou de aconselhamento) do conselho de administração, diretoria (e gerências, inclusive regionais), área de relações com investidores, canais de transparência, comitês temáticos, auditores independentes e conselho fiscal, que reflitam, basicamente, os seguintes aspectos (ou interesses) fundamentais: (i) o desenvolvimento do futebol no Brasil; (ii) o desenvolvimento da seleção brasileira - que, conforme se depreende da realidade atual, está descasado do futebol no Brasil, pois a grande maioria dos atletas selecionados sai cedo do país, é formada fora e "importada" apenas para satisfazer os desejos da CBF (de modo que, em tese, para ela, a própria existência atual de campeonatos profissionais seria desnecessária, desde que brasileiros em fase de formação continuassem a ser exportados para alimentar times europeus); (iii) o desenvolvimento regional por via das federações, que passariam a ter um papel desenvolvimentista inequívoco e atrelado a um projeto nacional; (iv) o desenvolvimento do futebol brasileiro no exterior; (v) a utilização do futebol como instrumento de incentivo à educação formal e à inserção social das pessoas integrantes do sistema; (vi) a afirmação do futebol brasileiro como instrumento de divulgação e de softpower; (vii) a afirmação da atividade como setor prioritário, empregador e distribuidor de renda; e   (viii) o interesse nacional (assim como Hollywood, NBA, K-Pop ou Bollywood exercem em relação aos seus países). No âmbito conceptivo da arquitetura do projeto, para posterior edificação da estrutura, e adequada distribuição de atividades e prioridades, a própria função da CBF e de suas atuações seriam revisadas e ressignificadas, considerando-se dois eixos principais: separação de atividades profissionais e essenciais de outras, auxiliares ou complementares; e atribuições e separações envolvendo interesses da seleção brasileira e interesses dos times de futebol. O tratamento desses dois eixos será objeto do texto da próxima semana.
Os três textos publicados nas semanas anteriores apresentaram, de maneira resumida, os passos sugeridos para implementação de um grandioso projeto de CBF, consistentes, cronologicamente, na sua mutualização, desmutualização e abertura de capital. Os gráficos abaixo indicam a situação atual e os efeitos de cada passo: Além de tais passos, há uma série de aspectos, apresentados no último parágrafo do texto da semana anterior, que devem ser apreciados antes e durante o processo, em especial para que o resultado beneficie a própria CBF, os times, os jogadores, os torcedores, as federações e a sociedade em geral - de modo a evitar a apropriação, por poucos e pequenos grupos de interesse, da riqueza que se produzirá. A mutualização, como explicado em texto anterior, implica a atribuição de títulos patrimoniais, hoje inexistentes, aos clubes ou sociedades anônimas do futebol (e federações). Promove-se, com ela, uma (quase) alquimia jurídico-econômica (expressão inexistente e atécnica), pois se cria, do nada, um patrimônio distribuível e protegido juridicamente, com valor estimável e realizável, em favor dos times e federações. Além - e isso é muito importante - do ingresso de recursos na própria CBF, que poderá utilizá-los para: (i) reforçar o investimento na seleção e na sua expansão como softpower; e (ii) passar a ser uma legítima distribuidora de novos recursos à sociedade, provenientes da geração de lucros da sua atividade. Daí a importância, em primeiro lugar, de fixação de critérios democráticos de atribuição de títulos patrimoniais aos clubes, para que não se promova uma concentração ou um reforço da elitização do futebol no Brasil. Não se propõe, de modo inverso, que clubes sem tradição histórica e com pouca perspectiva de contribuição social e econômica sejam contemplados de modo desarrazoado; apenas se sugere o encontro de fórmulas sensatas e contributivas para a higidez do sistema. Critérios como tamanho de torcida, títulos internacionais, títulos nacionais e outros podem ser levados em conta, dentre, por exemplo, os times que participem ou tenham participado das séries A, B, C e D do Campeonato Brasileiro ou da Copa do Brasil, no ano da própria atribuição dos títulos patrimoniais e nos últimos 5 anos. Ademais, levando-se em conta que a implementação do projeto depende de atuação estatal, em sua função legisladora (algo que não se revela uma novidade ou exotismo brasileiro pois, em todos os países que avançaram em seus modelos de organização do futebol, como Alemanha, França e Espanha, o Estado cumpriu inevitável e legítimo papel de fixador da moldura jurídica essencial à segurança dos agentes e do sistema), certas contrapartidas podem (ou devem) ser arquitetadas. Uma delas envolve a utilização de parte dos recursos futuros, oriundos da venda de ações da CBF, para eliminação parcial, e com desconto, de obrigações tributárias, e alocação de outra parte na melhoria das estruturas de formação de jovens jogadores. Na outra ponta, relativa à estrutura societária da CBF, após sua abertura de capital, alguns aspectos também devem ser considerados. Primeiro, eventual incentivo para retenção e liberação parcial de venda de ações, para evitar movimentos imediatistas e prejudiciais aos times, sem que, com isso, se impeça a obtenção de liquidez imediata. Segundo, no âmbito da subscrição primária, ou seja, na aquisição, por terceiros, de ações da CBF, a escolha de critérios de preferência aquisitiva das ações, que seria atribuída, por exemplo, aos próprios times que pretendam comprar mais ações, a torcedores inscritos em planos de sócio torcedor dos times beneficiários e a cidadãos brasileiros. Terceiro, determinação de limite máximo de ações por acionista, incluindo os times e demais ofertados preferenciais, para evitar concentração de poder ou exercício de controle indesejado. Quarto, obrigatoriedade de revelação do nome do beneficiário final da titularidade de ações de emissão da CBF que superem determinado percentual do capital social da entidade, quando o proprietário for pessoa jurídica, local ou internacional (e, neste caso, obrigatoriedade de indicação de procurador local, com amplos poderes, inclusive de representação). E, quinto, instituição de critérios de vetos quanto à aprovação de matérias que impliquem interesse nacional, cultural ou de outras naturezas, que podem ser exercidos por entidades ou grupos de acionistas (inclusive uma CBF associativa, acionista da CBF S.A., sobre a qual, aliás, se discorrerá em texto específico). Essa estrutura haveria de ser estabilizada por meio da arquitetura de um modelo próprio de governação, que será objeto do próximo texto desta série.
quarta-feira, 6 de março de 2024

Um projeto grandioso para CBF - Parte III

Na parte final do texto publicado semana passada neste espaço, afirmou-se, de modo resumido, que uma das belezas da mutualização consistiria na atribuição de títulos patrimoniais da CBF aos clubes e federações. Em decorrência dela, os beneficiários incorporariam aos seus patrimônios ativos valiosíssimos que, atualmente, não existem. Os efeitos parecem, a esta altura, evidentes. Dentre eles, a criação, do "nada", de um conjunto patrimonial bilionário - sem exagero -, representativo do valor extrínseco da CBF, distribuível entre (i) os clubes, que o utilizariam para reduzir passivos, inclusive com o fisco, e para desenvolver a atividade futebolística no país, e (ii) as federações, que deveriam, no plano regional, promover tal desenvolvimento.   Paralelamente, a CBF também se capitalizaria ainda mais, com o ingresso de recursos primários, e se beneficiaria de uma estrutura de governança poderosa, de modo a liderar um movimento pioneiro no plano global. Antes de tudo isso, um derradeiro passo haveria de ser dado: a desmutualização da própria CBF. Explica-se. A criação de títulos patrimoniais e a sua consequente atribuição aos clubes e federações, apesar de aumentar o patrimônio de cada entidade, não viabilizariam a circulação, dos títulos recebidos, dentro ou fora do sistema do futebol. Eles permaneceriam enclausurados nos balanços contábeis, sem consequências econômicas. Dentre outros motivos, porque associações civis, sem fins econômicos, como a CBF, não podem distribuir excedentes (lucros) aos seus associados; e seus títulos não são negociáveis (sob regras atrativas aos proprietários e, ao mesmo tempo, aos possíveis adquirentes). Deve-se, pois, inicialmente, conferir a esses títulos uma nova feição (ou natureza) jurídica. Mas não basta que os títulos da associação sejam submetidos a um processo transformacional; antes, a própria entidade deve se transformar também para, a partir daí, viabilizar a conversão daqueles títulos em ações (que seriam, as ações, pois, a nova expressão jurídica dos títulos associativos). A ideia não é nova e encontra precedentes bem-sucedidos na história recente: as desmutualizações da Bolsa de Valores de São Paulo e da Bolsa de Mercadorias & Futuros. Ali se viabilizou, em ambos os casos, a passagem do modelo associativo ao societário, com o surgimento de novas companhias, cujos capitais passaram a ser divididos em ações, distribuídas entre seus antigos mutualistas, que se converteram, portanto, em (felizes e milionários) acionistas. Na sequência, as novas companhias promoveram seus próprios registros de emissoras de valores mobiliários e, por fim, os registros de ofertas públicas de distribuição de ações, para viabilização da abertura de seus capitais. Com isso, aquele patrimônio, antes ilíquido e pouco valorizado, carregado ao longo de anos ou décadas pelas corretoras associadas à bolsa, encontrou, no mercado, uma liquidez sem precedentes, e facultou a cada um de seus proprietários a oportunidade de realizar vendas parciais ou totais de ações - e, em muitos casos, de embolsar dezenas ou centenas de milhões de reais. De volta ao mundo do futebol, a proposta que se reapresenta, nesta série de textos, tem o mesmo objetivo: a desmutualização da CBF implicaria a atribuição aos clubes e federações, como indicado acima, de determinadas quantidades de ações de emissão de uma companhia (a CBF) que, na origem, seria fechada. A companhia CBF, ato contínuo, promoveria sua abertura de capital e, neste momento, além de atrair novos recursos para si, mediante oferta primária, para aplicação no reforço e na afirmação da seleção brasileira, também viabilizaria a venda parcial ou total, pelos mencionados clubes e federações, de suas ações. A venda não seria - e jamais será - mandatória; a decisão de manter ou não para si o ativo obtido com o processo inicial de mutualização da CBF caberia a cada clube ou federação, em função de sua saúde financeira, de sua necessidade de obtenção de caixa para pagar dívidas ou de investir na atividade futebolística, bem como de sua percepção de valorização das ações no tempo, atrelada ao resultado futuro da seleção brasileira. Está-se, assim, diante de uma oportunidade histórica. Desde o advento da Lei da SAF, de autoria do Presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), o Brasil vem atraindo a atenção de investidores locais e internacionais, dos mais distintos perfis. Não à toa a integração ao sistema, em pouco mais de dois anos e meio, de aproximadamente 60 sociedades anônimas do futebol. Ademais, o futebol brasileiro, a despeito do permanente esforço realizado por certa casta cartolarial para destruí-lo - como atividade relevante, como orgulho nacional e como softpower internacional -, ainda é o maior vencedor de copas e o único, no planeta, que reúne atributos que o viabilizariam como sistema autossuficiente. A autossuficiência - no sentido de que, em tese, não depende de elementos exógenos para sobreviver e competir em alto nível, ao contrário dos pares europeus, que se afirmam, apenas, com a importação obsessiva de jogadores trans e multinacionais - se afirmaria e intensificaria com as cachoeiras de recursos que jorrariam, para os clubes, federações e à própria CBF, do processo de mutualização, desmutualização e abertura de capital da CBF.   Um processo inovador e único, sem precedente, com potencial de atrair agentes de todo o planeta. Com uma precificação também única, pois se trata de uma entidade, mais uma vez, única, pois responsável pela seleção brasileira. E que movimentaria uma quantidade também única de recursos, para formação, nada mais, nada menos, do que o maior ambiente futebolístico jamais visto ou concebido na história mundial. Pontos de atenção, porém, devem ser seriamente considerados, durante e após o processo, como (i) a distribuição de riquezas de modo equilibrado (não entre cartolas, evidentemente, e sim entre a própria CBF, clubes e federações, as quais podem, aliás, replicar o modelo, mediante, por exemplo, a mutualização, a desmutualização e a abertura de capital da Federação Paulista de Futebol), (ii) a estrutura de poder resultante e seus instrumentos de pesos e contrapesos e, naturalmente, (iii) a governação da CBF. Sobre esses temas se tratará no próximo texto da série.
quarta-feira, 28 de fevereiro de 2024

Um projeto grandioso para CBF - Parte II

Na parte final do texto publicado semana passada neste espaço, afirmou-se que a Lei da SAF, de autoria do Presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), pavimentou o caminho para um (monumental) projeto de CBF, que envolve sua mutualização e consequente desmutualização.  Essa ideia já fora apresentada no livro Futebol, Mercado e Estado1 e, posteriormente, em uma série de textos igualmente veiculados nesta coluna. Apesar se não se tratar, portanto, de uma novidade, a ideia ficou adormecida, desde o início dos debates relacionados à SAF e ao novo mercado do futebol. O resgate se justifica, agora, por dois motivos principais. Primeiro, porque seria - ou, melhor, é - o melhor caminho para solucionar, em grandíssimo estilo (e no interesse coletivo), a crise estrutural que abalou o futebol brasileiro (a qual, importante repisar, não foi causada pelo atual Presidente Ednaldo Rodrigues e da qual a entidade não sairá, sem sequelas indeléveis, enquanto mantido o secular modelo distributivo de poder). Segundo, porque viabilizaria o surgimento, quase como num toque de mágica, de patrimônio bilionário, a ser distribuído entre federações e times (clubes ou sociedades anônimas do futebol). Parte-se, para explicação do modelo, da seguinte premissa: os times não são associados, conforme conceito jurídico, da CBF. Em outras palavras, não são proprietários de títulos patrimoniais da entidade. A premissa foi extraída da análise de balanços e demonstrações financeiras disponibilizados na imprensa oficial por mais de uma dezena de associações ou sociedades anônimas do futebol. Por tal motivo (ou seja, a ausência de relação associativa ou de propriedade), a vinculação com a CBF se estabelece por força do estatuto da entidade, que atribui votos múltiplos aos times, conforme qualificação para participar da primeira ou da segunda divisão. Olhando-se pelo outro lado da mesma moeda, o time que não estiver qualificado não vota, de modo que o voto (precário) serve como uma espécie de prêmio político para os times que participarem das duas principais divisões do campeonato brasileiro de futebol. Inexiste, pois, um sistema de transferências patrimoniais entre os que sobem e os que descem de divisão, ou de suspensão de direito político e manutenção da propriedade, nas mesmas circunstâncias. Extrai-se, de tudo isso, que os times não são donos da CBF; são, talvez, usuários. Daí surge a inevitável pergunta: quem, sob o prisma jurídico, é o seu dono (ou quem são os seus donos)? A resposta intuitiva parece óbvia: as federações. Mas o estatuto da própria CBF e a falta de informação pública acerca do tema - ao menos que se tenha conseguido localizar em pesquisas independentes - não autorizam a defesa contundente da afirmação. Primeiro, porque o art. 15 prevê que são "filiadas da CBF as (...) entidades regionais de administração do futebol (...)"; logo, o emprego do verbo "filiar" afasta a noção de propriedade (ou associativa) que remeteria ao conceito de dono (ou dona), mesmo que em coletividade. Segundo, pela falta de evidência pública de que as federações são proprietárias de títulos da associação, assim como uma pessoa física é, por exemplo, do Paulistano, do Esperia ou do Pinheiros (também associações civis). A partir do cenário apresentado, o (grandioso) projeto consiste na atribuição e distribuição de títulos patrimoniais da CBF aos times, conforme critérios homogêneos e heterogêneos (dentre os primeiros, por exemplo, a distribuição de um número de títulos igual a todos; com relação aos outros, variações em função de aspectos como títulos nacionais, torcida, audiência etc.). O mesmo caminho se trilharia em relação às federações, que, proprietárias ou não, também seriam contempladas com a distribuição de títulos da entidade. Ao cabo das operações, terá se operado uma espécie de alquimia, pois entidades vinculadas, antes, apenas pelo êxito esportivo, ou desvinculadas pelo fracasso, mesmo que momentâneo, passarão a sustentar uma relação estável, ao menos no plano patrimonial, e terão a possibilidade de, em algum momento futuro, converter a propriedade adquirida em recursos financeiros para pagamento de dívidas ou para financiar a própria atividade futebolística. E, no caso das federações, de direcionar os recursos para desenvolvimento do futebol em âmbito regional. Essas são, de modo muito sucinto, as belezas da mutualização - que consiste, pois, na atribuição de títulos patrimoniais de uma associação (a CBF) aos clubes e federações. Como nem tudo são flores, a atribuição de títulos implicará um acréscimo de patrimônio que poderá, conforme natureza do time, atrair a incidência da norma tributária. Porém, dado que o time somente observará os efeitos econômicos do acréscimo após a desmutualização da CBF - tema, aliás, do próximo texto -, mas o peso tributário seria sentido logo na origem desse acréscimo patrimonial, a solução consistiria na promulgação de uma lei, de interesse nacional, voltada à regulação do tema, para permitir a geração, como demonstrado acima, de uma riqueza atualmente inexistente. O objetivo da lei consistiria no diferimento da obrigação tributária, isto é, do dever de recolher ao erário o tributo advindo do acréscimo patrimonial, deslocando esta obrigação para o momento da liquidação do título patrimonial recebido no âmbito da mutualização. A lei, aliás, não se dirigiria apenas à CBF - e nem poderia -, mas também às associações de administração em geral, que poderiam aproveitar a oportunidade e replicar o modelo regionalmente. Assim se operaria uma rara união público-privada para o desenvolvimento de ambiente gerador de riquezas e indutor de negócios que produzirão empregos, serviços, tributos e distribuição em larga escala. Na próxima semana serão abordadas a desmutualização e suas consequências. __________ 1 Castro, Rodrigo R. Monteiro de; Manssur, José Francisco C. - São Paulo, Quartier Latin, 2016.
quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

Um projeto grandioso para CBF - Parte I

Futebol é coisa séria. Uma atividade global. Aliás, a maior atividade de entretenimento do planeta. Em países como o Brasil, a única (ou uma das únicas) com potencial de induzir a refundação das bases da sociedade e de viabilizar a ascensão e a inserção das camadas populacionais menos favorecidas. Paradoxalmente, governos não ligam para o futebol. Ou melhor, se preocupam apenas com movimentações populistas, em favor de governantes que se aproveitam do esporte para projetos políticos ou pessoais, ou de cartolas alinhados a interesses eleitorais. Daí o surgimento da nociva proposição, repetida por gerações, de que o futebol é a coisa mais importante das menos importantes. Proposição essa que serve apenas como espécie de opioide, turvador da percepção coletiva a respeito da grandeza, da utilidade e da relevância do futebol. A turvação se expande para temas que envolvem a CBF e atinge níveis de cegueira sempre que a ideologia e o oportunismo se manifestam. É o que vem ocorrendo, com recorrente frequência, desde a emersão da crise política que se evidenciou com o afastamento e o retorno do atual Presidente, Ednaldo Rodrigues, e, simultaneamente, com os péssimos resultados em campo das seleções principais e de base. Ali, o problema não é de conjuntura ou tem nome e sobrenome. A origem é estrutural. Para curá-la não adianta a prescrição de remédios paliativos, redutores de efeitos. A solução envolve, pois, a compreensão das causas e a reformulação dos propósitos existenciais da entidade e de seu papel na sociedade brasileira. São esses os enigmas que governos e entes privados não quiseram, por diversos motivos, desvendar. A CBF é uma associação civil, sem fins econômicos - isto é, seus excedentes não podem ser distribuídos na forma de dividendos aos seus associados -, que organiza, de modo resumido, a seleção brasileira e as disputas nacionais entre times. Seu colégio eleitoral atual abrange as federações estaduais, com votos múltiplos, e os clubes de primeira e de segunda divisões, com votos múltiplos reduzidos e singulares. Os votos de cada federação são inabaláveis e têm peso 3, enquanto os dos clubes se atrelam aos resultados esportivos: voto de clube da primeira divisão tem peso 2 e, de segunda divisão, peso 1. Compõem o quadro associativo da CBF 27 federações, que somam 81 votos. Paralelamente, os 40 times, de ambas as divisões, computam 60 votos. Nessa construção estatutária, a Federação Tocantinense (ou de qualquer outro Estado) pesa, vale ou manda mais do que o time do Flamengo (ou qualquer outro clube ou SAF da primeira divisão). Por se tratar de entidade privada, ela escapa ao controle de órgãos estatais ou privados externos. Todo o controle de fato se opera no âmbito estatutário, e se realiza por órgãos internos, controlados ou embrenhados na estrutura de poder e de interesses federativos e confederativos. O poder emana, formalmente, e se estabiliza no âmbito das federações - mesmo que, do ponto de vista material, possa ser manipulado por um ou outro agente integrante de órgão diretivo, ou não (um presidente, um ex-presidente ou um consultor, por exemplo).  Essa estrutura provou seu esgotamento. E os resultados, em qualquer plano (político, esportivo etc.), atestam a afirmação. As seleções brasileiras deixaram de impor reverência aos seus adversários e colecionam, há mais de uma década, vexames; e os principais times locais, apesar da paixão de seus torcedores, não rivalizam com os pares europeus (que deixaram de ser pares e assumiram posições superiores). Sob outro prisma, a CBF chama mais atenção por conta de mazelas internas, envolvendo corrupção, conflitos de interesse, golpes e contragolpes, do que pelo papel desenvolvimentista do esporte, que deveria desempenhar. O modelo associativo, com raízes federativas, não será capaz de recobrar a confiabilidade local e internacional, e recolocar o futebol no trilho do desenvolvimento e do protagonismo. Há, porém, caminhos grandiosos (para evitar a outra adjetivação que se preferiria utilizar, qual seja, "épicos"), que não apenas viabilizariam o redirecionamento histórico como, tão ou mais importante, contribuiriam para formação do maior ambiente (ou mercado) futebolístico do planeta. Curioso, novamente, que essa perspectiva não atraia o interesse do Estado. Não - e jamais - no papel de interventor, mas de regulador e fomentador de políticas públicas indutoras e viabilizadoras da transformação estrutural. Sem a sua contribuição (e atuação), o modelo patrimonialista continuará a se sobrepor aos interesses coletivos e da Nação, em favor, como sempre se operou, de um pequeno grupo de privilegiados. A Lei da SAF, de autoria do Presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG) - a quem se deve atribuir os méritos da iniciativa transformadora, apesar das resistências que ainda hoje se articulam - anunciou um possível novo período de prosperidade no âmbito clubístico e, implicitamente, começou a pavimentar o caminho para um (monumental) projeto de CBF, que envolve sua mutualização e consequente desmutualização.  Algo que, se (e quando) realizado, não apenas gerará, quase como num toque de mágica, riquezas aos clubes e, para a própria CBF, uma estrutura de capital, de governança e de controle que a colocarão (pode-se apostar), de modo positivo e exemplar, no centro da atenção planetária. Sobre as belezas da mutualização e as consequências da desmutualização, e de como o público e o privado podem se unir para promover um magnífico projeto de interesse nacional, a próxima edição desta coluna tratará a respeito.
quarta-feira, 14 de fevereiro de 2024

Qual é a melhor SAF?

Parte-se, na formulação deste texto, das premissas adotadas no artigo publicado semana passada nesta coluna a respeito do suposto melhor modelo de constituição de SAF. As premissas, se fossem verdadeiras, poderiam levar, num exercício de raciocínio lógico, ao ranqueamento das melhores sociedades anônimas do futebol. Surgiriam, assim como logo surgirão, ranques, positivos ou negativos, a apontar as melhores e as piores, sem levar em conta as raízes dos resultados esportivos, e que tendenciariam (como também tendenciarão) a construir artificialidades - algo que não impede o reconhecimento de projetos bem-sucedidos e, no limite, premiá-los. Em outras palavras, eventuais comparações entre, apenas como exemplos e sem promover qualquer juízo de valor, Galo e Vasco, Bahia e Coritiba, ou entre clubes mais próximos, como Cruzeiro e Galo, não se sustentam sem que os elementos objetivos de cada um sejam neutralizados ou equiparados, hipóteses que, em si, artificializariam o próprio resultado. Ainda mais imprudente se revelam - ou se revelaram - as tentativas de imputação de fracassos às sociedades anônimas do futebol, durante o ano de 2023, com a criação de um certo ranking invertido e negativado. Além do pouquíssimo tempo de existência, que afeta a capacidade de reorganização e estruturação, não se pode desconsiderar a situação pretérita de cada clube e as evoluções promovidas a partir da introdução do modelo de SAF. Alguns exemplos ilustram a proposição. Determinado e respeitadíssimo jornalista afirmou, na véspera da primeira aparição do Botafogo no campeonato brasileiro de 2023, contra o São Paulo, que ali se faria um jogo de 6 pontos - ou algo assim -, pois ambos lutariam na tabela de baixo, eventualmente contra o fantasma do rebaixamento. Ali, no início de 2023, se iniciava o primeiro ano completo e minimante estruturado da SAF constituída por investidor internacional do Botafogo. A descrença ainda se sobrepunha à (boa) esperança. Se o time tivesse feito uma campanha com vitórias e derrotas, com altos e baixos, e chegado, ao final, na sexta posição, com uma vaga de acesso à Copa Libertadores, teria sido aplaudido e os resultados do novo modelo, justamente enaltecidos. Como, porém, o time foi de uma campanha triunfal, no primeiro turno, às trevas, no segundo, o reconhecimento do trabalho em curso se perdeu na estupefação coletiva. Mesmo raciocínio vale para o Cruzeiro, pioneiro no mercado da SAF e, daí, desbravador, com acertos e erros, dos caminhos trilhados, depois, por outros clubes. Seu CEO, Gabriel Lima, afirmou, em 2022, logo após a ascensão à série A, que o objetivo, em 2023, seria manter-se nela - logo, neste ano, ainda não haveria pretensão a título. Com o objetivo alcançado, o time poderia, a partir de 2024, acessar mais recursos e, num futuro próximo, conforme planejamentos qualificados, almejar novas conquistas. Ele conhecia o ambiente de putrefação assumido por Ronaldo Nazário, o salvador, e a complexidade dos desafios que enfrentariam. O Cruzeiro lutou, parte do ano, contra o rebaixamento, mas, ao final, não apenas se manteve na elite como se classificou para a Sul-Americana. A SAF foi bem em sua primeira temporada na série A? Comparando-a com os anos de glória e de conquistas nacionais e internacionais (que, paradoxalmente, foram responsáveis pela decadência futura), não; por outro lado, levando-se em conta a realidade por ocasião de constituição da SAF e de início do projeto de reconstrução, em que o clube não apenas não encontrava forças para subir para a série A como namorava a série C, sim, foi maravilhosamente bem - ainda mais pela implementação dos alicerces da nova estrutura. O Bahia também foi objeto de incompreensão durante o ano de 2023, no tocante aos propósitos de seu investidor, o poderoso e vitorioso Grupo City, e, assim, suas qualidades colocadas em dúvida. Devia estar evidente, porém, que a pressa não era o combustível do investimento. Primeiro, se viveria um período de compreensão da realidade local, das pessoas, do futebol no Brasil e das perspectivas que se abririam com ações mais estruturadas, após a obtenção de alguma experiência e conhecimento do ambiente; depois, se passaria à construção de uma nova fase na história do time. É verdade que os planos quase se retardaram por conta do rebaixamento evitado na última rodada, mas isso não impediria, com talvez um ano de atraso, que movimentos ambiciosos se iniciassem, adiante. Também é verdade que, aparentemente, o Bahia não receberá investimentos para que se insira, de modo estável e permanente, entre os quatro do Brasil - ou será que, com o tempo, a ambição mudará e o objetivo passará a ser, sim, como o Manchester City, o protagonismo nacional e internacional, ao menos latino-americano? Ao que tudo indica, terá recursos e estrutura para, no médio prazo, se fixar entre as principais forças nacionais, com protagonismo regional. Seria (ou será) isso pouca coisa para um time que, historicamente, com poucos anos de exceção, luta para, prioritariamente, manter-se na série A?   Ou ainda o caso do Galo, que não ganhava um campeonato brasileiro desde 1971 e, ainda sob a forma de associação, porém, com recursos externos que se introduziram e permaneceram com a constituição da SAF, voltou ao topo, e, com ela e apenas com ela, deverá estabilizar uma situação que poderia ter desandado e se aproximado do pesadelo cruzeirense. Aliás, mais: que passou, a SAF do Galo, a oferecer aos seus torcedores a perspectiva anual e real de títulos relevantes, nacionais ou internacionais. Qual delas seria, pois, a melhor SAF? A pergunta, que se repete aos quatro cantos, não tem utilidade prática, exceto para preencher rankings ou criar artificialidades, como afirmado acima. Será melhor ou serão melhores as sociedades anônimas do futebol que, no curto e longo prazos, alcançarem os objetivos esportivos e econômicos traçados no âmbito de suas concepções, que poderão (ou deverão) ainda ser ajustados em função das realidades positivas ou negativas que se apresentarem ao longo da jornada.
quarta-feira, 7 de fevereiro de 2024

Qual é o melhor modelo de SAF?

A sociedade contemporânea adora criar sistemas avaliativos, na maioria das vezes envoltos em critérios subjetivos de premiação, que se retroalimentam e, ao mesmo tempo, estabelecem padrões de referência, de conduta e de consumo. Cientistas, jornalistas, matemáticos, médicos, advogados, pacifistas e - não poderiam ficar de fora - futebolistas competem, com regularidade, por prêmios e láureas. Tal adoração - ou alucinação - provocou, ao final de 2023, uma série de ensaios relacionados às sociedades anônimas do futebol ou aos seus modelos, influenciados pelos momentos vividos por cada uma delas. Tentava-se, com frequência, indicar a melhor e, naquele momento, a pior SAF. De modo geral, não se promoveu um necessário exercício metodológico para segregar argumentos inconciliáveis (mesmo que, em algum plano subjetivo, eles possam ser interseccionados): a SAF em si (e seus resultados em campo) e o respectivo modelo adotado para passagem do sistema associativo ao empresarial (sob a forma de SAF). Sobre a melhor (ou a pior) SAF, tratar-se-á em outro texto. Neste, o foco será a modelagem. A Lei da SAF, de autoria do Presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), foi concebida com a expectativa de oferecer meios jurídicos de enfrentamento de um problema estrutural secular, que ainda obstaculiza a introdução (e aceitação) do futebol como atividade essencial ao desenvolvimento social e econômico da nação. Olhando-se para o outro lado da mesma moeda, o futebol não tem o reconhecimento político e a participação na economia que lhe emprestem a devida relevância; talvez pelo fato de, historicamente, acumular dívidas que são pagas indiretamente pela sociedade, além de outros fatores maculadores, como falta de transparência, controle e casos de corrupção. Esse conjunto de coisas não representava o único desafio por ocasião da formulação da Lei da SAF. Outro, igualmente grandioso, e exclusivo do Brasil, apresentava-se e dificultava a realização de estudos comparativos: a quantidade de clubes em atuação, registrados na CBF, espalhados por todas as regiões e com as mais distintas situações e condições patrimoniais e financeiras. Mesmo assim, foram estabelecidas as seguintes premissas norteadoras do processo: a lei introdutora da SAF não poderia privilegiar um ou poucos times, grupos de times, estados ou regiões. Ela deveria ser elástica o suficiente, e ao mesmo tempo confiável em sua estrutura, para viabilizar de pequenos a grandes negócios e investimentos, direcionados a toda sorte de clube. Nascia, com o advento da Lei da SAF, um instrumento, de natureza legislativa, que, pela primeira vez na história, sinalizava uma política pública voltada ao financiamento da atividade futebolística e, principalmente, para formação do mercado do futebol, sem privilégios a qualquer grupo de interesses (ou de poder). Nesse ambiente, cujo arcabouço regulatório ainda está em construção - afinal, a própria Lei da SAF ainda se encontra em processo de acomodação e compreensão -, negócios começaram a ser entabulados e, a partir deles, uma nova e salvadora perspectiva se abriu, com resultados imediatos. Paradoxalmente, o imediatismo, sobretudo analítico, turva, porém, a compreensão da realidade, ou melhor, das realidades que induziram a realização de um ou outro negócio, e continuarão a embalar os projetos vindouros. Daí a impertinência comparativa entre modelos adotados para constituição de sociedades anônimas do futebol. É evidente que se pode, sobretudo a posteriori, analisar e apontar acertos e erros, cometidos em quase todo tipo de processo. Muitos deles, no tocante aos erros, decorrentes da urgência de uma solução imediatista ou, lá atrás, do desconhecimento da própria lei. E que foram eventualmente corrigidos. Tais elementos não se confundem, porém, com as características únicas de cada clube e de suas situações, motivadoras da adoção de modelagens próprias e, por essência, inaplicáveis, de modo integral, a concorrentes. Por isso que, como exemplos, Cruzeiro e Galo seguiram caminhos distintos, assim como Bahia e Fortaleza também adotaram vias muito particulares. E o mesmo vale para as outras dezenas de sociedades anônimas existentes no sistema, tais quais Coritiba, América/MG, Ferroviária, Botafogo, Vasco, América/RN e Gama. Tal diagnóstico autoriza a formulação de duas conclusões: (i) a Lei da SAF, em seus poucos anos de existência, já revela sua eficácia geral, abrangendo todo tipo de jurisdicionado, sem privilegiar maiores ou mais ricos - e, desta forma, incentiva a ascensão esportiva e a desconcentração de riquezas; e (ii) a tentativa de ranqueamento, a partir de modelos de passagem, ainda mais em tão curto prazo desde o início de operações de SAF, consiste em exercício estéril, sem utilidade prática, pois, para que tivesse alguma seriedade, haveria ao menos de equiparar os pontos de partida, que são (ou eram) as realidades de cada clube. Algo que, todos sabem, não há como se fazer. Portanto, cada time deverá seguir, sem complexos ou preconceitos, o seu caminho e, ao longo dele, corrigir os eventuais equívocos originais ou supervenientes, os quais, estes sim, merecem ser apontados e redirecionados.
A PEC 45, votada e aprovada pelo Congresso Nacional, promoverá drásticas mudanças no sistema tributário nacional. No âmbito de sua tramitação, foi proposta uma Emenda Aditiva pelo Senador da República, Carlos Portinho (PL/RJ), com o propósito de incluir as atividades desenvolvidas pela Sociedade Anônima do Futebol (SAF) dentre aquelas que poderão ser contempladas com regimes especiais de tributação, nos termos de lei complementar. De modo resumido, a emenda pretendia, como de fato logrou, garantir a manutenção e o desenvolvimento do novo mercado brasileiro do futebol, que começou a se formar a partir do advento da lei 14.193/2021 (Lei da SAF), de autoria do Senador da República e Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD/MG). Com a criação do mercado brasileiro do futebol, o setor iniciou o processo de passagem do modelo associativo, notabilizado pela secular dependência de benefícios e perdões fiscais, para o modelo empresarial, necessariamente contribuinte e pagador de tributos. Daí a importância, ou melhor, a crucialidade da preservação da Lei da SAF, que já estimulou a constituição de 58 SAF's, espalhadas pelo país, e vem atraindo investidores locais ou internacionais, dos mais distintos perfis.   Aliás, não custa lembrar: é notório que, além dos atributos econômicos, o esporte é uma ferramenta valiosa para inclusão social e educacional, e para construção da cidadania. No caso do futebol, talvez seja o mais poderoso instrumento de inserção e de unificação. E isso somente se alcançará, com efetividade, se a lógica patrimonialista for substituída por outra, contributiva e participativa. Esse era o movimento que poderia ter sido interrompido caso a PEC 45 não tivesse sido sensível à relevância que o novo mercado do futebol já tem - e terá, de modo amplificado, no curto prazo. Lembre-se, a propósito: a despeito de o futebol ter se transformado na mais intensa atividade de entretenimento do planeta, operada de modo preponderante por sociedades empresárias, no Brasil ela persiste, em sua maioria, dominada pelo associativismo amador e deficiente sob a perspectiva tributária. Antes da Lei da SAF - e ao contrário de caminhos trilhados na Europa e nos Estados Unidos -, o sistema jurídico brasileiro não dispunha de instrumentos regulatórios, societários e tributários para permitir que os times de futebol, por exemplo, pagassem tributos de maneira ajustada e se organizassem do ponto de vista societário, de forma profissional. Ao contrário: o associativismo gerava - e ainda gera - um enorme passivo social e econômico, à conta do contribuinte e do erário. A Lei da SAF, que estabeleceu normas de governança, controle e transparência, e regulou meios de financiamento da atividade futebolística, também instituiu, em contrapartida ao modelo sugador e deficitário, um regime tributário específico e simplificado, com baixa complexidade e tendente a não gerar conflitos entre Fisco e Contribuinte (TEF). O TEF criou, com efeito, as condições para a transição de várias instituições, atualizando o sistema jurídico brasileiro com aquilo que já acontece no mundo e em sintonia com os valores de simplificação, neutralidade e eficiência que orientaram a reforma tributária como um todo. Nesse sentido, investidores que escolheram o Brasil em detrimento de muitos outros centros concorrentes espalhados pelo planeta acreditaram - e ainda acreditam - na segurança jurídica e na confiabilidade das instituições do país. Uma lei recém-criada, com o propósito de instituir um novo mercado, contributivo e participativo, não podia ser rápida e bruscamente transformada; pois, além de afetar projetos de investimento em curso, a mudança das regras do jogo ocasionaria a suspensão ou interrupção de projetos já existentes, alguns de grande porte, inclusive, os quais, em conjunto, implicariam - ou implicarão - mais arrecadação, criação de empregos, desenvolvimento e exposição internacional do país. Por todos esses motivos, o Congresso Nacional fez um golaço, um dos mais importantes da história legislativa em matéria esportiva, ao prever que lei complementar poderá estabelecer regime especial de tributação para atividades desenvolvidas por SAF - o qual, espera-se, seja o próprio TEF, adaptado para exclusão de tributos extintos pela PEC 45 e inclusão dos tributos substitutivos. Por fim, mas com igual relevância: a possibilidade de regime especial assegurado à SAF não gera renúncia de receita, complexidade ou aumento de alíquota. E isso ocorre por uma razão simples: a SAF é o meio para que os times de futebol paguem tributo. Sem ela, como já comentamos acima, o futebol seguiria no modelo tradicional, fora do mercado e sem recolher impostos e contribuições sociais, recebendo, de tempos em tempos, benesses do poder público em forma de anistias e remissões. Não é demais enfatizar: a possibilidade de regime especial para SAF prevista pela PEC 45 viabiliza, a um só tempo, preservação da segurança jurídica e recolhimento de tributo, sem aumento de complexidade ou da alíquota estimada para todos os demais contribuintes. No plano da Câmara dos Deputados, merecem destaque, pela inestimável contribuição ao desenvolvimento do mercado do futebol - e do país -, o Presidente Arthur Lira (PP/AL), o Relator Aguinaldo Ribeiro (PP/PB) e o Deputado Federal Hugo Leal (PSD/RJ). E, em especial, o Deputado Federal Fred Costa (Patriota/MG), que cumpriu uma missão realmente patriótica na defesa de uma atividade e de um regime especial que contribuirão para a transformação social do Brasil.
quarta-feira, 13 de dezembro de 2023

O Mapa da SAF no Brasil

Recebi uma gentil mensagem da Liga Acadêmica de Direito Societário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ladsufrj). Com ela veio o resultado de pesquisa realizada até setembro de 2023, que chamarei de o "Mapa da SAF no Brasil". O time de pesquisadores analisou dados disponibilizados pela Receita Federal e pelas Juntas Comerciais, além de informações ou sítios eletrônicos de clubes e de sociedades anônimas do futebol, e, ao cabo, catalogou a constituição, até aquele mês (portanto, setembro de 2023), de 58 SAFs, sendo que: (i) 10 foram constituídas em 2021, 32 em 2022 e 16 em 2023; (ii) Quanto à região, 13 são localizadas no sul, 24 no sudeste, 9 no centro-oeste, 9 no nordeste e 3 no norte; (iii) Em relação aos Estados, 1 se encontra no Rio Grande do Sul, 4 em Santa Catarina, 8 no Paraná, 10 em São Paulo, 4 no Rio de Janeiro, 9 em Minas Gerais, 1 no Espírito Santo, 3 em Mato Grosso, 2 no Distrito Federal, 4 em Goiás, 3 na Bahia, 1 em Pernambuco, 2 no Ceará, 2 no Rio Grande do Norte, 1 na Paraíba, 1 no Amazonas, 1 em Roraima e 1 no Acre; (iv) No momento da fotografia da pesquisa, 7 participavam da série A1, 1 da série B2, 3 da série C3 e 5 da série D4; as demais não estavam qualificadas para participação no campeonato brasileiro, em qualquer de suas séries - mas poderiam estar habilitadas à participação nas principais divisões estaduais. Os dados sugerem algumas reflexões. O Relatório de Gestão de 2022 da CBF indicava a existência de 850 clubes profissionais registrados (além de 426 clubes amadores). A Lei da SAF, que ainda não completou seu terceiro ano de existência, já totaliza, portanto, um número significativo, no universo de entidades esportivas dedicadas à prática do futebol. A SAF, assim, já é um fato, um dado da realidade, produzido pela engenhosidade legislativa. Outro aspecto relevante - e marcante - da pesquisa envolve um dos poucos argumentos utilizados por agentes que se posicionaram de modo contrário à SAF, por ocasião dos debates que antecederam a aprovação da Lei da SAF. Especulava-se à época - ao contrário do que defendiam os coidealizadores e os autores da Lei, em especial o Senador da República Rodrigo Pacheco (PSD/MG) - que ela seria composta por um complexo sistema de governação, arquitetado para viabilizar apenas as movimentações dos grandes clubes. Os dados demonstram, ao contrário - e na linha de sustentação dos defensores do projeto -, que a Lei da SAF não privilegia tamanho ou poder. Trata-se de via societária idealizada para atender qualquer jurisdicionado, com exposição nacional ou regional, por decorrência de sua arquitetura legislativa. Serve, pois, ao grande time de massa, como o Atlético Mineiro ou o Vasco da Gama, ou ao time regional, a exemplo do América Futebol Clube SAF (do Rio Grande do Norte), ou a Ferroviária SAF (do interior de São Paulo). Em outras palavras, promove-se a igualdade perante a lei; ou seja, todos os clubes dela podem se servir, sem que uns se revelem mais iguais do que os outros. Também se pode extrair do conjunto informacional que os propósitos constitutivos não são homogêneos. A SAF pode ser constituída para: (i) viabilizar a passagem de time existente do modelo associativo ao modelo empresarial; (ii) formação de novo time, que se aventurará pela periferia esportiva com a intenção de escalar séries ao longo do tempo; (iii) viabilizar a formação e negociação de jogadores; ou (iv) para acomodar interesses de agentes, proibidos de deter direitos de jogadores, e, assim, legitimar suas atuações profissionais. Sem fazer qualquer juízo de valor, a Lei da SAF desperta, como se depreende das informações colecionadas, uma gama de oportunidades, outrora inexistentes, com impactos em diversos setores sociais e econômicos. A propósito, levando-se em conta apenas os times que participaram da Série A em 2023, dois deles, não catalogados na pesquisa, constituíram suas SAFs após o encerramento do Mapa da SAF no Brasil: Atlético Mineiro e Fortaleza. Com eles, o número passa de 7 para 9, de um total de 20 (ou seja, 45%). Simboliza, pois, a eficácia da Lei da SAF e, mais importante, a constatação de que a atuação do Estado, por via legislativa, foi decisiva para que o mercado em geral e os clubes de futebol percebessem o esforço de construção de um ambiente juridicamente seguro. O Brasil caminha para construção do maior mercado do planeta - sim, muita gente dirá que se trata de uma afirmação quixotesca, assim como, anos atrás, também se dizia que o projeto de lei da SAF era um devaneio inatingível. O Mapa da SAF no Brasil, obra da Ladsufrj, estimula mais esse sonho audacioso: afinal, enxerga-se, por enquanto, a ponta do iceberg (consubstanciada em 58 SAFs, constituídas em aproximadamente 30 meses), que se revelará monumental com o iminente ingresso no sistema de outros times populares e, não menos relevante, com a introdução das SAFs no mercado de capitais, que vem sendo responsavelmente regulada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). __________ 1 Esporte Clube Bahia S.A.F, Cuiabá Esporte Clube - Sociedade Anônima do Futebol, Cruzeiro Esporte Clube - Sociedade Anônima do Futebol, América Futebol Clube - Sociedade Anônima do Futebol, Coritiba Sociedade Anônima do Futebol, S.A.F. Botafogo e Vasco da Gama Sociedade Anônima do Futebol. 2 Atlético Goianiense - Sociedade Anônima do Futebol. 3 Figueirense Futebol Clube S.A.F, América Futebol Clube SAF e São Bernardo Futebol Clube S.A.F. 4 A.C. Esportes S.A.F., Maringá Futebol Clube S.A.F., Clube Atlético Hermann Aichinger - S.A.F., Camboriú Futebol Clube S.A.F. e Ferroviária S.A.F.
Tratou-se nos dois últimos textos publicados nesta coluna (em 22/11/23 e 29/11/23, respectivamente) da (inacreditável) reação dos clubes argentinos à ideia de elaboração de uma lei que facultasse a passagem do modelo clubístico ao modelo empresarial, sob a forma de sociedade anônima especial (ou sociedade anônima do futebol). Como se sabe, a mencionada ideia não envolve uma formulação extravagante, pois estruturas análogas já foram implementadas, com variações locais, em países relevantes (como Espanha, Portugal e França - e, mais recentemente, o próprio Brasil); sem falar da Inglaterra, que sustenta há décadas um modelo aberto à captação de recursos e de investidores, locais ou internacionais. Portanto, o cartel de clubes argentinos, formado para afirmar ao mundo que não querem que o Estado formule uma lei que lhes dará a opção - repita-se: apenas a opção - de, se e quando cada clube quiser, estudar a situação e avaliar a pertinência de revisão do modelo associativo, não se justifica sob qualquer ângulo racional ou econômico. Porém, o que deveria ser entendido como uma patologia local, aparentemente extrapolou as fronteiras argentinas e contaminou o Paraguai. Lembre-se, a respeito deste país, que a Senadora Lilian Samaniego (Partido Colorado) apresentou ao Senado Federal, em 17 de outubro de 2023, projeto de sua autoria que cria a Sociedade Anônima do Futebol Paraguaio. A iniciativa surgiu em momento oportuno pois, apesar da tradição e da paixão que o povo paraguaio nutre pelo esporte, os resultados dos times locais não expressam suas capacidades (e possibilidades): o último título de Libertadores da América foi obtido em 2002, pelo Olimpia; e o tradicional Cerro Portenho, para listar mais um exemplo, jamais ganhou a competição.  A problemática se intensifica quando se avalia o mercado local: times endividadíssimos (fala-se, não oficialmente, que os dois maiores, Cerro Portenho e Olimpia, acumulam passivos com cifras individuais da ordem de 60 milhões de dólares); intervenções federativas (como ocorreu com o 12 de Outubro, recentemente1); venda forçada de ativos relevantes (o estádio do clube General Díaz, localizado em Luque, foi arrematado em 2022 pela Conmebol2); e inexistência de marco jurídico apto a atrair investidores e investimentos. Esse cenário deveria, ao menos em tese, estimular a receptividade do projeto da Senadora Lilian Samaniego, o qual, como já se afirmou nesta coluna, não obrigará ninguém a nada - mas poderá ser a salvação daqueles que se afogam em dívidas e não encontram, no sistema atual, uma via de saída ao afogamento. Lembre-se, aliás, que, no Brasil, a Lei da SAF, de autoria do Presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), cumpriu função semelhante: desde a sua promulgação, mais de cinquenta SAFs foram voluntariamente constituídas (por clubes de diferentes dimensões, como Botafogo, Cruzeiro, Atlético, Vasco, Bahia, América MG, Ferroviária e Coritiba); mas dezenas (ou melhor, centenas) de outros clubes (ainda) se mantiveram, também de modo voluntário, sob a forma de associação (tais como os quatro mais populares do país: Flamengo, Corinthians, São Paulo e Palmeiras). São tais perspectivas que, paradoxal e (assim, como na Argentina) inexplicavelmente, os clubes paraguaios parecem rejeitar. Com efeito, publicou-se um comunicado no dia 23 de novembro de 2023, subscrito pela Associação Paraguaia de Futebol e pelos presidentes dos 12 clubes da primeira divisão (além dos clubes que se qualificaram a participar dessa divisão a partir de 2024), no qual apontam que o projeto de lei "no refleja la realidad ni las necesidades del fútbol paraguayo". E afirmam, ao final, que: "La APF y los clubes no están ajenos a este tipo de iniciativa, pero coinciden en que deben conllevar um proceso que involucre a todos los niveles y estamentos de las instituciones futbolisticas del Paraguay, de modo a legislar en base a nuestra realidad social y desportiva". Curioso: por ocasião dos debates que antecederam a aprovação da Lei da SAF, as poucas vozes resistentes formularam argumentos muito parecidos aos que constam do mencionado comunicado, e que, no Brasil, se revelaram falaciosos pois em nenhum país do planeta uma iniciativa congressual gerou um resultado tão rápido e satisfatório, em benefício de times das mais diferentes regiões e estaturas (e o processo sistêmico está apenas em seu início).   Daí a precisa afirmação do respeitado jornalista paraguaio, Marcos Velázquez: "INSOLITO: Clubes en bancarrota o semiquebrados pronunciándose en contra de la posibilidad de obtener recursos para proyectarse institucional y deportivamente. El secuestro de los clubes a manos de dirigentes alquilados ...". À qual se acrescenta: sem a lei (com eventuais ajustes que o Congresso repute necessários, naturalmente), os times paraguaios e os seus jogadores continuarão a cumprir papeis secundários no plano sul-americano ou mundial. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
Afirmou-se, no texto publicado na coluna anterior (em 22/11/23), que a falaciosa aversão à privatização do futebol argentino - falaciosa porque todos os times locais são privados - dissimulava o esforço de manutenção do poder da classe cartolarial sobre a atividade futebolística daquele país. A dissimulação atingiu níveis teatrais com a publicação quase que simultânea de notas ou comunicados, em que dúzias de clubes exteriorizaram posições forradas de conceitos morais, em defesa do associativismo (o qual expressa o resultado de décadas de confusão entre interesses corporativistas e os propósitos futebolísticos). Mais: a teatralização foi amparada por parte da imprensa, que a empacotou (intencionalmente ou não) como uma reação às propostas liberais do então candidato e atual presidente eleito, Javier Milei. Formou-se, assim, uma falsa perspectiva de contraposição a certas posições políticas e econômicas do candidato. Nesse imbróglio, exsurge o ex-presidente do país, Mauricio Macri. Em entrevista a determinado programa esportivo, ele revelou sua indignação ao posicionamento coletivo e intransigente contrário a uma lei que irá (se, de fato, aprovada), simplesmente, oferecer uma possibilidade, a ser adotada ou não, por quem a quiser, mediante manifestação dos próprios associados. E aqui o objetivo dissimulado dos dirigentes locais vem à tona, de modo inafastável (e indefensável): com a negação de uma possível futura lei, eles afastam o direito dos associados de decidirem o destino do clube e do time. Desdizem, portanto, o que, de modo apenas aparente, pretendem afirmar.  Aí desvendam-se, pois, alguns dos temores do cartolariado: o risco de os torcedores, pela primeira vez na história, (i) depararem-se com instrumentos para avaliação do papel desempenhado, até aqui, pelos líderes clubísticos, e (ii) compreenderem que passará a existir uma alternativa ao próprio cartolariado, em caso de reprovação dos resultados apresentados por esta classe. Enquanto, porém, o sistema jurídico não oferecer uma via alternativa, o debate se manterá dentro de níveis e de rivalidades pessoais, a respeito - como também se vê no Brasil - de pseudo aspectos morais, éticos ou técnicos de pessoas específicas, em relação aos quais cartolas sabem transitar e se esquivar. Por tais motivos, nada, absolutamente nada justifica, na Argentina, no Paraguai ou em qualquer outro país, a cruzada clubística - que, na verdade, não é dos clubes e muito menos de torcedores, mas dos dirigentes que defendem seus próprios interesses - para que o respectivo Congresso se exima de legislar sobre a criação de meios voluntários para libertar o futebol sul-americano do aprisionamento estrutural. Libertação, no caso, não tem uma conotação ideologicamente liberal, como se pretendeu na Argentina, pela associação do tema a dois enérgicos defensores do (ultra) liberalismo econômico, Mauricio Macri e Javier Milei. Ao contrário: trata-se de esforço cívico para permitir o escrutínio, inédito, do legado e do trabalho atual dos autorreferenciados guardiões da história e da tradição. Aliás, séculos atrás, por motivação não necessariamente humanística, a escravidão passou a ser rejeitada por determinados países ou reinos, que se beneficiaram - e ainda se beneficiam - dela. Os senhores de escravos, financiadores (ou integrantes) de governos coloniais, resistiram até o limite de suas influências, fraquejadas pela influência de novos conceitos morais e pelos impactos econômicos da manutenção de interesses pessoais ou grupais. A comparação pode parecer desarrazoada - por envolver a própria raça humana -, mas não é: no plano do futebol, os mesmos colonizadores europeus e praticantes originários do jogo de bola experimentaram um processo transicional, do amadorismo - enraizado no associativismo - para o profissionalismo, que eliminou do processo a carga política e, sobretudo, a politicalha do sistema de governo, de gestão e de controle. Ou seja, as mesmas características que persistem na América do Sul. Por tais motivos, talvez se reconheça, no futuro, que o movimento iniciado no Brasil com o advento da Lei da SAF, de autoria do Presidente do Congresso Nacional e do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), que parece jogar luz sobre o modelo argentino (e, vale lembrar, sobre o paraguaio, também), simbolize um novo marco liberatório na região. Entretanto, a decisão a respeito do futuro grandioso ou arrastado, de um ou outro clube, e mais ainda, do próprio futebol argentino, não parece que deveria ser privilégio de (e privilegiar) um punhado de agentes conflitados e interessados no oligopólio gerencial esportivo. Esse é o debate que viabilizará o resgate da relevância dos times daquele país.
O direcionamento do debate a respeito do modelo de propriedade do futebol na Argentina é propositalmente tendencioso, e erraram até agora, voluntária ou involuntariamente, os agentes que tomaram partido sobre o tema. Pena que, mesmo enviesado, este debate tenha ressurgido no âmbito de campanhas tão polarizadas, à esquerda ou à direita. Daí a ausência de vozes que colocassem luz sobre a premissa, ou melhor, sobre o equívoco da premissa com base em que, também de modo equivocado, foram construídas posições a respeito da suposta privatização dos clubes argentinos. Pois também a suposta premissa, alardeada em títulos de matérias jornalísticas, além de falsa, contribuiu para formação de oposições ideologizadas e, não raro, irracionais. Javier Milei, durante a campanha para presidência do país, afirmou, em debate público, que os clubes argentinos deveriam seguir modelos bem-sucedidos de outros países para solucionar suas profundas crises esportivas e financeiras. Curioso: alguns dos países bem-sucedidos em suas políticas para o mercado do futebol são governados por partidos de esquerda (outros não, é verdade), que professam correntes abominadas pelo então candidato e, agora, presidente eleito.  A partir de sua fala começou a circular na imprensa chamadas de alerta para (e contra) a tal proposta privatizante. Veja-se o título da matéria da CNN: Boca Juniors, River Plate e clubes argentinos se unem contra privatização1. E da página 12: Privatización del fútbol: los clubes dejaron fuera de juego a Javier Milei - Amplio rechazo a la propuesta del libertario.2 Com efeito, em decorrência de movimento aparentemente orquestrado pelos próprios clubes, mais de uma vintena emitiu nota de repúdio, dentre eles Boca Juniors, River Plate, Racing e Independiente, que assim se posicionaram, respectivamente: "Fiel a sus orígenes, respetuoso de los claros principios defendidos durante casi 120 años, Boca Juniors ratifica su carácter de Asociación Civil sin fines de lucro y la premisa de que nuestro club es de su gente, socios y socias que lo vuelven cada día más grande." (Boca) "Siguiendo el espíritu de nuestros fundadores, rechazamos a las sociedades anónimas en el fútbol argentino, como ratificó nuestra Asamblea en 2016 al constituirse la Superliga. El Club Atlético River Plate es una Asociación Civil sin fines de lucro, y siempre será de sus socios y socias, que son el sustento de estos 122 años de Grandeza." (River) "Nadie nos tiene que explicar qué significan las SAD en un club de fútbol. Nuestros socios, socias e hinchas, quienes recuperaron la democracia para Racing, lo saben bien. Por pasado, presente y futuro, Racing Club ratifica su condición de asociación civil sin fines de lucro. Tal como está expresado en su Estatuto Social. ¡El club es de los socios y las socias!" (Racing) "La Comisión Directiva del Club Atlético Independiente está convencida de que nuestro Club tiene que seguir siendo una Asociación Civil Sin Fines de Lucro. Tal como indica nuestro estatuto, nunca resignaremos esta figura. El club es de los socios y las socias." (Independiente) A uniformidade das reações tem origem em um de dois dos seguintes fatores: ou foi construída para inserir os times e os seus respectivos torcedores na campanha presidencial em favor do candidato derrotado, Sergio Massa - algo pouco provável -, ou ela decorreu da afirmação histórica do corporativismo cartolarial argentino, que, de modo oportunista e conflitado, pretendia (e sempre pretenderá) preservar o poder esportivo e político que emana da dominação de clubes de futebol, a qualquer custo e à conta de todos. A concertação clubística, que poderia ser enquadrada eventualmente como uma espécie de cartel (sujeita, talvez, a procedimento investigatório de autoridades antitruste), aproveita-se do estado de terror provocado por ambos os candidatos, um em relação ao outro, para incutir no torcedor, já aterrorizado com a política, o terror também no plano do futebol. Essa proposição se confirma pela falaciosa premissa privatizante, apresentada ao público em geral: ora, para que algo se torne privado, pressupõe-se que justamente não seja, antes, privado. Pois, se assim o for, não se terá como, jurídica ou economicamente, privatizar. Colocando-se de outra maneira, os clubes de futebol não são autarquias ou empresas públicas, assim como não prestam serviços públicos que poderiam integrar um projeto governamental de desestatização. Eles já são, e isso os dirigentes que dominam o futebol sabem muito bem, entes privados. Mais (e pior): controlados (gerencialmente) por políticos clubistas que ostentam interesses extrafutebolísticos.    Assim como ocorre no Brasil, lá, na Argentina, também se constituem, no plano do direito, sob a forma de pessoas jurídicas de direito privado, sem qualquer atributo público, portanto. Algo que foi, aliás, afirmado de modo expresso pelos clubes em suas manifestações. Portanto, a (fantástica) união dos dirigentes argentinos, supostamente comprometidos com a defesa de um bem maior - a história e a tradição do futebol -, pretende, na verdade, dissimular, sem compactuar com a verossimilhança, a perpetuação de um projeto cartolarial erigido há décadas para dominação dos clubes (e, talvez, manipulação das massas), a exemplo do que se viu e ainda se vê em outros países sul-americanos. A tal aversão à privatização, estimulada midiaticamente, não passa, pois, de, a um só tempo, inverídica (pois privados os clubes já são) e fantasiosa narrativa (que poderia integrar as obras dos grandes autores do realismo-fantástico), arquitetada para preservação de interesses e poderes. _________ 1 https://www.cnnbrasil.com.br/esportes/boca-juniors-river-plate-e-clubes-argentinos-se-unem-contra-privatizacao/ 2 https://www.pagina12.com.ar/615672-los-clubes-de-futbol-frenaron-la-pelota-y-dejaron-en-fuera-d
O texto publicado na coluna da semana passada alertava para determinados pontos da reforma tributária, em avanço no Senado Federal, que poderiam prejudicar o desenvolvimento econômico do futebol. Pelos motivos lá contidos, o texto propunha, ao final, a inserção do futebol dentre as atividades catalogadas no art. 156-A, parágrafo 6º, que se sujeitariam, com a reforma, a possíveis regimes específicos de tributação, estabelecidos por lei complementar. A proposta gerou interessantes reações, sobretudo de apreensão em relação ao futuro do incipiente - porém, já robusto - mercado do futebol, criado a partir do advento da lei 14.193/21 ("Lei da SAF"), de autoria do Senador da República e Presidente do Senado Federal, Rodrigo Pacheco (PSD/MG). Lembre-se, aliás, que o Presidente Rodrigo Pacheco, ao assumir a presidência da Casa, pronunciou, em seu segundo ou terceiro discurso, que pretendia repassar e corrigir um equívoco histórico, consistente na falta de política pública voltada ao futebol. Ele tinha razão: apesar de seu monumental potencial econômico, social e educacional, o esporte era tratado pelo Estado - e pelos sucessivos governos - como prática diversionista ou de mero lazer; ou como a mais importante das coisas menos importantes. Associar o futebol apenas a uma prática esportiva - o que não seria pouco -, eventualmente diversionista ou alienante, e ainda pouco relevante, consistia em erro que fundamentava o seu aprisionamento secular em associações sem fins econômicos, sem que se oferecesse uma alternativa de solução à bilionária e crescente dívida dos clubes, construída, paradoxalmente, em ambiente de históricos favorecimentos tributários. Com o advento da Lei da SAF, a perspectiva começou a ser reformulada. Logo se percebeu que o país estava à procura de uma mina, a principal mina do entretenimento planetário, mirando-a lá longe, no horizonte, quando, na verdade, sentava-se sobre ela. Sim, se a Coréia do Sul foi capaz de transformar sua música, batizada de k-pop, cantada em idioma pouco (ou nada) falado fora de seu território, em fenômeno planetário, imagine-se o que pode ser feito com o futebol, maior manifestação de entretenimento do planeta, que congrega aproximadamente 5 bilhões de seguidores e se tornou, além de um fenômeno local, um produto globalizado? De cuja globalização o Brasil, maior produtor de jogadores (que respondem por cerca de 11% de todas as negociações globais) e maior ganhador de copas do mundo, passou, muito por conta de seu arcaico e insuficiente modelo legislativo, à função de mero exportador de meninos imberbes (ou de pé-de-obra) e à posição de importador de tecnologia. Mais: se a indústria norte-americana do cinema se transformou há décadas em uma embaixada cultural (ou foi forjada como tal), que penetra em residências de praticamente todos os países existentes, o futebol brasileiro deveria, reconhecida a sua dimensão, ser uma espécie de soft power internacional, a abrir oportunidades de geração e distribuição de riquezas entre suas gentes. Para tanto, faltava um marco legal viabilizador do encontro entre, de um lado, o proprietário do futebol - que não é o torcedor, como pretende, aí sim, de modo diversionista, o cartolismo clássico -, ou seja, o clube, e, de outro lado, o proprietário de capitais. O déficit no âmbito legislativo, algo raro no Brasil, impediu, pois, a atração de recursos, a realização de investimentos, maior geração de empregos e renda, a distribuição de riquezas, a formação de uma base de negócios sobre os quais deveria haver a incidência da norma tributária e, enfim, a criação de um ambiente pujante e sustentável. Em consequência, as entidades esportivas se tornaram obsoletas, em alguns casos inviáveis, e não puderam (ou quiseram) afastar o vício da dependência das leniências estatais para sobreviver. Daí, o resultado: além da baixa arrecadação, o fisco se tornou credor contumaz (e relevante) dos clubes, e o Estado não computava a atividade empresarial-futebolística em suas projeções orçamentárias. Em outras palavras, pelo lado da arrecadação, o futebol caminhava à margem da sociedade e, no plano das benesses, sempre fora um de seus principais beneficiários. Toda essa contradição, remanescente do patrimonialismo do século retrasado, começou a se dissipar com a Lei da SAF, que permitiu a passagem do modelo associativo ao empresarial, o qual é, por definição, contribuinte do erário. Dentre os instrumentos viabilizadores do novo modelo, criou-se um regime especial de tributação, consistente em solução, como já dito no texto da coluna anterior, (i) simplificadora para a apuração de tributos federais, (ii) que não gera discussão sobre crédito e (iii) que permite ao Estado estimular a transição das entidades beneficiadas com regimes de isenção para regimes de contribuição. Por todos esses motivos, a proposta de inserção de novo inciso no parágrafo 6º do art. 156-A, longe de um movimento de renúncia, revelava-se como uma ação voltada à manutenção da inclusão tributária e à perspectiva de aumento de arrecadação - em função da produção de riquezas. E tão ou mais importante: representativa de inequívoco sinal de confiabilidade institucional - e de que, enfim, o país passara a sustentar uma política pública (voltada e construída) para o futebol. Essa perspectiva foi condensada na Emenda 740, de autoria do Senador da República Carlos Portinho (PL/RJ) - que também foi o Relator no Senado Federal da Lei da SAF -, acatada pelo Relator da PEC 45/19, Senador da República Eduardo Braga (MDB/AM), conforme a seguinte redação: "§6º Lei Complementar poderá estabelecer regimes específicos de tributação para: (...) IV - serviços de hotelaria, parques de diversão e parques temáticos, agências de viagens e de turismo, bares e restaurantes, atividade esportiva desenvolvida por Sociedade Anônima do Futebol e aviação regional, podendo prever hipóteses de alterações nas alíquotas, nas bases de cálculo e nas regras de creditamento, admitida a não aplicação do disposto no § 1º, V a VIII;". De modo que o Senado Federal - e, espera-se, o Congresso Nacional - manda uma mensagem de esperança aos aproximadamente 150 milhões de torcedores e ao próprio país.
A reforma tributária está avançando no Senado Federal. Há, contudo, pontos que podem prejudicar o desenvolvimento de setores inteiros da atividade econômica, como o futebol. Merecem destaque no que se refere às atividades desportivas, em geral, e ao futebol em particular: de um lado, o Congresso Nacional foi sensível ao assegurar considerável redução de alíquota do IBS e da CBS para atividades desportivas; de outro, porém, a PEC 45 não deixou espaço para manutenção integral do Regime de Tributação Específica do Futebol (TEF), que regula forma simplificada de incidência de tributos federais. Com a redação que está hoje, a PEC 45 projeta vertiginoso aumento de carga tributária para as sociedades anônimas do futebol, sem mencionar o crescimento da complexidade. No lugar de uma fórmula simples e bem-sucedida, surgirá uma verdadeira barreira tributária a impedir que o novíssimo e pujante mercado do futebol brasileiro siga o caminho virtuoso que se inaugurou desde a publicação da lei 14.193/2021, de autoria do Senador da República e Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD/MG). Ficará demonstrado adiante porque é urgente e necessário mudar a redação da PEC 45/2019, para admitir regime próprio para as atividades desportivas. Com isso, o Congresso Nacional poderá evitar que a vitória de aprovar a Reforma Tributária signifique uma derrota para o futebol brasileiro e todo o mercado que está em plena formação. Por mais de um século, o futebol ficou refém do associativismo. Não apenas no Brasil, é verdade, como em praticamente todos os principais centros, inclusive os europeus. Mas o modelo de organização da atividade futebolística foi se transformando ao longo do tempo, em função de alguns motivos, como crises financeiras ou reputacionais. A partir do final do século passado e, em especial, do início do século XXI, também se entendeu que um time não teria condição de protagonizar em ambiente global e competitivo sem acessar vias de financiamento, privadas ou públicas. O Brasil tardou a compreender os novos direcionamentos e a promover uma transformação estrutural, por via legislativa. Tentativas ocorreram, mas fracassaram, por ocasião do advento das Leis Zico e Pelé. A retórica cartolarial, em ambas as iniciativas, venceram o interesse público e o da Nação. Assim, no plano organizacional, as mudanças tiveram como resultado (ou propósito) manter a estrutura como sempre fora. Por tais circunstâncias, ao final da década de 2020 os clubes brasileiros estavam - como ainda estão - atolados em dívidas bilionárias e se posicionavam como exportadores de "pé-de-obra". Foi nesse período e para resolver o problema endêmico do esporte no país que o Presidente Rodrigo Pacheco apresentou o Projeto de Lei 5.516/19 ("PL 5.516"), que tinha como propósito criar "o Sistema do Futebol Brasileiro, mediante tipificação da Sociedade Anônima do Futebol, [estabelecer] normas de governança, controle e transparência, [instituir] meios de financiamento da atividade futebolística e [prever] um sistema tributário transitório". O PL 5.516, relatado pelo Senador da República Carlos Portinho (PL/RJ), foi aprovado por unanimidade no Senado Federal e, na sequência, por larguíssima maioria - 427 votos a favor e apenas 7 contrários -, na Câmara dos Deputados. Encaminhado para sanção presidencial, foi objeto de alguns vetos, muitos deles derrubados, na sequência, pelo Congresso Nacional. Nascia, assim, a lei 14.193/2021, ou Lei da SAF. Dentre os dispositivos derrubados, destacava-se o TEF, que deixou de ser transitório e passou a ser permanente. No mérito, entendeu o Congresso Nacional, com razão, que a especificidade contribuiria para o surgimento de um novo mercado do futebol, até então inexistente, no âmbito do qual se realizariam negócios que jamais se aproximaram da atividade futebolística, e que pressupunham a passagem do modelo associativo (portanto, sugador do erário público) ao empresarial (por definição, contribuinte do mesmo erário). Para atrair o clube de futebol - constituído sob a forma de associação - ao modelo da SAF, estatuiu-se que o TEF implicaria "o recolhimento mensal, mediante documento único de arrecadação, dos seguintes impostos e contribuições, a serem apurados seguindo o regime de caixa: I - Imposto sobre a Renda das Pessoas Jurídicas (IRPJ); II - Contribuição para os Programas de Integração Social e de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Contribuição para o PIS/Pasep); III - Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL); IV - Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); e V - contribuições previstas nos incisos I, II e III do caput e no § 6º do art. 22 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991". A aposta deu certo: desde o advento da Lei, mais de 40 SAF's foram constituídas e quase uma nova dezena está em organização, de modo que deverão passar à condição de efetivas e permanentes contribuintes. Importante: no cálculo econômico realizado por investidores locais e internacionais para alocação de recursos em uma indústria incipiente (sob a ótica do próprio alocador de capital), teve relevo a existência do TEF, que viabiliza a recuperação de times tecnicamente insolventes e a assunção dos riscos envolvidos. Apesar dos resultados e das perspectivas que envolvem o mercado do futebol - inclusive arrecadatórias -, a proposta de reforma tributária poderá, paradoxalmente, inviabilizá-lo. Com o fim do PIS/PASEP e da COFINS, dois dos tributos que se inserem no TEF, e com a criação de outros dois - CBS e IBS -, que incidirão conforme novas lógicas, a carga tributária sobre a SAF a tornará inviável em comparação à situação dos clubes associativos, que vêm sendo historicamente subsidiados pelo Estado à conta da sociedade brasileira. Coloca-se em risco o magnífico avanço propiciado pela Lei da SAF e se estimula a manutenção do associativismo clássico do Século XIX como forma (quase) única de desenvolvimento da atividade do futebol - o qual, por gozar de imunidades e isenções históricas, continuará a atuar à conta dos empresários e dos trabalhadores do país. A reforma poderá, assim, inviabilizar a existência e o desenvolvimento dos negócios que começaram a surgir e que deverão se intensificar no ambiente do novo mercado do futebol, caso o regime atual da redação da PEC 45 se mantenha. Para que isso não ocorra, é necessário inserir o futebol entre as atividades econômicas que podem ter regime tributário próprio, regulado por lei complementar. O TEF é solução simplificadora que precisa ser renovada e está em sintonia com a reforma por várias razões: (i) É modelo simplificado para a apuração de tributos federais; não gera discussão sobre crédito; permite ao Estado estimular a transição das entidades que hoje têm benefício fiscal para outro modelo, de natureza diversa, que paga tributo no lugar de pedir isenções, parcelamentos e anistias. (ii) A só redução de alíquotas da CBS e do IBS, ao contrário do que possa parecer, não evita o intenso aumento da carga tributária gerado pelo abalo do TEF. Inviabiliza, desta forma, toda transformação do futebol brasileiro que acabamos de descrever. A solução para evitar o surgimento de uma barreira tributária para a SAF é muito simples. Basta ser coerente com a própria reforma e assegurar regime tributário próprio, com incidência a ser regulada por lei complementar, incluindo a possibilidade de um novo e mais amplo TEF para as atividades desportivas. Ao fazer isso, o Congresso preservará o regime jurídico da SAF, assegurará que a revolução do futebol mantenha seu curso virtuoso e permitirá que, no lugar de isenções, anistias e conflitos, siga o caminho já trilhado em outros países para o desenvolvimento deste expressivo setor econômico e cultural do Brasil. __________ 1 TEF permite o recolhimento do IRPJ, do PIS, da COFINS, da CSLL e das contribuições destinadas à Seguridade Social, previstas nos incisos I, II e III do caput e no § 6º do art. 22 da lei 8.212, de 24 de julho de 1991, mediante documento único de arrecadação, a serem apurados mensalmente pelo regime de caixa.
A curta - porém vibrante - história da sociedade anônima do futebol (SAF) já é, de algum modo, conhecida, direta ou indiretamente, do público e de torcedores brasileiros. O Botafogo, por via de sua SAF, lidera a primeira divisão do campeonato brasileiro e, desde 1995 - quase três décadas! -, tem pela primeira vez chances reais de sagrar-se campeão. Tão ou mais importante do que esse evento, a perspectiva do time - a partir da chegada de investidor qualificado, da concepção de projeto de empresa, de planejamento e da contratação de executivos de primeira linha - passou a ser de construção de uma nova fase de protagonismo. Outro exemplo importante, o Cruzeiro, após amargar longo período na segunda divisão - algo inadmissível para time com tanta tradição -, começou a reencontrar seu caminho, por via, igualmente, de sua SAF (formada, da mesma forma, por elenco de executivos de primeira linha). Verdade que sua posição na tabela não é tão confortável, mas, sobre isso, seu CEO, desde o retorno à primeira divisão, anunciara que, em 2023, o plano seria manter-se nela; e, a partir daí, os sonhos poderiam, nos anos seguintes, passar a ser mais ambiciosos. Vive-se, também, no ambiente da SAF, situações menos confortáveis, como a do Vasco, que, apesar de movimento recuperacional, ainda flerta com o rebaixamento apenas um ano após sua ascensão. Por ali parece que, olhando-se de fora, o processo de adaptação ao novo formato societário e a instituição da nova governação tomam mais tempo do que em outras estruturas de SAF - algo que, aliás, poderá ocorrer em outros casos. Por enquanto, mas apenas pouco mais de dois anos após o advento da Lei da SAF, os projetos de SAF, realizados por clubes de menor ou maior expressão, localizados nas mais distintas regiões do território nacional, já passam de 40, e, pelas movimentações em curso, não tardarão a contabilizar uma cinquentena. Enfim, sob qualquer ângulo, a Lei da SAF, de autoria do Senador da República e Presidente do Congresso Nacional, Rodrigo Pacheco (PSD/MG), transformou o futebol e fez renascer a esperança no resgate de atividade econômica (a futebolística) que, como nenhuma outra em países com as características sociais do Brasil, pode contribuir para a integração das gentes e para o desenvolvimento da Nação. Ocorre que a Lei da SAF passou a ostentar mais um atributo: elemento de conexão e de integração com o Paraguai, país vizinho e integrante do Mercosul. A novidade advém da apresentação, pela Senadora Lilian Samaniego (Partido Colorado), no dia 17 de outubro de 2023, de projeto de lei que cria a Sociedade Anônima do Futebol Profissional (SAFP); projeto este que adota, como referência, a bem-sucedida experiência brasileira. Ademais - e aí as semelhanças se acumulam -, a Senadora afirma, em sua exposição de motivos, encaminhada ao Presidente do Senado Federal, que o futebol, no Paraguai, não é apenas um jogo; trata-se de paixão que une comunidades, fomenta a camaradagem e promove valores fundamentais na sociedade. Mas adverte: para que o futebol siga sendo motor de bem-estar social e de desenvolvimento, é necessário que se construa ambiente adequado à sua prática e gestão. Assim, a SAFP atenderá às necessidades de modernização e profissionalização administrativa de clubes que se dedicam ao futebol profissional e se apresentará como instrumento essencial para que times locais possam competir em ambiente cada vez mais competitivo, sobretudo no plano internacional. O modelo paraguaio, que será esmiuçado em textos futuros, aproxima-se, portanto, do brasileiro, em sua motivação e seu conteúdo. Daí evitar comandos meramente formais que fracassaram por ocasião das Leis Zico e Pelé. A iniciativa tenderá a aproximar os dois países, no plano do futebol. Nesse sentido, as evoluções legislativas e as construções jurisprudenciais brasileiras poderão servir de substrato para eventuais ajustes no sistema paraguaio, observadas as peculiaridades de cada sistema. Além disso, a criação do mercado naquele país poderá viabilizar a extensão de negócios iniciados por aqui, que por lá encontrarão ambiente institucional, em princípio, comparável; e, com isso, induzir o fluxo de atletas, capitais e tecnologias. Ou mesmo a formação de grupos transnacionais, de origem sul-americana. Ainda - mas não menos importante -, o fortalecimento de times deverá, intuitivamente, contribuir para resgate de suas seleções e, assim, para reafirmação regional, perdida com o hiato econômico que separa a América do Sul da Europa. Enfim, a notícia que vem do Paraguai enaltece o acerto brasileiro ao apostar no desenvolvimento do mercado do futebol, com a Lei da SAF, e, ao mesmo tempo, insinua que ela servirá, ao menos nesse ambiente, para construção de um projeto de integração. Ojalá, como se costuma afirmar no idioma de nossos vizinhos, ojalá!
Depois de um longo período de calmaria e conquistas, o Palmeiras voltou a vivenciar um inferno astral dentro e fora dos seus muros, com a elevação da temperatura interna, reveses esportivos, destempero da mandatária, manifestações de ex-Presidentes, escalada no desentendimento com a torcida organizada, agitação nas redes sociais e na mídia palmeirense: a coletividade, cujo lírico histórico de rearranjos cunhou a expressão "acabou em pizza", se depara, a par da pujança atual, com a idiossincrasia da sua liderança e problemas de várias ordens como qualquer outro clube brasileiro, mesmo que aos olhos do grande público possa assim não parecer. Em termos financeiros, o clube, que até então não encaminhou qualquer estudo antecedente de transformação em SAF e sequer aderiu ao PROFUT à época do seu lançamento,  realmente detém situação de equilíbrio fiscal, sendo dono de uma expressiva receita já em vias de alcançar a cifra do seu primeiro "bilhão" anual, contudo, possui um exagerado conjunto de despesas que tem levado suas demonstrações praticamente "ao empate", a propósito, no exercício anterior ao da pandemia, seu balanço alcançou saldo positivo pela alocação até então inédita no ativo dos estoques de material esportivo. É verdade que os fundamentos econômicos do Palmeiras são muito consistentes, traduzidos pelo forte programa de sócio torcedor, por receitas de bilheterias e de premiações, patrocínios, direitos de transmissão e negociação de direitos econômicos de atletas, o último catapultado pelo exitoso trabalho realizado nas categorias de base; ainda assim, embora possa parecer difícil de acreditar, o comprometimento do seu fluxo de caixa é manifesto, fazendo com que o clube necessite de aportes, antecipações ou prorrogação no cumprimento das obrigações, práticas que revelam um "modus operandi" já de longa data conhecido e que é igualmente observado em várias outras associações esportivas do futebol brasileiro, identificando-se aqui a primeira similaridade: como consequência, além da redução da capacidade destes clubes investir, para o mercado suas demonstrações financeiras invariavelmente não são confiáveis, notadamente em face de inconsistências, alocações indevidas, alargamento na interpretação das regras contábeis, alteração ou supressão de rubricas, enfim, na sua maioria são tidas como carecedoras de rigor técnico, sem a observância das melhores práticas. Além do dinheiro, outra questão que se evidencia análoga é o propalado profissionalismo que as associações esportivas igualmente insistem em alardear e dele se vangloriar, mas cujo caráter é visivelmente falacioso: a profissionalização, em verdade, cinge-se apenas aos departamentos de futebol, com a excelência das áreas cientificas, de comunicação e de logística, com os quadros capacitados que os integram, os equipamentos de última geração e as ferramentas sofisticadas, isto é, encerrando-se por aí, tanto para o Palmeiras como para boa parte dos clubes brasileiros. De fato, interna e organizacionalmente, as estruturas de comando e deliberação são precárias, disfuncionais, passíveis de cooptação, imunes a qualquer tipo de fiscalização ou controle efetivo; especificamente em relação ao Palmeiras, muito embora se trate de uma organização robusta e complexa com faturamento de centenas de milhões, não existem instrumentos indispensáveis de governança, vale esclarecer, o clube sequer dispõe de regimentos procedimentais básicos, de um código de ética, de um bom mapa de riscos (não são poucos), de canais de denúncia...    Como se não bastasse, e daí outro aspecto característico de similitude, o conflito de interesses tem sido identificado, seja no Palmeiras como na gestão de alguns dos seus pares diretos, às vezes os guiando no caminho dos "clubes de dono", um sinal retrógrado e muito preocupante. Novamente tratando do Palmeiras, cuida de associação que nem mesmo dispõe de uma Política de Transação com Partes Relacionadas, muito embora a atual mandatária, ainda que negando peremptoriamente a existência de qualquer conflito de interesses, é também a patrocinadora exclusiva do clube, credora de dívida substancial, locatária de um camarote para relacionamento no campo de jogo, proprietária do táxi aéreo que transporta a delegação e os diretores do clube, concessionária do Estádio alternativo à casa onde são mandados seus jogos (Arena Barueri). Vê-se que a fragilidade nos requisitos e práticas de boa governança corporativa é recorrente nos clubes do futebol brasileiro, revelando outro aspecto de identidade, aqui nitidamente danosa, e que resulta muitas vezes em absurdos como o ocorrido recentemente no Palmeiras, quando um grupo de conselheiros (cerca de 10% do CD) encaminhou requerimento oficial à mandatária com pedido de esclarecimentos sobre temas diversos no estrito cumprimento das atribuições funcionais no exercício do cargo, não tiveram qualquer resposta ao pleito de parte da direção e, ao final, foram ainda retaliados, em um inaceitável e perigoso flerte com o autoritarismo. A inadequação se traduziu ainda na recente entrevista coletiva (seletiva) concedida, onde com o diversionismo de costume em suas narrativas, adotou o uso de tom beligerante que culminou com a esculhambação de Ex-Presidentes, vilipêndio à história pretérita e centenária do clube, total desrespeito às suas tradições, desapego ao caráter de pertencimento que só o amor de berço a um clube confere ("se eu sair a equipe cai, antes de eu chegar a alegria era não cair"). O traço comum do egocentrismo e da auto suficiência na gestão dos clubes é outro elemento de semelhança que se observa junto à classe dirigente, levando-a ao individualismo exacerbado, impeditivo por exemplo de sequer terem logrado a superação do debate inicial sobre o "sagrado direito" de um valer mais que o outro, receber mais do que o outro, circunstância que no caso brasileiro culminou com a recente acomodação momentânea das agremiações em dois blocos, ou melhor, em duas ligas, o que para muitos é um retumbante equívoco, na medida em que a consolidação do novo mercado futebolístico brasileiro demanda não só a definição da equação econômica, mas sim a necessidade de uma estruturação completa, com providências diversas (especificamente o desenho do novo formato das transmissões, revisão do produto, transição geracional, inserção no mundo dos games e E-Sports com estratégia de adesão e perenidade, licenciamentos diversos, participação no meio das apostas, ações e licenciamentos conjuntos). O futebol, como se diz, é muito dinâmico, na realidade o futebol é cíclico e assim o Palmeiras não tardará para superar o período sensível, algo que ocorre sempre e com todos, em maior ou menor tempo: mas o que também importa é que a superação dos desafios presentes contemple a necessidade do avanço imediato nas questões relacionadas à governança, sem as quais tanto o Palmeiras como os demais clubes não acessarão com o devido aproveitamento a miríade de oportunidades e um momento tão disruptivo em anos de existência da atividade futebolística, com tantos potenciais afluentes, possibilidades e alternativas para desenvolver o novo mercado.
Nós, brasileiros, herdamos dos colonizadores as práticas da crítica e do lamento. Não se trata de preconceito ou de xenofobia; ao contrário, pois, além de descendente de família que ainda tem raízes ibéricas, vivi por lá algum tempo. No plano político, a tendência ao criticismo se exponencia. Com exceção de aliados, incumbentes costumam ser metralhados pela oposição, a qual, por sua vez, será metralhada pelos outrora metralhados, quando estes assumirem o poder. Em ambiente belicoso, a população, influenciada por intenso fluxo de (des)informação, produzida anonimamente, ecoa ataques que se justificam por motivos muitas vezes patológicos ou pessoais. Nos tempos atuais, quase todo mundo se sente autorizado a debater sobre qualquer assunto; algo que não seria problemático se, antes do debate, debatedores buscassem compreender e estudassem o respectivo tema. A Comissão de Valores Mobiliários (CVM), autarquia reguladora do mercado de capitais, tem sido objeto da curiosidade pública - e política -, de tempos em tempos, por ocasião, invariavelmente, de evento externo e extremo. Assim foi, por exemplo, na alvorada da crise que envolveu uma gigante companhia brasileira de varejo. Naquele momento, vozes oportunistas se dirigiram à população em geral (ou a eleitores), com afirmações irrealistas e, em alguns casos, acusatórias, sobre algo que não conheciam e, principalmente, para o que não davam - e não dão - a menor bola. Esta é a realidade: governos, historicamente, não importam as correntes ideológicas, ignoram o papel e a importância da CVM e falham ao prover os meios necessários para que ela cumpra em sua plenitude os objetivos para os quais foi criada, em 1976. Políticos, então, lembram-se dela apenas em momentos extraordinários; e abandonam suas lembranças quando ela deixa de lhes dar ou propiciar (alguma) exposição. A CVM faz mágica com os limitados recursos humanos (em termos quantitativos, e não qualitativos) e financeiros que lhes são dispensados. Aliás, enquanto certas autarquias esbanjam espaços nababescos, ela ainda luta para ter meios adequados de acesso e de transmissão remotos. Não bastasse, é criticada por fatos sobre os quais não é responsável; como se lhe coubesse, seguindo no mesmo exemplo citado acima, auditar condutas de companhias listadas, que passam não apenas pelo escrutínio de auditores internacionais como, e aqui vem um dado relevante, por financiadores, banqueiros, investidores institucionais e empresas de rating. Deixando-se, a partir deste ponto, a crítica da crítica, e passando ao que interessa, o desenvolvimento do mercado de capitais não deveria ser uma opção, mas uma missão de qualquer governo realmente preocupado com o desenvolvimento estrutural, social e econômico. Aliás, é tema de Estado, que não deveria se subordinar a alternâncias partidárias. O país não sairá da sua condição de eterna promessa e, mais relevante, de aspirante a potência global sem o desenvolvimento do seu mercado de capitais, que oferece ao empreendedor, em ambientes desenvolvidos, recursos alternativos aos tradicionais produtos financeiros - que se sustentam, no Brasil, por taxas proibitivas - e, ao mesmo tempo, produtos eventualmente mais rentáveis à população poupadora e alocadora de economias. Com o advento da Lei da SAF, essa perspectiva, em relação à atividade do futebol, deixou de ser especulativa e se tornou um fato. Já circulam, nesse sentido, ofertas públicas lastreadas em receitas futebolísticas ou de notas comerciais, e outras operações deverão, em futuro próximo, expandir o mercado. A CVM não poderia, aí sim, manter-se inerte; em especial pelo fato de que o acesso da SAF ao mercado de capitais deverá incrementar a base de pessoas físicas investidoras, muitas delas (é o que se acredita) novatas e sem experiências pretéritas - e movidas, eventualmente, pela paixão. O Parecer de Orientação CVM n. 41, de 21 de agosto de 2023, objeto de uma série de 4 textos publicados nesta Coluna, expressa, assim, a percepção de relevância do tema - e de suas consequências, que já tinham justificado a realização, na sede da autarquia, em novembro de 2022, do 1º Seminário Brasileiro sobre Futebol, a Lei da SAF e o Mercado de Capitais. E, agora, a continuidade do esforço de construção de um ambiente seguro e sustentável, com a realização, no próximo dia 16 de outubro, do 2º Seminário Brasileiro sobre Futebol, a Lei da SAF e o Mercado de Capitais. Nesta empreitada, a CVM não andará sozinha. O evento, realizado pelo IDSA, AASP e Migalhas, e com apoio institucional da própria CVM e da B3, reunirá, mais uma vez, na sede da autarquia, nomes essenciais que atuam em política, nos mercados financeiro e de capitais, em clubes de futebol e em SAFs, além de professores, advogados e reguladores. Como já se afirmou neste espaço, lá na frente, quando o Brasil tiver formado, senão o maior, um dos maiores mercados do planeta, o papel da CVM não poderá ser esquecido; melhor dizendo, ela deverá ser enaltecida, pela responsável e elogiável atuação em prol do desenvolvimento do país.