Pedro Júlio Sales D'Araújo
Na atualidade, diversos autores tem lançado luzes acerca da regressividade1 de nossa matriz tributária2 sob o ponto de vista material, levando em consideração a distribuição do ônus econômico entre as diversas camadas de nossa sociedade. Ao ter sido estruturada desta forma, nossa matriz tributária acaba por retirar o financiamento do Estado das camadas mais pobres de nossa população, contribuindo, assim, para a forte tendência em se concentrar renda e patrimônio em nossa sociedade.
Todavia, se esta é a realidade apresentada, como é possível ainda hoje ela passar despercebida por aqueles que são chamados a contribuir? O que leva a essa má compreensão da estrutura como um todo, na qual se propaga que os reais responsáveis por sustentar a arrecadação ano após ano são as classes mais abastadas? Como vimos, tais discursos parecem ir de encontro à realidade social brasileira e o papel do fenômeno tributário em sua estruturação. Mas, então, como eles ainda sobrevivem, permitindo a estruturação de um fenômeno tributário tão regressivo em uma sociedade tida por democrática?
As respostas a tais perguntas iniciam-se na própria análise de como se estrutura a matriz tributária brasileira, a partir da relação existente entre a tributação indireta e a direta. A formatação de nosso fenômeno tributário passou por escolhas históricas que acabaram por resultar em uma matriz que se fundamenta na tributação do consumo, em detrimento das outras bases econômicas de incidência. Tal escolha acaba por produzir resultados interessantes para o Estado que a adota. Ainda que possivelmente regressiva, uma tributação geral sobre o consumo possibilita uma massificação da incidência tributária na sociedade, transformando todos os consumidores de bens e serviços em verdadeiras fontes de recursos aos cofres públicos. Também há a vantagem de que tal escolha permite um aprimoramento das formas de fiscalização, dificultando, portanto, possíveis evasões fiscais.
Todavia, tal opção se dá com um custo oneroso em termos de cidadania3. Ao se estruturar desta maneira, o financiamento estatal se mostra claramente anestesiante, uma vez que os encargos são transferidos através do sistema de preço, sendo suportados pelos consumidores de maneira despercebida, os quais, na maior parte das vezes, adquirem bens e serviços sem saber o encargo tributário que compõe aquele valor pago4.
Por outro lado, a tributação direta, ainda que corresponda a menos de 30% da arrecadação, acaba por ser sentida por aqueles que auferem renda e possuem patrimônio, criando-se a falsa sensação de ser essa faixa da população a responsável por arcar com os tributos no Brasil. Em nosso país, a faixa populacional a qual apresenta tais manifestações de riqueza acaba por se encontrar no topo da pirâmide social, tendo em vista que, em função da imensa desigualdade existente, a grande maioria da sociedade não possui patrimônio tributável ou se encontra na zona de isenção quando tratamos da tributação da renda.
Esta impressão distorcida da realidade é corroborada ainda pela falsa percepção de se dar o recolhimento dos tributos indiretos, arcados pela sociedade, aos custos dos empresários e comerciantes, os quais, quando muito, exercem apenas o papel de "atravessadores" dos encargos, os quais são suportados pelos consumidores de bens e serviços e repassados pelos contribuintes de direito ao ente tributante.
Ou seja, temos um largo rol de pessoas contribuindo "sem sentir", justamente por estarem submetidas à tributação indireta. E, ainda por cima, tal faixa populacional é levada a acreditar ser o financiamento do país extraído das classes média e alta do Brasil, as quais por estarem "à mercê" da tributação direta, são os que "visivelmente" recolhem. Todavia, tal parcela da receita configura-se apenas como a ponta do iceberg, pois a grande massa de arrecadação está abaixo desse oceano. A regressividade de nossa matriz tributária, assim, é um fato fora do horizonte de compreensão da população de nosso país. Esse é o retrato mal-feito e cruel da tributação Brasil, a qual, além de onerar mais quem menos pode pagar, contribui para essa má-formação da cidadania dos membros de nossa sociedade, que não possuem as condições mínimas de compreender as formas de financiamento das políticas estatais e reivindicar uma reordenação dos elementos estruturantes de nossa matriz tributária a fins de torná-la mais condizente com um ideal de justiça social.
Assim, a formatação de nossa matriz a partir de tributos indiretos, aliada e diversas outras ilusões fiscais5 presentes em nosso ordenamento, possibilita a criação daquilo que denominamos como sendo uma regressividade cognitiva.
Tal constatação, por si só, não explicaria a má compreensão observada em torno do fenômeno tributário. A construção desta visão equivocada da realidade se dá em muito pela interpretação comumente realizada da experiência tributária pelos nossos juristas, na qual se observa tal atividade estatal apenas sob a perspectiva legal.
Essa perspectiva reducionista acaba afastando o real contribuinte da compreensão da matriz tributária, justamente por se acreditar não ser necessário apreender os aspectos sociais, econômicos ou políticos da tributação. Ao jurista, enquanto estudioso da ciência do direito, caberia apenas o estudo do sistema tributário em si (BECKER, 2010, p. 21), objeto este que, conforme vimos no capítulo inicial do presente trabalho, é compreendido como o conjunto de normas jurídicas que regulam a relação existente entre Estado e contribuinte. Toda e qualquer preocupação existente com a análise do fenômeno tributário que envolva a compreensão de seus efeitos perante a sociedade não ficaria a cargo do jurista, tendo em vista que tais perspectivas deveriam ser consideradas pré ou pós-jurídicas (BECKER, 2010, p. 22).
O intérprete do direito passaria a se preocupar, portanto, tão somente com a norma posta e seus enunciados, ou com aquilo que Luis Alberto Warat denomina como sendo o senso comum teórico dos juristas.
Segundo esse autor devemos compreender o senso comum teórico como sendo o conjunto de condições implícitas de produção, circulação e consumo das verdades nas diversas práticas que envolvem o saber jurídico, sejam elas teóricas, práticas ou acadêmicas (WARAT, 1994, p. 13).
O senso comum surge então como um vasto arcabouço de conceitos, representações, imagens, ficções e crenças que são colocados à disposição do jurista para que este possa, a partir de tal ponto, compreender o fenômeno jurídico e poder elaborar enunciados a respeito (WARAT, 1994, p. 14). Podemos compreendê-lo, portanto, sob uma perspectiva da intertextualidade, como sendo os próprios elementos que permitem o discurso jurídico, moldando-o e conferindo-lhe significado. Todavia, ao mesmo tempo em que representa uma espécie de signo necessário para o desenvolvimento da técnica, permitindo a operacionalização do Direito, o senso comum teórico guarda também uma mística de racionalidade em seu discurso que pretende respaldar a relação de poder que existe por trás da norma jurídica (WARAT, 2002, p. 58).
Assim, este discurso acaba por se traduzir na utilização de um saber fechado, restrito àqueles que passaram por um processo de formação para "dominá-lo", o que exclui o restante da sociedade que não compreende o uso de tal linguagem. Esta linguagem seleta confere um caráter de legitimidade científica ao discurso, que se mostra imune à crítica. Reduz-se o discurso jurídico assim a uma técnica fechada, sendo esta a responsável pela produção da verdade através de enunciados tidos como inquestionáveis.
E é ai que surge o risco da imunização pretendida por uma cientificidade centrada na norma jurídica. Conforme bem afirma WARAT (2002, p. 57), "respaldado na funcionalidade de suas próprias ficções e fetiches, a ciência do direito nos massifica, deslocando permanentemente os conflitos sociais para o lugar instituído da lei, tornando-os, assim, menos visíveis".
Cria-se, portanto, uma realidade simbólica a partir desse senso comum teórico. Simbólica porque não condiz com a realidade histórica, concreta, uma vez que esta se mostra excluída do campo de apreensão do intérprete do direito6. Passa-se a analisar os aspectos da tributação descolados de qualquer preocupação com os efeitos práticos que tais escolhas acarretam. Passa-se a interpretar a tributação completamente descolada de nossa realidade social, como se aquela existisse independentemente da existência desta.
Assim, ao mesmo tempo em que o senso comum teórico dos juristas se apresenta como condição implícita para o desenvolvimento do direito em nossos dias, ele é caracterizado por uma série de efeitos dissimuladores. Observa-se, assim, um discurso alienante ao redor do fenômeno tributário, que tenta apartá-lo da realidade que o sustenta, impossibilitando que o real financiador do Estado tenha conhecimento de seu papel como tal. Uma série de figuras ideologizadas é construída, as quais deturpam a compreensão da regressividade do fenômeno, escondendo os efeitos sociais das medidas adotadas através de argumentos técnicos que acabam por afastar o cidadão da compreensão de nossa matriz. Nas palavras do próprio Warat (1994, p. 15):
Os juristas contam com um emaranhado de costumes intelectuais que são aceitos como verdades de princípios para ocultar o componente político da investigação de verdades. Por conseguinte se canonizam certas imagens e crenças para preservar o segredo que escondem as verdades. O senso comum teórico dos juristas é o lugar do secreto. As representações que o integram pulverizam nossa compreensão do fato de que a história das verdades jurídicas é inseparável (até o momento) da história do poder.
Como é possível observar de tal constatação, a linguagem jurídica, que se faz pretensamente pura, mascara uma relação de poder que necessariamente existe enquanto seu próprio pressuposto7. Relação esta que permanece ocultada e, portanto, fora do alcance da apreensão do cidadão comum, que vê na norma jurídica um elemento de organização social neutro e legítimo. Deste modo, o conteúdo da norma surge como algo apartado das condições materiais de realização, algo naturalizado, fruto da apreensão da racionalidade do teórico que se encontra, via de regra, desvinculado da produção material8.
É nesse contexto que surge o caráter ideológico de dominação da relação de poder preexistente à norma jurídica.
Segundo Chauí (2008, p. 86), em uma sociedade cindida, para que uma classe perpetue seus privilégios, é necessário que ela utilize instrumentos para dominar politicamente os demais integrantes daquela comunidade. Em nossos tempos, esses instrumentos seriam, segundo a autora, o Estado e a ideologia.
O Estado seria responsável pela estruturação de um aparato de coerção e repressão social, que submeteria todos os membros da sociedade às suas regras políticas. Para tanto, o Estado se valeria de um sistema normativo próprio, responsável por moldar o comportamento dos cidadãos de uma maneira pretensamente não violenta. Esse sistema normativo estatal é o próprio direito posto, que conferiria, segundo a autora, um pretenso ar de legalidade à dominação, facilitando sua aceitação pelos demais integrantes da sociedade.
Entretanto, mostra-se evidente que, enquanto instrumento de dominação, o direito posto só seria eficiente a partir do momento em que as classes dominadas não notassem a violência existente por trás da norma. E é aqui que se apresentaria a ideologia enquanto instrumento complementar desta dominação. Ela seria responsável por conferir um caráter de legitimidade à norma posta, por meio de uma substituição da realidade concreta por uma representação ideal dessa mesma realidade, geralmente de acordo com a projeção das ideias dos próprios grupos dominantes (CHAUÍ, 2008, p. 87). Dessa forma, o ideário das elites passaria a ser incorporado como o ideário da sociedade como um todo, sendo a ideologia, portanto, a estruturação de uma dominação do plano espiritual.
Para que tal estrutura funcione, Chauí (2008, p. 89) defende que (i) ainda que a sociedade seja fracionada em classes e que cada classe tenha seu ideário, a dominação de uma classe sobre a outra faz com que só seja considerado válido o conjunto de ideias da classe dominante; (ii) e para que isso aconteça, se mostra necessário que a população como um todo se veja enquanto integrante de uma mesma sociedade, coesa e uniforme, compartilhando de um mesmo destino e sem ser dividida em estamentos sociais diversos; (iii) para tanto, é necessário que a classe dominante difunda seu ideário por toda a sociedade, fazendo com que esse seja incorporado pelas diferentes classes sociais; (iv) e, por fim, tendo em vista que este conjunto de ideias não representa a verdadeira realidade social, mas apenas uma aparência social desenvolvida pela classe dominante, é possível que ele seja considerado independente da própria realidade, existindo abstratamente como uma projeção de algo que não se realiza no mundo real.
A ideologia estaria ligada, assim, a uma concepção mental que não corresponderia de maneira rigorosa à realidade do objeto analisado, o que acabaria deformando-o (CHAUÍ, 2008, p. 7). Ela seria um pressuposto adotado que constituiria o único ponto de partida possível de todo o pensamento. Seria, portanto, indiscutível, pois ao representar uma base de todo raciocínio, é dada como algo certo e aceita intuitivamente.
Assim, transferindo a percepção de Chauí para o fenômeno tributário, é possível entender como se dá a má-compreensão quanto à distribuição do encargo econômico de nossa matriz. Ao analisarmos a tributação brasileira apenas sob o viés arrecadatório, adotando discursos generalizantes quanto à incidência da carga tributária em nossa sociedade, ignoramos a forma como se divide tal encargo, dando a falsa impressão de que todos nós suportamos o mesmo ônus, quando na verdade a estrutura se faz extremamente "seletiva".
Esse processo de alienação faz com que a grande parcela da população não entenda a realidade fiscal brasileira (FARIAS, SIQUEIRA, 2012, p. 37), deixando de compreender-se a si mesmo, portanto, como contribuinte. Segundo Chauí (2008, p. 65):
A forma inicial da consciência é, portanto, a alienação, pois os homens não se percebem como produtores da sociedade, transformadores da natureza e inventores da religião, mas julgam que há um alienus, um Outro (deus, natureza, chefes) que definiu e decidiu suas vidas e a forma social em que vivem. Submetem-se ao poder que conferem a esse Outro e não se reconhecem como criadores dele. E porque a alienação é a manifestação inicial da consciência, a ideologia será possível: as ideias serão tomadas como anteriores à práxis, como superiores e exteriores a ela, como um poder espiritual autônomo que comanda a ação material dos homens.
Esconde-se, portanto, o próprio aspecto ideológico por trás da norma. As opções realizadas no campo do fenômeno tributário, quando optamos por criar uma estrutura altamente regressiva, se relacionam com uma realidade que é excluída do discurso comum. Ela reflete uma opção ideológica daqueles responsáveis por estruturar a matriz tributária do país, que tomam tais decisões unilateralmente, sem problematizar a tributação diante de nossa realidade social. Pois, se no plano ideal as decisões deveriam ser tomadas em um ambiente democrático, no qual todos os cidadãos estariam cientes de seus papéis enquanto contribuintes, a bem da verdade observa-se que em nosso país a opção escolhida se dá em favor da exclusão social da grande maioria da população, em total desacordo aos objetivos previstos em nossa Constituição.
É por esta razão que defendemos aqui que a matriz brasileira não é regressiva apenas sob a perspectiva econômica, ou seja, aquela que aborda a desigual distribuição de sua carga. Entendemos ser tal estrutura duplamente regressiva, pois, além de se mostrar regressiva sob o olhar econômico, ela também o é sob um viés cognitivo do sujeito responsável por arcar o ônus, tendo em vista que a grande maioria de sua arrecadação se faz de maneira sub-reptícia, por meio de uma tributação indireta que em nada contribui para a formação de um Estado que se afirma democrático. Ao optar por se financiar de tal forma, nossa comunidade política acaba por moldar uma estrutura alienante, que deturpa a percepção que o cidadão comum possui da realidade, criando verdadeiras estruturas ilusórias que retiram qualquer capacidade de que os verdadeiros responsáveis por custear o Estado possam cobrar a correta destinação de tais recursos, em completo desatendimento aos diversos preceitos constitucionais já abordados no presente trabalho e que deveriam balizar o agir fiscal em nosso país (SCAFF, 2007, p. 5).
Deste modo, além de retirar a pouca riqueza da grande maioria dos brasileiros, nossa matriz tributária ainda nega-lhes cidadania - para que possam se posicionar criticamente em oposição a uma estrutura desigual9. É negado, dessa forma, a consciência necessária quanto à distribuição do ônus justamente àqueles que mais pesadamente são chamados a contribuir. É negada cidadania à parcela da população que mais necessita dela, essa mesma parcela que, subincluída no sistema jurídico pátrio, vê cotidianamente seus direitos fundamentais sendo negados. A mesmíssima parcela da população que cotidianamente é taxada como um fardo para o "restante" da sociedade, o qual supostamente financiaria as políticas assistenciais desenvolvidas pelo Estado. Essa mesma parcela que, de cidadã, passa a ser "mero" contribuinte - sem ao menos ter noção de tal realidade.
Bibliografia:
BECKER, Alfredo Augusto. Teoria Geral do Direito Tributário. 5. ed. São Paulo: Noeses, 2010.
BRASIL, Indicadores de Iniquidade do Sistema Tributário Nacional: Relatório de Observação nº 2. Brasília: Presidência da República, Conselho de Desenvolvimento Ecônômico e Social - CDES, 2ª Edição, 2011.
CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 16 ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2013.
CHAUÍ, Marilena. O que é ideologia. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 2008.
FARIAS, Fátima Gondim; SIQUEIRA, Marcelo Lettieri. Bases Tributáveis Brasileiras: penalizando os pobres e beneficiando os rentistas. In: CATTANI, Antônio David, OLIVEIRA, Marcelo Ramos (org). A sociedade justa e seus inimigos. Porto Alegre: Tomo Editorial. 2012
GASSEN, Valcir. Tributação na origem e destino: tributos sobre o consumo e processos de integração econômica. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2013.
GASSEN, Valcir. Equidade e eficiência da matriz tributária brasileira: Diálogos sobre Estado, Constituição e Direito Tributário. Brasília: Consulex, 2012.
SCAFF, Fernando Facury. Constitucionalismo, tributação e direitos humanos. Organização. Rio de janeiro: Renovar, 2007.
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito I: interpretação da lei temas para uma reformulação. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1994.
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito II: a epistemologia jurídica da modernidade. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1995.
WARAT, Luis Alberto. Introdução geral ao Direito III: o direito não estudado pela teoria jurídica moderna. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris Editor, 1997.
NEVES, Marcelo. Entre subintegração e sobreintegração: a cidadania inexistente in DADOS - Revista de Ciências Sociais, vol 32, nº 2. Rio de Janeiro: Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro.
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Pedro Júlio Sales D'Araújo é assessor de ministro do Supremo Tribunal Federal. Integrou escritórios de advocacia atuando na prática tributária. Mestre em Direito pela UnB e professor voluntário da Faculdade de Direito da UnB. Possui graduação em Direito pela UnB e é membro do Grupo de Pesquisa Estado, Constituição e Tributação (GETRIB - FD/UnB) pela UnB.
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1 A elaboração de tal expressão, criação do autor, foi pensada a partir da própria definição de cognição trazida pelo Dicionário Michaelis enquanto ato de adquirir um conhecimento. Pretende-se, assim, representar a ideia de que a regressividade que se opera em tal perspectiva acaba por extrair a maior parte de seus recursos de maneira sub-reptícia, sem que aqueles chamados a contribuir possam ter noção de seu papel enquanto financiadores da atividade estatal. E a utilização do termo regressividade se explica no nosso caso pelo fato de que, ao extrair tais recursos de forma anestesiante dos extratos com menor capacidade econômica, o Estado brasileiro vem negando cidadania para as parcelas da população que historicamente já se mostram subincluídas, para utilizar a definição elaborada por Marcelo Neves (1994). Assim, em um uma alegoria que aqui tomamos liberdade de expor, a matriz tributária brasileira negaria cidadania para aquelas parcelas que menos tem.
2 Passamos a adotar o conceito de matriz tributária para caracterizar esse conjunto de opções que refletem a estrutura da própria comunidade política e ajudam a moldá-la como tal. Esta expressão representa as escolhas feitas em um determinado momento histórico no campo da ação social, no que diz respeito ao fenômeno tributário. Incorpora, portanto, a noção de matriz tributária não só o conjunto de normas jurídicas regulando as relações entre o ente tributante e o contribuinte, não só a escolha feita das bases de incidência (renda, patrimônio e consumo) e sua consequente participação no total da arrecadação; não só as questões dogmáticas pertinentes à obrigação tributária; não só as opções que se faz no plano político de atendimento de determinados direitos fundamentais; não só a estrutura do Estado a partir das suas condições materiais de existência, no caso, das condições de financiamento do Estado ofertadas pela arrecadação de tributos. (GASSEN, 2012, p. 32).
3 Ao se debruçar sobre a definição de cidadania, José Murilo de Carvalho (2013, p. 9) defende que a construção deste conceito é parte de um fenômeno complexo e historicamente definido, que envolveria três dimensões fundamentais de direitos, direitos civis, políticos e sociais, que nem sempre se mostram presentes contemporaneamente. Assim, "o exercício de certos direitos, como a liberdade de pensamento e o voto, não gera automaticamente o gozo de outros, como a segurança e o emprego. O exercício do voto não garante a existência de governos atentos aos problemas básicos da população. Dito de outra maneira: a liberdade e a participação não levam automaticamente, ou rapidamente, à resolução de problemas sociais. Isto quer dizer que a cidadania inclui várias dimensões e que algumas podem estar presentes sem as outras. Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível. Mas ele tem servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada país e em cada momento histórico."
4 Em relatório no qual se discute os indicadores de iniquidade do sistema tributário brasileiro, o CDES expõe que "Cidadania tributária significa a conscientização do cidadão para o fato de que a necessária arrecadação de tributos deve reverter-se em benefícios que cumpram o papel de atender às necessidades da coletividade, reduzindo distâncias sociais. Transparência, tanto no que diz respeito às fontes quanto aos usos dos recursos públicos é palavra-chave e primeiro requisito para o exercício da cidadania tributária. Dentre as injustiças do sistema tributário nacional, talvez o aspecto menos debatido seja a falta de cidadania tributária que, de um lado, afasta os brasileiros do pleno exercício do controle social e, de outro, do entusiasmo no compartilhamento do financiamento do Estado. A cidadania não é exercida no cotidiano da vida civil nem transparece na construção das instituições públicas. Os contribuintes brasileiros não se percebem como parte ativa e interessada no processo orçamentário, não estabelecem relações claras e diretas entre o pagamento de tributos, a aplicação dos recursos e a qualidade dos serviços públicos, e tampouco exigem informações acessíveis, transparentes e simples sobre o funcionamento do sistema tributário. Nesse sentido, é plausível considerar que a falta de cidadania se apresenta como causa e também como consequência das distorções verificadas no nosso sistema de arrecadação." (2011, p.34)
5 Um exemplo claro das diversas opções que impactam diretamente na compreensão de nossa sociedade acerca da carga tributária incidente sobre o consumo pode ser extraído do chamado cálculo por dentro do Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS). Ao analisarmos a base de cálculo do ICMS prevista hoje no art. 13, § 1º, I da LC 87/96, é possível observar que incluímos na mesma, entre outros valores, o próprio montante do imposto, naquilo que ficou convencionado, de forma eufemística, de "cálculo por dentro". Assim, a inclusão do ICMS em sua própria base de cálculo representa um artifício legal que determina que, no momento da apuração do quantum debeatur a ser recolhido pela imposição deste tributo, deve o contribuinte, para fins de apuração, considerar que o próprio imposto integra a sua base de cálculo. Tal mecanismo contábil cria uma exacerbação da alíquota realmente aplicável, que, em efeitos práticos, acaba por ser superior à alíquota legalmente prevista. Este subterfúgio fiscal contribui severamente para a má formação dos membros de nossa comunidade política enquanto cidadãos conscientes de seu papel no produto da arrecadação do Estado, representando, assim, uma grave violação ao princípio da transparência fiscal. Tal constatação é facilmente verificável, uma vez que em um sistema complexo e extremamente excludente como é o nosso sistema tributário são poucas as pessoas que teriam a capacidade necessária para compreender como se opera uma fórmula matemática que permite a uma alíquota nominal de 25% equivaler, por exemplo, em termos reais a 33,33% do valor do produto consumido. Permitir que um tributo seja calculado de tal forma é desacreditar todo o objetivo do Estado de se pautar por uma conduta ética e equânime para com os seus cidadãos, e esquecer o compromisso assumido de combater as desigualdades sociais, combate este que passa, necessariamente, pela formação de cidadãos conscientes que possam ser verdadeiros membros de um processo democrático de tomada de decisões. Entretanto, em que pese tais constatações, tal fórmula de cálculo é avalisada pelo Supremo Tribunal Federal, que em diversas oportunidades já declarou a constitucionalidade de referido dispositivo legal, sendo o mais emblemático o julgamento do RE 582.461/SP, decidido sob regime da repercussão geral.
6 Para tanto, importante contribuição nos é fornecida pelo próprio Warat (2002, 58), que expõe: "a força comunicacional da ciência jurídica passa vitalmente por um jogo de significados ilusórios; um território encantador onde todos fazem de conta que o Direito, em suas práticas concretas, funciona a imagem e semelhança do discurso que dele fala. Desta maneira, a montagem mítica que impregna o discurso jurídico ocidental gera uma relação imaginária entre o saber e as práticas do direito. Isto produz um capo simbólico (um eco de representações e ideias) que serve para dissimular conflitos e antagonismos que se desenvolvem fora da cena linguística. Eles existem na história e são negados por um conhecimento convertido em uma potência independente, abstrata, que se levanta por sobre os homens. As chamadas 'ciências jurídicas' aparecem, assim, como um conjunto de técnicas de 'fazer crer' com as quais se integra com significados tranquilizadores, representações que tem como efeito impedir uma ampla reflexão sobre nossa experiência sócio-política. Ideias dispersas e efeitos fabuladores que contem omissões intencionais sobre o saber jurídico, a lei e o poder. Neste sentido a linguagem oficial do direito determina uma multiplicidade de efeitos dissimuladores".
7 De acordo com Chauí (2008, p. 24) "sociedades divididas em classes (e também em castas), nas quais uma das classes explora e domina as outras, essas explicações ou essas ideias e representações serão produzidas e difundidas pela classe dominante para legitimar e assegurar seu poder econômico, social e político. Por esse motivo, essas ideias ou representações tenderão a esconder dos homens o modo rela como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas sociais de exploração econômica e de dominação política."
8 Chauí (2008, p. 65) desenvolve tal argumento demonstrando que esse processo de naturalização surge quando o resultado da divisão social do trabalho se completa, com a cisão total entre o trabalho material e o espiritual. A partir de então, "a consciência pode realmente imaginar ser diferente da consciência da práxis existente, representar realmente algo, sem representar algo real. Desde esse instante, a consciência está em condições de emancipar-se do mundo e entregar-se à construção da teoria, da teologia, da filosofia, da moral etc. puras".
9 "Esse caráter indiscutível, no entanto, duraria apenas enquanto as distorções provocadas pela ideologia não se tornassem gritantes aos olhos das pessoas. Assim, elas não representariam um determinante para o comportamento humano, o que nos prenderia a um destino inquestionável. Elas corresponderiam mais a um condicionante passível de ser superado a partir do momento em que suas contradições se tornam insustentáveis, por meio de uma crise paradigmática. Assim, as ideologias podem ser usadas como meio de dominação e perpetuação de uma classe no poder, cristalizando uma série de crenças no imaginário do homem, deformando seu raciocínio e concretizando a dominação, perdurando enquanto não houver o surgimento de uma crise que as questione". (CHAUÍ, 2008, p. 24)