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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
segunda-feira, 28 de março de 2011

Advocacia como aprendizado

Houve uma época, eu diria uma das mais ricas de minha vida, pois foi nela que aprendi a advogar, que recém-formado, era nomeado defensor dativo para atuar perante os dois Tribunais do Júri então existentes, em defesa de réus pobres. Época gloriosa, pois além de proporcionar um precioso aprendizado que não seria possível caso ficasse em meu escritório aguardando clientes, que nunca chegariam, colocou-me em contacto, de um lado, com advogados, juízes e promotores da mais alta expressão e que se tornaram grandes amigos, e de outro, com uma realidade apenas noticiada e até intuída, mas não vivenciada. Refiro-me ao contacto que passei a ter com os réus carentes, que me puseram, por consequência, em contacto com o outro Brasil. O Brasil da miséria, das carências nos campos da saúde, da educação, do saneamento, da habitação, do afeto familiar, o Brasil das crianças abandonadas, da exploração dos menores, enfim do país em relação ao qual o outro país, culto, sofisticado, mas elitista, insensível, egoísta costuma dar as costas. Esse cruel e trágico contraste constitui, sem dúvida, um fator criminógeno de alta potência. Pois bem, todos aqueles advogados que militaram no Júri como defensores dativos e os que ainda militam, como os defensores públicos, possuem perfeita noção da influência do meio como fator de crime. O contacto pessoal com os réus e com os respectivos processos nos possibilitou não só conhecer as condições materiais da vida de uma grande camada de nossa população, como perceber a incrível diferença existente entre os valores por eles cultivados e os das chamadas elites. Aliás, tal constatação se fazia pelo exame dos motivos e justificativas dadas pelos homicídios cometidos. Enquanto nas classes mais abastadas se mata por cobiça, por poder, às vezes por ciúmes ou inveja, os menos favorecidos têm nas disputas mais estranhas e de difícil compreensão para nós as causas dos delitos. A defesa de valores aculturados pelo meio em que viveram em contraste com os valores que regem a vida nas cidades para onde migraram provocava não raras vezes altercações que findavam em morte. E a justificativa estava exatamente na violação daqueles princípios, também não poucas vezes eram questões de somenos que se transformavam em causas para matar na rígida e obtusa concepção desses acusados. Talvez se fossem julgados por jurados da mesma origem e cultura outros seriam os veredictos, que via de regra eram condenatórios. Hoje talvez a realidade seja outra em face dos inúmeros instrumentos de integração, tais como a televisão e a Internet, a rapidez das informações, fatores que facilitam o processo de assimilação cultural, mas há trinta anos o deslocamento migratório era indiscutivelmente importante fator criminógeno. Lembro-me do meu primeiro defendido, de alcunha "Lilico", acusado da prática de homicídio por ele negada com veemência. Já na primeira entrevista deu-me clara noção do seu abandono na prisão, pois pediu-me uma escova de dentes, uma pasta e uma toalha. Necessidades básicas, não supridas por seus familiares, possivelmente nem os tinha, e nem pelo Estado. Bem se vê o grau de abandono, de carência, de uma vida sub-humana a que estavam submetidos os clientes do sistema penitenciário. Essa situação, nos dias de hoje, agravou-se, pois o sistema não melhorou e os níveis sociais do país não se elevaram. Merece registro o pedido feito pelo meu primeiro cliente, não só pelo seu significado social, como pelo efeito que produziu em meu casamento. Explico: dos produtos de higiene que me foram pedidos pelo Lilico, comprei a escova e a pasta. Quanto à toalha, peguei uma de casa, sem atentar para a sua qualidade. Minha mulher ao saber ficou furiosa, pois eu pegara exatamente a toalha que compunha um jogo finíssimo que fazia parte do nosso enxoval. Éramos recém-casados. Até hoje sou cobrado pelo meu desprendimento exagerado. Ao evocar o meu início profissional, ocorre-me uma passagem do soberbo livro "Noturno da Lapa" do escritor e jornalista Luiz Martins. Ao explicar a influência que o boêmio bairro carioca exerceu sobre a sua personalidade, em especial sobre a sua visão da vida e dos homens afirmou : "A prostituição foi o primeiro aspecto da miséria humana que conheci" Segundo se infere a prostituição teria lhe provocado os sentimentos da piedade, da ternura e da complacência "com o pecado". Ademais arrematou dizendo ter entrado para o socialismo pela porta noturna de um "bordel". Posso afirmar sem medo de erro a analogia de minha experiência profissional inicial com a experiência lapeana de Luiz Martins. Eu tornei-me mais compreensivo e mais complacente com o homem acusado da prática de crime, quando passei a frequentar a cadeia, pois o crime foi o meu primeiro contacto com o lado sombrio da condição humana. Se não me tornei um socialista na acepção ideológica do termo - ou será que me tornei? - passei a olhar a sociedade além dos estreitos limites do meu mundo pequeno burguês e a ver na política um instrumento adequado à redução substancial das desigualdades sociais, bem como de realização do humanismo e da dignidade do homem. Passei a entender que a atividade política só se justifica se ela estiver a serviço de valores superiores, todos eles ligados ao aperfeiçoamento da condição humana e da vida do homem em sociedade. A advocacia criminal, especialmente aquela dedicada aos réus pertencentes às camadas mais humildes da sociedade, é uma forma de atividade política, na medida em que o advogado leva a um dos Poderes do Estado, como porta-voz do acusado, os direitos e as garantias concedidos pelo ordenamento e luta pela sua prevalência. Por paradoxal que pareça, é necessária uma imputação criminal para que direitos e prerrogativas sejam reconhecidos a alguém que passou a sua vida à margem das normas de proteção outorgadas a todos os cidadãos, mas aplicadas apenas a alguns.
segunda-feira, 14 de março de 2011

Festa é coisa séria

Amizades são construídas em razão das afinidades existentes; da empatia ou, para usar uma expressão atual, da química surgida; dos objetivos que são perseguidos em comum; ou até das próprias divergências que incoerentemente ao invés de separar unem. Por vezes, dois seres se tornam amigos em razão de uma alegria ou de um sofrimento comum. Há, ainda, a solidão como fator de amizade. O estar só permite que sejamos menos exigentes na escolha dos amigos. Ademais, a necessidade de ser preenchido o vazio faz com que logo nos apeguemos a quem aparece. Triste daquele que só tem três amigos, como no poema de Cassiano Ricardo: "Só tenho três amigos!/meu eco, minha imagem,/minha sombra". Existe ainda uma outra origem para as boas amizades. A admiração que alguém provoca em outrem, que daquele se aproxima e se tornam amigos. Conhece-se alguém sem que se tenha qualquer intimidade. Por vezes nem se foi a ele apresentado. Mas, alguma circunstância, alguma característica, alguma qualidade, algum comportamento específico, enfim algo nos chama a atenção e nos leva a querer conhecê-lo ou a estreitar um relacionamento ainda incipiente. Por vezes, a admiração é recíproca e aí a amizade rapidamente se solidifica. Travei contacto pela primeira vez com José Carlos Magalhães Teixeira em 1978, quando meu inolvidável amigo Nilton Silva Júnior e eu fomos representar o recém-eleito presidente da OAB de São Paulo, Mário Sérgio Duarte Garcia, na posse do novo presidente da subseção de São João da Boa Vista, exatamente José Carlos. Éramos, Nilton e eu, os únicos apoiadores da vitoriosa "chapa azul" que elegera Mário Sérgio, presentes à posse. Os adversários da denominada "chapa marrom" haviam vencido as eleições em São João, mas haviam perdido no Estado. O candidato à presidência pela "chapa marrom" foi o advogado e político Rogê Ferreira, figura que marcou época como estudante do Largo de São Francisco, tendo sido presidente do Centro Acadêmico 11 de Agosto, e, posteriormente, político de destaque do Partido Socialista Brasileiro. Pois bem, não obstante desconhecidos e adversários políticos, fomos magnificamente recebidos por advogados que no futuro se tornaram amigos fraternos e companheiros da política de Ordem. Aliás, foi exatamente no sítio de um deles, Delcio Balestero Aleixo, que constituímos o grupo denominado "Tempos Novos" que concorreu e venceu as eleições de 1986, como "Chapa Cinza", ocasião em que fui eleito, pela primeira vez presidente da Ordem. Além de José Carlos e Delcio, em São João da Boa Vista, constitui preciosas amizades com Clóvis Laranjeira, Waldemar Martins do Vale, Jair Cano, Maria Inês, Joel "La Bamba" e tantos outros mais. Eu falava de amizades que surgem mercê da admiração de alguém por outrem, ou da admiração recíproca. Um dos amigos especiais que possuí foi o já citado José Carlos Magalhães Teixeira. A admiração e a estima vieram juntas pouco tempo após conhecê-lo. Ambas aumentaram na medida que convivemos. Procurei a razão dessa afeição. Depois de indagar mentalmente sobre o seu modo de ser e de pensar conclui que uma sua frase dita com frequência, na verdade uma máxima, refletia o seu interior e produzia efeitos no seu comportamento: "festa é coisa séria". Não se trata de uma simples frase e nem ela se limita a mostrar ser o seu autor um festeiro militante, organizador e incentivador das melhores festas que fui em minha vida. E, quando falo em melhores festas não me refiro apenas à qualidade gastronômica e etílica, pois essas são excepcionais. Refiro-me ao clima, ao espírito que impera nessas festas e contamina todos que a elas comparecem. Espírito festivo é o da confraternização, da amizade, mesmo que se conheça o "amigo" naquele instante, da solidariedade, da alegria de estar junto e de poder compartilhar dessa alegria. O responsável por esse espírito foi o José Carlos, seu inspirador, sua fonte, seu paradigma. Disse eu que a frase "festa é coisa séria" não era apenas uma frase e não refletia apenas uma característica do seu autor. O dito, na verdade, contém uma filosofia de vida. Organizar a vida, percorrê-la, transpor os obstáculos, superar os percalços, enfrentar as agruras com a disposição de quem vai ou está em uma festa. Especialmente, é viver sempre tendo compreensão, benquerença, disposição para a confraternização e para a troca de afeto. José Carlos transforma a vida em festa e encara a vida com a seriedade que a vida impõe. Entenda-se por seriedade não a sisudez ou o excessivo rigor, mas o atributo das coisas realmente valiosas e indispensáveis. Conviver com José Carlos Magalhães Teixeira foi, sem dúvida, festejar a vida.
segunda-feira, 28 de fevereiro de 2011

Stella Com S

Poderia ser nome de mulher, mas não é. No entanto é o nome de um amor. Amor tão intenso como o despertado pela mulher amada. Não diria ter sido um amor à primeira vista. Aliás, não me lembro se foi ou não. Pouco importa, pois importa sim ter sido um amor sólido, duradouro, eterno. A rua Stella é a síntese da minha infância e da minha juventude. Não morei nessa rua. Ou melhor, fui nela morar logo que me casei. Lá ficamos por quase dois anos, residindo na vila de baixo, localizada em frente ao campo do Olímpicos da Vila Mariana, glorioso time de várzea. Morei durante a minha vida, vida de criança e de jovem, na rua Cubatão quase esquina com a Stela. Mas foi nessa rua que eu construí o meu mundo, meu rico mundo infantojuvenil. Meu e de mais dez, quinze, vinte componentes da denominada Turma Stella - T.S. - Os mais antigos se conhecem há mais de cinquenta anos. Há até os que estudaram juntos no primário, na mesma classe. A maioria já ultrapassou os sessenta anos. Esse amado reduto da nossa infância e da nossa juventude nos proporcionou uma época gloriosa de amizade, companheirismo e solidariedade. Disse haver construído o meu mundo na Stella, na verdade, a minha personalidade e o meu caráter foram forjados no lar e na rua. Sim, a rua Stella contribuiu e muito para a minha formação. Era o nosso mundo, o nosso reino. Nossos espaços eram a Rua Stella, a Rua Cubatão e adjacências; o campo do Olimpicos Futebol Clube; os bares das redondezas; uma chácara localizada em Diadema; o bilhar "Vermelhinho", na Rua Machado de Assis; os boliches, então na moda; o Pacaembu, o Morumbi; o centro da cidade, e ela como um todo, pois nos sentíamos os seus donos. Não nos largávamos, a nossa convivência era diária. Sentíamo-nos soberanos. Fazíamos o que queríamos. Mais ou menos o que queríamos, pois o nosso querer por vezes esbarrava em obstáculos intransponíveis, representados pelas limitações impostas pelos nossos pais, pelos atentos e vigilantes pais das "meninas" por vezes pelos vizinhos, pelos componentes das outras turmas do bairro e, por vezes, até pela polícia... Abro um parêntesis para lamentar que os obtusos administradores da cidade deixaram que a ganância imobiliária superasse a necessidade da cidade proporcionar espaços de lazer e de convivência aos seus munícipes, especialmente aos jovens das camadas menos favorecidas. Hoje são raros os campos de várzea. Na Stella nós brincávamos, namorávamos, jogávamos futebol na rua, ou em qualquer canto, por mais precário que fosse. Disse que brincávamos, é verdade, e não éramos crianças. Já adolescentes não tínhamos nenhum escrúpulo ou constrangimento. A nossa rua era ocupada literalmente para os nossos jogos. Quando não era o futebol eram jogos que hoje não mais são praticados, pois, tristemente, perdeu-se o espaço das ruas. Brincávamos de "mãe da rua", de "mãe da lata" e de "lasca Romeu". Em um deles batia-se com um cinto naqueles que não adivinhassem a mímica feita por quem segurava o cinto ("lasca Romeu"). Já no outro se procurava derrubar quem tentasse atravessar a rua em uma perna só, ("mãe da rua"). O denominado "mãe da lata", não me recordo bem, mas igual aos outros implicava em delicadezas físicas... Esses inofensivos folguedos, não muito diferentes do futebol americano ou do rúgbi, mas sem nada que nos protegesse eram um suplício, verdadeiro terror para os moradores da Stella. A implicância, verdadeira aversão, era por nós incompreendida, pois apenas vez ou outra uma janela era quebrada; os jardins das casas danificados; um carro mal estacionado era amassado; um incauto transeunte atingido; ou a educação e a sensibilidade dos moradores eram agredidas pelo nosso palavreado pouco respeitoso, próprio das contendas esportivas, que não raras vezes se transformavam em contendas físicas. Nós brincávamos, mas também brigávamos, quer entre nós quer com as turmas de outras ruas, ou mesmo de outros bairros. As brigas por vezes eram com hora marcada. Realmente, não eram duelos, mas marcávamos hora e local para acertarmos as nossas diferenças. O local sempre, ou quase sempre era o mesmo. O já mencionado campo do Olímpicos da Vila Mariana. As brigas tinham um ritual, uma liturgia. Fazia-se um risco no chão, quem primeiro ultrapassasse a linha divisória estava sujeito a tomar o primeiro tapa. Na realidade, quase todas as brigas não passavam dos atos preparatórios, pois eram raros os que atravessavam a fronteira. Depois de algum tempo de ofensas e bravatas, os adversários se cansavam e iam embora. Mas, quando as brigas efetivamente ocorriam ou no "campinho" ou na rua, ou em festas, aliás, nestas eram muito comuns, elas eram incruentas. Naqueles românticos tempos não se matava, apenas se exercitava. Quando brigávamos entre nós, então, sempre havia a posterior confraternização regada à cerveja.
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Bonito moço

A benevolência das pessoas de mais idade é extraordinária. E, da benevolência brota o carinho, a gentileza, e o afeto que tanto bem faz e dos quais a atualidade está tão carente. A respeito, lembro-me de um fato ocorrido em meados de 1965. Eu cursava o primeiro ano do Direito da PUC, quando fui jantar na casa do então colega, hoje amigo-irmão, Alberto Antonio Pascarelli Fasanaro. Morava ele na Av. São João - à época ainda lá se morava, e bem - nas imediações da rua General Olímpio da Silveira, com sua mãe viúva, Dona Hermínia. Antecipo-me para dizer que era ela uma exímia cozinheira, que é, aliás, uma outra característica das pessoas mais velhas, e também um atributo das descendentes de italianos. Não me lembro exatamente o que foi servido no jantar. No entanto, recordo-me que foi, dentre outros pratos, servida uma massa magnífica, destas que feitas em casa, possuem aroma e sabor que devem ser entronizados no altar dos manjares divinos, pois são superiores aos padrões comuns e inatingíveis por esses. Aliás, no curso de uma longa amizade, Dona Hermínia brindou-me com inesquecíveis pratos, todos eles valorizados pelo tempero da afeição e do carinho. No dia em que fui jantar pela primeira vez em sua casa, Alberto e eu tomamos o famoso ônibus Penha-Lapa, que cruzava São Paulo, ligando a zona Leste à zona Oeste. Longo caminho, mesmo tendo tomado a condução no centro da cidade, onde estávamos. Longo e sofrido trajeto. Por volta das dezoito horas o ônibus estava, como sempre, repleto de passageiros, que se espremiam e se cotovelavam sem trégua. Dentre esses os dois calouros de Direito, famintos e impacientes. Não é preciso dizer que nenhum dos dois possuía automóvel. Carro, à época, era privilégio de poucos. Assim que as apresentações foram feitas, Dona Hermínia virou-se para o filho e disse: "bonito moço", referindo-se a mim. Essa gentil e amável expressão, uma manifestação sincera e verdadeira da parte de uma senhora que demonstrou possuir esmerada sensibilidade e apurado senso estético, acompanha-nos há mais de quarenta anos. Realmente, Alberto, que na ocasião ficou visivelmente enciumado e já tomado por indisfarçável inveja do seu novo amigo, demorou a convidar-me para um segundo jantar. Por outro lado, no curso de todos esses anos, costuma dizer, assim que eu conto para alguém a memorável passagem, e eu a conto sempre que posso, que a mãe já naquela ocasião possuía grave deficiência visual... Esse episódio singelo, ingênuo adquiriu um especial significado para mim, pois o "bonito moço" na realidade passou a expressar a benquerença e o carinho com que Dona Hermínia brindou-me durante toda a vida. E, como é confortador, nos dias atuais, saber-se querido e benquisto por pessoas puras, desinteressadas, movidas exclusivamente por sentimentos nobres e elevados, como era o seu caso. Espero que Dona Hermínia, de onde estiver, e todos sabemos o local do seu repouso, continue a achar-me bonito, mesmo contrariando o filho Alberto.
segunda-feira, 31 de janeiro de 2011

O anjo gordo

Ao contrário do Anjo Torto de Drumond, o nosso Anjo Gordo jamais disse a alguém "vá ser gauche na vida". Sua figura física era de quem ajudava, amparava e protegia. Um gordo, no corpo e na alma. Não tenho memória nítida da sua infância. Lembro-me, no entanto, eu tinha oito anos, que a sua vinda foi motivo de grande júbilo para todos, pois minha mãe não tivera sucesso em duas ou três gravidezes anteriores. Eu que era filho único, mimado ao extremo, perdi a majestade. Devo ter apagado da memória fatos e sensações dos seus primeiros anos de vida. Ele era magro, muito magro, acreditem. Possuía um andador. Não parava. Andava, na verdade corria pela casa enfrentando e superando todos os obstáculos. Cadeiras, mesas, poltronas e sofás não conseguiam detê-lo. No entanto, uma mesa do centro da sala se tornou obstáculo intransponível. Possuía uma quina pontiaguda que o atingiu, ou melhor, foi atingida por ele. Um corte respeitável, acima do nariz, que pelo sangramento não permitia saber se a vista tinha sido lesada. Grande alvoroço, quase pânico. Lembro-me bem desse dia e da marca que ficou em sua testa. Ao contrário do que ocorreu comigo, o seu reduto não era a rua Stella e nem outra nenhuma. Não possuía turma de rua. Seus amigos mais chegados, se bem me lembro, eram nossos primos Celso e Marcos Monteiro Camargo. Notável sempre foi o seu ouvido musical. Herdou esse dom de nossa mãe. Com seis anos tocava piano de ouvido, utilizando apenas o dedão. Aliás, jamais tocou por música. Pela vida afora jamais tocou por música. Captava a melodia e de imediato a reproduzia. Formou-se em Direito em 1976, pela Católica, tendo presidido o Centro Acadêmico 22 de agosto. A advocacia, no entanto, nunca o atraiu. Trabalhou um tempo no escritório que nosso primo Alberto Viégas Mariz de Oliveira e eu instalamos na rua Nestor Pestana, em 1978. Já nessa época estava interessado por turismo e pelo sistema penitenciário. Não saberia dizer quais as razões que o levaram a dedicar-se com tanto empenho e durante toda a vida a uma atividade que nunca esteve nas cogitações e nos projetos de jovens do nosso meio. Sabemos que a sociedade encara a cadeia como a única resposta para o crime e que dentro da cultura repressiva dominante ela exige com ardor e até fanatismo que se reprima o crime, não atacando as suas causas em caráter preventivo, mas reprimindo-o por meio de prisão, de leis mais rigorosas, de ação policial efetiva, mesmo que esta atuação só ocorra após a prática delituosa. José Eduardo trabalhou na Fundação de Amparo ao Trabalhador Preso durante dezoito anos, em uma primeira fase. Com a mudança de um dos governos, ele foi dispensado juntamente com inúmeros outros dedicados funcionários da FUNAPE. Anos depois, mercê da sensibilidade do Secretário do Sistema Penitenciário, a Fundação recebeu novo impulso e meu irmão voltou a prestar sua colaboração, tendo falecido quando integrava os seus quadros. Essa Fundação ainda hoje desempenha funções relevantes dentro do sistema penitenciário de São Paulo. Aliás, seus objetivos são na verdade os únicos que se alcançados podem efetivamente preparar os detentos para, uma vez em liberdade, tornarem-se ou voltarem a ser elementos prestantes e terem condutas compatíveis com uma vida normal em sociedade. Os objetivos são os de dar trabalho e ensino aos presos, retirá-los da ociosidade, revelando-lhes aptidões e vocações até então desconhecidas, e com isso, despertar-lhes a autoestima. O trabalho com os presos nos deu a dimensão da bondade de José Eduardo. Pertencente a uma família constituída nos moldes burgueses, típica da classe média brasileira, educado dentro de princípios e valores absolutamente antagônicos àqueles que encontrou no meio prisional, não se poderia imaginar tivesse ele vocação para conviver com homens agressores exatamente agressores daqueles mesmos valores. Diria que além de sua aptidão e sensibilidade para trabalhar com presos, com grande afinco e mais do que tudo, com a crença de poder contribuir para a sua recuperação, meu irmão tinha outras "extravagâncias" não propriamente profissionais, mas ocupacionais. Durante algum tempo apitou jogos de futebol. Não era árbitro profissional. Estudou regras, uniformizou-se, possuía apito, enfim preparou-se para atuar e atuou em campos de várzea, em torneios entre faculdades, chegou até a apitar uma preliminar disputada no Estádio do Morumbi, entre equipes juvenis. Outra sua atividade, esta já de natureza profissional, foi o turismo. Chegou a possuir uma agência. Antes mesmo de abrir a agência, fazia viagens como guia para outras empresas. Fez dezenas de viagens muitas delas para o exterior, sendo sempre muito festejados pelos seus passageiros. O interessante é que conhecia muito pouco outras línguas, o que não impedia de desempenhar bem o seu papel. Na qualidade de guia turístico levou um grupo, do qual eu e minha mulher fizemos parte, para a União Soviética, nas Olimpíadas de 1980. Pois bem, ainda no Brasil recebeu um pedido de uma amiga, para que comprasse umas sapatilhas de balé, para uma sua filha. Em Moscou José Eduardo solicitou ao guia local, que falava português, para escrever em um papel indicações que lhe possibilitassem encontrar o endereço da loja. O bilhete estava escrito em russo e seria exibido por meu irmão a alguém que o ajudaria. E, dito e feito. Ele mostrou-o na Praça Vermelha a dois policiais. Estes ao lerem o escrito não contiveram uma estrondosa gargalhada. Para meu irmão uma interminável gargalhada dos dois russos que o olhavam com espanto, tendo contorções de riso. E ele, sem graça, limitava-se a dar pálidos sorrisos. Quando retornou ao hotel, após fazer a incômoda compra, soube da peça que o guia lhe pregara. Estava escrito no bilhete : "sou uma bailarina brasileira. Quero comprar sapatilhas na rua". Note-se que à época José Eduardo pesava uns 140 quilos.
segunda-feira, 17 de janeiro de 2011

Um apaixonado fiel

Uma das características mais acentuadas da personalidade de meu pai era a fidelidade às suas paixões. Era um apaixonado de entrega absoluta, sem subterfúgios, reservas ou freios que o inibissem. Situações e eventos desde os mais relevantes aos mais singelos eram por ele incorporados e integrados em sua memória, em suas afeições e saudades e passavam a ser lembrados e reverenciados, com frequência. Se acontecimentos os mais variados criavam vínculos inesquecíveis com meu pai, era no relacionamento pessoal que sua paixão aflorava de forma plena e a entrega era absoluta. As pessoas ingressavam no seu íntimo e ficavam cobertas pela sua generosidade e capacidade de compreender o ser humano, colocando-se pronto para proteger e amparar quem dele necessitasse. Mas, voltando às afeições de meu pai, lembro-me do carinho com que se referia a alguns dos automóveis que possuiu durante sua vida: um Chevrolet, um Nasch e um Ford Prefect. O Chevrolet, fabricado em algum ano da década de trinta, foi comprado por meu pai no final dos anos quarenta. Lembro-me que como auxiliar da partida havia uma manivela colocada na frente do carro e que era manualmente acionada, todas as vezes que o motor de arranque não funcionava. E, não eram poucas as vezes que isso ocorria. O Prefect vivia no mecânico. Era surpreendentemente duro, péssimo molejo, suspensão praticamente inexistente. Por tal razão, papai brincava que fazia questão de colocar sua sogra, minha avó, no banco de trás, para que quando passasse por buracos ela batesse a cabeça no teto do carro. Era mesmo um automóvel próprio para se transportar a sogra no banco de trás. O Nasch recorda-me as frequentes viagens que fazíamos a Santos onde moravam meus tios Maria Benedita (Bina) e Gil Ribeiro de Mendonça. Na volta, era inevitável que ao subir a serra o velho carro fervesse. E como fervia. Minha mãe, precavida, levava uma pequena panela, na verdade era um pequeno penico, que possuía dupla serventia, a natural e a de saciar o sedento carro. A água era encontrada nas diversas bicas existentes na Anchieta. No entanto, mesmo com o carro esquentando inúmeras vezes, a panela-penico era pouco usada. Ela servia para uma ou duas enchidas do enorme radiador. Ocorria que, acometido de grande irritação, meu pai arremessava a dita cuja, precipício abaixo e lá ficávamos nós sem panela, sem água e sem carro, pelo menos até que ele esfriasse o suficiente. Esse fato ocorria em quase todas as viagens. Haja panela !!! Outro fato repetido nas viagens a Santos era a advertência que papai fazia quando estávamos para entrar no túnel da serra: "abaixem a cabeça". Nossas queridas Juraci e Judith, que se revezavam como empregadas de casa, obedeciam ao patrão e permaneciam de cabeça baixa até a que a contra ordem fosse dada. A paixão para papai tinha um componente indissociável que era à fidelidade. Jamais abandonava ou trocava de paixões, incorporava as novas e conservava as antigas. Viúvo se mostrou marido amantíssimo, mas manteve viva e reverenciada a memória de Carmen Lúcia, minha mãe. Lecionou por décadas nas Faculdades de Direito de Bauru e na Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, da qual foi Professor Titular de Direito Processual Civil, defendendo a tese "Substituição Processual". Ainda no magistério foi diretor da Faculdade de Direito das Faculdades Metropolitanas Unidas. No entanto, foi até o fim dos seus dias um devoto das Arcadas e do Centro Acadêmico Onze de Agosto. Um dos fatos dos quais mais se orgulhava era o de ter pertencido à turma de 1946, para ele "gloriosa". Propagava aos quatro ventos ter sido ela a "melhor" turma que já passara pela quase bicentenária Faculdade. Outra prova da afeição que papai dedicava aos acontecimentos, instituições e pessoas que interferiram na sua vida. Apaixonado pela magistratura, a advocacia não abandonava seu espírito, suas recordações e até as suas preocupações. Vestia a toca no corpo e envergava a beca na alma. Acompanhei de perto a sua gestão como Presidente da Associação dos Advogados de São Paulo, que constituiu sem dúvida a sua razão maior de vaidade, na sua carreira de advogado. Nessa época tive uma preciosa lição de desprendimento e de preocupação para com os interesses da advocacia. A ASSP era dirigida por uma gama de abnegados, que em detrimento de suas bancas e muitas vezes da própria família a geriam com invulgar dedicação. Nessa época a grande entidade não havia ainda atingido a sua pujança atual. As dificuldades materiais colocavam em permanente risco o seu futuro. Lembro-me que a compra do imóvel de sua sede no Largo de São Francisco, quando papai ocupava um cargo em sua diretoria, pode se dar em razão dos avais fornecidos pelos seus diretores. Posteriormente, já com outros diretores, o fato se repetiria quando da aquisição da sede da Francisco Cruz. No curso de sua vida meu pai trabalhou em confortáveis escritórios e gabinetes, mas tinha um apreço especial pelo acanhado escritório da Praça da Sé, n. 399. Lá eu comecei a trabalhar em 1961 ou 62. Papai havia saído do escritório de meu tio José Augusto Mariz de Oliveira, com quem trabalhara desde os quinze anos, para instalar-se no 5º andar da Praça da Sé, junto com Flávio de Freitas Gouveia, em 1957. Formaram a dupla "Macaco" e "Coelho", como eram conhecidos desde a época de Faculdade. O palco de suas apresentações diárias, era o Fórum - então instalado no velho prédio do Tribunal de Justiça - Eu deliciava-me com as histórias que os advogados e funcionários, que com eles conviveram, contavam a respeito das brincadeiras, gozações futebolísticas, provocações que norteavam as relações forenses de então. O escritório da Praça da Sé, ainda lhe era muito caro, pois o Professor José Frederico Marques, o inexcedível processualista e penalista, ao aposentar-se como Desembargador, foi para lá exercer a advocacia, em sociedade com papai. Posteriormente, nós, eu já com ele trabalhava, mudamos para o 6º andar, onde estava instalado o escritório do Dr. Henri Couri Aidar e de seu filho Carlos Miguel. A extraordinária capacidade de envolvimento emocional de meu pai, infelizmente, também constituía uma fonte de sofrimento e de amargura. Embora homem experiente e dotado de extraordinária inteligência, em não poucas ocasiões chegava a mostrar boa fé, crença e certa ingenuidade na reciprocidade de uma amizade, que o impediam de enxergar a realidade com clareza. Esta, como sabemos, não raras vezes é marcada pela deslealdade, pela ingratidão, pela supremacia dos interesses e pelo egoísmo. Ao percebê-la meu pai era tomado de grande amargura. Exatamente porque a sua entrega às amizades era total, não conseguia superar a decepção, para encarar com pragmatismo e mesmo com cinismo aquilo que lhe era inaceitável no ser humano. Dentre outras de suas características, esta sua dificuldade em assimilar os desgostos foi plenamente herdada por mim.
segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

A importância das ruas

Não é sem razão que a rua ocupa lugar de destaque não só nas lembranças como na formação de todos aqueles que, sem serem seus moradores, as frequentaram e as frequentam com alguma assiduidade. Eu me refiro à rua como entidade concreta, com existência física, palpável, detectável, e ao mesmo tempo entidade abstrata, pois, impessoal, atemporal e sem localização certa - qualquer rua - que pairando acima dos sujeitos, proporciona um rico aprendizado da vida e dos homens. Eu me refiro à voz das ruas, que em verdade é a voz do mundo, pelo menos do mundo que está ao nosso alcance. Voz que nos ensina nos coloca diante de uma realidade sem máscara, sem subterfúgio, sem intermediários. Rua que se contrapõe à clausura a que se submete o homem moderno. Clausura representada pelo automóvel e pelas grades, que retiraram o homem das ruas. Será que perdemos as ruas? Na rua aprende-se a sair de si e a olhar ao redor. Do interior para o exterior. Da imagem para a realidade. Lembro-me de haver lido que a obra "Libertinagem" revelou uma transformação na poesia de Manuel Bandeira, em razão da vivência do poeta na Rua do Curvelo, no morro do mesmo nome, localizado no Rio de Janeiro. Segundo seu amigo, o poeta Ribeiro Couto, essa rua mostrou a Bandeira "aquilo que a leitura dos grandes livros da humanidade não pode substituir: a rua". Ainda, a respeito, a escritora Lúcia Miguel Pereira disse que o referido livro representou para o poeta a vitória da "vida exterior sobre a interior". E, o próprio Bandeira confirmou que a Rua do Curvelo trouxe para a sua poesia "o elemento de humildade cotidiana". É exatamente essa libertação dos grilhões interiores que a rua proporciona, por meio do conhecimento da "vida circundante". Retira-nos do casulo do nosso interior, nos torna mais simples, humildes e solidários. E, evidentemente, mais sábios. Trata-se da sabedoria haurida do convívio democrático das ruas. Nos bares, nas padarias, nos pontos de espera das conduções, dentro dos táxis, no jornaleiro, no engraxate, nos supermercados. É claro que para se aproveitar a sabedoria das ruas é preciso conversar, ouvir, conviver com as pessoas. É imprescindível ter vontade de se comunicar, trocar impressões, afetos, interagir. Quem estiver ensimesmado, não gostar de gente, e só de si, quem enfim não se sentir integrante dessa fascinante raça humana não aproveitará a rua. Quem na literatura brasileira melhor retratou a rua foi João do Rio, pseudônimo de João Paulo Alberto Coelho Barreto, jornalista, literato, membro da Academia Brasileira de Letras, e festejado cronista carioca do início do século passado. Seu livro "A Alma Encantadora das Ruas" é uma coletânea de crônicas que abordam inúmeros aspectos da vida extraídos das ruas, dos seus acontecimentos, dos personagens que por elas transitam, dos dramas humanos que as têm como palco, das particularidades de várias delas, enfim é um extraordinário repositório da vida vivida nas ruas. Eu, da minha parte, posso garantir tê-las curtido e com elas muito aprendido. Quando me recordo das ruas de São Paulo e por elas ocasionalmente passo, sinto um misto de frustração, melancolia e vacilações de memória. Frustro-me porque as ruas visitadas não são mais as minhas ruas. Fico melancólico pelas recordações que me vem à mente, acompanhadas por uma saudade terna, aconchegante que aquece a alma. E, a memória passa a me preocupar, porque não consigo reproduzir mentalmente as ruas tal como eram no passado e que não guardam identidade com as do presente. O escritor Antônio de Alcântara Machado falando de São Paulo afirmou que "aqui as casas vivem menos do que os homens e se afastam para alargar as ruas".
segunda-feira, 6 de dezembro de 2010

Guardanapo democrático

Em uma de suas crônicas, João do Rio disse que o guardanapo do garçom carioca era um guardanapo democrático. O nome da crônica é "O guardanapo Carioca". O grande cronista das cenas cariocas do início do século passado dessa feita fixou-se no guardanapo, que, no seu dizer, é o "guarda de honra da alimentação das casas de pasto". Com sua extraordinária verve, Paulo Barreto (João do Rio) conseguiu, mais uma vez, escrever sobre um fato insignificante, que não mereceria a atenção de um jornalista, um literato ou mesmo de um cronista. Dizer o que a respeito de um pedaço de pano ou de papel, cuja utilidade limita-se à higiene dos lábios? Por vezes limpa uma mancha na gola do paletó, na gravata. Raramente, mas acontece, sua utilidade sofre uns desvios e ele é usado para dar brilho aos sapatos do freguês; limpar a boca do garçom que furtou um naco do prato do cliente, ou se dá a ele qualquer outra serventia menos normal. No entanto, ao ler João do Rio passei a entender o tema guardanapo como perfeitamente adequado a uma crônica. O escritor, em um restaurante carioca, dialoga com um guardanapo, que procura demonstrar-lhe a sua natureza democrática e o relevante papel social que desempenha. Realmente, o guardanapo da crônica é democrático e se considera um democrata, pois ele é único. Ou melhor, ele é o único que serve o dia todo a todos. E esclarece ser o único porque seria uma loucura, com o preço das lavanderias, ter um guardanapo para cada cliente. Por tais razões acha-se "incomparável, o incomparável guardanapo carioca". Embora distante no tempo, cabe um veemente protesto à afirmação do guardanapo de João do Rio, no sentido de ser ele incomparável. Não, ele não o é. Eu conheci um igualmente democrático. E, era paulista. Paulista de quatrocentos anos. Habitava a Rua Benjamin Constant, especificamente um restaurante onde se comia sardinha frita e se tomava cerveja casco azul, magistralmente gelada em uma geladeira antiga, ou era um frízer? Não me lembro, de aço, ou era de alumino? Falhas de memória à parte, a sardinha era estupenda. Daquelas portuguesas de autenticidade induvidosa. Será? Pouco importa. Eram dignas de ininterruptas homenagens, por parte dos fregueses que as comiam sem intervalos. Assim, as homenageavam. Em verdade, entendo que o guardanapo paulista era mais democrático do que o carioca. Ele não dependia do garçom. Não era por ele levado de mesa em mesa. Passava de mesa em mesa pelas mãos do povo. O povo era os fregueses, que exerciam o poder soberano sobre ele, sem intermediação do garçom. Democracia direta. Cada um que o usava, passava ao outro. E, assim havia plena isonomia na sua utilização. Todo poder era do povo e para o povo. Esqueci de dizer que as sardinhas eram comidas com a mão, fato que mais realçava a importância desse indispensável instrumento de higiene...
segunda-feira, 22 de novembro de 2010

Feijoada : comida dos escravos ?

Sempre ouvi dizer que a nossa feijoada, um dos símbolos da cozinha pátria, era um prato composto por restos de comida aproveitados por escravos. Se tal versão fosse verdadeira nenhuma, rigorosamente nenhuma, importância teria. Obviamente o fato não retiraria a sua condição de grande iguaria. Apenas demonstraria que dos sofridos negros não haviam retirado a inata aptidão para a refinada arte da culinária. Pois bem, mas essa versão fruto da nossa baixa estima, reflexo da arraigada mania de subestimar, minimizar e desvalorizar o que é nosso não encontra nenhuma sustentação histórica. Pura criação da elite ou da pseuda elite anti verde amarela. Aliás, nunca se raciocinou a respeito dessa lenda que liga a feijoada aos negros, especificamente aos restos de suas refeições. Aceitou-se a versão não como lenda mas como verdade, sem se observar a sua impossibilidade material. Como se sabe a feijoada é composta de feijão preto e de uma grande variedade de carnes. Ora, é difícil se crer que sobrasse comida suficiente para a elaboração de um outro prato. Os escravos comiam feijão é bem verdade, mas feijão bichado. Claro que havia variações alimentares de região para região do país, assim como de proprietário para proprietário, dependendo do seu grau de humanidade. Em verdade, como bem realçou Gabriel Bolaffi no livro "A Saga da Comida", a crença de que a feijoada fosse um prato de escravos é inverossímel. Segundo ele, em primeiro lugar não há registro nesse sentido em nenhuma obra sobre a Colônia ou sobre o Império. Por outro lado, é improvável que nas fazendas, boa parte delas contando com várias dezenas de escravos, houvesse condições de se fornecer carnes em quantidade suficiente para o preparo da feijoada que a todos alimentasse. Diz o autor: "imagine quanto lombo e quantos pernis a casa-grande teria de consumir para que duas orelhas,quatro patas, um focinho e um rabo, alimentassem tanto escravo. Nem que fosse uma feijoada muito rala." O mesmo autor acredita que a feijoada tenha surgido como um prato da preferência dos operários e dos trabalhadores mais pobres dos centros urbanos, como São Paulo e Rio de Janeiro. Ainda hoje, em um dia específico da semana, quarta feira, comerciários, bancários, industriários, funcionários públicos e tantos outros trabalhadores tem nos bares e restaurantes mais populares à sua disposição o saboroso prato. No entanto, não são apenas eles que cultivam o hábito da feijoada, pois as classes mais privilegiadas também o fazem, geralmente aos sábados. Não se esqueça que ela constitui o prato símbolo da nossa culinária, e como tal é um instrumento de relacionamento, de união, de comemoração, enfim um símbolo de cordialidade, de brasilidade. Não há uma explicação razoável, racional para a existência dessa idéia quanto à origem da feijoada. Pode-se no entanto atribui-la a mania nacional de desprestigiar os nossos hábitos, costumes, modo de ser, nossa cultura enfim. Relegando o nosso prato símbolo à comida de escravos se pretendeu mostrar que até na culinária a nossa capacidade é reduzida, atrofiada, minguada, pois ele era composto de restos de comida indesejada pelas classes dominantes e como tal poderia ser cedida aos escravos. E, falando em feijoada não se pode esquecer da brasileiríssima caipirinha. Também ela e a sua matéria prima, a não menos verde e amarela cachaça, sempre receberam das elites um inescondível desprezo. O desprezo era às claras, mas às escondidas elas eram ingeridas, pelos componentes das elites envergonhadas. Só depois de muitos séculos, a cachaça passou a ter algum espaço e isso porque passou a ser apreciada por estrangeiros. Hoje se importa cachaça em volumes razoáveis. Precisou o estrangeiro gostar para que nos, embora ainda timidamente, assumíssemos a nossa aguardente. Resta saber quando nos assumiremos como nação orgulhosa de si.
segunda-feira, 8 de novembro de 2010

Não é de hoje

É profunda e está arraigada em meu íntimo, a implicância pelo uso do inglês nas conversas e escritos correntes, mas principalmente por inúmeros setores profissionais, em nosso país. Eu não sei exatamente quem são os responsáveis por uma atividade que usa e abusa de anglicismos. Aliás, não se trata de anglicismo. As palavras não derivam do inglês, pois elas são o próprio inglês. A atividade a que me refiro é a de dar nome a produtos; a lojas comerciais; é a de redigir folhetos comerciais; escrever em cartazes e em faixas de propaganda; escrever em caminhões de entrega; escrever publicidades para televisão ou colocar o fundo musical dessas publicidades, dentre outros abusos. Até em uma cidade do interior, foram colocadas nas ruas em vez de Pare o inglês STOP, talvez para mostrar tratar-se de um local frequentado por turistas... Presumo que essa ampla atividade esteja afeta ao setor publicitário. Este setor abrange desde as grandes agências, até aqueles profissionais que trabalham para as micro empresas. A adoção de nomes próprios derivados do inglês ou mesmo nomes de batismo tipicamente ingleses ou americanos virou uma moda. Basta que se verifique o nome de inúmeros jogadores de futebol da atualidade: richardson; welington; robson; cleverson e tantos outros. Merecem figurar na escrita em minúsculo, não pelos seus portadores ou por seus pais, os responsáveis, mas, como protesto. Bobagem? Sei lá, mas deixa assim. Não atino com as razões desse estrangeirismo batismal. O que será que leva os pais a essa opção macaquiana, desprovida de qualquer sentido? Será que os filhos por carregarem nome estrangeiro estarão fadados ao sucesso na vida? É isso que pensam? Não sei. Sei sim que no caso específico dos jogadores de futebol o sucesso lhes advém dos pés e não do nome. A utilização de palavras estrangeiras, na verdade o inglês, sempre o inglês, não se resume àquelas que não tem correspondência em português ou mesmo tendo, estão elas de tal maneira vinculadas ao seu significado que traduzi-las seria alterá-lo. Não, esse costume ultrapassa aquelas hipóteses. E, esse mau hábito não é de hoje, basta se recorrer à música popular para se verificar que já nas décadas de vinte e trinta o uso do inglês era moda. Duas músicas extraordinárias contendo um fino humor ironizam o péssimo hábito. Lamartine Babo compôs e Joel de Almeida gravou "Canção para Inglês Ver". E Carmem Miranda "Good-Bye", composta por Assis Valente. A música de Lamartine é hilária, ironiza o uso de expressões estrangeiras misturando-as com palavras e expressões nacionais que nada tem a ver entre si. As frases da composição não guardam nenhum nexo e nenhuma lógica umas com as outras. Representam um verdadeiro non sense. A fina inteligência do compositor, a sua aguda percepção da realidade e seu refinado senso de humor mostram que a utilização desnecessária da língua estrangeira é responsável por uma comunicação confusa e desarticulada entre as pessoas e não expressa com fidelidade o pensamento, a mensagem que se quer transmitir. A outra música, cantada com graça e expressividade por Carmen Miranda, mostra que especialmente os incultos são os que se servem das palavras em inglês. Assim, o mulato é ironizado na música, pois, exatamente para mostrar cultura que não possui, usa expressões inglesas e as emprega mal. A música o aconselha a deixar "a mania do inglês" pois "fica tão feio para você mulato frajola que nunca frequentou as aulas da escola". Carmen Miranda canta não ser mais "boa noite nem bom dia e sim good morning ou good night". No entanto, afirma que "ensinaremos cantando a todo mundo o b a ba, o b e be e o b i bi assumindo um compromisso com a nossa língua antes que a vida se vá". Nos dias de hoje há, com relação à composição de Assis Valente, "Good-Bye", uma acentuada diferença. Não é mais o "mulato frajola", o homem inculto, mas sim os da elite que fazem questão de substituir o português pelo inglês, numa triste demonstração de falta de alta estima nacional, pelo desprezo em relação ao que de mais expressivo, significativo e identificador um povo possui, que é a sua própria língua. Há, também, uma música de Noel Rosa, chamada "Não tem Tradução", em que o poeta da Vila faz uma crítica, nos versos finais, a agressão contra a nossa língua representada pelo uso do inglês. Afirma que as "rimas do samba não são I love You" e que "esse negócio de alô, alô boy e alô, alô Jonny só pode ser conversa de telefone". O jornalista, escritor e teatrólogo Nelson Rodrigues, grande frasista que foi, dizia que nós brasileiros somos "uns narcisos às avessas. Cuspimos na própria imagem." Um antropólogo e estudioso da questão do negro no Brasil, cujo nome não me recordo, afirmou que a adoção do padrão estético europeu representava um "fenômeno patológico da psicologia brasileira." Correta observação. Esta nossa patológica tendência de incorporar padrões estrangeiros perdura nos dias de hoje. Antes o país tinha como paradigma a França, hoje são os Estados Unidos. O país e o continente mudaram, mas permaneceu a incompressível e penosa doença.
segunda-feira, 18 de outubro de 2010

A amada rebelde

Seu amor à vida era extraordinário. Doente cardíaca desde os dezoito anos, jamais se considerou incapacitada para atividades que normalmente não eram desempenhadas por cardíacos, algumas até especialmente proibidas pelos médicos. Estamos falando dos anos quarenta, cinquenta, época de escassos recursos cardiológicos. Ela possuía a válvula mitral obstruída, em razão de uma infecção das amídalas. Consta das crônicas familiares que minha avó, viúva e mãe de três filhos, não permitiu que ela fosse operada. A infecção causou-lhe uma estenose mitral, que, no entanto, não a impedia de fazer nada, absolutamente nada. Tocava com perfeição violão e cantava, cantava muito bem. Meu irmão José Eduardo herdou o dom musical de mamãe. Eu, ao contrário, recebi o legado da desafinação de meu pai. Mamãe não se conformava com a minha limitação musical. Insistiu com o violão, com a sanfona e por fim como derradeira tentativa, tentou ensinar-me pandeiro. Tentativa também frustrada. Os médicos lhe impuseram, no correr dos anos, várias proibições: tocar sanfona; guiar automóvel durante muito tempo; subir escada com frequência, enfim deveria evitar maiores esforços. Até bala de coco ela ficou impedida de fazer. E como eram maravilhosas as suas balas, tanto as de coco quanto as de café. Para quem não sabe, há esforço físico na confecção de balas de coco. Quando o doce fica pronto e no ponto, deve-se esticar ao máximo a massa para que ela se transforme em tiras, que depois serão cortadas para surgirem as balas. Ela teimava e não cumpria os preceitos proibitórios. Todos nós em casa, especialmente duas irmãs, Juracy e Judite, que durante anos e anos se revezaram trabalhando conosco, éramos seus cúmplices, co-autores de suas peraltices. Até o engraxate de uma barbearia de nossa rua colaborava com as extravagâncias de minha mãe. Ele entrava nos botequins das imediações e como se fosse para o seu consumo, comprava torresmo e sardinha frita, "iguarias" que ela adorava. Percebe-se que também em relação à alimentação ela não tinha nenhum cuidado. Uma ocasião mandou o sofá da sala reformar. Ao devolvê-lo, o tapeceiro revelou uma descoberta, para ele muito preocupante: ao trocar o tecido encontrara uma dezena de pílulas de remédios, enfiados nas dobras do sofá, que ele supunha terem sido escondidas por mim. Mamãe recebeu e agradeceu a notícia com simulada preocupação, falou que adotaria providências e, na verdade, ficou exultante, pois a sua "arte", na verdade a sua rebeldia contra as prescrições médicas, não foi e nem seria descoberta, porque surgira o "culpado". Da sua amada figura, não posso desassociar dois objetos: um violão e um automóvel da marca Nasch. O violão a acompanhou por toda a vida. Embora tocasse piano e acordeão, o violão foi o instrumento de sua preferência. Havia entre os dois, mamãe e o violão, uma permanente vinculação e as pessoas logo faziam uma associação de ideias: como vai sua mãe? Sempre alegre? Tocando muito violão? E, não raras vezes, diziam terem visto ou ouvido um violão e lembram-se dela. A identidade, na verdade, era a alegria que ela irradiava quando solicitada a tocar o instrumento. Violão é um instrumento alegre, tal como o pandeiro, a sanfona, a cuíca, o reco-reco. Todos instrumentos genuinamente representativos da música brasileira, e que contribuem para aproximar pessoas, constituir amizades, fazer nascer afetos. Em torno de um violão confraterniza-se, solidariza-se, ama-se. O velho Nasch, um carro enorme, preto, com direção vermelha, estofado de couro e muito espaçoso era dirigido por ela em uma época escassa de mulheres ao volante. Não se limitava a utilizar o carro para seu transporte. Dava carona às amigas do bairro, onde o automóvel ainda era privilégio de poucos. Não raras vezes levava pessoas a médicos ou a outros locais de acesso urgente e difícil. Houve uma ocasião, memorável para todos os participantes, que minha mãe conduziu-nos a um campo de futebol localizado no Ibirapuera. Na verdade ela levou o time inteiro, onze meninos que o integravam. E mais, junto aos pés da motorista estava o material completo da equipe, incluindo a bola. Durante toda a sua vida minha mãe foi rebelde às prescrições médicas. Pouco tempo antes de falecer fez uma viagem à Belo Horizonte de automóvel, para um casamento. Foi com minha mulher e com ela revezou-se na direção. Achamos estranho que o médico, querido amigo Geraldo Rocha Melo, houvesse permitido a longa viagem de carro. No entanto, ela garantira que estava autorizada a viajar. Indagado, o médico disse que em face da sua insistência minha mãe poderia viajar desde que fosse e voltasse de avião. Mais uma vez ela se rebelara e nos enganara. Sua partida definitiva guardou coerência com a sua vida. Sempre viveu intensamente e morreu vivendo. Com efeito, faleceu quando estava jantando em um restaurante de Montevideo onde fora com parentes. Não sabemos se desta vez ela nos enganou ou não, pois não conferimos.
segunda-feira, 27 de setembro de 2010

As nossas crianças e as outras

Dias atrás, estava observando, durante uma reunião familiar, o carinho, a ternura, as preocupações que cercam as crianças, aquelas que já integram a grei e às que vão chegando. Então passei a meditar na absurda diferença existente entre as nossas crianças e as outras. As outras são as pobres, as desvalidas, as carentes de tudo, a começar de uma família estruturada, passando por alimentação, saúde, estudo, lazer e terminando com o afeto, os cuidados e as atenções que toda criança merece e que lhe preserva a inocência e lhe incute auto estima e estima pelos outros. Verdadeira vergonha nacional, as crianças carentes e as abandonadas denotam a insensibilidade de uma parte considerável de nossa sociedade. Com certeza a questão da criança é o reflexo mais cruel do trágico desequilíbrio social existente no país. Há alguns anos, um motorista, que com extraordinária perícia evitou atropelar um menino de rua, exclamou em seguida: "não há nada melhor do que criança, o Sr. não acha?" Pois é, eu acho, no entanto, parece que nem todos compartilham de tal opinião. A existência por si só de uma infância abandonada demonstra o pouco caso, o egoísmo, a indiferença de governos e da sociedade como um todo. A questão não se circunscreve, no entanto, ao abandono material. Falta, na verdade, o afeto, o amor pela criança alheia, que dedicamos às nossas. Não me refiro, evidentemente, na mesma graduação e intensidade, falo sim, do afeto, do amor que um ser humano deve a outro e se exterioriza na forma de um afago, de um carinho, de uma atenção que seja. A respeito, lembro-me de um episódio que muito me marcou. Perto de casa, diariamente, a menina se postava no mesmo farol. Vendia sempre os mesmos doces, enquanto carregava no colo o pequeno irmão. Minha mulher, também, diariamente, a cumprimentava e ambas conversavam durante o tempo em que o farol permanecia vermelho. Esses pouco instantes diários despertaram a afeição da motorista e a confiança da menina. Quando se encontravam, ela abria um largo e simpático sorriso, como querendo demonstrar a sua alegria por estar sendo alvo do interesse e da atenção de alguém. Parece pouco diante do muito a fazer, mas é muito diante do pouco que se tem feito. As crianças das classes menos favorecidas, desde sempre, estão crescendo mal: desnutridas, abandonadas, sem afeto, sem saúde, sem educação, exploradas e convivendo com a violência dentro e fora do lar, quando há lar. Cresceram assim diante dos nossos olhos, e nós nada fizemos, a não ser clamar por punição para aqueles que se tornaram trombadinhas e precoces criminosos. A verdade é que a sociedade, de um modo geral, só se preocupa com o menor porque ele está assaltando. Estivesse ele quieto debaixo das pontes e dos viadutos amargando as suas carências e os seus sofrimentos, continuariam esquecidos e excluídos. E, essa preocupação com os menores que cometem infrações, ao invés de ser direcionada para as causas dessa conduta, procurando eliminá-las, limita-se à grita generalizada por punição, por castigo, de preferência por uma ação que os coloque longe dos nossos olhos. Lembro-me que há alguns anos os jornais deram destaque à notícia de que a Praça da Sé estava voltando a ser o local aprazível de outrora. A providência tomada para isso foi afastar do marco zero da cidade todas as crianças que por lá perambulavam. As crianças estavam fora e isso bastava para que a Praça voltasse a ser nossa. Ela estava salva. Pouco importava a permanência dos marreteiros; dos pregadores da bíblia; dos comedores de faca e fogo; dos ciganos, especuladores do futuro; dos poetas repentistas; dos vendedores das saudáveis guloseimas. Até os trombadões permaneceram. Aliás, deve ter sido mais fácil remover os menores do que deter os parrudos trombadões. Apesar da freqüência garantida de todos esses habitues, o problema da Praça estava resolvido, pois os incômodos menores estavam fora. Recorda-se que em determinada ocasião uma competente e zelosa autoridade embarcou dezenas de menores em vários ônibus e os levou para fora das fronteiras do Estado. No Rio de Janeiro, a providência adotada teve caráter definitivo: as crianças foram mortas na Candelária. Em Belo Horizonte, também há algum tempo, uma operação militar foi montada para tirar das ruas cerca de quinhentos menores. A imprensa exibiu fotos de crianças de até quatro anos, muitas com chupeta na boca, sendo colocadas em camburões pelos soldados da milícia mineira, que souberam respeitar as crianças deixando-as com as suas chupetas... Parece que atualmente o objetivo de riscar as crianças carentes dos mapas urbanos já não está mais nos planos dos defensores das nossas urbes e da nossa incolumidade física. Chegou-se à conclusão que essa é uma providência inócua. As crianças retiradas daqui ou dali, passam a habitar lá ou acolá. Saem da Sé, vão para a Praça Ramos ou para a Praça República. Mortas na Candelária, renascem em Copacabana. Presas em Belo Horizonte, ressurgem em Confins. Lamentavelmente, em substituição a essas providências migratórias, nada absolutamente nada se tem feito, salvo uma ou outra ação isolada. Não há uma grande mobilização social, um plano governamental e nem mesmo promessas são ouvidas, sendo certo que as crianças não são mais lembradas sequer como instrumento de demagogia e de mentiras eleitorais.
segunda-feira, 13 de setembro de 2010

Uma turma solidária

A Faculdade de Direito do Largo de São Francisco sempre exerceu sobre mim um grande fascínio. Não me formei na velha Academia. Barrou-me um vestibular para o qual eu estava preparado. Minha letra impediu a minha aprovação. Acredito que com um pouco de boa vontade o examinador não teria colocado sobre a minha dissertação de português um implacável carimbo: ilegível. Soube da fatídica carimbada pelo saudoso amigo Fued Temer, eminente advogado e professor do Largo. Mais benevolente em face de uma letra talvez melhor cuidada, o examinador da Faculdade Paulista de Direito da Pontifícia Universidade de São Paulo aprovou-me na prova de português como o fizeram os demais examinadores. A letra nas outras provas não foi levada em conta, pois os outros exames foram orais... Tive na Católica uma intensa vida universitária marcada por memoráveis atividades acadêmicas e por uma incansável militância política. Construí amizades imorredouras; conheci minha mulher; aprendi Direito com inesquecíveis mestres; enfim nenhuma queixa do velho convento da Rua Monte Alegre, onde está localizada a Faculdade, ao contrário, afeto e saudade são os sentimentos que me unem à querida Católica. No entanto, embora lá não tenha estudado, minha afeição pela Faculdade do Largo de São Francisco é a mesma, caso lá tivesse me formado. Note-se que a Academia não é daqueles que lá se formaram. Não, ela é de todos, é um símbolo, adquiriu um caráter universal. O bacharel em direito está impregnado do espírito das arcadas. Liberdade, culto do espírito, solidariedade, humanismo, poesia, democracia, amor ao próximo, justiça social, são valores cultuados e cultivados desde sua fundação. A alma das arcadas é a nossa alma, os ideais são os acalentados por seus estudantes por quase dois séculos são os nossos ideais. Eu também estou ligado à velha Academia por hereditariedade. Eu nasci quando papai cursava o quarto ano. Assim, no final de 1946, quando ele se formou, eu tinha um ano e meio, e pude assistir à sua missa de formatura. Em determinada ocasião papai me levou ao Centro Acadêmico Onze de Agosto. Eu ainda não fizera um ano. Os estudantes entretidos com a sinuca, o carteado, o jogo de dados e outras atividades não menos nobres e dignificantes, pararam para recepcionar pai e filho. Segundo consta, papai confiante no espírito paternal de seus colegas, deixou-me passar de colo em colo, até que me perdeu de vista, fato que mobilizou a estudantada, que pressurosa passou a procurar-me. Logo me encontram nada menos do que dentro da geladeira. Com o passar dos anos, dois estudantes da época reivindicavam, orgulhosos, a autoria da façanha: Anacleto Raposa Holanda e Kleber de Menezes Dória. Um tachava o outro de mentiroso, usurpador do memorável feito. Outro fato merece ser mencionado. Os estudantes de então, numa demonstração de solidariedade e preocupação com a infância, todas as noites após obrigatórias tertúlias etílicas no bar do Onze de Agosto, postavam-se sob a janela de um jovem e inexperiente casal residente na Rua do Riachuelo, para recordar-lhes o dever de alimentar o recém nascido, filho do casal. O alerta era candente, feito na forma de uma ordem impostergável. "Macacão acorda para dar leite para o macaquinho". A repetição da ordem provocava dois efeitos: a minha pronta amamentação e a pronta reação do pai do "macacão", meu avô, vez ou outra chamado de "macaco velho", que saía à janela e ameaçava de morte os solidários e preocupados acadêmicos.
segunda-feira, 23 de agosto de 2010

A cachaça salvadora

O caso que seria julgado era dativo. Mais um dentre os inúmeros para os quais fui nomeado durante os primeiros anos de exercício profissional. Quero consignar a minha gratidão ao instituto da advocacia dativa, dirigida à defesa de réus pobres, que era utilizada pelos juízes não só do Tribunal do Júri, como das varas singulares. O número de Procuradores do Estado, lotados na procuradoria de Assistência Judiciária, era insuficiente para o atendimento da grande quantidade de acusados carentes. Mercê dessas nomeações eu e todos os advogados da minha e das gerações anteriores, tiveram a possibilidade de desenvolver-se na advocacia criminal, especialmente na Tribuna do Júri. Por outro lado, nós pudemos entrar em contato com um Brasil que mal ou que nada conhecíamos. Refiro-me ao Brasil da pobreza, do analfabetismo, das carências de toda ordem. Soubemos que os valores que nos norteavam e ainda norteiam não são os valores comuns a todos os brasileiros. Na defesa de migrantes, que constituíam a maioria dos defendidos, tomamos ciência da existência de outros valores, por eles seguidos à risca. A ofensa a um desses valores justificava pronta e vigorosa reação de conseqüências imprevisíveis ou até previsíveis. Lembro-me, como exemplo, do acusado de alcunha "cabeça de porco" que assassinara a vítima porque esta lhe dissera ter o "corpo fechado". Como o acusado duvidava desse atributo corporal da vítima, esta para evitar maiores discussões que poderiam terminar em tragédia, fez um repto: "pode atirar, eu provarei que tenho o corpo fechado". A crença da vítima era real, na blindagem de seu corpo. Bastou o desafio para que o cético réu acionasse o seu revólver e dissipasse a dúvida existente. No entanto, o caso que eu quero narrar não diz respeito à motivação do delito, mas a um aspecto levantado durante o julgamento, e relacionado às condições econômicas dos protagonistas. Eu fora nomeado defensor dativo de um devedor inadimplente, que matara a vítima credora. O notável e saudoso promotor Victor Lopes Teixeira, um dos acusadores mais temidos do Primeiro Tribunal do Júri, esperou a minha fala para lançar um argumento que lhe soava decisivo para a condenação. Passou a dar ênfase a um fato que, no seu entender, demonstrava que o acusado possuía boas condições financeiras, contrapondo-se à minha argumentação, no sentido de que o réu era de extrema pobreza. Realmente, procurei mostrar as dificuldades pelas quais passava o acusado, e que colocavam em risco a sua e a sobrevivência de sua família, fato este que impedia o pagamento da dívida. A vítima não convencida da má situação econômica do acusado, em uma das vezes que foi lhe cobrar, ofendeu-lhe impiedosamente e procurou agredi-lo. Este reagiu, prontamente, tomado de grande indignação, e praticou o homicídio objeto do julgamento. O inesquecível amigo Vitão, como era chamado o extraordinário "parquetier", procurava embasar a acusação em sólidos argumentos jurídicos, bem como na matéria fática existente nos autos. Quanto aos fatos enfatizou as boas condições do acusado. No entanto, não o fez com base em provas convincentes. Utilizou, na verdade, um único argumento, parcialmente verdadeiro, mas que possuía uma premissa falsa e uma conclusão errada. A premissa verdadeira: o acusado diariamente parava na padaria vizinha à sua residência e tomava um "rabo de galo". A premissa falsa: o promotor afirmava com convicção que "rabo de galo" era composto por vermute e por uísque. A conclusão errada, por influência da premissa falsa: o elevado custo da bebida, que induzia à "riqueza" do acusado. Em face dessa alegação, solicitei um aparte, prontamente concedido: - Vossa Excelência é um grande promotor, um profundo conhecedor de Direito Penal e um professor emérito, mas de cachaça entendo eu : rabo de galo é uma mistura de pinga com vermute. Em seguida olhei para os jurados e verifiquei que quatro deles balançavam afirmativamente a cabeça, concordando com a minha etílica explicação. Minha tese foi acolhida pela maioria dos jurados e o réu foi absolvido: legítima defesa da honra.
segunda-feira, 9 de agosto de 2010

A coragem do livre pensador

Atuei muito pouco na Justiça Militar. Formei-me em 1970 e à época grandes advogados defendiam presos políticos, perante os Tribunais castrenses. Inúmeros eram os processos mensalmente instaurados, oriundos dos inquéritos das Comissões Gerais de Investigação e de outros órgãos da repressão. A esses colegas, militantes de todos os Estados da Federação, devemos tributar nosso mais profundo respeito, pela sua coragem e pelo seu desprendimento postos à prova em embates profundamente desiguais travados perante órgãos do judiciário que nem sempre primavam pela imparcialidade. Não raras vezes esses advogados eram igualados aos próprios clientes, pois defensor de subversivo, subversivo era. Minha atuação na Justiça Militar, como disse, foi insignificante, pois limitou-se à defesa de um único acusado. Uma única causa, no entanto, proporcionou-me riquíssima experiência profissional e valiosa contribuição para minha formação pessoal, mercê do convívio com um homem excepcional, o Professor Roberto Jorge Hadock Lobo Neto. Com 69 anos de idade, ele fora, em abril de 1972, denunciado perante a Segunda Auditoria Militar, sob a acusação de haver incitado alunos da Faculdade de São José dos Campos, onde lecionava História da Educação, "à subversão da ordem política vigente no país, quer de forma sorrateira, inoculando no espírito dos desavisados o germe da guerra psicológica e subversiva, no ensinamento preconcebido e deturpado da doutrina marxista, quer de forma ostensiva, ao mandar que os alunos se sublevassem, por ocasião da morte do estudante Edson Luiz". A acusação o rotulou de "velho militante comunista", fato por ele não negado em seu interrogatório, o que, por si só, já demonstrou a sua coragem e retidão de caráter. Para ele, se tal circunstância o incriminasse, pouco se lhe daria, pois preferiria arcar com as conseqüências de uma condenação, do que negar as suas convicções ideológicas. Negou, isso sim, e o fez veementemente, qualquer ação de incitação à luta armada ou qualquer espécie de sublevação. A denúncia foi julgada improcedente, por unanimidade, após a defesa por mim produzida e a manifestação do procurador Henrique Vailate que postulou a absolvição do acusado. O processo instaurado contra o Professor Roberto Jorge Hadock Lobo Neto representou, à época, a indisfarçável aversão do poder político de então pela liberdade de pensamento. A prova oral constante dos autos, mesmo aquela produzida a pedido do MP, realçou os aspectos exclusivamente didáticos das exposições e mesmo das digressões políticas feitas pelo Professor. Ficou patente que a sua divergência com o governo dito revolucionário se situava no campo ideológico e no que representava de afronta à democracia. A prova demonstrou, outrossim, e seus livros já mostravam, que embora de formação marxista, Hadock Lobo era um democrata e acima de tudo um humanista. As críticas que fazia a ações concretas do governo, como, por exemplo, à Lei de Diretrizes e Bases, possuíam forte embasamento fático e teórico e tinham sempre um acentuado sentido construtivo. Sempre reconheceu a grande influência de Marx, especialmente no que tange à importância dos fatores econômicos na evolução da humanidade. Jamais no entanto fez proselitismo da doutrina marxista em sala de aula. Verberava sim as vergonhosas diferenças sociais marcantes em nossa realidade passada e presente e ressaltava como um dos seus preponderantes fatores a quase inexistente distribuição de renda. Como livre pensador, envolveu-se em inúmeras e célebres polêmicas sempre defendendo os postulados éticos e humanistas como os norteadores das atividades e das condutas humanas. E possível que seu notório ateísmo deve ter refletido no processo a que respondeu, pelo menos na acusação que lhe deu início. Tenho, hoje, absoluta certeza que a sinceridade demonstrada durante o julgamento, a sua transparente honestidade de propósitos e o seu elevado porte intelectual, somados à carência de apoio probatório para a imputação contra si feita, constituíram fatores preponderantes para a sua absolvição. Parece-me ter sido esse um caso emblemático. Os governantes procurando punir um homem de pensamento, que o extemava com denodo e independência, mas, aos olhos dos detentores do poder, com insolência e petulância. Assistiu-se a um confronto da cultura, da inteligência, da liberdade de pensamento e do destemor com o obscurantismo, o arbítrio e a violência. Prevaleceu o senso de justiça do juiz auditor, dos juízes militares e do próprio acusador, que se renderam à força da coragem, do caráter, do intelecto de um homem verdadeiramente singular.
segunda-feira, 26 de julho de 2010

Prendam esse moleque

Não havia prazer maior do que ir ao Pacaembu assistir a uma partida de futebol. Saíamos cedo de casa, horas antes do início do jogo. Íamos de bonde até a Avenida Angélica e de lá descíamos a pé até o estádio. Pegávamos a condução no Paraíso. Durante o percurso nós nos maravilhávamos com os palacetes que ainda ornamentavam a avenida. A volta fazíamos pela mesma Paulista, só que andando. Percorríamos quase três quilômetros até nossas casas, localizadas nas ruas Cubatão, Stela e Correa Dias. O número de participantes dessas excursões futebolísticas variava de acordo com a partida. Normalmente, éramos cinco ou seis torcedores do São Paulo, Corinthians e Palmeiras. Apesar de estarmos nos anos sessenta, salvo engano, não havia nenhum santista. Cada um de nós ia ao Pacaembu quando jogava o seu respectivo time. No entanto, por vezes, assistia-se a partidas de outros times e sempre se torcia contra aquele para o qual torciam os amigos que nos acompanhavam. Tudo nos encantava e nos divertia. O Pacaembu à época nos parecia o maior estádio de futebol do mundo. Não conhecíamos o Maracanã (eu fora uma vez, com dez anos) e o Morumbi estava incompleto. Havia nos arredores do estádio e durante os espetáculos, um clima de alegria, expectativa e emoção. Talvez não haja grande diferença com o que ocorre nos dias de hoje, só que nós éramos os protagonistas e víamos tudo sob a ótica do entusiasmo, da novidade, da aventura. Emprestávamos ao que fazíamos uma grande dose de romantismo, de ingenuidade e pureza. Nossa faixa etária variava dos doze aos quinze anos. Era uma época de menos brigas nos campos de futebol. Quando ocorriam não eram cruentas, não se matava. Brigava-se para, em não raras vezes, confraternizar-se em seguida. Como a violência não tinha presença constante, vendia-se cerveja no Pacaembu. Nós estávamos nos iniciando nos vícios que, segundo achávamos, nos transformariam em homens: beber e fumar. Assim, comprávamos uma cerveja para dois, que era acompanhada dos deliciosos sanduíches de salame que vinham em cestas, trazidos por vendedores que passavam por entre as cadeiras. Para arrematar, sorvete picolé da Kibon. Nos jogos, talvez o que menos importasse fosse o resultado das partidas. Incluídas as gozações, mesmo com o time derrotado, as tardes ou as noites no Pacaembu eram gloriosas. No entanto, nós atingíamos a glória suprema e a indescritível felicidade quando conseguíamos entrar no vestiário, após rompermos o bloqueio da porta que a eles dava acesso. A visão dos craques, mesmo que despidos, o ambiente dos vestiários e até o cheiro de óleo canforado nos fascinava. Certa noite, a tentativa de entrar no vestiário do São Paulo foi frustrada por alguém que me deu um forte empurrão, o que mereceu da minha parte um enérgico ponta pé no "agressor". Não imaginava tratar-se de um delegado de polícia, que de imediato gritou: "prendam esse moleque". A prisão não se concretizou graças à providencial intervenção do emérito são-paulino Onei Raphael Pinheiro Oricchio, um querido e saudoso amigo de meu pai e meu. Anos e anos após o episódio, eu ocupava a Secretaria de Segurança Pública quando fui procurado por um delegado de polícia que pleiteava algo, talvez uma promoção. Ao vê-lo não tive dúvidas em reconhecer o meu quase carcereiro daquela noite. Tratava-se do Dr. Lisandro Bártholo, um ex-jogador do São Paulo e na ocasião um respeitado "cardeal" da polícia paulista. Num primeiro momento ficou lívido ao saber que o "moleque" para quem dera voz de prisão na porta do vestiário, passados quase trinta anos, era o Secretário de Segurança, seu chefe e responsável pelo atendimento ou não de sua reivindicação. Passado o susto, rimos gostosamente e Lisandro passou a ser um bom amigo. Saudades do velho Lisandro.
segunda-feira, 12 de julho de 2010

Duelo no Júri

Fascinado pela advocacia criminal, ainda estudante, desejava assistir a uma sessão do Tribunal do Júri. Estudava pela manhã, trabalhava à tarde no escritório de meu pai e à noite exercia as honrosas funções de foca na sucursal do jornal "O Globo", assim amarguei por bom tempo a frustração do desejo irrealizado. Surgiu, então, a oportunidade e lá estava eu, confesso que tocado pela emoção, no Segundo Tribunal do Júri de São Paulo. Procurei colocar-me no plenário de modo a não perder um lance dos debates, uma só palavra, um mero gesto que fosse, uma contração facial. Enfim, eu queria registrar todos os eventos do julgamento, passo a passo, minuto a minuto como se aquele fosse uma oportunidade única de estar em contacto com a grande instituição democrática, instrumento de consagração dos grandes nomes da advocacia. O promotor, Antonio Carlos Penteado de Moraes, e o advogado Hermenegildo Valente defrontavam-se. Presidia a Sessão o Magistrado José Fernandes Rama, que, posteriormente, precisamente no dia 8 de julho de 1970, iria presidir o meu primeiro júri. Ambos, acusador e defensor, eram dotados de invulgar cultura e oratória primorosa, tiveram nesse dia uma de suas mais brilhantes atuações. Esta foi a opinião de tantos quantos já os conheciam e lá estavam presentes. Nenhum aspecto da prova foi esquecido. Ao lado de argumentações pertinentes e expostas com objetividade e clareza, houve apartes oportunos e inteligentes de ambos os lados. As imagens e as metáforas ricas e bem construídas emprestaram aos discursos uma beleza de obra de arte. O Segundo Tribunal do Júri da Capital, onde se realizou o julgamento estava instalado no quarto andar do magnífico prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo. As sessões tinham início às 13 horas. Instalavam-se com quinze jurados ou mais, dos quais eram sorteados sete que atuariam como julgadores. Número menor de quinze, caso houvesse sessão, provocava a nulidade do julgamento. Aliás, o sistema é o mesmo até hoje. A esse respeito, ocorre-me um fato que passou a compor o longo e delicioso anedotário do júri. Um célebre advogado, contumaz vencedor das pugnas forenses, não se mostrou minimamente abatido quando um seu cliente, em rumoroso julgamento, foi condenado pelo Tribunal do Júri, tendo-lhe sido aplicada elevada pena, pelo Juiz Presidente. Não obstante o abatimento do réu e de seus familiares, bem como da grande repercussão da sua derrota, ele mostrava-se tranquilo e absolutamente confiante no êxito do recurso que seria interposto. E, com efeito, julgado o mesmo recurso recebeu provimento do Tribunal de Justiça que anulou a sessão do Júri. Descobriu-se, posteriormente, que a confiança do festejado defensor tinha uma razão: o cartorário responsável elaborou a ata de instalação da sessão do Júri registrando a presença de apenas treze jurados, quando a lei, como se disse, exige a presença no mínimo de quinze sob pena de nulidade. Naqueles tempos, havia uma perfeita sintonia entre a defesa e o funcionalismo do Fórum... Mas, voltando ao primeiro Júri que assisti, na defesa atuava o advogado e procurador do Estado Hermenegildo Valente, lotado na Procuradoria de Assistência Judiciária, órgão voltado para a assistência dos réus pobres. O acusador público era o Promotor Antonio Carlos Penteado de Moraes, que, após aposentar-se, veio a advogar no escritório de José Carlos Dias. Ambos excelentes oradores, dotados de inúmeros recursos retóricos, conhecedores da prova e, acima de tudo, primorosos argumentadores. A acusação desenvolveu-se ao meio de apartes veementes do defensor, de respostas por vezes irritadas do acusador e entremeada por acaloradas discussões. Momentos houve nos quais imaginei que ambos partiriam para o desforço físico, tal o empenho, a eloquência, o ardor com que expunham os seus argumentos. Quando a defesa terminou o seu discurso, o Juiz Presidente, antes de passar a palavra ao Promotor para a réplica, concedeu um intervalo. O Segundo Tribunal do Júri estava localizado no quarto andar do vetusto prédio da Praça Clóvis onde está localizado o Tribunal de Justiça de São Paulo. Nesse andar como nos demais há uma mureta que dá para as escadas e para um vão livre. Pois bem, no intervalo vi que advogado e promotor estavam encostados nessa mureta e gesticulavam e falavam sem descanso, dando-me a nítida impressão que trouxeram para fora do Plenário a acalorada discussão que haviam travado minutos antes. Preocupei-me com aquela cena. Eu não conhecia os costumes, os personagens, as nuances e peculiaridades do Júri, por isso tive receio que os para mim ferrenhos adversários, se agredissem e despencassem pelo vão do andar. Entre cauteloso e apressado, fui me aproximando para tentar, embora fosse grande ousadia, evitar que a discussão se transformasse em luta corporal. No entanto, para meu espanto e alívio, ao chegar perto de ambos constatei que a cena belicosa na verdade não passava de uma "exibição musical": Ambos cantavam uma valsa chamada "Naná", ou será uma outra, não sei, também pouco importa, importa sim que eles cantavam, simplesmente cantavam. Permaneci algum tempo junto aos dois grandes tribunos, mas maus cantores.