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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
segunda-feira, 4 de junho de 2012

Um advogado invejável

A trajetória profissional de Evandro Lins e Silva provoca inveja. A inveja sã, não a destrutiva. A inveja que transforma o invejado em modelo a ser seguido e imitado. Qual o advogado criminal brasileiro que não gostaria de ter vivido a vida profissional e pública por ele vivida? Evandro cumpriu o duplo papel que desde a fundação dos cursos jurídicos foi destinado aos advogados: exercer as funções inerentes às carreiras ligadas ao bacharelado em direito e exercer funções públicas na administração ou na política. O Visconde de Cachoeira em 1825, quando elaborou o projeto de regulamentação dos cursos jurídicos, disse que eles não formariam apenas magistrados e peritos advogados, mas deputados e senadores para ocuparem "os lugares diplomáticos e demais empregos do Estado". Evandro cumpriu esse destino. Advogou com intensidade durante sua longa vida. Abriu hiatos apenas para dedicar-se à causa pública, como procurador Geral da República, chefe da Casa Civil, ministro das Relações Exteriores e ministro do Supremo Tribunal Federal, sendo dele retirado por ato de força do governo militar. Mesmo quando exclusivo militante da advocacia, ele não deixou de atuar em prol da sociedade e da cidadania, aliás cumprindo um fadário da advocacia que é o de ser a porta voz dos anseios e das aspirações da sociedade. Basta que se dê um exemplo para ilustrar a síntese, que em Evandro foi perfeita, entre o advogado e o cidadão: atuou como representante dos brasileiros no processo de impeachment de um presidente da República. A verdade é que Evandro marcou a sua trajetória de vida pelo desprendimento e pelo servir. Extrapolou os limites da postulação privada, para atingir as de interesse coletivo. A prova provada de seu desprendimento nós encontramos nas defesas que fez no famigerado Tribunal de Segurança Nacional, criado por Vargas em 1935. Foi o advogado que mais defendeu presos políticos sem jamais haver cobrado honorários. Exemplo de generosidade e de um idealismo do advogado que coloca o seu sagrado mister de defender acima de interesses outros. Trata-se de um exemplo para aqueles que nos dias de hoje pretendem transformar as bancas de advocacia em balcões de mercancia. Também nesse Tribunal a missão do advogado foi cumprida acima dos seus posicionamentos políticos e empatias pessoais. Defendeu acusados da intentona comunista de 1935 e os integralistas de 1938. Evandro fez com que o direito de defesa pairasse acima das ideologias de direita e de esquerda. Como ser político tinha claros posicionamentos em face da realidade nacional, que no entanto não interferiram no exercício da defesa. Foi um dos fundadores do Partido Socialista Brasileiro, juntamente com Domingos Velasco, Hermes Lima, Joel Silveira, João Mangabeira e outros. O júri, eu creio , foi na advocacia a sua maior afeição. Da defesa de um passional, aliás chamado Otelo, em 1932, seu primeiro caso, feito ao lado do grande rábula João da Costa Pinto, até a sua defesa notável de Doca Strett, passando por Castorina a doméstica acusada de infanticídio, júri no qual teve ao seu lado Carlos Lacerda, em 1934, Evandro Lins e Silva, durante setenta anos, fez da tribuna do Júri um altar para cultuar a liberdade e imolar a injustiça e o arbítrio. Como já dito, Evandro serviu ao interesse público cumprindo, assim, o destino traçado para os grandes advogados pelo Visconde de São Leopoldo. Foi ministro das Relações Exteriores e como tal no episódio da instalação dos mísseis em Cuba, pela União Soviética, agiu como mediador, tendo contribuído decisivamente para que a Guerra Fria não se transformasse em guerra real. Nomeado ministro do Supremo Tribunal Federal, lá permaneceu durante cinco anos e quatro meses. Nesse período relatou cinco mil processos e participou do julgamento de, aproximadamente, trinta mil. Levou para a Magistratura características inerentes à advocacia. Como juiz continuou sua incansável perseguição à verdade, que na condição de advogado empenhava-se em levar para os autos. Demonstrou possuir um alto grau de compreensão do homem, com suas grandezas e suas misérias, desprovido de uma visão maniqueísta ou sectária do homem e da vida. Como juiz não foi um aplicador mecânico da lei. Adaptar as suas decisões às condições sociais, culturais e econômicas do momento reinante e às características de cada caso, sempre foi sua preponderante preocupação. Por outro lado, chamais olvidou ser a lei insuficiente para alcançar todas as situações de conflito em uma sociedade multifacetada e em contínua transformação. Evandro Lins e Silva, homem público admirável e magistrado exemplar, na verdade, foi uma das mais extraordinárias vocações de advogado que o Brasil conheceu. Depois de sete anos afastado da advocacia, quando serviu o país em cargos públicos, retornou à profissão. Voltou como se fosse um recém-formado. Voltou como um imberbe bacharel, portando orgulhoso o seu diploma, ostentando com garbo o seu anel de grau e trajando vaidoso a sua beca. Uma vez no fórum, novamente participou dos embates judiciários, sem qualquer laivo de prepotência ou de arrogância, que invadem o espírito de outros que exerceram os mesmos cargos por ele ocupados. Dominava-oo orgulho de ser advogado e não o decorrente das funções exercidas. Passou a exibir esse orgulho nos balcões dos cartórios, nas salas de espera dos juízes, esperando para despachar ou mesmo examinando inquéritos nas delegacias. Estava ele advogado pleno outra vez. E, essa condição o acompanhou até o fim de seus dias. Almoçávamos no restaurante Mário, no Leme, minha mulher Ângela, Clemente Hungria, Evandro e eu, quando num arroubo de confissão, desabafo e suplica, afirmou "Mariz, quero clientes, preciso continuar a advogar". Beirava os noventa anos. Foi um canto de louvor à profissão.
segunda-feira, 21 de maio de 2012

Advocacia e mídia: um precursor

O meu contato com Leonardo Frankenthal não foi constante e nem intenso. Diria até que fomos conhecidos, mas não amigos, por meras razões do acaso, que não nos proporcionou um contato amiudado. Quando comecei a trabalhar no escritório de meu pai em 1961 ou 1962, Frankenthal estava despontando como estrela fulgurante da advocacia criminal. Como o escritório de meu pai era exclusivamente dedicado à área cível, naquela ocasião eu nem sequer conhecia Leonardo de vista. Eu era um office boy do fórum cível, já à época instalado na Praça João Mendes, contando com não mais do que seis andares utilizados. Com o correr dos anos comecei a ouvir falar dele e de outros grandes advogados criminais: Dante Delmanto; Marco Antonio; Waldir Troncoso Peres; Raimundo Paschoal Barbosa; José Aranha; Henrique Vainer; Viana de Moraes e tantos outros. Passei a frequentar o fórum criminal ainda quando solicitador acadêmico, entre 1968 e 1969. Foi José Carlos Dias quem possibilitou o meu primeiro contato com uma vara criminal, indicando-me para trabalhar com ele em um caso de homicídio. Desse caso para outros, foi um passo. Os presidentes dos 1º e 2º Tribunais do júri nomeavam-me para inúmeros processos de réus carentes. Desta forma comecei a frequentar diariamente o nosso venerando e magnífico Palácio da Justiça, onde estava instalado o fórum criminal. A partir dessa ocasião Frankenthal tornou-se familiar para mim, embora o nosso relacionamento fosse superficial. Digo ter me familiarizado com ele em face de comentários, notícias de jornais e dos seus feitos como advogado do júri. Advogado competente, aguerrido, foi alvo de críticas, não raras, por sua impetuosidade e arrojo na defesa dos clientes, especialmente daqueles levados a júri, onde essas características mais se acentuavam. Leonardo Frankenthal talvez tenha sido o advogado criminal que com mais desenvoltura, desembaraço e competência soube relacionar-se com a imprensa, naquela época. Nos anos sessenta, havia uma ainda limitada interferência da imprensa na pauta da Justiça Penal. Era mantida uma respeitosa distância entre o jornal e o fórum. O magistrado era acatado e o advogado reverenciado. Distância, acatamento e reverência desaparecidos nos dias de hoje. Difícil, na atualidade, ler-se uma matéria que enalteça aspectos positivos da Justiça e da atuação dos advogados. À época, em primeiro lugar, os papéis dos personagens da cena judiciária eram expostos com fidelidade pela imprensa, o que facilitava a compreensão da missão de cada qual pela sociedade. Havia uma preocupação pedagógica, de bem informar, por parte da imprensa. O direito dever de punir do Estado vinha acompanhado nas matérias jornalísticas do direito à liberdade e à dignidade dos acusados. A sociedade não estava impregnada da cultura punitiva e repressiva hoje vigente. Havia um sentido do justo mais arraigado na consciência e na alma da coletividade. Foi nesse ambiente que Frankenthal soube introduzir na mídia, rádio e principalmente jornal, a advocacia criminal, com as suas glórias e as suas agruras. Deu ao sagrado mister de defender uma dimensão que extrapolou os quadrantes do poder judiciário para penetrar nos domínios da sociedade. Pode-se afirmar sem medo de erro ter sido Leonardo Frankenthal um notável "marqueteiro", não daqueles que criam situações ficcionais, mas o marqueteiro que com a própria realidade, sem maquiagens e simulações, enaltece e dignifica uma atividade humana, no caso uma das mais nobres e sagradas atividades do homem que é o exercício do direito de defesa.
segunda-feira, 7 de maio de 2012

Um advogado notável e um ser humano invulgar

Seu apelido era "Negro", embora não fosse da raça negra. Naquele tempo não havia o patrulhamento hipócrita e ele sim discriminatório, em relação às referências feitas aos homens e às mulheres da raça negra. Utilizava-se expressões como "negro", "negrão", "crioulo", "colored" e tantas outras como forma carinhosa de referir-se aos amigos negros. Nilton Silva Júnior, era, parafraseando o que Vinicius de Moraes falou de Ciro Monteiro, um só abraço em toda a humanidade. O seu irretocável caráter, a sua personalidade invulgar, o seu extraordinário carisma, a sua marcante simpatia e amabilidade fizeram-no verdadeiramente amado por todos os que o conheceram. Transformava-se em amigo do mero conhecido e amigo também seria dos seus inimigos, caso os tivesse tido. Orador primoroso, em qualquer oportunidade em que discursasse sua fala transbordava sentimento. Havia ocasiões que não possibilitavam tais transbordamentos, em face do caráter técnico e objetivo do discurso. No entanto, nestas ocasiões, ele rapidamente assimilava as circunstâncias e as reproduzia em um quadro onde preponderava a emoção ao lado do belo e do edificante. Paradoxalmente, esse advogado primoroso, esse ser humano único, bondoso, solidário, generoso, na verdade magnânimo, parece que carregava dentro de si o germe da autodestruição. Fez mal a si e só a si. Maltratou-se profissional e pessoalmente. Era um devoto do direito de defesa, e o exercia com grande competência e eficiência. No entanto, não cuidou da sua advocacia como deveria. Descuidou também da sua saúde. Desprezou-a, não lhe deu importância. Continuou, embora já enfermo, com os seus excessos boêmios, que alimentavam o seu diabetes fatal. Foi cercado pelos esmerados cuidados de sua mulher, aliás heroína mulher, Maria Aparecida e de amigos de rara fidelidade, dentre os quais destaco a figura excepcional, ímpar do advogado João Chaquian. A trajetória de Nilton Silva Júnior nos leva à crença de que não lutou para evitar a partida, deixou-se levar sem resistir, aliás, parece ter contribuído para a prematura ida . . . Sua vocação de advogado tinha como sustentação marcas de sua própria personalidade: a bondade, a compreensão e o apreço pelo ser humano. Desprovido de uma visão maniqueísta do mundo e dos homens, como todo advogado verdadeiramente vocacionado, não julgava a conduta humana, procurava entende-la e defendia quem dele necessitasse. Participou com o extraordinário Waldir Troncoso Peres da defesa de um homem acusado de haver matado a esposa com inúmeras facadas. Consta que ambos, dias antes do júri, se isolaram no litoral para o preparo da defesa. Muitos volumes, que retratavam um dos casos mais rumorosos dos últimos tempos. Dividiram o trabalho. Cada um lia parte da prova e engendrava os respectivos argumentos defensivos. Eu tenho certeza que esse exame probatório foi rápido e não exigiu grande empenho. Não que a prova não tenha sido examinada por completo. Não. Eles a analisaram e em sua totalidade. Mas, o fizeram sem esforço, pelo menos sem o esforço que seria despendido por qualquer um de nós, advogados criminais normais, meros mortais. O estudo que fizeram deve ter sido rápido, embora não superficial. Mas, por que rápido e sem esforço? Porque ambos eram geniais e como gênios captavam e processavam as informações com estupenda facilidade. Obtiveram êxito. Caso repleto de conteúdo humano, eles conseguiram desvendar os mistérios da alma dos seus protagonistas. Deram à prova oral, colhida perante os juízes de fato, uma interpretação que transcendeu os limites estreitos do fato criminoso e penetraram na estrutura psicológica do acusado, no seu atormentado espírito. Lograram transmitir aos jurados as íntimas e recônditas razões do acusado, surgidas em face de circunstâncias impostas pela vida em comum. Nilton e Waldir possuíam inúmeras semelhanças profissionais. A oratória, a facilidade em interpretar e expor a prova, a idolatria pela liberdade e pelo direito de defesa, a coragem de arrostar a incompreensão pública nos casos de grande repercussão, o desprendimento material. Ambos esmiuçavam os aspectos psicológicos, intimistas e emocionais da conduta delitiva, aprofundando-se nos do motivo do crime. Esse aspecto, no entanto, apresentava uma diferença entre os dois. Enquanto Waldir possuía um sólido embasamento doutrinário, voltado para o conhecimento da mente e da alma humana, Nilton desvendava o íntimo dos protagonistas da cena delituosa com base na sua extraordinária intuição. Embora fosse portador de vasta cultura humanística, seu conhecimento do homem era intuitivo, haurido de uma vida vivida com intensidade, livre de preconceitos e de limitações. Nilton Silva Júnior, uma vocação extraordinária de advogado, possuidor de raro encanto pessoal, acima de tudo um ser primoroso no relacionamento pessoal, talvez tenha sido o mais gentil, generoso, solidário e simpático dentre todos os advogados que brilharam no Fórum Criminal naqueles tempos.
segunda-feira, 23 de abril de 2012

Um fidalgo da advocacia

Talvez Henrique Vainer tenha sido o único advogado criminal de sua geração que jamais assumiu a Tribuna do Júri. Nessa época, a instituição era a vitrine para todos os que defendiam a liberdade, e ele jamais a visitou. E não o fez, não porque não acreditasse no Tribunal Popular. Lá não advogou por excessiva humildade, exagerado senso de responsabilidade e autocrítica exacerbada. Entendia não reunir os predicados necessários para enfrentar as agruras do Júri. Não se considerava, inclusive, um bom orador. Pois bem, mesmo sem advogar no Júri, Vainer figura na seleta galeria dos grandes advogados criminais do país. Quando veio do Rio de Janeiro, onde se formou em 1941, para São Paulo, passou a advogar na área cível. Mas, por pouco tempo, pois logo se dedicou à advocacia criminal, sua genuína vocação. No início da década de cinquenta, a defesa dos italianos Comeli e Malavesi, acusados de sequestrarem o filho do Conde Matarazzo, já revelava o advogado destemido, combativo e extremamente competente. Seu trabalho em prol da permanência de Malavesi em nosso país, por ter um filho brasileiro, tornou-se referência para a jurisprudência e posteriormente inspirou lei sobre a matéria. Sua atuação era marcada por extremados cuidados e preciosismos raramente vistos em outros colegas. Em relação ao cliente, não se limitava ao cumprimento do dever, orientava, encaminhava e o acompanhava, mesmo que já defendido. Sentia-se como que responsável pelo seu destino. Sua atuação extrapolava os limites do exercício profissional. Exercia a advocacia e ao mesmo tempo exercitava o humanismo. Lhano no trato, a sua cortesia não era apenas fruto de sua fina educação. Representava um profundo respeito pelo semelhante, que não raras vezes transformava-se em eloquente demonstração de amor ao próximo. Fui seu companheiro no conselho Penitenciário do Estado de São Paulo e lá testemunhei a grandeza de seu espírito e toda a bondade do seu coração, por meio de votos repassados de compreensão humana e inabalável fé na recuperação do sentenciado. Ao lado do meticuloso cuidado com que elaborava as suas peças processuais, Vainer se esmerava na manutenção da pureza ética no exercício da profissão. Contou-me o seu grande e inseparável amigo e companheiro de escritório, Silvestre Garreta Prates, que em certa ocasião, após concluir pela inviabilidade da revisão criminal de certo processo, não cedeu aos insistentes aspectos dos pais do condenado, que usaram como último argumento uma mala repleta de dinheiro, colocada e aberta à sua frente. Em outra oportunidade indignou-se com um rico industrial que lhe ofereceu polpuda quantia para assumir a sua defesa, em processo que tramitava por uma determinada Vara, cujo titular era seu fraterno amigo. E a razão da contratação, segundo soube, era exatamente tal circunstância. Henrique Vainer pertenceu a uma notável geração de advogados paulistas, pertencentes a várias áreas de atuação: Rogê de Carvalho Mange; Theotonio Negrão; Geraldo Conceição Ferrari; Raimundo Paschoal Barbosa; Waldir Troncoso Peres; Cássio da Costa Carvalho; Elcio Silva; Rio Branco Paranhos; João Baptista Prado Rossi; Rui Homem de Mello Lacerda;Waldemar Mariz de Oliveira Júnior; Alexandre Thiollier; Sebastião Carneiro Giraldes e tantos outros, que além de extraordinários advogados, tornaram-se porta-vozes dos interesses da advocacia e com notável abnegação e espírito de sacrifício, raros nos dias de hoje, deram vida, alma e perenidade aos órgãos de classe, aos quais pertenceram. Henrique Vainer possuia tão refinada educação, que após assistir ao julgamento de um caso do seu interesse, esperava mais um ou dois outros antes de retirar-se da sala de sessão. Entendia indevida e indelicada a sua imediata saída. Possuía hábitos que infelizmente não mais se coadunam com os pouco gentis e açodados tempos modernos. O meu preito de saudade a um advogado especial, diferenciado, diria um homem da renascença, pela sua fidalguia, sensibilidade e refinamento. Uma ave rara.
segunda-feira, 9 de abril de 2012

Um advogado destemido

Kleber Menezes Doria não aceitava ser qualificado como criminalista. Dizia ser uma expressão imprópria para designar o advogado criminal. Criminalista, segundo dizia, não seria o advogado, mas sim aquele que estudaria o fenômeno criminal, como historiador, pesquisador ou mesmo perito. Kleber foi uma das figuras mais expressivas da advocacia criminal de São Paulo. Inteligente, culto, conhecedor como poucos do Direito Penal e Processual Penal, com sua forte personalidade marcou quem o conheceu. Temperamento irascível, de uma franqueza por vezes assustadora, não escondia as suas antipatias e idiossincrasias pessoais. Nós nos reuníamos, todos os dias, na lendária "Praça da Alegria", um banco localizado no segundo andar do Palácio da Justiça. Sempre que por lá passava conhecida figura dos meios forenses, carecedor de bom conceito, Kleber, em alto e bom som gritava "mãos na carteira". Nós, também, invariavelmente, colocávamo-nos de costas, meio que constrangidos, mas orgulhosos do amigo corajoso, por vezes inoportuno e inconveniente, mas sempre autêntico e veraz. Também demonstrava de forma desabrida a sua indignação em relação à arrogância, à soberba, menos comuns naqueles tempos do que hoje, mas já existentes. Certa ocasião, um seu colega de turma tornou-se juiz de Direito. Na primeira vez que o encontrou, após o concurso, Kleber chamou-o pelo apelido que o identificava desde os bancos escolares: "Mato Grosso", pois o novo magistrado era natural daquele Estado. Ao ouvir a alcunha, ele dirigiu-se a Kleber, orgulhoso de sua nova condição e disse: "Não me chame mais de Mato Grosso, pois agora sou juiz". Ah, péssima advertência. Inadequada e incabível por si só, mas que adquiriu um caráter de verdadeiro bumerangue pois feita para a pessoa errada ou para a pessoa certa, dependendo da ótica. A partir desse dia, quem no Fórum não conhecia a alcunha do importante magistrado, passou a conhece-la, pois toda vez que um passava pelo outro Kleber a proclamava e difundia. Estigmatizado por graves infortúnios, a sua vida não transcorreu como ele a desejou e idealizou. Amargou desacertos e arrependimentos, mas jamais deixou de ser fiel a si mesmo. Aliás, também fidelidade para com os seus amigos foi uma constante em sua trajetória. Com a mesma veemência que lançava críticas, por vezes ácidas e até desproporcionais, sendo implacável com o que e com quem lhe parecia incorreto, se desdobrava em atenções, carinho e intransigente defesa daquilo que acreditava e daqueles que lhe eram caros. Kleber disputou com Anacleto Raposo Holanda, advogado da sua geração, que se notabilizou por condutas extravagantes, folclóricas e hilariantes, a proeza de eu ter sido colocado na geladeira do Centro Acadêmico 11 de Agosto. Explico, certo dia papai levou-me ao "Onze". Eu era de colo. Assim que chegamos os seus colegas, entretidos com atividades dignificantes, tais como jogo de dados, sinuca e carteado, pararam para recepcionar-nos. Segundo consta, papai cioso do espírito paternal de seus colegas deixou que me pegassem, e lá fiquei eu passando de colo em colo. Reapareci em seguida, no colo do Chico Elefante, proprietário do bar do Centro. Segundo ele, eu fui retirado da geladeira, onde por frações de segundos fiquei, pois fora colocado por um estudante, que, possivelmente, penalizado com o calor que eu sentia, quis refrescar-me. A identidade do autor da façanha jamais foi revelada, pois Kleber e Anacleto se foram. Durante anos, um acusava o outro de haver indevidamente usurpado o memorável feito. No elenco de grandes advogados criminais que conheci, quando comecei a advogar, e que já não mais estão entre nós, Kleber não pode ser olvidado. O seu comportamento por muitos criticado não superava as suas qualidades de homem e de profissional. Acreditava nos valores que informam a nossa profissão. Tinha verdadeira veneração pela Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. O espírito das Arcadas estava não só impregnado em seu interior como ele o propagava, fazendo verdadeira profissão de fé nos princípios que o compõe, ligados ao humanismo, à liberdade, à democracia e à justiça.
segunda-feira, 26 de março de 2012

Um paradigma de honradez e retidão

A lembrança de Raimundo Paschoal Barbosa vem acompanhada de uma imensa saudade, daquelas que nos dominam como um forte e apertado abraço. Mas, não se pense tratar-se da saudade que causa amargor, inconformismo e incontrolável tristeza. Ao contrário, ela é como um afago, um bálsamo, um acalento. A sua ida, nos últimos tempos, passou a ser esperada em razão de sua debilitada saúde, mas quando ocorreu foi profundamente lastimada e sentida. Hoje, quando penso em Paschoal me alegro. Sua lembrança se reflete em um instantâneo sorriso. É o sorriso das boas e suaves lembranças. Raimundo e eu conversávamos umas três vezes por semana. E ele me chamava de "macaco". Tenho esclarecido que esse não é um apelido fruto de merecimento. Ele foi herdado de meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, seu amigo fraterno. A irreverência de ambos me leva a imaginar o que não estarão fazendo no local em que estiverem. Eu não sei onde estão, mas onde estiverem estarão juntos. Nossas constantes conversas telefônicas amenizavam o árido cotidiano da advocacia. Falávamos amenidades. Ele sempre tinha uma história da profissão para contar. E, como eram agradáveis, engraçadas e inteligentes as suas narrativas. Episódios de sua rica trajetória de vida nunca faltaram. Nesses diálogos a ironia e o humor inteligentes sempre estavam presentes, marcados pelo seu gostoso sotaque nordestino. Histórias da sua participação na 2ª. guerra mundial eram contadas com entusiasmo e indisfarçável orgulho por haver integrado a Força Expedicionária Brasileira. Episódios da sua estada na Itália faziam-me recordar daqueles contados por meu pai, só que estes eram imaginários, pois papai jamais participara da guerra, jamais fora pracinha. Narrava a sua "atuação" nas tomadas de Monte Castelo e de Monte Cassino, com tantos detalhes e realismo que mesmo sabendo ser pura invenção nós todos gostávamos de ouvi-lo. O Ceará de sua época, suas experiências como jornalista - começou como faxineiro de redação - a forte personalidade de sua mãe, sua militância comunista, eram outros temas de sua predileção. É interessante notar que mesmo mantendo as características do homem do nordeste, simbolizadas por seu forte sotaque, assimilou o modo de ser do povo paulista e o ostentava com indisfarçável orgulho. Poucos amaram a advocacia como Raimundo a amou. Passou a simbolizar a figura do verdadeiro advogado criminal. Era um devoto da sagrada missão de defender. Sua retidão ética, seu destemor em face da tentativa de violação de nossas prerrogativas, sua altivez em face da prepotência e do arbítrio, a sua proverbial atenção aos advogados mais jovens transformaram-no em verdadeiro ícone da advocacia criminal, paradigma de honradez e retidão. No quadrilátero da Praça João Mendes, ou será retângulo, não importa, exercia o poder de império sobre todos nós, jovens advogados. E, os antigos também aceitavam gostosamente o seu jugo. Sem nenhuma propensão para o autoritarismo ou para o mando, muito ao contrário, pois era um libertário, nesse espaço exercia o seu reinado, que tinha como origem um direito divino, tal o dos antigos monarcas. Era natural, transcendia a sua vontade, eram os seus súditos que se submetiam à sua dominação. Mesmo após haver saído da Liberdade, ido para a Cardeal Arco Verde, ele diariamente ia inspecionar os seus domínios territoriais. E, ai passava na Ordem, na nossa "Praça da Alegria" no Palácio da Justiça, em algum escritório, mas especialmente se postava em alguma esquina sempre cercado, jamais o vi só, para cumprir um ritual que se tornou indispensável, o de contar "causos" e casos, fazer blague, aconselhar, opinar, gozar, ironizar, enfim derramar toda a sua cultura, toda a sua sabedoria de vida e em especial toda a sua infindável devoção e todo o seu amor à advocacia, para deleite e enriquecimento de todos os que, embasbacados, o ouvíamos com a reverência devida aos grandes homens. Há um episódio notável, talvez já notório, mas que deve ser repetido à exaustão como exemplo da sua índole e da grandeza humana de Paschoal. Ele perdeu sua mulher, Dna. Cecília, vítima de um latrocínio, em 1984. Ligado a ela por laços de amor e de uma absoluta e não disfarçada dependência, jamais superou a sua perda. Por vezes, e não foram poucas, dizia-me ser a viuvez um estado que beirava o insuportável. Pois bem, no velório de Dna. Cecília um delegado comunicou-lhe que dois suspeitos haviam sido presos. O grande advogado o idólatra da liberdade, não titubeou e disse "Doutor, solta os presos, pois suspeito não se prende, apenas se interroga". Esse operário da advocacia, braçal da profissão, como gostava de se auto denominar, está fazendo extraordinária falta a todos nós, velhos e novos advogados criminais. Paschoal Barbosa possuía uma crença fervorosa na advocacia, como instrumento de modificação da realidade. Parafraseando Rene Dotti ele tinha um inquebrantável compromisso com "a realidade existencial da prática nas defesas penais". Entendia o advogado como figura imprescindível à construção de um mundo melhor. Aliás, parece que essa visão instrumentária da advocacia, que se estende à própria Ordem, é característica de todo advogado verdadeiramente vocacionado, ardoroso crente da imprescindibilidade da profissão como fator decisivo na construção de um mundo melhor. Não me refiro, evidentemente, à advocacia ou à Ordem utilizadas como meio de projeção pessoal ou como instrumento para o alcance de outros objetivos, diversos daqueles que lhe são naturais. Objetivos, alguns deles até inconfessáveis. A visão dos grandes advogados, que colocam a profissão e a sua entidade mãe a serviço de valores que transcendem os seus próprios limites, é, para uns, quixotesca, para outros utópica, ilusórias, desprovida de pragmatismos e senso da realidade. É, pode ser, mas foi ela quem sustentou e sustenta a advocacia, nos momentos em que o autoritarismo político ou social pôs em risco a sua própria sobrevivência. Foi esta mesma visão que levou o advogado a ser o arauto da liberdade e da democracia, em inúmeros episódios da nossa história. E, para não dizer mais, foi esta visão que evitou o cometimento de injustiças contra acusados lançados à execração e ao linchamento públicos. Poucos, como Raimundo acreditaram e cumpriram esse ideário sagrado, que deveria ser retomado por todos aqueles que advogam e especialmente por aqueles que pretendem ocupar os postos de comando na OAB. Tal como ele o fez deverão servir a entidade e à classe com abnegação, desprendimento e devoção aos ideais da advocacia.
segunda-feira, 12 de março de 2012

O feminismo de uma não feminista

Seu destino estava traçado desde a infância. No curso de sua vida iria percorrer caminhos até então intransitáveis para as mulheres. Com efeito, abriria horizontes, desbravaria trilhas, venceria obstáculos e derrotaria preconceitos. Transformaria o que não passava de utopias em sonhos e esses em realizações concretas. Esther de Figueiredo Ferraz foi sem dúvida uma das figuras mais importantes da recente história do país. Deu inestimável contribuição à Justiça como advogada e à educação como professora. Contou-me ter se autoalfabetizado. Morava na cidade de Mococa e diariamente separava as vogais das consoantes estampadas nas matérias do jornal "O Estado de São Paulo" e dessa maneira formava os nomes de familiares e de objetos. Quando recebeu a primeira cartilha já sabia ler. Ainda muito jovem mostrou coragem, destemor e pertinácia. Assim, conseguiu libertar-se dos grilhões de uma sociedade patriarcal e preconceituosa e pode construir o seu futuro, aliás um futuro inatingível para a maioria das mulheres. Esther foi pioneira porque foi livre e soube manter a sua liberdade e a sua integridade. Cursar a Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, por si só, já foi uma façanha notável. Segundo contou, ela prestou vestibular à revelia de seu pai. À época pouquíssimas mulheres cursavam o ensino superior. Ela foi pioneira na advocacia, tendo escolhido uma área então considerada incompatível com a condição feminina: a criminal. Sua estreia no Tribunal do Júri, aliás a primeira mulher a atuar no Tribunal Popular, ganhou grande e favorável repercussão. Formada em 1944, em pouco tempo passou a ser reconhecida no universo da profissão, diga-se um universo exclusivamente masculino, como excelente advogada, tendo sido eleita para o Conselho da OAB de São Paulo. Novamente pioneira, pois foi a primeira mulher a ter assento na instituição. Esther não se limitou a advogar na área penal. Preocupou-se em vasculhar e investigar todas as questões pertinentes ao fenômeno criminal e ao homem criminoso. Nesse mister ela não teve receio em enfrentar temas áridos, alguns inéditos e outros voltados para a condição feminina. Assim, abordou a prostituição, o lenocínio, a criminalidade infantil, o sistema penitenciário e a mulher presidiária. Na área da educação igualmente foi percussora. Foi a mulher que pela vez primeira ocupou um Ministério, o da Educação. Essa primazia repetiu-se no Magistério. Jamais uma mulher havia prestado concurso à livre docência no Largo de São Francisco. Foi aprovada com distinção. Consta que um dos catedráticos recusou-se a participar da banca examinadora, pois não admitia uma mulher na Congregação da Velha Academia. Anos depois, ao ser indagado sobre o porquê de sua objeção, o professor respondeu ter tido um acesso de burrice na ocasião. Lembre-se, ainda, que Esther foi reitora da Universidade Mackensie, Secretária de Educação de São Paulo e integrante dos Conselhos Estadual e Federal de Educação. Impressionava, sobremodo, a sua inteligência. Uma inteligência culta, ao mesmo tempo ágil, pragmática, sintonizada com a realidade e pronta a aplicar conceitos teóricos a problemas específicos a serem resolvidos. Merece realce a sua grande capacidade de entender às céleres mutações ocorridas durante a sua trajetória de vida. Sem abdicar de seus valores e de seus princípios, jamais a vi criticando os tempos atuais e louvando épocas passadas, como uma empedernida saudosista. Soube viver o seu tempo e ajudou-o a melhorar. Não ficou presa ao passado, mas também não se escravizou aos modelos e estereótipos da modernidade. Continuou a ser livre. O humanismo foi também uma outra característica do seu pensamento e da sua conduta. Procurou compreender o homem em sua dimensão global, com suas misérias e grandezas. Estudiosa do penitenciarismo, via na pena um meio de socialização do detento, sendo que sem esse escopo a punição se transformaria em instrumento de vingança. Defendeu com ardor a criação de escolas internatos para os menores infratores, tendo por objetivo efetivamente prepará-los, sob os mais variados aspectos, especialmente suprindo-lhes as carências, para tornarem-se cidadãos úteis e prestantes. Uma outra maravilhosa qualidade de Esther foi a de fazer e saber cultivar amizades. Ao deixar o Conselho Federal de Educação afirmou que a árvore de sua vida foi sempre alimentada pela seiva vinda de seus amigos. Em uma entrevista ao jornalista Gaudêncio Torquato para o Jornal do Advogado, em 2001, em comovente reflexão, respondeu que se sentia uma mulher realizada, embora Deus não lhe tivesse dado tudo, pois "gostaria de ter casado". No entanto, disse ela, "não faço disso uma tragédia. Substitui pelo sentimento da amizade". E, arrematou afirmando ser a amizade "a mais elevada de todas as emoções humanas, porque ela é gratuita. Ao passo que o amor é interesseiro no sentido de que ele dá e quer receber. Tenho uma legião de amigos e isso me conforta". Conviver com pessoas, compreendê-las, ampará-las, ajudá-las, talvez tenha sido a mais bela página da admirável obra que foi a sua vida. Esta obra foi marcada por um humanismo excepcional, que a fez trilhar caminhos penosos, inóspitos, ainda impenetráveis para as mulheres, com arrojo, coragem e decisão. Foi verdadeiramente uma pioneira do feminismo pátrio, sem jamais adotar posições excludentes ou antagônicas em relação ao mundo masculino, predominante à época.
segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

O advogado da liberdade

Esta é a segunda vez que escrevo sobre Waldir Troncoso Peres. A primeira foi a convite da Associação dos Advogados de São Paulo, logo após o seu falecimento. Certos fatos narrados são repetidos. Algumas observações sobre sua personalidade e caráter também, no entanto haverá nesse escrito considerações não feitas anteriormente. Embora falecido há aproximadamente três anos, sua presença é permanente. Fala-se dele, passagens de sua rica vida são recordadas, seus históricos júris são até hoje comentados, enfim a sua lembrança assalta o espírito de todos aqueles que, como eu, nutrem uma imorredoura estima pela sua estupenda figura de homem e de advogado. Desta forma, inesgotável é o rol de registros pertinentes ao seu modo de ser, às suas ideias, às suas manifestações, ao seu peculiar e encantador gestual, enfim à sua existência. Nascido em uma fazenda do interior de São Paulo, na cidade de Vargem Grande, manteve até o final de seus dias uma comovente simplicidade, a simplicidade do homem ligado à terra e criado sem limites espaciais, sem os freios da civilização urbana. Deixou livremente aflorar, e manteve intacto, autêntico, o seu eu vigoroso, real, desprovido de adulterações, reservas, maquiagens. Jamais exerceu papéis, pois sempre foi personagem de si mesmo. Soube manter-se livre, podendo assim, ser fiel à sua essência. Com 16 anos veio para São Paulo. Morou em pensão. Ingressou no Largo de São Francisco. Foi orador do Centro Acadêmico Onze de Agosto, o primeiro, na histórica instituição que, ao ser eleito, não cursava o quinto ano. Combateu a ditadura Vargas, foi preso. Perdeu a liberdade lutando por ela. Meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, seu colega da turma de 1946, igualmente amargou o cárcere pela mesma razão. Trabalhou no escritório de Luiz Carlos Pujol e Emílio Carlos. Posteriormente, montou seu próprio escritório com Nicolau Chacur, posteriormente Wadi Helou passou a integrá-lo. Cedo, Waldir teve despertado em si o interesse pela advocacia criminal. Não há nenhuma dificuldade em buscar a razão de sua opção. A liberdade, como desiderato maior da advocacia criminal e o homem como matéria prima do nosso trabalho, o conduziram para o "crime" na forma de um chamamento coerente com as suas aspirações existências: a preocupação pelo homem e o apreço pela liberdade. Waldir, tal como os advogados criminais de sua geração, sempre encarou a advocacia como verdadeiro sacerdócio, mercê da necessidade de compreensão da alma humana e do alto grau de abnegação e de renúncia impostos ao advogado. Igualmente, atendeu à perfeição duas outras características da advocacia penal: ela é uma ciência, pela gama de conhecimentos, de pesquisa e de especulação que exige. Ademais, é arte em razão do acentuado grau de criatividade e de beleza estética - palavra escrita ou falada - que a envolve. Ninguém rigorosamente ninguém, sem demérito para os extraordinários oradores do fórum, ou fora dele, que conheci e que conheço, superaram o Espanhol como orador. Foi um artista da palavra e seu cultor, seu reverente cultor. Como alguém já teria dito, nunca se soube se ele pensava primeiro e falava depois, ou ao contrário se sua verve antecedia os seus pensamentos. Era um turbilhão, uma cascata, um dique que se rompia, com inteligência, propriedade e coerência. Dizer que Waldir foi um cientista, no sentido do pesquisador, é distorcer a realidade. Não foi um advogado dedicado a grandes especulações intelectuais em torno do Direito. Conhecia com solidez todos os institutos do Direito Penal relacionados ao direito de defesa. Com grande proficiência adaptava as dirimentes, excludentes, causas de diminuição de pena, inexigibilidade de conduta diversa, e outros institutos, aos fatos e circunstâncias que compunham a conduta delituosa de seu defendido. No entanto, um setor no qual era imbatível, e ai, pode-se dizer ter sido um cientista no sentido amplo do termo, é o referente ao homem e à sua alma. Possuía uma insuperável necessidade, verdadeiramente existencial, que chegava às raias da angústia, em desvendar, dissecar, esmiuçar, a mente e a alma, o pensar e o sentir do homem. Toda a defesa por si produzida, escrita ou oral, no júri ou fora dele, sempre se fez acompanhar por uma percuciente análise comportamental do acusado e dos demais protagonistas do processo, bem como dos motivos que o levaram ao crime. O homem sempre atraiu as atenções prioritárias de Waldir Troncoso Peres, como advogado e como cidadão. Tornou-se um invulgar advogado exatamente porque sempre soube ser compreensivo e mais do que isso complacente com as mazelas humanas. Passou a entender o homem com suas grandezas e misérias. Longe das posições maniqueístas, as suas opiniões sobre o homem e sobre o seu comportamento e sobre a vida em geral, sempre levaram em conta o verso e o reverso da moeda. Jamais as suas apreciações isolaram o bem do mal, o certo do errado, o feio do belo, o justo do injusto. Os extremos sempre se conciliaram nos seus juízos de valor. Porém, nunca transigiu com um valor que constituiu a razão maior de sua existência: a liberdade. Em matéria de liberdade jamais admitiu o outro lado, a existência do reverso. Jamais aceitou meio termo ou conciliação com qualquer circunstância que a ela se opusesse. Perseguiu a liberdade como valor máximo do homem. Waldir, em certa ocasião, assumiu a defesa de policias acusados de pertencerem ao chamado "esquadrão da morte". Mais uma vez, dentre as inúmeras em sua vida profissional, foi o porta-voz dos direitos e das garantias constitucionais de acusados colocados à execração pública. Mais uma vez encarnou a figura do advogado pleno. Arrostou a histórica incompreensão que acompanha a advocacia criminal. Com efeito, especialmente nos casos de ampla divulgação e de grande repercussão o advogado é confundido com o acusado. É visto como apologista do crime cometido e não como defensor dos direitos do acusado. Há uma resistência, verdadeira irresignação, quanto ao exercício da defesa. Querem condenação sem processo e punição sem julgamento. Querem vingança. Em um ano no qual novas eleições para o Conselho Seccional da Ordem terão lugar é oportuno repetir uma passagem que já mencionei no escrito para a Revista da AASP. Procurado pelos componentes do Grupo Tempos Novos, criado por mim em 1986, para ser candidato à presidência, nas eleições que se travariam em 1990, Waldir assentiu e o fez com grande entusiasmo. Pareceu-lhe uma excepcional oportunidade para divulgar as suas ideias e propagar os seus ideais, como advogado e como cidadão prestante. Entendeu mesmo ser uma missão irrecusável. Por outro lado, a sua disposição de concorrer e a sua eventual vitória teriam um inestimável valor simbólico e exemplar, como excepcional fator de valorização profissional, da qual a advocacia, já em crise, muito carecia. Saliente-se que nós procuramos Waldir, quase que implorando, para que aceitasse a candidatura, sem que ele a procurasse. Já estava distante da política de classe. Recebeu o convite como uma honraria, qual seja a de poder servir a advocacia. E, o procuramos, não primordialmente porque poderia ganhar as eleições e com ele o nosso grupo. Não, tivemos como preocupação primeira escolher um nome que pudesse representar o nosso ideário, as nossas propostas de valorização profissional a nossa luta enfim pelo engrandecimento da advocacia, que vínhamos empreendendo nas duas gestões anteriores. Não queríamos um nome qualquer, uma chapa qualquer e nem desejamos celebrar acordos com quaisquer grupos, por mais viáveis eleitoralmente que fossem. Vencer seria e é importante. No entanto, ser coerente leal e fiel com princípios e com ideais supera a vitória, que a qualquer preço é aviltante pois desprovida de coerência e de honestidade. E Waldir, por sua vez, não tinha em mente vencer as eleições para ostentar o título de presidente, pura e simplesmente. Queria servir, contribuir para o aprimoramento das instituições, ajudar a restituir ao advogado o respeito social, o acatamento e o reconhecimento de seu valor e de sua imprescindibilidade. Waldir acreditava, tal como todos nós, na advocacia como instrumento eficaz para a construção de um Brasil melhor. Para ele o relevante seria a Ordem e não o cargo. É, naqueles tempos, se pensava dessa forma. Espero que volte a ser assim. Espero que voltemos a ver a Ordem como instituição plenamente habilitada a ser a porta-voz dos anseios e das aspirações da advocacia, pois o cumprimento desse objetivo é a única razão que justifica as candidaturas para os seus postos de comando. Com toda a certeza os rumos da OAB/SP e os da própria advocacia teriam sido alterados e possivelmente não estaríamos assistindo à crise que tanto nos amargura, caso Waldir não houvesse desistido de ser candidato. Justificativas estritamente pessoais levaram-no a desistir. Todos lamentaram, mas entenderam as suas superiores razões. Seus motivos foram expostos em um comovente discurso proferido na Câmara Municipal de São Paulo, perante o grupo, advogados do interior e da capital, reunidos a seu pedido. Nessa oportunidade Waldir fez uma extraordinária e belíssima profissão de fé na advocacia. Expôs um dilema que o assaltou certa ocasião. O dilema da opção entre legítimos interesses materiais e o dever do advogado de exercer o direto de defesa, independente de remuneração. Em um mesmo caso, ele foi procurado simultaneamente para ser assistente da acusação, remunerado com sedutores honorários e para defender o réu gratuitamente. Optou pela defesa. Segundo disse, preferiu "a orfandade econômica à orfandade moral que seria negar a minha vocação, e a forma de ser, o meu contorno psicológico, o meu modelo espiritual, a minha interioridade". Completou afirmando "Sempre corri atrás da vida, como fundamento e essência, e não atrás de negócios". Nos dias de hoje, quando se prioriza o ganho, o ter, o bem material a sua lição é preciosa, embora possa parecer anacrônica, utópica, mera ficção. É fundamental, no entanto, que ela seja divulgada e repetida à exaustão. Talvez possa ela sensibilizar aqueles que se olvidam com facilidade dos valores intrínsecos à advocacia, e à própria vida, como a verdade, a amizade, a solidariedade e a lealdade. Deve-se, pois, ter presente que, tal como ensinava Waldir, o valor superior da existência é a própria vida em sua abrangência e inteireza e não apenas um único dos seus aspectos que é o negocial. Agora que Waldir se foi, deveremos reverenciar a sua memória. No entanto, não basta lembrá-lo, escrever e falar sobre ele. É preciso perseguir e seguir os seus exemplos. Divulgar os seus pensamentos. Adotar os seus posicionamentos na profissão e na vida, ser fiel aos seus ideais.
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Conflito internacional no Guarujá

O local era e é paradisíaco. Situado no morro da Guaiuba no Guarujá, o Edifício Farol Branco tem uma vista deslumbrante. Talvez seja o prédio melhor situado de toda a ilha. Fica em uma península de onde se descortina o mar com horizontes determinados pelo alcance da vista. À época o edifício era isolado, não havia nenhuma construção ao seu redor. Ademais, e esta era uma característica muito peculiar em se tratando de prédios do litoral: ele só era habitado por dois casais, ocupantes dos dois únicos apartamentos existentes. Um de nacionalidade alemã e outro de origem suíça. As funções de síndico eram exercidas alternadamente, ora por um ora por outro condômino, o alemão e o suíço. É óbvio que para construírem em conjunto e habitarem o mesmo prédio, deveria haver entre eles fortes laços de afinidade e de amizade. Durante algum tempo após a construção do prédio, o convívio foi fraterno e harmonioso. No entanto, não demorou e o relacionamento entre as duas famílias passou a sofrer abalos, em razão de provocações constantes e recíprocas das mais variadas espécies. Os atritos ocorriam em regra nas áreas comuns do edifício, compostas por uma piscina, um terraço coberto, uma churrasqueira e uma sauna. Os motivos das desavenças eram em regra banais e baseadas em pretextos, os mais insignificantes. Eram implicâncias recíprocas que conduziam a ofensas verbais e até o início de agressão física. Ações penais e civis recíprocas foram propostas. Recursos e habeas corpus movimentaram os Tribunais que decidiram questões pertinentes à honra, indenizações, e exercício arbitrário das próprias razões. Também agressão física fez parte das desavenças entre os casais. No deck da piscina, o suíço varão deu um tapa no rosto germânico, chamando-o de canalha, vagabundo e sem vergonha. Em seguida, passou a pular e a bater no peito, imitando um gorila. Essa grotesca imitação provocou pronta reação por parte daquele que servira como modelo para a literal macaquice. A revolta do casal alemão também era de ordem estética, direcionada à senhora suíça, que segundo o casal exibia a sua acintosa feiura quando se apresentava com um biquíni sumário, no deck. No entanto, os litígios encobriam na realidade, além de profundas divergências, magoas e ressentimentos, a honra e a dignidade das Nações por eles representadas. Como pano de fundo, pois, de todas as altercações, estava verdadeiramente o orgulho nacional de cada um deles. O problema assumiu foros de questão internacional, envolvendo as duas Nações, Alemanha e Suíça, quando o casal suíço preparou uma recepção para diplomatas e representantes da marinha de seu país. Como ensaio para a recepção houve o hasteamento da bandeira suíça, assim como foi tocado o respectivo hino nacional. O hino foi executado várias vezes, e a bandeira ocupava considerável área que seria comum. Como previsível, os preparativos para a festa cívica irritaram o casal alemão. Primeira providência adotada foi hastear a bandeira germânica, posta em altura superior ao estandarte suíço. Claro que o hino alemão foi tocado e o foi, em alto e bom som. Mas a provocação mais agressiva veio quando o senhor alemão arrancou a bandeira suíça do mastro e nela pisou e sapateou. Depois de encerradas as demandas na área penal, eu não tive mais notícias dos protagonistas de uma verdadeira questão internacional ocorrida em terras ou melhor em praias brasileiras, envolvendo representantes, embora não oficiais, mas aguerridos e patrióticos representantes de duas Nações que quase tiveram suas relações estremecidas pelo patriotismo quase fundamentalista de ambos.
segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

Memórias de um craque

Por vezes eu conseguia ser escalado porque fornecia a bola. Isso ocorria nos meses de junho e dezembro quando e se no meu aniversário ou no Natal eu ganhava a dita cuja. No entanto, mesmo disponibilizando-a, a minha escalação não era garantida, caso alguém mais houvesse sido agraciado com uma outra bola. Quando o jogo era entre nós mesmos, fato corriqueiro, eu tinha lugar certo em um dos times. O critério de escolha era o par ou ímpar. Eu sempre era escolhido por último e não raras vezes integrava o time que teria um a mais, quando o número de jogadores era ímpar. Tal fato significava que o time que contasse com o meu valioso concurso, na verdade tal como o outro, possuía número par de jogadores... Minha posição em campo? Nunca me preocupei com esse detalhe. Estava sempre onde o time necessitasse que eu estivesse, geralmente longe da bola... Embora eclético, pronto para servir em qualquer posição, eu tinha uma preferência pela defesa, especialmente pela lateral direita. Hoje eu seria um ala, daqueles que ajudam o ataque como ponta. Naquele tempo eu era mesmo um beque. Foi nessa posição que enfrentei o Uruguai em 1970. Não se pense que por ter sido um sonho, o meu desgaste físico e emocional foram pequenos. Não, basta dizer que acordei suado e com dores no corpo. A compensação foi a nossa estupenda vitória. Em outra memorável ocasião também atuei pela lateral direita. Foi no disputado jogo entre calouros e veteranos, travado em 1965 na Faculdade Paulista de Direito, da PUC. Nessa partida, que marcou época na Faculdade da rua Monte Alegre, não pela técnica, mas pelo ímpeto físico e pela disposição etílica dos contendores, meu medíocre desempenho futebolístico, quanto a minha indumentária. Nós os calouros, envergávamos o glorioso uniforme da PUC. Camisas com listras pretas, brancas e vermelhas, com fundo branco, parecida com a antiga camisa da hoje inexistente seleção paulista de futebol. Meias e calções brancos. O traje portanto era padronizado, uniforme, comum a todos os jogadores. No entanto, eu chamei a atenção especialmente a de meu pai, que como professor da Faculdade assistia entusiasticamente a exibição do filho, rodeado, como sempre, por seus alunos. Seu entusiasmo foi efêmero. Rapidamente transformou-se em constrangimento, quase vergonha. Ao ver-me, verificou que avançava perna abaixo, uma vistosa e chamativa cueca, bem mais cumprida do que o calção, ultrapassando-o de muito. Naquela época, estavam na moda, as chamadas cuecas samba canção. E, como eu sempre fui da moda, também naquele dia trajava uma. Várias foram as equipes nas quais eu atuei. As da rua Stella foram as que contaram com a minha mais eficiente contribuição. Nós da T.S. (Turma Stella), em certa ocasião fizemos uma aliança com outras turmas das redondezas e constituímos o Oasis da Vila Mariana. Nesta equipe eu tive lugar de destaque, fui massagista. Joguei, ainda, no time do 3º Tabelionato de Notas, que foi o meu primeiro emprego. A minha carreira nesse time foi curta. Quinze minutos de uma única partida. Um outro time formado no Centro Social dos Cabos e Soldados da Polícia Militar, onde eu advogava, contou também com a minha participação. Nesse time fazíamos laço, isso é contávamos com o concurso de outros craques estranhos aos quadros do Centro Social. Um desses jogadores emprestados foi Plínio Marcos, excelente teatrólogo, péssimo jogador. Marcou época, pelo menos nos meios jurídicos futebolísticos, um time fundado na década de setenta por amigos advogados, chamado "In Dúbio Pro Reo". E foram meus companheiros de equipe que souberam fazer justiça a mim. No final do ano, o único de existência do time, prestaram-me comovente homenagem, ao me entregarem um valioso, significantíssimo e modesta às favas, merecido troféu, denominado troféu "Encrenca"... Claro que na minha biografia o meu desempenho esportivo, especificamente futebolístico, ocupa papel de grande realce. Lamento que o reconhecimento dos meus méritos não tenha ocorrido nos momentos mesmo das minhas exibições. Mas, vá lá, por ora eu me satisfaço com o "Troféu Encrenca".
segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Generosidade sírio-libanesa

Nasci em um bairro onde predominava a colônia síria-libanesa. Uma prova reside no número de clubes fundados em regra por imigrantes de determinadas regiões da Síria e do Líbano. Assim, lembro-me do Antioguina, do Homs, onde havia saudosas domingueiras dançantes do Alepo, do Rachaia. Estou excluindo o Sírio e o Monte Líbano, situados um pouco mais distantes. Em razão da convivência, algumas características desses imigrantes e de seus descendentes ficaram bem marcadas e até assimiladas por mim desde cedo. De todas, a que eu mais admirava e tenho viva na memória era a generosidade manifestada de várias formas no relacionamento interpessoal. Era um derramar de gentilezas e afagos nos carinhosos encontros que ocorriam constantemente nas vizinhanças. No entanto, a generosidade dos libaneses e dos sírios não se limitava à efusivas manifestações de afeto quando nos víamos. Havia também outros desdobramentos da amizade e do apreço. Mostravam-se extremamente solidários e prestativos quando alguém deles necessitava. A ajuda era uma constante nos seus relacionamentos e não mediam esforços para, ao que parece, retribuir de alguma forma, a acolhida dispensada pelos brasileiros aos seus antepassados. Para não cometer injustiças, mormente quando se trata de arrolar amigos queridos, dentre as figuras do meu mundo árabe, vou destacar uma excepcional senhora, que para nossa ventura encontra-se entre nós, e uma família cujos chefes já se foram, mas os filhos aqui estão dando continuidade a uma preciosa e já vetusta amizade. Falando em amizade, eu agradeço a Deus a possibilidade de haver constituído e mantido amizades que resistiram às vicissitudes da vida. Arrependo-me, no entanto, por outras que eu não consegui manter e conservar. Existiram sim, amigos que já se foram, não da vida, mas do meu rol. Culpa minha, culpa deles, não importa. Importa sim que o saldo foi positivo. Eu tenho velhos e amados amigos. E, mesmo aquelas amizades já rompidas, permanecem no rol das gratas recordações. Tenho muito orgulho em afirmar que eu e alguns amigos que possuo "nunca nos sofremos" como disse o excepcional cronista e compositor Antonio Maria. Ademais, desta feita contrariando outro festejado escritor e cronista, Nelson Rodrigues, que disse ser o amigo "a desesperada utopia que todos nós perseguimos até a última golfada de vida" eu afirmo que transformei a utopia em sonho e este em realidade. Presentes nas minhas recordações e mais do que nelas, na minha alma, figuras queridas da colônia árabe - sírios e libaneses - com as quais tive a ventura de conviver. Dona Izabel Nader, hoje, desculpe-me ela a indiscrição, beirando os noventa anos, mantem a energia e o vigor da idade jovem. Ela é possuidora de excepcional memória, de uma inteligência aguda e de extraordinário senso de humor. Contadora de anedotas e fina observadora da realidade, não deixa passar incólume nenhuma situação merecedora de uma irônica ou sarcástica observação. Seu carinho por minha mãe, aliás sempre presente em vida desta, foi transferido a mim, depois que a amiga se foi. Não nos víamos fazia muitos e muitos anos. Quando assumi a presidência da OAB, em São Paulo, no dia da posse, lá estava ela na porta do Clube Paulistano, onde ocorreu a festa, acompanhada de sua neta. Foi a coroação daquele dia de grande significado para mim. Mais alguns anos sem nos ver e passamos a falar com frequência. Ofereceu-nos, a Ângela e a mim, um magnífico jantar, ao qual compareceram seus filhos e netos, dentre eles o seu filho Charles Nader, querido amigo com quem estudei no primário do Externato Paraíso. Comida árabe por ela mesma preparada. Excepcional e farta, como sempre ocorre nas mesas libanesas. Nesse dia, D. Izabel externou todo o seu afeto dedicado a minha mãe e a mim, de uma forma que só ela é capaz de fazer. Ângela e eu casamo-nos em 1970, e fomos morar em uma Vila situada na própria rua Stella, da minha infância e juventude. Duas eram as Vilas da rua Stella. Uma mais acima em frente ao Colégio Bandeirantes, e a chamada Vila de baixo, tendo o campo do Olimpicus à sua frente, em uma baixada. A casa era a de número onze. Foram dois anos, até mudarmos para um apartamento da rua Treze de Maio, no Paraíso, quase Bixiga. Dois anos felizes, porém marcados pela dureza, pelas incertezas e alguma angústia, costumeiras no início de vida dos casais. Renata, nossa primeira filha, nasceu nessa casa. Não houve nenhuma dificuldade de adaptação, pois a rua Stella era a minha rua. Assim, todos os seus moradores eram queridos amigos alguns, e velhos conhecidos outros. Na Vila todos se conheciam há muitos anos. Nossa casa ficava em baixo da de número dez, onde residia um casal ela descendente de sírios ele de libaneses, Nadine e Augusto Bucheb. Seus filhos, especialmente José Badi Bucheb (Dua) eram nossos amigos, amizade que antecedeu nossa ida para a Vila. Creio que em meados da década de cinquenta a família mudou-se para a rua Stella, e a partir dessa época solidificou-se uma amizade que perdura até os nossos dias. Houve o inevitável desfalque do casal, pois ambos já se foram. Durante esses anos, um carinho espontâneo, uma simpatia sem causa aparente, uma forte afeição vinculou todos nós aos Bucheb. O substrato dessa amizade coletiva foi a bondade de ambos, marido e mulher, herdada pelos filhos e manifestada em infindáveis ocasiões. Do Sr. Augusto ficou a figura do homem de agudo senso crítico, inteligência intuitiva muito apurada e uma peculiar graça ao comentar ou narrar fatos. Ele possuía uma especial aptidão: era exímio massagista. Na verdade, era um dom. Nasceu com intuitivo conhecimento de músculos, ossos, nervos e coisas que tais. Consta ter aperfeiçoado esse dom no clube Sírio-Libanês, onde jogou futebol. Lá observava a atuação dos massagistas e desta forma foi adquirindo e aprimorando conhecimentos. Na rua Stella, o Sr. Augusto vez ou outra cuidava dos jogadores que se contundiam nos jogos do Olimpicus e do Independente, ambos se exibiam no campo de várzea que havia na confluência das ruas Stella, Oscar Porto e Tomaz Carvalhal. Mas, não eram apenas os craques desses dois times os beneficiários de suas habilidades. Nós que praticávamos o saudoso, arriscado e romântico futebol de rua também nos tornamos seus assíduos clientes. Eu, pela falta de jeito para os esportes em razão do meu sempre avantajado corpo, me machucava, e era no pé, frequentemente destroncado, torcido ou com algum nervo lesado. Seu Augusto me socorria em sua casa, a de número 10 da vila. Recebia-me com um entre irônico e sádico sorriso. E esse sadismo, naturalmente simulado, pois ele era solidário à dor que eu sentia, ia crescendo à medida que sua mão tateava o meu pé para descobrir o lugar exato da lesão. Encontrado o local, aí, bem aí, era o ápice do sofrimento. Puxava, torcia, contorcia e punha no lugar. Às vezes bastava um único movimento, e o grito também era único. Seus instrumentos de trabalho eram uma bacia com água quente, um sabonete e, principalmente, suas enormes mãos que vigorosamente deslizavam pelo pobre pé enfermo. Como eu sabia que ele jamais cobrava pelos seus valiosos préstimos, apenas para irritá-lo e meio como vingança pelo meu sofrimento, mas já com o pé consertado eu perguntava quanto lhe devia. Imediatamente, mandava-me embora, debaixo de alguns impropérios. E eu ia mancando, mas já sarado graças à impiedosa massagem. Amigo "Rabib", como você faz falta! Desde a sua partida o meu pé nunca mais foi o mesmo... Cada gesto seu era um gesto de amor. No curso de sua longa vida dona Nadime derramou bondade. Matriarca, ela estendia o seu manto protetor sobre sua extensa família: Seu Augusto, os quatro filhos, inúmeros netos e bisnetos. Mas, ela também cobria com afeto tantos quantos tiveram a ventura de conhecê-la. Ângela e eu fomos dois dos inúmeros agraciados. Na verdade, fomos privilegiados, pois durante dois anos estivemos literalmente sob o seu amparo: morávamos na casa da vila abaixo da sua. O símbolo e ao mesmo tempo o instrumento de sua vigilante atenção era uma sineta. Ela a tocava várias vezes ao dia, ou para servir delicioso café feito à moda árabe, maravilhosas esfihas e outras inesquecíveis iguarias ou para indagar se minha mulher necessitava de algo, quando das minhas ausências. O desvelo dedicado à nossa recém-nascida filha Renata era o mesmo que dedicava a seus netos. Durante esses dois anos se cristalizaram uma amizade e uma gratidão imorredouras, a esses descendentes de libaneses, Seu Augusto, e de sírios, dona Nadime, exemplos de dignidade e de amor ao próximo, ambos fruto da imigração de povos que souberam assimilar algumas de nossas características e que nos legaram algumas de suas qualidades, numa miscigenação que pode superar as diferenças dos idiomas, hábitos e cultura em geral.
segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O tempo e as idades do homem

Dizem que as várias idades do homem o encaminham para certos hábitos, comportamentos, modo de pensar e até para posicionamentos filosóficos e ideológicos. Assim, é verdade que os mais idosos tendem a dormir menos e a cochilar mais; a sair menos de casa; a andar de forma mais arrastada; a escutar menos; enfim, ocorrem sensíveis mudanças em relação a épocas anteriores de sua vida. Hoje, no entanto, há uma tendência de se colocar o velho em contato com atividades das quais ele já havia se afastado. Mas, de qualquer forma, ainda persiste a ideia de que todo homem transforma-se em "outro homem", quando atinge idade provecta. Ideológica e filosoficamente, também há mudanças acentuadas. O jovem idealista portador de ideias revolucionárias; sempre pronto a sacrificar-se para fazer operar a transformação do mundo e imbuído de invencível otimismo, com o passar dos anos se torna mais comedido, com acentuadas preocupações pragmáticas, voltadas para a família e para a profissão. Com o passar dos anos é tomado por ceticismo, que beira um crônico pessimismo. A jornada já vivida, marcada por inevitáveis desencantos e desilusões, as restrições impostas pelo corpo, e as perdas acumuladas, que vão desfalcando o seu antes grande rol de amigos e de entes queridos, introduzem no seu íntimo uma dose de tristeza, que, por vezes, o envolve completamente. Quero, no entanto, abrir um parêntesis para uma observação: os antigos de hoje são menos antigos do que os de outrora. Explico: certo dia abrindo velho álbum de fotografias, deparei-me com a foto de meus avós paternos, Zulmira (Zizi) e Waldemar Mariz de Oliveira. Quando foi tirada, ambos não tinham mais do que sessenta e poucos anos. Uma idade, para os padrões atuais, longe de ser marcada por abstinências, restrições e ranhetices, ainda plena de realizações, de sonhos, vigor físico e alegria de viver. Pelo menos, procura-se que assim seja. Meus avós, no entanto, davam a nítida impressão de missão cumprida; chinelos nos pés, à espera da "indesejada dos homens". Conclui-se que o tempo deixava marcas mais acentuadas e visíveis de sua passagem, do que nos dias de hoje. De qualquer forma, hoje ou ontem o que mais nos impressiona e assusta no passar do tempo é o seu descontrole. Verdadeiramente, gostaríamos que o tempo, de tempos em tempos, desse tempo para que pudéssemos parar e matar o tempo. Quanto mais se avança em idade mais se tem a consciência de nossa impotência diante do tempo. Ele é mais forte do que o homem. Tal como a morte ele é inexorável. Falei o óbvio, claro que sim. No entanto, não é em todas as idades que isso nos parece verdade. Há períodos da vida em que acreditamos poder manipular, administrar e gerenciar o tempo. Assim, como há momentos da vida que pensamos ser imortais, ou ao menos não pensamos na morte e nem observamos o tempo passar. Não sei se nós é que paramos e o tempo corre, ou se como disse alguém ele é como a margem e nós somos como o rio que corre. Nesse último sentido o tempo seria estático e nós passaríamos. Tenho a impressão de que a medida que vamos passando o nosso relacionamento com o tempo fica melhor. Incrível, mas é verdade. Encaramos o tempo sem angústias, com mais calma, sem grandes aflições. Vamos indo com ele para onde ele nos queira levar.
segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

O pé de café; uma vingança futebolística

Quando eu jogava futebol e o fazia mal, chuteira era chanca e o campo era cancha. Nós, da gloriosa TS - Turma Stela - jogávamos na rua, no campo do Olímpicus da Vila Mariana, no Colégio Ipiranga, no Ateneu Brasil, na quadra da Escola Paulista de Medicina, localizada na Vila Clementino, na chácara de meu avô ou em qualquer outro espaço, transformado por nós em "campo", por menos apropriado que fosse, nós o transformávamos em "campo". Levamos a sério a nossa atividade esportiva. Além dos locais por vezes pouco adequados, as bolas e as traves em certas ocasiões eram improvisadas. Pedras, tijolos, pedaços de madeira, sapatos, tênis demarcavam os espaços nos quais os goleadores se consagravam. O nosso local preferido para jogarmos sempre foi a rua Stella, na altura do Colégio Bandeirantes. Dependendo do número de atletas jogávamos de um portão ao outro das duas calçadas. Caso a afluência de jogadores fosse maior a extensão da rua servia de campo. Aí, no entanto, nos deparávamos com uma grave questão. A Stella, nesse trecho, passava a ser uma ladeira. Assim, o time cujo gol se situasse ladeira abaixo tinha sérias dificuldades para atacar. Por tal razão, era muito importante a escolha do lado antes do início do jogo, pois normalmente ele era decidido no primeiro tempo. O futebol era possibilitado pela escassez de automóveis que desciam ou subiam a rua. No entanto, havia uns poucos motoristas que não respeitavam o nosso espaço esportivo e estacionavam os seus carros nas nossas calçadas. Bem, embora tomássemos algum cuidado, apenas algum, a bola volta e meia batia em suas fortes latarias - eram carros da década de cinquenta, início de sessenta - e nos vidros, não tão resistentes. As boladas, quando eficientes, surtiam efeitos, pois dificilmente o veículo atingido voltava a ser estacionado no nosso campo. Nossa atividade esportiva não era respeitada também por alguns moradores, que insistiam em deixar as venezianas de suas casas abertas. As janelas eram fechadas apenas com as vidraças. Se com os intrusos automóveis, nossas cautelas eram relativas, cuidado mesmo tomávamos para que as bolas não invadissem os jardins e se chocassem com as janelas dos simpáticos sobrados da Stella. No entanto, um ou outro chute mais violento e sem muita direção ultrapassava os pequenos muros das casas e, tragédia, a propriedade alheia era danificada. Corríamos para salvar a bola da fúria do dono da casa, que a confiscaria, e a submeteria a uma tortura de elevada crueldade: seria rasgada até ter um fim indigno da sua relevância, seria furada. Em uma ocasião, no entanto, as donas da casa atingidas, duas irmãs, foram mais rápidas e, sem ordem judicial, apreenderam e destruíram o nosso tesouro. Eram duas solteironas que não nos viam com bons olhos. A recíproca era verdadeira. Com o incidente as antipatias aumentaram de intensidade. Pois bem, algo precisaria ser feito para que a bola fosse vingada, a sua memória reverenciada e a nossa honra restituída. Sentíamos-nos humilhados. Ai, então, surgiu a ideia. Havia no jardim do sobrado onde elas moravam um pé de café. Bonito, de meia altura, de um verde reluzente, chamava a atenção. Em razão da perda da nossa estimada e imprescindível pelota, nada mais adequado do que o pé de café. Dente por dente . . . Ele foi cortado em uma noite de lua cheia, portanto não à luz do dia, pois não seríamos tão insanos. Mas à luz da lua. O cortamos e o deixamos encostado na porta, obstruindo a passagem das moradoras. Imagine-se a repercussão que o nosso ato de justiça teve nas imediações. Fomos alvo de algumas críticas, mas de muitos elogios, pois as duas cafeicultoras não gozavam lá de grande prestígio na vizinhança.
segunda-feira, 21 de novembro de 2011

O gosto da infância

Maravilhosos eram os pães franceses da Panificadora Bastos, localizada na rua Vergueiro. Lembro-me ir diariamente com minha mãe até a padaria, por volta das seis horas da tarde. Eles vinham embrulhados em papel simples, o que permitia que eu o rasgasse e beliscasse as casquinhas crocantes, fato que irritava a minha mãe, pois os pães ficavam mutilados. É interessante como tais fatos ligados ao sabor e também ao olfato marcam nossa infância. Na verdade, é a própria infância que empresta o sabor e o aroma que impregnam os nossos sentidos e se fixam na memória. Qualquer iguaria que nos tenha marcado se vier a ser provada na idade adulta não nos proporciona o prazer do passado, mesmo sendo uma fiel reprodução da receita primitiva. A saudade da época vivida, daqueles que se foram e mesmo a saudade de nós mesmos, trazem-nos lembranças de fatos que jamais se repetirão, e se apresentam por meio dos dois sentidos. Todas as recordações gastronômicas se fazem acompanhar de lembranças de pessoas, lugares e situações especiais. Os pães, por exemplo, estão ligados à Panificadora que os fabricava e à minha mãe que os comprava e impedia que eu os comesse antes de chegarem ao destino. Procuro há mais de cinquenta anos um sorvete que se equipare ao de nata da Mercearia Carioca, localizada em Santos, especificamente no Boqueirão, esquina das ruas Epitácio Pessoa e Oswaldo Cruz. Embora eu continue a procurar o magnífico sorvete de nata, sei que a minha peregrinação pelas sorveterias restará infrutífera. Não sei com que regularidade, mas sei que ela descia a rua Stella pela manhã acompanhada do som inconfundível de um sininho. Vinha ele pendurado no pescoço de uma cabra, anunciando a chegada do leite que era vendido de porta em porta. Minha avó descia de sua casa com um ou dois copos e os enchia de um leite tirado diretamente da fonte. Espumoso e quentinho. Leite forte, substancioso, nutritivo e com um sabor inesquecível. Mas, verdadeiramente marcante era o carinho com que minha avó providenciava o leite para o neto, já à época muito bem nutrido. Desta mesma avó, o zelo, o afeto e o carinho dedicados a mim, aos outros nove netos e a quem frequentasse a sua casa, na verdade compunham os maravilhosos doces que ela preparava. Todos eles eram à base de ovos, muito açúcar, farinha, creme, e óbvio colesterol, que, no entanto, era o bom, pois havia o ingrediente do amor. Não se pense que se limitava aos doces as qualidades culinárias de minha avó. Não, pois havia também os salgados. As minhas lembranças sensoriais registram, ainda, as magníficas empadas de queijo e o excepcional cuscuz. Quanto a esse extraordinário prato genuinamente brasileiro anos depois eu encontrei quem se igualasse à Dna. Zizi, nome de minha avó: trata-se de nossa querida amiga Regina Rocha, mãe de meu genro Marcelo. Se o sorvete de nata, o leite de cabra, as balas de coco de minha mãe, e tantos outros sabores da infância não foram reencontrados, o cuscuz foi fiel e felizmente reproduzido. Os gostos inesquecíveis não eram apenas os da infância. Depois das empadas, do cuscuz, do leite de cabra, do sorvete de nata, das balas de coco, com a adolescência outros vieram tão saborosos, e significativos quanto os que me marcaram quando criança. As magníficas coxinhas da Panificadora ABC, localizada na esquina da Domingos de Moraes com a rua José Antonio Coelho. O ABC era uma instituição. Gozava de uma imaculada reputação, e deixou marcas no sentimento e na memória de todos os seus frequentadores. Não era uma padaria como as de hoje. Havia pães deliciosos, um insuperável creme de chantilly, frios magníficos, mas dois eram os pontos culminantes: a coxinha e o chope. Eu falei padaria, mas na verdade era um misto de padaria e de um bar refinado. Seu barman era o Geraldo, um querido amigo, a alma do ABC. Se ainda era ainda comum vender-se fiado nos empórios, armazéns, farmácias e lojas, etc., fiar chopes, coxinhas , empadas, e outras bebidas e guloseimas era incomum, no entanto, o Geraldo nos fiava, e mais, burlava a lei e vendia bebida alcoólica a nós ainda menores de dezoito anos. Os sabores do passado acompanham-me trazendo a imagem de pessoas queridas e de fatos memoráveis, protagonistas de uma época marcada pela bonomia, pela amorosidade, pela solidariedade, por gentilezas e atenções, marcas então presentes nos relacionamentos pessoais, que tornavam a vida risonha e franca, tal como as escolas da época.Esses sabores, eu creio, produzem em meu espírito o que as madelaines provocavam em Proust : a agradável sensação da "memória afetiva".
segunda-feira, 7 de novembro de 2011

Povo saudável, mas sem graça

Lembrava-me, outro dia, do prazer de fumar um charuto especialmente para comemorar um grande acontecimento, motivo de intensa alegria ou como complemento de momentos agradáveis passados com pessoas queridas. O nascimento de um filho, ou de um neto, um estupendo almoço, ou mesmo tranquilos momentos de paz e de reflexão eram magnificamente coroados por havanas inigualáveis ou mesmo por deliciosos charutos baianos. Refiro-me também ao britânico cachimbo tão prazeroso quanto os charutos ou as cigarrilhas. Estes prazeres nos foram retirados pela ação dos paladinos da saúde alheia, pregadores de uma vida saudável (será?) mas extremamente sem graça, sem poesia, sem romantismo. Não me refiro apenas ao fumo. Temo pelo futuro de tantas outras atividades que dão sabor à vida, tais como beber, frequentar botecos, perambular pelas ruas até altas horas - desde que com a permissão dos assaltantes - comer doces e frituras, amar e fazer sexo. Não passará muito tempo e campanhas contra o álcool, contra o sexo, contra a música, contra algumas práticas esportivas notadamente, creio eu, o futebol serão desencadeadas. Cada uma delas terá um pretexto, que a boa propaganda tentará transformar em convincente razão. A campanha contra a ingestão de bebidas alcoólicas até já está pronta. Basta adaptar a que foi utilizada contra o cigarro e teremos mais uma cruzada em prol da saúde. Aquela que será desencadeada contra o sexo terá na defesa dos bons costumes e da moralidade os seus fundamentos de maior envergadura. De pronto, algumas respeitáveis entidades passarão a ser os arautos da abolição do sexo antes do casamento, e neste concordarão apenas se o objetivo for a procriação. Condicionamentos ao comportamento humano aumentam a cada dia. Uns são antigos, emanam de regras tradicionais que regulam o relacionamento interpessoal. São aceitas e cumpridas pela maioria, que têm consciência da necessidade de obedecê-las, em nome da harmonia social. Outros, no entanto, surgem como decorrência de novos costumes, hábitos recentes, manias que se espalham de forma invisível e acabam se alojando no corpo social, com a eficiente colaboração da mídia e não raras vezes apresentando nítido interesse comercial. Por vezes, leis são editadas determinando a adoção de tal ou qual comportamento, sob pena da aplicação de sanções. E, como há pairando sobre nós uma cultura repressiva, para que a lei tenha eficácia, apela-se para a polícia que passa a ser a guardiã do seu cumprimento. Lembre-se das cadeirinhas para crianças, cuja obrigatória utilização passou a ser um caso de polícia. Blitzes foram organizadas, nos moldes daquelas formadas para combater o crime. Policiais armados passaram a verificar a existência ou não das cadeiras, perante os aturdidos pais e das assustadas crianças, com o mesmo empenho empregado nas batidas para encontrar tóxicos e armas dentro de automóveis. Quantos abusos não foram cometidos nas ações de combate ao álcool ingerido por motoristas. As autoridades, amparadas pela lei que é genérica, a cumprem de forma indiscriminada, sem levar em conta as diferenças e nuances de cada caso, as quais se consideradas evitariam uma série de injustiças e de desmandos. Não se pode culpar os policiais, pois não sendo juízes, não levam em conta as particularidades de cada caso, e colocam na vala comum todos os excederam os limites legais, pouco importando o grau do excesso. Em verdade, quanto mais leis são editadas para regular a conduta das pessoas, mais deseducada é a respectiva sociedade. Com efeito, a liberdade de escolha com responsabilidade, o respeito aos direitos alheios e aos da coletividade, o senso claro dos limites de suas ações, a solidariedade e o sentido do bem comum podem substituir imposições legais. Campanhas educativas bem conduzidas igualmente podem alterar situações danosas, sem nenhuma coação sancionatória. Lembre-se da campanha anti tabagismo que produziu excelentes resultados sem qualquer ameaça de punição. Em resumo, a lei não altera comportamentos, que são melhorados quando há a assunção individual e coletiva de responsabilidades. Isto é civilização. Desta forma teremos uma sociedade mais consciente dos seus deveres e ao mesmo tempo dos seus desejos e necessidade, e, com certeza menos restritiva e chata.
segunda-feira, 24 de outubro de 2011

Cadeira de balanço

Era imenso o prazer de ficar sentado em uma cadeira de palha e de balanço, ouvindo-a contar histórias, que sempre eram as mesmas. A cadeira de balanço era a sua preferida, mas para o neto ela a cedia, sentando-se em uma outra, que também balançava, mas que não era a típica cadeira de balanço do mobiliário brasileiro tradicional, como a outra. Não se pense que o seu despojamento significava que eu fosse o seu neto preferido. Não, com certeza eu não o era. Ela possuía netos e netas, éramos dez ao todo. Suas inclinações eram para alguns, dentre os quais meu irmão José Eduardo, que pela proximidade das nossas casas e pela sua pouca idade, era o seu xodó, ou um deles. Os outros eram, Celina, a mais velha de nós e Eduardo, talvez aquele que a cativasse por ser o mais engraçado e arreliento de nós todos. Mas, não se pense também que os outros, os fora do rol dos preferidos, não fossem alvo de sua extremada afeição, do seu carinho e acima de tudo da sua paciência. Sim, ela era afetuosa e paciente com todos nós, especialmente comigo que a fazia repetir histórias já contadas. Como todas as avós da minha geração, ela era uma exímia cozinheira. Na verdade ela se destacava como doceira. Os seus doces eram magníficos, à base de ovos, farinha, de muito açúcar, e, evidentemente, colesterol, mas o bom. Para irmos tomar refeições em sua casa não era necessário aviso prévio. Não, não era preciso, isto porque a qualquer hora do dia ou da noite a mesa estava posta. A farta mesa era apenas para ela e para uma empregada, pois morava sozinha desde a morte de meu avô. O hábito de manter a mesa posta é também uma tradição da família brasileira antiga, tal como a cadeira de balanço. Voltando à cadeira de balanço, eu me sentava e ela, antes de sentar-se na outra, que como disse, não era a verdadeira, abria o seu pequeno bar, e servia-me um martini. Ela também se servia da intragável bebida. Na verdade, abominável bebida, pois além de naturalmente ruim o martini servido era doce. Eu estava começando a adquirir cultura etílica, que foi se aperfeiçoando com o tempo, levando-me a nunca mais tomar o execrável martini doce. No entanto, depois de muito refletir, eu cheguei à conclusão de que as bebidas ruins se tornam toleráveis e até apreciáveis dependendo do nosso estado de espírito, e da companhia com quem se bebe. Devo dizer que a minha avó justificava seus esporádicos goles, ora de vinho, ora de martini , ora de wisk, com a sua pressão arterial. Se a pressão estivesse alta a bebida indicada era uma, se estivesse baixa era outra. Por vezes ela as invertia... Certo dia, em seu aniversário, meu primo Eduardo apareceu na sala onde estavam todos os seus filhos, noras, netos e demais convidados, empunhando uma garrafa de cachaça que ele afirmou, marotamente, haver encontrado em baixo da cama de nossa avó. Exibiu a garrafa, salvo engano era da marca "Tatuzinho" e perguntou a ela: "Vó, o vinho é para pressão alta, o wisk para pressão baixa, e a cachaça? Vovó não se fez de rogada e de pronto respondeu: "Ah, o médico não falou para que servia a cachaça..." Esclareça-se, que a história da cachaça foi invenção do seu neto, meu primo. No entanto, é verdade que vez ou outra ela ingeria uma "pinguinha", mas na forma de "meia de seda" ou de " leite de onça", preparados por ela. Fecho mais esse parêntesis e retorno à cadeira de balanço. O abominável martini doce era acompanhado por castanhas de caju, pois sempre havia uma latinha em seu bar. Como eu disse, as histórias que ela contava eram as mesmas, mas nunca eram contadas da mesma maneira. Assim, algumas delas apresentavam versões diferentes, fato que as tornavam ainda mais interessantes. Alguns dos episódios por ela narrados, por terem várias versões, ficavam envoltos em mistério, que ela fazia questão de não desvendar. Um desses episódios eu denominei de "baile branco". Outra pausa, minha avó era belíssima, conforme atesta uma sua foto tirada aos dezoito anos, que ficava em cima do piano da sala. Pois bem, a cidade de Sorocaba, sua terra natal, no início do século passado, era rica e cultivava hábitos da corte. Um desses era o seu famoso "baile branco", acontecimento onde imperava o requinte, a elegância e a sofisticação da época. Ponto alto da temporada de eventos e festas sorocabanas, a preparação do baile antecedia meses e a festa era aguardada com muita ansiedade pela sociedade, em especial pelos jovens. Minha avó se ufanava de sempre ter sido considerada a mais bela jovem do referido e de outros bailes, festas e recepções de sua cidade natal. Era, segundo dizia com indisfarçável orgulho, a mais assediada e cortejada, sendo disputada para todas as danças. Durante os tradicionais footings, todos os olhares se voltavam para ela e não eram raros os tropeções e os esbarrões quando pescoços se viravam para vê-la e para chamar a sua atenção. Dentre os seus admiradores havia um farmacêutico, ainda de acordo com a sua nada modesta narrativa, que estava apaixonado, mas com quem ela nada queria. À época, ela já namorava o meu avô. Inconformado com o desinteresse de minha avó, o farmacêutico que conhecia e mantinha relações com meu avô, o teria atraído para a sua farmácia, na tarde da realização de mais um baile branco. Meu avô teria ido, se não fosse a interferência de um amigo que desconfiado das intenções do boticário, impediu a sua ida. Nesse ponto a história se tornava nebulosa, misteriosa. Indagada por mim, sobre o que pretendia o seu fã com o seu namorado, futuro marido, ela limitava-se a dizer que os seus objetivos não eram os mais saudáveis. Segundo corria na cidade o farmacêutico estava tramando a morte de meu avô. Nunca se soube se o risco era real ou não, bem como qual seria o meio empregado para o homicídio. Outras tantas histórias eram contadas. Suas, de meu avô, de irmãos, sobrinhos, cunhados e demais parentes. Uma delas era a de um sobrinho, extremamente mentiroso, que emocionava suas tias, incluindo a minha avó, quando narrava as agruras por que passara na revolução de 1932. Dizia ter comido papel de jornal durante quase uma semana, pois não tinha com o que se alimentar. Após a narrativa, as tias comovidas às lágrimas, cotizavam-se e davam um dinheiro para o faminto sobrinho, que dizia precisar de tratamento médico, pois ainda sofria do estômago pelo excesso de jornais ingeridos. Havia uma sobrinha que muito a preocupava, quando ia à sua casa. Tratava-se de uma enfermeira que se especializara em cuidar de senhores idosos, ricos e viúvos, com os quais ela se casava. Casou-se três ou quatro vezes, número de vezes que ficou viúva. Apesar de seus cuidados, seus maridos morriam em suas mãos. Meu pai dizia, com seu peculiar jeito galhofeiro, que ela provocava a sua viuvez. De tanto meu pai repetir essa sua teoria, vovó passou a não ficar à vontade com as idas da sobrinha à sua casa... Mais e mais histórias ela as contava, mais eu as queria ouvir, pouco importando se novas ou repetidas. O encanto das suas recordações, a suavidade de sua voz e o embalo da cadeira de balanço me proporcionavam uma "pacata satisfação de viver", muito marcante em minhas recordações.
segunda-feira, 10 de outubro de 2011

Chácara Zizi

Era uma propriedade com aproximadamente vinte e quatro mil metros, equivalentes a um alqueire paulista. Localizava-se em Diadema, ainda não elevada à categoria de município. Na verdade, era uma pequena vila, chamada, salvo engano Vila Conceição, com uma igreja, um bar empório e pouquíssimos habitantes. Não possuía asfalto e era carente de muitos outros benefícios urbanos. No entanto, ou talvez por tais características, possuía o encanto de um bucólico vilarejo. Não me lembro de Diadema ser cortada por nenhum riacho, mas deveria haver algum. Frequentei a chácara Zizi, nome em homenagem à minha avó paterna, em dois momentos da minha vida. Na infância e na adolescência. Foram experiências distintas. Eu tenho algumas vagas e agradáveis lembranças das idas da família à chácara quando era criança. Recordo-me que havia problemas com a energia para a iluminação da casa. Existia uma máquina, movida à querosene ou à gasolina, que deveria ser acionada por uma cordinha. A geradora estava localizada na garagem, e meu pai se incumbia do seu funcionamento. A torcida era grande. Todos ansiosos aguardavam a luz surgir na casa e na própria garagem. Quando isso não ocorria de imediato, meu pai ia perdendo a paciência, até que dava um fatal puxão na corda. Pronto, arrebentada outra deveria ser providenciada. Começava outra luta, esta travada pelas mulheres que exercitavam a sua capacidade de improvisação. Usavam pedaços de corda, pano rasgado e até fios de lã. Enquanto não retornava a paciência de meu pai e a luz, a escuridão era quebrada apenas por um grande lampião. Imagem que também tenho nítida na memória é a de minha avó fazendo pães em forno apropriado, que ficava fora da casa. Os pães eram colocados e retirados do forno de alvenaria com uma enorme pá de madeira e eram comidos na hora em que ficavam prontos. Quentes, a manteiga derretia. Até hoje tenho a agradável sensação de os estar comendo. Do aroma também me lembro. Lembro-me das frutas da chácara. Na verdade, não havia um pomar, mas sim inúmeras árvores frutíferas espalhadas pelos quatro cantos e que nos forneciam jabuticabas, goiabas, pequenas mexericas e mangas. Como eu era de pouca agilidade física, não as colhia em uma das árvores. Esperava que caíssem ou que alguém as colhesse para mim. As jabuticabas enchiam bacias que eram distribuídas a quem as quisesse. Das goiabas restou o aroma, pois o sabor não me agradava, a não ser quando transformadas em doce. As mexericas, azedinhas e abundantes em caldo, deixavam inesquecível cheiro nas mãos ao descascá-las. As mais apreciadas eram as mangas, estupendas mangas. Havia um pequeno campo de futebol, que na minha infância também servia de quadra de tênis. Rodeado pelas árvores, tinha em uma das laterais uma fileira de pé de café. Para mim, um enorme cafezal . . . Ao lado do campo havia um alpendre onde a família se reunia para os almoços. Quando dormíamos na chácara, eu me fazia acompanhar de uma bela cartucheira de madrepérolas, que continha dois revólveres dourados. Ao deitar-me pendurava as "armas" na porta e sentia-me protegido e seguro. Por falar em armas, há uma história corrente na família que meu tio Eugênio Mariz de Oliveira Neto - Marizito - combatente de trinta e dois, escondera seu fuzil na chácara, enterrando-o em algum lugar. Jamais se comprovou tal fato. No entanto, já crescido, eu encontrei uma caixa de lata repleta de balas, provavelmente a munição do misterioso fuzil. Depois da infância voltei a ir à chácara Zizi, já a partir dos catorze, quinze anos até ela ser vendida. A família já não ia mais. Outra gente passou a usufruir daquele paraíso campestre. Era a minha gente, tal como a minha família. Éramos gente da rua, da nossa rua Stella. Éramos da rua e também de rua, pois dela não saíamos. O nosso mundo era a Stella e adjacências. A casa servia apenas para as refeições, assim mesmo algumas delas e para dormir, isto por indeclinável imposição dos pais. No fim da década de cinquenta e início da seguinte, passamos a ir à chácara com grande regularidade. Pegávamos o ônibus Diadema na rua Domingos de Moraes. Nunca éramos em menos de quinze. Levávamos bola, chuteiras, naquele tempo eram chamadas também de chanca, algumas vezes camisas de clubes de futebol e, pasmem, alguns entravam no ônibus portando espingardas de chumbo. Não se assustem, pois a fauna era preservada. A pontaria dos caçadores era ridícula. O trajeto era longo. Saíamos por volta das oito horas e não chegávamos antes das nove. Mas, era sempre uma festa. Sempre uma festa, que se prolongava durante todo o dia, até o anoitecer, quando voltávamos. Por vezes, a festa era entremeada por acalorados bate bocas, que se transformavam em confronto físico, de imediato contido e findo com a confraternização dos contendores. Os entreveros ocorriam sempre nos embates futebolísticos travados no que achávamos fosse um campo de futebol. As partidas eram constantemente interrompidas ou pelas brigas, ou porque perdíamos a bola ou ainda porque as traves caiam. A chácara possuía uma vegetação exuberante. Com grandes árvores, mata densa, cortada por alamedas que conduziam à sua parte baixa, onde havia um riozinho que formava um pequeno lago aonde nadávamos, ou melhor nos molhávamos. No entanto, o que mais a ornamentava eram as hortênsias. Maravilhosas hortênsias existentes na entrada da chácara, do portão até a casa e ao seu redor. Lateral à cerca de arame que fazia divisa com outra propriedade, nos fundos da chácara, corria um estreito caminho que ligava as suas duas extremidades. Nesse caminho existia uma imagem de Nossa Senhora, dentro de uma pequena gruta. Nos referíamos à ela como a "santinha". Além da casa principal, casa simples, havia a casa do caseiro. Em frente a ela algo somente visto em gravuras e fotos de outros países: um moinho de vento. Na verdade, a chácara nos oferecia contato com coisas absolutamente inexistentes em São Paulo. Além do moinho de vento, da "santinha", das árvores frutíferas, da máquina de produzir energia, das hortênsias, do forno para pães, havia um chiqueiro, com porcos de verdade, uma máquina para moer cana e fazer garapa, um milharal, um fogão à lenha e uma enorme caixa d'água. A chácara nos proporcionava uma ruptura dos nossos padrões urbanos. Entrávamos em contato com um pequeno mundo rural, que para nós era absolutamente desconhecido. Ademais, nós nos sentíamos livres de quaisquer proibições. Por vezes chegamos a invadir um propriedade vizinha, para usufruir a piscina lá existente. Ficávamos até a inevitável expulsão, sob a mira de espingarda que imaginávamos fosse de sal ou de chumbinho. Naquela época não se atirava para valer. Na realidade, na nossa trajetória de vida, há símbolos marcantes. A chácara Zizi teve um significado extraordinário em minha vida. Como bucólico espaço físico simbolizou a fuga da vida urbana para a rural; bem como a transposição dos afazeres do estudante e do iniciante trabalhador para o ócio, para os folguedos, para o esporte - mal praticado, diga-se. Era a maravilhosa vagabundagem exercitada com amigos fraternos, inesquecíveis cúmplices de uma inesquecível experiência existencial.
segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Os engraxates

Durante quatro anos seguidos eu frequentei Águas de Lindóia, balneário localizado no interior de São Paulo, dotado de águas milagrosas, pelo menos era o que se dizia. Para o meu problema de alergia de pele elas eram salvadoras. Eu lá ficava durante vinte e um dias, que era o prazo da temporada. Acordava às seis horas para tomar os banhos medicinais e de meia em meia hora, ou menos, não me lembro, tomava as águas em quantidades dosadas. As manhãs eram desagradáveis. Começavam cedo e eram quase integralmente gastas com banhos e ingestão de água. Havia ocasiões que eu ainda conseguia, ao voltar para o hotel, que se chamava do Lago, andar a cavalo. A cidade possuía uma única rua, não asfaltada; um único cinema, chamado Guarany; uma única farmácia, na qual eu comprava sabonetes e cremes medicinais, todos fabricados pelo Dr. Tozzi, dermatologista famoso, percussor dos tratamentos. Eram inúmeros e imponentes os hotéis, destacando-se, à época, o Tamoio e o Glória, esse o mais elegante e frequentado principalmente pela colônia libanesa. O cinema também era único. Cine Guarany - havia um hotel, chamado também Guarany e a farmácia, idem Guarany. Não sei a razão, mas eu me lembro de um filme que ficou gravado em minha memória, ou melhor, apenas o nome do filme, pois nem sei se o assisti. Chamava-se "A Condessa Descalça" salvo engano com a atriz Ava Gardner. Mas, na verdade eu não quero falar de Lindóia, mas dos engraxates de Lindóia, que podem representar todos os engraxates espalhados pelo Brasil. E mais, encarnam todos os prestadores de serviços, que exercem funções imprescindíveis para o nosso cotidiano, sem os quais nos colocamos por vezes em desespero, tal a necessidade que temos dos seus trabalhos. São os eletricistas, os encanadores, os pintores, os marceneiros, no meu tempo de criança os limpadores de fossa, os mecânicos, os sapateiros e tantos outros. É bem verdade, que muitos deles não mais trabalhavam individualmente, pois estão empregados em firmas prestadoras desses mesmos serviços. No entanto, ainda os há laborando em suas pequenas oficinas e nos atendendo em casa ou, como os engraxates, nos servindo nas ruas, quando não nas barbearias ou nos aeroportos. Uma parcela da nossa sociedade se refere a eles como serviçais. Os engraxates de Lindóia percorriam o balneário e os terraços dos hotéis da cidade, inclusive o terraço do Hotel do Lago, onde eu me hospedava. Eu me impressionava com a habilidade manual desses artistas do brilho. Escovas, panos, latas de graxa e vidros de tinta passavam por suas mãos com uma rapidez e agilidade incríveis. Os sapatos ficavam reluzentes, especialmente os de verniz. Estes se transformavam em verdadeiro espelho. E, com que orgulho os engraxates, eram pequenos engraxates, ao final da engraxada, olhavam para a sua obra de arte, os sapatos, e para o freguês, aguardando um elogio. Os engraxates tinham suas manias, os seus códigos e normas, que eram seguidos a risca por todos eles. Quando era para o freguês, ou melhor, o cliente, pois assim eles os chamavam, trocar de pé batiam com a escova do lado da caixa; quando o pé não ficava muito firme, para acertá-lo davam um ligeiro empurrão na ponta ou no calcanhar; se o cliente fosse antigo e conhecido por dar boas gorjetas ao invés de uma mão de graxa, eram aplicadas duas ou três; ao terminar a engraxada nada era dito, eles se limitavam a retirar os protetores das meias. Gostava de vê-los em ação. Eram ótimos no que faziam e sentiam orgulho em dar lustre nos sapatos alheios. Consideravam tal tarefa de primordial importância para a composição estética de um homem. E, realmente, sapatos bem engraxados denotam asseio pessoal, bom gosto e elegância no trajar. Eram orgulhosos e briosos, possuíam autoestima. Enfim, estavam felizes consigo e não se sentiam inferiorizados pelo que faziam e por estarem em contato permanente com pessoas de outra classe social, especialmente com jovens, muitos deles arrogantes e sem educação. Se de um lado eu sentia admiração pelos engraxates, a atitude de alguns, e não eram poucos, de seus clientes me causava revolta e indignação. Não eram os jovens apenas, mas também seus pais, que demonstravam pelas atitudes rudes e por vezes agressivas o desprezo que sentiam por aqueles que estavam numa atitude que eles imaginavam de subserviência. A colocação física de ambos, um em plano elevado sentado, e o outro abaixado aos seus pés, já dava essa impressão. Depois, um trabalhava e o outro aguardava para pagar. E, o fazia com pouco caso, como se fosse uma esmola e não a remuneração por um trabalho. Não houvesse engraxates para terem os sapatos limpos teriam que sujar as mãos com graxa. Algo inadmissível. Nenhum dedo de prosa; nem bom dia ou até logo; inimaginável um elogio, mutismo absoluto, exatamente para configurar a distância de classes. O pouco caso, a soberba e a empáfia de muitos dos clientes chamavam a minha atenção e provocavam uma revolta silenciosa, pois eu nada dizia. Ou melhor, dizia sim aos meninos engraxates. Indagava se eles não se sentiam mal, até humilhados em face do constante menosprezo do qual eram vítimas. Respondiam que não, pois estavam habituados. Ademais, o seu ganha pão, e para muitos o sustento de toda a família, dependia do que lhes era pago pelas engraxadas. A situação dos engraxates de Lindóia retrata aquela que ainda persiste em nosso país e em outros cantos do mundo em vários níveis e circunstâncias. Um fosso social, aberto e mantido por uma pseudo elite que insiste em se manter isolada do contexto social existente, e mais, que apregoa e age como se houvesse uma ridícula superioridade entre os vários segmentos da sociedade. Esta elite gostaria que houvesse um verdadeiro apartheid social.
segunda-feira, 12 de setembro de 2011

A ré fujona

Sua aparência era a de uma moça simples, humilde, extremamente tímida e recatada. Pouco falava, fato que em muito dificultou as primeiras entrevistas. Casada há vários anos, certo dia matou o marido. Matou-o com um tiro na nuca. Sim, a vítima foi atingida na nuca quando assistia à televisão. Aguardava a esposa vestir-se para irem a um casamento. Ela desceu as escadas da casa armada e sem nada dizer acionou o gatilho alvejando-o mortalmente. Em uma primeira versão afirmou haver tropeçado em um carpete... A minha primeira preocupação foi saber os motivos que a levaram ao cometimento do crime. No entanto, nem nas primeiras nem nas últimas reuniões ocorridas às vésperas do Júri, eu soube com clareza as razões do homicídio. Evasivas e frases por vezes desconexas, perguntas sem respostas, falta de objetividade deixaram-me sem conhecer os fatos que teriam armado as mãos daquela moça franzina, retraída, de pouco fala. Não só por necessidade profissional, para poder aparelhar-me a fim de defendê-la adequadamente, como por natural curiosidade, passei a conjeturar, formular hipóteses e suposições, procurando desvendar o mistério que cercava o homicídio. A partir de um não pequeno rol de cogitações eu fazia as mais variadas indagações, na procura dos motivos do crime. Mas, nada. Absolutamente nada me era esclarecido. Agressividade do marido; existência de outra mulher; algum interesse patrimonial; algum tipo de pressão psicológica, enfim, árduos exercícios mentais não conduziram a nenhuma resposta. Enquanto foi possível, a defesa centrou-se em questões processuais, levadas ao conhecimento de todas as instâncias, por meio dos recursos cabíveis, após a decisão de pronúncia. A grande preocupação continuava a ser o desconhecimento das causas da sua conduta. Ela, por sua vez, continuava em seu mutismo. Interrogada pelo magistrado, tal como fizera no inquérito, prestou declarações evasivas, contraditórias e, portanto, nada esclarecedoras. Após todo o curso do processo passei a achar que a sua conduta fora desmotivada. Agressões, traição, abandono material, maus tratos, ameaças, incompatibilidades com a família do marido, enfim, todas as situações e razões possíveis que caracterizam homicídios dessa natureza não se apresentavam como causa daquele crime. Sempre que eu indagava sobre esse ou aquele motivo, ela não o confirmava, mas também não o negava peremptoriamente, deixando no ar possibilidades variadas. A denúncia atribuía o móvel do crime à ameaça de abandono. Mas, na mesma peça estava estampado que o casal iria, por consenso, separar-se. Uma outra razão foi posta na inicial: a mulher se negava a engravidar, contrariando o desejo do marido. Por fim, a imputação continha o ingrediente dos ciúmes, como o motivo do homicídio. Vê-se a falta de coerência da própria acusação quanto aos motivos do crime. Não se trata de falta de objetividade ou de desatenção do promotor, ao examinar a prova. A confusa denúncia foi fruto da confusa prova até então existente nos autos, confusão esta que não restou sanada durante a instrução processual. A pronúncia sobreveio e algum tempo depois foi marcada a data para o julgamento perante o tribunal do Júri. No dia, um clima de tensão instalou-se no plenário. O julgamento de Suely veio cercado de especial expectativa, pelo manto de mistério que envolvia os motivos do crime e pela sua forma de execução, deveras chocante. O seu interrogatório não removeu o mistério. A ré tergiversou, gaguejou e, por fim, emudeceu. Os prognósticos do Júri eram os piores possíveis. A defesa técnica não teria nenhum respaldo na autodefesa, praticamente inexistente. Após o relatório feito pelo magistrado, houve longa leitura de peças, e nitidamente a má impressão causada pelo caso desde o início do julgamento foi reforçada. Por volta das vinte e duas horas o magistrado suspendeu a sessão, não sem antes providenciar alojamento no fórum para que os jurados e as testemunhas de acusação e de defesa pudessem pernoitar, dentro do regime de incomunicabilidade determinado pela lei. A acusada, por estar em liberdade, retirou-se, com o compromisso de retornar no dia seguinte pela manhã, para que o julgamento tivesse prosseguimento com o depoimento das testemunhas e os debates. No dia seguinte, toda a liturgia do julgamento foi seguida para a reinstalação da sessão, com a presença de todos os protagonistas da cena judiciária : juiz; jurados; advogado; promotor, funcionários, policiais; espectadores e... claro, faltava alguém, exatamente a figura de proa, a personagem indispensável à continuidade do espetáculo: a acusada. Esperou-se horas. Aliás, espera-se até hoje, pois o banco destinado aos réus continua vazio. Suely desapareceu, rigorosamente desapareceu, pois eu nunca mais tive notícias a seu respeito. Talvez tenha tido a sensibilidade de verificar que seu caso era perdido. Ou, soube do fato ocorrido naquele mesmo dia, em outro plenário vizinho : o acusado saiu algemado ao final da sessão. Possível que tivesse receosa de ter o mesmo destino, ou ainda, hipótese não descartável, não confiou em seu advogado !
terça-feira, 30 de agosto de 2011

Lendas, mitos e símbolos

Interessante crônica escrita por Ruy Castro e publicada pelo jornal Folha de S. Paulo, denominada "Publique-se a Lista", mostra como certos fatos passam a ser aceitos tal como foram narrados, sem, no entanto, estarem de acordo com a realidade e como certas afirmações adquirem ares de verdades absolutas, quando são totalmente contestáveis. São as lendas, os mitos e os símbolos que passam a compor a realidade em substituição aquilo que verdadeiramente é, mas que passa a deixar de ser. Na crônica, Ruy Castro faz menção a um filme, "O Homem que Matou o Fascínora", onde um senador americano construiu a sua carreira política com base no fato de haver matado um célebre criminoso, quando na verdade o responsável pela morte havia sido um ex-pistoleiro, protagonizado por John Wayne. O senador é vivido por James Stuart. Durante anos, aquela versão foi considerada verdadeira e surtiu os efeitos políticos desejados pelo senador, até que ele resolveu revelar a verdade a um jornalista, que lhe disse "quando a lenda se torna realidade publica-se a lenda". Ruy Castro, na mesma crônica, mostrou que entre nós houve uma disputa entre dois políticos mineiros a respeito da autoria de uma máxima semelhante àquela referente ao filme. "O importante não é o fato, mas a versão". Quando José Maria Alkmin disse a Benedito Valadares, até então considerado o autor da frase, que ele estava se apropriando do pensamento que era dele, Valadares de pronto lhe respondeu que realmente o que importava e prevalecia era a versão e não o fato... Na mesma edição, o jornal publicou um artigo do erudito Antonio Cícero, em que ele fala sobre Fernando Pessoa e os mitos e discute se os mitos precedem à poesia ou se é esta a criadora dos mitos. Citou, ainda, uma frase de Pessoa digna de reflexão: "Desejo ser um criador de mitos, que é o mistério mais alto que pode obrar alguém da humanidade". A propósito é pertinente uma comparação entre a mitologia e o simbolismo esse tão em voga nos dias de hoje. Os mitos e as lendas são pré existentes e impessoais, criados pela cultura popular ou fruto da criação poética, literária e mesmo filosófica. Já o simbolismo tem uma conotação pragmática, pois se dirige a fins específicos que geralmente objetivam enganar e iludir. O simbolismo transmite conceitos e impressões que não correspondem à realidade dos fatos e das verdadeiras intenções. Cria situações ilusórias que ficam entranhadas no subconsciente coletivo, influencia condutas e forma convicções, dando a enganosa ideia de que algo é, quando na realidade não é. Um observador atento da sociedade brasileira poderá verificar que houve uma substancial modificação na tábua de valores que rege a vida em sociedade e as relações inter-pessoais. Outros são os referenciais e os critérios de avaliação da conduta e do caráter das pessoas. Houve época em que se prestigiava o ser. A característica que prevalecia e tinha realce nas pessoas e nas situações da vida era a que constituía a sua essência, o seu eu, a sua própria realidade. Posteriormente, houve uma substituição do ser pelo ter. Houve uma tal voracidade consumista que provocou uma transformação rápida e radical na sociedade. Passou a valer aquele que possuía e não mais aquele que era. Soma-se à ganância a esperteza, representada pela famigerada "lei de Gerson". Durante algumas décadas, constituímos uma sociedade hedonista, pouco solidária e individualista. No presente, percebe-se um retorno, embora tímido, aos valores que não têm na competição e no consumo seus pontos mais salientes. Esse movimento é percebido especialmente nas classes baixa e média. Talvez os percalços do cotidiano provocados pela natureza e pelo próprio homem que os atinge mais diretamente, estejam provocando a necessidade de mais solidariedade, compreensão, harmonia e paz nos relacionamentos entre as pessoas. O sinônimo de qualidade de vida nessas camadas não está mais na tentativa exclusiva da obtenção de bens materiais. Paz de espírito, união familiar e amizades sólidas, somadas à satisfação dos anseios básicos de saúde, educação e habitação, preenchem as necessidades para uma vida satisfatória. No entanto, esta saudável reversão não atingiu as classes mais favorecidas. Nelas prevalece a competição pelo ter e agora, não é mais o ter, mas sim o parecer ter e o parecer ser. Assim, voltamos ao simbolismo. A aparência prevalece sobre o real, e é o que importa. O cosmético encobre a essência e como é adotado por cada um, é aceito por todos sem nenhuma indagação sobre o ser verdadeiro. Conclui-se que para as elites endinheiradas prevalecem as máximas citadas pelo cronista Ruy Castro "quando a lenda se torna realidade publica-se a lenda" e "o importante não é o fato mas a versão".
segunda-feira, 15 de agosto de 2011

O historiador da advocacia

Com seu grande talento de escritor e de historiador, Pedro Paulo Filho poderia ter ido exercer essas atividades em São Paulo, juntamente com a advocacia, sua paixão profissional. No entanto, preferiu permanecer em sua terra natal, advogando, escrevendo e pesquisando sobre a advocacia e sobre Campos do Jordão. O escritor possui um estilo claro e objetivo, com a elegância daqueles que dominam o idioma de tal forma que não precisam recorrer ao estilo pernóstico e sofisticado dos que desejam mostrar uma pseudo-erudição e uma aparente cultura, que encobrem a carência de conteúdo e da solidez de pensamento. Como historiador, ao lado da pesquisa minuciosa e abrangente, consegue retirar dos fatos e das situações estudadas a essência, o significado real, os desdobramentos que superaram os limites temporais e provocaram consequências e múltiplas influências no futuro. Como disse, basicamente dois têm sido os alvos de suas incursões como historiador: Campos do Jordão e a advocacia. Ao narrar, em suas várias obras sobre a cidade, os fatos marcantes de sua história, as suas lendas e as suas tradições, Pedro Paulo consegue retratar a própria alma de seu povo. Quanto à advocacia, escreveu alguns livros fundamentais para o pleno conhecimento da profissão, da sua historia, das suas figuras marcantes, das dificuldades do seu exercício nos períodos de exceção, das razões que a tornam uma das atividades mais belas do homem, como disse Voltaire, mas também uma das mais incompreendidas. Escreveu: "Advogados e Bacharéis - Os Doutores do Povo"; "O Bacharelismo Brasileiro"; "Famosos Rábulas no Direito Brasileiro"; "Notáveis Bacharéis na Vida Boêmia" e "Grandes Advogados, Grandes Julgamentos", que constitui um dos mais extraordinários livros sobre advocacia escritos em todos os tempos e línguas. Nessa valiosa obra, Pedro Paulo Filho ao discorrer sobre advogados e julgamentos que ficaram registrados na história da humanidade descortina toda a grandeza e magnitude de uma profissão que, de tempos em tempos, e hoje vivemos um desses períodos, é alvo da quase unânime desaprovação da sociedade. O livro mostra em seus capítulos, mesmo naqueles onde estão presentes narrativas prenhes de comicidade e folclore que tal como o advogado talvez nenhum outro profissional tenha um contacto tão estreito com o homem em sua inteireza com as suas misérias e com as suas grandezas. Esse conhecimento transforma o advogado em um ser complacente, compreensivo e indulgente. Tem ele pleno conhecimento de que não existe o bem absoluto ou o mal exclusivo. Tem ciência da presença do verso e do reverso em todas as situações vividas pelo homem. O livro oferece exemplos da coragem, do humanismo, do amor à liberdade e à justiça, do culto ao Direito, da sensibilidade, do altruísmo e do espírito de abnegação que dignificam a advocacia, que no dizer de Voltaire 'é o mais belo estado de espírito do homem e que a eleva a categoria de sacerdócio'. O Tribunal do Júri recebeu de Pedro Paulo Filho grande realce e não sem razão. O júri simboliza a profissão em sua plenitude, pois lá a liberdade de atuação do advogado é ilimitada; nele as suas qualidades de orador, de argumentador, cultor das ciências jurídicas, conhecedor do homem e da vida podem atingir culminâncias extraordinárias. Por outro lado, é no júri que desfilam os dramas e as tragédias humanas; é nele que o homem é dissecado, vindo à baila os seus mais nobres sentimentos ao lado de suas mais abjetas perversões. E é com esse material que trabalha o advogado, ao lado de promotores, juízes e jurados constituindo o júri um cenário fascinante de exposição da própria condição humana. Outros tribunais estão retratados nos "Grandes Advogados, Grandes Julgamentos". Tribunais perante os quais foram decididas causas de naturezas diversas, dentre as quais as políticas. Nas cortes com competência para o julgamento dos crimes políticos, os advogados sempre tiveram atuações marcadas pela coragem, pelo amor à liberdade e pelo inquebrantável compromisso de exercer o sagrado direito de defesa. Da sua amada Campos do Jordão distante de toda e qualquer publicidade, aparição pública ou outro meio de promoção pessoal, Pedro Paulo Filho tem dado uma contribuição extraordinária e incomparável para o resgate e para a valorização da advocacia brasileira.
segunda-feira, 1 de agosto de 2011

A velhice

A minha sogra, com a sabedoria das mulheres forjadas na labuta doméstica, mas tendo os olhos voltados para o mundo que as cerca, e dotadas de uma inata sensibilidade, costumava dizer que apenas a criança era alvo de alguma, vejam bem, alguma, portanto insuficiente, preocupação da sociedade brasileira. Já o idoso não. Esse, na reta final da jornada é deixado ao "deus-dará" e Deus não dá, exatamente porque os homens não querem e nada fazem. Considera-se o velho um estorvo. Asilos, abrigos, casas de repouso estão repletos de idosos sem família, ou o que é trágico, embora tendo parentes estes os abandonaram, limitando-se, os que podem, a pagar a conta todo mês. O amparo é meramente material. Um tímido movimento tem se esboçado no Brasil para valorizar homens e mulheres chamados da "terceira idade". Expressão que merece reparos pelo conteúdo discriminatório que possui. Por meio de campanhas procura-se mostrar que a partir dos sessenta anos as pessoas ainda possuem capacidade e aptidão para uma série de atividades, até então reservadas para os de menor faixa etária. A campanha publicitária feita em torno da valorização da "terceira idade" tem objetivos meramente comerciais, mas, de qualquer maneira, sempre provoca reflexão e alguma mudança. Na verdade, não me refiro aos inconvenientes naturais trazidos pela idade. Muito menos estou pensando nos velhos que estão bem. Bem nascidos, bem assistidos, bem nutridos, enfim amparados. Falo de uma outra velhice. Falo da velhice abandonada, tão grave quanto a infância largada e carente. Ao lado do amparo obrigatório que o Estado deveria dar ao idoso, seria fundamental que a sociedade encarasse a velhice sem o olhar da exclusão, com respeito e atenção. O velho tal como a criança quer e necessita de carinho, pois como disse Baudelaire "Quando ficamos velhos, os afetos contam mais que os conceitos". Há uma crônica do mesmo Baudelaire, encontrada no livro "Pequenos poemas em Prosa" onde é narrada uma dramática e cruel cena de uma velhinha que deseja aproximar-se de uma criança. O escrito chama-se "O Desespero da Velhinha". Narra, inicialmente, a alegria de uma senhora bem idosa diante de uma criança em seu berço. Ambas não possuem nem cabelos e nem dentes. Ela aproxima-se do berço procurando cativar a nenê com sorrisos e com caretas. No entanto, a sua tentativa de agradá-la foi em vão, pois a criança assustou-se e começou a berrar. A senhora afastou-se e disse: "Ah! Para nós, infelizes mulheres velhas, a idade impede de transmitir alegria mesmo aos inocentes; nós causamos horror às criancinhas a quem nós queremos mostrar amor". A simples figura de um velho, aí independentemente de sua condição social e do amparo eventualmente a ele dado, provoca certa rejeição para não dizer certa repulsa. Há uma cultura sedimentada que vê no idoso um ser semi-imprestável. Colocação profissional, atividades físicas mais intensas, vida amorosa, assunção de novas responsabilidades e até troca de afeto, como na crônica de Baudelaire são objetivos postos fora de seu alcance. Portanto, ao lado do abandono material há um outro tão cruel quanto. Trata-se da negação ao idoso de suas ainda existentes potencialidades físicas, mentais e, especialmente, afetivas. Uma obra clássica escrita por Cícero, "Saber Envelhecer", faz a apologia da velhice feliz e está a merecer uma adaptação e plena divulgação para ser posta à disposição de leitores, internautas, blogueiros, romanceada e adaptada para alguma minissérie, novela ou peça de teatro. As agudas observações do grande advogado romano levam-no a concluir que a vida proporciona prazeres para todas as idades, basta se querer identificar aqueles reservados para os idosos.
segunda-feira, 18 de julho de 2011

Competição culinária em família

Em minha família a mesa sempre ocupou um lugar de destaque na pauta dos interesses de todos. Minha avó paterna era uma exímia doceira. Doces basicamente de ovos, creme, maisena, muito açúcar, acompanhados, obviamente pelo colesterol, mas claro que pelo bom colesterol. A mesa em sua casa permanecia posta até a noite. Apenas mudavam as iguarias, adaptadas aos períodos do dia. Dentre todos nós destacava-se o meu irmão José Eduardo, um excepcional comilão, que levou essa marca até os cinquenta e quatro anos, idade em que nos deixou. Ele foi um grande colecionador de façanhas culinárias : comia de quatro a seis bifes a milaneza; tijolos ou latas inteiras de sorvete; coca-cola sem limites; pastéis, empadas e coxinhas em abundância. Certa ocasião comeu, juntamente com um amigo, também do ramo, noventa e poucas esfihas. Quando falava do espantoso número, ele fazia a ressalva de que comera apenas a metade daquela quantidade, mais de quarenta e cinco, e que as esfihas eram pequenas... José Eduardo, embora tivesse a sua vida caracterizada por outros interesses, objetivos e afetos, teve na comida uma razão de viver. Aliás, minha mãe dizia que as pessoas comiam para viver, mas que ele vivia para comer. As pessoas o identificavam por esse aspecto, e esse aspecto constituiu um elo afetivo real entre ele e os seus inúmeros amigos, além de sua irresistível simpatia, de uma graça natural e de um charme encantador. Eu imaginava que meu irmão fosse o grande glutão, o emérito gourmet, o festejado comilão. Cumpre salientar que ele tanto tinha um paladar apurado, como, em razão de seu apetite descomunal, apreciava guloseimas de duvidosa qualidade, com a mesma voracidade, entusiasmo e falta de moderação. Sempre considerei José Eduardo imbatível dentro da família. Mas, não. Embora não tenha sido destronado, parece que irá partilhar o "podium" com um primo, ou melhor com o neto de um querido amigo e primo, Eduardo Viegas Mariz de Oliveira. Trata-se de um jovem de dezesseis anos. Magro, espadaúdo, educado reservado aparentemente e enganosamente comedido. Pois bem, esse jovem, como tantos outros, é adepto da comida japonesa. Certo dia, foi com amigos a um restaurante onde os pratos típicos são servidos na forma de rodízio. Assim, durante horas, foram servidos temaki, somaki, tempura, guioza, e outros. À medida que se satisfaziam, os comensais iam agradecendo e cruzando os talheres. Para espanto dos garçons, apenas o meu primo neto não se saciava. E, mais vinha, mais ele comia e mais ele pedia. Até que, estupefato, mas acima de tudo preocupado com o seu estoque de peixes e demais alimentos que compõe a cozinha nipônica, o gerente, após um cálculo mental de seus prejuízos, verificou que seria menos gravoso às finanças da casa não cobrar o valor fixo do rodízio do que deixar que a voracidade do jovem lhe absorvesse o ganho. Meu irmão, de onde estiver, estará passando os seus bons fluidos gastronômicos, para que o seu sucessor honre a sua memória e dê continuidade às tradições familiares de bem e muito comer.
segunda-feira, 4 de julho de 2011

Como sofrem os e as avós !

Quando se anuncia a chegada de uma nova criança na família, sentimentos fortes tomam conta de todos. Entre a alegria e a apreensão surge a curiosidade. Como será quem virá? A primeira indagação refere-se ao sexo. E outras vão surgindo com o passar do tempo. Atualmente, já se pode saciar em parte essa curiosidade, antes mesmo do nascimento. Um belo dia, fui surpreendido com a foto da minha neta Maria Clara, que ainda estava para nascer. Perguntarão os menos atualizados, especialmente os da minha geração: como há foto de quem ainda não veio? E, realmente, o espanto ocorreu com um querido amigo e compadre, Carlos Miguel Castex Aidar. Contei-lhe que a foto de Maria Clara estava sobre a minha mesa. Ele me perguntou se era a foto de uma amiga comum, Maria Clara Gozzoli. Disse-lhe que era a da minha neta. Surpreso, indagou se ela já havia nascido. Diante da negativa, entre incrédulo e confuso, perguntou-me: se não nascera como poderia ter foto? Seu assombro, segundo explicou, residia no fato de não entender como a máquina fotográfica poderia captar a imagem da neta se ela ainda estava protegida pelo útero materno... Mas, se os avanços tecnológicos nos deixam perplexos e ao mesmo tempo encantados, é fascinante observar-se a reação e o comportamento de todos aqueles que esperam o nascimento de uma criança. Não se espantem, pois esperar uma criança não é privilégio exclusivo da mãe. A espera é compartilhada com várias outras pessoas. Claro que ela é o alvo maior das atenções e das preocupações. Seus desejos e caprichos, quase sempre incomuns, de difícil satisfação e manifestados nas horas mais impróprias, devem ser de pronto satisfeitos. Eu sei: ela é a mãe, traz no ventre o novo ser, mas digo e repito há outros que esperam juntos e também merecem respeito e cuidados. O pai, por acaso também não sofre, não se angustia, não sente também dores? Não as do parto, mas quantas dores surgem durante os nove meses, em partes do corpo antes não doloridas? Quanto aos desejos, ele também os tem, só que não há quem os satisfaça. Se a mulher tem a responsabilidade de dar à luz uma criança, quem tem a aterrorizante obrigação de conduzir a mãe e o nascituro (eta nominho feio) para a maternidade? Uma vez lá, tem duas alternativas: ou assistir ao parto, com reais riscos de dar mais trabalho aos médicos do que a parturiente, ou ficar andando de um lado para o outro no corredor frio, escuro e solitário do hospital. Após o nascimento, os carinhos até então exclusivos para a mãe são transferidos para o nenê. Ele, bem ele continua à margem, quando muito lembrado pelos amigos para pagar umas rodadas ou para fumar um charuto. Aliás, duas atividades hoje de difícil execução. E os avós. Ah! Os avós. Ninguém, rigorosamente ninguém, pensa nos avós, no apuro pelo qual eles passam. O pai sofre, mas sofre estando perto. Os avós não, eles estão longe, em suas casas. Sofrimento mudo, distante, sem queixas. Aliás, o sofrimento avoengo antecede o dos pais. Logo após a união, eles perguntam um ao outro: será que já há novidade? Indagação que fica entre quatro paredes. Os avós são os indagadores e os indagados. Não questionam os filhos para que eles não se sintam pressionados. Não se conversa sobre o assunto que vai se transformando em tabu, na medida em que o tempo passa. Com os outros avós então, nem em pensamento se faz referência às novidades que tanto se espera e que não são anunciadas. Ademais, se os avós, paternos e maternos, conversarem sobre o tema, logo virá a desconfiança sobre de quem é a culpa pela ausência da boa nova. Aliás, esta sempre será do genro ou da nora e não do seu rebento. E, tome sofrimento. Mas essa etapa passa. Outras virão, até o nascimento. Depois do nascimento, ocasião em que a confraternização é geral, lacrimosa e etílica, voltam as angustias, que, aliás, estiveram presentes durante os nove meses. Quando no dia do parto, se tiver havido a infelicidade de uns avós terem sido avisados e chamados antes dos outros, estes se sentirão alijados, postos de lado, malqueridos e a mágoa ser duradoura (será?). Claro que estou falando genericamente. Não é com todos os avós que isso ocorre. No entanto, por uma razão ou por outra, que eles sofrem eles sofrem. Os sofrimentos são provocados por "ciúmes" dos outros avós; pela ausência do neto ou neta naquele fim de semana; por não serem seguidos os seus conselhos e por tantas e tantas outras "relevantes" razões. A sorte é que as mágoas e as queixas migram, de uns para outros avós e acabam indo para o limbo do esquecimento. Aflições, tristezas, pequenas discórdias, "ciúmes", e coisinhas que tais, são substituídos pelo verdadeiro estado de graça e pelo sentimento de eternidade que o nascimento e a vida de um neto ou de uma neta nos proporcionam.
segunda-feira, 20 de junho de 2011

Uma esperança para o Brasil

Papai ao vê-lo dizia: "Gil, Gil, Gil esperança do Brasil". Disse isso durante bem, bem, uns quarenta anos. É verdade que não se viam constantemente. Ao contrário. Eram espaçados os seus encontros. Moravam em cidades diversas. Papai em São Paulo, tio Gil em Santos. A frase era dita apenas pela rima e nada mais. Meu tio ao ouvi-la abria um sorriso e pronto. O sorriso, embora repetido por todos aqueles anos, não era forçado, era espontâneo, sincero. Claro que não recebia a frase como verdadeira em seu conteúdo. Apenas agradava-lhe ouvi-la do cunhado, pois lhe soava como um dito carinhoso. Estranharia se um dia ouvisse um formal "Como vai Gil?". E, o sorriso que brotava de seu rosto de queixo grande e espessos bigodes negros, era recebido por meu pai como uma carinhosa retribuição. Hoje, sei que o cumprimento de meu pai a tio Gil tinha um significado e passava uma mensagem, com certeza não elaborada por ele de forma consciente, mas que brotava de sua percepção a respeito do caráter das pessoas. Papai considerava que se todos os homens possuíssem uma característica marcante da personalidade de meu tio, que era a sua proverbial bondade, o Brasil seria melhor, ou mesmo a humanidade seria menos imperfeita do que é. A ganância, a insensibilidade, o egoísmo, o desprezo pelo próximo por representarem a antítese da bondade seriam, pelo menos em parte, substituídas por ela. A esperança para o Brasil estava, pois, na bondade de Gil Ribeiro de Mendonça. Um outro fato, esse tendo como protagonista a minha mãe, trazia contida a imensa bondade que habitava aquele ser especial. Agora, trata-se da bondade refletida em algumas de suas manifestações exteriores: a gentileza, a delicadeza, a educação. Minha mãe não tomava café. Nunca tomou. O fato era familiarmente notório, pois não havia parente próximo ou distante que o ignorasse. No entanto, não houve ocasião no curso de quase quarenta anos de relacionamento no qual estando mamãe hospedada em casa de sua irmã, minha tia Bina, casada com Ttio Gil, em que na hora sagrada do café noturno ele não indagasse "Carmen Lucia quer um cafezinho?". Diante da reiterada e desnecessária pergunta, minha tia fazia uma também reiterada advertência "Gil, Carmen Lúcia não toma café Gil", dando uma entonação de enfado e de irritação. Mas, pouco adiantava, pois no dia seguinte se repetia o gentil oferecimento. Minha mãe limitava-se a sorrir e com paciência explicava ao cunhado muito querido: "Não Gil obrigada, eu não tomo café". Coisas de pessoas bondosas, ligadas pelos laços da amizade, do afeto e da compreensão.
segunda-feira, 6 de junho de 2011

Um homem raro

Entrávamos na casa do Guarujá e lá estavam eles como sempre a nossa espera. A nossa espera não, a espera de alguém, a espera de outros e de quem lá quisesse ir. Estavam sempre prontos para receber os filhos, os netos, os bisnetos e demais parentes, os amigos e os amigos dos amigos. Conheci casais agregadores, mas como Gilda e Benjamin Pereira de Queiroz penso que não. A forma pela qual acolhiam a todos, traduzida pelo carinho, pelo calor do abraço inicial, pela conversa sempre fluente e agradável e pela magnífica mesa, nos transmitia uma rara sensação de conforto, de bem estar e, principalmente, de benquerença. Por falar em mesa, acho que ela simbolizava de maneira integral e fiel a personalidade e o modo de ser do casal. Não falo aqui da excelência dos almoços e dos jantares impecáveis, dos aperitivos aos licores, passando por inesquecíveis vinhos (quando a Bolsa estava em alta) e terminando nas engordativas, mas sublimes sobremesas. Não é a essa mesa a que eu me refiro, embora ela demonstre o gosto esmerado e o requinte de ambos. Refiro-me, sim, à mesa como meio, como instrumento de congraçamento, de comunhão, de estreitamento de laços, de solidariedade, de cumplicidade, enfim, de amizade, de paz e de harmonia. Acho que todos esses foram os objetivos de vida de Benjamin, como o são de Gilda. Quando um amigo querido se vai, junto vai uma parte de nossa vida. Exatamente aquela parte da vida que foi vivida com quem se foi. Agora que Benjamin se foi e o vazio se instalou, restam-me as saudades de um amigo invulgar. Lamento não tê-lo conhecido antes de 1995, pois teria tido a ventura de com ele conviver mais tempo do que os poucos onze ou doze anos, ou seja, daquele ano até a fatídica data de seu acidente. Pensei durante algum tempo, querendo encontrar a qualidade, a característica que melhor o definisse. Conclui ter sido a sedução a sua mais marcante característica. Sim, Benjamin era um sedutor, um grande sedutor. Discreto, não era homem de efusões, exageros, pieguices. Comedido em suas manifestações deixava, no entanto, transparecer com clareza a simpatia, a afeição que nutria por alguém. Sem excessos, mas de forma consistente e sólida, ele foi um exímio construtor de amizades. Como disse Fernando Pessoa "a morte é como a curva da estrada. Morrer é só não ser visto". É isso, Benjamin só não será mais visto. No entanto, todos que o conheceram terão dele a lembrança de momentos, episódios, gestos ou palavras de afeto, que o manterão sempre presente, sem ser visto. Eu, da minha parte, conservarei nítidas as imagens de nossas andanças pela praia de Pernambuco, quando conversando amenidades ou assuntos sérios, ele deixava transparecer de forma clara a sua retidão de caráter, a sua forte personalidade e o seu acendrado amor pela vida. Também essas suas qualidades intrínsecas o faziam um sedutor. Recordo-me, ainda, dos gloriosos aperitivos, almoços, jantares e ceias e até dos cafés da manhã. Um destes, pelo menos, foi transformado por ele em pré-aperitivo, pois para acompanhar um farto prato de ovos com presunto Benjamin dispensou café, leite e chá e optou por uma gloriosa cerveja gelada (não me contaram, eu juro que vi) . Este fato ocorreu na manhã seguinte à noite em que tivemos uma inesquecível tertúlia etílica culinária, responsável por memorável ressaca que nos atingiu em cheio (Paulão, Tucho e eu) mas que o deixou incólume. Naquela manhã pressenti que estava nascendo uma sólida amizade, ou melhor, uma sólida e líquida amizade... Tenho presentes, ainda, duas outras deliciosas passagens, nas quais Benjamin mostrou todo o seu espírito de grande gozador, sutil e inteligente. Em um restaurante bastante simples, mas que estava lotado, repleto de crianças, com garçons mal preparados e que se trombavam pondo em risco as bandejas que portavam, com clientes reclamando aos altos brados e nós querendo que alguém nos servisse para irmos embora, Benjamin, depois de muito tempo e esforço, conseguiu que um garçom nos atendesse. Pensávamos que ele pediria os pratos e as bebidas, mas, não, com o semblante sério e circunspeto limitou-se a ordenar "o senhor, por favor, traga-nos guardanapos de pano, pois não usamos de papel" para um garçom abobalhado em face do pedido, para ele, absolutamente incomum, estranho e até incompreensível. Em um fim de semana, meu irmão, José Eduardo foi ter conosco no Guarujá. Disse-lhe que iríamos almoçar na casa de Gilda e Benjamin. Sabedor das qualidades culinárias daquela casa, ele, glutão que era, entusiasmou-se e passou a nos apressar. Ao chegarmos fomos, como sempre, recebidos fidalgamente, e encaminhados para a mesa da varanda posta para os aperitivos. Sem nenhuma cerimônia Zé Eduardo iniciou os trabalhos, incentivado por Benjamin, que se mostrou entusiasmado e feliz com aquele voraz comensal, que lhe parecia ser "um dos seus". Em seguida passou a indagar se ele queria uma cerveja, um wisk, uma vodca, um gim, um rum, um vinho, campari, uma caipirinha fosse de que fruta fosse, enfim que bebida alcoólica desejava. Meu irmão que dizia não a cada uma delas, o que já foi irritando o dono da casa, por fim pediu solenemente uma coca cola. Esse pedido, uma verdadeira desfeita, quase uma ofensa pessoal, um verdadeiro despropósito levou o decepcionado, indignado e frustrado anfitrião a levantar-se da mesa para afirmar em alto e bom som "saiba o senhor que na minha casa isso não entra". Percebia-se pelo leve sorriso maroto que Benjamin estava se deliciando com a cena, mas não media esforços para que meu irmão acreditasse na sinceridade da sua braveza... Mais, muito mais eu teria para escrever sobre esse excepcional amigo. Em outra ocasião talvez. Tenho certeza que Benjamin propriamente não morreu, apenas está vivendo de outra forma, vivendo além da curva da estrada.
segunda-feira, 23 de maio de 2011

Exemplo de autoestima para uma elite sem estima

Em 2007 o Esporte Clube Corinthians foi vítima de uma tragédia, a pior que pode atingir um time de futebol: foi rebaixado para a série "b" do Campeonato Brasileiro. Caiu, o timão caiu, mas seus torcedores mantiveram-se em pé e altivos. Claro que a sua orgulhosa e fiel torcida foi acometida de um pungente e lancinante sofrimento. Somente os boleiros verdadeiros podem efetivamente avaliar o quanto o rebaixamento atingiu o orgulho e o amor próprio de cada torcedor. No entanto, a torcida soube enfrentar o seu padecimento com grande dignidade. Como seria de se esperar, procuraram encontrar culpados pelo inimaginável revés. No entanto, o clube em si permaneceu inatingível, foi preservado. Não se ouviu ninguém dizer que trocaria de agremiação; que deixaria de ir aos jogos; que só no Corinthians tal coisa poderia acontecer, e outras afirmações desse tipo, que representam em face de um problema, de uma derrota ou de uma frustração qualquer, o baixo grau de apreço e de respeito pela instituição, seja lá de que natureza for, a que se pertence. Faço esses comentários absolutamente à vontade, pois eu sou torcedor do insuperável São Paulo Futebol Clube. E é nesse ponto que desejo traçar um paralelo entre os torcedores do clube paulista e alguns brasileiros. Não são poucos os que se envergonham de terem nascido e de viverem no Brasil. Eles se limitam a apontar nossas mazelas e negam nossas qualidades. Nada fazem para mudar a realidade e sonham sair do país. Os corintianos, ao contrário, diante da tragédia, emprestaram força ao clube, jamais pensaram em deixá-lo e da maneira que puderam ajudaram-no a reerguer-se. Aplausos a esses torcedores que deram um exemplo a essa elite predatória, que deveria esforçar-se para construir um país melhor ao invés de apontar o dedo acusador e lavar as mãos. Parece estar na hora, tardia, diga-se de passagem, de reconhecermos características que nos são peculiares e que se reconhecidas e utilizadas colaborariam com a nossa tão carente autoestima. Somos ágeis de inteligência, improvisadores, um pouco desorganizados até anárquicos, mas com uma capacidade invulgar de resolvermos problemas. Consta que, cito apenas como exemplo, durante a guerra, na Itália o frio estava maltratando os soldados americanos e brasileiros que lutavam nas regiões de Monte Castelo e de Monte Cassino. O frio maltratava a todos indiscriminadamente, mesmo os americanos mais acostumados aos seus rigores. E, em especial, estava atingindo os pés, que rachavam e sangravam chegando a impossibilitar que os soldados andassem e marchassem com desenvoltura. Inúmeras foram as soluções aventadas, pelos médicos, mas nada conseguia impedir a ação térmica. Eis que, surpreendentemente, um pracinha brasileiro, sabe-se lá de qual rincão, disse "eureka". Não, ele não disse, nós dissemos, ou melhor, as tropas brasileiras e americanas disseram e penhoradas o agradeceram. Qual fora a mágica? Que solução extraordinária teria o pracinha encontrado? Inventara que aparelho milagroso para por fim ao cruento sofrimento da soldadesca? Nada, absolutamente nada de extraordinário. Apenas e tão somente jornal. Sim, jornal para envolver os pés. A impermeabilidade do papel de imprensa não era do conhecimento dos comandantes dos exércitos que tentavam tomar os estratégicos montes italianos. Mas, do pracinha sim. O humilde e simplório soldado brasileiro conhecia essa qualidade do jornal. Não era um conhecimento científico. A experiência de vida, impositiva de sofrimentos e de agruras dera-lhe ciência dos atributos climáticos do papel jornal. Ou, o que é mais provável, embora não tivesse tido nenhuma experiência, ele descobriu o jornal em razão da intuição somada à criatividade tão nossa. Pois bem, como esse existe uma infinidade de exemplos na nossa história e no cotidiano do nosso povo de solução de problemas e de superação de obstáculos em razão da nossa criativa inteligência. Tal característica deveria ser melhor aproveitada. Mas, antes de ser estimulada e utilizada, é preciso que seja reconhecida e aceita. Não nos damos conta que com o nosso tipo de percepção das coisas do mundo e facilidade para encará-las poderíamos estar suprimindo nossas carências e nos aprimorando como povo e como nação ao invés de estarmos, e isso é histórico, a copiar modelos e soluções que deram certo fora com base no modo de ser, pensar e agir de outros povos, mas que não se amoldam a nós. Trata-se, na verdade, do patológico complexo que nos coloca como povo inferior, incapaz de se autodeterminar. É o complexo denominado por Nelson Rodrigues de complexo de cão vira lata ou como disse o mesmo jornalista complexo de Narciso ao inverso.
segunda-feira, 9 de maio de 2011

Imaginação fértil de um brasileiro feliz

A respeito da participação fantasiosa em acontecimentos verdadeiros, meu pai possuía uma encantadora capacidade de criar e detalhar situações, fruto da força de sua imaginação, da graça com que as narrava, do rico gestual utilizado, que transformavam suas fabulações em realidade verossímil. Tão agradáveis e convincentes eram as suas histórias que seus ouvintes não só delas ficavam reféns, como exigiam que ele as repetisse. Assim, meus primos, os irmãos Octávio e Paulo Ribeiro de Mendonça pediam com insistência que ele contasse o fascinante episódio de sua participação, como pracinha, na Segunda Guerra Mundial, especificamente, no episódio da tomada de Monte Castelo. Pracinha ele nunca foi, de guerra jamais participou, mas sua fértil imaginação e notável verve faziam com que os ouvintes se esquecessem tratar-se de ficção. Desta forma meus primos diziam: "Tio, sabemos ser tudo mentira, mas conte outra vez..." Para ilustrar a narrativa, procurando dar-lhe cunho de verdade, mostrava uma cicatriz cirúrgica que possuía em uma das pernas, como se fosse sequela de estilhaços de granada. É interessante observar com que entusiasmo papai contava essa e outras histórias de "heroísmo", entendido este não só como ato de coragem, mas demonstração de amor à pátria, desprendimento e solidariedade humana. Na verdade, portador destas qualidades, colocava-se em face das várias circunstâncias da vida como um herói. Após a narrativa não só de suas aventuras imaginárias, mas de outras que efetivamente ocorreram durante a luta dos estudantes de Direito contra a Ditadura Vargas, da qual ele participou, tendo inclusive sido preso, ele cantava, embora fosse desafinado, o "Paris Belfort", o "Cisne Branco" ou "A Marcha do Expedicionário". Em tais momentos extravasava a sua afeição pelo país, por sua gente, por sua cultura, pelo modo de ser de seu povo. Eram manifestações que faziam bem a ele e a nós. Meu papai fazia parte do rol dos brasileiros felizes com o seu país de nascimento. Não me refiro aqui à exaltação piegas, ao nacionalismo cego ou a um patriotismo xenófobo, falo sim do apego pelo local onde se nasce, falo da identidade com a sua cultura, com a sua música, com a arte que produz, com o povo que o habita, com a história que o construiu, com a natureza que o ornamenta, com os seus hábitos, com a sua religiosidade, suas crendices, com o modo de ser sua gente. Tal identidade não afasta a crítica e nem é incondicional. Mas, com certeza se contrapõe a total ausência de autoestima, que hoje marca numeroso segmento de "brasileiros envergonhados", derrotistas, que gostariam de ter nascido em outras plagas.
segunda-feira, 25 de abril de 2011

Gente que faz cada coisa !

Assim que entramos na delegacia de polícia da cidade interiorana, logo observei atrás da cadeira onde estava sentado o delegado titular uma flâmula do São Paulo Futebol Clube. A visão deu-me esperança de que o interrogatório do meu cliente, na verdade, meu amigo, alto dirigente do clube "Mais Querido de São Paulo" fosse transcorrer em clima de plena cordialidade, o que ocorreu. Antes de continuar quero esclarecer esta expressão designativa do tricolor. Aliás, expressão pouco conhecida nos dias de hoje. Em 1940, por ocasião da inauguração do Estádio Municipal do Pacaembu, houve um desfile de todos os clubes da cidade. Ao surgir a delegação do São Paulo, foi apoteótica e ensurdecedora a aclamação dos que estavam no estádio. No dia seguinte o jornal "A Gazeta Esportiva" abriu a matéria sobre a inauguração do Estádio do Pacaembu referindo-se ao São Paulo como o "Clube Mais Querido da Cidade". Outros dizem que o epíteto foi cunhado pelo presidente Getúlio Vargas, nessa época governando o país com poderes ditatoriais, presente à inauguração do Pacaembu. A mesma "A Gazeta Esportiva", algum tempo depois, abriu um concurso público que consagrou o tricolor como o clube da preferência dos paulistas. Recebeu 5.523 votos contra 2.671 para o Corinthians e 2.593 para o Palestra Itália. Ainda dentro do parêntesis, um outro cognome do "Mais Querido" é o de "Clube da Fé". Explico. Em 1943, a disputa pelo Campeonato Paulista estava acirrada entre Palmeiras e Corinthians. O campeão seria um dos dois, em razão da colocação de ambos na tabela. Dizia-se que se desse coroa o campeão seria o clube da então "Fazendinha" e se, ao contrário, surgisse cara prevaleceria o hoje Palmeiras. E, o São Paulo? Bem, o São Paulo só seria campeão se a moeda caísse em pé. E, para espanto geral, nem cara e nem coroa, a moeda caiu e ficou fincada no solo. O campeão de 1943 foi o glorioso São Paulo Futebol Clube. Voltemos à delegacia. Estava eu ali para acompanhar o depoimento do amigo, diretor do tricolor. Estava ele sendo acusado de haver "gratificado" os jogares da Francana que haviam tirado preciosos pontos do Corinthians. O resultado fora benéfico ao São Paulo. O diretor estava sendo convocado para depor, pois teria fornecido aos jogadores da Francana envelopes contendo o "reconhecimento" do São Paulo. O problema se agravara uma vez que os envelopes continham o timbre do "Mais Querido". Apesar desse fortíssimo "indício" da "materialidade" do "crime" o diligente policial contentou-se com as explicações dadas pelo investigado e por mim. O diretor do São Paulo negou veementemente a acusação, qualificando-a de absurda, ofensiva, pura invencionice. Diante da justa revolta do dirigente, embora já crendo na negativa, o delegado mostrou-se curioso para saber quem teria armado aquela trama para prejudicar o clube e seu dirigente. Perguntou-me quem seria o responsável pela falaciosa acusação. Disse-lhe que comprometer o diretor do São Paulo poderia interessar à oposição do próprio tricolor, pois estávamos em ano eleitoral. Mas, também, pelas mesmas razões de política interna os opositores do presidente da Francana poderiam ser os responsáveis pela acusação. Por fim, enfatizei que eu não duvidaria se o ocorrido houvesse sido engendrado por corintianos interessados em justificar a derrota. Esta última explicação satisfez plenamente a operosa autoridade, pela razão que expôs e com a qual eu não concordei : afirmou com convicção: "Realmente, deve mesmo ter sido coisa desses corintianos, pois essa gente faz mesmo essas coisas..." E, assunto encerrado, inquérito arquivado.
segunda-feira, 11 de abril de 2011

Um mau consumidor

Não faz muito tempo realizei uma experiência invulgar: fiz compras. Comprar para mim é façanha rara e quando desempenhada é mal desempenhada. Adquirir algo para outrem é então um sacrifício monumental, embora presentear me dê grande prazer. Não sei comprar, mas gosto de ter para poder dar. Sempre foi assim. Minhas necessidades pessoais de compra são e sempre foram satisfeitas pela minha mulher. Antes de casar-me, era minha mãe quem se incumbia de atender ao filho tímido para tal mister. Nas poucas compras que fiz devo ter sido presa fácil para vendedores pouco escrupulosos. Ao entrar em uma loja já tinha em mente dela sair, e para ir embora eu comprava a primeira mercadoria que me era oferecida. No entanto, a experiência a que me referi pareceu-me satisfatória e com certeza foi muito agradável. Não fiquei intimidado, nem apressado para sair das lojas e não tive a impressão de estar sendo enganado pelos vendedores ou que eles estivessem ávidos para vender seja lá o que fosse. Dois foram os fatores de tão marcante mudança no meu comportamento. Primeiro deles: estava eu fazendo compras em um shopping com a minha neta Maria Fernanda, então com nove anos. Segundo fator: as compras seriam para minha outra neta, Maria Clara, ainda por vir, ansiosamente esperada por todos e já muito amada. O grande apoio que Maria Fernanda me deu e a alegria de estar presenteando a tão esperada segunda neta constituíam os fatores que, tinham imaginava eu, transformado-me num eficiente e esperto consumidor. Pois bem, saímos da última loja, visitáramos umas três ou quatro, e fomos à livraria Saraiva. Compras foram feitas por mim e por Maria Fernanda, as dela segundo sua exclusiva preferência quanto aos livros e cds. Ela, então, desejou tomar lanche. Feitos os pedidos, enquanto esperávamos, Maria Fernanda olhou-me entre solene e gozadora e sentenciou: "Voco (é assim mesmo) você é muito bom para fazer compras" mas, emendou, "em livraria". Pronto, a ilusão de que me tornara hábil consumidor desvaneceu-se com a franqueza e abalizada opinião daquela menina de nove anos. Não entendo a razão da minha inibição. Ela não é coerente com o meu comportamento normal. Na verdade, como disse, sempre tive quem comprasse por mim. Nos curtos períodos em que fazia determinadas compras, fui mal acostumado pelos comerciantes que me atendiam. Seus comércios estavam localizados nas imediações da rua Cubatão, na Vila Mariana/Paraíso. Era a época das famosas cadernetas, uma espécie de fiado oficializado, pois nelas eram contabilizados os débitos. Verdadeiros títulos de crédito no sentido moral, que eram honrados religiosamente ao final de cada mês. Lembro-me que nas imediações o único fornecedor de gêneros alimentícios, de limpeza e de tantas outras mercadorias, incluindo guloseimas, o único empório existente era o do sr. Nicolau. Na verdade localizado bem em frente à minha casa. Pois bem, um dos grandes responsáveis pela minha inépcia como consumidor foi esse mesmo sr. Nicolau. Um descendente de libaneses, portador do carisma e da simpatia próprios da raça, tornou-se um grande amigo, meu e de inúmeros outros meninos do bairro que frequentavam seu empório, juntamente com os alunos do Colégio Bandeirantes. Estes na hora do lanche iam banquetear-se com os deliciosos sanduíches que ele colocava em cima do balcão, já prontos. Bastava pegar e pagar. Pegar todos pegavam, mas pagar... O sistema foi invertido, pague e pegue o sanduba, que não mais ficava exposto no balcão. Seu Nicolau, gritávamos nós, "solta ai um mingau e uma colher de pau", ao que ele respondia esbravejando e arremessando o que tivesse nas mãos, até faca, mas sempre para não nos acertar. No seu empório o sistema também era o da caderneta. Aos domingos, seu Nicolau abria meia porta do empório na hora do almoço para quem quisesse comprar bebidas. Naqueles tempos não se fazia estoque. Não havia dispensa pelo menos para refrigerantes, bebidas e outros "luxos". Creio que mesmo em relação aos alimentos de primeira necessidade não se comprava para o mês todo. A facilidade do empório perto, a caderneta onde eram anotadas as compras, bem como o pagamento que era feito apenas no final do mês convidavam às compras miúdas. No nosso caso, bastava atravessar a rua e lá estávamos no empório do seu Nicolau e da dona Carmen, sua esposa. No meu caso específico, quando comecei a fumar, seu Nicolau adulterava a caderneta pois marcava a compra de balas, chocolate, sonho de valsa ou diamante negro ou refrigerantes ao invés do verdadeiro produto comprado que era um maço de cigarros. Fazia com que os preços equivalessem. No final do mês, sem de nada desconfiar (será?) minha mãe limitava-se a dizer, exibindo a caderneta: "agora eu sei porque você está engordando". Pena que cigarro não emagrece. Está aí a explicação das minhas dificuldades como consumidor: não se compra mais com cadernetas...