Não se pense que as rapinagens fossem empreitadas afoitas, fruto do ímpeto de momento. Não, ao contrário, pois eram precedidas de planejamento minucioso, que incluía o modus faciendi, o horário, o tempo de duração, a quantidade da res furtiva, uma visita exploratória ao local escolhido, especialmente chácaras e quintais de São Paulo e outros detalhes necessários para o êxito da "gatunagem". Parece que os prazeres e atrativos provocados pela preparação e pela consumação da aventura superavam o seu próprio resultado. Mesmo que voltassem de mãos vazias, restariam as emoções vividas, pois, na verdade, eram elas que importavam.
Por estarmos falando das inocentes rapinagens estudantis, é interessante notar como dentro de um mesmo século, o dezenove, as práticas delituosas mudaram de natureza, de intensidade e de gravidade. Além dos furtos que sempre existiram e os assaltos nas estradas, passaram a ocorrer os crimes praticados pelos grupos de capoeira, os assassinatos por encomenda, principalmente nas zonas rurais, onde também os primeiros sinais do cangaço surgiam, especificamente no norte e no nordeste. Em seguida, houve a intensificação da criminalidade violenta, aproximadamente da metade do século até o seu final, fornecendo uma mostra daquilo que aconteceria nos séculos seguintes.
Durante os cento e oitenta anos seguintes, a sociedade assistiu ao crescimento do crime, sem procurar detectar e combater as suas causas. Limitou-se a clamar por mais e mais punição, como se essa fosse o suficiente para por fim à escalada de violência. Na verdade, ao pedir prisão e repressão, estava procurando transferir responsabilidades que também lhe são inerentes, especialmente àquelas que ligadas a um dos fatores criminógenos, que são as carências sociais, que jamais foram assumidas e combatidas.
No fim do século dezenove a realidade do crime já era retratada por Machado Assis: "Cá fora espera-nos a noite, felizmente tranquila e fomos para casa, sem maus encontros, que andam agora frequentes. Há muito tiro, muita facada, muito roubo. A impunidade é o colchão dos tempos; dormem-se ai sonos deleitosos".
O "Bruxo do Cosme Velho", em um escrito publicado em "A Semana", mostrou o seu alívio naquela noite sem sustos. Ao mesmo tempo retratou uma época em que a violência já atingia a sociedade carioca.
Com certeza, já naquela época, as agressões com fins patrimoniais eram de forma ilusória combatidas com o encarceramento, quando descoberto os seus autores. No entanto, muito provavelmente não se procurava perquirir e analisar as causas dessa criminalidade violenta, que já se apresentavam como de natureza social. Se tivessem sido, na ocasião, atacados os fatores desencadeadores do fenômeno criminal talvez não tivéssemos os assustadores índices hoje vigentes.
Como exemplo eloquente do descaso secular pelas causas do crime, nós temos a tragédia do menor abandonado. Tivessem eles sido cuidados e supridas as suas necessidades, não teríamos os trombadinhas que começaram a agir no início dos anos setenta e se transformaram em "trombadões" e hoje chefiam as organizações criminosas.
Aliás, a questão do menor já vinha sendo denunciada desde o século retrasado, sem, no entanto, encontrar eco na também insensível sociedade da época. O jornalista Alcindo Guanabara afirmou, no início do século retrasado: "A infância abandonada, aumentada em número pelo aumento da população, continua a viver na miséria afrontosa, viveiro de delinquentes, sementeira de prostituição e do crime, que se avoluma e cresce progressivamente".
Sempre a reação da sociedade, de um modo geral, infelizmente, não foi e não é de acolhimento e amparo, mas sim de clamor por repressão cada vez mais intensa. Passou a preocupar-se com o menor carente apenas quando ele começou a nos agredir. Até então, ele estava amargando as suas carências em baixo das pontes e dos viadutos, sem provocar qualquer emoção ou solidariedade.
Mas retornemos à época das quase inocentes rapinagens. Já foi mencionado o furto de uma cruz existente na hoje rua Quintino Bocaiuva, antiga da Cruz Preta. A motivação seria de natureza sentimental, ou melhor, ligada à inveja ou ao ciúme. Segundo ficou registrado, um estudante de direito escalava a dita cruz, para ter acesso ao quarto de uma dama. Alguns de seus colegas, invejosos da proeza e enciumados, pois a dama era cobiçada, resolveram impedir os encontros removendo o instrumento de acesso ao quarto.
Um aspecto que marcou a Academia logo no seu nascedouro, foram as desavenças entre o seu primeiro diretor, o Tenente General José Arouche de Toledo Rendon e o primeiro professor, José Maria de Avelar Brotero.
Viviam eles às turras e as suas diferenças foram levadas ao conhecimento do Governo Imperial, por meio de ofícios em que cada um dos protagonistas fazia severas acusações contra o outro. Certa ocasião o Diretor Rendon, invocando os seus vários anos de serviços prestados ao Império e antes a D. João VI, solicitou a sua demissão do cargo de Diretor, "em prêmio pelos meus serviços", pois não mais conseguia aturar um homem "decerto um louco, capaz de atacar moinhos".
Em outra oportunidade o diretor da Faculdade transmitiu ao Governo o que lhe parecia serem insultos insuportáveis, reiterando o seu desejo de deixar o cargo, fato que não ocorreu, pois Imperador o mantinha na Faculdade.
Toledo Rendon referia-se a Brotero como "este estrangeiro", pois nascera ele em Portugal.
Não há com clareza o registro das razões que levaram o Diretor a nutrir tão acirrada aversão ao professor Brotero, e esse a promover constantes provocações.
Sabe-se que o primeiro lente da Faculdade era um orador eloquente, porém confuso em suas preleções. Ficaram também famosas as trocas de nomes e afirmações absolutamente desconexas atribuídas a si. Era useiro e vezeiro em inverter também as silabas das palavras: "limenta com pimão", "vidrada quebrada", "cidadeiro brasilão", dentre outras. As suas estranhas atitudes e manias passaram a ser chamadas de" "broteradas" e não passou muito tempo para ele ser considerado um "amalucado".
O professor Brotero não provocava apenas o professor Rendon. Vários foram os seus desafetos e as suas esquisitices e implicâncias atingiam pessoas de várias categorias sociais e profissionais. Um bedel, que durante bom tempo vinha sendo alvo de suas perseguições e implicâncias, disse-lhe certo dia : "Sr. Conselheiro eu suplico a V.Exa. que não me persiga, não; porque eu também sou maluco".
Brotero atingiu também os seus companheiros do pequeno corpo docente da Faculdade. O professor Baltazar Lisboa, por exemplo, teve uma efêmera passagem no Curso de Direito, pois sentindo-se perseguido por ele, pediu demissão de suas funções. Lecionou apenas durante um ano, 1829, a matéria de Direito Eclesiástico. Outros professores foram igualmente alvo de suas perseguições e rabugices, assim como estudantes e até bedéis não ficaram imunes às suas implicâncias durante o longo período em que exerceu o magistério no Largo de São Francisco, pois afastou-se apenas em 1871.
Voltando às suas atrapalhadas verbais, elas não pouparam sequer o Imperador Pedro II. Quando da visita de Sua Alteza ao Estado de São Paulo, fez ele a apresentação do professor Cônego Fidelis, da cadeira de Retórica, da seguinte forma "apresento a V. Majestade, o sr. Cônego Retórica, professor de Fidelis".
Há um hilário exemplo de como mudava a ordem das palavras nas frases : "o gado a saltar de galho em galho, os passarinhos a pastarem pelo campo".
Não se sabe se estas confusões de expressões, de ideias, de vocabulário e de letras eram verdadeiras ou meras anedotas, vale dizer não se sabe se eram fatos ou fitas.
É possível que algumas fossem fatos verdadeiros e não fitas. No entanto, sabe-se, e isso precisa ficar registrado, que a sua trajetória na Faculdade foi marcada pela inestimável e árdua obra de planejamento e execução da implantação prática do curso de Direito, abrangendo todos os seus inúmeros aspectos e nuances.
Onde hoje está localizada a rua Cristovão Colombo, havia um barranco que, posteriormente, foi aterrado para a construção de uma via que desse acesso ao local mais elevado da cidade, atualmente Avenida Paulista. Esta via é a Avenida Brigadeiro Luiz Antonio.
Pois bem, o local foi batizado como "Beco do Eco", onde os estudantes promoviam algazarras noturnos que muito incomodavam os moradores das redondezas. Após os gritos reproduzidos pelos ecos, inevitavelmente surgia algum estudante travestido de fantasma que passava a andar pela cidade, assustando os poucos transeuntes.
Consta que Olavo Bilac ia ao beco e cumprimentava o eco : "boa noite" e o eco respondia "boa noite".
As constantes atividades dos acadêmicos traziam alegria e por vezes provocavam sustos e apreensões nos moradores da então silenciosa e pacata cidade, especialmente nos arredores da Faculdade e das repúblicas.
Além da sua presença sempre buliçosa e irreverente os estudantes de direito da época provocavam grande curiosidade nos paulistanos. Indagavam eles como esses rapazes estavam se preparando para o exercício da advocacia e das carreiras jurídicas, se sempre eram vistos pelas ruas, em passeios pelos arredores da cidade, em serenatas, em saraus, nos bilhares, e nos poucos bares e restaurantes. Estudar parece que não estudavam. Como, então, passavam de um ano para o outro e acabavam por se formar?
Na verdade, aos estudantes pouco importava o que deles se pensava. A resposta à sociedade estava num soneto de Fagundes Varela : "Pode, bem sei, que livros não abrisse. Que não votasse amor à sabia casta, mas tinha o nome inscrito entre os alunos da escola de São Paulo é o quanto basta".
Varela reproduziu um sentimento que acompanhou pelos anos vindouros todos os acadêmicos do Largo de São Paulo, e vige os nossos dias. O sentimento de realização pessoal plena, pelo simples e grande fato de ser ou de ter sido aluno das Arcadas.
A presença dos acadêmicos de Direito nem sempre era marcada por momentos de alegria. Houve ocasiões nas quais a sociedade paulistana, que já saíra de sua pasmaceira com a só instalação do Curso Jurídico, passou por momentos de grande desassossego em razão dos atritos com a polícia.
Estava-se assistindo a um espetáculo no Teatro da Ópera, quando alguns estudantes passaram a tossir incessantemente, impedindo a continuação do espetáculo. As tossidas barulhentas não tinham fim, fato que levou o Coronel Joaquim José de Luz e Souza, Presidente da Província a intervir aos gritos e com ofensas aos estudantes, sem respeitar as suas crises brônquicas... Um estudante reagiu e foi preso. Outros se rebelaram e também foram detidos.
Em outra oportunidade os estudantes foram impedidos de ingressar na Igreja da Sé. Houve um embate corporal com os estudantes, que chegaram a entrar na Igreja e lá pegaram os castiçais que serviram de armas contra os policiais.
Quando não havia atritos com a polícia, entre os professores e os alunos ou envolvendo os próprios estudantes, eles criavam situações potencialmente favoráveis a discussões e mesmo brigas físicas.
Uma república que ficou inscrita na história da Academia foi a chamada "Comuna", localizada na rua da Freira, hoje Senador Feijó. A casa era de grande dimensão e permanecia aberta dia e noite, possibilitando que os estudantes que por lá passassem tomar refeições e pernoitar quando havia vagas.
Uma caraterística dessa república, durante um tempo, foi a existência de um manequim, naturalmente surrupiado de alguma loja, colocado em uma das sacadas da casa, que emitia sons e palavras. Não só sons indefinidos, como por vezes saiam palavras de saudação aos que por ali passavam ou de críticas ou zombarias aos mestres da Faculdade. Havia um tubo de folha de Flandres, preso à boca do manequim e os estudantes ficavam na outra extremidade dentro de uma sala, fazendo as vezes de ventríloquos.
Foram os estudantes da " Comuna" que furtaram o símbolo da farmácia "Veado de Ouro", um veado de madeira dourado. O furto fez com que o proprietário da farmácia, por meio de anúncio, oferecesse uma recompensa pela devolução do veado. Dias após, lá esteva ele emoldurando a entrada do prédio da rua de São Bento.
Não foi a botica a única vítima de uma modalidade específica de rapinagem, qual seja a que tinha por objeto tabuletas de casas comerciais e seus respectivos objetos que serviam de emblemas. Estes objetos ficavam guardados em uma sala fechada, para impedir que fossem furtados pelos próprios estudantes que por ali passavam...
Na realidade, o reinado da Academia e dos acadêmicos subjugava a cidade: "São Paulo era uma cidade onde dominava soberana e despoticamente o estudante e só ele", como afirmou o antigo estudante Moreira Pinto.