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Marizalhas

Crônicas variadas.

Antônio Claudio Mariz de Oliveira
terça-feira, 30 de maio de 2023

Viver é preciso. Morar também

Um dos mais angustiantes problemas da atualidade são os moradores de rua. Não se pense serem eles os responsáveis por esses problemas. Em verdade representam a sua consequência, vitimados por uma histórica situação de injustiça social. Constituem as suas vítimas e em nada contribuíram para a sua ocorrência. Um acúmulo de fatores levou às ruas milhares de paulistanos, para nos fixarmos apenas na cidade de São Paulo. Todos eles convergem para um denominador comum: a histórica e crônica desigualdade social, que nos acompanha desde sempre. Ela é fruto da má distribuição de rendas; da ausência de empregos; da baixa escolaridade; da inexistência de políticas públicas, dentre tantas outras causas, que foram agravadas pela pandemia do COVID. Ademais, a iniquidade é refletida na carência em áreas como as da saúde e do saneamento básico; da habitação; da alimentação; do vestuário; da violência; da criança abandonada. Essa desigualdade, cujas razões e efeitos foram exemplificados acima, é marcada por um aspecto que lhe empresta uma situação de permanência e imutabilidade, qual seja a insensibilidade das chamadas elites. O mais arguto e atento observador dessa tragédia, a ausência de moradia para milhares de pessoas, não consegue assimilar e, portanto, transmitir o sofrimento que acomete essas pessoas. Trata-se de uma situação inenarrável. Para se chegar perto da realidade é necessário que se tenha extremada sensibilidade, ausência e egoísmo, e acima de tudo amor ao próximo. Aqueles sentimentos, no entanto, estão ausentes de parcelas consideráveis da nossa sociedade. Caso tenham um dia se sensibilizado com o angustiante problema, logo se acostumaram a com ele conviver. Vale dizer, se ele não causar nenhum incômodo, as pessoas pouco ou nada se importarão. O ideal é que as "habitações" não fiquem no seu campo de visão, assim a situação será esquecida. Esquecida não, desprezada.   Poder-se-á indagar, em face da situação qual diferença faria o maior interesse da sociedade. Talvez essa indagação se justifique especialmente nos dias de hoje, quando o individualismo se tornou marcante na sociedade brasileira. Embora os meios de comunicação e de informação tenham sido aprimorados e agilizados, estamos diante de desafiador paradoxo:  as pessoas podem se ver e se comunicar com mais facilidade, no entanto, estão mais voltadas para si e mais distantes das questões coletivas. Caso houvesse um despertar geral para os problemas que afligem comunidades e segmentos específicos, com certeza a rede de solidariedade conseguiria minimizar consideravelmente os sofrimentos dos seus integrantes. Ademais, a sociedade como um todo, uma vez mobilizada poderia ser um instrumento de pressão junto aos governos cujas ações de enfrentamento do problema são parcimoniosas, pouco eficientes e normalmente possuem um caráter meramente midiático. Um exemplo da natureza dessas ações, é aquela desenvolvida pela Prefeitura em relação às barracas existentes na Praça da Sé e adjacências. Pela manhã, as "moradias" são retiradas para que haja uma limpeza nos respectivos locais. Denomina-se essa conduta de "zeladoria". Depois de um determinado horário à noite as mesmas barracas são respostas. Suaviza-se o problema de forma meramente estética, plástica, visual, durante o dia até o anoitecer. Pergunta que se impõe: e as pessoas para onde vão, onde ficam, o que fazem durante essas longas horas? Perambulam pelas ruas, com certeza. Estamos falando de seres humanas: homens, mulheres, idosos, crianças, doentes, grávidas, viciados, todas as espécies que compõe esse vergonhoso universo de desvalidos, que nem sequer possuem um teto durante o dia, ao menos de lona. A vergonha deveria ser nossa. Talvez ela nos impulsionasse, em nome da solidariedade humana, a sair da inércia e a imitar o apelo do grande historiador Capistrano de Abreu, no sentido de que a Constituição da República deveria ter uma única norma de comando "Todo brasileiro deverá ter vergonha na cara". Entenda-se a expressão vergonha como o sentimento de honradez, decência, pudor, dignidade, cuja ausência denota, além da carência daquelas qualidades, uma absoluta falta de sensibilidade, solidariedade e como já dito de amor ao próprio. O "outro pouco se me dá como pouco se me deu". Para amenizar a cruel situação dos habitantes das ruas, da sociedade se exige reconhecer o problema e não permanecer inerte. Já há algumas ações concretas de auxílio e amparo, mas são insuficientes, precisam ser ampliadas. Como a questão necessita de medidas que atinjam a sua raiz, do Estado se espera, na verdade se exige, planejamento, recursos e vontade política para ele fazer o que tem que ser feito: disponibilizar moradias, construindo-as ou adaptando imóveis já existentes. Morar, não nas ruas, é preciso, para se viver com dignidade. 
quarta-feira, 17 de maio de 2023

Sustentações orais: A minha primeira no STF

Um dos problemas que afligem a advocacia criminal nos nossos dias diz respeito às sustentações orais. Alguns fatores têm causado algum incômodo nos magistrados. Eles não escondem o mal-estar que sentem em face do número excessivo de advogados na tribuna em cada sessão. Eu acrescentaria que a má qualidade de algumas sustentações constitui outro fator da indisposição, mas que não é revelado por elegância e respeito a nós, outros advogados. Como regra, são de quinze a vinte sustentações diárias. Esse número é comum nos Tribunais Superiores, nos Tribunais Regionais e em alguns Estaduais, como os de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais. Eu me espanto com o crescimento acelerado, vertiginoso do número de colegas que comparecem para sustentar nos dias de julgamentos. Até poucos anos apenas em certos casos de maior complexidade os colegas viam necessidade de se comunicarem oralmente com os julgadores durante os julgamentos. Entregava-se memoriais, por vezes pessoalmente e apenas nas hipóteses de esclarecimentos mais pormenorizados ou em face de maior complexidade é que se sustentava. Vários advogados, eu inclusive, no ato da contratação deixávamos claro que a sustentação ficaria exclusivamente a nosso critério. Sabíamos que por vezes ela seria contraproducente e isso pelas mais variadas razões. No entanto, atualmente especialmente os colegas recém-formados não adotam nenhum critério de necessidade ou de oportunidade e sustentam em todo e qualquer caso. Por vezes, usam a tribuna apenas para lerem as razões já escritas ou os memoriais apresentados. Sensibilizados com o grande número de sustentações orais desnecessárias, por vezes produzidas por colegas ainda carentes de experiência e de preparo técnico, nós, advogados mais antigos e afetos aos julgamentos dos órgãos superiores, passamos a cogitar na hipótese de enviarmos ao Congresso Nacional um projeto de lei organizando a advocacia em carreira, tal como ocorre em outros países.        Ao lado do fator acima apontado, número não pequeno de sustentações desnecessárias, é preciso ser realçado outros motivos que são alheios à conduta dos advogados. Os Tribunais Estaduais e os Regionais Federais recebem um número expressivo de recursos e de habeas vorpus em razão do rigor dos juízes de primeira instância que decidem em consonância com a cultura punitiva que se instalou no país. Exacerbação das penas; decretação de preventivas estando ausente a sua necessidade; manutenção de flagrantes em crimes de bagatela; ignorância dos fatores deletérios das cadeias; indeferimento de postulações defensivas e claro desequilíbrio no tratamento das partes nos processos são alguns dos fatores que nos obrigam a que se valha dos tribunais. Por outro lado, como os tribunais dos Estados não seguem reiteradas decisões em um mesmo sentido proferidas pelos tribunais de Brasília, esses são acionados em nome da unicidade e coerência do sistema penal. Desta forma, como é óbvio, os próprios órgãos do Poder Judiciário são responsáveis pelo acúmulo de processos nos tribunais superiores. Um outro fato que vem nos afligindo diz respeito aos habeas corpus. Os seus julgamentos estão sendo feitos monocraticamente pelos respectivos relatores. As decisões são proferidas sem que o advogado tenha tido oportunidade de sustentar e nem sequer de despachar memoriais. Não são raros os casos nos quais uma vez distribuída a medida receba um imediato despacho. Havendo indeferimento resta ao impetrante o agravo regimental, que agora permite uma sustentação oral por cinco minutos. Concessão outorgada por uma recém lei, mas que nada representa em face da exiguidade do tempo e pelo indeferimento já existente. Esse estreitamento do grande instrumento da liberdade que é o habeas corpus representa verdadeiro atentado à liberdade dos jurisdicionados e ao próprio Estado Democrático de Direito. Bem, para amenizar esse texto, eu passo a narrar a minha primeira sustentação oral no Supremo, em uma época na qual o direito de defesa era exercido em sua plenitude. Foi em 1974, ainda quando as franquias democráticas estavam fortemente mitigadas. Estava apreensivo, mas feliz por ir à Brasília apresentar-me ao Supremo pela primeira vez. Tomei o avião, sentei-me, afivelei o cinto, afrouxei a gravata, mas não tirei o paletó. Terrível erro. Uma simpática e solícita aeromoça ao me trazer um suco de laranja o entornou por inteiro em meu paletó e camisa. Atingiu também a gravata.    O seu constrangimento e as desculpas reiteradas impediram-me de reclamar. Acabei por dizer-lhe que não era nada, que não se preocupasse. Menti, pois era muito. No entanto, mesmo impregnado pelo cheiro da laranja e pelas manchas amarelas, ao vestir a beca no Supremo voltei a sentir o orgulho inicial.
quarta-feira, 3 de maio de 2023

Gloriosos comilões

Uma das manifestações mais eloquentes do viver com alegria, com prazer, com entusiasmo ocorre na mesa, durante uma refeição. A confraternização que ela nos proporciona, em regra, solidifica amizades, sela parcerias, possibilita o congraçamento de ideias e de ideais. A mesa é um verdadeiro símbolo de confraternização humana. Não é outra a razão que todas as raças, todos os povos sejam lá de que origem forem, emprestam um valor inestimável ao momento em  que a família se reúne para os almoços  e jantares. Ultimamente no Brasil tem-se ouvido que as pessoas evitam as reuniões de família, especificamente os almoços de domingo, para evitar manifestações de intolerância política que vem ocorrendo. Uma intolerância raivosa fruto de um discurso radical e profundamente antidemocrático daqueles que não admitem a divergência de opiniões. Oxalá o brasileiro volte a utilizar a cordialidade como regra de conduta e que os descorteses voltem para os armários dos quais jamais deveriam ter saído. Mas voltemos à mesa. Seja da casa, de um restaurante, de um bar, de um boteco, até do chão transformado para os piqueniques. Deve ela voltar a ser símbolo de amizade e de amor. Quero render homenagem àqueles que a cultuam, não só como símbolo de confraternização, mas também como instrumento de apreciação da arte culinária. Senta-se à mesa  para cultivar afetos e para saborear iguarias. Aliás, estas são os atrativos daqueles. Essas homenagens serão personificadas nas figuras de José Eduardo Mariz de Oliveira, meu saudoso irmão e do extraordinário jornalista e historiador Élio Gaspari. E o faço narrando fatos ilustrativos do imenso prazer, da indisfarçável alegria, da reverência e do culto de ambos ao ato de comer. Meu irmão, que já nos deixou há anos, enquanto viveu parece ter vivido para comer e não comido para viver, como dizia a nossa mãe. O seu prazer pela mesa era indisfarçável e se tornou público, eu diria até folclórico. Todos que com ele se relacionavam tinham como sua marca registrada o afeto pelo comer bem. Nem sempre era a excelência dos pratos que o atraia, mas a quantidade. Quando apreciava uma nova iguaria não media esforços para saboreá-la, tantas vezes quantas fossem possíveis. Uma ocasião almoçamos no restaurante Genova e um prato desconhecido para ele foi servido. Macarrão com feijões  (fagioli). Pois bem, o almoço deve ter  terminado por volta das três horas e às seis ou sete, do mesmo dia, lá estava ele para repetir a iguaria. O proprietário da excelente cantina, Sr. João, não se cansava  de divulgar a proeza, inédita para ele e para todos que a ouviam. Em certa ocasião descobriu um sorvete de milho segundo ele espetacular. Fosse a hora que fosse lá ia ele deliciar-se com o gelado. Não se pense que a sorveteria era logo ali na esquina de sua casa. Não me recordo o local, mas era muito longe em um bairro distante quilómetros do seu.          Ao lado de meu irmão coloco o querido amigo Élio Gaspari. Em dia recente tive a confirmação do seu apego à arte de comer. Antes eu já intuía que o emérito historiador e festejado jornalista era um devoto da mesa. Intuição, na verdade baseada em um fato. A convite de outra figura de destaque, o Ministro Delfim Neto, fomos saborear ostras especialmente encomendadas de Cananeia para ele, pelo restaurante Roma. Após terem ingerido, Élio e Delfim, eu um pouco menos, mas não muito menos, dezenas de ostras um disse ao outro, em voz mais baixa, como para ninguém ouvir: "vamos comer agora um macarrãozinho". Em seguida, veio à mesa um suculento macarrão alho e óleo. Para ser honesto preciso confessar que por minha sugestão, ao alho e ao óleo foi acrescentado aliche. Assim, ao lado das ostras foi devidamente devorado um "macarrãozinho". O episódio do Élio que quero narrar se deu no restaurante,  que eu recomendo, chamado Cozinha de Preto, na rua Fradique Coutinho. Estávamos Élio, eu e meu velho, querido amigo Vitorino Antunes. Claro que todos comemos bem e nos satisfizemos, pois o prato era generoso. Todos não. Élio nos disse sem nenhum constrangimento que sentia um pequeno vazio no estômago. Com certeza comeria mais. E, pensamos Vitorino e eu que ele preencheria o vazio estomacal à noite ou com um pequeno lanche quando chegasse em sua casa. Grande engano. Não se fez de rogado e pediu outro prato. Aliás, o mesmo prato. Vale dizer, repetiu o que já havia comido. E o fez sem nenhum esforço, com prazer lambeu os beiços. Vejo nesses dois exemplos e muitos outros existem, uma homenagem à própria vida, à alegria de viver, ao saber viver usufruindo o que ela nos oferece de saudável, de digno e de perene, pois esses momentos dão eternidade ao efêmero.
terça-feira, 25 de abril de 2023

De quase padre a herege

Não consegui até hoje saber a razão que me levou a desejar abraçar a vida clerical, quando tinha uns onze ou doze anos. Não sei o motivo, mas lembro do meu estado de espírito à época. Estava todo ele voltado para aquilo que eu imaginava ser uma vocação irrenunciável. Recordo-me de algo bizarro, mas que deve ter influenciado a minha, à época, inclinação sacerdotal. Eu lia uma revista em quadrinhos ( gibi ) sobre a vida de santos e santas da igreja católica. Certa ocasião assistia a uma missa na Igreja do Embaré em Santos quando uma querida tia, irmã de minha mãe, perguntou-me se ainda eu queria ser padre. Respondi literalmente : "agora mais do que nunca." A frase foi amplamente divulgada para a família. Tenho certeza de que poucos acreditaram na minha contundente declaração. Meus pais, não tenho dúvidas, jamais puseram fé nas minhas inclinações sacerdotais. Conheciam-me bem. Ao fazer um  histórico da minha infância e adolescência   lembro-me que frequentava uma igreja, a Santa Generosa, localizada no Paraíso, Largo Guanabara, cujo pároco era extremamente rigoroso especialmente em relação a nós meninos e jovens que éramos chamados de "cruzados". Acima estava a categoria dos congregados marianos. As moças eram "filhas de Maria".  Eu não cheguei àquela categoria. Não fui promovido. Embora o Padre José nos vigiasse, muitas vezes "cabulávamos" suas palestras dadas na casa paroquial. Dizíamos em casa que iríamos ao seu encontro, mas na verdade o nosso destino era o campo do Olímpicos, a rua Stella e as da imediação onde ficávamos "vadiando". Vez ou outra, tentávamos ir jogar sinuca em bar existente no Largo ao lado da Igreja. Nem sempre conseguíamos entrar, pois não tínhamos idade. Mais velhos passamos a frequentar a sinuca do bar Vermelhinho, localizado na rua Machado de Assis.    Após o curto período em que quis  abraçar a vida religiosa, descobri que a minha "vocação" não era sacerdotal. Eu tenho dúvidas em relação a certos dogmas da Igreja Católica. Não consigo, por exemplo, entender o celibato imposto aos padres; jamais compreendi as indulgências e a confissão; a ideia do pecado; a posição contrária ao planejamento familiar, por meio dos anticoncepcionais; a ferrenha oposição ao aborto mesmo nos casos de anencefalia e do estrupo. Essas minhas objeções e dúvidas, no entanto não abalam a minha fé em Deus, a minha crença nos valores do cristianismo e a admiração e atração pela vida de Cristo.   A minha fugaz tendência clerical veio, no futuro, a se contrapor à uma defesa criminal que fiz, pelo menos na visão de alguns católicos. Fui defensor de um pastor evangélico acusado de haver desferido chutes em uma imagem de Nossa Senhora da Aparecida, durante um programa de televisão. Ao assumir esse caso não imaginava as suas consequências no âmbito familiar. Eu fui duramente interpelado por uma tia, a mesma da igreja do Embaré, inconformada com a minha atuação profissional em defesa de um agressor da santa. Tentei explicar-lhe que estava sendo porta-voz de um direito sagrado que era o de defesa. Minha tia pouco se importou com as minhas justificativas. "Qual direito de defesa qual nada" e acrescentou: "caso sua mãe estivesse viva você iria ver só"... Nenhum argumento, nenhuma explicação sobre o próprio caso, nada a demovia do sentimento de revolta em relação ao sobrinho até então muito querido.   Com certeza ela pensava: "imaginem ele até quis ser padre!!!"  
sexta-feira, 14 de abril de 2023

Jornalista frustrado. "Foca" realizado

Jornalista frustado. "Foca"  realizado : Na década de sessenta eu já estava realizando tudo que almejava para aquela época. Entrara na Faculdade de Direito; estava trabalhando no escritório de advocacia de meu pai, como office boy forense, depois como estagiário e solicitador acadêmico. No final da década fiquei noivo, formei-me em 1969 e no início de setenta casei-me. No entanto, uma inquietação que me acompanhou durante minha vida, impelia-me a obter novos conhecimentos, viver novas experiências, entrar em contato com pessoas, ampliar os meus horizontes. Hoje verifico que se tratava e se trata de uma grande ânsia de conhecer a vida, o quanto possível, em várias de suas dimensões, ânsia que ainda está presente. Lembro-me que mesmo trabalhando com meu pai, resolvi frequentar um escritório de um primo distante, Laurentino Camargo, localizado no bairro da Penha. Duas vezes por semana saía da faculdade, passava no escritório e tomava o ônibus na Praça Clóvis para meia hora depois chegar no distante bairro. Essa experiência não durou muito, como já era previsível. Anteriormente, como primeiro emprego, trabalhei no 3º Tabelião de Notas, localizado na rua Boa Vista. A minha função era de conferente de escrituras. Muito distraído, eu deixava passar erros de datilografia nas escrituras. Devo ter sido um dos piores conferentes que passaram pelo Tabelião Teixeira. Esse emprego foi obtido depois de grande insistência da muita parte, com a ajuda de minha mãe. Sempre ela. Eu tinha 15 anos e cursava o primeiro ano clássico. O meu padrinho foi o Oficial Maior do Cartório, o saudoso Sr. Pedro Gouveia, velho amigo da família. Depois fiz um breve estágio no Banco da lavoura de Minas Gerais. Ainda quando era estudante de Direito comecei a procurar um jornal para trabalhar, desde que com horário compatível com a Faculdade e com o escritório. A primeira tentativa me foi proporcionada por meu sogro, Murilo Castello Branco, que me indicou para uma entrevista com o jornalista Sábato Magaldi, responsável pela editoria  de cultura do Jornal da Tarde. Eu havia tentado a sucursal de O Globo e para lá fui chamado. Nosso, meu e de meu pai, querido amigo do São Paulo Futebol Clube, Claudio Aidar, foi o responsável pela minha rica experiência como "foca" de jornal.   Minha carreira durou intenso e bem aproveitado um ano. Não permaneci no diário do Rio pelo acúmulo de atividades, pelas apertadas vinte e quatro horas do dia e, principalmente, pelas preocupações que o filho trabalhador causava à sua mãe. Enquanto eu não chegava ela não se deitava. Nessa ocasião eu cursava o quarto ano da Faculdade Paulista de Direito da PUC pela manhã, entrávamos às sete e meia. Morava na Vila Mariana, a escola era nas Perdizes. Da Faculdade ia para o escritório, na Praça da Sé. Por volta das dezessete e trinta rumava para o jornal, localizado no Edifício Zarvos, esquina de Consolação com São Luiz. O expediente não terminava antes das onze, onze e trinta. Antes de remetermos a última matéria pelo telex, nós não saíamos. Invariavelmente a nossa direção era um bar, um restaurante ou até um famoso local frequentado por jornalistas, o Atlântico, situado na avenida Ipiranga. Quaisquer uma dessas direções menos a de nossas casas.   O desvelo e carinho maternos estavam presentes  diariamente, com sacrifício para a sua saúde.  Como só dormia quando eu chegava em casa e sempre após a meia noite, uma hora da manhã ou mais tarde e se levantava muito cedo para acordar-me, as suas noites eram curtas e mal dormidas. Por essa razão, a minha trajetória como jornalista foi efêmera, mas enriquecedora, pois me possibilitou conhecer o fascinante mundo do jornalismo. Captar informações, interpretá-las, divulgá-las, comentar fatos e situações, expandir a cultura clássica e a popular, enfim tornar-se o elo entre o indivíduo leitor e o mundo que o cerca. A minha primeira experiência como jornalista foi em uma entrevista coletiva concedida pelo então Ministro Delfin Neto. Absolutamente jejuno em economia limitei-me a registrar as respostas às perguntas dos colegas. Uma sua manifestação ao final da entrevista impressionou-me. Ao se despedir perguntou alto e bom som qual o local, nas redondezas, onde se poderia tomar um "bom  chope". Essa sua indagação gerou a minha simpatia, não pelo Ministro do Governo Militar, mas pelo apreciador das boas coisas da vida. A pequena redação da sucursal abrigava excelentes e experientes jornalistas. O chefe era o Candinho, egresso da Folha e um excelente jornalista, emérito farejador de notícias capaz de dar furo nos jornais de São Paulo. A experiência jornalística me fez observar a grande similitude dessa profissão com a advocacia. O exercício de ambas impõe a existência de um regime político no qual impere a liberdade. Há uma absoluta incompatibilidade dessas profissões com o  autoritarismo. Sem democracia e direito à livre expressão não se faz jornalismo e não se advoga.    Em uma sucursal, adquire-se um conhecimento global de todas as múltiplas atividades de um jornal. Salvo a entrega dos exemplares nas bancas e a parte fotográfica todos os jornalistas fazem de tudo. Assim é em relação a experientes profissionais, que dirá para um foca. Eu era um. Redigia, entrevistava, fazia a "cozinha" com base nas noticiais dos jornais locais eu só não dava título às matérias. Minha experiencia em jornal foi curta, mas deixou marcas significativas na minha formação pessoal.
terça-feira, 4 de abril de 2023

Fui técnico de esgrima: verdade e mentira

Tenho escrito por gentileza de Migalhas singelas colunas sobre variados assuntos. Agora estou traçando recordações também diversas e um tanto desordenadas sobre fatos e pessoas marcantes em minha vida.  Procuro situar as minhas lembranças no tempo e no espaço e, com isso, reviver situações não só de importância pessoal como aquelas marcantes para as respectivas épocas.  Eu quero salientar um aspecto referente à memória. Por vezes surgem recordações que não nos permitem ter certeza se nós fomos participantes dos eventos lembrados. Vale dizer que nem sempre nós vivemos o que recordamos. A nossa memória não distingue com exatidão se certas imagens e eventos foram por nós vivenciados ou se nos foram transmitidos por terceiros. Por vezes, a descrição que nos é feita passa a povoar a nossa mente com tal intensidade que ficamos sem saber se retrata uma realidade ou se faz parte do nosso imaginário. Os fatos ficam tão arraigados em nosso íntimo que quando os transmitimos passamos a impressão de que efetivamente foram experiências pessoais. Por vezes foram. Outras não. Há acontecimentos reais que, no entanto, retratam falsas verdades. Dir-se-á que se é falsa não é verdade. A lógica indica estar correta a afirmação. No entanto, há duas verdades: a verdade verdadeira e aquela que retrata uma afirmação verdadeira, mas com conteúdo enganoso. Passo a citar um evento do qual fui protagonista e que expressa o que acima foi dito. Já afirmei em outro escrito a minha inaptidão futebolística. Não só para o esporte da bola como para quaisquer outras modalidades. Aliás, aqui abro um parêntese. Devo afirmar que a minha incapacidade não era apenas esportiva, pois no campo da música igualmente eu jamais tive alguma inclinação. Herdei essa deficiência artística de meu pai. Ao contrário de meu irmão que absorveu o dom musical de minha mãe, que possuía ouvido privilegiado. Era uma exímia violonista. O seu sonho era que seu filho mais velho tocasse algum instrumento. A sua derradeira tentativa foi dar-me um pandeiro. Em vão. Minha incompatibilidade com o brasileiríssimo instrumento foi absoluta. Bem, volto ao binômio verdade, falsidade. Houve um esporte ao qual eu me dediquei. Dedicação apenas documental. Explico. Até hoje guardo com orgulho a carteira de técnico de esgrima da Federação Paulista de Esportes Universitários (FUPE). Ela me foi entregue por Ulisses Nutti Moreira, presidente da entidade e presidente da Associação Atlética 22 de Agosto, da Faculdade Paulista de Direito, da PUC. Fui padrinho de casamento de Ulisses, mas nessa época eu não o havia apadrinhado. Portanto, a carteira não se deve a essa condição. A escolha de Ulisses foi técnica.  Durante os jogos Universitários Leste Sul, que aconteceram na cidade de Piracicaba, São Paulo necessitava de um representante nas reuniões e assembleias que lá se realizariam. Havia a possibilidade de confrontos políticos entre as várias Federações Universitárias. Eu fui o escolhido para os embates que ocorreriam e ocorreram. No entanto, para ser inscrito nos jogos eu precisaria integrar a equipe de algum dos esportes da competição. Para mim restou a esgrima. Não iria como esgrimista, por razões óbvias. Colocaram-me na honrosa condição de técnico. Portanto esse é um exemplo de fato formalmente verdadeiro, mas mentiroso em sua essência.  
terça-feira, 28 de março de 2023

Futebol: jogava-se em qualquer lugar

Na última crônica evoquei as minhas "aptidões" futebolísticas. Quero nessa pedir licença para fazer uma breve explanação de como era jogado o futebol nos anos cinquenta e sessenta em São Paulo. A primeira observação é de lamento, em relação à ação predatória de algumas construtoras que movidas pela ganância terminaram com os campos de várzea, existentes em todos os bairros de São Paulo. O Poder Público, por sua vez, não soube defender esses importantes espaços de sociabilidade.    Na verdade, discorro não sobre como era jogado, mas qual o instrumento com que se atuava e os locais onde o esporte era praticado. A bola, bem, a bola nem sempre era bola. Diga-se que ela era à época quase uma raridade. Poucos a tinham. Quem a fornecia se credenciava para jogar, como era o meu caso. Aliás, como disse no escrito anterior a única razão de ser escalado era essa.  A bola era tão preciosa que a tratávamos, como se dizia antigamente, a "pão de ló". Dávamos-lhe carinhos especiais: para conservar o couro, passávamos sebo em todos os seus gomos. Naqueles tempos a chamávamos de bola "capotão". Não sei o porquê dessa expressão. Nem sempre tínhamos bola ou mesmo local apropriado para jogar. No lugar da bola serviam meias, que grudadas uma a uma formavam uma esfera própria para ser chutada. Por vezes, para não perdermos o hábito, uma latinha também servia. Quanto aos locais para o futebol, uma primeira observação. É com tristeza que se observa que São Paulo, em pouco tempo, perdeu as ruas, como seus espaços de convivência e de sociabilidade. Os campos de várzea também foram soterrados, como já disse. O trânsito e a especulação imobiliária foram os usurpadores. O poder público poderia ter planejado a existência de mais ruas que pudessem, em cada bairro, ser fechadas para serem ocupadas pelas pessoas, como se fez com a avenida Paulista aos domingos. Mesmo na minha época de jovem, de adolescente e mesmo antes de menino, além da rua qualquer espaço era espaço para jogarmos. Sempre encontrávamos um meio de transformar os locais em campos. As traves, bem as traves eram pedaços de pau, tijolos, pedras, até nossos sapatos ou quaisquer outros objetos serviam para demarcar os gols. Não se pense que vivíamos de improvisações. Não. Por vezes conseguíamos atuar no Colégio Ipiranga; no Ateneu Brasil; na quadra da Faculdade Paulista de Medicina, no "campinho" do Olímpicos da Vila Mariana; em uma chácara de meu avô localizada em Diadema. Também exercíamos as nossas habilidades futebolísticas em locais menos ortodoxos como vilas, ruas, terrenos abandonados jardins e quintais.  No entanto, o nosso estádio, o nosso campo, o nosso especial reduto, o nosso abrigo era a rua Stella. Lá tudo fazíamos e tudo era possível de ser feito, inclusive acolher as nossas pelejas. No entanto, na Stella nós nos defrontávamos com um problema insolúvel. Jogávamos em um trecho da rua na qual ela passava a ser uma ladeira. Assim, o time que ficava na sua parte baixa tinha insuperáveis dificuldades para atacar. Era fundamental a escolha do lado, antes da partida ter início. Mas não se pense que as nossas saudáveis atividades esportivas não eram do agrado dos habitantes da Stella. A maioria nos compreendia e por nós nutria simpatia. Alegrávamos a rua, com nossos jogos, conversas e por vezes cantorias. Havia duas moradoras, irmãs, que nutriam indisfarçável implicância com o nosso futebol de rua. Na verdade, a implicância era mesma conosco. Uma ocasião em que um dos gols era o portão de sua casa, a bola, inadvertidamente, caiu em seu jardim, fato que não era incomum. Mas, desta feita foram rápidas e apreenderam a pelota, não a devolveram e, suprema violência, a furaram. A nossa indignação só não foi maior do que o nosso desejo de vingança. Logo surgiu uma ideia, bastou olharmos para um pé de café que ornamentava o pequeno jardim da pequena casa. Nada tínhamos contra a simpática rubiácea e suas reluzentes folhas. No entanto, tínhamos que devolver a infâmia praticada contra o objeto de nossas afeições, a bola. Pagaríamos na mesma moeda, atingindo o xodó de ambas que era o pé de café. Arrancá-lo seria a forma mais eficaz de atingir as irmãs agressoras. Em uma noite, cortamos a pequena árvore e a encostamos na porta de entrada da casa. A vindita estava consumada. E logo estávamos com outra bola, passando de pés em pés.   
terça-feira, 21 de março de 2023

Memória sem aviso prévio

A memória não nos dá aviso prévio. Ela surge e nos conduz a um fato, a uma pessoa, a uma saudade, a alegrias e a tristezas, enfim nos retira de onde estamos e nos transporta para outros tempos e para outras situações. Isso deve ter uma razão. Acho que as recordações não representam apenas uma volta ao passado, geradora de nostalgia e de tristeza. Não, ela nos mostra que a nossa vida é composta pelo que foi, pelo que é e pelo que será. Todas essas etapas estão entrelaçadas, se comunicam, por vezes se misturam, se repetem e se projetam para o futuro. São indissociáveis. É muito bom que assim seja, pois dessa forma não perdemos a nossa identidade. Conseguimos conservar o que fomos, o que somos e projetar o que seremos, sem que nos deixemos soterrar pela voragem do tempo.   Tenho uma especial predileção pelos memorialistas que escrevem sobre si, sobre sua época e não só a respeito dos fatos que vivenciou, mas especialmente sobre o seu eu, a sua alma, suas paixões, suas idiossincrasias, realizações e frustações, enfim gosto de conhecer, através da leitura, as ações, o pensamento, os erros e os acertos daqueles que tem a coragem e a honestidade de se colocar integralmente, sem subterfúgios e maquiagens diante de seus semelhantes. Desta forma peço licença aos milhares de migalheiros para pô-los, pelo menos aqueles que perderem o seu tempo lendo-me, em contacto com algumas das minhas recordações. São lembranças que assumem algum significado, não em razão de quem as narra, mas das pessoas citadas das situações e dos eventos que são descritos, sempre com realce a algum aspecto ligado aos sentimentos que movem o ser humano.     Hoje veio-me à mente uma das grandes frustações de minha vida. Frustação amenizada pelos seus aspectos hilários. Sempre quis ser um craque de futebol. Nunca o fui, muito ao contrário. Quando permitiam que eu atuasse era, simplesmente, por que eu fornecia a bola. Caso houvesse outro amigo que a possuísse eu ficava fora do time. Não indaguem qual a minha posição. Eclético, eu sempre estava pronto a atuar em qualquer delas. Aos meus companheiros pouco importava onde eu jogaria. Na verdade, desejavam que eu sempre estivesse onde era necessário, LONGE DA BOLA. Mas, digo-lhes com orgulho jamais desisti. Joguei no time de futebol do 3° Tabelião de Notas, o meu primeiro emprego. Joguei uma única vez, mas joguei na lateral direita. Não conheciam as minhas aptidões. Escalaram-me, joguei por dez minutos. Também integrei o time do Centro Social dos Cabos e Soldados da Polícia Militar, do qual fui advogado. Meu consolo nesse time é que, um dos laços craque de fora, era Plínio Marcos, grande teatrólogo, mas sofrível jogador. Para enriquecer o meu curriculum futebolístico duas derradeiras recordações. Primeira, nós da rua Stella fizemos uma união com outras turmas e criamos o Oásis Futebol Clube. Eu fui um dos artífices e como tal consegui o honroso cargos de MASSAGISTA. Um outro, refere-se ao glorioso "In Dúbio Pro Reo" fundado por jovens advogados, na década de setenta. Esses colegas fizeram-me justiça, pois no final da temporada entregaram-me um significativo troféu, merecida homenagem, o "Troféu Encrenca". A minha trajetória futebolística nunca foi devidamente reconhecida. Paciência, me contento com o citado troféu.
terça-feira, 14 de março de 2023

Voto livre, mas no meu candidato

A elegante senhora sorridente, adornada com joias, maquiada com apuro falou que me admirava, acompanhava o meu trabalho e lia os meus escritos, mas, no entanto, lamentava que eu havia votado em Lula: "pena que você votou no Lula". A única coisa que me ocorreu foi dizer "pena que a senhora votou no Bolsonaro". E, nada mais. Fala curta, mas incisiva e significativa, que ocorreu na última semana, quatro meses depois das eleições. A fala foi incisiva porque veio na forma de uma sentença, de uma afirmação categórica, sem dar ensejo à contestação, justificativa, explicação. A senhora disse e pronto, ponto final. Significativa porque veio na forma de um anátema, de uma reprovação, de uma censura, que aliás espelha uma triste realidade de parte de nossa sociedade, especialmente da se dizente elite.  Fosse a senhora dotada de formação democrática ela jamais condenaria a minha opção, a respeitaria. No entanto, para ela as minhas eventuais qualidades, por ela declinadas, perderam o valor diante da minha escolha eleitoral. A sua manifestação reflete com exatidão o clima de intolerância que ainda reina no país. Dessa feita não houve nenhuma agressão, nenhum maior desconforto, mas poderia ter havido. Bastaria que eu passasse a defender o meu candidato ou a criticar o por ela escolhido, para que a temperatura subisse a graus insuportáveis. Por outro lado, não adiantaria nada eu tentar explicar que a democracia implica  na liberdade de pensamento, de expressão e de escolha, pois, naturalmente, ela só admitiria ouvir um meu mea culpa ou uma palavra de arrependimento pelo voto dado.  Usou a liberdade para, sem me conhecer, em um lugar inadequado -- estávamos numa festa -- interpelar-me. Ou melhor, censurar-me, apontar-me o dedo e exclamar que eu deveria ser excluído do rol dos confiáveis. Não afirmou isso, mas é o que significa a sua intolerância. Poder-se-á dizer que a minha censora apenas emitiu a sua opinião. Não, não foi bem isso. Ela não se limitou a dizer que o seu candidato fora outro. Que não votara no meu, enfim, falas que não implicassem em condenação pessoal pela escolha feita. Eu reunia qualidades, no entanto, superadas pelo pecado, pelo crime de votar no outro candidato. Anteriormente, eu já tinha sofrido a ação de patrulheiros ideológicos. Nas décadas de sessenta e setenta não foram poucas as manifestações contrárias ao meu posicionamento político. Mas, a diferença residia no fato de que estávamos vivendo uma situação política anômala. Não estávamos sob o guarda-chuva do Estado Democrático de Direito. Lá não havia liberdade, aqui há, mas não respeitada. Mais recentemente, logo após haver proferido um discurso em prol do meu candidato, recebi um telefonema agressivo, ofensivo de alguém que jamais vira. Nos mesmos dias um conhecido de mais de quarenta anos disse por escrito que eu o havia decepcionado, e que não mais merecia o seu respeito. Em outra ocasião fui interpelado na porta de um clube com a mesma fala absurdamente antidemocrática sobre o meu apoio político e eleitoral. Todas essas pessoas e mais milhares de brasileiros mostraram e seguem mostrando a sua verdadeira face: autoritária, intolerante, contrária à liberdade e claramente incompatível com o regime democrático. Creio estar na hora, e que não seja tardia, de ensinarmos democracia para parcelas da sociedade que estão se revelando avessos à liberdade de escolha, de pensamento e de expressão. A missão é difícil, mas devemos tentar.   
quarta-feira, 15 de fevereiro de 2023

Réquiem para uma livraria

O réquiem de uma livraria não representa uma simples manifestação por meio de oração ou de canto pela sua perda. É mais, deve ser mais. Precisa representar um clamor vigoroso contra as causas desse trágico evento. Pois bem, no caso da Livraria Cultura, os administradores de sua massa falida, os advogados, juízes, curadores e credores poderão apontar as causas jurídicas e de natureza financeira. Para nós, leitores, seus velhos frequentadores, uma só e fatal causa: o gigantismo. É claro que essa irrefreável e irresponsável ânsia de crescimento, portanto de lucro, tem uma única causa, pecaminosa e criminosa: a ganância. A cultura começou, salvo engano, no Conjunto Nacional. Pelo menos eu a conheci lá. Era menor, muito menor do que era quando se foi. Simpática localização, com simpáticos atendedores. Fácil de se encontrar os livros desejados. Havia mesinhas fora, onde as pessoas sentavam-se e desenvolviam tertúlias literárias. Eu nunca delas participei, pois simples rábula jamais me aventurei nessas lidas intelectuais. Mas gostava de ver os que ali estavam. Dentre eles via um que se tornou meu querido e imprescindível amigo: Ignácio de Loyola Brandão. A nossa amizade surgiu em um evento na Associação dos Advogados de São Paulo. De lá para cá, eu não mais o larguei. Voltemos às origens da Cultura. Não sei se foi ela, acho que não, mas na época introduziu-se a possibilidade de se ter um cadastro, um cartão de cliente. Isso facilitava e instigava as compras. Na verdade, estou me  lembrando que o crédito para aquisição de livros foi introduzido pelo velho livreiro Saraiva. Tornou-se ele um benfeitor dos  estudantes de Direito que podiam adquirir as obras exigidas pelos  mestres da São Francisco com facilidade. Durante anos estudantes do Largo e de outras faculdades, como eu que me formei na Católica, podiam formar as suas bibliotecas de forma suave. Abríamos contas na loja então existente na rua José Bonifácio, antiga do Ouvidor. Ao falar da Saraiva, lembro de tantas outras que não mais existem. Freitas Bastos, na 15 de novembro; Teixeira, na Marconi, ou teria sido na Conselheiro Crispiniano? Livraria do Povo, na Praça João Mendes; Forense, no Largo de São Francisco; Revista dos Tribunais, na Conde do Pinhal; Nobel, no Itaim; Brasiliense ou seria Civilização Brasileira na Barão de Itapetininga; o sebo Orfali na Benjamin Constante; a Livraria Vozes, salvo engano na Senador Feijó. Vários e valiosos outros sebos existentes na região da João Mendes se foram. Outros resistem, como o Messias. Dizia eu que no caso específico da Cultura o crescimento desordenado e a fúria expansionista decretaram-lhe o fim. Soube que possivelmente sem planejamento algum, foram abertas filiais em várias capitais, algumas com dimensões até incompatíveis com o mercado local. Em São Paulo, a ampliação da que me parece ter sido a primeira foi extraordinária. Deixou-nos, os seus assíduos clientes, entusiasmados num primeiro momento. Com o passar dos tempos viu-se e soube-se que o crescimento em outras praças já estava colocando em risco a sua higidez financeira. E agora vieram as consequências. Amargas consequências, para a cultura em geral e para os seus velhos e fiéis amigos.  Eu torço, rezo e faço mandingas para que outras livrarias não caiam nas mesmas tentações argentárias e se lembrem que embora o lucro seja legítimo, o escopo de suas existências é a expansão da cultura, é o livro, tal como entendia o livreiro Saraiva.
terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Eu joguei com Pelé

Conheci Pelé. Ocupei-me da defesa de seu filho Edinho e por esta razão estivemos juntos algumas vezes. Quem conviveu com ele e pode conhecer aspectos de sua personalidade faz uma necessária distinção entre o Pelé e o Edson. Como ele mesmo disse em uma entrevista reproduzida em amplo noticiário a seu respeito, o Pelé é Rei, o Edson carrega qualidades e defeitos tal como os demais seres humanos. Eu pude testemunhar essa dualidade. Para se fazer justiça a ambos é preciso que se faça a distinção.   No entanto, nesse singelo escrito quero apenas narrar uma experiência com o majestático futebolista. Antes, no entanto, assinalo que como espectador de futebol tive a ventura de vê-lo jogar. Duas partidas marcaram-me e se fixaram em minha memória. Uma delas, pelos idos de sessenta e três, sessenta e quatro, no Morumbi. No time do São Paulo estreava um zagueiro, ou um então chamado centro médio, vindo do Atlético Mineiro chamado Procópio. Alto, bem apessoado, forte, dava a nítida impressão de ser senhor de si em campo, portanto de indiscutível eficiência como marcador e destruidor das jogadas dos atacantes. Além da aparência, a sua fama era mesmo de um defensor intransponível. Mal começou a partida, lá estava ele, Pelé, ultrapassando com facilidade o que se imaginava ser uma inexpugnável barreira, o beque vindo das Minas Gerais. Não posso jurar, a memória não me permite fazê-lo, mas acho que no derradeiro lance antes de sua saída de campo, Procópio foi brindado com uma bola no meio de suas pernas. Saiu, talvez a pretexto de uma contusão, mas saiu. Em seu lugar foi colocado um jogador chamado Vitor. Encorpado, loiro, aparência, força e brutalidade de um viking. Nada clássico, ao contrário, era um jogador que usava seu porte físico para desarmar o adversário. Por vezes agredia para desarmar.   Nesse jogo, assim que entrou, disse ao que veio. Assim, se pensou, quando por duas vezes desarmou Pelé, que seria anulado. No entanto, essa foi uma mera ilusão da enorme torcida tricolor. Até então, o jogo repleto de lances memoráveis e inúmeros gols, estava empatado três a três. Eis que o Rei resolveu jogar para valer. Num estalar de dedos colocou o Santos na frente, que terminou vencendo por seis a três. Possivelmente, eu tenha testemunhado um dos jogos mais brilhantes do craque. Não demorou para que eu testemunhasse a vingança do São Paulo. Desta feita no Pacaembu. Assisti ao jogo literalmente pendurado em um morrinho que havia ao lado das arquibancadas. O desconforto, verdadeiro sacrifício, foi compensado pelo brilho da atuação do mais querido. Estreava, como centro avante, um ex-santista. Pagão. Ele e seus companheiros calaram a pequena torcida do Santos, deixaram exultantes os são-paulinos e, o que foi notável e inédito, provocaram a saída de campo de todo o time praiano. Os craques foram caindo, um a um. Iam sendo retirados por alegada contusão. Atingido o número mínimo, salvo engano seis, o juiz deu a partida por encerrada. O São Paulo já vencia por quatro gols e mais seriam marcados não fosse a debandada, a estratégica fuga. Pelé estava entre os retirantes.           Certo dia fomos, meu sócio de escritório Sérgio Alvarenga e eu, encontrar Pelé em seu escritório. Falamos do caso de seu filho, para em seguida ele passar a narrar alguns episódios de sua soberba carreira. Em determinado momento contou-nos como fizera um gol contra o Juventus, na rua Javari, considerado o mais espetacular dentre os mil e tantos que marcou. Essa narrativa não se limitou à descrição oral. Não, ela veio acompanhada por uma coreografia. Para tanto, nós fomos colocados como protagonistas. Sérgio e eu desempenhamos um papel fundamental na cena. Cumpriu-nos atuar como os dois aparvalhados zagueiros que foram vítimas de chapéus seguidos do "Rei" antes de vitimar por derradeiro o goleiro Mão de Onça, que não foi encenado por ninguém. Na sala estava, além de nós, apenas Celso Grellet, seu sócio e companheiro de sempre, que foi poupado. Estava me esquecendo do principal. A jogada foi fielmente reproduzida pelo ator principal. Com uma bola imaginária ele bailou levantando a perna para os chapéus, gingando o corpo para os dribles e por fim disparando um chute fatal para eternizar um grande gol. Vê-se, pois, que o título desse escrito não é mentiroso. Eu joguei com Pelé. 
terça-feira, 27 de dezembro de 2022

Passa a faixa esconde a faixa

A  impressão que tenho é a de que o atual presidente não quer passar a faixa presidencial ao vencedor das eleições não apenas por antipatia pessoal a ele que, diga-se, é fato notório. Na realidade, ele não quer é passar a presidência. O apego à faixa é o apego ao poder. Até o momento da transmissão, ao que parece, ele nutre a esperança de que o ato de passagem não se consume. Houve outros casos em que esse símbolo não foi entregue pelo antecessor ao sucessor. O General Figueiredo não entregou a faixa ao Presidente Sarney. Não se sabe se o faria caso a recebê-la fosse o eleito Tancredo Neves. Houve casos nos quais o presidente não fez a transmissão ao seu sucessor porque não completou o mandato. Jânio Quadros, João Goulart, Costa e Silva, Fernando Collor, Dilma Rousseff. Na primeira república Deodoro e Afonso Pena não terminaram o mandato. Este porque faleceu antes do término do mandato, sendo sucedido por Nilo Peçanha. O Marechal Deodoro havia renunciado. Rodrigues Alves, que havia sido presidente nos anos de 1902 a 1906, foi eleito novamente para o mandato de 1918 a 1922, mas por razões de saúde não chegou a assumir. Em seu lugar assumiu Delfim Moreira, até a posse de Epitácio Pessoa, para o mesmo mandato. É possível que tenha sido omitido algum episódio dessa natureza. Ficam as minhas desculpas se isso ocorreu. Houve um caso singular no qual a faixa presidencial não foi entregue pelo presidente eleito ao sucessor, mas sim ao zelador do Palácio Presidencial. O Presidente Washington Luiz foi deposto em 1930 e, por essa razão, não fez a transmissão do cargo. Quanto à faixa, um pouco antes de sua saída para o exílio, ele a entregou ao Sr. Albino José Fernandes, zelador do Palácio do Catete. Alertou-o no sentido de que só a desse "a quem de direito, depois que tudo estivesse resolvido". O zeloso funcionário, no Palácio desde 1908, tratou de guardar a preciosa faixa em um lugar inacessível : no seu próprio corpo. Colocou-a no peito, debaixo da camisa e de seu paletó. Consta que não a retirava sequer para dormir. Quando a presidência foi transmitida para Getúlio Vargas, líder da revolução de trinta, pela Junta Governamental, ele cumpriu sua missão sem nenhuma solenidade, sem nenhum alarde. Portanto, o Sr. Albino envergou o símbolo da República por alguns dias. O atual presidente se nega a passar a faixa mesmo que seja a um zelador do Planalto.
terça-feira, 20 de dezembro de 2022

Mudou o Natal ou mudamos nós?

Desejos de paz, fraternidade, união entre os homens são ouvidos nos quatro cantos nessa época natalina. Uma preocupação comum, além dos votos, são os presentes que exteriorizam, segundo dizem, a estima, o bem querer, a amizade.  É óbvio, o comércio é quem agradece esse hábito. Todos querem comprar, aqueles que tem e aqueles que não tem recursos. Estes tentam dar um jeito. Também como marca dos dias natalícios, há as comemorações. Almoços e jantares em família, não só no dia em que Cristo veio à terra, mas em dias antecedentes. Festas nos escritórios. Encontros em bares e restaurantes. Drinks nas casas. E, tudo o mais que denote confraternização. Eu me pergunto se esse ano no Brasil o espírito natalino estará presente como nos anteriores. As intoleráveis barreiras da intolerância continuarão a separar amigos e parentes influenciados pelos rumos da política? A ruptura da sociabilidade plena estará presente nessas horas em que se deveria estar apertando as mãos, dando abraços e até vertendo lágrimas?   Imagino que exatamente para preservar ainda o que resta de união, muitas e muitas famílias não farão festas com todos os seus integrantes. Ressentimentos gerados pelo fanatismo político poderão macular a fraternidade natalina. Assim, melhor será que alguns não estejam presentes nas comemorações, para evitar rupturas definitivas. Uma situação talvez jamais vista no país. Eu com certeza nunca a assisti, nos meus setenta e sete anos. Cabe aqui a pergunta de Machado de Assis "Mudou o Natal ou terei mudado eu?". O Bruxo do Cosme Velho confessou a sua falta de inspiração para fazer um poema natalino e limitou-se a fazer essa indagação. E, com efeito, se naquela época já lhe faltou inspiração, hoje ele não a teria sequer para criar aquele singelo verso-indagação.    Parece- me que o Natal não mudou. Com certeza mudamos nós. Claro que nem todos. Apenas aqueles que se deixaram influenciar por maus exemplos. São os que com certeza já estavam predispostos a acolhê-los. Como os exemplos maus passaram a ser constantes e divulgados por meio de falas, escritos e comportamentos aquela parcela já suscetível a se deixar influenciar saiu do armário e passou a aderir a aquilo que lhe era sugerido. Eu, por exemplo, tenho um amigo que sempre possuiu idiossincrasias marcantes que o revelavam um conservador empedernido. Avesso aos avanços da sociedade em relação aos direitos das minorias, incluindo das mulheres, bastou surgir no cenário político um arauto do discurso retrógado e ultrarreacionário para ele se identificar e aderir às pregações. Eu continuo a gostar dele e a ser seu amigo. Não sei se a recíproca é verdadeira. Caso não seja, só me resta lamentar mais esse mau exemplo daquele a quem os seguidores acham dever obediência, em detrimento de sua liberdade individual. Para eles mudou o Natal, eles eu acho não, continuam os mesmos. Que pena!   Sempre apreciei o Natal. O clima que ele gera. Os votos que transmito e recebo de amigos e conhecidos. Os comes e bebes. Os presentes que ganho e os que eu dou. As músicas natalinas, embora sempre as mesmas, me emocionam.  A alegria estampada nos rostos das minhas netas que é a mesma daqueles dos meus filhos quando crianças. Cultivamos em casa um hábito, na verdade um gesto de solidariedade, cumprido em todos os Natais. Minha mulher acompanhada das netas sai a esmo distribuindo roupas, brinquedos e alimentos para os que ela encontra nas ruas. O ponto alto do dia 24 é a meia noite, quando após rezarmos uma oração, nos abraçamos. Todos os anos eu aguardo esse momento como o mais significativo do Natal. A reza simboliza a fé e a esperança, enquanto o abraço significa a comunhão com o outro. Seria bom que houvesse rezas de quaisquer religiões, abraços, afagos e que todos estivessem com a alma leve, sem ressentimentos, mágoas ou intolerâncias.
quarta-feira, 9 de novembro de 2022

Jovens querem deixar o país

Recentemente eu li que um significativo número de jovens quer deixar o país (76% dos pesquisados). Uma notícia alarmante. Duas razões para o alarme. Em primeiro lugar com o êxodo da juventude haverá carência em todos os campos das atividades. Não teremos novos quadros para  impulsionar os setores produtivos, culturais, científicos e no setor público inexistirão novas lideranças políticas e administrativas  para ocupar os cargos de administração da Nação. As carências já existentes de homens aptos para gerir a política e a coisa pública  agravada pela debandada. Entendo que sair do país, especialmente aqueles que têm condições de contribuir para o seu aprimoramento representa uma incompreensível  falta de estima pelo Brasil e por seu povo. Sabe-se ter havido na história inúmeros exemplos  de imigrações que atingiram inúmeros países. O Brasil mesmo, desde o século 19 acolheu imigrantes de inúmeras Nações. Os estrangeiros que para cá vieram e seus descendentes se integram em nossa vida social e cultural assim como nos legaram positivas influências de suas origens. Todos os surtos imigratórios tiveram causas bem detectáveis a justificá-los. Eles foram marcados por insuperáveis carências em seus países. Fatores diversos, especialmente guerras e revoluções, reduziram as oportunidades de trabalho e suprimiram condições mínimas para a permanência de grande parcela das populações em seus Estados de origem. A imigração passou a ser uma solução de sobrevivência.     Será que estamos atravessando no Brasil de hoje um período de catástrofe social, uma revolução interna, uma ameaça de guerra externa ou de invasão de Nações estrangeiras, um caos na economia, uma avalanche destrutiva de fenômenos naturais? Não. É verdade que não estamos vivendo em um país onde reine a segurança, a igualdade social, uma economia sólida e produtiva, uma assistência integral e abrangente nas áreas de saúde, educação, habitação, saneamento. Estamos sim passando por não pequenas dificuldades. Mas, os nossos problemas não justificam a saída coletiva de brasileiros do país. Impõe sim a união, a crença e o amor à pátria. Tal como nos unimos em defesa da democracia e das instituições, salvo alguns adeptos do totalitarismo,  é essencial que os nossos esforços sejam empregados na supressão ou diminuição de nossas conhecidas mazelas. Sair do país, não. Devem permanecer para construir. É interessante que muitos  que desejam ir embora do Brasil   aqui deveriam ficar, acima de tudo porque a ele muito devem. Refiro-me aos quais foram proporcionadas situações favoráveis para progredir cultural e materialmente, a ponto de poderem  sair e se manter fora . Lembre-se,  tais condições eles as  encontraram no país que agora  querem deixar. Parece ter chegado a hora da parcela privilegiada mergulhar dentro de si e rever posicionamentos herdados do Brasil  imperial, patrimonialista, escravocrata. Desprezo, arrogância, auto suficiência, individualismo, preconceito e discriminação  marcam parte dos integrantes dessa autoconsiderada "casta". É a elite envergonhada de aqui ter nascido. O seu sonho seria ter origem em outras plagas. Retirou do país tudo aquilo que ele lhe pode proporcionar e agora quer ir ou mandar os seus filhos para fora. Fiquem e os deixem no país para retribuírem o que o Brasil lhes proporcionou. Dirão não temos oportunidade. Vamos cria-las. Só os da elite podem fazê-lo. Os menos favorecidos, aliás a enorme massa, quer  sobreviver. Eles sim não possuem condições  para sair do país. Os favorecidos, ao contrário podem tudo, até abandonarem o nosso barco.    O  trabalho é árduo e as mudanças necessárias. Interesses coletivos no lugar dos particulares. A solidariedade ao invés  do egoísmo. O bem público separado do interesse privado. A compreensão afastando a intolerância. O desprendimento em vez da ambição desmedida e da ganância; o amor em substituição ao ódio. São fórmulas piegas, poderão dizer. Não importa. Surtirão efeitos e  irão nos melhorar. Talvez a nossa esperteza excessiva, o apego ao consumo e ao acúmulo de bens materiais; a prevalência do  ter sobre o ser; a ânsia pelo protagonismo, pelas posições sociais de destaque tenham escondido ou feito desaparecer o nosso lado infantil, ingênuo, puro mesmo, mas pleno de entusiasmo, encantamento pelas coisas simples, alegria. O homem e a mulher brasileiros abandonaram algumas de suas marcas distintivas. Criatividade, agilidade mental, improvisação, adaptação a situações adversas, facilidade de relacionamento: o conhecido de agora é o amigo de sempre e tantas outras características deveriam ser reconhecidas, acolhidas e não rejeitadas. Ser quem e como somos e não como imaginamos ser: europeus ou americanos. Está na hora de sabermos quem somos e que Nação queremos construir. Manter o status quo, a favor de uma minoria ou construir um país para todos? Não somos melhores ou piores do que outras gentes, somos diferentes. Tais diferenças devem ser enaltecidas pois constituem as nossas marcas. Ficar no país é dever, trabalhar por ele é missão de todos.   
quarta-feira, 26 de outubro de 2022

O melhor e o pior da festa

Minha mãe dizia que o melhor da festa é esperar por ela. Não tenho dúvidas. A expectativa de momentos de felicidade, confraternização, abraços, emoção, palavras carinhosas e desejos de um porvir melhor nos proporcionam um grande bem estar. A ansiedade dessa espera é confortante, traz otimismo e entusiasmo. Há vezes até que a expectativa supera a própria festa. Mas isso não importa. Importa sim que façamos o possível para que a festa corresponda à espera.  Aguardar um acontecimento, no entanto, pode nos criar sensações desagradáveis. Como a perspectiva da alegria nos causa boas emoções o contrário nos aflige e incomoda. Com efeito, esperar maus momentos provoca inquietação, medo, insegurança e uma sensação desagradável de um futuro de consequências imprevisíveis. Mas, como na boa espera por vezes o acontecimento não é tão agradável quanto se desejava, também a má expectativa pode não corresponder ao fato sobrevindo, e esse ser melhor.  Eu agora transporto a festa acima referida para as eleições e o bom e o mau acontecimento para o seu resultado.  Considero o voto, como já disse alhures, um instrumento exemplar de igualdade. Ele iguala a todos, independente de raça, cor, sexo, religião. É talvez o único traço de união entre os membros da sociedade em um momento determinado. Todos, podendo, votam.  O sentimento generalizado quando da votação, para os democratas, é o de júbilo por estarem exercendo na prática um direito primordial que é o da escolha. É da natureza humana querer fazer as suas opções pelos caminhos que deseje trilhar. Trata-se de exercer a liberdade. E a escolha daqueles que irão governar assume uma dimensão extraordinária para cada eleitor. Ele rigorosamente está declarando quais são as suas esperanças  quanto ao encaminhamento das questões de interesse nacional. Está, nessa hora, determinando quais são as suas opções ideológicas e programáticas.  Pois bem, nova  festa eleitoral se aproxima. Claro, como em todas as eleições, as  expectativas que eram diversas no primeiro turno foram reduzidas para duas possibilidades. Parte da sociedade terá os seus anseios satisfeitos e a outra parte frustrados. Vale dizer, que a sociedade está esperando pelo melhor da festa que é a vitória do seu candidato e, igualmente, pelo pior que é a derrota. Isso significa, ansiedade, dúvida, expectativa do melhor e do pior, sentimentos que trazem desconforto. Esses sentimentos se projetam para o futuro na forma de insegurança, incerteza, otimismo e  pessimismo.  Como o homem não tem o domínio sobre o seu futuro, a sociedade, igualmente, não possui as rédeas do seu porvir e nem possui o controle dos destinos da Nação. No caso das eleições, após a escolha em quem votar, o cidadão adquire a certeza de que os dias, meses e anos  vindouros serão alvissareiros se o vitorioso for o seu candidato. Com a derrota ao contrário as perspectivas serão sombrias. Trata-se do melhor e do pior da festa.  Eu não me sentiria confortável se nesse momento deixasse de manifestar a minha opção eleitoral. Na verdade, reiterá-la pois já foi exposta. Quando o foi recebi críticas contundentes, por vezes ferozes de pessoas que se espantaram com a minha opção. E disseram a mim e a outros do seu inconformismo com a minha escolha. Como era possível que eu estivesse apoiando o candidato da oposição ao atual presidente. Ora, fiquei abismado, não com a posição contrária desses questionadores, mas sim com o questionamento que denota absoluta ausência de formação democrática. Aliás, bem coerente com a opção eleitoral que fizeram. O seu candidato jamais escondeu suas preferencias autoritárias e a sua nostalgia pelo período ditatorial.  Mas, voltando ao inconformismo para com a minha escolha. A pergunta que se impõe: qual a razão da minha preferência causar espanto e a deles não. Escolhi um candidato e eles outro. Assim é na democracia. Eu sim fiquei espantado, abismado com o espanto deles. Mostraram que não são democratas. Repito, foram coerentes.  Quero  realçar que aceito a sua escolha, como democrata que sou. Mas quero declarar  que, em relação à minha escolha, eles se esquecem que o meu candidato já governou o país. Não implantou o comunismo, como apregoam que fará; não invadiu casas; não comeu criancinhas; não estatizou a economia; não avançou nas nossas contas bancárias, como fez ex-presidente que apoia o atual. Fez escolhas corretas para o seu corpo de auxiliares, sem conotação ideológica como exemplo temos Henrique Meireles. Naquela época a festa correspondeu às expectativas.    Permito-me afirmar que a opção que  fizeram parece-me injustificável pois carrega uma enorme quantidade de dúvidas, especulações, inseguranças de caráter  institucional e social. A  paz, a segurança e a harmonia correm riscos concretos.  O presente artigo tem como foco o antes e o depois da grande festa eleitoral. Antes, venturosas expectativas de vitória do candidato da oposição. E, mais, de um porvir que atenda às expectativas dos que buscam viver em uma sociedade menos desigual, pacífica e democrática. 
segunda-feira, 8 de agosto de 2022

Jô Soares um brasileiro

Há figuras humanas que se imagina serem imortais. Não é a imortalidade dos que permanecem na memória e na saudade daqueles que ficam. Eu me refiro à imortalidade no sentido literal. O ser que jamais se ausentará. Jamais morrerá. Jamais será enterrado. O seu corpo permanecerá e sempre será visto. Essa sensação de eternidade física se deve à importância e à imprescindibilidade de certas pessoas. Não se admite a vida sem elas. Assim, eu imaginava que ocorreria com o Jô Soares. Ele nunca nos deixaria. Como diziam os antigos ele ficaria para semente. No entanto, ele partiu, mas com certeza as suas sementes germinarão e darão frutos. Quais sementes? Várias, e correspondem às suas qualidades e características. Inteligência, cultura, rapidez de raciocínio, alegria, humor, fidelidade às suas origens, por vezes sagacidade e ironia. Essas e tantas outras. No entanto, eu quero testemunhar um relevante aspecto que foi para mim revelado nos últimos tempos. Especificamente nos quatro anos anteriores a essa data. A sua brasilidade. A sua preocupação com o país. A sua apreensão de estar assistindo a um Brasil atormentado pela intolerância, pelos riscos de ruptura institucional, pelas pregações destrutivas, pelo estímulo às armas, pelo esmaecimento de sua imagem perante o mundo, pela destruição das matas etc. etc. Padecia com a irracionalidade de um governo que não ele via governar e se afligia com a crescente  desarmonia instalada no seio da sociedade, por um discurso voltado à destruição e  ao ódio. Talvez poucos homens de comunicação tivessem conhecido o Brasil e os brasileiros como ele, mercê de sua profícua atividade de entrevistador, durante sessenta anos. Conheceu o homem brasileiro de todas as classes sociais, categorias culturais, atividades profissionais. Explorou com argúcia e profundidade todos os  escaninhos e labirintos do pensamento, da vida, dos fatos ligados a cada entrevistado. Desta forma ele esmiuçava a sociedade. Dissecava os seus meandros, levantava o tapete de suas escondidas mazelas. E tudo fazia com refinado humor, com absoluta liberdade e independência  jornalística. Jô tornou-se um retratista fidedigno do Brasil e do seu povo, eu diria ter sido ele um historiador do nosso presente. Os tipos que encenava  nos programas de humor representavam os vários brasileiros habitantes dessa terra diversificada, plural, miscigenada. Uma terra quase incompreendida, que, no entanto,  ele retratava com a fidelidade possível. Semanalmente conversávamos. Possuidor de uma memória extraordinária deliciava-me com histórias de fatos e de gentes. Remontava à época em que começara na televisão com Silveira Sampaio, considerado por ele como mestre das entrevistas televisivas. Outra figura por ele enaltecida, na área dos programas humorísticos, foi Max Nunes. Citava também um antigo colaborador da TV Tupi, canal 3, Tulio de Lemos. Deixava ainda patente a sua gratidão ao jornalista Matinas Suzuki, responsável pelas suas memorias. Era muito discreto quanto à sua vida pessoal. Não falava de seus amores. E, foram muitos. Mas, não escondia o seu afeto e a sua gratidão pela Flavinha, que o amparou até os últimos dias. Mesmo após o término do romance a amizade de ambos não os separou. Como disse, a situação do país o preocupava sobremodo. Indagava-me sobre medidas judiciais que poderiam ser adotadas para barrar a escalada autoritária e antidemocrática em marcha. Queria saber dos movimentos de resistência da sociedade. Ações coletivas ou isoladas lhe davam esperança e alento.   Jô se foi, para minha decepção, pois o julgava imortal. Partiu o Jô brasileiro. O insubstituível  Jô Soares. Ficou o vazio, a tristeza, mas, especialmente ficaram as suas lições de amor ao próximo e ao Brasil.     
quarta-feira, 8 de junho de 2022

A violência estimulada se alastra

Antes de ser guilhotinado Manon Roland afirmou "Oh liberdade, quantos crimes se cometem em seu nome". Eu me permito perguntar: segurança, quantos crimes e barbaridades tem você como pretexto, desculpa e até aplausos? Até quando vai se matar inocentes ou culpados, não importa. Não se pode matar. Só se pode matar em legítima defesa, circunstância prevista em lei e que justifica a conduta. No entanto, mata-se porque se quer matar. Invade-se uma comunidade, tiros são disparados sem que outros tiros tenham sido desferidos. E as balas atingem não só os alvos desejados como quem está nas ruas ou em casa ou em um bar, em uma loja, dentro de um carro, seja lá onde for as balas alcançam qualquer um. Dizem que são balas perdidas. E daí. É pior, pois demonstra que as armas foram acionadas a esmo. O atirador assume o risco consciente de matar quantos forem alcançados por seus projéteis. Ele aciona sua arma sabendo que ela poderá ser letal para qualquer um. Isso não o preocupa. Deve-se ter presente um pensamento do prêmio Nobel Soljenitsin no sentido de que a violência está sempre acompanhada da mentira. Com efeito, inverdades e invencionices servem para justificar os abusos e inverter as responsabilidades. As vítimas se tornam culpados.   Aliás, a violência desmotivada, desnecessária, criminosa tem como elemento propulsor um discurso oficial que estimula, incentiva e autoriza a barbárie assassina contra a sociedade. O que desencadeia a conduta predatória dos chamados agentes da lei, que, na verdade agem contra ela?  A luta contra o crime? Sim, admitamos que seja. Mas como e por que as mortes entram nesse combate? A única forma de se atacar o crime é matar o criminoso, o suspeito ou o inocente? Há algumas situações que justificam a ação repressiva, mesmo que eventualmente se ponha em risco a integridade física de terceiros, como, por exemplo, nos casos de trocas de tiros, agressões contra pessoas ou contra a própria polícia, intervenção no curso da prática de um crime, e algumas outras. Mas, como explicar a mortandade quando não há violência desencadeada? Chegar nos locais atirando; executar pessoas depois de já imobilizadas, como ocorreu na comunidade do Falet no Rio de Janeiro; partir da mera suposição de que irão atirar contra a polícia e antecipar os disparos tal qual fizeram no Jacarezinho e agora na Vila Cruzeiro, constituem ações que não podem ser denominadas de "Operações Policiais". Não, isso é chacina, assassinato em massa, crime contra a humanidade.  E mais, não se pense que a barbárie é cometida apenas contra grupos, com o receio de seus integrantes atirarem primeiro. Não, se está matando no atacado e no varejo. Não faz muito tempo matou-se alguém em um supermercado sufocando-o. Agora, no Estado do Sergipe,  asfixiou-se  um detido  já imobilizado dentro de um carro, atirando gazes dentro do veículo. Há anos houve dois episódios que muito me marcaram em São Paulo. Um motoqueiro, desarmado, foi morto pelas costas porque não parou quando instado a tal. E um casal de velhos japoneses feirantes que foram executados pois também seguiram com sua kombi, sem perceber que havia uma barreira policial. A memória não ajuda, mas posso afirmar que foram centenas os casos de mortes individuais ou coletivas provocadas por desastrosas ações policiais.   Aliás, crueldades também são cometidas por não policiais. Violências são registradas tendo como autores membros de seguranças privadas.  A violência igualmente está instalada no seio da sociedade, especialmente contra a legião dos desamparados e desvalidos. Até incêndios em corpos vez ou outra são noticiados. Os conflitos provocados pelas diversidades de origem social, cor da pele, opções sexuais, vitimam com frequência, pobres, negros, indígenas, homossexuais. Soma-se a esse rol as atrocidades contra crianças e mulheres. A intolerância que é geradora do ódio, atualmente, permeia o relacionamento pessoal. Manifestações antagônicas não mais são marcadas pela compreensão, pela tolerância e pela educação. Na verdade, esse autoritarismo de ideias representa a negação da própria democracia e da liberdade de pensamento. Haverá respeito desde que a opinião alheia coincida com a minha. Os estímulos à violência são constantes e insistentes, divulgados  basicamente, pela palavra falada, tendo como arautos autoridades que num plano hierárquico  influenciam os incautos e desavisados. Em regra, seus discursos pregam a discórdia e fazem apologia do povo armado. Mentiras, invencionices, bravatas, vulgarização da linguagem, falas impensadas, quando pensadas mal pensadas estão sensibilizando obtusos e fanáticos seguidores.  As arengas criminosas e as blasfêmias não respeitam pessoas, instituições do Estado, algumas religiões e credos, inclusive o Papa e os defensores dos direitos humanos foram alvos de infâmias. É imprescindível que incorporemos e divulguemos os valores da civilidade e do humanismo para não nos transformarmos em uma sociedade, já injusta e desigual, estigmatizada pelo ódio que inviabiliza a pacífica e harmônica relação entre os homens.
terça-feira, 22 de março de 2022

Lembranças que nos alimentam

Li um texto, primoroso texto, de Ignácio de Loyola Brandão. Abro uma pausa para declarar que a minha amizade e o meu afeto por ele constituíram um dos fatos mais prazerosos e gratificantes que me ocorreram nos últimos dez anos. Pois bem, o seu artigo versa sobre a nostalgia que sente da rua onde reside há décadas, a João Moura. A rua de hoje não é a mesma de antanho. Isso o entristece. A mudança ocorreu basicamente pela fúria imobiliária. No local de uma casa, pequena que fosse, existe um mega prédio abrigando centenas de pessoas. Assim está sendo em toda São Paulo. Já há algum tempo, do terraço de um apartamento, durante uma festa, alguém olhando um campo de futebol me disse "que desperdício nesse campo várias torres poderiam ser erguidas". Era um empresário, na verdade um grande tonto para quem o que importa é o lucro, a cobiça, e nenhum outro valor. Não pensou no lazer, o único lazer, que aquele campo proporcionava aos moradores das redondezas, talvez o único instrumento de distração e de sociabilidade para as comunidades do entorno. Ao ler o artigo de Loyola me veio à mente as minhas ruas Cubatão e Stella. Morava na primeira, mas vivia na segunda. Eu pertencia à gloriosa T.S. - Turma Stella. Muitos daquela época já se foram, mas ainda nos reunimos e conversamos constantemente sempre pelo telefone, nos negamos a falar online. Contamos as mesmas histórias, fazemos as mesmas gozações, rimos sonoramente os mesmos risos, queremos que assim seja até o fim. Aliás, assim é há quase setenta anos, por que mudar agora? E, que o fim demore. Na rua Stella e adjacências nós imperávamos. O nosso reino se estendia para o centro de São Paulo, quando atingimos idade para frequentá-lo. Antes e mesmo já jovens nós ainda brincávamos na rua. As brincadeiras eram  "lasca- romeu",  "mãe da rua" e "mãe da lata". Todas elas eram delicados folguedos onde os atritos físicos muitas vezes levavam ao desforço, sempre entre "tapas e depois beijos", ou melhor e depois cerveja. Devo dizer que mesmo as constantes desavenças com outras turmas, em especial nas festas, eram encerradas em algum bar, que servisse álcool para menores. Começamos as nossas atividades etílicas com quinze, dezesseis anos. As brigas naqueles tempos não eram cruentas. Ninguém matava. Tapas, socos e cerveja. Na rua Stella jogamos futebol. Naquele tempo chuteira era chanca e campo era cancha. O futebol era por nós praticado em qualquer lugar, qualquer canto onde houvesse algum espaço onde pudéssemos improvisar os gols, qualquer coisa servia para demarcá-los. Na rua Stella tínhamos um problema, pois em determinado trecho ela era uma descida. O time que ficasse na parte de baixo levava óbvia desvantagem. Embora passassem poucos carros, o nosso problema eram os vizinhos e as janelas de suas casas. Aliás, em uma delas um pé de café existente no pequeno jardim era o nosso grande obstáculo para os chutes fortes, pois tínhamos que tomar cuidado para não o atingir. Ele era florido, verdinho, as folhas brilhavam, nós até gostávamos dele. Na casa moravam duas irmãs já de certa idade. Elas já não nutriam grande simpatia por nós. A recíproca era verdadeira. Um dia quando a bola lá caiu as intolerantes senhoras a sequestraram, não a devolveram e achamos que estraçalharam a pelota. É claro que tínhamos que reagir. Deveríamos aplicar a Lei do Talião - dente por dente -. E o fizemos. Cortamos o pé de café e o deixamos encostado na porta de entrada da casa. Com isso vingamos a bola e aplacamos a nossa ira. Devo confessar nunca ter sido bom de bola. Sempre era o último a ser escolhido no par ou ímpar. Quando era "escalado" eu sempre me colocava onde o time queria: longe da bola. Um fato marcante daqueles tempos, com certeza notado também pelo Loyola, o nosso imortal, era a confraternização existente entre vizinhos. Tinha-se nas típicas pequenas casas de São Paulo da época minúsculos jardins que serviam de locais de encontro, conversa, fofocas. As pessoas paravam para papear com as que estavam nos jardins. Elas também andavam a pé. Carro para a classe média ainda era raridade. Andavam e se encontravam. Havia o maravilhoso bonde. O democrático bonde. O espaço para reflexão, leitura, cochilo, amizades e pernas, sim pernas, como um poeta indagou "Oh Deus  por que tantas pernas?". O relacionamento com os comerciantes da região é outro aspecto que também marcou a minha infância e juventude. O Nicolau do empório, Januário sapateiro, Coca e Mudinho jornaleiros, Manezinho jardineiro, Pedro barbeiro, Lili engraxate, Valinho mecânico e tantos outros que se incorporaram à minha vida e permanecem em minha memória. Mais, muito mais eu poderia recordar das minhas ruas e do meu bairro, na verdade da vida que era risonha e franca. Talvez continue em outros escritos. Por hoje basta, para homenagear esse grande escritor brasileiro Ignácio de Loyola Brandão e para dizer a ele não ficar triste, pois nós pelo menos temos do que lembrar.
terça-feira, 22 de fevereiro de 2022

A tragédia reveladora

A mãe com uma pá nas mãos vai removendo a lama, a terra, as pedras e madeiras para encontrar um tesouro: seu filho. Pacientemente, com aflição e angústia controladas e com esperança vai palmilhando o chão macabro, ao encontro daquele que não mais existe. Em outro dia, tal como um pescador, talvez escafandro, ou mesmo um garimpeiro, o pai vai explorando as margens do rio à cata de uma preciosidade: seu filho. Ele viajava em um ônibus que foi tragado pelas implacáveis águas. Lá se foi. Moço, moço também o pai. O que importa a idade? A fúria das águas não respeita idade. Mães, pais, avós, avôs, irmãos, amigos. Até bebês recém-saídos do útero materno foram levados para outro patamar. Há quem poderá dizer que esses seres foram poupados das misérias e sofrimentos humanos. Mas, ninguém lhes perguntou se queriam ser poupados. O poder da natureza mais uma vez suplantando a vontade e os esforços humanos. E o homem na sua predatória ignorância a desafia obstinadamente. Pobre homem, sem poder, sem inteligência e, principalmente, sem humildade para reconhecer as suas limitações, a sua impotência em face do universo. Desgraças como a de Petrópolis tem, no entanto, o condão de revelar um lado edificante, nobre, que nos dá esperança: a solidariedade. Entidades, ONGs, os valentes motoqueiros e pessoas anônimas da cidade e de fora dela, entregam-se à sublime tarefa de ajudar o outro. Nessas tragédias tem aflorado o amor ao próximo. Amor que se estendido a dimensões mais abrangentes nós teríamos menos guerras; violência; mortes; violação de direitos humanos; queima de florestas; predação de rios e outras condutas destrutivas. O amor substituiria a cobiça que é o guia de uma sociedade argentária e insensível. Gostaria muitos de ver segmentos das elites pegando os seus carros e as suas motos para ir a Petrópolis, não para veranear ou invernar, mas para praticar atos de amor. E mais, que essa tragédia desperte a consciência embotada das autoridades, de todos os níveis, para adotarem medidas de proteção às populações de risco de todo o país. Não devem prometer nada. Devem agir preventivamente, revelando que possuem alguma decência, dignidade, honradez e amor ao semelhante. 
segunda-feira, 29 de novembro de 2021

Marizalhas em retalhos

Tenho utilizado esse espaço gentilmente cedido pela direção de Migalhas, para divulgar alguns despretensiosos escritos elaborados na forma de crônicas. Muitas já foram publicadas pela Editora Migalhas em um livro denominado "Crônicas Absolvidas". Outras são enviadas de forma irregular, e imediatamente colocadas à disposição leitor. Intenciono dar continuidade à essa agradável atividade enquanto contar com a gentileza do editor e com a paciência dos migalheiros. Meu intuito, agora, são curtas narrativas, não sei se chegam a ser crônicas, sobre fatos que foram vividos por mim ou que chegaram ao meu conhecimento e que apresentam um lado hilário do comportamento humano. A exposição das facetas divertidas, cômicas, jocosas que todos possuem, ilustradas por fatos concretos, pode ter o condão de suavizar a rude e áspera realidade que nos cerca na atualidade. É preciso que saibamos resistir ao negacionismo que pretende atingir até a nossa alegria de viver, a ser substituída pelo permanente estado de rancor, de confronto e de intolerância. Precisamos reafirmar uma característica bem brasileira, qual seja a capacidade de rir e de fazer blague até na adversidade. Como primeira manifestação nesse sentido eu vou narrar um susto, na verdade uma perplexidade que me acometeu quando fui à Teresina para proferir uma palestra. Eu era à época presidente da Ordem dos Advogados de São Paulo, e compunha o chamado Colégio de Presidentes das Seccionais do Brasil. Nessa condição havia uma agradável convivência com advogados de todo o país e a possibilidade de se conhecer as capitais e cidades de outros  Estados. Atendendo a um convite, fui à Teresina. Assim que desembarquei fui recebido cordialmente por dois dirigentes da Ordem estadual. Solícitos foram logo pegando as minhas malas e demonstrando entusiasmo disseram-me que iríamos em seguida "comer a Maria Isabel". Aturdido, talvez tenha ficado ruborizado em face da inusitada proposta. Nada disse, o que deve ter significado para os meus anfitriões a minha aquiescência  ao  programa, para mim, de natureza sexual, tão prontamente proposto e em uma hora imprópria.    Nunca soube se os amigos piauienses perceberam o meu constrangimento e deixaram propositadamente de esclarecer a situação. A verdade foi que passamos no hotel, fiz o registro, deixei a mala e rumamos, segundo imaginava, para algum lupanar. Durante o percurso não houve nenhum comentário sobre a aventura que se avizinhava. Eu, ainda meio assustado, não me senti à vontade para fazer indagações sobre o que nos esperava. Aguardei. Pois bem, depois de algum tempo paramos diante de um restaurante. Pensei tratar-se de um bordel camuflado. Essa suspeita mais me preocupou. Imaginei os riscos que estaria correndo caso houvesse uma batida policial. De qualquer, com muito medo, entrei e sentei-me à mesa que me foi indicada. Quando se aproximou o maitre achei que ele nos conduziria para algum outro cômodo, que imaginei qual seria. No entanto, ali ficamos até que os pratos foram pedidos. E, quando isso correu, uma sensação de alívio tomou conta de mim: Maria Isabel era o nome de um prato típico do Piauí.       
segunda-feira, 30 de agosto de 2021

Indispensável para sustentações orais

O acesso à tribuna constitui um grave momento para o advogado. Momento de tensão e que requer especial atenção. Não se pense que com o passar do tempo a ansiedade diminua. A insegurança, o receio de não se ir bem, a angústia gerada pela escassez do tempo de fala e outros pequenos distúrbios emocionais parecem que crescem com o aumento da própria experiência. Fenômeno paradoxal, mas real. Quando se é novato na profissão os erros e enganos são atribuídos ao noviciado. Qualquer hesitação na oratória, falha na argumentação, erro nas citações e tantos e tantos outros tropeços são compreendidos e relevados. A complacência já não está presente quando se trata de um profissional calejado. Ele é observado com lentes que captam não só os erros aparentes, mas as minucias que na crítica alheia são postas para comprometer o todo do seu trabalho. Ninguém perdoa os seus escorregões. Portanto, produzir uma sustentação acaba exigindo também uma boa dose de coragem para enfrentar todos esses desconfortos   emocionais.   Os imprevistos também atingem as sustentações orais. Em uma das minhas primeiras perante o Supremo Tribunal Federal, no voo que me levou à Brasília, a aeromoça derrubou um copo de laranjada que coloriu todo o meu terno. Além do terno bicolor eu e os que me cercavam fomos brindados com um odor de laranja até a aterrisagem do avião. O odor não me abandonou. Me fez companhia até o Supremo e comigo permaneceu durante a sustentação. Não sei dizer se o cheiro da laranja influenciou no julgamento. Não me lembro se obtive ou não êxito. Lembro-me, no entanto, que a reação da moça foi de tamanho constrangimento, as desculpas foram tantas, o choro quase indisfarçável, provocaram a minha solidariedade com a coitada. Com certeza, disse-lhe que não havia sido nada. Mentira.    Um outro episódio se deu em uma das salas do magnífico prédio do Tribunal de Justiça de São Paulo.  Para a sustentação oral o advogado na Câmara em que estava, subia-se em um pequeno estrado onde estavam a cadeira e a mesa. Pois bem, ao afastar a cadeira, o fiz com exagero, a ponto de derrubá-la do tablado, que por instantes se tornou um picadeiro. O terrível barulho, a recolocação da pesada cadeira no lugar, e  especialmente, a minha falta de jeito e de graça, quebraram o silêncio e a circunspeção do austero local. Mais recentemente, voltei ao Supremo Tribunal Federal, para uma sustentação perante o Tribunal Pleno. Ao assumir a tribuna percebi que ou havia emagrecido de repente ou o cinto não estava bem preso. A verdade é que as calças insistiam em não ficar na cintura, caiam. Por cima da beca eu as puxava, como podia. Essa incômoda manobra se deu durante toda a sustentação oral. Dias após a ida à Brasília, recebi em meu escritório um pequeno pacote muito bem embrulhado, acompanhado de um bilhete : "Amigo, receba esse suspensório que além da utilidade descrita nos dicionários" aí reproduziu o verbete e continuou  "SERVE PARA SUSTENTAÇÕES ORAIS NO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL"  assinado Edson  O' Doally" O eminente advogado baiano, que se tornou um querido e hoje saudoso amigo,  estava presente na sessão da quase queda das minhas causas, sentado bem atrás da tribuna. Deve mentalmente ter, por várias vezes, pensado - "Agora cai". Ao chegar em Salvador não teve dúvidas em me presentear com um suspensório, mostrando amizade e solidariedade, mas  principalmente quis evitar futuros sustos nas minhas idas à tribuna. Em tempo, não precisei usar suspensório, pois engordei e o risco das calças caírem desapareceu.
Eu já escrevi alguma coisa sofre o "Fórum do Meu Tempo". Escritos sobre advogados, personagens do dia a dia forense, situações pitorescas por eles vividas, entremeadas pelos dramas que acompanham a cena judiciária especialmente na área penal. Certos escritos foram dedicados às figuras de advogados que marcaram a profissão pela sua dedicação, amor ao direito de defesa, capacidade profissional, cultura e, especialmente, sensibilidade para amparar homens e mulheres levados às barras dos Tribunais. O objetivo, eu diria sagrado, sublime, desses advogados e daqueles verdadeiramente vocacionados, é emprestar aos que não tem nem vez e nem voz, além de sua inteligência, eloquência, capacidade argumentativa a sua coragem, especialmente nos casos em que a opinião pública se volta irada contra o defendido, por vezes instigada pela mídia. Como bem disse Sobral Pinto, a advocacia não é uma profissão para covardes. Ademais, sempre é preciso lembrar, que não defendemos o crime, mas somos porta vozes dos direitos e das garantias legais dos acusados dos que são sentados nos bancos dos réus. Agora, em continuação às minhas homenagens na forma de evocação, a referência será a um símbolo de uma advocacia alegre, espirituosa, romântica, exercida por um homem com tais características. Na verdade, um ser humano raro, que deu a quem o conheceu alento e esperança no porvir de um mundo mais sereno, pacífico, solidário e fraterno. Aliás, conviver com ele possibilitava assimilar esses traços, que eram os de sua personalidade. Sua presença era contagiante. Refiro-me a Carlos Mihich Bueno, o Caxixo. Formado na Faculdade do Largo de São Francisco, em 1945, era  Considerado pelo meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, o seu amigo "Macacão", como excelente goleiro. O Caxixo são-paulino emérito. O Caxixo refinado e culto, gourmet e apreciador do bom copo. O Caxixo boêmio, amigo da noite e de tudo que ela proporciona. O Caxixo monopolizador de reuniões, pois magnífico "causer". O Caxixo, tribuno primoroso, grande comunicador no Tribunal do Júri. Para mim, o Caxixo amigo querido, cuja ausência é como a curva da estrada, eu só não o vejo, mas ele está presente, segundo a analogia de Fernando Pessoa, sobre a morte. Eu tive a honra de fazer um Júri com ele. Fomos assistentes de acusação em um julgamento em Tupã. A sua impecável atuação a todos encantou e a mim constituiu uma preciosa lição de como acusar sem perder a marca do defensor. Defendeu ele com esmero invulgar o direito da família da vítima a um julgamento justo e consentâneo com a verdade dos fatos. Os adjetivos, por mais generosos, não retratam com fidelidade e em sua inteireza a fecunda criatividade manifestada em situações diversas, por meio de comentários espirituosos, chistes, gracejos, pilherias tudo enfim que refletia a sua fulgurante inteligência. Caxixo se relacionava com grande facilidade. Barreira nenhuma o afastava das pessoas. Ideologia, raça, origem social, procedência, sexo. Bem, quanto a ele tinha óbvia e notória preferência. Sempre conviveu admiravelmente com elas. Todas, de todas as origens. Não se pense que o seu interesse era de um vulgar namorador. Não, era solidário e as ajuda efetivamente. Quando solteiro, frequentava a casa das moças antigamente chamadas de "vida alegre". Ou, hipocritamente, de "vida fácil".  Pois bem, quando estava nessas casas, já formado, era frequentemente requisitado para socorrer aquelas vítimas da incompreensão policial. Presas, ele imediatamente, lá mesmo nas casas, com a máquina de escrever sobre as pernas, impetrava habeas corpus, para libertá-las. Constantemente, se encontrava rodeado pelas colegas das infelizes presas, que o ajudavam fornecendo detalhes da prisão. Tratava as suas amigas e companheiras de forma absolutamente igualitária.  Certa feita comprara em uma doceria dois bolos, que deveriam ser entregues em endereços diferentes. Indagado, respondeu que um era para a Casa Militar e o outro para a Casa Civil. Rápido nos apartes, mas ligeiríssimo nas respostas aos que recebia, foi interrompido pelo promotor, que lhe disse "Vossa Excelência parece um purgante", e ouviu a resposta "E Vossa Excelência é o efeito desse purgante". O seu amor pelo São Paulo Futebol Clube era genuíno, suas raízes o remetiam à infância. Tal como os são paulinos daqueles tempos, Caxixo possuía grande orgulho de sua condição, pois o "clube mais querido da cidade" ou "o clube da fé" adquirira uma justa fama de clube bem dirigido, por pessoas de elevado nível intelectual, moral e ético, que lhe imprimiam uma organização esmerada. Caxixo não perdia jogos. Por vezes tinha que conciliar o trabalho com alguma partida disputada à tarde, em dia de semana. Pois bem, justo em uma dessas tardes teria que sustentar um Habeas Corpus, cuja relatoria era do não menos são-paulino ilustre desembargador Onei Raphael Pinheiro Oricchio. Ficou em palpos de aranha. O Tricolor jogava no Pacaembu. Como fiel torcedor que era, optou pelo jogo. Para tanto pediu adiamento do julgamento, sob a alegação de teria uma audiência em uma vara cível. O desembargador deferiu o pedido. O encontro seguinte que teve com o magistrado, após o adiamento, foi no mesmo dia. Em um local para onde ambos foram. Coincidentemente o Pacaembu. A mentira para ir ao futebol parece que era uma constante dos advogados e juízes torcedores do "mais querido". Certa feita, um vizinho correu para me avisar que papai estava aparecendo na televisão. É verdade. Estava envolvido em um entrevero nas numeradas do estádio, e foi flagrado pelas câmeras O pior não foi a briga e nem o seu televisionamento, foi a bronca que tomou de minha mãe, pois dissera que estava com um dia atribulado, repleto de compromissos profissionais. As agruras da advocacia, dentre elas os prazos processuais, uniram dois advogados com os elos da responsabilidade profissional e da solidariedade. Caxixo atravessou a Praça João Mendes às pressas, esbaforido, angustiado. Era necessário chegar ao balcão de protocolo antes que ele fechasse. Era o último dia, último minuto de um prazo. Quando entrou no saguão do Fórum sentiu-se mal e perdeu as forças para continuar correndo. Atrás dele passava o então advogado Antonio Carlos Malheiros, que agarrou a petição e a protocolou no último instante. Gestos de amor à profissão e ao próximo, sempre marcaram a advocacia.   E Caxixo era isso, um ser especial que gerava e recebia amor.
segunda-feira, 17 de maio de 2021

Banjo Boy

Nós o chamávamos de "Banjo Boy". Tratava-se de um morador de rua que perambulava pela Cubatão, Stella, Correia Dias e outras da região. Ruas situadas na ligação do Paraiso com a Vila Mariana. Maltrapilho, descalço, roupas esfarrapadas, barba rala, não andava, corria, de um lado para o outro, portanto um banjo ou instrumento congênere. Nunca falou, jamais gritou, não importunava ninguém. A sua voz nunca foi ouvida por nenhum de nós. Talvez fosse mudo. Embora o seu apelido fosse "Banjo Boy" nós não sabíamos com precisão qual era o inseparável instrumento que segurava apertado ao peito, como o seu único e precioso bem. Podia ser um cavaquinho ou um banjo, bandolim ou uma pequena viola. Violão não era. Optamos pelo banjo. Eu ia me esquecendo, o instrumento não tinha cordas. Fomos influenciados por uma música de sucesso na época, anos sessenta. Chamada "Banjo Boy": "Sempre alegre e feliz vai o banjo boy, banjo boy o trovador". O compositor dessa melodia deve ter se inspirado no nosso amigo. Com o seu mutismo, portanto sem nenhuma reclamação ou ato de hostilidade, passava a impressão de estar conformado com a sua situação, pelo menos aparentemente.  Não foi pequeno o período no qual ele frequentava as nossas ruas. Nós o estimávamos. Embora não falássemos, a empatia recíproca existia e se refletia na troca de sorrisos e de acenos de mãos, quando por nós ele passava. Como disse, vagava pelas ruas. Catava tocos de cigarros. Andava e corria sem parar. Queria, parece, acompanhar a voragem do tempo, para não ficar estagnado. A impressão que se tinha é que estava sempre à cata de algo  O seu banjo era intocável. Faltavam cordas e nele ninguém se atrevia em por as mãos. Esse ser humano, absolutamente sem eira e nem beira, tinha-nos como seus parceiros de olhares e de adeuses. Nós nos comunicávamos por meio de uma música jamais tocada ou ouvida. Talvez, até ouvíssemos ele tocar aquele instrumento sem cordas. Ele tocava e nós ouvíamos uma melodia sem som, mas de marcante sonoridade para nossos espíritos. O "Bancho Boy" representava a liberdade plena de ir e vir, andar como bem entendesse, morar em qualquer canto, não cumprir regras ou deveres sociais. Enfim, fazer ou deixar de fazer tudo aquilo que não nos era permitido. Não invejávamos a sua vida, mas cobiçávamos a sua liberdade, que jamais seria nossa.                                                                   
segunda-feira, 26 de abril de 2021

Pinóquio e o boiadeiro

Lá vamos nós, brasileiros. Qual o trajeto a ser percorrido, e qual o nosso destino? Quem sabe? Ninguém. Com certeza não estamos indo ao encontro da verdade. Nenhuma das verdades que nos levariam a um destino melhor. Agruras pontuais, sofrimentos coletivos, distância da pátria dos nossos sonhos, é o que temos. Agora, acrescente-se o componente da farsa. Até quinta- feira, era o discurso agressivo, predatório, intolerante, discriminatório, instigador da violência e da destruição das instituições e tudo o mais que se tornou marca de uma gestão sem gestor. Depois dessa data, o já abominável cenário transformou-se em uma pantomima, sem a graça e a criatividade dos saudosos espetáculos circenses.   No centro do picadeiro estão os que mentem. Mentem a mentira plena, sem ressalves. E o fazem sem rubor nas faces, sem nenhum resquício de vergonha.    Nem nos contos da carochinha, nas fábulas de Esopo ou de La Fontaine, nos maiores ficcionistas da literatura mundial, encontramos criações tão audaciosas e distantes da realidade, como a fala presidencial desse dia 22, que substituiu o 1º de abril. Aliás, lembre-se que histórias infantis, fábulas, ficção possuem, em regra, conteúdo ético e moral. A fala bolsonarista, ao contrário, é o descarte, o desprezo por mensagens construtivas e edificantes. As suas falas querem a destruição, a desconstrução. Poder-se-á dizer que a ladainha de quinta, 22, foi repleta de promessas, compromissos, juras de amor pela Amazônia, pelos índios, pela floresta, pelas águas, pelo firmamento limpo de impurezas. Fala de um cultor fervoroso da obra divina, a natureza. Sua oração significaria uma conduta meritória de sua parte, pois reviu e reconsiderou sua anterior posição. Ora, ora, cinismo puro, oportunismo genuíno, desfaçatez descarada. Trata-se de um pronunciamento desprovido de seriedade e credibilidade, em face das reiteradas e recentes falas em sentido contrário. Aliás, recentes e de sempre. Como emprestar-se valor e honestidade a afirmações que até ontem eram levianas, frívolas, desarrazoadas. Como se enxergar uma repentina claridade, no lugar de uma densa treva? Estamos, agora, esperando ansiosos o pronunciamento do ministro boiadeiro. Os mugidos de seus bois com certeza nos trarão alento e esperança. Ele saberá conduzir o seu gado para o pasto e fechar as porteiras para que não haja um estouro da boiada, que seria muito a gosto dos desmatadores, incendiários, grileiros, latifundiários, ocupantes de terras indígenas e tantos outros predadores.   Só resta agora o presidente dizer que sempre temeu a pandemia e as suas consequências. Que sempre chorou os mortos. Que abominou a cloroquina. Que sempre defendeu o isolamento. Que sempre evitou aglomeração; que não mediu esforços para termos vacinas, etc. etc. Vamos aguardar. Quem viver verá. Eu espero estar vivo para vê-lo ir embora. Inclusive o ajudarei a fazer as malas, para que leve consigo os males que nos impingiu.   
terça-feira, 30 de março de 2021

O poeta da vila e a pandemia

Nunca, como em nossos dias, foi tão importante, indispensável mesmo, apelar-se para políticas compensatórias. Política na acepção de escolha, de opção. Compensações não materiais, mas no sentido de substituição do pior e do prejudicial pelo menos nocivo. Lembro-me de um livro, talvez filme ou novela, denominado "Poliana". A personagem praticava o chamado jogo do contente. Seu escopo era, exatamente, compensatório, pois, em face de uma situação desagradável, procurava elaborar um pensamento que extraísse da mesma situação algo de bom, reconfortante, que afastasse a sua contrariedade. Pois bem, em face da pandemia provocada pelo corona com as dolorosas e, até então, inimagináveis consequências, cada um de nós precisa cuidar da saúde mental e emocional, além da saúde corporal. À pandemia alia-se a pantomima provocada pelo cômico, senão fosse trágico, gerenciamento da crise e pelo desgoverno que nos conduz à beira do abismo. Várias fórmulas têm sido apresentadas. Psicólogos, psiquiatras, artistas, esportistas, escritores, fisioterapeutas e tantas outros profissionais têm, em suas áreas, procurado apresentar sugestões que aliviem os sofrimentos provocados pelo isolamento. A minha contribuição não é no campo das atividades concretas. Imaginei ser útil o exemplo de um compositor, poeta e filósofo, não de formação, mas de vida, que por meio de sua música retratou dramas do cotidiano, sempre com um viés de alegria. Soube tratar a amargura, a melancolia e a decepção com pitadas de ironia, chacota e muita graça.  As suas carências e desilusões, suas e de qualquer um, eram substituídas por deboches, piadas e caçoadas, marcadas por um humor inteligente e malicioso. Refiro-me a Noel Rosa. Fértil compositor, morto com vinte e seis anos, compôs duzentas e cinquenta músicas aproximadamente. Suas letras retrataram as várias nuances da sociedade da época, bem como reproduziram sentimentos e emoções pessoais, de forma por vezes dramáticas, outras cômicas, mas especialmente com ironia e muita musicalidade.    Seus olhos eram sagazes e captavam o âmago de cada episódio, modo de ser pessoal e conduta social. A sua inteligência e capacidade criativa transformavam as suas letras musicais em primorosa prosa, por vezes em belas poesias.   Algumas de suas músicas expõem com graça e com leveza situações de sofrimento e de carência, tornando-as menos penosas e mais aceitáveis. "O Orvalho Vem Caindo", mostra quem não tem onde morar, e um dia passa bem, dois ou três passa mal. Em "Conversa de Botequim", ele demanda pendurar a conta da média no cabide ali da frente; "Com que Roupa", daquele que não tem roupa para ir ao samba, mas vai se reabilitar; "Filosofia", de quem zomba da aristocracia que não tem alegria e cultiva a hipocrisia; "João Ninguém", de quem diz que muita gente tem luxo mas não tem a alegria que João tem. Estas, entre outras, dão exemplos de sua capacidade de transformar temas áridos em músicas alegres que cantam com o otimismo um porvir melhor. Caso estivesse conosco assistindo e amargando as consequências da pandemia, Noel saberia levá-la com fidelidade para a música. Mas, encontraria uma forma poética de fazê-lo e, com certeza, traria bem-estar ao espírito e descanso à mente. Utilizando-se do sarcasmo, da sátira e da blague, retrataria o comportamento de alguns homens públicos e apontaria aqueles que estupidamente negam o inegável e não valorizam a vida por, não se importarem com as mortes. Ouvir Noel Rosa não diminuirá a tragédia das mortes e das infecções, mas com certeza, mostrará ser a vida dotada de duas faces, sendo preciso sempre encontrar-se a que se oponha ao lado mau, injusto e destrutivo da existência.
terça-feira, 9 de março de 2021

Namoricos, namoros e traições

Minha neta de dez anos foi pedida em namoro por um colega de classe, por meio eletrônico. Respondeu, pelo mesmo caminho, que considerava o colega um amigo, mas que era cedo para namorar. Gostei da educada e conveniente resposta. Claro que achei o pedido prematuro, precoce e inadequado. Reação de avô cioso de seu papel de protetor das netas. Aliás, seis netas. Haja asas protetoras. No entanto, agradou-me saber que ainda se pede em namoro. Ou será uma prática limitada até os dez ou onze anos? Depois dessa idade dizem que nem namoro mais há. Há sim e eu provo. Não posso negar ter ficado feliz de já ter uma neta cortejada. Ah!!! Nessa hora lembrei-me que tenho uma outra neta, não cortejada, mas já em pleno namoro. Com 21 anos o namoro não é um mero flerte. Ela até já trouxe o felizardo para dentro das casas da família. Quando eu soube, logo me veio a possibilidade de ser bisavô. E eu externei a ideia para o casal. Fiz bem? Acho que não, pois fui alvo de grandes críticas. Talvez tenha sido porque além de querer ter um bisneto ou bisneta eu completei a ambos: com ou sem casamento. Interessante que a reação mais contundente a esse natural anseio partiu dos mais jovens da família. Isso mostra haver um conservadorismo ocupando uma baixa faixa etária.   Lembrei-me que no meu tempo pedia-se em namoro. E, mais, a escolhida por sua vez solicitava um tempo para responder. Normalmente eram necessários três dias. O prazo era fatal. No quarto entendia-se que a resposta era não. Ademais, se ela quisesse dizer sim nos dias posteriores o rapaz estava desobrigado de aceitar. Muitas vezes ele condescendia e a tolerância era maior quanto maior fosse o seu interesse. Certo dia um queridíssimo amigo pediu-me ajuda para pedir uma moça em namoro, que segundo ele já estava conquistada. Faltava, apenas, a formalidade do pedido. Esse se daria por telefone. Estávamos em minha casa. Combinamos que eu ficaria na extensão e quando entendesse ser a hora adequada eu iria avisá-lo. Dito e feito. Mas, mal feito. Assim que lhe dei o sinal, o amigo solenemente fez o pedido. Não precisou de nenhum prazo para vir a resposta. Em questão de segundos veio um sonoro e contundente não. Frustação geral. Dos amigos, que solidários tinham uma expectativa positiva. Do pretendente, certo da aceitação e minha, pois me julgava um ótimo consultor sentimental. Na verdade, a minha atuação não foi de toda desfavorável, pois, traindo o meu amigo, tempos depois estava namorando a mesma moça...
quinta-feira, 25 de fevereiro de 2021

O júri e a "grobata"

A advocacia é uma profissão multifacetada. As características que compõe a sua natureza levam-nos a afirmar ser ela ciência, pela gama de conhecimentos que exige; arte, em face da grande parcela de improvisação e criatividade que requer; e sacerdócio, pelo grau de renúncia e sacrifício aos quais se obrigam os advogados. Note-se que alguns aspectos pessoais distintivos do advogado que lhe emprestavam uma marca inconfundível, quais sejam a   indumentária, a escrita e o linguajar, estão sofrendo alterações. O advogado agora está aos poucos se desvencilhando da gravata e alguns do paletó. Na sua escrita está pondo de lado citações latinas, palavras em desuso, termos jurídicos desnecessários, longas citações doutrinárias e na oratória tenta seguir métodos modernos de comunicação em substituição ao discurso pomposo de outrora. No entanto, a advocacia mantem alguns traços imutáveis que vencem o tempo e são intrínsecos à sua personalidade e ao seu caráter. Uma das suas características é a atração que desperta na imprensa e na própria sociedade, mormente na área criminal. O elevado grau de humanismo, sensibilidade e emoção contido nos conflitos, e por vezes, o amor e o ódio suscitados pelos protagonistas da cena judiciária, são fatores de irresistível interesse coletivo.   A advocacia é um repositório de histórias reais, por vezes ficcionais, folclóricas, dramáticas e hilárias. Ademais dá ensejo à especulação midiática, asas à imaginação e a interpretações as mais díspares e antagônicas sobre o mesmo fato. Mais do que qualquer outra a advocacia criminal, pela natureza dos eventos que acolhe, os crimes, provoca a atenção e a curiosidade da sociedade, interessada pelo fato em si e pelo julgamento do acusado. Entre os litígios criminais, os que envolvem o crime de homicídio, tentado ou consumado, são os que mais dão ensejo a episódios pitorescos, tiradas de espírito, esgrimas verbais, gozações envolvendo advogados e promotores, rápidos apartes e respostas precisas. É na Tribuna do Júri que os seus protagonistas podem, com liberdade, dar vasão aos seus conhecimentos jurídicos, à sua agilidade de espírito e de raciocínio e à sua perspicácia e vivacidade de inteligência. Esses atributos postos nas discussões da causa e os dramas humanos que trazem uma identidade com o cotidiano das pessoas representam uma atração ao homem comum, independente de suas condições sociais e de sua cultura. O meu primeiro escritório foi na Praça da Sé, nº 399, onde meu pai esteve desde 1957. Prédio antigo, charmoso, a porta do elevador era "pantográfica", feita de pontas, que qual uma sanfona era aberta e fechada manualmente. O zelador era um português de nascimento, no Brasil desde a década de vinte ou trinta, que, embora sem nenhuma instrução, era portador de uma aguçada inteligência e um especial apreço pelo Tribunal do Júri. Quando podia ia assistir à uma sessão. Dizia e era verdade, que assistira aos júris dos grandes advogados da época. Os conhecia e deles falava com alguma intimidade. Dante Delmanto, Covello, Américo Marco Antonio Cirilo Júnior, Marrey Júnior, Waldir Troncoso Peres e outros eram submetidos à sua análise e crítica, sempre era rigorosa. Pois bem, quando comecei a atuar no Plenário do Primeiro Tribunal, nomeado pelo saudoso amigo e juiz Edgardo Severo de Albuquerque Maranhão a presença do Adelino era obrigatória.       Sentava-se nos primeiros bancos do imponente salão do Tribunal do Júri, o primeiro, e lá ficava do início à proclamação do resultado dos jurados e da sentença proferida pelo magistrado. A partir de uma determinada época, passei a ser nomeado também pelo juiz Fernandes Rama, que presidia o Segundo Tribunal, localizado no quarto andar do vetusto prédio do Tribunal de Justiça. Lá também a presença de Adelino era obrigatória. Não pensem que o amigo comparecia aos julgamentos para me aplaudir. Ao contrário, passou a ser o meu crítico. Dizia ao final com o seu gostoso sotaque lusitano: "o menino foi bem, mas no meu tempo vi melhores". Por vezes, fazia críticas procedentes extraídas de sua inteligência intuitiva, embora inculta. Tenho enorme saudade do velho Adelino, que, esqueci de dizer, honrava as formalidades o Júri do passado, pois só ia às sessões portando uma gravata multicolorida, que ele pronunciava "grobata". Adelino, onde estiver, ponha sua "grobata" e olhe por mim. 
segunda-feira, 1 de fevereiro de 2021

Campos da várzea

Os dicionários dão à palavra várzea o significado de extensas áreas situadas nas planícies ou, ainda, o de terrenos cultivados e localizados à beira dos rios e dos riachos. Pois bem, estranhamente, a maioria omite o significado de maior interesse e alcance pelo menos para nós que habitamos as cidades. Várzea é o local aonde se pratica futebol fora dos estádios destinados a esse esporte. Não só o futebol, pois é um local destinado a outras atividades de esporte e de lazer. Lembro-me, na minha infância e juventude, no nosso "campinho", o do Olímpicos do Paraíso, situado na rua Stella com Oscar Porto, nós nos ocupávamos de práticas de outras naturezas. Jogávamos taco ou casinha. Com três pequenos pedaços de madeira, presos na ponta superior, fazia-se duas "casinhas", uma em cada ponta de um espaço determinado que deveriam ser derrubadas, com as tacadas ou arremessos da bolinha.  Empinar papagaio, soltar balões e outras brincadeiras, como "lasca romeu", "mãe da lata", "malha" e até "bocha", também ocupavam esse espaço. Aliás, por vezes, a sua destinação era desvirtuada. O campo se transformava em campo de batalha. Turmas rivais marcavam dia e hora para um confronto físico. Havia regras e normas que deveriam ser seguidas, como se obedece a um código de honra. Havia um número certo de contendores que não poderia ser ultrapassado. Riscava-se uma linha horizontal. Cada grupo ficava postado em frente ao outro, assim que alguém ultrapassasse a linha a contenda tinha início. Outra regra sagrada, nada de armas ou de qualquer instrumento que fizesse às vezes de tapas daqui, tapas dali, por vezes um soco e um pontapé e nada mais. Naqueles tempos as brigas eram incruentas, não se feria não se matava. Não raras vezes selava-se a paz, em um bar. O futebol era a destinação original desses campos. O futebol brasileiro muito deve a eles e aos "olheiros" que os frequentavam. O campo da várzea possui uma indiscutível relevância para a própria sociedade, especialmente para as suas camadas menos favorecidas. Espaço de lazer e de sociabilidade, democrático espaço. As agremiações de futebol localizadas nos bairros de São Paulo reuniam em torno de si não só jogadores como parte de seus habitantes. Os jogos especialmente os de domingo pela manhã atraiam adeptos do futebol, mas não só. Ali se confraternizava, bisbilhotava, flertava, namorava, petiscava e nos dias festivos ou dos grandes jogos, havia as célebres churrascadas, acompanhada de chope. Lembro-me que não havia "serpentina" para gelá-lo. Os barris eram cobertos por barras de gelo, envoltas em estopa para não que não se derretessem. O campo de várzea é uma instituição nacional, e com ele não se deve brincar. Centros de sociabilidade principalmente nas periferias, carentes de espaços públicos, torna-se imprescindível a sua manutenção criação em terrenos abandonados. Temos que resistir à voracidade da cidade que engole os seus espaços de liberdade, congraçamento e harmonia bem como a sua própria memória. Eles, embora em número bem menor do que no passado, ainda sobrevivem à ganância imobiliária. Certa vez, do andar alto de um prédio, algum barão do cimento, olhando para um conjunto de campos, exclamou suspirando: "que desperdício", estava se referindo-se aos prédios que ali poderiam ser construídos. Tempos depois aqueles campos foram substituídos por um parque. O barão teve que digerir a sua frustação. Abro um parêntese, para lembrar que o futebol de várzea não precisa necessariamente ser praticado em um campo e nem jogado por vinte e dois jogadores. Também não é preciso nem ao menos uma bola. Pratica-se o futebol em qualquer lugar onde aja um espaço. Uma rua; um quintal; um beco; uma vila; um buraco qualquer com duas extremidades. Aliás, por vezes se joga apenas com um "gol". Trata-se da chamada "meia linha", que em Santos é o "lelê". Um só goleiro. Bola fora é gol dele. Por vezes, bastam dois jogadores, um em cada gol. É o "gol a gol". Eles chutam e defendem. Sobre os gols, claro que são improvisados, com traves da mais diversa procedência. Pedaços de pau; latas; sapatos; tijolos. Bem se vê que as traves são só as laterais e imaginárias quanto à altura. Resta a bola. Para se jogar na várzea basta algo que se pareça com a bola. O mais comum são as meias, que tomam a sua forma. Quem gosta do futebol faz muitas concessões. E, ele por sua vez, tudo aceita, até para não ser esquecido.
segunda-feira, 28 de dezembro de 2020

A detenção de inocentes incendiários

Eu jamais fui protagonista direto ou indireto de nenhuma conduta delituosa de alguém, que posteriormente viria a ser meu cliente. Era procurado para defender e o fazia com base na narrativa do acusado e das provas vindas para os autos. O meu conhecimento do fato era, portanto, pós fato. No entanto, como exceção, protagonizei dois episódios que ficaram gravados na minha memória e nos meus sentimentos. Duas foram as razões da minha memória haver registrado ambos de forma indelével: primeira, todos os participantes das cenas eram e são meus amigos de infância; ademais as cenas foram pitorescas, para não dizer hilárias, assim como hilária foi a minha intervenção como quase advogado, como rábula. Devo explicar porque elas também me marcaram sentimentalmente. Tanto os participantes de ambas quanto os próprios episódios estão cobertos pelo manto da amizade e do passado, um passado juvenil pleno de aventuras e de venturas. Agora narrarei um dos episódios. Estávamos, como sempre, no início da noite, reunidos na rua Stella, a nossa gloriosa rua, que emprestava o seu nome à nossa não menos gloriosa Turma, denominada T.S. Ficávamos em frente à segunda vila que lá existia, essa em frente ao campo de várzea do também gloriosa Olímpicos da Vila Mariana. Percebe-se que para nós todos e tudo que nos cercavam constituíam uma glória. Salvo os times de futebol. Nós são-paulinos obviamente não glorificávamos o Corinthians, Palmeiras, Santos e vice-versa. Por se tratar de uma sexta-feira, estávamos todos reunidos nos aquecendo para uma nova jornada boêmia. Uma boemia quase infanto-juvenil, pois os mais novos tinham quinze anos. Como éramos ousados, inquietos e curiosos, nos aventurávamos pelo centro da cidade indo a bares como o Bar do Jeca, o Ponto Chic, Salada Paulista, até o Avenida Danças. Aí a ousadia era suprema. Lá só se estivéssemos de gravata e com algum dinheiro a mais, para picotar os cartões das dançarinas.   Os mais velhos, por vezes, iam ao Clube de Paris, Dakar, Vagão etc. Não poucas vezes ao Som de Cristal, estupenda gafieira. Não nos aventurávamos a dançar, apenas assistir. Era um verdadeiro espetáculo vermos os casais, elegantíssimos dançando, na verdade bailando. O respeito era grande, a ponto de o cavalheiro dançar com um lenço em sua mão direita para não manchar o vestido da dama.  Uma outra gafieira famosa existia na rua da Glória, o Paulistano da Glória. Pois bem, voltando ao episódio. Alguém do nosso grupo resolveu verificar se um líquido que escorria pela rua perto da sarjeta era água ou outro líquido. Era outro e não água. Era gasolina. O seu teste seria inofensivo se para fazê-lo não tivesse usado um isqueiro. O fogo espalhou-se e ameaçou alguns dos carros estacionados. Alguns chegaram a ficar um pouco danificados. Preocupados que ele pudesse se alastrar e tomar a rua, com risco a quem passasse e às próprias casas, todos nós, heroicamente, passamos a tentar afastar os automóveis. Nessa empreitada destacou-se um de nós: Tamer Chain, campeão panamericano de halterofilismo. Enquanto seis ou sete se esforçavam para afastar um carro das chamas, Tamer sozinho arrastava a traseira e depois a frente e punha o veículo a salvo. Houve um Volks que ele literalmente levantou a parte da frente. Não passou muito tempo e várias viaturas chegaram. A nossa planejada e esperada noitada transformou-se em uma compulsória excursão ao Pátio do Colégio, então sede do 1º Distrito Policial da Capital. Depois de contarmos o que ocorrera o delegado de plantão passou com insistência a indagar quem fora o autor da façanha. Como não tínhamos nenhuma propensão à delação permanecemos num mutismo solidário e absoluto. Sabíamos que o incendiário fora, o mais sério, o mais ajuizado ou menos desajuizado de todos, "o Velho". Como assinala sua alcunha, o mais antigo de todos nós.    Tive a ideia de perguntar à autoridade policial em qual faculdade havia se formado. Formara-se exatamente na minha faculdade, a Paulista de Direito da Universidade Católica. Bem aí as coisas ficaram mais fáceis, pois comecei a falar dos meus professores, alguns que tinham também sido dele. Citei algumas façanhas que conhecia dos estudantes e das turmas de sua época. Fatos por mim mencionados, que até o emocionaram, foram os relacionados com as disputas entre o 11 e o 22 de Agosto, Centros Acadêmicos da São Francisco e da Católica. Eram os famosos jogos entre ambas as Faculdades, denominados "33 de Agosto". Por fim, descobrimos ter ele pertencido ao partido acadêmico do qual eu era presidente, o Partido Universitário Independente, o PIU. A pirotécnica noite terminou na delegacia, mas todos fora das grades e se congratulando com a autoridade, eminente "puquiano".