Eu já escrevi alguma coisa sofre o "Fórum do Meu Tempo". Escritos sobre advogados, personagens do dia a dia forense, situações pitorescas por eles vividas, entremeadas pelos dramas que acompanham a cena judiciária especialmente na área penal.
Certos escritos foram dedicados às figuras de advogados que marcaram a profissão pela sua dedicação, amor ao direito de defesa, capacidade profissional, cultura e, especialmente, sensibilidade para amparar homens e mulheres levados às barras dos Tribunais.
O objetivo, eu diria sagrado, sublime, desses advogados e daqueles verdadeiramente vocacionados, é emprestar aos que não tem nem vez e nem voz, além de sua inteligência, eloquência, capacidade argumentativa a sua coragem, especialmente nos casos em que a opinião pública se volta irada contra o defendido, por vezes instigada pela mídia.
Como bem disse Sobral Pinto, a advocacia não é uma profissão para covardes. Ademais, sempre é preciso lembrar, que não defendemos o crime, mas somos porta vozes dos direitos e das garantias legais dos acusados dos que são sentados nos bancos dos réus.
Agora, em continuação às minhas homenagens na forma de evocação, a referência será a um símbolo de uma advocacia alegre, espirituosa, romântica, exercida por um homem com tais características. Na verdade, um ser humano raro, que deu a quem o conheceu alento e esperança no porvir de um mundo mais sereno, pacífico, solidário e fraterno. Aliás, conviver com ele possibilitava assimilar esses traços, que eram os de sua personalidade. Sua presença era contagiante.
Refiro-me a Carlos Mihich Bueno, o Caxixo. Formado na Faculdade do Largo de São Francisco, em 1945, era Considerado pelo meu pai, Waldemar Mariz de Oliveira Júnior, o seu amigo "Macacão", como excelente goleiro.
O Caxixo são-paulino emérito. O Caxixo refinado e culto, gourmet e apreciador do bom copo. O Caxixo boêmio, amigo da noite e de tudo que ela proporciona. O Caxixo monopolizador de reuniões, pois magnífico "causer". O Caxixo, tribuno primoroso, grande comunicador no Tribunal do Júri. Para mim, o Caxixo amigo querido, cuja ausência é como a curva da estrada, eu só não o vejo, mas ele está presente, segundo a analogia de Fernando Pessoa, sobre a morte.
Eu tive a honra de fazer um Júri com ele. Fomos assistentes de acusação em um julgamento em Tupã. A sua impecável atuação a todos encantou e a mim constituiu uma preciosa lição de como acusar sem perder a marca do defensor. Defendeu ele com esmero invulgar o direito da família da vítima a um julgamento justo e consentâneo com a verdade dos fatos.
Os adjetivos, por mais generosos, não retratam com fidelidade e em sua inteireza a fecunda criatividade manifestada em situações diversas, por meio de comentários espirituosos, chistes, gracejos, pilherias tudo enfim que refletia a sua fulgurante inteligência.
Caxixo se relacionava com grande facilidade. Barreira nenhuma o afastava das pessoas. Ideologia, raça, origem social, procedência, sexo. Bem, quanto a ele tinha óbvia e notória preferência. Sempre conviveu admiravelmente com elas. Todas, de todas as origens. Não se pense que o seu interesse era de um vulgar namorador. Não, era solidário e as ajuda efetivamente.
Quando solteiro, frequentava a casa das moças antigamente chamadas de "vida alegre". Ou, hipocritamente, de "vida fácil". Pois bem, quando estava nessas casas, já formado, era frequentemente requisitado para socorrer aquelas vítimas da incompreensão policial. Presas, ele imediatamente, lá mesmo nas casas, com a máquina de escrever sobre as pernas, impetrava habeas corpus, para libertá-las. Constantemente, se encontrava rodeado pelas colegas das infelizes presas, que o ajudavam fornecendo detalhes da prisão.
Tratava as suas amigas e companheiras de forma absolutamente igualitária. Certa feita comprara em uma doceria dois bolos, que deveriam ser entregues em endereços diferentes. Indagado, respondeu que um era para a Casa Militar e o outro para a Casa Civil.
Rápido nos apartes, mas ligeiríssimo nas respostas aos que recebia, foi interrompido pelo promotor, que lhe disse "Vossa Excelência parece um purgante", e ouviu a resposta "E Vossa Excelência é o efeito desse purgante".
O seu amor pelo São Paulo Futebol Clube era genuíno, suas raízes o remetiam à infância. Tal como os são paulinos daqueles tempos, Caxixo possuía grande orgulho de sua condição, pois o "clube mais querido da cidade" ou "o clube da fé" adquirira uma justa fama de clube bem dirigido, por pessoas de elevado nível intelectual, moral e ético, que lhe imprimiam uma organização esmerada.
Caxixo não perdia jogos. Por vezes tinha que conciliar o trabalho com alguma partida disputada à tarde, em dia de semana. Pois bem, justo em uma dessas tardes teria que sustentar um Habeas Corpus, cuja relatoria era do não menos são-paulino ilustre desembargador Onei Raphael Pinheiro Oricchio. Ficou em palpos de aranha. O Tricolor jogava no Pacaembu. Como fiel torcedor que era, optou pelo jogo. Para tanto pediu adiamento do julgamento, sob a alegação de teria uma audiência em uma vara cível. O desembargador deferiu o pedido.
O encontro seguinte que teve com o magistrado, após o adiamento, foi no mesmo dia. Em um local para onde ambos foram. Coincidentemente o Pacaembu.
A mentira para ir ao futebol parece que era uma constante dos advogados e juízes torcedores do "mais querido". Certa feita, um vizinho correu para me avisar que papai estava aparecendo na televisão. É verdade. Estava envolvido em um entrevero nas numeradas do estádio, e foi flagrado pelas câmeras O pior não foi a briga e nem o seu televisionamento, foi a bronca que tomou de minha mãe, pois dissera que estava com um dia atribulado, repleto de compromissos profissionais.
As agruras da advocacia, dentre elas os prazos processuais, uniram dois advogados com os elos da responsabilidade profissional e da solidariedade. Caxixo atravessou a Praça João Mendes às pressas, esbaforido, angustiado. Era necessário chegar ao balcão de protocolo antes que ele fechasse. Era o último dia, último minuto de um prazo. Quando entrou no saguão do Fórum sentiu-se mal e perdeu as forças para continuar correndo. Atrás dele passava o então advogado Antonio Carlos Malheiros, que agarrou a petição e a protocolou no último instante.
Gestos de amor à profissão e ao próximo, sempre marcaram a advocacia.
E Caxixo era isso, um ser especial que gerava e recebia amor.