COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Levando a sério o erro judiciário

Transformando as falhas da Justiça em oportunidades para sua evolução

Fernando Braga
sexta-feira, 13 de dezembro de 2024

Verdade, erro e devido processo penal (II)

3) A "abertura" à Epistemologia (ou uma concessão à doutrina da confiança epistêmica) Se a prova judicial não pode assumir uma função (meramente) persuasiva e se já se sabe que uma resolução da questão de fato com base (apenas) no "bom senso do julgador" não projeta uma concretização que se distancie de uma mera persuasão (ou de uma persuasão pouco racional), sobreleva-se perquirir qual modelo teórico a prova judicial deveria incorporar. Aqui, surge a primeira questão fundamental: dever-se-ia (re)fundar do zero a prova judicial ou esta seria concebida como uma espécie da prova em geral (ou da prova desenvolvida pela Epistemologia)? Parece lógico que, se os critérios indicativos do que é verdadeiro - ou seja, os que se associam a um menor risco de erro substancial (ou de não correspondência com a realidade empírica) - são aqueles fornecidos pela Epistemologia1, o modelo de adjudicação dos fatos no processo deve principiar com uma concessão à chamada «doutrina da confiança epistêmica»2, dispensando o jurista de preocupações excessivas com a elaboração ou interpretação de normas para regular a atividade probatória. Essa abertura à Epistemologia, assim, além de evitar um isolamento do Direito - que se tornaria um sistema hermético, alimentando-se apenas de suas próprias premissas e conclusões -, permite que o processo judicial se beneficie do refinado instrumental teórico e metodológico desenvolvido ao longo de séculos de investigação filosófica e científica. Buscando, então, uma síntese sobre o que representaria a incorporação da «confiança epistêmica» ao processo penal, pode-se dizer que, em primeiro lugar, equivaleria a um princípio inclusivo, que tencionaria pela consideração de todos os dados/informações relevantes, ou seja, daquele/as que interferem - corroborando ou refutando - na admissão da hipótese acusatória, isso porque as razões de acreditação serão tanto mais seguras/confiáveis quanto maior completude tiver o conjunto de dados relevantes, o que repercutiria tanto em relação às fontes de prova quanto aos meios/técnicas voltadas à sua análise/exame. Ademais, a incompletude do quadro probatório, além de poder impedir uma adequada reconstrução da realidade empírica que ficou no passado, pode gerar uma assimetria entre sua segurança (risco de erro associado) e a sua aptidão persuasiva. Esse princípio inclusivo, para além de converter a relevância "no" critério de admissibilidade da prova, conformando uma espécie de in dubio pro admissão3, equivaleria a uma tensão de sentido para a instituição de, p. ex.: (i) poderes de requisição para os agentes da persecução na fase investigatória (discovery), assim como de um dever funcional de busca dessa completude, o que abrangeria as chamadas provas de descargo; (ii) poderes de requisição para o juiz responsável pela instrução processual4; (iii) uma permanente atualização das técnicas de coleta, preservação e exame das fontes de prova. De outro lado, a doutrina da confiança epistêmica projeta-se sobre a tomada de decisão (valoração da prova), reclamando que a aceitação, como provada, da materialidade e da autoria de um delito dependa da existência de razões objetivas (intersubjetiváveis) que as corroborem em uma determinada medida; ou seja, primordialmente, deve-se impedir que o ato decisório emane preponderantemente de meros sentimentos, impressões ou intuições do julgador. Tais "razões acreditadoras", além de respeitarem os preceitos da lógica, necessitariam ser consonantes com o conhecimento atualizado (retificado) acerca do funcionamento do mundo e das relações causais entre seus fenômenos, o que acarreta a premência de expurgar mitos, preconceitos, superstições e estereótipos que permeiam o senso comum ou mesmo aquele "modo peculiar de ver o mundo" do julgador. Consequentemente, o processo decisório deve ocorrer de forma consciente, fazendo-se transparente a relação entre os enunciados fáticos verificáveis empiricamente e aqueles cuja admissão é disputada. Estes últimos devem ser admitidos com base em um raciocínio do tipo «dado (que se observou) E, porque G, é provável que tenha mesmo ocorrido H». Em síntese, com a abertura à Epistemologia, o processo penal passa a demandar uma postura crítica do decisor (de resistência à persuasão), um método decisório e o respeito ao conhecimento validado pela Ciência. 4) A vocação epistêmica dos critérios decisórios: uma reacomodação de sentido Formado o conjunto probatório e trazidos os argumentos das partes sobre o mesmo, surge a indagação central: qual é o papel do(s) decisor(es) no processo penal? E, mais especificamente, qual finalidade os critérios decisórios devem almejar? Reconhece-se a dificuldade de enxergar uma ruptura teleológica entre a disciplina da valoração da prova e daquela que regula o sistema probatório como um todo, especialmente porque ambas permaneceriam comprometidas com a reconstrução de uma realidade histórica passada. Contudo, se o julgador constata que o conjunto probatório disponível é absolutamente incapaz de propiciar uma aproximação minimamente segura a essa realidade e, por conseguinte, não admite a hipótese acusatória, obviamente não estaria cometendo um erro decisório, mas, ao contrário, uma operação que cumpre justamente a finalidade desse subsistema: aferir a qualidade epistêmica do conjunto de dados incorporados ao processo. Embora a disciplina da valoração seja parte integrante de um sistema normativo mais amplo, é essencial perceber que sua finalidade imediata não se confunde com a deste. Como dito, até a formação do conjunto probatório, a incorporação de uma vocação epistêmica ao processo penal corresponde a um mandamento de maximização das oportunidades de aproximação com a realidade histórica: busca-se o acesso mais amplo possível às fontes de prova, às técnicas de incorporação e aos métodos de exame mais eficazes. Contudo, uma vez incorporada a prova, o processo penal sofre uma reorientação de sentido. Mesmo que persista a ideia de um interesse no resgate da realidade histórica, o foco passa a ser a correta interpretação e significação do material probatório disponível. Um resultado probatório epistemicamente adequado exige do julgador um esforço voltado a viabilizar uma compreensão precisa/acurada do significado das provas, ou seja, de sua aptidão para gerar ou converter-se em razões acreditadoras da hipótese acusatória, isso porque a aproximação com a realidade histórica do crime, neste estágio, passa a depender exclusivamente da adequada análise/valoração dos elementos já incorporados. A verdade ali buscada passa a ser, então, apenas aquela que pode ser assegurada pelo fragmento de realidade consistente nas provas disponíveis. Dessa forma, o processo penal deixa de ser um meio para a aproximação com a realidade histórica e passa a assumir uma função de contenção: não mais viabiliza às partes - acusação e defesa - a prova de suas hipóteses, mas impõe ao julgador o dever de não distorcer o significado da prova produzida. Em outras palavras, não há mais espaço para "facilitar" o resgate da verdade histórica; o desafio passa a ser determinar o que a prova existente pode garantir sobre essa realidade. Em síntese, enquanto o sistema probatório se ancora (também) em um ideal de verdade-descoberta, o subsistema de valoração transita para um ideal de verdade-segurança ou controle. 5) A administração do risco de erro como função da prova e do processo penal: a (in)suficiência da Epistemologia O projetista da prova penal, mantendo os "pés no chão", deverá reconhecer não apenas que não existe um critério de verdade infalível (que reduza o risco de erro a zero), mas que o próprio critério de verdade eleito poderá não se concretizar em sua inteireza. É que nada garante que sempre se conseguirá amealhar o conjunto probatório ideal (dotado de uma adequada completude), aliás, isso deverá ser a exceção, dada as peculiaridades de um processo judicial, onde: (i) a preservação das provas depende muito mais de uma pronta atuação do interessado, sendo muita vez improlífera uma atuação retrospectiva; (ii) não raro, haverá interessados em sua ocultação; (iii) o custo para localização, apreensão e exame de um determinado elemento de prova pode ser demasiado elevado; (iv) a incorporação da prova ao processo e seu exame devem se desenvolver na presença das partes, respeitando uma determinada janela de tempo. Além disso, deve-se refletir também que os critérios de significação/valoração da prova serão mediados pelos julgadores disponíveis em determinado tempo e lugar, não necessariamente agentes epistêmicos virtuosos devidamente selecionados e treinados. Isso força admitir que o melhor critério no plano teórico pode não gerar os melhores resultados práticos quando o conjunto probatório e o decisor disponível distanciarem-se de um ideal; de sorte que, na definição dos critérios de verdade judicial, por vezes será necessário escolher entre, de um lado, maximizar a acurácia/retidão de uma operação idealizada e, de outro, maximizar a acurácia/retidão média do sistema que opera em uma determinada realidade concreta5. Não se pode desconsiderar, também, a significativa assimetria entre as consequências das duas espécies de erros: a condenação de um inocente (falso positivo) é amplamente reconhecida como mais grave do que a absolvição de um culpado (falso negativo), diferença que reflete a centralidade da presunção de inocência e o compromisso do sistema penal com a proteção das liberdades fundamentais. A finalidade de reduzir o risco de erro no processo penal deve, então, ser combinada com a necessidade de distribuir adequadamente esse risco, privilegiando a minimização de erros que resultem em condenações indevidas, o que pode justificar, em certos casos, a aceitação de um incremento no risco de «falsos negativos». Por tudo isso, embora não seja errado dizer que os critérios da "verdade judicial" se vocacionam a propiciar a máxima aproximação com a Verdade, forçoso reconhecer que eles não exaurem aí toda a sua funcionalidade ou, ao menos, que essa ideia de aproximação exigida pelo Direito precisa ser melhor explicada; parecendo mais correto dizer que a concepção desses critérios deve objetivar uma adequada administração do risco de erro do Sistema de Justiça, almejando: a) a redução do risco de erro inerente ao próprio modelo teórico, aferido segundo sua projeção para um caso idealizado; b) a redução do risco de erro do sistema que opera a realidade, aferido segundo uma perspectiva macro, pensando no seu resultado médio ou cumulado, segundo uma prognose sobre a medida da concretização do modelo teórico nas praxes judiciais; c) a alocação do risco de erro entre os «falsos positivos» e «falsos negativos», reduzindo o risco de erro da primeira espécie à custa de um incremento (não na mesma proporção) do risco de erro da segunda; d) a conciliação entre essas três finalidades, o que pode levar à necessidade de um ajuste dos próprios critérios de verdade, que termine por incrementar o risco de erro inerente ao próprio modelo teórico. e) a redução de custos - não apenas econômicos, mas, sobretudo, as restrições a direitos fundamentais - inerentes à redução do risco de erro, sendo certo que alguns deles podem não valer a pena pagar. Essa complexidade, que obviamente envolve ponderações e escolhas de natureza ética, releva a insuficiência da Epistemologia, para assumir, sozinha, a nomologia da prova penal, sendo necessária a interferência do Direito6 para, p. ex.: a) definir o conceito de prova - o que serve e o que não serve como prova no processo penal -, mediante a imposição do que se poderia chamar de Epistemologia da Passeidade7, já que, embora o aumento das chances de correspondência entre aquilo admitido na sentença e a realidade empírica seja um interesse a ser tutelado, parece incompatível com a ordem jurídica um acerto que não se opera via reconstrução (argumentativa/analógica) de um determinado evento único do passado, mas apenas do reconhecimento de uma maior/elevada factibilidade da hipótese sob admissão8. b) estabelecer regras de exclusão, quando concluir que uma determinada categoria de prova (fonte ou meio) associa-se a um risco de sobrevaloração incompatível com a gravidade das consequências de uma falsa condenação, o que se justifica, tanto numa perspectiva individualizada, redistribuindo o risco de erro entre um falso positivo e um falso negativo, favorecendo a ocorrência deste último, como, numa perspectiva macro, estimulando ou forçando o Estado-acusação a optar por meio de prova com a melhor qualidade epistêmica; c) exigir o reforço oriundo de fonte de prova diversa (corroboration requirement), impedindo se admita a hipótese acusatória com base apenas em uma prova integrante de uma determinada categoria, independentemente da qualidade epistêmica que se apresente em concreto; d) fixar standards probatórios externos - a indicação de um determinado nível mínimo de corroboração propiciado pela prova à hipótese acusatória para que esta seja admitida como (se) verdadeira (fosse). Conclusão: A definição dos "critérios de verdade" para o processo penal deve operar-se mediante uma abertura à Epistemologia e à Ciência, que fornecem as premissas para a construção de um modelo de adjudicação dos fatos que propicia a maior aproximação com a Verdade (ou que reduz ao máximo o risco de erro associado); entretanto, considerando, de um lado, a impossibilidade de se garantir a operação de um modelo baseado exclusivamente na Epistemologia, e, de outro, o fato de que a qualidade epistêmica da reconstrução dos fatos não é o único valor sobre o qual se estrutura o Processo Penal, faz-se necessária a intervenção do Direito, tanto para tutelar outros valores fundamentais do indivíduo, o que poderia ser visto como uma intromissão de natureza extrínseca ou contraepistêmica, como para promover uma adequada realocação do risco de erro associado ao Sistema de Justiça Criminal9. _______ 1 DEI VECCHI, Diego. Los confines pragmáticos del razonamiento probatório. Lima: Zela, 2020, p.  49. [2] STEIN, Alex. Foundations of Evidence Law. Oxford: Oxford University Press. 2005, p. 113. [3] BADARÓ, Gustavo. Direito à prova e os limites lógicos de sua admissão: os conceitos de pertinência e relevância. In: BEDAQUE, José R. S; CINTRA, Lia C. B.; EID, Elie P. (coord.). Garantismo processual: garantias constitucionais aplicadas ao processo. p. 219-260. Brasília: Gazeta Jurídica, 2016, p. 239-40. [4] Não se desconhece o intenso debate sobre se (e em que medida) a gestão da prova poderia/deveria ser centralizada na pessoa do Juiz. Assim, quer porque a aproximação com a Verdade não é a única finalidade do processo penal, quer porque esta exige um método que preserve a imparcialidade do julgador, deve-se pensar, p. ex., na limitação à iniciativa instrutória do juiz, condicionando-a à provocação de acusação ou defesa, e/ou na vedação do que poderia ser visto como a conversão da instrução em uma reabertura da investigação, com a possibilidade de busca por novos elementos de prova, não integrados ao caso construído pela acusação etc. [5] SCHAUER, Frederick. In Defense of Rule-Based Evidence Law-and Epistemology Too. Episteme, vol. 5, no. 3, 2008, p. 295-305. [6] Para maior aprofundamento: STEIN, Alex. Foundations of Evidence Law. Oxford. 2005. p. 112 e ss; BAYÓN MOHÍNO, J. C. «Epistemología, moral y prueba de los hechos: hacia un enfoque no benthamiano». Revista Jurídica Mario Alario D'Filippo, vol. 2, n.º 4, diciembre de 2010, p. 10 e ss. [7] Salah Kaled, em seus trabalhos de mestrado e doutorado, desenvolve essa ideia de passeidade (pastness) como uma espécie de contenção (metodológica) do conceito de prova judicial (KHALED JR., Salah H. A Busca da Verdade no Processo Penal. Para além da ambição inquisitorial. Belo Horizonte: Justificando, 2016, p. 303 e ss.); KHALED JR., Salah H. Ambição da verdade do processo penal: uma introdução. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2019, p. 114 e ss). [8] Para Jordi Férrer, se é certo que só podemos raciocinar sobre a ocorrência e o modo de ser de um fato único recorrendo a generalizações, sempre será necessário ter a disposição elementos concretos especificamente relacionados a este e que possam acreditar uma determinada hipótese que versem sobre ele (FERRER BELTRAN, Jordi. La valoración racional de la prueba. Madrid, Marcial Pons, 2007, p. 108. [9] Registre-se, todavia, que a defesa da (não) intromissão estaria condicionada a uma prognose minimamente fundamentada, p. ex., sobre a realocação do risco de erro decorrente, dadas as condições médias sob as quais o sistema normativo se concretiza e, eventualmente, o custo de alteração do referido estado de coisas.
sexta-feira, 12 de julho de 2024

Verdade, erro e devido processo penal (I)

1) O ideal de Verdade Parece certo que a não-correspondência entre o admitido como provado na sentença, de um lado, e a realidade empírica que ficou no passado, de outro, configura o erro judiciário que, de acordo com os artigos 5o, LXXV, da Constituição, 621, III, e 630, do Código de Processo Penal, merece correção e reparação. Além disso, a Constituição confere elevado status ao esclarecimento do crime e à punição de seus (verdadeiros) agentes, tratando-os como interesses ou valores que justificam restrições a direitos fundamentais como a privacidade/intimidade (art. 5º, XII) e a liberdade (art. 5º, LXVI), o que é, ainda, reforçado pela Convenção Interamericana de Direitos Humanos (art. 25) e pela jurisprudência da respectiva Corte, que considera a ineficiência do Estado na investigação e punição dos responsáveis por crimes uma nova violação aos direitos humanos da vítima e de seus familiares1. Nossa ordem jurídico-constitucional, assim, absorve a concepção defendida pela Escola Racionalista da Prova, que defende que a ordem jurídica colapsaria se a aplicação da norma se desse segundo critérios dissociados da ideia de resgatar a Verdade, isso porque a norma é concebida para regular a realidade, aspirando à conformação do ser ao dever-ser que estabelece. Desse modo, se se busca perante o Estado-jurisdição a alteração de uma dada realidade empírica, sob o pretexto de ser a consequência que a ordem jurídica vincula a outra realidade (do passado) contrária ao Direito, não haveria como defender que a averiguação/resgate desta é irrelevante para a legitimidade do deslinde respectivo. Daí porque se pode afirmar que os veredictos verdadeiros - a absolvição dos genuinamente inocentes e a condenação dos genuinamente culpados - conformam um ideal cuja concretização deve ser buscada pelos poderes estatais. Portanto, admitindo-se que a ordem jurídica brasileira incorpora o ideal de Verdade, é necessário examinar como o sistema processual penal brasileiro, especialmente no que se refere à prova penal, se relaciona com esse ideal: deveria o sistema ser normativamente orientado a concretizá-lo? 2. A (ir)relevância da Verdade para o processo penal Parte da doutrina defende uma concepção do processo penal, que enfatiza seu caráter persuasivo e ritualístico, argumentando que o processo é uma arena de diálogos e narrativas, cuja importância reside em sua estrutura semiótica e linguística, não sendo relevante a relação entre a narrativa e a realidade empírica, destacando, ainda, que o juiz, ao final do processo, elege os significados mais convincentes dentre os discursos apresentados, que não precisariam corresponder à Verdade, mas tão-somente respeitar os limites do contraditório e do devido processo legal2. É normal que, numa primeira abordagem, se considere obviamente absurda a referida opinião: afinal ela parece equivaler à defesa de que "não é juridicamente relevante se o réu, condenado por ter praticado a conduta H, efetivamente praticou H" ou "tanto faz se o réu condenado é (genuinamente) culpado ou inocente". Deve-se reconhecer, entretanto, que a absorção do ideal de Verdade pela ordem jurídica, não leva inexoravelmente à conclusão de que o Sistema Processual Penal, sobretudo a disciplina da fase jurisdicional, deveria incorporar a função de buscá-la, isso porque poderiam preponderar razões desautorizadoras, como: a impossibilidade de fazê-lo; uma relação custo-benefício desfavorável, considerados eventual maior defasagem que a busca da verdade poderia acarretar na concretização de outros valores de igual ou maior envergadura; e, até mesmo, a desnecessidade de fazê-lo, ou seja, o ideal de Verdade poderia ser concretizado em boa medida sem uma disciplina com essa vocação específica3. Por isso, faz-se necessário ir aos fundamentos da chamada "concepção subjetivista da prova penal", que autorizariam desconsiderar a Verdade (ou verdade-correspondência) como um valor fundante/estrutural do processo penal de partes e, consequentemente, a busca da Verdade como sua função. O ceticismo paralisante Argumenta-se que se deveria desistir de buscar a Verdade no processo penal, porque esta seria inatingível/inapreensível, uma vez que: a) o sujeito jamais poderia colocar-se fora da realidade para captá-la, ou seja, seria impossível que se protagonizasse rigorosamente uma relação sujeito-objeto; b) é impossível uma apreensão puramente objetiva da realidade empírica, devido às limitações cognitivas humanas, ou seja, não são factíveis uma percepção e pensamento descontaminados das preconcepções do sujeito; c) é indispensável a mediação pela linguagem, que traz imprecisões e ambiguidades já na própria compreensão dos fatos; e d) falta garantia para o raciocínio indutivo4. Deve-se reconhecer, todavia, que esse ceticismo não autoriza desistir da aproximação com a Verdade que é propiciada pela identificação das melhores razões para admitir que uma determinada hipótese fática é verdadeira, tanto que a concepção racionalista da prova absorve absolutamente todos os argumentos céticos5, convertendo-os numa espécie de recomendação de cautela/prudência no exame e valoração da prova. De fato, a defesa cética (sozinha) jamais poderia respaldar a opção por um modelo que fosse indiferente à qualidade das razões (des)acreditadoras de uma dada hipótese sob admissão, justamente porque se faria necessário aceitar que os juízes não teriam condições de avaliá-las e decidir sobre sua adequação/suficiência6, ainda que se reconheça sua inaptidão para assegurar a (não) correspondência com a Verdade. Daí que, se uma dada hipótese H se refere a uma realidade empírica individualizada e as razões de acreditação mais adequadas são as epistêmicas, isto é, as que seguem critérios que indicam o que é verdadeiro7, não haveria porque deixar de incorporar ao Sistema Processual Penal, em alguma medida, o modelo que, consideradas as limitações do entendimento humano, oferece o menor risco de erro: justamente aquele validado pela Epistemologia e pela Ciência. É certo que ainda se poderia pensar numa sofisticação do argumento cético, para defender que nem mesmo o conhecimento verdadeiro (ou a crença epistemicamente justificada) poderia ser alcançado no processo judicial, que jamais propiciaria as condições ideais (reclamadas pela própria Epistemologia), daí porque, sendo o substituto ideal da Verdade igualmente inatingível, dever-se-ia desistir também da aproximação propiciada pelo mesmo. Tal versão, entretanto, mantém o mesmo dualismo "tudo ou nada" da anterior, já que se baseia na ideia de que a justificação de uma dada hipótese só poderia ser epistêmica - indicativa da verdade - ou (meramente) pragmática, o que continua sem respaldar a desistência pretendida, na medida em que, mesmo se reconhecesse virtualmente inatingível uma justificação validada pela Epistemologia (ortodoxa ou intelectualista), não se pode desconsiderar um gradiente que acomoda razões ou justificações de diversas qualidades, associadas a riscos de erro de diferentes níveis. Ou seja, continuaria sem sentido desistir de uma aproximação com a Verdade (ou da minimização do risco de erro associado à decisão), mediante uma reconstrução (argumentativa) do passado, apoiada numa experiência sobre elementos do mundo empírico, que, como toda obra do conhecimento humano, pode apresentar uma boa ou uma má qualidade epistêmica. Enfim, continua sem sentido desistir de separar as sentenças epistemicamente boas das ruins e de proscrever ou desestimular estas últimas, ainda que se reconheça que o conhecimento verdadeiro dificilmente será alcançado num processo judicial. Nesse sentido, registra-se no âmbito da própria Epistemologia o abandono desse dualismo - justificação epistêmica x justificação pragmática -, ante ao inevitável reconhecimento de que todo conhecimento humano se insere num projeto e o que deve importar é a adequação, aos valores envolvidos, da qualidade (epistêmica) das razões acreditadoras.8 A (in)compatibilidade entre um processo penal orientado à Verdade e a preservação das garantias do indivíduo Um argumento frequentemente invocado contra a orientação do processo penal à (aproximação com a) Verdade é o de que isto inevitavelmente transformaria o juiz em um inquisidor contemporâneo9. Segundo essa perspectiva, o magistrado, impulsionado por uma insaciável curiosidade em relação ao passado, tornar-se-ia cego aos argumentos das partes, esvaziando o contraditório, e, além disso, alguém predisposto à condenação, decidindo previamente e, posteriormente, buscando justificativas para sua decisão, num fenômeno que Franco Cordero denominou "primazia da hipótese sobre os fatos"10. No entanto, numa análise mais detida, percebe-se que esse argumento pode conter um salto lógico e uma contradição intrínseca. Em primeiro lugar, não se indica qualquer fundamento sólido para assumir que a exigência de uma correlação entre o estabelecido na sentença e a realidade empírica acarretaria necessariamente esse efeito colateral tão pernicioso: afinal, não seria orientado à (aproximação com a) Verdade um Sistema que estimulasse uma reconstrução da realidade histórica epistemicamente orientada, como condição para uma decisão justa, e, por outro, retirasse do julgador qualquer protagonismo na fase de instrução probatória, compensando essa inércia com meios que permitam às partes a formação do melhor conjunto? Em segundo lugar, um processo penal voltado exclusivamente à persuasão, que pressupõe um juiz cognitivamente passivo, que aguarda sua "captura psíquica" pela retórica mais convincente, parece ser o que torna mais factível a consolidação de prejulgamentos e o enfraquecimento do contraditório11. O julgador cognitivamente passivo não seria justamente o mais propenso à imediata adesão à hipótese acusatória, a primeira com que tem contato, seguida de um desprezo solene (ou uma acomodação a essa hipótese) de tudo o que vier pela frente, como consequência natural de sua própria inércia cognitiva? Afinal, dar preferência aos fatos não equivaleria a, essencialmente, buscar o exame mais adequado e a mais correta significação das provas? Isso não reclamaria um juiz responsável pela qualidade epistêmica da sentença ao invés de um juiz "presa", que aguarda com indiferença a captura psíquica pelo discurso mais persuasivo? Mostra-se, então, igualmente ineficaz a defesa de um modelo subjetivista com tais argumentos, que, no máximo, justificariam alguma limitação do papel instrutório do juiz sentenciante. A (in)adequação do risco de erro associado a um processo penal baseado na retórica e no senso comum (ou no bom senso do julgador) Poder-se-ia defender, ainda, que uma preocupação destacada do Sistema processual penal, mediante a orientação do processo à formação de um conjunto probatório epistemicamente adequado e à fixação de critérios decisórios voltados à redução do risco de erro (substancial) do juízo fático-probatório, seria desnecessária, porque o respeito ao ritual - contraditório,  imparcialidade etc -, seguido de uma decisão que, baseada no senso comum, concretizasse a presunção de inocência, associar-se-ia a um risco de erro adequado, sobretudo em relação às falsas condenações. No entanto, os avanços da Ciência dos últimos anos, sobretudo das ciências cognitivas, revelam a completa defasagem da concepção benthaniana de raciocínio probatório, segundo a qual este não se distinguiria do modo de pensar com que os indivíduos em geral lidam com seus problemas cotidianos12, deixando evidente, assim, a inadequação do senso comum - caracterizado por sua natureza acrítica e excessiva confiança nas percepções sensoriais e capacidades cognitivas13 - aos valores envolvidos em um processo judicial, sobretudo o criminal. A noção do senso comum como uma habilidade inata que permitiria ao indivíduo chegar a conclusões acuradas sem compreender plenamente o processo de raciocínio - um "saber sem saber como se soube" - tem sido desmitificada por estudos empíricos, como os citados por Friedland14, que demonstram que "leigos" avaliam de forma inadequada os depoimentos de terceiros. Nesse sentido, Hock Lai, que ressalta que o processo decisório judicial requer uma abordagem distinta daquela utilizada em decisões práticas cotidianas, mesmo as de grande importância pessoal, pois estas últimas são frequentemente influenciadas por fatores como especulação, esperança, preconceitos e emoções, elementos que não deveriam ter papel preponderante nas decisões judiciais15. Assim, não há mais como negar que o senso comum se associa a um risco de erro (substancial) muito elevado, manifestamente inadequado aos valores envolvidos em um processo criminal, daí porque se faz necessária a elevação do padrão decisório16, mediante a incorporação de uma metodologia com aptidão desenviesante e a vinculação a critérios decisórios validados pela Epistemologia e pela Ciência. Conclusões (intermediárias) Do que se disse até agora, pode-se concluir que: a) na concepção e operação do Sistema de Justiça Criminal não há como considerar irrelevante o risco de erro (substancial) associado, nada havendo que desautorize um desenho normativo (do processo penal) voltado a reduzi-lo; b) o argumento da "inatingibilidade da Verdade" (ou mesmo do conhecimento verdadeiro) é inócuo à defesa da impossibilidade de avaliação da qualidade das razões acreditadoras e/ou a indiferença em relação às mesmas; c) a função epistêmica e a tutela das garantias processuais não são estruturalmente antagônicas e, portanto, na maioria das situações, podem ser conciliadas em suas magnitudes; ademais, não sendo esse o caso, a ordem jurídica autoriza a ponderação, com restrições necessárias e proporcionais num e noutro interesse; e d) o senso comum (ou o bom senso do julgador) associa-se a um risco de erro manifestamente inadequado aos valores envolvidos em um processo penal, notadamente às consequências de condenações e absolvições errôneas. (continua...) ________________ 1 A CIDH -  Gomes Lund e outros x Brasil - reconheceu a violação ao "direito à proteção judicial consagrado no art. 25 do mesmo instrumento, precisamente pela falta de investigação, persecução, captura, julgamento e punição dos responsáveis pelos fatos, descumprindo também o art. 1.1 da Convenção ". 2 "A premissa fundamental é que o processo é uma situação ... na qual se desenvolvem diálogos e se narram fatos. Essas narrativas e diálogos (melhor discurso) têm relevância desde sua estrutura semiótica e linguística, não sendo relevante a relação entre a narrativa e a realidade empírica" ... "Elementar que, superado o paradigma cartesiano, assumida a subjetividade e o caráter (inegável) de ritual do processo judicial, compreende-se que o processo penal, principalmente o acusatório, é uma estrutura de discursos. E o que o juiz faz, ao final, é exatamente a eleição dos significados de cada um deles para a construção do seu (sentença). Daí porque nossa posição situa-se na coexistência da função ritual com a persuasiva. (...) "A decisão judicial não é a revelação da verdade (material, processual, divina etc) mas um ato de convencimento formado em contraditório e a partir do respeito às regras do devido processo. Se isso coincidir com a "verdade", muito bem. Importa considerar que a verdade é contingencial, e não fundante. (...) o juiz na sentença constrói - pela via do contraditório - a sua convicção acerca do delito, elegendo os significados que lhe parecem válidos (dentro das regras do jogo, é claro). O resultado final nem sempre é (e nem precisa ser) a "verdade", mas sim o resultado do seu convencimento - construído nos limites do contraditório e do devido processo penal." (LOPES JR., Aury. Direito processual penal. 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 383-385). 3 Enfim, poderia haver razões que recomendassem que a tutela do ideal de Verdade deveria ocorrer fora da arena jurisdicional, p. ex. através do desenho (e de estímulos para sua concretização na praxe) de um Sistema de Investigação Preliminar e de Acusação voltados à construção de casos com maiores chances de correspondência com a Verdade ao invés de casos (apenas) mais persuasivos. 4 Os diversos argumentos céticos podem ser encontrados em: a) STRECK, Lênio Luiz. Processo Judicial como Espelho da Realidade? Notas Hermenêuticas à Teoria da Verdade em Michele Taruffo. In Revista Sequência, V. 37, n. 74. pp. 115-136. 2016; b) LOPES JR, Aury. O problema da verdade no processo penal. In: Verdade e prova no processo penal. Estudos em homenagem a Michele Taruffo. pp. 63-84. Brasília, 2016. 5 "Nunca un conjunto de elementos de juicio, por rico y fiable que este sea, permitirá alcanzar certezas racionales, no psicológicas o subjetivas, respecto de la ocurrencia de un hecho, de modo que todo enunciado fático es necesariamente verdadero o falso, pero nuestras limitaciones epistémicas nos sitúan siempre ante decisiones que deben adoptarse en contextos de incertidumbre."(FERRER BELTRÁN, Jordi. Prueba sin convicción?: estándares de prueba y debido proceso. Madrid?: Marcial Pons Ediciones Jurídicas y sociales, 2021, p. 18). 6 "Prova e verdade estão ligadas teleologicamente: isto é, o fim da prova é a busca da verdade, e o sistema deve ser truth oriented. Dessa forma, tem-se que o direito à prova só tem sentido caso se conclua que as relações jurídicas são efetivamente merit-based. Caso contrário, melhor seria abolir qualquer meio de prova, retornando a métodos vulgares de resolução de conflitos, mais céleres e baratos, como jogar uma moeda para o alto." (RAMOS, Vitor de Paula. Direito Fundamental à Prova. Revista de Processo, vol. 224, p. 41, 2013, p. 2). 7 DEI VECCHI, Diego. Los confines pragmáticos del razonamiento probatório. Los confines pragmáticos del razonamiento probatorio, Zela, Lima, 2020, p. 49. 8 "For our concern in Epistemology is less with the impersonal question of what people do accept than with the normative question of what, in the circumstances, it is both appropriate and practicable for them to accept." (RESCHER, Nicholas. Epistemology. An introduction to the theory of knowledge. Albany: State University of New York Press, 2003, p. 9.) 9 A associação do termo inquirir (investigar no sentido empregado pela Ciência e Epistemologia) com as perseguições e injustiças cometidas pela inquisição católica não passa de uma tentativa de manipulação linguística, na medida em que, naquela época, o que efetivamente se fazia era desprezar a busca da verdade. A atuação dos "inquisidores" de então equivalia muito mais àquilo que Haack chama de advocacy, justamente o oposto de inquiry. (HAACK, Susan. Of Truth, in Science and in Law". Brooklyn Law Review , vol. 73, n. 3, pp. 985-1008. 2008. p. 986). 10 CORDERO, Franco. Guida alla Procedura Penale. Torino: Utet, 1986, p. 51. 11 GUIMARÃES, Rodrigo Régnier Chemim. Atividade probatória complementar do juiz como ampliação da efetividade do contraditório e da ampla defesa no novo processo penal brasileiro. 2015. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Paraná - UFPR, Curitiba, 2015. Disponível em: https://acervodigital.ufpr.br/handle/1884/41025. Acesso em: 08 de junho de 2022. 12 STEIN, Alex. The Refoundation of Evidence Law. Canadian Journal of Law and Jurisprudence, v. 9, n. 2, p. 279-324, 1996, p. 283. 13 BRAGA DAMASCENO, Fernando. A Constituição e a valoração da prova judicial: Entre a indiferença e um mandamento de redução do risco de erro. ReJuB Revista Judicial Brasileira, v. 1, n. 1, p. 37-59, 2021, p. 47-48. 14 FRIEDLAND, Steven. On common sense and the evaluation of witness credibility. Case Western Reserve Law Review, v. 40, n. 1, p. 165-226, 1990. 15 HOCK LAI, Ho. A Philosophy of Evidence Law: Justice in the Search for Truth. Oxford: Oxford University Press, 2008. 16 TWINING, William. Taking Facts Seriously. Journal of Legal Education, v. 34, n. 1, p. 22-42, 1984.
There is a Crack in Everything. That's How the Light Gets In.(COHEN, 1992)  1. O erro judiciário no Brasil do século XXI A condenação de um inocente parece ser daqueles assuntos que geram inquietação em praticamente todos. Afinal, é no mínimo desconfortável só imaginar ser (ou ver alguém próximo) punido por algo que não se fez. Essa representatividade no rol dos nossos maiores pavores parece, todavia, que sempre decorreu muito mais da dimensão de suas consequências que propriamente do convívio com uma grande quantidade de inocentes injustamente punidos, já que a História do erro judiciário no Brasil do século XX não registra muitos casos1. Aliás, essa escassez de casos registrados sempre favoreceu a defesa de que os erros da justiça brasileira eram excepcionais e formavam insignificante conjunto2 e, como essa ideia de excepcionalidade, ou de insignificância numérica, não poderia ser facilmente refutada - afinal, a infalibilidade nem é possível, nem indispensável - as coisas terminavam seguindo bem, mantendo-se, nesse ponto, a credibilidade do nosso Sistema de Justiça3. Entretanto, nos últimos anos, a pauta de críticas ao nosso Judiciário vem sendo cada vez mais incrementada por casos de condenações errôneas, o que parece bem nítido não apenas na mídia tradicional, mas notadamente nos novos meios de comunicação vinculados à internet4, mesmo porque ambas as espécies mantêm marcante interação recíproca. À primeira vista, pode-se pensar que essa mudança decorreria unicamente da maior visibilidade gerada por essa revolução nos meios de divulgação, já que não parece mesmo haver razão para admitir que a justiça brasileira passou a errar mais nesses últimos anos;  todavia, há que se reconhecer que, para despertar o interesse daqueles que protagonizam esse tipo de controle social, faz-se imprescindível que o erro emerja com certa nitidez, ou seja, com a necessária aptidão para formar algum consenso, não bastando o grito daquele que se diz injustiçado, nem mesmo uma boa estória. Em outras palavras, ainda que não se exija o reconhecimento formal, pelo próprio Judiciário, o surgimento de mais um caso de erro judiciário dependerá, sobretudo, de uma demonstração convincente. Admitindo isso, sobressai como uma boa explicação para o mencionado incremento, o emprego de algumas tecnologias para conhecer os fatos do passado e, consequentemente, para revelar eventuais deficiências de (ato de) conhecimento já operado5, conforme se ilustra a seguir: "a) a condenação do acusado por estupro com base no reconhecimento da vítima, posteriormente confrontada com um exame técnico da imagem do próprio estuprador quando deixava a cena do crime, captada por sistema de videovigilância, que demonstra que o condenado seria, pelo menos, 25 cm mais baixo que o criminoso6; b) decisão que, com base no depoimento de dois policiais militares, admite que o acusado transportava em seu carro um tablete com 800 gramas de maconha, posteriormente confrontada com um vídeo gravado por um sistema de segurança de um condomínio próximo ao local da abordagem, donde se vê que um dos policiais, poucos segundos antes da descoberta da droga, coloca um volume equivalente no carro do acusado7; c) a condenação de um indivíduo pela prática de roubo e estupro (perpetrados num mesmo contexto) com base no reconhecimento feito pela vítima e no depoimento do sujeito que, apanhado com todos os bens subtraídos, afirmou que os adquiriu do acusado, posteriormente confrontada com um laudo de DNA, que atesta que o material biológico encontrado na cena do crime (colcha da cama em que se deu o crime sexual) proveio justamente deste que foi considerado pela Justiça apenas como sendo o receptador8" Registre-se, de logo, não ser recomendada qualquer espécie de deslumbre com tais tecnologias, a ponto de considerar resolvido o problema da verdade no processo ou mesmo cogitar sobre sua infalibilidade. É claro que elas também apresentam seus problemas, chegando, inclusive, a configurar novas fontes de erros, conforme já se vê em alguns debates protagonizados entre os cientistas forenses9. Forçoso aceitar, entretanto, que essas tecnologias propiciam uma elevação da confiabilidade da "reconstrução" de um evento do passado, quando se compara com aquela conferida pelos meios tradicionalmente empregados nos processos judiciais. Assim, seu emprego adequado, além de permitir a exposição e correção de uma condenação errônea, termina viabilizando um bom indicativo sobre o risco de erro associado à justiça criminal como um todo, na medida em que a amostra resultante do seu emprego cumulado não estaria relacionada a qualquer fator que tornasse mais factível o erro10: ao menos, não se enxerga razão concreta que indique que a justiça criminal brasileira opera sob um risco de erro menor que aquele associado às operações do Sistema que redundaram nos erros detectados e corrigidos. Ademais, referida amostra termina neutralizando o argumento do «diminuto número dos casos de erros conhecidos como demonstração a excepcionalidade dos erros cometidos», isso porque a excepcionalidade dos erros (detectados) é, por enquanto, bem melhor explicada pela excepcionalidade da sua descoberta e reconhecimento. Basta tomar como exemplo o DNA, que depende da disponibilidade de vestígios biológicos na cena do crime ou no corpo da vítima, o que é algo aleatório, além de sua correta coleta e preservação, o que se mostra raro na realidade das investigações criminais Brasil afora.11 O quadro exposto indica que estamos à deriva: não temos a menor noção do risco de erro associado ao nosso Sistema de Justiça Criminal, quer sob seu aspecto quantitativo - nossa cifra oculta (os casos de inocentes injustamente condenados que não foram assim reconhecidos), além de oculta, não pode ser minimamente estimada -, quer sob seu o aspecto qualitativo - a relação entre os fatores que incrementam o risco de erro e as medidas de contenção adotadas nas praxes judiciais é ainda algo absolutamente desconhecido. O pior de tudo é, ao que parece, que ainda não demos conta disso e mantemos a crença de que nos mantemos navegando em rota conhecida. Em relação ao Judiciário, à exceção do reconhecimento de que as praxes relacionadas à "prova de reconhecimento de pessoas" conformam fonte de condenações injustas, o que gerou a criação de grupo de trabalho no âmbito do CNJ (Portaria no 209, de 31/8/2021), até bem pouco tempo não havia o registro de qualquer outra medida diretamente voltada à prevenção de erros12. A Academia brasileira também: basta acessar o diretório de grupos de pesquisas do CNPQ e a Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações para concluir que as ciências jurídicas ainda não se preocupam em conhecer o risco de erro associado ao nosso Sistema de Justiça Criminal e a partir daí enxergar caminhos para sua mitigação.  2. Por que focar no erro? O/a leitor/a poderia pensar que o quadro retro não configura necessariamente um problema, já que seria possível buscar a evolução do Sistema de Justiça Criminal sem chamar a atenção para um problema tão delicado. Aliás, pode ser visto como natural pensar que isso implicaria o reconhecimento de uma falibilidade-que-preocupa, o que prejudicaria a imagem/confiabilidade do próprio Judiciário, já que erro, culpa, responsabilidade e vergonha seriam ideias indissociáveis. Nada mais equivocado. Não há como negar que essa associação ainda marca o senso comum; todavia, é algo que precisa ser desmitificado com a máxima urgência. Antes de tudo, se se "reduz a velocidade", consegue-se ver que é possível pensar em errar menos, mesmo admitindo que não se erra muito; ou seja, considerando os erros como custo de um dado sistema/organização, não é necessário antes concluir que estes não compensam os benefícios alcançados, para só então pensar em reduzi-los. E, quando se pensa na Justiça Criminal, não se pode tomar a eficiência sob uma ótica meramente consequencialista; deve-se atentar para um componente ético que impõe aos gestores do Judiciário (e à sociedade civil organizada) a minimização dos riscos de erro associados a cada operação do Sistema e ao seu resultado cumulado: assumir a sua falibilidade e instituir mecanismos voltados à correção e prevenção de condenações errôneas é algo essencial numa ordem democrática e estruturada em torno da dignidade da pessoa humana. Outrossim, o potencial pedagógico dos erros há muito deixou de ser uma máxima do senso comum e passou a ser objeto de um ramo autônomo da Ciência (Safety Science), que já desenvolveu (e segue aperfeiçoando) o caminho adequado a uma evolução baseada no aprendizado com erros. Assim porque, embora se possa pensar na evolução do Sistema mediante reflexões teóricas, com a testagem argumentativa (ou mesmo em experimentos controlados) de modelos capazes de melhorar a vocação epistêmica do processo penal, a permanente busca da evolução do Sistema de Justiça Criminal brasileiro, com a redução do risco de erro judiciário, jamais poderia desconsiderar o caminho que melhor aproveita o seu potencial. Em síntese, precisamos focar no erro, não apenas porque conformam "mais" uma oportunidade de aprendizado organizacional, mas porque são indispensáveis se se quer pensar minimamente na qualidade de um dado sistema e/ou organização, conformando, por isso, um preciosíssimo ativo.  3. O que se quer dizer com "levar a sério o erro judiciário"? Levar o erro judiciário a sério equivale a transformá-lo no objeto central de uma análise rigorosa, segundo o método científico, quiçá tornando-o uma disciplina autônoma, necessariamente interdisciplinar, já que isso impõe enfrentar uma série de problemas interconectados. Com base nos aportes da ciência do direito processual penal, do direito probatório e da Epistemologia da prova, urge refletir sobre (i) a criação de um (sub)sistema de investigação/descoberta de erros, (ii) o aperfeiçoamento do (sub)sistema de reconhecimento e correção de erros, incrementando a sua segurança jurídica, reduzindo sua seletividade. É também urgente que, a partir de um diálogo entre o Direito Administrativo e a Teoria dos Direitos Fundamentais, se reflita sobre o conceito de «erro que gera para o Estado o dever de indenizar a vítima», de modo que se possa apressar a adequação das praxes judiciais aos valores constitucionalmente tutelados e "liberar" o Sistema para evoluir: afinal, se o Estado-jurisdição não erra, não haveria por que se pensar em melhorar sua qualidade. Aproveitando o conhecimento produzido no âmbito da Safety Science, deve-se também pensar num modelo de evolução baseado no aprendizado com erros, de modo que cada erro reconhecido alimente um ciclo virtuoso de aprimoramento constante do Sistema de Justiça Criminal. Enfim, levar a sério o erro judiciário significa (i) deixar de tratá-lo como um tabu, (ii) reconhecê-lo como um desafio sistêmico e (iii) abordá-lo de modo rigoroso e orientado a soluções, convertendo-o em uma oportunidade de aperfeiçoamento institucional. E é isso o que se tentará fazer em cada publicação dessa coluna, buscando sensibilizar os atores do Sistema de Justiça sobre a importância dessa agenda, ampliar e aprofundar o debate sobre o tema e estimular a realização de pesquisas, publicações, eventos. Sejam todos/as bem-vindos/as... que apreciem a jornada!!! __________ 1 Uma busca textual em todos os números da Revista Brasileira de Ciências Criminais revela aqueles que se tornaram conhecidos como casos de erro judiciário: a) o caso Mota Coqueiro (CARVALHO FILHO, Luiz Francisco. Mota Coqueiro: o erro em torno do erro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 33/2001, p. 261 - 274 | Jan - Mar / 2001); b) o caso dos Irmãos Naves (DOTTI, Renê Ariel. O caso dos irmãos Naves. Revista Brasileira de Ciências Criminais | vol. 8/1994 | p. 184 - 197 | Out - Dez / 1994); e c) o caso do Citroen Negro, conhecido também como o crime do Sacopã (DOTTI, Renê Ariel. O crime do Sacopã. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 16/1996, p. 326-342, out-dez/1996). João Honório de Souza Franco, que em sua tese de doutorado sobre a responsabilidade do Estado por erro judiciário abriu tópico para abordar os casos com maior repercussão, menciona pesquisa em bibliografia correlata, que aponta os mesmos três casos (FRANCO, João Honório de Souza. Indenização do erro judiciário e prisão indevida. Tese de doutorado em Direito. Universidade de São Paulo. São Paulo, 2012, p. 160-172). Ainda se pode agregar a esses o d) Caso Joel (MARTINS, Ricardo Cunha. Prova criminal: história de um erro judiciário: o caso Joel - o homem errado. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2002) e e) o caso do Maníaco de Anchieta (Disponível aqui). Confirmando o limitado número de casos que repercutiram, o Canal Ciências Criminais, que dedica espaço para abordagens de casos de erro judiciário, acrescenta apenas os casos Escola Base (1994) e o caso do Bar Bodega (1996), que não versaram sobre a condenações errôneas, mas de prisões provisórias indevidas decorrentes de abusos/equívocos da investigação. Disponível aqui. 2 À guisa de ilustração a seguinte matéria jornalística: "Para o juiz Fábio Uchôa, titular do 1º Tribunal do Júri do Rio de Janeiro, no entanto, os equívocos cometidos pelo Judiciário correspondem a exceções. Ele afirma que o número de casos desse tipo não é significativo. - Os erros são pouquíssimos, se considerarmos o universo de pessoas julgadas. O número é até não considerável. Claro que o ideal é que não haja erro algum, mas qualquer obra humana está sujeita a erros - avalia o magistrado: - Acho que a Justiça criminal brasileira atende bem à sua finalidade". (Disponível aqui). 3 Perceba-se que a baixa avaliação da credibilidade do Judiciário tem como razões declaradas o fato de que o serviço que presta seria "lento, caro e de difícil utilização.". (MARRARA, Thiago. Macera, Paulo H. Responsabilidade Civil do Estado por Erro Judiciário: aspectos conceituais, doutrinários e jurisprudenciais. In Revista de Direito Administrativo Contemporâneo. ReDAC18, 2015, p. 136.). Confira-se diretamente o Relatório ICJBrasil - Índice de Confiança na Justiça no Brasil. Disponível aqui. 4 Na mídia tradicional, pode-se mencionar o quadro do programa jornalístico "Fantástico" chamado "Projeto Inocência", a série de reportagens da Folha de São Paulo, "Inocentes Presos"; em canais fechados, o programa "Em Nome da Justiça", do AXN; nas mídias vinculadas à Internet, podemos destacar a série documental "Innocence Files", na Netflix; sem mencionar perfis em redes sociais, sites, podcasts disponíveis em plataformas de streaming etc. 5 BRAGA DAMASCENO, Fernando. Pensando a qualidade do juízo fático-probatório: um modelo de evolução baseado no aprendizado com erros. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 9, n. 3, p. 1213-1256, set./dez. 2023, p. 1216.  6 O caso Antônio. Disponível aqui. 7 O caso Douglas. Disponível aqui. 8 Caso Israel. Disponível aqui. 9 Sobre os riscos das provas de vídeo, ver RICCIO, Vicente; SILVA, Beronalda; GUEDES, Clarissa; MATTOS, Rogério. A Utilização da Prova em Vídeo nas Cortes Brasileiras: um Estudo Exploratório a Partir das Decisões Criminais dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais e São Paulo. Revista Brasileira de Ciências Criminais - RBCCRIM, v. 118, jan-fev, 2016) e MNOOKIN, Jennifer L., The Image of Truth: Photographic Evidence and the Power of Analogy, Yale Journal of Law & Humanities, v. 10, Iss. 1. Art. 1. 1998. Sobre recente discussão sobre a segurança e controlabilidade de software utilizado na interpretação de resultados de exames de DNA.  10 Todos esses casos compartilham uma origem comum: a disponibilidade de determinados elementos de prova que (analisados com a ajuda de novas tecnologias) foram capazes de fazer prevalecer a hipótese oposta àquela defendida pelo acusador e acolhida pelo Judiciário.  Em relação às chamadas "DNA exonerations", p. ex., trata-se de casos em que o criminoso deixou material biológico próprio na cena do crime ou no corpo ou roupas da vítima. 11 Com base em pesquisa empírica sobre os casos de revisões criminais no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, um dos maiores e situado num dos estados mais desenvolvidos do Brasil, o professor HADDAD registra que "para se ter ideia do nível de emprego do teste de DNA pós-condenação, em nenhuma das 4.643 revisões criminais ajuizadas houve a utilização da tecnologia, na tentativa de inocentar o sentenciado." (HADDAD, Carlos H. B. Velho conhecido, nova aplicação: exame de DNA pós-condenação. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 187/2022. p. 95 - 120. 2022, p. 103). 12 Essa desatenção com o risco de erro é também percebida por DUCE (2022, a - p. 315-316) em relação ao Sistema de Justiça chileno: "En Chile, la evidencia disponible muestra la existencia de uma cantidad no despreciable de casos de condenas erróneas. Investigaciones recientes, por su parte, identifican prácticas muy similares a las descritas por la literatura comparada como aquéllas que tienen más incidência en generarlas. Por lo mismo, todo indica que existiría un problema de mayor magnitud que el que históricamente se ha considerado.". DUCE JULIO, Mauricio. La corrección de condenas erróneas en el ámbito comparado: análisis de algunos ejemplos para alimentar el debate en Chile. Revista Brasileira De Direito Processual Penal, vol 8, 2022, p. 693.