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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 1 de janeiro de 2023

O amigo secreto

O amigo secreto está na vida de cada um de nós. Às vezes, de verdade, outras por diversão. Basta chegar nesta época de final de ano que, mais do que apressadamente, vem a formação dos grupos de amigos. A denominação, no entanto, para celebrar a amizade, não é a correta. Primeiro, porque se é amigo, não pode ser secreto porque é algo que transcende a própria pessoa e vai se alardeando por todos os ventos. Segundo, mesmo que fosse amigo, qual a necessidade de fazer tamanha revelação? Cai melhor a definição do amigo do dia, ou o amigo oculto, ambas, temporariamente. Isto é, um amigo, dentre tantos outros, pertencente a um determinado grupo, onde todos se conheçam, irá receber um presente de outro amigo, de forma aberta, transparente, sem segredo. Assim, neste clima de amizade, seja você quem for, agora é meu amigo, secreto ou não, pelo sorteio da vida. O meu presente consiste num cartão, desgastado pela tradição e escrito por inteiro, com as palavras ocupando todos os espaços, conforme você vai ler na sequência. Eu o enviarei como um bumerangue, que passa por você, despeja a carga nele contida, e retorna para mim. Seria egoísmo exagerado de sua parte ficar com tamanha fortuna. Para o ano que se inicia, deixe a porta aberta para a entrada das boas novas e receba os votos de alegria, paz, saúde e prosperidade, que serão solenemente entregues pelos elfos e duendes, com suas músicas e danças festejando a beleza da vida. Faça uma colheita de todos os seus pensamentos e recicle aqueles que se destacaram quando retirados com a pinça do joalheiro, para que sejam aperfeiçoados. Você vai perceber que a repetição de velhas fórmulas faz com que você se perca definitivamente no labirinto de sua memória e enterre cada vez mais a Rosa de Drummond. Não precisa rascunhar novo DNA e nem mesmo esmiuçar seu genoma. São imutáveis. Somente a vontade que existe dentro de você o torna superlativo. Explore seu potencial ainda envolto nos mistérios da vida e aposte todas suas fichas na paixão e emoção. Sem elas você não passa de um ser humano, meramente biológico, sem acesso à contemplação do belo. Ainda mais uma dica: abrace todas as fases de sua vida e viva-as intensamente. Se não guardar as cartas da juventude, não conhecerá um dia a filosofia das folhas velhas, profetizava Machado de Assis. Finalmente, não se esqueça e nem confunda utopia com esperança. Apesar de antagônicas, celebram o convívio das antíteses. Salta aos olhos a disparidade e confirma que a vida é feita de contrastes. Uma se lança na descrição imaginativa de uma situação ideal, porém, jamais a ser atingida. A outra é arejada pelo persistente sentimento de alcançar a plena realização de um projeto fincado em propósitos inabaláveis. Não passe a vida vendendo sonhos e nem os deixe gestando em banho-maria. Seja o verdadeiro protagonista do seu reality show. Proporcione a você mesmo a encenação do maior espetáculo do mundo: a vida!
domingo, 25 de dezembro de 2022

Votos natalinos à moda antiga

Depois de tempos conturbados pela pandemia provocada pela Covid-19 - atingindo praticamente toda a humanidade - o momento presente é mais uma pausa para reflexão de final de ano a respeito da fragilidade humana, desprovida ainda de condições para profetizar maus presságios que se avizinham e colocam em risco a vida de cada pessoa. Sunt lacrima rerum, assim se expressou Virgílio, em sua Eneida, com o significado de que nos grandes infortúnios até dos seres inanimados brotam lágrimas de compaixão. E uma das conclusões a se tirar do mal que afligiu toda a população é que, como preconizavam os gregos, somos mais vulneráveis quando nos sentimos fortes. Quando fracos não dimensionamos corretamente o perigo. Imprescindível para o momento é blindar o corpo contra a contaminação das mais variadas cepas. Percebe-se que a humanidade chegou ao fim de uma era e pisa no alvorecer de outra, ainda desconhecida. A reflexão projetada é justamente, por conhecer um passado nada auspicioso, dar vazão a uma nova cruzada de fazer inveja à criatividade de Aldous Huxley, no Admirável Mundo Novo e resgatar valores à moda antiga, como generosidade, honestidade, persuasividade, racionalidade e outros predicados recomendados para a boa convivência entre os humanos. É hora de sorver a doce sobrevida e cantar com os olhos grandes e sonhadores mirando o infinito, como se o mundo tivesse acabado de ser criado. A palavra generosidade vem revestida de um significado tão difuso que arrasta em sua conceituação outros predicados portentosos, como bondade, beneficência, benevolência, dadivosidade, desapego. É a prova de que o perfeito não pode ser inimigo do bom. Honestidade corresponde à probidade, à retidão de pensamentos e princípios e a etimologia da palavra vem atrelada à honra e à dignidade. É como se fosse uma lógica mecanizada e pronta para ser utilizada. Persuasividade é a arte do convencimento, de exercer influência para que as pessoas possam praticar aquilo que é certo para o coletivo. É o momento de debater, discutir, aceitando ou rejeitando argumentos. É aproximar-se do coração para encontrar a verdade. A racionalidade é a medida para ponderar e aceitar as coisas como elas são, com o intuito de ajustá-las ao bem comum. É como se fosse um oráculo misterioso que sussurra o caminho perfeito para a vida. Assim, que seu Natal e o ano que se aproxima sejam realmente novos e que os invasores patogênicos hostis e insidiosos com suas cepas modificadas não encontrem ambiente favorável em você e que seu sistema imunológico possa sufocar o vírus, extirpando-o definitivamente. Que você seja introduzido numa redoma de cristal à prova de contaminações. Não seja demasiado justo com as pessoas, como recomenda o Eclesiastes (Noli esse justum multum). Justiça em demasia é injustiça. Procure encontrar uma solução que seja mais benigna, mais tolerante, mais humana, enfim que seja compatível com o progresso, os costumes e a solidariedade que deve existir entre as pessoas. Que você possa acionar corretamente a senha da esperança, de vital providência. O homem, até a pouco tempo, estava encruado dentro do seu labirinto, com o mínimo contato com seus pares. Necessita de um prazo razoável para irmanar-se como siameses, libertar-se das amarras antigas e retomar o sentido do coletivo. Tudo para que seja definido um novo curso, um caminhar constante em grupo, sem estandardizar critérios e regras. Que você possa encontrar uma nova vertente em sua vida, deixando sempre o pensamento a fermentar para se transformar em uma referência na prática de boas ações de médio e longo prazos, forjando, desta forma, um paraíso igualitário, uma verdadeira epifania em que possa espalhar a harmonia e a poesia.
domingo, 18 de dezembro de 2022

Edição genética alimentar

Como se fosse um prenúncio feito com certo rigorismo científico e levando-se em consideração o crescimento incessante da população mundial, a escassez de alimentos já se alinha como um fenômeno global preocupante. De um lado, a título de reprise necessária, a pandemia, que como um tsunami assolou os continentes com todas as graves sequelas na saúde, no trabalho, na economia e na própria produção alimentar. De outro, a inconveniente guerra envolvendo a Rússia e a Ucrânia, que vai dinamitando uma das terras mais férteis do leste europeu, além de provocar a retirada de uma população estabilizada e produtiva em grãos de alimentos, um verdadeiro celeiro mundial. Além de todos estes transtornos - acrescentando a eles os problemas climáticos sazonais que prejudicam o plantio e colheita de alimentos - a pobreza vai se expandindo por todas as partes do mundo e se apresenta hoje como realidade incontestável, no sentido de que a pessoa deixou de consumir o mínimo exigido para a recomendada nutrição. A Europa, que durante muito tempo teve o domínio da equilibrada produção alimentar para seus habitantes, além dos entraves já enumerados, vê-se diante de um quadro totalmente desfavorável, pois a produção agrícola, em razão da falta de chuvas, dos custos elevados dos insumos, fertilizantes, pesticidas e do combustível para as máquinas agrícolas, caiu sensivelmente e não vê, a curto prazo, uma solução de continuidade no oferecimento alimentar. Quando a natureza, os fenômenos climáticos e outras circunstâncias abatem de forma crucial e impedem a necessária produção alimentar, a única opção que se abre é buscar uma solução substitutiva na ciência. Assim é que na Europa retornou à tona o debate a respeito da edição genética, que por um tempo já frequentou calorosos debates e não foi bem recebida. A edição genética que se propõe é bem diferente das técnicas dos OGMs (Organismos geneticamente modificados). No primeiro caso, o procedimento é realizado com a inclusão ou exclusão de genes na mesma espécie ou em espécies semelhantes buscando, na realidade, um melhoramento mais acelerado e aprimorado das plantas. No segundo, ocorre a modificação genética em laboratório, com a inserção de um material genético de outro organismo, visando aumentar a produção, melhorar o conteúdo nutricional e proporcionar maior resistência e durabilidade. Seria, de uma forma menos científica, o encontro de DNAs entre organismos que jamais teriam chances de cruzamento. Analisando do ponto de vista produtivo, pode-se até concluir que a inovação traz dividendos consideráveis, com um custo menor e uma distribuição mais abrangente de alimentos, com sérios propósitos de se combater a fome que assola a humanidade. No caso da edição genética, mesmo não ocorrendo a manipulação dos genes, há necessidade da realização de estudos que ofereçam segurança na produção de alimentos. Abre-se, desta forma, uma densa nuvem nebulosa e provoca incerteza a respeito de futuros danos que possam causar à vida humana. Pode até ser que no presente não tragam qualquer malefício à saúde, porém, ao longo do tempo, com a utilização prolongada, poderão comprometê-la. Daí que a Comissão Europeia se propôs a regulamentar para o próximo ano a utilização de algumas tecnologias relacionadas com a edição genética. A ciência da Bioética - espaço de reflexão envolvendo os pensamentos de várias pessoas com sólida formação em humanidades a respeito da utilização de novas tecnologias que possam ser consideradas oportunas e convenientes para que o homem possa manter sua identidade e dignidade - traz sua contribuição para a questão levantada. O princípio bioético da beneficência primum non nocere, ou da não maleficência malum non facere, é destinatário de todas as produções científicas que possam trazer benefícios à saúde humana, incluindo aqui até mesmo sua base alimentar. E o sinal verde para a utilização é proclamado pelos órgãos responsáveis pela saúde humana, podendo ser citada a Organização Mundial de Saúde (OMS), que faz a avaliação e o aconselhamento necessário, justamente para que o homem possa fazer uso com as garantias precisas. A Bioética, desta forma, amparada pelo mais ajustado pensamento científico e com suporte também no princípio da precaução, recomenda as cautelas necessárias para preservar o homem e a natureza contra os riscos potenciais das novas tecnologias. Daí tem como tarefa precípua realizar ações articuladas com a sociedade elegendo como prioridade um estado de equilíbrio e bem-estar humano.
O Superior Tribunal de Justiça confirmou decisão de primeiro grau em que um homem, após receber informações de quem seria seu provável pai, que já tinha falecido, ingressou com uma ação de investigação de paternidade. Os parentes do investigado, no entanto, recusaram-se a fornecer material genético para a realização do exame indireto. Diante da recusa, foi determinada judicialmente a exumação dos restos mortais do investigado. A lei 14.138/21 modificou o artigo 2º, § 2º da lei 8560/93 que, com o acréscimo feito, ficou com a seguinte redação: "Se o suposto pai houver falecido ou não existir notícia de seu paradeiro, o juiz determinará, a expensas do autor da ação, a realização do exame de pareamento do código genético (DNA) em parentes consanguíneos, preferindo-se os de grau mais próximo aos mais distantes, importando a recusa em presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório". A exumação cadavérica, apesar de não constar taxativamente da lei de investigação de paternidade, dela faz parte como previsão genérica, compreendida na utilização de todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos para provar a verdade a respeito dos fatos alegados. No processo em tela, apesar da recusa dos parentes, que estabelece uma presunção relativa, o juiz da causa achou por bem, em razão da precariedade probatória até então apresentada, determinar a realização do exame de DNA. Além do que, neste tipo de ação que perquire direito fundamental à identidade biológica, o juiz deve esgotar todo o processo de cognição, ampliar ao máximo os poderes instrutórios e probatórios para ir ao encontro da verdade real, consubstanciada no tão aclamado suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu). A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça admite a exumação para fins de realização do exame de DNA, quando se tratar de ação de investigação de paternidade, conforme faz ver a presente ementa: "Agravo regimental. Processual Civil. A suscitação de uniformização de jurisprudência não vincula o magistrado, sendo faculdade sua determinar o processamento. A exumação de cadáver, em ação de investigação de paternidade, para realização de exame de DNA, é faculdade conferida ao magistrado pelo artigo 130 do Código de Processo Civil. (art. 370 do CPC de 2015). Agravo improvido".1 O Direito não é um compêndio matemático em que se projetam fórmulas preexistentes para se buscar um resultado considerado lógico e coerente com os cálculos aplicados. Nem pode ser. Lida com o comportamento humano e, consequentemente, vem delimitado pela dialética jurídica e social.   O desenvolvimento de novas técnicas científicas traz uma enorme contribuição ao direito na medida em que, com bases seguras e alicerçadas em estudos de confiabilidade, consegue esclarecer não só crimes até então insolúveis, mas, também, muitas outras questões, como, por exemplo, a prova da paternidade. O exame de DNA forense ganhou tanta projeção que a justiça assenta nele sua decisão, sem fiar-se em outras provas antes consideradas relevantes para o deslinde da questão. Não só na justiça, como também na vida das pessoas. Hoje é possível fazer a leitura do DNA, mesmo que não seja completa, mas que garimpe informações importantes para que o interessado conheça seu código genético e, principalmente, para evitar a ocorrência de doenças de que tenha predisposição genética. Nesta linha de pensamento, no sentido de se encontrar uma resposta que corresponda corretamente à verdade perquirida no processo de investigação de paternidade, o exame de DNA é recebido com bons augúrios, por introduzir dispositivos da mais avançada tecnologia. Pode-se dizer que, tanto no juízo cível como no criminal, o demonstrativo probatório correspondente ao material genético apresenta-se como uma prova inconcussa e até mesmo inquestionável com relação à margem de certeza. O Direito, apesar de suas rigorosas regras probatórias, abre suas comportas e recebe de bom grado a contribuição científica, incorporando-a definitivamente em seus procedimentos para atingir a justiça adequada. __________ Disponível aqui.
domingo, 27 de novembro de 2022

Alimentos para o nascituro

É interessante observar que algumas leis refletem a necessidade momentânea de uma pessoa em determinado momento da vida. As leis, com seu comando, visam atingir todas as pessoas, porém, algumas delas, em razão de circunstâncias temporais especiais, merecem um plus diferenciador para atender suas necessidades. É o caso, por exemplo, da licença maternidade que confere à mãe o direito de se afastar de suas atividades pouco antes do parto ou após o nascimento do bebê, pelo período de 120 dias, de acordo com a legislação trabalhista. Idêntica regra tem aplicação nos casos de adoção. Em casos graves, em que a mãe ou o recém-nascido fiquem internados em hospital por prazo superior a duas semanas, o marco inicial da licença será contado após a alta hospitalar que ocorrer por último, de acordo com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal (ADIn 6327), tudo visando a melhor proteção da criança. Assim, sem gravidez e não sendo caso de adoção, afasta-se a possibilidade da licença. Nesta linha de raciocínio encontra-se a lei 11.804/08, que confere à mulher não casada e que também não vive em união estável e não tenha condições financeiras de suportar os custos de uma gravidez não programada, o direito de acionar judicialmente o suposto pai pleiteando alimentos para o filho. Referida lei é conhecida como "alimentos gravídicos'. Parece que a terminologia utilizada não é adequada e nem mesmo guarda coerência como o benefício que se almeja. Na realidade, o embrião, como ente concebido e não nascido, é o destinatário da proteção legal. Mas é de se atentar também que o termo embrião não se apresenta como adequado. Em razão dos avanços da engenharia genética e da reprodução assistida, os embriões poderão ser produzidos in vitro e criopreservados posteriormente, conforme regramento estabelecido pela resolução 2320/22, do Conselho Federal de Medicina. O correto e a terminologia mais adequada parece ser a utilizada pelo Código Civil, em seu artigo 2º:  A personalidade civil da pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do nascituro. Nascituro, desta forma, é aquele que foi concebido e vai nascer e, consequentemente, necessita da devida proteção, diferentemente do embrião criopreservado. Oportuno mencionar que no Brasil há uma proposta legislativa traduzida pelo PL 478, denominada Estatuto do Nascituro, que tramita desde 2007 e que, quando for levada para debate perante o Congresso Nacional, certamente provocará intensas discussões envolvendo desde a concepção, do início da vida humana, dos direitos reprodutivos da mulher, compreendendo aqui com ênfase o tema aborto, como também o próprio processo de reprodução humana. Retornando à lei em questão, em apertado resumo, a gestante deverá ingressar com o pedido judicial em desfavor do futuro pai. O juiz decidirá, no âmbito de uma cognição sumária, com base nos indícios de paternidade, a obrigação alimentar do suposto pai, que poderá contestar, mas em restrito núcleo cognitivo também. Os alimentos fixados permanecerão até o nascimento com vida, quando serão convertidos em pensão alimentícia e, a partir deste marco, poderão ser revistos por uma das partes. A palavra da mulher é de vital importância para o esclarecimento, mas deve aflorar com a credibilidade necessária. Basta ver que nos crimes sexuais, em razão de serem praticados solus cum sola in solitudinem (o só com a só, na solidão), a versão ofertada pela vítima, na maioria das vezes, vem a ser o sustentáculo da acusação e da posterior condenação.   Prevalece, desta forma, uma paternidade calcada em indícios, que são, na terminologia jurídica, circunstâncias que gravitam em torno do fato principal, possibilitando a construção de hipóteses visando esclarecer a autoria e outros aspectos probatórios. Indicium nada mais é do que a indicação, informação, revelação, mesmo que seja provisória, mas que venha revestida do fumus boni iuris. A obrigação alimentar do suposto pai, limitada ao tempo da gravidez, compreende toda a assistência médica e psicológica, realização de exames, prescrições preventivas e terapêuticas e as despesas referentes ao parto, além de outras que poderão ser fixadas em razão da peculiaridade do caso. Percebe-se, desta forma, em ambos os casos, a nítida tutela voltada para a proteção da criança intraútero e a recém-nascida.
domingo, 20 de novembro de 2022

Filiação socioafetiva

Após a Constituição Federal de 1988, o conceito de família experimentou um alargamento necessário visando, de forma aprumada com a realidade, acomodar os vários núcleos que se formaram em torno do conceito original, restrito por demais. O padrão atual abandonou o rigorismo, ampliou os espaços e abriu as vertentes para compreender não só os dados biológicos, como, também, os introduzidos pelo socioafetivo, podendo ser a família constituída por um só indivíduo ou pela união de pessoas do mesmo sexo como entidade familiar, nos moldes já decididos pelo Supremo Tribunal Federal (ADIn 4277/ADPF 132,) assim como a adoção de crianças por casal homoafetivo. Enfatiza o estatuto menorista que toda criança ou adolescente deve ser criado ou educado no seio da família natural e deixa transparecer que a adoção é uma medida excepcional. Exige a inscrição no cadastro das pessoas interessadas, cumprimento de estágio de convivência com a criança, salvo se já for detentor da tutela ou guarda judicial e outros requisitos para sua efetivação judicial. Quando se fala a respeito da adoção, o tema transcende o humano e até mesmo os limites estabelecidos pela lei, justamente pela sublime motivação que o reveste. Desde os primórdios da civilização, sempre despertou a atenção pela sua característica de relação afetiva, na qual uma criança é recebida por uma família, geralmente carregada de uma sensibilidade extremada na busca de tal vínculo, e proporcione a ela um acolhimento caloroso com o propósito de se iniciar uma nova história de vida. Vigora a regra adoptio naturam imitatur (a adoção imita a regra da própria natureza), que prevalecia no Direito Romano. O que se leva em consideração nos casos de adoção é justamente o afeto, o pertencimento, o envolvimento emocional que impulsiona as pessoas que participam do relacionamento familiar. A adoção de Milton Nascimento, por exemplo, denominada de intuitu personae, não mais vigente na lei menorista, permitia que a mãe ou o pai entregasse a criança, geralmente para um casal de sua confiança, para criá-la e exercer o poder-dever de sustento e educação, fazendo nascer um longo estágio de convivência, com total distanciamento dos pais biológicos. Os antigos tratavam este procedimento de "pegar para criar". Há ainda muitos casos no Brasil em que casais convivem com filhos na relação socioafetiva, sem o devido registro, mas com a prova maior que é o tempo de convivência demonstrado por um período de longos anos, sem se preocupar com a regularização da guarda legal, com a inscrição no cadastro único criado pela lei menorista. Não há nenhuma dúvida de que a criança, que de fato vive razoável tempo com um casal, já pode ser considerada como um filho. Seria um excesso de preciosismo, desnecessário até, exigir-se como conditio sine qua non a inscrição dos candidatos no cadastro único criado pela lei. A lei preocupa-se, e com razão, de cuidar de casos em que não ocorreu a convivência anterior e não com aqueles em que já há uma definição afetiva devidamente estabelecida. Daí que a adoção intuitu personae continua ainda presente na nova legislação, mesmo que obliquamente.  As mães criadeiras no período colonial do Brasil, que recolhiam as crianças abandonadas na roda dos expostos, cuidavam de amamentá-las e viam nascer o afeto que muitas vezes dificultava a separação. O Estatuto da Criança e do Adolescente deve ser visto em sua dimensão maior, em conjunto com os princípios que norteiam sua aplicação, dentre eles a efetivação do interesse e da proteção dos infantes, ultrapassando e em muito, nos casos de guarda de fato, a regra seca estabelecida na obrigatoriedade de inscrição em cadastro de adoção. Tanto é que o Supremo Tribunal federal já decidiu e este respeito e proclamou: "A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências patrimoniais e extrapatrimoniais".1 Assim, neste diapasão, o vínculo socioafetivo vem consolidado pelos vários anos de convivência no âmbito de um relacionamento familiar harmônico e a figura do pai e da mãe não é mais vista pelo prisma daqueles que geraram o filho e sim daqueles que o criaram. ______________ 1 https://www.stf.jus.br/arquivo/cms/noticiaNoticiaStf/anexo/RE898060.pdf
domingo, 13 de novembro de 2022

A criopreservação do corpo humano

A tecnologia vai se desenvolvendo com tanta intensidade que atinge não só as expectativas humanas com relação aos benefícios direcionados para uma vida com longevidade e qualidade, como, também - talvez até como se fosse um destino apocalíptico - alça marcos imaginários que se descortinam, aparentemente, como uma ficção científica. Os limites temáticos costumeiros, e que se encontram na linha de desdobramento das pesquisas feitas em laboratório, atingem seu ápice e obrigam, necessariamente, o início de uma nova investigação científica. Isto porque o conhecimento científico é dinâmico e cumulativo. Tal constatação pode ser vista no passado com a publicação, em 1932, da obra "O Admirável Mundo Novo", de Aldous Huxley, que causou reações extremadas por antecipar a tecnologia reprodutiva, como se fosse uma aposta ou até mesmo uma promessa no progresso da reprodução assistida. Nesta mesma linha de novas descobertas, o presidente executivo da empresa Tesla e da Space X, Elon Musk, lançou interessante desafio consistente em desenvolver implantes cerebrais com a finalidade de permitir a comunicação entre o humano e a máquina. Tal procedimento visa possibilitar que as pessoas portadoras de severos distúrbios neurológicos possam receber impulsos com a finalidade de restaurar as funções motoras e sensoriais, podendo até mesmo recuperar a visão de um cego. Deixou a entender também que, pelas projeções do mundo cibernético, existe o temor de que os seres humanos possam ser ultrapassados pela inteligência artificial.1 E a motivação do presente artigo está ligada à iniciativa de um laboratório localizado em Scottsdale, no Arizona, Estados Unidos, que abriga cerca de 200 corpos congelados. São aquelas pessoas que sofriam doenças irreversíveis e que optaram pela criopreservação dos corpos com a esperança de que, em um futuro próximo, quando a medicina descobrir a cura de suas doenças, possam retomar à continuidade da vida. A criogenia já é utilizada com sucesso na preservação de órgãos destinados para transplantes e também de embriões humanos depositados em tanques de nitrogênio líquido a uma temperatura de 196 graus negativos. Os laboratórios que trabalham com o procedimento criônico - responsável pela preservação dos corpos humanos falecidos, com o intuito de reanimá-los em um tempo futuro não definido - vão apostando na proposta e abrindo novas frentes com boas perspectivas de aceitação e trabalho. O tema da criogenia despertou a atenção da Rede Globo de Televisão e foi palco da novela O Tempo Não Para, lançada em 2018. Relata a história de 13 pessoas da mesma família que acabaram congeladas após o naufrágio de um navio que se chocou com um iceberg, no ano de 1886. Cerca de 132 anos após, um grande bloco de gelo se aproxima da praia do Guarujá/SP, quando os corpos congelados vão despertando cada um à sua maneira. Já que o clima é de ficção - Mark Twain tinha razão quando afirmava que a principal diferença entre a ficção e realidade é que a ficção tinha que ter um conteúdo de credibilidade, enquanto a realidade gozava de pleno crédito - Machado de Assis, que viveu neste período (1839/1908), poderia ter sido passageiro do navio atingido pelo iceberg e se encontrar no rol dos criopreservados. Com toda certeza, ao despertar, logo após desviar das manobras de um skatista, o bruxo do Cosme Velho iria assistir a uma transformação total da humanidade e não teria a sensibilidade aguçada para dar continuidade à sua extensa obra. Talvez, no entanto, tivesse uma única vantagem, qual seja: a de combater suas frequentes crises de epilepsia, que eram tratadas à época tanto pela medicina tradicional quanto pela homeopatia. Ambas sem sucesso. No mundo novo, quem sabe - ainda sem a cura definitiva - teria maior chance com o uso medicinal do canabidiol. A realidade da natureza humana é que cada um tem seu tempo, seu lugar, sua hora. A morte é o fator determinante e com ela cessa o caminhar terreno. Os romanos já preconizavam: Mors omnia solvit (a morte apaga tudo).   Inúmeras são as complicações para sustar temporariamente a morte e, após, retomar a vida como se fosse um sincronismo habitual. O eventual ganho da longevidade, se vingar, além da complexidade do procedimento, é temporal e não há ainda evidências científicas de benefício para o homem. A humanidade, pelo menos no momento presente, não está preparada para assimilar tal tecnologia que, além de desafiar a vida, desafia a própria morte. _____________ 1 https://www1.folha.uol.com.br/tec/2019/07/elon-musk-quer-simbiose-entre-homem-e-tecnologia-com-implante-cerebral.shtml
domingo, 6 de novembro de 2022

O mapeamento genético e o Novembro Azul

Os homens são mais arredios do que as mulheres para a realização de qualquer exame médico preventivo. Talvez seja pela sua própria natureza ou até mesmo pela desinformação a respeito das doenças mais prováveis para o mundo masculino. Assim, a título de orientação, o Ministério da Saúde editou o programa da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, buscando a população masculina na faixa etária dos 20 aos 59 anos de idade, com a finalidade de chamar a atenção e despertar o interesse pela própria saúde, além de propiciar a ele os serviços, preventivos ou não, dos agravos com maiores taxas de ocorrência. Os exames recomendados para verificar a saúde da próstata são a análise sanguínea do PSA e o toque retal, para homens a partir de 45 anos ou os que atingiram 40 quando há histórico de câncer na família e, também homens negros, que são mais propensos a desenvolver esse tipo de câncer. A Constituição Federal garante em seu artigo 196: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação." E ainda determina que as ações e serviços, assim como as políticas públicas apropriadas, compreendam o atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais. Daí que determinação constitucional alicerçou a criação do Outubro Rosa, embalado pela tradicional fita rosa, iniciado no Brasil em outubro de 2002, como sendo uma campanha para chamar a atenção das mulheres para o diagnóstico precoce de câncer na mama e do colo de útero. Novembro Azul, enlaçado pela fita azul, veio a reboque do primeiro, com a finalidade de alertar os homens da importância do diagnóstico preventivo do câncer de próstata. O nome é relacionado com o dia 17 de novembro, considerado o Dia Mundial de Combate ao Câncer de Próstata. Na Austrália, em 2003, surgiu o movimento Movember, que é a junção da palavra "moustache", que significa bigode, com "november", referente ao mês de novembro, dedicado à saúde do homem. Daí que os símbolos da campanha passaram a ser, no Brasil, o bigode e a fita de cor azul. Com o arsenal tecnológico de hoje à disposição da medicina científica, exames de última geração vêm explorando e conseguindo ótimos resultados para se obter a leitura do genoma humano, descoberta que possibilita a correção de eventual enfermidade genética que acompanha seguidas gerações. A Terapia Gênica Humana (TGH) é de vital importância para solucionar o problema de milhões de pessoas vitimadas pelas doenças de cunho genético. Moser, com razão, concluiu: "Esta virou uma espécie de melodia que soa aos ouvidos de todos como esperança de vitória definitiva sobre um mal que atormenta a humanidade de todos os tempos."1 Pois bem. Como é sabido, a atriz Angelina Jolie, em razão do mapeamento genético que resultou positivo para a potencialidade do câncer que vitimou sua mãe - cerca de 87% de desenvolver a mesma doença, sem apresentar no presente qualquer início da moléstia - submeteu-se a uma mastectomia dupla (retirado dos seios). Pode se imaginar, no mesmo caminho, a situação de um homem que carrega histórico familiar favorável ao desenvolvimento de câncer de próstata e se submeta a um mapeamento genético, conclusivo pela potencialidade da doença, unicamente pelas informações genéticas, sem apresentar, no presente, qualquer início da moléstia. A pergunta que se faz é se justifica a intervenção médica preventiva com a confiança no provável desenvolvimento das células cancerosas? Quer dizer, a cirurgia será realizada em um paciente saudável no momento e que não apresenta a doença e nem mesmo os sintomas, mas há possibilidade de desenvolvê-la. Trata-se de um questionamento eminentemente bioético. O exame realizado é resultado de um refinamento científico de vários anos de pesquisa e acompanhado por outras provas médicas conclusivas e irrefutáveis. A tecnologia revela novos contornos que trazem benefícios para o homem, no sentido de proporcionar-lhe uma vida com melhor qualidade, evitando doenças incuráveis e sofrimentos dolorosos, sem qualquer ofensa ao princípio da dignidade humana. Indiscutível a nova realidade que se avizinha e com ela extensas nuvens precisam ser dissipadas. O procedimento invasivo, se optado pelo paciente, será realizado ainda sem a manifestação da doença e, no caso de prostatectomia radical, além da possível aplicação da radioterapia, carregará o receio da impotência sexual e da incontinência urinária. É, realmente, uma decisão que irá marcar uma nova etapa na prevenção médica da humanidade, tendo como sustentáculo os princípios da autonomia da vontade do paciente e beneficência, ambos da Bioética. __________ 1 Moser,Antônio. Biotecnologia e bioética: para onde vamos? Perópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 225.
O cenário das pesquisas relacionadas com a utilização do canabidiol como uso medicinal - um dos princípios ativos da maconha - vem ganhando credibilidade por parte da comunidade científica. Os estudos até então realizados e muitos ainda em fase de desenvolvimento, demonstram benefícios para crianças e adolescentes diagnosticados com epilepsia, além de doenças neurológicas em adultos, como Alzheimer, Parkinson, esclerose múltipla, convulsões, depressão, alguns tipos de câncer e outras. A ciência, pelas suas regras investigativas e protocolos de pesquisas, em vários estudos científicos rigorosamente sérios e recomendados, não só apontou os benefícios como também recomendou a continuidade de estudos com o canabidiol, por ficar evidenciado o benefício para o paciente. A Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas, acatando também a recomendação da Organização Mundial da Saúde, aprovou a reclassificação da cannabis sativa da listagem de narcóticos considerados impróprios e perigosos para o homem e abriu espaço para sua utilização médica, exclusivamente.1 Nesta linha de raciocínio a própria ANVISA já autorizou e registrou o medicamento Mevatyl, à base de cannabis, indicado para o tratamento de adultos com espasmos relacionados à esclerose múltipla, além de conceder inúmeras autorizações para a importação do canabidiol. O Conselho Federal de Medicina, por sua vez, editou a resolução 2324/2022, revogando a anterior 2.113/2014, que autorizava o uso compassivo do canabidiol para crianças e adolescentes com epilepsias refratárias aos tratamentos convencionais. Na nova norma aprovou o uso do canabidiol exclusivamente para o tratamento de epilepsias da criança e do adolescente refratárias às terapias convencionais na Síndrome de Dravet e Lennox-Gastaut e no Complexo de Esclerose Tuberosa. Neste caso, o paciente ou seu representante legal, deve assinar o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE), dando ciência sobre os riscos e benefícios potenciais do tratamento. Além do que o médico fica proibido de prescrever canabidiol para indicação terapêutica diversa da prevista na resolução em destaque, salvo em estudos clínicos autorizados pelo Sistema CEP/CONEP. A limitação imposta causou estranheza no meio científico que se manifestou contrariamente por entender rigorosa por demais a norma administrativa, que colidiu com a autonomia do médico e cerceou o acesso à saúde do paciente, além de causar eventuais danos aos que se encontram em tratamento por outras causas. Na relação linear entre médico-paciente, cabe ao profissional, após detalhado diagnóstico, apresentar as opções mais adequadas para o tratamento com a avaliação de eventual risco e pretendido benefício e, ao paciente, no âmbito da sua autonomia da vontade, acatar ou não a proposta ofertada. O termo de consentimento, prudentemente recomendado, é o demonstrativo inequívoco da autonomia da vontade da pessoa. Elaborado com linguagem clara e acessível, compreende a anuência do paciente ou de seu representante legal, livre de vícios, subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e pormenorizado sobre os métodos, riscos e benefícios previstos, tanto os atuais como os potenciais, individuais e coletivos, assim como aponta o responsável pelo acompanhamento do tratamento. Talvez a decisão do Conselho Federal de Medicina, por demasiado apego ao princípio da precaução - compreendendo a observância de padrões seguros e confiáveis para o ser humano - editou a norma de conduta ética em debate. A limitação, ao mesmo tempo que referenda, restringe o uso somente para os estudos clínicos autorizados pelo Sistema CEP/CONEP, não observando que a indicação terapêutica do canabidiol já atingiu um considerado número de prescrição na modalidade "off label". Não se pode olvidar que aumenta de forma induvidosa o número de estudos realizados mundialmente envolvendo o canabidiol. Em um cenário em que a ciência é fator predominante e as pesquisas vão produzindo cada vez mais resultados satisfatórios para a saúde humana, não se pode desprezar os dividendos que estão sendo colhidos. Tem total aplicação na discussão a aplicação do princípio da beneficência da Bioética, que visa envidar o melhor esforço possível para buscar soluções que sejam adequadas, convenientes e proporcionais para o paciente, conferindo a ele um considerável ganho à sua saúde, com o mínimo risco possível. Quer dizer, extremar os possíveis benefícios e minimizar eventuais danos. Desta forma, abrindo-se uma linha de pesquisa envolvendo o canabidiol e que tenha já atingido um patamar de segurança e tolerabilidade, recomenda-se que sejam exploradas todas as possibilidades de se buscar um resultado que seja compatível com os objetivos propostos. __________ 1 Disponível aqui.
No atestado de óbito da rainha Elizabeth 2ª consta que ela faleceu aos 96 anos de idade em razão de velhice, "old age" em inglês, e, segundo informações do Palácio de Buckingham, morreu serenamente. A mesma causa mortis ficou constando do registro de óbito do duque de Edimburgo, seu esposo.1 Volta à baila novamente a velhice como causa mortis a constar de documento oficial. É sabido que a Organização Mundial da Saúde, na contramão de direção do alinhamento mundial, tinha incluído a velhice como doença na Classificação Estatística Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID), com o código MG2A, com vigência a partir de 2022. Salientou, no entanto, a OMS que se tratava de uma substituição na nomenclatura, consistente em retirar o rótulo senilidade, já existente (CID10), e substitui-lo por velhice, sem a intenção de transformar esse último em doença.  A realidade, no entanto, como é sabido, a CID é um dispositivo de classificação de doença. Assim, para uma pessoa no Brasil que viesse a falecer e tivesse mais de 60 anos de idade, a causa mortis poderia ser apontada como velhice, encobrindo, desta forma, o diagnóstico da doença responsável pelo óbito, como, por exemplo, as cardiológicas, neurológicas, oncológicas e muitas outras. E pior. Acarretaria uma diminuição de pesquisas das doenças relacionadas com os idosos, como o Alzheimer e o Mal de Parkinson. Diante de tantos argumentos contrários a OMS retirou o código velhice da 11ª revisão do Código Internacional de Doenças e reiterou que, na realidade, a intenção não era transformar a velhice em doença, com capacidade de provocar a morte. As explicações científicas não trazem justificativas convincentes de que a velhice vem a ser sinônimo de doença, principalmente no momento atual em que se vivencia o crescimento plausível da longevidade, sabendo-se que as gerações infantis de hoje ultrapassarão a faixa dos 100 anos, como resultado de inúmeras pesquisas científicas desenvolvidas com essa finalidade. Além do que vai evidenciar ainda mais o preconceito em razão da idade e dar azo ao ageísmo, pois qualquer cidadão que no Brasil entrar na faixa de 60 anos de idade, parâmetro biomarcador preconceituoso, mesmo que seja saudável, passa a ser considerado um doente, tanto na convivência familiar como na comunitária, não potencial, mas por ficção etária. Mas, pode até ser, em sentido contrário, fazendo uma leitura mais voltada para o futuro, que a OMS pretendeu dar uma justificativa aos óbitos ocorridos entre idosos que não ostentam qualquer doença. É até mesmo compreensível tal pensamento, pois a longevidade, que já não é mais uma ambição remota e sim uma realidade incontestável, permite tal conclusão.  Basta ver a lei 13.466/2017, que confere prioridade especial aos maiores de 80 anos de idade no atendimento à saúde e outros direitos, com preferência aos demais idosos. O país está cada vez mais sendo habitado pelos idosos. E, em razão de uma longevidade saudável, com boa qualidade de vida, o longevo pode não registrar nenhuma das doenças catalogadas pelo CID. É interessante observar que na certidão de óbito da rainha, no item 10, quando trata da causa da morte, há alternativas suficientes para agrupar doenças ou comorbidades que contribuíram para o falecimento. O médico, no entanto, que provavelmente acompanhava a paciente há muitos anos, limitou-se a preencher o item 1, letra "a", com "Old Age". E, certamente, assim agiu porque não encontrou qualquer causa ou concausa que justificasse o evento morte.          Dizer que referida certidão não representa a verdade é temeroso, levando-se em consideração que a constatação médica encontrou na velhice a única causa da morte. Há, no entanto, evidente contradição com a interpretação da OMS. Verdadeira antinomia. Um imbróglio de difícil explicação. Faz lembrar o exemplo clássico oferecido por Eco com relação à frase "Eu estou mentindo", que não pode ser verdadeira e nem falsa: "Se fosse verdadeira, significaria que estou dizendo a verdade e, portanto, é verdade que estou mentindo; se fosse falsa, então não seria verdade que estou mentindo e, portanto, seria verdade que estou dizendo a verdade, logo eu estaria, na verdade, mentindo."2                 __________ 1 Disponível aqui. 2 Eco, Umberto. Nos ombros dos gigantes: escritos para La Milanesiana, 2001/2015. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2018, p.215.
domingo, 9 de outubro de 2022

Rejeição vacinal

Constata-se facilmente, não só pela informação oficial do Ministério da Saúde, como também pelas notícias que circulam nos canais de comunicação, que os últimos anos apresentaram um declínio no índice de imunização da população de crianças e de adultos e, inevitavelmente, muitas doenças que eram consideradas erradicadas no Brasil, ganharam um canal aberto e vão fazendo novas vítimas, enquanto que o estoque vacinal fica disponível e sobrando nas unidades de vacinação. Basta ver, a título de exemplo, durante o período pandêmico, quanto maior o avanço da imunização no combate às variantes de fácil propagação, mais incontestável o resultado positivo com a cobertura de toda a população. E não resta nenhuma dúvida de que as vacinas foram as responsáveis pela batalha contra a Covid-19, apesar de muita desinformação a respeito. E a notícia mais alvissareira é que a Organização Mundial da Saúde já cogita decretar o fim do status de pandemia conferido à doença. A inquietação que se desenha no presente, e ao que tudo indica não conscientizou ainda a população, é que governo de São Paulo, preocupado com a baixa procura vacinal, prorrogou até 31 de outubro de 2022 a campanha de vacinação contra a poliomielite, visando alcançar crianças a partir de 2 meses a 1 ano de idade, índice que não superou a margem de 50% do público-alvo. E o pior é que o Plano Nacional de Imunizações (PNI) - que tem como objetivos o controle e a erradicação de doenças infectocontagiosas e imunopreveníveis e que já chegou a atingir a meta de 95% da população alvo - vem se desgastando ano após ano. A poliomielite, conhecida também como paralisia infantil, é considerada doença contagiosa pela transmissão de pessoa a pessoa e acarreta sequelas gravíssimas, principalmente motoras pela infecção da medula e cérebro, sem qualquer chance de cura. Talvez o movimento antivacinal, que vem prosperando a cada ano, tenha desestimulado os pais a levarem seus filhos para a recomendada imunização, apesar da previsão imposta no § 1º do artigo 14 do Estatuto da Criança e do Adolescente de ser obrigatória a vacinação dos menores de idade, nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias. O grupo contrário à vacinação não encontra qualquer amparo científico que tenha sido comprovado e muito menos a adesão da Organização Mundial da Saúde, que já se manifestou reiteradas vezes a respeito da eficácia das vacinas e que considera o movimento como uma das ameaças mundiais à saúde. Uma vacina, como é sabido, representa o resultado de longos anos de estudos obedecendo rigorosamente os protocolos científicos internacionais, tudo para atingir a almejada segurança e eficácia. A específica para o combate à poliomielite, em razão dos vários anos de imunização, já foi incorporada ao calendário vacinal e à vida dos brasileiros, pelos bons resultados alcançados. A vacinação, em razão do comando constitucional previsto no artigo 196 - que estabelece o dever de proteção e prevenção do gestor público - é uma questão que afeta diretamente a saúde pública, sinalizada por políticas adequadas visando à erradicação das doenças infectocontagiosas. Ora, o descumprimento do encargo vacinal por conta dos pais ou responsáveis legais não encontra qualquer escusa legal. Pelo contrário, reflete um ato de irresponsabilidade e total falta de zelo pelos filhos, tendo em vista que o imunizante é oferecido em várias unidades de saúde. Nenhuma justificativa, desta forma, socorre os responsáveis pelas crianças, que poderão, em um futuro próximo, em razão do dinamismo jurídico, ser acionados judicialmente pelos próprios filhos. Tem aqui total aplicação o pensamento desenvolvido pela Bioética que, apesar de não carregar regras ou normatização de qualquer natureza, colabora com os princípios da beneficência e o da justiça, no tocante à imunização da coletividade. Com relação ao primeiro deve-se buscar o resultado mais satisfatório para a vida humana, proporcionando dividendos de saúde, evitando-se ao máximo a ocorrência de qualquer risco ou dano à pessoa, nos exatos termos do primum non nocere. Ou, em outras palavras, extremar os prováveis benefícios e minimizar os possíveis danos. Já o segundo vem consagrado pela distribuição igualitária das vacinas e sem discriminações, cujo critério equitativo, sem prioridades de ordem econômica, conduz à igualdade de tratamento que deve imperar no relacionamento humano. Quer dizer, se cientificamente for comprovado que uma vacina produziu resultado promissor para a preservação da saúde de uma pessoa, igualmente deve se estender às demais. Daí que a Organização Mundial da Saúde considera a vacina como um bem público global, com acesso irrestrito a toda comunidade mundial.
domingo, 25 de setembro de 2022

Furto por necessidade e furto insignificante

Tramita pela Câmara Federal o projeto de lei 4.540/21, de autoria da deputada Talíria Petrone e outros deputados, apensado ao PL 1244/11 para uma decisão em conjunto pelas comissões,  que visa alterar o artigo 155,§ 2º do Código Penal para nele acrescentar que não haverá prisão quando ocorrer o furto por necessidade e o furto insignificante, mesmo em se tratando de agente reincidente, cabendo ao juiz aplicar uma pena restritiva de direitos ou multa, além do que, eventual ação penal será de natureza exclusivamente privada, mediante iniciativa da vítima.1 A proposta cria duas modalidades diferentes de furto. A primeira, por necessidade relacionada diretamente com a situação de pobreza ou extrema pobreza do autor que pratica a subtração para saciar sua fome ou para atender necessidade básica de sua família, conduta já conhecida dos meios judiciais como furto famélico, abrangida pelo estado de necessidade, que justifica a excludente. A segunda, relacionada com o furto insignificante, incide diretamente sobre o valor da res furtiva com relação ao patrimônio do ofendido. O parâmetro aqui pode até causar distorções pois tem como base o valor do patrimônio alheio. Trata-se de uma proposta que visa estabelecer uniformização legislativa a respeito de fatos praticados até com certa frequência e que, apesar de carregarem baixa repercussão social, refletem uma realidade atrelada a uma crise social e econômica. É certo que o Direito vive do fato social e cuida das condutas humanas previamente ajustadas nas regras legislativas Bem dizia Maximiliano que o Direito "nasce na sociedade e para a sociedade; não pode deixar de ser um fator do desenvolvimento da mesma. Para ele não é indiferente a ruína ou a prosperidade, a saúde ou a moléstia, o bem-estar ou a desgraça".2 O projeto merece ser criteriosamente discutido pela sociedade, contando até mesmo com a manifestação popular, que é a vertente mais legitimada para corretamente direcionar uma decisão. A realidade brasileira merece ser estudada com mais acuidade. Os teóricos do Direito no século 18 profetizavam que não é o tamanho do castigo imposto que atua como freio da criminalidade e sim a virtual certeza de que a punição não virá. A proposta legislativa tem como sustentáculo o pensamento de que o abrandamento da lei é a medida mais eficaz para o tratamento da baixa lesividade. Quer dizer, quanto menor for a intervenção penal - provocando até mesmo certa descriminalização do furto em algumas modalidades - maior e mais benéfica será a resposta social. Vários abrandamentos legislativos foram feitos como, por exemplo, na Lei dos Crimes Hediondos, que tinha por objetivo uma punição exemplar para aquele que praticasse um delito grave e acabou levando a população a uma frustração coletiva pelo esfacelamento das cláusulas mais rígidas. A atenuação pretendida já carrega um entendimento da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal que elencou os requisitos de ordem objetiva para aplicação do princípio da insignificância, nos chamados crimes de bagatela, com a mínima repercussão penal e social: a) conduta minimamente ofensiva do agente; b) ausência de risco social da ação; c) reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; d) inexpressividade da lesão jurídica. O projeto de lei apresentado, apesar da preocupação social demonstrada, no entanto, estende o benefício até mesmo para o infrator reincidente. Tal abertura não coaduna com a realidade da política criminal brasileira, que apresenta alto índice de insegurança diante de uma escalada estarrecedora de crimes de conteúdos diversos. O contumaz se sentiria prestigiado pela própria lei a praticar várias condutas irrelevantes, mesmo que separadamente sejam consideradas de valores ínfimos. Concede-se a ele uma espécie de carta de alforria e abre-se um espaço sem qualquer juízo de reprovabilidade e sim de incentivo para prosseguir na empreitada delituosa. O resultado é previsível: fragilizar o sistema penal com o enfraquecimento das poucas medidas protetivas da sociedade. O atalho pretendido pode desembocar no abismo. Melhor seria a criação de políticas públicas salutares voltadas para a construção de um cenário animador com a inclusão da população nos parâmetros da cidadania, com o consequente acesso ao trabalho, educação, saúde e tudo o mais que integra a dignidade da pessoa humana. O Código Penal, que carrega um olhar vetusto e corroído pelo tempo, merece sim uma remodelagem, tanto para captar qualquer lampejo da sensibilidade necessária como, também, para distinguir aquele que, aproveitando do flanco aberto na legislação, faz do crime um verdadeiro meio de vida. __________ 1 Disponível aqui. 2 Maximiliano, Carlos. Hemenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p.  137.
domingo, 18 de setembro de 2022

O corpo e o cadáver

A corporeidade - assim entendida como um princípio individualizante - tem por função imprimir ao homem sua realidade singular, revelando-o como pessoa articulada com as demais. Faz dele o detentor de um enorme latifúndio chamado corpo humano, que funciona como instrumento não só deambulatório mas também com inúmeras funções mais para realizar seus objetivos e, ao memo tempo, abriga, em seu interior, as vidas psíquica, volitiva e inteligente. Tanto é que, dessa unidade intrínseca, faz fluir a dignidade da pessoa humana, compreendida na tutela voltada para a saúde física, mental e psíquica. Ocorre que, como é inevitável, toda esta construção ruirá com a ocorrência da morte e o corpo humano transmuda-se em cadáver e, como tal, tem as proteções também definidas. O Estado, responsável pelo corpo que carregava a vida humana, continua sua missão, agora com o cadáver. Criou, para tanto, o tipo penal de vilipêndio a cadáver ou suas cinzas, no artigo 212, inserindo como vítimas os parentes e amigos próximos que guardam sentimentos de respeito e admiração pelo falecido. A responsabilidade familiar pelo cadáver vem desde a Roma antiga, época em que prevalecia fortemente a religião doméstica e somente os parentes mais próximos poderiam participar do funeral, uma vez que os mortos eram enterrados no fundo da casa, local onde se realizavam os cultos aos mortos e ao fogo, que deveria permanecer aceso para representar a imortalidade da alma. "O vivo, esclarece Coulanges, não podia passar sem o morto, nem este sem aquele. Por esse motivo, poderoso laço se estabelecia unindo todas as gerações de uma mesma família, fazendo dela um corpo eternamente inseparável".1 Percebe-se, nesta linha de pensamento, que os parentes são os responsáveis pelo cadáver, cabendo ao Estado realizar somente as ações referentes às escolhas feitas por eles em vida. A legitimidade familiar conferida legalmente conserva uma motivação de cunho eminentemente íntimo, resultante da convivência de muitos anos, em razão da revelação feita em vida por aquele interessado na doação de órgãos e do próprio cadáver. O primeiro questionamento que se faz é a respeito da doação de órgãos, tecidos e partes do cadáver, regulamentada pela lei 9.434/97. Na modalidade post mortem, referida Lei estabelece que a doação de órgãos só poderá ser realizada com a autorização do cônjuge ou parente capaz, na linha reta ou colateral até o segundo grau, exigindo que a equipe médica responsável declare a morte encefálica do paciente, em razão da cessação das células responsáveis pelo sistema nervoso central.  Assim, se a pessoa nada exigiu em vida, seu sepultamento será realizado no cemitério local, com a observância das normas estabelecidas pelo poder público. Quando optar pela cremação do cadáver somente poderá ser feita se houver manifestado para a família em vida a vontade de ser incinerado, ou no interesse da saúde pública, além do caso de morte violenta, depois de autorizada pela autoridade judiciária, conforme disciplina a lei 6015/73. Há casos em que a pessoa em vida deixa um documento revelando que pretende doar seu corpo post mortem para uma instituição de ensino com a finalidade de realizar estudos científicos. A esse respeito, o próprio CC/02 (art. 14) considera válida a disposição do próprio corpo, no todo ou em parte, após a morte, desde que tenha por objetivo motivação científica ou altruística. Mas, mesmo assim, a palavra final ainda será da família. Pode até ser que seja encontrado um cadáver sem qualquer identificação e, mesmo identificado, apesar das diligências feitas, não sejam encontrados seus parentes ou o representante legal. Neste caso, obrigatoriamente, será publicada a notícia do falecimento em jornal da cidade pelo prazo de 10 dias, na tentativa de encontrar os parentes. Resultando infrutífera, o cadáver será destinado às escolas de medicina para fins de ensino e de pesquisa de caráter científico, consoante determina a lei 8.501/92. Por isso que as faculdades de medicina realizam todos os anos cultos e celebrações ao Cadáver Desconhecido, projetando uma perfeita reflexão humanística em nome daquele que, de forma altruísta e solidária, doou seu corpo para a formação científica dos futuros médicos. A rainha Elizabeth II, monarca mais longeva da história, morreu aos 96 anos e seu corpo foi exposto à visitação pública por vários dias e será enterrado na Capela familiar de Saint George, mausoléu escolhido por ela porque lá se encontram os restos mortais dos seus pais, da sua irmã e de seu marido. É conhecida a dedicatória de Machado de Assis na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas: "Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver, dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas". Mário Quintana, por sua vez, conhecido como o poeta das coisas simples e encantado pela vida, como que querendo afugentar a morte e eliminar o pensamento a respeito do cadáver, mandou escrever na lápide de seu túmulo: "Eu não estou aqui". _____ 1 De Colulanges, Fustel. A cidade antiga. Tradução de Jean Melville. Editora Martin Clarete, 2003, p.38.
domingo, 11 de setembro de 2022

Setembro Amarelo

No dia 10 de setembro é comemorado o Dia Mundial da Prevenção do Suicídio. Amarelo para representar a cor que Mike Emme, jovem norte-americano de 17 anos, que cometeu suicídio, pintou seu Mustang 68. Em seu velório, os pais e amigos distribuíram cartões amarrados com fitas amarelas e com mensagens de apoio para quem estivesse enfrentando o mesmo problema. Referido mês foi escolhido para alavancar no Brasil a campanha de conscientização a respeito do suicídio. O Código Penal Brasileiro, mirando a vida humana como o bem jurídico prevalente, com relação ao suicídio, traçou três modalidades de seu cometimento no artigo 122. A primeira delas é pela instigação, compreendendo aqui o ato de incitar, estimular na pessoa a ideia pré-existente, para que ela venha realmente concretizar seu intento. A segunda, pelo induzimento, manifestado pelo ato de incutir, fazer a pessoa se interessar e estimulá-la a alimentar a ideia suicida. Nesta situação a mente da pessoa está inicialmente in albis e nela é plantada a semente para colocar um fim à própria vida. A terceira, consistente em prestar auxílio, compreende toda ajuda material para que o suicida atinja seu propósito. Visando oferecer políticas públicas direcionadas ao tema, o governo editou a lei 13.819/2019 instituindo a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio a ser implementada pela União, em colaboração com os Estados, Municípios e Distrito Federal. Compreendem na lei a violência autoprovocada, o suicídio consumado, a tentativa de suicídio e todo ato de automutilação, com ou sem ideação suicida. Traz ainda, dentre outros objetivos, a promoção à saúde mental, a prevenção à violência autoprovocada e o acesso às pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, notadamente àquelas com ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio, envolvendo entidades da saúde, educação, comunicação, imprensa e polícia, entre outras. No caso específico do suicídio, os objetivos da campanha cingem-se na promoção da saúde mental com a finalidade de: a) garantir  o acesso à atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, especialmente daquelas com histórico de ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio; b) abordar adequadamente os familiares e as pessoas próximas das vítimas de suicídio e garantir-lhes assistência psicossocial; c)  informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância e a relevância das lesões autoprovocadas como problemas de saúde pública passíveis de prevenção e promover a articulação intersetorial para a prevenção do suicídio. Uma das formas de comunicação será o serviço telefônico ou qualquer outra forma de comunicação destinada ao serviço gratuito e sigiloso de pessoas em sofrimento psíquico, observando que o atendimento deverá ser prestado por profissional com qualificação adequada. Fica bem delineado o espírito educativo e preventivo da lei quando se refere à assistência às pessoas em sofrimento psíquico e, principalmente, quando elege os profissionais da psicologia e da psiquiatria como os qualificados para a prestação da assistência necessária e adequada. O zelo pela saúde mental da comunidade é de vital importância. É sabido que pessoas portadoras de sofrimento psíquico se perdem em seus próprios pensamentos, persistem em suas ideias errôneas, indolentes, não sabem para onde ir e não se abrem para assimilar novas perspectivas de vida, a não ser os reiterados choques de negatividade. Daí a necessidade da participação de profissional qualificado e que tenha condições de romper o modelo de vida desgastado e introduzir a reflexão necessária e construtiva para enfrentar e acertar as contas com o passado turbulento das pessoas em sofrimento mental. A saúde psíquica do cidadão, a exemplo da definição de saúde da Organização Mundial da Saúde, integra todos os cuidados de saúde, independentemente das condicionantes sociais, ambientais, econômicos e outras, visando sempre a atingir o bem comum. Desta forma, detectada a vulnerabilidade em razão do sofrimento psíquico, o próprio Estado deve garantir políticas públicas de atendimento preventivo com as condições necessárias e acessíveis a todos os que se encontram sob o mesmo quadro clínico mental, com absoluta proteção da confidencialidade das informações. Tamanha é a importância da atenção voltada às pessoas com sofrimento psíquico que os casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada, compreendendo o suicídio consumado, suicídio tentado ou qualquer ato de automutilação, com ou sem ideação suicida, são de notificação compulsória, de caráter sigiloso. Assim os estabelecimentos públicos e privados de saúde devem notificar as autoridades sanitárias, ao passo que os estabelecimentos públicos e privados de ensino farão a notificação ao Conselho Tutelar. Com tal aparato, as medidas devem atingir resultados que sejam considerados satisfatórios ao minorar a mortalidade em razão do suicídio, em cumprimento à obrigatoriedade imposta ao Estado pelo artigo 196 da Constituição Federal.
domingo, 4 de setembro de 2022

O neurodireito e sua tutela legal

Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudônimo George Orwell, escreveu a obra de ficção social 1984, publicada em 1949, em que narra a história de um funcionário público do Ministério da Verdade de um governo totalitário com a função de alterar atos e fatos e adequá-los ao regime político adotado. Assim o cidadão, pela política de controle, não tinha como se manifestar contrariamente e o seu pensamento era monitorado pelo Big Brother, ditador que impunha as regras doutrinárias do governo. Orwell jamais imaginaria que sua obra de ficção iria antecipar o progresso científico, notadamente na área da cognição humana e sua consequente tutela pela legislação. O Cogito, ergo sum, de Descartes, nunca foi tão valorizado e aplicado como no momento presente - na medida em que representa a atividade mental do ser humano - revelando sua forma de pensar, suas emoções, seus sentimentos e seus projetos. É uma atividade inerente ao próprio processo de viver e se encaixa perfeitamente no âmbito da manifestação do pensamento inviolável e na liberdade de consciência, assim considerados como garantias fundamentais na Constituição Federal. O incessante caminhar da tecnologia exige uma tutela especial à atividade cognitiva, responsável que é pela autogeração e pela perpetuação das redes vivas. Com toda razão esclarecem Capra e Luisi: Desse modo, a vida e a cognição são inseparavelmente conectadas. A mente - ou mais precisamente, a atividade mental - é imanente na matéria em todos os níveis da vida.1 Esta introdução se faz necessária para discutir as novas tecnologias existentes para introdução no corpo humano, por meio de próteses, chips e implantes, de minúsculos computadores que possam gerar senhas, aprovar transações em moedas digitais, abrir portas, medir e controlar o batimento cardíaco, a pressão corporal e inúmeras outras especialidades. Enfim, criam uma nova realidade com a introdução do dado neural, que vem a ser a informação obtida, direta ou indiretamente, da atividade do sistema nervoso central e cujo acesso é realizado por meio de interfaces cérebro-computador invasivas ou não-invasivas. Desta forma, mais parecendo uma ficção científica - que relata um futuro distópico na convivência das máquinas sencientes com os seres humanos já limitados pelo infindável mundo informático - abre-se uma interface entre cérebro-computador para que qualquer sistema eletrônico, óptico ou magnético, colete dados do sistema nervoso central e os transmita a um receptor informático. Desta forma, com a inserção de dispositivos na mente humana, o homem poderá ter seus pensamentos e memórias devassados, ficando como refém da própria tecnologia. De nada adiante ficar estarrecido e nem mesmo contrariar tamanha tecnologia porque não só vingará, como progredirá nesta direção. Por mais significativos que sejam os progressos científicos em áreas ainda pouco exploradas, eles serão considerados pela ciência como ensaios ainda incipientes. Daí que a biotecnologia avança a passos largos e sem qualquer indício de recuo e, rapidamente, atingirá os objetivos propostos. A não ser que o homem, seu destinatário natural, acenda o farol vermelho e estanque todo esforço concentrado por não ter mais interesse, o que é difícil na atualidade, ante os benefícios já auferidos. As propostas de facilitação da vida humana pela inserção de dispositivos tecnológicos são por demais interessantes e atrativas, um verdadeiro encantamento, dando a sensação de domínio da ciência em favor do homem. Mas há necessidade de precaução e muita cautela a respeito de possíveis danos à identidade individual do titular dos dados, causando até mesmo irreparáveis prejuízos à saúde, à autonomia e à organização psicológica da sua vida. A nova tecnologia vai conectar o sistema nervoso a um computador para captar todos os dados ali existentes, incluindo, dentre eles, os mais íntimos e sigilosos. Tais dados pertencem ao patrimônio mental da pessoa e, pela regra convencional, somente ela terá o permitido acesso. A pessoa retém em seu cérebro - e ali fica depositado durante a vida todos os registros importantes - quer sejam relacionados  à vida pessoal, social, familiar e à intimidade mais preservada que jamais serão exteriorizados, tudo a critério do titular das informações que, se quiser, elegerá, sob o crivo da sua avaliação, qual ou quais os itens podem ser disponibilizados para terceiros. Ora, com a coleta de dados neurológicos, quebra-se o freio e ocorre uma indevida invasão à intimidade do cidadão. E, de sobra, cai também a regra do Digesto, de Ulpiano: Cogitationis poenae non patitur (Ninguém pode ser punido pelos seus pensamentos). O Senado Federal do Chile, recentemente, aprovou por unanimidade a proposta de inclusão dos neurodireitos ou os direitos do cérebro em sua Constituição Federal - com fulcro nos princípios da dignidade da pessoa humana e da autodeterminação - e deve ser o primeiro país do mundo a exercer tutela a respeito da matéria.2 A intenção é preservar a integridade física e mental do indivíduo para que ninguém, nem mesmo o Estado, possa - por meio da tecnologia - aumentar, diminuir ou perturbar a integridade individual, sem o consentimento do seu titular. A ciência é dinâmica e cada vez mais irá expandir para criar uma nova realidade para a humanidade que, por sua vez, adotando-a, merece receber a tutela protetiva necessária, com restrita obediência aos limites éticos, bioéticos e jurídicos. Daí que, visando tutelar este novo avanço tecnológico, foi apresentado um projeto de lei no ano de 2021, de autoria do deputado federal Carlos Gaguim, que modifica parcialmente a lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), para nela incluir a definição de dado neural e regulamentar a proteção do cidadão com relação às informações que se encontram armazenadas no cérebro humano. __________ 1 Capra, Fritjof; Luisi, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas : tradução Mayra Teruya Eichemberg, Newton Roberval Eichemberg - São Paulo : Cultrix, 2014, p. 316.   2 Disponível aqui.
A família, como base da sociedade, goza de especial tutela no § 7º do artigo 226 da Constituição Federal, que assim dispõe: Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. O planejamento familiar, inserido na lei 9.263/1996, explicita um conjunto de ações de regulação da fecundidade, limitação do aumento da prole pela mulher e pelo homem e vem atrelado às políticas públicas gestadas pelo Sistema Único de Saúde (SUS), no que diz respeito à atenção à mulher, ao homem ou ao casal, compreendendo, dentre outras finalidades a assistência à concepção e contracepção; atendimento pré-natal; assistência ao parto, ao puerpério e ao neonato; controle das doenças sexualmente transmissíveis e o controle e a prevenção dos cânceres cérvico-uterino, de mama, de próstata e de pênis. Quando se fala em políticas públicas de saúde, seu conteúdo original reside na própria Constituição Federal que atribui ao Estado o dever de garantir a saúde da população, com a consequente participação de órgãos que atuem de forma direta e preventiva, com atendimento integral e assistencial para a redução dos riscos e doenças. Por se tratar de uma lei com mais de vinte anos de vigência, o tempo - que flui em sua inexorável ampulheta - os costumes e a própria tecnologia têm o condão de provocar a revisão legislativa em busca de um ajuste com relação à dinâmica social, que é mutável por natureza. Assim é que o PL 7.364/2014, de autoria da Deputada Federal Carmen Zanotto (Cidadania/SC), encampou o desafio de alterar a Lei de Planejamento Familiar e, dentre as mudanças propostas, reduz de 25 para 21 anos a idade mínima entre homens e mulheres para se submeterem a procedimento voluntário de esterilização - laqueadura de trompas e vasectomia -, faixa etária não exigida daqueles que tiverem pelo menos dois filhos vivos, sendo terminantemente proibida para menores de idade. Outra alteração proposta no Projeto, de salutar pertinência e que vai ao encontro dos protocolos médicos recomendáveis, consiste em realizar no próprio ato cirúrgico do parto a esterilização da mulher, que na lei a ser revogada exigia procedimentos distintos. A contrapartida legal, no entanto, é que a manifestação de vontade da mulher deverá ser ofertada no prazo de sessenta dias, a contar da data do seu propósito e a laqueadura. O ponto fulcral reside na ausência do consentimento expresso do outro cônjuge ou companheiro no ato da intervenção médica. Prevalece aqui, em toda sua extensão, a autonomia da vontade da pessoa interessada em se submeter ao procedimento. Revela, de forma inequívoca que, não obstante haja o casamento ou a união estável entre o casal, nenhum deles terá domínio absoluto sobre a vida sexual e procriativa do outro. A autonomia procriativa vem ganhando corpo e reafirma que a pessoa é proprietária de um patrimônio chamado corpo humano, detentora de seus atos, administradora deste inesgotável latifúndio, que vem revestido de uma tutela especial que lhe confere personalidade e a torna sujeito de direitos e obrigações, além de exteriorizar a dimensão do preceito constitucional da dignidade da pessoa humana. A vontade determinada e livre, corolário do principium individuationis, que é o resultado de uma operação coordenada pelo cérebro, forma a ação ideomotriz, que nada mais é do que a realização de condutas selecionadas pela pessoa para o exercício da sua vida social, resultado de sua coerência ética. Poder-se-ia até afirmar que desperta a consciência da finalidade do ser humano, delineia com clareza seus objetivos e o habilita a praticar atos que julga necessários e convenientes para sua vida. O Projeto foi aprovado pela Câmara dos deputados e pelo Senado Federal e segue para apreciação do Presidente da República, que poderá sancioná-lo ou vetá-lo parcial ou totalmente.
domingo, 21 de agosto de 2022

Razões humanitárias e a prisão

Uma mulher condenada e cumprindo pena em regime semiaberto, alegando ser mãe de três filhos menores de 12 anos de idade, pleiteou, perante o Superior Tribunal de Justiça, o benefício da prisão domiciliar. Em tal modalidade de prisão a pessoa deve se recolher em sua residência e só poderá dela ausentar-se com autorização judicial. As instâncias originárias anteriores indeferiram a pretensão pela ausência de comprovação da real necessidade da presença materna para exercer os cuidados com os filhos, decisão que também foi adotada pelo relator do habeas corpus impetrado perante referida corte de justiça.1 A 5ª Turma, no entanto, encarregada do julgamento, concedeu a prisão domiciliar à mulher por entender que o crime não foi praticado contra os filhos, não teve emprego de violência ou grave ameaça e, também por razões humanitárias, não há necessidade da comprovação da presença materna em favor dos filhos, vez que, in casu, ocorre a presunção da necessidade do acompanhamento materno. O Código de Processo Penal brasileiro estabelece no artigo 318, V a viabilidade da substituição da prisão preventiva pela domiciliar para a mãe com filho até 12 anos de idade incompletos. A lei  13.769/2018, por sua vez, estabelece a possibilidade da substituição da prisão preventiva por prisão domiciliar à mulher gestante ou que for mãe ou responsável por crianças ou pessoas com deficiência. No mesmo diapasão a lei 13.257/2016, que dispõe sobre políticas públicas para a primeira infância. Percebe-se, claramente que a legislação penal vem recebendo forte influência do instituto conhecido como razões humanitárias que, originariamente, tratava de desastres naturais, pandemias, deflagração belicosa entre nações, o drama dos refugiados e outras causas que representam a vulnerabilidade intercorrente dos povos,  e que têm por objetivo a ação solidária de um ou mais países para acudir de forma emergencial as pessoas que necessitam de apoio, abrigo, alimentação e acolhimento. Na sociedade contemporânea o instituto experimentou um alargamento e passou a compreender também, no campo jurídico, um sentimento diferenciado, individualizado e atrelado ao princípio da dignidade da pessoa humana. A boa hermenêutica recomenda ao intérprete que retire do texto legal, por mais diminuto que seja, o máximo de benefício para o cidadão. Assim é papel do julgador não se apegar com severidade à norma e sim, em casos em que há a efetivação de um direito em conflito, que faça prevalecer uma sensibilidade extremada em busca de uma solução que não se afaste dos parâmetros legais e sim que possa suavizá-los com uma recomendada dose de humanidade. Coloca-se na balança, de um lado, a aflição e a angústia de uma mãe segregada de seus filhos e, de outro, a necessidade natural da convivência e assistência materna, cuja ausência para eles é incompreensível e pode provocar até mesmo trauma psicológico, que o pêndulo da justiça irá apontar o bem-estar das crianças como o fator mais relevante. A razão humanitária, desta forma, vem ganhando espaço no âmbito do Judiciário que não deixa de aplicar a regra prevista para determinada conduta. Mas dá a ela uma modulação mais abrangente considerando a pessoa humana em toda sua dimensão jurídica e, principalmente, ofertando maior atenção para a dignidade consagrada constitucionalmente. Quer dizer, focar o ser humano como um ente participante de uma comunidade e conferir a ele a proteção que for necessária para a efetivação de um direito social mais relevante do que a restrição apontada legalmente. Nenhuma dúvida de que a decisão comentada seguiu rigorosamente a interpretação mais consentânea com a mens legis. Na realidade, o que se busca é a proteção, a tutela mais adequada para as crianças e a presença materna torna-se indispensável. A própria natureza humana recomenda a convivência dos pais com os filhos, principalmente aqueles mais novos e que carecem do afeto familiar. Neste sentido é o pensamento que norteou o Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/90), que conferiu à criança o gozo de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, além dos demais relacionados com a sua proteção integral. Referido estatuto menorista explicitou ainda em seu artigo 6º:  Na interpretação desta Lei levar-se-ão em conta os fins sociais a que ela se dirige, as exigências do bem comum, os direitos e deveres individuais e coletivos, e a condição peculiar da criança e do adolescente como pessoas em desenvolvimento. A coerência da lei que protege os interesses dos menores é tamanha que, no caso presente, na ausência da figura materna e se o pai fosse o responsável pelos cuidados dos filhos até 12 anos de idade, seria ele contemplado pela prisão domiciliar humanitária, conforme se observa da regra disposta no artigo 318, V, do Código de Processo Penal. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 14 de agosto de 2022

A vez do pai solo

Visando a mais completa proteção à criança, a licença paternidade foi criada para os trabalhadores com carteira assinada e funcionários públicos federais, com alcance aos estaduais e municipais, desde que sejam contemplados pela devida aprovação das casas legislativas. Tal benefício confere ao pai o afastamento por cinco dias a partir do dia seguinte do nascimento do filho e, se a empresa for cadastrada no programa Empresa Cidadã, computa-se a prorrogação por mais 15 dias. O mesmo abono é concedido em caso de adoção. O modelo de família delineado na Constituição Federal vem sofrendo constantes alterações - com a inclusão de novas configurações da entidade familiar - obrigando a Justiça a fazer a devida adequação, levando-se em consideração a total preferência e assistência integral à criança, que tem o direito da presença dos pais logo após o nascimento, justamente para alicerçar o vínculo familiar que se inicia. Basta ver que caiu por terra a definição restrita de família como sendo o núcleo compreendido na união do homem e da mulher. O Supremo Tribunal Federal reconheceu, pela ADIn 4.277/DF e pela Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132/RJ, a plena igualdade em direitos e deveres dos casais heteroafetivos e homoafetivos. Nesta linha de pensamento é possível que um servidor público, com a intenção de constituir uma família monoparental, procure uma clínica de reprodução assistida para realizar o procedimento de fertilização in vitro com a consequente utilização de maternidade substitutiva - plenamente regulamentada pela Resolução do Conselho Federal de Medicina 2294/ 2021 - e consiga êxito em seu intento, gerando um filho pela opção pai solo. A mulher que cedeu temporariamente o útero, sem qualquer fim lucrativo ou comercial, e sim guiada pela solidariedade familiar, deu sua adesão à empreitada com a plena convicção de que não teria qualquer comprometimento com a criança. Daí resta ao pai, unicamente a ele, conferir toda a carga afetiva ao filho, assim como cumprir todas as responsabilidades legais ante a ausência da figura materna. Apesar do exemplo pouco comum, mas concretamente possível, é de se indagar se, na específica situação, o pai solo terá o direito de ser beneficiado pelo mesmo prazo previsto na licença maternidade. A construção jurídica é interessante e caminha por via pavimentada pela Hermenêutica, que busca a melhor interpretação do texto legal, desprezando a letra fria da lei, mas buscando sua finalidade última e primordial como um instrumento para compreender a ação humana em toda sua dimensão e fazer o ajuste conveniente e adequado. O projeto de procriação solo impõe ao pai o mesmo dever e atenção que seriam exigidos da mãe, se presente. O que se leva em consideração, já que o procedimento de reprodução nesta modalidade é permitido, é buscar o melhor interesse da criança, além de prestigiar a paternidade responsável. Não se deve levar em conta a forma pela qual ocorreu o nascimento da criança e sim que ela necessita da presença do pai, único responsável pelo exercício da parentalidade. A licença, in casu, deve sim ser conferida a ele que representa a família monoparental, nos mesmos moldes da licença maternal de 180 dias, em se tratando de servidor federal. Caso idêntico foi julgado recentemente pelo Supremo Tribunal Federal que, por votação unânime, julgou pela constitucionalidade da extensão da licença maternidade: "Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos artigos 5º, I, 7º, XVIII, 37, 195, § 5º, 226, § 8º, 227, § 6º e 229 da Constituição Federal, a possibilidade ou não de estender o benefício de salário maternidade pelo prazo de 180 dias, previsto no artigo 207 da Lei 8.112/1990, ao pai solteiro de crianças geradas através de procedimento de fertilização in vitro e utilização de barriga de aluguel, por analogia à Lei 12.873/2013, ante a ausência de previsão expressa na Constituição Federal ou na legislação infraconstitucional de regência, e da necessidade de fonte de custeio para suportar a extensão do benefício".1 O Direito - como um tecido social móvel - não deve andar a passos miúdos e sim acompanhar a dinâmica da sociedade, imbuído de um pensamento arguto para envolver as pessoas na contextualização mais adequada para a vivência social e, por outro lado, não deve conter e nem refrear o recomendado desenvolvimento técnico-científico e sim direcioná-lo para proporcionar mais benefícios para a humanidade. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 7 de agosto de 2022

I-Juca-Pirama e o 11 de agosto

Cursava o 5º ano de Direito na Faculdade de Direito de Bauru, no ano de 1975, da Instituição Toledo de Ensino. No último ano você olha para trás para ver o que foi feito e, ao mesmo tempo, com sérias preocupações, divisa seu futuro muitas vezes incerto, provocando a normal insegurança. Muitos colegas chegam carregados de planos no primeiro ano e com o passar do tempo vão aliviando o fardo, despejando-o pela estrada acadêmica, juntamente com suas frustrações. Os que vencem todo o percurso chegam eufóricos e encontram inúmeros motivos para comemorar. Naquele ano, por ser o derradeiro, alguns colegas de rotineira convivência, incluindo-me, resolveram dar a cartada final no tradicional dia da pendura. Conversa de cá, conversa de lá, sem celular, é claro, as sugestões foram aparecendo e frequentando a galeria das preferidas. Até que, em plena sessão solene na sala de aula, ficou definido o local: G Petisco, uma lanchonete e restaurante tradicional, como o trote, e com ele familiarizado. Frequentada na maioria das vezes por estudantes de várias faculdades, de quando em quando superlotava, obrigando a moçada a aguardar em grupos na calçada, sem prejuízo das rodadas de cerveja. Dia 11 de agosto era na segunda-feira e "cabulamos" as aulas de Direito Civil e Processo Penal, esta última do inesquecível Fernando Tourinho. Ocupamos uma mesa estratégica e dali divisávamos todos os ambientes do restaurante. A noite caía gostosa com o calor típico do interior. O garçom - que tinha um apelido interessante mas de que não me lembro mais - servia com satisfação nossa turma, que contava com dez bons entusiastas de chope. Depois de muita escolha, apontamos os pratos que nos apeteciam. E assim foi rolando a comemoração, todo mundo comendo, bebendo e tínhamos a impressão de que os demais frequentadores que lá se encontravam eram alunos de Direito. Lá pelo final da noite, todos já satisfeitos, um representante do nosso grupo chamou o gerente à mesa e explicou que comemorávamos o dia da fundação dos cursos jurídicos no país, daí que, em razão da isenção concedida pelo Imperador D. Pedro I, já transitada em julgado, não iríamos pagar a conta.  O gerente já se antecipou parabenizando-nos, mas dizendo que nada tinha a ver com a data. Propusemo-nos, então, a fazer um discurso típico da nossa área falando a respeito de direito ambiental, que começava a aflorar naquele período, ou uma saudação a todos os presentes, elogiando e referendando o restaurante. Pior ainda. Não só o gerente, mas os garçons com as bandejas fincadas nos braços, já assumiram seus postos formando uma espécie de frente de ataque. Os frequentadores, que por nosso azar não eram estudantes de Direito, fizeram o cerco do outro lado e abraçaram a causa do restaurante. Sentimo-nos acuados, como os espartanos. Todo o ensinamento do Direito despencou sobre nossas cabeças, num repente. Neminem laedere, suum cuique tribuere, honestae vivere, de Justiniano, que decoramos pela insistência do professor de Direito Civil e que compunham a Digesta, recomendava outra estratégia porque já sentíamos o amargo gosto de sermos conduzidos à delegacia de polícia, que ficava bem próxima. Situação indigesta, na certa. Parece que a deusa Themis veio em nosso socorro. Um cidadão, que a tudo assistia e sabia que nosso espírito não era o de cometer um ilícito, mas de dar continuidade a um ritual que se transformou em tradição, levantou-se e discursou de forma pausada e convincente em favor da nossa causa, arrancando aplausos de todos os frequentadores. Conseguiu até que os garçons abaixassem a guarda e abandonassem as bandejas, numa demonstração de rendição. Mas não parou por aí. Acrescentou que, como se tratava de uma comemoração acadêmica, tinha que ser coroada com algo significativo. Propôs, então, que nosso grupo recitasse, lendo, é claro, o poema indianista I-Juca Pirama, que soma 484 versos decassílabos e alexandrinos, além de 10 cantos de Gonçalves Dias e, em contrapartida, o gerente cobraria somente a metade do valor da conta. Proposta aceita.  Abriu sua pasta e retirou o livro que trazia a poesia e cada um tomava seu lugar sobre a mesa e deliciosamente recitava seu canto. Assim foi feito e o início daquela madrugada se tornou em verdadeiro sarau literário. Aplausos e mais aplausos pela exibição em que um colega procurava interpretar melhor que o outro. Teve um que, quando entoou "...Sou bravo, sou forte/Sou filho do Norte/Meu canto de morte/ Guerreiros, ouvi", ameaçou um tom melancólico na voz, seguido de uma pequena lágrima que insistia em cair, mas rapidamente foi contida. A conta foi paga com satisfação e a isenção atingiu também o interveniente frequentador, que se apresentou como professor de literatura de um cursinho preparatório para vestibulares. Ganhou o apelido de Santo Ivo. Saímos felizes com a nossa última comemoração e com a sensação do dever cumprido, por manter a tradição. No caminho para a república, um dos colegas exibiu gloriosamente uma faca de mesa alegando que a subtraíra do estabelecimento. "Garfei uma faca", dizia ele cantando em voz alta e todo sorridente, pensando que contaria com o apoio da turma. Imediatamente voltamos ao bar e humildemente pedimos as devidas desculpas ao gerente, entregando a ele a tal da res furtiva. O gerente olhou atentamente para o utensílio, foi até a cozinha e retornou afirmando com convicção que a faca não era do estabelecimento, pois não fazia parte de nenhum dos cinco jogos que utilizavam. Mesmo assim, elogiou a honestidade do grupo, com a certeza de que tudo não passava de um engano. E entregou a faca. Até hoje não sei se a faca não era mesmo do restaurante...
domingo, 31 de julho de 2022

Novas regras para a alteração do nome

O nome da pessoa é uma das formas da manifestação do direito da personalidade, assim inscrito no Capítulo II do Código Civil, compreendendo o prenome e o sobrenome ou o nome patronímico familiar, que serão transmitidos na incessante cadeia de pai para filho. É de se observar que o prenome é geralmente um nome simples ou composto que antecede o nome de família. O sobrenome traz a identificação da filiação, da família, sempre relacionado com a ascendência e será transmitido para as futuras gerações. Também pode ser incorporado quando se tratar de adoção e casamento. Diferente do agnome, que tem uso interno na própria família e não se transmite posteriormente, como é o caso de Filho, Sobrinho, Neto, Primeiro, etc. A Lei 6015/1973, conhecida como Lei dos Registros Públicos, por longos anos, vem estabelecendo as regras para o registro civil de pessoas naturais, reconhecendo de forma explícita a emanação da personalidade humana e a consequente tutela protetiva. Recentemente, no entanto, seguindo o pensamento não só da celeridade, como também da modernização e flexibilização dos atos registrais, experimentou profundas reformas dos artigos 55 a 57 a respeito de novas regras de alteração do nome da pessoa, introduzidas pelas recente lei 14.382/2022. Referida Lei, que é proveniente da MP 1085/2021, criou o Sistema Eletrônico dos Registros Públicos - SERP - órgão que irá conectar todos os serviços relativos aos registros públicos de atos e negócios jurídicos, em formato eletrônico. Todas as informações deverão ser implantadas até 31 de janeiro de 2023. A imutabilidade do nome, antes admitida somente em restritas hipóteses, com sequenciais aberturas jurisprudenciais a respeito, foi ganhando uma elasticidade maior e o procedimento, que anteriormente era feito perante o juízo cível, agora pode ser realizado administrativamente perante o Cartório de Registro Civil. A esse respeito, a título de atualização, seguem algumas alterações relevantes, que merecem ser propagadas para a comunidade em geral. É possível alterar o nome e o prenome do filho até quinze dias após a lavratura do registro, desde que haja o consenso entre os genitores, representantes que são do poder familiar. O prenome poderá ser modificado pelo interessado quando completar dezoito anos de idade ou a qualquer tempo após o marco da maioridade civil. Se, por acaso, tratar-se de pessoa emancipada, não poderá praticar o ato e terá que aguardar o prazo etário legal. Exige-se a presença do interessado perante o registrador civil, em razão de ser um ato intuitu personae e não há necessidade de justificar a pretensão. O ato da averbação perante o registrador pode ser praticado em uma só oportunidade. Se ocorrer arrependimento do interessado, o desfazimento do ato somente poderá ser pleiteado em processo judicial. Pode também ocorrer a alteração posterior de sobrenome perante o oficial de registro civil, sem qualquer intervenção judicial, desde que os interessados apresentem os documentos necessários para a averbação nos assentos de nascimento e casamento, quando se tratar de: a) inclusão de sobrenomes familiares; b) inclusão ou exclusão de sobrenome do cônjuge, na constância do casamento;  c) exclusão de sobrenome do ex-cônjuge, após a dissolução da sociedade conjugal, por qualquer de suas causas; d) inclusão e exclusão de sobrenomes em razão de alteração das relações de filiação, inclusive para os descendentes, cônjuge ou companheiro da pessoa que teve seu estado alterado. Os conviventes em união estável - desde que o ato seja apontado no registro civil de pessoas naturais - poderão requerer a inclusão do sobrenome de seu companheiro, a qualquer tempo, bem como alterar seus sobrenomes nas mesmas hipóteses previstas para as pessoas casadas.  Em caso de desfazimento da sociedade, o nome de solteiro ou de solteira do companheiro ou da companheira poderá ser utilizado por meio da averbação da extinção da união estável em seu registro.   Outra inovação importante reside na faculdade de o enteado ou a enteada, se houver motivo justificável, requerer ao oficial de registro civil que, nos registros de nascimento e de casamento, seja averbado o nome de família de seu padrasto ou de sua madrasta, desde que haja expressa concordância destes, sem prejuízo de seus sobrenomes de família. Apesar de nada constar a respeito da alteração do prenome da pessoa transgênera há, a propósito, a decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na ADIN 4275/2018, possibilitando a alteração no registro civil de transgênero, sem cirurgia de redesignação social ou laudo psicológico. Logo na sequência, o Conselho Nacional de Justiça publicou o Provimento nº 73/2018, que dispõe sobre a retificação do referido registro para alterar o nome e o marcador de gênero nos assentos de nascimentos. Percebe-se que, doravante, os serviços prestados pelos cartórios públicos assumem uma dimensão incomensurável encerrando, definitivamente, os volumosos livros de escrituração e introduzindo tecnologia de ponta, ancorada na realidade virtual para mudar radicalmente toda a estrutura de atendimento com a oferta de um serviço rápido, de acesso universal e de custo módico.
domingo, 24 de julho de 2022

Tatuagens e piercings em animais?

Os animais, com especial relevo para aqueles que participam diariamente do convívio com os seres humanos - quer seja para companhia ou até mesmo para a guarda domiciliar - gozam dos olhares generosos dos nossos legisladores. A causa animal assume um formato defensivo e a tutela vai se ampliando cada vez mais. O convívio entre o homem e o animal revela-se uma harmonização perfeita, um estreitamento que coloca o afeto em primeiro plano, de forma que esta interação vai refletindo com maior intensidade e, em consequência, elevando cães e gatos à categoria de seres sencientes, dotados de emoção e sentimento. Tanto é que o especismo, recentemente, foi elevado à categoria de crime pelo acréscimo feito ao art. 32 da lei dos crimes ambientais, punindo severamente a prática de abuso, maus-tratos, ferimentos ou mutilação a esses animais, com a aplicação de pena de reclusão de dois a cinco anos, multa e proibição da guarda do animal. Nos Estados Unidos a tatuagem em cães passou a ser considerada uma projeção da vontade do seu proprietário ou até mesmo uma alternativa diferenciadora de acessório. No Brasil os inúmeros pets atestam que a tendência do brasileiro é cuidar bem de seus animais, não só no item alimentação, como também na higiene e estética, mas não há ainda proibição com relação à tatuagem e aplicação de piercings. A comissão de Constituição e Justiça do Senado Federal aprovou o projeto de lei 4.206/20, de autoria do deputado Fred Costa (Patriotas/MG), que proíbe a aplicação de piercings e tatuagens em cães e gatos com a finalidade estética, com acréscimo de um parágrafo à lei 9.605/98, estabelecendo a pena de três meses a um ano de detenção e multa a quem realiza ou permite realizar tais práticas estéticas. O texto agora segue para a votação do plenário. É de se observar, no entanto, que tal prática não alcança os procedimentos realizados com a finalidade de identificação ou até mesmo de rastreabilidade do animal - cujo manejo é simples e não acarreta estresse ou sofrimento desnecessário a ele - e sim demonstra responsabilidade dos tutores para os casos de desaparecimento, com larga chance de sua localização. Além do crime de maus tratos previsto na lei dos crimes ambientais, o conselho Federal de medicina veterinária, pela resolução 877/08, proíbe a realização de cirurgias consideradas desnecessárias ou que possam impedir a capacidade de expressão do comportamento natural da espécie. E reside neste contexto a nova proposta legislativa. O status atribuído aos animais como seres sencientes, sujeitos de direitos despersonalizados, dotados de natureza emocional e passíveis de sofrimento, conforme foi reconhecido recentemente pela lei 14.064/20, faz ver que os animais abandonaram definitivamente a incômoda classificação a eles atribuída pela lei 9.605/98 e pelo CC/02, que os consideravam bens móveis. Basta ver que, em recente decisão proferida pela 7ª câmara Cível do TJ/PR, foi reconhecido, por unanimidade, o direito dos animais de figurarem como autores de ações judiciais visando pleitear o que a lei faculta, desde que corretamente representados1 É totalmente inadequado qualquer procedimento de origem estética e que venha acarretar sequelas ao animal, principalmente quando afeta o comportamento natural da espécie. Modificar a originalidade constitutiva do animal para que o homem possa satisfazer seus caprichos, formatando-o externamente de acordo com sua intenção, é uma verdadeira ação desumana. Não se trata do exercício de um direito sobre uma propriedade exclusiva porque a própria lei elaborada pelo humano traz as obrigações de cuidado e zelo pelos animais. O homem, como agente moral, não pode se reservar ao direito de dispor do animal ao seu bel prazer e sim respeitar o valor intrínseco da criatura convivendo com ela de acordo com sua natureza, nos limites do bem estar recomendado. Sábios os conselhos proferidos por D'Agostino propondo um relacionamento de benevolência que se extrai das teorias dos direitos dos animais e as relações com os humanos: "Ao pregar a extensão da benevolência a todos os seres que têm sensibilidade, acalmam as consciências; como podemos ser malvados, se estamos perorando em favor da causa dos direitos dos animais? Como podemos temer pelo futuro do homem, se nos responsabilizamos também pelo futuro das outras espécies? O que pode existir de inquietante numa ética que renuncia a postular deveres absolutos, quando se trata de uma ética que perora a defesa das criaturas mais fracas? Bons sentimentos, certamente."2 _____ 1 Disponível aqui. 2 D'Agostino, Francesco. Bioética segundo o enfoque da filosófica do Direito. Tradução de Luísa Rabolini São Leopoldo, RS, Basil, 2006, p. 266.
domingo, 17 de julho de 2022

A conceituação do estupro

A norma penal, a exemplo da dinâmica social, com o passar do tempo, vai experimentando novos ajustes visando fazer a perfeita adequação com a necessidade da coletividade, sua destinatária principal. Às vezes é recomendável burilar parcialmente um artigo de lei em virtude do desgaste do seu tempo de vigência - contemporizando-o com a realidade social -; outras, de forma irremediável, extinguir em definitivo o caráter criminoso do fato com a vigência de uma nova lei que o torna atípico (abolitio criminis) e a consequente aplicação da causa extintiva de punibilidade. O crime de estupro praticado pelo médico anestesiologista, noticiado pela imprensa nacional, além da conduta ignóbil que causou repúdio e comoção, por figurar como vítima uma mulher sob efeito de anestesia e em trabalho de parto, provocou dúvidas conceituais, principalmente para os jejunos em Direito, a respeito da tipificação do ilícito praticado. Daí que a proposta não é a analisar a conduta do profissional e sim a adequação típica aderente a ela. O crime de estupro em sua origem, acompanhando sua etimologia (stuprum), carrega duas vertentes em sua definição. A primeira relacionada com a desonra, a vergonha de uma pessoa e a segunda atrelada à agressão sexual para atingir o coito forçado. Esse último conceito prevaleceu e ficou sedimentado para as pessoas comuns que no estupro obrigatoriamente deveria ocorrer a conjunção carnal entre homem e mulher, mediante violência. Porém, nem sempre a vontade popular coincide com a do legislador. Tanto é que tal conceito não é compartilhado por ele que, deliberadamente, inseriu no tipo penal também a prática de outro ato libidinoso, diverso da conjunção carnal. O Código Penal, que é de 1940, sofreu profundas alterações introduzidas pela Lei 12.015, de 07 de agosto de 2009, principalmente nos crimes contra os costumes, agora denominados crimes contra a dignidade sexual. Novas figuras típicas foram inseridas na formatação penal, dentre elas a junção dos delitos de estupro e atentado violento ao pudor. Pela nova lei incriminadora o núcleo do tipo vem revelado pelo verbo constranger, como era anteriormente, porém, "alguém" e não mais a mulher. Ficou definido da seguinte forma: "Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso". O "alguém" passa a ser o homem ou a mulher. Desta forma o crime de estupro ganhou uma dimensão mais dilatada pois incorporou ao seu tipo o crime de atentado violento ao pudor. É de se observar, no entanto, que se um homem tocar as nádegas ou os seios de uma mulher, sem o dolo recomendado pela conduta, não estará praticando o crime de estupro, sendo até temeroso fazer a subsunção da norma ao fato nesta situação peculiar. Por isso o legislador, com a intenção de minimizar a conduta, criou um tipo penal intermediário, previsto no artigo 215-A do Código Penal, que é o da importunação sexual: praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro. Ao lado do estupro convencional, cuja pena é de seis a dez anos de reclusão, o legislador criou outro, denominado estupro de vulnerável. Consiste na prática de conjunção carnal ou outro ato libidinoso com menor de 14 anos ou contra pessoa que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência. A vulnerabilidade, em uma conceituação mais apropriada ao Direito, vem a ser aquele estado que, em razão da idade e de algumas circunstâncias permanentes ou temporárias, a pessoa se vê impossibilitada de exercer os seus direitos em igualdades de condições com as demais. Necessita, portanto, de um cuidado especial do legislador para que possa se equiparar às demais pessoas e, a partir daí, sem qualquer tipo de assistencialismo ou ações paternalistas, possa desenvolver suas capacidades e competências. No caso específico, tem total aplicação ao caso ora examinado, a expressão "qualquer outra causa" referida pelo legislador, pois a parturiente estava sob efeito de anestésico, fato que, por si só, demonstra sempre a incapacidade ou a fragilidade de alguém, motivada por uma circunstância momentânea. Nesse caso a pena é de oito a 15 anos
Os constantes e benéficos avanços que vêm predominando a área médica - não só com referência ao uso de tecnologias e tratamentos de ponta - inevitavelmente encaminharam o atendimento médico para a utilização das novas tecnologias digitais de informação e comunicação. O objetivo vai ao encontro da determinação encartada no disposto no artigo 196 da Constituição Federal, sedimentado também na estruturação do direito fundamental à saúde. Basta retroceder pouco tempo e observar que a decretação do estado pandêmico determinou a vigência da Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), levada a efeito pela lei 13.979/20, e abriu espaço para que o atendimento médico - a exemplo dos serviços educacionais - operasse na área digital com o intuito de romper distâncias e proporcionar um atendimento de qualidade para o paciente que necessitasse dos préstimos do profissional da saúde. Para tanto foi expedida a lei 13.989/20, que dispõe sobre o uso da telemedicina durante a pandemia provocada pelo coronavírus e confere ao Conselho Federal de Medicina a legitimidade para regulamentar a matéria. Ao mesmo tempo foi editada a Portaria GM/MS 467/20, que permitiu a telemedicina em caráter excepcional e temporário durante a pandemia. A experiência logrou êxito e a mencionada Portaria foi revogada pelo Ministério da Saúde que editou a de nº 1.348/22 regulamentando as ações, normas e critérios dos serviços de Telessaúde, de acordo com os princípios do Sistema Único de Saúde (SUS) e da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS). O Conselho Federal de Medicina, por seu turno, baixou a Resolução 2.314/22, com a necessidade de disciplinar o exercício profissional médico, incluindo no atendimento as boas práticas recomendadas ética e legalmente. Define a telemedicina como o exercício da medicina mediado por Tecnologias Digitais, de Informação e de Comunicação (TDICs), para fins de assistência, educação, pesquisa, prevenção de doenças e lesões, gestão e promoção de saúde e inaugura os canais de teleatendimentos médicos: Teleconsulta, Teleinterconsulta, Telediagnóstico, Telecirurgia, Telemonitoramento ou Televigilância, Teletriagem e Teleconsultoria. A medicina convencional, a que estabelece atendimento presencial como padrão de qualidade, continua sendo realizada e cabe aos médicos, no âmbito da sua autonomia, decidir se utilizam ou recusam a telemedicina, que se apresenta como um ato complementar. Tanto é que o atendimento médico a distância pode ser interrompido tanto pela opção do profissional como pela do paciente. No caso específico da teleconsulta, para que o atendimento seja feito com sucesso, é necessário - dentre outras providências inseridas nas normas deontológicas - a observância ao princípio da beneficência, assim como da autonomia da vontade e, com especial relevo, à guarda dos sigilos das informações. É forçoso afirmar até que a avaliação técnica a distância exige muito mais interação do médico com o paciente, além de prolongar o tempo da consulta para se alcançar uma decisão correta por parte do profissional. Pelo princípio da beneficência, tanto no atendimento presencial como no remoto, o médico deve ofertar ao paciente o cuidado que seja condizente com sua necessidade, adotar a melhor estratégia terapêutica e se empenhar em conferir a ele os mais variados tratamentos com as melhores e mais recomendáveis tecnologias, eliminando ou reduzindo eventual risco no momento presente e futuro, distanciando-se cada vez mais de danos que possam ser identificados. Enfim, é envidar todos os esforços, mesmo que seja por teleconsulta, para beneficiar o paciente com a qualidade do atendimento e tratamento proposto, com a mínima probabilidade de dano. É, na realidade, um verdadeiro ato médico centrado no paciente. Faz lembrar o já conhecido pensamento de Sir William Olser, um dos pais da medicina moderna: "É mais importante conhecer o paciente acometido por uma doença do que a doença que acometeu o paciente". O princípio da beneficência, desta forma, integra o atendimento a distância e é erigido como um dos sustentáculos da boa prática da ars curandi. O médico, responsável que é pelo crivo de aceitabilidade da modalidade do atendimento, deve antever se a prestação de serviço, sem a presença do paciente, terá condições de atingir os objetivos pretendidos e, principalmente, sem a redução dos benefícios. Outro requisito indispensável para o atendimento por teleconsulta é a obtenção do Termo de Consentimento Esclarecido do paciente ou de seu representante legal para a realização do atendimento, assim como sua permissão ou não para compartilhamento de suas informações que, de qualquer forma, poderão ser acessadas em caso de emergência médica. Cabe aqui também a observação no sentido de que o Conselho Federal de Medicina Veterinária (CFMV) editou a recente Resolução 1.465/22 liberando a teleconsulta para cães, gatos, outros pets e também para animais de grande porte. É indiscutível que o conhecimento científico proporcionado pela tecnologia de ponta consegue utilizar as ferramentas disponíveis para ampliar o acesso integral, igualitário e universal da saúde às áreas desassistidas e carentes de atendimentos especializados.
Quanto mais a humanidade vem se desenvolvendo e se aperfeiçoando no relacionamento entre profissionais da saúde e pacientes - com a elaboração de códigos deontológicos compatíveis com o alto nível do serviço prestado - parece que, em algumas situações, vai perdendo a razão. Há poucos dias um hospital de Santa Catarina recusou-se a praticar o abortamento em uma menina de 11 anos de idade, vítima de estupro, alegando que o procedimento não é recomendado após 22 semanas de gestação, de acordo com a publicação de uma Norma Técnica do Ministério da Saúde. A genitora da criança invocou a tutela judicial para obter a autorização quando, a contrario sensu, o pleito foi negado e a criança encaminhada para um abrigo, por determinação da Vara da Infância e Juventude. Somente após, com a recomendação do Ministério Público Federal, a menina retornou ao hospital, onde foi realizado o procedimento. Mais do que evidente que não foi observada a regra de que o aborto é permitido em caso de estupro - independentemente da idade gestacional -consoante determina o Código Penal, desde 1940. Já mais recente, a atriz Klara Castanho relatou que foi vítima de estupro, manteve a gestação e com o nascimento entregou a criança para a adoção. Ocorre que, quando ainda sob efeito da anestesia do parto, foi abordada por uma enfermeira que ameaçou divulgar para a imprensa o procedimento feito. A atriz não conseguiu interceptar a notícia e recebeu em seu celular mensagens de um colunista contendo todas as informações do ato médico e da entrega da criança para adoção. O COREN-SP - Conselho Regional de Enfermagem de São Paulo abriu procedimento para apurar possível infração ética praticada pela profissional de enfermagem.1 O MP/SP, por sua vez, informou estar investigando a ocorrência da violação de sigilo profissional imputada à enfermeira.2 Percebe-se, pelo relato feito pela atriz, que ocorreu uma quebra no vínculo obrigacional e profissional estabelecido entre a paciente e uma enfermeira que participava da equipe de atendimento. A paciente quando procurou pelos préstimos dos profissionais da saúde elegeu todos eles como depositários e guardadores de seu segredo, devidamente registrado em seu prontuário médico. A profissional da enfermagem, além de participar como integrante da equipe de saúde, tem como princípios o respeito à vida, à dignidade da pessoa e os direitos humanos, em todas as suas dimensões, além das salutares referências dos princípios da ética e da bioética. Tanto é que o Código de Ética dos Profissionais da Enfermagem - CEPE -, instituído pela Resolução Cofen nº 564/2017, é taxativo em seu artigo 52 quando dispõe no capítulo dos deveres do enfermeiro: "Manter sigilo sobre fato de que tenha conhecimento em razão da atividade profissional, exceto nos casos previstos na legislação ou por determinação judicial, ou com o consentimento escrito da pessoa envolvida ou de seu representante ou responsável legal." Ora, no caso comentado, o fato não era de comunicação compulsória, nem obrigado por determinação judicial e muito menos tinha a profissional o consentimento da paciente para fazer a revelação. A relação estabelecida entre os profissionais da área da saúde e a paciente, além de criar um vínculo obrigacional, vem acobertada pela confiabilidade que deve orientar as partes envolvidas. No instante em que a paciente narrou e confidenciou à equipe médica que foi vítima de estupro e, mesmo assim, queria ter a criança e entregá-la à adoção, elegeu-a como depositária e guardadora de seu segredo, permitindo a realização de exames clínicos, obstétricos e complementares para realizar o procedimento pretendido. Tais informações são imprescindíveis e devem ser utilizadas somente para providências em favor da paciente. Tamanha é a importância deste sigilo que, mesmo que o fato seja de conhecimento público ou até mesmo que a paciente tenha falecido, permanece vivo para sempre. Saindo da esfera ético-disciplinar e ingressando na esfera do Código Penal, em seu artigo 154 o legislador erigiu à categoria de crime a revelação, sem justa causa, de segredo de que o agente tenha ciência em razão de função, ministério, ofício ou profissão e cuja revelação possa produzir dano a outrem. É importante observar que a definição de segredo no Código Penal corresponde a todo fato cuja divulgação a terceiro possa produzir um dano para seu titular. A intenção da lei é fazer prevalecer a confiança pública depositada no profissional, justamente para que seu serviço possa ser executado com toda segurança, presteza, sem qualquer atropelo coativo. Preserva, desta forma, a vida privada e a intimidade da paciente, expressões blindadas pela Constituição Federal e o Código Civil para resguardar o foro íntimo como o asilo inviolável do cidadão. Assim, com a divulgação do segredo quebra-se o pacto convencionado entre as partes e a publicidade indevida passa a representar uma invasão à vida privada da paciente, acarretando não só a inconveniente investigação policial, o processo judicial e até mesmo todo o noticiário propagado na imprensa fazendo relembrar um triste episódio da sua vida. A atriz nada mais fez do que agir de acordo com sua consciência e contou para tanto com a cobertura legal. ______________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 
domingo, 26 de junho de 2022

Leitura jurídica do teste do pezinho

Ao longo do tempo é fácil constatar que a Medicina vem se dedicando para ampliar os cuidados com a prevenção primária, conforme recomendação da Organização Mundial da Saúde. No mesmo diapasão o direcionamento que se aninha na Constituição de 1988. Após considerar que a saúde é direito de todos os cidadãos e o Estado deve intervir obrigatoriamente como provedor, explicita que a saúde merece receber "atendimento integral, com prioridade para as atividades preventivas, sem prejuízo dos serviços assistenciais" (artigo 198, II). A inovação científica passou a frequentar com mais assiduidade os temas relacionados com a saúde humana, incentivando até mesmo a elaboração de políticas públicas, que compreendem desde a primeira infância até o envelhecimento da população. Basta ver que já é possível realizar o diagnóstico genético pré-implantacional dos embriões quando apresentarem alterações genéticas causadoras de doença. Neste caso poderão ser doados para pesquisa ou até mesmo descartados, com consentimento dos genitores. Assim como podem ser selecionados embriões HLA-compatíveis para transplante de células-tronco em irmão já afetado por doença grave, como é o caso da Anemia Falciforme. O rastreio neonatal, conhecido popularmente como "teste do pezinho", vem sendo realizado no Brasil desde 1970, com a finalidade de diagnosticar doenças graves em recém-nascidos. A Portaria 822/01 do Ministério da Saúde introduziu o Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), obrigando hospitais públicos e particulares a realizarem o exame. A recente lei 14.154/22, por sua vez, ampliou, e em muito, de seis para aproximadamente cinquenta diagnósticos de doenças que podem ser detectadas pelo exame. Trata-se de um procedimento simplificado em que a coleta de sangue será retirada do calcanhar do recém-nascido, entre o terceiro e o quinto dia de vida. Mesmo que o resultado seja positivo para alguma doença, há necessidade de exames clínicos e complementares. As doenças encontradas pela triagem neonatal - metabólicas, genéticas, enzimáticas e endocrinológicas - possibilitam a identificação precoce para que o paciente possa receber os tratamentos adequados, evitando, desta forma, o desagradável surgimento na vida adulta, quando já não será possível uma intervenção exitosa. Na realidade, se for bem observado, o homem, desde o seu nascimento, vive se prevenindo de doenças. Basta ver o controle vacinal oferecido a partir da mais tenra idade, sem levar em consideração ainda a eventual exigência quando ocorrer uma pandemia. O Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8069/90) dimensiona todo seu alicerce protetivo em torno de dois princípios: da proteção integral e do melhor interesse da criança. Esse último, apesar de ausente explicitamente do estatuto menorista, foi construído sobre sólida evolução hermenêutica dos direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, abrangendo também as crianças. Da junção dos dois princípios encontra-se o denominador comum da vontade do legislador, no sentido de que, além dos inúmeros outros direitos, difusos ou contextualizados, a saúde das crianças goza de prioridade e toda inovação que trouxer dividendos para o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual, em condições de igualdade e de dignidade, será bem recepcionada e amparada pelo princípio bioético da beneficência. Além do que, conforme determinação constitucional, é dever da família, sociedade e Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à saúde (art. 227 CF). Assim é que a lei menorista, em seu artigo 10, inciso III, foi taxativa ao determinar aos hospitais a obrigatoriedade de proceder a exames visando ao diagnóstico e terapêutica de anormalidades no metabolismo do recém-nascido, bem como prestar orientação aos pais. E no parágrafo primeiro, com o acréscimo determinado pela Lei nº 14.154/2021, foi incisiva em determinar que os testes para o rastreamento de doenças no recém-nascido serão disponibilizados pelo Sistema Único de Saúde, no âmbito do Programa Nacional de Triagem Neonatal (PNTN), na forma da regulamentação elaborada pelo Ministério da Saúde. Tamanho o interesse do legislador no cumprimento do procedimento que estabeleceu um tipo penal específico no artigo 229 do Estatuto da Criança e do Adolescente, com a pena de seis meses a dois anos de detenção. In verbis: Deixar o médico, enfermeiro ou dirigente de estabelecimento de atenção à saúde de gestante de identificar corretamente o neonato e a parturiente, por ocasião do parto, bem como deixar de proceder aos exames referidos no art. 10 desta Lei. Percebe-se, claramente, que a preocupação do legislador é fazer com que a criança, antes de deixar o hospital, seja submetida ao exame de triagem neonatal. Pode ser até que haja recusa dos genitores - como ocorre com certa frequência no calendário vacinal - mas os funcionários da saúde irão envidar todos os esforços para convencer os pais da necessidade de se fazer o exame, levando-se em consideração que a saúde integra os direitos fundamentais da criança, opondo-se até mesmo à discordância deles. O eventual conflito de interesse - dilema ético da decisão parental - não pode reverter em prejuízo da saúde do recém-nascido, pois além de quebrar a regra do melhor interesse, colide frontalmente com a melhor proteção integral a ser ofertada a ele, comprometendo as perspectivas de uma melhor qualidade de vida futura. Prevalece, de forma soberana, o princípio da beneficência járeferido, que canaliza toda a proteção e cuidados em benefício da criança visando atingir um resultado satisfatório sem a ocorrência de danos desnecessários. Se persistir a recusa, há necessidade de se invocar o auxílio do Conselho Tutelar e do Ministério Público para que sejam tomadas as medidas cogentes legais.
domingo, 19 de junho de 2022

Plantio da Cannabis para uso medicinal

A 6ª turma do Superior Tribunal de Justiça, por unanimidade, concedeu ordem de salvo-conduto - documento conferido pelo Judiciário para que a pessoa possa praticar determinada conduta sem correr o risco de ser presa ou impedida - para garantir a três cidadãos o direito de cultivar Cannabis sativa, vulgarmente conhecida como "maconha", com a finalidade exclusiva de extrair da planta óleo medicinal para ser utilizado em seu próprio benefício, sem qualquer intervenção ou proibição policial ou judicial. Na realidade, conforme se infere do teor decisório, o tema do julgamento está mais atrelado à área da saúde, porém, como não há uma regulamentação a respeito - a não ser a lei antidroga - o Judiciário é chamado para dirimir a questão. Também é de se deixar claro que a medida judicial tem validade somente para as pessoas que pleitearam o benefício, sem prejuízo de outros interessados escorarem no precedente jurisprudencial para invocar a tutela jurisdicional com a mesma finalidade. A Comissão de Narcóticos da Organização das Nações Unidas, acatando também a recomendação da Organização Mundial da Saúde, aprovou a reclassificação da Cannabis sativa da listagem de narcóticos considerados impróprios e perigosos para o homem e abriu espaço para sua utilização médica, exclusivamente.1 A Lei 11.343/06 (Lei de Drogas), que define os crimes relacionados com o tráfico de drogas e outros crimes afins, além de instituir o Sistema Nacional de Políticas Públicas sobre Drogas (Sisnad) , carrega um permissivo legal no parágrafo único do artigo 2º, que permite à União: "Autorizar o plantio, a cultura e a colheita dos vegetais referidos no caput deste artigo, exclusivamente para fins medicinais ou científicos, em local e prazo predeterminados, mediante fiscalização, respeitadas as ressalvas supramencionadas." A brusca autorização concedida pelo Tribunal, no sentido de desconfigurar a figura delituosa prevista na Lei de Drogas para uso medicinal, provoca imediata rejeição social, vez que os preceitos existentes - erigidos em valores hierarquizados e fincados em alicerces quase que intransponíveis - não permitem uma aceitação e assimilação do pretendido uso. Faz-se necessário um esclarecimento popular convincente no sentido de orientar a população de que a extração do canabidiol, componente sem qualquer efeito alucinógeno, faz com que a planta perca sua capacidade de provocar prejuízo ou dano à cognição humana. E sim que, pelas mais atuais pesquisas científicas, o princípio ativo THC da Cannabis sativa vem conseguindo bons resultados em busca de novas e melhores alternativas para o homem. Tudo indica que, pelo caminho exitoso já percorrido, serão desbravados novos espaços com descobertas que irão ultrapassar os limites até então fincados pela ciência e que trarão  dividendos favoráveis à saúde humana. Muitos países, principalmente aqueles que desenvolvem linhas de pesquisa nesta área, liberaram o uso medicinal da maconha, mormente na redução das crises convulsivas, com razoável margem de segurança e boa tolerabilidade, sem relatos de efeitos alucinógenos ou psicóticos. A Argentina, há pouco tempo, regulamentou uma lei de 2017 e legalizou o plantio e cultivo da maconha medicinal, e também permitiu às farmácias venderem aos interessados óleos e cremes feitos a partir da planta, desde que se cadastrem em um programa vinculado ao Ministério da Saúde. A Resolução do Conselho Federal de Medicina 2.113/14, por sua vez, aprovou o uso compassivo do canabidiol para tratamento de epilepsia em crianças e adolescentes. Recentemente, uma associação em São Paulo, composta por pacientes que fazem tratamento à base de derivados da cânabis, ingressou com um pedido de habeas corpus coletivo, juntando aos autos laudos médicos que comprovam a necessidade da utilização da planta, pleito que foi julgado procedente.2A fundamentação legal foi lastreada na comprovação da utilização das substâncias extraídas da maconha para tratamentos contra epilepsia, dores crônicas, autismo e doença de Parkinson, além da efetiva proteção aos direitos à vida e à saúde, englobados na esfera da dignidade da pessoa humana. Com tal aparato judicial os associados não poderão ser presos em flagrante delito no cultivo da referida planta. Ora, se há comprovação científica a respeito da utilização do canadibiol, assim como já foi ultrapassada a linha de pesquisa que estabelece um patamar de segurança e tolerabilidade, a recomendação que se faz é para apoiar todas as possibilidades que tragam benefícios de saúde para o homem. A utilização medicinal, pela sua complexidade, apesar de receber o placet da justiça, merece uma atenção mais abrangente com a participação do Legislativo - que já aprovou o Projeto de Lei 399/15 regulamentando o plantio e o uso medicinal da planta e já se encontra no Senado Federal - do Executivo e da própria comunidade, essa última a tudo assistindo de forma amadora, visando autorizar a utilização do canadibiol, assim como suas regras, exigências e, principalmente, a garantia de que o plantio terá como finalidade o combate às doenças especificadas nos receituários médicos. _______________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
domingo, 12 de junho de 2022

Planos de saúde e o rol taxativo

O Superior Tribunal de Justiça, em julgamento aguardado com muita ansiedade pelos beneficiários dos planos de saúde, por seis votos a favor e três contra, decidiu que as operadoras podem recusar a cobertura de procedimentos que não estão incluídos na listagem da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), concluindo, definitivamente, que o rol de benefícios é taxativo e não exemplificativo, conforme entendimento judicial dominante por mais de duas décadas nos tribunais. Referida decisão causou indignação e perplexidade para a comunidade brasileira que se sentiu, de repente, apequenada diante da restrição imposta, vendo seus direitos rolando montanha abaixo, qual Mito de Sísifo, de Camus, revelando que todo o esforço empreendido e toda a conquista alcançada de nada valeram. A interpretação dada pelo Tribunal, levando-se em consideração o equilíbrio atuarial das operadoras e seguradoras que terão melhores condições de ofertar um serviço de qualidade com preços mais acessíveis - abraçando a pretensão dos grupos empresariais que operam os planos de saúde - com o devido respeito, cai por terra diante da realidade social. Direito é uma ciência de interpretação. Os fatos são encaminhados para o Judiciário para julgamento e retornam com a entrega da prestação jurisdicional. É certo que a lei delimita a pretensão e a própria atuação do órgão jurisdicional. Mas a lei - como um cânone que vai nortear a vida em sociedade - não deve ser vista em sua estreiteza e sim na dimensão de encontrar a mens legis que norteou o legislador. Muitas vezes o texto que está sendo interpretado apresenta-se com determinada roupagem externa, porém, em seu interior, reflete muito mais do que aquilo que ostenta. Se o operador do direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia, pereat mundus. Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano com seu Corpus Juris. Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que até mesmo, originariamente, não estavam contidas na mens legis. E a ciência hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. "Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma) afirmamos a existência de dois atos: um que dá a norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo".1   O rol exaustivo, taxativo que serviu de alicerce para a decisão do Tribunal, é revelador de uma situação que não permite diálogo e fecha a comporta judicial para a apreciação de qualquer pedido que não se encontre alistado no referido catálogo de serviços. Em total confronto com o próprio texto constitucional que, em abrangência praticamente ilimitada no artigo 196, proclama: "A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação." E tal obrigatoriedade alcança também a iniciativa privada complementar ao Sistema Único de Saúde, desde que siga rigorosamente as diretrizes traçadas pelo poder público (art. 199, § 1º, CF). A limitação imposta na referida decisão atinge todas as pessoas acobertadas pela proteção conquistada e garantida reiteradamente pelos tribunais. O que faz surgir a limitação de um direito tão amplamente exercido anteriormente e, principalmente, em prejuízo dos mais vulneráveis, que se apegavam a uma pequena abertura existente ainda. A realidade e a necessidade social são fatos que devem ser analisados juntamente com a norma, uma vez que o destinatário é o cidadão que necessita de serviços médicos. Além do que, com o avanço imensurável da medicina, várias doenças novas e raras serão desvendadas e o tratamento, com toda a certeza, não fará parte do rol exaustivo, pois serão analisadas e, se aprovadas, incluídas no prazo de 180 dias, prorrogáveis em mais 90. Na vigência do rol expansivo ou exemplificativo poderia se encontrar um paradigma existente na relação das doenças e que fosse mais próximo da moléstia com a possibilidade de pleitear autorização judicial para gozar do novo benefício pretendido. "A norma jurídica, com precisão adverte Bittar, se extrai da vivência social e para ela se dirige, reativa-se na medida em que é usada, em que é manipulada, vista, sentida, conhecida e interpretada."2 Os romanos, com sabedoria peculiar, proclamavam pelo aforismo summum ius summa iniuria que todas as vezes em que o Direito se apegar exclusivamente à pura expressão literal dogmática, por melhor que seja a intenção, irá abrir margem para uma grande injustiça. _____________ 1 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 2006, p. 72. 2 Bittar, Eduardo Carlos Bianca. Linguagem jurídica. São Paulo: Saraiva, 2009, p.154.
domingo, 5 de junho de 2022

Direito à educação após a pandemia

A pandemia acarretou diversos danos à humanidade atingindo, de uma só vez, inúmeras áreas de atuação do ser humano, assim como acelerou drasticamente o número de óbitos em razão da contaminação da Covid-19. O sistema educacional do país, como não poderia deixar de ser em razão da ausência da população discente das salas de aulas, também experimentou um prejuízo que não será recuperado em curto espaço de tempo. Se, de um lado, a pandemia provocou um marco infindável de prejuízos para a educação, de outro descortinou a vulnerabilidade educacional e abriu espaço para repensar medidas urgentes para mudar o curso de um projeto que já se arrastava com dificuldade e muitas vezes dava sinais de estagnação com práticas incompatíveis com o tempo atual. Com a decretação do término do estado pandêmico, é hora de buscar sugestões transformadoras que tenham o potencial para alavancar o projeto educacional para patamares mais adequados e sustentáveis. O princípio da dignidade da pessoa humana - erigido como sustentáculo do Estado Democrático de Direito na Constituição Federal - confere a cada cidadão o direito à sua realização pessoal, profissional e social, com ampla abrangência no direito educacional inclusivo e reconhece, de acordo com a realidade atual, a necessidade de se buscar plataformas confiáveis como instrumento da expressão dos saberes. As tecnologias digitais, mesmo improvisadas e até distribuídas de forma desigual, ofereceram um painel positivo e constataram que a difusão do conhecimento é de vital importância para a humanidade. A restrição imposta pelo período pandêmico de segregação sinalizou que as ferramentas tecnológicas possibilitam um grande salto para se buscar uma educação de transformação para crianças, jovens e adultos, possibilitando, desta forma, um novo contrato social para a educação, como propõe o Relatório da Comissão Internacional Sobre os Futuros da Educação, editado pela UNESCO, em 2021. As propostas contidas no referido documento têm como base os princípios da cooperação, colaboração e solidariedade deixando bem nítida a intenção de manter as políticas educacionais que renderam dividendos positivos e desprezando as que não vingaram e, acima de tudo, apostando na criatividade inspirada nos conhecimentos digitais para a construção de uma educação com qualidade para um futuro compartilhado e interconectado. É evidente que, para atingir tais objetivos, exige-se uma mobilização envolvendo governo e empresários visando aumentar os investimentos em educação para cobrir a lacuna deixada pelos dois anos da pandemia. A vulnerabilidade do ensino, agora ainda mais exposta, reclama a realização de ações voltadas para a retomada da continuidade educacional para a presente geração, para não aumentar o custo com as próximas. A tecnologia surge, desta forma, como uma plataforma segura para colaborar na edificação de um novo projeto educacional para a humanidade com a intenção de proporcionar a tão almejada inclusão e com ela o compartilhamento do conhecimento, transformando a educação em um bem comum para todos. O Relatório ganhou repercussão. Tanto é que Antonio Guterres, secretário-geral da ONU, de maneira altiva, assim se manifestou: "A escolha que nos espera é difícil. Ou nós continuamos um caminho insustentável ou mudamos radicalmente de curso. Eu acredito firmemente que a educação é uma das ferramentas mais valiosas para a construção de um futuro sustentável. Recebo e saúdo este Relatório da UNESCO como uma contribuição essencial para as discussões que devem ocorrer na ONU e em todo o mundo. É uma referência seminal para a Cúpula da Educação Transformadora programada para o segundo semestre de 2022"1. É o momento para se cogitar também da inserção de novas modalidades de ensino, dentre elas a proporcionada pela educação a distância, que já vem apresentando um bom resultado pelas tecnologias mais avançadas, modalidade em que docentes e discentes, embora separados fisicamente, encontram-se presentes em um ambiente virtual de ensino. Também merece destaque e com perfeita aplicação das novas tecnologias a Educação Profissional que vem recebendo reiteradas mudanças pela verticalização curricular com o alinhamento dos planos de ensino, desde o Ensino Médio até os cursos de graduação. Não se poderia olvidar, nesta oportunidade, de chamar a atenção para o ensino domiciliar, mais conhecido como homeschooling, cujo texto-base da regulamentação foi aprovado recentemente pela Câmara dos Deputados e agora segue para o Senado Federal, tendo como suporte legal a autonomia familiar contida no artigo 206, incisos II e III da Constituição Federal.2 Assim neste novo caminhar as plataformas digitais, aprimoradas para tal fim, agindo em colaboração e integração com professores e alunos, introduzirão não só novas habilidades, mas também aprendizados que tragam benefícios para aperfeiçoar a vida escolar, produzir novas realidades no mundo exterior e proporcionar um rendimento acelerado de conteúdo em busca de uma sociedade mais qualificada em múltiplos saberes. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
domingo, 29 de maio de 2022

Do uxoricídio ao feminicídio

O Tribunal do Júri da comarca de Santo André/SP condenou um homem a cumprir a pena de 12 anos de reclusão, em regime inicial fechado, por ter matado, no interior de um motel, em total menosprezo à condição de mulher, uma garota de programa que havia conhecido em uma boate e se recusou a manter com ele relação sexual.1 O Direito, assim como outras ciências, também promove variantes linguísticas no vernáculo.  A palavra homicídio, por exemplo, que por muitos anos frequentou com exclusividade um artigo do Código Penal, compreendia a ação de matar um homem ou uma mulher. Uxoricídio, em sua etimologia específica, designava a conduta daquele que matava a esposa. Mais recentemente foi introduzida a palavra feminicídio, com significado abrangente e consentâneo com o pensamento jurídico da atualidade, compreendendo a morte de qualquer mulher, esposa, companheira ou não, atrelada, no entanto, à questão de gênero em contexto discriminatório envolvendo conteúdos históricos, culturais, econômicos, sociais e outros. O tipo penal do feminicídio é de construção recente, e não figura como crime autônomo e sim como apêndice do crime de homicídio, na forma qualificada. Impõe pena mais exacerbada que a do homicídio, além de revestido do mesmo caráter de hediondez e que tem por finalidade a proteção da mulher, no tocante à violência doméstica e familiar como, também, ao menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A título de curiosidade, a prática de homicídio simples prevê uma pena de 6 a 20 anos de reclusão, enquanto que no feminicídio a pena é de 12 a 30 anos, também de reclusão, sem contar ainda com os acréscimos em razão do estado gestacional da vítima, se for praticado diante de descendentes ou ascendentes, assim como em razão de descumprimento de medida protetiva. Pode-se dizer que a Constituição Federal de 1988, quando erigiu a dignidade da pessoa humana como um dos princípios fundamentais, juntamente com a promoção do bem social sem preconceitos de sexo, trouxe um comprometimento diferenciado em relação às tutelas anunciadas. Inclinou seu olhar protetivo para a mulher, principalmente aquela que era considerada vulnerável e que necessitava de cuidados especiais, vez que exposta a tantos conflitos sociais, com sérios prejuízos e danos à saúde e à vida. A Lei nº 11.340/2006, conhecida por Maria da Penha, é exemplo, em razão da determinação constitucional prevista no artigo 226 § 8º. Apresenta claramente seus objetivos, as políticas públicas voltadas para o combate à violência doméstica e os mecanismos para atingir seus fins, além dos tipos penais específicos. A Lei Maria da Penha vem produzindo, de forma reiterada, inúmeras alterações em seu texto originário introduzindo, ao longo do tempo, verdadeiros tentáculos flexíveis, com a função de fechar o cerco protetivo às vítimas que se encontram em situação de violência doméstica e familiar. Dificilmente uma lei consegue tamanha façanha e, mesmo assim, não alcançou os resultados desejados. Basta ver o acentuado crescimento no número de feminicídios, apesar de toda advertência encartada a respeito. Assim, a cada nova investida, apresenta-se um acréscimo à lei para inibir a nova modalidade agressiva. A vulnerabilidade referida acima é a circunstancial, mais precisamente a proveniente de discriminação, em que a pessoa se vê impossibilitada de exercer seus direitos em igualdade de condições com as demais, necessitando, para tanto, de uma ação coadjuvante para desenvolver suas capacidades e competências. No caso específico relatado e decidido pelo Tribunal do Júri, a violência exigida para a prática do delito se espraiou e alcançou um encontro eventual entre um homem e uma mulher, sem qualquer relacionamento amoroso, sem qualquer convivência anterior. A negativa da mulher em ter relação sexual com o seu acompanhante - recusa legítima em razão da autonomia da vontade - por si só, traz à tona o menosprezo e a discriminação pelo fato de ser a vítima uma mulher. ___________________ 1 Disponível aqui.
domingo, 22 de maio de 2022

Uma questão de epigenética

A ciência, nas últimas décadas, em determinadas situações, vem progredindo de forma ascendente e ininterrupta, causando até mesmo impacto aos criadores de ficção científica. E é enriquecedor observar que o homem passa a ser o principal destinatário, tanto no tocante à ambicionada longevidade, como em relação a uma salutar qualidade de vida. Esta nova etapa da ciência trabalha com a velocidade da informação biológica, principalmente aquela que esmiuça os segredos até então não revelados das células humanas e as exterioriza para que novas patologias sejam ajustadas para o bem-estar da humanidade. Tem-se, desta forma, os determinantes anatômicos de cada pessoa, assim como também os determinantes sociais que, juntos, compõem a pessoa humana, tarefa importante para a distribuição equitativa das benesses da ciência. A corrente sanguínea passa a ser o caminho predileto para as células circundantes que navegam por todas as partes do corpo humano liberando a carga necessária de genes. Esta nova dimensão do progresso das ciências biomédicas aponta para uma avenida com rápida expansão para desvendar os mecanismos das mudanças hereditárias, tanto no fenótipo como na expressão dos genes.  É o momento da epigenética. O nosce te ipsum, inscrito de advertência no Oráculo de Delfos, nunca esteve tão presente como agora em que o homem está explorando seu interior na busca do código genético, que ainda não foi decifrado totalmente1, mas tudo indica que a soletração do genoma humano está próxima e o estudo visa apontar a diversidade encontrada na população mundial com a finalidade de ajudar no combate e na prevenção de doenças que ainda afetam a humanidade. Rousseau (1712-1778), sem qualquer conhecimento a respeito da epigenética, foi incisivo na sua obra "O Contrato Social", quando afirmou que "o homem nasce bom e a sociedade o corrompe". Sem qualquer intenção fez ver que o determinismo ou genótipo genético herdado dos pais pode ser influenciado pelo mundo exterior. Richard C., em sucinto pensamento em que amplia o conceito de hereditariedade, assim definiu o alcance da epigenética: "Nossa herança não se limita a nossos genes. Nosso legado extragenético inclui um ambiente social que começa com nossos pais, mas pode se estender além deles, a ponto de incluir toda uma cultura."2 Capra e Luisi, com muita razão, advertem: A epigenética é uma área de pesquisa em rápida expansão, com implicações importantes para a nossa compreensão do desenvolvimento, da evolução e da saúde humana. 3 Uma das vertentes da epigenética (epi em grego com o significado de "sobre", "acima de") é justamente a de estudar as mudanças hereditárias ocorridas na vida de uma pessoa. Ela nasce com sua herança genética que pode, em razão de eventos posteriores relacionados com o próprio ambiente, a socialização, provocar mudanças em todas as fases da vida. Pode-se até determinar que, nesta linha de raciocínio, há, por um lado, a herança genética, que compreende a cadeia causal que vai desde o DNA até as características biológicas e, por outro, a herança social que se desenvolve inicialmente com os nossos pais e depois se expande com o passar do tempo às demais pessoas, alcançando o ambiente social com todos os fatores intrincados externos, que vão acarretar influências em nossos genes durante toda a vida.  Um recém-nascido, por exemplo - que passou por um longo período de desnutrição - as sequelas irão acompanhá-lo de forma implacável. Assim, na realidade, o DNA permanece o mesmo, mas fatores não genéticos influenciam e induzem os genes do organismo a se expressarem de maneira diferente. Basta ver o caso dos gêmeos idênticos, aqueles que conservam o mesmo genoma e que levam vidas em ambientes separados, com o passar do tempo, ficam cada vez mais diferentes. Pode-se dizer, desta forma, do ponto de vista epigenesista, que as evidências apontadas nos mecanismos epigenéticos, com a destacável influência do meio, constituem uma transmissão indireta para as gerações futuras, deixando de prevalecer, isoladamente, a característica genética e sim também a adquirida. Razão assiste a Augusto Comte quando deu o nome de "física moral" ao estudo científico da sociedade, antes de nascer a sociologia. ________________ 1 Disponível aqui. 2 Richard C., Francis. Epigenética: como a ciência está revolucionando o que sabemos sobre hereditariedade. Tradução Ivan Weiz Kuck - Rio de Janeiro: Zahar, 2015, p. 99. 3 Capra Fritjof; Luisi, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas. Tradução de Mayra Teruya Eichemberg, Newton Roberval Eichemberg. São Paulo: Cultrix, 2014, p. 249.