Eric Arthur Blair, mais conhecido pelo pseudônimo George Orwell, escreveu a obra de ficção social 1984, publicada em 1949, em que narra a história de um funcionário público do Ministério da Verdade de um governo totalitário com a função de alterar atos e fatos e adequá-los ao regime político adotado. Assim o cidadão, pela política de controle, não tinha como se manifestar contrariamente e o seu pensamento era monitorado pelo Big Brother, ditador que impunha as regras doutrinárias do governo.
Orwell jamais imaginaria que sua obra de ficção iria antecipar o progresso científico, notadamente na área da cognição humana e sua consequente tutela pela legislação.
O Cogito, ergo sum, de Descartes, nunca foi tão valorizado e aplicado como no momento presente - na medida em que representa a atividade mental do ser humano - revelando sua forma de pensar, suas emoções, seus sentimentos e seus projetos. É uma atividade inerente ao próprio processo de viver e se encaixa perfeitamente no âmbito da manifestação do pensamento inviolável e na liberdade de consciência, assim considerados como garantias fundamentais na Constituição Federal.
O incessante caminhar da tecnologia exige uma tutela especial à atividade cognitiva, responsável que é pela autogeração e pela perpetuação das redes vivas. Com toda razão esclarecem Capra e Luisi: Desse modo, a vida e a cognição são inseparavelmente conectadas. A mente - ou mais precisamente, a atividade mental - é imanente na matéria em todos os níveis da vida.1
Esta introdução se faz necessária para discutir as novas tecnologias existentes para introdução no corpo humano, por meio de próteses, chips e implantes, de minúsculos computadores que possam gerar senhas, aprovar transações em moedas digitais, abrir portas, medir e controlar o batimento cardíaco, a pressão corporal e inúmeras outras especialidades. Enfim, criam uma nova realidade com a introdução do dado neural, que vem a ser a informação obtida, direta ou indiretamente, da atividade do sistema nervoso central e cujo acesso é realizado por meio de interfaces cérebro-computador invasivas ou não-invasivas.
Desta forma, mais parecendo uma ficção científica - que relata um futuro distópico na convivência das máquinas sencientes com os seres humanos já limitados pelo infindável mundo informático - abre-se uma interface entre cérebro-computador para que qualquer sistema eletrônico, óptico ou magnético, colete dados do sistema nervoso central e os transmita a um receptor informático. Desta forma, com a inserção de dispositivos na mente humana, o homem poderá ter seus pensamentos e memórias devassados, ficando como refém da própria tecnologia.
De nada adiante ficar estarrecido e nem mesmo contrariar tamanha tecnologia porque não só vingará, como progredirá nesta direção. Por mais significativos que sejam os progressos científicos em áreas ainda pouco exploradas, eles serão considerados pela ciência como ensaios ainda incipientes. Daí que a biotecnologia avança a passos largos e sem qualquer indício de recuo e, rapidamente, atingirá os objetivos propostos. A não ser que o homem, seu destinatário natural, acenda o farol vermelho e estanque todo esforço concentrado por não ter mais interesse, o que é difícil na atualidade, ante os benefícios já auferidos.
As propostas de facilitação da vida humana pela inserção de dispositivos tecnológicos são por demais interessantes e atrativas, um verdadeiro encantamento, dando a sensação de domínio da ciência em favor do homem. Mas há necessidade de precaução e muita cautela a respeito de possíveis danos à identidade individual do titular dos dados, causando até mesmo irreparáveis prejuízos à saúde, à autonomia e à organização psicológica da sua vida.
A nova tecnologia vai conectar o sistema nervoso a um computador para captar todos os dados ali existentes, incluindo, dentre eles, os mais íntimos e sigilosos. Tais dados pertencem ao patrimônio mental da pessoa e, pela regra convencional, somente ela terá o permitido acesso. A pessoa retém em seu cérebro - e ali fica depositado durante a vida todos os registros importantes - quer sejam relacionados à vida pessoal, social, familiar e à intimidade mais preservada que jamais serão exteriorizados, tudo a critério do titular das informações que, se quiser, elegerá, sob o crivo da sua avaliação, qual ou quais os itens podem ser disponibilizados para terceiros. Ora, com a coleta de dados neurológicos, quebra-se o freio e ocorre uma indevida invasão à intimidade do cidadão. E, de sobra, cai também a regra do Digesto, de Ulpiano: Cogitationis poenae non patitur (Ninguém pode ser punido pelos seus pensamentos).
O Senado Federal do Chile, recentemente, aprovou por unanimidade a proposta de inclusão dos neurodireitos ou os direitos do cérebro em sua Constituição Federal - com fulcro nos princípios da dignidade da pessoa humana e da autodeterminação - e deve ser o primeiro país do mundo a exercer tutela a respeito da matéria.2 A intenção é preservar a integridade física e mental do indivíduo para que ninguém, nem mesmo o Estado, possa - por meio da tecnologia - aumentar, diminuir ou perturbar a integridade individual, sem o consentimento do seu titular.
A ciência é dinâmica e cada vez mais irá expandir para criar uma nova realidade para a humanidade que, por sua vez, adotando-a, merece receber a tutela protetiva necessária, com restrita obediência aos limites éticos, bioéticos e jurídicos. Daí que, visando tutelar este novo avanço tecnológico, foi apresentado um projeto de lei no ano de 2021, de autoria do deputado federal Carlos Gaguim, que modifica parcialmente a lei 13.709/2018 (Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais), para nela incluir a definição de dado neural e regulamentar a proteção do cidadão com relação às informações que se encontram armazenadas no cérebro humano.
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1 Capra, Fritjof; Luisi, Pier Luigi. A visão sistêmica da vida: uma concepção unificada e suas implicações filosóficas, políticas, sociais e econômicas : tradução Mayra Teruya Eichemberg, Newton Roberval Eichemberg - São Paulo : Cultrix, 2014, p. 316.
2 Disponível aqui.