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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 7 de abril de 2024

Nova opção para doadores de órgãos

O homem quer, a todo custo, prolongar sua vida. Pode até ser uma vocação natural procurar viver mais e, para tanto, corrigir os defeitos para se atingir uma existência mais rica, voltada para valores espirituais, de liberdade, da própria dignidade humana, de solidariedade social. É uma eterna recriação. Para tanto, além de procedimentos terapêuticos, vale-se também de órgãos, tecidos e partes de corpos de seus semelhantes. A medicina detecta o órgão doente, e, em seguida, através de uma intervenção reparadora-destruidora-substitutiva, consegue manipular um órgão são e recolhido de outro organismo, corrigindo aquele comprometido na sua funcionalidade. O corpo humano, desta forma, passa a ser um repositório de tecidos e órgãos, mas nítida é a interferência estatal na disposição de vontade da pessoa a respeito da doação de seus órgãos in vita ou post mortem. A disponibilidade do corpo tem seus limites e somente poderá ocorrer quando, para fins terapêuticos e humanitários, ficar evidenciado o estado de necessidade. Sacrifica-se um bem em favor de outro, levando-se em consideração o progresso das técnicas médicas que possibilitam uma reposição com considerável margem de sucesso. O tema relacionado com a Doação de Órgãos, Tecidos e Partes do Corpo Humano, para fins de transplante ou outra finalidade terapêutica, é sempre atual e constantemente vem à baila trazendo alterações na lei 9.434/1997, que regulamenta a matéria, visando facilitar cada vez mais a compreensão a respeito do ato de suprema solidariedade do ser humano. Referida Lei, em seu texto primeiro, já adotou a autorização presumida de órgãos ou partes do corpo humano, a não ser quando ocorresse manifestação de vontade em contrário. A mudança teve como base legal a Lei nº 10.211/2001, que revogou qualquer manifestação de vontade que constasse da Carteira de Identidade ou da Carteira Nacional de Habilitação relativa à retirada de órgãos, que perdeu sua validade em 22 de dezembro de 2000. O Corregedor Nacional de Justiça, considerando a necessidade de simplificar e tornar mais eficiente a doação de órgãos, expediu o recente provimento 164, de 27 de março de 2024, criando a utilização de um mecanismo seguro e gratuito, instituiu a Doação Eletrônica de Órgãos, Tecidos e Partes do Corpo Humano (www.aedo.org.br), símbolo da campanha "Um Só Coração: seja vida na vida de alguém." Aludido documento representa, por si só, a manifestação de vontade da parte interessada em fazer a doação e pode ser elaborado perante tabelião de notas acessando o módulo específico do e-Notoriado, local onde será alojada a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO), gratuitamente. Qualquer cidadão maior de 18 anos tem legitimidade para fazer valer sua vontade post mortem, ou revogar a que foi feita anteriormente. Ocorre que, mesmo com a Autorização Eletrônica, há necessidade de se cumprir o regramento contido no artigo 4º da Lei nº 9.434/97, que confere legitimidade exclusiva de doação para o cônjuge ou parente maior de idade, obedecida a linha sucessória reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive. A importância do documento vem revelada pela manifestação expressa da pessoa em declaração por ela assinada com a solicitação de que seja efetivamente cumprida, além de contar com a homologação estatal. Traz também uma inovação interessante, consistente em permitir, em casos de morte encefálica, à Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes ou às Centrais Estaduais de Transplantes, consultar os AEDOS para identificar a existência de eventual vontade de doação. Em caso de falecimento por outra causa, referidas instituições poderão fazer idêntica pesquisa. O provimento é apresentado em um bom momento em que a comunidade brasileira vem colaborando com a doação de órgãos e tecidos, proporcionando um sensível aumento no número de transplantes. Embora não modifique a lei que trata da matéria, traz uma nova opção para ampliar o leque de doação e, todo movimento neste sentido, proporcionará significativo impulso para revitalizar ainda mais o procedimento de transplante.
domingo, 24 de março de 2024

Transplante com rim de porco em humano?

Um paciente, com 62 anos de idade, acometido por doença renal em estágio terminal, foi submetido, recentemente, no dia 16 de março, a um procedimento de xenotransplante, quando recebeu um rim de um porco, que experimentou 69 mutações genéticas, principalmente para afastar uma molécula que provoca a rejeição em humanos.  O impacto do feito ocorrido no Hospital Geral de Massachussetts e que teve o comando do médico brasileiro Leonardo Riella, foi altamente positivo na medicina, pois se tratava de paciente vivo e com ótima recuperação. Não que a notícia cause estranheza - levando-se em consideração a evolução da transplantação que vai ganhando espaços até então desconhecidos - mas sim pela exemplar conduta científica e o resultado atingido. Apesar de não ser previsível o tempo de sustentação do rim suíno, poderá manter o paciente em situação de controle da doença para, futuramente, sendo necessário, receber um órgão humano. Já tinha ocorrido anteriormente, em um hospital de Nova York, procedimento idêntico. Tratava-se de uma paciente que se encontrava com a morte encefálica decretada e, fora do corpo, o rim do suíno foi ligado às veias e artérias e, sem qualquer rejeição, funcionou por 54 horas de observação. Xenotransplante, na precisa definição de Marcelo Coelho, é "o transplante de um órgão, ou tecido, ou células de um animal a outro de espécie distinta e é uma das grandes promessas da medicina para suprir as necessidades de órgãos, tecidos e células transplantáveis"1. Animal transgênico é aquele que experimentou mudança em seu patrimônio genético, em consequência da inoculação de um ou vários genes humanos com a finalidade de compatibilizar a realização de transplantes. Tal prática hoje já é uma realidade no meio científico, principalmente com a utilização de porcos transgênicos, cuja anatomia de órgãos é bem semelhante à dos humanos. Não se trata de criação de quimeras da mitologia grega, representada pela cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente, e sim de experimentos científicos voltados para proporcionar benefícios de saúde para o ser humano. Dá-se a impressão de que se trata de um relato de ficção científica, principalmente pela utilização de um rim suíno quando a regra aconselha o transplante de órgãos entre humanos e, mesmo assim, como é sabido, com certa frequência, ocorre a rejeição. O benefício resultante do estudo é infindável e deixou transparecer que, apesar de se tratar de fase experimental da pesquisa, merece continuidade uma vez que há fatores indicativos em favor da saúde humana. É evidente que há ainda uma longa peregrinação científica a ser percorrida, mas, pelo menos, para o momento, reacende a esperança de encontrar mais uma opção, que certamente trará inúmeros benefícios para o homem. O Brasil ocupa atualmente posição de destaque mundial no ranking de transplantes, pelas informações veiculadas pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, apesar ainda da taxa de doadores não corresponder ao número de inscritos para o procedimento. A escassez de órgãos humanos faz com que muitos pacientes, em estado delicado de saúde, fiquem aguardando durante longo período nas filas dos transplantes a oferta de algum órgão que seja compatível e muitas vezes vão a óbito sem atingir o objetivo almejado. É de se esperar que o estudo anunciado, estribado no melhor embasamento científico e ancorado pelo pensamento bioético da beneficência, proporcione uma acalentadora esperança para a humanidade. __________ 1 Marcelo Coelho, Mario. Xenotransplante - ética e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 56.
domingo, 17 de março de 2024

A lei como justa medida

A lei, por si só, quando editada, carrega um mandamento direcionado para atender a um reclamo social. Por mais que pretenda atingir os objetivos propostos, inserindo múltiplas opções em seu texto, jamais conseguirá alcançar todas as possibilidades previstas e até mesmo aquelas que, de forma difusa, habitam seu conteúdo originário.  Daí que a lei não nasce perfeita e acabada. A Hermenêutica, instrumento interpretativo da mens legis, é encarregada, não só de direcionar o texto legislativo, como, também, ampliá-lo para que possa atender a outras necessidades que guardam certa semelhança ou analogia com o fato apresentado. Nesta linha de pensamento, pelas interpretações literária, gramatical, lógica e teleológica, o intérprete poderá conferir a dimensão necessária à norma, ampliando-a, em alguns casos, para que possa ordená-la e, em outros, restringindo-a para que seja alcançada a justa medida.  O direito, pela sua própria estruturação interpretativa, revela-se cada vez mais um instrumento voltado para atender as necessidades do homem. Vale-se da lei, que estabelece os parâmetros permissivos e proibitivos, porém, não se prende a ela de forma servil e sim, com a autonomia que lhe é peculiar, alça voo em busca de uma verdadeira integração entre a norma e o fato perquirido, avizinhando-se da realidade pretendida. Pode-se até dizer que a lei é uma ficção, enquanto sua aplicação na medida certa depende unicamente da forma pela qual será interpretada. Diz-se, e com muita razão, que o Direito vem da mesma linha genética da filosofia. Nessa, o homem, pela sua sabedoria e experiência, aponta os princípios éticos e sociais que devem reger a vida em comunidade. Naquele, é a articulação de todas as condutas humanas catalogadas em um regramento, tendo como base as recomendações filosóficas. A lei, enquanto ferramenta, é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando um convívio social harmônico. Pode até ser considerada hostil, mas é necessária para que o homem possa viver numa sociedade adequadamente ordenada. Porém, apesar de trazer uma regra mandamental, vem despojada de sentimento. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado, cum grano salis e a necessária dose de bom senso. É um bólido que deve ser teleguiado por técnicos que tenham conhecimento de sua potencialidade: se não for feito o ajustamento do alvo, o impacto em local não apropriado pode ser desastroso.  Para evitar transtornos sociais surge a necessidade de se fazer uso da Hermenêutica. Se o operador do direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia, pereat mundus. Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano, com seu Corpus Juris. Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que, até mesmo originariamente, não estavam contidas na mens legis. E a ciência Hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. "Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma), afirmamos a existência de dois atos: um que dá a norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo".1 A lei vem expressa por palavras, nem sempre correspondendo à real intenção do legislador. "A palavra, já advertia Maximiliano, é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se aconchegam e escondem várias ideias, valores mais amplos e profundos dos que os resultantes da simples apreciação literal do texto".2 A lei, desta forma, não vale pelo seu frontispício e sim pelo seu conteúdo. É uma porta semiaberta convidando o intérprete a penetrar em seu interior e de lá garimpar todas as riquezas necessárias para atendimento das necessidades do ser humano. E, quanto mais for retirado, melhor atingirá sua finalidade, em razão da elasticidade interpretativa que possibilita a criação de um amplo leque de benefícios. De nenhuma valia a lei que se esgota em si mesma, pois atende necessidade única, e também em uma única oportunidade.  A Hermenêutica, por sua vez, coadjuvante que é, não carrega somente um embasamento filosófico, mas retrata, na realidade, a interpretação da própria vida, visto que procura sempre o caminho da melhor e mais justa solução social. Pode-se até dizer que ela, por ser uma ciência que tem por base a finalidade teleológica, abre valas para desvendar opções e após escolher a que melhor se ajusta ao caso concreto. __________ 1 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 2006, p. 72. 2 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 29.
domingo, 10 de março de 2024

A mulher e a Lei Maria da Penha

No mês de março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, cabe aqui um breve comentário a respeito da Lei 11.340/06, conhecida por Maria da Penha, que carrega este nome em homenagem à biofarmacêutica que foi vítima de agressão por parte do marido e, em razão dos ferimentos de um tiro desferido pelas costas, ficou paraplégica. A legislação representa, inegavelmente, um marco importante para a comunidade brasileira. Isto porque sua mens legis apresenta um conjunto de ações e condutas voltadas contra a violência doméstica praticada no âmbito das relações familiares, com a entronização da mulher como destinatária da tutela específica para combater a crescente violência encontrada nos lares de diferentes classes sociais brasileiras, atendendo, desta forma, o preceito do artigo 226 § 8º, da Constituição Federal. Referida lei, além de se apresentar como uma legislação fundamental para coibir a violência no âmbito das relações familiares - considerada uma das formas de violação dos direitos humanos - é, inquestionavelmente, a que recebeu o maior número de propostas legislativas e variadas interpretações jurisprudenciais destinadas ao seu aprimoramento e visando sempre a criação de mecanismos para alcançar outras tutelas não previstas originariamente em seu texto legal. Tanto é que, em alguns casos, ficam evidenciados  direitos difusos latentes, que permitem uma acomodação interpretativa que vá ao encontro da proteção à mulher em situação de vulnerabilidade, possibilitando todas as providências com o intuito de fechar o círculo protetivo das vítimas, não só física, mas mentalmente também. Sem desprezar, é claro, o ajuizamento da ação para pleitear dano moral ou patrimonial em desfavor do agressor. Assim é que a Lei Maria da Penha contempla, em primeiro plano, proporcionar uma mudança no comportamento humano com relação às agressões perpetradas contra esposas, companheiras e namoradas, oferecendo a elas a tutela protetiva emergencial, assim como a criação de políticas públicas para ampará-las contra a violência doméstica e familiar em razão do gênero. E gerou, como consequência inevitável, a criação do tipo penal do feminicídio, de construção recente, com pena mais exacerbada que a do homicídio, também revestido do caráter de hediondez, com a finalidade de proteger a mulher na vivência doméstica e familiar, como, também, evitar qualquer modalidade de menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Se, por um lado, a lei foi ampliando seus contornos para atender as vítimas de violência doméstica, destinatárias de seu regramento e conferindo a elas uma vasta proteção, por outro lado, o que se percebe pelo noticiário da imprensa e estatísticas apresentadas, é que o número de feminicídio vem crescendo ano após ano, causando impacto frustrante na opinião pública que, por sua vez, sem fronteiras, vai sedimentando cada vez mais seu inconformismo recriminador. É até difícil explicar no campo da criminologia, que busca equacionar os novos comportamentos humanos que geram reações agressivas praticadas contra namoradas, companheiras ou esposas e dar alguma resposta que seja convincente. É certo que a sociedade experimenta mutações constantes e seu dinamismo traz uma nova realidade de convivência, muitas vezes atropelando valores e bens jurídicos indisponíveis, como a vida humana. Mas, de antemão, fica um questionamento delimitado pelo labirinto existente entre os pensamentos que giram em torno de Eros e as deliberações de Tânatos. O que se vê, na realidade é a reiteração do crime em modalidades agressivas diferenciadas. Parece até que o agressor, sabedor que é do alto grau de periculosidade que reveste sua conduta e da exasperada pena cominada pelo tipo penal, mesmo assim, faz opção pelo ato de violência, não se importando com as consequências penais referentes ao seu status libertatis. Se o país é possuidor de uma legislação que pretende punir exemplarmente o acusado pela prática do feminicídio, talvez sejam necessárias, além das medidas protetivas de urgência, políticas públicas para atuarem após a primeira agressão perpetrada, procurando orientar e dissuadir o agressor de uma nova empreitada criminosa.
domingo, 3 de março de 2024

Uma nova conceituação embrionária

Interessante, e com séria repercussão, a decisão proferida pela Suprema Corte do Alabama, nos EUA, ao julgar um processo movido por três casais que haviam depositado seus embriões criopreservados em uma clínica quando um paciente que teve acesso ao interior da sala de criogenia, imprudentemente, provocou a derrubada do tubo onde se encontravam os embriões, que foram inutilizados. Em primeiro grau a Justiça rejeitou a pretensão dos autores por homicídio culposo e decidiu que os embriões não podiam ser definidos como pessoas ou crianças. A Corte Maior do Alabama, ao interpretar o caso sub judice, entendeu que a lei de morte injusta de um menor alcança também as crianças não nascidas, dando ênfase à sacralidade do embrião.1 Tal decisão causou sérios impactos, tanto para as clínicas de reprodução assistida que suspenderam os procedimentos, como, também, para os pacientes que ambicionavam atingir a gravidez por meio da fertilização in vitro. Muitos temas originariamente bioéticos, em razão da interdisciplinaridade existente, deságuam na área jurídica, exigem uma intensa locução para dirimir os conflitos e encontrar o ponto consensual. E Tal ocorrência provoca uma leitura compartilhada de determinado fato, justamente para deixar o pensamento fermentando, vez que a Bioética carrega a provocação de temas que causam inquietude e busca uma convergência satisfatória que vá ao encontro dos melhores valores solidificados na formação humanística. O direito, como é de sua essência, cuida da aplicação e interpretação da lei e essa, por sua vez, deve ter o dinamismo ancorado nas mutações científicas e sociais para solucionar as questões com base nos pilares de sustentação do pensamento moral da sociedade. Com relação ao fato descrito inicialmente, a legislação brasileira traz entendimento diverso da Corte de Alabama.  O embrião produzido artificialmente em placa de Petri, acomodado no interior de tubo de nitrogênio, guarda profunda diferença daquele fecundado naturalmente. A falta do locus apropriado ou do habitat natural para o alojamento demonstra, por si só, a impossibilidade de se atingir a spes hominis e, no gélido interior que habita, não há qualquer chance de progressão reprodutiva. Cada vez mais fica acentuado que o embrião produzido naturalmente, além de carregar a linha genética da família, compreendendo as características físicas e eventuais doenças, representa uma nova individualidade, com identidade sui generis norteada pela capacidade jurídica do nascituro.  Não há dúvidas de que o tema abre um enorme espaço para considerações éticas e jurídicas. O certo é que o Código Civil, promulgado em 2002, ainda sedimentado em um noviciado legislativo a respeito do tema, limitou-se a traçar algumas normas a respeito da presunção que cerca os filhos nascidos durante a constância do casamento e, nesse rol, acrescentou também: os havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; os havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; e os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. A esse respeito há no Brasil a lei 11.105/05, conhecida como lei de biossegurança que em seu artigo 5.º possibilita a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos, produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no procedimento respectivo, para fins de pesquisa e terapia, desde que sejam os embriões inviáveis, congelados há três anos ou mais e sempre com a aquiescência dos genitores. Foi questionado referido artigo junto ao STF na ação direta de Inconstitucionalidade 3510-0 DF, que teve como relator o eminente e extremamente didático ministro Carlos Ayres Britto, com o argumento de que a vida humana começa com a concepção e o procedimento estaria invadindo a própria vida, com total desrespeito à dignidade humana. O relator, em extenso e fundamentado voto, que pode ser considerado um marco de referência na Suprema Corte, decidiu que a vida humana é confinada a duas etapas: entre o nascimento com vida e a morte encefálica, período em que a pessoa é revestida de personalidade jurídica, que a ela confere direitos e obrigações na vida civil.  Evidenciou ainda o ministro julgador que o thema probandum estava ligado aos embriões congelados e que não serão utilizados. "O único futuro, sentenciou ele, é o congelamento permanente e descarte com a pesquisa científica. Nascituro é quem já está concebido e que se encontra dentro do ventre materno. Não em placa de Petri". Enfatizou, finalmente, que "embrião é embrião, pessoa humana é pessoa humana e feto é feto. Apenas quando se transforma em feto este recebe tutela jurisdicional. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na lei de biossegurança (in vitro apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível." 2 No Brasil há a proposta legislativa traduzida pelo PL 478, que tramita desde 2007, denominada Estatuto do Nascituro que, certamente, provocará calorosas discussões envolvendo embriões produzidos in vitro e incitará inúmeras divergências religiosas, médicas, jurídicas, bioéticas e com outras disciplinas afinadas com a questão, vez que pretende ampliar o conceito de nascituro, reconhecendo também como ser humano o concebido in vitro. A Igreja Católica, por sua vez, pelo documento da Congregação para a Doutrina da Fé, publicou no ano de 2008 a instrução Dignitas Personae, atualizando a anterior Donum Vitae, publicada em 1987, com autorização do Papa João Paulo II, trazendo recomendações a respeito das normas éticas e morais no processo de procriação. Referido documento considera que os embriões produzidos in vitro são considerados seres humanos, sendo condenada qualquer proposta de destinação como material biológico para fins de terapia e pesquisa.  --------------------------------- 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
domingo, 25 de fevereiro de 2024

O aposentado e o dinheiro encontrado

Um funcionário público aposentado adquiriu uma casa para sua filha morar, há seis meses aproximadamente. Ao tomar posse do imóvel foi fazer uma limpeza no jardim, oportunidade em que avistou um saco preto enterrado atrás de alguns arbustos. Ao puxá-lo percebeu que, em seu interior, continha um pote e, ao abri-lo, para sua surpresa, encontrou várias notas de R$100,00 e 50,00, totalizando quase R$ 60 mil.  Assustado, disse ele posteriormente à autoridade policial: "Eu tirei a tampa e quando eu notei que era dinheiro, eu tampei e botei no mesmo lugar. Nem cheguei a tocar no dinheiro, não. Aí retornei o pote para o mesmo local e entrei em contato com a polícia, exatamente para eles fazerem a investigação de onde foi que esse dinheiro surgiu."1 É muito comum alguém relatar ter encontrado, na rua ou em qualquer lugar público, uma carteira ou bolsa contendo documentos ou até mesmo dinheiro e não saber o que fazer para localizar o proprietário com o intuito de realizar a devolução. De quando em quando se publica notícia neste sentido, com a intenção de enobrecer a conduta da pessoa que encontrou determinada soma em dinheiro e providencia a restituição ao proprietário, justamente por não ser um fato corriqueiro. Exemplos retirados da ocorrência popular, relatando uma conduta exemplar, cria uma imagem consistente e digna de imitação, pela simples capacidade de distinguir o certo e o errado. Fornece estabilidade e durabilidade de conceitos positivos, abrindo espaços para os mais jovens modelarem um caráter compatível com os princípios éticos e morais. Pode-se dizer que o homem se resume no próprio contexto de suas relações sociais e, em razão do compromisso de convivência assumido, é o construtor do próprio mundo e de sua história individualizada. "O indivíduo torna-se justo, corajoso, prudente, sentencia Oliveira, à proporção que, agindo, ele se "habitua" (adquire o hábito) ao que, na cidade, é eticamente justo, corajoso, prudente. A ação do indivíduo deita raízes no costume e no uso."2  Daí, que a sociedade trilha o caminho da excelência ou da própria estupidez humana, dependendo de seus valores e de suas virtudes morais. Não acredito que a lei, somente a lei, seja o caminho mais credenciado para levar o homem a ter uma vida inteligente, regrada pela honestidade e sabedoria. A lei é cogente e os princípios éticos coletivos apresentam-se como a melhor opção. Realizam-se espontaneamente, sem qualquer reserva ou restrição, com aplicação imediata e eficaz.  A honestidade do consciente aposentado, na realidade, está contida na essência da ética, como sendo um dos braços de sua atuação. Assim, a ética, na sua análise estrutural, nada mais é do que o costume, a tradição, ambos voltados para a moral. Seria, num linguajar mais liberal, a regularização moral e correta da conduta humana, passada de geração para geração, sempre procurando atingir os pontos harmônicos da convivência humana, facilitando a realização espontânea dos bons valores que permanecem como ideal de compartilhamento. A ética não é acabada, é um pensamento em constante evolução, que, com o passar do tempo, vai se aperfeiçoando. Não é, por outro lado, o resultado de condutas codificadas, não se revoga, nem é derrogada. É resultado do próprio pensamento evolutivo do homem.  Já do ponto de vista jurídico, a conduta do zeloso aposentado, foi mais do que correta. Mesmo não conhecendo a lei, agiu de acordo com seus parâmetros.  Assim, se a coisa for realmente perdida, de modo que se encontra distante de seu dono, fora de sua esfera de proteção, o sujeito que se apropria do bem incide no delito do art. 169, parágrafo único, II, do CP, que é a apropriação de coisa achada. Pelo artigo citado, constitui crime "quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de quinze dias." Se a pessoa que encontrou o objeto perdido não logrou êxito em localizar o proprietário, o correto é fazer a comunicação à autoridade policial para que registre a ocorrência e providencie as diligências necessárias para localizá-lo. Mandamento idêntico é encontrado no artigo 1.233 do Código Civil, in verbis: "Quem quer que ache coisa alheia perdida há de restituí-la ao dono ou legítimo proprietário", sendo que a mesma determinação vinha contida no anterior código já revogado, de 1.916. É de se observar que a referência legal é somente com relação à coisa perdida ou res desperdita e não tem qualquer incidência quando se tratar de coisa abandonada, isto é, aquela em que o dono não tem mais interesse em sua propriedade e a despreza, deixando-a disponível para quem tiver interesse. É a chamada res derelicta. __________ 1 Disponível aqui. 2 Oliveira, Manfredo Araujo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993, p. 57.
domingo, 18 de fevereiro de 2024

A medicina e a tecnologia

Na medida em que a tecnologia avança na área médica, mais explorações serão realizadas no corpo humano e, consequentemente, os resultados vão desde a administração de doença incurável até a estabilização da saúde, com uma qualidade melhor de vida. E tal avanço faz com que os instrumentos e aparelhos criados para tal finalidade vão se incorporando na prática médica e, a cada nova remessa, são agregados os aperfeiçoamentos necessários, de tal forma que ultrapassam as dimensões dos precedentes. Basta ver, atualmente, que as máquinas proporcionam excelentes resultados, não somente para formatar um diagnóstico preciso, como, também, para ingressar nas veredas mais estreitas do corpo humano e realizar uma intervenção cirúrgica, apenas com pequenas incisões na pele, e com resultados altamente satisfatórios. E, ao que tudo indica, pelo sucesso do procedimento, a medicina vai se valer cada vez mais da tecnologia, sua acólita predileta. Aquilo que antes parecia distante e que caminhava em ritmo de ficção científica, num repente ganha corpo e surge como uma nova realidade incontestável e até mesmo cobiçada pela humanidade, exigindo uma postura ética adequada à nova realidade. É lógico que todo progresso científico, seja lá em que área for, exige sempre cautela especial, não para barrá-lo ou dificultá-lo, mas sim visando fazer com que a humanidade possa refletir a respeito de sua oportunidade e conveniência, com o intuito de preservar o bem-estar natural do ser humano. A empresa americana Neurolink, que tem como sócio Elon Musk - devidamente autorizada pela FDA (Food and Drug Administration), órgão que corresponde à ANVISA no Brasil - implantou, pela primeira vez em humano, o equipamento Telepathy, no formado de uma moeda e que tem por finalidade, durante um estudo de seis anos, possibilitar às pessoas vítimas de tetraplegia na medula cervical ou esclerose lateral amiotrófica (ELA), controlar aparelhos celulares e computadores por meio do pensamento, com a intenção de facilitar a comunicação e melhorar a qualidade de vida.1 O desafio lançado carrega uma realidade totalmente desconhecida, mas se apresenta como um sinalizador de bom augúrio, não no sentido de promover a artificialização do ser humano, e sim de proporcionar, dentre os prováveis benefícios, aqueles que mais se ajustam e podem trazer bons e convenientes dividendos de saúde para o homem. De nada adiante ficar estarrecido e nem mesmo contrariar tamanha tecnologia porque não só vingará, como progredirá nesta direção. Por mais significativos que sejam os progressos científicos em áreas ainda pouco exploradas, eles serão considerados pela ciência como ensaios ainda incipientes. Daí que a biotecnologia avança a passos largos, sem qualquer indício de recuo e, rapidamente, atingirá os objetivos propostos. A não ser que o homem, seu destinatário natural, acenda o farol vermelho e estanque todo esforço concentrado, por não ter mais interesse, o que é difícil na atualidade. Em futuro próximo, com a correta evolução da pesquisa, o projeto poderá expandir e abraçar o tratamento de outras doenças, como o autismo, a esquizofrenia e outras mais que estabelecem severas limitações de comunicação e ambulação. Durante toda essa trajetória de pesquisa, a Bioética deve se fazer presente não só para solucionar os dilemas éticos, mas, também, para esparramar seu olhar caleidoscópico para a interdisciplinaridade, visando fazer prevalecer a supremacia da dignidade da pessoa humana, erigida como dogma na Constituição Federal. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 4 de fevereiro de 2024

Carnaval e os ilícitos penais

Com a chegada do Carnaval, festa já consagrada como a mais popular do Brasil, várias campanhas são lançadas e outras, exitosas, retomadas com a intenção de reprimir inúmeras condutas ilícitas praticadas durante os festejos. O evento, que se apresenta como momentos de alegria, de participação festiva nas danças coletivas em blocos nos salões ou avenidas, passa a ser um fator gerador para os oportunistas, em detrimento daqueles que se entregam à diversão. Um deles, que já goza de projeção sempre ascendente pelas estatísticas oficiais, é o delito de furto praticado por "punguista", aquela pessoa que se apresenta com rara habilidade física e manual para, com a destreza necessária, subtrair carteira, celular ou outro bem que a incauta vítima traz consigo e não se dá conta da ação repentina do larápio. Outro é o ato obsceno, previsto no artigo 233 do Código Penal, direcionado para aquele que, de forma descuidada, faz xixi na via pública ou em lugar aberto ou exposto ao público. Na realidade, fica evidenciado que o ato obsceno do Código Penal se distancia e em muito da conduta do folião de urinar na via pública, pois a prática demonstra que ele não age movido com a intenção de exibir o órgão sexual para os participantes do evento carnavalesco e sim de atender a uma necessidade fisiológica. Assim, seria mais uma infração de natureza administrativa, com a imposição de uma multa, que carrega uma mensagem mais condizente com a realidade social e limita-se como medida educativa para introduzir boas maneiras, com a consequente utilização dos banheiros químicos. Outro e frequente delito, agora contra a dignidade sexual, é a prática da importunação sexual, contida no artigo 215-A do Código Penal, que tipificou e criminalizou a conduta de quem: "praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro", cominando, como sanção, uma pena privativa de liberdade que varia de um a cinco anos de reclusão, observando que podem figurar como vítimas do agravo tanto o homem como a mulher.  É diferente do assédio sexual que exige para sua configuração o constrangimento de alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Com o novo tipo penal do artigo 215-A, o legislador conseguiu dar uma dosagem equilibrada às ações humanas voltadas contra a liberdade sexual, conferindo a elas a proporcionalidade condizente com a volição do agente. Assim, o que antes seria, em tese, um crime de estupro, em razão da delimitação da ação, passa a configurar importunação sexual. Desta forma, se o agente, imbuído de intenção maliciosa, proferir cantadas invasivas, inconvenientes e inoportunas a uma mulher durante o carnaval ou não, mesmo que queira desculpar-se alegando ser brincadeira, mas se for revestida da picardia exigida para a conduta, se tocar as nádegas ou o seio da mulher ou ainda dela roubar um beijo, tudo sem sua anuência, pratica sim a conduta descrita no novo tipo penal. No Carnaval passado foi levantada a bandeira do "Não é Não", em que as mulheres usavam tatuagem temporária de advertência, fazendo ver que qualquer forma de afeto ou carinho só seria possível com a concordância feminina. Atos libidinosos, de acordo com a conceituação do legislador, são todos aqueles praticados de forma isolada ou até mesmo com relação a outra pessoa. Assim, como descreve Teles, o "abraçar, lamber ou simplesmente tocar partes do corpo humano podem ser atos libidinosos. Desnudar ou despir alguém também."[1] Não se descarta, igualmente, a ocorrência do crime de estupro, que consiste em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que se pratique outro ato libidinoso, estendendo-se até o caso do estupro de vulnerável, quando a vítima não tem o necessário discernimento ou por qualquer outra causa não pode oferecer resistência para a prática do ato, como é o caso da ebriedade. No estertor do ano findo foi sancionada a Lei 14.786, de 28/12/2023, que entra em vigor 180 dias após sua publicação oficial e cria o protocolo "Não é Não", para prevenção ao constrangimento e à violência contra a mulher e para proteção à vítima, bem como institui o selo "Não é Não - Mulheres Seguras". Referido protocolo confere verdadeiro compromisso aos proprietários e responsáveis pelos ambientes de casas noturnas e de boates, assim como em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas. Percebe-se, desta forma, que os estabelecimentos referidos exercerão uma função policial longa manus conferida pelo Estado com a obrigação de ter, dentre outros deveres, pelo menos uma pessoa qualificada para atender o protocolo "Não é Não"; manter em locais visíveis os números  de telefone de contato da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher - (180);  proteger a mulher e proceder às medidas de apoio previstas na novatio legis;  afastar a vítima do agressor, inclusive do seu alcance visual; solicitar o comparecimento da Polícia Militar ou do agente público competente;  colaborar para a identificação das possíveis testemunhas do fato; isolar o local específico onde existam vestígios da violência, até a chegada da Polícia Militar ou do agente público competente. Tais providências, anômalas para o particular, guardam muita semelhança com as diligências dos encarregados da persecução policial e, ao que tudo indica, serão de difícil execução, quando, por exemplo, conforme previsão também na nova lei, no caso de constrangimento, tiver que cumprir a função de retirar o ofensor do estabelecimento e impedir o seu reingresso até o término das atividades. Embora deva ser ressaltada a boa intenção da proteção legal voltada à mulher, não se pode descuidar da responsabilidade imposta ao responsável pelo estabelecimento que, na correta observação do arguto penalista Fernando Capez, em rede social:  "Podendo impedir a importunação e não o fazendo, ele responderá também pelo crime de importunação sexual como partícipe. É a participação por omissão, chamada crime omissivo impróprio". __________ 1 Teles, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts.213 a 359, volume 3. São Paulo: Atlas, 2004, p. 69.
domingo, 28 de janeiro de 2024

Linguagem simples no Judiciário

Foi proposto e anunciado pelo Conselho Nacional de Justiça o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples com o propósito de utilizar, nas decisões e comunicações gerais do Poder Judiciário, um linguajar mais acessível e que seja de fácil entendimento para a população que invoca a tutela jurisdicional.1 É certo que a Constituição Federal - que teve efetiva participação popular em sua elaboração - deixa frestas que traduzem a vontade de inclusão, inclusive na linguagem, já que a destinatária é a própria população. Para se chegar à proposta do CNJ - que carrega um conteúdo interessante e de abrangência nacional - há necessidade de se buscar o conceito de Linguagem Simples. A lei 17.316/20, da Prefeitura Municipal de São Paulo, que instituiu a Política Municipal de Linguagem Simples nos órgãos da administração direta e indireta, definiu no artigo 2º, inciso I, a Linguagem Simples como sendo "o conjunto de práticas, instrumentos e sinais usados para transmitir informações de maneira clara e objetiva, a fim de facilitar a compreensão de textos". Já no inciso seguinte define a extensão de um texto em Linguagem Simples, correspondendo àquele "em que as ideias, as palavras, as frases e a estrutura são organizadas para que o leitor encontre facilmente o que procura, compreenda o que encontrou e utilize a informação". Tais definições possibilitam um ponto de partida com maior segurança para o enfrentamento do tema. Fica mais do que evidente que o foco do Judiciário está direcionado para o cidadão, daí a necessidade de se utilizar uma linguagem que seja desprovida de termos técnicos ou outros de difícil compreensão. Na realidade, abre-se um canal da redução da desigualdade cultural para que o maior número possível da população possa entender, sem muita dificuldade, o conteúdo de uma decisão ou de um despacho judicial. A linguagem jurídica, assim como a médica, vem carregada de termos técnicos com significados específicos e, com a desenvoltura com que os novos direitos e as novas leis vão se incorporando ao nosso já tão pesado Vade Mecum, despontam terminologias exclusivas e até mesmo complexas que ganham assento junto à nomenclatura jurídica e se tornam de uso rotineiro, tanto pelos doutrinadores como pelas jurisprudências dos tribunais superiores. A primeira providência para atingir o objetivo proposto é a de inserir o termo técnico na sentença - principalmente se se tratar de um processo criminal em que se exige a correspondência da conduta considerada ilícita a um tipo penal (tipicidade objetiva) - e explicá-lo de forma minuciosa, com palavras de fácil compreensão, o que é uma tarefa difícil. Assim como, se ocorrer decadência ou prescrição, deverá o julgador esmiuçar seus conteúdos e alcances de forma mais coloquial, narrando a fluição dos prazos e as consequências processuais. Tal incumbência hoje é reservada ao advogado, que representa o acusado. Daí que, para colaborar com o projeto, os tribunais têm pela frente uma missão árdua, não só para providenciar a elaboração de material explicativo que contenha a simplicidade necessária como manuais esclarecedores a respeito dos complexos institutos jurídicos, mas, também, capacitar os magistrados e servidores para que possam ter a sintonia da escrita fácil e identificada com a população. Além do que o Direito se vale da palavra escrita para divulgar suas ações. A própria lei vem expressa por palavras, nem sempre correspondendo à real intenção do legislador. "A palavra, já advertia o arguto hermeneuta Maximiliano, é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias ideias, valores mais amplos e profundos dos que os resultantes da simples apreciação literal do texto".2 O operador do Direito, durante o período de sua formação profissional, frequenta vários doutrinadores nacionais e estrangeiros e, quanto maior for a sua pesquisa na graduação e, posteriormente, na pós-graduação lato e stricto sensu, maior será sua avaliação, com repercussão direta em sua contratação na área privada e na sua aprovação em concursos públicos voltados para a área jurídica. Torna-se, desta forma, um influenciador como agente social de transformação jurídica, pois suas ideias penetram de forma direta ou difusa, potencializando novos caminhos em busca da difícil concretização do Direito. É excelente que o operador do Direito e, no caso, com ênfase para o magistrado, tenha primorosa formação jurídica, pois irá capacitá-lo para dirimir as questões mais complexas. Nada impede, no entanto, que em suas decisões faça constar a mais recente tendência do direito, desde que reserve um espaço para explicar sua linha de raciocínio de forma clara, simples e objetiva. __________ 1 Disponível aqui.   2 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 29.
domingo, 21 de janeiro de 2024

A disciplina felicidade nas universidades

Muito se tem falado e discutido, desde as mais priscas eras, sem se chegar a uma conclusão lógica e definitiva, a respeito da felicidade. É até mesmo difícil arriscar uma definição sobre tal tema, para alguns utópicos, para outros mais esperançosos, ainda resta uma esperança de sua concretização em favor do homem. E até mesmo as universidades, não só do Brasil como também do exterior, vêm se preocupando em introduzir a disciplina denominada Felicidade nos seus planos de ensino, com a intenção de fazer não só uma abordagem histórica e social, como, também, de se perquirir e encontrar uma forma de bem-estar para o homem, tanto sob o prisma individual, como o coletivo.1  Pode-se dizer que se apresenta como uma busca necessária para encontrar a harmonia social. Fica até difícil definir o que é felicidade. Muitos já se aventuraram em tal árdua tarefa e, por mais amplo e abrangente que seja o conceito, sempre ficará em descoberto determinada abordagem, em razão da própria natureza humana, com sua dinâmica e mutabilidade variáveis. A conceituação de felicidade se modifica de época para época. Pode-se arriscar, sem muito compromisso, em dizer que se trata de uma emoção humana que procura retratar uma situação, mesmo que efêmera, mas que transmite a sensação de alegria, bem-estar e que possibilite usufruir as boas coisas da vida. Quer dizer, feliz é aquele que procura viver intensamente seus momentos e retirar deles a receita para o seu bem viver. No mundo estranho e conturbado em que vivemos é difícil encontrar parâmetros para a felicidade. A sociedade parece refém de suas próprias regras. O homem se movimenta em círculos e vai afundando cada vez mais o chão por onde pisa, ou se sente como Sísifo ao empurrar a pesada pedra até a montanha e, quando está prestes a atingir o topo, rolava novamente montanha abaixo. Parece até que a felicidade fica cada vez mais distante, inatingível e quando raramente se apresenta, tem que ser festejada com pompa e circunstância. No curso de Direito teria total aderência a disciplina Direito e Felicidade. Quando se alinham, tem-se uma conexão perfeita. Dá-se a impressão de que são dois institutos coligados para proporcionarem ao homem as melhores condições para desenvolver sua vida. Se a ciência jurídica busca o bene vivere (viver bem e honestamente), neminem laedere (a ninguém prejudicar), e o suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), preceitos estabelecidos por Justiniano em sua Digesta, e se toda  normatização social caminha para a vivência harmônica entre as pessoas, pode-se concluir, sem qualquer exagero, que o Direito se apresenta como um instrumento para o exercício do bem comum, de uma realização comunitária que, de certa forma, possibilitará um estilo de vida individual mais compatível com a realidade idealizada pelo cidadão. Se todos são iguais perante a lei, nada mais justo do que a existência de uma felicidade distributiva, em porções adequadas para cada pessoa. Não se trata aqui de se criar uma utopia, como pretendeu Tomas Morus, quando imaginou o lugar que possibilitasse a sociedade perfeita e ideal, onde todos ambicionassem conquistar a felicidade, mesmo sabendo-a inatingível. E, por incrível que pareça, as legislações não trazem explicitamente a consagração do direito à felicidade, que teria o condão de reunir, num artigo só, tudo que está sendo conferido como direitos e obrigações entre as pessoas, assim como seu relacionamento com o Estado. A Declaração de Direitos de Virgínia, que precedeu a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, idealizada por Thomas Jefferson, proclamava em seu artigo 1º: Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança. Nesta vinculação, as ações sociais são de vital importância para se atingir os propósitos almejados. Não se trata de um estímulo ao cidadão e sim de uma garantia conferida pelo próprio Estado. Sem dúvida, é mais uma tentativa em busca da felicidade. __________ Disponível aqui.
domingo, 31 de dezembro de 2023

Aproximar ou inserir

Quando o ano chega ao seu final é hora de fazer a faxina interna. Recomenda-se vasculhar todos os cantos da moradia - como se fosse uma verdadeira devassa no interior, um processo de despejo coletivo, procurando expurgar os fantasmas persistentes e outros incômodos moradores, que ali habitam como posseiros. Nestas horas coloca-se em ação a memória, que muitas vezes prega seus inexplicáveis deslizes, tal como esquecer de cuidar da flor guardada há tanto tempo e que hoje nada mais resta do que uma poeira de pétalas. Faz lembrar e até dar razão para Gabriel Garcia Márquez quando solenemente profetizou que "a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la". Aquilo que foi alcançado nada mais é do que o resultado da dedicação de cada um, devendo ser preservado no interior de uma concha protetora e mantido como um troféu, representando a conquista de um elevado projeto de vida. Daí é que nasce o criador, o idealizador, o vitorioso. Aquele que não entope de promessas os ouvidos carentes, mas preenche e sacia o vazio do coração e do corpo. O pouco que for extraído será significativo para cada um e para todos que o cercam, fortalecendo o espírito corporativo e edificando o altruísmo coletivo. Se o homem tiver a consciência de sua finitude será um construtor da obra duradoura que poderá legar ao próximo, ressuscitando as potencialidades do espírito e não vivendo como pequenos personagens no país imaginário de Lilipute, do romance Viagens de Gulliver. Assim, nesta pirâmide ascendente - pois o homem é vocacionado para conquistas e glórias apesar de sua efêmera existência - continua sendo ele o personagem principal desta aventura maravilhosa chamada vida. E a cada ser humano, portanto, responsável que é pelo espírito corporativo. são dirigidos os votos para a edificação do altruísmo coletivo. Dois verbos utilizados no linguajar da economia tiveram perfeita adequação e assimilação pelos consumidores, que ficaram gravados de forma indelével, principalmente neste ano que se finda, até mesmo por aqueles desconectados da Última Flor do Lácio: aproximar ou inserir. Falo aqui da movimentação do cartão para o pagamento na máquina apropriada. Tão pequena como o cartão magnetizado. Mas ambos se entendem quando estão cara a cara e a operação, quase sempre, é realizada com sucesso, a não ser quando há a intromissão da inteligência artificial. Mas, voltando aos dois verbos, que determinam a realização da operação, a língua portuguesa é tão rica e tão envolvente que, por mais que expresse a palavra, no caso o verbo, não se consegue retirar dela todo o seu conteúdo, pois, de tão ampla, torna-se difusa. Não se trata de brincar com as palavras utilizando, para tanto, não só o significado, mas também a linguagem de revelação, que é o local indicado na máquina para identificar o cartão. Uma coisa é a linguagem da máquina, a outra a humana. Assim, o verbo aproximar (appropinquare), do latim, assume o significado de avizinhar-se, permitir o acesso, acercar-se, aconchegar, trazer o próximo para mais perto de você, encurtar a distância e relacionar-se com ele. Enquanto que inserir, por sua vez, também de raiz latina (inserere), tem o significado de fixar-se, incorporar, entrar dentro de, fazer com que algo atinja seu interior, misturar-se com alguém de forma amistosa, ter uma correspondência cordial, engajar-se, comprometer-se, empenhar-se com o outro. Como estamos em um momento para reetiquetar a vida, fica fácil a formulação de votos de um ano novo com mais aproximação e inserção.
domingo, 24 de dezembro de 2023

Votos de Natal e Ano Novo

Todo final de ano - como se fizesse parte de um ritual do calendário - as pessoas fazem um pit-stop na correria desenfreada deste mundo, justamente para penetrar em seu interior e decretar o silêncio necessário para renovar-se. Em primeiro plano, avalia o ano que se finda e, em segundo, busca uma programação compatível com o próximo. E, entre tantos projetos, comemora-se o Natal, com a troca de presentes entre os familiares e envio de mensagens para os amigos e, na sequência, a passagem de ano com mais augúrios ainda. O Natal, pela tradição cristã, vem revestido de espiritualidade. É a devoção da prece em honra do nascimento de Cristo. É uma forma da humanidade externar sua gratidão.  Orar é olhar cada um para o seu interior e entrar em comunhão com a humanidade, da qual é o todo e parte dela em sua individualidade. É fazer efervescer a luta "do si contra sigo mesmo", entoada por Guimarães Rosa. A oração, nesta dimensão, é universal e, como tal, traz o postulado comum do bem-estar da raça humana, independentemente do credo que cada uma professa. A unidade do homem total reside no amor, de acordo com Hegel. Basta abrir as comportas da espiritualidade, estender suas súplicas que colherá no fundo de sua alma tudo que viu de belo na vida. É a oportunidade para entoar hosanas, ressuscitar a potencialidade do espírito, remexer as entranhas da alma e peneirar suas reminiscências, visando estornar as antigas amarras. O novo ano é o momento propício para cumprimentar e abraçar os mais chegados desejando toda sorte e sucesso para enfrentar o período que principia. Para tanto, aconselha-se a deixar a porta aberta para a entrada das boas novas e receber os votos de alegria, saúde e prosperidade, que serão solenemente entregues pelos elfos e duendes, aqueles que tomam conta do pote de ouro existente no final do arco-íris. Também é a oportunidade para se fazer a colheita de todos os pensamentos e reciclar aqueles que se destacaram quando retirados com a meticulosidade do joalheiro. É a escola de aperfeiçoamento do ser humano, que ensina não estandardizar rotinas do viver e a quebrar paradigmas.  A repetição de velhas fórmulas faz com que a pessoa se perca definitivamente no labirinto de sua memória e enterre cada vez mais a Rosa de Drummond. Também não precisa rascunhar novo DNA e nem mesmo esmiuçar o genoma. São imutáveis. Somente a vontade que existe dentro do homem o torna superlativo. Explore o potencial ainda envolto nos mistérios da vida e aposte todas as cartas na paixão e emoção.  Sem elas você não passa de um instrumento deambulatório, meramente biológico, sem acesso à contemplação do belo. Siga o conselho da Madre Tereza: "Não ame a beleza, pois um dia ela acaba. Não ame por admiração, pois um dia você se decepciona... Ame apenas, pois o tempo nunca pode acabar com um amor sem explicação." Por fim, abrace todas as fases da vida e as cultive intensamente, assim como é o momento para comemorar o espírito amadurecido que deixou de pensar com os olhos. Se não guardar as cartas da juventude, não conhecerá um dia a filosofia das folhas velhas, profetizava Machado de Assis.
domingo, 17 de dezembro de 2023

Entrega voluntária de filho para adoção

O Código Penal, cuja vigência data de 1940, traz vários tipos penais que, com o passar do tempo ou até mesmo em razão do dinamismo social, apresentam-se obsoletos e inadequados para os tempos atuais. É certo, no entanto, que a legislação penal procura refletir o pensamento de um período que, por sua vez, era indicativo e representava a reprovação social. Um exemplo típico encontra-se no artigo 134 do estatuto penal: "Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria". Fica nítido que se trata da mãe, em razão da íntima dependência que mantém com o recém-nascido. É inevitável a censura a tal comportamento, mas fica no ar a indagação de que, se não optasse pelo nascimento, poderia ter praticado o aborto ou, após o nascimento, sob a influência do estado puerperal, o infanticídio. Não se pode concluir, portanto, que a parturiente não desejasse o nascimento com vida. Acontece que, algumas vezes, a mulher está despreparada para a maternidade, outras não tem condições financeiras para suportá-la, somando-se a elas o abandono do pai da criança, sem falar ainda do medo e do temor dos familiares, para quem procura de todas as formas esconder a gravidez. É justamente diante de tal situação que vários seguimentos sociais foram canalizando debates para buscar soluções minimizadoras de situação tão delicada e abrandando o rigorismo legal. Assim, o Estatuto da Criança e Adolescente, que ampliou e em muito a esfera protetiva em favor da criança, em seu artigo 13, § 1º, abriu a possibilidade da "gestante ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude." E, no artigo 19-A do mesmo Estatuto, preconiza as providências a serem adotadas pela justiça. Referidas alterações foram introduzidas pela lei 13.509/2017, que dispõe sobre a entrega voluntária para adoção de crianças e adolescentes. O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, editou a resolução  485, de 18 de janeiro de 2023, com vigência após 60 dias de sua publicação, e dispõe sobre o adequado atendimento de gestante ou parturiente que manifeste desejo de entregar o filho para adoção e a proteção integral à criança. Aludida Resolução estabelece, em tópicos principais, que a gestante ou parturiente que, antes ou logo após o nascimento, manifestar perante instituição de saúde ou órgãos relacionados com a proteção infantil e direitos humanos, interesse em entregar o filho à adoção, será encaminhada, sem constrangimento, à Vara da Infância e Juventude, com a finalidade de dar início ao procedimento judicial. Para tanto, será atendida por uma equipe interprofissional do Poder Judiciário, que irá orientá-la a respeito do procedimento, colhendo os dados e assinaturas necessárias, além de um relatório técnico circunstanciado, tudo autuado e registrado na classe "Entrega Voluntária" com tramitação prioritária e em segredo de justiça. É importante frisar que a manifestação de vontade da gestante ou da parturiente seja fruto de uma decisão amadurecida no pleno uso das faculdades cognitivas, sem qualquer interferência do estado gestacional e puerperal, não pairando qualquer dúvida com relação ao seu consentimento. E, no caso de gestação decorrente de crime, a gestante deve ser orientada a respeito da possibilidade do aborto legal, assim como, se não pretender, o juiz comunicará o hospital onde o parto provavelmente ocorrerá para que a gestante receba atendimento humanizado e acolhedor, em razão de sua opção, compreendendo seu direito de não ter contato com o recém-nascido. A gestante ou a parturiente será informada sobre o direito ao sigilo do nascimento, que atingirá o pai indicado, membros da família extensa, prontuários médicos, assim como o direito de gozo de licença-saúde. A gestante ou a parturiente pode apresentar retratação da intenção de entregar a criança para adoção até a data da realização da audiência, ato que será garantido de forma simplificada, mediante mera certidão cartorária. O Ministério Público participa de todo o processo na função de fiscal da lei com a finalidade de garantir a proteção integral à criança, podendo, para tanto, praticar todos os atos necessários em defesa dos direitos fundamentais previstos em lei. Percebe-se, sem muita dificuldade, a diferença entre o Código Penal, com caráter eminentemente punitivo, e a nova postura legislativa, que visa amparar e acolher a mulher que se encontra na difícil situação relatada neste texto.
domingo, 10 de dezembro de 2023

Longevidade ascendente

Machado de Assis, em sua época, em várias de suas obras, retratava uma pessoa entre 45 a 50 anos de idade como idosa, velha no linguajar da época. Em alguns personagens descrevia até a dificuldade de galgar a Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. Tanto é que na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), chegou a afirmar: "A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana". O fatiamento etário da pessoa é regulado não só pela realidade biológica, mas também pela própria normatização social que estabelece a fase da criança, do adolescente, da maturidade e do envelhecimento e, em cada uma delas, cria tutelas específicas e necessárias para os diversos estágios. Nesta progressão, o idoso será aquele que irá reunir a maior carga protetiva, pois passou por todas as anteriores e ambiciona ainda uma longevidade com qualidade de vida. O homem, antes e acima de tudo, é um ser temporal, com início, meio e fim, e não um marco definido pelo idadismo.  Assim é que vai superando cada tempo seu, ampliando suas expectativas e apostando em um futuro com mais esperança e até mais entusiasmo - pois contará com uma rica experiência adquirida ao longo da vida e encontrará um campo propício para demonstrar seu dinamismo, sua articulação e fertilidade em descobrir iniciativas e ideias novas - enfim promovendo tudo aquilo que lhe trouxer satisfação. A longevidade não é mais uma ambição remota e sim uma realidade incontestável na história da humanidade. Pode se observar, pelos atuais regramentos, que o preconceito em razão da idade pode dar azo ao ageísmo e provocar consequências processuais desagradáveis. O Brasil editou o Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003), que alcança aquele que atingiu sessenta anos de idade, assim como a lei 13. 466/2017, que criou uma nova categoria de idoso, acima de oitenta anos. Ambas, com base na ficção etária, amparam a vida longeva e atribuem à família, à comunidade, à sociedade em que vivem e ao Poder Público o dever e responsabilidade de assegurar a plena efetivação dos direitos consagrados constitucionalmente relacionados à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade, à convivência familiar e outros anunciados O envelhecer é um processo natural e de interesse de toda a sociedade. Daí, com a evolução cada vez mais pronunciada da longevidade, há necessidade de que todos tomem conhecimento da legislação específica. É tão extenso o rol de direitos que pode ser afirmado com segurança que somente uma pequena parte deles vem sendo cumprida. E vale acrescentar que há os direitos considerados difusos, aqueles ainda que não foram explicitados na legislação, mas que contém normas acolhedoras pela aplicação da hermenêutica. Do idoso exige-se um comprometimento íntimo em que tenha a plena consciência que avança cada vez mais na idade e uma transformação externa com relação ao convívio com os parentes, amigos e até mesmo o ambiente que sempre frequentou, tudo visando uma harmonização coerente com sua condição. É uma nova postura, mas não se trata de fator impeditivo de levar a vida adiante, mesmo com as limitações impostas pela idade. Busca-se, na realidade, o equilíbrio. A expectativa de vida do brasileiro, com exceção do período pandêmico, vem crescendo em espiral ascendente e atingiu 75,5 anos, sendo 79 para as mulheres e 72 para os homens, segundo divulgação feita recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).1 Tal índice acarreta expectativas de novas políticas públicas para abrigar um considerável aumento de pessoas nesta faixa etária, não só na específica área da saúde, mas, também, em todas as outras que englobam os direitos fundamentais, na busca da melhor qualidade de vida. A spes vitae, vem, desta forma, acrescentar mais um estágio etário à população que ingressa na longevidade. __________ 1 Expectativa de vida do brasileiro sobe para 75,5 anos após queda na pandemia, mas é menor do que projeção inicial do IBGE | Saúde | G1
domingo, 3 de dezembro de 2023

A relevância do Sistema CEP/CONEP

O PL 7.082/2017 - que teve tramitação em regime de urgência sem a possibilidade de uma discussão mais ampla com a sociedade - foi aprovado pela Câmara dos Deputados e, pelas inovações apresentadas, poderá comprometer o Controle Social das pesquisas envolvendo seres humanos, que até então vinha sendo realizado há 27 anos pelo Sistema CEP/CONEP, que compreende os Comitês de Ética em Pesquisa e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Assim, a partir da aprovação, a responsabilidade da análise passa a ser do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica em Seres Humanos. O Sistema CEP/CONEP, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde, órgão já amadurecido ao longo do tempo como responsável pela defesa da ética e da segurança dos participantes de pesquisas, conta atualmente com 888 Comitês de Ética em Pesquisa, compostos por voluntários de todo o país. O esforço conjugado visa administrar os conhecimentos científicos, harmonizá-los com os valores humanos e adequá-los para melhorar a qualidade de vida. A ciência, sob tal ótica, numa apertada síntese, somente se justifica se a sua produção científica for necessária, conveniente e oportuna para o homem. Os Comitês de Ética em Pesquisa apresentam-se como órgãos colegiados interdisciplinares e independentes, de relevância pública, de caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses dos participantes de pesquisa em sua integridade e dignidade visando contribuir com o desenvolvimento das pesquisas dentro dos padrões éticos. Tais Comitês procuram agregar os mais diferentes segmentos da comunidade, recrutando médicos, psicólogos, juristas, religiosos, bioeticistas, cientistas, pessoas que exerçam lideranças na comunidade, pacientes e quaisquer outros que tenham condições de fazer uma leitura ética atrelada à participação do ser humano em pesquisas. Da mesma forma como os jurados são escolhidos dentre cidadãos de notória idoneidade para a execução de um serviço público relevante, sem qualquer remuneração, os membros do Comitê também são recrutados de acordo com sua competência e projeção na sua área de saber para desenvolver um trabalho gratuito, revestido de igual relevância social. A autonomia dos CEP vem registrada não só pela manifestação isolada de um membro seu, mas, também, pela decisão colegiada, definidora do pensamento ético e conveniente para determinada proposta de pesquisa. O voto individualizado, mesmo que seja vencido, com o devido registro em ata, é o demonstrativo da liberdade de definir em nome alheio. O crivo de admissibilidade de um determinado projeto passa, em primeiro lugar, pela apreciação individual, onde se confronta com a ética pessoal e, em segundo, numa apreciação mais globalizada, procura atingir uma decisão que corresponda à vontade popular e que traga benefícios satisfatórios para o bem-estar social. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), por sua vez,  é um órgão colegiado, multidisciplinar, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde, tem como tarefa principal considerar o indivíduo sempre em primeiro plano, examinar os aspectos éticos de pesquisas envolvendo seres humanos em áreas temáticas especiais, encaminhadas pelos CEPs das instituições, além de responder pela elaboração de normas específicas para diversas áreas, dentre elas, genética humana, reprodução humana, alterações da estrutura genética de células humanas, organismos geneticamente modificados, funcionamento de biobancos para pesquisa, novos dispositivos para a saúde, pesquisas em populações indígenas, pesquisas conduzidas do exterior e aquelas que envolvam aspectos de biossegurança. Tem também função consultiva, deliberativa, normativa e educativa, atuando conjuntamente com a rede de Comitês de Ética em Pesquisa organizados nas instituições onde as pesquisas se realizam. Um sistema tão criterioso e comprometido com a sociedade brasileira reúne, em razão da vasta experiência adquirida por muitos anos de serviços prestados, plenas condições de fazer a adequada análise ética, assim como de exercer a devida tutela ao participante de pesquisa. A título de exemplo, com a aprovação do projeto, o participante, que no final da pesquisa gozava do acesso por prazo indeterminado do medicamento aprovado, terá esse prazo reduzido para cinco anos.
domingo, 26 de novembro de 2023

Considerações sobre a ética

Sendo certo que toda definição é perigosa, é muito difícil e até mesmo desafiador definir a ética, em razão de sua complexidade. Tal tema - incandescente com envolvimento de aspectos culturais, religiosos, legais, médicos, morais, éticos e sociais, trazendo cada segmento suas posições inquebrantáveis - foi debatido com intensidade na antiguidade e hoje brota a todo instante nos relacionamentos entre as pessoas, coletiva ou singularmente. Na sua origem grega, ethikós simbolizava o modo de ser, o caráter, a moral, os bons costumes de um indivíduo. Tanto é que, na sua aplicação originária, a ética era exigida daqueles que desenvolviam atividade pública, representativa dos cuidadores da res publica, tal como idealizado por Platão na obra A República. Posteriormente, por sua própria característica de idoneidade e bom senso, ampliou-se de modo a integrar atributos positivos da pessoa humana. Entretanto, por sua natureza difusa, a norma ética que rege uma pessoa individualmente nem sempre é a mesma recomendada pelo grupo social ou profissional a que ela pertence. O êtho, eos-ous, na sua análise estrutural, nada mais era do que o costume, a tradição, ambos voltados para a moral. Seria, num linguajar mais liberal, a regularização moral e correta da conduta humana, passada de geração em geração, sempre procurando atingir os pontos harmônicos da convivência humana. É a realização espontânea dos bons valores que permanecem como ideal de compartilhamento. A ética não é acabada, é um pensamento em constante evolução que, com o passar do tempo, vai se aperfeiçoando. Também não é resultado de condutas codificadas, não se revoga, nem é derrogada. É resultado do próprio pensamento evolutivo do homem, que, na sua essência, busca sua perfeição. Aristóteles, cujo pensamento se torna obrigatório integrar a definição perquirida, assenhorou-se do termo para evidenciar as pesquisas que têm como objeto analisar e aprofundar as qualidades peculiares do ser humano, integrando-as em todas as áreas de atuação do homem, quer seja na economia, na política, no ensino, no comércio, somente para exemplificar, além de muitas outras. O pensamento filosófico, desta forma, surge como o grande arquiteto da ética, visando construir os melhores valores de conduta, exibindo como padrão a figura do "homem prudente", que, mais tarde, com a evolução própria no pensamento romano, passou para virtus in medio, evoluindo depois para a figura do "homo medius". É sempre o mediano o melhor equalizador das regras. Não se encontra nos extremos e, exatamente por isso, não terá a cautela desguarnecida e, também, não excederá na sua prudência. In extremis periculosa sunt, advertiam os romanos. O ser ético é aquele impregnado da racionalidade, do conhecimento, que transforma até mesmo sua vida em arte, como acentuado por Foucault. Após ter o domínio do autoconhecimento (nosce te ipsum), agrega à sua individualidade conceitos e práticas que se tornaram necessários, consistentes e praticados, conscientemente, com a visão voltada para o bem.  Daí que o pensamento individual, egoístico, desagrega o cidadão e o torna uma pessoa prejudicial ao grupo, praticando condutas recriminadas e na contramão do bom senso coletivo A ética se coaduna com o dinamismo e a evolução do saber humano. Na busca de uma vida melhor, a inteligência do homem, aliada ao espírito empreendedor, exige a presença de uma ética evolutiva e dinâmica. Quanto maior o grau de desenvolvimento humano para alcançar o estágio de bem-estar, maior será a elasticidade do pensamento ético. A ética, desta forma, pelo menos em uma definição mais estreita e compreensível, acomoda um comportamento humano concreto, atrelado a uma sabedoria prática em busca da perfeição.
domingo, 19 de novembro de 2023

O avanço científico e a clonagem humana

A clonagem humana, apesar da reprovação universal, não se apresenta como um ponto final nas investidas científicas e muito menos como uma ficção inatingível. A ciência, pela sua própria natureza investigativa, não decreta o fim de projetos relacionados com a vida humana. O homem, em razão da sua aguçada inteligência, quer penetrar nos mistérios que rondam seu mundo exterior e não se satisfaz com o ciclo natural estabelecido. Já enveredou pelos desafios dos mares, ares, da terra, dos animais e tudo que se apresenta na natureza. Nem sempre saiu vitorioso, no entanto. Um terremoto, um tsunami, uma tempestade, uma erupção vulcânica, sem falar de uma pandemia como a decretada em razão do coronavírus e outras doenças que ainda não foram desvendadas e muitas delas consideradas irreversíveis, são circunstâncias que, propositadamente, demonstram sua fragilidade e inconsistência científica. Mas, mesmo assim, em nome da ciência, em desabalada carreira, lança-se em estudos e pesquisas para avançar o post mortem e ofertar uma proposta de nova realidade, que seja conveniente e apropriada para a humanidade ou, pelo menos, que a satisfaça emocionalmente. O avanço científico nas diversas áreas não é tão exigido como o relacionado com as ciências da saúde: Com o refinamento cada vez mais acelerado do conhecimento, o homem pretende ser um desbravador de si mesmo e buscar técnicas revolucionárias na biotecnologia, que possam preencher os hiatos científicos existentes. Em tese, são conquistas que pretendem trazer benefícios ou até mesmo um aperfeiçoamento para sua vida, porém passam a trilhar a contramão da ética e tentam fazer um acordo com as células para ter conhecimento de seu universo, assim como saber manejar os comandos genéticos, com a correta distribuição dos genes. As execuções das funções naturais do homem, em todas as suas etapas, desenvolvem-se como meio e fim em si mesmas: a fecundação, o nascimento, a infância, a puberdade, a fase adulta e a idosa. Durante os percursos, o homem vai acumulando conceitos morais e éticos de forma espontânea. Esse processo vincula-se diretamente à razão do próprio desenvolvimento do ser humano, fazendo com que, obedecidos os ritos vitais, possa encontrar a realização almejada, que nada mais é do que a satisfação de seus objetivos. Pode-se afirmar com segurança, de acordo com o pensamento psicanalítico, que a identidade do ser humano passou a existir a partir de Freud. Em mais de cem anos de prática clínica, bate-se pela diferenciação entre a identidade genética com a fenótipa (expressão do gene) e da pessoa (personalidade). Nesta linha de pensamento, percebe-se, claramente, que há uma restrição com relação à clonagem. Por várias razões éticas. É sabido, pelas experiências realizadas em animais, que são necessárias muitas tentativas seguidas e destruição de inúmeros embriões para se conseguir atingir o objetivo, que se mostrou de pouca eficiência, com reiterados abortos de fetos malformados e com morte em curto espaço de tempo. A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, em seu artigo 11, enfatiza: Não é permitida qualquer prática contrária à dignidade humana, como a clonagem reprodutiva de seres humanos. Os Estados e as organizações internacionais pertinentes são convidados a cooperar na identificação dessas práticas e na implementação, em níveis nacional ou internacional, das medidas necessárias para assegurar o respeito aos princípios estabelecidos na presente Declaração.1 O Código de Ética Médica, por sua vez, em seu artigo 15, traz idêntica proibição.2 A Lei de Biossegurança,3 também de forma incisiva, construiu um tipo penal próprio e específico, quando proíbe a realização da clonagem humana e estabelece pena de reclusão de 2 (dois) a cinco (cinco) anos e multa para o responsável pela conduta ilícita. A descrição da conduta penal do agente é direta e objetiva. O legislador não emprega vários verbos, como acontece em alguns crimes complexos para tipificar a conduta. O núcleo da ação é o verbo realizar, que deve ser interpretado com o seu significado literal, no sentido de tornar real, criar, produzir, lançar mão de todos os meios técnicos e científicos para conceber um ser humano idêntico a outro já existente, independentemente dos objetivos.  A simples ação de quebrar a regra da procriação e inverter seu procedimento para se obter artificialmente um clone é uma conduta demonstrativa de dolo intenso, uma vez que é social e penalmente relevante e reprovável. Por essa razão, Moser, de forma magistral, esclarece que: Pela clonagem os seres humanos "enganam" a natureza, trocando a "receita" original por outra estranha, oriunda da mesma espécie, ou então de espécie diferente.4 Tais dispositivos apontados encerram, de uma só vez, conteúdos ético, moral e legal, todos proibitivos, a exemplo de inúmeros outros diplomas mundiais. Já não é o homem e sim a humanidade que se une para coibir qualquer investigação científica na área da clonagem, por entender que não é lícito ao homem contrariar as leis da própria natureza. Se a determinação biológica vem previamente regulada pelo histórico genético - que confere a cada pessoa um tempo limitado de vida - não é plausível que seja dada continuidade a uma vida em curso ou que já se expirou, substituindo-a por outra. A individualidade é fator que determina e especifica o cidadão no meio social, com seus predicados, virtudes e caráter. O substituto artificial jamais conseguirá ocupar o mesmo espaço e receber a mesma avaliação. E, juridicamente, será outra pessoa. ___________ 1 https://www.fiocruz.br/biosseguranca/Bis/manuais/qualidade/Genomdir.pdf. 2 Resolução CFM 2.217/2018 3 Lei 11.105/2005. 4 Moser, Antônio. Biotecnologia e bioética: para onde vamos? Petrópolis: Vozes, 2004, p. 171.
domingo, 12 de novembro de 2023

O xenotransplante que se avizinha

A ciência médica progride a passos longos e, com o dinamismo que lhe é particular, alça voos inimagináveis bem próximos da ficção científica. O propósito que move tamanha especulação é buscar mecanismos, instrumentos e medicamentos para que o ser humano possa encontrar uma qualidade de vida referendada pela boa saúde. E é salutar que nesta peregrinação seja observado o princípio da Beneficência da Bioética para buscar sempre os melhores resultados, maximizando os que tragam dividendos positivos, assim como minimizar aqueles que, por uma circunstância ou outra, possam produzir adventos contrários. Uma das áreas da medicina que vem se destacando com celeridade é justamente aquela relacionada com o transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Não só com relação à precisão cirúrgica como também pela longevidade alcançada. Ocorre que é inevitável o problema da escassez de órgãos humanos, fazendo com que muitos pacientes, em estado delicado de saúde, fiquem aguardando durante longo tempo nas filas dos transplantes a oferta de algum órgão que seja compatível. Isto também se deve porque não há, no Brasil, uma política de divulgação eficaz e penetrante em todas as camadas sociais para que os cidadãos saibam que a doação de órgãos poderá ser comunicada em vida aos familiares e, após sua morte, a autorização somente será ofertada pelo cônjuge ou parente maior de idade, obedecida a linha sucessória reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive, de acordo com o artigo 4º da lei 9.434/97. Daí que, diante desta restrição, o homem, usufruindo de toda a tecnologia até então conquistada, iniciou pesquisas envolvendo animais como doadores de órgãos para receptores humanos, em razão da possibilidade da preparação e manipulação prévia dos órgãos para evitar uma possível rejeição após o procedimento. É o chamado xenotransplante, que na precisa definição de Marcelo Coelho é "o transplante de um órgão, ou tecido, ou células de um animal a outro de espécie distinta e é uma das grandes promessas da medicina para suprir as necessidades de órgãos, tecidos e células transplantáveis".1 Não que a notícia cause estranheza - levando-se em consideração a evolução da transplantação que vai ganhando espaços até então desconhecidos - mas sim pela exemplar conduta científica e o resultado atingido. Animal transgênico é aquele que experimentou mudança em seu patrimônio genético, em consequência da inoculação de um ou vários genes humanos com a finalidade de compatibilizar a realização de transplantes. Tal prática hoje já é uma realidade no meio científico, principalmente com a utilização de porcos transgênicos, cuja anatomia de órgãos é bem semelhante à dos humanos. Não se trata de criação de quimeras da mitologia grega, representada pela cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente, e sim de experimentos científicos voltados para proporcionar benefícios de saúde para o ser humano. A legislação brasileira a respeito da experimentação animal permite a utilização de animais, desde que não sofram dor e que os resultados pretendidos e obtidos tragam ganho à vida e à saúde humana e animal. A lei nº 11.794/2008 estabelece o procedimento para o uso científico dos animais, inclusive, quando for necessária, a morte por meios humanitários, com o mínimo sofrimento físico ou mental, com o rigoroso controle das Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUAs). A título de ilustração, nos Estados Unidos, no ano de 2022, um paciente com 57 anos de idade, portador de doença cardíaca terminal, foi submetido a um procedimento e recebeu um coração de porco geneticamente modificado, ofertando, para tanto, seu consentimento em um processo ainda em linha de pesquisa, com riscos e benefícios desconhecidos.2 Qual não foi a surpresa quando o coração funcionou sem a rejeição inicial e só parou de bater dois meses após o xenotransplante? É de conhecimento público, pelas informações veiculadas pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, que o Brasil goza de destaque mundial na realização de transplantes de órgãos, apesar ainda da baixa taxa de doadores efetivos e da consequente diminuição ocorrida durante o período pandêmico. É de se esperar que o estudo anunciado, estribado no melhor embasamento científico e ancorado pelo pensamento bioético, proporcione uma acalentadora esperança para a humanidade. _______________ 1 Marcelo Coelho, Mario. Xenotransplante - ética e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 56. 2 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60682956.
domingo, 5 de novembro de 2023

A intenção do agente no Direito Penal

O Código Penal elenca as condutas consideradas criminosas, tipificando-as para que seja feita a operação jurídica da subsunção do fato à norma. Às vezes, um simples tapa ou até mesmo um empurrão, em ambos imbuído o agente do animus exigido para a prática de uma conduta, podem ensejar interpretações diferentes. Daí a necessidade de se pesquisar com profundidade a real intenção que norteou a conduta do agressor. Em outubro de 2023, repercutiu na mídia o triste episódio envolvendo um homem que, em um ato de descomedimento, empurrou uma senhora de 86 anos que com ele cruzou na calçada em que estavam. A ação resultou em sérias consequências para a idosa: uma fratura no fêmur e ferimentos que necessitaram de intervenção cirúrgica para sutura. Diante da gravidade do acontecimento, o homem foi indiciado pelos crimes de lesão corporal e omissão de socorro.[1] Para fins de aprofundamento do debate, sem perder de vista o respeito pela vítima e demais envolvidos, propõe-se a imaginação de um resultado hipotético diverso: a morte da idosa, por lesões decorrentes do empurrão sofrido. Nesse cenário hipotético, a imersão na vontade do agente - e na assunção de riscos objetivamente previsíveis - traz questões desafiadoras. Isso porque o Direito Penal Brasileiro apresenta diversos institutos, cujas nuances e distinções requerem um exame minucioso e detido. Dentro desse contexto, a morte da vítima resultante de um empurrão do agente provoca a discussão sobre qual o crime perpetrado: Homicídio doloso, por meio do dolo eventual, ou lesão corporal seguida de morte? Prima facie, tem-se que o crime de homicídio doloso, com dolo eventual, caracteriza-se quando o agente, embora não queira diretamente a morte da vítima, assume o risco de produzi-la (artigo 18, inciso I, parte final, do Código Penal). Em outras palavras: o agente não tem a certeza da ocorrência do resultado, mas aceita a possibilidade de sua ocorrência e prossegue com a conduta (o resultado é objetivamente previsível e o agente comporta-se com indiferença, diante dessa previsibilidade de ocorrência). Já o delito de lesão corporal seguida de morte configura-se quando o agente, ao buscar causar dano ou ofensa à integridade física ou saúde da vítima, acaba por causar-lhe a morte. Nesse caso, o agente não prevê nem assume o risco da morte, que se apresenta como consequência não-intencional de sua conduta. Aqui, trata-se do conhecido crime preterdoloso; preterintencional ou da agravação pelo resultado (artigo 19 do Código Penal), isto é, o agente atua com dolo na conduta antecedente (lesão corporal) e culpa no resultado agravador (morte). Outro exemplo é o crime de aborto praticado sem o consentimento da gestante com o resultado morte: a conduta do aborto é dolosa, almejada pelo agente; a morte da gestante é culposa, pois o autor não queria o resultado, embora fosse ele previsível (art. 125 c.c. 127, ambos do Código Penal). Desta forma, retornando à situação hipotética proposta, reitera-se a pergunta proposta. Por qual crime responderia o agente? E a resposta, ao que parece, dependerá do caso concreto. Ao empurrar a vítima, próximo à escada, em avenida movimentada ou a precipício, por exemplo, o agente não deseja necessariamente a morte dela, mas tem consciência de que sua conduta pode levar a tal desfecho. Se, mesmo prevendo essa possibilidade, ele decide empurrar, há a configuração do dolo eventual, salvo melhor juízo. Por outro lado, o agente que empurra a vítima, em um contexto em que não há riscos evidentes para levar à morte (por exemplo, em um ambiente plano) parece conduzir à lesão corporal seguida de morte (artigo 129, § 3º, do código Penal). É que, de forma imprevisível, a vítima acaba por falecer em razão das lesões corporais sofridas. Vale dizer: o resultado morte não era previsível, tampouco foi aceito pelo agente. A distinção entre estas duas modalidades delitivas é crucial, pois as consequências jurídicas entre elas são absolutamente relevantes. Enquanto no homicídio doloso, ainda que praticado com dolo eventual, possui pena privativa de liberdade de 6 a 20 anos (art. 121 do Código Penal), a lesão corporal seguida de morte, que se configura como um crime preterdoloso, possui pena de reclusão de 4 a 12 anos (art. 129, §3º, do Código Penal). Em suma, a chave para a correta tipificação reside na análise da intenção do agente e na previsibilidade do resultado. Porém, esta facilidade repousa, apenas e tão somente, no texto jurídico, sendo certo que sua aplicação, no caso concreto, demanda cautela e profundo estudo sobre o tema. Cum grano salis, como diziam os romanos. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 29 de outubro de 2023

Novembro azul chegando

O calendário da saúde elegeu o mês de novembro - Novembro Azul - com a finalidade de conscientizar os homens para a consulta médica de prevenção de várias doenças e, especialmente, do câncer de próstata, que há muito tempo vem provocando inúmeras mortes. O mês de outubro, por sua vez, foi dedicado às mulheres para conscientizá-las da importância do diagnóstico precoce de câncer de mama e de colo de útero. Com tal proposta, tanto para os homens como para as mulheres, se a doença for descoberta no início, há uma confiável margem de cura. Os exames recomendados para verificar a saúde da próstata são a análise sanguínea do PSA e o toque retal, para homens acima de 50 anos ou os que atingiram 40 quando há histórico de câncer na família e, também, homens negros, que são mais propensos a desenvolver esse tipo de câncer. A Constituição Federal declara em seu artigo 196 que a saúde é direito de todos e aponta o dever do Estado de patrociná-la, compreendendo não só a saúde da mulher, que conta com um arsenal mais completo de recursos, como também a do homem, norteadas ambas pelo princípio isonômico. O Ministério da Saúde editou o programa da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, buscando a população masculina na faixa etária dos 20 aos 59 anos de idade, com a finalidade de chamar a atenção e despertar o interesse pela própria saúde, além de propiciar a ele os serviços, preventivos ou não, dos agravos com maiores taxas de ocorrência. A Organização Mundial da Saúde, por sua vez, define saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças. Assim, os programas de saúde no contexto coletivo são de vital importância, pois uma de suas metas é justamente promover o bem comum com a diminuição dos riscos para a saúde individual e coletiva, além do que cumpre o afirmativo constitucional da dignidade da pessoa humana. Os estudos indicam alguns riscos que favorecem o diagnóstico de câncer de próstata: o primeiro deles é a própria idade. Quando mais idoso, maior a chance de se detectar a doença. O segundo é o histórico familiar da ocorrência da doença entre os membros da família. O terceiro é a obesidade, quando o homem apresentar peso corporal mais elevado. Não se pode, no entanto, obrigar o cidadão a se submeter aos exames de diagnóstico de câncer de próstata. O serviço deve ser oferecido, mas ele, no âmbito de sua autonomia da vontade - que é justamente o seu juízo de autodeterminação e decisão - é que irá decidir e se responsabilizar pela escolha feita. É de se observar que a Nota Técnica nº 9/2023 do Ministério da Saúde, não recomenda o rastreamento populacional do câncer de próstata e, em seu lugar, descortinou amplo atendimento e discussão sobre os possíveis riscos e benefícios para a tomada de decisão compartilhada com os homens que solicitarem exames de rastreio. Em contrapartida, recomenda a realização do exame de antígeno prostático específico (PSA) e o toque retal para a avaliação de homens com elevado risco para neoplasia prostática. Assim, em caso de suspeita de câncer, a investigação e o tratamento adequado, devem ser iniciados de forma célere. Também, como medida de inovação, a recente lei 14.694/2023 - que instituiu o Novembrinho Azul - trouxe mudança relevante. Referida lei tem por objetivo provocar discussão a respeito de medidas de prevenção para meninos de até 15 anos para vislumbrar condições que se apresentem como fatores de risco de doenças adultas, com o oferecimento de serviços e procedimentos da mais avançada tecnologia visando afastar as possíveis doenças futuras.
domingo, 22 de outubro de 2023

A importância do Outubro Rosa

A Constituição Federal, de modo igualitário, assegura o direito à saúde de qualquer cidadão. Não se trata aqui de mera pretensão, mas sim do exercício de um direito fundamental em que o Estado se apresenta como o garantidor em caso de transgressão. Sob este prisma, o direito consagrado como absoluto não poderá sofrer qualquer restrição, pois estará impedindo a configuração de bem-estar das pessoas. Tal introito permite enlaçar o tema relacionado com a campanha de prevenção do câncer de mama, conhecida como Outubro Rosa, já consagrada no país. É certo que se trata de um movimento direcionado a uma parcela da população, mas que, conforme demonstram as estatísticas, apresenta um número cada vez maior de mulheres com diagnósticos da doença e de mortes provocadas pela sua incidência. Daí que, como agente responsável pela condução de políticas para a saúde, o Estado, não só encampou a articulação, como a ampliou também com a intenção de atender o maior número possível de mulheres. A campanha, desta forma, consegue maior adesão entre as mulheres mesmo porque, com certa regularidade, frequentam ginecologistas desde a adolescência, com a realização dos exames recomendados rotineiramente. Em sua origem, no entanto, que teve seu berço em Nova York no ano de 1990, visou propagar uma ação mundial, difusa, compreendendo vários movimentos que se unem em torno da ideia, com a finalidade específica de alertar as mulheres a respeito da prevenção do câncer de mama e, principalmente, na busca do diagnóstico precoce, quando ainda há grande chance para um tratamento exitoso. O movimento atingiu proporção mundial e a mensagem é veiculada por meio de materiais educativos, publicações de artigos esclarecedores, debates e encontros a respeito da proposta, com grande aceitação popular. O próprio Estado já se apresenta como arauto do movimento e desempenha importante papel nesta tarefa, pois cabe a ele a missão constitucional de patrocinar políticas públicas que visem a redução de doenças, tendo como prioridade as ações preventivas. Assim, nesta linha de pensamento, o Governo cuidou de editar políticas públicas necessárias para o diagnóstico precoce e o rastreamento da doença. Lançou, para tanto, a lei 11.664/2008, que trata da efetivação de ações de saúde visando à prevenção, à detecção, o tratamento dos cânceres do colo uterino e de mama, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Referida lei confere assistência integral à saúde da mulher, incluindo o trabalho informativo e educativo sobre a prevenção, disponibiliza o exame de mamografia para mulheres a partir de 40 anos de idade, com vistas à detecção, tratamento, controle ou seguimento pós-tratamento da doença. Trata-se da aplicação do princípio bioético da justiça distributiva, tendo como sustentáculo uma ação beneficente obrigatória para que o bem-estar individual possa atingir o bem-estar coletivo, sem peculiaridades diferenciadoras da pessoa humana, em razão da isonomia e da dignidade que a reveste. A assistência diferenciada vem contida também no artigo 2º da lei 12.732, de 22/11/12, que assegura ao paciente, portador de neoplasia maligna, o direito de se submeter ao primeiro tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS), no prazo de até 60 (sessenta) dias, contados a partir do dia em que for firmado o diagnóstico em laudo patológico ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso, registrada em prontuário único. Portaria posterior do Ministério da Saúde (nº 1.220/2014) mitigou a interpretação da Lei dos 60 dias e passou a considerar o prazo a partir da data do diagnóstico da doença no exame (laudo patológico). Quer dizer, a data da assinatura do laudo patológico apontará o termo inicial (dies a quo) para a contagem do prazo de 60 dias, obrigando os gestores públicos a tal determinação. A lei 12.880/2013, em seu artigo 1º, inclui entre as coberturas dos planos privados de assistência à saúde os tratamentos antineoplásicos de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia. Já a Lei nº 12.802/2013, por sua vez, obriga o Sistema Único de Saúde (SUS) a realizar cirurgia plástica reparadora da mama, logo após a retirada do câncer, quando presentes as condições médicas. Ausentes, a paciente será encaminhada para posterior cirurgia reparadora. Ainda há muito por se fazer, mas o caminho já percorrido revela que a intenção é expandir cada vez mais ações que envolvam até mesmo as adolescentes.
domingo, 8 de outubro de 2023

Descriminalização do aborto

Nos últimos anos alguns países da América Latina - Uruguai, Guiana, Cuba, Porto Rico, Argentina, Colômbia e agora o México, até então considerados conservadores a respeito do tema - passaram a romper as estruturas sólidas que os amarravam a um conservadorismo fincado em tradições e, graças aos movimentos feministas, conseguiram aprovar a descriminalização do aborto. Paradoxalmente, nos Estados Unidos, alguns estados firmaram posição em insistir na proibição. Na realidade, já existia tal possibilidade quando o ato fosse praticado para salvar a vida da gestante, proveniente de estupro ou de má-formação do feto. O    Senado da Argentina aprovou lei que foi regulamentada pelo Executivo (lei 27.610/2020) estabelecendo a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação. Após esse período, prevalece a regra anterior consistente em salvar a vida da gestante ou quando a concepção for proveniente de estupro. A proposta fazia parte dos compromissos eleitorais do presidente Alberto Fernández. Na regulamentação legal ficou disciplinado que toda gestante poderá ter acesso ao aborto, que será realizado pelo sistema de saúde, de forma gratuita e segura. As gestantes menores de 13 anos terão acesso ao programa desde que acompanhadas por um dos pais ou do representante legal. Adolescentes entre 13 e 16 anos necessitarão da autorização se o procedimento comprometer sua saúde. Já as maiores de 16 anos terão autonomia plena e decidirão por sua própria conta. No Uruguai a lei existe há mais tempo (lei 18.987/2012). É permitido o aborto, em qualquer circunstância, até a 12ª semana de gestação. Em caso de estupro ou se for para salvar a vida da gestante ou até mesmo de má-formação do feto, pode ocorrer em qualquer período. A gestante será entrevistada por uma equipe multidisciplinar que, dentre outras ponderações, sugerirá a ela a possibilidade de levar adiante a gravidez para entregar posteriormente a criança para adoção. A Colômbia, em recente decisão apertada proferida pela Corte Constitucional (cinco votos a favor e quatro contra), descriminalizou a modalidade e permitiu a realização do aborto até a 24ª semana de gestação e, acima desse período, em qualquer tempo, quando se tratar das hipóteses de estupro, má-formação do feto ou risco de morte da gestante. Por se tratar de uma decisão judicial, há necessidade da intervenção do Congresso para a regulamentação da matéria, mas é certo que nenhuma colombiana poderá ser julgada pela prática do crime abolido. No México, recentemente, a Suprema Corte descriminalizou o aborto até 12 semanas de gestação, declarando inconstitucional a proibição existente, desde que a interrupção seja feita em instituição de saúde credenciada pelo governo Federal. No Brasil, aborto é o produto da concepção eliminado pelo abortamento. É considerado crime pelos tipos penais dos artigos 124 e 126 do Código Penal, com exceção de duas hipóteses: gravidez decorrente de estupro ou quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Em ambos os casos, não há necessidade de obtenção de autorização judicial, como é comentado amiúde. E há também uma terceira hipótese, ainda não formatada em lei, que é a permissão do procedimento quando se tratar de feto anencefálico, tema que foi discutido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 54 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental). Essa mesma Corte de Justiça, cumprindo sua missão constitucional, palco de relevantes decisões que repercutem sobremaneira na vida brasileira, abriu suas portas para o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442), intentada pelo PSOL, pleiteando a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação. A fundamentação do pedido apega-se aos direitos da dignidade, da liberdade e da procriação da mulher, conflitantes que são com o regramento penal proibitivo. A primeira indagação que se faz, até mesmo como preliminar para o debate, reside na discutida competência da Corte Suprema para analisar a questão. Questionou-se, ainda no âmbito das audiências públicas, a respeito do ativismo judiciário que, no caso, estaria invadindo a competência do Legislativo, retirando do Congresso o conhecimento da matéria, locus apropriado para expressar a soberania do povo. O Judiciário, por este prisma, não está jungido da legitimidade para fazer nascer um novo direito positivo. A manifestação originária, de pura índole constitucional, fonte que emana todo poder conferido pelo povo, deve ser exercida pelo Congresso Nacional, legitimado que é para discutir e estabelecer regras a respeito de tema tão abrangente, com ampla participação da sociedade, inclusive com a coleta de consulta pública. A restrita área do Judiciário, por onde caminha a pretensão deduzida, figurando como manifestação derivada, irá culminar em uma decisão interpretativa de princípios, de veio nitidamente hermenêutico, sem a chancela popular a respeito da penalização ou não do aborto. É nítido que o tema vem frequentando com certa assiduidade as discussões travadas a seu respeito, fazendo recrudescer cada vez mais a polêmica já instalada. Justamente por não ser um assunto voltado para uma área específica e sim regido pela interdisciplinaridade, em que várias vozes da saúde, psicologia, sociologia, religião, direito, ética e outras tantas populares falam ao mesmo tempo trazendo suas colaborações Não se pode olvidar e nem mesmo deixar de citar parte do memorável voto do então ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 54, em 2012, que despenalizou o abortamento de fetos anencéfalos, em tão curto, mas bem postado parágrafo: "Essa tarefa é própria de outra instância, não desta Corte, que já as tem outras e gravíssimas, porque o foro adequado da questão é do Legislativo, que deve ser o intérprete dos valores culturais da sociedade e decidir quais possam ser as diretrizes determinantes da edição de normas jurídicas. É no Congresso Nacional que se deve debater se a chamada 'antecipação do parto', neste caso, deve ser, ou não, considerada excludente de ilicitude."1 Neste caminhar alguns passos já foram dados visando patrocinar a descriminalização do aborto. A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal,2 analisando pedido de revogação de prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto, com votos dos ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, entendeu que o aborto praticado nos três primeiros meses de gestação não é crime. É certo que a decisão não foi proferida pelo Plenário da mais alta Corte de Justiça do país, mas, de qualquer forma, abre um precedente para que outros juízes, invocando o mesmo entendimento, venham a descriminalizar o aborto. A fundamentação legal teve como base de sustentação a autonomia da vontade da gestante, a proteção da sua integridade física e psíquica, seus direitos sexuais e reprodutivos, além da igualdade de gênero. São direitos de última geração na avaliação de Bobbio e que, inegavelmente, tutelam a mulher na sua função procriativa, observando que, no caso presente, trata-se de gravidez proveniente de prática sexual consentida. Por outro lado, evita-se a criminalização exclusivamente contra as mulheres pobres que não podem se socorrer a um procedimento que seja seguro e patrocinado pelo Estado. A evolução dos costumes traz consigo novas realidades que muitas vezes desmontam a estrutura de valores até então solidamente fincados no universo social e determina uma profunda mudança comportamental. __________ 1 Disponível aqui. 2 HC nº 124.306, de 2017.
domingo, 1 de outubro de 2023

Comitês de Bioética

O conceito social da medicina não se resume exclusivamente na competência e na excelência do serviço prestado pelo profissional da ars curandi, mas envolve, também, relações interdisciplinares com outras ciências visando atender aos reclamos advindos, não só da transformação social, como os resultantes dos incessantes avanços tecnológicos, que acarretam, inevitavelmente, implicações éticas, bioéticas, jurídicas, políticas e outras mais. No atual estágio da medicina - que antevê um futuro com considerável reestruturação nos cuidados médicos e na práxis dos profissionais - destaca-se a relevante função da Bioética. Assim é que as novas tecnologias, que a cada dia vão se acumulando na área da saúde - quer sejam experimentais ou não - vão produzindo realidades diferentes no mundo exterior, provocando reflexo imediato no homem, seu destinatário exclusivo. Kant já traçava que o homem é o fim em si mesmo e não é recomendável, pelo ideal hipocrático, promover a artificialização do ser humano e sim buscar um bom sinalizador para preservar a dignidade existente na pessoa individualizada, conforme preconiza a Constituição Federal. Daí que surge a Bioética com seu ideal humanista como um espaço de reflexão congregando pessoas com diversas formações, não para conter o progresso técnico-científico, que é necessário e salutar, e sim direcioná-lo para acumular benefícios para a humanidade, tendo sempre em relevo o primum non nocere. A Bioética, desta forma, proporciona debates a respeito de temas atuais e provocativos a respeito de realidades até então desconhecidas e inéditas. Tendo como foco as questões de Bioética presentes no dia a dia das instituições e dos profissionais de saúde, principalmente aquelas que causam inquietude acadêmica, o Conselho Federal de Medicina editou a Recomendação 8/2015, incentivando a criação, funcionamento e participação dos médicos nos Comitês de Bioética. Tais colegiados não se assemelham aos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), regulamentados pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que cuida do respeito, dignidade e segurança dos participantes de pesquisas científicas envolvendo seres humanos. O Comitê de Bioética, por sua vez, compreende um colegiado multiprofissional, envolvendo médicos e representantes de diversos setores da sociedade, com o objetivo de auxiliar na reflexão e na solução de questões relacionadas à moral e à Bioética que surgem na atenção aos pacientes. Daí que as funções prioritárias são: a) dispor sobre e subsidiar decisões envolvendo questões de ordem moral; b) sugerir a criação e a alteração de normas ou de documentos institucionais em assuntos que envolvam questões Bioéticas; c) Promover ações educativas em Bioética. Uma decisão médica - levando-se em consideração a relevância do princípio da autonomia da vontade do paciente - necessita muitas vezes da conjugação de outras vontades para se atingir o pluralismo ideal e necessário para se atingir o princípio da beneficência. A formação em Bioética por parte do profissional da saúde é de inegável importância, vez que na decisão médica está compreendida também um rol de outros problemas e dilemas, exigindo, desta forma, não só a participação do paciente, seus familiares e outras pessoas, formando um colegiado multidisciplinar com a finalidade de buscar uma solução que seja adequada para a atenção devida ao paciente. Surge, diante de tal propósito, o Comitê de Bioética como uma plataforma administrativa para receber e analisar os conflitos de ordem ética, moral, religiosa ou de qualquer outra procedência, com a restrição de não impor decisão e nem emitir juízos de valor sobre práticas profissionais. Basta ver que o princípio da autonomia da vontade do paciente ganhou considerável espaço no Código de Ética Médica, como, por exemplo, a deliberação a respeito do final da vida que, às vezes, colide com condutas médicas amparadas pelo princípio da beneficência ou até mesmo vai contra a vontade do representante e dos familiares do paciente. Isto porque os fatos científicos, em certos momentos, se entrelaçam com contornos sociais aparentando uma certa colidência na regulação ética das práticas humanas e exigem uma atuação compartilhada de um grupo que tenha sólida formação em humanidades, para extrair uma postura que seja considerada adequada e recomendada ao caso. Pode-se dizer que aí reside a marca identitária da Bioética e seu papel interventivo diante de um dilema que exige uma convergência de respostas. É a ética cívica indispensável para uma sociedade que avança destemida para um futuro que se guiará pelos mais complexos progressos biotecnológicos na área da saúde.
domingo, 24 de setembro de 2023

A odontologia e o pensamento bioético

A bioética, ao contrário do direito, não se apresenta com um código bioético exigindo uma interpretação sistemática para encontrar a concretização de seus objetivos. Como bem ponderou Habermas: Limita-se a apresentar seus princípios e seus desígnios teleológicos e daí em diante procura se introduzir no sistema social para encontrar espaços para que possa habitar e oferecer as condições mais favoráveis, oportunas e convenientes ao ser humano no sentido de concretizar seus objetivos.1 A nova ciência da bioética surgiu, com toda força e projeção com o Julgamento de Nuremberg, em 1947, quando começou a reflexão a respeito da ética biomédica contemporânea. Condenava-se a pesquisa com seres humanos sem o seu livre consentimento.  No ano seguinte, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e o Código de Nuremberg proporcionaram uma nova tutela aos direitos individuais e coletivos com uma dimensão diferenciada do ser humano e das condições favoráveis para o seu desenvolvimento. O termo "Bioética" foi introduzido pela primeira vez em 1927 pelo filósofo tedesco e psicólogo Fritz Jahar (1895-1953) e, mais recentemente, pelo, oncologista Van Rensslaer Potter, em seu livro Bioethics. Bridge to the Future" Já, em 1970, ocupando um espaço mais amplo, a bioética se intitulou ética das ciências O avanço e a evolução da sociedade, dos costumes, do incessante desenvolvimento das pesquisas em seres humanos, do início ao final da vida, como a eleição do sexo do filho, a clonagem de seres humanos, as terapias gênicas, os métodos de reprodução humana assistida, a maternidade substitutiva, a eugenia, a eutanásia, a distanásia, a ortotanásia, a escolha do tempo para nascer e morrer, a engenharia genética, a cirurgia de transgenitalização, a utilização da tecnologia do DNA recombinante, a utilização das células-tronco embrionárias, o transplante de órgãos e tecidos humanos, a biotecnologia e muitos outros avanços científicos aqui não enumerados, abriram um leque imenso de atuação na saúde, principalmente na área de pesquisa e laboratorial. As novas tecnologias que pareciam ainda distantes batem às portas dos grandes centros de pesquisas e se fazem presentes para a utilização nos seres humanos. A perplexidade ultrapassa as raias da curiosidade e faz nascer um novo campo onde se concentram a ética e a bioética, ambas à procura de definição, de direcionamento e soluções para seus conflitos. A inter, a multi e a transdisciplinaridade da bioética avançam em todas as áreas de atuação do ser humano e não se limitam somente ao campo da saúde. De ciência criada para proteger o meio ambiente para que o homem pudesse desenvolver a contento suas atividades, atingiu sua plenitude como ciência da vida. Assim, no estágio atual, em que os avanços científicos vão se proliferando e se incorporando à vida cotidiana, o pensamento bioético vai se alastrando e se incorporando às novas condutas e ganha uma imensa dimensão para lançar seus tentáculos visando proporcionar ao homem as melhores condições do viver, com qualidade e dignidade. Com ampliação dos meios biotecnológicos, da evolução da própria sociedade e costumes, há necessidade de se fazer uma revisitação aos conceitos éticos originários e providenciar uma nova roupagem que seja adequada e coerente com os dias atuais. A tecnologia, no entanto, deve ser colocada a serviço do homem, estar ao seu alcance e controle. E, principalmente, selecionar aquelas que são mais pertinentes para melhorar sua qualidade de vida. Obriga-se o homem, desta forma, a sair de sua função de espectador e a participar ativamente do processo que irá definir a "ética da vida". A pessoa humana é centrada no núcleo de toda atividade científica e clínica e se tornará construtora de si mesma, com o conteúdo necessário e racional para facilitar a realização de seus ideais sociais. A definição desta nova ciência, a mais jovem de todas, com seu formato atual, foi lançada na segunda edição da Encyclopedia of Bioethics, com a seguinte ementa: "Estudo sistemático das dimensões morais das ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto multidisciplinar". Sua aplicação não se limita somente à área médica. É a leitura de muitos olhos a respeito de problemas individuais e coletivos, com a intenção de discutir os mais complexos dilemas e buscar a melhor solução, a mais próxima e condizente com a dignidade humana. O odontólogo, como cirurgião que é, realiza práticas invasivas no ser humano, daí a necessidade de confeccionar o TCE, estabelecido pela resolução 466/12 do CNS. O odontólogo deve, em primeiro lugar, informar o paciente - detentor da titularidade da autonomia da vontade - a respeito das opções diagnósticas ou terapêuticas, apontar eventuais riscos existentes em cada uma delas e, em seguida, obter dele ou de seu representante legal, o consentimento para sua intervenção. Aplica-se, da mesma forma, o princípio de beneficência, representado pela parêmia primum non nocere, que pode ser traduzida como a preocupação do profissional buscar sempre o bem à saúde e à vida do paciente, envidando todos os esforços para maximizar os benefícios e minimizar os eventuais danos. Preza-se, com tais medidas indicadas pelo pensamento bioético, não só a valorização do ser humano, preservando racionalmente sua dignidade, mas também dar a ele o direito de escolher o tratamento que julgar mais conveniente e adequado. A bioética eleva o pensamento e procura instrumentos que possam proporcionar melhores condições de vida para o ser humano e também brindá-lo com instrumentos eficazes para buscar sua realização, sua afirmação profissional e a segurança do paciente. ---------------------------------------------- 1 Habermas, Jürgen.   Teoria e práxis: estudos de filosofia social. Tradução de Rúrion  Melo. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 514
domingo, 17 de setembro de 2023

Doação de órgãos presumida

Com o advento da pandemia ocorreu uma expressiva queda na doação de órgãos e, consequentemente, um acentuado declínio na realização de transplantes, além de aumentar consideravelmente a lista de espera para o procedimento. O Brasil, assim como outros países, experimentou uma redução de seus índices e procura uma fórmula mais adequada para incrementar, a curto prazo, medidas que possam dar continuidade à invejável projeção alcançada antes do período pandêmico. Agora, recentemente, fato novo veio à tona com o bem-sucedido transplante de coração a que foi submetido o apresentador Fausto Silva. A população acompanhou detalhadamente todo o caminhar progressivo do paciente até receber o órgão doado e a posterior alta hospitalar. A conclusão outra não foi a não ser aplaudir tal prática que tem eficácia mais do que comprovada. Ficou evidenciado que o homem quer, a todo custo, prolongar sua vida. Pode até ser uma vocação natural procurar viver mais e, para tanto, corrigir os defeitos para se atingir uma existência mais rica, voltada para valores espirituais, de liberdade, da própria dignidade humana, de solidariedade social. É uma eterna recriação. A medicina detecta o órgão doente, e, em seguida, através de uma intervenção reparadora-destruidora-substitutiva, consegue manipular um órgão são e recolhido de outro organismo, corrigindo aquele comprometido na sua funcionalidade. Na sequência, como se tudo fosse orquestrado, alguns projetos de leis que gravitavam em torno do tema, ganharam espaço, principalmente aqueles relacionados com a doação de órgãos presumida, que já fez parte do texto original da lei 9.434/97, oportunidade em que admitia a possibilidade da doação presumida de órgãos e tecidos, devendo o cidadão fazer constar da sua Carteira Nacional de Habilitação se era ou não doador. A lei 10.211/2001, no entanto, alterou esta opção e prevalece agora somente a vontade do cônjuge ou parente até o segundo grau. Quer dizer, o desejo manifestado anteriormente pelo cidadão a respeito da utilização ou não das partes de seu corpo e órgãos, não mais se concretiza e prevalece o ditado pelos interesses dos familiares ou responsáveis A nova tendência legislativa é fazer prevalecer a doação presumida post mortem também conhecida por "silêncio-consentimento" de órgãos e tecidos, aquela em que a pessoa em vida faz uma declaração para ser realizada após a morte. Como a que prevalece em alguns países. Na Espanha, por exemplo, a pessoa já nasce sendo doadora de órgãos e qualquer restrição em contrário, deve constar de documento de uso pessoal. A nova proposta faz prevalecer o princípio da autonomia da vontade do paciente, um dos sustentáculos da Bioética. Da mesma forma em que, no tratamento terapêutico prevalece a autonomia do paciente, regida pelo princípio da autodeterminação, a disposição do corpo, suas partes e órgãos ficariam, com igual razão, ao indivíduo. Uma vez que o corpo a ele pertence, poderia direcionar a finalidade que julgar conveniente, principalmente quando se encontrar lúcido e consciente, diante de uma futilidade terapêutica. Mas, na realidade, a pessoa não exerce com exclusividade a propriedade de seu corpo. Assim, mais uma vez, ocorre a prevalência do interesse estatal, em detrimento da vontade individual do cidadão. Não se trata de uma regra de proibição, mas sim de disciplina do procedimento. Pretender prevalecer sua escolha em doar os órgãos a determinada pessoa post mortem, não terá nenhuma eficácia, pois a vontade que predomina é a do Estado, que regulamentará e indicará o paciente a ser beneficiado. Não é também uma forma de "estatização dos cadáveres", mas sim um gerenciamento para uma correta distribuição dos órgãos e tecidos humanos às pessoas cadastradas e que aguardam um transplante para ter chance de uma vida digna. Enfim, como o bom vento vai inflando a esperança  da comunidade, o momento é propício para a aprovação legislativa da proposta.
domingo, 3 de setembro de 2023

Reflexões a respeito do juiz das garantias

O Código de Processo Penal foi promulgado em 1941 e, durante sua longa trajetória de vigência, vários institutos foram modificados e alterados com a intenção de atualizá-lo e, principalmente, adequá-lo às diretrizes da Constituição Federal de 1988. Isto demonstra que a legislação processual penal, apesar de condensada em um vetusto código, necessita constantemente de leis esparsas justamente para que as novas construções jurídicas tenham espaços para dinamizar as relações processuais, conferindo não só a proteção da sociedade como a prevalência e garantia dos direitos do acusado. Na sessão do dia 24 de agosto de 2023, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, proclamou o resultado do julgamento das quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305) que questionavam alterações no Código de Processo Penal (CPP) pelo Pacote Anticrime (lei 13964/2019), entre elas a criação do juiz das garantias1. Destarte, em que pese ser um instituto objeto de inúmeros questionamentos doutrinários, têm-se por necessárias algumas reflexões sobre o juiz das garantias, sem o escopo de se esgotar o tema neste espaço. Sendo assim, pode-se destacar, inicialmente, que "o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário" (art. 3-B do CPP). Ou seja, relevante função emerge ao juiz das garantias para controlar as matérias resguardadas pela cláusula de reserva de jurisdição, isto é, aquelas que somente podem ser apreciadas e concedidas pelo Poder Judiciário (interceptação telefônica, por exemplo). Ademais, a razão de ser do juiz das garantias repousa, também, no fato de se buscar a imparcialidade do magistrado que irá sentenciar o feito, já que, como regra geral, ele não teria (ou não deveria ter) contato algum com o material probatório produzido na primeira fase da persecutio criminis. Deste modo, o primeiro entendimento fixado pelo STF é o de que o artigo 3-B do CPP é norma de aplicação obrigatória, tendo todos os Tribunais brasileiros (estaduais e federais, portanto), o prazo de 12 meses, prorrogável por mais 12 meses, a partir da publicação da ata do julgamento, para a adoção das medidas legislativas e administrativas necessárias à adequação das diferentes leis de organização judiciária, à efetiva implantação e ao efetivo funcionamento do juiz das garantias em todo o país, conforme as diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Outro ponto sensível da questão era o termo processual ad quem do juiz das garantias: até onde atua o juiz das garantias? Qual o ato processual que encerra sua competência jurisdicional? Essa questão ainda reverbera com intensidade na doutrina processual brasileira, tendo o STF fixado o oferecimento da denúncia como o ato em que se encerra a competência do juiz das garantias. Logo, pode-se concluir que o recebimento da denúncia já será tarefa do juiz da instrução, que além de analisar a exordial acusatória, deverá também decidir eventuais questões pendentes. Aqui, propõe-se uma reflexão importante: se o juiz da instrução pode decidir sobre questões pendentes da fase investigativa, tem-se sensível redução da importância dada ao juiz das garantias, data maxima venia. É que será concedido, ao magistrado da causa, a possibilidade de contato direto, íntimo, com a fase investigativa - hipótese que se busca justamente evitar com o juiz das garantias. De igual modo, em até 10 dias após o oferecimento da denúncia (ou da queixa-crime), o juiz da instrução deverá reexaminar a presença dos requisitos que ensejaram a imposição de medidas cautelares (prisão cautelar ou medidas alternativas). Neste ponto, o STF afastou a regra que previa o relaxamento automático da prisão cautelar, por excesso de prazo na investigação. Aqui, STF levou ao juiz da instrução a possibilidade de reanálise, fato que também atinge a hipótese protetiva do juiz das garantias. Com efeito, para manter ou revogar a prisão cautelar (ou medida alternativa), certamente o magistrado da instrução deverá se debruçar sobre os elementos colhidos na fase investigativa, notadamente dentro do prazo de 10 dias após o recebimento da denúncia, momento processual em que sequer foi estabilizada a relação jurídica processual - inaugurada pela denúncia ou queixa. Mas não é só. Outra questão que também esvazia o juiz das garantias é o entendimento fixado de que os autos de investigação, a partir de agora, devem ser remetidos para o juiz da instrução, obrigatoriamente. Então, a norma processual que previa a permanência dos autos com o juiz das garantias foi declarada inconstitucional. Sendo assim, o juiz da instrução terá a possibilidade de contato com todo o material probatório produzido na fase investigativa, o que acaba por enfraquecer a proteção idealizada pelo instituto do juiz das garantias. Seguindo o tema, o STF fixou entendimento de que o juiz de garantias não será instituído nos processos de competência originária do STJ e do próprio Supremo; aos processos de competência do Tribunal do Júri; aos processos relativos à violência doméstica e familiar, bem como às infrações de menor potencial ofensivo. Em todas as demais esferas de competência, incluindo-se a eleitoral, haverá - obrigatoriamente - a atuação do juiz das garantias. Quanto às investigações criminais conduzidas pelo Ministério Público, o STF entendeu que elas devem ser submetidas, obrigatoriamente, a controle judicial. Desta forma, fixou o prazo de até 90 dias para que os representantes do MP encaminhem todos os PICs (Procedimentos Investigativos Criminais) - ou qualquer outro sob denominação diversa - ao juiz natural da causa, ainda que não se tenha instalado o juiz das garantias. Quanto à audiência de custódia, STF entendeu que ela deve ser, preferencialmente, presencial. A possibilidade da videoconferência deve repousar apenas em casos de urgência, com a devida fundamentação. Por fim, a figura do juiz contaminado, que era prevista no § 5º, do artigo 157, do CPP (O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão) foi declarada inconstitucional, o que reforça o esvaziamento do instituto ora estudado. Em apertada síntese, é o que se extrai do julgamento do STF. Outros pontos, menos polêmicos e mais diretos, também foram objeto de enfrentamento por nossa Suprema Corte, mas que não foram aqui tratados tendo em vista o espaço e a proposta ora debatidos. Assim, em que pese ser um instituto importante, embora supervalorizado por muitos, o juiz das garantias parece perder um pouco de seu papel, notadamente quanto ao reforço da imparcialidade do magistrado sentenciante, fato que enseja ainda mais reflexões sobre o tema, ainda que já com parâmetros devidamente fixados pelo Supremo Tribunal Federal. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 27 de agosto de 2023

O transplante cardíaco

O tema envolvendo transplante de órgãos, apesar de recorrente, veio à tona novamente com a notícia de que o apresentador Fausto Silva, conhecido como Faustão, em razão de uma grave doença cardíaca foi encaminhado para se submeter a um transplante de coração, chamou a atenção da população brasileira ocupando vários espaços dos noticiários mais concorridos. O momento é oportuno para lincar os requisitos para a doação de órgãos post mortem, assim como o procedimento para a realização de um transplante. Quando se fala em doação de órgãos, quer seja durante a vida ou até mesmo após a morte, as pessoas, por desconhecimento, procuram não abordar assunto, que é visto como se fosse uma prática indesejada. Mas, quando a doação é feita, principalmente com a utilização de vários órgãos, tecidos e partes do corpo humano - como foi o caso do apresentador Gugu que beneficiou 50 pacientes americanos que ganharam uma nova dimensão de vida - o ato já tem uma conotação de solidariedade e excede os parâmetros normais da bondade humana. O corpo humano é considerado repositório de órgãos e a medicina consegue realizar a substituição com considerável margem de sucesso, proporcionando ao homem, desta feita, uma melhor qualidade de vida. A doação, em sua essência, pode-se dizer que é um ato que transcende a generosidade humana. A legislação brasileira a respeito (lei 9.434/1997), declara a legitimidade da família para autorizar a retirada de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano após a morte de ente querido, para fins de transplante, compreendendo aqui a pessoa do cônjuge, companheiro ou de parente consanguíneo, maior e juridicamente capaz, na linha reta ou colateral, até o segundo grau, materializado na assinatura do Termo de Consentimento. Se se tratar de incapaz falecido, o documento será assinado por ambos os pais, se vivos, ou do detentor do poder familiar exclusivo, da tutela ou curatela.   Tanto é assim que todas as campanhas de incentivo para conscientizar os doadores recomendam a conversa entre os familiares a respeito de eventual doação. É muito mais fácil para o parente decidir, uma vez que ele tem conhecimento da vontade manifestada anteriormente pelo ente falecido. Com relação ao doador, exige-se a declaração de morte encefálica pelos exames neurológicos realizados por dois médicos não participantes das equipes de captação ou transplante. É possível, também, a participação de um terceiro médico que terá a função de realizar um exame complementar para avaliar se existe fluxo sanguíneo, atividade elétrica ou metabólica encefálica. Na sequência é feita a comunicação à Central Estadual de Transplantes, que irá gerar as seleções dos potenciais receptores cadastrados. Tal procedimento, conhecido por transplante ou transplantação é o ato cirúrgico pelo qual se insere num organismo denominado hospedeiro, um tecido ou órgão, colhido de um doador e evita a indicação de beneficiários por parte dos familiares. O transplante de órgãos, tecidos e células no Brasil é um programa público, garantido a toda população por meio do Sistema único de Saúde (SUS), que conta com a Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT), encarregada que é pelas campanhas educativas de conscientização da população com relação à doação de órgãos feita pelos familiares e sua consequente utilização em transplantes. O paciente, para fazer parte da lista de transplante, deve obedecer aos requisitos técnicos estabelecidos no diagnóstico clínico, observando que o procedimento, em razão de sua complexidade e risco, passa a ser sua última tentativa. Se a indicação for aceita, o paciente ingressa na lista elaborada por ordem cronológica do cadastro dos receptores de cada Estado, que é monitorada pelo sistema de controle federal. Apesar de o Brasil ocupar lugar de destaque no cenário mundial de transplantes, revela um descompasso entre o número de doadores, que é bem inferior ao dos receptores, provocando, em consequência, a demora maior do tempo de espera para o procedimento. A gravidade da doença do receptor - no sentido de que o procedimento deve ser realizado de imediato e é o único recurso médico previsto justificado e comprovado - concorrendo também com a compatibilidade sanguínea, dados antropométricos, além de outras informações clínicas, podem alterar seu ranqueamento e elevá-lo para as primeiras posições, justamente para que possa realizar o mais rápido possível o procedimento e ter chance de retomar sua vida normal, conforme preconiza o princípio da equidade do SUS.
domingo, 20 de agosto de 2023

A extensão dos cuidados paliativos

A convivência entre o homem e a morte remonta à história da própria humanidade. O nascer e o morrer são atos reiterados, vinculados, um compreende o outro, como alfa e ômega. A vida, por si só, é uma preparação para a morte.  Ou se morre de forma repentina ou, em razão de doença que pode se agravar e assumir caráter de irreversibilidade. No primeiro caso, é claro, não há como dispensar qualquer tipo de cuidado à pessoa, preparando-a para o evento final. No segundo, porém, abre-se um campo enorme em razão da solidariedade humana e do espírito cristão que habita o homem, principalmente diante de uma enfermidade incurável. É este o espaço reservado para os cuidados paliativos. De origem latina, a palavra pallium expressa originariamente um manto que os gregos usavam semelhante a uma toga. Posteriormente, ampliou seu significado e alcançou o sentido de coberta ou manta de cama, assim introduzido em nosso vocábulo, designando a proteção, a tutela diferenciada que se confere a uma pessoa em situação de vulnerabilidade em sua saúde, lançando sobre ela a coberta, principalmente quando se encontra no caminho da finitude. Neste diapasão, a inevitabilidade da morte ingressa na vida humana como um tema a ser refletido por médicos, pacientes e familiares, justamente para se estabelecer as decisões a respeito do final de vida, levando-se em consideração o princípio da autonomia da vontade do paciente, os tratamentos e medicamentos que serão conferidos durante os cuidados paliativos.  No Brasil já há vários modelos de atuação na área específica da assistência à terminalidade da vida humana. A história mundial remete aos hospices, que eram abrigos, muitos deles de iniciativas de religiosos, com a finalidade de cuidar dos doentes e das pessoas que estavam morrendo. A prática recomendava que se abandonasse a cura do enfermo em razão da invencibilidade da doença, mas, em compensação, ofertasse a ele ações que suavizassem o processo de morrer. Assim, na natural segregação, aqueles que se encontravam no estado terminal, recebiam o tratamento adequado de final de vida. Buscando uma definição mais singela e apropriada para o tema, pode-se dizer que os cuidados paliativos, num sentido mais abrangente, são ações voltadas ao paciente portador de doença crônica, progressiva e degenerativa, que se encontra em estado irreversível de saúde, visando contemplá-lo com o conforto familiar, espiritual e tudo o mais que possa traduzir em sensação de bem-estar. Num sentido mais apertado, os cuidados voltados para o paciente terminal, cobrindo-o com as mesmas ações. Seria, num linguajar figurativo, nessa última hipótese, tomar o paciente pelas mãos e com ele caminhar com segurança e lentamente até o umbral que interrompe o ciclo vital. É, portanto, uma tarefa especializada, que exige muito mais do que a solidariedade humana. É um profissionalismo diferenciado, que compreende desde a abnegação até o conhecimento da peregrinação que leva à finitude da natureza humana. Daí, muitas vezes, nem mesmo os parentes, apesar de legitimados para tanto também, poderão executá-la a contento, em razão do envolvimento emocional. Sem desprezar também o outro foco dos cuidados paliativos dirigido aos familiares do moribundo, que, acompanharam toda a progressão da moléstia e, com o passar do tempo, sem qualquer resultado satisfatório de cura, vão se consolidando numa posição de aceitação e conforto, aguardando somente a ocorrência final, que, em muitos casos, passa até mesmo a ser desejada. Pessini, de saudosa memória, com a perspicácia de referendado bioeticista que foi, justifica que "a medicina paliativa se desenvolveu como uma reação à medicina moderna altamente tecnificada. Temos o ethos da cura e o ethos da atenção. O ethos da cura inclui as virtudes militares do combate, não se dar por vencido e perseverar, contendo, necessariamente, algo de dureza. O ethos da atenção, pelo contrário, tem como valor central a dignidade humana, enfatizando a solidariedade entre o paciente e os profissionais da saúde, atitude que resulta numa "compaixão efetiva". No ethos da cura o "médico é o general", enquanto no da atenção "o paciente é o soberano".1 É certo que a dor, o medo, a depressão, a insegurança, a ansiedade, o isolamento são circunstâncias que habitam a frágil vida do doente terminal. A mente do enfermo, que ainda opera em meio a tanto tumulto - muitas vezes sem entender a sua própria moléstia - necessita buscar refúgio para se amparar, ou um colo para depositar suas últimas esperanças. Este espaço é destinado à figura do cuidador especializado, que irá entronizar o paciente em uma espécie de redoma, aproximando-o do convívio dos familiares e amigos para que fique ainda conectado com a realidade da vida. Todos os esforços serão envidados para que ele possa sentir a vida até seu último e derradeiro suspiro. A proposta da introdução dos cuidados paliativos vai avançando e permeando tanto a rede pública de saúde como a particular. E, recentemente, conforme noticiado2, alguns grupos solidários criaram a comunidade compassiva que tem por objetivo - seguindo o do modelo do SUS - ofertar ao paciente com doença terminal e faz parte de uma comunidade vulnerável, vinculado a uma Unidade Básica de Saúde, o suporte necessário, não só com visitas à sua moradia, como também atender às demandas específicas de cada um, voltadas para a entrega de medicamentos, fraldas descartáveis, realização de curativos e distribuição de cestas básicas e demais cuidados mitigadores do sofrimento humano. __________ 1 Pessini, Leo: Bertachini, Luciana (orgs.).Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 188. 2 Disponível aqui.
domingo, 13 de agosto de 2023

17 anos da Lei Maria da Penha

Pode-se dizer, até com sobras de razão, que a Lei Maria da Penha (11.340/2006) - que carrega este nome em homenagem à biofarmacêutica que foi vítima de agressão por parte do marido e se tornou paraplégica em razão de um tiro desfechado pelas costas - representa um marco relevante na legislação brasileira e completa agora 17 anos de vigência. Isto porque sua mens legis apresenta um conjunto de ações e condutas voltadas contra a violência doméstica praticada no âmbito das relações familiares, com a entronização da mulher como destinatária da tutela específica, atendendo, desta forma, o preceito do artigo 226 § 8º, da Constituição Federal. Referida lei, em razão de inúmeras decisões dos tribunais, assim como da constante renovação legislativa tem inserido novas modalidades de tutela, vem sendo atualizada e aprimorada, com o intuito de fechar o círculo protetivo das vítimas que se encontram em situação de violência doméstica, não só física, mas mentalmente também. Sem desprezar, é claro, o ajuizamento da ação para pleitear dano moral ou patrimonial. Pelo histórico legislativo pátrio dificilmente uma lei, pelo seu tempo de vigência, conseguiu tamanha façanha. Há justificativa para tanto. O texto do diploma legal traduz de forma cristalina a realidade do dia a dia da convivência sob o mesmo teto, apresentando mecanismos para coibir a violência, além de medidas protetivas de urgência.  Ademais, em alguns casos, ficam evidenciadas a existência de direitos difusos latentes, que permitem uma acomodação interpretativa que vá ao encontro da proteção à mulher em situação de vulnerabilidade. Quando a lei se refere a determinadas pessoas cria normas de conduta que se tornam incompreensíveis para aquelas que foram excluídas. Por isso que, conforme esclarece Hart, "O direito deve referir-se preferencialmente, embora não exclusivamente, a classes de pessoas e a classes de condutas, coisas e circunstâncias; e o êxito de sua atuação sobre vastas áreas da vida social depende de uma capacidade amplamente difusa de reconhecer certos atos, coisas e circunstâncias como manifestações das classificações gerais feitas pelas leis."1 Assim é que a Lei Maria da Penha contempla, em primeiro plano, proporcionar uma mudança no comportamento humano com relação às agressões perpetradas contra esposas, companheiras e namoradas, oferecendo a elas a tutela protetiva emergencial, assim como a criação de políticas públicas para ampará-las contra a violência doméstica e familiar em razão do gênero, E gerou, como consequência inevitável, a criação do tipo penal do feminicídio, de construção recente, com pena mais exacerbada que a do homicídio, também revestido do caráter de hediondez, com a finalidade de proteger a mulher na vivência doméstica e familiar, como, também, evitar qualquer modalidade de menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A título de curiosidade, a prática de homicídio simples prevê uma pena de 6 a 20 anos de reclusão, enquanto que no feminicídio, alojado ali na forma qualificada, a pena é de 12 a 30 anos, também de reclusão, sem contar ainda com os acréscimos em razão do estado gestacional da vítima, se o fato for praticado diante de descendentes ou ascendentes, assim como em razão de descumprimento de medida protetiva. __________ 1 Hart. H.L.A. O conceito de direito. Tradução de Antonio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 161.
A morte da torcedora do Palmeiras - atingida na altura do pescoço por uma garrafa arremessada por alguém que se encontrava na confusão formada pelos torcedores do clube paulista e do Flamengo - vem tomando conta do noticiário policial que investiga a autoria e as circunstâncias deste lamentável episódio. A primeira dificuldade encontrada pela autoridade policial foi com relação à dinâmica para elucidar o responsável pelo arremesso do objeto cortante, uma vez que os vídeos feitos exibiam várias pessoas no local, grande parte lançando objetos contra a torcida adversária. Tanto é que a primeira investida policial culminou com a prisão de um torcedor do clube carioca, suspeito até então de ter sido o responsável pelo lançamento da garrafa que provocou a morte da torcedora paulista. Quatro dias após, no entanto, por ordem judicial, em razão de precipitada conclusão investigativa, foi colocado em liberdade. Posteriormente, em perícia mais detalhada e com suporte científico com a sincronização das imagens das duas torcidas no local, foi identificado um torcedor fazendo o arremesso da garrafa que atingiu mortalmente a vítima. A pergunta que se faz agora quando o tema vem à tona é saber em qual modalidade de culpa se enquadra a conduta do agressor, Fala-se da ocorrência do dolo eventual, que merece um detalhamento doutrinário. No dolo eventual o agente assume o risco de cometer um crime que, embora não seja inicialmente desejado, é previsível e por ele, agente, aceito, por absoluta indiferença quanto à produção do resultado. Neste caso, o agente não deseja, inicialmente, matar alguém. Todavia, ao arremessar a garrafa, o agente revela ter plena consciência de que, agindo desse modo, demonstrando completa indiferença quanto à possibilidade da produção de um resultado, poderá causar ferimento ou até mesmo a morte de alguém (previsibilidade). Nesta linha de raciocínio, o dolo eventual nada mais é do que a modalidade em que o agente não quer o resultado, embora por ele previsto, mas assume o risco de produzi-lo. Nosso Código Penal trouxe expressamente tal possibilidade em seu artigo 18, I, ao adotar a Teoria do Assentimento: "... assumiu o risco de produzi-lo". Com efeito, nosso Código Penal baseou-se em uma teoria criada pelo alemão Reinhart Frank: Teoria Positiva do Conhecimento, que nada mais é do um critério bastante prático para identificação do dolo eventual. Para referido autor há dolo eventual quando o agente diz: Seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir. Denota-se, claramente, a indiferença do agente quanto ao resultado. O dolo eventual não é produto da volição do autor do ilícito, mas sim dos fatos e das circunstâncias que o circundam. Não há necessidade de se penetrar na mente do agente para interpretar sua conduta criminosa. A esse respeito, com exatidão, decidiu o Superior Tribunal de Justiça: "O dolo eventual não é extraído da mente do autor, mas, isso sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que o resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas, isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável."1 Assim, no caso sob investigação, todas as circunstâncias devem ser examinadas cuidadosamente para perquirir a respeito da presença do dolo eventual e, se for assim intentado na denúncia do Ministério Público, o julgamento será da competência do Tribunal do Júri, que é o juiz natural da causa. __________ 1 REsp 247.263/MG, rel. Min. Felix Fisher, 2001.