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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 19 de novembro de 2023

O avanço científico e a clonagem humana

A clonagem humana, apesar da reprovação universal, não se apresenta como um ponto final nas investidas científicas e muito menos como uma ficção inatingível. A ciência, pela sua própria natureza investigativa, não decreta o fim de projetos relacionados com a vida humana. O homem, em razão da sua aguçada inteligência, quer penetrar nos mistérios que rondam seu mundo exterior e não se satisfaz com o ciclo natural estabelecido. Já enveredou pelos desafios dos mares, ares, da terra, dos animais e tudo que se apresenta na natureza. Nem sempre saiu vitorioso, no entanto. Um terremoto, um tsunami, uma tempestade, uma erupção vulcânica, sem falar de uma pandemia como a decretada em razão do coronavírus e outras doenças que ainda não foram desvendadas e muitas delas consideradas irreversíveis, são circunstâncias que, propositadamente, demonstram sua fragilidade e inconsistência científica. Mas, mesmo assim, em nome da ciência, em desabalada carreira, lança-se em estudos e pesquisas para avançar o post mortem e ofertar uma proposta de nova realidade, que seja conveniente e apropriada para a humanidade ou, pelo menos, que a satisfaça emocionalmente. O avanço científico nas diversas áreas não é tão exigido como o relacionado com as ciências da saúde: Com o refinamento cada vez mais acelerado do conhecimento, o homem pretende ser um desbravador de si mesmo e buscar técnicas revolucionárias na biotecnologia, que possam preencher os hiatos científicos existentes. Em tese, são conquistas que pretendem trazer benefícios ou até mesmo um aperfeiçoamento para sua vida, porém passam a trilhar a contramão da ética e tentam fazer um acordo com as células para ter conhecimento de seu universo, assim como saber manejar os comandos genéticos, com a correta distribuição dos genes. As execuções das funções naturais do homem, em todas as suas etapas, desenvolvem-se como meio e fim em si mesmas: a fecundação, o nascimento, a infância, a puberdade, a fase adulta e a idosa. Durante os percursos, o homem vai acumulando conceitos morais e éticos de forma espontânea. Esse processo vincula-se diretamente à razão do próprio desenvolvimento do ser humano, fazendo com que, obedecidos os ritos vitais, possa encontrar a realização almejada, que nada mais é do que a satisfação de seus objetivos. Pode-se afirmar com segurança, de acordo com o pensamento psicanalítico, que a identidade do ser humano passou a existir a partir de Freud. Em mais de cem anos de prática clínica, bate-se pela diferenciação entre a identidade genética com a fenótipa (expressão do gene) e da pessoa (personalidade). Nesta linha de pensamento, percebe-se, claramente, que há uma restrição com relação à clonagem. Por várias razões éticas. É sabido, pelas experiências realizadas em animais, que são necessárias muitas tentativas seguidas e destruição de inúmeros embriões para se conseguir atingir o objetivo, que se mostrou de pouca eficiência, com reiterados abortos de fetos malformados e com morte em curto espaço de tempo. A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, em seu artigo 11, enfatiza: Não é permitida qualquer prática contrária à dignidade humana, como a clonagem reprodutiva de seres humanos. Os Estados e as organizações internacionais pertinentes são convidados a cooperar na identificação dessas práticas e na implementação, em níveis nacional ou internacional, das medidas necessárias para assegurar o respeito aos princípios estabelecidos na presente Declaração.1 O Código de Ética Médica, por sua vez, em seu artigo 15, traz idêntica proibição.2 A Lei de Biossegurança,3 também de forma incisiva, construiu um tipo penal próprio e específico, quando proíbe a realização da clonagem humana e estabelece pena de reclusão de 2 (dois) a cinco (cinco) anos e multa para o responsável pela conduta ilícita. A descrição da conduta penal do agente é direta e objetiva. O legislador não emprega vários verbos, como acontece em alguns crimes complexos para tipificar a conduta. O núcleo da ação é o verbo realizar, que deve ser interpretado com o seu significado literal, no sentido de tornar real, criar, produzir, lançar mão de todos os meios técnicos e científicos para conceber um ser humano idêntico a outro já existente, independentemente dos objetivos.  A simples ação de quebrar a regra da procriação e inverter seu procedimento para se obter artificialmente um clone é uma conduta demonstrativa de dolo intenso, uma vez que é social e penalmente relevante e reprovável. Por essa razão, Moser, de forma magistral, esclarece que: Pela clonagem os seres humanos "enganam" a natureza, trocando a "receita" original por outra estranha, oriunda da mesma espécie, ou então de espécie diferente.4 Tais dispositivos apontados encerram, de uma só vez, conteúdos ético, moral e legal, todos proibitivos, a exemplo de inúmeros outros diplomas mundiais. Já não é o homem e sim a humanidade que se une para coibir qualquer investigação científica na área da clonagem, por entender que não é lícito ao homem contrariar as leis da própria natureza. Se a determinação biológica vem previamente regulada pelo histórico genético - que confere a cada pessoa um tempo limitado de vida - não é plausível que seja dada continuidade a uma vida em curso ou que já se expirou, substituindo-a por outra. A individualidade é fator que determina e especifica o cidadão no meio social, com seus predicados, virtudes e caráter. O substituto artificial jamais conseguirá ocupar o mesmo espaço e receber a mesma avaliação. E, juridicamente, será outra pessoa. ___________ 1 https://www.fiocruz.br/biosseguranca/Bis/manuais/qualidade/Genomdir.pdf. 2 Resolução CFM 2.217/2018 3 Lei 11.105/2005. 4 Moser, Antônio. Biotecnologia e bioética: para onde vamos? Petrópolis: Vozes, 2004, p. 171.
domingo, 12 de novembro de 2023

O xenotransplante que se avizinha

A ciência médica progride a passos longos e, com o dinamismo que lhe é particular, alça voos inimagináveis bem próximos da ficção científica. O propósito que move tamanha especulação é buscar mecanismos, instrumentos e medicamentos para que o ser humano possa encontrar uma qualidade de vida referendada pela boa saúde. E é salutar que nesta peregrinação seja observado o princípio da Beneficência da Bioética para buscar sempre os melhores resultados, maximizando os que tragam dividendos positivos, assim como minimizar aqueles que, por uma circunstância ou outra, possam produzir adventos contrários. Uma das áreas da medicina que vem se destacando com celeridade é justamente aquela relacionada com o transplante de órgãos, tecidos e partes do corpo humano. Não só com relação à precisão cirúrgica como também pela longevidade alcançada. Ocorre que é inevitável o problema da escassez de órgãos humanos, fazendo com que muitos pacientes, em estado delicado de saúde, fiquem aguardando durante longo tempo nas filas dos transplantes a oferta de algum órgão que seja compatível. Isto também se deve porque não há, no Brasil, uma política de divulgação eficaz e penetrante em todas as camadas sociais para que os cidadãos saibam que a doação de órgãos poderá ser comunicada em vida aos familiares e, após sua morte, a autorização somente será ofertada pelo cônjuge ou parente maior de idade, obedecida a linha sucessória reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive, de acordo com o artigo 4º da lei 9.434/97. Daí que, diante desta restrição, o homem, usufruindo de toda a tecnologia até então conquistada, iniciou pesquisas envolvendo animais como doadores de órgãos para receptores humanos, em razão da possibilidade da preparação e manipulação prévia dos órgãos para evitar uma possível rejeição após o procedimento. É o chamado xenotransplante, que na precisa definição de Marcelo Coelho é "o transplante de um órgão, ou tecido, ou células de um animal a outro de espécie distinta e é uma das grandes promessas da medicina para suprir as necessidades de órgãos, tecidos e células transplantáveis".1 Não que a notícia cause estranheza - levando-se em consideração a evolução da transplantação que vai ganhando espaços até então desconhecidos - mas sim pela exemplar conduta científica e o resultado atingido. Animal transgênico é aquele que experimentou mudança em seu patrimônio genético, em consequência da inoculação de um ou vários genes humanos com a finalidade de compatibilizar a realização de transplantes. Tal prática hoje já é uma realidade no meio científico, principalmente com a utilização de porcos transgênicos, cuja anatomia de órgãos é bem semelhante à dos humanos. Não se trata de criação de quimeras da mitologia grega, representada pela cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente, e sim de experimentos científicos voltados para proporcionar benefícios de saúde para o ser humano. A legislação brasileira a respeito da experimentação animal permite a utilização de animais, desde que não sofram dor e que os resultados pretendidos e obtidos tragam ganho à vida e à saúde humana e animal. A lei nº 11.794/2008 estabelece o procedimento para o uso científico dos animais, inclusive, quando for necessária, a morte por meios humanitários, com o mínimo sofrimento físico ou mental, com o rigoroso controle das Comissões de Ética no Uso de Animais (CEUAs). A título de ilustração, nos Estados Unidos, no ano de 2022, um paciente com 57 anos de idade, portador de doença cardíaca terminal, foi submetido a um procedimento e recebeu um coração de porco geneticamente modificado, ofertando, para tanto, seu consentimento em um processo ainda em linha de pesquisa, com riscos e benefícios desconhecidos.2 Qual não foi a surpresa quando o coração funcionou sem a rejeição inicial e só parou de bater dois meses após o xenotransplante? É de conhecimento público, pelas informações veiculadas pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, que o Brasil goza de destaque mundial na realização de transplantes de órgãos, apesar ainda da baixa taxa de doadores efetivos e da consequente diminuição ocorrida durante o período pandêmico. É de se esperar que o estudo anunciado, estribado no melhor embasamento científico e ancorado pelo pensamento bioético, proporcione uma acalentadora esperança para a humanidade. _______________ 1 Marcelo Coelho, Mario. Xenotransplante - ética e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 56. 2 https://www.bbc.com/portuguese/internacional-60682956.
domingo, 5 de novembro de 2023

A intenção do agente no Direito Penal

O Código Penal elenca as condutas consideradas criminosas, tipificando-as para que seja feita a operação jurídica da subsunção do fato à norma. Às vezes, um simples tapa ou até mesmo um empurrão, em ambos imbuído o agente do animus exigido para a prática de uma conduta, podem ensejar interpretações diferentes. Daí a necessidade de se pesquisar com profundidade a real intenção que norteou a conduta do agressor. Em outubro de 2023, repercutiu na mídia o triste episódio envolvendo um homem que, em um ato de descomedimento, empurrou uma senhora de 86 anos que com ele cruzou na calçada em que estavam. A ação resultou em sérias consequências para a idosa: uma fratura no fêmur e ferimentos que necessitaram de intervenção cirúrgica para sutura. Diante da gravidade do acontecimento, o homem foi indiciado pelos crimes de lesão corporal e omissão de socorro.[1] Para fins de aprofundamento do debate, sem perder de vista o respeito pela vítima e demais envolvidos, propõe-se a imaginação de um resultado hipotético diverso: a morte da idosa, por lesões decorrentes do empurrão sofrido. Nesse cenário hipotético, a imersão na vontade do agente - e na assunção de riscos objetivamente previsíveis - traz questões desafiadoras. Isso porque o Direito Penal Brasileiro apresenta diversos institutos, cujas nuances e distinções requerem um exame minucioso e detido. Dentro desse contexto, a morte da vítima resultante de um empurrão do agente provoca a discussão sobre qual o crime perpetrado: Homicídio doloso, por meio do dolo eventual, ou lesão corporal seguida de morte? Prima facie, tem-se que o crime de homicídio doloso, com dolo eventual, caracteriza-se quando o agente, embora não queira diretamente a morte da vítima, assume o risco de produzi-la (artigo 18, inciso I, parte final, do Código Penal). Em outras palavras: o agente não tem a certeza da ocorrência do resultado, mas aceita a possibilidade de sua ocorrência e prossegue com a conduta (o resultado é objetivamente previsível e o agente comporta-se com indiferença, diante dessa previsibilidade de ocorrência). Já o delito de lesão corporal seguida de morte configura-se quando o agente, ao buscar causar dano ou ofensa à integridade física ou saúde da vítima, acaba por causar-lhe a morte. Nesse caso, o agente não prevê nem assume o risco da morte, que se apresenta como consequência não-intencional de sua conduta. Aqui, trata-se do conhecido crime preterdoloso; preterintencional ou da agravação pelo resultado (artigo 19 do Código Penal), isto é, o agente atua com dolo na conduta antecedente (lesão corporal) e culpa no resultado agravador (morte). Outro exemplo é o crime de aborto praticado sem o consentimento da gestante com o resultado morte: a conduta do aborto é dolosa, almejada pelo agente; a morte da gestante é culposa, pois o autor não queria o resultado, embora fosse ele previsível (art. 125 c.c. 127, ambos do Código Penal). Desta forma, retornando à situação hipotética proposta, reitera-se a pergunta proposta. Por qual crime responderia o agente? E a resposta, ao que parece, dependerá do caso concreto. Ao empurrar a vítima, próximo à escada, em avenida movimentada ou a precipício, por exemplo, o agente não deseja necessariamente a morte dela, mas tem consciência de que sua conduta pode levar a tal desfecho. Se, mesmo prevendo essa possibilidade, ele decide empurrar, há a configuração do dolo eventual, salvo melhor juízo. Por outro lado, o agente que empurra a vítima, em um contexto em que não há riscos evidentes para levar à morte (por exemplo, em um ambiente plano) parece conduzir à lesão corporal seguida de morte (artigo 129, § 3º, do código Penal). É que, de forma imprevisível, a vítima acaba por falecer em razão das lesões corporais sofridas. Vale dizer: o resultado morte não era previsível, tampouco foi aceito pelo agente. A distinção entre estas duas modalidades delitivas é crucial, pois as consequências jurídicas entre elas são absolutamente relevantes. Enquanto no homicídio doloso, ainda que praticado com dolo eventual, possui pena privativa de liberdade de 6 a 20 anos (art. 121 do Código Penal), a lesão corporal seguida de morte, que se configura como um crime preterdoloso, possui pena de reclusão de 4 a 12 anos (art. 129, §3º, do Código Penal). Em suma, a chave para a correta tipificação reside na análise da intenção do agente e na previsibilidade do resultado. Porém, esta facilidade repousa, apenas e tão somente, no texto jurídico, sendo certo que sua aplicação, no caso concreto, demanda cautela e profundo estudo sobre o tema. Cum grano salis, como diziam os romanos. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 29 de outubro de 2023

Novembro azul chegando

O calendário da saúde elegeu o mês de novembro - Novembro Azul - com a finalidade de conscientizar os homens para a consulta médica de prevenção de várias doenças e, especialmente, do câncer de próstata, que há muito tempo vem provocando inúmeras mortes. O mês de outubro, por sua vez, foi dedicado às mulheres para conscientizá-las da importância do diagnóstico precoce de câncer de mama e de colo de útero. Com tal proposta, tanto para os homens como para as mulheres, se a doença for descoberta no início, há uma confiável margem de cura. Os exames recomendados para verificar a saúde da próstata são a análise sanguínea do PSA e o toque retal, para homens acima de 50 anos ou os que atingiram 40 quando há histórico de câncer na família e, também, homens negros, que são mais propensos a desenvolver esse tipo de câncer. A Constituição Federal declara em seu artigo 196 que a saúde é direito de todos e aponta o dever do Estado de patrociná-la, compreendendo não só a saúde da mulher, que conta com um arsenal mais completo de recursos, como também a do homem, norteadas ambas pelo princípio isonômico. O Ministério da Saúde editou o programa da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem, buscando a população masculina na faixa etária dos 20 aos 59 anos de idade, com a finalidade de chamar a atenção e despertar o interesse pela própria saúde, além de propiciar a ele os serviços, preventivos ou não, dos agravos com maiores taxas de ocorrência. A Organização Mundial da Saúde, por sua vez, define saúde como um estado de completo bem-estar físico, mental e social e não apenas a ausência de doenças. Assim, os programas de saúde no contexto coletivo são de vital importância, pois uma de suas metas é justamente promover o bem comum com a diminuição dos riscos para a saúde individual e coletiva, além do que cumpre o afirmativo constitucional da dignidade da pessoa humana. Os estudos indicam alguns riscos que favorecem o diagnóstico de câncer de próstata: o primeiro deles é a própria idade. Quando mais idoso, maior a chance de se detectar a doença. O segundo é o histórico familiar da ocorrência da doença entre os membros da família. O terceiro é a obesidade, quando o homem apresentar peso corporal mais elevado. Não se pode, no entanto, obrigar o cidadão a se submeter aos exames de diagnóstico de câncer de próstata. O serviço deve ser oferecido, mas ele, no âmbito de sua autonomia da vontade - que é justamente o seu juízo de autodeterminação e decisão - é que irá decidir e se responsabilizar pela escolha feita. É de se observar que a Nota Técnica nº 9/2023 do Ministério da Saúde, não recomenda o rastreamento populacional do câncer de próstata e, em seu lugar, descortinou amplo atendimento e discussão sobre os possíveis riscos e benefícios para a tomada de decisão compartilhada com os homens que solicitarem exames de rastreio. Em contrapartida, recomenda a realização do exame de antígeno prostático específico (PSA) e o toque retal para a avaliação de homens com elevado risco para neoplasia prostática. Assim, em caso de suspeita de câncer, a investigação e o tratamento adequado, devem ser iniciados de forma célere. Também, como medida de inovação, a recente lei 14.694/2023 - que instituiu o Novembrinho Azul - trouxe mudança relevante. Referida lei tem por objetivo provocar discussão a respeito de medidas de prevenção para meninos de até 15 anos para vislumbrar condições que se apresentem como fatores de risco de doenças adultas, com o oferecimento de serviços e procedimentos da mais avançada tecnologia visando afastar as possíveis doenças futuras.
domingo, 22 de outubro de 2023

A importância do Outubro Rosa

A Constituição Federal, de modo igualitário, assegura o direito à saúde de qualquer cidadão. Não se trata aqui de mera pretensão, mas sim do exercício de um direito fundamental em que o Estado se apresenta como o garantidor em caso de transgressão. Sob este prisma, o direito consagrado como absoluto não poderá sofrer qualquer restrição, pois estará impedindo a configuração de bem-estar das pessoas. Tal introito permite enlaçar o tema relacionado com a campanha de prevenção do câncer de mama, conhecida como Outubro Rosa, já consagrada no país. É certo que se trata de um movimento direcionado a uma parcela da população, mas que, conforme demonstram as estatísticas, apresenta um número cada vez maior de mulheres com diagnósticos da doença e de mortes provocadas pela sua incidência. Daí que, como agente responsável pela condução de políticas para a saúde, o Estado, não só encampou a articulação, como a ampliou também com a intenção de atender o maior número possível de mulheres. A campanha, desta forma, consegue maior adesão entre as mulheres mesmo porque, com certa regularidade, frequentam ginecologistas desde a adolescência, com a realização dos exames recomendados rotineiramente. Em sua origem, no entanto, que teve seu berço em Nova York no ano de 1990, visou propagar uma ação mundial, difusa, compreendendo vários movimentos que se unem em torno da ideia, com a finalidade específica de alertar as mulheres a respeito da prevenção do câncer de mama e, principalmente, na busca do diagnóstico precoce, quando ainda há grande chance para um tratamento exitoso. O movimento atingiu proporção mundial e a mensagem é veiculada por meio de materiais educativos, publicações de artigos esclarecedores, debates e encontros a respeito da proposta, com grande aceitação popular. O próprio Estado já se apresenta como arauto do movimento e desempenha importante papel nesta tarefa, pois cabe a ele a missão constitucional de patrocinar políticas públicas que visem a redução de doenças, tendo como prioridade as ações preventivas. Assim, nesta linha de pensamento, o Governo cuidou de editar políticas públicas necessárias para o diagnóstico precoce e o rastreamento da doença. Lançou, para tanto, a lei 11.664/2008, que trata da efetivação de ações de saúde visando à prevenção, à detecção, o tratamento dos cânceres do colo uterino e de mama, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS). Referida lei confere assistência integral à saúde da mulher, incluindo o trabalho informativo e educativo sobre a prevenção, disponibiliza o exame de mamografia para mulheres a partir de 40 anos de idade, com vistas à detecção, tratamento, controle ou seguimento pós-tratamento da doença. Trata-se da aplicação do princípio bioético da justiça distributiva, tendo como sustentáculo uma ação beneficente obrigatória para que o bem-estar individual possa atingir o bem-estar coletivo, sem peculiaridades diferenciadoras da pessoa humana, em razão da isonomia e da dignidade que a reveste. A assistência diferenciada vem contida também no artigo 2º da lei 12.732, de 22/11/12, que assegura ao paciente, portador de neoplasia maligna, o direito de se submeter ao primeiro tratamento no Sistema Único de Saúde (SUS), no prazo de até 60 (sessenta) dias, contados a partir do dia em que for firmado o diagnóstico em laudo patológico ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso, registrada em prontuário único. Portaria posterior do Ministério da Saúde (nº 1.220/2014) mitigou a interpretação da Lei dos 60 dias e passou a considerar o prazo a partir da data do diagnóstico da doença no exame (laudo patológico). Quer dizer, a data da assinatura do laudo patológico apontará o termo inicial (dies a quo) para a contagem do prazo de 60 dias, obrigando os gestores públicos a tal determinação. A lei 12.880/2013, em seu artigo 1º, inclui entre as coberturas dos planos privados de assistência à saúde os tratamentos antineoplásicos de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia. Já a Lei nº 12.802/2013, por sua vez, obriga o Sistema Único de Saúde (SUS) a realizar cirurgia plástica reparadora da mama, logo após a retirada do câncer, quando presentes as condições médicas. Ausentes, a paciente será encaminhada para posterior cirurgia reparadora. Ainda há muito por se fazer, mas o caminho já percorrido revela que a intenção é expandir cada vez mais ações que envolvam até mesmo as adolescentes.
domingo, 8 de outubro de 2023

Descriminalização do aborto

Nos últimos anos alguns países da América Latina - Uruguai, Guiana, Cuba, Porto Rico, Argentina, Colômbia e agora o México, até então considerados conservadores a respeito do tema - passaram a romper as estruturas sólidas que os amarravam a um conservadorismo fincado em tradições e, graças aos movimentos feministas, conseguiram aprovar a descriminalização do aborto. Paradoxalmente, nos Estados Unidos, alguns estados firmaram posição em insistir na proibição. Na realidade, já existia tal possibilidade quando o ato fosse praticado para salvar a vida da gestante, proveniente de estupro ou de má-formação do feto. O    Senado da Argentina aprovou lei que foi regulamentada pelo Executivo (lei 27.610/2020) estabelecendo a interrupção da gravidez até a 14ª semana de gestação. Após esse período, prevalece a regra anterior consistente em salvar a vida da gestante ou quando a concepção for proveniente de estupro. A proposta fazia parte dos compromissos eleitorais do presidente Alberto Fernández. Na regulamentação legal ficou disciplinado que toda gestante poderá ter acesso ao aborto, que será realizado pelo sistema de saúde, de forma gratuita e segura. As gestantes menores de 13 anos terão acesso ao programa desde que acompanhadas por um dos pais ou do representante legal. Adolescentes entre 13 e 16 anos necessitarão da autorização se o procedimento comprometer sua saúde. Já as maiores de 16 anos terão autonomia plena e decidirão por sua própria conta. No Uruguai a lei existe há mais tempo (lei 18.987/2012). É permitido o aborto, em qualquer circunstância, até a 12ª semana de gestação. Em caso de estupro ou se for para salvar a vida da gestante ou até mesmo de má-formação do feto, pode ocorrer em qualquer período. A gestante será entrevistada por uma equipe multidisciplinar que, dentre outras ponderações, sugerirá a ela a possibilidade de levar adiante a gravidez para entregar posteriormente a criança para adoção. A Colômbia, em recente decisão apertada proferida pela Corte Constitucional (cinco votos a favor e quatro contra), descriminalizou a modalidade e permitiu a realização do aborto até a 24ª semana de gestação e, acima desse período, em qualquer tempo, quando se tratar das hipóteses de estupro, má-formação do feto ou risco de morte da gestante. Por se tratar de uma decisão judicial, há necessidade da intervenção do Congresso para a regulamentação da matéria, mas é certo que nenhuma colombiana poderá ser julgada pela prática do crime abolido. No México, recentemente, a Suprema Corte descriminalizou o aborto até 12 semanas de gestação, declarando inconstitucional a proibição existente, desde que a interrupção seja feita em instituição de saúde credenciada pelo governo Federal. No Brasil, aborto é o produto da concepção eliminado pelo abortamento. É considerado crime pelos tipos penais dos artigos 124 e 126 do Código Penal, com exceção de duas hipóteses: gravidez decorrente de estupro ou quando não há outro meio de salvar a vida da gestante. Em ambos os casos, não há necessidade de obtenção de autorização judicial, como é comentado amiúde. E há também uma terceira hipótese, ainda não formatada em lei, que é a permissão do procedimento quando se tratar de feto anencefálico, tema que foi discutido pelo Supremo Tribunal Federal na ADPF 54 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental). Essa mesma Corte de Justiça, cumprindo sua missão constitucional, palco de relevantes decisões que repercutem sobremaneira na vida brasileira, abriu suas portas para o julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 442), intentada pelo PSOL, pleiteando a descriminalização do aborto voluntário até o terceiro mês de gestação. A fundamentação do pedido apega-se aos direitos da dignidade, da liberdade e da procriação da mulher, conflitantes que são com o regramento penal proibitivo. A primeira indagação que se faz, até mesmo como preliminar para o debate, reside na discutida competência da Corte Suprema para analisar a questão. Questionou-se, ainda no âmbito das audiências públicas, a respeito do ativismo judiciário que, no caso, estaria invadindo a competência do Legislativo, retirando do Congresso o conhecimento da matéria, locus apropriado para expressar a soberania do povo. O Judiciário, por este prisma, não está jungido da legitimidade para fazer nascer um novo direito positivo. A manifestação originária, de pura índole constitucional, fonte que emana todo poder conferido pelo povo, deve ser exercida pelo Congresso Nacional, legitimado que é para discutir e estabelecer regras a respeito de tema tão abrangente, com ampla participação da sociedade, inclusive com a coleta de consulta pública. A restrita área do Judiciário, por onde caminha a pretensão deduzida, figurando como manifestação derivada, irá culminar em uma decisão interpretativa de princípios, de veio nitidamente hermenêutico, sem a chancela popular a respeito da penalização ou não do aborto. É nítido que o tema vem frequentando com certa assiduidade as discussões travadas a seu respeito, fazendo recrudescer cada vez mais a polêmica já instalada. Justamente por não ser um assunto voltado para uma área específica e sim regido pela interdisciplinaridade, em que várias vozes da saúde, psicologia, sociologia, religião, direito, ética e outras tantas populares falam ao mesmo tempo trazendo suas colaborações Não se pode olvidar e nem mesmo deixar de citar parte do memorável voto do então ministro Cezar Peluso, do Supremo Tribunal Federal, na ADPF 54, em 2012, que despenalizou o abortamento de fetos anencéfalos, em tão curto, mas bem postado parágrafo: "Essa tarefa é própria de outra instância, não desta Corte, que já as tem outras e gravíssimas, porque o foro adequado da questão é do Legislativo, que deve ser o intérprete dos valores culturais da sociedade e decidir quais possam ser as diretrizes determinantes da edição de normas jurídicas. É no Congresso Nacional que se deve debater se a chamada 'antecipação do parto', neste caso, deve ser, ou não, considerada excludente de ilicitude."1 Neste caminhar alguns passos já foram dados visando patrocinar a descriminalização do aborto. A 1ª Turma do Supremo Tribunal Federal,2 analisando pedido de revogação de prisão preventiva de cinco pessoas que trabalhavam em uma clínica clandestina de aborto, com votos dos ministros Edson Fachin, Rosa Weber e Luís Roberto Barroso, entendeu que o aborto praticado nos três primeiros meses de gestação não é crime. É certo que a decisão não foi proferida pelo Plenário da mais alta Corte de Justiça do país, mas, de qualquer forma, abre um precedente para que outros juízes, invocando o mesmo entendimento, venham a descriminalizar o aborto. A fundamentação legal teve como base de sustentação a autonomia da vontade da gestante, a proteção da sua integridade física e psíquica, seus direitos sexuais e reprodutivos, além da igualdade de gênero. São direitos de última geração na avaliação de Bobbio e que, inegavelmente, tutelam a mulher na sua função procriativa, observando que, no caso presente, trata-se de gravidez proveniente de prática sexual consentida. Por outro lado, evita-se a criminalização exclusivamente contra as mulheres pobres que não podem se socorrer a um procedimento que seja seguro e patrocinado pelo Estado. A evolução dos costumes traz consigo novas realidades que muitas vezes desmontam a estrutura de valores até então solidamente fincados no universo social e determina uma profunda mudança comportamental. __________ 1 Disponível aqui. 2 HC nº 124.306, de 2017.
domingo, 1 de outubro de 2023

Comitês de Bioética

O conceito social da medicina não se resume exclusivamente na competência e na excelência do serviço prestado pelo profissional da ars curandi, mas envolve, também, relações interdisciplinares com outras ciências visando atender aos reclamos advindos, não só da transformação social, como os resultantes dos incessantes avanços tecnológicos, que acarretam, inevitavelmente, implicações éticas, bioéticas, jurídicas, políticas e outras mais. No atual estágio da medicina - que antevê um futuro com considerável reestruturação nos cuidados médicos e na práxis dos profissionais - destaca-se a relevante função da Bioética. Assim é que as novas tecnologias, que a cada dia vão se acumulando na área da saúde - quer sejam experimentais ou não - vão produzindo realidades diferentes no mundo exterior, provocando reflexo imediato no homem, seu destinatário exclusivo. Kant já traçava que o homem é o fim em si mesmo e não é recomendável, pelo ideal hipocrático, promover a artificialização do ser humano e sim buscar um bom sinalizador para preservar a dignidade existente na pessoa individualizada, conforme preconiza a Constituição Federal. Daí que surge a Bioética com seu ideal humanista como um espaço de reflexão congregando pessoas com diversas formações, não para conter o progresso técnico-científico, que é necessário e salutar, e sim direcioná-lo para acumular benefícios para a humanidade, tendo sempre em relevo o primum non nocere. A Bioética, desta forma, proporciona debates a respeito de temas atuais e provocativos a respeito de realidades até então desconhecidas e inéditas. Tendo como foco as questões de Bioética presentes no dia a dia das instituições e dos profissionais de saúde, principalmente aquelas que causam inquietude acadêmica, o Conselho Federal de Medicina editou a Recomendação 8/2015, incentivando a criação, funcionamento e participação dos médicos nos Comitês de Bioética. Tais colegiados não se assemelham aos Comitês de Ética em Pesquisa (CEPs), regulamentados pela Resolução 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde, que cuida do respeito, dignidade e segurança dos participantes de pesquisas científicas envolvendo seres humanos. O Comitê de Bioética, por sua vez, compreende um colegiado multiprofissional, envolvendo médicos e representantes de diversos setores da sociedade, com o objetivo de auxiliar na reflexão e na solução de questões relacionadas à moral e à Bioética que surgem na atenção aos pacientes. Daí que as funções prioritárias são: a) dispor sobre e subsidiar decisões envolvendo questões de ordem moral; b) sugerir a criação e a alteração de normas ou de documentos institucionais em assuntos que envolvam questões Bioéticas; c) Promover ações educativas em Bioética. Uma decisão médica - levando-se em consideração a relevância do princípio da autonomia da vontade do paciente - necessita muitas vezes da conjugação de outras vontades para se atingir o pluralismo ideal e necessário para se atingir o princípio da beneficência. A formação em Bioética por parte do profissional da saúde é de inegável importância, vez que na decisão médica está compreendida também um rol de outros problemas e dilemas, exigindo, desta forma, não só a participação do paciente, seus familiares e outras pessoas, formando um colegiado multidisciplinar com a finalidade de buscar uma solução que seja adequada para a atenção devida ao paciente. Surge, diante de tal propósito, o Comitê de Bioética como uma plataforma administrativa para receber e analisar os conflitos de ordem ética, moral, religiosa ou de qualquer outra procedência, com a restrição de não impor decisão e nem emitir juízos de valor sobre práticas profissionais. Basta ver que o princípio da autonomia da vontade do paciente ganhou considerável espaço no Código de Ética Médica, como, por exemplo, a deliberação a respeito do final da vida que, às vezes, colide com condutas médicas amparadas pelo princípio da beneficência ou até mesmo vai contra a vontade do representante e dos familiares do paciente. Isto porque os fatos científicos, em certos momentos, se entrelaçam com contornos sociais aparentando uma certa colidência na regulação ética das práticas humanas e exigem uma atuação compartilhada de um grupo que tenha sólida formação em humanidades, para extrair uma postura que seja considerada adequada e recomendada ao caso. Pode-se dizer que aí reside a marca identitária da Bioética e seu papel interventivo diante de um dilema que exige uma convergência de respostas. É a ética cívica indispensável para uma sociedade que avança destemida para um futuro que se guiará pelos mais complexos progressos biotecnológicos na área da saúde.
domingo, 24 de setembro de 2023

A odontologia e o pensamento bioético

A bioética, ao contrário do direito, não se apresenta com um código bioético exigindo uma interpretação sistemática para encontrar a concretização de seus objetivos. Como bem ponderou Habermas: Limita-se a apresentar seus princípios e seus desígnios teleológicos e daí em diante procura se introduzir no sistema social para encontrar espaços para que possa habitar e oferecer as condições mais favoráveis, oportunas e convenientes ao ser humano no sentido de concretizar seus objetivos.1 A nova ciência da bioética surgiu, com toda força e projeção com o Julgamento de Nuremberg, em 1947, quando começou a reflexão a respeito da ética biomédica contemporânea. Condenava-se a pesquisa com seres humanos sem o seu livre consentimento.  No ano seguinte, em 1948, a Declaração Universal dos Direitos do Homem e o Código de Nuremberg proporcionaram uma nova tutela aos direitos individuais e coletivos com uma dimensão diferenciada do ser humano e das condições favoráveis para o seu desenvolvimento. O termo "Bioética" foi introduzido pela primeira vez em 1927 pelo filósofo tedesco e psicólogo Fritz Jahar (1895-1953) e, mais recentemente, pelo, oncologista Van Rensslaer Potter, em seu livro Bioethics. Bridge to the Future" Já, em 1970, ocupando um espaço mais amplo, a bioética se intitulou ética das ciências O avanço e a evolução da sociedade, dos costumes, do incessante desenvolvimento das pesquisas em seres humanos, do início ao final da vida, como a eleição do sexo do filho, a clonagem de seres humanos, as terapias gênicas, os métodos de reprodução humana assistida, a maternidade substitutiva, a eugenia, a eutanásia, a distanásia, a ortotanásia, a escolha do tempo para nascer e morrer, a engenharia genética, a cirurgia de transgenitalização, a utilização da tecnologia do DNA recombinante, a utilização das células-tronco embrionárias, o transplante de órgãos e tecidos humanos, a biotecnologia e muitos outros avanços científicos aqui não enumerados, abriram um leque imenso de atuação na saúde, principalmente na área de pesquisa e laboratorial. As novas tecnologias que pareciam ainda distantes batem às portas dos grandes centros de pesquisas e se fazem presentes para a utilização nos seres humanos. A perplexidade ultrapassa as raias da curiosidade e faz nascer um novo campo onde se concentram a ética e a bioética, ambas à procura de definição, de direcionamento e soluções para seus conflitos. A inter, a multi e a transdisciplinaridade da bioética avançam em todas as áreas de atuação do ser humano e não se limitam somente ao campo da saúde. De ciência criada para proteger o meio ambiente para que o homem pudesse desenvolver a contento suas atividades, atingiu sua plenitude como ciência da vida. Assim, no estágio atual, em que os avanços científicos vão se proliferando e se incorporando à vida cotidiana, o pensamento bioético vai se alastrando e se incorporando às novas condutas e ganha uma imensa dimensão para lançar seus tentáculos visando proporcionar ao homem as melhores condições do viver, com qualidade e dignidade. Com ampliação dos meios biotecnológicos, da evolução da própria sociedade e costumes, há necessidade de se fazer uma revisitação aos conceitos éticos originários e providenciar uma nova roupagem que seja adequada e coerente com os dias atuais. A tecnologia, no entanto, deve ser colocada a serviço do homem, estar ao seu alcance e controle. E, principalmente, selecionar aquelas que são mais pertinentes para melhorar sua qualidade de vida. Obriga-se o homem, desta forma, a sair de sua função de espectador e a participar ativamente do processo que irá definir a "ética da vida". A pessoa humana é centrada no núcleo de toda atividade científica e clínica e se tornará construtora de si mesma, com o conteúdo necessário e racional para facilitar a realização de seus ideais sociais. A definição desta nova ciência, a mais jovem de todas, com seu formato atual, foi lançada na segunda edição da Encyclopedia of Bioethics, com a seguinte ementa: "Estudo sistemático das dimensões morais das ciências da vida e do cuidado da saúde, utilizando uma variedade de metodologias éticas num contexto multidisciplinar". Sua aplicação não se limita somente à área médica. É a leitura de muitos olhos a respeito de problemas individuais e coletivos, com a intenção de discutir os mais complexos dilemas e buscar a melhor solução, a mais próxima e condizente com a dignidade humana. O odontólogo, como cirurgião que é, realiza práticas invasivas no ser humano, daí a necessidade de confeccionar o TCE, estabelecido pela resolução 466/12 do CNS. O odontólogo deve, em primeiro lugar, informar o paciente - detentor da titularidade da autonomia da vontade - a respeito das opções diagnósticas ou terapêuticas, apontar eventuais riscos existentes em cada uma delas e, em seguida, obter dele ou de seu representante legal, o consentimento para sua intervenção. Aplica-se, da mesma forma, o princípio de beneficência, representado pela parêmia primum non nocere, que pode ser traduzida como a preocupação do profissional buscar sempre o bem à saúde e à vida do paciente, envidando todos os esforços para maximizar os benefícios e minimizar os eventuais danos. Preza-se, com tais medidas indicadas pelo pensamento bioético, não só a valorização do ser humano, preservando racionalmente sua dignidade, mas também dar a ele o direito de escolher o tratamento que julgar mais conveniente e adequado. A bioética eleva o pensamento e procura instrumentos que possam proporcionar melhores condições de vida para o ser humano e também brindá-lo com instrumentos eficazes para buscar sua realização, sua afirmação profissional e a segurança do paciente. ---------------------------------------------- 1 Habermas, Jürgen.   Teoria e práxis: estudos de filosofia social. Tradução de Rúrion  Melo. São Paulo: Editora Unesp, 2013, p. 514
domingo, 17 de setembro de 2023

Doação de órgãos presumida

Com o advento da pandemia ocorreu uma expressiva queda na doação de órgãos e, consequentemente, um acentuado declínio na realização de transplantes, além de aumentar consideravelmente a lista de espera para o procedimento. O Brasil, assim como outros países, experimentou uma redução de seus índices e procura uma fórmula mais adequada para incrementar, a curto prazo, medidas que possam dar continuidade à invejável projeção alcançada antes do período pandêmico. Agora, recentemente, fato novo veio à tona com o bem-sucedido transplante de coração a que foi submetido o apresentador Fausto Silva. A população acompanhou detalhadamente todo o caminhar progressivo do paciente até receber o órgão doado e a posterior alta hospitalar. A conclusão outra não foi a não ser aplaudir tal prática que tem eficácia mais do que comprovada. Ficou evidenciado que o homem quer, a todo custo, prolongar sua vida. Pode até ser uma vocação natural procurar viver mais e, para tanto, corrigir os defeitos para se atingir uma existência mais rica, voltada para valores espirituais, de liberdade, da própria dignidade humana, de solidariedade social. É uma eterna recriação. A medicina detecta o órgão doente, e, em seguida, através de uma intervenção reparadora-destruidora-substitutiva, consegue manipular um órgão são e recolhido de outro organismo, corrigindo aquele comprometido na sua funcionalidade. Na sequência, como se tudo fosse orquestrado, alguns projetos de leis que gravitavam em torno do tema, ganharam espaço, principalmente aqueles relacionados com a doação de órgãos presumida, que já fez parte do texto original da lei 9.434/97, oportunidade em que admitia a possibilidade da doação presumida de órgãos e tecidos, devendo o cidadão fazer constar da sua Carteira Nacional de Habilitação se era ou não doador. A lei 10.211/2001, no entanto, alterou esta opção e prevalece agora somente a vontade do cônjuge ou parente até o segundo grau. Quer dizer, o desejo manifestado anteriormente pelo cidadão a respeito da utilização ou não das partes de seu corpo e órgãos, não mais se concretiza e prevalece o ditado pelos interesses dos familiares ou responsáveis A nova tendência legislativa é fazer prevalecer a doação presumida post mortem também conhecida por "silêncio-consentimento" de órgãos e tecidos, aquela em que a pessoa em vida faz uma declaração para ser realizada após a morte. Como a que prevalece em alguns países. Na Espanha, por exemplo, a pessoa já nasce sendo doadora de órgãos e qualquer restrição em contrário, deve constar de documento de uso pessoal. A nova proposta faz prevalecer o princípio da autonomia da vontade do paciente, um dos sustentáculos da Bioética. Da mesma forma em que, no tratamento terapêutico prevalece a autonomia do paciente, regida pelo princípio da autodeterminação, a disposição do corpo, suas partes e órgãos ficariam, com igual razão, ao indivíduo. Uma vez que o corpo a ele pertence, poderia direcionar a finalidade que julgar conveniente, principalmente quando se encontrar lúcido e consciente, diante de uma futilidade terapêutica. Mas, na realidade, a pessoa não exerce com exclusividade a propriedade de seu corpo. Assim, mais uma vez, ocorre a prevalência do interesse estatal, em detrimento da vontade individual do cidadão. Não se trata de uma regra de proibição, mas sim de disciplina do procedimento. Pretender prevalecer sua escolha em doar os órgãos a determinada pessoa post mortem, não terá nenhuma eficácia, pois a vontade que predomina é a do Estado, que regulamentará e indicará o paciente a ser beneficiado. Não é também uma forma de "estatização dos cadáveres", mas sim um gerenciamento para uma correta distribuição dos órgãos e tecidos humanos às pessoas cadastradas e que aguardam um transplante para ter chance de uma vida digna. Enfim, como o bom vento vai inflando a esperança  da comunidade, o momento é propício para a aprovação legislativa da proposta.
domingo, 3 de setembro de 2023

Reflexões a respeito do juiz das garantias

O Código de Processo Penal foi promulgado em 1941 e, durante sua longa trajetória de vigência, vários institutos foram modificados e alterados com a intenção de atualizá-lo e, principalmente, adequá-lo às diretrizes da Constituição Federal de 1988. Isto demonstra que a legislação processual penal, apesar de condensada em um vetusto código, necessita constantemente de leis esparsas justamente para que as novas construções jurídicas tenham espaços para dinamizar as relações processuais, conferindo não só a proteção da sociedade como a prevalência e garantia dos direitos do acusado. Na sessão do dia 24 de agosto de 2023, a presidente do Supremo Tribunal Federal (STF), ministra Rosa Weber, proclamou o resultado do julgamento das quatro Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs 6298, 6299, 6300 e 6305) que questionavam alterações no Código de Processo Penal (CPP) pelo Pacote Anticrime (lei 13964/2019), entre elas a criação do juiz das garantias1. Destarte, em que pese ser um instituto objeto de inúmeros questionamentos doutrinários, têm-se por necessárias algumas reflexões sobre o juiz das garantias, sem o escopo de se esgotar o tema neste espaço. Sendo assim, pode-se destacar, inicialmente, que "o juiz das garantias é responsável pelo controle da legalidade da investigação criminal e pela salvaguarda dos direitos individuais cuja franquia tenha sido reservada à autorização prévia do Poder Judiciário" (art. 3-B do CPP). Ou seja, relevante função emerge ao juiz das garantias para controlar as matérias resguardadas pela cláusula de reserva de jurisdição, isto é, aquelas que somente podem ser apreciadas e concedidas pelo Poder Judiciário (interceptação telefônica, por exemplo). Ademais, a razão de ser do juiz das garantias repousa, também, no fato de se buscar a imparcialidade do magistrado que irá sentenciar o feito, já que, como regra geral, ele não teria (ou não deveria ter) contato algum com o material probatório produzido na primeira fase da persecutio criminis. Deste modo, o primeiro entendimento fixado pelo STF é o de que o artigo 3-B do CPP é norma de aplicação obrigatória, tendo todos os Tribunais brasileiros (estaduais e federais, portanto), o prazo de 12 meses, prorrogável por mais 12 meses, a partir da publicação da ata do julgamento, para a adoção das medidas legislativas e administrativas necessárias à adequação das diferentes leis de organização judiciária, à efetiva implantação e ao efetivo funcionamento do juiz das garantias em todo o país, conforme as diretrizes do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Outro ponto sensível da questão era o termo processual ad quem do juiz das garantias: até onde atua o juiz das garantias? Qual o ato processual que encerra sua competência jurisdicional? Essa questão ainda reverbera com intensidade na doutrina processual brasileira, tendo o STF fixado o oferecimento da denúncia como o ato em que se encerra a competência do juiz das garantias. Logo, pode-se concluir que o recebimento da denúncia já será tarefa do juiz da instrução, que além de analisar a exordial acusatória, deverá também decidir eventuais questões pendentes. Aqui, propõe-se uma reflexão importante: se o juiz da instrução pode decidir sobre questões pendentes da fase investigativa, tem-se sensível redução da importância dada ao juiz das garantias, data maxima venia. É que será concedido, ao magistrado da causa, a possibilidade de contato direto, íntimo, com a fase investigativa - hipótese que se busca justamente evitar com o juiz das garantias. De igual modo, em até 10 dias após o oferecimento da denúncia (ou da queixa-crime), o juiz da instrução deverá reexaminar a presença dos requisitos que ensejaram a imposição de medidas cautelares (prisão cautelar ou medidas alternativas). Neste ponto, o STF afastou a regra que previa o relaxamento automático da prisão cautelar, por excesso de prazo na investigação. Aqui, STF levou ao juiz da instrução a possibilidade de reanálise, fato que também atinge a hipótese protetiva do juiz das garantias. Com efeito, para manter ou revogar a prisão cautelar (ou medida alternativa), certamente o magistrado da instrução deverá se debruçar sobre os elementos colhidos na fase investigativa, notadamente dentro do prazo de 10 dias após o recebimento da denúncia, momento processual em que sequer foi estabilizada a relação jurídica processual - inaugurada pela denúncia ou queixa. Mas não é só. Outra questão que também esvazia o juiz das garantias é o entendimento fixado de que os autos de investigação, a partir de agora, devem ser remetidos para o juiz da instrução, obrigatoriamente. Então, a norma processual que previa a permanência dos autos com o juiz das garantias foi declarada inconstitucional. Sendo assim, o juiz da instrução terá a possibilidade de contato com todo o material probatório produzido na fase investigativa, o que acaba por enfraquecer a proteção idealizada pelo instituto do juiz das garantias. Seguindo o tema, o STF fixou entendimento de que o juiz de garantias não será instituído nos processos de competência originária do STJ e do próprio Supremo; aos processos de competência do Tribunal do Júri; aos processos relativos à violência doméstica e familiar, bem como às infrações de menor potencial ofensivo. Em todas as demais esferas de competência, incluindo-se a eleitoral, haverá - obrigatoriamente - a atuação do juiz das garantias. Quanto às investigações criminais conduzidas pelo Ministério Público, o STF entendeu que elas devem ser submetidas, obrigatoriamente, a controle judicial. Desta forma, fixou o prazo de até 90 dias para que os representantes do MP encaminhem todos os PICs (Procedimentos Investigativos Criminais) - ou qualquer outro sob denominação diversa - ao juiz natural da causa, ainda que não se tenha instalado o juiz das garantias. Quanto à audiência de custódia, STF entendeu que ela deve ser, preferencialmente, presencial. A possibilidade da videoconferência deve repousar apenas em casos de urgência, com a devida fundamentação. Por fim, a figura do juiz contaminado, que era prevista no § 5º, do artigo 157, do CPP (O juiz que conhecer do conteúdo da prova declarada inadmissível não poderá proferir a sentença ou acórdão) foi declarada inconstitucional, o que reforça o esvaziamento do instituto ora estudado. Em apertada síntese, é o que se extrai do julgamento do STF. Outros pontos, menos polêmicos e mais diretos, também foram objeto de enfrentamento por nossa Suprema Corte, mas que não foram aqui tratados tendo em vista o espaço e a proposta ora debatidos. Assim, em que pese ser um instituto importante, embora supervalorizado por muitos, o juiz das garantias parece perder um pouco de seu papel, notadamente quanto ao reforço da imparcialidade do magistrado sentenciante, fato que enseja ainda mais reflexões sobre o tema, ainda que já com parâmetros devidamente fixados pelo Supremo Tribunal Federal. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 27 de agosto de 2023

O transplante cardíaco

O tema envolvendo transplante de órgãos, apesar de recorrente, veio à tona novamente com a notícia de que o apresentador Fausto Silva, conhecido como Faustão, em razão de uma grave doença cardíaca foi encaminhado para se submeter a um transplante de coração, chamou a atenção da população brasileira ocupando vários espaços dos noticiários mais concorridos. O momento é oportuno para lincar os requisitos para a doação de órgãos post mortem, assim como o procedimento para a realização de um transplante. Quando se fala em doação de órgãos, quer seja durante a vida ou até mesmo após a morte, as pessoas, por desconhecimento, procuram não abordar assunto, que é visto como se fosse uma prática indesejada. Mas, quando a doação é feita, principalmente com a utilização de vários órgãos, tecidos e partes do corpo humano - como foi o caso do apresentador Gugu que beneficiou 50 pacientes americanos que ganharam uma nova dimensão de vida - o ato já tem uma conotação de solidariedade e excede os parâmetros normais da bondade humana. O corpo humano é considerado repositório de órgãos e a medicina consegue realizar a substituição com considerável margem de sucesso, proporcionando ao homem, desta feita, uma melhor qualidade de vida. A doação, em sua essência, pode-se dizer que é um ato que transcende a generosidade humana. A legislação brasileira a respeito (lei 9.434/1997), declara a legitimidade da família para autorizar a retirada de órgãos, tecidos, células e partes do corpo humano após a morte de ente querido, para fins de transplante, compreendendo aqui a pessoa do cônjuge, companheiro ou de parente consanguíneo, maior e juridicamente capaz, na linha reta ou colateral, até o segundo grau, materializado na assinatura do Termo de Consentimento. Se se tratar de incapaz falecido, o documento será assinado por ambos os pais, se vivos, ou do detentor do poder familiar exclusivo, da tutela ou curatela.   Tanto é assim que todas as campanhas de incentivo para conscientizar os doadores recomendam a conversa entre os familiares a respeito de eventual doação. É muito mais fácil para o parente decidir, uma vez que ele tem conhecimento da vontade manifestada anteriormente pelo ente falecido. Com relação ao doador, exige-se a declaração de morte encefálica pelos exames neurológicos realizados por dois médicos não participantes das equipes de captação ou transplante. É possível, também, a participação de um terceiro médico que terá a função de realizar um exame complementar para avaliar se existe fluxo sanguíneo, atividade elétrica ou metabólica encefálica. Na sequência é feita a comunicação à Central Estadual de Transplantes, que irá gerar as seleções dos potenciais receptores cadastrados. Tal procedimento, conhecido por transplante ou transplantação é o ato cirúrgico pelo qual se insere num organismo denominado hospedeiro, um tecido ou órgão, colhido de um doador e evita a indicação de beneficiários por parte dos familiares. O transplante de órgãos, tecidos e células no Brasil é um programa público, garantido a toda população por meio do Sistema único de Saúde (SUS), que conta com a Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes (CGSNT), encarregada que é pelas campanhas educativas de conscientização da população com relação à doação de órgãos feita pelos familiares e sua consequente utilização em transplantes. O paciente, para fazer parte da lista de transplante, deve obedecer aos requisitos técnicos estabelecidos no diagnóstico clínico, observando que o procedimento, em razão de sua complexidade e risco, passa a ser sua última tentativa. Se a indicação for aceita, o paciente ingressa na lista elaborada por ordem cronológica do cadastro dos receptores de cada Estado, que é monitorada pelo sistema de controle federal. Apesar de o Brasil ocupar lugar de destaque no cenário mundial de transplantes, revela um descompasso entre o número de doadores, que é bem inferior ao dos receptores, provocando, em consequência, a demora maior do tempo de espera para o procedimento. A gravidade da doença do receptor - no sentido de que o procedimento deve ser realizado de imediato e é o único recurso médico previsto justificado e comprovado - concorrendo também com a compatibilidade sanguínea, dados antropométricos, além de outras informações clínicas, podem alterar seu ranqueamento e elevá-lo para as primeiras posições, justamente para que possa realizar o mais rápido possível o procedimento e ter chance de retomar sua vida normal, conforme preconiza o princípio da equidade do SUS.
domingo, 20 de agosto de 2023

A extensão dos cuidados paliativos

A convivência entre o homem e a morte remonta à história da própria humanidade. O nascer e o morrer são atos reiterados, vinculados, um compreende o outro, como alfa e ômega. A vida, por si só, é uma preparação para a morte.  Ou se morre de forma repentina ou, em razão de doença que pode se agravar e assumir caráter de irreversibilidade. No primeiro caso, é claro, não há como dispensar qualquer tipo de cuidado à pessoa, preparando-a para o evento final. No segundo, porém, abre-se um campo enorme em razão da solidariedade humana e do espírito cristão que habita o homem, principalmente diante de uma enfermidade incurável. É este o espaço reservado para os cuidados paliativos. De origem latina, a palavra pallium expressa originariamente um manto que os gregos usavam semelhante a uma toga. Posteriormente, ampliou seu significado e alcançou o sentido de coberta ou manta de cama, assim introduzido em nosso vocábulo, designando a proteção, a tutela diferenciada que se confere a uma pessoa em situação de vulnerabilidade em sua saúde, lançando sobre ela a coberta, principalmente quando se encontra no caminho da finitude. Neste diapasão, a inevitabilidade da morte ingressa na vida humana como um tema a ser refletido por médicos, pacientes e familiares, justamente para se estabelecer as decisões a respeito do final de vida, levando-se em consideração o princípio da autonomia da vontade do paciente, os tratamentos e medicamentos que serão conferidos durante os cuidados paliativos.  No Brasil já há vários modelos de atuação na área específica da assistência à terminalidade da vida humana. A história mundial remete aos hospices, que eram abrigos, muitos deles de iniciativas de religiosos, com a finalidade de cuidar dos doentes e das pessoas que estavam morrendo. A prática recomendava que se abandonasse a cura do enfermo em razão da invencibilidade da doença, mas, em compensação, ofertasse a ele ações que suavizassem o processo de morrer. Assim, na natural segregação, aqueles que se encontravam no estado terminal, recebiam o tratamento adequado de final de vida. Buscando uma definição mais singela e apropriada para o tema, pode-se dizer que os cuidados paliativos, num sentido mais abrangente, são ações voltadas ao paciente portador de doença crônica, progressiva e degenerativa, que se encontra em estado irreversível de saúde, visando contemplá-lo com o conforto familiar, espiritual e tudo o mais que possa traduzir em sensação de bem-estar. Num sentido mais apertado, os cuidados voltados para o paciente terminal, cobrindo-o com as mesmas ações. Seria, num linguajar figurativo, nessa última hipótese, tomar o paciente pelas mãos e com ele caminhar com segurança e lentamente até o umbral que interrompe o ciclo vital. É, portanto, uma tarefa especializada, que exige muito mais do que a solidariedade humana. É um profissionalismo diferenciado, que compreende desde a abnegação até o conhecimento da peregrinação que leva à finitude da natureza humana. Daí, muitas vezes, nem mesmo os parentes, apesar de legitimados para tanto também, poderão executá-la a contento, em razão do envolvimento emocional. Sem desprezar também o outro foco dos cuidados paliativos dirigido aos familiares do moribundo, que, acompanharam toda a progressão da moléstia e, com o passar do tempo, sem qualquer resultado satisfatório de cura, vão se consolidando numa posição de aceitação e conforto, aguardando somente a ocorrência final, que, em muitos casos, passa até mesmo a ser desejada. Pessini, de saudosa memória, com a perspicácia de referendado bioeticista que foi, justifica que "a medicina paliativa se desenvolveu como uma reação à medicina moderna altamente tecnificada. Temos o ethos da cura e o ethos da atenção. O ethos da cura inclui as virtudes militares do combate, não se dar por vencido e perseverar, contendo, necessariamente, algo de dureza. O ethos da atenção, pelo contrário, tem como valor central a dignidade humana, enfatizando a solidariedade entre o paciente e os profissionais da saúde, atitude que resulta numa "compaixão efetiva". No ethos da cura o "médico é o general", enquanto no da atenção "o paciente é o soberano".1 É certo que a dor, o medo, a depressão, a insegurança, a ansiedade, o isolamento são circunstâncias que habitam a frágil vida do doente terminal. A mente do enfermo, que ainda opera em meio a tanto tumulto - muitas vezes sem entender a sua própria moléstia - necessita buscar refúgio para se amparar, ou um colo para depositar suas últimas esperanças. Este espaço é destinado à figura do cuidador especializado, que irá entronizar o paciente em uma espécie de redoma, aproximando-o do convívio dos familiares e amigos para que fique ainda conectado com a realidade da vida. Todos os esforços serão envidados para que ele possa sentir a vida até seu último e derradeiro suspiro. A proposta da introdução dos cuidados paliativos vai avançando e permeando tanto a rede pública de saúde como a particular. E, recentemente, conforme noticiado2, alguns grupos solidários criaram a comunidade compassiva que tem por objetivo - seguindo o do modelo do SUS - ofertar ao paciente com doença terminal e faz parte de uma comunidade vulnerável, vinculado a uma Unidade Básica de Saúde, o suporte necessário, não só com visitas à sua moradia, como também atender às demandas específicas de cada um, voltadas para a entrega de medicamentos, fraldas descartáveis, realização de curativos e distribuição de cestas básicas e demais cuidados mitigadores do sofrimento humano. __________ 1 Pessini, Leo: Bertachini, Luciana (orgs.).Humanização e cuidados paliativos. São Paulo: Edições Loyola, 2009, p. 188. 2 Disponível aqui.
domingo, 13 de agosto de 2023

17 anos da Lei Maria da Penha

Pode-se dizer, até com sobras de razão, que a Lei Maria da Penha (11.340/2006) - que carrega este nome em homenagem à biofarmacêutica que foi vítima de agressão por parte do marido e se tornou paraplégica em razão de um tiro desfechado pelas costas - representa um marco relevante na legislação brasileira e completa agora 17 anos de vigência. Isto porque sua mens legis apresenta um conjunto de ações e condutas voltadas contra a violência doméstica praticada no âmbito das relações familiares, com a entronização da mulher como destinatária da tutela específica, atendendo, desta forma, o preceito do artigo 226 § 8º, da Constituição Federal. Referida lei, em razão de inúmeras decisões dos tribunais, assim como da constante renovação legislativa tem inserido novas modalidades de tutela, vem sendo atualizada e aprimorada, com o intuito de fechar o círculo protetivo das vítimas que se encontram em situação de violência doméstica, não só física, mas mentalmente também. Sem desprezar, é claro, o ajuizamento da ação para pleitear dano moral ou patrimonial. Pelo histórico legislativo pátrio dificilmente uma lei, pelo seu tempo de vigência, conseguiu tamanha façanha. Há justificativa para tanto. O texto do diploma legal traduz de forma cristalina a realidade do dia a dia da convivência sob o mesmo teto, apresentando mecanismos para coibir a violência, além de medidas protetivas de urgência.  Ademais, em alguns casos, ficam evidenciadas a existência de direitos difusos latentes, que permitem uma acomodação interpretativa que vá ao encontro da proteção à mulher em situação de vulnerabilidade. Quando a lei se refere a determinadas pessoas cria normas de conduta que se tornam incompreensíveis para aquelas que foram excluídas. Por isso que, conforme esclarece Hart, "O direito deve referir-se preferencialmente, embora não exclusivamente, a classes de pessoas e a classes de condutas, coisas e circunstâncias; e o êxito de sua atuação sobre vastas áreas da vida social depende de uma capacidade amplamente difusa de reconhecer certos atos, coisas e circunstâncias como manifestações das classificações gerais feitas pelas leis."1 Assim é que a Lei Maria da Penha contempla, em primeiro plano, proporcionar uma mudança no comportamento humano com relação às agressões perpetradas contra esposas, companheiras e namoradas, oferecendo a elas a tutela protetiva emergencial, assim como a criação de políticas públicas para ampará-las contra a violência doméstica e familiar em razão do gênero, E gerou, como consequência inevitável, a criação do tipo penal do feminicídio, de construção recente, com pena mais exacerbada que a do homicídio, também revestido do caráter de hediondez, com a finalidade de proteger a mulher na vivência doméstica e familiar, como, também, evitar qualquer modalidade de menosprezo ou discriminação à condição de mulher. A título de curiosidade, a prática de homicídio simples prevê uma pena de 6 a 20 anos de reclusão, enquanto que no feminicídio, alojado ali na forma qualificada, a pena é de 12 a 30 anos, também de reclusão, sem contar ainda com os acréscimos em razão do estado gestacional da vítima, se o fato for praticado diante de descendentes ou ascendentes, assim como em razão de descumprimento de medida protetiva. __________ 1 Hart. H.L.A. O conceito de direito. Tradução de Antonio de Oliveira Sette-Câmara. São Paulo: Martins Fontes, 2009, p. 161.
A morte da torcedora do Palmeiras - atingida na altura do pescoço por uma garrafa arremessada por alguém que se encontrava na confusão formada pelos torcedores do clube paulista e do Flamengo - vem tomando conta do noticiário policial que investiga a autoria e as circunstâncias deste lamentável episódio. A primeira dificuldade encontrada pela autoridade policial foi com relação à dinâmica para elucidar o responsável pelo arremesso do objeto cortante, uma vez que os vídeos feitos exibiam várias pessoas no local, grande parte lançando objetos contra a torcida adversária. Tanto é que a primeira investida policial culminou com a prisão de um torcedor do clube carioca, suspeito até então de ter sido o responsável pelo lançamento da garrafa que provocou a morte da torcedora paulista. Quatro dias após, no entanto, por ordem judicial, em razão de precipitada conclusão investigativa, foi colocado em liberdade. Posteriormente, em perícia mais detalhada e com suporte científico com a sincronização das imagens das duas torcidas no local, foi identificado um torcedor fazendo o arremesso da garrafa que atingiu mortalmente a vítima. A pergunta que se faz agora quando o tema vem à tona é saber em qual modalidade de culpa se enquadra a conduta do agressor, Fala-se da ocorrência do dolo eventual, que merece um detalhamento doutrinário. No dolo eventual o agente assume o risco de cometer um crime que, embora não seja inicialmente desejado, é previsível e por ele, agente, aceito, por absoluta indiferença quanto à produção do resultado. Neste caso, o agente não deseja, inicialmente, matar alguém. Todavia, ao arremessar a garrafa, o agente revela ter plena consciência de que, agindo desse modo, demonstrando completa indiferença quanto à possibilidade da produção de um resultado, poderá causar ferimento ou até mesmo a morte de alguém (previsibilidade). Nesta linha de raciocínio, o dolo eventual nada mais é do que a modalidade em que o agente não quer o resultado, embora por ele previsto, mas assume o risco de produzi-lo. Nosso Código Penal trouxe expressamente tal possibilidade em seu artigo 18, I, ao adotar a Teoria do Assentimento: "... assumiu o risco de produzi-lo". Com efeito, nosso Código Penal baseou-se em uma teoria criada pelo alemão Reinhart Frank: Teoria Positiva do Conhecimento, que nada mais é do um critério bastante prático para identificação do dolo eventual. Para referido autor há dolo eventual quando o agente diz: Seja como for, dê no que der, em qualquer caso não deixo de agir. Denota-se, claramente, a indiferença do agente quanto ao resultado. O dolo eventual não é produto da volição do autor do ilícito, mas sim dos fatos e das circunstâncias que o circundam. Não há necessidade de se penetrar na mente do agente para interpretar sua conduta criminosa. A esse respeito, com exatidão, decidiu o Superior Tribunal de Justiça: "O dolo eventual não é extraído da mente do autor, mas, isso sim, das circunstâncias. Nele, não se exige que o resultado seja aceito como tal, o que seria adequado ao dolo direto, mas, isto sim, que a aceitação se mostre no plano do possível, provável."1 Assim, no caso sob investigação, todas as circunstâncias devem ser examinadas cuidadosamente para perquirir a respeito da presença do dolo eventual e, se for assim intentado na denúncia do Ministério Público, o julgamento será da competência do Tribunal do Júri, que é o juiz natural da causa. __________ 1 REsp 247.263/MG, rel. Min. Felix Fisher, 2001.
Uma questão que frequenta com certa assiduidade o interesse popular é saber se a colocação de ofendículos1, que são os obstáculos ou qualquer tipo de engenho utilizado para impedir o acesso em residência, como, a instalação de sistema mecânico de defesa à base de eletricidade em cercas dispostas em muros, é prática que se enquadra no âmbito da legítima defesa. Em nome da segurança, as pessoas quebram a estética de sua moradia, constroem muros altos e fincam cercas eletrificadas. Um verdadeiro casulo protetivo do lar. É certo que o tema é de natureza jurídica, mas também atinge a curiosidade popular. O homem, desde sua origem, impregnado pelo DNA de sua natureza, carrega importante informação a respeito dos direitos que compõem seu arsenal protetivo, sem necessidade de buscar qualquer auxílio legal interpretativo. Assim é que a noção do justo e correto surge com o próprio homem, pois o que assim for considerado é salutar para a vivência harmônica e serve de diapasão para o regramento social. É a regra do direito natural que, após passar por todas as etapas de aprovação, vem a ser materializada em normas contidas no direito positivo. Pode-se dizer que é um direito que transcende todas as regras impostas pelo homem, pois tem como sustentáculo princípios universais imutáveis que jamais poderão ser confrontados, uma vez que giram em torno da essência e da dignidade do ser humano. Nesta linha de pensamento a prescrição de não agredir ou matar o próximo, exempli gratia, carrega um preceito solidificado que seria até inconcebível inseri-lo no rol de regras proibitivas estabelecidas pela legislação. Mas assim deve ser o procedimento porque o homem também criou a autodefesa como uma justificativa da conduta contrária à regra convencional. O direito codificado é um conjunto de regras firmado por uma convenção social que visa atender a um critério de justiça estabelecido pelo próprio homem, ser gregário que é. Mas tais valores socioculturais, obrigatoriamente, devem carregar os padrões mais singelos e simples da convivência humana, com os direitos e obrigações que foram catalogados pelo homem desde seus primórdios. O direito de defesa insere-se neste rol. Compreende-se aqui a defesa de qualquer direito consagrado legalmente, que pode ser a vida, liberdade, segurança, patrimônio e outros, desde que seja para repelir uma agressão injusta, atual ou iminente, com a utilização moderada dos meios necessários. A legítima defesa não se caracteriza pelo legítimo ataque e sim pela franquia concedida pelo legislador para que o cidadão repila a agressão na defesa do bem juridicamente tutelado. Não há nenhuma dúvida de que a propriedade é um bem jurídico e como tal deve ser defendida pelo Estado, em sua função preventiva, ou até mesmo pelo proprietário. Não se exige do último que monte guarda ou se posicione durante todos os dias e noites em situação de defesa, que compreende aqui a sua própria, a de seus familiares e de seu patrimônio. Necessitas non habet legem (diante da necessidade não prevalece a lei), já preconizava o Direito Canônico. Pode sim eleger mecanismos para evitar eventual agressão ao seu direito, desde que consentâneos ao bom senso e à moderação dos meios. Badaró, citando um antigo parecer de Francisco Mendes de Pimentel, com toda propriedade, antevendo uma situação futura de uma sociedade com expressiva violência, observa que "a defesa preventiva não pode ser usada inconsideravelmente, mas proporcionada ao risco da agressão, vez que engenhos mortíferos só se admitem contra assaltantes perigosos, roubadores terríveis (thieves and burglars), não se justificando em prevenção de simples gatunos, de meros transgressores (trespassers) da inviolabilidade domiciliar sem ânimo facinoroso (felonious intent)".2 Seria a chamada legitima defesa preordenada ou antecipada, que tem por objetivo repelir a injusta invasão. Mas, não se pode negar que, dependendo da apresentação da ofensa, há também uma acentuada adequação à excludente do exercício regular de um direito. Na realidade, observando as duas situações, conclui-se sem muita dificuldade, que o agente pode instalar em sua casa o mecanismo que considerar necessário e conveniente, dentre aqueles permitidos, para proteger seus bens. A instalação, por si só, recomendada que seja visível no sentido de advertir aquele que desconsidera a propriedade alheia, é considerada como previdência de defesa, uma ação visando coibir a possibilidade e a probabilidade de uma possível agressão ao seu direito, e não um revide.  Aconselha-se ao defendente que tome também a cautela necessária para alertar as pessoas a respeito do instrumento defensivo, pela afixação de placas escritas ou sinalizadas indicativas do perigo.  Nem todas as pessoas agem com o intuito criminoso, como a criança que pretende pular o muro para apanhar a bola que caiu no quintal da residência. Diante da consideração ora feita nada mais justo do que rotulá-la de exercício regular de um direito. E, acobertado por tal excludente, não se exigirá do defendente os requisitos da injusta, atual e iminente agressão. Sem falar ainda na proporcionalidade do revide, que pode não se submeter aos parâmetros da defesa suficiente, apesar de que o exercício deve ser "regular", obedecendo aos índices variáveis da moderação.  A prevalecer tal entendimento é de se arrematar que o legislador concedeu alforria ao proprietário para causar dano a outrem, possivelmente muito além do que aquele que iria experimentar. Enquadrar a defesa antecipada na esfera da legítima parece mais coerente e condizente com o sistema penal brasileiro. Há o permissivo legal para a instalação dos meios mecânicos que irão deflagrar sua força operante no instante da agressão, oportunidade em que poderá será avaliada a excepcionalidade da defesa, pois a engenhoca somente produzirá resultado no momento do ataque e não quando foi instalada. É óbvio que, se o morador, valendo-se do pretexto de defender sua moradia, instalar uma cerca eletrificada com uma voltagem considerada mortal, extrapola o exercício de seu direito e responderá dolosa ou culposamente pelo excesso.  A permissão concedida cessa com o objetivo pretendido, qual seja, o de impedir o acesso à residência. Toda cautela se faz necessária para a avaliação da defesa e de sua proporcionalidade em cada caso. Assim, não se pode falar em culpa consciente se o agente não previu o resultado morte, que fica totalmente afastado de sua linha de volição. Mas, por outro lado, é de se observar também que, se o agente prevê o resultado morte e com ele se satisfaz, incide no dolo eventual. __________ 1 Offendiculum ou offensaculum, no Direito Romano, com o significado de obstáculo, tropeço, impedimento. 2 Badaró, Ramagem. Delitos sem criminalidade. São Paulo: Editora Juriscredi Ltda., 1972, p. 42.
domingo, 23 de julho de 2023

A clonagem humana

Logo após a divulgação da clonagem da ovelha Dolly, em fevereiro de 1997, nascida após 277 tentativas, criou-se a expectativa da clonagem reprodutiva humana, isto é, criar outra pessoa com as mesmas características e carga genética do doador do núcleo. A comunidade médica internacional, no entanto, além de repudiar a nova técnica, lançou por terra qualquer esperança de dar continuidade a eventual projeto com tal propósito. A clonagem, vista sob o prisma científico, carrega uma falsa impressão no sentido de conseguir fazer a transferência da bagagem genética para outra pessoa, com sucesso absoluto, tornando-a sucessora do doador. Engano que a ciência consegue comprovar com a segurança necessária. O homem não é resultado única e exclusivamente do desenvolvimento de seus genes. A própria etimologia da palavra clonagem já reproduz a dimensão de seu significado. Originária do vocábulo grego klón, significa novo broto, rebento, ramo pequeno, uma réplica, cópia, no sentido de derivação de um ente originário. Pode-se dizer que a clonagem é uma forma de reprodução assexuada, agâmica, sem a intervenção dos gametas masculino e feminino visando conseguir uma réplica da pessoa que cedeu seu material procriativo. Pode-se afirmar com segurança, de acordo com o pensamento psicanalítico, que a identidade do ser humano passou a existir a partir de Freud. Em mais de cem anos de prática clínica, bate-se pela diferenciação entre a identidade genética com a fenótipa (expressão do gene) e da pessoa (personalidade). Nesta linha de pensamento percebe-se claramente que há uma restrição com relação à clonagem. Por várias razões éticas. É sabido, pelas experiências realizadas em animais, que são necessárias muitas tentativas seguidas e destruição de inúmeros embriões para se conseguir atingir o objetivo, que se mostrou de pouca eficiência, com reiterados abortos de fetos malformados e com morte em curto espaço de tempo. A Declaração Universal do Genoma Humano e dos Direitos Humanos, em seu artigo 11, enfatiza: "Práticas contrárias à dignidade humana, tais como a clonagem de seres humanos, não devem ser permitidas. Estados e organizações internacionais competentes são chamados a cooperar na identificação de tais práticas e a tomar, em nível nacional ou internacional, as medidas necessárias para assegurar o respeito aos princípios estabelecidos na presente Declaração".1 O Código de Ética Médica, por sua vez, em seu artigo 15, traz idêntica proibição.2 A Lei de Biossegurança,3 também de forma incisiva, construiu um tipo penal próprio e específico, quando proíbe a realização da clonagem humana e estabelece pena de reclusão de 2 (dois) a 5 (cinco) anos e multa para o responsável pela conduta ilícita. A descrição da conduta penal do agente é incisiva e objetiva. O legislador não emprega vários verbos para tipificar a conduta. O núcleo da ação é o verbo realizar, que deve ser interpretado com o seu significado literal, no sentido de tornar real, criar, produzir, lançar mão de todos os meios técnicos e científicos para conceber um ser humano idêntico a outro já existente, independentemente dos objetivos. A simples ação de quebrar a regra da procriação e inverter seu procedimento para se obter artificialmente um clone é uma conduta demonstrativa de dolo intenso, uma vez que é social e penalmente relevante e reprovável. Por essa razão, Moser, de forma magistral, esclarece que: Pela clonagem os seres humanos "enganam" a natureza, trocando a "receita" original por outra estranha, oriunda da mesma espécie, ou então de espécie diferente.4 Tal dispositivo encerra, numa só vez, conteúdos ético, moral e legal, todos proibitivos, a exemplo de inúmeros outros diplomas mundiais. Já não é o homem e sim a humanidade que se une para coibir qualquer investigação científica na área da clonagem, por entender que não é lícito ao homem contrariar as leis da própria natureza. Se a determinação biológica vem previamente determinada pelo histórico genético - que confere a cada pessoa um tempo limitado de vida -  não é plausível que seja dada continuidade a uma vida em curso ou que já se expirou, substituindo-a por outra. A individualidade é fator que determina e especifica o cidadão no meio social, com seus predicados, virtudes e caráter. O substituto artificial jamais conseguirá ocupar o mesmo espaço e receber a mesma avaliação. E, juridicamente, será outra pessoa. A clonagem se apresenta, desta forma, como uma experiência isolada, que foge e em muito dos princípios estabelecidos pela natureza e pelo homem e mais se aproxima de uma miragem kafkiana. Parece até um expediente científico, sem qualquer comprometimento ético, de natureza meramente investigativa, para satisfazer uma curiosidade, não se preocupando com a descoberta e sim com a invenção.  A clonagem pode ser representada como uma fantasia humana que satisfaz narcisicamente a humanidade na busca da perfeição, da harmonia, da eternidade e, ao mesmo tempo, a afasta da sua realidade de ser finito, incompleto, e das dificuldades inerentes de lidar com os limites da própria vida. __________ 1 Disponível aqui. 2 Resolução CFM 2.217/2018 3 Lei 11.105/2005. 4 Moser, Antônio. Biotecnologia e bioética: para onde vamos? Petrópolis: Vozes, 2004, p. 171.
domingo, 16 de julho de 2023

Vacina contra a dengue

Durante o período pandêmico a humanidade, obrigada a acatar as regras sanitárias protetivas impostas, dentre elas desde o mais enclausurado lockdown até a simples conduta do distanciamento social, da higienização das mãos e da utilização da máscara, tudo visando proteger a saúde individual e coletiva, viveu momentos cruciais aguardando os resultados das pesquisas para a descoberta de uma vacina que fosse segura e eficaz no combate ao coronavírus. A própria Organização das Nações Unidas estimulava parcerias de cooperação científica entre os países membros e alardeava de forma antecipada que a vacina, assim certificada, seria considerada res communis omnium, dando a entender que se tratava de um bem público global de pertencimento coletivo e com acesso irrestrito a toda comunidade mundial. Assim é que vários laboratórios produziram vacinas que foram distribuídas e a imunização feita surtiu os resultados almejados no Brasil e possibilitou a decretação do final da Emergência de Saúde Pública de Importância Nacional (ESPIN), não antes de ceifar considerável número de vidas humanas. Não paira qualquer dúvida de que a vacina se apresentou como o único e inevitável recurso no combate à doença que assolou o país, levando-se em consideração que medicamentos pesquisados para a redução da carga viral do paciente foram considerados insatisfatórios.  Apesar de o Brasil apresentar um ambicioso Plano Nacional de Imunização (PNI), criado em 1973 - que tem como objetivos o controle e a erradicação de doenças infectocontagiosas e imunopreveníveis - visando proporcionar melhor qualidade de vida às pessoas, com o fornecimento de inúmeras vacinas, disponíveis gratuitamente nas unidades de saúde, contemplando a imunização de crianças, adolescentes, adultos, idosos, gestantes e povos indígenas, de acordo com o Calendário Nacional de Vacinação, experimentou uma considerável diminuição na imunização. Basta ver a queda ocorrida com a vacina da poliomielite, conhecida também como paralisia infantil, considerada doença contagiosa pela transmissão de pessoa a pessoa e que acarreta sequelas gravíssimas, principalmente motoras pela infecção da medula e cérebro, sem qualquer chance de cura. Além disso o Brasil, paralelamente, há algum tempo, vem colecionando um significativo número de óbitos em razão da epidemia de dengue, arbovirose urbana transmitida pelo inseto Aedes aegypti, que provoca também Zika e Chikungunya. Está disponível, no mercado nacional, em clínicas particulares, a vacina Qdenga, produzida por laboratório japonês, com eficácia comprovada de 80%, índice tranquilizador com relação a um bom imunizante. Ocorre que, para ingressar no sistema público de saúde, há necessidade de se obter a aprovação da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias (Conitec), cumprindo, desta forma rigorosamente o conteúdo de universalidade. Não se rejeita a possibilidade de abrir a oportunidade para que clínicas particulares possam exercer a vacinação, não como concorrentes, mas como colaboradoras de um projeto de um enorme país. É indiscutível que a iniciativa compete ao Ministério da Saúde, assim como a legitimidade para estabelecer as regras e as prioridades, mas não se pode desprezar a colaboração de entidade particular para fechar a cobertura vacinal da população brasileira. A falta é de vacina e não de estratégia vacinal. Tal concessão auxiliará a gestão pública na consecução de sua tarefa e que trará certamente dividendos de saúde para a população. No verão, período de maior incidência da dengue, em razão das chuvas e o consequente armazenamento da água em residências, favorece muito a proliferação dos mosquitos nos criadouros. Daí a importância da responsabilidade de cada morador exercer a vigilância nos vasos de plantas, garrafas, lixeiras ou qualquer outro local de armazenamento de água parada. O Ministério da Saúde já lançou campanha de orientação neste sentido, levando-se em consideração que os ovos do Aedes aegypti podem sobreviver pelo período de um ano.  Como o período chuvoso logo se aproxima é necessária uma rápida tramitação do procedimento no órgão agora responsável pela incorporação da vacina contra a dengue ao Sistema Único de Saúde (SUS), já que conta com a aprovação da ANVISA. 
domingo, 9 de julho de 2023

Humano, demasiado humano

Elis Regina cedendo sua voz e imagem em um filme comemorativo aos 70 anos da Volkswagen no Brasil, juntamente com sua filha Maria Rita, embaladas pela inesquecível música de Belchior "Como nossos pais", causou, com certeza, grande impacto, principalmente aos mais idosos, que tiveram a oportunidade única de rever a cantora que encantou várias gerações e agora ligada a uma campanha publicitária. Como se durante todo este tempo estivesse escondida "atrás da porta", uma das canções que a imortalizou como cantora. É a inteligência artificial dando uma demonstração de seu imenso repertório. O homem, pelo seu próprio comportamento e em razão da inteligência de que é dotado, carrega uma característica investigativa e pesquisadora voltada para conhecer os mistérios que o desafiam e rondam seus mundos exterior e interior. Quer penetrar em todos os segredos da natureza, dominar os mares, ares, montanhas, árvores, animais e tudo mais, numa verdadeira operação de cabo de guerra, em que, forçosamente, devem prevalecer sua conquista e superioridade.  Mas, nem sempre consegue atingir seus objetivos. Nada pode fazer diante de um terremoto, de um tsunami, de uma tempestade, de uma erupção vulcânica, a não ser, preventivamente, comunicar a iminência do perigo. Mas, mesmo assim, prevalece a figura do dominador, do senhor gerenciador de todos os fenômenos naturais, sem freios e contrapesos. Se conseguiu benefícios para aperfeiçoar e otimizar sua vida, acumula prejuízo, pois deixa de recompor e preservar a natureza, que tem suas próprias e imutáveis regras. O conhecimento vai refinando cada vez mais e o espírito desbravador se volta para a descoberta do próprio homem. O nosce te ipsum, que ilustra o frontal do Oráculo de Delfos, empresta seu significado e aliando-se às técnicas revolucionárias da biotecnologia e da biotecnociência vai à busca de um progresso que ultrapassa e em muito o "Humano, demasiado humano", profetizado por Nietzche em sua obra que leva este nome e é indicada para pessoas com espíritos livres. Agora, o homem passa a ser pesquisador de si mesmo e intensifica suas pesquisas para desvendar as curas de doenças consideradas irreversíveis, que é o desejo de toda humanidade e, ao mesmo tempo, sorrateiro, caminhando silenciosamente, tenta fazer um pacto com as células para entrar em seu universo, conhecer suas funções e seus comandos genéticos, com a correta distribuição dos genes. É a era do homo digitas. O ser humano, desta forma, posiciona-se no núcleo das atividades médico-científicas, que devem pautar seu conhecimento vinculado aos padrões éticos apontados pela sociedade, como também observar o juramento hipocrático prestado, é o destinatário de toda produção que busca as melhores condições de saúde e vida, o que impede, por si só, o nefasto empreendimento como construtor de si mesmo.  A ciência é colocada à disposição do homem, que, no exercício de sua autonomia de vontade, mirando os princípios norteadores da ética, vai decidir a respeito dos rumos que ela irá percorrer, observando sempre os critérios de conveniência e necessidade. As experiências realizadas com humanos nas guerras mundiais foram suficientes para espancar definitivamente qualquer tentativa de construção artificial de outro modelo.  Cada homem é uma unidade, insubstituível na dimensão estritamente pessoal de sua vida, quer seja na escolha do parceiro, na opção vocacional, na conduta social. Não se qualifica o ser humano como uma verdade corporal, orgânica, racional, biológica ou sociológica. Ele é a síntese da representatividade da própria vida, que lhe confere o potencial para realizar suas aspirações. O desenvolvimento das pesquisas na área da embriologia, por exemplo, tem que ser visto com muita cautela, buscando sempre o respeito à dignidade humana para que não se corra o risco de ingressar na geração artificial, afastando todos os valores humanos do casal que desejou a procriação. Enquanto as técnicas são direcionadas para a solução dos problemas de infertilidade, tem sua aceitação e aprovação popular. Quando se distancia das metas optadas pela sociedade, como, por exemplo, a programação para fazer nascer somente homens com características previamente selecionadas, ou a clonagem, a rejeição é total.  O grupo social conhece as regras permissivas para uma convivência de aceitação harmônica. O homem é proprietário de um patrimônio chamado corpo humano, detentor de seus atos, administrador deste inesgotável latifúndio, que vem revestido de uma tutela especial que lhe confere personalidade e o torna-se sujeito de direitos e obrigações. Ao mesmo tempo em que é um patrimônio individualizado, carrega a semente universal, que irá proporcionar a continuidade da humanidade.  Justamente pela sua unicidade, que é a forma pela qual se apresenta diante de um grupo social e adquire a qualidade de pessoa humana e assim se torna conhecido, com suas virtudes, predicados e defeitos, não pode ser reprisado e nem representado por outro modelo idêntico. Nem mesmo o avanço das tecnologias mais avançadas têm o condão de modificar a natureza humana, que é infinitamente perene, apesar de que, como afirmou Nietzche no livro referido: "Tudo evolui, não há realidades eternas, tal como não há verdades absolutas."
domingo, 2 de julho de 2023

Junho Violeta

Junho Violeta é o nome da campanha que identifica o mês da conscientização sobre a violência contra a pessoa idosa, movimento de iniciativa da Organização das Nações Unidas (ONU) com a finalidade de chamar a atenção da população contra os abusos e violências cometidos contra o idoso. Procura, acima de tudo, dar ênfase ao etarismo que, de certa forma, vem ganhando força e descriminando as pessoas da terceira idade. Além do que irá promover o preconceito em razão da idade e dar azo ao ageísmo, pois qualquer cidadão que entrar na faixa de 60 anos de idade, parâmetro biomarcador preconceituoso - mais por ficção etária do que pela realidade - leva o rótulo de idoso e a caudal de ser excluído da cidadania proclamada constitucionalmente. O envelhecimento - fase da vida que se desenvolve lentamente e faz do homem um ser temporal com início, meio e fim - é inevitável. E é justamente neste declínio que a pessoa necessita receber tutelas específicas por parte do Estado para que possa levar adiante seu processo e usufruir do bem-estar almejado, apesar da normal redução da capacidade física e mental. Assim é que o homem, ao completar 60 anos de idade, vem cingido pelo Estatuto do Idoso, lei 10.741/03, que lhe confere uma somatória de direitos, compreendendo os já conquistados e os difusos, aqueles não descritos, mas que vão se afirmando ao longo do tempo. Mas a proteção vai além, em razão da longevidade atingida e a vulnerabilidade reconhecida. A lei 13.466/17, altera e dá outra configuração ao Estatuto do Idoso ao criar uma nova categoria acima de 80 anos de idade, inserindo-o no rol de absoluta prioridade em comparação com os demais idosos, não prevalecendo a preferência somente em casos de emergência. Quando se fala em estatuto é interessante observar que o legislador pátrio, após a Constituição Federal de 1988, optou por congregar todas as pessoas que se encontram em situações semelhantes e necessitam de um plus diferenciador de proteção - temporariamente ou não, quer seja em razão da faixa etária ou até mesmo de uma doença - como ocorre no Estatuto da Criança e do Adolescente e no Estatuto da Pessoa com Deficiência - conseguem com mais prontidão uma resposta que seja adequada e satisfatória. Ambas as legislações amparam a vida longeva e atribuem à família, à comunidade, à sociedade em que vivem e ao Poder Público o dever e responsabilidade de assegurar a plena efetivação dos direitos consagrados constitucionalmente relacionados à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade, à convivência familiar e outros anunciados. É incontestável que o corpo vai experimentando as vicissitudes do tempo e carregando as marcas que apontam sua vulnerabilidade. Faz lembrar o relato feito pelo imperador Adriano a Marco, de forma sincera e realista, na obra de Yourcenar: "Esta manhã, pela primeira vez, ocorreu-me a ideia de que meu corpo, este fiel companheiro, este amigo mais seguro e mais meu conhecido do que minha própria alma, não é senão um monstro sorrateiro que acabará por devorar seu próprio dono".1 Indiscutível também que todos são iguais perante a lei, os mais novos e os mais velhos, no entanto, em razão de sua mais tenra e derradeira idade, a segunda categoria necessita de um plus diferenciador para que sejam tabulados na igualdade. Tanto é que o Direito mundial atual desenvolve uma cultura diferenciada com o intuito de proteger o indivíduo no âmbito da sociedade e a preocupação de proporcionar a ele uma vida mais digna, com qualidade e conteúdo, no caminho da realização pessoal, profissional e familiar, em qualquer que seja sua faixa etária, com preferência primordial àqueles que já tenham percorrido por mais tempo um longo caminho. Torna-se uma postura inquestionável e que exige providência urgente de divulgar não só para o idoso o seu Estatuto, mas também para o cidadão que amanhã fará parte deste seguimento populacional. É preciso conhecer a lei, o conteúdo dos direitos e interpretá-los para que possam ser exercidos em benefício deste grupo social. O envelhecer é um processo natural e de interesse de toda a sociedade. Daí, com a evolução cada vez mais pronunciada da longevidade, há necessidade que todos tomem conhecimento da legislação específica. É tão extenso o rol de direitos que pode ser afirmado com segurança que somente uma pequena parte deles vem sendo cumprida. Uma simples leitura da realidade social é suficiente para indicar que o idoso é detentor de uma legislação que atende perfeitamente suas necessidades, porém nem todos os direitos são atendidos. Junho Violeta é o momento oportuno para os primeiros passos. ___________ 1 Yourcenar M. Memórias de Adriano. Tradução: Calderaro M. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; 2005.
domingo, 25 de junho de 2023

É proibido fumar

As gerações de 50, 60 e 70 foram incentivadas pela indústria do tabagismo a fazer uso do cigarro como se fosse um acólito necessário e de fundamental importância na vida social. Tanto é que a indústria cinematográfica e as propagandas das grandes marcas passaram a divulgar imagens de homens e mulheres fumando em poses clássicas de apelo ao produto. O movimento antitabagismo, em contrapartida, ganhou corpo e passou a frequentar espaços nos meios de comunicação com a intenção de demonstrar que o fumo é prejudicial à saúde, não só para quem dele faz uso, como, também, o mal se estende aos não fumantes, que ficam expostos às indesejadas baforadas. Na Europa, Portugal, há poucos dias, tomou nova iniciativa e prepara outra investida com um pacote de medidas tendo como objetivo não só restringir a venda de cigarros, como também a proibição de fazer uso dele em ambientes públicos e os fumódromos existentes até então permitidos, deixarão de existir.1 Canadá, país que experimenta a morte de 48 mil cidadãos por ano, com a intenção de proteger crianças e jovens, vai endurecer sua legislação contra o tabagismo, inclusive com a inserção de mensagens nas embalagens desestimulando o uso de cigarros.2 O Brasil ganha local de destaque no cenário mundial com relação à lei antifumo. A Lei 12.546/2011, que deu nova redação aos artigos 2º e 3º da lei 9.254/96, regulamentada pelo Decreto 8.262/2014, estabelece: É proibido o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo fechado, privado ou público. Deve-se buscar no nascedouro a motivação da lei antifumo. A principal nocividade do tabaco reside em conter monóxido de carbono e viciar paulatinamente, sem dose letal como outras drogas, mas que provoca dependência e a ocorrência de doenças respiratórias, cardíacas, além de abrir espaço para a ansiedade e depressão e outras doenças. O interesse que determinou a mens legis foi o de proteger a saúde não só do fumante, como também do tabagista passivo, que vem a ser aquele que inala fumaça dos derivados de tabaco, em ambientes fechados. É a chamada Poluição Tabagística Ambiental, assim denominada pela Organização Mundial da Saúde. Ora, a ratio legis é a de cuidar da saúde dos fumantes e não fumantes em locais fechados, independentemente ou não de qualquer solicitação. A Lei Maior determina, de forma taxativa, que a saúde é direito de todos e obrigação do Estado, que adotará as políticas de atuação, compreendendo aqui as preventivas, visando reduzir o risco de doenças e de outros agravos.3 A lei proibitiva do fumo, agora de alcance nacional em razão da Lei nº 12.546/2011, repete em seu art. 2º o preceito impeditivo da Lei Paulista nº 13.541/2009, que proíbe "o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto fumígeno, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo fechado, privado ou público". Quando o legislador faz uso da conjunção alternativa "ou" e a ela soma o pronome indefinido "qualquer", pretende, de forma inequívoca, alcançar todas as situações que carregam semelhança com aquela lançada como regra. É uma perfeita adequação de compatibilidade, sem fugir do escopo principal da lei. Ou, como o sempre arguto Maximiliano observou, a norma enfeixa um conjunto de providências, protetoras, julgadas necessárias para satisfazer a certas exigências econômicas e sociais; será interpretada de modo que melhor corresponda àquela finalidade e assegure plenamente a tutela de interesse para a qual foi regida.4  Ora, é de consenso popular que a lei antifumo "pegou" e não encontra qualquer condicionante entre os cidadãos, que espontaneamente exercem a sua fiscalização e execução.  Caiu na graça popular e transita sem qualquer restrição, com o rótulo de lei preferida. Justamente por ser conveniente, oportuna e necessária. Por outro lado, o cigarro eletrônico - considerado como medida alternativa no tratamento do tabagismo, possibilitando considerável diminuição do cigarro convencional - é de venda proibida no país, circunstância que dificulta ainda mais sua aquisição. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) disciplinou a matéria com a seguinte determinação: "Fica proibida a comercialização, a importação e propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar, conhecidos como cigarros eletrônicos, e-cigarretes, e-ciggy, e-cigar, entre outros especialmente os que aleguem substituição de cigarro, cigarilha, charuto, cachimbo e similares no hábito de fumar ou objetivem alternativa no tratamento do tabagismo".[5] Não há, portanto, qualquer liberalidade para o uso do cigarro eletrônico em recintos fechados, públicos ou privados. Os cartazes de proibição continuarão a ser exibidos, observando que o desrespeito confere multa aos responsáveis pelo estabelecimento. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Artigo 196 da Constituição Federal. 4 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 125. 5 Resolução da Diretoria Colegiada -  RDC Nº. 46 de 28 de agosto de 2009, em seu artigo 1º.
Não há paradoxo maior na opinião popular do que o desenvolvimento da tecnologia digital/virtual, mais especificamente da inteligência artificial e suas derivações. O homem até a quer, mas, ao mesmo tempo, teme. Não à toa este tema vem sendo objeto de debate há praticamente um século, sendo especialmente retratado no universo ficcional através de livros e filmes, mas, mais recentemente, em matérias jornalísticas noticiando acontecimentos mundanos. Em meados de abril, um usuário do TikTok (@ghostwriter) criou uma música "cantada" pelos artistas Drake e The Weekend, sendo lançada em diversas plataformas, e depois retirada do ar devido a polêmicas voltadas à questão de direitos autorais1. Não se trata aqui dos já conhecidos "remix", no qual um DJ ou outra determinada pessoa se aventura na música original e cria variações dela, ou até mesmo de músicas "recantadas" por outros cantores, em que fazem uma releitura dela ou simplesmente as cantam com suas próprias vozes. Fala-se, na verdade, da criação de uma música completamente nova, com letra inédita. Um verdadeiro lançamento. Acontece, contudo, que a referida música, chamada "Heart on my Sleeve", nunca foi escrita ou cantada, seja por Drake, seja por The Weekend. Ela é fruto de uma Inteligência Artificial. Até mesmo Paul McCartney vai lançar a última música dos Beatles usando a inteligência artificial para extrair a voz de John Lennon. Recentemente ocorreu ainda o lançamento do ChatGPT, da empresa OpenAI2, um bot com inteligência artificial avançada que conversa com uma pessoa livremente (salvo algumas limitações para conteúdos explícitos/inapropriados impostas pelos desenvolvedores), respondendo a perguntas e questionamentos dos mais variados assuntos e auxiliando em qualquer atividade que tenha maior dificuldade. É uma ferramenta extraordinária, que pode ser usada tanto para trabalho quanto socialmente. No entanto, até quando irá a subserviência dos robôs com inteligência artificial para com seus criadores? É essa preocupação que foi levantada por Geoffrey Hinton, cientista britânico ex-funcionário da Google, empresa na qual trabalhava desde 2012 e se demitiu recentemente3. Hinton aponta que há um perigo, talvez ainda não tão iminente, mas certamente real, de que a Inteligência Artificial levará à extinção da humanidade. Porém, quando se cogita em extinção da humanidade remete-se imediatamente a cenários pós-apocalípticos dominados por androides ou robôs ou ambientes de iminência destruição da civilização. Para ilustrar, podem ser citadas obras como "O Exterminador do Futuro" (1984), "Eu, Robô" (2004) e "Oblivion" (2013). Mas este não é o único cenário possível quando se trata de dominação da população pela Inteligência Artificial. Isto porque nossa "extinção" pode não ser levada ao pé da letra, mas interpretada extensivamente, como uma espécie de "implosão" da civilização vítima de sua própria criação. O filme "O Círculo" (2017), por exemplo, retrata uma história da jovem que é contratada por uma gigante da tecnologia, que está desenvolvendo um produto chamado "SeeChange", uma câmera de alta resolução com transmissão ao vivo, com o objetivo de promover a transparência total e compartilhamento constante de informações, sendo assim possível que qualquer um acompanhe a vida de qualquer outro a todo momento, eliminando a privacidade. No filme são explorados os riscos do compartilhamento excessivo de informações pessoais. Outro cenário possível é a repressão policial sobre as pessoas, acarretando numa população amedrontada e retida, como retratado no filme "Chappie" (2015). Nele, o policiamento de Johannesburgo é feito por uma empresa chamada Tetravaal, que fabrica robôs humanoides chamados de "Scouts". Nessa empresa trabalha o personagem central da trama, um engenheiro de software que desenvolve uma inteligência artificial capaz de "crescer" e aprender, como qualquer ser humano, porém numa velocidade muito mais rápida. A CEO da empresa é contra esta premissa, desejando manter os robôs com inteligência limitada à obediência de ordens e aplicação da lei. O impasse se desenvolve ao longo do filme para tornar possível a transferência da consciência humana para o corpo de um robô, "eternizando" a vida de um indivíduo humano. Estas são algumas das implicações ficcionais já abordadas nos cinemas acerca do crescimento da robótica e da inteligência artificial em si, mas que cada vez mais parecem estar mais próximas da nossa realidade. Hinton destaca que não se arrepende do que fez, mas que tem grande preocupação do futuro que se aproxima, isto porque, diz ele, o algoritmo de treinamento chamado de backpropagation, criado por ele e outros colegas, em 1986, que vem servindo de base para o desenvolvimento de diversas tecnologias autônomas de inteligência, aprende coisas novas quase que instantaneamente e transmite este conhecimento aos seus pares na mesma velocidade4. Dessa forma, é essencial que haja precaução no desenvolvimento desta e outras tecnologias correlatas, sob pena delas superarem os limites impostos e se "rebelarem" contra a população. O princípio da precaução é o alerta que nunca deve ser esquecido quando estamos diante deste tema, uma vez que o avanço da IA, apesar de altamente benéfico para a sociedade em diversos aspectos, pode ser facilmente revertido, maculado e deturpado, gerando consequências como desempregos em massa, acesso desenfreado à desinformação e violação latente da privacidade5. Recomenda-se uma tomada de consciência desses riscos, antes que os danos causados se tornem irreversíveis. Para tanto, há necessidade de se fazer um crivo de admissibilidade das novas ferramentas tecnológicas - que aparentemente se apresentam como uma realidade desconhecida e somente vista em filmes de ficção científica - para avaliar se colaboram e trazem dividendos favoráveis ao homem ou se delimitam ou cerceiam o seu poder de criatividade. O pensamento bioético a respeito abre espaço para uma discussão envolvendo a necessária interdisciplinaridade, não no sentido de conter o progresso técnico-científico e sim para direcioná-lo no sentido de acumular benefício para as pessoas. Daí a conclusão de que as novas tecnologias - e porque não dizer mesmo as mais cobiçadas pela humanidade - acarretam modificações no ser humano, pois as ocorrências do mundo exterior irão produzir reflexo imediato no homem. O dilema apresentado, apesar de ser somente a ponta do iceberg, é oportuno para que a humanidade esparrame seu olhar caleidoscópico - capaz de colher as melhores dimensões para o enfrentamento da mais ousada tecnologia - e encontrar um espaço de convivência harmônica.    __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui.
Questão sempre tormentosa para o debate público, sobretudo para quem não é da área jurídica, são as sanções constitucionais-disciplinares para os Juízes de Direito e Membros do Ministério Público, quando praticam fatos ensejadores da reprimenda administrativa1. Nesse passo, é comum que se indague: "como pode o magistrado/promotor de justiça praticar fato tão grave e receber, como penalidade máxima, a aposentadoria compulsória, com recebimento de vencimentos proporcionais"? Pois bem.  Inicialmente, é imperioso destacar o artigo 95 da Constituição Federal, que prevê as garantias para os membros da magistratura (extensíveis para o Ministério Público), fundamentais para garantir a independência e a imparcialidade no exercício de suas funções: (i) vitaliciedade; (ii) inamovibilidade e (iii) Irredutibilidade de vencimentos. Por vitaliciedade, entende-se a garantia de que, após o decurso do estágio probatório (dois anos após a posse no cargo), juiz ou promotor permaneçam em seu no cargo até atingir a idade prevista para sua aposentadoria compulsória (STF fixou, em maio de 2023, a aposentadoria compulsória em 75 anos2), não podendo deles ser afastado ou demitido, salvo em razão de disposição legal ou por decisão judicial. A inamovibilidade, por sua vez, é a garantia que veda a remoção, transferência ou realocação compulsórias dos seus cargos, salvo previsão legal e procedimento respectivo. Já a irredutibilidade de vencimentos é a garantia que permite receber seus vencimentos de forma integral e sem reduções arbitrárias. Vale ressaltar que estas três garantias constitucionais têm por finalidade proteger referidos agentes de pressões políticas ou interesses particulares, assegurando a independência e a estabilidade necessárias para o exercício de suas funções, de forma livre e desembaraçada, sem receios de perseguições, de retaliações ou de pressões externas. Contudo, consoante notória expressão utilizada no meio jurídico, "a todo direito corresponde um dever". Assim, como forma de garantir, justamente, o livre exercício da magistratura e do Ministério Público com credibilidade e imparcialidade, o Conselho Nacional de Justiça regulamentou as penalidades administrativas, na Resolução CNJ nº 135, de 13 de julho de 2011. Nesta Resolução tipificou-se, no artigo 3º, as espécies de sanções administrativas para os magistrados, a saber: I - advertência; II - censura; III- remoção compulsória; IV - disponibilidade; V - aposentadoria compulsória e, finalmente, a VI - demissão. É preciso destacar, ainda, que a dosimetria da pena deve seguir a sistemática de nosso ordenamento jurídico, ensejando proporcionalidade entre a gravidade da conduta praticada e a sanção a ser aplicada. Prima facie, a advertência consiste na penalidade administrativa mais leve: é a reprimenda formal, escrita e particular ao magistrado negligente no cumprimento de suas funções. Já a censura é a penalidade um pouco mais severa, relevando-se como o registro oficial de que o magistrado infringiu procedimentos. Por ser mais grave que a advertência, poderá influenciar nas avaliações futuras de sua idoneidade e conduta profissional, impactando na progressão da carreira. Destaca-se, aqui, o artigo 4º da Resolução CNJ 135/2011: O magistrado negligente, no cumprimento dos deveres do cargo, está sujeito à pena de advertência. Na reiteração e nos casos de procedimento incorreto, a pena será de censura, caso a infração não justificar punição mais grave. A título de exemplo, o magistrado vinculado à Justiça Trabalhista, que homenageou seu clube de coração após a conquista de um campeonato estadual, inserindo em uma sentença parte do hino do clube, teve recomendada a aplicação da pena de censura3. A suspensão, por seu turno, é penalidade mais severa, em que o magistrado é temporariamente afastado de suas funções. Destaca-se seu caráter dúplice: punição do membro da magistratura e resguardo da integridade do Poder Judiciário. Nos casos citados no início deste texto, as suspensões cautelares permitiram o percebimento de vencimentos no curso do procedimento administrativo. A aposentadoria compulsória, por sua vez, é a sanção administrativa mais grave: impõe o afastamento definitivo do magistrado de suas atividades, que receberá seus vencimentos com o ajuste ao tempo de serviço. Aqui, alerta-se para uma especial atenção do leitor: a aposentadoria compulsória somente é aplicável ao juiz vitaliciado, pois é esse quem possui a garantia constitucional de não perder o cargo. Logo, diante da regra geral da vitaliciedade, que o impede de perder seu cargo, o magistrado recebe a pena máxima possível, pelo Direito Administrativo: a aposentadoria compulsória. Ao juiz em estágio probatório (menos de dois anos da data da posse), caso pratique fato grave e incompatível com a função (crime, por exemplo), será demitido e, justamente por não ser vitaliciado, perderá seu cargo e seus vencimentos. Então, fatalmente o leitor fará a indagação: o magistrado vitaliciado que praticar crime (por exemplo) será aposentado compulsoriamente, mas continuará a receber vencimentos proporcionais? Seria justo? E a resposta é: sim! Porque, como já frisado, na seara administrativa ele receberá a máxima sanção possível, frente a uma garantia estabelecida por nossa lei maior, a Constituição Federal. Contudo, não se pode esquecer da ressalva em que mesmo o magistrado vitaliciado poderá perder, excepcionalmente, o cargo: a decisão judicial. Nesse sentido, tomando-se por base um caso exemplificativo de um magistrado acusado da prática de graves crimes: receber a pena máxima no âmbito administrativo e ser aposentado compulsoriamente. Todavia, nada impedirá que o Ministério Público respectivo ajuíze ação específica para que este magistrado venha a perder o cargo (e também os vencimentos proporcionais). Do mesmo modo, existe a possibilidade, em caso de condenação criminal, da incidência de um efeito secundário da sentença penal: a perda do cargo. Com efeito, é preciso que se separe as naturezas das infrações, para que cada ramo do Direito possa atuar com liberdade e razoabilidade, já que as penalidades administrativas são instrumentos necessários para a manutenção da integridade e da eficiência do Poder Judiciário. Por fim, mas não menos importante, última pergunta neste apertado espaço: e o Defensor Público? Possui as mesmas garantias dos Magistrados e Membros do MP? No ano de 2020, o STF fixou entendimento de que os Defensores Públicos gozam da garantia da inamovibilidade (ADI 5029/MT, DJe 30/04/2020), sendo inclusive inconstitucional lei estadual que preveja a vitaliciedade, conforme já decidiu o STF no julgamento da ADI 230/RJ, relatora Ministra Carmen Lúcia. ____ 1- Disponivel aqui e aqui. 2- Disponível aqui. 3- Disponível aqui.
domingo, 4 de junho de 2023

O padrão de beleza

Há um consenso na literatura mundial de que a mulher mais bonita é Ana Karenina, personagem do autor russo Leon Tostoi. De tão formosa, fazia as pessoas perderem a fala. Para o nosso lado, com a cor indígena, José de Alencar pintou Iracema como a virgem dos lábios de mel, que tinha os cabelos mais negros que a asas da graúna e mais longos que o talhe da palmeira. Bonita e misteriosa, Capitu foi descrita por Machado de Assis como olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Beleza é fundamental, cantava Vinicius de Morais, com as escusas devidas às mulheres desprovidas dos encantos femininos. O padrão de beleza evolui com os critérios da própria humanidade. Cada época adota seu modelo entoando o ritmo do let's stay young forever. Atualmente, pelas exigências da indústria da moda, as modelos devem apresentar um corpo cada vez mais magro, ingressando no transtorno psicológico da anorexia. É a beleza presente, já fugidia no corpo esquálido, recomendando a morte do jovem, que seria o mais amado pelos deuses, segundo os gregos, ou ainda, de acordo com o pensamento de Albert Camus, uma escravidão espontaneamente aceita. O ser humano, pela sua própria natureza, preocupa-se com o seu bem-estar e estabelece regras rígidas de estética para o seu próprio corpo. Para tanto, muitas vezes, como um bom espartano, frequenta academias e praças de exercício para conseguir um resultado que lhe seja satisfatório, de acordo com o programa de saúde adotado para atingir os objetivos almejados. O modelo de beleza, principalmente o feminino, está intimamente ligado aos padrões internacionais, sempre capitaneados pelas famosas musas que ocupam as passarelas. Lembro-me, com certa melancolia, da morte da cantora Karen Carpenter que, juntamente com seu irmão, formou o grupo The Carpenters. Considerada uma das vozes mais envolventes, principalmente quando entoava Close to you, começou a fazer dietas obsessivas e desenvolveu anorexia nervosa, vindo a falecer aos 32 anos, no auge da fama. A saúde pública, como fator preponderante, principalmente o relacionado com a juventude, deve nortear a ação governamental. A preocupação com a aparência física é louvável, mas a modelagem do corpo para se adaptar à ditadura da moda, com o jejum obrigatório e a consequente utilização de remédios para emagrecimento, transforma jovens saudáveis em belezas esqueléticas, numa visão holocáustica, como árvore seca no coração de um deserto, descrito por Elie Wiesel. Somam-se já no país vários casos de morte por anorexia. A imagem do corpo, a intromissão estatal nesta intimidade particular, são situações que justificam um posicionamento governamental, em ação preventiva, impedindo a jovem de agredir a si própria e provocar a própria morte. O padrão de beleza desloca-se das agências da moda e meios de comunicação e ingressa no limite ético determinado pelo bem estar físico e mental, nos parâmetros de respeito à dignidade humana, um dos fundamentos de nossa Constituição. Quer dizer que, desde o nascimento até a morte, todo indivíduo tem direitos a um conjunto de serviços na área da saúde, desde que obedeça rigorosamente a regulamentação estatal. Cria-se, desta forma, para o Estado-providência, uma outra proteção e agora relacionada com o fantasma da obesidade que ronda os adolescentes do país. Estudos da Organização Mundial de Saúde, que elegeu a obesidade como a doença do século XXI, revelam que 30% da população mundial sofre com sobrepeso e obesidade e que um adolescente nestas condições tem mais de 70% de chance de se tornar um adulto obeso. E este mesmo órgão, que definiu o anoréxico como o portador do IMC igual ou inferior a 18, classificou o obeso como o portador do IMC igual ou maior a 30. Da mesma forma que a anorexia, o excesso de peso provoca problemas graves para a saúde, pois, a exemplo do que acontece nos EUA, país que lidera o ranking do tecido adiposo, os jovens brasileiros se alimentam de produtos ricos em gordura e carboidrato, que ficam alojados no organismo. O crescimento desordenado da população obesa atinge graus de morbidade e passa a ser um problema de saúde pública, que deve acudir as doenças decorrentes da obesidade mórbida, tais como: cardiovasculares, diabetes, câncer, hepatite, apneia do sono, estresse e outras. Na realidade, exige-se a mobilização nos dois polos, buscando o peso ideal. A alimentação não deve ser racionada ao extremo e nem ingerida em excesso, sem critérios. O corpo humano é um complexo que busca o equilíbrio saudável. Juvenal, na antiga Roma, já alardeava: mens sana in corpore sano. Na mesma linha de pensamento, há necessidade de intervenção legislativa para orientar e conter o ganho de peso dos obesos, com políticas claras de nutrição saudável e até mesmo do acesso mais frequente à cirurgia bariátrica, mais conhecida como de redução de estômago.  A estética não pode sobrepujar a ética do bem-viver. O belo não pode contrariar o saudável.
O tema morte começa a fazer parte direta da vida das pessoas e a tendência é procurar uma modalidade mais ética que se coadune com a conveniência humana, que tem a morte como o esgotamento de todo o esforço terapêutico e o esvaziamento das reservas de resistência do paciente. Já que o morrer é inafastável, a tendência é buscar uma alternativa que se enquadre nos limites da razoabilidade ética. Mas o homem, na incansável evolução, arrebenta os diques das regras consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer, também em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito das modalidades da morte. Apesar da oposição do presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, os deputados do Parlamento português aprovaram por 129 votos a favor e 81 contra a legislação referente à morte medicamente assistida e, consequentemente, descriminalizou a eutanásia, prevista como crime no Código Penal, obrigando, desta feita, a sanção presidencial. É de se esclarecer que a morte medicamente assistida, de acordo com a novatio legis portuguesa é a que ocorre por decisão da própria pessoa, em exercício de seu direito fundamental à autodeterminação e livre desenvolvimento da personalidade, quando praticada ou ajudada por profissionais da saúde. Exige, ainda, que a vontade do paciente seja atual e reiterada, séria e esclarecida, quando se encontrar em situação de sofrimento de grande intensidade, com lesão definitiva de gravidade extrema ou doença grave incurável considerada intolerável pela própria pessoa e que o ato seja praticado por profissionais da saúde. A imprensa deu ênfase e alardeou a aprovação da eutanásia em Portugal, quando, na realidade, o enfoque legislativo cingiu-se à morte medicamente assistida e a eutanásia, por sua vez, é uma das formas de sua realização, somente nos casos de incapacidade física do doente. O Código Penal brasileiro, tendo em mira preceito constitucional, reforça a conduta ilícita da eutanásia, conhecida como homicídio piedoso ou caritativo.  Assim, cai por terra qualquer iniciativa no sentido de configurar a eutanásia como um homicídio legal, concedendo a legitimidade ao profissional de saúde para decidir a respeito do jus mortis do paciente. O próprio Código de Ética Médica é taxativo e proibitivo quando penaliza a conduta do profissional em "abreviar a vida do paciente, ainda que a pedido deste ou de seu representante legal".1 A decisão para se habilitar no novo formato que se avizinha em Portugal é do paciente mentalmente capaz, maior de 18 anos e alcança unicamente os cidadãos nacionais ou legalmente residentes em território lusitano. O procedimento clínico de morte medicamente assistida compreende várias etapas. O paciente deduz sua pretensão a um médico de sua confiança, chamado de orientador, que irá acompanhá-lo e esclarecê-lo a respeito da decisão a ser tomada, envolvendo até mesmo os familiares, conferindo ainda a ele a assistência de um especialista em psicologia clínica, assim como recomendá-lo para receber os cuidados paliativos. Após o parecer favorável do médico orientador, o paciente irá se avistar com um médico especialista na sua patologia, que confirmará ou não a natureza grave e incurável da doença ou a condição definitiva e de gravidade extrema da lesão. Se não for confirmada, a pretensão cai por terra e o procedimento é cancelado. Se confirmada, o médico orientador irá indagar novamente ao paciente se mantém inalterada sua decisão, ato que será registrado por escrito e assinado pelo doente ou por pessoa por ele designada. Vencidas todas as fases, o médico orientador irá informar ao paciente a respeito dos métodos disponíveis para praticar a morte medicamente assistida, contando com a colaboração dele nos casos de autoadministração de fármacos letais ou administração pelo médico ou profissional da saúde quando estiver fisicamente incapacitado de autoadministrar fármacos letais. É de se concluir que a legislação portuguesa rompeu uma barreira quase que instransponível e introduziu a modalidade de morte medicamente assistida nos casos de doença considerada grave e irreversível e passou a autorizar a morte com a intenção de abreviar o sofrimento físico insuportável.   __________ 1 Artigo 41 do Código de Ética Médica, Resolução CFM 2217/2018.
Com a crise instalada na saúde durante o período pandêmico as doenças pré-existentes foram agravadas e paralisados os tratamentos no combate à hipertensão, diabetes, obesidade, doenças cardiovasculares, respiratórias, raras, cânceres e transplantes, dentre outras.  As estruturas hospitalares e as equipes médicas estavam voltadas para o combate à pandemia da Covid-19, deixando um caminho aberto para a passagem do vírus. Até mesmo o distanciamento social tornou-se um óbice para que as pessoas pudessem visitar seus médicos e, consequentemente, ficaram expostas às doenças. Se não bastasse tamanha calamidade, após o período pandêmico, quando a humanidade estava se recuperando e conseguindo controlar o avanço da Covid-19, como se fosse um prenúncio feito com certo rigorismo científico e levando-se em consideração o crescimento incessante da população mundial, a escassez de alimentos já se alinhava como um outro fenômeno global preocupante. De um lado, a título de reprise necessária, a pandemia, que invadiu e assolou os continentes com todas as graves sequelas na saúde, no trabalho, na economia e na própria produção alimentar. De outro, mais recente, a inconveniente guerra envolvendo a Rússia e Ucrânia, que vai dinamitando uma das terras mais férteis do leste europeu, além de provocar a retirada de uma população estabilizada e produtiva em grãos de alimentos, um verdadeiro celeiro mundial. Tanto é que a Ucrânia conseguiu assinar um acordo para exportar suas safras pelo Mar Negro e, recentemente, prorrogou o abastecimento mundial de alimentos por mais dois meses. Além de todos estes transtornos - acrescentando a eles os problemas climáticos sazonais que prejudicam o plantio e colheita de alimentos - a pobreza vai se expandindo por todas as partes do mundo e se apresenta hoje como realidade incontestável, no sentido de que a pessoa deixou de consumir o mínimo exigido para a recomendada nutrição. A Europa, que durante muito tempo teve o domínio da equilibrada produção alimentar para seus habitantes, além dos entraves já enumerados, vê-se diante de um quadro totalmente desfavorável, pois a produção agrícola, em razão da falta de chuvas, dos custos elevados dos insumos, fertilizantes, pesticidas e do combustível para as máquinas agrícolas, caiu sensivelmente e não vê, a curto prazo, uma solução de continuidade no oferecimento alimentar. Quando a natureza, os fenômenos climáticos e outras circunstâncias abatem de forma crucial e impedem a necessária produção alimentar, a única opção que se abre é buscar uma solução substitutiva na ciência. Assim é que na Europa retornou à tona o debate a respeito da edição genética, que por um tempo já frequentou calorosos debates e não foi bem recebida. A edição genética que se propõe é bem diferente das técnicas dos OGMs (Organismos Geneticamente Modificados). No primeiro caso, o procedimento é realizado com a inclusão ou exclusão de genes na mesma espécie ou em espécies semelhantes buscando, na realidade, um melhoramento mais acelerado e aprimorado das plantas. No segundo, ocorre a modificação genética em laboratório, com a inserção de um material genético de outro organismo, visando aumentar a produção, melhorar o conteúdo nutricional e proporcionar maior resistência e durabilidade. Seria, de uma forma menos científica, o encontro de DNAs entre organismos que jamais teriam chances de cruzamento. Analisando do ponto de vista produtivo, pode-se até concluir que a inovação traz dividendos consideráveis, com um custo menor e uma distribuição mais abrangente de alimentos, com sérios propósitos de se combater a fome que assola a humanidade. No caso da edição genética, mesmo não ocorrendo a manipulação dos genes, há necessidade da realização de estudos que ofereçam segurança na produção de alimentos. Abre-se, desta forma, uma densa nuvem nebulosa e provoca incerteza a respeito de futuros danos que possam causar à vida humana. É até provável que no presente não tragam qualquer malefício à saúde, porém, ao longo do tempo, com a utilização prolongada, poderão comprometê-la. Daí que a Comissão Europeia se propôs a regulamentar ao longo de 2023 a utilização de algumas tecnologias relacionadas com a edição genética. A ciência da Bioética - espaço de reflexão envolvendo os pensamentos de várias pessoas com sólida formação em humanidades a respeito da utilização de novas tecnologias que possam ser consideradas oportunas e convenientes para que o homem possa manter sua identidade e dignidade - traz sua contribuição para a questão levantada. O princípio bioético da beneficência primum non nocere, ou da não maleficência malum non facere, é destinatário de todas as produções científicas que possam trazer benefícios à saúde humana, incluindo aqui até mesmo sua base alimentar. E o sinal verde para a utilização é proclamado pelos órgãos responsáveis pela saúde humana, podendo ser citada a Organização Mundial de Saúde (OMS), que faz a avaliação e o aconselhamento necessário, justamente para que o homem possa fazer uso com as garantias precisas. A Bioética, desta forma, amparada pelo mais ajustado pensamento científico e com suporte também no princípio da precaução, recomenda as cautelas necessárias para preservar o homem e a natureza contra os riscos potenciais das novas tecnologias. Daí tem como tarefa precípua realizar ações articuladas com a sociedade elegendo como prioridade um estado de equilíbrio e bem-estar humano.
domingo, 14 de maio de 2023

A mulher transplantada e a maternidade

A palavra mãe é tão curta e diminuta, mas soa com tanta intensidade que faz poetas, cantores e qualquer artista defini-la pelo verso, pela música e pelas artes, num mutirão de agradecimento sem fim. Até a lei rende a ela a proteção e tutela durante o período de gravidez. Dentre muitos direitos, incentiva a gestante a participar do acompanhamento pré-natal, de fundamental importância para a prevenção e detecção de patologias maternas e fetais; opção pelo abortamento nos casos permitidos em lei; garantia de emprego a partir da confirmação da gravidez até cinco meses após o parto; licença maternidade pelo prazo de 120 dias, com direito à ampliação por mais 60 dias nas empresas privadas que aderirem ao programa "Empresa Cidadã"; licença para a mãe adotiva, assim como salário maternidade para aquela que obteve a guarda judicial de uma criança. A ciência, por sua vez, estendeu seus tentáculos e foi ao encontro dos anseios para atingir a maternidade. A engenharia genética desbasta um novo caminho para solucionar satisfatoriamente o problema da infertilidade.  A nova área da procriação assistida vem se desenvolvendo a passos longos, produzindo técnicas cada vez mais aperfeiçoadas com a manipulação dos componentes genéticos dos dois sexos para se atingir o projeto parental. Assim, uma das possibilidades que se apresenta ao casal que pretende filhos e não atinge seus objetivos pela via natural, por um problema médico que impeça a gestação na doadora genética por exemplo, é a de realizar o procedimento da fertilização in vitro, com a manipulação dos materiais procriativos e a consequente transferência intrauterina dos embriões para uma cedente temporária de útero com a finalidade de realizar a gestação por substituição, vulgarmente conhecida como "barriga de aluguel". Mas o desafio maior e que merece o destaque neste espaço é o que ocorreu com uma mulher que foi submetida a um transplante cardíaco e que sonhava desde a juventude com a maternidade. Era portadora de miocardiopatia dilatada, diagnosticada aos 23 anos, e a gravidade da doença provocou um choque cardiogênico, sendo considerada prioritária na fila de transplantes do InCor, em São Paulo. O transplante foi realizado com sucesso após dois meses de internação, demora justificada pela falta de doador do órgão. "A partir daí, afirmava ela, comecei a viver a vida maravilhosa que tenho hoje. Faço musculação, natação, corrida e bicicleta. Tenho uma vida normal, que nunca imaginei ter." E junto com tantos outros sonhos daí para frente resgatou seu desejo de ser mãe. Não satisfeita com as respostas da equipe médica que acompanhava seu estado de saúde pós-transplante - que por precaução não a encorajava engravidar - ela pesquisou e encontrou histórias de mulheres pós-transplante que gestaram na Europa, sem qualquer dano à mãe e ao filho.  Passo seguinte passou a convencer a equipe médica e seu obstetra que foram lentamente cedendo, desde que fossem tomados os cuidados extras para lidar com paciente transplantado. Dois anos após veio a notícia da gravidez e recentemente ocorreu o nascimento de uma menina, que poderia até receber o nome de Esperança. O parto foi prematuro, por cesariana, como já era esperado pela equipe médica, mas aconteceu de forma planejada e tranquila, sem intercorrências clínicas, tanto para a mãe quanto para a recém-nascida e ambas receberam alta três dias após. O planejamento das variáveis clínicas, bem como o controle dos futuros riscos foram fundamentais para este desfecho favorável. A breve história narrada não é só sobre o transplante que, por si só, representa algo que extrapola a dimensão humana, mas é também sobre o gestar uma criança sendo mãe transplantada. Não resta dúvida que é um desafio à medicina e até mesmo no conceito popular a pessoa que recebeu um órgão é vista como vulnerável, sempre dependente de medicamentos e acompanhamentos médicos. Na realidade, a férrea vontade da mulher em tornar realidade seu sonho de ser mãe - além da indispensável contribuição da equipe médica - fez com que todos os obstáculos fossem superados. Dizia ela a todos no hospital: "Tinha vontade de ser mãe, mas havia impossibilidade em razão da doença. Quando eu falava em adoção, as pessoas também não aconselhavam, porque não sabíamos o desfecho de minha história." Este é o primeiro Dia das Mães que a mãe transplantada passa com sua filha. Com certeza será inesquecível. E ao olhar para a filha irá se lembrar que pediu a Deus um coração novo batendo dentro dela para que pudesse continuar sua vida e, com a abundância merecida, recebeu dois.
domingo, 7 de maio de 2023

A bioética e o Direito

A partir da Constituição Federal de 1988, o Brasil elencou, dentre de seus fundamentos, o princípio da dignidade da pessoa humana. Tal inserção, que integra a teoria kantiana e se abrigou no preceito contido na Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948, abriu um novo portal por onde transita a pessoa como destinatária de uma enorme carga protetiva de direitos. Quando se fala em dignidade da pessoa humana ingressa-se em um universo de proteção ilimitada, amparando direitos já conquistados assim como outros difusos que ainda virão em razão da mutabilidade da própria sociedade. O homem, desta forma, torna-se fim e valor em si mesmo, centro e ponto de convergência de todas as ações, dotado da capacidade volitiva e intelectiva, detentor de uma supremacia própria, exerce sua condição de sujeito moral, com autonomia decisiva própria, buscando todos os meios para o desenvolvimento de sua inalienável dignidade. Oportuna a observação de Sarmento: A centralidade da pessoa humana, tratada não como meio, mas como fim da ordem jurídica e do Estado, revela-se logo na organização da Lei Maior. Se as constituições anteriores começavam disciplinando a estrutura estatal e só depois enunciavam os direitos fundamentais, a Carta de 88 faz o oposto, principiando pela consagração dos direitos das pessoas.1 As relacionalidades jurídica e a terapêutica, apesar de advindas de fontes diferentes, sempre coexistiram, conforme pode ser observado pelo dictum hipocraticum e pelo Digesta, de Justiniano. A Bioética e o Direito, nos tempos modernos, convivem pacificamente em espaços diferenciados, mas tangidos por temas comuns a ambos. Pode-se dizer que o Direito, nesta interface, assume nova roupagem, intitulando-se Biodireito. Para tanto é interessante refletir a respeito da ponderação feita por D'Agostino, professor da Cadeira de Filosofia de Direito da Universidade de Roma: Em seu horizonte paradigmático tradicional, o direito gera ao mesmo tempo a natureza e o artifício; mas os problemas da bioética nascem justamente quando se manifesta a percepção social de que a dimensão da naturalidade tornou-se evanescente e que foi ultrapassado o umbral de suportabilidade da artificialização da vida.2 Na aliança da bioética e do biodireito busca-se a resposta para os temas que aguçam e desafiam o homem ainda despreparado e que não carrega de pronto uma definição a respeito da aceitação ou rejeição de condutas que podem quebrar o consenso ético ou da utilização de técnicas que venham a ser incompatíveis com a expectativa da vida individualizada. As pesquisas envolvendo células-tronco embrionárias; as variadas técnicas aprovadas para a realização da procriação assistida; a maternidade de substituição; o patrimônio genético; a célula sintética; a decifração do DNA recombinante; o aborto permitido, o de feto anencefálico  e o proveniente da opção procriativa da mulher; a cirurgia de transgenitalização e suas consequências na vida civil; as pesquisas científicas com seres humanos e o Sistema CEP/CONEP; as clonagens terapêutica e científica; a transfusão de sangue e o direito à crença diante do direito à vida no confronto com a ADPF 618; o direito à dignidade da morte diante da eutanásia, distanásia, ortotanásia e suicídio assistido; as uniões homoafetivas e suas implicações legais; o Estatuto do Idoso e a proteção à longevidade; o Estatuto da Pessoa com Deficiência e suas vulnerabilidades; a doação e o transplante de órgãos e tecidos humanos; o início e o fim da vida humana, conforme decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal na Ação direta Inconstitucionalidade nº 3.510  são, dentre muitos outros, temas que provocarão mudanças sociais, éticas, culturais e jurídicas. Na medida em que a evolução da biotecnociência vai desvendando a natureza humana e penetrando em perspectivas até então inimagináveis, como os fármacos de última geração e outros procedimentos que possam administrar doenças reiteradamente combatidas, a Bioética, como se fosse um senso regulatório, compartilha os resultados favoráveis e comparece a fim de dar seu nihil obstat para a utilização humana. Basta ver o caso recente relacionado com a aprovação de vacinas pela ANVISA contra o coronavírus.   A ciência deve ser sim estimulada a desenvolver imunizantes, que serão criteriosamente avaliados pela agência com a finalidade de conferir a eles segurança, garantia e eficácia e o resultado científico perquirido expressará a proteção conferida ao ser humano, que deve figurar como destinatário do estudo, sem experimentar qualquer dano.   É a regra do malum non facere ou primum non nocere. Em outras palavras, seria envidar todos os esforços para maximizar os resultados que trouxeram significativos dividendos à saúde e minimizar os possíveis efeitos nefastos com impactos negativos a ela. Todo este iter deve vir acompanhado de passos sincronizados, que tragam suporte de benefício não só para a pessoa, como também para a comunidade Marco Segre, a esse respeito, ensina de forma magistral: "Matérias como a engenharia genética, a reprodução assistida, o aborto, o planejamento familiar, a disponibilidade (ou não) de órgãos para transplante, o suicídio assistido (inadequadamente denominado eutanásia), interessam à pessoa, portanto ao cidadão, sendo que sua regulamentação, procedida democraticamente, é um coroamento dos 'direitos da cidadania'. Não mais colegiados de médicos ou de juízes (ou de qualquer outro grupamento corporativo) que haverão de decidir sobre matérias que dizem respeito aos aspectos mais íntimos da vida de cada ser humano. São eles, somos nós, todos seres humanos, atuando como sujeitos (e não como objetos) de nosso destino, que vamos nos manifestar sobre o que considerarmos adequado ou inadequado, construtivo ou destrutivo, para o nosso convívio em sociedade".3 Pode-se dizer, finalizando, que a Bioética teve um impulso alentador com a Constituição de 1988, que abrigou em seu núcleo direitos fundamentais não estáticos e sim amplificados para que pudessem atender as reais necessidades da nação. Tanto é verdade que o Supremo Tribunal Federal, guardião responsável pela melhor interpretação da Carta Magna, vem, reiteradamente, revelando a existência de novos direitos para que o homem possa atingir a essência de sua plenitude como cidadão. __________ 1 Sarmento, Daniel. Dignidade da pessoa humana: conteúdo, trajetórias e metodologia. Belo Horizonte: Editora Fórum,2016, p..72 2 D'Agostino, Francesco.Bioética - Segundo o enfoque da Filosofia do Direito - Tradução: Luísa Raboline. São Leopoldo RS: Editora da Universidade Vale do Rio dos Sinos - UNISINOS -, 2006, p. 99. 3 Segre, M. Definição de bioética e sua relação com a ética, deontologia e diceologia. In: Segre, M, Cohen, C. (orgs.). Bioética. 3nd ed. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2002. p. 27.
É consenso afirmar que o Direito, em razão do dinamismo das novas comunidades que exigem arranjos jurídicos necessários para a tutela pessoal e coletiva, pode ser considerado como um tecido de mobilidade social. Assim, quanto maior for a expansão tecnológica - que invade sobremaneira os dados pessoais e leva de roldão informações que são privativas - maior se torna a obrigação de leis que tenham por objetivo impedir a inevitável invasão. A tecnologia digital expandiu de tal forma que não se pode afirmar ter atingido o ponto de chegada que, pelo visto, cada vez mais ficará distante. Por mais paradoxal que possa parecer, em razão das culturas diferenciadas, o universo todo se conectou às redes, produzindo uma conjugação mais aprimorada e necessária de sistemas e programas voltados para as tarefas e necessidades dos humanos. Assim concebida, a inclusão digital avança rapidamente para atingir o maior número de adeptos, levando-se em consideração que a proposta seja a de multiplicar os benefícios pela comunicação mais célere nas relações humanas, rompendo definitivamente as fronteiras físicas. A Lei Geral de Proteção de Dados - lei 13.709/2018, conhecida como LGPD, trouxe uma grande mudança cultural promovendo um importante avanço legislativo no que diz respeito à proteção dos dados pessoais em nosso ordenamento jurídico, seja no meio físico ou no digital. A LGPD foi inspirada no Regulamento Geral Europeu de Proteção de Dados, com o objetivo de garantir o reconhecimento de direito fundamental à proteção dos dados pessoais e a regulação do tratamento destes dados pelos agentes públicos e privados. Inicialmente, percebe-se que, antes do advento da LGPD, havia inúmeras leis especiais e setoriais que tratavam do tema da proteção de dados pessoais. Contudo, a LGPD, dentre os conceitos oferecidos pela lei, estabelece a definição de dados pessoais, sendo informações relacionadas à pessoa natural que pode ser identificada ou identificável (art. 5º, I). Assim, os dados pessoais não são considerados simples informações, dependem de um vínculo, sejam por exemplo de: imagem, localização, textos, características, ou seja, como indivíduo/titular é, portanto, reconhecido. Inclusive, considerando o seu caráter de interesse fundamental, qual seja, de dado pessoal sensível, em decorrência de seu potencial uso discriminatório pelos agentes de tratamento de dados. É de se frisar que a Portaria nº 467/2020 do Ministério da Saúde recepcionou a lei 13.709/2018 -LGPD, sobre as ações de Telemedicina, com o objetivo de regulamentar e operacionalizar as medidas de enfrentamento de emergência de saúde pública que ocorreu durante a pandemia de COVID-19. Devendo haver a obtenção do consentimento do titular, essa medida foi de extrema importância para realização do atendimento médico via Telemedicina. Com relação aos dados de saúde, estes foram classificados como dados sensíveis, pois mesmo sendo este tutelado pelo profissional de saúde, pelos serviços de saúde e pela autoridade sanitária, devem ser realizadas algumas medidas cautelares para a realização da Teleconsulta, troca de textos pelo WhatsApp médico/paciente/terceirizados, entrega de prontuários, a exemplo a adequação às vedações previstas na LGPD que prevê: "É vedada a comunicação ou o uso compartilhado entre controladores de dados pessoais sensíveis referentes à saúde com objetivo de obter vantagem econômica" (art. 11, § 4º, LGPD). No tocante ao conceito de dados pessoais sensíveis, a LGPD, descreve em seu art. 5º, II que dado sensível é "dado pessoal sobre origem racial ou étnica, convicção religiosa, opinião política, filiação a sindicato ou a organização de caráter religioso, filosófico ou político, dado referente à saúde ou à vida sexual, dado genético ou biométrico, quando vinculado a uma pessoa natural". Desta forma, os dados sensíveis têm sua utilização mais controlada, quando comparada ao uso de dados comuns, principalmente porque apresentam um risco maior de desencadear prejuízos aos titulares de dados. Portanto, dados sobre raça, etnia, partido político podem ser discriminatórios, assim como os dados de saúde, que ao se tornarem acessíveis a uma seguradora, plano de saúde ou empresa/empregadora podem dificultar a contratação ou mesmo aumentar o custo do serviço para um determinado titular, por dispor maiores riscos na exposição da intimidade de seus titulares, relembrando que a não-discriminação está elencada em nossa Constituição "são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pessoas, assegurado o direito a indenização pelo dano material ou moral decorrente de sua violação" (Art. 5º, X, CF). Desta forma, a LGPD veio para ficar, vale ressaltar que mesmo com a implementação da Telemedicina pelo Ministério da Saúde, destaca-se a importância da responsabilidade médica das autoridades sanitárias, que abrangem desde o termo de consentimento, à coleta de dados propriamente dita e ao tratamento desses dados, pois o risco de vazamento dessas informações é iminente, em um ambiente comum a exemplo de teleconsultas via aplicativos, de multiplataforma, de mensagens telefônicas, chamadas de voz, de áudio, de prontuário médico para terceiros, de troca de informações de dados sensíveis entre os colaboradores. Além da necessidade de apresentação de uma finalidade clara e transparente, as operações de tratamento de dados precisam ser justificadas a partir de uma das bases legais que estão autorizadas pela LGPD. O simples armazenamento de dados pessoais sensíveis sob o pretexto líquido de uma possível utilização deles no futuro, repercute não apenas na necessidade de informar ao titular sobre esta nova finalidade como também, justificar a necessidade desta operação de tratamento de dados a partir de uma das justificativas legais previstas na LGPD. Bem como, no caso de uso de qualquer dado pessoal para novas finalidades, distintas daquelas previamente definidas e informadas ao titular de dados, requer uma reanálise, de forma a encontrar uma nova justificativa legal para esta nova operação. Com efeito, analisando o impacto dos Dados Sensíveis na LGPD, a Portaria 467/2020 ampliou a obrigação e responsabilidade do profissional médico, estendendo o dever de confidencialidade à manutenção da integridade, segurança e sigilo das informações em relação aos pacientes, portanto, havendo vazamento dessas informações, este responderá administrativamente e judicialmente. Sendo assim, ainda que muitos profissionais da área médica não compreendam a necessidade de se adequar a LGPD, a portaria cuidou de acolher indiretamente artigos da Lei 13.7909/2018 - LGPD no que diz respeito a dados sensíveis de saúde, portanto, necessário que se comece a pensar em segurança da informação e proteção de dados de seus pacientes, colaboradores, fornecedores, pois o risco de vazamento dessas informações acarretará a aplicação de sanções administrativas, multas, além da falta de credibilidade e confiança do setor responsável pelo vazamento de dados.
O Supremo Tribunal Federal, em julgamento virtual realizado em 12/4/23, acatando o voto do relator Ministro Alexandre de Moraes, pela maioria do colegiado, decidiu pela improcedência das Ações Diretas de Inconstitucionalidade 2.838/MT e 4.624/TO, que questionavam o funcionamento dos Grupos de Atuação Especial de Repressão ao Crime Organizado (GAECOS). No estado de São Paulo a iniciativa primeira para a criação do GAECO foi na gestão do Procurador Geral de Justiça José Emmanuel Burle Filho, no ano de 1995, quando centralizou o combate às organizações criminosas em um único núcleo integrado por promotores de justiça da capital. Após, com os bons resultados alcançados, expandiram formando núcleos regionais.   É de se frisar que a ação julgada pela Corte Maior deu ênfase e reafirmou um tema que há muito tempo reclamava uma resposta do Judiciário, consistente no poder investigatório do Ministério Público. Inicialmente, deve ser acentuado que a Constituição Federal, com o espírito voltado para o alargamento das franquias democráticas, estabeleceu as funções do Ministério Público em seu art. 129, editado pelo Poder Constituinte Originário e em plena vigência, cujo caput consigna: "São funções institucionais do Ministério Público". Assim, tratam os incisos seguintes de deveres atribuídos a uma instituição, da obrigatoriedade de uma ação e da consequente autoridade do órgão ministerial para realizar todos os atos necessários para desempenhar a contento as tarefas determinadas constitucionalmente. Quando o Poder Público, para a realização de sua missão, outorga iniciativa a uma instituição, transformando-a em sua longa manus, confere a ela todos os poderes inerentes à realização das atribuições que lhe foram conferidas, desde o ato inicial até o final. Dentre as inúmeras funções atribuídas ao parquet, destaca-se, por estar intrinsicamente ligado ao cerne da discussão, o inciso IX do referido artigo: exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade, sendo-lhe vedada a representação judicial e a consultoria jurídica de entidades públicas. As exceções foram propositadamente especificadas. Resta claro, portanto, que preferiu o legislador pátrio deixar em aberto esse último inciso, para que lei posterior (federal) regulasse a matéria e elencasse as demais funções que não poderiam ser exaustivamente previstas neste inciso. Desta forma, verifica-se a existência de uma norma constitucional de eficácia limitada: este inciso IX somente tem aplicação se for complementado por uma lei, que passa a integrar e completar o texto constitucional, trazendo todos os elementos para que, a partir de então, se aperfeiçoe a norma, vez que terá todos seus elementos para plena eficácia. A complementação, por seu turno, se deu com duas leis: 8.625/93 (Lei Orgânica do Ministério Público - LOMP), aplicável a todos os MPs (federal e estaduais) e a lei complementar 75/93 (Ministério Público da União). Insta salientar, ainda, que existem leis complementares de cada Estado, que regulam, por sua vez, a organização e as funções específicas do MP estadual (no caso de São Paulo, é a lei complementar 734/93). Vale observar também que cabe também ao Ministério Público a instauração de inquéritos civis e outras medidas e procedimentos administrativos pertinentes. Com efeito, constata-se que foi atendido o comando constitucional de complementação da norma, tendo em vista que as duas leis supracitadas enumeraram as demais funções do parquet e, dentre elas, existe a expressa previsão do membro do Ministério Público instaurar procedimento administrativo para apurar a prática de crimes. Frise-se que não se pretende, de forma alguma, substituir o trabalho das polícias. Muito pelo contrário, o que se faz é somar esforços para melhor apurar os delitos que crescem numa progressão assustadora, principalmente aqueles mais visados pelas organizações criminosas voltados para a prática de crimes de sonegação fiscal, sistema financeiro, ordem econômica, previdência social, lavagem de dinheiro, corrupção, dentre outros.  Não se busca a prevalência ou exclusividade de uma grei. Assim, muitas vezes se faz necessária uma complementação da atuação policial, tanto que o Código de Processo Penal permite que o MP requisite diligências indispensáveis ao oferecimento da denúncia (atente-se para o verbo requisitar, ou seja, é uma ordem, não podendo ser rejeitada), nos termos do art. 13, II do Código de Processo Penal. Por outro lado, o Ministério Público é também destinatário da notitia criminis e, qualquer pessoa do povo, na mais ampla legitimidade, quando se tratar de ação penal pública, poderá provocar a iniciativa do parquet, fornecendo a ele por escrito as informações sobre o fato e autoria, segundo a regra do art. 27 do Código de Processo Penal. Na mesma simetria, no campo da ação penal exclusivamente privada, o querelante dispensará o inquérito policial se tiver em mãos as provas para alicerçar a delatio criminis particular. Tal fato, por si só, faz ver que a intenção do legislador foi a de conferir ao cidadão a oportunidade de levar determinado fato delituoso ao órgão ministerial, que irá, de imediato, intentar a competente ação penal, desde que receba todas as informações necessárias para tanto. Os informes do particular substituem o procedimento investigativo policial. Se, no entanto, não encontrar presentes os requisitos da autoria e materialidade, o MP poderá realizar investigação para tanto ou ainda requisitar a instauração do inquérito policial, nos termos do art. 5º, II do estatuto processual penal.
A união homossexual, apesar de todos os percalços vencidos, foi ganhando espaço e se aninhando em diversas interpretações jurisprudenciais até ser reconhecida pela Justiça. É certa a afirmativa de que o costume de um povo reluta bastante para aceitar e se adaptar às inovações introduzidas por novas tendências ampliativas da família tradicional. Todo fenômeno social exige o tempo de assimilação, maturação e, posteriormente, aprovação popular e legislativa. Apesar de que, como lembra Tito Lívio, nenhuma lei se adapta igualmente bem a todos. A legislação brasileira, paulatinamente, vem fincando novas demarcações de conquistas visando conferir aos homossexuais igualdades incondicionais, inclusão, cidadania sem preconceitos e discriminação, quer seja por gênero quer seja por orientação sexual. Criou-se, desta forma, a união homoafetiva, com caráter de entidade familiar e os direitos decorrentes desse vínculo, distanciando-se do conceito primário de união socioafetiva, com o formato de uma sociedade negocial. A família, nos moldes da interpretação atual, apesar das variadas formas de constituição que permitem um alargamento em sua estrutura originária, conserva ainda a formatação de um núcleo doméstico, quer seja no relacionamento de casais heteroafetivos ou homoafetivos, cabendo, desta forma, na conceituação do artigo 226 da Constituição Federal, vez que já se solidificou o entendimento contrário a uma interpretação reducionista, estabelecendo restrições entre as entidades familiares. Tanto é que a Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4.277/DF e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 132/RJ, ambas julgadas pelo Supremo Tribunal Federal, reconheceram plena a igualdade de direitos e deveres dos casais heteroafetivos e homoafetivos. Além do que, ainda na mesma linha de pensamento, o STF erigiu a união homoafetiva à categoria de entidade familiar. Tanto é que reconheceu o direito de homossexual à pensão por morte do parceiro. Uma Instrução Normativa do INSS confere tratamento isonômico na sociedade de fato entre heterossexuais com a estabelecida entre homossexuais. A Receita Federal, por sua vez, admitiu ao casal declarar o companheiro como dependente, para fins de dedução do imposto e muitas outras concessões que até então eram privativas do casal heterossexual. Incontestável que a Lei de Transplantes, antes ainda da vigência do Código Civil, não conferiu legitimidade ao companheiro homossexual para autorizar a doação de órgãos. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado, cum grano salis e a necessária dose de bom senso. Daí surge a necessidade de se fazer a busca pela verdade hermenêutica. Se o operador do Direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia, pereat mundus (faça-se justiça ainda que o mundo pereça). Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano com seu Corpus Juris. Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que até mesmo originariamente não estavam contidas na mens legis. E a ciência hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. "Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma), afirmamos a existência de dois atos: um que dá à norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo".1 Se o falecido, em vida, deixou transparecer ao companheiro que tinha intenção de fazer a doação de seus órgãos, a decisão fica mais fácil. É indiscutível que em razão da convivência estável vários assuntos são discutidos e resolvidos e ninguém mais indicado que o companheiro para poder se manifestar a respeito. Transferindo-se as mesmas regras da união heterossexual para a homossexual, a figura do companheiro surge como legitimada e indiscutível sua titularidade.  É notório que ainda é tímida a veiculação da campanha de esclarecimento de doação de órgãos no Brasil para apontar as providências a serem tomadas pelos familiares. Muitas pessoas imaginam que a doação é ato voluntário do paciente, englobada no princípio da autonomia de sua vontade.  Uma vez que ficam proibidos o apelo público para doação para pessoa determinada, assim como o de arrecadação de fundos para o financiamento de transplante ou enxerto, os órgãos de gestão nacional devem fazer as campanhas de conscientização e esclarecimento a respeito da doação de órgãos, alertando a respeito da legitimação do companheiro homossexual. __________ 1 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo : Atlas, 2006, p. 72.