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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
domingo, 14 de julho de 2024

O ser humano e a lei

O tema ora proposto, apesar de abrangente, encerra uma discussão mais cartesiana e fincada em alicerces filosóficos, pois o título, por si só, é indicativo de altas indagações. Mas não impede, porém, que seja feita uma abordagem mais amena e com a visão canalizada para a tutela legislativa estatal em favor do ser humano, mirando a lei como fator educativo e também de prevenção de segurança. A pessoa humana, pelas suas próprias características, difere dos demais seres naturais. A volição, que integra o conjunto chamado pessoa, transmite a voluntariedade e faz o homem escolher e responder pelos seus atos, dotando-o de inteligência e capacitando-o para se relacionar com os outros seres. Cada homem é uma unidade, insubstituível na dimensão estritamente pessoal de sua vida, quer seja na escolha do parceiro, na opção vocacional, na conduta social. Não se qualifica o ser humano como uma verdade corporal, orgânica, racional, biológica ou sociológica. O ser humano é a síntese da representatividade da própria vida, que lhe confere o potencial para realizar suas aspirações. A realização individual do cidadão é fruto de seu esforço e determinação, visando sempre atingir patamares de um bom viver que o propulsiona em busca da felicidade. Ultrapassa as raias da individualidade biológica e se firma como uma realidade em razão da sua potencialidade racional. Mas, não pode realizar sua vocação gregária distante das proteções elementares que o Estado confere a todas as pessoas, como corolário dos princípios da isonomia e justiça. O homem, dentro de sua racionalidade, deve se organizar de forma inteligente visando buscar o espaço que lhe for mais conveniente e digno de sua condição, como o Supremo Bem referido por Aristóteles, sem prejuízo de caminhar para sua realização e perfeição. Tal regra não seria utópica se todas as pessoas estivessem em igualdade de condições, aparelhadas com as mesmas armas. Toda pessoa humana contém, na sua imensa grandeza, o sentido do próprio universo assim como é depositária de todo valor da humanidade. Cada uma passa a ser o todo e não parte do todo. O Direito mundial atual desenvolve uma cultura diferenciada com o intuito de proteger o indivíduo no âmbito da sociedade e a preocupação de proporcionar a ele uma vida mais digna, com qualidade e conteúdo, no caminho da realização pessoal, familiar, social e profissional. Prova disso é a política do bem estar social proclamada na Constituição Brasileira e relacionada aos serviços públicos nas áreas da saúde, educação, segurança, alimentação, moradia, trabalho, além daquelas difusas que vão aflorando de acordo com a necessidade da sociedade. O homem ocupa seu espaço próprio, com seu corpo e sua intimidade delimitados por ele e garantidos pelo reconhecimento dos direitos de personalidade, pensamento que vai ao encontro do de Kant, no sentido de que, na condição de ser pensante e no exercício público de sua razão, encontram-se presentes a maioridade intelectual e o exercício pleno da cidadania. Busca-se na nova dimensão do Direito dar ênfase para se estabelecer a igualdade entre as pessoas, concebendo o mesmo tratamento e respeito, porém reconhecendo as desigualdades funcionais, sociais e econômicas. Para incorporar o animal político, como define Rousseau, o humano necessita receber a tutela necessária contra agressões e ingerências em sua intimidade, protegendo-o contra qualquer abuso, em particular do poder estatal, e deve participar ativamente do processo de escolha das normas que irão regular sua conduta no meio social para a formação da vontade geral e ser detentor de condições financeiras necessárias para a satisfação das exigências fundamentais da vida material, para o gozo de uma vida digna e prezar, acima de tudo, por sua liberdade. Neste mesmo diapasão segue a proposta constitucional quando instituiu o Estado democrático de direito com a finalidade de "...assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos...", como está descrito no Preâmbulo da Constituição Federal. A lei, desta forma, pelo seu conteúdo erga omnes, busca atingir o bem comum que passa a ser compartilhado entre as pessoas, que não são catalogadas como cidadãos de primeira ou segunda categoria, mas sim iguais nos relacionamentos humanos. A lei carrega como destinatário o bem comum. Stork e EchevarrÍa cunharam uma definição que vem ao encontro deste pensamento: A lei não faz distinções entre uns e outros: A base é o que os homens têm em comum e os deveres de uns para com os outros que surgem daí. A lei, desse ponto de vista é o justo.1 ___________ 1 Stork, Ricardo Yepes; Echevarria, Aranguren Javier. Fundamentos de Antropologia: um ideal da excelência humana. Tradução Patricia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúlio", 2005, p. 332.
O sistema público de saúde brasileiro, o SUS, vem articulado com base em políticas públicas para estabelecer as metas e diretrizes dos prestadores dos cuidados de saúde, observando sempre a necessidade e a especificidade de cada região. É cediço e, cada vez mais acentuado, que o direito à saúde tem como destinatário não somente o indivíduo, mas, também, a coletividade, sendo que, em ambos os casos, a responsabilidade é da sociedade e do Estado e ao último, conforme determinação constitucional, recai a obrigação de conferir "políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos", deixando bem explicitado o acesso de todos aos cuidados de saúde. Firmaram-se, desta forma, no âmbito da legislação que criou o Sistema Único de Saúde, (lei 8.080/90), os princípios da universalidade, da igualdade, da participação social e da equidade, não só no atendimento, como também na distribuição dos recursos disponíveis, observando sempre as necessidades especiais de grupos e pessoas com vulnerabilidade, fazendo, nestes casos, prevalecer a regra da diferenciação positiva: Mais cuidado a quem mais dele necessita.  A individualidade, neste caso, tendo a vida humana como baluarte, fala mais alto e derruba qualquer outra preferência, sem desconsiderar que a sociedade parte do indivíduo para se articular e formar seu todo. A prioridade de atendimento desloca-se para aquele que tem mais necessidade em razão de sua vulnerabilidade e dos determinantes sociais.  Todo sistema estruturado depende de uma organização bem articulada entre as partes. Com o SUS não é diferente. A Atenção Primária à saúde é a porta de entrada preferencial ao sistema, que tem como a principal reponsabilidade as ações de vigilância, prevenção, promoção e cuidado em saúde como uma proposta de envidar várias ações tanto para a pessoa isoladamente como, também, para a comunidade.  As Unidades Básicas procuram instalar-se em região estratégica e de fácil acesso para a realização de atendimentos e serviços - local onde se posiciona para acolher as demandas relacionadas com a saúde desde as mais singelas até as mais complexas - com a função de fazer o atendimento necessário, avaliar o risco e estabelecer o fluxo de cuidado continuado ao cidadão ou encaminhá-lo para outros níveis de atenção, de acordo com a complexidade do caso. São inúmeros serviços prestados, podendo, em um rol exemplificativo, descrevê-los como o acolhimento inicial com a classificação de risco, consultas médicas e de saúde bucal, cuidados voltados para a saúde da criança e do adolescente, do adulto e do idoso, aplicação de vacinas, curativos, prescrição de medicamento, visitas domiciliares e em escolas pelos agentes de saúde para fazer os contatos necessários, entender as necessidades da população local e, até mesmo,  idealizar a formação de grupos  com a finalidade de desenvolver a educação em saúde.  A ESF - Estratégia Saúde da Família, por exemplo, que consiste em um modelo de atenção integral através de participação multiprofissional de agentes comunitários da saúde, enfermeiros, médicos e dentistas,  para desenvolver ações junto às famílias que residem no território, mantendo contato desde o recém-nascido até o idoso, oferecendo os cuidados necessários em todas as faixas etárias, conferindo, desta forma, uma desejada qualidade de vida aos usuários, focando na prevenção de agravos e acompanhamento das condições crônicas visando reduzir as hospitalizações desnecessárias. Daí que a Atenção Básica tem como essência cuidar integralmente de pessoas e não somente da doença, ofertando atendimento que vise à prevenção de doenças, de promoção da saúde, assim como o tratamento e controle de doenças agudas e infecciosas. Vem revestida dos princípios da acessibilidade, do vínculo do agente com a comunidade em que serve, da integralidade, da resolutividade e até mesmo da humanização, conforme recomendação da OMS - Organização Mundial da Saúde, deixando bem claro que se trata de um trabalho estratégico para prestar os melhores cuidados do SUS à população. Na realidade, o atendimento à saúde - em nossa Constituição consagrado como direito fundamental e essencial - seguiu a determinação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, in verbis: Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis [...]. A OMS, por sua vez, define saúde como um estado de completo bem-estar físico mental e social e não apenas a ausência de doenças. Assim, os programas de saúde desenvolvidos pela Atenção Primária, tanto no contexto individual como coletivo, são de vital importância, pois uma de suas metas é justamente promover o bem comum com a diminuição dos riscos para a saúde, além do que cumpre o afirmativo constitucional referente à dignidade da pessoa humana. 
A discussão jurídica sediada no Supremo Tribunal Federal, a respeito da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas - locus que abrigou o tema da descriminalização do porte e consumo pessoal de maconha - vem absorvendo a atenção não só dos juristas, como também de toda comunidade brasileira. Trata-se de um tema complexo e que exige uma reflexão social de intensa responsabilidade. Principalmente no Brasil que, de uma forma até amadora, sem ter ainda uma visão crítica do tema, assiste ao desenrolar dos debates de forma atônita, tanto com relação à decisão a ser proferida pela Suprema Corte, como, também, pelo Congresso Nacional que instalou comissão para analisar a PEC (proposta de emenda à Constituição) das Drogas, que criminaliza o porte. A lei 11.343, que define os crimes de drogas, foi sancionada em agosto de 2006.  Instituiu o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas - Sisnad - e, dentre outras propostas, prescreveu medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes. Referida Lei, com relação aos usuários, considera ilícita a conduta do agente, mas prevê apenas aplicação de medidas socioeducativas, sem qualquer alcance das penas restritivas de liberdade. Esta nova roupagem dada à conduta do usuário traz algumas dificuldades para a compreensão do leigo. A cultura do povo brasileiro é, por tradição, fincada no processo, pena e prisão. A prisão, ou algo que lhe que lhe equivalha, deve prevalecer na avaliação do cidadão. O direito penal moderno, porém, está traçando novos caminhos de acordo com o pensamento minimalista, que se caracteriza pela intervenção mínima do Direito Penal. Tanto é que, pela nova leitura penal, avalia-se a conduta do infrator pelo dano causado à sociedade. Não sendo relevante, a função persecutória do Estado não se mobilizará. Há países que, em relação ao uso de drogas, entendem que se compara a uma autolesão que, de regra, não é punível, pois não afeta nenhum bem jurídico alheio e sim o exercício de um direito localizado na esfera da privacidade do agente. Para outros, o problema é da competência da saúde pública e não da polícia e Judiciário. O Direito Penal Brasileiro, paulatinamente, vem encampando tais princípios. Basta ver a introdução à Lei dos Juizados Especiais Criminais, onde não há aplicação de penas restritivas de liberdade, permitindo a transação penal e a suspensão condicional do processo, sem qualquer sequela para o autor da infração. Pela referida Lei de Drogas, com relação ao usuário, em interpretação crítica, nasce uma figura anômala de crime. Opera-se uma descriminalização, mas continua ainda o caráter ilícito do fato. Reprime a conduta de quem adquire, guarda, tem em depósito, porta ou traz consigo substância entorpecente, para uso próprio, e estabelece as seguintes penas: a) advertência sobre os efeitos das drogas; b) prestação de serviços à comunidade; c) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. A legislação pátria segue a sinalização das mais avançadas no mundo a respeito do tema. A decisão do Supremo Tribunal Federal não permite a liberação de uso de maconha e sim a descriminalização. A brusca retirada da figura delitiva do dependente da legislação penal não põe fim à proibição. Os ministros da Suprema Corte também divergiram a respeito durante o julgamento, sendo, por alguns, considerado um ato ilícito não penal, de cunho administrativo, e por outros, uma verdadeira infração penal. A divergência a respeito da descriminalização da maconha está presente também em todas as classes sociais. De um lado, pondera-se que o dependente não é criminoso e que necessita de tratamento adequado para estancar seu vício, uma vez que a indicação terapêutica é mais aconselhável do que a punitiva. De outro, o dependente é visto como um perigo à sociedade, pois em razão de sua conduta coloca em risco a segurança, saúde e vida das pessoas, além de ser o propulsor do crime maior, que é o tráfico de drogas. Na segunda etapa do referido julgamento a Corte Maior decidiu e fixou a quantidade de até 40 gramas ou seis plantas fêmeas para diferenciar o critério entre o traficante e o usuário. Insta observar que a PEC das Drogas, apresentada pelo presidente do Senado, que recebeu a aprovação da maioria dos senadores e que já conta com o parecer favorável da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados, criminaliza o porte e posse de drogas, independentemente da quantidade e da substância.
domingo, 23 de junho de 2024

Alteração na lei Maria da Penha

A lei, no âmbito de uma definição ampla e simplificada no sistema brasileiro, visa normatizar a convivência e o comportamento humano tendo como parâmetro as diretrizes da Carta Magna, podendo abordar variados temas, com o objetivo de proporcionar o bem-estar público, a quem deve servir com as devidas adaptações das necessidades sempre dinâmicas da natureza humana, com a concretização do Estado Democrático de Direito. A lei Maria da Penha, por sua vez, pode ser considerada em seu corpo como heterotópica porque descreve não só a tipificação da violência contra a mulher, quer seja ela física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, mas alcança repercussões relacionadas com o Direito Civil, Previdenciário, Trabalhista e outras áreas. Percebe-se, pelo rápido apanhado feito, que a lei Maria da Penha rechaça toda iniciativa de romper o núcleo duro que a norteou. Referida lei atendeu a determinação contida no § 8º do art. 226 da Constituição Federal, criando toda uma estrutura para um combate eficiente à violência familiar, com sanções mais rigorosas e com o mínimo de benefícios processuais, além de estabelecer medidas de assistência e proteção às mulheres vítimas. Tamanha a repercussão da Lei que gerou o tipo penal específico do feminicídio, que buscou, dentre outras causas, a motivação da violência doméstica e familiar, ex vi da lei 13.104/15, que fez o acréscimo no art. 121, § 2º-A do Código Penal. A lei Maria da Penha vem produzindo, de forma reiterada, inúmeras alterações em seu texto originário, introduzindo, ao longo do tempo, verdadeiros tentáculos flexíveis, com a função de fechar o cerco protetivo às vítimas que se encontram em situação de violência doméstica e familiar. Dificilmente uma lei consegue tamanha façanha. Talvez a explicação resida na continuidade delitiva doméstica, contando, inclusive, por exemplo, as últimas alterações relacionadas com a imediata apreensão da arma de fogo em poder do agressor e a garantia de prioridade nos processos judiciais de separação e divórcio em que a mulher figure como vítima de violência doméstica. Assim é de se concluir, antecipadamente, que a lei Maria da Penha (11.340/06), continua a produzir efeitos em todas as áreas do Direito, de forma a encarar a triste realidade: A crescente violência doméstica, familiar, encontrada nos lares de diferentes classes sociais brasileiras. Além do que, pela sua extensão protetiva, consegue tutelar direitos de outras pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade doméstica, mesmo não sendo mulheres. Tanto é que a recente lei 14.887/24 alterou a lei Maria da Penha em seu art. 9º, que passou a ter a seguinte redação: A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada em caráter prioritário no SUS e no Susp - Sistema Único de Segurança Pública, de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na lei 8.742, de 7/12/93 (lei orgânica da assistência social), e em outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente, quando for o caso. Além disso a novatio legis modificou obliquamente a lei que trata de cirurgia reparadora das sequelas provenientes de agressão doméstica (lei 13.239/15), conferindo prioridade para o procedimento com os casos da mesma gravidade. No texto originário da lei Maria da Penha já constava a previsão de atendimento à mulher vítima de violência doméstica e que recebeu lesões. Na alteração comentada fica estabelecida a prioridade no atendimento social, psicológico e médico, assim como para a cirurgia reparadora de lesões e sequelas provocadas por atos de violência doméstica. Desta forma, tanto os hospitais como os centros de saúde ficam obrigados a comunicar à mulher que está sendo atendida por lesões provocadas no âmbito da lei Maria da Penha, o acesso gratuito à cirurgia plástica reparadora.  Além do que, é importante reprisar, a lei 3.871/09, que modificou o art. 9º da lei Maria da Penha, obriga o agressor a ressarcir os danos causados, inclusive o ressarcimento ao SUS, pelos custos do atendimento prestado à vítima da violência. De qualquer modo, resta evidente que a lei Maria da Penha ainda continua gerando novos fatos sociais e produzindo consequências por vezes inusitadas, que propiciarão novas intervenções dos Poderes Legislativo e Judiciário para avaliar sua correta e eficiente incidência.
domingo, 16 de junho de 2024

Adesão às pesquisas com seres humanos

O homem reflete e se locupleta de energia canalizadora para guiar seus passos, além de carregar um dinamismo persistente que irá girar como um caleidoscópio em cada fase de sua vida. Recebe influências de várias ordens e decidirá, dentro de um critério de conveniência, qual a opção que adotará para exercer sua vontade livre para perseguir os objetivos traçados em sua vida. A autonomia da vontade da pessoa surge como corolário do principium individuationis e recebe o assentimento da bioética, que a erigiu como um dos princípios basilares. A corporeidade vem a expressar a realidade singular do homem. É ele proprietário de um patrimônio chamado corpo humano, detentor de seus atos, administrador deste fascinante latifúndio, que vem revestido de uma tutela especial que lhe confere personalidade e o torna sujeito de direitos e obrigações. Ao mesmo tempo em que é um patrimônio individualizado, sofre ingerências a respeito de sua plena utilização. É interessante observar que a capacidade de consentir estabelecida no Direito Civil pátrio, teve origem no Direito Médico. Miranda, com sua perspicácia doutrinária insuperável, faz ver: "A noção advém do Direito Médico de diferentes países para marcar a linha de limite entre as intervenções médicas praticadas em vista de um ato de autodeterminação do paciente e aquelas praticadas com a assistência ou mediante representação do legalmente responsável pelo paciente. Seu objeto específico é o processo de tomada de decisões sobre os cuidados para com a saúde, globalmente considerados, abrangendo, portanto, não apenas os casos de autorização para participar de pesquisas na área da saúde, mas quaisquer atos de lícita disposição do próprio corpo". 1 A lei 14.874/24 deixa bem nítido que o participante de pesquisa tem seu acesso condicionado à adesão a ser ofertada por ele ou pelo seu representante legal, sem qualquer remuneração, a não ser o ressarcimento pelas despesas de transporte e alimentação de ambos, mediante a assinatura do TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Exige-se que tal documento seja escrito em linguagem de fácil compreensão, mais próximo do falar leigo e não do profissional, livre de vícios, subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e pormenorizado sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, tanto os atuais como os potenciais, individuais e coletivos, para que não paire qualquer dúvida a respeito da proposta do estudo, principalmente daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade e que merecem tutela diferenciada, na pessoa de seu representante legal. Sem olvidar ainda que o colaborador é detentor do direito de fazer as perguntas que julgar convenientes, além do que, juntamente com seu representante legal, poderá retirar seu consentimento a qualquer tempo, independentemente de justificativa, sem que sobre ele recaia qualquer ônus ou prejuízo. Ademais, durante o transcorrer da pesquisa, será garantido o anonimato, assim como o sigilo das informações, em razão da privacidade ser considerada de foro íntimo pelo legislador. Tamanha a importância do termo de adesão que, se o participante de pesquisa ou o seu representante legal seja incapaz de ler, será convocada uma testemunha imparcial, que acompanhará todo o ato da leitura e de eventuais esclarecimentos do TCLE e, após o consentimento verbal do participante ou de seu responsável, irá datar, escrever seu nome de forma legível e assinar o termo legal. Referido documento traça o diferencial entre a relação médico-paciente e a relação que se estabelece entre os participantes de pesquisas. No primeiro caso trata-se de uma relação linear, oportunidade em que ambos irão discutir a respeito de uma situação clínica envolvendo um procedimento cirúrgico ou terapêutico, que só será realizado com a parceria entre ambos. Neste caso tem lugar o Termo de Consentimento Informado. No segundo, ao contrário, há uma participação triangular, assim disposta: O responsável pela condução do estudo da instituição ou do centro de pesquisa; O participante da pesquisa que, por sua própria manifestação ou pela adesão de seu representante legal, concorda voluntariamente com o estudo para o qual está sendo recrutado; Instância de análise ética em pesquisa, representada pelos Comitês de Ética em Pesquisa, com a finalidade de garantir a segurança e o bem estar do participante. _________ 1 Miranda, Pontes. Tratado de Direito Privado. Introdução: pessoas físicas e jurídicas, atualizado por Judith Martins-Costa... [et al.] Editora Revista dos Tribunais, 2012 (coleção tratado de direito privado: parte geral; 1) p.251.
A lei 14.874/24, que trata sobre a pesquisa com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, como acontece com certa frequência em matéria legislativa atual, define cerca de 56 termos técnicos e legais, com a finalidade de não só de orientar o leitor, como, também, oferecer a ele melhores condições de compreensão para fazer uma leitura condizente com o espírito da norma.  Um dos termos constantes do rol é justamente a vulnerabilidade no campo da pesquisa, que ganhou um espaço próprio no texto legal e assim vem explicitado no art. 2º, LVI:  É "a condição na qual pessoa ou grupo de pessoas tenha reduzida a capacidade de tomar decisões e de opor resistência na situação de pesquisa, em decorrência de fatores individuais, psicológicos, econômicos, culturais, sociais ou políticos, observado, em qualquer caso, o consentimento descrito para situações de vulnerabilidade." Vulnerável, termo de procedência latina, vulnerabilis, em sua origem vem a significar a lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização, ferida sangrenta com sérios riscos de infecção, machucadura. Demonstra sempre a incapacidade ou a fragilidade de alguém, motivada por circunstâncias especiais e, na regra geral, vem sempre associada a uma doença, episódica ou crônica, inerente à fragilidade humana. A mitologia grega relata que Tétis, mãe de Aquiles, untou o corpo do filho com ambrosia e o mane sobre o fogo. Após, mergulhou-o no rio Estige com a intenção de fazê-lo invulnerável. Segurou-o, porém, por um calcanhar que não foi tocado pela água, e, dessa forma, ficou desprotegido. Foi morto por Páris, que o atingiu com uma flechada no calcanhar vulnerável. É verdadeira a premissa de que toda pessoa humana é vulnerável, daí a existência da própria lei para realizar a tutela necessária. A proteção legal passa a ser a lente pela qual possa ser visualizado aquele que se apresenta como o mais frágil, necessitando de cuidados diferenciados. Pode-se dizer, genericamente, que todo indivíduo tem sua vulnerabilidade intrínseca, originária, criada pela sua própria insegurança ou pelos conflitos sociais geradores de tantos problemas que afetam a mente, em razão da evolução natural da própria vida. Além dessa, outras pessoas são afetadas por vulnerabilidades circunstanciais, abrangendo a pobreza, as doenças crônicas e endêmicas, falta de acesso à educação, alijamento dos mais comezinhos direitos de cidadania, a própria pandemia, que causou tanto transtorno de todas as ordens para a população, as diversas causas de estresses, de fobias, de depressões, são enfermidades produzidas pela sociedade moderna e, na medida em que vão sendo contida, outras assumem as posturas de novas agressões comportamentais. A sociedade, desta forma, jamais atingirá sua perfeição em razão da imperfeição do próprio homem. É o círculo vicioso por onde caminha a humanidade.  O Comitê de Ética em Pesquisa tem a incumbência legal de assegurar os direitos, a segurança e o bem-estar dos participantes da pesquisa, especialmente dos participantes em situação de vulnerabilidade. Retornando à lei, que se refere à pessoa em sua individualidade como também a grupos de pessoas com capacidade reduzida, ainda que circunstancialmente, figura o Comitê de Ética em Pesquisa como o detentor da incumbência legal de assegurar os direitos, a segurança e o bem-estar dos participantes da pesquisa, especialmente dos participantes em situação de vulnerabilidade.  E é sabido que a participação de qualquer pessoa depende de sua própria volição, ou de seu representante legal, ambas materializadas pelo TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Em se tratando da especificidade prevista no art. 24 da lei 14.874/24, o TCLE deve ser assinado pelo representante legal ou até mesmo constituído judicialmente para tal mister, desde que seja pessoa capaz e que reúna condições de expressar os pontos de vista e interesses dos indivíduos que participam da pesquisa. É interessante observar que quando o estudo for relacionado com população em situação de vulnerabilidade, o representante legal fica obrigado a prestar informações aos participantes da pesquisa, quando for possível ou pelo menos na medida de sua capacidade de compreensão, não desprezando, em hipótese alguma, sua decisão expressa no termo de assentimento. Referido documento corresponde à anuência da criança, do adolescente ou do indivíduo legalmente incapaz em participar voluntariamente da pesquisa, após ter sido informado e esclarecido sobre todos os aspectos relevantes de sua participação, na medida de sua capacidade de compreensão e de acordo com suas singularidades, sem prejuízo do necessário consentimento dos responsáveis legais. Percebe-se, desta forma, que a lei, além de ampliar a conceituação de vulnerabilidade, ofertou à pessoa nesta situação tutela especial e garantidora.
domingo, 2 de junho de 2024

Nova lei de pesquisa com seres humanos

O homem é um ser em constante evolução. Desde quando se conscientizou de sua capacidade de pensar, passou a ser um pesquisador de si mesmo, de seu próprio grupo social, de seu ambiente, procurando sempre novos caminhos que possam facilitar sua empreitada terrena. Os avanços em todas as áreas foram se multiplicando e com eles a humanidade foi se adaptando, muitas vezes com tempo diminuto para absorver determinada inovação que carrega uma utilidade social, pois, na sequência, outra se apresentava mais aperfeiçoada. Desta forma, não só o homem, mas também tudo ligado diretamente à sua vida, evoluiu. O avanço na área biomédica exige a realização de pesquisas envolvendo seres humanos e, com a promoção do princípio da dignidade, passou a carregar em seus braços uma preocupação ética, reclamando uma regulamentação condizente para que o homem seja visto como sujeito de pesquisa e não meramente um objeto, uma cobaia, como demonstraram as experiências anteriores durante as guerras mundiais. Os problemas éticos que foram surgindo ao longo das experiências realizadas com seres humanos consistiram em impor limites na própria pesquisa, visando não expor os colaboradores a riscos e danos desnecessários e sim atingir uma situação de equilíbrio, onde os riscos devem ser examinados de acordo com os benefícios visados, levando-se em consideração sempre a dignidade do ser humano. Daí que o senso ético humanitário criou a limitação ética do desenvolvimento tecnocientífico. Permitiu a realização de pesquisas envolvendo seres humanos como sujeitos colaboradores espontâneos, porém, com regras seguras para sua participação. Após a Constituição Brasileira sinalizar positivamente o desenvolvimento científico e as pesquisas, o Conselho Nacional de Saúde, no ano de 1995, antevendo a necessidade de estabelecer regras a respeito das pesquisas com participação de seres humanos, aprovou as "Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos", consubstanciadas na resolução CNS 196/96. O foco principal da legislação era realizar a avaliação e adequação dos aspectos éticos dos projetos que envolvem seres humanos. Criou, na mesma oportunidade, os CEPs - Comitês de Ética em Pesquisa e a CONEP - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Enquanto o primeiro órgão é de instância inferior, regionalizado, responsável pela aprovação inicial dos aspectos éticos de uma pesquisa, o segundo, em instância superior, colegiado, de natureza consultiva e deliberativa, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde, tem por missão apreciar, aprovar e homologar os projetos de pesquisas encaminhados pelos CEPs. Referida Resolução - que em seu próprio corpo apregoava revisões periódicas de acordo com a evolução da ciência e a necessidade ética - foi revogada pela resolução 466/2012, que trata de normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e, acima de tudo, incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, referenciais da bioética, tais como, autonomia, não maleficência, beneficência, justiça e equidade, dentre outros, e visa a assegurar os direitos e deveres que dizem respeito aos participantes da pesquisa, à comunidade científica e ao Estado. E agora, após aguardar por cerca de nove anos, foi sancionada a lei 14.874/24, que entrará em vigência após 90 dias de sua publicação oficial, e que estabelece as regras e diretrizes para a condução de pesquisas envolvendo seres humanos por instituições públicas ou privadas, além de instituir o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Algumas alterações foram introduzidas pela novatio legis, assim como atualizados alguns institutos, dentre eles o Comitê de Ética em Pesquisa que, em sua estrutura original, procurava agregar os mais diferentes segmentos da comunidade, recrutando médicos, psicólogos, juristas, religiosos, bioeticistas, cientistas, pessoas que exerçam lideranças na comunidade, pacientes e quaisquer outros que tenham condições de fazer uma leitura atrelada à conveniência do ser humano. Assim como os jurados são escolhidos dentre cidadãos de notória idoneidade para a execução de um serviço público relevante, sem qualquer remuneração, os membros do Comitê serão recrutados de acordo com sua competência e projeção em sua área de saber para desenvolver um trabalho gratuito, também revestido de relevância social. Assim, cada instituição que realizar pesquisas terá obrigatoriamente seu núcleo de apreciação dos projetos a serem desenvolvidos, de acordo não só com o pensamento bioético abrangente, mas também tendo como escopo a relevância local. Muitas vezes um determinado projeto guarda repercussão regional muito mais acentuada do que em outra e aí o Comitê é chamado para definir a respeito da conveniência ou não do estudo. Embora as tarefas dos Ceps sejam ainda desconhecidas pela sociedade, que por falta de informação e divulgação não tem acesso a essa importante função pública, as decisões ali tomadas, quer sejam aprovando determinado estudo, quer sejam rejeitando, são representativas dos anseios da sociedade local, que, de certa forma, outorgou aos membros poderes para deliberar em seu nome. Pela nova lei, o Comitê de Ética em Pesquisa se apresenta como um colegiado vinculado à instituição que realiza a pesquisa, de natureza pública ou privada, de composição interdisciplinar, constituído de membros das áreas médica, científica e não científica, de caráter consultivo e deliberativo, que atua de forma independente e autônoma, para assegurar a proteção dos direitos, da segurança e do bem-estar dos participantes da pesquisa, antes e no decorrer da pesquisa, mediante análise, revisão e aprovação ética dos protocolos de pesquisa e de suas emendas, bem como dos métodos e materiais a serem usados para obter e documentar o consentimento livre e esclarecido dos participantes da pesquisa. Uma diferenciação, no entanto, foi apontada pela própria lei. Há o Comitê de Ética em Pesquisa Credenciado, representado pelo colegiado definido no inciso X, do art. 2º da lei, que tenha sido credenciado, na forma de regulamento, pela instância nacional de ética em pesquisa, para análise das pesquisas de risco baixo e moderado. E há, também, o Comitê de Ética em Pesquisa Acreditado, que é o colegiado definido no mesmo artigo que, além de ter sido credenciado, tenha sido acreditado, na forma de regulamento, pela instância nacional de ética em pesquisa, para análise das pesquisas de risco elevado, podendo ainda realizar análise das pesquisas de risco baixo e moderado. Nesta linha de pensamento é de se concluir que a instância de análise ética das pesquisas, de responsabilidade exclusiva do CEP, vem composta por uma equipe interdisciplinar, nas áreas médica, científica e não científica, de modo a assegurar que, no conjunto, os membros tenham a qualificação e a experiência necessárias para analisar todos os aspectos inerentes à pesquisa, inclusive os aspectos médicos, científicos, éticos e os relacionados às boas práticas clínicas. De forma abreviada, tem por finalidade garantir a dignidade, a segurança e o bem-estar do participante.
A prisão em flagrante delito, apesar de sua pertinência jurídica se encontrar disciplinada pelo art. 302 de Código de Processo Penal, apresenta-se como um tema que frequenta as conversas populares, principalmente quando ocorre um crime de repulsa comunitária com a imediata detenção do seu autor. O crivo popular fica vigilante e muitas vezes encontra decepção, quer seja porque o autor não pode ser preso coercitivamente, oportunidade em que o flagrante será relaxado, ou, por outras razões, receberá a concessão do benefício da liberdade provisória, ou até mesmo sairá livre com o pagamento de fiança. É interessante observar que a população brasileira, em sua grande maioria, após tomar conhecimento da prática de alguns crimes que tenham alardeamento público com divulgação pelas mídias, indaga com muito interesse a respeito da prisão antecipada e a pena a ser aplicada, em caso de condenação, como provável herança das o rdenações do reino de Portugal, em que o autor que lesava sobremaneira a comunidade devia ser levado à prisão, sem chances de liberdade ou de substituir o gravame por outra medida eficaz.  Os princípios filosóficos que nortearam as declarações universais dos direitos dos homens e que se alojaram em nossa Constituição como o reconhecimento do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, fazem ver que a liberdade é conteúdo programático indissociável dos direitos fundamentais do homem e se insere de forma absoluta entre os postulados do Estado de Direito. Com fundamento nesse sistema de controle, a liberdade do cidadão poderá sim ser cerceada pelo Estado, desde que sejam cumpridas as regras estabelecidas constitucionalmente.  Quando se trata de prisão flagrancial, exige a concorrência de pelo menos uma das modalidades previstas no art. 302 do CPP. Assim só poderá ser preso, resumidamente: Quem está cometendo ou acaba de cometer a infração penal; For perseguido, logo após o crime; For encontrado, logo depois. Percebe-se, propositadamente, que a premissa do legislador vem elencada em escala valorativa decrescente de credibilidade: aponta os casos de verdadeiros flagrantes nas duas primeiras situações, quer dizer não há nenhuma dúvida com relação à certeza visual do cometimento do crime; já nas duas outras elege o quase-flagrante ou flagrante presumido para dar validade ao ato coercitivo. Sem tais requisitos não há que se falar em prisão em flagrante. Das prisões provisórias, a realizada em flagrante delito é a que reúne os melhores requisitos de credibilidade e dão o suporte necessário para a realização do ato coercitivo. A etimologia latina flagrans dá a entender aquilo que está crepitando, pegando fogo e é visto com muita clareza. Flagrante, portanto, vem a ser a certeza visual da prática de um crime, não deixando pairar nenhuma dúvida a respeito da autoria. Tamanha é sua importância na legislação processual que a autoridade tem o dever de realizar a prisão e o particular, por sua vez, a faculdade, como longa manus do Estado, para poder praticar o ato detentivo, desde que sejam obedecidos os lapsos temporais anunciados acima.  Isto quer dizer que a prisão em flagrante oferece, a um só tempo, a autoria e a materialidade do crime, circunstâncias que somente seriam perquiridas em inquérito policial instaurado pela autoridade competente. Ocorre, no entanto, que, apesar de ser a prisão em flagrante delito a mais recomendável - por oferecer de pronto a autoria e a materialidade necessárias para o início da persecução penal, fazendo prevalecer a certeza visual do cometimento do crime na prisão de constatação - a prisão preventiva, pela sua própria caracterização processual, que representa uma prévia análise laboratorial seguida de uma fundamentação convincente e obrigatória, surge como sendo a predileta na legislação brasileira. Tanto é que referida prisão vai exigir um debruçar engenhoso e cauteloso para fazer incidir os requisitos de necessidade e conveniência da decretação da segregação provisória. Daí que, em muitos casos, a pessoa flagrada cometendo um crime é colocada em liberdade e nem mesmo será decretada sua prisão preventiva, por ser desnecessária e inconveniente. 
domingo, 19 de maio de 2024

Ainda o golpe do bilhete premiado

Um casal, previamente ajustado, abordou uma idosa e, com o intuito de ludibriá-la, narrou que estava de posse de um bilhete premiado da loteria federal, no valor de R$ 11 milhões, convencendo-a a comprar o bilhete por R$ 316 mil. Tudo começou quando uma mulher abordou a idosa indagando a respeito de um determinado endereço, oportunidade em que a conversa chegou até o bilhete que trazia consigo, apontado como o premiado. Um rapaz, que se encontrava próximo, ouviu a conversa e demonstrou interesse em adquiri-lo. Para tanto, propôs à incauta idosa que concretizassem a compra em sociedade, metade cada um. O que foi feito pela vítima que entregou a quantia já referida.1 Esta modalidade de estelionato, apesar de repetitiva, consegue atingir seus objetivos com certa frequência. Geralmente são dois agentes que participam da encenação. Um fica encarregado de abordar determinada pessoa e a ela revela, após embrenhar em assuntos corriqueiros, ser portadora de um bilhete premiado, mas tem receio de ser enganado ao solicitar seu prêmio, que representa uma razoável quantia. O outro, justificando que se encontrava bem próximo e ter ouvido toda a conversa, de forma desembaraçada e com muita iniciativa, com aparência de negociante esperto, com admirável eloquência, entra em cena na sequência. Confirma o prêmio e faz ver à incauta vítima que se ela oferecer uma determinada quantia, ganhará a confiança do dono do bilhete e dele se apossará, podendo recebê-lo posteriormente em seu valor integral. Assim é feito, o dinheiro é entregue e somente após a vítima percebe a trama ardilosa. Mas já é tarde. Trata-se de uma teatralização encenada publicamente, em que os dois agentes demonstram uma incrível facilidade de expressão de fazer inveja ao mais consagrado ator, pois, sem qualquer escola, a não ser a da rua, desempenham com maestria os personagens a que se propuseram. Como num passe de mágica, reduzem o poder de compreensão da vítima, magnetizando-a, e invadem até a última trincheira de sua resistência, convencendo-a a entregar seus valores de forma consciente, acreditando piamente que irá receber muito mais do que pagou. Não há dúvida que se trata de um comportamento preconcebido na mais genuína má-fé, pois os agentes, em curto prazo, conseguem ganhar a atenção da vítima, que vai se tornando presa fácil, sem forças para se manifestar e, como um autômato, vai confirmando com a cabeça sua aceitação à proposta feita e passa a cumprir rigorosamente o que foi determinado no protocolo estabelecido pelos estelionatários. Assim agem pelo fato de travarem um relacionamento de inteligência, visando impedir qualquer reação da pessoa durante a operação. Praticam, portanto, atos com relevantes conotações jurídicas, contribuindo ambos para o sucesso da empreitada criminosa, na mais perfeita coautoria. Dizia a história grega que Sócrates desenvolveu uma técnica que, por truques mágicos de lógica, deixava seu interlocutor tão inseguro que aceitava qualquer explicação que lhe fosse oferecida.  A vítima, somente após a aplicação do golpe, vai se recuperar e agora com a sensação total de frustração, de impotência pela sua própria conduta. Vai reprisar todo o iter criminis e irá concluir que o poder de persuasão é tão perigoso quanto o de uma arma, porém com uma sensível diferença: com a arma ocorre a coação, a intimidação, fazendo com que haja a entrega do bem; com o ludíbrio a pessoa faz parte da trama e é convencida a acreditar na veracidade de uma história fantasiosa, entregando conscientemente o que foi solicitado. ___________ 1 Disponível aqui.
domingo, 12 de maio de 2024

Mãe

Apesar de estar contida em minúscula palavra, mas dotada de maiúscula força afetiva, mãe pode ser definida pela prosa, pelo verso, pela música ou por qualquer arranjo carinhoso. Não é buscar espaço para franquear os limites da fantasia, tão próspera nesse tema, nem mesmo fazer valer sedutores apelos, e sim promover um mutirão interno de agradecimento e fazer ecoar a voz sensata, mesmo desprovida de arroubos retóricos. Tamanha é a universalidade materna que, quando se homenageia por escrito uma delas que já cumpriu sua missão terrena, todas as demais cabem no mesmo texto. Trata-se de uma peça de poucas palavras e com a entrega imediata num cálice transbordante ao som de palmas e hosanas para aquela que, com muita prudência e sabedoria, soube compor uma imagem de exemplo de vida. A escrita, neste caso, torna-se fácil e eloquente, sem qualquer necessidade de encaixar as palavras à força, pois elas se ajustam e se alojam com a mais serena harmonia. É como brincar com as palavras numa linguagem de revelação. Parece até que saem em desenfreada carreira querendo chegar primeiro e buscar o local mais adequado, demonstrando que, apesar da riqueza do vocabulário humano, a concorrência também é grande entre as palavras. Você, filha, irmã, esposa, mãe, avó, bisavó, amiga, num incontável acervo de predicados indizíveis, conseguiu criar, pela sua simplicidade e singeleza, aliadas a uma férrea persistência, uma personagem vitoriosa nesta aventura maravilhosa chamada vida. Teve o privilégio de ver o tempo passar, sem com ele passar, no entanto, mas apesar dos passos passarem, cravou suas pegadas. Quantas e quantas vezes, em razão das incertezas da vida você lançava um só olhar explicando tanta coisa. Não vendeu sonhos e muito menos retirou os percalços dos caminhos. Deixou bem claro que os atalhos não são recomendáveis para fugir de uma íngreme subida, pois podem desembocar em um abismo e que os labirintos existem para exercitar a perseverança. Soube ouvir os lamentos das palavras, espargiu esperanças exageradas, mas cabíveis na palma do mais singelo sonho. Assim como sempre recomendou o caminhar de mãos dadas para a mútua ajuda, criando uma modalidade de blindagem fraternal. Sua experiência é tamanha que já se tornou companheira inseparável da vida e, pelas contingências, esqueceu as agruras da perda do companheiro e assumiu a autoridade familiar, como um esteio sólido e inabalável, indicando com segurança os caminhos recomendados depois de ver mais vagar, no seu exercício de ponderação, todas as opções oferecidas. Hoje já dá para entender o pensamento que regrou sua vida: Quando criança via a vida como um lago, fácil de chegar a outra margem; quando mulher, passou a vê-la como um rio e como adulta como um mar, infinito e sem limites.  Você, na sua pouca idade, conseguiu imprimir uma dimensão diferenciada do amor humano. Excedeu-se. Nem sempre, é claro, a vida caminha às claras. Muitas vezes penetra em zonas de penumbra, exigindo muito tato para enfrentá-la e iluminá-la. Nestas ocasiões, apegava-se a sua inabalável fé, dedilhando levemente as contas do seu rosário, passando por todos os mistérios, até atingir a plenitude da oração e quando elevava as súplicas em favor de todos aqueles que necessitavam. É como se fosse uma prece para a humanidade. Assim, é justo alardear aos quatro ventos a alegria, o júbilo e felicidade em comemorar a sua data, em família e entre amigos, numa verdadeira celebração de almas que espalham gratidão neste momento de encanto para falar com entusiasmo a você, que o amor não envelhece o espírito já amadurecido pelo exercício da própria vida, e pedir-lhe, mais uma vez, as bênçãos necessárias para seguir a caminhada.
domingo, 5 de maio de 2024

A eutanásia e a dignidade da morte

Uma paciente com 45 anos de idade, diagnosticada desde os 12 anos com polimiosite, doença degenerativa, pleiteou junto à Suprema Corte do Peru autorização para a prática da eutanásia, procedimento proibido pela legislação do país. Isto porque, apesar de todos os esforços envidados na área médica, não logrou qualquer êxito, a não ser suportar uma fraqueza muscular acentuada e progressiva em razão da doença incurável. A Corte julgou procedente seu pleito em 2022 e, para sua execução, foi elaborado um "Plano e Protocolo de Morte Digna, conforme exigência do Seguro Social de Saúde do Estado". A morte ocorreu no dia 21/4/24, por injeção letal e indolor, com o auxílio de um médico.1 O tema morte começa a fazer parte direta da vida das pessoas e a tendência é procurar uma modalidade mais ética que se coadune com a conveniência humana, que tem a morte como o esgotamento de todo o esforço terapêutico e o esvaziamento das reservas de resistência do paciente. Já que o morrer é inafastável, a tendência é buscar uma alternativa que se enquadre nos limites da razoabilidade ética. Mas o homem, na sua incansável evolução, arrebenta os diques das regras consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer, também em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito das modalidades da morte. É até difícil aparentemente aceitar a postura da paciente peruana que não se encontrava no estertor da morte e nem mesmo internada em ambiente hospitalar. Além do que, pelo que se sabe, a doença é grave, mas não minou todas as suas forças a ponto de tornar a vida insuportável. Nessa linha de pensamento, qualquer doença degenerativa grave acarretaria idêntico final de vida.  É desejo insculpido na sabedoria popular que toda pessoa tenha uma morte rápida, sem o calvário de qualquer sofrimento, isto após ter vivido intensamente a vida. Sêneca, na antiguidade do Império Romano, já proclamava que morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente. O direito de autodeterminação se faz presente no caso acima relatado. A autonomia do ser humano possibilita a tomada de decisões de acordo com sua vontade, com exceção dos casos de colidência com interesses maiores e tutelados legalmente. O morrer com dignidade compreende, em situação de sofrimento interminável, transferir a um profissional da saúde não o direito à sua própria vida, mas sim à renúncia ao direito de continuar vivendo em situação angustiante. Pode-se até dizer que se trata de uma morte voluntária, consensual do paciente em busca da morte com dignidade, após constatar que não há mais intervenção médica para estagnar a doença ou até mesmo administrá-la. É o momento de abandonar a medicina curativa e ingressar em um procedimento médico regrado pela antiga parêmia do voluntas aegroti suprema lex, no sentido de que o paciente tem o direito de decidir a respeito de sua morte, desde que ela se avizinhe de forma inequívoca. Com a maestria acadêmica que lhe é peculiar, D'Agostino assim se expressou: "Eis porque a vida humana, mesmo a vida doente, mesmo a vida perdida nos labirintos da loucura ou afundada nos abismos do coma irreversível, nunca pode perder a dignidade: porque continua sendo vidas ao lado de vidas, fonte e doadora de significados mesmo quando nem mais o perceba."2 O divisor agora determinante é justamente a autonomia da vontade do paciente, encartada definitivamente na dignitas hominis. Abre-se, desta forma, um enorme espaço de reflexão no caminhar de uma realidade nova que descortina um século que, obrigatoriamente, para a sobrevivência da humanidade, deve ser destinado ao processo de humanização. Não é de se levar em conta única e exclusivamente a intenção do paciente e sim colher também a manifestação médica no sentido de justificar que não há qualquer perspectiva de tratamento para combater a doença e que o sofrimento será cada vez mais acentuado e insuportável na já existente agonia terminal. Percebe-se que o caso narrado apresenta uma aproximação entre a eutanásia e o suicídio assistido. Ambos não se confundem. A eutanásia é o ato pelo qual o médico pratica um ato específico para colocar fim à vida humana em estado irreversível e terminal, antecipando a morte do paciente. O suicídio assistido vem a ser a vontade expressa pelo doente, que se encontra em perfeitas condições mentais, de dar fim à sua vida, realizando, ele próprio, os atos para garantir o seu intento, sempre orientado por médico, em razão de uma determinada doença. "No suicídio medicamente assistido, esclarece o sempre lembrado bioeticista Pessini, envolve a participação de um médico, na provisão, mas não na administração direta para ajudar a pessoa a abreviar sua vida".3 No Brasil, é terminantemente proibida a prática do suicídio assistido e também da eutanásia, ambas modalidades incriminadas no Código Penal.  __________ 1 Disponível aqui. 2 D'Agostino, Francesco. Bioética segundo o enfoque da Filosofia do Direito. Tradução: Luisa Raboline - Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2006, p. 203. 3 Pessini, Leo. Eutanásia - porque abreviar a vida? São Paulo: Editora Loyola, 2004, p.127.
Jorge Amado, com sua perfeita narrativa que algumas vezes chega a tangenciar a ficção, relata, na obra "A Morte e a Morte de Quincas Berro D'Água", a história de um comportado e exemplar funcionário público que, repentinamente, abandonou a família e foi viver na rua, local onde fez amigos de bebida e boemia. Depois de 10 anos veio a falecer, sendo o velório providenciado pelos familiares. Os amigos da noite, no entanto, retiraram o morto do caixão e, como se vivo fosse, sempre carregado pelos companheiros que cantavam e exibiam bebida alcoólica num ritual espontâneo, percorreram todos os lugares e bares que frequentavam. Até chegarem ao barco do Mestre Manoel e avançarem mar adentro, quando Quincas, que se encontrava sem qualquer amparo, caiu no mar e sua morte foi oficialmente declarada pelo grupo, como ele queria. O Direito Penal, vez ou outra, parece trazer para a vida real fatos que parecem repousar, apenas e tão somente, nos livros e relatos de ficção. Com efeito, se não fosse gravado, o fato amplamente noticiado careceria de credibilidade: uma mulher buscando, durante atendimento na agência bancária, a todo custo, fazer com que seu tio, assim por ela declarado, já morto e mal posicionado na cadeira de rodas, assinasse documentos para finalização de um empréstimo bancário. Diante da notável singularidade do fato, com a possível prática de crimes, instaurou-se o competente inquérito policial, tipificando-se a conduta em tese praticada como crimes de vilipêndio a cadáver (art. 212 do CP) e de furto tentado, qualificado pela fraude (art. 155, § 4º, inciso II, do CP), sendo que a eventual parente teve sua prisão preventiva decretada após a realização da audiência de custódia1. Além da incredulidade fática que a todos causa espanto, tem-se diversas abordagens jurídico-penais que são pertinentes ao caso, que ensejam profunda reflexão e dificuldade para aplicação da lei penal no caso, vez que se trata de uma vítima figurante, já sem vida. Inicialmente, destaca-se a tipificação do crime patrimonial. Por qual razão a tipificação repousou no furto qualificado pela fraude e não no estelionato? É certo que, em ambos os crimes, a fraude está intimamente conectada com a conduta do agente. Porém, a distinção é cristalina. No furto qualificado pela fraude, o agente emprega meio ardiloso, enganoso, para burlar a vigilância da vítima, desviando sua atenção para que o objeto possa ser subtraído com segurança. Subtrair, aqui, deve ser interpretado como a conduta de retirar o bem da esfera patrimonial da vítima, sem a sua concordância. É o exemplo clássico do "gato de energia elétrica": o agente desvia a energia elétrica da rede pública para seu imóvel, com a finalidade de consumi-la gratuitamente, pois a energia consumida não é computada pelo medidor da concessionária (que permanece íntegro - não há qualquer alteração física nele). Já no delito de estelionato, por sua vez, a vítima acaba participando de verdadeira mise en scène, criada pelo agente para camuflar a fraude empregada. Aqui, o agente não usa a fraude para subtrair (retirar) a coisa da vítima. A fraude é empregada, pelo agente, para enganar a vítima, que acaba por lhe entregar o bem (ou o serviço, o dinheiro) voluntariamente, acreditando em uma realidade que foi propositalmente distorcida (fraude) pelo agente. É de se atentar que no furto qualificado pela fraude, o agente subtrai (retira) o bem da vítima, por meio de fraude, que é empregada para que a ofendida não perceba a subtração. Já no estelionato, a fraude é criada para enganar a vítima, ou seja, criar uma realidade diferente e fazer com que a vítima nela acredite, para entregar o bem da vida almejado pelo agente (não há subtração, há entrega voluntária). Nesse passo, conforme preciosas lições de Dias Júnior, "O golpe bem-elaborado e encenado, com efeito, costuma tirar muito de seu poder de envolvimento da hábil criação desse ambiente de encantamento capaz de fazer relaxar as defesas próprias do estado de vigília e estimular as atitudes tomadas ao sabor dos impulsos do momento"2. De qualquer modo, as questões tormentosas não param aqui: muitos se indagam quanto à real e concreta possibilidade de êxito na empreitada, isto é, a atendente do banco prontamente ao perceber que algo grave acontecia, sequer deu continuidade ao atendimento e, imediatamente, acionou o serviço do "SAMU". Logo, há que se indagar acerca da possibilidade de aplicação do artigo 17 do Código Penal: Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime. É o chamado crime impossível, crime de ensaio ou ainda tentativa inidônea: o agente realiza todos os atos executórios que ele acredita serem necessários para consumar o crime, mas, por razões objetivas, é impossível que o resultado ocorra devido à inadequação dos meios utilizados ou à condição do objeto visado. Por exemplo, tentar envenenar alguém com uma substância que, desconhecido ao agente, é inofensiva. Com isso, caberá à instrução processual o enfrentamento da (im)possiblidade concreta do meio utilizado pela suposta autora dos crimes, respondendo à questão: tendo em vista a dinâmica dos fatos, com "Tio Paulo" nitidamente sem qualquer condição de expressar a mínima vontade que fosse, poderia a atendente, naquele cenário, descuidar-se e o empréstimo ser formalizado, com a liberação do dinheiro? No que diz respeito ao crime de vilipêndio a cadáver, mister considerar a notícia de que os médicos do SAMU constataram a presença de livor mortis (manchas de hipóstase), ou seja, depósito de sangue estagnado, em razão da cessação da circulação sanguínea. A literatura médica- legal é vasta e aponta para sua presença, em média, cerca de 2 a 3 horas post mortem. Logo, parece mesmo estar configurado o crime tipificado no artigo 212 do CP, tendo em vista que a conduta consiste em desrespeitar ou ultrajar o corpo, ou restos mortais, de uma pessoa; seja por meio de atos de profanação, mutilação, desfiguração ou qualquer outra ação que ofenda a memória e o respeito devidos aos mortos. __________ 1 Disponível aqui.   2 Dias Júnior, José Augusto, Os contos e os vigários: uma história da trapaça no Brasil. São Paulo: Leya, 2010, p. 260.
domingo, 21 de abril de 2024

Nova ameaça do tabagismo eletrônico

Quando vem à baila tema relacionado com saúde pública, compreendendo toda ação que tenha por finalidade atender o cidadão ou a coletividade, ofertando não só a orientação correta para o exercício da boa saúde, tanto na modalidade preventiva dos agravos e doenças, como, também, realizar tratamentos e cuidados específicos para administrar e combater determinadas moléstias, tem-se a percepção da importância da formulação e implementação de políticas públicas. O conceito de saúde não se limita mais à restrita definição da Organização Mundial de Saúde no "completo bem-estar físico, mental, social e político" e sim, de forma aglutinadora - observando outros predicados correlacionados com o bem-estar e viver saudável - vai se expandindo até atingir a eudaimonia em sentido mais amplo possível, conforme apregoado por Aristóteles. Se, de um lado, há nítida intenção estatal de proporcionar plenas condições de saúde, por outro, na contramão de direção, a tecnologia avança de forma espetacular e vai produzindo itens que facilitam a vida do homem, fazendo com que tenha condições de desenvolver seus objetivos. O mau uso da tecnologia, no entanto, faz do homem sua própria vítima. A começar pelas drogas sintéticas produzidas por substâncias químicas psicoativas, que agem da mesma forma que as tradicionais, carregando malefícios ao organismo humano. Agora, como que visando suavizar os males do tabaco, chegou a vez dos cigarros eletrônicos, conhecidos como "vapes". A tecnologia, nesse caso, em vez de extirpar o vício, incentiva-o por meio de uma via substitutiva, tão nociva quanto a originária. Apesar de a ANVISA proibir a comercialização, a importação e a propaganda de qualquer dispositivo eletrônico para fumar, tramita pelo Senado Federal o Projeto de Lei nº 5008/2023, de autoria da Senadora Soraya Thronicke (Podemos/MS), que pretende liberar a produção, importação, exportação, comercialização, controle, fiscalização e propaganda dos dispositivos eletrônicos para fumar (DEFs). O cigarro eletrônico, na medida da sua proposta, busca imitar o cigarro convencional, com a diferença de que não pratica a queima do tabaco e nem possibilita a inalação de outras substâncias tóxicas advindas dele. pois as baforadas não carregam fumaça e sim vapor. Além do que o artifício pode ser considerado como medida alternativa no tratamento do tabagismo, possibilitando considerável diminuição do cigarro convencional. Vício interpretativo tão destoante quanto o vício do tabagismo. O interesse que determinou a vontade da lei 12.546/2011 (Lei Antifumo) foi o de proteger a saúde não só do fumante, como também do tabagista passivo, que vem a ser aquele que inala fumaça dos derivados de tabaco. É a chamada Poluição Tabagística Ambiental, assim denominada pela Organização Mundial da Saúde. Ora, a ratio legis é a de cuidar da saúde dos fumantes e não fumantes independentemente ou não de qualquer situação.  A Lei Maior determina, de forma taxativa, que a saúde é direito de todos e obrigação do Estado, que adotará as políticas de atuação, compreendendo aqui as preventivas, visando reduzir o risco de doenças e de outros agravos. A lei 12.546/2011, proibitiva do fumo, de alcance nacional, repete em seu art. 2º o preceito impeditivo da Lei Paulista nº 13.541/2009, que proíbe "o uso de cigarros, cigarrilhas, charutos, cachimbos ou qualquer outro produto famígero, derivado ou não do tabaco, em recinto coletivo fechado, privado ou público". Quando o legislador faz uso da conjunção alternativa "ou" e a ela soma o pronome indefinido "qualquer", pretende, de forma inequívoca, alcançar todas as situações que carregam semelhança com aquela lançada como regra. É uma perfeita adequação de compatibilidade, sem fugir do escopo principal da lei. Por outro lado, o cigarro eletrônico - que é composto de uma bateria de lítio, um atomizador responsável pelo aquecimento e o refil que armazena a nicotina diluída em solventes - é de venda proibida no país, circunstância que dificulta ainda mais sua aquisição - além da sua acentuada nocividade pela elevada concentração de nicotina e metais, cromo, níquel e cobre. A Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA) disciplinou a matéria pela Resolução 46/2009, que no artigo 1º traz a seguinte determinação: "Fica proibida a comercialização, a importação e propaganda de quaisquer dispositivos eletrônicos para fumar, conhecidos como cigarros eletrônicos, e-cigarretes, e-ciggy, e-cigar, entre outros especialmente os que aleguem substituição de cigarro, cigarilha, charuto, cachimbo e similares no hábito de fumar ou objetivem alternativa no tratamento do tabagismo". A Diretoria da Anvisa, reunida na data de 19/4/2024, por mais uma vez, discutiu o tema e decidiu pela proibição da fabricação e comercialização dos cigarros eletrônicos no país. A Constituição Federal determina que a saúde é direito de todos e o Estado deve adotar medidas e políticas de atuação, compreendendo as preventivas como no caso específico, que venham ao encontro do anseio da população evitando, desta forma, a abertura de portas para produtos que que não trazem evidências científicas de segurança comprovada, como é o caso do uso do cigarro eletrônico. Desta forma, o arsenal legislativo existente carrega uma política pública voltada diretamente para a saúde e bem estar da pessoa, não merecendo, desta forma, qualquer mudança em seu rumo original. Para arrematar, o Senado Federal, em primeiro e segundo turnos, em votação realizada no dia 16/4/2024, aprovou a Proposta de Emenda à Constituição (PEC), que criminaliza a posse e o porte de drogas, em qualquer quantidade. O texto segue para a Câmara dos Deputados e se for aprovado, será promulgado, dispensada a sanção presidencial.
domingo, 14 de abril de 2024

Cirurgia em embrião

Quanto maior o avanço da biotecnologia e a capacitação dos profissionais da área da saúde, maiores serão os benefícios em prol da humanidade. Antes tudo aquilo que poderia ser considerado ficção científica em literatura e filmes, hoje já é uma realidade inconteste e, acima de tudo, ultrapassa os limites do até então alcance do pensamento humano. Basta ver o romance publicado por Aldous Huxley, em 1932, O Admirável Mundo Novo, em que antecipa uma engenharia genética avançada na área reprodutiva em laboratório, e hoje, com a tecnologia de primeira linha da reprodução assistida, a medicina consegue êxitos em várias empreitadas nesta área. O avanço científico enveredou por um caminho de ritmo acelerado. Tanto é que o objetivo da ciência moderna é desenvolver uma cultura diferenciada com o intuito de proteger o indivíduo no âmbito da sociedade e a preocupação de proporcionar a ele uma vida mais digna, com qualidade e conteúdo, no caminho da realização pessoal, familiar, social e profissional. No Hospital da Criança e Maternidade de São José do Rio Preto1 foi realizada uma cirurgia intrauterina, no quinto mês de gestação, em um embrião diagnosticado com mielomeningocele (malformação congênita do bebê), utilizando, para tanto, a técnica Safer, que diminui os riscos tanto para a gestante como para o bebê, por ser minimamente invasiva. Todo procedimento foi feito pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e teve como responsável a equipe do médico cirurgião fetal Gustavo Henrique de Oliveira. O tema é envolvente por demais, uma vez que técnicas apuradas conseguem resolver o problema da procriação. A cada procedimento inovador e exitoso, a humanidade vai galgando e acumulando conhecimentos mais relevantes. E o interesse maior é que o procedimento invasivo foi realizado no útero que abrigava o embrião. Por muito tempo prevaleceu o princípio da sacralidade do embrião, no sentido de que nenhuma interferência poderia ocorrer após o início da gestação. É até possível a realização do diagnóstico genético pré-implantacional com embriões fertilizados in vitro, antes, porém, da transferência para o útero, justamente para averiguar se são portadores de virtual doença genética. O princípio da intocabilidade do embrião, é bom que se diga, já não tem aplicação plena, em razão dos avanços científicos na seleção embrionária. Permanece sim a proibição de selecionar sexo ou qualquer outra característica biológica do futuro filho, mas não se questiona a realização do exame para diagnóstico pré-implantacional e testes genéticos visando verificar se o embrião é portador de alterações cromossômicas ou genéticas. Se a constatação for positiva, admite-se o procedimento corretivo. Prevalece aqui o princípio da beneficência da Bioética. O Código de Ética Médica2 veda expressamente ao médico: Intervir sobre o genoma humano com vista à sua modificação, exceto na terapia gênica, excluindo-se qualquer ação em células germinativas que resulte na modificação genética da descendência. A esse respeito, comparece a Convenção sobre os Direitos do Homem e da Dignidade do Ser Humano Face às Aplicações da Biologia e da Medicina e esclarece sobre as intervenções com o genoma humano, em seu artigo 13º, da Comunidade Europeia: Uma intervenção que tenha por objeto modificar o genoma humano não pode ser levada a efeito senão por razões preventivas, de diagnóstico ou terapêuticas e somente se não tiver por finalidade introduzir uma modificação no genoma da descendência.  Percebe-se, pelo relato feito no início que o inovador procedimento médico traz incontáveis benefícios para o embrião que, ainda em seu nascedouro, recebe a intervenção necessária visando atingir uma vida normal e sem qualquer sequela com a doença que o ameaçava. Não se trata de um melhoramento genético - isto é, aperfeiçoar e melhorar aquilo que já vem pronto na herança genética - e sim de medida para reparar uma doença de distúrbio genético que futuramente acarretará sérias restrições à pessoa. A diferença, portanto, é abissal. Imbuído do mais avançado pensamento bioético, Sandel assim advertiu: As descobertas da genética nos apresentam a um só tempo uma promessa e um dilema. A promessa é que em breve seremos capazes de ratar e prevenir uma série de doenças debilitantes. O dilema é que nosso recém-descoberto conhecimento genético também pode permitir a manipulação de nossa própria natureza - para melhorar nossos músculos, nossa memória e nosso humor; para escolher o sexo, a altura e outras características genéticas de nossos filhos; para melhorar nossas capacidades física e cognitiva; para nos tornar "melhores do que a encomenda"3 É indiscutível que o conhecimento científico proporcionado pela tecnologia de ponta consiga utilizar as ferramentas disponíveis para ampliar o acesso integral, igualitário e universal à saúde - princípios norteadores do SUS - aos casos mais complexos e que exijam atendimentos especializados.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Resolução nº2.217/2018 CFM, artigo 16. 3 Sandel, Michel J. Contra a perfeição: ética na era da engenharia genética. Tradução Ana Carolina Mesquita. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021, p. 19.
domingo, 7 de abril de 2024

Nova opção para doadores de órgãos

O homem quer, a todo custo, prolongar sua vida. Pode até ser uma vocação natural procurar viver mais e, para tanto, corrigir os defeitos para se atingir uma existência mais rica, voltada para valores espirituais, de liberdade, da própria dignidade humana, de solidariedade social. É uma eterna recriação. Para tanto, além de procedimentos terapêuticos, vale-se também de órgãos, tecidos e partes de corpos de seus semelhantes. A medicina detecta o órgão doente, e, em seguida, através de uma intervenção reparadora-destruidora-substitutiva, consegue manipular um órgão são e recolhido de outro organismo, corrigindo aquele comprometido na sua funcionalidade. O corpo humano, desta forma, passa a ser um repositório de tecidos e órgãos, mas nítida é a interferência estatal na disposição de vontade da pessoa a respeito da doação de seus órgãos in vita ou post mortem. A disponibilidade do corpo tem seus limites e somente poderá ocorrer quando, para fins terapêuticos e humanitários, ficar evidenciado o estado de necessidade. Sacrifica-se um bem em favor de outro, levando-se em consideração o progresso das técnicas médicas que possibilitam uma reposição com considerável margem de sucesso. O tema relacionado com a Doação de Órgãos, Tecidos e Partes do Corpo Humano, para fins de transplante ou outra finalidade terapêutica, é sempre atual e constantemente vem à baila trazendo alterações na lei 9.434/1997, que regulamenta a matéria, visando facilitar cada vez mais a compreensão a respeito do ato de suprema solidariedade do ser humano. Referida Lei, em seu texto primeiro, já adotou a autorização presumida de órgãos ou partes do corpo humano, a não ser quando ocorresse manifestação de vontade em contrário. A mudança teve como base legal a Lei nº 10.211/2001, que revogou qualquer manifestação de vontade que constasse da Carteira de Identidade ou da Carteira Nacional de Habilitação relativa à retirada de órgãos, que perdeu sua validade em 22 de dezembro de 2000. O Corregedor Nacional de Justiça, considerando a necessidade de simplificar e tornar mais eficiente a doação de órgãos, expediu o recente provimento 164, de 27 de março de 2024, criando a utilização de um mecanismo seguro e gratuito, instituiu a Doação Eletrônica de Órgãos, Tecidos e Partes do Corpo Humano (www.aedo.org.br), símbolo da campanha "Um Só Coração: seja vida na vida de alguém." Aludido documento representa, por si só, a manifestação de vontade da parte interessada em fazer a doação e pode ser elaborado perante tabelião de notas acessando o módulo específico do e-Notoriado, local onde será alojada a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO), gratuitamente. Qualquer cidadão maior de 18 anos tem legitimidade para fazer valer sua vontade post mortem, ou revogar a que foi feita anteriormente. Ocorre que, mesmo com a Autorização Eletrônica, há necessidade de se cumprir o regramento contido no artigo 4º da Lei nº 9.434/97, que confere legitimidade exclusiva de doação para o cônjuge ou parente maior de idade, obedecida a linha sucessória reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive. A importância do documento vem revelada pela manifestação expressa da pessoa em declaração por ela assinada com a solicitação de que seja efetivamente cumprida, além de contar com a homologação estatal. Traz também uma inovação interessante, consistente em permitir, em casos de morte encefálica, à Coordenação Geral do Sistema Nacional de Transplantes ou às Centrais Estaduais de Transplantes, consultar os AEDOS para identificar a existência de eventual vontade de doação. Em caso de falecimento por outra causa, referidas instituições poderão fazer idêntica pesquisa. O provimento é apresentado em um bom momento em que a comunidade brasileira vem colaborando com a doação de órgãos e tecidos, proporcionando um sensível aumento no número de transplantes. Embora não modifique a lei que trata da matéria, traz uma nova opção para ampliar o leque de doação e, todo movimento neste sentido, proporcionará significativo impulso para revitalizar ainda mais o procedimento de transplante.
domingo, 24 de março de 2024

Transplante com rim de porco em humano?

Um paciente, com 62 anos de idade, acometido por doença renal em estágio terminal, foi submetido, recentemente, no dia 16 de março, a um procedimento de xenotransplante, quando recebeu um rim de um porco, que experimentou 69 mutações genéticas, principalmente para afastar uma molécula que provoca a rejeição em humanos.  O impacto do feito ocorrido no Hospital Geral de Massachussetts e que teve o comando do médico brasileiro Leonardo Riella, foi altamente positivo na medicina, pois se tratava de paciente vivo e com ótima recuperação. Não que a notícia cause estranheza - levando-se em consideração a evolução da transplantação que vai ganhando espaços até então desconhecidos - mas sim pela exemplar conduta científica e o resultado atingido. Apesar de não ser previsível o tempo de sustentação do rim suíno, poderá manter o paciente em situação de controle da doença para, futuramente, sendo necessário, receber um órgão humano. Já tinha ocorrido anteriormente, em um hospital de Nova York, procedimento idêntico. Tratava-se de uma paciente que se encontrava com a morte encefálica decretada e, fora do corpo, o rim do suíno foi ligado às veias e artérias e, sem qualquer rejeição, funcionou por 54 horas de observação. Xenotransplante, na precisa definição de Marcelo Coelho, é "o transplante de um órgão, ou tecido, ou células de um animal a outro de espécie distinta e é uma das grandes promessas da medicina para suprir as necessidades de órgãos, tecidos e células transplantáveis"1. Animal transgênico é aquele que experimentou mudança em seu patrimônio genético, em consequência da inoculação de um ou vários genes humanos com a finalidade de compatibilizar a realização de transplantes. Tal prática hoje já é uma realidade no meio científico, principalmente com a utilização de porcos transgênicos, cuja anatomia de órgãos é bem semelhante à dos humanos. Não se trata de criação de quimeras da mitologia grega, representada pela cabeça de leão, corpo de cabra e rabo de serpente, e sim de experimentos científicos voltados para proporcionar benefícios de saúde para o ser humano. Dá-se a impressão de que se trata de um relato de ficção científica, principalmente pela utilização de um rim suíno quando a regra aconselha o transplante de órgãos entre humanos e, mesmo assim, como é sabido, com certa frequência, ocorre a rejeição. O benefício resultante do estudo é infindável e deixou transparecer que, apesar de se tratar de fase experimental da pesquisa, merece continuidade uma vez que há fatores indicativos em favor da saúde humana. É evidente que há ainda uma longa peregrinação científica a ser percorrida, mas, pelo menos, para o momento, reacende a esperança de encontrar mais uma opção, que certamente trará inúmeros benefícios para o homem. O Brasil ocupa atualmente posição de destaque mundial no ranking de transplantes, pelas informações veiculadas pela Associação Brasileira de Transplante de Órgãos, apesar ainda da taxa de doadores não corresponder ao número de inscritos para o procedimento. A escassez de órgãos humanos faz com que muitos pacientes, em estado delicado de saúde, fiquem aguardando durante longo período nas filas dos transplantes a oferta de algum órgão que seja compatível e muitas vezes vão a óbito sem atingir o objetivo almejado. É de se esperar que o estudo anunciado, estribado no melhor embasamento científico e ancorado pelo pensamento bioético da beneficência, proporcione uma acalentadora esperança para a humanidade. __________ 1 Marcelo Coelho, Mario. Xenotransplante - ética e teologia. São Paulo: Edições Loyola, 2004, p. 56.
domingo, 17 de março de 2024

A lei como justa medida

A lei, por si só, quando editada, carrega um mandamento direcionado para atender a um reclamo social. Por mais que pretenda atingir os objetivos propostos, inserindo múltiplas opções em seu texto, jamais conseguirá alcançar todas as possibilidades previstas e até mesmo aquelas que, de forma difusa, habitam seu conteúdo originário.  Daí que a lei não nasce perfeita e acabada. A Hermenêutica, instrumento interpretativo da mens legis, é encarregada, não só de direcionar o texto legislativo, como, também, ampliá-lo para que possa atender a outras necessidades que guardam certa semelhança ou analogia com o fato apresentado. Nesta linha de pensamento, pelas interpretações literária, gramatical, lógica e teleológica, o intérprete poderá conferir a dimensão necessária à norma, ampliando-a, em alguns casos, para que possa ordená-la e, em outros, restringindo-a para que seja alcançada a justa medida.  O direito, pela sua própria estruturação interpretativa, revela-se cada vez mais um instrumento voltado para atender as necessidades do homem. Vale-se da lei, que estabelece os parâmetros permissivos e proibitivos, porém, não se prende a ela de forma servil e sim, com a autonomia que lhe é peculiar, alça voo em busca de uma verdadeira integração entre a norma e o fato perquirido, avizinhando-se da realidade pretendida. Pode-se até dizer que a lei é uma ficção, enquanto sua aplicação na medida certa depende unicamente da forma pela qual será interpretada. Diz-se, e com muita razão, que o Direito vem da mesma linha genética da filosofia. Nessa, o homem, pela sua sabedoria e experiência, aponta os princípios éticos e sociais que devem reger a vida em comunidade. Naquele, é a articulação de todas as condutas humanas catalogadas em um regramento, tendo como base as recomendações filosóficas. A lei, enquanto ferramenta, é um instrumento social de enorme valia. Justifica-se por si só, vez que dita as regras que devem ser observadas no relacionamento entre as pessoas, tudo visando um convívio social harmônico. Pode até ser considerada hostil, mas é necessária para que o homem possa viver numa sociedade adequadamente ordenada. Porém, apesar de trazer uma regra mandamental, vem despojada de sentimento. A lei é ordem e uma boa lei é uma boa ordem, já sentenciava Aristóteles. É um corpo sem alma e cabe ao intérprete fazer o ajustamento adequado, cum grano salis e a necessária dose de bom senso. É um bólido que deve ser teleguiado por técnicos que tenham conhecimento de sua potencialidade: se não for feito o ajustamento do alvo, o impacto em local não apropriado pode ser desastroso.  Para evitar transtornos sociais surge a necessidade de se fazer uso da Hermenêutica. Se o operador do direito terminar a leitura do texto legal e aplicá-lo ao caso concreto, estará simplesmente realizando uma operação sistemática, praticamente matemática, sem levar em consideração a elasticidade escondida nas palavras da lei, com o consequente fiat justitia, pereat mundus. Aplica o texto frio e gélido, sem qualquer riqueza de conteúdo, como pretendia Justiniano, com seu Corpus Juris. Se, porém, contornar o biombo que o esconde e ingressar no cerne da norma, descobrirá a riqueza nela contida, possibilitando alcançar situações que, até mesmo originariamente, não estavam contidas na mens legis. E a ciência Hermenêutica propõe não só a compreensão de um texto, mas vai muito além, até ultrapassar as barreiras para atingir seu último alcance. "Quando, argumenta com toda autoridade Ferraz Júnior, dizemos que interpretar é compreender outra interpretação, (a fixada na norma), afirmamos a existência de dois atos: um que dá a norma o seu sentido e outro que tenta captá-lo".1 A lei vem expressa por palavras, nem sempre correspondendo à real intenção do legislador. "A palavra, já advertia Maximiliano, é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se aconchegam e escondem várias ideias, valores mais amplos e profundos dos que os resultantes da simples apreciação literal do texto".2 A lei, desta forma, não vale pelo seu frontispício e sim pelo seu conteúdo. É uma porta semiaberta convidando o intérprete a penetrar em seu interior e de lá garimpar todas as riquezas necessárias para atendimento das necessidades do ser humano. E, quanto mais for retirado, melhor atingirá sua finalidade, em razão da elasticidade interpretativa que possibilita a criação de um amplo leque de benefícios. De nenhuma valia a lei que se esgota em si mesma, pois atende necessidade única, e também em uma única oportunidade.  A Hermenêutica, por sua vez, coadjuvante que é, não carrega somente um embasamento filosófico, mas retrata, na realidade, a interpretação da própria vida, visto que procura sempre o caminho da melhor e mais justa solução social. Pode-se até dizer que ela, por ser uma ciência que tem por base a finalidade teleológica, abre valas para desvendar opções e após escolher a que melhor se ajusta ao caso concreto. __________ 1 Ferraz Júnior, Tércio Sampaio. A ciência do direito. São Paulo: Atlas, 2006, p. 72. 2 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 29.
domingo, 10 de março de 2024

A mulher e a Lei Maria da Penha

No mês de março, em que se comemora o Dia Internacional da Mulher, cabe aqui um breve comentário a respeito da Lei 11.340/06, conhecida por Maria da Penha, que carrega este nome em homenagem à biofarmacêutica que foi vítima de agressão por parte do marido e, em razão dos ferimentos de um tiro desferido pelas costas, ficou paraplégica. A legislação representa, inegavelmente, um marco importante para a comunidade brasileira. Isto porque sua mens legis apresenta um conjunto de ações e condutas voltadas contra a violência doméstica praticada no âmbito das relações familiares, com a entronização da mulher como destinatária da tutela específica para combater a crescente violência encontrada nos lares de diferentes classes sociais brasileiras, atendendo, desta forma, o preceito do artigo 226 § 8º, da Constituição Federal. Referida lei, além de se apresentar como uma legislação fundamental para coibir a violência no âmbito das relações familiares - considerada uma das formas de violação dos direitos humanos - é, inquestionavelmente, a que recebeu o maior número de propostas legislativas e variadas interpretações jurisprudenciais destinadas ao seu aprimoramento e visando sempre a criação de mecanismos para alcançar outras tutelas não previstas originariamente em seu texto legal. Tanto é que, em alguns casos, ficam evidenciados  direitos difusos latentes, que permitem uma acomodação interpretativa que vá ao encontro da proteção à mulher em situação de vulnerabilidade, possibilitando todas as providências com o intuito de fechar o círculo protetivo das vítimas, não só física, mas mentalmente também. Sem desprezar, é claro, o ajuizamento da ação para pleitear dano moral ou patrimonial em desfavor do agressor. Assim é que a Lei Maria da Penha contempla, em primeiro plano, proporcionar uma mudança no comportamento humano com relação às agressões perpetradas contra esposas, companheiras e namoradas, oferecendo a elas a tutela protetiva emergencial, assim como a criação de políticas públicas para ampará-las contra a violência doméstica e familiar em razão do gênero. E gerou, como consequência inevitável, a criação do tipo penal do feminicídio, de construção recente, com pena mais exacerbada que a do homicídio, também revestido do caráter de hediondez, com a finalidade de proteger a mulher na vivência doméstica e familiar, como, também, evitar qualquer modalidade de menosprezo ou discriminação à condição de mulher. Se, por um lado, a lei foi ampliando seus contornos para atender as vítimas de violência doméstica, destinatárias de seu regramento e conferindo a elas uma vasta proteção, por outro lado, o que se percebe pelo noticiário da imprensa e estatísticas apresentadas, é que o número de feminicídio vem crescendo ano após ano, causando impacto frustrante na opinião pública que, por sua vez, sem fronteiras, vai sedimentando cada vez mais seu inconformismo recriminador. É até difícil explicar no campo da criminologia, que busca equacionar os novos comportamentos humanos que geram reações agressivas praticadas contra namoradas, companheiras ou esposas e dar alguma resposta que seja convincente. É certo que a sociedade experimenta mutações constantes e seu dinamismo traz uma nova realidade de convivência, muitas vezes atropelando valores e bens jurídicos indisponíveis, como a vida humana. Mas, de antemão, fica um questionamento delimitado pelo labirinto existente entre os pensamentos que giram em torno de Eros e as deliberações de Tânatos. O que se vê, na realidade é a reiteração do crime em modalidades agressivas diferenciadas. Parece até que o agressor, sabedor que é do alto grau de periculosidade que reveste sua conduta e da exasperada pena cominada pelo tipo penal, mesmo assim, faz opção pelo ato de violência, não se importando com as consequências penais referentes ao seu status libertatis. Se o país é possuidor de uma legislação que pretende punir exemplarmente o acusado pela prática do feminicídio, talvez sejam necessárias, além das medidas protetivas de urgência, políticas públicas para atuarem após a primeira agressão perpetrada, procurando orientar e dissuadir o agressor de uma nova empreitada criminosa.
domingo, 3 de março de 2024

Uma nova conceituação embrionária

Interessante, e com séria repercussão, a decisão proferida pela Suprema Corte do Alabama, nos EUA, ao julgar um processo movido por três casais que haviam depositado seus embriões criopreservados em uma clínica quando um paciente que teve acesso ao interior da sala de criogenia, imprudentemente, provocou a derrubada do tubo onde se encontravam os embriões, que foram inutilizados. Em primeiro grau a Justiça rejeitou a pretensão dos autores por homicídio culposo e decidiu que os embriões não podiam ser definidos como pessoas ou crianças. A Corte Maior do Alabama, ao interpretar o caso sub judice, entendeu que a lei de morte injusta de um menor alcança também as crianças não nascidas, dando ênfase à sacralidade do embrião.1 Tal decisão causou sérios impactos, tanto para as clínicas de reprodução assistida que suspenderam os procedimentos, como, também, para os pacientes que ambicionavam atingir a gravidez por meio da fertilização in vitro. Muitos temas originariamente bioéticos, em razão da interdisciplinaridade existente, deságuam na área jurídica, exigem uma intensa locução para dirimir os conflitos e encontrar o ponto consensual. E Tal ocorrência provoca uma leitura compartilhada de determinado fato, justamente para deixar o pensamento fermentando, vez que a Bioética carrega a provocação de temas que causam inquietude e busca uma convergência satisfatória que vá ao encontro dos melhores valores solidificados na formação humanística. O direito, como é de sua essência, cuida da aplicação e interpretação da lei e essa, por sua vez, deve ter o dinamismo ancorado nas mutações científicas e sociais para solucionar as questões com base nos pilares de sustentação do pensamento moral da sociedade. Com relação ao fato descrito inicialmente, a legislação brasileira traz entendimento diverso da Corte de Alabama.  O embrião produzido artificialmente em placa de Petri, acomodado no interior de tubo de nitrogênio, guarda profunda diferença daquele fecundado naturalmente. A falta do locus apropriado ou do habitat natural para o alojamento demonstra, por si só, a impossibilidade de se atingir a spes hominis e, no gélido interior que habita, não há qualquer chance de progressão reprodutiva. Cada vez mais fica acentuado que o embrião produzido naturalmente, além de carregar a linha genética da família, compreendendo as características físicas e eventuais doenças, representa uma nova individualidade, com identidade sui generis norteada pela capacidade jurídica do nascituro.  Não há dúvidas de que o tema abre um enorme espaço para considerações éticas e jurídicas. O certo é que o Código Civil, promulgado em 2002, ainda sedimentado em um noviciado legislativo a respeito do tema, limitou-se a traçar algumas normas a respeito da presunção que cerca os filhos nascidos durante a constância do casamento e, nesse rol, acrescentou também: os havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; os havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; e os havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido. A esse respeito há no Brasil a lei 11.105/05, conhecida como lei de biossegurança que em seu artigo 5.º possibilita a utilização de células-tronco embrionárias obtidas de embriões humanos, produzidos por fertilização in vitro e não utilizados no procedimento respectivo, para fins de pesquisa e terapia, desde que sejam os embriões inviáveis, congelados há três anos ou mais e sempre com a aquiescência dos genitores. Foi questionado referido artigo junto ao STF na ação direta de Inconstitucionalidade 3510-0 DF, que teve como relator o eminente e extremamente didático ministro Carlos Ayres Britto, com o argumento de que a vida humana começa com a concepção e o procedimento estaria invadindo a própria vida, com total desrespeito à dignidade humana. O relator, em extenso e fundamentado voto, que pode ser considerado um marco de referência na Suprema Corte, decidiu que a vida humana é confinada a duas etapas: entre o nascimento com vida e a morte encefálica, período em que a pessoa é revestida de personalidade jurídica, que a ela confere direitos e obrigações na vida civil.  Evidenciou ainda o ministro julgador que o thema probandum estava ligado aos embriões congelados e que não serão utilizados. "O único futuro, sentenciou ele, é o congelamento permanente e descarte com a pesquisa científica. Nascituro é quem já está concebido e que se encontra dentro do ventre materno. Não em placa de Petri". Enfatizou, finalmente, que "embrião é embrião, pessoa humana é pessoa humana e feto é feto. Apenas quando se transforma em feto este recebe tutela jurisdicional. Donde não existir pessoa humana embrionária, mas embrião de pessoa humana. O embrião referido na lei de biossegurança (in vitro apenas) não é uma vida a caminho de outra vida virginalmente nova, porquanto lhe faltam possibilidades de ganhar as primeiras terminações nervosas, sem as quais o ser humano não tem factibilidade como projeto de vida autônoma e irrepetível." 2 No Brasil há a proposta legislativa traduzida pelo PL 478, que tramita desde 2007, denominada Estatuto do Nascituro que, certamente, provocará calorosas discussões envolvendo embriões produzidos in vitro e incitará inúmeras divergências religiosas, médicas, jurídicas, bioéticas e com outras disciplinas afinadas com a questão, vez que pretende ampliar o conceito de nascituro, reconhecendo também como ser humano o concebido in vitro. A Igreja Católica, por sua vez, pelo documento da Congregação para a Doutrina da Fé, publicou no ano de 2008 a instrução Dignitas Personae, atualizando a anterior Donum Vitae, publicada em 1987, com autorização do Papa João Paulo II, trazendo recomendações a respeito das normas éticas e morais no processo de procriação. Referido documento considera que os embriões produzidos in vitro são considerados seres humanos, sendo condenada qualquer proposta de destinação como material biológico para fins de terapia e pesquisa.  --------------------------------- 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.
domingo, 25 de fevereiro de 2024

O aposentado e o dinheiro encontrado

Um funcionário público aposentado adquiriu uma casa para sua filha morar, há seis meses aproximadamente. Ao tomar posse do imóvel foi fazer uma limpeza no jardim, oportunidade em que avistou um saco preto enterrado atrás de alguns arbustos. Ao puxá-lo percebeu que, em seu interior, continha um pote e, ao abri-lo, para sua surpresa, encontrou várias notas de R$100,00 e 50,00, totalizando quase R$ 60 mil.  Assustado, disse ele posteriormente à autoridade policial: "Eu tirei a tampa e quando eu notei que era dinheiro, eu tampei e botei no mesmo lugar. Nem cheguei a tocar no dinheiro, não. Aí retornei o pote para o mesmo local e entrei em contato com a polícia, exatamente para eles fazerem a investigação de onde foi que esse dinheiro surgiu."1 É muito comum alguém relatar ter encontrado, na rua ou em qualquer lugar público, uma carteira ou bolsa contendo documentos ou até mesmo dinheiro e não saber o que fazer para localizar o proprietário com o intuito de realizar a devolução. De quando em quando se publica notícia neste sentido, com a intenção de enobrecer a conduta da pessoa que encontrou determinada soma em dinheiro e providencia a restituição ao proprietário, justamente por não ser um fato corriqueiro. Exemplos retirados da ocorrência popular, relatando uma conduta exemplar, cria uma imagem consistente e digna de imitação, pela simples capacidade de distinguir o certo e o errado. Fornece estabilidade e durabilidade de conceitos positivos, abrindo espaços para os mais jovens modelarem um caráter compatível com os princípios éticos e morais. Pode-se dizer que o homem se resume no próprio contexto de suas relações sociais e, em razão do compromisso de convivência assumido, é o construtor do próprio mundo e de sua história individualizada. "O indivíduo torna-se justo, corajoso, prudente, sentencia Oliveira, à proporção que, agindo, ele se "habitua" (adquire o hábito) ao que, na cidade, é eticamente justo, corajoso, prudente. A ação do indivíduo deita raízes no costume e no uso."2  Daí, que a sociedade trilha o caminho da excelência ou da própria estupidez humana, dependendo de seus valores e de suas virtudes morais. Não acredito que a lei, somente a lei, seja o caminho mais credenciado para levar o homem a ter uma vida inteligente, regrada pela honestidade e sabedoria. A lei é cogente e os princípios éticos coletivos apresentam-se como a melhor opção. Realizam-se espontaneamente, sem qualquer reserva ou restrição, com aplicação imediata e eficaz.  A honestidade do consciente aposentado, na realidade, está contida na essência da ética, como sendo um dos braços de sua atuação. Assim, a ética, na sua análise estrutural, nada mais é do que o costume, a tradição, ambos voltados para a moral. Seria, num linguajar mais liberal, a regularização moral e correta da conduta humana, passada de geração para geração, sempre procurando atingir os pontos harmônicos da convivência humana, facilitando a realização espontânea dos bons valores que permanecem como ideal de compartilhamento. A ética não é acabada, é um pensamento em constante evolução, que, com o passar do tempo, vai se aperfeiçoando. Não é, por outro lado, o resultado de condutas codificadas, não se revoga, nem é derrogada. É resultado do próprio pensamento evolutivo do homem.  Já do ponto de vista jurídico, a conduta do zeloso aposentado, foi mais do que correta. Mesmo não conhecendo a lei, agiu de acordo com seus parâmetros.  Assim, se a coisa for realmente perdida, de modo que se encontra distante de seu dono, fora de sua esfera de proteção, o sujeito que se apropria do bem incide no delito do art. 169, parágrafo único, II, do CP, que é a apropriação de coisa achada. Pelo artigo citado, constitui crime "quem acha coisa alheia perdida e dela se apropria, total ou parcialmente, deixando de restituí-la ao dono ou legítimo possuidor ou de entregá-la à autoridade competente, dentro no prazo de quinze dias." Se a pessoa que encontrou o objeto perdido não logrou êxito em localizar o proprietário, o correto é fazer a comunicação à autoridade policial para que registre a ocorrência e providencie as diligências necessárias para localizá-lo. Mandamento idêntico é encontrado no artigo 1.233 do Código Civil, in verbis: "Quem quer que ache coisa alheia perdida há de restituí-la ao dono ou legítimo proprietário", sendo que a mesma determinação vinha contida no anterior código já revogado, de 1.916. É de se observar que a referência legal é somente com relação à coisa perdida ou res desperdita e não tem qualquer incidência quando se tratar de coisa abandonada, isto é, aquela em que o dono não tem mais interesse em sua propriedade e a despreza, deixando-a disponível para quem tiver interesse. É a chamada res derelicta. __________ 1 Disponível aqui. 2 Oliveira, Manfredo Araujo de. Ética e sociabilidade. São Paulo: Loyola, 1993, p. 57.
domingo, 18 de fevereiro de 2024

A medicina e a tecnologia

Na medida em que a tecnologia avança na área médica, mais explorações serão realizadas no corpo humano e, consequentemente, os resultados vão desde a administração de doença incurável até a estabilização da saúde, com uma qualidade melhor de vida. E tal avanço faz com que os instrumentos e aparelhos criados para tal finalidade vão se incorporando na prática médica e, a cada nova remessa, são agregados os aperfeiçoamentos necessários, de tal forma que ultrapassam as dimensões dos precedentes. Basta ver, atualmente, que as máquinas proporcionam excelentes resultados, não somente para formatar um diagnóstico preciso, como, também, para ingressar nas veredas mais estreitas do corpo humano e realizar uma intervenção cirúrgica, apenas com pequenas incisões na pele, e com resultados altamente satisfatórios. E, ao que tudo indica, pelo sucesso do procedimento, a medicina vai se valer cada vez mais da tecnologia, sua acólita predileta. Aquilo que antes parecia distante e que caminhava em ritmo de ficção científica, num repente ganha corpo e surge como uma nova realidade incontestável e até mesmo cobiçada pela humanidade, exigindo uma postura ética adequada à nova realidade. É lógico que todo progresso científico, seja lá em que área for, exige sempre cautela especial, não para barrá-lo ou dificultá-lo, mas sim visando fazer com que a humanidade possa refletir a respeito de sua oportunidade e conveniência, com o intuito de preservar o bem-estar natural do ser humano. A empresa americana Neurolink, que tem como sócio Elon Musk - devidamente autorizada pela FDA (Food and Drug Administration), órgão que corresponde à ANVISA no Brasil - implantou, pela primeira vez em humano, o equipamento Telepathy, no formado de uma moeda e que tem por finalidade, durante um estudo de seis anos, possibilitar às pessoas vítimas de tetraplegia na medula cervical ou esclerose lateral amiotrófica (ELA), controlar aparelhos celulares e computadores por meio do pensamento, com a intenção de facilitar a comunicação e melhorar a qualidade de vida.1 O desafio lançado carrega uma realidade totalmente desconhecida, mas se apresenta como um sinalizador de bom augúrio, não no sentido de promover a artificialização do ser humano, e sim de proporcionar, dentre os prováveis benefícios, aqueles que mais se ajustam e podem trazer bons e convenientes dividendos de saúde para o homem. De nada adiante ficar estarrecido e nem mesmo contrariar tamanha tecnologia porque não só vingará, como progredirá nesta direção. Por mais significativos que sejam os progressos científicos em áreas ainda pouco exploradas, eles serão considerados pela ciência como ensaios ainda incipientes. Daí que a biotecnologia avança a passos largos, sem qualquer indício de recuo e, rapidamente, atingirá os objetivos propostos. A não ser que o homem, seu destinatário natural, acenda o farol vermelho e estanque todo esforço concentrado, por não ter mais interesse, o que é difícil na atualidade. Em futuro próximo, com a correta evolução da pesquisa, o projeto poderá expandir e abraçar o tratamento de outras doenças, como o autismo, a esquizofrenia e outras mais que estabelecem severas limitações de comunicação e ambulação. Durante toda essa trajetória de pesquisa, a Bioética deve se fazer presente não só para solucionar os dilemas éticos, mas, também, para esparramar seu olhar caleidoscópico para a interdisciplinaridade, visando fazer prevalecer a supremacia da dignidade da pessoa humana, erigida como dogma na Constituição Federal. __________ 1 Disponível aqui.
domingo, 4 de fevereiro de 2024

Carnaval e os ilícitos penais

Com a chegada do Carnaval, festa já consagrada como a mais popular do Brasil, várias campanhas são lançadas e outras, exitosas, retomadas com a intenção de reprimir inúmeras condutas ilícitas praticadas durante os festejos. O evento, que se apresenta como momentos de alegria, de participação festiva nas danças coletivas em blocos nos salões ou avenidas, passa a ser um fator gerador para os oportunistas, em detrimento daqueles que se entregam à diversão. Um deles, que já goza de projeção sempre ascendente pelas estatísticas oficiais, é o delito de furto praticado por "punguista", aquela pessoa que se apresenta com rara habilidade física e manual para, com a destreza necessária, subtrair carteira, celular ou outro bem que a incauta vítima traz consigo e não se dá conta da ação repentina do larápio. Outro é o ato obsceno, previsto no artigo 233 do Código Penal, direcionado para aquele que, de forma descuidada, faz xixi na via pública ou em lugar aberto ou exposto ao público. Na realidade, fica evidenciado que o ato obsceno do Código Penal se distancia e em muito da conduta do folião de urinar na via pública, pois a prática demonstra que ele não age movido com a intenção de exibir o órgão sexual para os participantes do evento carnavalesco e sim de atender a uma necessidade fisiológica. Assim, seria mais uma infração de natureza administrativa, com a imposição de uma multa, que carrega uma mensagem mais condizente com a realidade social e limita-se como medida educativa para introduzir boas maneiras, com a consequente utilização dos banheiros químicos. Outro e frequente delito, agora contra a dignidade sexual, é a prática da importunação sexual, contida no artigo 215-A do Código Penal, que tipificou e criminalizou a conduta de quem: "praticar contra alguém e sem a sua anuência ato libidinoso com o objetivo de satisfazer a própria lascívia ou a de terceiro", cominando, como sanção, uma pena privativa de liberdade que varia de um a cinco anos de reclusão, observando que podem figurar como vítimas do agravo tanto o homem como a mulher.  É diferente do assédio sexual que exige para sua configuração o constrangimento de alguém com o intuito de obter vantagem ou favorecimento sexual, prevalecendo-se o agente da sua condição de superior hierárquico ou ascendência inerentes ao exercício de emprego, cargo ou função. Com o novo tipo penal do artigo 215-A, o legislador conseguiu dar uma dosagem equilibrada às ações humanas voltadas contra a liberdade sexual, conferindo a elas a proporcionalidade condizente com a volição do agente. Assim, o que antes seria, em tese, um crime de estupro, em razão da delimitação da ação, passa a configurar importunação sexual. Desta forma, se o agente, imbuído de intenção maliciosa, proferir cantadas invasivas, inconvenientes e inoportunas a uma mulher durante o carnaval ou não, mesmo que queira desculpar-se alegando ser brincadeira, mas se for revestida da picardia exigida para a conduta, se tocar as nádegas ou o seio da mulher ou ainda dela roubar um beijo, tudo sem sua anuência, pratica sim a conduta descrita no novo tipo penal. No Carnaval passado foi levantada a bandeira do "Não é Não", em que as mulheres usavam tatuagem temporária de advertência, fazendo ver que qualquer forma de afeto ou carinho só seria possível com a concordância feminina. Atos libidinosos, de acordo com a conceituação do legislador, são todos aqueles praticados de forma isolada ou até mesmo com relação a outra pessoa. Assim, como descreve Teles, o "abraçar, lamber ou simplesmente tocar partes do corpo humano podem ser atos libidinosos. Desnudar ou despir alguém também."[1] Não se descarta, igualmente, a ocorrência do crime de estupro, que consiste em constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que se pratique outro ato libidinoso, estendendo-se até o caso do estupro de vulnerável, quando a vítima não tem o necessário discernimento ou por qualquer outra causa não pode oferecer resistência para a prática do ato, como é o caso da ebriedade. No estertor do ano findo foi sancionada a Lei 14.786, de 28/12/2023, que entra em vigor 180 dias após sua publicação oficial e cria o protocolo "Não é Não", para prevenção ao constrangimento e à violência contra a mulher e para proteção à vítima, bem como institui o selo "Não é Não - Mulheres Seguras". Referido protocolo confere verdadeiro compromisso aos proprietários e responsáveis pelos ambientes de casas noturnas e de boates, assim como em espetáculos musicais realizados em locais fechados e em shows, com venda de bebida alcoólica, para promover a proteção das mulheres e prevenir e enfrentar o constrangimento e a violência contra elas. Percebe-se, desta forma, que os estabelecimentos referidos exercerão uma função policial longa manus conferida pelo Estado com a obrigação de ter, dentre outros deveres, pelo menos uma pessoa qualificada para atender o protocolo "Não é Não"; manter em locais visíveis os números  de telefone de contato da Polícia Militar e da Central de Atendimento à Mulher - (180);  proteger a mulher e proceder às medidas de apoio previstas na novatio legis;  afastar a vítima do agressor, inclusive do seu alcance visual; solicitar o comparecimento da Polícia Militar ou do agente público competente;  colaborar para a identificação das possíveis testemunhas do fato; isolar o local específico onde existam vestígios da violência, até a chegada da Polícia Militar ou do agente público competente. Tais providências, anômalas para o particular, guardam muita semelhança com as diligências dos encarregados da persecução policial e, ao que tudo indica, serão de difícil execução, quando, por exemplo, conforme previsão também na nova lei, no caso de constrangimento, tiver que cumprir a função de retirar o ofensor do estabelecimento e impedir o seu reingresso até o término das atividades. Embora deva ser ressaltada a boa intenção da proteção legal voltada à mulher, não se pode descuidar da responsabilidade imposta ao responsável pelo estabelecimento que, na correta observação do arguto penalista Fernando Capez, em rede social:  "Podendo impedir a importunação e não o fazendo, ele responderá também pelo crime de importunação sexual como partícipe. É a participação por omissão, chamada crime omissivo impróprio". __________ 1 Teles, Ney Moura. Direito Penal: parte especial: arts.213 a 359, volume 3. São Paulo: Atlas, 2004, p. 69.
domingo, 28 de janeiro de 2024

Linguagem simples no Judiciário

Foi proposto e anunciado pelo Conselho Nacional de Justiça o Pacto Nacional do Judiciário pela Linguagem Simples com o propósito de utilizar, nas decisões e comunicações gerais do Poder Judiciário, um linguajar mais acessível e que seja de fácil entendimento para a população que invoca a tutela jurisdicional.1 É certo que a Constituição Federal - que teve efetiva participação popular em sua elaboração - deixa frestas que traduzem a vontade de inclusão, inclusive na linguagem, já que a destinatária é a própria população. Para se chegar à proposta do CNJ - que carrega um conteúdo interessante e de abrangência nacional - há necessidade de se buscar o conceito de Linguagem Simples. A lei 17.316/20, da Prefeitura Municipal de São Paulo, que instituiu a Política Municipal de Linguagem Simples nos órgãos da administração direta e indireta, definiu no artigo 2º, inciso I, a Linguagem Simples como sendo "o conjunto de práticas, instrumentos e sinais usados para transmitir informações de maneira clara e objetiva, a fim de facilitar a compreensão de textos". Já no inciso seguinte define a extensão de um texto em Linguagem Simples, correspondendo àquele "em que as ideias, as palavras, as frases e a estrutura são organizadas para que o leitor encontre facilmente o que procura, compreenda o que encontrou e utilize a informação". Tais definições possibilitam um ponto de partida com maior segurança para o enfrentamento do tema. Fica mais do que evidente que o foco do Judiciário está direcionado para o cidadão, daí a necessidade de se utilizar uma linguagem que seja desprovida de termos técnicos ou outros de difícil compreensão. Na realidade, abre-se um canal da redução da desigualdade cultural para que o maior número possível da população possa entender, sem muita dificuldade, o conteúdo de uma decisão ou de um despacho judicial. A linguagem jurídica, assim como a médica, vem carregada de termos técnicos com significados específicos e, com a desenvoltura com que os novos direitos e as novas leis vão se incorporando ao nosso já tão pesado Vade Mecum, despontam terminologias exclusivas e até mesmo complexas que ganham assento junto à nomenclatura jurídica e se tornam de uso rotineiro, tanto pelos doutrinadores como pelas jurisprudências dos tribunais superiores. A primeira providência para atingir o objetivo proposto é a de inserir o termo técnico na sentença - principalmente se se tratar de um processo criminal em que se exige a correspondência da conduta considerada ilícita a um tipo penal (tipicidade objetiva) - e explicá-lo de forma minuciosa, com palavras de fácil compreensão, o que é uma tarefa difícil. Assim como, se ocorrer decadência ou prescrição, deverá o julgador esmiuçar seus conteúdos e alcances de forma mais coloquial, narrando a fluição dos prazos e as consequências processuais. Tal incumbência hoje é reservada ao advogado, que representa o acusado. Daí que, para colaborar com o projeto, os tribunais têm pela frente uma missão árdua, não só para providenciar a elaboração de material explicativo que contenha a simplicidade necessária como manuais esclarecedores a respeito dos complexos institutos jurídicos, mas, também, capacitar os magistrados e servidores para que possam ter a sintonia da escrita fácil e identificada com a população. Além do que o Direito se vale da palavra escrita para divulgar suas ações. A própria lei vem expressa por palavras, nem sempre correspondendo à real intenção do legislador. "A palavra, já advertia o arguto hermeneuta Maximiliano, é um mau veículo do pensamento; por isso, embora de aparência translúcida a forma, não revela todo o conteúdo da lei, resta sempre margem para conceitos e dúvidas; a própria letra nem sempre indica se deve ser entendida à risca, ou aplicada extensivamente; enfim, até mesmo a clareza exterior ilude; sob um só invólucro verbal se conchegam e escondem várias ideias, valores mais amplos e profundos dos que os resultantes da simples apreciação literal do texto".2 O operador do Direito, durante o período de sua formação profissional, frequenta vários doutrinadores nacionais e estrangeiros e, quanto maior for a sua pesquisa na graduação e, posteriormente, na pós-graduação lato e stricto sensu, maior será sua avaliação, com repercussão direta em sua contratação na área privada e na sua aprovação em concursos públicos voltados para a área jurídica. Torna-se, desta forma, um influenciador como agente social de transformação jurídica, pois suas ideias penetram de forma direta ou difusa, potencializando novos caminhos em busca da difícil concretização do Direito. É excelente que o operador do Direito e, no caso, com ênfase para o magistrado, tenha primorosa formação jurídica, pois irá capacitá-lo para dirimir as questões mais complexas. Nada impede, no entanto, que em suas decisões faça constar a mais recente tendência do direito, desde que reserve um espaço para explicar sua linha de raciocínio de forma clara, simples e objetiva. __________ 1 Disponível aqui.   2 Maximiliano, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 29.
domingo, 21 de janeiro de 2024

A disciplina felicidade nas universidades

Muito se tem falado e discutido, desde as mais priscas eras, sem se chegar a uma conclusão lógica e definitiva, a respeito da felicidade. É até mesmo difícil arriscar uma definição sobre tal tema, para alguns utópicos, para outros mais esperançosos, ainda resta uma esperança de sua concretização em favor do homem. E até mesmo as universidades, não só do Brasil como também do exterior, vêm se preocupando em introduzir a disciplina denominada Felicidade nos seus planos de ensino, com a intenção de fazer não só uma abordagem histórica e social, como, também, de se perquirir e encontrar uma forma de bem-estar para o homem, tanto sob o prisma individual, como o coletivo.1  Pode-se dizer que se apresenta como uma busca necessária para encontrar a harmonia social. Fica até difícil definir o que é felicidade. Muitos já se aventuraram em tal árdua tarefa e, por mais amplo e abrangente que seja o conceito, sempre ficará em descoberto determinada abordagem, em razão da própria natureza humana, com sua dinâmica e mutabilidade variáveis. A conceituação de felicidade se modifica de época para época. Pode-se arriscar, sem muito compromisso, em dizer que se trata de uma emoção humana que procura retratar uma situação, mesmo que efêmera, mas que transmite a sensação de alegria, bem-estar e que possibilite usufruir as boas coisas da vida. Quer dizer, feliz é aquele que procura viver intensamente seus momentos e retirar deles a receita para o seu bem viver. No mundo estranho e conturbado em que vivemos é difícil encontrar parâmetros para a felicidade. A sociedade parece refém de suas próprias regras. O homem se movimenta em círculos e vai afundando cada vez mais o chão por onde pisa, ou se sente como Sísifo ao empurrar a pesada pedra até a montanha e, quando está prestes a atingir o topo, rolava novamente montanha abaixo. Parece até que a felicidade fica cada vez mais distante, inatingível e quando raramente se apresenta, tem que ser festejada com pompa e circunstância. No curso de Direito teria total aderência a disciplina Direito e Felicidade. Quando se alinham, tem-se uma conexão perfeita. Dá-se a impressão de que são dois institutos coligados para proporcionarem ao homem as melhores condições para desenvolver sua vida. Se a ciência jurídica busca o bene vivere (viver bem e honestamente), neminem laedere (a ninguém prejudicar), e o suum cuique tribuere (dar a cada um o que é seu), preceitos estabelecidos por Justiniano em sua Digesta, e se toda  normatização social caminha para a vivência harmônica entre as pessoas, pode-se concluir, sem qualquer exagero, que o Direito se apresenta como um instrumento para o exercício do bem comum, de uma realização comunitária que, de certa forma, possibilitará um estilo de vida individual mais compatível com a realidade idealizada pelo cidadão. Se todos são iguais perante a lei, nada mais justo do que a existência de uma felicidade distributiva, em porções adequadas para cada pessoa. Não se trata aqui de se criar uma utopia, como pretendeu Tomas Morus, quando imaginou o lugar que possibilitasse a sociedade perfeita e ideal, onde todos ambicionassem conquistar a felicidade, mesmo sabendo-a inatingível. E, por incrível que pareça, as legislações não trazem explicitamente a consagração do direito à felicidade, que teria o condão de reunir, num artigo só, tudo que está sendo conferido como direitos e obrigações entre as pessoas, assim como seu relacionamento com o Estado. A Declaração de Direitos de Virgínia, que precedeu a Declaração de Independência dos Estados Unidos da América, idealizada por Thomas Jefferson, proclamava em seu artigo 1º: Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança. Nesta vinculação, as ações sociais são de vital importância para se atingir os propósitos almejados. Não se trata de um estímulo ao cidadão e sim de uma garantia conferida pelo próprio Estado. Sem dúvida, é mais uma tentativa em busca da felicidade. __________ Disponível aqui.
domingo, 31 de dezembro de 2023

Aproximar ou inserir

Quando o ano chega ao seu final é hora de fazer a faxina interna. Recomenda-se vasculhar todos os cantos da moradia - como se fosse uma verdadeira devassa no interior, um processo de despejo coletivo, procurando expurgar os fantasmas persistentes e outros incômodos moradores, que ali habitam como posseiros. Nestas horas coloca-se em ação a memória, que muitas vezes prega seus inexplicáveis deslizes, tal como esquecer de cuidar da flor guardada há tanto tempo e que hoje nada mais resta do que uma poeira de pétalas. Faz lembrar e até dar razão para Gabriel Garcia Márquez quando solenemente profetizou que "a vida não é a que a gente viveu, e sim a que a gente recorda, e como recorda para contá-la". Aquilo que foi alcançado nada mais é do que o resultado da dedicação de cada um, devendo ser preservado no interior de uma concha protetora e mantido como um troféu, representando a conquista de um elevado projeto de vida. Daí é que nasce o criador, o idealizador, o vitorioso. Aquele que não entope de promessas os ouvidos carentes, mas preenche e sacia o vazio do coração e do corpo. O pouco que for extraído será significativo para cada um e para todos que o cercam, fortalecendo o espírito corporativo e edificando o altruísmo coletivo. Se o homem tiver a consciência de sua finitude será um construtor da obra duradoura que poderá legar ao próximo, ressuscitando as potencialidades do espírito e não vivendo como pequenos personagens no país imaginário de Lilipute, do romance Viagens de Gulliver. Assim, nesta pirâmide ascendente - pois o homem é vocacionado para conquistas e glórias apesar de sua efêmera existência - continua sendo ele o personagem principal desta aventura maravilhosa chamada vida. E a cada ser humano, portanto, responsável que é pelo espírito corporativo. são dirigidos os votos para a edificação do altruísmo coletivo. Dois verbos utilizados no linguajar da economia tiveram perfeita adequação e assimilação pelos consumidores, que ficaram gravados de forma indelével, principalmente neste ano que se finda, até mesmo por aqueles desconectados da Última Flor do Lácio: aproximar ou inserir. Falo aqui da movimentação do cartão para o pagamento na máquina apropriada. Tão pequena como o cartão magnetizado. Mas ambos se entendem quando estão cara a cara e a operação, quase sempre, é realizada com sucesso, a não ser quando há a intromissão da inteligência artificial. Mas, voltando aos dois verbos, que determinam a realização da operação, a língua portuguesa é tão rica e tão envolvente que, por mais que expresse a palavra, no caso o verbo, não se consegue retirar dela todo o seu conteúdo, pois, de tão ampla, torna-se difusa. Não se trata de brincar com as palavras utilizando, para tanto, não só o significado, mas também a linguagem de revelação, que é o local indicado na máquina para identificar o cartão. Uma coisa é a linguagem da máquina, a outra a humana. Assim, o verbo aproximar (appropinquare), do latim, assume o significado de avizinhar-se, permitir o acesso, acercar-se, aconchegar, trazer o próximo para mais perto de você, encurtar a distância e relacionar-se com ele. Enquanto que inserir, por sua vez, também de raiz latina (inserere), tem o significado de fixar-se, incorporar, entrar dentro de, fazer com que algo atinja seu interior, misturar-se com alguém de forma amistosa, ter uma correspondência cordial, engajar-se, comprometer-se, empenhar-se com o outro. Como estamos em um momento para reetiquetar a vida, fica fácil a formulação de votos de um ano novo com mais aproximação e inserção.
domingo, 24 de dezembro de 2023

Votos de Natal e Ano Novo

Todo final de ano - como se fizesse parte de um ritual do calendário - as pessoas fazem um pit-stop na correria desenfreada deste mundo, justamente para penetrar em seu interior e decretar o silêncio necessário para renovar-se. Em primeiro plano, avalia o ano que se finda e, em segundo, busca uma programação compatível com o próximo. E, entre tantos projetos, comemora-se o Natal, com a troca de presentes entre os familiares e envio de mensagens para os amigos e, na sequência, a passagem de ano com mais augúrios ainda. O Natal, pela tradição cristã, vem revestido de espiritualidade. É a devoção da prece em honra do nascimento de Cristo. É uma forma da humanidade externar sua gratidão.  Orar é olhar cada um para o seu interior e entrar em comunhão com a humanidade, da qual é o todo e parte dela em sua individualidade. É fazer efervescer a luta "do si contra sigo mesmo", entoada por Guimarães Rosa. A oração, nesta dimensão, é universal e, como tal, traz o postulado comum do bem-estar da raça humana, independentemente do credo que cada uma professa. A unidade do homem total reside no amor, de acordo com Hegel. Basta abrir as comportas da espiritualidade, estender suas súplicas que colherá no fundo de sua alma tudo que viu de belo na vida. É a oportunidade para entoar hosanas, ressuscitar a potencialidade do espírito, remexer as entranhas da alma e peneirar suas reminiscências, visando estornar as antigas amarras. O novo ano é o momento propício para cumprimentar e abraçar os mais chegados desejando toda sorte e sucesso para enfrentar o período que principia. Para tanto, aconselha-se a deixar a porta aberta para a entrada das boas novas e receber os votos de alegria, saúde e prosperidade, que serão solenemente entregues pelos elfos e duendes, aqueles que tomam conta do pote de ouro existente no final do arco-íris. Também é a oportunidade para se fazer a colheita de todos os pensamentos e reciclar aqueles que se destacaram quando retirados com a meticulosidade do joalheiro. É a escola de aperfeiçoamento do ser humano, que ensina não estandardizar rotinas do viver e a quebrar paradigmas.  A repetição de velhas fórmulas faz com que a pessoa se perca definitivamente no labirinto de sua memória e enterre cada vez mais a Rosa de Drummond. Também não precisa rascunhar novo DNA e nem mesmo esmiuçar o genoma. São imutáveis. Somente a vontade que existe dentro do homem o torna superlativo. Explore o potencial ainda envolto nos mistérios da vida e aposte todas as cartas na paixão e emoção.  Sem elas você não passa de um instrumento deambulatório, meramente biológico, sem acesso à contemplação do belo. Siga o conselho da Madre Tereza: "Não ame a beleza, pois um dia ela acaba. Não ame por admiração, pois um dia você se decepciona... Ame apenas, pois o tempo nunca pode acabar com um amor sem explicação." Por fim, abrace todas as fases da vida e as cultive intensamente, assim como é o momento para comemorar o espírito amadurecido que deixou de pensar com os olhos. Se não guardar as cartas da juventude, não conhecerá um dia a filosofia das folhas velhas, profetizava Machado de Assis.
domingo, 17 de dezembro de 2023

Entrega voluntária de filho para adoção

O Código Penal, cuja vigência data de 1940, traz vários tipos penais que, com o passar do tempo ou até mesmo em razão do dinamismo social, apresentam-se obsoletos e inadequados para os tempos atuais. É certo, no entanto, que a legislação penal procura refletir o pensamento de um período que, por sua vez, era indicativo e representava a reprovação social. Um exemplo típico encontra-se no artigo 134 do estatuto penal: "Expor ou abandonar recém-nascido, para ocultar desonra própria". Fica nítido que se trata da mãe, em razão da íntima dependência que mantém com o recém-nascido. É inevitável a censura a tal comportamento, mas fica no ar a indagação de que, se não optasse pelo nascimento, poderia ter praticado o aborto ou, após o nascimento, sob a influência do estado puerperal, o infanticídio. Não se pode concluir, portanto, que a parturiente não desejasse o nascimento com vida. Acontece que, algumas vezes, a mulher está despreparada para a maternidade, outras não tem condições financeiras para suportá-la, somando-se a elas o abandono do pai da criança, sem falar ainda do medo e do temor dos familiares, para quem procura de todas as formas esconder a gravidez. É justamente diante de tal situação que vários seguimentos sociais foram canalizando debates para buscar soluções minimizadoras de situação tão delicada e abrandando o rigorismo legal. Assim, o Estatuto da Criança e Adolescente, que ampliou e em muito a esfera protetiva em favor da criança, em seu artigo 13, § 1º, abriu a possibilidade da "gestante ou mães que manifestem interesse em entregar seus filhos para adoção serão obrigatoriamente encaminhadas, sem constrangimento, à Justiça da Infância e da Juventude." E, no artigo 19-A do mesmo Estatuto, preconiza as providências a serem adotadas pela justiça. Referidas alterações foram introduzidas pela lei 13.509/2017, que dispõe sobre a entrega voluntária para adoção de crianças e adolescentes. O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, editou a resolução  485, de 18 de janeiro de 2023, com vigência após 60 dias de sua publicação, e dispõe sobre o adequado atendimento de gestante ou parturiente que manifeste desejo de entregar o filho para adoção e a proteção integral à criança. Aludida Resolução estabelece, em tópicos principais, que a gestante ou parturiente que, antes ou logo após o nascimento, manifestar perante instituição de saúde ou órgãos relacionados com a proteção infantil e direitos humanos, interesse em entregar o filho à adoção, será encaminhada, sem constrangimento, à Vara da Infância e Juventude, com a finalidade de dar início ao procedimento judicial. Para tanto, será atendida por uma equipe interprofissional do Poder Judiciário, que irá orientá-la a respeito do procedimento, colhendo os dados e assinaturas necessárias, além de um relatório técnico circunstanciado, tudo autuado e registrado na classe "Entrega Voluntária" com tramitação prioritária e em segredo de justiça. É importante frisar que a manifestação de vontade da gestante ou da parturiente seja fruto de uma decisão amadurecida no pleno uso das faculdades cognitivas, sem qualquer interferência do estado gestacional e puerperal, não pairando qualquer dúvida com relação ao seu consentimento. E, no caso de gestação decorrente de crime, a gestante deve ser orientada a respeito da possibilidade do aborto legal, assim como, se não pretender, o juiz comunicará o hospital onde o parto provavelmente ocorrerá para que a gestante receba atendimento humanizado e acolhedor, em razão de sua opção, compreendendo seu direito de não ter contato com o recém-nascido. A gestante ou a parturiente será informada sobre o direito ao sigilo do nascimento, que atingirá o pai indicado, membros da família extensa, prontuários médicos, assim como o direito de gozo de licença-saúde. A gestante ou a parturiente pode apresentar retratação da intenção de entregar a criança para adoção até a data da realização da audiência, ato que será garantido de forma simplificada, mediante mera certidão cartorária. O Ministério Público participa de todo o processo na função de fiscal da lei com a finalidade de garantir a proteção integral à criança, podendo, para tanto, praticar todos os atos necessários em defesa dos direitos fundamentais previstos em lei. Percebe-se, sem muita dificuldade, a diferença entre o Código Penal, com caráter eminentemente punitivo, e a nova postura legislativa, que visa amparar e acolher a mulher que se encontra na difícil situação relatada neste texto.
domingo, 10 de dezembro de 2023

Longevidade ascendente

Machado de Assis, em sua época, em várias de suas obras, retratava uma pessoa entre 45 a 50 anos de idade como idosa, velha no linguajar da época. Em alguns personagens descrevia até a dificuldade de galgar a Rua do Ouvidor, no Rio de Janeiro. Tanto é que na obra Memórias Póstumas de Brás Cubas (1881), chegou a afirmar: "A velhice ridícula é, porventura, a mais triste e derradeira surpresa da natureza humana". O fatiamento etário da pessoa é regulado não só pela realidade biológica, mas também pela própria normatização social que estabelece a fase da criança, do adolescente, da maturidade e do envelhecimento e, em cada uma delas, cria tutelas específicas e necessárias para os diversos estágios. Nesta progressão, o idoso será aquele que irá reunir a maior carga protetiva, pois passou por todas as anteriores e ambiciona ainda uma longevidade com qualidade de vida. O homem, antes e acima de tudo, é um ser temporal, com início, meio e fim, e não um marco definido pelo idadismo.  Assim é que vai superando cada tempo seu, ampliando suas expectativas e apostando em um futuro com mais esperança e até mais entusiasmo - pois contará com uma rica experiência adquirida ao longo da vida e encontrará um campo propício para demonstrar seu dinamismo, sua articulação e fertilidade em descobrir iniciativas e ideias novas - enfim promovendo tudo aquilo que lhe trouxer satisfação. A longevidade não é mais uma ambição remota e sim uma realidade incontestável na história da humanidade. Pode se observar, pelos atuais regramentos, que o preconceito em razão da idade pode dar azo ao ageísmo e provocar consequências processuais desagradáveis. O Brasil editou o Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003), que alcança aquele que atingiu sessenta anos de idade, assim como a lei 13. 466/2017, que criou uma nova categoria de idoso, acima de oitenta anos. Ambas, com base na ficção etária, amparam a vida longeva e atribuem à família, à comunidade, à sociedade em que vivem e ao Poder Público o dever e responsabilidade de assegurar a plena efetivação dos direitos consagrados constitucionalmente relacionados à vida, à saúde, à alimentação, à educação, à dignidade, à convivência familiar e outros anunciados O envelhecer é um processo natural e de interesse de toda a sociedade. Daí, com a evolução cada vez mais pronunciada da longevidade, há necessidade de que todos tomem conhecimento da legislação específica. É tão extenso o rol de direitos que pode ser afirmado com segurança que somente uma pequena parte deles vem sendo cumprida. E vale acrescentar que há os direitos considerados difusos, aqueles ainda que não foram explicitados na legislação, mas que contém normas acolhedoras pela aplicação da hermenêutica. Do idoso exige-se um comprometimento íntimo em que tenha a plena consciência que avança cada vez mais na idade e uma transformação externa com relação ao convívio com os parentes, amigos e até mesmo o ambiente que sempre frequentou, tudo visando uma harmonização coerente com sua condição. É uma nova postura, mas não se trata de fator impeditivo de levar a vida adiante, mesmo com as limitações impostas pela idade. Busca-se, na realidade, o equilíbrio. A expectativa de vida do brasileiro, com exceção do período pandêmico, vem crescendo em espiral ascendente e atingiu 75,5 anos, sendo 79 para as mulheres e 72 para os homens, segundo divulgação feita recentemente pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).1 Tal índice acarreta expectativas de novas políticas públicas para abrigar um considerável aumento de pessoas nesta faixa etária, não só na específica área da saúde, mas, também, em todas as outras que englobam os direitos fundamentais, na busca da melhor qualidade de vida. A spes vitae, vem, desta forma, acrescentar mais um estágio etário à população que ingressa na longevidade. __________ 1 Expectativa de vida do brasileiro sobe para 75,5 anos após queda na pandemia, mas é menor do que projeção inicial do IBGE | Saúde | G1
domingo, 3 de dezembro de 2023

A relevância do Sistema CEP/CONEP

O PL 7.082/2017 - que teve tramitação em regime de urgência sem a possibilidade de uma discussão mais ampla com a sociedade - foi aprovado pela Câmara dos Deputados e, pelas inovações apresentadas, poderá comprometer o Controle Social das pesquisas envolvendo seres humanos, que até então vinha sendo realizado há 27 anos pelo Sistema CEP/CONEP, que compreende os Comitês de Ética em Pesquisa e a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Assim, a partir da aprovação, a responsabilidade da análise passa a ser do Sistema Nacional de Ética em Pesquisa Clínica em Seres Humanos. O Sistema CEP/CONEP, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde, órgão já amadurecido ao longo do tempo como responsável pela defesa da ética e da segurança dos participantes de pesquisas, conta atualmente com 888 Comitês de Ética em Pesquisa, compostos por voluntários de todo o país. O esforço conjugado visa administrar os conhecimentos científicos, harmonizá-los com os valores humanos e adequá-los para melhorar a qualidade de vida. A ciência, sob tal ótica, numa apertada síntese, somente se justifica se a sua produção científica for necessária, conveniente e oportuna para o homem. Os Comitês de Ética em Pesquisa apresentam-se como órgãos colegiados interdisciplinares e independentes, de relevância pública, de caráter consultivo, deliberativo e educativo, criados para defender os interesses dos participantes de pesquisa em sua integridade e dignidade visando contribuir com o desenvolvimento das pesquisas dentro dos padrões éticos. Tais Comitês procuram agregar os mais diferentes segmentos da comunidade, recrutando médicos, psicólogos, juristas, religiosos, bioeticistas, cientistas, pessoas que exerçam lideranças na comunidade, pacientes e quaisquer outros que tenham condições de fazer uma leitura ética atrelada à participação do ser humano em pesquisas. Da mesma forma como os jurados são escolhidos dentre cidadãos de notória idoneidade para a execução de um serviço público relevante, sem qualquer remuneração, os membros do Comitê também são recrutados de acordo com sua competência e projeção na sua área de saber para desenvolver um trabalho gratuito, revestido de igual relevância social. A autonomia dos CEP vem registrada não só pela manifestação isolada de um membro seu, mas, também, pela decisão colegiada, definidora do pensamento ético e conveniente para determinada proposta de pesquisa. O voto individualizado, mesmo que seja vencido, com o devido registro em ata, é o demonstrativo da liberdade de definir em nome alheio. O crivo de admissibilidade de um determinado projeto passa, em primeiro lugar, pela apreciação individual, onde se confronta com a ética pessoal e, em segundo, numa apreciação mais globalizada, procura atingir uma decisão que corresponda à vontade popular e que traga benefícios satisfatórios para o bem-estar social. A Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (CONEP), por sua vez,  é um órgão colegiado, multidisciplinar, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde, tem como tarefa principal considerar o indivíduo sempre em primeiro plano, examinar os aspectos éticos de pesquisas envolvendo seres humanos em áreas temáticas especiais, encaminhadas pelos CEPs das instituições, além de responder pela elaboração de normas específicas para diversas áreas, dentre elas, genética humana, reprodução humana, alterações da estrutura genética de células humanas, organismos geneticamente modificados, funcionamento de biobancos para pesquisa, novos dispositivos para a saúde, pesquisas em populações indígenas, pesquisas conduzidas do exterior e aquelas que envolvam aspectos de biossegurança. Tem também função consultiva, deliberativa, normativa e educativa, atuando conjuntamente com a rede de Comitês de Ética em Pesquisa organizados nas instituições onde as pesquisas se realizam. Um sistema tão criterioso e comprometido com a sociedade brasileira reúne, em razão da vasta experiência adquirida por muitos anos de serviços prestados, plenas condições de fazer a adequada análise ética, assim como de exercer a devida tutela ao participante de pesquisa. A título de exemplo, com a aprovação do projeto, o participante, que no final da pesquisa gozava do acesso por prazo indeterminado do medicamento aprovado, terá esse prazo reduzido para cinco anos.
domingo, 26 de novembro de 2023

Considerações sobre a ética

Sendo certo que toda definição é perigosa, é muito difícil e até mesmo desafiador definir a ética, em razão de sua complexidade. Tal tema - incandescente com envolvimento de aspectos culturais, religiosos, legais, médicos, morais, éticos e sociais, trazendo cada segmento suas posições inquebrantáveis - foi debatido com intensidade na antiguidade e hoje brota a todo instante nos relacionamentos entre as pessoas, coletiva ou singularmente. Na sua origem grega, ethikós simbolizava o modo de ser, o caráter, a moral, os bons costumes de um indivíduo. Tanto é que, na sua aplicação originária, a ética era exigida daqueles que desenvolviam atividade pública, representativa dos cuidadores da res publica, tal como idealizado por Platão na obra A República. Posteriormente, por sua própria característica de idoneidade e bom senso, ampliou-se de modo a integrar atributos positivos da pessoa humana. Entretanto, por sua natureza difusa, a norma ética que rege uma pessoa individualmente nem sempre é a mesma recomendada pelo grupo social ou profissional a que ela pertence. O êtho, eos-ous, na sua análise estrutural, nada mais era do que o costume, a tradição, ambos voltados para a moral. Seria, num linguajar mais liberal, a regularização moral e correta da conduta humana, passada de geração em geração, sempre procurando atingir os pontos harmônicos da convivência humana. É a realização espontânea dos bons valores que permanecem como ideal de compartilhamento. A ética não é acabada, é um pensamento em constante evolução que, com o passar do tempo, vai se aperfeiçoando. Também não é resultado de condutas codificadas, não se revoga, nem é derrogada. É resultado do próprio pensamento evolutivo do homem, que, na sua essência, busca sua perfeição. Aristóteles, cujo pensamento se torna obrigatório integrar a definição perquirida, assenhorou-se do termo para evidenciar as pesquisas que têm como objeto analisar e aprofundar as qualidades peculiares do ser humano, integrando-as em todas as áreas de atuação do homem, quer seja na economia, na política, no ensino, no comércio, somente para exemplificar, além de muitas outras. O pensamento filosófico, desta forma, surge como o grande arquiteto da ética, visando construir os melhores valores de conduta, exibindo como padrão a figura do "homem prudente", que, mais tarde, com a evolução própria no pensamento romano, passou para virtus in medio, evoluindo depois para a figura do "homo medius". É sempre o mediano o melhor equalizador das regras. Não se encontra nos extremos e, exatamente por isso, não terá a cautela desguarnecida e, também, não excederá na sua prudência. In extremis periculosa sunt, advertiam os romanos. O ser ético é aquele impregnado da racionalidade, do conhecimento, que transforma até mesmo sua vida em arte, como acentuado por Foucault. Após ter o domínio do autoconhecimento (nosce te ipsum), agrega à sua individualidade conceitos e práticas que se tornaram necessários, consistentes e praticados, conscientemente, com a visão voltada para o bem.  Daí que o pensamento individual, egoístico, desagrega o cidadão e o torna uma pessoa prejudicial ao grupo, praticando condutas recriminadas e na contramão do bom senso coletivo A ética se coaduna com o dinamismo e a evolução do saber humano. Na busca de uma vida melhor, a inteligência do homem, aliada ao espírito empreendedor, exige a presença de uma ética evolutiva e dinâmica. Quanto maior o grau de desenvolvimento humano para alcançar o estágio de bem-estar, maior será a elasticidade do pensamento ético. A ética, desta forma, pelo menos em uma definição mais estreita e compreensível, acomoda um comportamento humano concreto, atrelado a uma sabedoria prática em busca da perfeição.