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Leitura Legal

As principais questões do novo CPC.

Eudes Quintino de Oliveira Júnior
A mudança mais expressiva ao regime jurídico aplicável aos servidores públicos no Brasil, em hipótese, pode ser atribuída à Emenda Constitucional 19, de 1998. De base argumentativa calcada na crise do Estado por reflexos da estagnação econômica, sua elaboração teve como um dos seus principais objetivos flexibilizar o regime único, possibilitando à administração pública contratar pelo regime estatutário, ou, alternativamente, pelo regime celetista (CLT). Referida alteração se ateve ao art. 39 da Constituição Federal, abrindo caminho para que novas contratações fossem realizadas de acordo com a necessidade de cada órgão ou entidade pública, flexibilização tida com o intuito de vislumbrar a modernização da gestão pública. No entanto, houve questionamentos sobre a constitucionalidade da referida proposta, por meio da ADI 2.135.     O objetivo principal da referida ADI envolveu a argumentação sobre a inconstitucionalidade formal da EC 19/98, especialmente sobre o caput do art. 39 da CF/88. A transcrição original desse artigo previa o estabelecimento de regime jurídico único aos servidores da administração pública direta, autárquica e fundacional, com referência à lei 8.112 de 11/12/90. Os proponentes da ação (PT, PCdoB, PSB e pelo PDT) alegaram que a emenda tinha sido aprovada à margem do quórum mínimo exigido pelo art. 60, §2º da CF/88, que exige aprovação em dois turnos, culminando em vício formal na sua tramitação. Na data de 2/8/07, houve decisão cautelar proferida pelo STF, que suspendeu parcialmente a eficácia do caput do art. 39 da lei maior, com a redação dada pela EC 19/98. Essa decisão concedeu efeitos ex nunc, preservando a validade dos atos praticados sob o regime jurídico único, aguardando-se o julgamento do mérito. O objetivo da medida foi evitar a instabilidade no serviço público, especialmente em relação aos servidores que já haviam sido contratados sob o regime estatutário. No julgamento do mérito, a ministra Carmen Lúcia, relatora da ação, observou a existência da inconstitucionalidade formal. No seu entender, a alteração do caput do art. 39 da CF/88, não teria alcançado o quórum constitucional no primeiro turno da votação. Disposição, essa, extremamente relevante para proteger a Carta Magna de mudanças arbitrárias ou precipitadas, sem o devido alinhamento com as Casas Legislativas. José Afonso da Silva, em sua obra, conjecturando preocupação semelhante, ponderou que o poder constituinte derivado deve obedecer aos limites materiais e formais estabelecidos na Constituição, sob pena de inconstitucionalidade. In verbis: Toda modificação constitucional, feita com desrespeito do procedimento especial estabelecido (iniciativa, votação, quórum etc.) ou de preceito que não possa ser objeto de emenda, padecerá de vício de inconstitucionalidade formal ou material, conforme o caso, e assim ficará sujeita ou controle de constitucionalidade pelo judiciário, tal como se dá com as leis ordinárias.1 O voto divergente foi da lavra do ministro Gilmar Mendes (redator do acórdão), o qual descartou a existência do vício formal na tramitação da emenda. No seu entender, destacando a autonomia do legislativo em interpretar a aplicar as suas normas internas, o texto aprovado transferiu a redação do §2º para o caput do art. 39 da CF/88, sendo submetido à votação em ambos os turnos. Fato esse que deu atendimento aos requisitos constitucionais e regimentais sobre a tramitação da matéria.     A sustentação da autonomia do Legislativo sobre a interpretação e aplicação das suas normas internas, encontra respaldo no respeito dos demais poderes. Neste meandro, na doutrina de Alexandre de Morais, o Poder Judiciário não deve intervir nas decisões internas das Casa Legislativas, em respeito ao princípio da separação dos poderes. Destaco: Diferentemente, porém, ocorre com a possibilidade de controle jurisdicional em relação à interpretação de normas regimentais das Casas Legislativas. Nessas hipóteses, entendemos não ser possível ao Poder Judiciário, substituindo-se ao próprio legislativo, dizer qual o verdadeiro significado da previsão regimental, por tratar-se de assunto interna corporis, sob pena de ostensivo desrespeito à separação de Poderes (CF, art. 2º), por intromissão política do Judiciário no Legislativo.2 O respeitável decano, no transcorrer do voto, desenvolveu argumentos sobre a preservação da autonomia do Legislativo em definir seu funcionamento e regras internas. Tal premissa é fundamental para evitar o controle judicial sobre questões interna corporis das Casas Legislativas. Entendimento não destoante da jurisprudência do STF, como no Mandado de Segurança 24.104 (MS 24.104/DF, rel. ministro Celso de Mello, DJe de 10/9/15), o qual reforça que o Judiciário não deve intervir nas escolhas interpretativas das normas regimentais do Legislativo, salvo em casos de flagrante violação constitucional. Nesse diapasão, ao término do julgamento de mérito realizado em 6/11/24, o STF decidiu, por maioria, sobre a constitucionalidade da flexibilização do regime de contratação. Balizou-se a compreensão de que a adaptação das contratações, refletindo as necessidades específicas de cada órgão, será o prelúdio de uma gestão mais eficiente, refletindo uma visão mais moderna da gestão pública e, assim, contribuindo para o aprimoramento do serviço público.  Na doutrina, o tema é alvo de discussões que ponderam os benefícios e desafios dessa flexibilização. Para Hely Lopes Meirelles, a estabilidade dos servidores é uma garantia contra ingerências políticas, constituindo uma proteção essencial do serviço público, assim contextualizado: "(...)criada pela Carta de 1938, a estabilidade tinha por fim garantir o servidor público contra exonerações, de sorte a assegurar a continuidade do serviço, a propiciar um melhor exercício de suas funções e, também, a obstar aos efeitos decorrentes da mudança do Governo. De fato, quase como regra, a cada alternância do poder partidário o partido que assumia o Governo dispensava os servidores do outro, quer para admitir outros do respectivo partido, quer por perseguição política."3 Não obstante, trata-se de medida essencial considerar os novos desafios diante da flexibilização do regime de contratação, especialmente no que condiz com o tratamento dos servidores. No intuito de entregar um serviço público de qualidade, a administração deve seguir os princípios esculpidos no art. 37 da CF/88 e, no que se refere ao princípio da eficiência, Di Pietro esclarece de forma exemplar: O princípio da eficiência apresenta, na realidade, dois aspectos: pode ser considerado em relação ao modo de atuação do agente público, do qual se espera o melhor desempenho possível de suas atribuições, para lograr os melhores resultados; e em relação ao modo de organizar, estruturar, disciplinar a Administração Pública, também com o mesmo objetivo de alcançar os melhores resultados na prestação do serviço público.4 A contratação de funcionário público, dessa forma, em razão da elasticidade da decisão da Corte Maior, poderá ser viabilizada também pela CLT, além da forma convencional pelo RJU -Regime Jurídico Único. Assim, no edital, pela opção híbrida, o órgão público deve informar qual será o regime pretendido, permanecendo União, estados, Distrito Federal e municípios com a legitimidade para a escolha do mais adequado. O funcionário que for contratado pela CLT carregará os benefícios próprios da área privada, como, por exemplo, o FGTS - Fundo de Garantia por Tempo de Serviço, que não integra o regime jurídico único que, por sua vez, dentre outros benefícios, preserva a estabilidade. Por fim, o julgamento da ADI 2.135 consolidou a possibilidade de flexibilização do regime de contratação dos servidores públicos, com o objetivo de se permitir uma gestão pública mais eficiente. Por um lado, uma das consequências da decisão, será a diminuição de oferta de concursos públicos pelo regime estatutário, assim como, de acordo com a perspectiva, um considerável aumento de contratação pela CLT. Referida decisão, no entanto, resguardou os direitos dos servidores que já se encontravam sob o regime jurídico único, conferindo efeitos ex nunc a ela. A flexibilização deve ser vista como uma ferramenta de modernização, mas seu uso deve ser acompanhado de cuidados e critérios para garantir que não sejam prejudicados os valores e princípios que orientam a administração pública brasileira. ________ 1 Silva José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo, 37º edição. São Paulo: Malheiros 2 Moraes, Alexandre de. Direito Constitucional, 33º edição. São Paulo: Atlas, 2017, pag. 556. 3 Meirelles, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. São Paulo: Malheiros Editores, 2010, pag. 472. 4 Di Pietro, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo, 31º edição. São Paulo: Atlas, 2018, pag. 112.
O Código de Ética Médica, contido na resolução CFM 2.217/2018, constantemente vem sendo revisto e atualizado não só para incorporar temas de inovações científicas e tecnológicas, como, também, as novas condutas pertinentes para o exercício da boa medicina, tendo como escopo final o respeito absoluto pelo ser humano, sem discriminação. Na natureza personalíssima da relação médico-paciente permanece inabalável o princípio da autonomia da vontade do paciente, que foi até mesmo ampliado com relação à decisão do final de vida, assim como a objeção de consciência do médico em recusar, em algumas situações especialíssimas, atender o paciente. Estabeleceu, então, que o médico, preparado tecnicamente para o seu mister, deve compartilhar com seu paciente os procedimentos diagnósticos e terapêuticos a serem adotados e que serão realizados somente após o consenso entre as partes. No dictum hipocraticum não há nenhuma norma que estabeleça o livre arbítrio do paciente a respeito do procedimento a ser adotado, a não ser a obrigatoriedade do profissional da saúde cuidar do seu bem-estar. Tal regra foi consagrada no Código de Ética Médica, em seu Capítulo I, item II, quando trata dos princípios fundamentais: "O alvo de toda a atenção do médico é a saúde do ser humano, em benefício da qual deverá agir com o máximo de zelo e o melhor de sua capacidade profissional". Vale a pena observar que a capacidade de consentir estabelecida no Direito Civil pátrio teve origem no Direito Médico. Miranda, com sua perspicácia doutrinária insuperável, fez ver: "A noção advém do Direito Médico de diferentes países para marcar a linha de limite entre as intervenções médicas praticadas em vista de um ato de autodeterminação do paciente e aquelas praticadas com a assistência ou mediante representação do legalmente responsável pelo paciente. Seu objeto específico é o processo de tomada de decisões sobre os cuidados para com a saúde, globalmente considerados, abrangendo, portanto, não apenas os casos de autorização para participar de pesquisas na área da saúde, mas quaisquer atos de lícita disposição do próprio corpo".1 A autonomia da vontade do paciente (Pacient Self-Determination Act) não pode, no entanto, ultrapassar as barreiras éticas e morais do profissional da saúde a exigir que, se preenchidas as condições estabelecidas, seja realizado determinado procedimento previsto em protocolo médico, como, por exemplo, o abortamento em caso de gravidez por estupro de uma mulher. Tal hipótese afigura-se como uma causa de limitação da autonomia da vontade, quando o interesse do paciente, mesmo que legítimo, não pode obrigar o profissional da saúde. Trata-se da justificativa de objeção de consciência. O médico pode se recusar a cumprir determinado preceito legal alegando um imperativo proibitivo de sua consciência, contrariando, desta forma, a vontade do paciente. O próprio Código de Ética Médica, no Capítulo que trata dos Direitos dos Médicos, em seu item IX, assim se expressa: "Recusar-se a realizar atos médicos que, embora permitidos por lei, sejam contrários aos ditames de sua consciência". A prerrogativa é resultante de preceitos morais, éticos, religiosos e até mesmo pessoais que venham a constranger a consciência do médico e não se exige a obrigatoriedade do profissional declinar a causa determinante de sua recusa. O médico recusante, em razão da objeção de consciência, exerce, na realidade, sua autonomia no âmbito da sua liberdade profissional. Tanto é que não se vê obrigado a prestar serviços que contrariem sua determinação íntima, excetuando-se os casos de ausência de outro médico no local para fazer o atendimento, em casos de urgência e emergência, ou quando sua recusa possa trazer danos ao paciente. No caso de abortamento referido anteriormente, no entanto, quando se tratar de hospital devidamente credenciado pelos órgãos públicos e com referência para a prática do procedimento, o profissional médico indicado com competência para tanto não pode suscitar a escusa de consciência, pois, em assim agindo, estará impedindo o direito de uma usuária do SUS - independentemente da idade gestacional - de interromper a gravidez em um serviço público oferecido nos casos indicados em lei. Uma verdadeira contradictio in adjecto. Nesse sentido prevalece a decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 1141, que suspendeu a resolução 2378/24 do Conselho Federal de Medicina, que proibia a interrupção de gestações decorrentes de estupro acima de 22 semanas, por meio da técnica de assistolia fetal. __________ 1 Miranda, Pontes. Tratado de Direito Privado. Introdução: pessoas físicas e jurídicas, atualizado por Judith Martins-Costa... [et al.] Editora Revista dos Tribunais, 2012 (coleção tratado de direito privado: parte geral; 1) p.251.
domingo, 17 de novembro de 2024

O crime de clonagem humana

A preocupação com a reprovação da clonagem bateu às portas do Legislativo brasileiro que se encarregou de editar a lei 11.105/05, conhecida como lei de biossegurança. Erigiu à categoria de crime a utilização de embriões humanos produzidos por fertilização in vitro para fins de pesquisa e terapia, a não ser que sejam considerados inviáveis; que se encontrem congelados há três anos ou mais e sempre contando com o consentimento dos genitores. O consentimento é exigido tanto para a captação do material reprodutivo como sua utilização posterior em pesquisa e terapia. É interessante observar que a lei usou o termo genitores, designando os pais que cederam o material para fins de procriação somente, explicitando o permissivo legal. Também é conduta criminosa a prática de engenharia genética em célula germinal humana, zigoto humano ou embrião humano. É ilícita, igualmente, a realização de clonagem humana. Reza o art. 26 da lei referida: Realizar clonagem humana: Pena - reclusão, de 2 a 5 anos e multa". Do nascimento da ovelha Dolly - o primeiro mamífero adulto artificial e assexuado, sem a participação do gameta masculino no processo de clonagem até o fechamento do Projeto Genoma Humano no início deste século - a medicina deu significativos passos para a pesquisa regenerativa e sua implantação nos seres humanos. Ingressou com todo potencial na área da engenharia genética visando criar células novas, ou até mesmo órgãos inteiros para substituir os que vão se deteriorando em razão de doenças, acidentes ou envelhecimento e cogita até mesmo da substituição do homem por outro par que seja mais eficiente, elaborado de acordo com sua própria imagem. A título de curiosidade, é interessante a leitura do livro Homem-Máquina, de Max Barry, em que o personagem Charles Neumann teve uma perna amputada por acidente e, propositadamente, perde a outra, perde a mão, recebe membros artificiais em laboratório e conclui que, em razão da fragilidade do ser humano, a indicação melhor é a reconstrução em laboratório. O tipo penal descrito é incisivo e objetivo. O núcleo da ação é o verbo realizar com o significado de criar, produzir, lançar mão de todos os meios técnicos e científicos para conceber um ser humano idêntico a outro já existente, independentemente dos objetivos. A simples ação de quebrar a regra da procriação e inverter seu procedimento para se obter artificialmente um clone é uma conduta demonstrativa de dolo intenso, uma vez que é social e penalmente relevante e reprovável. Interessante observar que qualquer pessoa pode figurar como sujeito ativo do crime, pois o legislador não exigiu que o ato seja executado por um profissional da saúde. Pode até ser que haja a participação de médico e pessoa que seja de outra área do saber. O bem jurídico tutelado é a própria dimensão do ser humano em sua natureza individualizada, assim como a proteção ao patrimônio genético da humanidade. Tal tipificação foi incluída na lei com o intuito de proteger o patrimônio genético e o genoma humano. A prática do procedimento de exceção pelos operadores da reprodução humana, não deve afastar o olhar do princípio do primum non nocere que rege a ciência da Bioética e sim fixar na justa causa, que é a procriação. Qualquer invasão das barreiras protetivas pode trazer sérios prejuízos à espécie humana, ferindo-a em sua integridade e até mesmo desconfigurando o patrimônio genético da humanidade. Tem-se a impressão de que se cria uma banalização em tema de tamanha importância, coisificando-o. O desenvolvimento das pesquisas na área da embriologia tem que ser visto com muita cautela, buscando sempre o respeito à dignidade humana para que não corra o risco de ingressar na procriação artificial, afastando todos os valores humanos do casal que desejou a procriação. Enquanto as técnicas são direcionadas para a solução dos problemas de infertilidade, tem sua aceitação e aprovação popular. Quando se distancia das metas optadas pela sociedade, como, por exemplo, a programação para fazer nascer somente homens com características previamente selecionadas, ou a clonagem, a rejeição é total. A legislação mundial repudia a técnica da clonagem por considerar que se trata de um procedimento despojado de ética e que afronta os princípios da própria natureza humana. É sabido, pelas experiências realizadas em animais, que são necessárias muitas tentativas seguidas e destruição de inúmeros embriões para se conseguir atingir o objetivo, que vem se mostrando de pouca eficiência, com reiterados abortos de fetos malformados e com morte em curto espaço de tempo. Sem falar ainda da dificuldade de se estabelecer a vocação genética e a ordem hereditária, para saber quem é o pai, o filho e assim por diante. Aceita-se a intervenção científica que seja para controlar ou até mesmo extirpar definitivamente doenças a fim de que o homem possa usufruir com mais dignidade de sua existência, mas entregar a ela o poder de replicar um ser humano vivo ou que já tenha morrido, foge totalmente do consentimento da humanidade. É até desumano. Mesmo socialmente não se vislumbra nenhum benefício com a replicação do ser humano. Pelo contrário. Todo procedimento tecnológico tem que carregar dividendos para a saúde e vida do homem, pois, do contrário, não poderia se pensar em um trabalho de pesquisa que não objetivasse tais metas.
O registro de nascimento, além de ser um documento de individualização da pessoa na comunidade, integra o direito de personalidade para viabilizar a prática de todos os atos compatíveis com o exercício da cidadania. Antes dele, no entanto, o hospital ou a maternidade onde ocorrer o nascimento, irá emitir a DNV - Declaração de Nascido Vivo, documento de validade provisória, em que constarão o nome, dia, mês e ano do nascimento da criança, sexo, informações sobre gestação múltipla, quando for o caso, além do nome da mãe, naturalidade, profissão, endereço, idade e o nome e prenome do pai. Pelo procedimento convencional o pai ou a mãe, isoladamente ou em conjunto, ou o responsável legal, de posse do DNV, irão buscar o cartório de registro civil do local do nascimento ou no local da residência da criança, no prazo de 15 dias (lei 6015/73), para o registro do assento de nascimento, que é obrigatório e gratuito. Tal prazo pode ser dilatado até 45 dias se ocorrer impedimento ou falta do pai ou da mãe ou até três meses quando os pais residirem em lugares distantes da sede do cartório. Se, porém, o nascimento ocorreu em casa, sem qualquer assistência hospitalar, os genitores ou o responsável legal, poderão ir diretamente ao cartório. O CNJ, no provimento 122/21, traz interessante regulamentação com relação ao assento de nascimento no Registro Civil das Pessoas Naturais nos casos em que o campo "sexo" da declaração de nascido vivo tenha sido preenchido como "ignorado".1 Pelo sistema binário prevalente na CF/88- em que predomina o sexo masculino e feminino sem qualquer outro concorrente - os cartórios não tinham autorização para lavrar o documento nele inserindo sexo "ignorado". Com a nova regulamentação, quando se tratar de ADS - Anomalia de Diferenciação de Sexo, em que fica constatado ictu oculi a dificuldade ou até mesmo a impossibilidade de identificação imediata do sexo, o oficial do cartório irá observar se no campo sexo da DNV foi preenchido como "ignorado". Se assim for, nos mesmos moldes, será lavrado o registro. O registrador, no entanto, recomendará ao declarante a escolha de prenome comum aos dois sexos e, se recusada a proposta, permanecerá o prenome indicado pelo declarante. A genitália ambígua não provoca o surgimento de um terceiro sexo - denominação que vai até mesmo criar mais confusão do que encontrar uma solução adequada - e sim é resultado de uma malformação, conhecida como intersexo, para a identificação da genitália da criança. Ocorre quando as características sexuais não se encaixam no espaço binário dos corpos masculino e feminino, como é o caso dos pacientes hermafroditas, impedidos de conhecer imediatamente o sexo, circunstância que trará sérias complicações familiares e sociais. Tanto é que os pais, erroneamente, podem escolher o sexo para o filho ao nascer, provocando, com o passar do tempo, discordância entre a identidade sexual e a identidade de gênero. O CFM, por sua vez, também se manifestou quando da edição da resolução CFM 1664/03, que estabeleceu as normas técnicas necessárias para o tratamento de pacientes portadores de anomalias de diferenciação sexual. Na exposição de motivos faz ver que: "O nascimento de crianças com sexo indeterminado é uma urgência biológica e social. Biológica, porque muitos transtornos desse tipo são ligados a causas cujos efeitos constituem grave risco de vida. Social, porque o drama vivido pelos familiares e, dependendo do atraso do prognóstico, também do paciente, gera graves transtornos." O provimento 122/21, coerente com a necessidade social, de forma oportuna, estabelece que a designação do sexo poderá ser feita a qualquer tempo por um termo de opção, independentemente de autorização judicial ou de comprovação de realização de cirurgia de designação sexual, de tratamento hormonal, ou de apresentação de laudo médico ou psicológico. Se a pessoa optante estiver sob o poder familiar, será representada ou assistida pela mãe ou pelo pai, mas terá que dar seu consentimento se for maior de 12 anos de idade. É idêntico ao procedimento estabelecido para a alteração do prenome e do gênero no assento de nascimento e casamento de pessoa transgênera, conforme se observa do § 1º do artigo 4º do provimento 73/18, do mesmo órgão. A providência determinada pelo CNJ irá proporcionar às crianças portadoras de anomalias de diferenciação sexual o exercício pleno da cidadania em busca da construção de sua autoimagem, com acesso aos programas sociais relacionados às políticas públicas compatíveis e também aos serviços públicos e privados de saúde. Tal providência vai ao encontro das regras protetivas em favor das crianças no Estatuto da Criança e do Adolescente, conferindo a ela proteção total, desde o nascimento ________ 1 Disponível aqui.
domingo, 3 de novembro de 2024

A morte por suicídio assistido

"Como sou ateu desde a adolescência, tenho consciência de que quem decide se a vida vale a pena ou não sou eu. Espero ter vivido com dignidade e espero morrer com dignidade." Antonio Cícero1 Antonio Cícero, poeta com vários livros publicados e letrista de canções imortalizadas na música popular, membro da Academia Brasileira de Letras desde 2017, faleceu aos 79 anos de idade, na cidade de Zurique, na Suíça. Tinha Alzheimer e, em razão disso, passou a considerar que a vida se tornou insuportável e optou por fazer um procedimento de suicídio assistido no mencionado país, que legalizou tal prática desde 1942. O tema morte começa a fazer parte direta da vida das pessoas e a tendência é procurar uma modalidade mais ética que se coadune com a conveniência humana, que tem a morte como o esgotamento de todo o esforço terapêutico e o esvaziamento das reservas de resistência do paciente. Já que o morrer é inafastável, a tendência é buscar uma alternativa que se enquadre nos limites da razoabilidade ética. Mas o homem, na sua incansável evolução, arrebenta os diques das regras consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer, também, em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito das modalidades da morte. A finitude da vida, um tema que vem rompendo com preconceitos estigmatizados, ganha corpo e passa a frequentar a conversa do dia a dia e, apesar de não possuir uma legislação ordinária a respeito no Brasil, conta com resoluções do Conselho Federal de Medicina para disciplinar o procedimento ético do final da vida humana. Basta ver as regulamentações feitas a respeito da ortotanásia, dos cuidados paliativos e das diretivas antecipadas, seguindo o roteiro do princípio da dignidade da pessoa humana, preconizado na Constituição Federal. A morte surge, desta forma, como tema central e até mesmo natural, apesar de o homem resistir a travar discussão a respeito. O anseio das pessoas é ter uma morte rápida, sem sofrimento e, logicamente, após ter exaurido a vida em sua plenitude. Sêneca, na antiguidade do Império Romano, já proclamava que morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente e, principalmente, quando a pessoa for abandonada à morte amarga (amarae morti ne trada nos). Ao que tudo indica dos relatos feitos pelos amigos, nenhuma dúvida paira a respeito da higidez mental do escritor quando verbalizou sua vontade. Sua decisão foi rapidamente propagada pelo mundo, detonou sentimentos favoráveis e contrários e tocou o cerne da finitude humana, criando um labirinto de dúvidas e incertezas. A respeito do tema pode-se dizer que há inúmeros argumentos favoráveis e contrários à opção da escolha do processo de morrer. O direito de autodeterminação se faz presente no suicídio assistido. A autonomia do ser humano possibilita a tomada de decisões de acordo com sua vontade, com exceção dos casos de colidência com interesses maiores e tutelados legalmente. O morrer com dignidade compreende, em situação de sofrimento interminável, transferir a um profissional da saúde não o direito à sua própria vida, mas sim a renúncia ao direito de continuar vivendo em situação angustiante. O suicídio assistido, desta forma, vem a ser a vontade expressa pelo doente, que se encontra em perfeitas condições mentais, de dar fim à sua vida, realizando, ele próprio, os atos para garantir o seu intento, sempre orientado por médico, em razão de uma determinada doença.  No Brasil, é terminantemente proibida a prática do suicídio assistido em razão da norma incriminadora disposta no art. 122 do Código Penal, que pune a modalidade de prestar auxílio ao suicida, compreendendo aqui o fornecimento ou a viabilização dos meios necessários para a prática do ato. Não se confunde com a eutanásia, que é a conduta pela qual o agente pratica um ato específico para colocar fim à vida, em razão da irreversibilidade de uma doença. Na realidade, no suicídio ajudado, a pessoa solicita a um terceiro a colaboração quanto ao meio de atingir seu objetivo, sendo que a ação é do próprio interessado. Pessini, bioeticista com refinada agudeza de espírito, foi incisivo: "No suicídio medicamente assistido, envolve a participação de um médico, na provisão, mas não na administração direta para ajudar a pessoa a abreviar sua vida". 2 __________  1 Disponível aqui. 2 Pessini, Leo. Eutanásia - Porque abreviar a vida? São Paulo: Editora Loyola, 2004, p.127.
domingo, 20 de outubro de 2024

O pacote antifeminicídio

É fato notório, pelos constantes relatos estatísticos, que o crime de feminicídio, apesar do arsenal legislativo existente, vem apresentando um aumento considerável, deixando a entender que o feminicida, sabedor que é do alto grau de periculosidade que reveste sua conduta, não se intimida diante da pena e sim que, conforme vem ocorrendo em escala progressiva e, em muitos casos com requintes de crueldade, faz opção pelos atos de violência, não se importando com as consequências penais referentes ao seu status libertatis. Nova investida legislativa surge com a promulgação da lei 14.994/24, conhecida como "Pacote Antifeminicídio". Pode-se dizer que ordenamento jurídico brasileiro deu um passo fundamental na luta contra a violência perpetrada por razões da condição do sexo feminino da vítima, aumentando a proteção ao bem jurídico tutelado e garantindo maior eficiência ao caráter preventivo positivo e negativo da pena. Em primeiro lugar, é imprescindível compreender a extensão do termo "razões da condição do sexo feminino": (a) no contexto da violência doméstica e familiar e (b) com o menosprezo ou discriminação à condição de mulher (art. 121-A, § 1º, incisos I e II, do Código Penal). Já surge, aqui, o primeiro questionamento: a mulher trans receberá a nova proteção legal? Não podemos esquecer do fato de que o STJ reconheceu a possibilidade de aplicação da lei Maria da Penha à mulher trans, na medida em que o requisito básico desta proteção é o gênero feminino e não o sexo biológico da vítima.1 Então, caberá agora ao intérprete da lei fixar o alcance da expressão "sexo feminino", contida expressamente no novo crime tipificado no art. 121-A do Código Penal. Ao que parece, levando-se em conta a dignidade da pessoa humana, a vulnerabilidade da vítima e os mandados constitucionais implícitos e explícitos de criminalização, bem como o princípio da proibição da proteção deficiente de bens jurídicos, a mulher trans receberá o alcance da nova lei, não havendo falar-se na vedação da analogia prejudicial ao réu. Desta feita, importante destacar a criação deste novo tipo penal: O feminicídio passou a ser crime autônomo, tipificado no art. 121-A do Código Penal, com penas cominadas em abstrato de 20 a 40 anos de reclusão. Desta forma, o feminicídio, que já era uma das qualificadoras do crime de homicídio, ganha, com essa nova formulação, maior autonomia jurídica, refletindo a gravidade do crime e a necessidade de uma resposta penal mais robusta. Afinal, a partir de agora, é formalmente mais um dos crimes dolosos contra a vida, nominalmente apto a ser objeto de julgamento pelo tribunal popular do júri. Além disso, a nova lei agrava as penas para os crimes correlatos, como lesão corporal e ameaça, perpetrados no mesmo contexto do feminicídio. No caso de lesão corporal, a pena mínima foi majorada para 2 anos de reclusão, com a máxima de 5 anos; para os crimes de injúria, calúnia e difamação, as penalidades agora são dobradas. Outro aspecto central da nova legislação é a alteração na lei Maria da Penha (lei 11.340/06), que passou a prever penas mais rígidas para o descumprimento de medidas protetivas: os patamares da nova sanção vão de 2 a 5 anos de reclusão, o que reflete a tentativa do legislador de buscar maior proteção para a mulher em evidente situação de vulnerabilidade. Mas a nova lei não parou por aí em seus reflexos externos. A lei de execução penal (lei 7.210/84) também foi ajustada, com mudanças substanciais para o cumprimento de pena de agressores. Agora a progressão de regime no feminicídio só será possível após o cumprimento de 55% da pena. Além disso, o uso de tornozeleira eletrônica passa a ser obrigatório para qualquer benefício de saída. E, caso o agressor, durante o cumprimento da pena, venha a ameaçar a vítima, poderá ser transferido para um estabelecimento prisional distante do local onde vive a mulher, como medida de proteção adicional. Mais um ponto notável da reforma é que o crime de ameaça, quando cometido no contexto ora estudado, passar a ser de ação penal pública de iniciativa incondicionada, ou seja, o Estado não necessita mais da autorização (representação) da vítima - conhecida como condição de procedibilidade - para iniciar a persecução penal, o que permite ao Delegado de Polícia instaurar de ofício o competente inquérito policial (caso haja elementos para tanto), bem como ao Ministério Público inaugurar a ação penal, independentemente da manifestação da vítima. Portanto, a corriqueira situação da vítima que, sentindo-se ameaçada pelo agressor, faz cessar a persecução penal (retratando-se da representação oferecida), será sanada, uma vez que a vontade da vítima não é mais considerada para o caminhar do inquérito e do processo penal. As novas disposições também determinam a perda automática de cargos públicos, para condenados por crimes de violência doméstica ou feminicídio, além de vedar assunção às funções públicas durante o cumprimento da pena. O legislador reconhece a gravidade da prática de violência de gênero ao impedir que o agressor permaneça no exercício de qualquer função pública ou cargo eletivo, associando a integridade moral do servidor público à prática de um comportamento socialmente responsável, garantido plena aplicação aos efeitos secundários da condenação penal. Portanto, a lei 14.994/2024 não apenas endurece as penas para crimes contra a mulher, mas também modifica profundamente a forma como o sistema de justiça trata a violência de gênero, inserindo mecanismos de proteção mais rigorosos e ajustados à realidade atual. A promulgação desse pacote legislativo consolida uma importante ferramenta na luta contra o feminicídio e outras formas de violência contra a mulher, fortalecendo o papel do Estado na garantia de segurança e dignidade para as vítimas. ________ 1 Dísponivel aqui.
Muito se tem falado e comentado no país a respeito da assistência à saúde, erigida como dogma constitucional. O cidadão passa a ser sujeito de pleno direito e o Estado o detentor da obrigatoriedade de cumprir todas as metas estabelecidas nas políticas sociais que visem reduzir o risco de doenças, compreendendo acesso universal e igualitário às ações e serviços que tenham por objetivo a proteção e recuperação do cidadão enfermo e sem condições financeiras de arcar com os custos dos medicamentos. Apesar de se constatar um exagerado crescimento no sistema estatal, os recursos direcionados para a saúde, por mais que sejam representativos, serão insuficientes, minguando progressivamente e dificultando sua redistribuição. A mera formalidade assistencialista, totalmente distorcida da realidade social brasileira, criou uma frustração da expectativa popular, que foi buscar a satisfação de suas necessidades junto ao órgão jurisdicional.  A Justiça passou a determinar ao Estado a obrigatoriedade de cumprir o mandamento constitucional com a distribuição de medicamentos de alto custo para as pessoas menos favorecidas financeiramente. A vida humana, como bem maior, indisponível, com obrigação vinculativa ao Estado, ingressou na esfera de prioridade de atendimento, pois a dimensão humana não pode ser edificada com o bem-estar de uma camada reduzida de pessoas com poder aquisitivo e o consequente mal-estar da mais pobre.  Quando se fala em alto custo de medicamento ou tratamento relacionado com a saúde não se estabelece um parâmetro objetivo calcado sobre uma determinada renda ou valores equivalentes a tantos salários mínimos. O que se leva em conta é o valor exacerbado do medicamento, quer seja vendido no país ou no exterior e que sua aquisição se torne impossível para o doente ou seu representante que, com seu ganho, mesmo que encartado numa faixa razoável, não terá condições de adquiri-lo. Isto porque se leva em consideração os gastos com a manutenção da moradia, saúde, educação, sustento e satisfação dos familiares. De nada adianta o indivíduo desembolsar dinheiro destinado a suprir as necessidades básicas ou até mesmo contrair empréstimos bancários se não terá condições de honrá-los. O plenário do STF, recentemente, dando continuidade ao julgamento do processo RE 566471, de março de 2020, com tese de repercussão geral, estabeleceu as regras e parâmetros para toda decisão judicial que apreciar pleito relacionado com medicamentos registrados na ANVISA - Agência Nacional de Vigilância Sanitária, mas que não foram inseridos ainda no SUS - Sistema Único de Saúde, independentemente do custo. A regra básica a ser seguida determina que se o medicamento não estiver incluído na dispensação do SUS - composto pelo RENAME, RESME, REMUNE e outras - impede a prolação de sentença judicial para fornecimento do fármaco, sem levar em consideração o seu custo. Tal regra, no entanto, foi atenuada e com razoável abertura permite, excepcionalmente, prevalecer a concessão de decisão judicial desde que o autor da ação, titular e responsável pelo onus probandi, demonstre, cumulativamente, de forma inequívoca, as seguintes condições: negativa de fornecimento do medicamento na via administrativa; ilegalidade do ato de não incorporação do medicamento pela Conitec, ausência de pedido de incorporação ou da mora na sua apreciação; impossibilidade de substituição por outro medicamento constante das listas do SUS e dos protocolos clínicos e diretrizes terapêuticas; comprovação, à luz da medicina baseada em evidências, da eficácia, acurácia, efetividade e segurança do fármaco, necessariamente respaldadas por evidências científicas de alto nível; imprescindibilidade clínica do tratamento, comprovada mediante laudo médico fundamentado, descrevendo inclusive qual o tratamento já realizado; incapacidade financeira de arcar com o custeio do medicamento. Fica mais do que evidenciado que a decisão, ora em comento, observou princípios salutares, principalmente com maior incidência na área da saúde. Dentre eles, merecem destaques o da igualdade de acesso à saúde, a eficiência das políticas públicas, o respeito à medicina baseada em evidências e a escassez dos recursos públicos destinados à saúde. Além, é claro, dos princípios da beneficência e da justiça distributiva, ambos da bioética. Buscou-se, desta forma, um critério modulador ou até mesmo uma plataforma em que será analisada criteriosamente a realidade clínica do paciente e demais requisitos apontados, para evitar a judicialização excessiva e, consequentemente, prejuízos à população que depende do SUS. Se ausente um dos requisitos estabelecidos - observando que a exigência compreende a concorrência simultânea de todos eles - o pleito judicial será indeferido de plano.
No mês de outubro, na configuração dada anualmente no Brasil para prevenção de doenças, comemora-se Outubro Rosa, que teve seu berço em Nova York no ano de 1990, e tem por finalidade propagar uma ação mundial, difusa, compreendendo vários movimentos que se unem em torno da ideia, com a finalidade específica de alertar as mulheres a respeito da prevenção do câncer de mama e, principalmente, na busca do diagnóstico precoce, quando ainda há grande chance para um tratamento exitoso.  Tamanha consistência adquiriu a iniciativa que o próprio Estado já se apresenta como seu arauto e desempenha importante papel nesta tarefa, pois cabe a ele a missão constitucional de patrocinar políticas públicas em favor das mulheres que visem à redução de doenças, tendo como prioridade as ações preventivas. A Câmara dos Deputados e o Senado Federal, neste ano de 2024, abraçaram a causa com a campanha: "A sua saúde merece um toque de atenção". A escalada da biotecnologia e os avanços científicos na área da saúde proporcionaram novos caminhos alternativos, muitas vezes verdadeiros atalhos providenciais, que conduzem mais rapidamente a diagnósticos de doenças que seriam detectadas muito tempo após, já sem chances de cura.  Assim, nesta linha de pensamento, o governo editou a lei 11.664/08, que dispõe sobre a efetivação de ações de saúde que assegurem a prevenção, a detecção, o tratamento e o seguimento dos cânceres do colo uterino, de mama e colorretal no âmbito do SUS - Sistema Único de Saúde. Referida lei confere assistência integral à saúde da mulher, incluindo o trabalho informativo e educativo sobre a prevenção, disponibiliza o exame de mamografia para mulheres a partir de 40 anos de idade, com vistas à detecção, tratamento, controle ou seguimento pós-tratamento da doença. Trata-se da aplicação do princípio bioético da justiça distributiva, tendo como sustentáculo uma ação beneficente obrigatória para que o bem-estar individual possa atingir o bem-estar coletivo, sem peculiaridades diferenciadoras da pessoa humana, em razão da isonomia e da dignidade que a reveste.  A assistência diferenciada vem contida também no art. 2º da lei 12.732/12, que assegura ao paciente o prazo máximo de 30 dias para que sejam realizados os exames para a confirmação do câncer, quando de tratar de neoplasia maligna, cujo tratamento deve ser iniciado no SUS, no prazo de até 60 dias, contados a partir do dia em que for firmado o diagnóstico em laudo patológico ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso, registrada em prontuário único.  Portaria posterior do Ministério da Saúde (1.220/14) mitigou a interpretação da lei dos 60 dias e passou a considerar o prazo a partir da data do diagnóstico da doença no exame (laudo patológico), ou em prazo menor, conforme a necessidade terapêutica do caso registrada em prontuário. Quer dizer, a data da assinatura do laudo patológico apontará o termo inicial (dies a quo) para a contagem do prazo de 60 dias, obrigando os gestores públicos a tal determinação.  Indo além e alcançando a vontade que o legislador deixou transparecer na lei citada, a Agência Nacional de Saúde Suplementar expediu a Nota Técnica 876/13 ampliando a cobertura obrigatória dos planos de saúde, agora para detectar doenças genéticas. Dentre elas destacam-se a análise dos genes BRCA1/BRCA2, relacionados com câncer de mama e ovário hereditários, mediante a prescrição de um geneticista, a partir de 2/1/14. É, sem dúvida, um novo caminho que se abre em termos de prevenção de doença. Basta ver a decisão de Angelina Jolie ao se submeter a uma mastectomia dupla (retirada dos seios) porque, segundo os médicos, carregava 87% de chances de desenvolver o mesmo câncer que vitimou sua mãe. A decisão foi tomada após a realização de um mapeamento genético, capaz de detectar o crescimento das células defeituosas, com o consequente viciamento do DNA. A lei 12.880/13, em seu art. 1º, inclui entre as coberturas dos planos privados de assistência à saúde os tratamentos antineoplásicos de uso oral, procedimentos radioterápicos para tratamento de câncer e hemoterapia. Já a lei 12.802/13, por sua vez, obriga o SUS a realizar cirurgia plástica reparadora da mama, logo após a retirada do câncer, quando presentes as condições médicas. Ausentes, a paciente será encaminhada para posterior cirurgia reparadora. É interessante consignar que mulheres submetidas à mastectomia podem fazer a substituição da Carteira de Habilitação Comum para a Especial, benefício que lhes trará, na compra de um veículo, a isenção dos impostos IPI, ICMS e IPVA. E, se em razão da doença, ficarem incapacitadas para a atividade laboral, podem requerer o auxílio doença e ainda pleitear o saque do FGTS. Finalizando, o SUS oferece a cirurgia de laqueadura para a mulher que conta com mais de 21 anos ou, pelo menos dois filhos vivos, não mais exigindo a autorização do cônjuge ou companheiro, conforme atualização operada pela lei 14.443/22 na lei que disciplina o planejamento familiar (lei 9.263/96). Sabido que o câncer de mama é mais frequente acima de 35 anos de idade e representa uma das principais causas de morte das mulheres, o Outubro Rosa passa a exercer importância primordial para indicar as vias adequadas para o exame preventivo, assim como o tratamento e o combate à doença já instalada.
domingo, 29 de setembro de 2024

Testemunhas de Jeová e a decisão do STF

O STF, seguindo a pauta programada, analisou de um só vez dois processos de repercussão geral envolvendo tratamento médico de pessoas que professam a religião testemunhas de Jeová, que, como é sabido, não permite o recebimento de sangue proveniente de outra pessoa. Um deles, por meio do RE 1212.272, trata-se de um caso em que a paciente, por motivo religioso, apesar de ter assinado o termo de consentimento Informado, negou-se a assinar o termo referente à autorização prévia de eventual transfusão sanguínea de substituição de válvula aórtica, em cirurgia realizada em rede pública de saúde. Justificou em seu pleito judicial que se trata de uma ofensa à sua dignidade e ao acesso à saúde, contestando a nítida interferência estatal. Há muito tempo a justiça, principalmente a de 1º grau, profere decisões conflitantes a respeito do tema, ora prestigiando e reforçando a recusa, ora determinando, coercitivamente, a realização do procedimento. A decisão unânime da Corte Maior foi no sentido de que os seguidores da religião Testemunhas de Jeová, maiores e capazes, por convicção religiosa, podem recusar tratamentos médicos que utilizem a transfusão de sangue e o poder público, consequentemente, deve arcar com as despesas dos tratamentos alternativos disponíveis no SUS. Assim, pelo menos no tocante ao cerne da decisão - que tangencia direitos fundamentais previstos na CF/88, dentre eles, com relevo, a liberdade de consciência e de crença, a dignidade humana e a proteção à saúde. No campo da ciência Bioética, por sua vez, criou-se uma colidência entre os princípios da autonomia da vontade do paciente e o da beneficência, sendo que o primeiro deles recebeu o placet dos ministros. O princípio da autonomia da vontade do paciente, viga mestra do código de ética médica1, outorga ao seu titular o direito de se manifestar a respeito de eventual tratamento proposto pelo médico, demonstrando, de forma inequívoca, que sua vontade é de vital importância para se chegar à uniformidade de uma decisão. Na realidade, no estado atual, pelo recorte feito no referido código deontológico, a relação médico-paciente deve retratar uma verdadeira sintonia, na medida em que ambos dividem responsabilidades paritárias a respeito do conteúdo terapêutico. De qualquer forma, numa explicação mais singela, o paciente, como sujeito de autonomia, é detentor da legitimidade de confabular com o profissional de saúde, selecionar, dentre as opções apresentadas, a que julgar a mais conveniente Tem-se que, por outro lado, e o que vinha prevalecendo até então, a vida humana representa um bem indisponível, com tutela integral da CF/88 que a erigiu como o bem maior do homem, distinguindo-a com a proteção de todos os direitos fundamentais que a revestem. Assim, nesta linha de pensamento, há ativa participação estatal na preservação da vida, não prevalecendo, no caso, eventual recusa impeditiva do paciente na transfusão de sangue, conforme decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo: "Em que pesem as referidas convicções religiosas da apelante que, não obstante lhe são asseguradas constitucionalmente, a verdade é que a vida deve prevalecer acima de qualquer liberdade de crença religiosa".2 O princípio da beneficência, por sua vez, integra o atendimento médico e é erigido como um dos sustentáculos da boa prática da ars curandi.  Daí que o médico deve ofertar ao paciente os cuidados que sejam condizentes com suas necessidades, adotar a melhor estratégia terapêutica e se empenhar em conferir a ele os mais variados tratamentos com as melhores e mais recomendáveis tecnologias, eliminando ou reduzindo eventual risco no momento presente e futuro, distanciando-se cada vez mais de danos que possam ser identificados. Enfim, é envidar todos os esforços, para beneficiar o paciente com a qualidade do atendimento e tratamento proposto, com a mínima probabilidade de dano e, principalmente, sem a redução dos benefícios. Com a quebra do princípio da beneficência e a prevalência da autonomia da vontade, deixa de ser aplicado o procedimento previsto no protocolo médico, que ofertava total segurança ao paciente, sendo substituído por tratamento alternativo, que pode não produzir resultados tão satisfatórios. ________ 1 Resolução CFM 2.217/2018, modificada pelas Resoluções CFM 2222/18 e 2226/19. 2 TJ-SP autoriza transfusão em paciente contrária ao procedimento por motivos religiosos.
domingo, 15 de setembro de 2024

Setembro amarelo: Suicídio

Alguns temas não frequentam com assiduidade o noticiário e as redes sociais, como é o caso, por exemplo, do suicídio, que aflora ocasionalmente quando desponta algum assunto relacionado com sua prevenção. E é importante que haja continuidade nos debates, que geralmente se instalam em ambiente de alta fermentação coletiva para buscar uma decisão que seja satisfatória à população. A ABP - Associação Brasileira de Psiquiatria em parceria com o CFM - Conselho Federal de Medicina inseriu no calendário nacional a campanha Setembro Amarelo, que, neste ano, carrega o lema: "Se precisar, peça ajuda". Amarelo para representar a cor que Mike Emme, jovem norte-americano de 17 anos, que cometeu suicídio, pintou seu Mustang 68. Em seu velório, os pais e amigos distribuíram cartões amarrados com fitas amarelas e com mensagens de apoio para quem estivesse enfrentando o mesmo problema. Referido mês foi escolhido para alavancar no Brasil a campanha de conscientização a respeito da prevenção ao suicídio. Visando oferecer políticas públicas direcionadas ao tema, o governo editou a lei 13.819/19 instituindo a Política Nacional de Prevenção da Automutilação e do Suicídio a ser implementada pela União, em colaboração com os estados, municípios e distrito Federal. Compreendem na lei a violência autoprovocada, o suicídio consumado, a tentativa de suicídio e todo ato de automutilação, com ou sem ideação suicida. Traz ainda, dentre outros objetivos, a promoção à saúde mental, a prevenção à violência autoprovocada e o acesso às pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, notadamente àquelas com ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio, envolvendo entidades da saúde, educação, comunicação, imprensa e polícia, entre outras. No caso específico do suicídio, os objetivos da campanha cingem-se na promoção da saúde mental com a finalidade de: a) garantir o acesso à atenção psicossocial das pessoas em sofrimento psíquico agudo ou crônico, especialmente daquelas com histórico de ideação suicida, automutilações e tentativa de suicídio; b) abordar adequadamente os familiares e as pessoas próximas das vítimas de suicídio e garantir-lhes assistência psicossocial; c) informar e sensibilizar a sociedade sobre a importância e a relevância das lesões autoprovocadas como problemas de saúde pública passíveis de prevenção e promover a articulação intersetorial para a prevenção do suicídio. Uma das formas de comunicação será o serviço telefônico ou qualquer outra modalidade de comunicação destinada ao serviço gratuito e sigiloso de pessoas em sofrimento psíquico, observando que o atendimento deverá ser prestado por profissional com qualificação adequada. Fica bem delineado o espírito educativo e preventivo da lei quando se refere à assistência às pessoas em sofrimento psíquico e, principalmente, quando elege os profissionais da psicologia e da psiquiatria como os qualificados para a prestação da assistência necessária e adequada. O zelo pela saúde mental da comunidade é de vital importância. É sabido que pessoas portadoras de sofrimento psíquico se perdem em seus próprios pensamentos, persistem em suas ideias errôneas, indolentes, não sabem para onde ir e não se abrem para assimilar novas perspectivas de vida, a não ser os reiterados choques de negatividade. A porta de entrada recomendada oficialmente é a UBS - Unidade Básica de Saúde e também os CAPS - Centros de Atenção Psicossocial, serviços de saúde abertos à comunidade ofertando retaguarda clínica e outros pertinentes à saúde mental. A saúde psíquica do cidadão, a exemplo da definição de saúde da OMS, integra todos os cuidados de saúde, independentemente das condicionantes sociais, ambientais, econômicos e outras, visando sempre a atingir o bem comum. Desta forma, detectada a vulnerabilidade em razão do sofrimento psíquico, o próprio Estado deve garantir políticas públicas de atendimento preventivo com as condições necessárias e acessíveis a todos os que se encontram sob o mesmo quadro clínico mental, com absoluta proteção da confidencialidade das informações. Tamanha é a importância da atenção voltada às pessoas com sofrimento psíquico que os casos suspeitos ou confirmados de violência autoprovocada, compreendendo o suicídio consumado, suicídio tentado ou qualquer ato de automutilação, com ou sem ideação suicida, são de notificação compulsória, de caráter sigiloso. Assim os estabelecimentos públicos e privados de saúde devem notificar as autoridades sanitárias, ao passo que os estabelecimentos públicos e privados de ensino farão a notificação ao Conselho Tutelar. Com tal aparato, as medidas devem atingir resultados que sejam considerados satisfatórios ao minorar a mortalidade em razão do suicídio, em cumprimento à obrigatoriedade imposta ao Estado pelo art. 196 da Constituição Federal, atentando ainda que a OMS apontou a população jovem, na faixa etária de 15 a 24 anos, período em que se registra o maior número de suicídio.
domingo, 8 de setembro de 2024

Setembro Verde e a doação de órgãos

O Brasil carrega vocação natural para a realização de transplantes. Para tanto, celebra no dia 27 de setembro - data instituída pela lei 11.584/2007 - o Dia Nacional da Doação de Órgãos, campanha que leva o nome de Setembro Verde, para conscientizar a comunidade brasileira a respeito da importância da doação. Dá-se o nome de transplante ou transplantação ao procedimento cirúrgico pelo qual se insere num organismo denominado hospedeiro, um tecido ou órgão, colhido de um doador. Autotransplante, assim designado, ou transplante autoplástico, quando é feita a transferência de tecidos de um lugar para outro, no mesmo organismo, como ocorre com as cirurgias de "ponte de safena". Homotransplante ou transplante homólogo quando se dá entre indivíduos da mesma espécie, embora geneticamente diferentes. Xenotransplante, quando ocorre a transferência de um órgão ou tecido entre espécies diferentes, como é o estágio atual das pesquisas envolvendo animais como doadores de órgãos para receptores humanos. No Brasil, em razão do que dispõe a lei 9434/97, somente é permitida a doação de órgãos, tecidos e partes do próprio corpo vivo, feita por quem seja capaz, desde que se trate de órgãos duplos, como os rins ou partes renováveis do corpo humano, que não coloquem em risco a vida ou a integridade física e que também não comprometam as funções vitais do doador. Além disso, por ser uma regra de exceção, a doação para fins terapêuticos ou para transplantes, só pode contemplar o cônjuge, parentes consanguíneos até o 4º grau, ou ainda mais excepcionalmente, qualquer outra pessoa, desde que seja mediante autorização judicial. O procedimento será realizado em estabelecimentos de saúde públicos ou privados credenciados, assim como por equipes médicas especializadas. Quando se tratar de doação post mortem, há necessidade da comprovação da morte encefálica, com a juntada dos exames realizados para sua confirmação e da autorização do cônjuge ou parente em linha reta ou colateral até o segundo grau. A opção registrada pela pessoa em vida como doadora, inscrita na Carteira Nacional de Trânsito ou na Carteira de Identidade, perdeu sua eficácia a partir da Lei 10.211, de março de 2001. A vontade da pessoa quando viva não se sobrepõe à de seus parentes. Eles que irão decidir a respeito da doação de órgãos vitais do cadáver, que podem, numa bem sucedida manipulação médica, ser úteis a outras pessoas, como é o caso de doação de rins, córnea, coração, pulmões e pâncreas, com procedimentos bem desenvolvidos. Com a boa cautela, o legislador retirou do alcance legal o sangue, mesmo o extraído da medula óssea, o esperma e o óvulo. As finalidades humanitárias e solidárias justificam plenamente a opção legislativa. A respeito da autonomia da prevalência da vontade do doador em ofertar seus órgãos ainda em vida, o Corregedor Nacional de Justiça, considerando a necessidade de simplificar e tornar mais eficiente a doação de órgãos, expediu o recente Provimento nº 164, de 27 de março de 2024, criando a utilização de um mecanismo seguro e gratuito, instituiu a Doação Eletrônica de Órgãos, Tecidos e Partes do Corpo Humano (www.aedo.org.br), símbolo da campanha "Um Só Coração: seja vida na vida de alguém." Aludido documento representa, por si só, a manifestação de vontade da parte interessada em fazer a doação e pode ser elaborado perante tabelião de notas acessando o módulo específico do e-Notoriado, local onde será alojada a Autorização Eletrônica de Doação de Órgãos (AEDO), gratuitamente. Qualquer cidadão maior de 18 anos tem legitimidade para fazer valer sua vontade post mortem, ou revogar a que foi feita anteriormente. Ocorre que, mesmo com a Autorização Eletrônica, há necessidade de se cumprir o regramento contido no artigo 4º da Lei nº 9.434/97, que confere legitimidade exclusiva de doação ao cônjuge ou parente maior de idade, obedecida a linha sucessória reta ou colateral, até o segundo grau, inclusive. O Provimento é apresentado em um bom momento em que a comunidade brasileira vem colaborando com a doação de órgãos e tecidos, proporcionando um sensível aumento no número de transplantes. Embora não modifique a lei que trata da matéria, traz uma nova opção para ampliar o leque de doação e, todo movimento neste sentido, proporcionará significativo impulso para revitalizar ainda mais o procedimento de transplantação.
domingo, 1 de setembro de 2024

A constatação da morte encefálica

O homem, na história do universo, vive um singelo ciclo e quase sempre cumpre todas as etapas programadas pela biologia mas, em razão da evolução natural e da procura por um viver melhor, estabelece condições para que possa realizar todos os seus objetivos. A corporeidade - assim entendida como um princípio individualizante - tem por função imprimir ao homem sua realidade singular, revelando-o como pessoa articulada com as demais. Faz dele o detentor de um enorme latifúndio chamado corpo humano, que funciona como instrumento não só deambulatório, mas, também, com inúmeras funções para realizar seus objetivos e, ao memo tempo, abriga, em seu interior, as vidas psíquica, volitiva e inteligente. Tanto é que, no regramento constitucional brasileiro, vêm explicitados os princípios da proteção à vida, dentre eles, com relevo, o da dignidade da pessoa humana, para que haja a efetiva proteção desde a vida intrauterina, infantil, adolescência, adulta e idosa, compreendendo, portanto, o orior (nascer) e o morior, (morrer) dos romanos. Juridicamente é relevante estabelecer o momento da morte. Este, no entanto, é da competência exclusiva da medicina que, dentre os critérios existentes, irá apontar a causa e a forma pelo qual se deu o passamento. Um dos critérios que guarda relevante interesse para a área jurídica é o da constatação da morte encefálica. Pode até se ter a impressão de que se trata de uma faculdade discricionária outorgada ao médico para que possa declará-la de acordo com sua conveniência. Ocorre, no entanto, que há um rigoroso protocolo a ser seguido para atingir tal objetivo. A morte encefálica, resumidamente, é aquela que ocorre quando ausentes as funções neurológicas, com total irreversibilidade das funções do cérebro e do tronco cerebral. A sua constatação exige a realização de exames clínicos por dois médicos e a exibição de uma prova documental gráfica, em pelo menos duas oportunidades, com acentuado intervalo de horas, com a finalidade de constatar a ausência dos reflexos cerebrais. Recomenda-se, também, a realização de outros exames, como, por exemplo, o eletroencefalograma, a cintilografia de perfusão cerebral, arteriografia, doppler, etc. O tronco cerebral, que faz parte do encéfalo, responsável por todas as estruturas nervosas do corpo humano e de suas funções vitais, como o batimento cardíaco, respiração, sentimento, pressão arterial, pode ser considerado o administrador do grande latifúndio chamado corpo humano. Tanto é que, feito o diagnóstico de morte encefálica, apesar do paciente continuar com os órgãos viáveis, é considerado legalmente morto, oportunidade em que é possível a retirada de órgãos para transplante, se autorizado pelos familiares. A definição na legislação brasileira vem consubstanciada no artigo 3º da lei 9.434/97, in verbis: "A retirada post mortem de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante a utilização de critérios clínicos e tecnológicos definidos por resolução do Conselho Federal de Medicina". Tal definição orientou o Supremo Tribunal Federal, na Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 54), quando decidiu, por maioria de votos, pela autorização de aborto de feto anencefálico, aquele desprovido de encéfalo e calota craniana. É interessante destacar, nesta oportunidade, que foi afastada a pretensão de doação de órgãos de fetos anencéfalos, isto porque seria um contrassenso obrigar a mulher a manter a gravidez para viabilizar a doação de órgãos. Tamanha a importância de definição do momento da morte que, se após a decretação médica da falência encefálica, alguém praticar algum ato contra o paciente com a intenção de matá-lo, esbarrará no crime impossível e responderá, se for o caso, pelo crime de vilipêndio a cadáver. Assim, a tão próxima e desconhecida morte ocorre pelos seus inenarráveis desígnios ou até mesmo, em algumas circunstâncias especiais, é reconhecida pela lei do homem. Em qualquer caso, é de se considerar que ela faz parte da própria vida. É o seu protocolo final. Cabe aqui a pureza e a intensidade da prece que o inconfundível poeta popular Patativa do Assaré dirigiu à morte: "Morte, você é valente/ o seu poder é profundo/ quando cheguei neste mundo/ você já matava gente. / Eu guardei na minha mente/ este seu grande rigor/ porém lhe peço um favor/ para ir ao campo santo/ não me faça sofrer tanto/ morte, me mate sem dor". Mário Quintana, por sua vez, conhecido como o poeta das coisas simples e encantado pela vida, como que querendo afugentar a morte e eliminar o pensamento a respeito do cadáver, mandou escrever na lápide de seu túmulo: "Eu não estou aqui".
domingo, 25 de agosto de 2024

Crimes eleitorais

Algumas condutas ganham contornos de ilicitude se praticadas durante o período eleitoral e se assim forem descritas na legislação correspondente. O Direito Penal, como um caleidoscópio de ultima ratio, gira em movimentos diferenciados alcançando os mais diversos padrões de conduta que possam comprometer o sufrágio popular para eleger os candidatos e candidatas aos cargos de prefeito e vice-prefeito, assim como os vereadores e vereadoras que comporão as casas legislativas do país. Tipificados com o intuito de proteger o processo eleitoral - principalmente contra fraudes e abusos de poder - os crimes e as ilicitudes eleitorais estão previstos, sobretudo, na legislação eleitoral (Código Eleitoral - lei 4.737/65 e lei das eleições - lei 9.504/97), destacando-se que nosso Poder Legislativo estuda a aprovação de um Novo Código Eleitoral. Desta feita, com o intuito de fermentar a discussão a respeito de condutas que rotineiramente são praticadas, indaga-se: Eventual candidato a prefeito, sabedor de que determinado bairro de sua cidade necessita, urgentemente, da construção de uma creche, promete para os moradores da localidade a construção, caso vença a eleição para prefeito, comete crime? Pratica ilegalidade eleitoral (captação ilícita de sufrágio ou abuso de poder econômico) ou trata-se de mera proposta de campanha? Inicialmente, destacam-se dois ilícitos eleitorais: A captação ilícita de sufrágio e o abuso de poder econômico. Prevista no art. 41-A da lei das eleições (lei 9.504/97), a captação ilícita de sufrágio configura-se com o candidato (e terceiros, como cabos eleitorais, familiares etc.) a "doar, oferecer, prometer, ou entregar, ao eleitor, com o fim de obter-lhe o voto, bem ou vantagem pessoal de qualquer natureza, inclusive emprego ou função pública, desde o registro da candidatura até o dia da eleição, inclusive (...)". Entende-se por sufrágio o exercício do direito de voto. Ademais, para a configuração deste ilícito eleitoral, exige-se que a doação, oferta, promoção ou entrega de vantagem seja realizada à pessoa determinada, com o especial fim de obtenção do voto. Então, as promessas de campanha eleitoral, em um primeiro momento, aqui não se enquadrariam, uma vez que as promessas de campanha são para a coletividade.  Por fim, não é necessária prova de que o resultado da eleição foi alterado. Basta a prática da conduta, "comprando-se" apenas e tão somente um único voto, que a presente ilegalidade eleitoral está configurada, incidindo o candidato nas penas previstas, como multa e cassação do registro ou do diploma. Já o abuso de poder econômico, embora muito semelhante à captação ilícita de sufrágio, com ela não se confunde. Aqui o candidato pratica a conduta de destinar "(...) recursos patrimoniais, públicos ou privados, dos quais detém o controle ou a gestão em contexto revelador de desbordamento ou excesso no emprego desses recursos em seu favorecimento eleitoral". (RO 2346/SC, rel. min. Felix Fischer, DJE de 18/9/09).  Há autores renomados que, em outras palavras, definem o abuso de poder econômico como sendo a vantagem econômico-financeira entregue à coletividade de eleitores, para benefício do candidato na corrida eleitoral. Como exemplo, tem-se o uso indevido dos meios de comunicação social, das redes sociais, distribuição de cestas básicas, "showmícios", fornecimento de materiais para construção, tratamentos odontológicos e médicos etc. Ou seja: Diferentemente da captação ilícita, no abuso de poder econômico a promessa é destinada para uma coletividade de pessoas e, caso comprovado este abuso, a pena é a inelegibilidade, além de cassação do registro ou diploma. Como se vê, o conceito de abuso de poder econômico é mais elástico, permitindo sua verificação em cada caso concreto, enquanto a captação ilícita de sufrágio é determinada, tendo período claro de configuração: No curso do processo eleitoral, realizada por quem já é candidato, o que só se verifica entre a data do pedido de registro de candidatura (5/7) e as eleições. Por fim, o crime de corrupção eleitoral é tipificado no art. 299 do Código Eleitoral e consiste em "dar, oferecer, prometer, solicitar ou receber, para si ou para outrem, dinheiro, dádiva, ou qualquer outra vantagem, para obter ou dar voto e para conseguir ou prometer abstenção, ainda que a oferta não seja aceita".  O bem jurídico tutelado por este delito é a normalidade e legitimidade do processo eleitoral, particularmente a liberdade do voto e a igualdade de oportunidades entre os candidatos. A corrupção eleitoral atinge diretamente a vontade do eleitor, afetando sua liberdade de escolha, elemento central da democracia representativa. Trata-se de crime comum e formal, sendo irrelevante para sua consumação que o candidato tenha efetivamente conseguido "comprar" o voto, por exemplo. Ademais, admite duas vias: Corrupção eleitoral ativa ("compra" do voto) e passiva ("venda" do voto - pelo eleitor, portanto). Como se vê, as condutas são simulares e nada impede que o candidato, ao "comprar" o voto, pratique a ilegalidade eleitoral (captação ilícita de sufrágio ou abuso de poder econômico) e o crime de corrupção eleitoral, com consequências distintas. Do mesmo modo, parece ser bastante tênue a linha que separa a promessa de campanha dos ilícitos eleitorais, na medida em que influenciam diretamente na escolha - e o eleitor tem o evidente direito de conhecer as propostas apresentadas por candidatos. O caso concreto é que viabilizará a interpretação e aplicação dos institutos. A promessa relatada no início da presente exposição, feita por candidato ao cargo de prefeito, de construção de creche em determinado bairro, configura ilicitude ou crime? Embora de complexa análise, ensejando estudo pormenorizado do caso e das provas colhidas, é fato que, da maneira aqui proposta, aproxima-se de mera propaganda eleitoral, dentro do campo da legalidade.
domingo, 18 de agosto de 2024

A medicina de precisão

A anamnese, procedimento de vital importância para formar decisões diagnósticas e terapêuticas, pois em razão de uma entrevista com o paciente avalia sua história médica, os sintomas e outros fatores, com o passar do tempo e a evolução da tecnologia, foi cedendo lugar para uma pesquisa mais avançada e sustentada por informações técnicas. Guardadas as proporções e o temas focado, seria a utilização de ferramentas como o ChatGPT para elaborar uma redação com suporte na inteligência artificial, abandonando a criatividade natural do escritor.  A medicina, pela sua própria natureza e a constante necessidade de atrelar seu desenvolvimento às pesquisas animo nobile, vai buscando inovações nas mais alucinantes tecnologias, visando proporcionar ao homem uma salutar longevidade, acompanhada de uma qualidade de vida cada vez mais aperfeiçoada. Fixa o objetivo em preparar o homem nas diversas etapas da sua vida para chegar a uma velhice de exaurimento e atingir a finitude com a mais recomendável dignidade.  Basta notar e não se vão longos anos para tanto. Inicialmente a medicina de massa cuidava de avaliar o paciente pelos exames disponíveis. Após elaborava um diagnóstico seguindo um protocolo de conduta para todos os pacientes que apresentassem sintomas semelhantes, conferindo a mesma resposta terapêutica da ars curandi.  Mas é inquestionável que nem sempre a mesma prescrição médica iria atender e conseguir bons resultados com relação a todos os pacientes atendidos. Apesar das doenças apresentarem sintomas semelhantes, o organismo de cada um carrega mutações genéticas diferenciadas, fazendo ver que o tratamento, além de não ter a eficácia desejada, muitas vezes causava até danos ao doente, contrariando frontalmente o princípio bioético do primum non nocere. Quer dizer, o mesmo medicamento já não é mais apropriado para pacientes com semelhantes sintomas.  A Medicina, então, percebendo que não atingia resultados satisfatórios com relação a um grande número de pacientes, avançou para uma medicina de precisão, na qual almejava atingir maior êxito em suas tentativas. A Medicina Personalizada ingressa neste vácuo e assume uma proposta mais condizente com a realidade científica após a decifração do DNA. O homem, primeiramente é avaliado de acordo com seu perfil genético, aquele que irá indicar as predisposições para as doenças, procurando, desta forma, o mais adequado medicamento de acordo com suas características genéticas. Tal resultado pode ser obtido em exames farmacogênicos.  Basta ver, atualmente, que as máquinas proporcionam excelentes resultados, não somente para formatar um diagnóstico preciso, como, também, para ingressar nas veredas mais estreitas do corpo humano e realizar uma intervenção cirúrgica, apenas com pequenas incisões na pele, e com resultados altamente satisfatórios. E, ao que tudo indica, pelo sucesso do procedimento, a medicina vai se valer cada vez mais da tecnologia, sua acólita predileta.  Trata-se, sem dúvidas de um grande avanço. É ajustar a pessoa nos limites e no âmbito do seu mundo genético. Pode-se até dizer que é a realização da profecia feita no Oráculo de Delphos: nosce te ipsum. Se cada um conhecer sua divisão genética fica mais fácil para aplacar seus males. Se a identidade externa é conhecida e reproduzida nos documentos pessoais, agora chegou a vez da identidade interna, muito mais complexa e com enormes dificuldades para o domínio completo. Tornou-se conhecida a célebre frase de Sir Willian Olser, tido por muitos como o pai da medicina moderna, no sentido de que "é mais importante conhecer o paciente acometido por uma doença do que a doença que acometeu o paciente."  Mas todo avanço científico relevante deve corresponder a um dividendo de ganho para a humanidade. A jovem ciência genética vem produzindo inúmeras linhas de pesquisa, principalmente as que envolvem as células-tronco e o homem passa a ser o destinatário de tamanho benefício. Se vingar qualquer estudo nesse sentido, todo esforço exitoso que for benéfico a uma pessoa deve, em razão da isonomia e da justiça distributiva, servir aos demais pacientes que se encontram em idêntica situação.  O que se pode concluir com tantos novos caminhos diagnósticos é que, com a precisão cada vez mais exata da parafernália tecnológica, por paradoxal que possa parecer, deixará de existir o homem sadio. Isto porque, a mais tênue diferença constatada em um exame de rotina, fará com que o paciente, assim como será designado doravante, sinta-se um doente em potencial e daí por diante irá iniciar a peregrinação pelos consultórios de vários especialistas, além do excesso de medicalização, que pode acarretar danos à saúde pública.  Cabe aqui perfeitamente a constatação de Bobbio: "Tem-se a impressão de que a saúde pode ser conquistada somente por um estado de enfermidade perene. É melhor flagelar-se com medicamentos, dietas, controles, exercícios e renúncias na esperança de obter um benefício, mesmo sabendo que dificilmente nossos esforços reduzirão o risco de contrairmos uma doença e distanciarão o momento da morte?"
domingo, 11 de agosto de 2024

O pai pródigo

O Papa Francisco, sendo entrevistado por uma jornalista italiana, foi indagado a respeito de uma pesquisa em que um professor de ensino religioso narrou a parábola do filho pródigo e depois pediu aos alunos que fizessem uma interpretação a respeito do texto. O resultado foi totalmente desfavorável ao filho que, segundo eles, deveria ser punido severamente, desalojado da casa familiar e ser colocado em companhia dos servos. O Papa, em resposta, entendeu a reação dos jovens que fizeram sua leitura com base nos critérios impostos pela justiça dos homens e, principalmente, por entenderem que o irmão mais velho, que permaneceu trabalhando na casa do pai, sentiu-se desprestigiado em razão do tratamento dispensado ao irmão que havia regressado, após gastar toda a fortuna recebida e viver perambulando pelas ruas. E, acima de tudo, com festa. Mas o pontífice fez ver que a satisfação do pai era tamanha que não mediu esforços para bem receber o filho, cercando-o de abraços afetuosos. Nada no mundo teria mais valor para ele do que o reencontro com aquele que estava morto e reviveu, estava perdido e foi achado. Se, de um lado, figura o filho pródigo, o esbanjador que dissipou seus bens, de outro, surge o pai pródigo, aquele que é generoso e magnânimo em seu sentimento. Esta passagem bíblica ilustra e enriquece a dimensão do amor de um pai, que tomou uma decisão que, aparentemente, contraria as regras de conduta, pois está beneficiando aquele que abandonou a família, perdeu suas posses, viveu dissolutamente. Mas o regozijo do pai foi tamanho que traduziu, por si só, o perdão para todos os erros que o filho tivesse cometido.  Na realidade, é difícil dimensionar o potencial afetivo de um pai, que carrega no peito o espírito amadurecido pelo exercício da própria vida. Falar para o pai, no dia dele e a respeito dele, é sempre uma tarefa difícil, quer esteja presente ou não. O pai, geralmente é circunspecto, parece pensar com os olhos, avalia ponderadamente as situações. Deixa o pensamento fermentando em silêncio, lança seu olhar meio esgazeado e fica analisando os paradoxos do mundo, sem muito entender às vezes, mas com maturidade suficiente para ensinar que a vida não é um local onde os sonhos são distribuídos gratuitamente e sim o palco para comemorar as grandes realizações. É o momento de abrir as comportas da infância, dissipar as cortinas de fumaça e encontrar seu herói, seu paladino, com poderes quase que divino, a protegê-lo nesta aventura maravilhosa chamada vida, espaço propício para dimensionar o amor humano. Vai se lembrar da voz mansa ou altiva, dos gestos nem sempre bem distribuídos, dos passos quase sempre apressados, do silêncio que substituía as respostas, dos sábios ensinamentos que você não ligava muito e hoje você sabe que para subir a montanha a estrada é uma só e o atalho, que tanto você insistia, pode levar ao abismo. Vai se lembrar de muitos conselhos, repetitivos até, que você sempre rotulava de desnecessários, mas que, com o passar do tempo, começou a elegê-los como prioritários. Você vai pegar carona na maneira simples e prazerosa como ele encarava a vida, as gargalhadas sem fim, suas histórias e piadas envelhecidas, seu jeito franco e despojado de narrar seu assunto predileto, sua invejável calma, sem traumas. E você vai concordar com o pai do relato bíblico, que soube onde fincar as estacas de sua alegria ao aninhar o perdão como seu novo aliado. Passou ao largo do erro do filho, deu as costas para a tristeza e abriu seu coração com incontida esperança. 
domingo, 4 de agosto de 2024

Check-up genômico

O vocábulo progresso foi por muito tempo designado para atestar o avanço da humanidade em qualquer área que provocasse alteração no modo convencional do desenvolvimento humano. A própria etimologia da palavra é indicadora de um movimento para frente em busca de uma mudança que possa traduzir em benefícios mais vantajosos que a prática anterior. A tecnologia - compreendendo a utilização exclusiva do conhecimento científico colocado em prática - trouxe um plus diferenciador e quebrou a contextualização do vocábulo progresso, que girava em torno de uma evolução lenta e gradativa, para substituí-lo e introduzir sistemas, métodos e programas com a finalidade de conferir à humanidade, de forma mais rápida e eficiente, as melhores condições de vida. A revolução tecnológica, desta forma, com o placet da humanidade, cresceu a passos largos e o homem a ela se incorporou com a mais grata satisfação. Justamente por encerrar promessas e vantagens incomparáveis e incontáveis com as oferecidas até então pelo cotidiano. E a evolução é tão gigantesca e até mesmo desproporcional com a realidade do próprio mundo que, de um ano para outro, as transformações são deveras significativas. Basta ver hoje o avanço da biotecnociência e da biotecnologia na realização de teste genético para conhecer as possíveis doenças que a pessoa poderá desenvolver e, desde já, uma vez apontada a provável listagem de moléstias, poderá mudar seu estilo de vida para contrariar as previsões dos genes. Num repente, o homem tem em suas mãos um instrumento não para explorar o seu conhecimento interior, mas sim para conhecer seu próprio corpo. Trata-se do check-up genômico, com a facilidade de contratá-lo até mesmo pelo correio. O interessado recebe um kit de coleta, recolhe as células bucais e as envia para um laboratório especializado em fazer o mapeamento e leitura do genoma com a finalidade de apontar os prováveis riscos de doenças. Assim, por exemplo, analisadas as características genéticas de um bebê e apontada uma doença congênita ou alterações cromossômicas relevantes no rastreamento pré-natal, admite-se o procedimento corretivo. Se um jovem identificar os riscos de desenvolver Alzheimer ou diabetes, terá tempo suficiente para afastar as maléficas profecias e ajustar sua vida preventivamente. Da mesma forma se outro encontrar propensão para a obesidade e problemas cardiovasculares. Tudo isso porque as doenças, via de regra, já estão previamente instaladas e escritas nos genes. Cabe ao homem conhecê-las para combatê-las. De acordo com o caminhar da tecnologia, chegará um tempo em que o paciente somente consultará o médico com a apresentação do seu DNA sequenciado, oportunidade em que o profissional, sem tocá-lo e sem qualquer indagação clínica, será um intérprete das informações contidas no check-up genético e aconselhará as condutas mais corretas para se evitar a aproximação com as prováveis doenças diagnosticadas. Dá-se a impressão de que um ser robotizado é encaminhado para a revisão e, se for o caso, será providenciada a troca de equipamentos. Não há dúvida de que a decifração do código genético representa uma das maiores conquistas da humanidade. Conhecer detalhadamente cada função que o gene exerce no interior do DNA é praticamente descobrir o código da vida. A Terapia Gênica Humana (TGH) é de vital importância para solucionar o problema de milhões de pessoas vitimadas pelas doenças de cunho genético. Moser, com razão, em relação à inovação científica, foi conclusivo: "Esta virou uma espécie de melodia que soa aos ouvidos de todos como esperança de vitória definitiva sobre um mal que atormenta a humanidade de todos os tempos."1 __________ 1 Moser,Antônio. Biotecnologia e bioética: para onde vamos? Perópolis, RJ: Vozes, 2004, p. 225.
domingo, 28 de julho de 2024

A tecnologia digital e o spam suspeito

É interessante observar como a tecnologia influencia diretamente as pessoas, afetando não só o modo de vida, que experimenta um ajustamento às novas ferramentas disponibilizadas como, também, as condutas individuais e coletivas. A conclusão a ser tirada é que a inclusão digital avança rapidamente para atingir o maior número de adeptos, com a nítida intenção de ampliar cada vez mais a comunicação e, consequentemente, trazer dividendos compatíveis para todas as pessoas. Assim é, basta pausar e refletir, que graças à tecnologia dominada até o presente, os aparelhos foram evoluindo de tal forma que ingressaram no dia a dia das pessoas e passaram a fazer parte do comportamento humano, além de, devidamente programados em verdadeiro instinto de imitação, começaram a executar tarefas desde as mais simples até as mais complexas, com o intuito de facilitar o relacionamento entre as pessoas. É a inteligência artificial que vem ocupando seu espaço com a tendência de ampliar cada vez mais seu rol de tarefas.  Com toda razão advertiu Harari: À medida que a biotecnologia e o aprendizado de máquina se aprimoram, ficará mais fácil manipular as mais profundas emoções e desejos e será mais perigoso que nunca seguir seu coração.1 A capacidade criadora do ser humano, com a introdução de tecnologias que proporcionam melhores condições de vida, de bem-estar, devidamente agasalhada por um marketing sedutor, provoca também o interesse de pessoas mal intencionadas que visam obter vantagens do mesmo benefício sem, no entanto, serem merecedoras pelas regras estabelecidas na prática legal. Um simples aparelho celular é suficiente para tamanha façanha. Tanto é que, perscrutando as vantagens introduzidas pelas mais recentes tecnologias, as pessoas que circulam pelas veredas do crime conectaram-se nesse circuito e ali se instalaram, abandonando definitivamente muitas empreitadas que exigiam o comparecimento físico para a obtenção de um benefício ilícito. Passaram a ser assíduos frequentadores das redes sociais com perfil falso e procuram de todas as formas obter informações bancárias e de cartões de crédito ou ainda praticar a clonagem de WhatsApp das pessoas contactadas. Outras vezes atraem a vítima por anúncios convidativos de plataforma conhecida, mas, na realidade, as ofertas são clonadas e a pessoa efetua o pagamento sem jamais receber o produto solicitado. Com talento, engenho e criatividade, conseguem o intento desejado, em uma só chamada. Desempenham uma verdadeira mise-en-scène em que se colocam como se estivessem revelando uma proposta imperdível com aparência de verdadeira, assim assimilado pelo destinatário da mensagem. Como em um passe de mágica, reduzem o poder de compreensão da vítima, magnetizando-a e invadem até a última trincheira de sua resistência, convencendo-a de que a proposta, além de carregar veracidade, trará inestimável ganho. Fica assim fácil de constatar que as condutas consideradas ilícitas se desenvolvem como se fossem parceiras das lícitas, dificultando, desta forma, as incautas vítimas de perceberem que se trata de um golpe. É o caso, por exemplo, repetido com frequência de ligações por celular, em que a pessoa se intitula como representante de uma instituição bancária denunciando uma eventual compra fraudulenta com a utilização do cartão do cliente e já delineia o caminho a ser seguido que, fatalmente, trará sérios prejuízos ao correntista, se por ele optar. E a resposta máxima ofertada pelo aparelho celular é que se trata de spam suspeito. É inegável que, diante do dinamismo da prática criminosa, a legislação penal deve caminhar pari passu com a evolução da delinquência na área digital, elaborando tipos penais específicos. Afinal, a tecnologia tem por objetivo servir bem o homem e não acarretar desagradáveis aborrecimentos. __________ 1 Harari, Yuval Noah. 21 lições para o século 21. Tradução: Paulo Geiger. São Paulo: Companhia das Letras, 2018, p.329.
domingo, 21 de julho de 2024

Bem-estar animal

O governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas, (Republicanos) sancionou a lei 17.972/241, em vigência desde o dia 11/7 do ano em curso, que dispõe sobre a proteção, a saúde e o bem-estar na criação e na comercialização, exclusivamente de cães e gatos domésticos, no território paulista. É interessante observar que o convívio entre o homem e o animal - especificamente cão e gato - vem se estreitando cada vez mais no plano afetivo. Basta ver que os tribunais, já de forma consolidada, vêm concedendo a guarda compartilhada de animais de companhia em casos de divórcio. Percebe-se, com muita facilidade, que a convivência reflete uma harmonização saudável entre ambos, cabendo ao tutor a obrigação de cuidar não só do item alimentação, como, também da saúde e higiene do animal. A lei dos Crimes Ambientais, por sua vez, já carrega esta preocupação. Tanto é que lançou seus tentáculos protetivos no acréscimo feito ao art. 32, acarretando, em consequência, a punição agravada com relação à prática de maus-tratos, ferimentos ou mutilação a esses animais, com a aplicação da pena de reclusão de 2 a 5 anos, multa e proibição da guarda do animal. Não só. A lei 9.605/98, já referida, foi modificada a passou a considerar os animais não mais como bens móveis e sim como seres sencientes. A palavra senciência não guarda afinidade etimológica com a palavra sapiência. Ambas carregam raízes provenientes do latim. Enquanto sapiência (sapere) tem o significado de inteligência, conhecimento, senciência (sentire) tem o significado de sentir, ou na capacidade de sentir. Então, quando se fala em respeito à sensibilidade do animal, deve compreender que se trata de um ser vivo, detentor de uma vida incorporada à dignidade de sua natureza. Quer isto significar que, assim como o humano estabeleceu suas regras e quer ser bem tratado, de igual forma o animal, pelo regramento natural, quer idêntico tratamento. A lei paulista também erigiu, dentre outros fatores, a sensibilidade dos animais como um dos fundamentos da proteção da saúde e o bem-estar de cães e gatos. Nessa perspectiva, o homem, revestido da dignidade, carrega consigo uma carga de direitos e deveres que propulsiona a busca da perfeição - pelo menos é a meta primordial da humanidade - e, nessa trajetória, compreende o relacionamento com o reino animal. Se for insensível com aquele que é sensível, numa desastrosa colidência, ultrapassando os limites do humano, demasiadamente humano apregoado por Nietzsche, certamente estará descumprindo regra básica e fundamental de convívio harmônico. A lei traz em seu corpo uma interessante inovação voltada justamente para a integração entre homem e animais, inexistente nos demais textos legais, ao definir saúde única, que  "representa uma visão integrada da saúde humana, saúde animal e saúde ambiental, que reconhece o vínculo estreito entre o meio ambiente, as doenças dos animais e a saúde da população humana, empregada como base de políticas, normas e programas, que contribuam com a eficácia das ações em saúde pública e proteção do meio ambiente". Também esclarecedora a definição a respeito do agente da legalidade: Responsabilidade que recai sobre o médico-veterinário incumbido de orientar as atividades do estabelecimento visando a garantir a saúde única, o bem-estar animal e o cumprimento das exigências legais, éticas e técnicas preconizadas para a área de atuação em questão. Além disso traz inúmeras inovações, dentre elas podem ser citadas as exigências para realizar atividade econômica de criação de cães e gatos domésticos; proibição de expor animais em vitrines fechadas ou alojados em espaços que impeçam sua movimentação, amarrados ou em quaisquer condições exploratórias que lhes causem desconforto e estresse a ponto de afetar sua saúde física e/ou psicológica; a obrigatoriedade de realizar o comércio ou permuta apenas por criadores e estabelecimentos comerciais, assim cadastrados e  a proibição da distribuição de cães e gatos a título de brinde, promoção, sorteio de rifas e bingos em todo o Estado. Em boa hora a providência governamental, levando-se em consideração que o mercado pet continua em ascendência e promissor, necessitando, portando, de regras mais consistentes para sua regulação. ____________ 1 Disponível aqui.
domingo, 14 de julho de 2024

O ser humano e a lei

O tema ora proposto, apesar de abrangente, encerra uma discussão mais cartesiana e fincada em alicerces filosóficos, pois o título, por si só, é indicativo de altas indagações. Mas não impede, porém, que seja feita uma abordagem mais amena e com a visão canalizada para a tutela legislativa estatal em favor do ser humano, mirando a lei como fator educativo e também de prevenção de segurança. A pessoa humana, pelas suas próprias características, difere dos demais seres naturais. A volição, que integra o conjunto chamado pessoa, transmite a voluntariedade e faz o homem escolher e responder pelos seus atos, dotando-o de inteligência e capacitando-o para se relacionar com os outros seres. Cada homem é uma unidade, insubstituível na dimensão estritamente pessoal de sua vida, quer seja na escolha do parceiro, na opção vocacional, na conduta social. Não se qualifica o ser humano como uma verdade corporal, orgânica, racional, biológica ou sociológica. O ser humano é a síntese da representatividade da própria vida, que lhe confere o potencial para realizar suas aspirações. A realização individual do cidadão é fruto de seu esforço e determinação, visando sempre atingir patamares de um bom viver que o propulsiona em busca da felicidade. Ultrapassa as raias da individualidade biológica e se firma como uma realidade em razão da sua potencialidade racional. Mas, não pode realizar sua vocação gregária distante das proteções elementares que o Estado confere a todas as pessoas, como corolário dos princípios da isonomia e justiça. O homem, dentro de sua racionalidade, deve se organizar de forma inteligente visando buscar o espaço que lhe for mais conveniente e digno de sua condição, como o Supremo Bem referido por Aristóteles, sem prejuízo de caminhar para sua realização e perfeição. Tal regra não seria utópica se todas as pessoas estivessem em igualdade de condições, aparelhadas com as mesmas armas. Toda pessoa humana contém, na sua imensa grandeza, o sentido do próprio universo assim como é depositária de todo valor da humanidade. Cada uma passa a ser o todo e não parte do todo. O Direito mundial atual desenvolve uma cultura diferenciada com o intuito de proteger o indivíduo no âmbito da sociedade e a preocupação de proporcionar a ele uma vida mais digna, com qualidade e conteúdo, no caminho da realização pessoal, familiar, social e profissional. Prova disso é a política do bem estar social proclamada na Constituição Brasileira e relacionada aos serviços públicos nas áreas da saúde, educação, segurança, alimentação, moradia, trabalho, além daquelas difusas que vão aflorando de acordo com a necessidade da sociedade. O homem ocupa seu espaço próprio, com seu corpo e sua intimidade delimitados por ele e garantidos pelo reconhecimento dos direitos de personalidade, pensamento que vai ao encontro do de Kant, no sentido de que, na condição de ser pensante e no exercício público de sua razão, encontram-se presentes a maioridade intelectual e o exercício pleno da cidadania. Busca-se na nova dimensão do Direito dar ênfase para se estabelecer a igualdade entre as pessoas, concebendo o mesmo tratamento e respeito, porém reconhecendo as desigualdades funcionais, sociais e econômicas. Para incorporar o animal político, como define Rousseau, o humano necessita receber a tutela necessária contra agressões e ingerências em sua intimidade, protegendo-o contra qualquer abuso, em particular do poder estatal, e deve participar ativamente do processo de escolha das normas que irão regular sua conduta no meio social para a formação da vontade geral e ser detentor de condições financeiras necessárias para a satisfação das exigências fundamentais da vida material, para o gozo de uma vida digna e prezar, acima de tudo, por sua liberdade. Neste mesmo diapasão segue a proposta constitucional quando instituiu o Estado democrático de direito com a finalidade de "...assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos...", como está descrito no Preâmbulo da Constituição Federal. A lei, desta forma, pelo seu conteúdo erga omnes, busca atingir o bem comum que passa a ser compartilhado entre as pessoas, que não são catalogadas como cidadãos de primeira ou segunda categoria, mas sim iguais nos relacionamentos humanos. A lei carrega como destinatário o bem comum. Stork e EchevarrÍa cunharam uma definição que vem ao encontro deste pensamento: A lei não faz distinções entre uns e outros: A base é o que os homens têm em comum e os deveres de uns para com os outros que surgem daí. A lei, desse ponto de vista é o justo.1 ___________ 1 Stork, Ricardo Yepes; Echevarria, Aranguren Javier. Fundamentos de Antropologia: um ideal da excelência humana. Tradução Patricia Carol Dwyer. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência "Raimundo Lúlio", 2005, p. 332.
O sistema público de saúde brasileiro, o SUS, vem articulado com base em políticas públicas para estabelecer as metas e diretrizes dos prestadores dos cuidados de saúde, observando sempre a necessidade e a especificidade de cada região. É cediço e, cada vez mais acentuado, que o direito à saúde tem como destinatário não somente o indivíduo, mas, também, a coletividade, sendo que, em ambos os casos, a responsabilidade é da sociedade e do Estado e ao último, conforme determinação constitucional, recai a obrigação de conferir "políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e outros agravos", deixando bem explicitado o acesso de todos aos cuidados de saúde. Firmaram-se, desta forma, no âmbito da legislação que criou o Sistema Único de Saúde, (lei 8.080/90), os princípios da universalidade, da igualdade, da participação social e da equidade, não só no atendimento, como também na distribuição dos recursos disponíveis, observando sempre as necessidades especiais de grupos e pessoas com vulnerabilidade, fazendo, nestes casos, prevalecer a regra da diferenciação positiva: Mais cuidado a quem mais dele necessita.  A individualidade, neste caso, tendo a vida humana como baluarte, fala mais alto e derruba qualquer outra preferência, sem desconsiderar que a sociedade parte do indivíduo para se articular e formar seu todo. A prioridade de atendimento desloca-se para aquele que tem mais necessidade em razão de sua vulnerabilidade e dos determinantes sociais.  Todo sistema estruturado depende de uma organização bem articulada entre as partes. Com o SUS não é diferente. A Atenção Primária à saúde é a porta de entrada preferencial ao sistema, que tem como a principal reponsabilidade as ações de vigilância, prevenção, promoção e cuidado em saúde como uma proposta de envidar várias ações tanto para a pessoa isoladamente como, também, para a comunidade.  As Unidades Básicas procuram instalar-se em região estratégica e de fácil acesso para a realização de atendimentos e serviços - local onde se posiciona para acolher as demandas relacionadas com a saúde desde as mais singelas até as mais complexas - com a função de fazer o atendimento necessário, avaliar o risco e estabelecer o fluxo de cuidado continuado ao cidadão ou encaminhá-lo para outros níveis de atenção, de acordo com a complexidade do caso. São inúmeros serviços prestados, podendo, em um rol exemplificativo, descrevê-los como o acolhimento inicial com a classificação de risco, consultas médicas e de saúde bucal, cuidados voltados para a saúde da criança e do adolescente, do adulto e do idoso, aplicação de vacinas, curativos, prescrição de medicamento, visitas domiciliares e em escolas pelos agentes de saúde para fazer os contatos necessários, entender as necessidades da população local e, até mesmo,  idealizar a formação de grupos  com a finalidade de desenvolver a educação em saúde.  A ESF - Estratégia Saúde da Família, por exemplo, que consiste em um modelo de atenção integral através de participação multiprofissional de agentes comunitários da saúde, enfermeiros, médicos e dentistas,  para desenvolver ações junto às famílias que residem no território, mantendo contato desde o recém-nascido até o idoso, oferecendo os cuidados necessários em todas as faixas etárias, conferindo, desta forma, uma desejada qualidade de vida aos usuários, focando na prevenção de agravos e acompanhamento das condições crônicas visando reduzir as hospitalizações desnecessárias. Daí que a Atenção Básica tem como essência cuidar integralmente de pessoas e não somente da doença, ofertando atendimento que vise à prevenção de doenças, de promoção da saúde, assim como o tratamento e controle de doenças agudas e infecciosas. Vem revestida dos princípios da acessibilidade, do vínculo do agente com a comunidade em que serve, da integralidade, da resolutividade e até mesmo da humanização, conforme recomendação da OMS - Organização Mundial da Saúde, deixando bem claro que se trata de um trabalho estratégico para prestar os melhores cuidados do SUS à população. Na realidade, o atendimento à saúde - em nossa Constituição consagrado como direito fundamental e essencial - seguiu a determinação da Declaração Universal dos Direitos Humanos, in verbis: Todo ser humano tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis [...]. A OMS, por sua vez, define saúde como um estado de completo bem-estar físico mental e social e não apenas a ausência de doenças. Assim, os programas de saúde desenvolvidos pela Atenção Primária, tanto no contexto individual como coletivo, são de vital importância, pois uma de suas metas é justamente promover o bem comum com a diminuição dos riscos para a saúde, além do que cumpre o afirmativo constitucional referente à dignidade da pessoa humana. 
A discussão jurídica sediada no Supremo Tribunal Federal, a respeito da inconstitucionalidade do artigo 28 da Lei de Drogas - locus que abrigou o tema da descriminalização do porte e consumo pessoal de maconha - vem absorvendo a atenção não só dos juristas, como também de toda comunidade brasileira. Trata-se de um tema complexo e que exige uma reflexão social de intensa responsabilidade. Principalmente no Brasil que, de uma forma até amadora, sem ter ainda uma visão crítica do tema, assiste ao desenrolar dos debates de forma atônita, tanto com relação à decisão a ser proferida pela Suprema Corte, como, também, pelo Congresso Nacional que instalou comissão para analisar a PEC (proposta de emenda à Constituição) das Drogas, que criminaliza o porte. A lei 11.343, que define os crimes de drogas, foi sancionada em agosto de 2006.  Instituiu o Sistema Nacional de Políticas sobre Drogas - Sisnad - e, dentre outras propostas, prescreveu medidas para prevenção do uso indevido, atenção e reinserção social de usuários e dependentes. Referida Lei, com relação aos usuários, considera ilícita a conduta do agente, mas prevê apenas aplicação de medidas socioeducativas, sem qualquer alcance das penas restritivas de liberdade. Esta nova roupagem dada à conduta do usuário traz algumas dificuldades para a compreensão do leigo. A cultura do povo brasileiro é, por tradição, fincada no processo, pena e prisão. A prisão, ou algo que lhe que lhe equivalha, deve prevalecer na avaliação do cidadão. O direito penal moderno, porém, está traçando novos caminhos de acordo com o pensamento minimalista, que se caracteriza pela intervenção mínima do Direito Penal. Tanto é que, pela nova leitura penal, avalia-se a conduta do infrator pelo dano causado à sociedade. Não sendo relevante, a função persecutória do Estado não se mobilizará. Há países que, em relação ao uso de drogas, entendem que se compara a uma autolesão que, de regra, não é punível, pois não afeta nenhum bem jurídico alheio e sim o exercício de um direito localizado na esfera da privacidade do agente. Para outros, o problema é da competência da saúde pública e não da polícia e Judiciário. O Direito Penal Brasileiro, paulatinamente, vem encampando tais princípios. Basta ver a introdução à Lei dos Juizados Especiais Criminais, onde não há aplicação de penas restritivas de liberdade, permitindo a transação penal e a suspensão condicional do processo, sem qualquer sequela para o autor da infração. Pela referida Lei de Drogas, com relação ao usuário, em interpretação crítica, nasce uma figura anômala de crime. Opera-se uma descriminalização, mas continua ainda o caráter ilícito do fato. Reprime a conduta de quem adquire, guarda, tem em depósito, porta ou traz consigo substância entorpecente, para uso próprio, e estabelece as seguintes penas: a) advertência sobre os efeitos das drogas; b) prestação de serviços à comunidade; c) medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo. A legislação pátria segue a sinalização das mais avançadas no mundo a respeito do tema. A decisão do Supremo Tribunal Federal não permite a liberação de uso de maconha e sim a descriminalização. A brusca retirada da figura delitiva do dependente da legislação penal não põe fim à proibição. Os ministros da Suprema Corte também divergiram a respeito durante o julgamento, sendo, por alguns, considerado um ato ilícito não penal, de cunho administrativo, e por outros, uma verdadeira infração penal. A divergência a respeito da descriminalização da maconha está presente também em todas as classes sociais. De um lado, pondera-se que o dependente não é criminoso e que necessita de tratamento adequado para estancar seu vício, uma vez que a indicação terapêutica é mais aconselhável do que a punitiva. De outro, o dependente é visto como um perigo à sociedade, pois em razão de sua conduta coloca em risco a segurança, saúde e vida das pessoas, além de ser o propulsor do crime maior, que é o tráfico de drogas. Na segunda etapa do referido julgamento a Corte Maior decidiu e fixou a quantidade de até 40 gramas ou seis plantas fêmeas para diferenciar o critério entre o traficante e o usuário. Insta observar que a PEC das Drogas, apresentada pelo presidente do Senado, que recebeu a aprovação da maioria dos senadores e que já conta com o parecer favorável da CCJ (Comissão de Constituição e Justiça) da Câmara dos Deputados, criminaliza o porte e posse de drogas, independentemente da quantidade e da substância.
domingo, 23 de junho de 2024

Alteração na lei Maria da Penha

A lei, no âmbito de uma definição ampla e simplificada no sistema brasileiro, visa normatizar a convivência e o comportamento humano tendo como parâmetro as diretrizes da Carta Magna, podendo abordar variados temas, com o objetivo de proporcionar o bem-estar público, a quem deve servir com as devidas adaptações das necessidades sempre dinâmicas da natureza humana, com a concretização do Estado Democrático de Direito. A lei Maria da Penha, por sua vez, pode ser considerada em seu corpo como heterotópica porque descreve não só a tipificação da violência contra a mulher, quer seja ela física, psicológica, sexual, patrimonial ou moral, mas alcança repercussões relacionadas com o Direito Civil, Previdenciário, Trabalhista e outras áreas. Percebe-se, pelo rápido apanhado feito, que a lei Maria da Penha rechaça toda iniciativa de romper o núcleo duro que a norteou. Referida lei atendeu a determinação contida no § 8º do art. 226 da Constituição Federal, criando toda uma estrutura para um combate eficiente à violência familiar, com sanções mais rigorosas e com o mínimo de benefícios processuais, além de estabelecer medidas de assistência e proteção às mulheres vítimas. Tamanha a repercussão da Lei que gerou o tipo penal específico do feminicídio, que buscou, dentre outras causas, a motivação da violência doméstica e familiar, ex vi da lei 13.104/15, que fez o acréscimo no art. 121, § 2º-A do Código Penal. A lei Maria da Penha vem produzindo, de forma reiterada, inúmeras alterações em seu texto originário, introduzindo, ao longo do tempo, verdadeiros tentáculos flexíveis, com a função de fechar o cerco protetivo às vítimas que se encontram em situação de violência doméstica e familiar. Dificilmente uma lei consegue tamanha façanha. Talvez a explicação resida na continuidade delitiva doméstica, contando, inclusive, por exemplo, as últimas alterações relacionadas com a imediata apreensão da arma de fogo em poder do agressor e a garantia de prioridade nos processos judiciais de separação e divórcio em que a mulher figure como vítima de violência doméstica. Assim é de se concluir, antecipadamente, que a lei Maria da Penha (11.340/06), continua a produzir efeitos em todas as áreas do Direito, de forma a encarar a triste realidade: A crescente violência doméstica, familiar, encontrada nos lares de diferentes classes sociais brasileiras. Além do que, pela sua extensão protetiva, consegue tutelar direitos de outras pessoas que se encontram em situação de vulnerabilidade doméstica, mesmo não sendo mulheres. Tanto é que a recente lei 14.887/24 alterou a lei Maria da Penha em seu art. 9º, que passou a ter a seguinte redação: A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada em caráter prioritário no SUS e no Susp - Sistema Único de Segurança Pública, de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na lei 8.742, de 7/12/93 (lei orgânica da assistência social), e em outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente, quando for o caso. Além disso a novatio legis modificou obliquamente a lei que trata de cirurgia reparadora das sequelas provenientes de agressão doméstica (lei 13.239/15), conferindo prioridade para o procedimento com os casos da mesma gravidade. No texto originário da lei Maria da Penha já constava a previsão de atendimento à mulher vítima de violência doméstica e que recebeu lesões. Na alteração comentada fica estabelecida a prioridade no atendimento social, psicológico e médico, assim como para a cirurgia reparadora de lesões e sequelas provocadas por atos de violência doméstica. Desta forma, tanto os hospitais como os centros de saúde ficam obrigados a comunicar à mulher que está sendo atendida por lesões provocadas no âmbito da lei Maria da Penha, o acesso gratuito à cirurgia plástica reparadora.  Além do que, é importante reprisar, a lei 3.871/09, que modificou o art. 9º da lei Maria da Penha, obriga o agressor a ressarcir os danos causados, inclusive o ressarcimento ao SUS, pelos custos do atendimento prestado à vítima da violência. De qualquer modo, resta evidente que a lei Maria da Penha ainda continua gerando novos fatos sociais e produzindo consequências por vezes inusitadas, que propiciarão novas intervenções dos Poderes Legislativo e Judiciário para avaliar sua correta e eficiente incidência.
domingo, 16 de junho de 2024

Adesão às pesquisas com seres humanos

O homem reflete e se locupleta de energia canalizadora para guiar seus passos, além de carregar um dinamismo persistente que irá girar como um caleidoscópio em cada fase de sua vida. Recebe influências de várias ordens e decidirá, dentro de um critério de conveniência, qual a opção que adotará para exercer sua vontade livre para perseguir os objetivos traçados em sua vida. A autonomia da vontade da pessoa surge como corolário do principium individuationis e recebe o assentimento da bioética, que a erigiu como um dos princípios basilares. A corporeidade vem a expressar a realidade singular do homem. É ele proprietário de um patrimônio chamado corpo humano, detentor de seus atos, administrador deste fascinante latifúndio, que vem revestido de uma tutela especial que lhe confere personalidade e o torna sujeito de direitos e obrigações. Ao mesmo tempo em que é um patrimônio individualizado, sofre ingerências a respeito de sua plena utilização. É interessante observar que a capacidade de consentir estabelecida no Direito Civil pátrio, teve origem no Direito Médico. Miranda, com sua perspicácia doutrinária insuperável, faz ver: "A noção advém do Direito Médico de diferentes países para marcar a linha de limite entre as intervenções médicas praticadas em vista de um ato de autodeterminação do paciente e aquelas praticadas com a assistência ou mediante representação do legalmente responsável pelo paciente. Seu objeto específico é o processo de tomada de decisões sobre os cuidados para com a saúde, globalmente considerados, abrangendo, portanto, não apenas os casos de autorização para participar de pesquisas na área da saúde, mas quaisquer atos de lícita disposição do próprio corpo". 1 A lei 14.874/24 deixa bem nítido que o participante de pesquisa tem seu acesso condicionado à adesão a ser ofertada por ele ou pelo seu representante legal, sem qualquer remuneração, a não ser o ressarcimento pelas despesas de transporte e alimentação de ambos, mediante a assinatura do TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Exige-se que tal documento seja escrito em linguagem de fácil compreensão, mais próximo do falar leigo e não do profissional, livre de vícios, subordinação ou intimidação, após esclarecimento completo e pormenorizado sobre a natureza da pesquisa, seus objetivos, métodos, benefícios previstos, tanto os atuais como os potenciais, individuais e coletivos, para que não paire qualquer dúvida a respeito da proposta do estudo, principalmente daqueles que se encontram em situação de vulnerabilidade e que merecem tutela diferenciada, na pessoa de seu representante legal. Sem olvidar ainda que o colaborador é detentor do direito de fazer as perguntas que julgar convenientes, além do que, juntamente com seu representante legal, poderá retirar seu consentimento a qualquer tempo, independentemente de justificativa, sem que sobre ele recaia qualquer ônus ou prejuízo. Ademais, durante o transcorrer da pesquisa, será garantido o anonimato, assim como o sigilo das informações, em razão da privacidade ser considerada de foro íntimo pelo legislador. Tamanha a importância do termo de adesão que, se o participante de pesquisa ou o seu representante legal seja incapaz de ler, será convocada uma testemunha imparcial, que acompanhará todo o ato da leitura e de eventuais esclarecimentos do TCLE e, após o consentimento verbal do participante ou de seu responsável, irá datar, escrever seu nome de forma legível e assinar o termo legal. Referido documento traça o diferencial entre a relação médico-paciente e a relação que se estabelece entre os participantes de pesquisas. No primeiro caso trata-se de uma relação linear, oportunidade em que ambos irão discutir a respeito de uma situação clínica envolvendo um procedimento cirúrgico ou terapêutico, que só será realizado com a parceria entre ambos. Neste caso tem lugar o Termo de Consentimento Informado. No segundo, ao contrário, há uma participação triangular, assim disposta: O responsável pela condução do estudo da instituição ou do centro de pesquisa; O participante da pesquisa que, por sua própria manifestação ou pela adesão de seu representante legal, concorda voluntariamente com o estudo para o qual está sendo recrutado; Instância de análise ética em pesquisa, representada pelos Comitês de Ética em Pesquisa, com a finalidade de garantir a segurança e o bem estar do participante. _________ 1 Miranda, Pontes. Tratado de Direito Privado. Introdução: pessoas físicas e jurídicas, atualizado por Judith Martins-Costa... [et al.] Editora Revista dos Tribunais, 2012 (coleção tratado de direito privado: parte geral; 1) p.251.
A lei 14.874/24, que trata sobre a pesquisa com seres humanos e institui o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos, como acontece com certa frequência em matéria legislativa atual, define cerca de 56 termos técnicos e legais, com a finalidade de não só de orientar o leitor, como, também, oferecer a ele melhores condições de compreensão para fazer uma leitura condizente com o espírito da norma.  Um dos termos constantes do rol é justamente a vulnerabilidade no campo da pesquisa, que ganhou um espaço próprio no texto legal e assim vem explicitado no art. 2º, LVI:  É "a condição na qual pessoa ou grupo de pessoas tenha reduzida a capacidade de tomar decisões e de opor resistência na situação de pesquisa, em decorrência de fatores individuais, psicológicos, econômicos, culturais, sociais ou políticos, observado, em qualquer caso, o consentimento descrito para situações de vulnerabilidade." Vulnerável, termo de procedência latina, vulnerabilis, em sua origem vem a significar a lesão, corte ou ferida exposta, sem cicatrização, ferida sangrenta com sérios riscos de infecção, machucadura. Demonstra sempre a incapacidade ou a fragilidade de alguém, motivada por circunstâncias especiais e, na regra geral, vem sempre associada a uma doença, episódica ou crônica, inerente à fragilidade humana. A mitologia grega relata que Tétis, mãe de Aquiles, untou o corpo do filho com ambrosia e o mane sobre o fogo. Após, mergulhou-o no rio Estige com a intenção de fazê-lo invulnerável. Segurou-o, porém, por um calcanhar que não foi tocado pela água, e, dessa forma, ficou desprotegido. Foi morto por Páris, que o atingiu com uma flechada no calcanhar vulnerável. É verdadeira a premissa de que toda pessoa humana é vulnerável, daí a existência da própria lei para realizar a tutela necessária. A proteção legal passa a ser a lente pela qual possa ser visualizado aquele que se apresenta como o mais frágil, necessitando de cuidados diferenciados. Pode-se dizer, genericamente, que todo indivíduo tem sua vulnerabilidade intrínseca, originária, criada pela sua própria insegurança ou pelos conflitos sociais geradores de tantos problemas que afetam a mente, em razão da evolução natural da própria vida. Além dessa, outras pessoas são afetadas por vulnerabilidades circunstanciais, abrangendo a pobreza, as doenças crônicas e endêmicas, falta de acesso à educação, alijamento dos mais comezinhos direitos de cidadania, a própria pandemia, que causou tanto transtorno de todas as ordens para a população, as diversas causas de estresses, de fobias, de depressões, são enfermidades produzidas pela sociedade moderna e, na medida em que vão sendo contida, outras assumem as posturas de novas agressões comportamentais. A sociedade, desta forma, jamais atingirá sua perfeição em razão da imperfeição do próprio homem. É o círculo vicioso por onde caminha a humanidade.  O Comitê de Ética em Pesquisa tem a incumbência legal de assegurar os direitos, a segurança e o bem-estar dos participantes da pesquisa, especialmente dos participantes em situação de vulnerabilidade. Retornando à lei, que se refere à pessoa em sua individualidade como também a grupos de pessoas com capacidade reduzida, ainda que circunstancialmente, figura o Comitê de Ética em Pesquisa como o detentor da incumbência legal de assegurar os direitos, a segurança e o bem-estar dos participantes da pesquisa, especialmente dos participantes em situação de vulnerabilidade.  E é sabido que a participação de qualquer pessoa depende de sua própria volição, ou de seu representante legal, ambas materializadas pelo TCLE - Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Em se tratando da especificidade prevista no art. 24 da lei 14.874/24, o TCLE deve ser assinado pelo representante legal ou até mesmo constituído judicialmente para tal mister, desde que seja pessoa capaz e que reúna condições de expressar os pontos de vista e interesses dos indivíduos que participam da pesquisa. É interessante observar que quando o estudo for relacionado com população em situação de vulnerabilidade, o representante legal fica obrigado a prestar informações aos participantes da pesquisa, quando for possível ou pelo menos na medida de sua capacidade de compreensão, não desprezando, em hipótese alguma, sua decisão expressa no termo de assentimento. Referido documento corresponde à anuência da criança, do adolescente ou do indivíduo legalmente incapaz em participar voluntariamente da pesquisa, após ter sido informado e esclarecido sobre todos os aspectos relevantes de sua participação, na medida de sua capacidade de compreensão e de acordo com suas singularidades, sem prejuízo do necessário consentimento dos responsáveis legais. Percebe-se, desta forma, que a lei, além de ampliar a conceituação de vulnerabilidade, ofertou à pessoa nesta situação tutela especial e garantidora.
domingo, 2 de junho de 2024

Nova lei de pesquisa com seres humanos

O homem é um ser em constante evolução. Desde quando se conscientizou de sua capacidade de pensar, passou a ser um pesquisador de si mesmo, de seu próprio grupo social, de seu ambiente, procurando sempre novos caminhos que possam facilitar sua empreitada terrena. Os avanços em todas as áreas foram se multiplicando e com eles a humanidade foi se adaptando, muitas vezes com tempo diminuto para absorver determinada inovação que carrega uma utilidade social, pois, na sequência, outra se apresentava mais aperfeiçoada. Desta forma, não só o homem, mas também tudo ligado diretamente à sua vida, evoluiu. O avanço na área biomédica exige a realização de pesquisas envolvendo seres humanos e, com a promoção do princípio da dignidade, passou a carregar em seus braços uma preocupação ética, reclamando uma regulamentação condizente para que o homem seja visto como sujeito de pesquisa e não meramente um objeto, uma cobaia, como demonstraram as experiências anteriores durante as guerras mundiais. Os problemas éticos que foram surgindo ao longo das experiências realizadas com seres humanos consistiram em impor limites na própria pesquisa, visando não expor os colaboradores a riscos e danos desnecessários e sim atingir uma situação de equilíbrio, onde os riscos devem ser examinados de acordo com os benefícios visados, levando-se em consideração sempre a dignidade do ser humano. Daí que o senso ético humanitário criou a limitação ética do desenvolvimento tecnocientífico. Permitiu a realização de pesquisas envolvendo seres humanos como sujeitos colaboradores espontâneos, porém, com regras seguras para sua participação. Após a Constituição Brasileira sinalizar positivamente o desenvolvimento científico e as pesquisas, o Conselho Nacional de Saúde, no ano de 1995, antevendo a necessidade de estabelecer regras a respeito das pesquisas com participação de seres humanos, aprovou as "Diretrizes e Normas Regulamentadoras de Pesquisas Envolvendo Seres Humanos", consubstanciadas na resolução CNS 196/96. O foco principal da legislação era realizar a avaliação e adequação dos aspectos éticos dos projetos que envolvem seres humanos. Criou, na mesma oportunidade, os CEPs - Comitês de Ética em Pesquisa e a CONEP - Comissão Nacional de Ética em Pesquisa. Enquanto o primeiro órgão é de instância inferior, regionalizado, responsável pela aprovação inicial dos aspectos éticos de uma pesquisa, o segundo, em instância superior, colegiado, de natureza consultiva e deliberativa, vinculado ao Conselho Nacional de Saúde, tem por missão apreciar, aprovar e homologar os projetos de pesquisas encaminhados pelos CEPs. Referida Resolução - que em seu próprio corpo apregoava revisões periódicas de acordo com a evolução da ciência e a necessidade ética - foi revogada pela resolução 466/2012, que trata de normas regulamentadoras de pesquisas envolvendo seres humanos e, acima de tudo, incorpora, sob a ótica do indivíduo e das coletividades, referenciais da bioética, tais como, autonomia, não maleficência, beneficência, justiça e equidade, dentre outros, e visa a assegurar os direitos e deveres que dizem respeito aos participantes da pesquisa, à comunidade científica e ao Estado. E agora, após aguardar por cerca de nove anos, foi sancionada a lei 14.874/24, que entrará em vigência após 90 dias de sua publicação oficial, e que estabelece as regras e diretrizes para a condução de pesquisas envolvendo seres humanos por instituições públicas ou privadas, além de instituir o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa com Seres Humanos. Algumas alterações foram introduzidas pela novatio legis, assim como atualizados alguns institutos, dentre eles o Comitê de Ética em Pesquisa que, em sua estrutura original, procurava agregar os mais diferentes segmentos da comunidade, recrutando médicos, psicólogos, juristas, religiosos, bioeticistas, cientistas, pessoas que exerçam lideranças na comunidade, pacientes e quaisquer outros que tenham condições de fazer uma leitura atrelada à conveniência do ser humano. Assim como os jurados são escolhidos dentre cidadãos de notória idoneidade para a execução de um serviço público relevante, sem qualquer remuneração, os membros do Comitê serão recrutados de acordo com sua competência e projeção em sua área de saber para desenvolver um trabalho gratuito, também revestido de relevância social. Assim, cada instituição que realizar pesquisas terá obrigatoriamente seu núcleo de apreciação dos projetos a serem desenvolvidos, de acordo não só com o pensamento bioético abrangente, mas também tendo como escopo a relevância local. Muitas vezes um determinado projeto guarda repercussão regional muito mais acentuada do que em outra e aí o Comitê é chamado para definir a respeito da conveniência ou não do estudo. Embora as tarefas dos Ceps sejam ainda desconhecidas pela sociedade, que por falta de informação e divulgação não tem acesso a essa importante função pública, as decisões ali tomadas, quer sejam aprovando determinado estudo, quer sejam rejeitando, são representativas dos anseios da sociedade local, que, de certa forma, outorgou aos membros poderes para deliberar em seu nome. Pela nova lei, o Comitê de Ética em Pesquisa se apresenta como um colegiado vinculado à instituição que realiza a pesquisa, de natureza pública ou privada, de composição interdisciplinar, constituído de membros das áreas médica, científica e não científica, de caráter consultivo e deliberativo, que atua de forma independente e autônoma, para assegurar a proteção dos direitos, da segurança e do bem-estar dos participantes da pesquisa, antes e no decorrer da pesquisa, mediante análise, revisão e aprovação ética dos protocolos de pesquisa e de suas emendas, bem como dos métodos e materiais a serem usados para obter e documentar o consentimento livre e esclarecido dos participantes da pesquisa. Uma diferenciação, no entanto, foi apontada pela própria lei. Há o Comitê de Ética em Pesquisa Credenciado, representado pelo colegiado definido no inciso X, do art. 2º da lei, que tenha sido credenciado, na forma de regulamento, pela instância nacional de ética em pesquisa, para análise das pesquisas de risco baixo e moderado. E há, também, o Comitê de Ética em Pesquisa Acreditado, que é o colegiado definido no mesmo artigo que, além de ter sido credenciado, tenha sido acreditado, na forma de regulamento, pela instância nacional de ética em pesquisa, para análise das pesquisas de risco elevado, podendo ainda realizar análise das pesquisas de risco baixo e moderado. Nesta linha de pensamento é de se concluir que a instância de análise ética das pesquisas, de responsabilidade exclusiva do CEP, vem composta por uma equipe interdisciplinar, nas áreas médica, científica e não científica, de modo a assegurar que, no conjunto, os membros tenham a qualificação e a experiência necessárias para analisar todos os aspectos inerentes à pesquisa, inclusive os aspectos médicos, científicos, éticos e os relacionados às boas práticas clínicas. De forma abreviada, tem por finalidade garantir a dignidade, a segurança e o bem-estar do participante.
A prisão em flagrante delito, apesar de sua pertinência jurídica se encontrar disciplinada pelo art. 302 de Código de Processo Penal, apresenta-se como um tema que frequenta as conversas populares, principalmente quando ocorre um crime de repulsa comunitária com a imediata detenção do seu autor. O crivo popular fica vigilante e muitas vezes encontra decepção, quer seja porque o autor não pode ser preso coercitivamente, oportunidade em que o flagrante será relaxado, ou, por outras razões, receberá a concessão do benefício da liberdade provisória, ou até mesmo sairá livre com o pagamento de fiança. É interessante observar que a população brasileira, em sua grande maioria, após tomar conhecimento da prática de alguns crimes que tenham alardeamento público com divulgação pelas mídias, indaga com muito interesse a respeito da prisão antecipada e a pena a ser aplicada, em caso de condenação, como provável herança das o rdenações do reino de Portugal, em que o autor que lesava sobremaneira a comunidade devia ser levado à prisão, sem chances de liberdade ou de substituir o gravame por outra medida eficaz.  Os princípios filosóficos que nortearam as declarações universais dos direitos dos homens e que se alojaram em nossa Constituição como o reconhecimento do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal, fazem ver que a liberdade é conteúdo programático indissociável dos direitos fundamentais do homem e se insere de forma absoluta entre os postulados do Estado de Direito. Com fundamento nesse sistema de controle, a liberdade do cidadão poderá sim ser cerceada pelo Estado, desde que sejam cumpridas as regras estabelecidas constitucionalmente.  Quando se trata de prisão flagrancial, exige a concorrência de pelo menos uma das modalidades previstas no art. 302 do CPP. Assim só poderá ser preso, resumidamente: Quem está cometendo ou acaba de cometer a infração penal; For perseguido, logo após o crime; For encontrado, logo depois. Percebe-se, propositadamente, que a premissa do legislador vem elencada em escala valorativa decrescente de credibilidade: aponta os casos de verdadeiros flagrantes nas duas primeiras situações, quer dizer não há nenhuma dúvida com relação à certeza visual do cometimento do crime; já nas duas outras elege o quase-flagrante ou flagrante presumido para dar validade ao ato coercitivo. Sem tais requisitos não há que se falar em prisão em flagrante. Das prisões provisórias, a realizada em flagrante delito é a que reúne os melhores requisitos de credibilidade e dão o suporte necessário para a realização do ato coercitivo. A etimologia latina flagrans dá a entender aquilo que está crepitando, pegando fogo e é visto com muita clareza. Flagrante, portanto, vem a ser a certeza visual da prática de um crime, não deixando pairar nenhuma dúvida a respeito da autoria. Tamanha é sua importância na legislação processual que a autoridade tem o dever de realizar a prisão e o particular, por sua vez, a faculdade, como longa manus do Estado, para poder praticar o ato detentivo, desde que sejam obedecidos os lapsos temporais anunciados acima.  Isto quer dizer que a prisão em flagrante oferece, a um só tempo, a autoria e a materialidade do crime, circunstâncias que somente seriam perquiridas em inquérito policial instaurado pela autoridade competente. Ocorre, no entanto, que, apesar de ser a prisão em flagrante delito a mais recomendável - por oferecer de pronto a autoria e a materialidade necessárias para o início da persecução penal, fazendo prevalecer a certeza visual do cometimento do crime na prisão de constatação - a prisão preventiva, pela sua própria caracterização processual, que representa uma prévia análise laboratorial seguida de uma fundamentação convincente e obrigatória, surge como sendo a predileta na legislação brasileira. Tanto é que referida prisão vai exigir um debruçar engenhoso e cauteloso para fazer incidir os requisitos de necessidade e conveniência da decretação da segregação provisória. Daí que, em muitos casos, a pessoa flagrada cometendo um crime é colocada em liberdade e nem mesmo será decretada sua prisão preventiva, por ser desnecessária e inconveniente. 
domingo, 19 de maio de 2024

Ainda o golpe do bilhete premiado

Um casal, previamente ajustado, abordou uma idosa e, com o intuito de ludibriá-la, narrou que estava de posse de um bilhete premiado da loteria federal, no valor de R$ 11 milhões, convencendo-a a comprar o bilhete por R$ 316 mil. Tudo começou quando uma mulher abordou a idosa indagando a respeito de um determinado endereço, oportunidade em que a conversa chegou até o bilhete que trazia consigo, apontado como o premiado. Um rapaz, que se encontrava próximo, ouviu a conversa e demonstrou interesse em adquiri-lo. Para tanto, propôs à incauta idosa que concretizassem a compra em sociedade, metade cada um. O que foi feito pela vítima que entregou a quantia já referida.1 Esta modalidade de estelionato, apesar de repetitiva, consegue atingir seus objetivos com certa frequência. Geralmente são dois agentes que participam da encenação. Um fica encarregado de abordar determinada pessoa e a ela revela, após embrenhar em assuntos corriqueiros, ser portadora de um bilhete premiado, mas tem receio de ser enganado ao solicitar seu prêmio, que representa uma razoável quantia. O outro, justificando que se encontrava bem próximo e ter ouvido toda a conversa, de forma desembaraçada e com muita iniciativa, com aparência de negociante esperto, com admirável eloquência, entra em cena na sequência. Confirma o prêmio e faz ver à incauta vítima que se ela oferecer uma determinada quantia, ganhará a confiança do dono do bilhete e dele se apossará, podendo recebê-lo posteriormente em seu valor integral. Assim é feito, o dinheiro é entregue e somente após a vítima percebe a trama ardilosa. Mas já é tarde. Trata-se de uma teatralização encenada publicamente, em que os dois agentes demonstram uma incrível facilidade de expressão de fazer inveja ao mais consagrado ator, pois, sem qualquer escola, a não ser a da rua, desempenham com maestria os personagens a que se propuseram. Como num passe de mágica, reduzem o poder de compreensão da vítima, magnetizando-a, e invadem até a última trincheira de sua resistência, convencendo-a a entregar seus valores de forma consciente, acreditando piamente que irá receber muito mais do que pagou. Não há dúvida que se trata de um comportamento preconcebido na mais genuína má-fé, pois os agentes, em curto prazo, conseguem ganhar a atenção da vítima, que vai se tornando presa fácil, sem forças para se manifestar e, como um autômato, vai confirmando com a cabeça sua aceitação à proposta feita e passa a cumprir rigorosamente o que foi determinado no protocolo estabelecido pelos estelionatários. Assim agem pelo fato de travarem um relacionamento de inteligência, visando impedir qualquer reação da pessoa durante a operação. Praticam, portanto, atos com relevantes conotações jurídicas, contribuindo ambos para o sucesso da empreitada criminosa, na mais perfeita coautoria. Dizia a história grega que Sócrates desenvolveu uma técnica que, por truques mágicos de lógica, deixava seu interlocutor tão inseguro que aceitava qualquer explicação que lhe fosse oferecida.  A vítima, somente após a aplicação do golpe, vai se recuperar e agora com a sensação total de frustração, de impotência pela sua própria conduta. Vai reprisar todo o iter criminis e irá concluir que o poder de persuasão é tão perigoso quanto o de uma arma, porém com uma sensível diferença: com a arma ocorre a coação, a intimidação, fazendo com que haja a entrega do bem; com o ludíbrio a pessoa faz parte da trama e é convencida a acreditar na veracidade de uma história fantasiosa, entregando conscientemente o que foi solicitado. ___________ 1 Disponível aqui.
domingo, 12 de maio de 2024

Mãe

Apesar de estar contida em minúscula palavra, mas dotada de maiúscula força afetiva, mãe pode ser definida pela prosa, pelo verso, pela música ou por qualquer arranjo carinhoso. Não é buscar espaço para franquear os limites da fantasia, tão próspera nesse tema, nem mesmo fazer valer sedutores apelos, e sim promover um mutirão interno de agradecimento e fazer ecoar a voz sensata, mesmo desprovida de arroubos retóricos. Tamanha é a universalidade materna que, quando se homenageia por escrito uma delas que já cumpriu sua missão terrena, todas as demais cabem no mesmo texto. Trata-se de uma peça de poucas palavras e com a entrega imediata num cálice transbordante ao som de palmas e hosanas para aquela que, com muita prudência e sabedoria, soube compor uma imagem de exemplo de vida. A escrita, neste caso, torna-se fácil e eloquente, sem qualquer necessidade de encaixar as palavras à força, pois elas se ajustam e se alojam com a mais serena harmonia. É como brincar com as palavras numa linguagem de revelação. Parece até que saem em desenfreada carreira querendo chegar primeiro e buscar o local mais adequado, demonstrando que, apesar da riqueza do vocabulário humano, a concorrência também é grande entre as palavras. Você, filha, irmã, esposa, mãe, avó, bisavó, amiga, num incontável acervo de predicados indizíveis, conseguiu criar, pela sua simplicidade e singeleza, aliadas a uma férrea persistência, uma personagem vitoriosa nesta aventura maravilhosa chamada vida. Teve o privilégio de ver o tempo passar, sem com ele passar, no entanto, mas apesar dos passos passarem, cravou suas pegadas. Quantas e quantas vezes, em razão das incertezas da vida você lançava um só olhar explicando tanta coisa. Não vendeu sonhos e muito menos retirou os percalços dos caminhos. Deixou bem claro que os atalhos não são recomendáveis para fugir de uma íngreme subida, pois podem desembocar em um abismo e que os labirintos existem para exercitar a perseverança. Soube ouvir os lamentos das palavras, espargiu esperanças exageradas, mas cabíveis na palma do mais singelo sonho. Assim como sempre recomendou o caminhar de mãos dadas para a mútua ajuda, criando uma modalidade de blindagem fraternal. Sua experiência é tamanha que já se tornou companheira inseparável da vida e, pelas contingências, esqueceu as agruras da perda do companheiro e assumiu a autoridade familiar, como um esteio sólido e inabalável, indicando com segurança os caminhos recomendados depois de ver mais vagar, no seu exercício de ponderação, todas as opções oferecidas. Hoje já dá para entender o pensamento que regrou sua vida: Quando criança via a vida como um lago, fácil de chegar a outra margem; quando mulher, passou a vê-la como um rio e como adulta como um mar, infinito e sem limites.  Você, na sua pouca idade, conseguiu imprimir uma dimensão diferenciada do amor humano. Excedeu-se. Nem sempre, é claro, a vida caminha às claras. Muitas vezes penetra em zonas de penumbra, exigindo muito tato para enfrentá-la e iluminá-la. Nestas ocasiões, apegava-se a sua inabalável fé, dedilhando levemente as contas do seu rosário, passando por todos os mistérios, até atingir a plenitude da oração e quando elevava as súplicas em favor de todos aqueles que necessitavam. É como se fosse uma prece para a humanidade. Assim, é justo alardear aos quatro ventos a alegria, o júbilo e felicidade em comemorar a sua data, em família e entre amigos, numa verdadeira celebração de almas que espalham gratidão neste momento de encanto para falar com entusiasmo a você, que o amor não envelhece o espírito já amadurecido pelo exercício da própria vida, e pedir-lhe, mais uma vez, as bênçãos necessárias para seguir a caminhada.
domingo, 5 de maio de 2024

A eutanásia e a dignidade da morte

Uma paciente com 45 anos de idade, diagnosticada desde os 12 anos com polimiosite, doença degenerativa, pleiteou junto à Suprema Corte do Peru autorização para a prática da eutanásia, procedimento proibido pela legislação do país. Isto porque, apesar de todos os esforços envidados na área médica, não logrou qualquer êxito, a não ser suportar uma fraqueza muscular acentuada e progressiva em razão da doença incurável. A Corte julgou procedente seu pleito em 2022 e, para sua execução, foi elaborado um "Plano e Protocolo de Morte Digna, conforme exigência do Seguro Social de Saúde do Estado". A morte ocorreu no dia 21/4/24, por injeção letal e indolor, com o auxílio de um médico.1 O tema morte começa a fazer parte direta da vida das pessoas e a tendência é procurar uma modalidade mais ética que se coadune com a conveniência humana, que tem a morte como o esgotamento de todo o esforço terapêutico e o esvaziamento das reservas de resistência do paciente. Já que o morrer é inafastável, a tendência é buscar uma alternativa que se enquadre nos limites da razoabilidade ética. Mas o homem, na sua incansável evolução, arrebenta os diques das regras consuetudinárias e ingressa no domínio da etapa final de sua vida. Quer, também em razão da autonomia adquirida por inúmeros direitos assimilados, decidir a respeito das modalidades da morte. É até difícil aparentemente aceitar a postura da paciente peruana que não se encontrava no estertor da morte e nem mesmo internada em ambiente hospitalar. Além do que, pelo que se sabe, a doença é grave, mas não minou todas as suas forças a ponto de tornar a vida insuportável. Nessa linha de pensamento, qualquer doença degenerativa grave acarretaria idêntico final de vida.  É desejo insculpido na sabedoria popular que toda pessoa tenha uma morte rápida, sem o calvário de qualquer sofrimento, isto após ter vivido intensamente a vida. Sêneca, na antiguidade do Império Romano, já proclamava que morrer bem significa escapar vivo do risco de morrer doente. O direito de autodeterminação se faz presente no caso acima relatado. A autonomia do ser humano possibilita a tomada de decisões de acordo com sua vontade, com exceção dos casos de colidência com interesses maiores e tutelados legalmente. O morrer com dignidade compreende, em situação de sofrimento interminável, transferir a um profissional da saúde não o direito à sua própria vida, mas sim à renúncia ao direito de continuar vivendo em situação angustiante. Pode-se até dizer que se trata de uma morte voluntária, consensual do paciente em busca da morte com dignidade, após constatar que não há mais intervenção médica para estagnar a doença ou até mesmo administrá-la. É o momento de abandonar a medicina curativa e ingressar em um procedimento médico regrado pela antiga parêmia do voluntas aegroti suprema lex, no sentido de que o paciente tem o direito de decidir a respeito de sua morte, desde que ela se avizinhe de forma inequívoca. Com a maestria acadêmica que lhe é peculiar, D'Agostino assim se expressou: "Eis porque a vida humana, mesmo a vida doente, mesmo a vida perdida nos labirintos da loucura ou afundada nos abismos do coma irreversível, nunca pode perder a dignidade: porque continua sendo vidas ao lado de vidas, fonte e doadora de significados mesmo quando nem mais o perceba."2 O divisor agora determinante é justamente a autonomia da vontade do paciente, encartada definitivamente na dignitas hominis. Abre-se, desta forma, um enorme espaço de reflexão no caminhar de uma realidade nova que descortina um século que, obrigatoriamente, para a sobrevivência da humanidade, deve ser destinado ao processo de humanização. Não é de se levar em conta única e exclusivamente a intenção do paciente e sim colher também a manifestação médica no sentido de justificar que não há qualquer perspectiva de tratamento para combater a doença e que o sofrimento será cada vez mais acentuado e insuportável na já existente agonia terminal. Percebe-se que o caso narrado apresenta uma aproximação entre a eutanásia e o suicídio assistido. Ambos não se confundem. A eutanásia é o ato pelo qual o médico pratica um ato específico para colocar fim à vida humana em estado irreversível e terminal, antecipando a morte do paciente. O suicídio assistido vem a ser a vontade expressa pelo doente, que se encontra em perfeitas condições mentais, de dar fim à sua vida, realizando, ele próprio, os atos para garantir o seu intento, sempre orientado por médico, em razão de uma determinada doença. "No suicídio medicamente assistido, esclarece o sempre lembrado bioeticista Pessini, envolve a participação de um médico, na provisão, mas não na administração direta para ajudar a pessoa a abreviar sua vida".3 No Brasil, é terminantemente proibida a prática do suicídio assistido e também da eutanásia, ambas modalidades incriminadas no Código Penal.  __________ 1 Disponível aqui. 2 D'Agostino, Francesco. Bioética segundo o enfoque da Filosofia do Direito. Tradução: Luisa Raboline - Rio Grande do Sul: Editora Unisinos, 2006, p. 203. 3 Pessini, Leo. Eutanásia - porque abreviar a vida? São Paulo: Editora Loyola, 2004, p.127.
Jorge Amado, com sua perfeita narrativa que algumas vezes chega a tangenciar a ficção, relata, na obra "A Morte e a Morte de Quincas Berro D'Água", a história de um comportado e exemplar funcionário público que, repentinamente, abandonou a família e foi viver na rua, local onde fez amigos de bebida e boemia. Depois de 10 anos veio a falecer, sendo o velório providenciado pelos familiares. Os amigos da noite, no entanto, retiraram o morto do caixão e, como se vivo fosse, sempre carregado pelos companheiros que cantavam e exibiam bebida alcoólica num ritual espontâneo, percorreram todos os lugares e bares que frequentavam. Até chegarem ao barco do Mestre Manoel e avançarem mar adentro, quando Quincas, que se encontrava sem qualquer amparo, caiu no mar e sua morte foi oficialmente declarada pelo grupo, como ele queria. O Direito Penal, vez ou outra, parece trazer para a vida real fatos que parecem repousar, apenas e tão somente, nos livros e relatos de ficção. Com efeito, se não fosse gravado, o fato amplamente noticiado careceria de credibilidade: uma mulher buscando, durante atendimento na agência bancária, a todo custo, fazer com que seu tio, assim por ela declarado, já morto e mal posicionado na cadeira de rodas, assinasse documentos para finalização de um empréstimo bancário. Diante da notável singularidade do fato, com a possível prática de crimes, instaurou-se o competente inquérito policial, tipificando-se a conduta em tese praticada como crimes de vilipêndio a cadáver (art. 212 do CP) e de furto tentado, qualificado pela fraude (art. 155, § 4º, inciso II, do CP), sendo que a eventual parente teve sua prisão preventiva decretada após a realização da audiência de custódia1. Além da incredulidade fática que a todos causa espanto, tem-se diversas abordagens jurídico-penais que são pertinentes ao caso, que ensejam profunda reflexão e dificuldade para aplicação da lei penal no caso, vez que se trata de uma vítima figurante, já sem vida. Inicialmente, destaca-se a tipificação do crime patrimonial. Por qual razão a tipificação repousou no furto qualificado pela fraude e não no estelionato? É certo que, em ambos os crimes, a fraude está intimamente conectada com a conduta do agente. Porém, a distinção é cristalina. No furto qualificado pela fraude, o agente emprega meio ardiloso, enganoso, para burlar a vigilância da vítima, desviando sua atenção para que o objeto possa ser subtraído com segurança. Subtrair, aqui, deve ser interpretado como a conduta de retirar o bem da esfera patrimonial da vítima, sem a sua concordância. É o exemplo clássico do "gato de energia elétrica": o agente desvia a energia elétrica da rede pública para seu imóvel, com a finalidade de consumi-la gratuitamente, pois a energia consumida não é computada pelo medidor da concessionária (que permanece íntegro - não há qualquer alteração física nele). Já no delito de estelionato, por sua vez, a vítima acaba participando de verdadeira mise en scène, criada pelo agente para camuflar a fraude empregada. Aqui, o agente não usa a fraude para subtrair (retirar) a coisa da vítima. A fraude é empregada, pelo agente, para enganar a vítima, que acaba por lhe entregar o bem (ou o serviço, o dinheiro) voluntariamente, acreditando em uma realidade que foi propositalmente distorcida (fraude) pelo agente. É de se atentar que no furto qualificado pela fraude, o agente subtrai (retira) o bem da vítima, por meio de fraude, que é empregada para que a ofendida não perceba a subtração. Já no estelionato, a fraude é criada para enganar a vítima, ou seja, criar uma realidade diferente e fazer com que a vítima nela acredite, para entregar o bem da vida almejado pelo agente (não há subtração, há entrega voluntária). Nesse passo, conforme preciosas lições de Dias Júnior, "O golpe bem-elaborado e encenado, com efeito, costuma tirar muito de seu poder de envolvimento da hábil criação desse ambiente de encantamento capaz de fazer relaxar as defesas próprias do estado de vigília e estimular as atitudes tomadas ao sabor dos impulsos do momento"2. De qualquer modo, as questões tormentosas não param aqui: muitos se indagam quanto à real e concreta possibilidade de êxito na empreitada, isto é, a atendente do banco prontamente ao perceber que algo grave acontecia, sequer deu continuidade ao atendimento e, imediatamente, acionou o serviço do "SAMU". Logo, há que se indagar acerca da possibilidade de aplicação do artigo 17 do Código Penal: Não se pune a tentativa quando, por ineficácia absoluta do meio ou por absoluta impropriedade do objeto, é impossível consumar-se o crime. É o chamado crime impossível, crime de ensaio ou ainda tentativa inidônea: o agente realiza todos os atos executórios que ele acredita serem necessários para consumar o crime, mas, por razões objetivas, é impossível que o resultado ocorra devido à inadequação dos meios utilizados ou à condição do objeto visado. Por exemplo, tentar envenenar alguém com uma substância que, desconhecido ao agente, é inofensiva. Com isso, caberá à instrução processual o enfrentamento da (im)possiblidade concreta do meio utilizado pela suposta autora dos crimes, respondendo à questão: tendo em vista a dinâmica dos fatos, com "Tio Paulo" nitidamente sem qualquer condição de expressar a mínima vontade que fosse, poderia a atendente, naquele cenário, descuidar-se e o empréstimo ser formalizado, com a liberação do dinheiro? No que diz respeito ao crime de vilipêndio a cadáver, mister considerar a notícia de que os médicos do SAMU constataram a presença de livor mortis (manchas de hipóstase), ou seja, depósito de sangue estagnado, em razão da cessação da circulação sanguínea. A literatura médica- legal é vasta e aponta para sua presença, em média, cerca de 2 a 3 horas post mortem. Logo, parece mesmo estar configurado o crime tipificado no artigo 212 do CP, tendo em vista que a conduta consiste em desrespeitar ou ultrajar o corpo, ou restos mortais, de uma pessoa; seja por meio de atos de profanação, mutilação, desfiguração ou qualquer outra ação que ofenda a memória e o respeito devidos aos mortos. __________ 1 Disponível aqui.   2 Dias Júnior, José Augusto, Os contos e os vigários: uma história da trapaça no Brasil. São Paulo: Leya, 2010, p. 260.