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Insolvência em foco

Temas sobre Recuperação Judicial.

Daniel Carnio Costa, Fabiana Solano, Alberto Camiña Moreira, Alexandre Demetrius Pereira, Marcelo Sacramone, Paulo Penalva Santos, João de Oliveira Rodrigues Filho, Márcio Souza Guimarães e Otávio Joaquim Rodrigues Filho
Texto de autoria de Alexandre Demetrius Pereira Uma das modificações mais recentes no Direito Penal Pátrio ocorreu com o advento da lei 13.964, de 24 de dezembro de 2019, denominada de pacote anticrime, a qual, dentre outras providências, modificou dispositivos do Código Penal e do Código de Processo Penal. Dentre as modificações mais importantes, destaca-se o chamado acordo de não persecução penal (ANPP), instrumento que privilegia a justiça penal negociada, buscando a solução de conflitos referentes à criminalidade de médio porte com a aplicação mais célere de medidas penais distintas da pena privativa de liberdade. Passaremos a discutir neste breve artigo algumas especificidades do acordo de não persecução penal com relação aos crimes falimentares. Dos pressupostos do acordo de não persecução penal Os requisitos essenciais do acordo de não persecução penal se encontram dispostos no art. 28-A do CPP, dentre os quais: 1. Não seja caso de arquivamento do inquérito policial; 2. Tenha o investigado confessado formal e circunstancialmente a prática de infração penal; 3. A infração penal não deve ter como meio a prática de violência ou grave ameaça e deve ter pena mínima inferior a 4 (quatro) anos; 4. O acordo de não persecução deve se mostrar necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime. Além dos requisitos supracitados, o §2º do art. 28-A do CPP, ainda revela outros pressupostos para que o acordo possa ocorrer: 1. Não seja cabível transação penal de competência dos Juizados Especiais Criminais, nos termos da lei; 2. Não seja o investigado reincidente ou inexistam elementos probatórios que indiquem conduta criminal habitual, reiterada ou profissional, exceto se insignificantes as infrações penais pretéritas; 3. Não ter sido o agente beneficiado nos 5 (cinco) anos anteriores ao cometimento da infração, em acordo de não persecução penal, transação penal ou suspensão condicional do processo; e 4. Não seja caso de crimes praticados no âmbito de violência doméstica ou familiar, ou de crimes praticados contra a mulher por razões da condição de sexo feminino, em favor do agressor. Em havendo acordo, poderão ser propostas pelo Ministério Público as seguintes condições: I - reparar o dano ou restituir a coisa à vítima, exceto na impossibilidade de fazê-lo; II - renunciar voluntariamente a bens e direitos indicados pelo Ministério Público como instrumentos, produto ou proveito do crime; III - prestar serviço à comunidade ou a entidades públicas por período correspondente à pena mínima cominada ao delito diminuída de um a dois terços, em local a ser indicado pelo juízo da execução, na forma do art. 46 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal); IV - pagar prestação pecuniária, a ser estipulada nos termos do art. 45 do Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 (Código Penal), a entidade pública ou de interesse social, a ser indicada pelo juízo da execução, que tenha, preferencialmente, como função proteger bens jurídicos iguais ou semelhantes aos aparentemente lesados pelo delito; ou V - cumprir, por prazo determinado, outra condição indicada pelo Ministério Público, desde que proporcional e compatível com a infração penal imputada. Vistos os requisitos e as condições do acordo nos termos definidos na lei 13.964/19, analisaremos no tópico seguinte a aplicação do instituto aos crimes falimentares. Peculiaridades do ANPP em relação aos crimes falimentares: pena e unicidade O acordo de não persecução é plenamente aplicável aos crimes falimentares, com algumas pequenas exceções e adaptações. Duas questões particulares devem ser vistas: o cabimento do ANPP em relação à pena dos tipos penais falimentares e a questão do ANPP em confronto com a unicidade aplicável a esses delitos. Dos crimes definidos na lei 11.101, no tocante à pena, a maioria admite a aplicação do ANPP, pois tais delitos possuem como regra pena mínima inferior a 4 (quatro) anos. Há, entretanto, uma exceção importante, no tocante ao crime de fraude a credores com causa de aumento de pena, conforme definição do art. 168, § 2º, da lei 11.101/05 (contabilidade paralela), uma vez que, possuindo este pena mínima de 3 (três) anos e causa de aumento de pena de 1/3, acabará por acarretar pena mínima de 4 (quatro) anos, inviabilizando a aplicação do instituto. Cumpre salientar que o § 1º do art. 28-A do CPP expressamente consigna que: "Para aferição da pena mínima cominada ao delito a que se refere o caput deste artigo, serão consideradas as causas de aumento e diminuição aplicáveis ao caso concreto". Dessa forma, incidente a causa de aumento aludida, inaplicável o ANPP ao crime ora tratado. Outra aparente exceção à aplicabilidade do acordo encontra-se no delito definido no art. 178 da lei 11.101/05 (omissão dos documentos contábeis obrigatórios). Nesse caso, o acordo não se encontra obstado em virtude de a pena mínima ultrapassar o patamar definido no art. 28-A, mas pelo fato de que, cominada pena máxima de 2 anos, cuida-se de crime ao qual, em tese, é aplicável a transação penal. Desse modo, o autor dos fatos fará jus, ao menos antes de se cogitar do ANPP, à proposta de transação penal, afastando-se, num primeiro momento, a aplicação do acordo, por força do art. 28, §2º, I, do CPP. Para resumir o que relatamos até aqui, trazemos a tabela seguinte sobre a aplicabilidade do ANPP em relação a cada tipo penal falimentar definido na lei 11.101/05: Outro problema interessante sobre a aplicabilidade do ANPP aos crimes falimentares é a questão da unidade ou unicidade do crime falimentar. Esse vetusto princípio, verdadeira particularidade dos delitos falimentares, considerado por muitos uma ficção jurídica, preconiza que, em havendo concurso de crimes envolvendo exclusivamente crimes falimentares, deve-se aplicar somente a pena do crime falimentar mais grave. Conquanto criticado pela mais moderna doutrina, o princípio da unidade ou unicidade do crime falimentar é ainda aplicado pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, mesmo na vigência da lei 11.101/05 (vejam-se os acórdãos de julgamento do REsp 1.617.129-RS, Min. Sebastião Reis Júnior, do HC 94.632/MG, Min. Og Fernandes e do HC 56.368, Min. Gilson Dipp). A questão que se coloca é saber se, havendo concurso de crimes falimentares cuja soma ou exasperação de penas resultem em pena mínima de quatro anos, seria aplicável a unicidade do crime falimentar para que, considerando somente a pena do crime mais grave (esta inferior a quatro anos), entenda-se cabível o ANPP na hipótese. Para responder essa questão, devemos analisar novamente a jurisprudência do STJ, pois, ainda que admita a aplicação da unicidade, referido tribunal não tem admitido que, para análise da pena concernente ao cabimento de benefícios penais análogos ao ANPP (transação penal e suspensão condicional do processo), a unicidade seja utilizada para reduzir a pena teoricamente aplicável, antes do momento da sentença. Nesse sentido: HC 26126 / SP HABEAS CORPUS 2002/0175898-4 Relator(a) Ministra LAURITA VAZ (1120) Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA Data do Julgamento 18/11/2003 Data da Publicação/Fonte DJ 15/12/2003 p. 332 Ementa: HABEAS CORPUS. CRIMES FALIMENTARES. CONCURSO MATERIAL. SUSPENSÃO CONDICIONAL DO PROCESSO. IMPOSSIBILIDADE. PRINCÍPIO DA UNICIDADE. INAPLICABILIDADE ANTES DA SENTENÇA. INCIDÊNCIA DA SÚMULA N.º 243 DO STJ. 1. Constitui óbice inarredável o fato de haver concurso material de crimes (arts. 186, inciso VI, e 188, inciso VIII, do Decreto-lei n.º 7.661/45), cujas penas mínimas cominadas em abstrato são, respectivamente, de 6 (seis) meses e 1 (um) ano, perfazendo um somatório acima da restrição legal, que é de 1 (um) ano. Incidência do verbete sumular n.º 243 desta Corte. 2. A unidade dos crimes falimentares, ressalte-se, fictícia, de criação doutrinária, e altamente questionável, já caracterizaria uma benesse ao agente, aplicável somente ao final da instrução criminal, por ocasião da prolação da sentença. Não pode servir, também, para, contornando o comando legal (art. 89 da Lei n.º 9.099/95), vencer uma restrição objetiva à suspensão condicional do processo, outro benefício instituído pela lei. 3. É improcedente o pedido alternativo de remessa dos autos ao Procurador-Geral de Justiça, porquanto a hipótese de aplicação analógica do disposto no art. 28 do Código de Processo Penal ocorre quando há divergência entre o Juiz e o Promotor de Justiça acerca do oferecimento do benefício, o que não é o caso dos autos. 4. Ordem denegada EDcl no AgRg no Ag 698820 / RJ EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO 2005/0128694-1 Relator(a) Ministro GILSON DIPP (1111) Órgão Julgador T5 - QUINTA TURMA Data do Julgamento 02/02/2006 Data da Publicação/Fonte DJ 06/03/2006 p. 430 Ementa: CRIMINAL. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO REGIMENTAL DO AGRAVO DE INSTRUMENTO. CONTRADIÇÃO E OBSCURIDADE. AUSÊNCIA. EMBARGOS REJEITADOS. I. O benefício do sursis processual é inaplicável em relação às infrações penais cometidas em concurso formal, material ou em continuidade delitiva quando o somatório ultrapassar um ano. II. Não há contradição no acórdão que deixa clara a aplicação da Súmula 243 do STJ, pois, não obstante o princípio da unicidade dos crimes falimentares, o mesmo não pode ser utilizado como forma de beneficiar mais uma vez o agente, de modo a ensejar a concessão da suspensão condicional do processo. III. Ausente qualquer obscuridade no acórdão, que faz incidir a Súmula 07 desta Corte para as alegações de ausência ou não de dolo e de desvio de bens. IV. Embargos rejeitados. Se a unicidade do crime falimentar não é aplicável antes da sentença para viabilizar benefícios penais como a suspensão condicional do processo, pela mesma razão entendemos inaplicável referido instituto para possibilitar, também antes da sentença, a proposta de acordo de não persecução penal. Dessa forma, se o concurso de crimes falimentares resultar em pena mínima igual ou superior a quatro anos, incabível será a proposta de acordo de não persecução penal. Em conclusão O acordo de não persecução penal, em tese, tem ampla aplicabilidade aos crimes falimentares, com exceção da forma qualificada do crime de fraude a credores (contabilidade paralela), cuja pena mínima será superior ao permitido em lei. Também encerra exceção, por motivo distinto, o crime de omissão de documentos obrigatórios, uma vez que a este último terá aplicação prioritária do instituto da transação penal, que afasta, num primeiro momento, a incidência do ANPP, nos termos do art. 28, §2º, I, do CPP. No tocante à unicidade do crime falimentar, entendemos que, embora referido princípio continue a ser aplicado pelo Superior Tribunal de Justiça em termos gerais, a jurisprudência do STJ não vem permitindo que sua aplicação ocorra antes da sentença para a concessão de benefícios penais análogos ao ANPP. Pela mesma razão, entendemos inaplicável a unicidade para fim de admitir proposta de acordo de não persecução penal.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2020

A recuperação judicial e as ações de despejo

Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone A Lei de Recuperação de Empresas e Falência procurou criar ambiente institucional para que o empresário devedor pudesse negociar com seus credores uma solução para superar a crise econômico-financeira que acometia sua atividade. Para que essa negociação coletiva fosse incentivada, a LREF estabeleceu o período de suspensão na recuperação judicial. Deferido o processamento da recuperação judicial, todas as ações e execuções em face do empresário em recuperação judicial são suspensas pelo prazo de 180 dias como forma de evitar as constrições de ativos e os comportamentos oportunistas de retirada de bens indispensáveis à restruturação da atividade do devedor e que, inclusive, poderiam comprometer a satisfação da coletividade dos próprios credores. Controverte a jurisprudência, entretanto, se essa determinação de suspensão é aplicável às ações de despejo e se a locatária em recuperação judicial, mesmo inadimplente com os alugueis, continuaria a poder usar e gozar da coisa locada. Para parte dos precedentes1, apenas o crédito seria sujeito à recuperação judicial, mas não o direito de retomada do bem pelo locador. O inadimplemento das obrigações anteriores à distribuição do pedido, ainda que submetesse o crédito à recuperação judicial, não impediria o direito de o credor exercer o direito de propriedade sobre o bem e despejar o locatário em crise. Para essa corrente, em virtude da proteção ao direito de propriedade, a ação não seria suspensa, tampouco o mandado de despejo dela decorrente. Não há, contudo, qualquer exceção na LREF quanto a essas ações. Pela regra geral do art. 6º da lei, são suspensas todas as ações e execuções em face do devedor justamente para se permitir a este negociar com seus credores a melhor solução para a superação da crise econômico-financeira que acomete sua atividade. Não são suspensas apenas as ações e execuções referentes a créditos não sujeitos à recuperação judicial, pois, com o crédito não poderá ser novado pelo instituto, não se justifica a suspensão do direito de o credor perseguir a satisfação de seu crédito. Tampouco são suspensas as ações ilíquidas, assim tratadas aquelas que não permitem a imediata constrição de bens do devedor, com prejuízo a todos, seja pela falta de certeza quanto à obrigação devida, seja pela falta de certeza em relação ao montante. A ação de despejo figura exatamente nesse contexto. A simples apuração do montante dos alugueis ou encargos devidos, ou mesmo a apuração de eventuais outras violações contratuais, não exigirá sua suspensão em razão do deferimento do processamento da recuperação judicial. Ainda que o montante possa depender apenas de cálculo aritmético e permita a imediata execução, a cobrança dos alugueis cumulativa com pedido de rescisão da locação e despejo exigiria sentença condenatória e mandamental após a apuração do quantum debeatur e do an debeatur. Dessa forma, não poderia ser caracterizada como demanda por quantia líquida para fins de suspensão, eis que não permitiria a imediata constrição dos ativos, embora decerto as medidas constritivas liminares fiquem suspensas pela exigência de preservação da empresa durante o stay period, desde que fundamentadas em obrigações não satisfeitas anteriores à recuperação judicial. O prosseguimento regular da ação de despejo não significa, todavia, que o mandado de despejo não poderá ser suspenso. Após o reconhecimento do descumprimento contratual da locação, com a procedência do pedido de despejo e por ocasião da expedição do mandado, que conterá o prazo de 30 dias para a desocupação voluntária, a ação poderá ser suspensa. Fundamentado o pedido de despejo em inadimplemento anterior à distribuição do pedido, o crédito se submete à recuperação judicial e será novado nos termos do plano aprovado. Pela novação determinada pela LREF, ainda que condicional ao cumprimento das obrigações previstas para satisfação no período de dois anos após a concessão, a obrigação anterior não satisfeita deixa de existir e será substituída pela obrigação prevista no plano e que contou com a anuência dos credores. Concedida a recuperação judicial e novadas as obrigações, assim, não há mais inadimplemento do devedor ou fundamento para o despejo pelo locador. Por consequência, não se justifica permitir ao credor manter o comportamento individual de retomar o bem em detrimento da negociação coletiva e que permitiria a superação da crise em benefício de todos. Referida posição não prejudica seu direito de propriedade. O próprio titular do direito vinculou-se voluntariamente à obrigação de conservar a posse e o gozo do locatário a menos que houvesse o descumprimento do contrato. Pela possibilidade de concessão da recuperação judicial, a novação substitui a obrigação descumprida por outra prevista no plano e aprovada pela coletividade2. Ressalte-se que poderá ocorrer a suspensão do mandado de despejo, e não deverá. A suspensão do mandado de despejo apenas ocorrerá se decorrente de descumprimento de obrigação existente antes da distribuição do pedido de recuperação judicial, haja vista que os créditos dela decorrentes poderão ser novados pelo plano de recuperação. Caso o despejo seja motivado pelo término do período de locação, rescisão do contrato de trabalho ou descumprimento de obrigações existentes apenas após a distribuição do pedido de recuperação judicial, como referidas obrigações não se sujeitam à recuperação judicial, não haveria razão para submeter esses credores à suspensão. A recuperação judicial não obrigaria à manutenção do contrato de locação caso seu prazo já tenha se findado ou mesmo a manutenção do contrato de trabalho que dele seja fundamento, de modo que a retomada do bem não se submeteria a qualquer suspensão, mesmo que o bem locado fosse imprescindível ao desenvolvimento da atividade empresarial. Desta forma, apenas com a diferenciação entre a data das obrigações descumpridas e entre a apuração do descumprimento e o efetivo mandado de despejo é que se poderá compreender a regra de suspensão das ações de despejo diante da recuperação judicial dos locatários. __________ 1 STJ, Segunda Seção, AgRg no CC 133.612-AL, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 14.10.2015; STJ, Segunda Seção, CC 122.440/SP, Rel. Min. Raul Araújo, dje 15.10.2014; TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2200533-14.2018, Rel. Des. Maurício Pessoa, j. 10/12/2018; TJSP, 26ª Câmara de Direito Privado, AI 2157100-91.2017, Rel. Des. Antonio Nascimento, j. 26.04.2018; TJSP, 27ª Câmara de Direito Privado, AI 2053598-44.2014, Rel. Des. Gilberto Leme, j. 29.04.2014; TJSP, 29ª Câmara de Direito Privado, AI 0343932-53.2009, Rel. Des. Luís de Carvalho, j. 03.02.2010. 2 Nesse sentido: TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2043646-02.2018, Rel. Des. Azuma Nishi, j. 23.05.2018; TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2044673-54.2017, Rel. Des. Cesar Ciampolini, j. 13/9/2017.
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque e Rodrigo Pereira Cuano Para iniciar mais um novo ano nesta coluna, nada melhor do que falarmos sobre o que vem por aí: as últimas novidades da reforma da lei 11.101/05. Com efeito, tema que tem ganhado corpo nos últimos meses são as propostas de alteração na lei 11.101/2005 ("LRF"), tendo sido inclusive aprovado pela Câmara dos Deputados ao final de outubro de 2019, em sessão deliberativa extraordinária, o requerimento 2763/19, que prevê regime de urgência para apreciação do PL 6.229/05, que tramita em conjunto com o PL 10.220/18, do Poder Executivo, e que objetiva reformular a referida lei. Em novembro de 2019, foi proferido parecer em Plenário pelo relator, dep. Hugo Leal (PSD-RJ), concluindo pela aprovação da matéria na forma do substitutivo ao PL 6.229/05, em anexo ao parecer. Referido substitutivo foi objeto de longo debate "com o Conselho Nacional de Justiça, com o Superior Tribunal de Justiça, com o Ministério da Economia, com a Confederação Nacional do Comércio, com a Federação Nacional dos Bancos, com os trabalhadores, com as varas empresariais de estados como Rio Grande do Sul, Minas Gerais, São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco", conforme destacado pelo relator do projeto1. No entanto, além do aperfeiçoamento da lei, necessário se faz que a sua interpretação pelos profissionais do Direito - e, notadamente, pelos tribunais - seja uniforme, já que múltiplas possibilidades de interpretação, acarretam insegurança jurídica e, consequentemente, instabilidade econômica. Conforme bem destacado pelo professor Marcos Lisboa, "do ponto de vista econômico, a legislação falimentar tem como objetivo criar condições para que situações de insolvência tenham soluções previsíveis, céleres e transparentes, de modo que os ativos, tangíveis e intangíveis, sejam preservados e continuem cumprindo sua função social, gerando produto, emprego e renda."2 A lei, portanto, deve criar um ambiente que permita a reorganização das empresas em crise com a preservação da (i) manutenção da fonte produtora, (ii) do emprego dos trabalhadores e (iii) dos interesses dos credores, com vistas à preservação da empresa, de sua função social e do estímulo à atividade econômica. Vale observar: não se deve, sem qualquer justificativa, mudar as regras do jogo, o que acarretaria indevida instabilidade e insegurança jurídica, com prejuízo não apenas às empresas em crise, mas a todos os agentes que atuam no mercado, devido à elevação dos riscos e outros custos de transação. É importante destacar que o Banco Mundial, em recente relatório divulgado, classificou a legislação brasileira quanto ao "índice de eficiência do regime da insolvência"3 com 13 pontos em uma escala de 0-16, o que é positivo e demonstra que a lei é enforceable. No entanto, quando avaliamos a classificação da taxa de recuperação4 em centavos de dólar, observamos que o indicador é extremamente baixo quando comparado a outros países, tanto da América Latina quanto da OCDE. Nesse sentido, a título de ilustração, São Paulo apresenta uma taxa de recuperação de 18.2 centavos para cada dólar, enquanto que na OCDE ela está em 70.2 (382% superior) e na América Latina & Caribe a taxa é de 31.2 (111% superior). Confira-se: Tabela extraída do Projeto Doing Business do Banco Mundial (ano 2018/19):5 Referida discrepância pode ser explicada, dentre outros fatores, em razão da instabilidade, insegurança jurídica e falta de previsibilidade quanto à interpretação da lei, o que, vale observar, não é uma característica exclusiva da recuperação de crédito em nosso país - em que pese os esforços do atual Código de Processo Civil na estruturação de um sistema de precedentes vinculantes e no reforço do papel paradigmático a ser desempenhado pelos tribunais superiores.6 Tal circunstância corrobora com o fato de o Brasil continuar a ter um dos maiores spreads do mundo. Conforme Marcel Balassiano e Vitor Vidal, em estudo publicado no Blog do IBRE, "se adotarmos uma agenda em que o debate econômico deveria ir abordando pontos que podem trazer bem-estar à sociedade, devemos considerar a questão do CP superada e entrar em outro de tamanha importância para a redução do spread bancário: o de garantias de crédito e recuperação judicial."7 Essa conclusão decorre do fato de que, conforme mencionado anteriormente, temos uma taxa de recuperação de crédito bastante reduzida. Segundo o levantamento realizado, "no Brasil em 2018, para cada dólar de calote em empréstimos apenas 0,13 cents era recuperado quando realizado a execução de dívida. Valor abaixo da média mundial de 0,34 cents, e bem menor de países como o Japão, que tem o menor spread bancário do mundo e a maior taxa de recuperação, de 0,92 cents para cada dólar. Este fato mostra como a segurança jurídica em caso de calote afeta diretamente os custos administrativos para emprestar".8 O que se almeja, portanto, é que além do aperfeiçoamento técnico da lei, sendo louváveis algumas das propostas de alteração apresentadas, tenhamos maior previsibilidade quanto às decisões judiciais sobre o tema, sendo de salutar importância que o Superior Tribunal de Justiça, na qualidade de guardião da legislação infraconstitucional venha a direcionar essas orientações. Enfim, espera-se que a vindoura reforma traga maior segurança jurídica, evitando-se, conforme constou do parecer do anteprojeto da LREF, que as "múltiplas possibilidades de interpretação tragam insegurança jurídica aos institutos". Em síntese, os nossos votos de ano novo para o tema da recuperação judicial e falência são que não se mudem as regras no meio do jogo. _____________ 1 Clique aqui. Consulta em 20/01/2020 2 LISBOA, Marcos de Barros. Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. 3 Esse índice é a soma de 4 componentes: Índice de administração dos bens do devedor, Índice de procedimento de reorganização, Índice de participação de credor e Índice de eficiência regime da insolvência. 4 A taxa de recuperação calcula quantos centavos em cada dólar as partes reivindicadoras (credores, autoridades tributárias e funcionários) podem recuperar de uma empresa insolvente. 5 Clique aqui. Consulta em 20.1.2020. 6 Confira-se: "Art. 926. Os tribunais devem uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente. (...). Art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: I - as decisões do Supremo Tribunal Federal em controle concentrado de constitucionalidade; II - os enunciados de súmula vinculante; III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos; IV - os enunciados das súmulas do Supremo Tribunal Federal em matéria constitucional e do Superior Tribunal de Justiça em matéria infraconstitucional; V - a orientação do plenário ou do órgão especial aos quais estiverem vinculados". 7 "A parcimônia com o mercado de crédito", de autoria de Marcel Balassiano e Vitor Vidal, publicada no clique aqui. Consulta em 20.1.2020. 8 "A parcimônia com o mercado de crédito", de autoria de Marcel Balassiano e Vitor Vidal, publicada no clique aqui. Consulta em 31/10/2019 _____________ *Rodrigo Pereira Cuano é advogado em São Paulo, especialista em direito processual civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, com cursos de extensão em reestruturação e recuperação de empresas pela FGV Direito, Escola Paulista da Magistratura, OAB/SP e IBAJUD e em direito digital aplicado pela FGV Direito.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho Nesta última coluna do ano de 2019, que coincide com o término do mandato do desembargador Pereira Calças à frente da presidência do Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo, vale a pena rememorar brevemente a trajetória deste grande magistrado, professor e administrador na área de falência e recuperação judicial, em razão dos resultados que alcançou. Quando a lei 11.101/2005 entrou em vigor, o Tribunal de Justiça de São Paulo era presidido pelo desembargador Luiz Elias Tâmbara, que, pioneiramente, instalou duas varas especializadas na comarca de São Paulo, e uma Câmara Especial no Tribunal de Justiça, para julgarem em primeiro e em grau de recurso os processos de falência e de recuperação judicial. O desembargador Pereira Calças foi um dos primeiros integrantes desta Câmara, ao lado de Romeu Ricupero, Elliot Akel, Boris Kauffmann, Lino Machado, Araldo Telles e Sidnei Benetti, e seus votos conferiram seguro norte aos profissionais atuantes nos primeiros processos de falência e recuperação judicial. O sucesso da especialização foi tamanho que, em 2011, novamente de forma pioneira, o Tribunal de Justiça de São Paulo, tendo o desembargador José Roberto Bedran à frente da presidência, decidiu instalar duas Câmaras Empresariais, doravante não apenas com competência para as causas de insolvência, mas também de direito societário, propriedade industrial, franquia e ações relativas a arbitragens. O desembargador Pereira Calças passou então a integrar a 1ª Câmara, ao lado de Francisco Loureiro, Teixeira Leite, Ênio Zuliani, Maia da Cunha e Romeu Ricupero, cuja atuação destacada passou a colocar em dúvida a preferência pela arbitragem na solução de lides empresariais. Depois de mais de 10 anos com atuação profícua na jurisdição empresarial, em 2006 o desembargador Pereira Calças elegeu-se para a função de Corregedor Geral da Justiça de São Paulo, durante o biênio 2017-2018. Empenhado em aperfeiçoar a Justiça paulista, convenceu seu pares de que a comarca de São Paulo, onde são julgadas as maiores lides societárias e de propriedade industrial, deveria contar com varas especializadas em matéria empresarial. E mais. Sensibilizado com a demora na solução de processos disciplinados pelo decreto-lei 7.661/45 em varas cíveis, pois os juízes tinham que se dedicar a outras causa igualmente relevantes, complexas e trabalhosas, o então Corregedor também propôs a redistribuição dos processos a uma nova Vara. Em dezembro de 2017, sob a presidência do desembargador Paulo Dimas, foram instaladas mais três unidades jurisdicionais no Fórum João Mendes Jr.: 2 varas empresariais, com competência para julgar as lides societárias, de propriedade industrial, franquia e relativas a arbitragem; e a 3ª. Vara de Falências e Recuperações Judiciais da comarca da capital, que recebeu todos os processos de concordata e falência que tramitavam nas 40 varas cíveis. Hoje, é patente o êxito destas medidas, quer para a solução das lides empresariais e dos processos de falência regidos pelo decreto-lei 7.661/45, que agora são julgados por juízes com competência exclusiva, quer para a resolução mais ágil dos processos em trâmite nas Varas Cíveis. Também deve ser destacada outra medida que o então Corregedor Pereira Calças implementou, ainda em 2017: a digitalização dos processos de falência de recuperação judicial distribuídos até o fim de 2013, que tramitavam no formato tradicional, em papel. Contando com o apoio dos administradores judiciais, bem como das áreas técnicas do Tribunal de Justiça de São Paulo, os autos físicos foram convertidos em digitais e o processamento passou a ser eletrônico, com ganho de tempo e recursos para todos os interessados nos processos. Eleito em 2017 para a presidência do Egrégio Tribunal de Justiça, no biênio 2018-2019, o desembargador Pereira Calças continuou a implementar medidas adequadas ao aperfeiçoamento da jurisdição empresarial em São Paulo. Determinou a realização de estudo de mapeamento de competência das três Varas de falências e recuperações judiciais da capital, para o estabelecimento de número adequado de servidores para os ofícios judiciais. E se desde 2012 já havia projeto de lei destinado à criação de varas regionais no Estado de São Paulo, foi em junho de 2018 que o Presidente Pereira Calças encaminhou à Assembleia Legislativa proposta de alteração da organização judiciária que foi aprovada. Neste dezembro de 2019, de forma pioneira, foram instaladas a 1ª e a 2ª. Varas Regionais Empresariais da 1ª Região Administrativa Judiciária, com competência territorial regional abrangente das Comarcas da Grande São Paulo e com competência material ampla, incluindo falências, recuperações judiciais, direito societário, propriedade industrial, franquia e conflitos relacionados à arbitragem (cf. Resolução 824/2019 do TJ/SP, com a redação que lhe foi conferida pela resolução 825/2019). O sucesso das medidas de especialização da jurisdição empresarial foi tão grande em São Paulo que, recentemente, o Conselho Nacional de Justiça recomendou aos Tribunais de Justiça a especialização nos demais tribunais. Diante do empenho e da dedicação do desembargador Pereira Calças, não só na arte de julgar as lides empresariais, mas também em melhorar a estrutura de funcionamento da Justiça Empresarial, só nos resta dizer: Por tudo isso, muito obrigado!
Texto de autoria de Luiz Dellore Como já exposto em colunas anteriores, quando na primeira lista de credores1 não houver um crédito ou este crédito for menor, deverá o interessado apresentar, respectivamente, habilitação ou divergência2. Essa peça será apresentada ao administrador judicial (AJ) e, quando de sua apreciação, não há a fixação de honorários advocatícios a título de sucumbência. Mas, quando da apresentação da segunda lista de credores, pelo AJ, se o credor não concordar com o valor ou classificação, poderá apresentar impugnação de crédito, perante o juiz. Nesse caso, há sucumbência, no tocante à condenação em honorários advocatícios? A resposta é positiva, conforme pacífica jurisprudência de nossos tribunais. Nesse sentido, colhe-se do informativo de jurisprudência 527/STJ o seguinte julgado (grifos originais): TERCEIRA TURMA DIREITO PROCESSUAL CIVIL. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS NA HIPÓTESE DE IMPUGNAÇÃO AO PEDIDO DE HABILITAÇÃO DE CRÉDITO EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. São devidos honorários advocatícios na hipótese em que apresentada impugnação ao pedido de habilitação de crédito em recuperação judicial. Isso porque a apresentação de impugnação ao referido pedido torna litigioso o processo. Precedentes citados: AgRg no REsp 1.062.884-SC, Quarta Turma, DJe 24/8/2012; e AgRg no REsp 958.620-SC, Terceira Turma, DJe 22/3/2011. REsp 1.197.177-RJ, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 3/9/2013. Apesar de isso ser pacífico, vez ou outra não há a fixação de honorários na impugnação, o que faz com que a parte interessada, por óbvio, tenha de recorrer para obter a fixação dos honorários. Mas é algo isolado, usualmente ocorrendo com magistrados que não estão familiarizados com o procedimento da recuperação judicial ou falência. Sem maiores dificuldades, isso será fixado pelo Tribunal. Mas a polêmica que existe se refere a qual é a base de cálculo para a fixação desses honorários sucumbenciais. Deve o juiz tomar por base o valor do crédito impugnado ou a fixação deve ser de forma equitativa, ou seja, em um valor fixo sem considerar o valor discutido na impugnação? A jurisprudência, nesse particular, flutuou. Muitos julgados apontavam que os honorários, nesse caso, não deveriam guardar relação com o valor debatido na impugnação. Ou seja, independentemente de se discutir na habilitação R$ 100 mil ou R$ 1 milhão, deveria haver uma fixação de honorários em um mesmo valor, digamos, R$ 10 mil. Nesse sentido, há inúmeros acórdãos de tribunais estaduais, por todo o Brasil. Também há julgados nesse sentido no STJ, como a seguir se demonstra, em que uma impugnação de milhões teve fixação de honorários de forma equitativa, em poucos mil reais (grifos nossos): AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO JULGADA PROCEDENTE. HONORÁRIOS DE SUCUMBÊNCIA. QUANTUM IRRISÓRIO PARA A DEMANDA. MAJORAÇÃO QUE SE IMPÕE. DECISÃO MONOCRÁTICA MANTIDA. AGRAVO INTERNO DESPROVIDO. 1. O valor fixado de R$ 3.000,00 (três mil reais) não se mostrou adequado a remunerar corretamente os advogados dos agravados, sobretudo diante da retificação do quadro geral de credores para incluir crédito de R$ 11.191.600,41 (onze milhões, cento e noventa e um mil, seiscentos reais e quarenta e um centavos), o que implica em maior responsabilidade do causídico, razão pela qual deve ser mantida a decisão agravada que majorou a verba honorária para R$ 15.000,00 (quinze mil reais). 2. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp 1612327/MG, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/08/2017, DJe 14/08/2017) Porém, a jurisprudência do STJ não é mais nessa linha. Ainda que não haja julgamento repetitivo ou súmula, colhe-se de decisões recentes dessa Corte Superior o entendimento no sentido de fixar a sucumbência a partir do valor discutido na impugnação, apresentada na RJ ou falência. O ponto de partida para esse entendimento é o REsp 1746072/PR, que não tratou especificamente de recuperação judicial ou falência. Nesse recurso especial, a 2ª Seção do STJ (que reúne a 3ª e 4ª Turmas, ou seja, que define as questões de direito privado), definiu que a regra é a fixação com base no valor da causa, apenas excepcionalmente existindo a fixação por estimativa. Nesse sentido, no informativo de jurisprudência 645/STJ, de abril de 2019, encontra-se o seguinte (grifos nossos): Processo REsp 1.746.072-PR, Rel. Min. Nancy Andrighi, Rel. Acd. Min. Raul Araújo, por unanimidade, julgado em 13/02/2019, DJe 29/03/2019 Ramo do Direito DIREITO PROCESSUAL CIVIL Tema Honorários advocatícios. Juízo de equidade. Regra subsidiária (art. 85, § 8º, do CPC/2015). Esgotamento da regra geral (art. 85, § 2º, do CPC/2015). Obrigatoriedade. Destaque O juízo de equidade na fixação dos honorários advocatícios somente pode ser utilizado de forma subsidiária, quando não presente qualquer hipótese prevista no § 2º do art. 85 do CPC. Ou seja, existindo valor debatido em juízo, esse será a base de cálculo para a fixação dos honorários, em atenção ao comando do CPC3. A partir desse julgado, do início de 2019, a jurisprudência do STJ passou a rumar no sentido da fixação dos honorários tendo por base de cálculo o valor objeto da impugnação de crédito. Nesse sentido, vejamos as decisões mais recentes sobre o tema das duas turmas de direito privado - que, por certo, indicam a tendência prevalente neste momento no STJ. Da 3ª Turma, reproduzimos o seguinte julgado (grifos nossos): RECURSO ESPECIAL. PROCESSUAL CIVIL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. INCIDENTE DE IMPUGNAÇÃO DE CRÉDITO. IMPROCEDÊNCIA. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS SUCUMBENCIAIS. FIXAÇÃO. LEGISLAÇÃO APLICÁVEL. CPC/2015. NORMA VIGENTE NA DATA DA PROPOSITURA DO INCIDENTE. HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. CRITÉRIO EQUITATIVO AFASTADO. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. O recurso especial debate a aplicação do critério equitativo para fixação de honorários advocatícios de sucumbência no julgamento de incidente de impugnação de crédito em processo de recuperação judicial, diante das regras do atual Código de Processo Civil. 2. O novo Código de Processo Civil introduziu, na disciplina da fixação dos honorários advocatícios sucumbenciais, ordem decrescente de preferência de critérios para fixação da base de cálculo dos honorários, na qual a subsunção do caso concreto a uma das hipóteses legais prévias impede o avanço para a categoria seguinte. 3. As alterações reduzem a subjetividade do julgador e incrementa a responsabilidade das partes com a atribuição de valor à causa, ao restringir as hipóteses de cabimento do critério de fixação por equidade, restritas agora às causas: em que o proveito econômico for inestimável ou irrisório ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo (art. 85, § 8º). 4. Embora a improcedência de incidente de impugnação de crédito em processos concursais (recuperacional ou falimentar) não resulte, necessariamente, em exoneração da obrigação de pagamento pelo devedor, é inegável a existência de valor econômico do resultado da disputa. 5. No caso concreto, o incidente teve como único objetivo verificar se o crédito devia ou não ser submetido aos efeitos da recuperação judicial, de modo que o proveito econômico direto não é mensurável. Todavia, o apontamento do valor atribuído à causa é certo e determinado, devendo este ser o critério utilizado, nos termos preconizados pelo atual sistema processual. 6. Recurso especial provido. (REsp 1821865/PR, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/09/2019, DJe 1/10/2019) Analisando o inteiro teor, encontra-se o seguinte (grifos nossos): No caso dos autos, o banco recorrido apresentou impugnação à relação de credores, na qual pleiteava a exclusão de seu crédito no valor de R$ 3.929.421,49 (três milhões, novecentos e vinte e nove mil, quatrocentos e vinte e um reais e quarenta e nove centavos) dos efeitos da recuperação judicial das recorrentes, atribuindo ao valor da causa o valor total da dívida. Esta impugnação foi integralmente rejeitada pelas instâncias ordinárias e, inicialmente, fixados honorários advocatícios em 10% sobre o valor da causa, vindo a ser reduzido para R$ 2.000,00 (dois mil reais) em julgamento de aclaratórios pelo Juízo de primeiro grau. (...) Com esses fundamentos, conheço do recurso especial e dou-lhe provimento para fixar os honorários advocatícios de sucumbência em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa, sendo este percentual suficiente e adequado para remunerar a atividade advocatícia desenvolvida nos autos da impugnação ao crédito. Da 4ª Turma, destaque para o seguinte acórdão (grifos nossos): AGRAVO INTERNO NOS EMBARGOS DE DECLARAÇÃO NO AGRAVO EM RECURSO ESPECIAL - AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PROVIMENTO AO RECLAMO DA PARTE ADVERSA. INSURGÊNCIA RECURSAL DO AGRAVADO. 1. Nos termos do entendimento jurisprudencial adotado por este Superior Tribunal de Justiça, é impositiva a condenação em honorários de sucumbência quando apresentada impugnação ao pedido de habilitação de crédito em sede de recuperação judicial ou falência, haja vista a litigiosidade da demanda. 2. A Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça assentou o entendimento de que os honorários advocatícios só podem ser fixados com base na equidade de forma subsidiária, quando não for possível o arbitramento pela regra geral ou quando inestimável ou irrisório o valor da causa (REsp 1746072/PR, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/02/2019, DJe 29/03/2019). 3. Agravo interno desprovido. (AgInt nos EDcl no AREsp 1496551/RS, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 21/10/2019, DJe 23/10/2019) Do inteiro teor, no que é importante para o debate, extrai-se o seguinte: No caso dos autos, depreende-se claramente o valor do bem jurídico envolvido na lide, qual seja R$ 415.621,24 (quatrocentos e quinze mil, seiscentos e vinte e um reais e vinte e quatro centavos) - fl. 20, (e-STJ) -, o qual corresponde ao valor da causa. Não se vislumbra, assim, nenhuma das hipóteses previstas no § 8° do artigo 85 do CPC/15 e autorizativas da fixação dos honorários por apreciação equitativa. (...) De rigor, portanto, a manutenção da decisão ora agravada, a qual, em consonância com a orientação jurisprudencial adotada por esta Colenda Corte sobre a matéria, fixou os honorários advocatícios sucumbenciais em 10% (dez por cento) sobre o valor atualizado da causa. Reitere-se que ainda não há súmula ou repetitivo acerca do tema. Mas as Turmas de direito privado do STJ parecem ter fixado que a base de cálculo, na impugnação de crédito no âmbito da RJ ou falência, é o valor debatido nos autos. Ainda que seja na casa de milhares ou milhões de reais, como apontam os dois julgados acima reproduzidos. Resta verificar o que ocorrerá em uma impugnação na casa das centenas de milhões ou mesmo na casa de bilhões de reais - sendo certo que existem impugnações nesses valores. De qualquer modo, devem as partes estar cientes de mais esse risco quando litigam no âmbito de uma impugnação. __________ 1 Clique aqui para ter uma visão geral do procedimento de uma RJ e entender as diversas listas. 2 Acesse aqui para entender a distinção entre habilitar, divergir ou impugnar. 3 Acerca do tema, conferir, de minha autoria, os comentários ao art. 85, § 2º do CPC (Teoria Geral do Processo: Comentários ao CPC 2015. 3. ed. São Paulo: Grupo Gen, 2019).
Texto de autoria de João de Oliveira Rodrigues Filho O Brasil ainda enfrenta severas consequências da crise econômica vivida desde os idos de 2014 como pode ser visualizado nos números da taxa de desemprego ainda em níveis alarmantes, e do desempenho do setor produtivo do país, ainda aquém do esperado para os mais diversos setores produtivos. Entretanto, esse cenário proporcionou o amadurecimento do sistema de insolvência brasileiro, notadamente o instituto da recuperação judicial, diante do aumento do ajuizamento dessas ações por todas as unidades da federação, o que permitiu o desenvolvimento de muitas teses e o questionamento de diversos institutos. Um dos assuntos sobre os quais há intensa discussão é conceito de bens de capital essenciais à atividade em recuperação judicial, diante da previsão contida na parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005, em cujo texto se confere uma proteção ao devedor em recuperação judicial diante de créditos não sujeitos ao feito recuperacional. De proêmio, não podemos esquecer que a competência para deliberar sobre bens essenciais da recuperanda é do Juízo da recuperação judicial, consoante jurisprudência do STJ. Cito os seguintes precedentes sobre o tema: (AgRg no CC 143.802/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/04/2016, DJe 19/04/2016); (AgRg no RCD no CC 134.655/AL, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 14/10/2015, DJe 03/11/2015); (REsp 1298670/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 21/5/2015, DJe 26/6/2015) Já para a definição de bem de capital, por ora, existe precedente do STJ no REsp 1.758.746/GO da lavra do Min. Bellizze, no qual se estabeleceu uma conceituação restrita sobre o tema, cuja ementa segue assim transcrita, verbis: RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CESSÃO DE CRÉDITO/RECEBÍVEIS EM GARANTIA FIDUCIÁRIA A EMPRÉSTIMO TOMADO PELA EMPRESA DEVEDORA. RETENÇÃO DO CRÉDITO CEDIDO FIDUCIARIAMENTE PELO JUÍZO RECUPERACIONAL, POR REPUTAR QUE O ALUDIDO BEM É ESSENCIAL AO FUNCIONAMENTO DA EMPRESA, COMPREENDENDO-SE, REFLEXAMENTE, QUE SE TRATARIA DE BEM DE CAPITAL, NA DICÇÃO DO § 3º, IN FINE, DO ART. 49 DA LEI N. 11.101/2005. IMPOSSIBILIDADE. DEFINIÇÃO, PELO STJ, DA ABRANGÊNCIA DO TERMO "BEM DE CAPITAL". NECESSIDADE. TRAVA BANCÁRIA RESTABELECIDA. RECURSO ESPECIAL PROVIDO. 1. A lei 11.101/2005, embora tenha excluído expressamente dos efeitos da recuperação judicial o crédito de titular da posição de proprietário fiduciário de bens imóveis ou móveis, acentuou que os "bens de capital", objeto de garantia fiduciária, essenciais ao desenvolvimento da atividade empresarial, permaneceriam na posse da recuperanda durante o stay period. 1.1 A conceituação de "bem de capital", referido na parte final do § 3º do art. 49 da LRF, inclusive como pressuposto lógico ao subsequente juízo de essencialidade, há de ser objetiva. Para esse propósito, deve-se inferir, de modo objetivo, a abrangência do termo "bem de capital", conferindo-se-lhe interpretação sistemática que, a um só tempo, atenda aos ditames da lei de regência e não descaracterize ou esvazie a garantia fiduciária que recai sobre o "bem de capital", que se encontra provisoriamente na posse da recuperanda. 2. De seu teor infere-se que o bem, para se caracterizar como bem de capital, deve utilizado no processo produtivo da empresa, já que necessário ao exercício da atividade econômica exercida pelo empresário. Constata-se, ainda, que o bem, para tal categorização, há de se encontrar na posse da recuperanda, porquanto, como visto, utilizado em seu processo produtivo. Do contrário, aliás, afigurar-se-ia de todo impróprio - e na lei não há dizeres inúteis - falar em "retenção" ou "proibição de retirada". Por fim, ainda para efeito de identificação do "bem de capital" referido no preceito legal, não se pode atribuir tal qualidade a um bem, cuja utilização signifique o próprio esvaziamento da garantia fiduciária. Isso porque, ao final do stay period, o bem deverá ser restituído ao proprietário, o credor fiduciário. 3. A partir da própria natureza do direito creditício sobre o qual recai a garantia fiduciária - bem incorpóreo e fungível, por excelência -, não há como compreendê-lo como bem de capital, utilizado materialmente no processo produtivo da empresa. 4. Por meio da cessão fiduciária de direitos sobre coisas móveis ou de títulos de crédito (em que se transfere a propriedade resolúvel do direito creditício, representado, no último caso, pelo título - bem móvel incorpóreo e fungível, por natureza), o devedor fiduciante, a partir da contratação, cede "seus recebíveis" à instituição financeira (credor fiduciário), como garantia ao mútuo bancário, que, inclusive, poderá apoderar-se diretamente do crédito ou receber o correlato pagamento diretamente do terceiro (devedor do devedor fiduciante). Nesse contexto, como se constata, o crédito, cedido fiduciariamente, nem sequer se encontra na posse da recuperanda, afigurando-se de todo imprópria a intervenção judicial para esse propósito (liberação da trava bancária). 5. A exigência legal de restituição do bem ao credor fiduciário, ao final do stay period, encontrar-se-ia absolutamente frustrada, caso se pudesse conceber o crédito, cedido fiduciariamente, como sendo "bem de capital". Isso porque a utilização do crédito garantido fiduciariamente, independentemente da finalidade (angariar fundos, pagamento de despesas, pagamento de credores submetidos ou não à recuperação judicial, etc), além de desvirtuar a própria finalidade dos "bens de capital", fulmina por completo a própria garantia fiduciária, chancelando, em última análise, a burla ao comando legal que, de modo expresso, exclui o credor, titular da propriedade fiduciária, dos efeitos da recuperação judicial. 6. Para efeito de aplicação do § 3º do art. 49, "bem de capital", ali referido, há de ser compreendido como o bem, utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period. 6.1 A partir de tal conceituação, pode-se concluir, in casu, não se estar diante de bem de capital, circunstância que, por expressa disposição legal, não autoriza o Juízo da recuperação judicial obstar que o credor fiduciário satisfaça seu crédito diretamente com os devedores da recuperanda, no caso, por meio da denominada trava bancária. 7. Recurso especial provido. (REsp 1758746/GO, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 25/09/2018, DJe 01/10/2018) Da leitura do julgado, foi considerada necessária a presença de três requisitos para que o bem seja considerado "de capital", a saber: a necessidade de estar inserido na cadeia de produção; de estar na posse da recuperanda em razão de sua corporificação e; de poder ser restituído ao final do stay period ao credor fiduciário. Fixadas essas premissas, no aludido julgado o STJ não considerou o bem móvel dinheiro como apto a ser classificado como bem de capital da recuperanda, justamente por não deter a posse da coisa e por ele não poder ser restituído ao final do stay period justamente por se classificar como bem consumível. Entretanto, com todas as vênias ao posicionamento transcrito, entendo que a questão merece uma reflexão diversa, em face de determinados elementos não trabalhados no precedente mencionado e à luz da superação do dualismo pendular como vetor de interpretação das regras do sistema da lei 11.101/2005. Estamos vivendo uma realidade cada vez mais intensa de virtualização das coisas, fato também cada vez mais presente na organização dos fatores de produção do meio empresarial e nas transações e operações do sistema financeiro mundial. Diversas atividades empresariais hoje são desenvolvidas e exploradas quase que exclusivamente através de ambiente virtual, no qual o empresário age profissionalmente com a organização dos fatores de produção na busca do lucro, sem se valer de bens corpóreos para o exercício da empresa. Seus ativos compreendem plataformas tecnológicas, know-how especializado para atuação no ambiente virtual e os recebíveis oriundos da exploração da atividade. As operações e transações do mercado financeiro global também estão sofrendo sensível impacto com o fenômeno da desmonetização, através da criação de novas tecnologias que permitem a criação de moedas virtuais e pelo recrudescimento do volume de transações eletrônicas envolvendo pagamentos de obrigações e transferência de ativos sem a utilização de papel-moeda. De fato, as pessoas estão se desvencilhando da utilização do papel-moeda para migrarem cada vez mais para as transações eletrônicas. Os meios eletrônicos de circulação de ativos possuem as vantagens de trazer maior comodidade e segurança no dia a dia das pessoas, além de possibilitar maior transparência nas operações pela facilidade de rastreamento das transações, evitando-se atos de evasão fiscal. Esse movimento de virtualização do exercício de empresa e de circulação de ativos demanda uma releitura de institutos tradicionais do direito civil e empresarial conferindo impacto direto na leitura da parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005, sob a ótica da isonomia e da própria ideia de preservação da empresa, nos termos do art. 47 do aludido diploma legal. Ao se aplicar o entendimento proposto no REsp 1.758.746, diversas atividades empresariais de relevo estarão excluídas da proteção prevista na parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005, tão somente pelo fato da operação ser realizada em ambiente virtual, impedindo que bens essenciais à atividade, dentre eles os recebíveis, possam permanecer à disposição do empresário, pela ausência de corporificação desses bens e pela restrita leitura conferida ao instituto da posse, criando-se uma distinção injustificável entre empresas regularmente exploradas. Além da deletéria desigualdade criada a se prevalecer o conceito restrito de bem de capital, é necessário termos em mente que o conceito de posse sobre ativos monetários não pode mais estar atrelado à corporificação do bem, diante do aumento das transações eletrônicas envolvendo a circulação de dinheiro. Isso porque a disponibilidade de ativos pode ser exercida a qualquer momento pelo seu titular através de acesso aos instrumentos de internet banking, aplicativos de telefone celular ou até mesmo pela utilização de cartões magnéticos pelos meios de operações de crédito e débito, cada vez mais acessíveis em nível global. De mais a mais, ainda que se sustente a impossibilidade de restituição do dinheiro ao final do stay period pelo fato do bem ser consumível, diferentemente de uma máquina ou qualquer outro bem não consumível, não se pode olvidar que há renovação dos recebíveis pela perenidade dos pagamentos realizados pelos devedores da recuperanda no decurso de tempo. Assim, ao final do período de suspensão das ações e execuções contra a devedora, os recebíveis continuarão a existir e a garantia poderá ser exercida no momento oportuno sem prejuízo ao proprietário fiduciário. Na realidade, ao se permitir o uso indiscriminado da trava bancária, o que se proporcionará é o risco de paralisação da atividade pelo sufocamento financeiro resultante do impedimento de acesso ao dinheiro e, consequentemente, de cessação da garantia outrora ofertada, pois a empresa não mais existirá e os recebíveis serão extintos antes mesmo da satisfação total do débito existente junto ao credor fiduciário. Ao se considerar a existência de atividades empresariais engendradas predominantemente em meios virtuais ou de prestação de serviços que possuem ativos essenciais exclusivamente em meios virtuais, somada à uma releitura do conceito de posse sobre bens existentes em sistemas eletrônicos, permite-se a subsunção dos recebíveis da recuperanda no conceito de bem de capital, justamente porque inseridos na cadeia de produção através da composição do fluxo de caixa, pela possibilidade do exercício imediato de posse através dos meios eletrônicos à disposição de uso e porque poderá haver a perenidade da garantia diante da continuidade dos pagamentos que serão feitos à recuperanda, restituindo-se ao credor fiduciário, ao final do stay period, a possibilidade de realização da trava bancária na hipótese de inadimplemento da obrigação principal. Essa visão sobre o tema está em consonância com a proporcionalidade buscada pela superação do dualismo pendular na recuperação judicial, a fim de que os benefícios sociais gerados pela atividade sejam mantidos, afastando-se a visão restritiva de mera proteção de credores ou devedor, conforme o caso. No paradigmático REsp 1.337.989, o Eminente Ministro Luis Felipe Salomão bem delineou um importante vetor interpretativo da lei 11.101/2005, assim vernaculamente posto: Nessa ordem de ideias, a hermenêutica conferida à lei 11.101/2005, no tocante à recuperação judicial, deve sempre se manter fiel aos propósitos do diploma, isto é, nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resultar circunstância que, além de não fomentar, na verdade, inviabilize a superação da crise empresarial, com consequências perniciosas ao objetivo de preservação da empresa economicamente viável, à manutenção da fonte produtora e dos postos de trabalho, além de não atender a nenhum interesse legítimo dos credores, sob pena de tornar inviável toda e qualquer recuperação, sepultando o instituto. Desse modo, a aplicação da lei 11.101/2005, no tocante ao instituto da recuperação judicial, deve atentar para a teoria da superação do dualismo pendular proposta por Daniel Carnio Costa e reconhecida no V. Acórdão do recurso especial acima mencionado, verbis: Agora, pela teoria da superação do dualismo pendular, há consenso, na doutrina e no direito comparado, no sentido de que a interpretação das regras da recuperação judicial deve prestigiar a preservação dos benefícios sociais e econômicos que decorrem da manutenção da atividade empresarial saudável, e não os interesses de credores ou devedores, sendo que, diante das várias interpretações possíveis, deve-se acolher aquela que buscar conferir maior ênfase à finalidade do instituto da recuperação judicial Isso porque a viabilização da superação da crise atende à tutela de interesses públicos e sociais consistentes na preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial saudável, quais sejam, a geração de empregos, o recolhimento de tributos, a circulação de bens, produtos, serviços e a geração de riquezas, os quais devem se sobrepor aos interesses particulares e parciais, de credores e devedores, dentro do processo de recuperação judicial. Nesse sentido, o termo "retirada do estabelecimento", diante das circunstâncias inerentes às atividades virtuais ou de bens armazenados em meios eletrônicos somado ao vetor de interpretação constante do REsp 1.337.989, deve ser entendimento como impedimento à realização da garantia durante o stay period, justamente permitir que atividades empresariais virtuais ou de prestação de serviços também sejam alcançadas pela proteção constante da parte final do parágrafo 3º do art. 49 da lei 11.101/2005. Por isso, a melhor interpretação da ressalva trazida pelo art. 49, §3º, da lei 11.101/2005 deve ser no sentido de garantir a plenitude da busca da superação da crise empresarial, para vedar a discriminação de atividades empresariais regulares atuantes nos meios virtuais ou que somente possuam bens de produção essenciais situados em ambientes eletrônicos estendendo-lhes, também, a proteção de manutenção dos bens essenciais à atividades durante o stay period, tudo com o escopo de se preservar os benefícios sociais da atividade empresarial.
Texto de autoria de Paulo Penalva Santos I - A problemática dos créditos da Fazenda Pública na recuperação judicial O objetivo deste artigo é analisar a problemática dos créditos da Fazenda Pública na recuperação judicial à vista de novas perspectivas. A primeira delas é por meio do instituto da transação trazido pela Medida Provisória 899, de 16 de outubro de 2019. A segunda são reflexos tributários no processo de recuperação de empresas trazidos pelo Substitutivo de Plenário ao Projeto de lei 6.229/2005 de relatoria do Deputado Hugo Leal. Cabe destacar que há vinte e seis outros projetos de reforma da lei falimentar que foram apensados a este projeto de lei. O termo "Créditos da Fazenda Pública" abrange os créditos de natureza tributária (impostos, as taxas e as contribuições) e também os créditos não tributários, como as multas de natureza administrativa, impostas pelo Poder Público. A lei 11.101/2005, trouxe grande avanço ao indicar no artigo 47 o objetivo da recuperação judicial, que é viabilizar "a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". Tal objetivo coincide com a noção de interesse público primário, visto que é do interesse coletivo que a atividade econômica prospere, gere empregos e recolha impostos. Desde a edição da atual Lei de Falências e da lei complementar 118/2005, os empresários brasileiros enfrentam desafios quanto à regularidade do crédito público no processo de recuperação judicial. No início, a legislação falimentar e o CTN dispunham que "leis especiais" (de cada um dos entes) instituiriam parcelamentos especiais para empresas em recuperação judicial. Todavia, a apresentação de certidão de regularidade fiscal, revelou-se impraticável, por não editadas as leis instituindo o parcelamento especial. Isso levou a jurisprudência a consolidar-se no sentido da inexigibilidade da apresentação de certidões fiscais, enquanto não editadas leis especiais de parcelamento para empresas em recuperação judicial, por ser o parcelamento direito da empresa em recuperação judicial. No âmbito Federal tentou-se resolver o problema por meio da lei Federal 13.043/2014, que introduziu o artigo 10-A à lei 10.522/2002, instituindo parcelamento, para empresa em recuperação judicial, com prazo de 84 meses e escalonado, com a fixação percentuais reduzidos para as parcelas a serem pagas nos primeiros anos. Contudo, a nova não resolveu o problema, porque exige a consolidação todas as dívidas tributárias do devedor e a renúncia ao direito de discuti-las. A lei Federal 13.043/2014 (e diversas leis estaduais e municipais) não foram capazes de proporcionar os meios que viabilizassem o equacionamento do passivo tributário das empresas em recuperação judicial - o que é condição econômica para o êxito na superação da crise. A análise das leis que foram editadas dispondo sobre parcelamento especial destinado a empresas em recuperação judicial mostra que não houve efetivo comprometimento dos entes da Federação (União, Estados, Distrito Federal e municípios) com o soerguimento da empresa, mas, apenas, a preocupação com o interesse arrecadatório do fisco, nem sempre coincidente com o interesse primário do Estado, de manter a fonte produtora. Diante deste cenário é que surgiram a Medida Provisória 899 de 2019 tratando do instituto da transação e projetos de lei visando reformar a lei falimentar brasileira, incluindo alguns aspectos tributários. II - A transação instituída pela MP 899/2019 A Medida Provisória 899 editada em 16 de outubro de 2019 regulamenta, de forma inédita, o artigo 171 do CTN estabelecendo parâmetros para que a União e entidades da administração pública federal indireta transacionem com o fim de extinguir litígios relativos a créditos públicos. Podem ser objeto de transação créditos não judicializados, administrados pela Receita Federal do Brasil e dívida ativa e tributos da União cobrados pela Procuradoria da Fazenda Nacional (§ 3º do artigo 1º). Em relação aos créditos de titularidade de autarquias de fundações federais - e aí entram as agências reguladoras - inscritos na dívida ativa, cobrados pela Procuradoria Geral da União a possibilidade de transação depende da edição de ato do Advogado Geral da União (inciso III do § 3º do art. 1º da MP). Há, na Medida Provisória aspectos extremamente positivos. Um deles é a norma expressa afastando a possibilidade de atribuição aos agentes públicos que tenham participado do processo de composição do conflito, judicial ou extrajudicialmente, de responsabilidade civil, administrativa, criminal e perante órgãos de controle interno e externo, salvo quando agirem com dolo ou fraude para obter vantagem para si ou para ou outrem. Outro aspecto bem relevante é a introdução de norma que indica mudança de rumo na forma de atuação do agente público, com a atribuição de parcela de discricionariedade para buscar a alternativa de solucionar individualmente casos concretos (transação individual) ou de grupos (transação por adesão). Contudo, em alguns pontos a MP 899/2019 foi bem tímida, como por exemplo, quando proíbe a redução do principal inscrito na dívida ativa da União, de determinadas multas por infração à legislação tributária e de multas de natureza penal. Além disso, limitou bastante a discricionariedade do agente público ao determinar, como regra, que a quitação da dívida se dê em até 84 meses da data da transação, com redução de até 50% do valor total dos créditos transacionados (§ 3º, I e II, do artigo 5º), ou, no caso de pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte, no prazo de 100 meses e redução de até 70%. Outro ponto negativo, é a previsão da possibilidade da Fazenda Pública requerer a convolação de recuperação judicial em falência, ou ajuizar requerimento de falência, em caso de rescisão da transação (artigo 8º, II). Trata-se de medida que não contribui para que o contribuinte tenha a necessária confiança para fazer uso da transação como meio de resolver suas pendências com o fisco, abrindo mão da chance do êxito na discussão de tese jurídica, no caso da no contencioso tributário de relevante e disseminada controvérsia jurídica. III - Os projetos de lei de reforma da lei 11.101/2005 e da legislação tributária pertinente Por sua vez, o Substitutivo ao projeto de lei 6.299/2005, aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados, contém normas inovadoras e que mostram o inequívoco comprometimento do legislador na busca de solução para a crise da empresa. Em relação ao passivo tributário, o Substitutivo tratou do equacionamento do passivo tributário, no seu artigo 5º, que altera a lei 10.522/2002, dando nova redação ao artigo 10-A e acrescenta os artigos 10-B e 10-C. Em resumo, foram estabelecidas condições especiais de parcelamento dos débitos para com a Fazenda Nacional (artigos 10-A e 10-B) e como alternativa ao parcelamento a possibilidade de transação (artigo 10-C). No concernente às alternativas de parcelamento oferecidas, é bem positiva a possibilidade de liquidação de até 30% dos débitos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil com créditos decorrentes de prejuízo fiscal e base de cálculo negativa da CSLL ou com outros créditos próprios relativos aos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil, já que, com isso, não há comprometimento do caixa. O aspecto negativo é a faculdade atribuída à Procuradoria da Fazenda Nacional de requerer a convolação da recuperação judicial e falência, no caso de exclusão do devedor do parcelamento. É o mesmo problema existente na MP 899/2019, acima mencionada. O Substitutivo inova também ao prever a possibilidade do devedor, até a juntada do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores, submeter à Procuradoria da Fazenda Nacional proposta de transação indicando parâmetros a serem observados na formalização da transação. A transação é aplicável também aos créditos de qualquer natureza das autarquias e fundações públicas federais. Como o legislador federal não tem competência para dispor sobre créditos tributários e não tributários dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, o Substitutivo prevê a possibilidade de que tais entidades da federação, por lei de iniciativa própria, autorizem a transação em relação aos respectivos créditos1. O Substitutivo estabelece parâmetros a serem observados na transação, dentre eles, destacam-se (i) prazo máximo de 100 meses para quitação da dívida (aumentado para 120 meses, no caso microempresa ou pequena empresa), (ii) limite máximo para reduções de 70%, e (iii) observância dos percentuais médios de alongamento de prazos e de descontos previstos no plano de recuperação judicial. Por fim, outra questão digna de nota são os efeitos tributários da redução das dívidas obtida em negociação bem-sucedida. Os descontos obtidos na renegociação de dívidas são considerados receita e, por isso, tem impacto tributário relevante na apuração do Imposto de Renda ("IR/PJ") e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido ("CSLL"), em razão do limite de 30% para compensar o lucro de um exercício com o prejuízo fiscal acumulado2. Os descontos são considerados receita na apuração da base de cálculo de tais contribuições. Considerando os graves efeitos da tributação dos ganhos obtidos pelas empresas que recorrem à recuperação judicial, em especial aquelas tributadas com base no lucro real e que tem prejuízo fiscal acumulado, conclui-se que uma das mais relevantes inovação trazidas no Projeto de lei 6.229, de 2005 está no acréscimo do artigo 50-A à lei 11.101/2005. O dispositivo acrescido prevê que, na hipótese de renegociação de dívidas no âmbito de processo de recuperação judicial, os ganhos obtidos pelo devedor, não serão computados na base de cálculo da CONFINS e da Contribuição para o PIS/PASEP e, ainda permite a compensação dos ganhos com o prejuízo fiscal do IRPJ e bases negativas da CSLL sem o limite de 30%. Percebe-se que o artigo 50-A do PL é medida salutar e de efeito imediato. IV - Conclusão Em síntese, a previsão de transação fiscal, prevista na MP 889/2019 e o PL relatado pelo Deputado Hugo Leal representam um avanço em relação ao equacionamento das questões tributárias na recuperação judicial. A realidade tem demonstrado que os entes da Federação devem ter um efetivo comprometimento com o soerguimento da empresa, e não apenas a preocupação com o interesse arrecadatório, que não coincide com o interesse primário do Estado que é a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. __________ 1 No âmbito estadual, merece destaque a Lei Estadual n. 8.502, de 30 de agosto de 2019, do Rio de Janeiro, que dispõe sobre a transação e o parcelamento de débitos fiscais de devedores em recuperação judicial. 2 O STF, ao julgar o RE 591.340 ficou a seguinte tese em repercussão geral: "É constitucional a limitação do direito de compensação de prejuízos fiscais do IRPJ e da base de cálculo negativa da CSLL" (Tema 117).
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa O Conselho Nacional de Justiça aprovou, por unanimidade, no último dia 8/10/2019 (298ª Sessão Ordinária) três atos normativos referentes à recuperação de empresas e falências. São três recomendações que visam tornar mais eficiente a atuação do Poder Judiciário nos processos que tratam da insolvência empresarial. As recomendações aprovadas são frutos dos estudos desenvolvidos pelo Grupo de Trabalho criado pela Portaria 162/2018, pelo presidente do CNJ e do STF ministro Dias Toffoli, por iniciativa do conselheiro Henrique Ávila, e que é presidido pelo ministro do STJ Luis Felipe Salomão. O Grupo de Trabalho foi criado para estudo e implementação de boas práticas na gestão de processos de insolvência empresarial e é composto por algumas das maiores autoridades nos temas de falência e recuperação judicial de empresas no Brasil. A primeira recomendação aprovada pelo Plenário do CNJ diz respeito à Constatação Prévia. Ficou reconhecido de forma unânime pelo Conselho Nacional de Justiça que a constatação prévia da regularidade/completude da documentação apresentada pela devedora e das reais condições de funcionamento da empresa são medidas de inegável utilidade para a adequada e racional gestão desses processos de insolvência empresarial. A recomendação oferece aos magistrados um modelo de constatação prévia fortemente baseado no procedimento de perícia prévia aplicado desde 2011 na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo. Segundo a recomendação da Constatação Prévia, logo após a distribuição do pedido de recuperação empresarial, poderá o magistrado nomear um profissional de sua confiança, com capacidade técnica e idoneidade para promover a constatação das reais condições de funcionamento da empresa requerente e a análise da regularidade e da completude da documentação apresentada juntamente com a petição inicial. A remuneração do profissional deverá ser arbitrada posteriormente à apresentação do laudo, observada a complexidade do trabalho desenvolvido. O magistrado deverá conceder o prazo máximo de cinco dias para que o perito nomeado apresente laudo de constatação das reais condições de funcionamento da devedora e de verificação da regularidade documental, decidindo em seguida, sem a necessidade de oitiva das partes. A constatação prévia consistirá, objetivamente, na análise da capacidade da devedora de gerar os benefícios mencionados no art. 47, bem como na constatação da presença e regularidade dos requisitos e documentos previstos nos artigos 48 e 51, todos da lei 11.101/2005. Não preenchidos os requisitos legais, o magistrado poderá indeferir a petição inicial, sem convolação em falência. Caso a constatação prévia demonstre que o principal estabelecimento da devedora não se situa na área de competência do juízo, o magistrado deverá determinar a remessa dos autos, com urgência, ao juízo competente. A segunda recomendação aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça diz respeito à criação das Varas Especializadas Regionais. O Grupo de Trabalho analisou e adotou estudos que demonstram que Varas especializadas em recuperação empresarial e falência são significativamente mais eficientes na condução de processos afetos à matéria do que varas de competência cumulativa. Nesse sentido, e com base em análises estatísticas realizadas pela Associação Brasileira de Jurimetria, o CNJ recomendou "a todos os Tribunais de Justiça dos Estados e do Distrito Federal e Territórios que promovam a especialização de varas em Recuperação empresarial e falência nas comarcas que receberam a média anual de 221 casos novos principais e incidentes relacionados à matéria, dos quais pelo menos 30 pertencentes às classes "Falência de Empresários, Sociedades Empresariais, Microempresas e Empresas de Pequeno Porte" ou "Recuperação Judicial", considerados os últimos três anos". Note-se que, segundo os estudos estatísticos, os incidentes dos processos de insolvência (como impugnações de crédito) também devem ser computados na contagem da média de casos novos. Na hipótese de a Comarca não possuir números suficientes para ter uma Vara especializada em falência e recuperação judicial, a recomendação autoriza que sejam somados os números de distribuição de casos novos (principais e incidentes) de Comarcas contíguas situadas em uma mesma circunscrição ou região administrativa ou de Comarcas com até 200 quilômetros de distância entre si. A especialização de Vara em recuperação empresarial e falência com competência regional poderá ocorrer sem prejuízo da manutenção da competência das Varas especializadas preexistentes na região, às quais também poderá ser atribuída competência regional. Por fim, em relação às varas especializadas, nota-se que a recomendação autoriza, de forma excepcional, a inclusão de processos empresariais nas Varas de recuperação empresarial e falência em caso de haver disparidade na demanda de processos de uma mesma Comarca. É importante destacar que os estudos demonstram que a mistura de processos empresariais com processos de insolvência (falência e recuperação judicial) não favorece a prestação jurisdicional eficiente. De toda forma, sendo essa uma última alternativa, ainda assim é preferível do que se ter processos de falência e recuperação judicial em varas de competência geral cumulativa. Há, portanto, uma evidente gradação na recomendação do CNJ: devem ser criadas Varas especializadas em falência e recuperação judicial nas Comarcas em que os números mínimos de distribuição forem atingidos. Caso não exista demanda suficiente, somam-se os números de Comarcas pertencentes à uma mesma região ou de Comarcas distantes entre si até 200 quilômetros para criação das Varas de falência e recuperação Judicial regionais. Como última hipótese, e no intuito de viabilizar a especialização onde não exista demanda suficiente, autoriza-se a soma de processos empresariais juntamente com processos de falência e recuperação judicial. A terceira e última recomendação aprovada pelo Conselho Nacional de Justiça diz respeito ao uso da mediação em processos de falência e recuperação empresarial. Nesse sentido, o CNJ recomenda a todos os magistrados responsáveis pelo processamento e julgamento dos processos de recuperação empresarial e falências, de Varas especializadas ou não, que promovam, sempre que possível, nos termos da lei 13.105/2015 e da lei 13.140/2015, o uso da mediação, de forma a auxiliar a resolução de todo e qualquer conflito entre o empresário/sociedade, em recuperação ou falidos, e seus credores, fornecedores, sócios, acionistas e terceiros interessados no processo. A recomendação ainda exemplifica hipóteses de aplicação da mediação em processos de falência e recuperação empresarial, esclarecendo o cabimento dessa forma alternativa de solução de conflitos nos incidentes de impugnação de crédito, na negociação do plano de recuperação judicial, no caso de disputa entre acionistas da empresa devedora, dentre outros. É importante destacar que a recomendação veda a utilização de mediação para definição de classificação de créditos. Por fim, a recomendação estabelece critérios para escolha e atuação do mediador, vedando ao Administrador Judicial a acumulação das funções de mediador no mesmo processo onde já atua na administração judicial. As recomendações do CNJ representam um grande avanço na gestão dos processos de insolvência empresarial e, por essa razão, carregam a esperança dos aplicadores do direito no atingimento da maior eficiência no trato das questões relacionadas à crise da empresa. Os estudos do Grupo de Trabalho do CNJ continuam em franca evolução, aguardando-se, em breve, a edição de novos atos normativos que colaborarão com a melhor gestão dos processos de insolvência. Sigamos nessa evolução!
Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira A prescrição frequentemente é objeto de disciplina especial nas leis falimentares1. A razão dessa disposição na lei concursal, afastada daquela prevista na lei geral civil, justifica-se pelos efeitos desencadeados pela quebra no direito dos credores, especialmente a suspensão das ações em tramitação contra o devedor falido e a inviabilidade da promoção de ações fundadas em direito líquido, que devem passar pela habilitação de crédito. Os dispositivos legais referidos na nota 1 cuidam só de um aspecto da prescrição nos processos concursais, que é aquele relativo às obrigações pecuniárias de responsabilidade do devedor. Dois regimes existem para disciplinar a matéria: o que consagra efeito interruptivo da prescrição à habilitação de crédito (ou, enfim, a qualquer ato, ainda que sem esse nome, representativo de pretensão de recebimento de direito em face do devedor falido, no respectivo processo concursal) e o que declara desde logo suspensa (ou interrompida) a prescrição por força da sentença declaratória de falência. Seguem o primeiro regime Alemanha2, França3, Itália4, Argentina5e México6, por exemplo. Esse regime na verdade obedece à regra geral. A iniciativa do credor, de sair da inércia e comparecer ao processo concursal, é que dá azo à interrupção da prescrição7. Espanha8 e Portugal9 seguem, hoje, outro regime, segundo o qual a sentença declaratória produz o efeito em relação à prescrição. É o ato judicial, independentemente de qualquer iniciativa do credor, que desencadeia efeito em relação à prescrição. O artigo 6.º, "caput", da lei 11.101/05 cuida da matéria, para dizer que a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição. Seguimos, portanto, o regime da península ibérica. O artigo 6º, inciso I, na redação que se pretende introduzir na lei 11.101/05, continua a consagrar o efeito suspensivo do curso prescricional pelo só efeito da declaração da falência ou do deferimento do processamento da recuperação judicial. Até aí, não há novidade. Ocorre que se acrescenta um dispositivo com o seguinte teor: O credor deverá apresentar pedido de habilitação ou reserva de crédito em no máximo três anos a contar da data de publicação da sentença que "decretar a falência". Alcançando apenas a falência, essa previsão contrasta com a ideia de suspensão até aqui vigente, que segue até o encerramento do processo falimentar. A marcação de prazo para a habilitação de crédito ou pedido de reserva é mais compatível com a ideia de interrupção do curso da prescrição do que com a ideia de suspensão. Parece que o uso da palavra suspensão não está correto. Assegurado ao credor o prazo de três anos para exercer o direito de ajuizar a habilitação de crédito, tem-se que a sentença declaratória de falência interrompe o prazo prescricional, que volta a correr, agora pelo prazo de três anos, qualquer que seja a pretensão titularizada pelo credor. Na prática falimentar, chegamos a ver uma habilitação de crédito apresentada 18 anos após a declaração de falência. Isso é uma anomalia. É preciso conferir à sentença declaratória de falência o efeito interruptivo do prazo prescricional. Assim compreendido o fenômeno, ter-se-á uma boa contribuição para a não eternização dos processos falimentares. Por certo a proposta andaria mais afeiçoada aos institutos relativos à prescrição se preferisse a interrupção à suspensão, noções essas que já estão consolidadas em nosso direito, mas que a legislação falimentar teima em ignorar. __________ 1 Art. 23, § 4.º, do decreto 917, de 21/10/1890: "A prescrição ficará interrompida..."; art. 50 da lei 2024, de 17/12/1908: "Durante a falência ficará interrompida a prescrição"; art. 50 do decreto 5746, de 9/12/1929: "Durante a falência ficará interrompida a prescrição"; art. 47 do Decreto-Lei 7661, de 21 de junho de 1945: "Durante o processo da falência fica suspenso o curso de prescrição relativa a obrigações de responsabilidade do falido". A insolvência civil, disciplina no Código de Processo Civil, é processo autônomo, forma concurso de credores, e disciplina a prescrição no artigo 777: "A prescrição das obrigações, interrompida com a instauração do concurso universal de credores, recomeça a correr no dia em que passar em julgado a sentença que encerrar o processo de insolvência". Outra lei que disciplina concurso de credores é a lei 6.024, de 13/3/1974, que cuida da intervenção e liquidação extrajudicial de instituição financeira. O artigo 18, "e", prevê, como efeito do decreto de liquidação extrajudicial, a "interrupção da prescrição relativa a obrigações de responsabilidade da instituição". 2 Código Civil, § 209, 2, que prevê a interrupção da prescrição pela "apresentação de pretensão em falência". Para Enneccerus-Nipperdey, Tratado de derecho civil, tomo I, parte II, trad. da 39ª Ed. alemã por Blas Perez González, Barcelona, Bosch, 1950, p. 531, equipara-se à interposição de demanda o "comparecimento ao concurso" e, por isso, o efeito interruptivo. 3 A declaração do credor equivale a uma ação e tem o efeito de interromper a prescrição até a extinção do processo coletivo (Code de Commerce, 99.ª ed., Chaput-Rontchevsky, Paris, Dalloz, 2004, p. 840-841, nota ao art. 621-43; Georges Ripert, Tratado elemental de derecho comercial, v. IV, Buenos Aires, TEA, 1955, n. 2.708, p. 327. 4 Art. 2943 do Código Civil c.c. artigo 94 da Lei Falimentar. 5 Art. 32 da lei 24.522/95: "El pedido de verificación produce los efectos de la demanda judicial, interrumpe la prescripción e impide la caducidad del derecho y de la instancia". A doutrina esclarece que a verificação de créditos se assemelha a uma demanda judicial, ainda que não o seja, mas produz o efeito de interromper a prescrição. Assim, Roberto Garcia Martinez, Derecho concursal, Buenos Aires, Abeledo-Perrot, 1997, p. 138. Pedro Figueroa Casas, Derecho concursal, org. de Adolfo A.N. Rouillon, Buenos Aires, La ley, 2004, p. 240, diz que a interrupção da prescrição é "consequência lógica da proibição de iniciar ações judiciais contra o falido". Cabe acentuar, entretanto, que a consequência lógica levaría à adoção do criterio da lei brasileira - efeito automático da sentença de quebra e não de ato do credor. 6 Articulo 134.- Interrumpen la prescripción del crédito de que se trate: I. La solicitud de reconocimiento de crédito aun cuando ésta no cumpla con los requisitos establecidos en el articulo 125 del presente ordenamiento o sea presentada de manera extemporánea; II. Las objeciones que por escrito se realicen respecto de la lista provisional. III. La sentencia de reconocimiento, graduación y prelación respecto de los créditos incluidos en ella, o IV. La apelación respecto de los créditos cuyo reconocimiento se solicite. 7 Piero Pajardi-Vittorio Colesanti, Codice del fallimento, 3.ª ed., Milano, Giuffrè, 1997, p. 566: "Corretamente, o efeito interruptivo da prescrição vem coligado à apresentação de uma demanda de admissão ao passivo (voltada a tutelar o direito do credor) e não à declaração de falência do devedor (que é destinada a provocar a execução concursal geral)". Gustavo Bonelli-Virgilio Andrioli, Il Fallimento, v, I, 3.ª ed., Milano, Francesco Vallardi, 1938, n. 284, p. 644, explica que a substituição do falido pelo administrador judicial é ipso jure e sem solução de continuidade. Por isso, não produz nenhuma suspensão do curso do prazo da prescrição das relações ativas ou passivas do falido. A suspensão decorre da "insinuazione nel passivo". O autor chama de errônea a suspensão da prescrição por força da sentença de quebra. 8 Art. 60 da Ley Concursal 22/2003. Segundo a doutrina de Fernando Juan Y Mateu, "a interrupção da prescrição é um efeito automático da declaração de concurso, vinculado exclusivamente a dita declaração (...) A interrupção da prescrição é um efeito que se produz ope legis, sem necessidade de que o juiz o ordene expressamente na decisão de declaração do concurso, que se produz à margem das vontades do devedor e dos credores; e se produz sem necessidade de atuação alguma nesse sentido por parte da administração concursal", in Comentario de La ley concursal, tomo I, Coord. de Ángel Rojo e Emilio Beltrán, Madrid, Civitas, 2004, p. 1112. 9 Art. 100 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
terça-feira, 24 de setembro de 2019

O fim da recuperação judicial

Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone Diversos projetos de lei têm sido apresentados ao Congresso Nacional para alterar a Lei de Insolvência Brasileira. Com o entendimento de que os interesses dos credores não eram os únicos a serem afetados por uma crise do empresário devedor e de que a concordata era instrumento insuficiente ao empresário para a superação da crise, a lei 11.101 foi em 2005 promulgada. Dentre seus objetivos, orientava-se pela preservação da atividade empresarial, pois, nas palavras do senador Ramez Tebet, autor do relatório apresentado à Comissão de Assuntos Econômicos à época sobre o Projeto, "gera riqueza econômica e cria emprego e renda, contribuindo para o crescimento e desenvolvimento social do país". Essa preservação da atividade empresarial, em benefício de todos os envolvidos, foi estruturada por meio de dois sistemas: a recuperação e a falência. Diante de uma crise econômico-financeira temporária e reversível, permitiu-se ao empresário devedor, por meio do instituto da recuperação, negociar com os seus credores uma solução comum para a superação da crise que acometia a atividade. A preservação da atividade empresarial viável sob a condução do empresário, orientada por um plano de recuperação judicial negociado com os credores, poderia resultar na maior satisfação de todos os interessados. A postergação injustificada de uma liquidação forçada de uma empresa economicamente inviável sob a condução do devedor, contudo, apenas protelaria sua falência e consumiria os recursos escassos. Inviável a condução da empresa pelo devedor, a decretação da quebra, com a imediata alienação dos bens, permitiria a preservação da empresa por meio da arrematação dos bens do falido por outros empresários, que passariam a desenvolver a atividade de forma mais eficiente e em benefício de toda a coletividade. Passados 14 anos de vigência da lei, todavia, tais objetivos não têm sido satisfatoriamente alcançados. Em estudo realizado pelo Núcleo de Estudo e Pesquisa sobre Insolvência da PUC/SP (NEPI), em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria (ABJ), foi constatado que, embora 72,1% dos planos de recuperação judicial tenham sido aprovados pela Assembleia Geral de Credores, apenas 18,2% dos processos de recuperação judicial efetivamente conseguiram se encerrar sem a decretação da falência pelo cumprimento ao menos das obrigações vencidas nos dois primeiros anos, ainda que o plano mediano de pagamento das obrigações quirografárias seja de aproximadamente 10 anos. Se a recuperação judicial aparenta não permitir a concessão da recuperação apenas aos empresários com atividades economicamente viáveis, a falência também não tem sido eficiente a permitir a maximização do valor dos ativos e da satisfação dos interesses dos credores. Conforme estudo de Jupetipe, Martins, Mário e Carvalho, os processos de falência duraram, em média, 9,2 anos, com alienação de bens que resultou em perda de valor de 46,84% e ressarcimento aos credores de apenas 12,4% do montante devido. A lei 11.101/05, pelos resultados objetivamente colhidos até então, decerto, precisa de pontuais ajustes. Dentre as últimas alterações propostas ao Projeto de lei 6.229/2005, várias são pertinentes a tornar mais eficiente o procedimento de insolvência. Destacam-se as alterações no procedimento de verificação de crédito, com a limitação temporal às habilitações retardatárias e a formação do quadro geral de credores provisório; a desburocratização das publicações das convocações; a proteção ao investidor; a célere liquidação dos bens no procedimento falimentar, com determinação de prazo ao administrador judicial e previsão de valor mínimo escalonado de alienação. A inserção da proposta de alteração ao art. 56 da lei 11.101/05, à revelia da comunidade acadêmica e dos aplicadores, contudo, poderá colocar tudo a perder. Nos termos do dispositivo da proposta, diante da rejeição do plano de recuperação apresentado pelo devedor, permite-se a apresentação de plano alternativo pelos próprios credores, com a isenção das garantias pessoais prestadas pelos sócios em relação aos créditos a serem novados. A despeito dessa possibilidade de propositura, não foram inseridos qualquer parâmetros a exigirem que o empresário devedor requeira as medidas de reestruturação, nem foi permitido que os credores, ainda que possam apresentar plano alternativo, possam requerer o ingresso em recuperação do devedor em crise. A proposta de alteração da lei, sem maiores estruturações ou quaisquer análises, pode criar incentivo perverso. Ao permitir que o plano de recuperação judicial seja apresentado pelos próprios credores, sem que possam também requerer a recuperação do devedor ou sem que haja parâmetros para que esse seja compulsoriamente submetido ao procedimento, desincentiva a negociação entre devedor e credor na busca de uma solução comum. Mais que isso, incentiva os credores a rejeitarem quaisquer propostas apresentadas pelo devedor como condição para apresentarem o próprio plano de recuperação judicial a ser por eles próprios aprovado. A circunstância de a propositura do plano alternativo implicar a isenção das garantias pessoais prestadas pelos sócios em relação aos créditos a serem novados não freia o comportamento estratégico dos credores. Apenas fará com que a maioria dos credores, de modo ainda mais oportunista, aprove plano de recuperação judicial por ela proposto em detrimento dos próprios credores minoritários e detentores das garantias pessoais. Nesse cenário provável, com o risco de afastamento da condução de sua própria empresa e a possibilidade de confisco dos seus ativos pelos próprios credores à sua revelia e sem que haja absolutamente qualquer parâmetro que obrigue o empresário devedor a requerer as medidas de restruturação ou a elas se sujeitar, o comportamento esperado do empresário devedor será o de mitigar seu risco e maximizar sua utilidade. Mesmo em crise econômico-financeira, o empresário devedor simplesmente optará por não ingressar com o pedido de recuperação. Sem processo, as diversas alterações benéficas propostas pelo projeto de lei 6.229/2005 não terão onde ser aplicadas e, pior, o empresário brasileiro continuará sem ter um instituto adequado para que possa superar a crise financeira que acomete sua atividade e que permitiria o desenvolvimento econômico nacional.
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque Olá, amigo leitor! Um dos principais ramos na economia brasileira é o agronegócio, o qual abrange todos os processos e atividades sociais relacionados com a agricultura e a pecuária - incluindo não apenas as atividades no campo, mas também, por exemplo, a fabricação de máquinas e equipamentos agrícolas. Sua importância é inegável para o nosso país, representando cerca de um terço do PIB brasileiro1. Como não poderia deixar de ser, tal atividade econômica também pode, eventualmente, estar envolvida em processos de recuperação judicial. Ao lado das pessoas jurídicas, poderia o produtor rural - mesmo sendo uma pessoa física - ingressar com pedido de recuperação judicial? A resposta é positiva: nos termos do art. 971 do Código Civil, o "empresário, cuja atividade rural constitua sua principal profissão, pode (...) requerer inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis da respectiva sede, caso em que, depois de inscrito, ficará equiparado, para todos os efeitos, ao empresário sujeito a registro". Verifica-se, portanto, que para que o produtor rural seja considerado empresário, deve promover o seu registro, observado o prazo mínimo de dois anos de exercício regular da atividade (art. 48, lei 11.101/2005). E a qualidade de empresário é indispensável para que possa ser deferido o pedido de recuperação judicial (art. 1º da lei 11.101/2005). Dessa constatação, abrem-se algumas questões polêmicas. Primeiro: deve a certidão comprobatória do registro ser apresentada já com a petição inicial da recuperação judicial ou se admite o registro posterior ao ajuizamento? A indagação foi respondida pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no julgamento do Recurso Especial 1.193.115, em que se decidiu, por maioria (vencida a Min. Nancy Andrighi), que o "deferimento da recuperação judicial pressupõe a comprovação documental da qualidade de empresário, mediante a juntada com a petição inicial, ou em prazo concedido nos termos do CPC 284 [de 1973], de certidão de inscrição na Junta Comercial, realizada antes do ingresso do pedido em Juízo, comprovando o exercício das atividades por mais de dois anos, inadmissível a inscrição posterior ao ajuizamento"2. Em síntese, portanto, a inscrição do produtor rural no registro civil deve ser anterior ao pedido de sua recuperação judicial. Prevaleceu a tese de que, muito embora a atividade empresária possa se caracterizar independentemente de registro, o art. 48 da lei 11.101/2005 exige que essa atividade seja regularmente exercida para que se possa ingressar com o pedido de recuperação judicial. Segundo: o registro promovido pelo produtor rural possui caráter meramente declaratório ou constitutivo? A razão de ser dessa indagação é que, por vezes, o produtor rural promove o seu registro pouco antes da apresentação em juízo do pedido de recuperação judicial. Se o registro tiver caráter declaratório, não haverá problema nessa conduta, bastando que o produtor comprove que vinha exercendo sua atividade há pelo menos dois anos - ainda que na maior parte desse lapso temporal não estivesse inscrito como empresário. Por outro lado, se o registro ostentar caráter constitutivo, o produtor somente poderá lançar mão do pedido de recuperação judicial após dois anos contados do registro. Trata-se, portanto, de questão com inegável interesse prático. O assunto é bastante controvertido e o STJ ainda não se pronunciou definitivamente sobre o tema. Em sede doutrinária, curiosamente, há enunciados aprovados em eventos organizados pelo Conselho da Justiça Federal conflitantes. Confira-se:  Natureza declaratória do registro(III Jornada de Direito Comercial)  Natureza constitutiva do registro(III Jornada de Direito Civil)  Enunciado 96 A recuperação judicial do empresário rural, pessoa natural ou jurídica, sujeita todos os créditos existentes na data do pedido, inclusive os anteriores à data da inscrição no Registro Público de Empresas Mercantis.  Enunciado 202 O registro do empresário ou sociedade rural na Junta Comercial é facultativo e de natureza constitutiva, sujeitando-o ao regime jurídico empresarial. É inaplicável esse regime ao empresário ou sociedade rural que não exercer tal opção.  Enunciado 97 O produtor rural, pessoa natural ou jurídica, na ocasião do pedido de recuperação judicial, não precisa estar inscrito há mais de dois anos no Registro Público de Empresas Mercantis, bastando a demonstração de exercício de atividade rural por esse período e a comprovação da inscrição anterior ao pedido.   Igualmente, na jurisprudência também se encontram posicionamentos conflitantes. No âmbito do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, por exemplo, tem predominado a tese de que o registro possui caráter declaratório, conforme levantamento realizado de 8.6.2005, data do início da vigência da lei 11.101/2005, até 30.3.20193: No STJ, o panorama é ainda incerto. O tema chegou a ser objeto de proposta de afetação de recursos repetitivos em 2017 (Proposta de Afetação no REsp 1.684.994/MT), rejeitada sob o fundamento de que não havia precedentes do STJ sobre a matéria, devendo-se aguardar o amadurecimento do debate sobre o tema naquele tribunal. Até o momento, existem alguns pronunciamentos em sede de Tutela Provisória em Recurso Especial, notadamente do Min. Marco Buzzi, asseverando que o registro em questão teria caráter constitutivo4. Trata-se, contudo, de decisões monocráticas, que não necessariamente refletem o entendimento do STJ a respeito da questão. A matéria está sob discussão no âmbito do Recurso Especial 1.800.032, cujo julgamento pela Quarta Turma se iniciou em 4.6.2019. O ministro Marco Buzzi, reafirmando o caráter constitutivo do registro já manifestado em decisões monocráticas anteriores, negou provimento ao recurso especial dos produtores rurais, dele divergindo o ministro Raul Araújo, que dava provimento ao recurso. Atualmente, o julgamento está suspenso, com pedido de vista ao Min. Luis Felipe Salomão. Trata-se de julgamento paradigmático, em que ingressaram como amici curiae a Federação Brasileira de Associações de Bancos - FEBRABAN e a Sociedade Nacional de Agricultura. Houve, ainda, pedidos de ingresso do Instituto de Direito de Recuperação de Empresas - IDRE (indeferido por ausência de representatividade nacional), bem como da ABIOVE - Associação Brasileira das Indústrias de Óleos Vegetais e da Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (ambos indeferidos porque formulados quando já iniciado o julgamento pelo colegiado). Espera-se que, em breve, o Superior Tribunal de Justiça possa definir sua posição quanto ao tema. Independentemente da tese a ser acolhida, o mais importante é que se saiba com antecedência as regras do jogo, e a consolidação da jurisprudência sobre a recuperação judicial do produtor rural consiste em importante passo nessa direção. Abraços, e até a próxima! __________ 1 PACHECO, Alessandro Mendes et al. A importância do agronegócio para o Brasil - revisão de literatura, Revista Científica Eletrônica de Medicina Veterinária, Ano X, n. 19, jul. 2012. (Acessado em 9/9/2019). 2 REsp 1193115/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, Rel. p/ Acórdão Ministro SIDNEI BENETI, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/08/2013, DJe 07/10/2013. 3 Fonte: TRENTINI, Flavia et al. A recuperação judicial do empresário rural na jurisprudência do TJ/SP. Conjur (Acessado em 9/9/2019). 4 Entre outros, STJ, AgInt no TP 1918, julg. 21.5.2019 e TP 1923, julg. 8/4/2019.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho Os tempos atuais, de intensa movimentação para a alteração da lei 11.101/2005, provocam reflexões a respeito de terem sido ou não alcançados os objetivos do Projeto de Lei Complementar 71/2003, relatado pelo senador Ramez Tebet, e que deu origem à nossa lei em vigor: 1 - Preservação da empresa; 2 - Separação dos conceitos de empresa e empresário; 3 - Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 4 - Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis; 5 - Proteção aos trabalhadores; 6 - Redução do custo do crédito no Brasil; 7 - Celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8 - Participação ativa dos credores; 10 - 11 - Maximização do valor dos ativos; 12 - Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; 13 - Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial. Em matéria de segurança jurídica, um objetivo buscado pela nossa lei e que necessariamente passa pela atuação dos Tribunais, hoje os credores garantidos não têm certeza quanto à extensão de seus direitos pois têm sido homologados os planos de recuperação com previsão de liberação de garantias reais sem anuência do próprio credor. Há vários casos em que se constata a falta de proteção a trabalhadores, em oposição ao objetivo da lei, pois muitas recuperandas realizam demissões em massa sem pagamento de verbas rescisórias e depois apresentam planos com previsão de contagem do prazo de pagamento de 1 ano a partir da decisão de concessão da recuperação, agravando a situação dos credores de verbas de natureza alimentar. A participação ativa dos credores, por sua vez, é um objetivo que poderia ser alcançado com a instituição de comitê de credores, mas este órgão poucas vezes é instalado nas recuperações judiciais. A desburocratização da recuperação de ME/EPP certamente é um objetivo não alcançado e deve ser proposto um processo mais barato e menos burocrático, talvez extrajudicial ou com uma fase de mediação. O almejado rigor na punição de crimes falimentares ficou no plano legal, sem efeito prático, pois raras as condenações e raríssimas as condenações com réus cumprindo pena privativa de liberdade. Portanto, muitos objetivos não foram alcançados e mesmo assim a propõe-se a alteração da lei. Quanto aos quatro primeiros objetivos, certamente algumas empresas viáveis se recuperaram e tantas inviáveis faliram, mas a nossa lei não define precisamente o que é crise econômico-financeira, o que permite a empresários que não estejam em crise o uso indevido da recuperação. Também é possível a algum devedor alegar estar em crise, porém objetivamente sem capacidade de seguir na condução do negócio e de superar a crise, e ainda assim terá acesso à recuperação. A melhor forma de evitar que a recuperação seja desvirtuada é a adoção de critérios objetivos para a definição da crise e da viabilidade. Assim como o artigo 94 da lei 11.101/2005 estabelece objetivamente quem terá a falência decretada, deveria ser incorporado ao nosso sistema uma objetiva definição de crise, como, por exemplo, mediante a adoção de certos índices financeiros, assim como deveria haver critérios indicativos da insolvência do devedor, como o inadimplemento reiterado de impostos e encargos sociais. Em acréscimo, e tendo em vista que as propostas de mudança legislativa têm se encaminhado para a realização de uma perícia antes da decisão de processamento da recuperação, sugere-se que a análise preliminar seja feita para a constatação da real situação da devedora e com duplo objetivo: a) constatação da existência ou não de crise - caso não seja constatada a crise por meio de perícia, o juiz indeferirá a petição inicial. Com isso não haverá o uso da recuperação com o objetivo de retardar pagamentos e prejudicar credores; b) constatação ou não da situação falimentar - caso constatada a inviabilidade da devedora por meio da perícia, o juiz decretará a falência, e não simplesmente indeferirá a petição de inicial da recuperação judicial, como ocorre atualmente. A decretação da falência não devolverá o empresário inviável ao mercado, com prejuízo aos demais agentes econômicos. Além disso, permitirá a apuração das responsabilidades dos sócios e administradores. Cuidando ainda da fase inicial do procedimento de recuperação judicial, e considerando que a perícia prévia normalmente é realizada por quem atua como administrador judicial, podendo representar custos excessivos para a devedora, poderia ser feita uma simples constatação por 2 Oficiais de Justiça nas recuperações judiciais de pequenas e médias empresas, não integrantes de grupos econômicos, que são menos complexas. Caso constatado o normal funcionamento da devedora, a presença de estoques e o efetivo exercício de atividade pelos empregados, deveria o juiz dispensar a perícia e deferir o processamento da recuperação judicial. O procedimento de recuperação judicial, como enunciado acima, também deveria ser célere e eficiente. Porém, a falta de juízos especializados e de estrutura adequada no serviço judiciário não permite a almejada celeridade. A par disso, credores financeiros são concentrados e participam da maioria das recuperações, exigindo que as alterações dos planos possam ser submetidas aos seus órgãos internos de aprovação com tempo adequado para deliberação. Suspensões de assembleias-gerais de credores (AGCs) tornaram-se comuns, retardando o processo de aprovação do plano. Aprovado o plano, a lei estabelece um prazo de fiscalização do cumprimento por até 2 anos, totalmente divorciado das previsões contidas nos planos, muitos deles com obrigações por prazos muito além do biênio legal. A suspensão das AGCs deve ser limitada. Deliberações por escrito devem ser permitidas. O processo deve ser encerrado assim que aprovado o plano e concedida a recuperação, duas providências que podem tornar o processo mais rápido, barato e eficiente. Em resumo, as propostas de alteração na lei 11.101/2005 deveriam ser precedidas de uma avaliação do efetivo cumprimento dos objetivos traçados pelo projetista da lei em vigor, bem como da discussão sobre medidas aptas a tornar o processo mais barato e mais rápido, especialmente para pequenas e médias empresas. Além disso, se a recuperação e a falência devem se destinar, respectivamente, a empresas viáveis e inviáveis, é preciso que a legislação estabeleça critérios objetivos e passíveis de controle pelo Poder Judiciário desde o início do procedimento.
Texto de autoria Luiz Dellore e Christiane Barozi Porto Matias Introdução: o contexto onde se insere o debate Inúmeros aspectos que envolvem a recuperação judicial (RJ) têm sido palco de debates cada vez mais acirrados na doutrina e na jurisprudência, como se percebe por exemplo dos diversos textos desta coluna1. Um dos motivos para tanto é o crescimento do número de recuperações nos últimos anos, o que vem suscitando a necessidade de se buscar, cada vez mais, o melhor resultado útil do processo para todos os envolvidos: recuperandas, credores e sociedade. É compreensível que cada parte defenda com afinco seus próprios interesses, sempre se utilizando dos dispositivos legais de modo a tentar obter os resultados mais positivos para si, que levem às menores perdas e prejuízos possíveis. Assim, as negociações acerca do plano de recuperação são sempre movimentadas, recheadas de reuniões e posicionamentos diversos entre as partes envolvidas, muitas vezes se estendendo por um longo prazo. E isso pode levar à inviabilização do soerguimento de uma empresa potencialmente recuperável, assim como à diminuição (ou inexistência) da possibilidade de pagamento (ainda que mínimo) dos credores. A classificação das garantias (e sua submissão ou não à recuperação judicial) é ponto que sempre demanda específica análise e retificações frequentes, mesmo que a Lei de Recuperação Judicial (lei 11.101/2005), em seu art. 83, já discipline o assunto. O aperfeiçoamento das garantias, bem como a comprovação do efetivo cumprimento dos requisitos essenciais para tanto, são habitualmente alvo de inúmeros questionamentos. E grande parte dessas discussões são voltadas à garantia fiduciária, a qual não se submete à recuperação judicial. Previsão legal: a garantia fiduciária não se submete à RJ A garantia fiduciária é classificada como extraconcursal para efeito de identificação perante a recuperação judicial. É o que disciplina o § 3º do art. 49 da lei (grifos nossos): "Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...) § 3º Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial". Em outras palavras, pela previsão legal, nenhum bem da empresa em recuperação que seja objeto de alienação fiduciária, arrendamento ou reserva de domínio, será alcançado pela recuperação. Portanto, pela letra da lei, não deveria haver maior discussão quanto a isso. Assim, a forma mais usual para que um credor não tenha seu crédito submetido à recuperação judicial é se valer da garantia fiduciária, seja de bens móveis ou imóveis. Contudo, é certo que essa previsão muitas vezes desagrada as empresas em recuperação e outros credores que não dispõem de garantias fiduciárias. Com isso, a (extra)concursalidade da dívida garantida por alienação fiduciária é objeto de frequentes debates e embates no Judiciário. Em nosso entender, a forma de se modificar a extraconcursalidade da garantia fiduciária é a alteração legislativa, valendo lembrar que estão em debates alterações da Lei de Recuperação e Falência. Porém, infelizmente, no Brasil muitas vezes se deixa de lado o caminho da alteração legislativa e se parte para a tentativa de uma "interpretação criativa" (em inúmeros casos claramente contra legem) mais favorável à parte interessada. É o que ocorre em relação à garantia fiduciária na RJ. Assim, o movimento das empresas em recuperação é usual na linha de tentar descaracterizar a garantia extraconcursal. Isso já foi tratado em artigo anterior nesta coluna2, onde se expôs parte dessa evolução e se destacou as idas e vindas acerca do assunto, apontando que, ao final, o STJ acaba por firmar e ratificar exatamente o que diz a lei, ou seja, certificando que a garantia fiduciária não se sujeita à RJ. Mas o texto anterior tratou do tema da cessão fiduciária sob a perspectiva da falta de registro; agora a análise se dá também em relação à necessidade de se individualizar os títulos. A (des)necessidade de registro e de identificação dos títulos objeto da cessão fiduciária de crédito: a posição do STJ Ultrapassada a questão do reconhecimento da extraconcursalidade da garantia fiduciária, a discussão jurídica passou a girar em torno da (i) necessidade ou não do registro do contrato, especialmente em relação a bens móveis (por exemplo, em relação a crédito) e (ii) da necessidade ou não de exata indicação dos títulos dados em garantia fiduciária. Inúmeras recuperandas passaram a defender a tese de que a ausência de registro e/ou de identificação precisa dos títulos objeto da chamada "trava bancária" teriam como consequência a reclassificação do crédito como concursal quirografário, e não extraconcursal. Portanto, se o credor fiduciário não registrasse, por exemplo, cada uma das notas promissórias ou recebíveis dados em garantia3, não se estaria diante de uma garantia fiduciária. Essa tese chegou a prevalecer em tribunais intermediários, em favor das empresas em recuperação4. E, por certo, a questão chegou ao STJ. No momento, já está sedimentada a posição de que a ausência de registro não afeta a extraconcursalidade. Merece destaque o seguinte caso, constante do informativo 578/STJ (REsp 1.412.529-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 2/3/2016, grifos nossos): "Não se submetem aos efeitos da recuperação judicial do devedor os direitos de crédito cedidos fiduciariamente por ele em garantia de obrigação representada por Cédula de Crédito Bancário existentes na data do pedido de recuperação, independentemente de a cessão ter ou não sido registrada no Registro de Títulos e Documentos do domicílio do devedor". Mas, e em relação à necessidade de se indicar de forma pormenorizada os títulos objeto da cessão fiduciária de crédito? A 3ª Turma, em importante precedente deste ano, bem decidiu acerca da desnecessidade de indicação de cada título, exatamente considerando o dinamismo e velocidade típicos desse mercado. No informativo 646/STJ, a questão foi assim sintetizada (REsp 1.797.196-SP, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, DJe 12/4/2019, grifos nossos): "Na cessão fiduciária de direitos creditórios, para a perfectibilização do negócio fiduciário, o correlato instrumento deve indicar, de maneira precisa, o crédito objeto de cessão e não os títulos representativos do crédito. No voto condutor desse recurso, o relator ressaltou que, por ocasião da realização da cessão fiduciária, é absolutamente possível que o título representativo do crédito cedido sequer tenha sido emitido (como é o caso da cessão de recebíveis), o que inviabilizaria a sua determinação no próprio contrato. Isto porque a cédula de crédito bancário admite que a cessão fiduciária respectiva recaia sobre um crédito futuro, ainda não performado (cf. art. 31 da lei nº 10.931/04)5. Em nosso entender, absolutamente correta essa interpretação. Caso contrário, simplesmente inviável a cessão fiduciária de crédito: deve-se indicar precisamente qual o crédito, mas não quais os títulos representativos desse crédito. Porém, vale destacar que a questão ainda não está definida. O tema está, no momento, em debate no âmbito da 2ª Seção do STJ (que reúne as duas turmas desse Tribunal que tratam do direito privado, a 3ª e 4ª Turmas), no REsp. nº 1.629.470, segundo noticiado pelo Migalhas6. Esse REsp teve origem na 4ª Turma, mas foi afetado para ser julgado na 2ª Seção, com a finalidade de que a questão seja pacificada. Até o momento, foram apenas dois votos, de um total de nove: a Ministra Relatora Maria Isabel Gallotti votou no sentido de considerar o crédito extraconcursal (em linha com a decisão proferida pela 3ª Turma e acima mencionada), ao passo que o Ministro Luís Felipe Salomão abriu a divergência7. Trata-se, sem dúvidas, de relevante caso a ser acompanhado e que possivelmente fixará a tese no âmbito do STJ. Até lá, temos instabilidade a respeito do tema. De qualquer forma, conveniente mencionar que, mesmo diante dessa indefinição no STJ, há diversos casos de concessão de efeito suspensivo a recursos especiais de credores que discutem essa tese. Isso de modo a obstar o levantamento, pelas recuperandas, de valores objeto de cessão fiduciária de créditos e que, nos tribunais de origem, foram liberados por falta de registro ou de individualização dos títulos cedidos8. Em síntese, para nós o imprescindível é que os créditos sejam identificáveis, conforme determinado pelo art. 18, IV, da lei 9.514/97. Porém identificação do crédito não significa total "especificação" do título, o que é inadmissível, sob pena de se inviabilizar a própria operação, com a obrigação de que os títulos (ainda inexistentes9 ou não performados) tenham as mesmas exigências dos direitos creditórios que representam. Esperamos, em prol da segurança jurídica e desenvolvimento da atividade econômica, que a questão seja assim pacificada pelo STJ. *Christiane Barozi Porto Matias é especialista em Direito Empresarial pela UEL. Advogada da Caixa Econômica Federal, com atuação na área de recuperação de crédito, especialmente recuperação judicial e falência. __________ 1 Para conhecer todos os textos já publicados, acesse. 2 Nesse sentido, conferir, de um dos autores desta coluna, texto de julho de 2018. 3 Isso, do ponto de vista prático, é algo inviável, dada a dinâmica e velocidade das relações empresariais - o que já foi reconhecido pelo STJ, como adiante se exporá. 4 Por exemplo, a Súmula 60 do TJSP, no sentido da necessidade de registro: "A propriedade fiduciária constitui-se com o registro do instrumento no registro de títulos e documentos do domicílio do devedor". Frise-se que súmula desse mesmo TJ deixa clara a possibilidade de alienação fiduciária para direitos de crédito: "Súmula 59: Classificados como bens móveis, para os efeitos legais, os direitos de créditos podem ser objeto de cessão fiduciária". 5 No informativo 646/STJ consta o seguinte, conveniente para se compreender a questão do ponto de vista macro: "Dos termos dos arts. 18, IV, e 19, I, da lei 9.514/1997, ressai que a cessão fiduciária sobre títulos de créditos opera a transferência da titularidade dos créditos cedidos. Ou seja, o objeto da cessão fiduciária são os direitos creditórios que hão de estar devidamente especificados no instrumento contratual, e não o título, o qual apenas os representa. A exigência de especificação do título representativo do crédito, como requisito formal à conformação do negócio fiduciário, além de não possuir previsão legal - o que, por si, obsta a adoção de uma interpretação judicial ampliativa - cede a uma questão de ordem prática incontornável. Por ocasião da realização da cessão fiduciária, afigura-se absolutamente possível que o título representativo do crédito cedido não tenha sido nem sequer emitido, a inviabilizar, desde logo, sua determinação no contrato. Registre-se, inclusive, que a lei 10.931/2004, que disciplina a cédula de crédito bancário, é expressa em admitir que a cessão fiduciária em garantia da cédula de crédito bancário recaia sobre um crédito futuro (a performar), o que, per si, inviabiliza a especificação do correlato título (já que ainda não emitido)". De seu turno, da ementa do acórdão consta o seguinte, conveniente para se compreender a questão do ponto de vista micro: "(...)6. Na hipótese dos autos, as disposições contratuais estabelecidas pelas partes não deixam nenhuma margem de dúvidas quanto à indicação dos créditos cedidos, representados por duplicatas físicas ou escriturais - sendo estas, por sua vez, representadas pelos correlatos borderôs, sob a forma escrita ou eletrônica -, os quais ingressarão, a esse título (em garantia fiduciária), em conta vinculada para esse exclusivo propósito. 7. A duplicata virtual é emitida sob a forma escritural, mediante o lançamento em sistema eletrônico de escrituração, pela empresa credora da subjacente relação de compra e venda mercantil/prestação de serviços (no caso, as próprias recuperandas), responsável pela higidez da indicação. 8. É, portanto, a própria devedora fiduciante que alimenta o sistema, com a emissão da duplicata eletrônica, que corporifica uma venda mercantil ou uma prestação de serviços por ela realizada, cuja veracidade é de sua exclusiva responsabilidade, gerando a seu favor um crédito, a permitir a geração de um borderô (o qual contém, por referência, a respectiva duplicata), remetida ao sacado/devedor. Já se pode antever o absoluto contrassenso de se reconhecer a inidoneidade desse documento em prol dos interesses daquele que é o próprio responsável por sua conformação. O pagamento, por sua vez, ingressa na conta vinculada, em garantia fiduciária ao mútuo bancário tomada pela empresa fiduciante, não pairando nenhuma dúvida quanto à detida especificação do crédito (e não do título que o representa), nos moldes exigidos pelo art. 18, IV, da lei 9.514/1997". 6 STJ debate cessão fiduciária na recuperação judicial do grupo da Drogaria São Bento. 7 Mais detalhes no andamento do recurso no STJ. 8 Como exemplo, o efeito suspensivo ao REsp nº 1.815.823, concedido no STJ nos seguintes termos: "A plausibilidade jurídica do direito invocado está presente mormente no que tange à alegação de desconformidade do acórdão recorrido com a orientação desta Corte a respeito da desnecessidade de discriminação e especificação dos títulos objeto da cessão fiduciária. (...) No que concerne ao perigo de dano, está evidenciado pela determinação contida no acórdão recorrido de restituição de elevada soma (e-STJ fls. 727-728), cujo valor histórico alegado seria de aproximadamente R$ 54 (cinquenta e quatro) milhões de reais (e-STJ fl. 789). Nesse contexto, o deferimento do pedido de tutela provisória é de rigor, para o fim de conferir efeito suspensivo ao recurso especial, com a consequente suspensão dos efeitos do acórdão recorrido, até ulterior deliberação desta Corte Superior. Desse modo, DEFIRO o pedido de tutela provisória para conferir efeito suspensivo ao recurso especial, nos termos da fundamentação acima, até o julgamento do recurso". Maiores informações podem ser obtidas no andamento do recurso. 9 Vale ressaltar que a cessão fiduciária de direito creditório futuro (e passível de determinação) é expressamente autorizada pelo § 3º do art. 1.361 do Código Civil.
Texto de autoria de João de Oliveira Rodrigues Filho Com o advento da Constituição Federal de 1988 o Ministério Público assumiu importante papel como função essencial à Justiça, ao lhe ser atribuída a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis, nos termos do art. 127 de nossa Carta Magna. Para o exercício de importantes funções, a Constituição da República outorgou à instituição autonomia funcional e administrativa, podendo, observado o disposto no art. 169, propor ao Poder Legislativo a criação e extinção de seus cargos e serviços auxiliares, provendo-os por concurso público de provas ou de provas e títulos, a política remuneratória e os planos de carreira; a lei disporá sobre sua organização e funcionamento (art. 127, § 2º, da CF), e aos seus membros diversos predicamentos de poder (vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de subsídio - art. 128, § 5º, inciso I, CF), com o escopo de garantir a independência funcional no desempenho das suas atribuições. Como bem acentua Cândido Rangel Dinamarco (Instituições de Direito Processual Civil, Volume I, Malheiros, 2016, páginas 881 e 882): O interesse público que essa Instituição tem o dever de resguardar não é o puro e simples interesse da sociedade no correto exercício da jurisdição como tal - que também é uma função pública -, porque dessa atenção estão encarregados os juízes, também agentes estatais eles próprios. O Ministério Público tem o encargo de cuidar para que, mediante o processo e o exercício da jurisdição pelos juízes, recebam o tratamento adequado certos conflitos e valores a eles inerentes, particularmente mediante o zelo por direitos e interesses indisponíveis, como está na Constituição Federal. A atuação do Ministério Público se dá tanto na condição de parte (art. 177 do CPC), quando atua com o titular da ação penal ou quando propõe ação civil pública na defesa dos direitos transindividuais (ainda que em sede de legitimidade extraordinária) ou como fiscal da lei (art. 178 CPC), condição na qual assume a posição de interveniente processual buscando zelar pela aplicação do ordenamento no interesse da sociedade. Especificamente no âmbito do direito de insolvência (lei 11.101/2005), houve o veto ao art. 4º da lei que assim dispunha: "Art. 4º O representante do Ministério Público intervirá nos processos de recuperação judicial e de falência. Parágrafo único. Além das disposições previstas nesta Lei, o representante do Ministério Público intervirá em toda ação proposta pela massa falida ou contra esta". Muitas foram as razões dadas pela doutrina especializada para justificar o veto, prevalecendo a posição de que a intervenção pontual do Ministério Público nos demais dispositivos já existentes na lei 11.101/2005 conferiria celeridade processual aos processos de recuperação judicial e falência e não banalizaria a intervenção ministerial no sistema de insolvência, haja vista a desnecessidade de sua participação em todos os termos dos três processos de insolvência (recuperação judicial, recuperação extrajudicial e falência). A título de exemplo, remanesceram no texto da lei 11.101/2005 os seguintes dispositivos que reclamam a participação do Ministério Público: art. 52, V; art. 99, VIII; 142, § 7º; 154, § 3º. De toda forma, a atuação do Ministério Público no âmbito do processo civil e de microssistemas como o do sistema de insolvência deve ser pautada pela defesa de interesses públicos que atinjam ou influenciem a esfera pessoal e patrimonial de uma coletividade de indivíduos. Mas qual é esse interesse público? Como defini-lo para delinear o que seria passível de defesa pelo Ministério Público? Clássica é a definição atribuída a Renato Alessi (Sistema Istituzionale del Diritto Amministrativo Italiano - 1960) com a antiga bipartição entre interesse público primário e secundário. Em breve síntese, o interesse público primário seria o interesse geral da sociedade propriamente dito, sintetizado nas aspirações de justiça, segurança e bem estar social. Já o interesse público secundário seria a atuação do Estado como pessoa jurídica que é e que não poderia se chocar com o interesse público primário, justamente pela necessidade do próprio Estado, através de seus poderes e órgãos, buscar servir e atender as aspirações daqueles que se encontram em seu território. Como se pode perceber do quanto até aqui exposto, embora inegável a importância da participação do Ministério Público no sistema de insolvência, o fato é que carecemos de uma melhor sistematização objetiva sobre o âmbito e os limites de suas atribuições. Tal fator ocasiona insegurança jurídica, na medida em que, embora os membros do Ministério Público sejam comprometidos com suas atribuições institucionais, a atuação de tal órgão estatal acaba por se subordinar a um subjetivismo inevitável dos componentes dos respectivos quadros, pelas próprias características pessoais inerentes a cada indivíduo e, consequentemente, a uma pulverização de práticas sem qualquer uniformidade sistemática de atuação. Em outras palavras, em muitas situações semelhantes ou o membro do Ministério Público não atua, por entender não estar presente interesse público para funcionar no processo, ou atua tão somente para cientificar-se do ocorrido ou, ainda, atua de maneira mais intensa no processo, fornecendo subsídios para o enfrentamento da questão. Em todos esses exemplos, há perfeita justificativa para as posições adotadas, mas é inegável que o componente de subjetivismo influencia sobremaneira a intervenção ministerial no processo de insolvência e essas diferentes formas de atuação para uma mesma situação semelhante é uma quadra desfavorável à segurança jurídica que se espera do sistema de justiça. Mas como conciliar a necessidade de se estabelecer critérios mais objetivos de atuação do Ministério Público sem ferir sua independência funcional? Ainda que possamos recorrer ao próprio ordenamento jurídico para buscar uma sistematização mais objetiva na atuação do Ministério Público nos processos de insolvência, não podemos desconsiderar a existência de diversas cláusulas gerais existentes (normas de conteúdo intencionalmente aberto em sua semântica para permitir a maior porosidade do sistema jurídico frente às situações advindas do dinamismo social), as quais também não impedem o caráter de subjetivismo na atuação estatal, no momento de interpretação da norma a ser aplicada. Diante de tal quadra, em boa hora o advento da lei 13.655, de 25/4/2018, a qual promoveu a inserção de diversos dispositivos na Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, para buscar garantir o alcance de maior segurança jurídica por poderes e órgãos estatais, quando da aplicação da lei ao caso concreto. De acordo com a exposição de motivos do projeto de lei 7.448, DE 2017, que resultou na lei 13.655/2018: A proposta pretende tornar expressos alguns princípios e regras de interpretação e decisão que, segundo a doutrina atual, devem ser observados pelas autoridades administrativas ao aplicar a lei. Vale dizer que algumas destas iniciativas já foram incorporadas ao novo código de processo civil. Assim, a proposta sugere parâmetros a serem observados quando autoridades administrativas tomam decisões fundadas em cláusulas gerais ou conceitos jurídicos indeterminados. Busca também conferir aos administrados o direito a normas de transição proporcionais e adequadas, bem como estabelece um regime para que negociações entre autoridades públicas e particulares ocorram de forma transparente e eficiente. Sobre o âmbito de alcance das introduções trazidas pela Lei 13.655/2018, Odete Medauar (Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro - Anotada - Volume II, Quartier Latin, 2019, páginas 63/64) assim leciona: A ementa da referida Lei identifica o âmbito material específico de aplicação dos seus preceitos: criação e aplicação do direito público, visando à eficiência e segurança jurídica nessas situações. Em tese, incide nas decisões relativas a assuntos tratados em disciplinas do direito público, por exemplo: direito constitucional, direito administrativo, direito tributário, direito financeiro, direito processual, direito urbanístico, direito ambiental. Quanto às autoridades públicas que decidem, o art. 20 utiliza a expressão "esferas administrativa, controladora e judicial". Esfera administrativa mostra-se de sentido largo, para abranger todos agentes que decidem nos órgãos e entes da Administração direta e indireta da União, Estados, Distrito Federal e Municípios. Esfera controladora diz respeito aos órgãos ou entes que exercem controle interno e externo sobre atuações da Administração Pública direta e indireta. Podem ser exemplificados, no controle interno, os órgãos contábeis e financeiros do próprio órgão ou ente público, as controladorias, as ouvidorias, as corregedorias; no controle externo, os tribunais de contas, o ministério público. Esfera judicial abarca os juízes e os membros dos tribunais do Poder Judiciário. Embora o Poder Judiciário se enquadre na condição de "esfera controladora" da Administração Pública, o dispositivo indicou explicitamente tal esfera, talvez por clareza. Perfeitamente aplicável os preceitos da lei 13.655/2018 à atuação do Ministério Público quando de sua atuação nos processos de insolvência. Isso porque o sistema de insolvência é de evidente interesse público, na medida em que sua eficiência proporcionará maior atração de investidores e, consequentemente, proporcionará o fortalecimento da economia brasileira. A própria lei reconhece o seu caráter de interesse público na medida em que determina a intervenção do Ministério Público, segundo suas próprias atribuições constitucionais. Logo, imprescindível que ao Ministério Público também se imponha as obrigações constantes da LINDB, para que em suas manifestações sempre demonstre e comprove as consequências práticas do seu posicionamento, frente aos interesses buscados nos diferentes processos do sistema de insolvência, vedando-se manifestações meramente baseadas em valores jurídicos abstratos (art. 20 da LINDB), sem prejuízo de demonstrar a necessidade e a adequação da medida proposta ou da invalidação de ato por ele requerida, inclusive em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único da LINDB) Ademais, em qualquer pretensão veiculada pelo Ministério Público, levando-se em consideração os objetivos dos mais variados processos do sistema de insolvência, o interesse público do sistema e os interesses privados existentes em jogo, deverá o aludido órgão estatal, quando buscar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas (art. 21 da LINDB). Jamais deve ser buscado qualquer meio ou instrumento voltado a sufocar a independência funcional da atuação do Ministério Público, uma vez que qualquer ação nesse sentido se revestirá de inconstitucionalidade material, diante da importância constitucional atribuída expressamente a tal órgão de Estado. Todavia, o aprimoramento do sistema de insolvência também deve abarcar uma atuação mais objetiva do Ministério Público nos processos de recuperação judicial, extrajudicial e de falências, justamente para o alcance da tão almejada segurança jurídica no âmbito da lei 11.101/2005. A adoção dos mandamentos da lei 13.655/2018, que inseriu novos dispositivos na LINDB são plenamente compatíveis com a lei 11.101/2005, não somente para o Poder Judiciário, mas, também, aos membros do Ministério Público, na medida em que proporcionará maior transparência e objetividade de atuação, sem qualquer cerceamento de suas atribuições funcionais e sempre respeitando a busca da defesa do interesse público objetivado por tão importante instituição nacional.  
Texto de autoria de Paulo Penalva Santos Sumário: 1. Introdução - 2. A interpretação do contrato conforme a real intenção das partes. A relação contratual por prazo indeterminado - 3. O procedimento para rescisão de contratos à luz do art. 473 do Código Civil - 4. O prazo razoável para a prorrogação e o momento para a decisão da questão - 5. Conclusão. 1. Introdução O presente artigo tem por objetivo examinar a possibilidade de prorrogação compulsória de contrato essencial para a empresa em recuperação judicial. A prática empresarial demonstra que, dependendo das circunstâncias, ao celebrar um contrato uma sociedade empresária pode ficar em situação de dependência econômica em relação à outra parte contratante. E isso é mais acentuado em contratos pactuados com cláusula de exclusividade, o que é frequente em contratos de distribuição. Assim sendo, a rescisão do contrato pode comprometer relevantemente as finanças da sociedade, se não houver tempo suficiente para que esta amortize os investimentos realizados para a execução do contrato. Também é comum encontrar, nessa relação obrigacional, contratos celebrados formalmente por prazo determinado, mas sendo renovados por vários anos consecutivos. Nesse caso, a não renovação do contrato interromperia fatalmente as atividades da sociedade em recuperação, tornando insuperável a sua crise econômico-financeira. Deste modo, questiona-se: pode, por exemplo, a sociedade em recuperação judicial requerer judicialmente a prorrogação desse contrato de distribuição? Caso positivo, qual o período razoável para tal prorrogação? 2. A interpretação do contrato conforme a real intenção das partes. a relação contratual por prazo indeterminado Para investigar se a relação contratual das partes era por prazo determinado ou por prazo indeterminado, faz-se necessária a utilização da boa-fé, tanto na sua função interpretativa quanto na sua função limitadora do exercício de direitos abusivos. Isto é, se a conduta das partes indica que a relação era por prazo indeterminado ou não. Importa destacar que nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem, de acordo com o artigo 112 do Código Civil. Deste modo, a existência de cláusula expressa não é suficiente para concluirmos que os pactos tinham prazo certo, devendo ser investigada a vontade das partes ao celebrar o ajuste. Deste modo, é necessário identificar no caso concreto indícios de que a relação entre as partes funcionava por tempo indeterminado. Por exemplo, sucessivas renovações ao longo de muitos anos, continuidade da prestação de serviço após o fim do período contratual e a subsequente celebração de novo instrumento com efeitos retroativos, inclusão de novos serviços, prorrogação do contrato por período exíguo etc. Em muitos casos, a celebração de diversos contratos em caráter sucessivo mascara a intenção de colocar em vantagem a parte mais forte na relação contratual, pois esta pode terminar a relação contratual a qualquer tempo. Para a outra parte, ainda que também possua tal direito, a situação de dependência econômica decorrente do contrato desaconselha a rescisão, pois ficaria numa situação econômica difícil. Deste modo, deve-se privilegiar a real intenção das partes, ainda que esta venha não a corresponder à literalidade do contrato. A busca da vontade real deve ocorrer em relação a todas as disposições do pacto, incluindo o prazo do contrato e a sua abrangência. 3. O procedimento para rescisão de contratos à luz do art. 473 do Código Civil O Código Civil de 2002 estabelece restrições ao poder de livre denúncia de contratos. Entretanto, discute-se em doutrina se o parágrafo único do artigo 473 do Código Civil seria aplicável somente aos contratos por prazo indeterminado ou se este poderia também ser aplicado aos contratos por prazo certo. A melhor corrente doutrinária entende que o dispositivo legal também poderia ser utilizado nos contratos por prazo determinado, em algumas hipóteses. No entanto, se dada a natureza do contrato, uma das partes houver feito investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos, conforme disposto no art. 473 do Código Civil. Nesta segunda hipótese, a lei é clara em condicionar os efeitos da denúncia à concessão de prazo compatível com os investimentos. A ratio leges é permitir que o contratante amortize os investimentos realizados ao longo do tempo. Antes da concessão desse prazo, o contrato não pode ser rescindido unilateralmente. Na maioria das vezes, o abuso de direito ocorre quando o contratante exerce a denúncia do contrato com aviso prévio ínfimo, principalmente quando sua relação contratual com o contratado tenha durado longos anos, gerando confiança recíproca e maior integração entre ambas empresas. Também é comum a ruptura do contrato sem a concessão de nenhum aviso prévio, contrariando o disposto no parágrafo único do art. 473 Código Civil. Nessas hipóteses, o rompimento abrupto do contrato se revela abusivo e, assim, ilícito, como o STJ já teve a oportunidade de se manifestar1. A importância do aviso prévio razoável na denúncia em contratos, como por exemplo, de distribuição se justifica, pois o distribuidor precisa de tempo para amortizar os custos de seus investimentos, principalmente quando o contrato possui cláusula de exclusividade. Sem a concessão deste prazo, o revendedor não poderia se organizar para liquidar o seu estoque e dispensar os seus empregados ou, se quiser continuar no mesmo ramo de atividade, se reinserir no mercado mediante a distribuição de produtos de outro fabricante. Na hipótese de o fabricante tentar rescindir abruptamente o contrato, cabe ao distribuidor requerer em juízo (i) a prorrogação do contrato, a fim de que lhe seja garantido prazo para amortizar os seus investimentos ou (ii) indenização por perdas e danos. Destas duas possibilidades, deve-se, quando possível, prestigiar a execução específica da obrigação (a concessão de mais prazo contratual) ao invés da conversão da obrigação em perdas e danos. No direito das obrigações, a conversão em perdas e danos é sempre medida excepcional, quando a obrigação principal não puder ser satisfeita. O STJ tem precedentes no sentido da possibilidade de o Poder Judiciário impedir a resolução do contrato antes de decorrido prazo razoável para a amortização dos investimentos feitos2. Nesse contexto, a lei 11.101/2005 dispõe, no art. 47, que "a recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". Assim, a recuperação judicial interessa não apenas à empresa em crise, mas aos credores, aos empregados (que manterão os seus empregados), ao fisco e à coletividade como um todo. Portanto, todos devem cooperar para o soerguimento da empresa, inclusive eventualmente sacrificando seus interesses individuais em prol do interesse coletivo. O art. 47 da LRF é um norte interpretativo para guiar a operacionalidade da recuperação judicial. Na interpretação dos preceitos legais, deve-se, sempre que possível, prestigiar a solução que melhor garanta a recuperação da empresa. A solução que não apenas prestigia, mas, em verdade, viabiliza o soerguimento empresarial, é a prorrogação dos contratos. Contudo, esta prorrogação não pode ser eterna, sob pena de se violar a liberdade de contratar das partes. A prorrogação é temporária, estritamente pelo tempo necessário para que a parte amortize os seus investimentos. 4. O prazo razoável para a prorrogação e o momento para a decisão da questão A lei não prevê quanto tempo é necessário para que os investimentos sejam amortizados. A análise desta questão depende, evidentemente, do exame da situação concreta das partes. De igual modo, em sendo o contrato provisoriamente prorrogado, a lei não determina em que momento o juiz deve se manifestar em definitivo sobre a matéria, inclusive com a definição do prazo final da prorrogação compulsória. Não havendo previsão específica em relação ao momento em que o juiz deve se pronunciar definitivamente acerca da questão, nos parece razoável que isto ocorra logo após a assembleia de credores que aprecie o plano de recuperação judicial. Havendo a rejeição do plano de recuperação judicial, a falência será decretada. De acordo com o art. 117 da LRF, "os contratos bilaterais não se resolvem pela falência e podem ser cumpridos pelo administrador judicial se o cumprimento reduzir ou evitar o aumento do passivo da massa falida ou for necessário à manutenção e preservação de seus ativos, mediante autorização do comitê". Assim, após a rejeição do plano e a decretação da falência, o administrador judicial e o comitê devem ser ouvidos para que se avalie a conveniência, ou não, de se resolver os contratos. Feito isso, o juiz deve se pronunciar, em definitivo, sobre a prorrogação dos contratos. Havendo a aprovação do plano de recuperação judicial, seja com ou sem modificações, deve o juiz decidir pela homologação do plano. É nesse momento que o magistrado deve se pronunciar, em definitivo, sobre até quando deve vigorar a prorrogação dos contratos, pois já estará clara a situação econômica da devedora e de que forma esta pretende superar a sua crise econômico-financeira. Deste modo, embora não haja um momento específico previsto em lei para o pronunciamento judicial definitivo sobre a prorrogação dos contratos, nos parece razoável que isto ocorra após a assembleia de credores que aprecie a proposta de plano de recuperação judicial. 5. Conclusão Em síntese, concluímos que sendo os contratos por prazo indeterminado e, em algumas hipóteses também por prazo determinado, caso tenham sido feitos investimentos consideráveis para a sua execução, a denúncia unilateral só produzirá efeito depois de transcorrido prazo compatível com a natureza e o vulto dos investimentos. A não concessão de prazo razoável é medida abusiva e faculta ao contratante ofendido o direito de requerer em juízo (i) a prorrogação do contrato, a fim de que lhe seja garantido prazo para amortizar os seus investimentos ou (ii) indenização por perdas e danos. Verificado o preenchimento dos pressupostos legais acima, não só pode o Judiciário prorrogar compulsoriamente os contratos pelo prazo necessário para que os investimentos realizados possam ser amortizados, bem como é recomendável fazê-lo em vista do contexto fático-jurídico do caso concreto, não sendo eventual indenização por perdas e danos medida mais adequada para viabilizar o soerguimento das recuperandas. Após a aprovação do plano de recuperação judicial deve o juiz decidir pela homologação do plano. É esse o momento oportuno para o magistrado se pronunciar, em definitivo, sobre até quando deve vigorar a prorrogação dos contratos, pois já estará clara a situação econômica da devedora e de que forma esta pretende superar a sua crise econômico-financeira. Deste modo, embora não haja um momento específico previsto em lei para o pronunciamento judicial definitivo sobre a prorrogação dos contratos, nos parece razoável que isto ocorra após a assembleia de credores que aprecie a proposta de plano de recuperação judicial. __________ 1 STJ, REsp 1.555.202/SP, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, 4ª Turma, julgado em 13/12/2016, DJe de 16/03/2017. 2 "A regra deve ser tomada, por analogia, para solucionar litígios como o presente, onde uma das partes do contrato afirma, com plausibilidade, ter feito grande investimento e o Poder Judiciário não constata, em cognição sumária, prova de sua culpa a justificar a resolução imediata do negócio jurídico. Assim, a solução que melhor se amolda ao presente litígio é permitir a continuidade do negócio durante prazo razoável, para que as partes organizem o término de sua relação negocial. O prazo dá às partes a possibilidade de ampliar sua base de clientes, de fornecedores e de realizar as rescisões trabalhistas eventualmente necessárias" (REsp 972.436/BA, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, 3ª Turma, julgado em 17/03/2009, DJe de 12/6/2009 - grifo nosso).
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa Conforme dispõe o art. 6º, "caput", da lei 11.101/05, a decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas de credores particulares do sócio solidário. Somente poderão prosseguir perante o juízo competente as ações de conhecimento e que demandem quantias ilíquidas que, todavia, deverão ser suspensas tão logo seja definida a existência do direito (an debeatur) e o seu valor (quantum debeatur), ficando os credores impedidos de prosseguir na execução de ativos contra a devedora falida ou em recuperação judicial. Essa suspensão de ações e execuções deve durar pelo prazo de 180 dias, conforme dispõe o art. 6º, parágrafo quarto, da lei 11.101/05. Entretanto, conforme reiterada jurisprudência, inclusive do Superior Tribunal de Justiça, esse prazo de 180 dias poderá ser prorrogado, mediante decisão judicial, desde que comprovado que não houve a conclusão das negociações entre credores e devedora e que o atraso não seja atribuível à conduta da própria devedora. Trata-se do chamado stay period, instituto de inspiração no modelo norte-americano de insolvência e que adquire especial importância nos casos de recuperação judicial de empresas, na medida em que visa garantir à devedora um prazo para que consiga negociar um plano de recuperação com os seus credores, sem a pressão individual dos credores sobre o seu patrimônio, garantindo-se a neutralização dos chamados credores hold outs, cuja atuação egoísta colocaria a perder todo o esforço de negociação coletiva. Conforme já tive a oportunidade de explicar em obra publicada na Europa, "according to the US Bankruptcy Code, the filing of a voluntary or involuntary petition under Chapter 7 or Chapter 11 or the filing of a voluntary petition under Chapter 13 has the power to impose an automatic stay. It means that creditors are restrained or stayed from taking further actions against the debtor, the property of the estate, or the property of the debtor. (...) The stay is important in liquidation cases since it enables the trustee to promote the equality of the distribution of debtor's assets. Regarding to reorganization cases, the stay is salso importante since it provides a breathing space to permit the debtor to present a reasonable plan and focus on rehabilitation". (Costa, Daniel Carnio. Business Reorganization - US and Brazil - The new theories. NEA. 2018, Beau Bassin, pág. 05/06). No modelo norte-americano, a violação à ordem de stay traz como consequência a aplicação de penalidades judiciais, na medida em que o credor que prosseguiu indevidamente com sua execução contra a devedora incorreu em contempt of the court. Conforme dispõe a Sessão 362 (a), do US Bankruptcy Code, todas as ações ou medidas executivas promovidas pelos credores em violação à ordem de stay devem ser consideradas nulas e sem nenhum efeito. Mas não é só. Além da nulidade do ato executivo, as violações intencionais também serão puníveis nos termos da Sessão 362 (k) do US Bankruptcy Code. Vale dizer, o credor estará sujeito a indenizar a devedora recuperanda pelos prejuízos materiais, inclusive custas e honorários advocatícios, bem como ao pagamento de multa pelo juízo em razão do descumprimento da ordem judicial. Nos termos já expostos na obra Businees Reorganization - US and Brazil - The new theories, "in addition to the action be considered null, willful violations against the stay are also punishable under Section 362(k). An individual injured by any willful violation of the stay is entitled to recover actual damages, including costs and attorney's fees and, sometimes, depending on the situation, even punitive damages. (...) The punitive damages are normally restricted to exceptional cases where the creditor's conduct was not only willful, but also malicious or in bad Faith". (Op. Cit, pág. 50). No Brasil, a lei 11.101/05 não trata expressamente das consequências da violação à ordem de suspensão das ações e execuções contra a devedora em recuperação judicial. Há apenas a determinação de que os credores não prossigam com atos de expropriação de ativos da devedora durante o período de vigência da ordem de stay. Entretanto, a interpretação adequada da legislação de insolvência empresarial brasileira, comprometida com a realização dos objetivos do sistema dentro do qual a lei se insere, indica a necessidade de uma análise mais abrangente e sistemática, a fim de se garantir eficácia à ordem de suspensão determinada pelo juízo da recuperação judicial. Conforme já sustentado, a teoria da superação do dualismo pendular indica que a interpretação da lei deve buscar sempre a tutela dos objetivos do sistema de insolvência empresarial e não a tutela dos interesses das partes envolvidas no processo. Assim, a melhor interpretação que se deve dar ao stay period no direito brasileiro deve ser aquela que tutela a sua eficácia plena, garantindo-se que seja criado no processo um ambiente de negociação adequado, a fim de se tutelar, ao final, os benefícios sociais e econômicos decorrentes da preservação da atividade empresarial, com superação da crise. Nesse sentido, deve-se concluir, com facilidade, que os atos praticados pelo juízo cível ou trabalhista perante o qual prosseguiram indevidamente os atos de realização de ativos da devedora, em violação ao stay, devem ser considerados nulos e sem nenhum efeito. A violação do stay pode ser representada pelo prosseguimento de execução de crédito sujeito aos efeitos da recuperação judicial, mas também poderá ocorrer pela expropriação de bem essencial à recuperanda, ainda que o crédito não esteja sujeito aos efeitos da recuperação judicial, nos termos do que dispõe o art. 49, parágrafo 3º, da lei 11.101/05. O próprio Superior Tribunal de Justiça já definiu que cabe ao juízo da recuperação judicial a decisão sobre a sujeição ou não de créditos ou credores aos efeitos do processo concursal. Da mesma forma, já decidiu o Superior Tribunal de Justiça que também cabe ao juízo da recuperação a avaliação sobre a essencialidade do bem objeto de uma execução de crédito não sujeito aos efeitos do processo concursal. Trata-se de competência funcional absoluta, de modo que os atos praticados por qualquer outro juízo devem ser considerados nulos, uma vez que ordenados por juízos absolutamente incompetentes. Confira-se, nesse sentido: AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. DEFERIMENTO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. MEDIDAS CONSTRITIVAS IMPOSTAS AO PATRIMÔNIO DA RECUPERANDA. COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL, INDEPENDENTEMENTE DO DECURSO DO PRAZO DE 180 (CENTO E OITENTA) DIAS PREVISTO NO ART. 6º, § 4º, DA LEI N. 11.101/05. ART. 49, § 3º, DA LEI N. 11.101/2005. BENS ESSENCIAIS ÀS ATIVIDADES ECONÔMICO-PRODUTIVAS. PERMANÊNCIA COM A EMPRESA RECUPERANDA.COMPETÊNCIA DO JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL. AGRAVO IMPROVIDO. 1. A despeito de o art. 6º, § 4º, da Lei n. 11.101/05 assegurar o direito de os credores prosseguirem com seus pleitos individuais passado o prazo de 180 (cento e oitenta) dias da data em que deferido o processamento da recuperação judicial, a jurisprudência desta Corte tem mitigado sua aplicação, tendo em vista tal determinação se mostrar de difícil conciliação com o escopo maior de implementação do plano de recuperação da empresa. Precedentes. 2. Agravo regimental a que se nega provimento. (AgRg no CC 143.802/SP, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 13/04/2016, DJe 19/04/2016) DIREITO EMPRESARIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CRÉDITO DE HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS POSTERIOR AO PEDIDO. NÃO SUJEIÇÃO AO PLANO DE RECUPERAÇÃO E A SEUS EFEITOS. PROSSEGUIMENTO DA EXECUÇÃO NO JUÍZO COMUM. RESSALVA QUANTO A ATOS DE ALIENAÇÃO OU CONSTRIÇÃO PATRIMONIAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO UNIVERSAL. PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA. 1. Os créditos constituídos depois de ter o devedor ingressado com o pedido de recuperação judicial estão excluídos do plano e de seus efeitos (art. 49, caput, da Lei n. 11.101/2005). Isso porque, "se assim não fosse, o devedor não conseguiria mais acesso nenhum a crédito comercial ou bancário, inviabilizando-se o objetivo da recuperação" (COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à lei de falências e de recuperação de empresas. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2011, p.191). 2. Nesse diapasão, devem-se privilegiar os trabalhadores e os investidores que, durante a crise econômico-financeira, assumiram os riscos e proveram a recuperanda, viabilizando a continuidade de sua atividade empresarial, sempre tendo em mente que a notícia da crise acarreta inadvertidamente a retração do mercado para a sociedade em declínio. 3. Todavia, tal raciocínio deve ser aplicado apenas a credores que efetivamente contribuíram para o soerguimento da empresa recuperanda no período posterior ao pedido de recuperação judicial - notadamente os credores negociais, fornecedores e trabalhadores. Não é o caso, por exemplo, de credores de honorários advocatícios de sucumbência, que são resultantes de processos nos quais a empresa em recuperação ficou vencida. A bem da verdade, são créditos oriundos de trabalhos prestados em desfavor da empresa, os quais, muito embora de elevadíssima virtude, não se equiparam - ao menos para o propósito de soerguimento empresarial - a credores negociais ou trabalhistas. 4. Com efeito, embora o crédito de honorários advocatícios sucumbenciais surgido posteriormente ao pedido de recuperação não possa integrar o plano, pois vulnera a literalidade da Lei n.11.101/2005, há de ser usado o mesmo raciocínio que guia o art. 49, § 3º, da Lei n. 11.101/2005, segundo o qual mesmo os credores cujos créditos não se sujeitam ao plano de recuperação não podem expropriar bens essenciais à atividade empresarial, na mesma linha do que entendia a jurisprudência quanto ao crédito fiscal, antes do advento da Lei n. 13.043/2014. 5. Assim, tal crédito não se sujeita ao plano de recuperação e as execuções prosseguem, mas o juízo universal deve exercer o controle sobre atos de constrição ou expropriação patrimonial, aquilatando a essencialidade do bem à atividade empresarial. 6. Recurso especial parcialmente provido. (REsp 1298670/MS, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 21/05/2015, DJe 26/06/2015) Evidente, assim, que o ato praticado pelo juízo cível ou trabalhista, em violação à ordem de stay, deve ser considerado nulo, podendo ser reconhecida essa nulidade a qualquer tempo. Conforme ensina Arruda Alvim, "a incompetência material (ratione materiae) é aquela verificada em razão da matéria não caber dentro das atribuições de um determinado juízo. Ou seja, não se observam quais matérias determinado juízo está jurisdicionalmente apto a apreciar, como, v.g., a propositura de causa cível em juízo criminal. Quanto às causas cíveis e a competência material, cumpre-nos dizer, ainda, que, tratando-se de causas que versem sobre determinadas matérias, já varas (juízos) especializados, cuja competência é absoluta, exatamente porque ratione materiae (ex: varas de família, registros públicos etc.)" (Manual de Direito Processual Civil, 18 ed. São Paulo, Thompson Reuters, 2019, pág. 362). Mas não é só. Se a competência para definir se o bem pode ou não ser executado é do juízo da recuperação judicial, não pode o credor pedir a outro juízo (da execução cível ou trabalhista) que decida sobre essas questões a fim de pretender o prosseguimento indevido da execução. Tal situação é flagrantemente violadora dos princípios da boa-fé objetiva e da colaboração processual. A tentativa intencional de alguns credores de prosseguir nas execuções cíveis ou trabalhistas, não obstante a ordem de stay proferida pelo juízo concursal da recuperação judicial, vem ocasionando um imenso número de conflitos de competência desnecessários, diante do entendimento já consolidado do STJ de que a competência para decidir tais questões é do juízo recuperacional. Além disso, tal conduta coloca em sério risco os objetivos de interesse público/social do processo recuperacional. As atividades empresariais/comerciais da recuperanda certamente restarão ameaçadas na medida em que essas ordens constritivas, provenientes de outros juízos incompetentes, poderão comprometer o fluxo de caixa da devedora e a continuidade das suas operações. E mais. Essas medidas proferidas pelos juízos incompetentes têm o condão de tumultuar o ambiente de negociação buscado pela lei 11.101/2005, em prejuízo da preservação de todos os benefícios sociais e econômicos decorrentes da preservação da atividade empresarial (geração de empregos, circulação de riquezas, geração de tributos etc.). Nesse sentido, além da nulidade dos atos judiciais proferidos pelo juízo incompetente, a parte que requereu essas medidas de forma intencional, pretendendo realizar individualmente seu direito, não obstante os efeitos da recuperação judicial, deve ser considerada litigante de má-fé e sua conduta deve ser enquadrada como ato atentatório à dignidade da Justiça. Deve-se observar, todavia, que a punição do credor pela prática de ato atentatório à dignidade da Justiça pressupõe a existência de dolo. Vale dizer, o credor, ciente de que a questão está ou deve ser submetida ao juízo da recuperação, ainda assim pugna pelo prosseguimento da execução ou pugna pela expropriação de determinado ativo. Assim, se o credor está incluído na lista de credores da recuperação judicial, não lhe resta alternativa a não ser pleitear a liberação das execuções individuais ao juízo da recuperação judicial. Em relação aos credores não sujeitos (em princípio) aos efeitos da recuperação judicial, havendo alegação da devedora de que o bem é essencial ao desenvolvimento de sua atividade perante o juízo da recuperação, não poderá o credor - ciente dessa situação - pugnar provimento diverso perante o juízo da execução. Essas situações revelam a intenção de violar a ordem de stay. Conforme dispõe o art. 77 do CPC, aplicável ao sistema de insolvência empresarial por força do art. 189 da lei 11.101/05, é dever das partes e de todos aqueles que participem do processo, cumprir com exatidão as decisões jurisdicionais (inc. IV) e não praticar inovação ilegal no estado de fato de bem ou direito litigioso (inc. VI). O parágrafo segundo ao art. 77 do CPC estabelece que o ato atentatório da Justiça (previstos nos incisos IV a VI) poderá ser punido com a imposição de multa de até 20% sobre o valor da causa, sem prejuízo das sanções processuais, civis e criminais cabíveis. Os credores sujeitos à recuperação judicial são os destinatários da ordem de stay proferida pelo juízo da recuperação que, por sua vez, é o competente para deliberar sobre o prosseguimento ou não de execuções contra ativos da recuperanda. Nesse sentido, caberá ao juízo da recuperação judicial aplicar a penalidade, com fundamento no art. 77 do CPC, ao credor que pretender violar o stay, ainda que mediante a prática de atos em processo diverso, compensando-se, eventualmente, o valor da multa com eventual crédito a ser recebido pelo credor resistente nos autos da recuperação judicial. A jurisprudência já começa a adotar, em certa medida, esse entendimento, conforme se verifica de decisão pioneira proferida pelo Juiz João de Oliveira Rodrigues Filho, em exercício na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo/SP. Confira-se trecho da decisão de deferimento do processamento da recuperação judicial da devedora no processo n. 1039842-97.2019: 3) Determino, nos termos do art. 52, III, da Lei 11.101/2005, "a suspensão de todas as ações ou execuções contra os devedores", na forma do art. 6º da LRF, devendo permanecer "os respectivos autos no juízo onde se processam, ressalvadas as ações previstas nos §§ 1º, 2º e 7º do art. 6º dessa Lei e as relativas a créditos excetuados na forma dos §§ 3º e 4º do art. 49 dessa mesma Lei", providenciando a devedora as comunicações competentes (art. 52, § 3º). A ressalva acerca da continuidade da tramitação das ações acima elencadas, entretanto, não autoriza a prática de atos de excussão de bens da recuperanda, sem o crivo deste Juízo. Explico. De acordo com a jurisprudência do Colendo STJ, a competência para declaração da essencialidade de bem da recuperanda, seja de sua esfera patrimonial, seja de bens de propriedade alheia, mas insertos na cadeia de produção da atividade, é do Juízo no qual se processa a recuperação judicial. (...) Todavia, mesmo com a determinação do stay period e a jurisprudência consolidada do STJ sobre a competência do Juízo da recuperação judicial para deliberar sobre a essencialidade dos bens de propriedade ou posse da recuperanda, a realidade tem demonstrado a existência de diversos atos de constrição patrimonial contra a devedora emanados de Juízos diversos, por provocação de credores sujeitos ou não à recuperação judicial. Essa situação, além de ocasionar um imenso número de conflitos de competência desnecessários diante do entendimento já consolidado do STJ, compromete o fluxo de caixa e as atividades operacionais da atividade em recuperação, em razão da paralisia que se impõe sobre o bem no caso concreto, impedindo sua utilização justamente no momento de maior necessidade da recuperanda, além de tumultuar o ambiente de negociação buscado pela Lei 11.101/2005, que se faz presente durante o processamento da recuperação judicial. A boa-fé objetiva nas relações de ordem privada, consistente na verificação de eticidade da parte através de suas condutas, já presente em nosso ordenamento desde o advento da Constituição Federal de 1988 e mais especificada com o Código Civil de 2002, ganhou reforço para sua incidência no âmbito do processo civil, diante de sua previsão expressa no art. 5º ao lado da obrigação de cooperação processual pelas partes, elencada no art. 6º, todos do CPC. Assim, seja pela previsão contida no art. 49, caput e parágrafo 3º in fine, seja pela obrigação ex vi legis contida no art. 6º, caput, todos da Lei 11.101/2005, qualquer ato de credor, sujeito ou não à recuperação judicial, que busque pagamento fora dos termos da recuperação judicial ou excussão de bens essenciais à atividade, respectivamente, através de medidas adotadas em Juízos diversos que não o recuperacional, estará violando determinação legal e judicial, em absoluta contrariedade aos postulados da boa-fé e da cooperação processual, de modo a configurar ato atentatório à dignidade da justiça, conforme previsão do inciso IV do art. 77 do CPC. Diante do exposto, nos termos do parágrafo 1º do art. 77 do CPC, ficam todos os credores, sujeitos ou não à recuperação judicial, advertidos da necessidade de abstenção da busca de atos de constrição de bens contra a recuperanda, em Juízos diversos, sob pena de aplicação da sanção contida no parágrafo 2º do aludido artigo de lei, consistente em imposição de multa de até 20% do valor da causa, sem prejuízo de outras sanções cabíveis nas esfera processual, civil e criminal. Nota-se, em conclusão, que a lógica do sistema norte-americano, que influenciou fortemente a lei 11.101/05, também tem aplicação no sistema brasileiro de insolvência empresarial, garantindo-se a efetividade do stay pela reconhecimento da nulidade dos atos praticados pelo juízo incompetente e também pela aplicação das penas previstas para a prática de ato atentatório da Justiça aos credores resistentes, que buscam driblar os efeitos da recuperação judicial. É a interpretação sistemática da regulação legal da insolvência empresarial, conjugada com a utilização das ferramentas processuais civis, em prol da garantia da eficiência e da racionalidade da aplicação jurisdicional.  
Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira A Constituição Federal determinou que à microempresa fosse instituído um tratamento favorecido (art. 179), visando a incentivá-las pela simplificação de suas obrigações administrativas, tributárias, previdenciárias e creditícias, ou pela eliminação ou redução destas por meio de lei. A concretização constitucional desse objetivo veio com a emenda constitucional 42, que modificou o artigo 146 da Constituição Federal e outorgou à lei complementar competência para instituir a definição do tratamento diferenciado e favorecido às microempresas e empresas de pequeno porte, permitindo, inclusive, a instituição de regime único de arrecadação. A Lei Complementar 123/2006, por sua vez, em atenção ao comando constitucional, criou o chamado simples, com várias facilidades, especialmente de ordem fiscal. Veja-se o grande esforço legislativo para se proporcionar à microempresa e empresa de pequeno porte a facilidade fiscal. A previsão do artigo 179 da Constituição Federal não era por si só suficiente para proporcionar vantagem para essas empresas. Houve necessidade de uma emenda constitucional e de uma lei complementar, instrumentos legislativos que exigem bastante apoio no Congresso Nacional, para que esses empresários fossem aquinhoados com um mecanismo fiscal adequado ou menos prejudicial. No campo do direito da insolvência, a lei 11.101/05 também se preocupou com a microempresa e empresa de pequeno porte. Daí a previsão dos artigos 70 a 72. Esses dispositivos, na redação original da lei, eram bastante acanhados, pois (i) abrangiam somente o passivo quirografário e permitiam o (ii) pagamento em 36 parcelas mensais, iguais e sucessivas. A semelhança com a antiga concordata preventiva foi lembrada pela doutrina1. Exigiu-se, entretanto, o pagamento de correção monetária e juros de 12% ao ano, com carência de 180 dias2. Na comparação com a prática do chamado plano geral para as empresas de médio e grande porte, essa previsão é bastante ruim para as pequenas empresas. Ao menos em São Paulo, há certa praxe de os planos preverem o pagamento de juros de 1% ao ano e atualização monetária pela TR, dada certa jurisprudência exigindo tais previsões nos planos de recuperação. Em outras palavras, a lei era prejudicial à pequena empresa, pois, em termos substanciais, exigia-lhe que suportasse mais encargos. No âmbito processual, a lei 11.101/05, também com o fito de favorecer a pequena empresa, foi eliminada a convocação de assembleia-geral de credores. A esses assegurou-se o direito de apresentarem objeção ao plano de recuperação especial, "nos termos do art. 55 desta lei", conforme previsão do parágrafo único do artigo 72. Aparentemente, a objeção teria a mesma natureza, seja na recuperação de plano geral seja na recuperação de plano especial. A objeção, na recuperação judicial com plano geral ou ordinário, tem a finalidade de propiciar a convocação da assembleia geral de credores. A objeção não é julgada pelo juiz, controvertendo a doutrina sobre a necessidade de ser motivada. A ausência de objeção implica aprovação tácita. A objeção acaba por representar um veículo que desencadeia o chamamento da assembleia geral de credores; trata-se de um mecanismo em que, na verdade, o credor pede mais diálogo, mais negociação com o devedor e tem em vista a assembleia de credores. Não se trata de efetiva resposta do credor ao plano, e, por isso, a objeção não assume caráter contestatório. Pois bem. Na recuperação da microempresa e empresa de pequeno porte, não será convocada assembleia-geral de credores para deliberar sobre o plano (art. 72). Como a finalidade da objeção, no plano geral ou ordinário, é propiciar a convocação da assembleia-geral de credores, ato esse inexistente no processo de recuperação judicial da pequena empresa, tem-se que, evidentemente, a objeção se afasta do perfil que lhe dá a lei na disciplina da recuperação judicial do plano geral. Qual a finalidade da objeção, então, e, principalmente, qual a amplitude da cognição judicial a respeito? Dizia o parágrafo único do artigo 72 que o juiz julgará improcedente o pedido de recuperação judicial e decretará a falência do devedor se houver objeções de credores titulares de mais da metade dos créditos quirografários. A previsão legislativa criava perplexidade, e a doutrina já havia percebido o problema logo no início de vigência da lei, momento em que a recuperação da pequena empresa assemelhava-se à concordata preventiva. Manoel Justino Bezerra Filho3 anotou "desvantagens para o pequeno empresário, pois, para os outros casos de recuperação judicial normal, se houver objeção dos credores, esta sempre poderá ser afastada pela assembleia geral". Para Carlos Henrique Abrão4, "há uma atecnia na redação da norma, uma vez que o decreto de improcedência exigirá um mínimo de segurança probatória, não se desejando que todo o poder emane dos credores e na intenção exclusiva deles de levar a empresa à quebra". Fábio Ulhoa Coelho5 escreve que a objeção só pode versar sobre a adequação da proposta do devedor à lei, e que, diante da não convocação de assembleia-geral de credores, a aprovação ou rejeição do plano cabe exclusivamente ao juiz. Carlos Klein Zanini6 escreve que a interpretação literal do dispositivo levaria à falência caso houvesse objeção por mais da metade dos créditos sujeitos à recuperação. Ao rejeitar tal modo de interpretação, sugere o exame da "fundamentação empregada na objeção, de modo que não se venham a admitir objeções meramente caprichosas, ou deduzidas com o propósito de chantagear o devedor". Vê-se certa insatisfação doutrinária com a disposição legal. O que se pode dizer é que a objeção será, necessariamente, objeto de cognição judicial. Ela terá de ser apreciada pelo juiz, pois, diferentemente do plano geral, ela não serve para chamar a assembleia-geral de credores. A lei não aponta o objeto da objeção, como o fez, por exemplo, com a impugnação ao pedido de homologação do plano de recuperação extrajudicial (art. 164, § 3º). Dada a limitação do plano de recuperação, na versão original da lei, o objeto da objeção, por certo, era, como escreve Fábio Ulhoa Coelho, a adequação da proposta à lei. Ainda aí, causa estranheza o seguinte ponto. Caso o plano tenha contemplado o pagamento em 36 parcelas, com juros e correção monetária, como mandava a lei, como o juiz poderia julgar a objeção apresentada por credores titulares de mais de metade dos créditos? A prevalecer a objeção, a lei teria dado com uma mão e tirado com a outra, pois a objeção potestativamente suplantaria a recuperação ajuizada pelo devedor. Ficaria sem sentido, então, a previsão do artigo 72 para objetar o plano de pagamento em 36 parcelas, como previa a lei originariamente. A adequação do plano à lei poderia ser controlada de ofício pelo juiz; aliás, para esse fim, a objeção sequer precisaria de quórum especial. Ocorre que a lei mudou7, e, ainda na tentativa de beneficiar a pequena empresa, estabeleceu-se a possibilidade de abatimento do valor das dívidas (art. 71, II), além de admitir a submissão de dívidas outras que não a de natureza quirografária. Na redação do art. 71, I, o plano especial abrangerá todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos, excetuados os decorrentes de repasse de recursos oficiais, os fiscais e os previstos nos §§ 3º e 4º do art. 49. Além do deságio, que já era corriqueiro, desde 2005, para a macroempresa, dilatou-se o âmbito dos credores submetidos. Antes limitado aos credores quirografários, agora o plano especial pode contemplar credores, basicamente, os credores trabalhistas e os credores com garantia real. Todavia, a lei não falou em classe de credores, nos moldes do artigo 41. A opção da lei foi a de remeter ao artigo 83 da Lei, que disciplina a ordem de pagamento dos credores na falência. A nova redação do parágrafo único do artigo 72 autoriza o julgamento de improcedência do plano especial se houver rejeição dos credores titulares de metade de qualquer uma das classes do art. 83, computados na forma do artigo 45. Algumas dessas alterações são positivas, embora a referência ao artigo 83 da Lei 11.101/05 seja desastrosa8. Não houve alteração do seguinte ponto. Apresentado o plano especial, não será convocada assembleia-geral de credores. Apesar de se prever o deságio, certamente a fonte das maiores controvérsias nos planos de recuperação judicial da macroempresa, não se previu nenhum espaço de negociação entre o devedor e os credores, e a negociação foi o grande mote para se alterar o regime de 1945. Certamente no afã de melhor aquinhoar a pequena empresa com a possibilidade de abatimento da dívida, não se apercebeu o legislador de que, correlatamente, precisaria instituir um mecanismo de diálogo entre os atores do processo. Se, para a hipótese de parcelamento automático, aos moldes da velha concordata, a objeção era e poderia ser limitada, ao prever outro meio de solução do passivo da empresa, a lei tinha de propiciar um instrumento apto a viabilizar a negociação. Continua sem alteração, no que nos interessa, o parágrafo único do artigo 72, segundo o qual "o juiz também julgará improcedente o pedido de recuperação judicial e decretará a falência do devedor se houver objeções, nos termos do art. 55 desta Lei, de credores titulares de mais da metade dos créditos previstos no art. 83, computados na forma do art. 45, todos desta lei". Não houve alteração do meio concedido ao credor nem alteração do quórum, embora tenha ocorrido nova disciplina sobre as classes. Permaneceu, portanto, a mesma objeção para a recuperação judicial assemelhada à concordata e para a recuperação judicial agora concebida como meio de reestruturação de dívida com a possibilidade de obtenção de abatimento do valor, com a seguinte observação. A limitação (sujeição somente dos quirografários) para o devedor implicava, correlatamente, uma limitação do teor da impugnação, que poderia versar sobre aspectos formais e sobre o parcelamento em si. A cognição judicial estava bastante limitada. Na medida em que se dilatou o âmbito dos meios de recuperação disponibilizados ao devedor ME ou EPP, que natureza ostenta a objeção do credor? Enquanto a objeção do plano geral é mecanismo apto a gerar a convocação da assembleia geral de credores, a objeção do plano especial não permite a convocação de assembleia, que inexiste nessa sistemática. A objeção, insista-se, que papel exerce no processo de recuperação judicial da microempresa e da empresa de pequeno porte? Vale lembrar que o deságio previsto aproxima o plano especial do plano geral, em que os deságios são constantes. A expressão financeira do deságio no âmbito do plano geral é objeto de negociação. Ressente-se de um espaço de negociação o processo de recuperação de microempresa. Vamos a um exemplo. O plano de recuperação da microempresa prevê deságio de 10% e pagamento em 36 parcelas, com atualização pela Selic. A maioria dos credores objeta o plano, para dizer que se trata de perda exagerada, e que o devedor tem força para pagar sem o deságio. Quais são os critérios pelos quais o juiz pode apreciar a objeção desse jaez? A única previsão da lei é a de que a objeção pela maioria dos credores leva à derrota do plano. Mais. A prevalecer o entendimento jurisprudencial segundo o qual o juiz não examina o conteúdo econômico financeiro do plano de recuperação, vai prevalecer a vontade do credor, e o deságio, mínimo que seja, ou razoável, poderá ser impugnado por determinada classe, e com êxito. Nessa circunstância, o juiz deve, cegamente, verificar a presença do quórum legal e decretar a falência ou deve examinar o conteúdo do plano de recuperação judicial e o seu contorno econômico, além de examinar, concomitantemente, o conteúdo da objeção? Onde há negociação o juiz não deve intervir. Essa é a essência do entendimento jurisprudencial segundo o qual o juiz não examina o conteúdo econômico-financeiro do plano, exceto para controle de legalidade. E onde a negociação está ausente, como na recuperação da pequena empresa? Haveria espaço para algo além do controle de legalidade? Quando se fala em ausência de negociação, fala-se em ausência de mecanismo processual apto a se chegar a esse momento. É claro que as partes podem, e devem negociar. Ocorre que para fins de interpretação e aplicação da lei, a lacuna relativa à falta de previsão de uma assembleia de credores ou de outra forma negociação ou, ainda de exame da manifestação do credor, leva à perplexidade que este texto procura acentuar. A verdade é que o grande esforço legislativo que se viu com a modificação constitucional e com a lei complementar 114/2006 não se repetiu na disciplina da insolvência da microempresa. E ela é merecedora de melhor atenção por parte do legislador. Oxalá na reforma da lei a microempresa seja aquinhoada com uma disciplina legal que atenda ao mandamento constitucional do tratamento favorecido, pois a lei 11.101/05 não atende a esse desiderato, seja no aspecto substancial, seja no aspecto processual, em que impera a incerteza e, até, um rigor maior em desfavor da empresa de pequeno porte e da microempresa. __________ 1 Sergio Campinho, Falência e recuperação de empresa, 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2009, p. 183. Para Hélia Marcia Gomes Pinheiro, A recuperação da microempresa e da empresa de pequeno porte, "é, na verdade, uma verdadeira concordata preventiva dilatória", in A Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, Coord. Paulo Penalva Santos. Rio de Janeiro: Forense, 2006, p. 168. 2 Julio Kahan Mandel, Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas Anotada. São Paulo:Saraiva, 2005, p. 144, fez "destaque negativo para a fixação de uma taxa de juro elevada, de 12%, remuneração em média maior do que aplicações em caderneta de poupança". 3 Nova Lei de Recuperação e Falências Comentada, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 185. 4 Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Coord. de Paulo Fernando Campos Salles de Toledo e Carlos Henrique Abrão. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 186. 5 Comentários à Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 186. 6 Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência, coord. Francisco Satiro e Antonio Moraes Pitombo. São Paulo: RT, 2006, p. 323. 7 Lei Complementar 147/2014 deu nova redação aos artigos 71 e 72 da lei 11.101/05. 8 Alguns dos problemas causados por esse aspecto são enfrentados por Marcelo Barbosa Sacramone, Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Saraiva, 2018, p. 297-298.  
Texto e autoria de Marcelo Barbosa Sacramone A Medida Provisória 881, de 30 de abril de 2019, procurou instituir a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica e estabelecer garantias de livre mercado. Em sua exposição de motivos, justificaram-se suas imprescindíveis relevância e urgência pela exigência de criação de ambiente institucional de segurança jurídica aos empresários, condição que facilitaria o investimento e pela redução dos diversos custos de transação em benefício do desenvolvimento econômico nacional. O art. 82-A, inserido na lei 11.101/05, a Lei de Recuperação de Empresas e Falência (LREF), contudo, se não devidamente interpretado, poderá vir em sentido diametralmente oposto ao objetivo pretendido pela Medida Provisória. A extensão da falência da sociedade aos sócios é medida excepcionalíssima no Direito brasileiro. Pelo art. 81 da LREF, apenas nas hipóteses de sociedades tipicamente com sócios de responsabilidade ilimitada e solidária, a falência da sociedade será estendida aos seus sócios integrantes. A interpretação restritiva permitia a decretação apenas a sociedades com utilização diminuta na prática, como as sociedades em nome coletivo, as sociedades em comandita simples, quanto aos sócios comanditados, as sociedades em comandita por ações, quanto aos sócios diretores, e as sociedades em comum. A restrição da extensão da quebra apenas aos sócios de responsabilidade ilimitada ocorria justamente para facilitar a proliferação de negócios jurídicos e o empreendedorismo. Ainda que empreender possa ser atividade arriscada, os diversos sócios eram incentivados a reciprocamente contribuir com bens ou serviços para o exercício da empresa por meio da constituição de sociedade que asseguraria a preservação de seus patrimônios individuais. A sociedade limitada e a sociedade anônima, utilizadas em grande medida por essa razão, permitiriam aos sócios, na hipótese de sucesso do empreendimento, a partilha entre si dos resultados. No caso de insucesso da empresa, entretanto, com eventual decretação da falência da sociedade, a responsabilidade dos sócios quotistas seria restrita ao valor do capital social a ser integralizado e a dos acionistas ao valor das respectivas ações subscritas. Decretada a falência da sociedade, esses sócios de responsabilidade limitada poderiam livremente continuar a desempenhar atividade empresarial e não responderiam com seus bens pessoais para a satisfação das dívidas da sociedade, o que delimitava o risco do investimento individual. O art. 82-A, todavia, subverte essa lógica. Pela sua redação, a extensão dos efeitos da falência passa a ser admitida quando estiverem presentes os requisitos da desconsideração da personalidade jurídica. Pelo novo dispositivo inserido, ainda que os sócios possuam responsabilidade limitada pelas obrigações sociais, desde que tenham abusado da personalidade jurídica, seja por meio do desvio de finalidade ou por meio da confusão patrimonial, poderão ter a falência decretada. Por consequência, independentemente do prejuízo causado ou da solvência do sócio ou administrador, todos os seus ativos serão arrecadado e o produto de sua liquidação, juntamente com o produto da liquidação dos bens da sociedade, será utilizado para a satisfação de todos os credores, sejam eles da sociedade ou credores particulares do sócio falido. Decerto a fraude e o abuso da pessoa jurídica devem ser coibidos. A extensão da falência aos sócios e administradores, contudo, não parece ser o melhor meio de fazê-lo. Os atos ilícitos praticados pelos sócios de responsabilidade limitada, controladores e administradores da sociedade falida já eram disciplinados pela redação original do art. 82 da LREF, sem prejuízo dos diversos dispositivos societários, de que o art. 245 da lei 6.404/76 é mero exemplo. Mesmos nesses tipos societários em que a falência não poderia ser estendida originalmente aos sócios, tanto esses quanto os administradores poderiam ser pessoalmente responsáveis pelo cometimento de atos ilícitos que produzissem prejuízo à Massa. A disciplina da responsabilização, sem extensão da falência, garantia segurança jurídica aos sócios e administradores, cujo ilícito poderia ser eventualmente reconhecido. Permitia-se o ressarcimento da Massa e dos credores indiretamente afetados pela redução do patrimônio social, mas com a segurança jurídica de que a constrição dos bens particulares seria realizada apenas nos limites dos prejuízos efetivamente causados. A segurança também era preservada aos credores sociais. Com a responsabilização dos sócios e administradores ao ressarcimento do prejuízo causado, permitia-se apenas a constrição de ativos, mas não a inclusão concomitante do passivo particular do sócio. Desta forma, assegurava-se a busca dos ativos sem que houvesse a partilha do produto da liquidação do escasso ativo da sociedade falida com todos os demais credores particulares do sócio. A conversão do art. 82-A em lei, assim, não apenas subverterá o sistema de insolvência vigente, como comprometerá os próprios objetivos de se aprimorar a segurança jurídica e de se facilitar o investimento e o desenvolvimento econômico nacional buscados pela própria Medida Provisória 881/2019.  
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque Olá, caro amigo leitor, como está? O tema que trago no texto de hoje parte de certa perplexidade de minha parte, no exercício da advocacia no campo da recuperação judicial. Para entender o ponto, vamos devagar: nos últimos anos, uma das principais garantias que vem se consolidando é a alienação fiduciária. A alienação fiduciária, prevista pelo art. 1.361 do Código Civil para os bens móveis, consiste em direito real de garantia mediante o qual o devedor e proprietário do bem aliena a coisa ao credor com o intuito de garantir determinada dívida. Com a alienação, o devedor passa a ser depositário e possuidor direto do bem, enquanto o credor detém a propriedade e a posse indireta da coisa sob condição resolutiva (propriedade resolúvel)1. Os bens imóveis também podem ser dados em alienação fiduciária, nos termos da lei 9.514/1997. A relevância de aludida garantia no âmbito da recuperação judicial é evidente, pois os credores fiduciários são considerados extraconcursais, conforme art. 49, §3° da lei 11.101/2005. E isso por uma razão simples: é que os bens dados em alienação fiduciária estão sob a propriedade resolúvel dos credores, e não mais da devedora em recuperação. Assim, se o plano apresentado pela recuperanda dispõe que haverá deságio (desconto do valor realmente devido), tal condição não afetaria os credores extraconcursais. Além disso, os credores não sujeitos à recuperação judicial não precisam aguardar o trâmite do procedimento recuperacional para excutir a garantia (stay period, art. 6º da lei 11.101/2005)2. A depender, portanto, da liquidez do bem dado em alienação fiduciária, ocupar a posição de credor extraconcursal pode representar importante vantagem estratégica. A excussão de garantias fiduciárias, via de regra, pode ser realizada extrajudicialmente, ou seja, independentemente do ajuizamento de medida judicial pelo credor. Nesse sentido, por exemplo, quanto aos bens imóveis, a lei 9.514/1997 estabelece o seguinte procedimento: (i) intimação do devedor fiduciante pelo oficial do Registro de Imóveis a satisfazer, no prazo de quinze dias, a prestação vencida e as que se vencerem até a data do pagamento, acrescidas de encargos e despesas (art. 26, § 1º); (ii) decorrido o prazo sem a purgação da mora, averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do credor fiduciário, à vista da prova do pagamento por este, do imposto de transmissão inter vivos (art. 26, § 7º); (iii) realização de público leilão do imóvel pelo credor fiduciário para a alienação do imóvel (art. 27). Mesmo em relação aos bens móveis, o decreto-lei 911/1969 prevê o ajuizamento de ação judicial especificamente para a busca e apreensão do bem, que normalmente se encontra na posse do devedor fiduciante, ficando o credor fiduciário autorizado a "vender a coisa a terceiros, independentemente de leilão, hasta pública, avaliação prévia ou qualquer outra medida judicial ou extrajudicial, salvo disposição expressa em contrário prevista no contrato", nos termos do art. 2º do referido diploma. Ocorre que, por variadas razões, em vez de buscar a excussão extrajudicial de sua garantia, pode o credor fiduciário preferir ajuizar uma ação de execução contra o devedor fiduciante e pedir a penhora dos direitos aquisitivos deste justamente sobre o bem que havia sido dado em garantia fiduciária. Tal possibilidade é assegurada pelo art. 835, XII do CPC, que prevê expressamente a penhora sobre "direitos aquisitivos derivados de promessa de compra e venda e de alienação fiduciária em garantia". O problema é que tal conduta tem sido interpretada por alguns precedentes como uma espécie de renúncia tácita à garantia fiduciária, com a consequente submissão do credor fiduciário à recuperação judicial como credor quirografário, na ausência de qualquer outra garantia de seu crédito. Confira-se: Recuperação judicial - Ajuizamento de execução individual - Renúncia à garantia fiduciária em relação à cédula de crédito bancário e Instrumento Particular de Confissão de Dívida - Caracterização - Créditos que devem ser habilitados como quirografários - Decisão reformada - Recurso provido (TJSP, AI 2197310-53.2018.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Fortes Barbosa, julg. 7.11.2018, grifou-se) AGRAVO DE INSTRUMENTO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. CESSÃO FIDUCIÁRIA EM GARANTIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS. DECISÃO QUE REJEITOU A IMPUGNAÇÃO AO CRÉDITO APRESENTADA PELAS RECUPERANDAS. HIPÓTESE DE ACOLHIMENTO. AJUIZAMENTO DE AÇÃO DE EXECUÇÃO PELO CREDOR. RENÚNCIA À GARANTIA FIDUCIÁRIA QUE É INEQUÍVOCA NO CASO CONCRETO. CRÉDITO ASSUME NATUREZA QUIROGRAFÁRIA. EXTRACONCURSALIDADE PREVISTA NO ART. 49, §3º, LEI Nº 11.101/05, AFASTADA. ART. 66-B, §5º, LEI Nº 4.728/65, E ART. 1.436, III E §1º, CC. RECURSO PROVIDO. (TJSP, AI 2100475-37.2017.8.26.0000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, Rel. Des. Alexandre Lazzarini, julg. 26.3.2018, grifou-se) Tal posicionamento parece equivocado, não sendo possível extrair do simples ajuizamento da execução que teria havido renúncia - ainda que tácita - à garantia fiduciária. Várias razões podem explicar a propositura da ação de execução: (i) o credor fiduciário busca utilizar uma só medida para atingir outros bens do patrimônio do devedor fiduciante, além daquele dado em garantia fiduciária; (ii) o credor fiduciário acredita ter maior segurança jurídica em um procedimento judicial de expropriação de bens do executado; ou (iii) o credor fiduciário quer evitar a incidência do perdão legal previsto no art. 27, § 5º da lei 9.514/1997, para o caso em que, iniciada a excussão extrajudicial da alienação fiduciária de imóvel, não se atinge o valor mínimo do lance no segundo leilão (valor da dívida, das despesas, dos prêmios de seguro, dos encargos legais, inclusive tributos, e das contribuições condominiais). Todos esses são argumentos justificáveis, que afastam a hipótese de renúncia tácita da garantia fiduciária pelo credor. De toda sorte, e agora pensando como advogado, dada a insegurança jurídica na matéria, notadamente no âmbito do TJ/SP, tal risco deve ser ponderado sempre que o credor fiduciário preferir se valer da ação de execução contra o devedor fiduciante. Abraços, e até a próxima! __________ 1 Luiz Dellore e Carolina Campos Rizzato. Consolidação de bem alienado fiduciariamente durante o stay period. Migalhas, publicado em 9/4/2019. 2 Apesar disso, a jurisprudência tem estabelecido restrições à excussão da garantia fiduciária quando se tratar de bem essencial à atividade da recuperanda, como apontado no texto da nota anterior. V. tb. Paulo Furtado. A cessão fiduciária de recebíveis e a proteção aos bens essenciais durante o "stay period". Migalhas, publicado em 29/1/2019, e Daniel Carnio Costa. Teoria da essencialidade de bens e as travas bancárias na recuperação judicial de empresas. Migalhas, publicado em 18/12/2018.  
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho Recentemente foi noticiada a realização da primeira reunião, no Conselho Nacional de Justiça, de um grupo de trabalho constituído para a modernização e efetividade da atuação do Poder Judiciário nos processos de recuperação judicial e falências. De acordo com a manifestação do presidente do CNJ, algumas propostas seriam analisadas com maior atenção, tais como: (i) perícia prevista em processos de recuperação judicial para evitar a utilização fraudulenta ou de má-fé desse tipo de processo em prejuízo dos credores e da sociedade em geral; (ii) da gestão democrática de processos, com utilização de mediação entre credores e devedores; (iii) da uniformização do procedimento utilizado pelos juízes para fazer o controle de legalidade do plano de recuperação judicial; (iv) da implementação pelos Tribunais de varas especializadas com competência regional, a fim de assegurar eficiência e melhores resultados nesses processos; (v) do fomento à capacitação de magistrados e servidores, e por fim; (vi) à colaboração internacional e à troca de informações entre juízos de insolvência, sobretudo em casos de repercussão internacional. Já tivemos a oportunidade de tratar, nesta coluna, da indevida utilização da perícia prévia como regra geral ("Perícia prévia na recuperação judicial: a exceção que virou regra?", Migalhas, 2/5/2018). Vale registrar, por oportuno, que a justificativa apresentada pelo presidente do CNJ, para a adoção da perícia prévia, seria o combate ao uso fraudulento da recuperação judicial. Ocorre que a lei 11.101/2005 já contém os remédios adequados para o combate à má-fé: (i) fiscalização das atividades do devedor pelo administrador judicial; (ii) afastamento do devedor da condução dos negócios; (iii) responsabilização do devedor por crime falimentar. Basta que estes instrumentos sejam aplicados que a má-fé nos pedidos de recuperação judicial será adequadamente combatida. Além disso, se a lei 11.101/2005 não atribuiu ao juiz uma cognição exauriente na fase inicial do processo de recuperação judicial, pois deixou aos credores a análise da viabilidade da superação da crise do devedor, após a apresentação do plano, não seria mais adequada a realização de uma perícia no curso do procedimento, de modo a propiciar aos credores as informações necessárias para uma decisão refletida sore o plano? Os credores, com base na perícia realizada pelo administrador judicial, teriam acesso a informações menos enviesadas do que aquelas contidas no estudo de viabilidade econômico-financeira realizado por pessoa contratada pelo devedor. Com isso, poderiam os credores decidir se a empresa deve ou não permanecer no mercado. Com a perícia prévia, que propicia o indeferimento do processamento, o juiz simplesmente devolve ao mercado uma empresa inviável, quando, pelos objetivos do nosso sistema de insolvência, deveria ser processado o pedido e, caso constatada a inviabilidade do plano de recuperação, ser decretada a falência e retirado do mercado o empresário. Enfim, a ideia de uma perícia em tese é boa, mas encontra-se fora de lugar ao ser colocada antes do deferimento do processamento da recuperação judicial. Quanto à gestão democrática, trata-se de denominação atribuída a uma audiência concentrada, em que são ouvidos os interessados e decididas várias questões que, no mais das vezes, poderiam ter sido enfrentadas previamente pelo juízo falimentar, sem maiores delongas. A realização da audiência dessa natureza não se justifica em todos os casos, mas apenas naqueles de maior complexidade que recomendem uma atuação mais incisiva do juiz, de acordo com o seu discernimento. Nos processos falimentares e de recuperação judicial o juiz conta com o administrador judicial, auxiliar que deve atuar para a consecução dos objetivos da lei 11.101/2005. Por exemplo, a falência é um processo que exige muitas providências materiais, como arrecadação, avaliação e alienação de bens, que devem ser realizadas com agilidade pelo administrador judicial, dispensando audiências presididas pelo juiz. Na recuperação judicial, por sua vez, o devedor e os credores têm papel relevante para a solução da crise, cabendo ao Juiz intervir em situações excepcionais, quando perceber o retardamento indevido desta solução. A mediação poderá entrar aí, como instrumento adicional para auxiliar devedor e credores a melhor a superarem os obstáculos que surgirem na negociação. Exemplos de mediação temos nos casos da recuperação judicial da Saraiva e da EDB. Casos especialíssimos podem exigir uma audiência, como recentemente se deu no processo da Avianca, em que o magistrado buscou uma composição entre os arrendadores das aeronaves e a companhia aérea em recuperação, ou no caso da Libra Santos, em que se foram exigidas explicações a respeito da notícia de encerramento das atividades da devedora. Enfim, o sistema processual confia no discernimento do juiz para a realização de audiência, nos casos em que ele reputá-la adequada o bom êxito do processo de falência ou de recuperação judicial, não havendo necessidade de imposição, como regra, de um ato processual muitas vezes desnecessário. Quanto à proposta de uniformização do procedimento de controle de legalidade do plano de recuperação, além de avançar na esfera de atuação jurisdicional de cada magistrado, suscita algumas questões prévias referentes ao momento do controle da legalidade e cuja resposta poderia tornar o processo mais eficiente. Seria possível a análise da legalidade do plano pelo juiz, antes da assembleia-geral de credores, a partir das objeções dos credores, evitando-se a invalidação posterior e a necessidade de apresentação de novo plano? Antes mesmo do aviso do plano aos credores, o juiz poderia determinar ao administrador judicial a análise da legalidade das cláusulas? Logo no início do procedimento o juiz já deveria relacionar as cláusulas que considera ilegais, de modo a evitar a apresentação do plano com tais ilegalidades? Enfim, o controle de legalidade do plano de recuperação pode até ser feito por etapas, no curso do procedimento, com a atuação do administrador judicial, dos credores e do juiz, mas a esfera jurisdicional não pode ser invadida por determinações administrativas. Finalmente, a mais relevante das propostas contidas na manifestação do presidente do CNJ consiste na especialização dos juízos de insolvência e na capacitação de magistrados e servidores. Nesta coluna, em artigo publicado em 23/10/2008, observamos que somente serão atingidos os objetivos da nossa legislação de insolvência (1 - Preservação da empresa; 2 - Separação dos conceitos de empresa e empresário; 3 - Recuperação das sociedades e empresários recuperáveis; 4 - Retirada do mercado de sociedades ou empresários não recuperáveis; 5 - Proteção aos trabalhadores; 6 - Redução do custo do crédito no Brasil; 7 - Celeridade e eficiência dos processos judiciais; 8 - Participação ativa dos credores; 10 - 11 - Maximização do valor dos ativos; 12 - Desburocratização da recuperação de microempresas e empresas de pequeno porte; 13 - Rigor na punição de crimes relacionados à falência e à recuperação judicial) se forem assegurados os meios adequados para a sua consecução e se os intérpretes das normas pautarem sua atuação de acordo com os objetivos positivados. Nenhuma legislação de insolvência terá seus objetivos alcançados sem contar com uma magistratura com condições materiais e humanas de bem aplicar a lei. Nesse sentido, juízos regionais especializados em falências e recuperações tendem a aplicar a legislação de forma mais rápida e eficiente, desenvolvendo os meios adequados à obtenção dos resultados buscados pelo legislador. O Tribunal de Justiça de São Paulo já adotou tal iniciativa legislativa, criando varas regionais especializadas, e realiza estudos para a implantação dessas unidades judiciárias. Além disso, as varas de falências e recuperações judiciais têm peculiaridades que justificam estudos específicos para a adequação do quadro funcional ao volume de serviço. Nesse sentido, o Tribunal de Justiça de São Paulo está realizando análise do dimensionamento da força de trabalho, sob os aspectos qualitativo e quantitativo, nas 1ª. e 2ª. Varas de Recuperações Judiciais da comarca da capital. Diante de tudo o que foi exposto, ousamos sugerir ao Conselho Nacional de Justiça o seguinte: primeiro, implantar as varas regionais, com a força de trabalho adequada; em seguida, capacitar os juízes, para os objetivos da lei, com a consciência de que esta capacitação terá suas limitações decorrentes da ausência de atuação prática; após um ano, reunir esses juízes, já capacitados e com experiência própria, para discussão sobre as práticas que julgarem mais adequada (perícia antes ou depois do deferimento do processamento da recuperação; procedimento do controle de legalidade do plano etc). Hoje, não há como exigir de juízes não especializados que apliquem práticas que eles conhecem superficialmente e sem que possam compreender as graves consequências de sua implantação, ainda que venham a ser recomendadas pelo CNJ.  
Texto de autoria de Luiz Dellore e Carolina Campos Rizzato  Contextualização do tema A recuperação judicial (RJ) no Brasil é regida pela lei 11.101/05 e corresponde a um benefício legal colocado à disposição do empresário que enfrenta uma crise econômico-financeira de caráter superável. Trata-se, portanto, de um procedimento que auxilia na reorganização da empresa por meio da renegociação das suas dívidas, mediante um processo judicial perante o Poder Judiciário1. Para que o objetivo de reorganizar a empresa seja atingido, o legislador oferece à empresa recuperanda algumas benesses, como por exemplo o denominado stay period, conforme disposto no art. 6° da lei 11.101/05. No stay period, por 180 (cento e oitenta) dias haverá a suspensão das ações e execuções movidas contra a empresa recuperanda. A rigor, esse período não pode ser prorrogado em razão de proibição da própria lei, em seu art. 6°, §4°. Na prática, entretanto, a jurisprudência tem admitido a prorrogação em alguns casos2. A contagem do stay period é feita em dias3, iniciando-se após a decisão que defere o processamento da recuperação judicial. A concessão de um período em que há suspensão das ações e execuções movidas contra a empresa devedora tem como objetivo principal permitir que a empresa consiga reorganizar suas atividades, possibilitando um fôlego e evitando eventual constrição de bens que possa obstar o prosseguimento da recuperação judicial. Assim, a premissa do stay é bastante clara, no sentido de permitir a sobrevivência da empresa até a aprovação do plano de recuperação. Entretanto, na prática forense surgem inúmeros debates acerca do stay, como por exemplo se é possível, ou não, a consolidação da propriedade de um bem garantido fiduciariamente durante o stay period. É o que enfrentaremos neste artigo. Alienação fiduciária em garantia A alienação fiduciária, prevista pelo art. 1.361 do Código Civil, é o direito real de garantia em que o devedor e proprietário do bem aliena a coisa ao credor com o intuito de garantir determinada dívida. Com a alienação, o devedor passa a ser depositário e possuidor direto do bem, enquanto o credor detém a posse indireta da coisa sob condição resolutiva (posse resolúvel). Havendo adimplemento da obrigação assumida pelo devedor, o contrato de alienação fiduciária é resolvido e o devedor volta a ser proprietário do bem. Porém, se houver inadimplemento da obrigação, o credor poderá reaver a posse direta do devedor, executando (excutindo) a sua garantia. Neste caso, haverá a consolidação da propriedade do bem dado em garantia em nome do fiduciante (credor). Vale destacar que a consolidação da propriedade fiduciária pelo credor é ato anterior ao leilão para alienação do bem dado em garantia. Ademais, a consolidação da propriedade não significa, necessariamente e de forma imediata a perda da posse do bem pelo devedor. 2.1. Alienação fiduciária no âmbito das recuperações judiciais A alienação fiduciária é amplamente utilizada no âmbito das recuperações judiciais, de modo que a lei 11.101/05 oferece condições especiais à esta modalidade de garantia real. Isso porque a Lei de Recuperações Judiciais determina que os credores fiduciários são considerados extraconcursais, ou seja, não se submetem à RJ, nos termos do art. 49, §3°. Assim, se o plano apresentado pela recuperanda dispõe que haverá deságio (desconto do valor realmente devido), esta característica não afetará os credores extaconcursais, que terão suas condições contratuais mantidas, recebendo exatamente o mesmo valor que foi acordado contratualmente. Além disso, os credores não sujeitos à recuperação judicial não precisam aguardar o trâmite do procedimento recuperacional, de modo que ocupar a posição de credor fiduciário é bastante conveniente, sob a perspectiva do credor, no âmbito de uma recuperação judicial. No entanto, para que possa gozar dos benefícios conferidos à sua posição, o credor fiduciário deve cumprir alguns requisitos que lhe garantam a extraconcursalidade de seu crédito, como por exemplo a alienação fiduciária ser anterior ao pedido de recuperação4. A consolidação do bem alienado fiduciariamente DURANTE o stay period Chega-se agora ao ponto central do tema: uma vez não realizado o pagamento do devedor, existindo garantia fiduciária (que é extraconcursal), é possível se iniciar a consolidação da propriedade durante o stay period? Ou é necessário aguardar os 180 dias para somente aí proceder-se à consolidação da propriedade? Conforme já exposto, a consolidação da propriedade fiduciária é um dos passos na execução da garantia - mais precisamente, no caso de bem imóvel, é o ato em que o tabelião promove a averbação, na matrícula do imóvel, da consolidação da propriedade em nome do credor, em razão do inadimplemento da obrigação assumida pelo devedor. Assim, a consolidação da propriedade fiduciária não implica imediatamente na perda da posse do bem pelo devedor. Isso porque, caso não haja pagamento ou qualquer forma de composição, após a consolidação haverá a alienação do bem em leilão (CC, art. 1.364) e consequente entrega da posse - eventualmente mediante o uso de medida judicial específica para isso. Vale relembrar que o objetivo da concessão do prazo do stay é justamente permitir que a recuperanda tenha um fôlego para reorganizar suas atividades, evitando qualquer situação que obste o prosseguimento da recuperação judicial, como uma constrição patrimonial. Assim, partindo do pressuposto de que a consolidação do bem não implica na perda imediata da posse pelo devedor, é possível concluir que não haveria óbice à consolidação durante o stay, pois isso não configura a tomada do bem dado em garantia. Contudo, os Tribunais não analisam a questão apenas sob essa perspectiva. O TJSP, nas suas 2 Câmaras Especializadas em Direito Empresarial - e, portanto, com competência para analisar o tema - tem julgados no sentido de que não é possível haver a consolidação da propriedade fiduciária quando o imóvel em comento for considerado essencial à atividade da empresa. Nesse sentido, inicialmente trazemos julgados da 1ª Câmara Reservada (grifos nossos): "Agravo de instrumento. Recuperação judicial. Decisão que deferiu tutela de urgência para suspender a consolidação da propriedade de dois imóveis alienados fiduciariamente à agravante durante o stay period. Manutenção. Bens essenciais ao soerguimento das recuperandas. Unidades produtivas. Atividade agrícola. Art. 49, §3º, da lei nº 11.101/05. Circunstâncias do caso concreto que justificam a manutenção da decisão agravada. Recurso não provido". (TJSP; Agravo de Instrumento 2122353-81.2018.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Garça - 3ª Vara; Data do Julgamento: 05/09/2018; Data de Registro: 06/09/2018) O Desembargador Relator entendeu pela inviabilidade da consolidação dos imóveis dados em garantia fiduciária, alegando, em síntese: (i) o caráter essencial dos imóveis na manutenção das atividades das recuperandas; (ii) que a consolidação poderia obstar a recuperação judicial, haja vista que, uma vez consolidada a propriedade, a posse poderia ser postulada pelo credor fiduciário ou pelo eventual arrematante, prejudicando assim a recuperanda; (iii) o prazo de stay period tem como objetivo a reorganização das empresas, podendo garantir a purgação da mora e a manutenção dos imóveis pelos devedores. Nesse mesmo sentido, da mesma Câmara, trazendo outros argumentos, o seguinte acórdão (grifos nossos): "A reintegração de posse é mera consequência da consolidação da propriedade e, na forma da lei 9.514/97, pode ser postulada tanto pelo credor fiduciário como pelo arrematante. Parece extremamente severo sustentar que a propriedade pode ser perdida durante o pedido de reorganização da empresa, preservando-se apenas a sua posse direta. Isso porque, passado o período de seis meses, a sorte do imóvel dado em garantia já estará selada. Ainda que a devedor fiduciante consiga reorganizar-se e reunir recursos para purgar a mora, isso não mais será possível, uma vez que a propriedade plena já estará em definitivo consolidada nas mãos da credora fiduciária. Razoável, portanto, em harmonia com a própria finalidade do stay period, se evite nesse meio tempo situação definitiva e irreversível de perda da propriedade, permitindo à devedora soerguer-se, purgar a mora e retomar o contrato". (TJSP; Agravo de Instrumento 2135163-59.2016.8.26.0000; Relator (a): Francisco Loureiro; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jaú - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 22/08/2018; Data de Registro: 22/08/2018) De seu turno, se o imóvel dado em garantia fiduciária não for bem essencial, portanto, é possível prosseguir com a consolidação da propriedade sem qualquer restrição. É o que consta do seguinte julgado, da 2ª Câmara Reservada (grifamos): "Agravo de instrumento - Decisão que rejeitou os pedidos de suspensão da consolidação/leilão de propriedade das garantias de alienação fiduciária dos imóveis - Elementos que indicam a extraconcursalidade do crédito discutido, sendo inaplicáveis os efeitos do "stay period" (Lei 11.101/05, art. 49, §3º) - Exceção de mencionado dispositivo que abrange apenas os "bens de capital essenciais", que não é o caso dos autos - Validade do procedimento de consolidação da propriedade dos imóveis alienados fiduciariamente - Observância da Lei nº 9.514/97 - Precedentes jurisprudenciais - Decisão mantida - Recurso desprovido." (TJSP; Agravo de Instrumento 2059745-47.2018.8.26.0000; Relator (a): Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Porto Ferreira - 1ª Vara; Data do Julgamento: 06/06/2018; Data de Registro: 06/06/2018) Vale ressaltar, por fim, que até o presente momento não há acórdão do Superior Tribunal de Justiça sobre o tema5. Conclusão. Considerando o exposto, tendo em vista (i) a extraconcursalidade da garantia fiduciária e (ii) o fato de que a consolidação da propriedade, por si só, não importa em perda da posse do bem, parece-nos que não haveria qualquer óbice legal à consolidação da propriedade de qualquer imóvel durante o stay period. Contudo, necessário consignar que a jurisprudência do TJSP, no momento, consagra o entendimento no sentido de não permitir a consolidação da propriedade fiduciária durante o stay period quando se tratar de imóvel essencial às atividades da recuperanda. *Carolina Campos Rizzato é bacharel em Direito pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, aprovada no exame de Ordem. Ex-estagiária da Caixa Econômica Federal, na área de recuperação judicial. __________ 1 Para uma visão geral acerca do procedimento da RJ, vide o seguinte texto desta coluna. 2 Mas isso é assunto para outro texto. 3 Acerca de ser dias úteis ou corridos, a questão já foi enfrentada em coluna anterior, mas segue polêmica, sendo recomendável sempre verificar qual é o entendimento adotado pela vara em que tramita o processo. 4 Há uma série de debates a respeito dessa questão, como por exemplo se existe a necessidade de registro para que haja a extraconcursalidade, quando se está diante de bens móveis. A respeito, conferir. 5 Ainda que não haja decisão colegiada do STJ acerca do tema, existem algumas decisões monocráticas, como por exemplo a seguinte: "AGRAVO DE INSTRUMENTO - BUSCA E APREENSÃO - AGRAVADO EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL - CONTRATO DE CRÉDITO BANCÁRIO, COM GARANTIA FIDUCIÁRIA - BANCO CREDOR TITULAR DA POSIÇÃO DE PROPRIETÁRIO FIDUCIÁRIO NÃO SE SUJEITA AOS EFEITOS DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL - BEM EM GARANTIA ESSENCIAL À ATIVIDADE PRODUTIVA DA EMPRESA RECUPERANDA - PERMANÊNCIA NA POSSE DURANTE O PRAZO DE BLINDAGEM - INTERPRETAÇÃO DOS ARTS. 49, § 3°, E ART. 6°, § 4°, AMBOS DA LEI 11.101/05 - RECURSO DESPROVIDO. O credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, via de regra, não se sujeita aos efeitos da recuperação judicial, a teor do art. 49, § 3°, da Lei 11.101/05. Todavia, constatado que o bem dado em garantia ao banco credor é essencial à atividade produtiva da empresa recuperanda, deve permanecer na sua posse durante o prazo de blindagem. (Recurso Especial n° 1.790.086 - MT. Relator: Ministro Marco Buzzi. Publicado no DJE em 11/02/2019)". Vale aduzir que dessa decisão pode até se defender que é possível a consolidação durante o stay, sendo vedada apenas a perda da posse, na linha do que defendemos no texto. Mas necessário esperar algum julgado de Turma para efetivamente se verificar qual a posição do STJ.
Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira O juízo da recuperação judicial, muitas vezes, é solicitado a decidir questões de urgência envolvendo a empresa em recuperação. No bojo do respectivo processo, o devedor apresenta um requerimento que envolverá proteção a bens jurídicos de seu interesse. Isso pode ocorrer de plano, já com a petição inicial da recuperação judicial, como supervenientemente, após a prolação do despacho de processamento. O primeiro ponto, certamente, é discutir o cabimento de tais postulações. A lei é omissa a respeito, e o assunto envolve competência do juízo. Deve ser reconhecido que o Juízo da recuperação é dotado do poder geral de tutela provisória, dada a magnitude dos bens jurídicos que estão envolvidos no processo. Sob a égide do CPC de 1973, falava-se em poder geral de cautela destinado à efetividade da prestação jurisdicional, com assento constitucional (art. 5º, XXXV). Ainda que não existisse previsão expressa1 do poder geral de cautela na lei ordinária, ele era algo "que prescinde de declaração legal, carecendo, quando muito, de uma regulamentação do seu modus operandi"2. Era uma norma de encerramento do processo cautelar, uma norma em branco3, embora de caráter subsidiário4. O artigo 799 era meramente exemplificativo5. No CPC 2015, a tutela provisória de urgência pode ser cautelar ou antecipada, antecedente ou incidental, e é uma expressão da exigência de razoável duração do processo (CF, art. 5º, inc. LXXVIII). O artigo 297 é bastante amplo na outorga de poderes: "o juiz poderá determinar as medidas que considerar adequadas para a efetivação da tutela provisória". E, como foi deixado de lado o critério de tipicidade das cautelares, o artigo 301 do CPC, depois de dar alguns exemplos, assegura o poder-dever do juiz de efetivar "qualquer outra medida idônea para asseguração do direito". O que tinha caráter subsidiário no CPC de 1973, assumiu foros de regra geral no CPC de 2015, dada a atipicidade das cautelares. O arrolamento constritivo de bens era uma cautelar típica; agora, é concedida com base no poder geral de cautela. Pela generalidade6, o artigo 301 é a sede do poder geral de cautela e do poder geral de antecipação. Na verdade, há um conjunto normativo apto a oferecer ampla tutela ao jurisdicionado (art. 139, IV, 297 e 301, todos do CPC), seja no campo cautelar seja no campo da antecipação, fugindo de discussões estéreis que, por muito tempo, consumiu a doutrina brasileira com reflexo detrimentoso à jurisprudência. Da prerrogativa do poder geral de tutela provisória está revestido, também, o juiz da recuperação judicial (art. 189 da lei 11.101/05). A jurisdição da recuperação acha-se revestida desse poder geral de tutela provisória para que os objetivos estampados no artigo 47 da lei 11.101/05 possam ser alcançados em sua plenitude. Já se decidiu que7, "ao julgador há de ser dado certo campo de atuação além dos limites literais da lei para que prevaleça o princípio da manutenção da empresa que revele possibilidade de superar a crise econômico-financeira pela qual esteja passando". O poder geral de tutela provisória8 assegura a competência para apreciação de pontos que, sob essa ótica, possam ser de interesse para o processo de recuperação e para o devedor em recuperação, e mesmo para os credores. E os assuntos são os mais variados possíveis9. Em discussão sobre fraude no processo de recuperação, com repercussão na vida social, decidiu-se10: "Atos judiciais como o determinado nestes autos inserem-se no poder de cautela do Magistrado a quem a Lei impõe verificar nos processos de recuperação judicial a adequação do pedido à finalidade de viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor. Não há necessidade de ajuizamento de demanda própria com a finalidade da verificação da ocorrência de eventuais fraudes como pretendeu o Relator Sorteado. Na recuperação judicial, os atos em defesa do interesse de credores estão inscritos no objetivo da recuperação judicial, como se lê na regra-fim (LREF, art. 47)". Embora não seja difícil reconhecer ao juízo da recuperação o poder geral de tutela provisória, já não é tarefa fácil delimitar os limites da atuação jurisdicional no âmbito do processo de recuperação. Há uma tendência natural do devedor de se acomodar debaixo da proteção conferida pelo processo de recuperação, e a sua perspectiva será sempre a de dilatar essa proteção, com medidas requeridas incidentalmente no referido processo. Há que se estabelecer uma limitação objetiva a esse poder geral. Certamente, um primeiro corte diz respeito às relações creditícias. O artigo 49 contém o marco temporal que subordina créditos ao processo de recuperação, e que são os créditos existentes na data do pedido. Tudo o que disser respeito a esses créditos é de competência do juízo da recuperação judicial. Ainda que o crédito seja extraconcursal, a jurisprudência tem reconhecido a competência do juízo da recuperação para apreciar questões relativas à penhora, por exemplo. Ocorre que a empresa em recuperação se mantém na posse de seus bens e prossegue, normalmente, suas operações. E é aí que pode surgir algum conflito. Como já foi dito, é comum o devedor levar esses conflitos ao conhecimento do juízo da recuperação, seja a pedir medidas cautelares, seja mesmo na distribuição por dependência de ações de conhecimento, na pressuposição de que teria um tratamento mais favorecido dada a natural sensibilidade do juízo da recuperação para com a situação da empresa em crise. A jurisprudência, contudo, estabelece a correta distinção. Vejamos alguns precedentes. Na ação de despejo por falta de pagamento promovida contra a recuperanda, a competência do juízo da recuperação é absoluta para examinar a essencialidade dos bens11. É preciso ressaltar que essa competência é adstrita ao crédito anterior à distribuição da recuperação judicial e suas consequências. Em relação à essencialidade dos bens, não há dúvida de que a competência é do juízo da recuperação, ainda que os bens tenham sido alienados fiduciariamente12. A dificuldade, por certo, reside em saber o que é bem essencial. Rejeitou-se, todavia, a competência do juízo da recuperação para autorizar a recuperanda a participar de licitações e fornecimento ao poder público sem apresentação de certidões13. Nessa hipótese, as regras gerais de competência devem ser observadas, sem a atração do juízo da recuperação. Esse precedente é expressivo. A vida da empresa em recuperação segue sem vinculação ao juízo da recuperação, exceto se pretender a alienação de bens (art. 66 da LFR) e, evidentemente, em tudo o que diz respeito ao plano de recuperação. Caso precise ajuizar ação, ou defender-se, tomará tais providências sem o apelo ao guarda-chuva do juízo da recuperação. O Superior Tribunal de Justiça14 entendeu ser uma exceção ao juízo universal a competência para processar ação relativa a contrato celebrado após a recuperação judicial. A devedora pretendida homologar um acordo, e levou o requerimento ao juízo da recuperação. Além do pedido de homologação, requereu e obteve o bloqueio dos bens da parte contrária. O Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, corretamente, anulou a decisão, por incompetência absoluta do juízo da recuperação para conhecer do pedido e para decretar a medida cautelar do bloqueio de bens, em decisão mantida pelo STJ. A ser esse o critério, e nos parece que ele está correto, também o poder geral de tutela provisória seguirá a mesma regra. Isto é: o juízo da recuperação não dispõe do poder geral para decidir sobre negócios celebrados pela recuperanda após a distribuição do processo de recuperação, e não dispõe por lhe falecer competência para tanto. Em conclusão, o juízo da recuperação judicial acha-se revestido da competência para decidir tutela provisória, a favor ou contra a empresa em recuperação. O limite objetivo envolve a relação jurídica deduzida na postulação. Tratando-se de fato ou negócio posterior à distribuição da recuperação judicial, o respectivo juízo é absolutamente incompetente tanto para apreciar qualquer tutela provisória, como qualquer tutela de caráter declaratório, sem sentido amplo. Não há prevenção do juízo da recuperação para conhecer de ações outras envolvendo o devedor, com a ressalva do § 8º do artigo 6º, da lei 11.101/05. O chamado juízo universal, como o chama o STJ, limita-se a examinar o risco da efetivação de atos materiais para a recuperação da empresa em crise. __________ 1 A lei norte-americana, em suas disposições gerais (Capítulo I, Seção 105), atribui expressa competência ao juiz falimentar para emitir qualquer ordem, processo ou decisão necessária ou apropriada para realizar as disposições da lei, ainda que de ofício. 2 Donaldo Armelin, Tutela jurisdicional cautelar. Artigo publicado na Revista da Procuradoria Geral do Estado de São Paulo, v. 23, jun. 1985, p. 119. 3 A expressão é de Galeno Lacerda, Comentários ao CPC, v. VIII, tomo I, 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 136. 4 José Roberto dos Santos Bedaque, Tutela cautelar e tutela antecipada: tutelas sumárias e de urgência. Tentativa de sistematização. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 209. 5 Sydney Sanches, Poder cautelar geral do juiz. São Paulo: RT, 1978, p. 109, com referência a diversos outros autores, entre eles Barbosa Moreira, Pestana de Aguiar, Sergio S. FAdel. 6 Humberto Theodoro Júnior, Curso de direito processual civil, v. I, 57ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 619, fala em "poder tutelar geral do juiz". 7 TJ/SP, Câmara Reservada à Falência e Recuperação, AI 657.733-4/6-00, j. 27/10/2009, rel. Des. Lino Machado. 8 O TJ/RJ, em interpretação do artigo 49, §3º, da Lei 11.101/05, serve-se do poder geral de cautela para estabelecer limitação temporal à chamada trava bancária. Nesse sentido, Agravo Interno no AI 0057025-15.2013.8.19.0000, da 2ª Câmara Cível, j. 28/05/2014, rel. Des. Alexandre Freitas Câmara. 9 a) "Credor com garantia fiduciária sobre direitos creditórios. Alegação, da recuperanda, de que o credor fiduciário promoveu retenções ilegais de valores diretamente na sua conta bancária. Ressalvado o meu entendimento pessoal, alinho-me à orientação traçada por esta Turma Julgadora e com assento em julgados da Corte Superior para dispensar o registro da cédula de crédito bancário no Registro de Títulos e Documentos do domicílio da devedora como pressuposto para a constituição da garantia fiduciária e aplicação da exceção do § 3º do art. 49 da Lei nº 11.101/2005, mantida a necessidade de descrição (especialização) dos títulos entregues em garantia. Valores retidos em conta bancária vinculada a contrato que, apesar de garantido por "cessão fiduciária de títulos em cobrança", não cuidou de descrever os títulos cedidos em garantia, a revelar a ilegalidade das retenções. Decisão mantida. Recuperação Judicial. Astreintes. Fixação de multa diária decorrente do poder geral de cautela. Valor que deve ter a potencialidade de dissuadir o devedor de descumprir a ordem. Multa que pode ser revista. Pedido de limitação. Avaliação, por ora, inviável. Recurso desprovido" (TJSP; Agravo de Instrumento 2138286-31.2017.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Garça - 1ª Vara; Data do Julgamento: 25/02/2019; Data de Registro: 26/02/2019); b) "RECUPERAÇÃO JUDICIAL CONVOLADA EM FALÊNCIA - MONTEX MONTAGEM INDUSTRIAL LTDA. - INDISPONIBILIDADE DE BENS - FRAUDE - CONFUSÃO PATRIMONIAL - GRUPO ECONÔMICO - CONTRADITÓRIO DIFERIDO - POSSIBILIDADE - Fortes indícios de confusão patrimonial, fraude e formação de grupo econômico familiar - Caso em que, diante do risco da dilapidação patrimonial iminente, mostra-se cabível o contraditório diferido - Decreto de indisponibilidade dos bens de todos os sócios da falida MONTEX, bem como de bens de terceiros (ora agravante FELIPE PINTO RODRIGUES - sócio da MF TECH) - Considerando o âmbito do poder geral de cautela, nada impede que o juiz, de ofício ou a requerimento, e independentemente de prévia oitiva, determine medidas adequadas para evitar risco ao resultado útil do processo, diferindo o contraditório para momento posterior, como se depreende dos arts. 9º, 139, 297, 300, 314 e 526, CPC/2015 - Situação em que se está se buscando a preservação dos bens envolvidos nas transações suspeitas - Indisponibilidade dos bens que fica mantida" (TJSP; Agravo de Instrumento 2215822-84.2018.8.26.0000; Relator (a): Sérgio Shimura; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Araras - 2ª Vara Cível; Data do Julgamento: 04/02/2019; Data de Registro: 07/02/2019); c) AGRAVO - TUTELA DE URGÊNCIA - ARRESTO - Recuperação Judicial - Denúncias graves de esvaziamento do estabelecimento da devedora, mudança de endereço sem comunicação dos credores, encerramento das atividades há mais de um ano, corte de energia elétrica - Pretensão da credora ao arresto de maquinário, colocando-se como fiel depositária, suportando as custas para tal implementação - Cabimento - Poder geral de cautela do Juiz - Atos falimentares presentes que devem ser analisados no Juízo Recuperacional - Preservação do patrimônio dos credores que se mostra necessária até eventual novação (em razão da concessão da recuperação judicial) ou arrecadação (decorrente da convolação em falência) - Agravo provido, com determinação. Dispositivo: provimento ao recurso para determinar o arresto do bem indicado, nomeando-se a credora agravante como fiel depositária. (TJ/SP; Agravo de Instrumento 2216724-08.2016.8.26.0000; Relator (a): Ricardo Negrão; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jandira - 1ª Vara; Data do Julgamento: 03/07/2017; Data de Registro: 10/7/2017). 10 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 2189884-92.2015.8.26.0000, j. 29/02/2016, rel. Des. Ricardo Negrão, m.v. No mesmo sentido, entre outros, com uso do poder geral de cautela no processo de recuperação judicial: 2ª Câmara de Direito Empresarial, AI 2066869-23.2014.8.26.0000, j, 26/01/2015, rel. Des. Araldo Telles; Câmara Reservada à Falência e Recuperação, AI 0081082-73.2011.8.26.0000, j. 23/08/2011, rel. Des. Elliot Akel. 11 TJ/SP,27ª Câmara de Direito Privado, AI 2174553-65.2018.8.26.0000, j. 12/03/2019, rel. Des. Daise Fajardo Nogueira Jacot. 12 TJ/SP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 11/3/2019, rel. Des. Maurício Pessoa. 13 TJ/SP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, j. 27/2/2019, rel. Des. Araldo Telles. 14 3ª Turma, RESP 1.1766.412, j. 12/02/2019, rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva.
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa a) Suspensão da prescrição e das ações, execuções e de atos de constrição O projeto altera o momento de suspensão da ações e execuções movidas contra o devedor em recuperação judicial, aproximando o modelo brasileiro do sistema do automatic stay do direito dos EUA. Nesse sentido, propõe que as ações e execuções movidas contra o devedor sejam suspensas já a partir da distribuição do pedido de recuperação judicial e não mais somente a partir do deferimento judicial do processamento do pedido. No modelo atual da lei 11.101/05, quando o devedor ajuíza o pedido de recuperação, essa notícia se torna pública. Nesse sentido, os credores iniciam uma verdadeira corrida contra o patrimônio da devedora, na tentativa de realizar seu crédito ou parte dele antes que o juiz defira o processamento da recuperação judicial, quando então todos os credores ficariam obstados de prosseguir nas suas ações e execuções. A eventual demora do juízo em deferir o processamento da recuperação pode representar a falência da devedora pela ação de seus credores, já que não existe qualquer proteção legal ao devedor durante esse período de tempo que medeia a distribuição da ação e a decisão de deferimento do processamento, quando a partir de então entraria em vigor o stay period. Tal modificação vem em boa hora, considerando que o processo de recuperação judicial visa neutralizar os dois principais obstáculos que uma empresa em crise enfrenta para conseguir uma renegociação global com seus credores: a existência de credores resistentes (hold-outs), que por suas ações individuais contra a devedora inviabilizar a reorganização global e iniciam uma verdadeira corrida entre os credores contra o patrimônio da devedora. Assim, o procedimento da recuperação judicial deve, necessariamente, obstar os credores de avançar individualmente contra o patrimônio da devedora durante o período de negociação de um plano de recuperação. Além disso, a decisão da maioria dos credores deve vincular a todos, inclusive aos credores resistentes (que, se pudessem, iniciariam aquela corrida contra os ativos da devedora, deflagrando o mesmo comportamento dos demais credores). E mais. Antecipando a suspensão das ações e execuções para o momento da distribuição do pedido de recuperação judicial, o projeto oferece ao juiz do caso um tempo e uma tranquilidade maiores para analisar se o pedido ajuizado tem mesmo condições de ser processado, sem pressão da demora poder inviabilizar uma empresa em princípio viável. A perícia prévia, prática jurisprudencial que se tornou bastante difundida a partir de 2011 (e que visa analisar se a empresa tem ao menos em tese condições de gerar os benefícios econômicos e sociais que a lei busca preservar com a recuperação judicial - empregos, tributos, circulação de bens, produtos e serviços, geração de riquezas etc.) poderá ser feita sem a pressão (e a pressa) de se deferir o processamento para proteger a devedora contra os seus credores. Trata-se, portanto, de providência que não favorece apenas a devedora, como se poderia pensar apressadamente. A antecipação dos efeitos da suspensão é providência benéfica também aos credores, na medida em que dará ao magistrado a possibilidade de verificar, com mais acuidade, se o pedido deve mesmo ser processado ou se seria o caso de indeferir a petição inicial, deixando aos credores - ao mercado - a decisão de prosseguir individualmente em suas execuções ou de requerer, pelas vias próprias, a decretação da falência, com instalação de um concurso de credores. b) A amplitude da suspensão - quaisquer atos de constrição ou retenção judiciais e extrajudiciais - ações judiciais e arbitragens O projeto deixa claro que a suspensão não se refere apenas ao andamento das ações e execuções individuais em curso contra a devedora que ajuíza o pedido de recuperação judicial. O efeito suspensivo decorrente do ajuizamento do pedido recuperacional também impede o credor de exercer qualquer forma de retenção, arresto, penhora ou constrição judicial ou extrajudicial contra o devedor, incluídas aquelas dos credores particulares do sócio solidário. Nesse sentido, não poderá o credor exercer qualquer ato de que impeça a devedora de reaver seus ativos, como exercer o direito de retenção em ações possessórias. Nem mesmo atos extrajudiciais poderão ser exercidos pelos credores, como a aplicação da conhecida "trava bancaria", situação em que o credor instituição financeira desconta valores depositados em uma conta sob sua gestão para o pagamento de dívida inadimplida pelo devedor, desde que tal crédito esteja incluído na recuperação judicial. Não poderá o credor, a partir do ajuizamento da recuperação judicial requerer nem mesmo a penhora ou o arresto de ativos da devedora, nem qualquer outro tipo de ato de constrição judicial em ações cautelares ou executivas que já estejam em curso. Também os credores particulares do sócio, que é devedor solidário juntamente com a empresa que requereu a recuperação judicial, ficará obstado de exercer qualquer ato de constrição judicial ou extrajudicial contra ativos da empresa devedora. O esclarecimento trazido pela proposta de alteração legislativa visa, portanto, dissipar as divergências jurisprudenciais sobre o alcance da suspensão decorrente do automatic stay. Não ficarão suspensas, todavia, ações que já estiverem em curso contra a devedora, nas quais o credor demande quantia ilíquida. Nesses casos, as ações deverão seguir normalmente, perante os juízos de origem, até que sejam definidas a existência e o valor do crédito, após o que deverá o credor solicitar a habilitação do seu crédito no processo de falência ou de recuperação judicial, a fim de recebe-lo conforme a ordem de prioridade legal ou como definir o plano de recuperação aprovado pelo conjunto de credores de sua mesma classe. A novidade trazida pela proposta de reforma reside no esclarecimento de que as discussões arbitrais, nas quais se demandem quantias ilíquidas, seguem a mesma sorte das ações judiciais, ou seja, as arbitragens também devem prosseguir até definição da existência do crédito e de seu valor, após o que deverá o credor solicitar a habilitação do referido crédito no processo de falência ou recuperação judicial. É importante destacar que, em nenhum caso, uma ação que já esteja em andamento contra a devedora - e que demanda quantia ilíquida - deve ser encaminhada ao juízo da falência ou da recuperação judicial. Os processos deverão prosseguir normalmente nos juízos de origem (Estatal ou Arbitral) e somente depois de definidas a existência e o valor do crédito, deverá o credor solicitar sua habilitação no processo concursal. Relativamente ao crédito trabalhista, as ações já em curso deverão prosseguir normalmente até julgamento definitivo pelo juízo trabalhista. Mas a reforma propõe deixar bem claro que, mesmo depois da falência ou da recuperação judicial iniciada, as reclamações trabalhistas deverão ser ajuizadas normalmente perante a Justiça do Trabalho, que é a única competente para definir a existência e o valor do crédito trabalhista. Entretanto, depois de definido o crédito e o seu valor pelo juízo especializado trabalhista, caberá ao juízo da recuperação ou da falência conferir se a atualização do crédito obedece aos critérios da Lei de Falências e Recuperação de Empresas, a fim de se garantia a par conditio creditorum. Nesse sentido, a reforma propõe que o juízo trabalhista, depois do julgamento final da reclamação ajuizada pelo credor trabalhista, deverá expedir ofício ao juízo concursal com informação do valor do crédito atualizado até a data do pedido da recuperação judicial ou da decretação da falência. Na prática, o juízo concursal deverá autuar o ofício trabalhista em incidente próprio e o administrador judicial deverá conferir o cálculo apresentado pelo juízo trabalhista, a fim de garantir que a atualização feita naquele juízo obedece ao critério do juízo concursal, ou seja, está limitada até a data da decretação da quebra ou do ajuizamento da recuperação judicial. Deve ser conferido, também, se o cálculo feito pelo juízo trabalhista incluir apenas as verbas trabalhistas ou também inclui outras verbas de outra natureza, como fiscais (custas) e honorários advocatícios (pertencentes ao advogado e não ao credor trabalhista). Feito isso, o crédito exclusivamente trabalhista deverá ser incluído no quadro geral de credores, na classe própria. Em qualquer caso, tanto o juízo cível/arbitral, quanto o juízo trabalhista, poderá solicitar ao juízo concursal (falência/recuperação judicial) a reserva de valores que estimar devidos. Depois de reconhecida definitivamente a existência do crédito e o seu valor, deverá ser providenciada a sua normal habilitação para inclusão no quadro geral de credores. É importante destacar que o pedido de reserva não é feito pelo credor, mas sim pelo juízo por onde tramita a ação trabalhista ou que demande quantia ilíquida. A reserva deve ser solicitada mediante ofício judicial. Vale destacar, ainda, que a decretação da falência ou a recuperação judicial não prejudicam a possibilidade de adoção da via arbitral para solução de conflitos. Nesse sentido, havendo cláusula de arbitragem em algum contrato firmado pela empresa ora falida ou em recuperação judicial, a arbitragem será adotada como forma de solução do conflito, cabendo ao juiz da recuperação judicial qualificar o crédito para fins de inclusão no quadro geral de credores. c) Suspensão do despejo A proposta de reforma estabelece que a suspensão das ações impede também a realização do despejo da devedora em recuperação judicial. A mudança vem em boa hora e se destina a esclarecer divergências jurisprudenciais nesse sentido. Há entendimentos jurisprudenciais no sentido de que a ação de despejo, por tratar de obrigação de dar coisa certa, não estaria incluída no âmbito da suspensão legal, que atingiria apenas a cobrança da dívida. Entretanto, é evidente que o despejo é uma forma de execução coercitiva diretamente relacionada à exigibilidade da dívida. Vale dizer, se a dívida de aluguel é exigível e não foi paga, está autorizado o despejo. Mas, se a dívida de aluguel teve sua exigibilidade suspensa, pois está incluída na recuperação judicial, não faz mesmo sentido que seja autorizado o correlato despejo. Nesse sentido, a reforma deixa claro que não poderá ser realizado o despejo da devedora em razão de dívida de aluguel sujeita aos efeitos da recuperação judicial. Dizendo de outra forma, não cabe o despejo em razão do não pagamento de aluguéis vencidos até a data do pedido de recuperação. Evidentemente, se o não pagamento do aluguel refere-se a período posterior ao ajuizamento da recuperação judicia, trata-se de dívida extraconcursal, sendo plenamente possível a execução da dívida e o correspondente despejo. d) Suspensão de execuções trabalhistas contra responsável subsidiário Segundo a proposta, as execuções trabalhistas movidas contra a devedora que pediu recuperação devem ser suspensas, uma vez que tal dívida está sujeita aos efeitos do processo concursal e deverá ser objeto da negociação global. Mas, além disso, não poderá o juízo trabalhista pretender prosseguir a execução trabalhista contra eventual responsável subsidiário, por desconsideração da personalidade jurídica. Tornou-se prática no juízo trabalhista a tentativa de driblar a proteção legal oferecida pela recuperação judicial à empresa devedora. Os juízos trabalhistas passaram a desconsiderar a personalidade jurídica da empresa para atingir os bens particulares dos sócios ou de outras empresas coligadas ou integrantes do mesmo grupo econômico. Assim agindo, alguns credores - sujeitos ao concurso - acabavam recebendo integralmente seu crédito, colocando em risco a possibilidade dos demais credores trabalhistas de receberem ao menos parte dos seus créditos. E mais. Essa atitude colocava em risco a negociação global para reestruturação da empresa, prejudicando a geração dos postos de trabalho, em prejuízo ao interesse dos demais credores trabalhistas dependentes das atividades da empresa. Portanto, visando garantir os benefícios sociais e econômicos da recuperação judicial, a proposta estabelece que o crédito trabalhista terá sua exigibilidade suspensa (contra o devedor principal e contra o devedor subsidiário) até que a negociação coletiva seja definida no processo de recuperação judicial, ou seja, até a homologação do plano ou a convolação da recuperação judicial em falência. e) Prazo de suspensão - até o encerramento do processo de recuperação judicial A reforma propõe uma mudança bastante relevante no que tange à duração do stay period. No sistema atual, o prazo de suspensão das ações e execuções movidas contra a devedora em recuperação judicial não poderia durar mais do que 180 dias contados da data do deferimento do processamento do pedido. Esse prazo foi idealizado para ser improrrogável. Entretanto, a jurisprudência dos Tribunais definiu que caso os credores não tivessem votado o plano de recuperação judicial dentro do prazo de 180 dias, as ações e execuções deveriam continuar suspensas, desde que esse atraso não pudesse ser atribuído à conduta da própria devedora. Na prática, o prazo de 180 dias se tornou prorrogável na grande maioria dos casos, na medida em que a realidade mostrou que, seja pela complexidade dos processos recuperacionais, seja pela burocracia e pela falta de estrutura judiciaria, raramente foi possível realizar uma AGC com votação do plano de recuperação em menos de 180 dias. Nesse sentido, a proposta de reforma propõe que o prazo de suspensão das ações e execuções tenha validade até o final do processo de recuperação (que ocorrerá com a homologação do plano aprovado pelos credores). A proposta de mudança traz maior segurança ao processo recuperacional, na medida em que a instabilidade relativa à proteção legal (prorrogação ou não do stay period) colocava em risco o sucesso da reestruturação da empresa. Isso porque, o levantamento da suspensão das ações antes da renegociação das dívidas, liberaria os credores para avançar individualmente contra os ativos da devedora, iniciando aquela corrida dos credores que, certamente, levaria a devedora à falência. Conforme já dito, a suspensão das ações e execuções individuais é um dos fundamentos da recuperação judicial, sem a qual resta totalmente inviabilizada a possibilidade de negociação global e reestruturação da empresa, com prejuízo à manutenção dos benefícios econômicos e sociais buscados pela recuperação judicial. f) Créditos fiscais, FGTS, penalidades administrativas impostas aos empregadores pelos órgãos de fiscalização das relações de trabalho e contribuições sociais e seus acréscimos legais Propõe o projeto de reforma da lei, que não somente as execuções fiscais (créditos tributários) fiquem imunes aos efeitos da recuperação judicial, mas também as execuções de outros créditos equiparados, como FGTS, multas administrativas trabalhistas e contribuições sociais. Compreende-se a tentativa do legislador de oferecer uma maior proteção aos créditos tributários e equiparados, na medida em que um dos objetivos da recuperação judicial da empresa é preservar o recolhimento de tributos e garantir os interesses sociais na proteção aos trabalhadores. Entretanto, a proteção desses interesses relevantes deve ser compatibilizada com os demais valores objetivados pela recuperação judicial da empresa consistentes na preservação da atividade como fonte produtora de empregos, produtos, serviços e circulação de riquezas em geral. Nesse sentido, a proteção ao crédito tributário ou equiparado não poderá se dar de forma absoluta, em prejuízo da própria reorganização da empresa. Daí a necessidade de que exista uma legislação adequada que permita a empresa em crise, normalmente detentora de um elevado grau de endividamento fiscal, repactuar de maneira razoável e factível esse passivo extraconcursal com as autoridades fiscais. Do contrário, caberá ao Poder Judiciário realizar uma interpretação adequada desses dispositivos, aplicando o que propõe a teoria da superação do dualismo pendular, fazendo com que a melhor interpretação/aplicação da lei seja aquele que preserva não apenas o interesse do fisco (como credor), mas sim o interesse social/público de preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da manutenção de uma atividade empresarial viável. O projeto propõe, ainda, que o juízo da recuperação não terá competência para decidir sobre a constrição e expropriação de bens nas execuções fiscais (e equivalentes) que prosseguirem durante o curso da recuperação judicial. Tal disposição está em confronto com a própria lógica do processo recuperacional e com o entendimento consolidado do STJ que já afirmou que o juízo coletivo é quem tem condições de compatibilizar a realização do interesse do credor extraconcursal com os demais interesses sociais e coletivos envolvidos no processo de recuperação da empresa. Note-se que o entendimento do STJ não se formou em razão de qualquer dispositivo legal expresso da Lei 11.101/05, mas sim em função da lógica recuperacional e do juízo de ponderação de valores, próprios da interpretação jurisdicional. Aplicando-se nesse aspecto a teoria da divisão equilibrada de ônus, não se poderá admitir a interpretação que afirme que o Poder Público não ofereça a sua dose de sacrifício para a preservação dos benefícios sociais decorrentes da recuperação da empresa que exerce a sua função social. Não se pode confundir interesse público primário com interesse público secundário. O interesse do fisco que é merecedor de proteção na recuperação judicial é aquele que se identifica com o interesse público primário (interesse público por excelência de realização do bem comum) e não o interesse público secundário (interesse egoístico do órgão público como credor, pensando nos seus próprios cofres). Nesse sentido, essa norma proposta pela reforma não deve prevalecer, preservando-se a competência do juízo da recuperação para decidir sobre a possibilidade/compatibilidade da expropriação de um ativo envolvido em execução extraconcursal, de modo a preservar a prevalência do interesse social sobre o interesse particular de um credor específico (ainda que seja o fisco, agindo no seu interesse público secundário). E caso aprovada, essa norma certamente será neutralizada pela interpretação jurisprudencial compatível com a lógica do sistema recuperacional e com a ponderação de valores envolvidos no processo de recuperação da empresa em crise.
terça-feira, 26 de fevereiro de 2019

Para que serve uma lei de insolvência?

Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone Num ambiente de apresentação de reformas para a Lei de Recuperação de Empresas e Falência nacional, primeiro passo para se verificar se a lei cumpre a sua finalidade é identificar quais são seus objetivos. O sistema de insolvência procura disciplinar uma situação de crise econômico-financeira do empresário devedor, que não conseguiu satisfazer suas obrigações ou não possui condições de fazê-lo. Sua criação reflete a inadequação do sistema de execuções individuais de satisfação dos credores quando há inadimplemento geral do empresário devedor. Diante da insuficiência de ativos a satisfazer todos os credores, a legislação processual asseguraria execuções individuais para que os credores pudessem, mediante a constrição de ativos do devedor, satisfazer os seus créditos. Na hipótese de insolvabilidade do devedor, em que os seus ativos seriam insuficientes para a satisfação de todos os credores, o credor que primeiro conseguisse fazer a constrição de ativos do devedor teria maior probabilidade de ser satisfeito integralmente, ainda que isso implicasse a impossibilidade de satisfação dos demais credores que o sucedessem. Essa situação incentivaria os comportamentos oportunistas dos credores em detrimento de toda a coletividade. Como a legislação processual estabeleceria um sistema de tratamento preferencial ao credor que obtivesse a primeira penhora, o sistema geraria uma disputa pelos ativos do devedor. Por uma lado, a disputa pelo ativo exigiria dos credores que monitorassem a situação econômico-financeira do devedor de forma a serem os primeiros a executarem individualmente e a realizarem a constrição dos ativos na iminência de qualquer inadimplência, o que geraria maiores custos. Por outro, a penhora seria realizada individualmente por cada um dos credores e na medida dos ativos suficientes à satisfação do seu crédito. A liquidação dos ativos penhorados nos processos de execução individual, a depender do montante do débito executado, poderia gerar o fracionamento do estabelecimento empresarial, em detrimento da maximização do valor da liquidação coletiva dos bens e dos interesses de todos os demais envolvidos. A criação de um sistema próprio de insolvência para lidar com o inadimplemento geral por empresários devedores procura assegurar alguns objetivos diversos da execução individual, restrita à máxima satisfação do crédito do exequente que adquire pela penhora o direito de preferência. Embora haja intensa controvérsia doutrinária sobre a forma de sua aplicação, podem ser apresentados ao menos três objetivos principais de um sistema de insolvência. O primeiro deles é a maximização de valor da empresa em crise e a redução dos custos para a satisfação dos credores. O credor individual não poderia comprometer, com a liquidação forçada e fracionamento do estabelecimento empresarial, a satisfação de todos os demais credores. O sistema deveria, para tanto, estabelecer regras para incentivar os comportamentos coletivos e reduzir as estratégias individuais em detrimento dos demais. Decerto a lei 11.101/05 preconiza o comportamento colaborativo através da universalidade do Juízo falimentar, com a reunião de ativos do devedor e, na recuperação judicial, por meio da suspensão das ações e execuções em face da recuperanda, dos quóruns de maioria para a aprovação de plano de recuperação, etc. Entretanto, compromete a colaboração pretendida ao não incluir todos os credores no procedimento de recuperação judicial. Credores titulares da posição de proprietários fiduciários, arrendadores mercantis, proprietário vendedor com cláusula de reserva de domínio ou credor em decorrência de adiantamento de contrato de câmbio não se sujeitam a recuperação judicial e poderão acarretar, para a tutela do crédito individual, a liquidação forçada falimentar do empresário devedor em detrimento de todos os demais interessados. Outrossim, incentiva as estratégias individuais em detrimento da coletividade ao assegurar que o crédito, em face dos coobrigados, não será novado em razão da recuperação judicial. Como, ainda que o devedor principal se sujeite a recuperação judicial, o credor conserva seus direitos e privilégios contra os coobrigados, fiadores e obrigados em regresso, o credor terá todo incentivo individual de concordar com um plano de recuperação judicial insatisfatório e em detrimento do interesse da coletividade de credores, desde que seja satisfeito pelos demais coobrigados não sujeitos à recuperação. O segundo objetivo é a apropriada alocação dos custos do insucesso. O sistema de insolvência deve buscar a alocação dos custos do fracasso conforme a responsabilidade de cada agente. As consequências negativas devem ser suportadas por aqueles que foram os principais causadores da crise do devedor ou que poderiam mais eficazmente evitá-la. Se na falência, de forma a serem incentivados a serem eficientes no exercício de seus poderes e funções, os sócios ou administradores não poderiam ser satisfeitos com o recebimento da liquidação dos ativos ou a conservação da propriedade dos bens em detrimento da satisfação dos credores, isso não ocorre na recuperação judicial tal qual disciplinada pela lei 11.101/05. Apesar de em recuperação judicial, não há impedimento para que os sócios ou administradores sejam recompensados com dividendos ou alta remuneração, mesmo sem que os créditos tenham sido totalmente adimplidos. Tampouco há impedimento para que o devedor submeta os credores discordantes do plano de recuperação judicial, em conveniência própria, a pagamento menor do que eles teriam direito na hipótese de liquidação forçada. Além dos sócios e administradores, a quem devem ser imputados os custos do fracasso, referidos custos também devem ser imputados aos credores que teriam maiores condições de verificar a crise do devedor. Na perspectiva dos credores, os custos do inadimplemento devem ser suportados por aqueles que têm maiores condições de diligenciar para tomar as melhores decisões. Os credores mais vulneráveis ou cuja relação creditícia não possa ser por eles evitada devem possuir privilégio na satisfação dos referidos créditos até porque teriam dificuldades para mitigar o risco, ainda que conhecido. Na lei 11.101/05, contudo, a recuperação judicial pode prever o pagamento prioritário de credores menos favorecidos em detrimento de credores mais vulneráveis. Não obstante, pode assegurar o comprometimento do próprio conjunto de ativos em detrimento da garantia de satisfação dos próprios credores não sujeitos à recuperação judicial e que sequer teriam deliberado sobre o plano de recuperação, como os credores tributários ou com créditos advindos após a recuperação judicial em virtude de uma liquidação dos principais bens do devedor ainda durante a recuperação judicial. Por fim, o terceiro objetivo consiste na apropriada distribuição de valor entre os interessados. Assim como os custos do insucesso deveriam ser alocados aos responsáveis pela crise, o sistema de insolvência procuraria, diante da incapacidade de pagamento geral do devedor, assegurar uma distribuição de valor aos diversos interessados de forma diversa do que resultaria das execuções individuais. Ainda que se sustente que essa distribuição de valor não deveria ocorrer apenas para maximizar a satisfação dos interesses dos credores em igualdade, mas também para a satisfação dos interesses de todos aqueles envolvidos com a atividade empresarial, o objetivo somente poderia ser atendido se a alocação de poder para decidir o destino da atividade permitisse a consideração desses interesses. Decerto, como mais diretamente afetados pela crise, a atribuição de poderes aos credores para decidir sobre a viabilidade econômica do empresário em recuperação judicial seria harmônica à proteção dos interesses dos diversos interessados na preservação da empresa, como os credores, trabalhadores, consumidores e a comunidade beneficiada indiretamente pelo seu desenvolvimento. Como os credores procurariam maximizar a satisfação dos seus créditos e sofreriam os maiores efeitos de uma decisão equivocada, presumiu-se que votariam conforme o melhor entendimento sobre a viabilidade econômica da empresa conduzida pelo devedor em recuperação ou, caso inviável, optariam pela falência. Na lei 11.101/05, todavia, como nem todos os credores se sujeitam a recuperação judicial e não há exigência para que haja a satisfação prioritária de créditos mais favorecidos, mesmo que referentes a créditos não sujeitos à recuperação judicial, há incentivos para que os credores sujeitos aprovem recuperações judiciais de empresários sabidamente ineficientes e com atividades inviáveis justamente para que possam auferir a satisfação de seus créditos em detrimento dos demais credores. Em suma, somente a partir da identificação dos objetivos do sistema de insolvência podemos verificar se a Lei de Recuperação de Empresas e Falência nacional tem criado os incentivos adequados para que eles sejam alcançados. Pelo que se verificou, contudo, as reformas são urgentes.
Texto de autoria de Andre Vasconcelos Roque Olá, amigo leitor! As empresas, nos dias atuais, cada vez mais têm se organizado em estruturas complexas, formadas por várias sociedades e denominadas grupos empresariais. É comum, apenas para ficar em um exemplo mais comum e básico, que exista em um grupo uma sociedade holding ou sociedade-mãe - que administra participações em outras sociedades - e sociedades operacionais, que exercem determinada atividade econômica e estão submetidas ao controle da holding. Situações de crise econômico-financeira podem atingir uma sociedade isolada, mas também podem comprometer todo o grupo empresarial. Nesse último caso, é possível que a recuperação judicial deva ter por perspectiva a reestruturação de todas as empresas que compõem o grupo. É precisamente aqui que se encontram os fenômenos da consolidação processual e da consolidação substancial. Embora cada vez mais relevantes e frequentes, não foram objeto de disciplina na lei 11.101/2005 (LRF), que se limitou a regular a recuperação judicial e extrajudicial e a falência do "empresário" e da "sociedade empresária" (art. 1º), no singular. Desse modo, na ausência de previsão legal - pelo menos até que entre em vigor eventual reforma à LRF -,1 coube à doutrina e à jurisprudência delimitar os contornos da consolidação processual e substancial. Vamos a eles. 1. Consolidação processual: o litisconsórcio ativo na recuperação judicial A consolidação processual nada mais é do que a possibilidade de que sociedades ingressem, conjuntamente, com um só pedido de recuperação judicial. Em síntese, portanto, é uma hipótese de litisconsórcio ativo, em que mais de uma sociedade pede que seja processada a sua recuperação judicial. Na ausência de disciplina sobre o assunto na lei especial, devem ser aplicadas, de forma subsidiária, as regras do Código de Processo Civil (art. 189, LRF). Basta, para que seja admitido o litisconsórcio, que exista a afinidade de questões por ponto comum de fato ou de direito (art. 113, III, CPC). Não é preciso haver comunhão de direitos ou obrigações (art. 113, I), o que exigiria que os patrimônios e credores de todas as sociedades recuperandas fossem os mesmos. Nem mesmo é necessária a demonstração de que existe conexão (art. 113, II). Suficiente, apenas, haver alguma afinidade entre as sociedades em recuperação judicial. Essa afinidade é preenchida pela mera inserção das sociedades em um mesmo grupo econômico. O grupo pode ser de direito (formalmente constituído entre sociedade controladora e sociedades por ela controladas, por meio de convenção arquivada perante a Junta Comercial - arts. 265 e 271 da lei 6.404/1976) ou de fato (que se forma entre sociedades relacionadas em decorrência da participação que uma possui no capital social das outras, sem que tenha sido ajustada, todavia, qualquer convenção sobre sua organização formal e administrativa)2. Como a afinidade exigida pelo art. 113, III do CPC se dá por ponto comum "de fato ou de direito", a consolidação processual é admitida tanto no caso de grupo de direito como no de fato3. As razões para que seja admitida a consolidação processual são essencialmente as mesmas do litisconsórcio: promover economia processual (evitando a repetição de atos processuais, o que ocorreria se os pedidos de recuperação das sociedades fossem processados em separado), evitar eventuais decisões conflitantes e reduzir os custos decorrentes do processo de recuperação judicial, providência importante para sociedades que se encontram em situação de crise econômico-financeira. A principal discussão que se poderia suscitar quanto à consolidação processual se verifica nos casos em que as sociedades possuem seu "principal estabelecimento" em comarcas distintas. É que a regra de competência territorial para a recuperação judicial (art. 3º, LRF) tem sido interpretada como absoluta4 e o litisconsórcio - como hipótese de cumulação subjetiva de demandas - não pode implicar derrogação a regras de competência absoluta (art. 327, § 1º, II do CPC)5. O assunto ainda não recebeu a devida atenção da jurisprudência. Os juízes muitas vezes têm interpretado o "principal estabelecimento" como o centro de decisões da sociedade, ou seja, onde ocorrem suas deliberações mais relevantes6 (e não sua sede formal ou onde se concentra o maior volume de atividades econômicas, como verificado em alguns precedentes)7. Esse entendimento nos parece correto. Contudo, em um grupo econômico, frequentemente os tribunais fogem da discussão tomando por perspectiva o local de que partem as decisões mais relevantes para o grupo como um todo, buscando estabelecer o mesmo "principal estabelecimento" para todas as sociedades relacionadas. Sem embargo dessa questão, é importante que se faça uma advertência: a consolidação processual não afasta a autonomia patrimonial das sociedades recuperandas8, que devem continuar a apresentar listas de credores individualizadas e, mais importante, ter o seu plano deliberado pela Assembleia Geral de Credores em votações separadas por seus respectivos credores. Resumindo em uma frase: a consolidação processual não acarreta de forma automática a consolidação substancial9. 2. A polêmica consolidação substancial: competência e requisitos A consolidação substancial significa ir um passo além da consolidação processual: nesta hipótese, as sociedades recuperandas não apenas têm o pedido processado conjuntamente, como sua autonomia patrimonial é excepcionalmente afastada, de maneira a unificar as listas de credores das sociedades e, consequentemente, fazer com que o seu plano de recuperação judicial seja deliberado em assembleia única, por todos os credores de todo o grupo econômico consolidado. Com a consolidação substancial, passa-se a ter situação de litisconsórcio unitário (art. 116, CPC), em que todas as sociedades do grupo terão inevitavelmente o mesmo destino: ou terão seu plano de recuperação judicial aprovado, ou este será rejeitado, com a consequente decretação de falência de todo o grupo. Trata-se de instituto que, assim como a consolidação processual, não se encontra regulado na LRF. Contudo, diversamente do litisconsórcio ativo na recuperação judicial, tendo em vista as drásticas consequências que acarreta, alterando de forma significativa o quórum na Assembleia Geral de Credores e o poder de voto de cada credor no conclave, a consolidação substancial traz consigo diversas polêmicas, que vêm sendo enfrentadas pela jurisprudência. A primeira polêmica se refere à competência para determinar a consolidação substancial: seria ela do juiz ou da Assembleia Geral de Credores? Uma interpretação sistemática conduz à conclusão de que se trata de matéria a ser deliberada pelos próprios credores em assembleia, ressalvados os casos extremos de confusão patrimonial e desvio de finalidade, que poderiam ser apreciados pelo juiz a título de desconsideração da personalidade jurídica (art. 50 do Código Civil) - situação em que os responsáveis pelas fraudes também devem responder pessoalmente pelos seus atos, sem prejuízo da apuração de eventual responsabilidade criminal10. Isso porque, nos termos do art. 35, I, alínea "f" da LRF, compete à Assembleia Geral deliberar sobre "qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores". Por óbvio, a possibilidade de unificação das listas de credores entre todas as sociedades do grupo e o afastamento de sua autonomia patrimonial (art. 266 da lei 6.404/1976) afetam de forma expressiva o interesse dos credores envolvidos na recuperação judicial, que passarão a ter como seu devedor todo o grupo econômico e votarão sobre o plano, de forma diluída em meio a todos os demais credores do grupo, em uma só assembleia unificada. Deve a consolidação substancial, portanto, em regra, ser deliberada em Assembleia Geral de Credores. Como, no momento em que se realizar tal assembleia, ainda não terá se verificado tal consolidação, a votação para este fim deve se dar separadamente entre os credores de cada sociedade envolvida11. A segunda polêmica sobre a consolidação substancial, caso se entenda que tal medida compete ao juiz, diz respeito aos requisitos para que ela seja determinada. Evidentemente, não basta a mera existência de um grupo econômico de direito ou de fato porque, como já dito e reconhecido pela jurisprudência, a consolidação processual na recuperação judicial (litisconsórcio ativo) não leva automaticamente à consolidação substancial. Por isso mesmo, não servem justificativas genéricas para que ocorra tal unificação de ativos e passivos, como a existência de sócios comuns ou escopo comum das sociedades envolvidas. Mais do que a simples existência de um grupo econômico, a consolidação substancial exige a efetiva confusão patrimonial entre as sociedades ou, pelo menos, expressiva integração, com adoção, entre outras evidências, de contas centralizadoras, regime de caixa único e coincidência de instalações12. Também se admite a consolidação substancial se a atividade econômica das sociedades é unificada, com objeto social coincidente. Ainda, a mera existência de garantias cruzadas entre as sociedades do grupo (por exemplo, prestação de fianças ou avais por algumas sociedades em obrigações contraídas por outras), por si só, é comum a muitos grupos e não conduz à consolidação substancial13, mas pode ser evidência de confusão patrimonial se forem numerosas e assumirem expressiva relevância em relação ao passivo de todo o grupo, a ponto de conduzir à conclusão de que o destino da recuperação judicial de todas as sociedades será inevitavelmente o mesmo. * * * Consolidação processual e substancial são fenômenos que, embora não regulados em lei, são cada vez mais frequentes nas recuperações judiciais. Na prática, a consolidação processual não envolve grande polêmica, sendo suficiente para tal a existência de um grupo econômico de fato ou de direito. As controvérsias ficam reservadas para a consolidação substancial, tanto no que tange a quem compete determinar tal providência - se ao juiz ou à Assembleia Geral de Credores - quanto aos requisitos para que se verifique a unificação de ativos e passivos do grupo, afastando a autonomia patrimonial das sociedades que o compõem. Enfim, é preciso que a consolidação substancial seja determinada com cautela e seja devidamente justificada, para não se transformar em uma perigosa arma de manipulação do quórum na Assembleia Geral de Credores, em que alguns credores podem ter o seu poder de voto diluído em meio a todo o grupo empresarial. Por hoje, ficamos por aqui. Um abraço e até a próxima! __________ 1 Sobre o ponto, discutindo as inovações do PL 10.220/2018 (em trâmite na Câmara dos Deputados) em matéria de consolidação processual e substancial, Andre Vasconcelos Roque, Projeto de lei e recuperação judicial: O que vem por aí?, Migalhas, publicado em 15/5/2018. 2 "O grupo de fato é aquele integrado por sociedades relacionadas tão somente por meio de participação acionária, sem que haja entre elas uma organização formal ou obrigacional. As relações jurídicas mantidas entre as sociedades que integram o grupo devem ser fundamentadas nos princípios e nas regras que regem as relações entre as companhias isoladas" (Nelson Eizirik, A lei das S/A comentada. São Paulo: Quartier Latin, 2011. v. 3, p. 515-516) 3 "Assim, a formação do litisconsórcio ativo, na hipótese, foi corretamente deferida, uma vez que restou demonstrada a existência do grupo econômico de fato, considerando-se, ainda, que o ajuizamento separado das ações de recuperação de cada uma das empresas interligadas, comprometeria a própria eficiência do processo recuperacional, afetando o possível soerguimento do grupo econômico, tendo em vista que haveria a possibilidade de serem proferidas decisões conflitantes" (TJ/SP, AI 2126008-61.2018.8.26.0000, 2ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Maurício Pessoa, julg. 27.8.2018). 4 "A circunstância de as recuperandas não terem impugnado a decisão declinatória proferida pelo relator do agravo de instrumento (nº 348379-48.2015.8.09.0000) no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás não interfere no conhecimento do incidente, pois a norma constante do artigo 3º da lei 11.101/05 encerra regra de competência absoluta, afastando eventual alegação da existência de preclusão quanto à suscitação do conflito" (STJ, CC 146.579, Segunda Seção; Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe 11.11.2016). V. tb.: TJSP, AI 2139422-63.2017.8.26.0000, 1ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Lazzarini, julg. 9.8.2017 e TJPR, ConCompCv 1605387-5, 18ª CC., Rel. Des. Marcelo Gobbo Dalla Dea, julg. 3.5.2017. 5 Entre outros: "5. Desta forma, tendo em vista a incompetência da Justiça Federal para processar e julgar a ação proposta em face do Município do Rio de Janeiro e, tendo em vista, ainda, que a cumulação de ações, de acordo com o art. 327, §1º, II, do Código de Processo Civil estabelece, dentre outros requisitos, que o réu seja o mesmo e que o juízo seja competente para apreciar todas as ações cumuladas, escorreito o juízo a quo ao excluir o Município do Rio de Janeiro do feito. 6. Ainda que se vislumbre que os objetos possam ser conexos, tal fato não deslocaria a lide de competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal, vez que a competência absoluta não se altera pela conexão" (TRF 2ª R., AI 0010163-85.2016.4.02.0000, 5ª Turma, Rel. Des. Fed. Aluisio Gonçalves de Castro Mendes, julg. 21.2.2017). 6 Nesse sentido: "Recuperação judicial. Competência para o processamento. Principal estabelecimento. Local de onde emanam as principais decisões estratégicas, financeiras e operacionais da sociedade. Competência do foro da Comarca de Mogi das Cruzes. Agravo provido" (TJSP, AI 2249580-54.2018.8.26.0000, 1ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Fortes Barbosa, julg. 30.1.2019). 7 Exemplificativamente: "Para fins da competência visando o processamento da ação de recuperação judicial, entende-se por principal estabelecimento o local no qual se desenvolve a maior parte das atividades relacionadas ao objeto social da empresa recuperanda. E, analisando a documentação colacionada aos autos infere-se que o local onde se concentra o maior volume de negócios é na Comarca de Campo Grande/MS" (TJMS, AI 1400242-03.2019.8.12.0000, 2ª CC., Rel. Des. Eduardo Machado Rocha, DJMS 7.2.2019) 8 A esse respeito, estabelece o art. 266 da lei 6.404/1976, que trata das relações entre as sociedades em um grupo, que "[a]s relações entre as sociedades, a estrutura administrativa do grupo e a coordenação ou subordinação dos administradores das sociedades filiadas serão estabelecidas na convenção do grupo, mas cada sociedade conservará personalidade e patrimônios distintos" (grifou-se). 9 "Nesse sentido, a superação da mera consolidação processual e a adoção da consolidação substancial não constituem o resultado da aplicação de uma regra geral, mas, isso sim, uma excepcionalidade, o que impõe seja proferida uma decisão especificamente motivada, não podendo ser admitido um simples deferimento implícito e decorrente da admissão de um litisconsórcio ativo, pois isso pode, simplesmente, implicar numa consolidação processual" (TJSP, AI 2032440-88.2018.8.26.0000, 1ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Fortes Barbosa, julg. 20.6.2018). 10 A esse respeito, estabelece corretamente o PL 10.220/2018, em trâmite na Câmara dos Deputados e que se propõe a alterar a LRF: "Art. 69-M. O juiz determinará, de ofício, a consolidação substancial de ativos e passivos de agentes econômicos integrantes do mesmo grupo econômico que estejam ou não em recuperação judicial, quando constatar: I - confusão entre ativos ou passivos dos devedores, modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou recursos; ou II - envolvimento dos devedores em fraude que imponha consolidação substancial. § 1º O enquadramento em qualquer hipótese prevista no caput implicará, para todos os fins, a desconsideração da personalidade jurídica dos agentes econômicos envolvidos e a apuração de responsabilidade criminal". 11 Nesse sentido: "Recurso tirado contra decisão que acolheu pedido da credora para determinar que os credores de cada uma das devedoras, em votações separadas, deliberem sobre a consolidação substancial, com a aprovação ou não de plano unitário e comunhão de ativos e passivos. Decisão acertada. Admissão do litisconsórcio ativo que não encaminha, obrigatoriamente, à consolidação substancial. Necessidade de anuência da maioria dos credores de cada uma das devedoras, sob pena de subversão do instituto" (TJSP, AI 2072604-95.2018.8.26.0000, 2ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Araldo Telles, julg. 30.7.2018). V. tb.: TJSP, AI 2165440-24.2017.8.26.0000, 2ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Marcondes, julg. 12.11.2018; TJSP, AI 2178269-37.2017.8.26.0000, 2ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Marcondes, julg. 12.11.2018; TJRJ, AI 0052769-87.2017.8.19.0000, 8ª CC., Rel. Des. Cezar Augusto Rodrigues Costa, julg. 22.9.2017; TJRJ, AI 0057021-07.2015.8.19.0000, 14ª CC., Rel. Des. José Carlos Paes, julg. 25.11.2015; TJPR, AI 1.098.575-2, 17ª CC., Rel. Des. Lauri Caetano da Silva, julg. 26.3.2014; TJRS, AI 0182096-46.2018.8.21.7000, 5ª CC., Rel. Des. Isabel Dias Almeida, julg. 26.9.2018. 12 "O trâmite da recuperação com a consolidação de ativos e passivos de vários devedores componentes de um mesmo grupo econômico, mesmo ausente específica regra positivada e tal qual admitido por numerosos julgados, pode se tornar, até mesmo, obrigatório diante de uma confusão patrimonial explícita (com aplicação do artigo 114 do CPC de 2015) e gera consequências muito graves e que condicionam o trâmite de toda a recuperação judicial, sendo seu escopo a economia de recursos e a cooperação de todas empresas envolvidas para um maior eficiência em sua atuação diante de uma situação de crise econômica e financeira (...) Uma unificação procedimental ampla precisa derivar, no entanto, de maneira explícita, da afirmação da unidade gerencial, da integração patrimonial ou da simbiose do objeto social dos devedores, que buscam superar uma conjuntura desfavorável em conjunto, reunindo suas forças e conformando uma interdependência, não se admitindo a utilização da consolidação substancial como forma artificial de simples diluição de créditos. Nesse sentido, a superação da mera consolidação processual e a adoção da consolidação substancial não constituem o resultado da aplicação de uma regra geral, mas, isso sim, uma excepcionalidade" (TJSP, AI 2032440-88.2018.8.26.0000, 1ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Fortes Barbosa, julg. 20.6.2018). V. tb.: TJSP, AI 2169130-27.2018.8.26.0000, 1ª C. Res. D. Emp., Rel. Des. Alexandre Lazzarini, julg. 4.12.2018. 13 TJSP, AI 2218060-47.2016.8.26.0000, 2ª C. R. D. Emp., Rel. Des. Fabio Tabosa, julg. 12.6.2017.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho O art. 49, parágrafo 3º, da lei 11.101/2005 dispõe o seguinte: "Art. 49. Estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos. (...) §3o Tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis , de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva, não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4o do art. 6o desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. Parte da doutrina confere a tal dispositivo legal interpretação restritiva, sustentando que o texto refere-se apenas a coisas móveis ou imóveis. Essa tese faz sentido e decorre da própria proteção outorgada pela parte final do texto legal. Créditos são bens imateriais; não são passíveis de qualificação como bens de capital suscetíveis de alienação fiduciária. Somente bens desta natureza, que são materiais, e não os direitos de créditos, imateriais, é que não podem ser retirados da posse do devedor, quando essenciais à sua atividade. Nesse sentido a lição de Manoel Justino Bezerra Filho: "o termo "proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis do início do §3o do art. 49 completa-se com a parte final do parágrafo, que não permite a venda ou retirada de bens de capital. Esta proibição final não pode ser aplicada à cessão; na cessão de recebíveis não há possibilidade de venda ou retirada de bens, há apenas apossamento puro e simples do dinheiro recebido" (Lei de Recuperação de Empresas e falência: comentada artigo por artigo 12ª. ed São Paulo: RT, 2017, p. 175). É verdade que o Superior Tribunal de Justiça adotou interpretação extensiva do parágrafo 3º, do art. 49, no sentido de que a alienação fiduciária de coisa móvel (máquinas e equipamentos) e a cessão fiduciária de créditos (recebíveis) se equivalem, justamente por possuírem a mesma natureza jurídica. Porém, é preciso ir além e realizar-se uma interpretação extensiva de todo o dispositivo legal. Em outras palavras, se o credor fiduciário de recebíveis assim como o proprietário fiduciário de bens materiais não estão sujeito à recuperação, os recebíveis essenciais merecem proteção semelhante aos bens de capital essenciais. Ambos não podem ser retirados da disponibilidade do devedor, a fim de que se preserve a finalidade do processo de recuperação, sem prejuízo da proteção ao credor garantido, como, aliás, constou do parecer 534/2004, do Senador Ramez Tebet, relativo ao projeto que deu origem à lei 11.101/2001: "(...) no caso da alienação fiduciária e de outras formas de negócio jurídico em que a propriedade não é do devedor, mas do credor, é preciso sopesar a proteção ao direito de propriedade e a exigência social de proporcionar meios efetivos de recuperação às empresas em dificuldades. Por isso, propomos uma solução de equilíbrio: não se suspendem as ações relativas aos direitos dos credores proprietários, mas elimina-se a possibilidade de venda ou retirada dos bens durante os 180 dias de suspensão, para que haja tempo hábil para a formulação e a aprovação do plano de recuperação judicial." A solução equilibrada, no caso da cessão fiduciária de créditos, não foi prevista no parágrafo 3º, mas esta lacuna pode ser suprida pela norma do parágrafo 5º., do art. 49, segundo o qual, "tratando-se de crédito garantido por penhor sobre títulos de crédito, direitos creditórios, aplicações financeiras, ou valores mobiliários, poderão ser substituídas ou renovadas as garantias liquidadas ou vencidas durante a recuperação judicial e, enquanto não renovadas ou substituídas, o valor eventualmente recebido em pagamento das garantias permanecerá em conta vinculada durante o período de suspensão de que trata o § 4o do art. 6o desta lei". A norma do § 5º do art. 49 se refere a direitos creditórios e títulos de crédito, ou seja, neste dispositivo legal está clara a intenção de tratar de garantias reais sobre créditos (ou recebíveis). Aqui cuida-se de direito real de garantia que recai sobre outro direito, incorpóreo, diferentemente da norma prevista no parágrafo 3º, que se refere a coisas corpóreas, suscetíveis de posse. Tratando-se de garantia que tem por objeto uma prestação pecuniária de terceiro, o devedor não pode simplesmente apropriar-se dos valores pagos, referentes aos créditos que deu em garantia. Isso seria anular pura e simplesmente o direito do credor. A solução, portanto, é exigir do devedor que substituía os créditos dados em garantia e já satisfeitos por outros créditos. Nesse sentido, aliás, é a compreensão do professor da USP, Eduardo Munhoz, em artigo indispensável sobre o tema: "A semelhança das figuras (cessão fiduciária e penhor) pode justificar tratamento também similar pela LRF. Ou seja, o crédito cedido fiduciariamente, desde que essencial à atividade empresarial (parte final do § 3º do art. 49), tanto quanto o objeto do penhor, deve ficar depositado, em conta vinculada à recuperação judicial, durante o stay period, assegurando-se, por outro lado, a renovação das também à hipótese de cessão fiduciária, em virtude da natureza fungível do crédito. De fato, a propriedade do credor é sobre créditos, bens fungíveis, de modo que não ofenderia o seu direito de proprietário a eventual renovação da garantia pelo devedor por outros créditos de mesmo valor e natureza, portanto, hábeis a substituir os primeiros." ("Cessão fiduciária de direitos de crédito e recuperação judicial de empresa". In: Revista do Advogado, n. 105, ano XXIX,. São Paulo: AASP, setembro de 2009, pp. 44/45). A solução doutrinária acima mencionada também tem amparo na jurisprudência do TJSP: "RECUPERAÇÃO JUDICIAL - CREDOR TITULAR DE CRÉDITO GARANTIDO POR CESSÃO FIDUCIÁRIA DE DIREITOS CREDITÓRIOS CONTRA TERCEIRO - PAGAMENTOS RELATIVOS À GARANTIA QUE DEVEM SER FEITOS MEDIANTE DEPÓSITO EM CONTA VINCULADA À RECUPERAÇÃO - ART 49, § 5° DA LEI 11 101/2005 - RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO." (AGRAVO DE INSTRUMENTO n° 628.519-4/2 - CÂMARA ESPECIAL DE FALÊNCIAS E RECUPERAÇÕES JUDICIAIS). Do voto do relator. Des. Elliot Akkel, consta que "as regras do § 3o e do § 5o do art. 49 da Lei 11.101/2005 não se excluem. Ao contrário, podem ser complementares, como na espécie, uma vez que, configurada eventualmente a alienação fiduciária de direitos creditórios, induvidosamente e da mesma forma tratar-se-ia de "crédito garantido" por "direitos creditórios", na dicção do § 5o." Portanto, durante o "stay period", a proteção para credores garantidos por máquinas e equipamentos essenciais é a manutenção do bem na posse do devedor, que tem interesse na conservação do bem. Já a proteção para os credores garantidos por direitos de crédito (recebíveis) é o depósito do valor dos créditos objeto da garantia até que seja realizada a substituição ou renovação das garantias liquidadas ou vencidas. Com isso o devedor mantém a sua operação e continua a faturar, gerando novos créditos que serão oferecidos em garantia para o credor. Trata-se de solução que assegura efetividade à lei 11.101/2005, tendo amparo na doutrina e na jurisprudência, além de ser encontrada em outras leis de insolvência, como observa Leonardo Adriano Ribeiro Dias: "(...) À semelhança do que ocorre nos Estados Unidos, a utilização das garantias em dinheiro, presente ou futuro, deveria ser permitida caso o credor consinta ou o juiz autorize, quando assegurada a a proteção adequada ao titular do crédito garantido. Essa proteção poderia se dar, e.g., pela liberação parcial dos valores gravados até o limite da dívida garantida, com compromisso de pagamento dos juros incidentes; pela substituição da garantia por outros recebíveis com vencimento posterior; pela assunção do compromisso de reposição das garantias liberadas, sob pena de vencimento total da dívida; e assim por diante." (Financiamento na Recuperação Judicial e na Falência. São Paulo. Quartier Latin: 2014; pp.305/306). Por fim, importante destacar que o devedor tem direito à liberação, tão-somente, dos recursos necessários à manutenção da atividade empresarial, e não à totalidade dos recebíveis cedidos fiduciariamente. O controle da essencialidade cabe ao juízo da recuperação judicial, com o auxílio do administrador judicial. É conveniente que seja instaurado um incidente processual, para a demonstração dos valores essenciais pela recuperanda, evitando-se, com isso, tumulto nos autos da recuperação. Por meio da análise das demonstrações financeiras, extratos bancários e outros documentos, o administrador judicial extrairá as informações relativas ao valor das despesas da recuperanda que são essenciais ao seu funcionamento, como impostos, locação, aquisição de matéria-prima, folha de pagamento, serviços de terceiros. O Juiz decidirá qual o montante a ser liberado à devedora, presente o requisito da essencialidade, enquanto o excedente poderá ser disponibilizado aos credores garantidos. Com essa solução, o processo de recuperação judicial poderá cumprir seu propósito de forma mais eficiente. Assegura-se a manutenção das atividades da recuperanda e, ao mesmo tempo, é oferecida proteção adequada aos interesses dos credores garantidos.
Texto de autoria de Luiz Dellore e Andressa Borba Pires INTRODUÇÃO Como destacado em texto anterior1, a Assembleia Geral de Credores (AGC) é ato de grande importância para o procedimento da recuperação judicial, que não encontra similar no processo civil brasileiro. Trata-se da ocasião em que os credores, divididos em 4 classes, se reúnem para deliberar sobre matérias de interesse comum e, em especial, para a aprovação ou rejeição do plano de recuperação judicial apresentado pela empresa devedora. 1) DA DIVISÃO POR CLASSES E DO DIREITO DE VOTO EM AGC. A divisão rígida dos credores por classes é estabelecida na lei (11.101/2.005, a LRF, artigo 41) para fins de votação do plano: I- credores trabalhistas; II- credores titulares de garantia real - penhor ou hipoteca, no limite do valor da garantia; III- credores quirografários - classificação residual; IV- Microempresas - ME ou Empresas de Pequeno Porte - EPP Além desses, existem ainda os credores extraconcursais, ou seja, aqueles cujos créditos não se submetem à recuperação judicial (LRF, art. 49, §§ 3º e 4º2) e, assim, não são atingidos pelo plano de recuperação judicial (PRJ). Por tal razão, não votam na AGC. Na prática, verifica-se que a divisão por classes é também utilizada pelas recuperandas para estabelecer, no PRJ, as condições de pagamento dos créditos concursais (LRF, artigo 50). Possuem direito a voto os credores concursais, ou seja, os titulares de créditos sujeitos ao processo de recuperação judicial, listados numa das quatro classes acima indicadas e que constam do quadro geral de credores (QGC). Se ainda não houver QGC, será considerada a relação de credores apresentada pelo administrador judicial ou então, a relação apresentada pelo devedor, caso ainda não apresentada a segunda lista (LRF, artigo 7º, §2º)3. É considerada, para fins de quórum e votação, a lista de credores vigente na data da assembleia, com as alterações e inclusões determinadas por decisões proferidas em habilitações ou impugnações de crédito. Ou seja, possuem direito a voto os credores titulares de créditos habilitados ou alterados por incidentes processuais julgados, conforme estabelece o artigo 39 da LRF. Todavia, não terão direito a voto em assembleia os titulares de créditos retardatários, salvo no caso de créditos trabalhistas. Conforme prevê o artigo 10, §1º da LRF, são considerados créditos retardatários aqueles objetos de habilitações apresentadas após o prazo de 15 dias da publicação do primeiro edital, previsto no artigo 52, §1º da LRF (vide LRF, artigo 7º, §1º). Também não terão direito a voto, como destacado acima, os credores titulares de créditos extraconcursais, conforme expressa previsão do artigo 39, §1º da LRF. O voto em assembleia não precisa ser justificado, mas deve ser racional, caso contrário poderá ser reconhecido como abusivo, conforme entendimento jurisprudencial atual. Para ilustrar, podemos citar o precedente da recuperação judicial da empresa Schahin4, em que o TJSP manteve a homologação do PRJ, sendo desconsiderados os votos de credores integrantes da Classe II, em razão da intransigência (recusa em negociar) e da irracionalidade econômica do voto. Segundo esse entendimento, o credor tem, por exemplo, o direito de rejeitar o plano se a falência lhe for mais favorável economicamente ou se o plano não possuir viabilidade econômica, ou seja, havendo motivação econômica para tanto. As decisões são tomadas, em assembleia, por maioria de voto dos credores votantes (ou seja, os credores concursais). Com exceção da aprovação do plano, o quórum de aprovação das matérias pela AGC é de mais da metade do valor dos créditos presentes, independentemente de classe (LRF, artigo 42). Como exemplo, necessário mais da metade dos créditos para a suspensão dos trabalhos da assembleia5. Nas deliberações sobre o PRJ, considera-se aprovado o plano se houver maioria dos votos em cada uma das classes. O quórum legal de aprovação é o seguinte, estabelecido pelo artigo 45, LRF: - maioria simples de presentes (por cabeça) nas classes I e IV e, - maioria de presentes (por cabeça) e de créditos presentes (por valor) nas classes II e III. A lei estabelece, ainda, quórum alternativo de aprovação (o chamado cram down), situação em que o juiz pode conceder a recuperação judicial, se presentes determinados requisitos legais estabelecidos no artigo 58, §1º da LRF. Ou seja, ainda que não haja a aprovação tal qual inicialmente prevista, se algum quórum específico for atingido, o PRJ é considerado aprovado. É uma segunda chance dada pela própria lei para a aprovação do plano. É relativamente comum, no cotidiano forense, a aprovação por cram down6. Homologado o plano, é concedida a recuperação judicial, devendo ser implementadas as condições de pagamento e os meios de recuperação nele previstos, conforme o artigo 61 da LRF. Se não for homologado o plano ou em caso de descumprimento do plano durante o período de fiscalização (2 anos da concessão), a recuperação judicial é convolada em falência (LRF, artigo 61, §1º). 2) DA POSSIBILIDADE DE SE PLEITEAR O CÔMPUTO DO VOTO EM DOIS CENÁRIOS OU O DIREITO DE VOTO QUANDO HOUVER PENDÊNCIA DE JULGAMENTO DE IMPUGNAÇÃO OU HABILITAÇÃO DE CRÉDITO Como já salientado em nossa coluna anterior, a pendência de julgamento de impugnação de crédito não é motivo para cancelamento ou adiamento da AGC, ou tampouco para a invalidação de seu resultado, conforme expressa disposição legal (LRF, artigo 39, §2º). Mas como fica a votação diante dessa situação? Afinal, com o julgamento da impugnação, é possível que um credor tenha sua situação consideravelmente alterada, o que inclusive pode levar a resultados totalmente distintos em relação à deliberação do PRJ. Para ilustrar, consideremos duas situações hipotéticas de discussão, em incidente de impugnação: (i) credor pleiteia reconhecimento de extraconcursalidade de crédito listado pela recuperanda e administrador judicial como quirografário (classe III); (ii) credor pleiteia classificação como crédito com garantia real (classe II), que no entanto foi listado pela recuperanda e administrador judicial como quirografário (classe III). Tais situações podem provocar mudança da composição de forças entre as classes e conferir, inclusive, maior poder ao credor na mesa de negociação. Nesse caso, enquanto pendente a decisão da impugnação de crédito, o credor poderá pleitear pedido liminar incidental, com fulcro no artigo 300 do CPC (tutela de urgência), para que sejam colhidos seus votos nos dois cenários possíveis, a saber: 1) em conformidade com a lista de credores apresentada pelo administrador judicial (que é o que ocorreria se nada fosse pleiteado); e 2) de acordo com o pleiteado na impugnação de crédito - valor e classe indicados pelo credor no incidente pendente de julgamento (esse é efetivamente o pedido da liminar). É certo que este pedido deve ser formulado antes da realização da AGC, pois após a sua realização não há como se cogitar de qual seria, hipoteticamente, o resultado. O pedido liminar pode ser formulado nos autos principais da RJ ou no incidente da respectiva impugnação. Deferida a liminar, o administrador judicial (AJ) colherá os votos das duas formas distintas. E algumas vezes em quaisquer cenários o resultado da deliberação ficará inalterado. Porém, em outras oportunidades, a depender da mudança de composição de forças entre os credores votantes, os resultados serão distintos em cada cenário. Deferida a liminar pelo juiz, caso não haja tempo hábil para a intimação formal do AJ, o próprio credor interessado poderá levar a decisão para a AGC e nela intimar o administrador7. O que se verifica, na prática, é o próprio administrador judicial, na instalação da AGC, comunicar aos credores presentes acerca da decisão proferida. Vale exemplificar. Um credor é listado pela recuperanda e pelo AJ como titular de crédito quirografário (classe III) no valor de R$10 milhões, mas pleiteia o reconhecimento da existência de garantia real e, assim, a retificação do quadro geral, de forma a ser listado na classe II, pelo valor de R$20 milhões. A impugnação pende de julgamento, mas a AGC já foi designada. Assim, vale ao credor formular esse pedido ao juiz que - presentes os requisitos da situação de urgência (a rigor sempre presente) e da robustez das alegações da impugnação (esse requisito presente ou não, a depender do caso concreto), o deferirá. Nesse caso, se deferido o pedido liminar, seu voto será apurado de duas maneiras: de acordo com a lista do AJ e de acordo com o pleiteado na impugnação de crédito. O credor titular de crédito não listado pelo administrador judicial, de igual forma, pode pleitear nos autos da recuperação judicial o direito de voto em assembleia, na pendência de julgamento de habilitação de crédito. Quando do julgamento das impugnações ou habilitações de crédito pode-se verificar mudanças substanciais do quadro de credores, decorrente da retificação de valor e classe dos créditos ou da inclusão de créditos. Mas a decisão judicial posterior, como já dito no início deste tópico, não provoca a invalidação das deliberações da AGC. Assim, a apresentação de pedido liminar incidental é medida salutar e recomendável. Reconhecido o perigo de dano ao impugnante (em razão do menor poder de voto se computado com base em valor inferior do crédito e/ou em classe diversa) ou ao habilitante (em razão do não exercício do direito de voto), bem como a probabilidade do direito de crédito (comprovada por meio da instrução documental do incidente), é deferido o pedido liminar incidental, de forma a estabelecer ao administrador judicial que realize a apuração dos votos em ambos os cenários, ou seja, pela relação do art. 7º, §2º da LRF (quadro de credores apresentado pelo administrador judicial) e pelo valor e classificação pretendidos na impugnação ou habilitação de crédito. Na prática é comum, às vésperas da AGC, que seja proferida decisão possibilitando ou não que o credor tenha seu voto apurado em lista apartada. Se não deferido o pedido liminar incidental, em regra tem o credor pouco tempo para a interposição de recurso de agravo de instrumento com pedido de concessão de antecipação de tutela recursal. Verifica-se, assim, uma verdadeira corrida ao Judiciário (ao 1º grau e ao respectivo Tribunal), para pleitear a urgente apreciação da matéria. É possível que a decisão acerca dos cenários distintos seja proferida momentos antes da instalação da assembleia e anunciada aos credores presentes, pelo administrador judicial, causando surpresa na AGC e mudança repentina do cenário acerca do qual se imaginava para a votação. Esse tipo de situação é comum na rotina das AGCs8. Caso a apuração do voto no segundo cenário provoque mudança do resultado da deliberação do plano, essa situação é levada pelo AJ à apreciação judicial. Ou seja, ambos os cenários de votação são submetidos ao juízo recuperacional. O juízo, nessa situação, decide qual dos cenários deve prevalecer. Para tanto, parece razoável o julgamento anterior da impugnação de crédito, se reunir condições para tanto. Se o incidente ainda não estiver em fase que possibilite o pronto julgamento, a situação deverá ser decidida pelo juízo, avaliando as peculiaridades do caso concreto. 3) DA DELIBERAÇÃO SOBRE A CONSOLIDAÇÃO SUBSTANCIAL Também na votação em AGC é possível que se delibere a respeito da chamada consolidações substancial. Apesar da ausência de previsão legal, hoje se admite que os credores podem deliberar, em AGC, acerca da consolidação substancial, aprovando ou rejeitando a unificação dos ativos do grupo econômico para pagamento de todos os credores, indistintamente, de forma a desconsiderar a individualidade e autonomia patrimonial de cada empresa do grupo. Trata-se, em caso de aprovação em AGC, de consolidação substancial voluntária. A doutrina também reconhece a consolidação substancial obrigatória, quando reconhecida pelo juízo, caso entenda presentes determinados requisitos, como no caso de confusão patrimonial. Na hipótese de consolidação substancial, é apresentado plano único e realizada uma única votação (quórum único, baseado em lista de credores consolidada). Em recente assembleia realizada nos autos da recuperação judicial da SPMar9, foi realizada a votação acerca da consolidação substancial de parte do grupo econômico e a separação do plano de uma empresa - e isso foi aprovado pela unanimidade dos credores. Ou seja, o conjunto dos credores decidiu que, dentro de um grupo econômico, uma empresa teria um plano separado, com credores e votação separada, ao passo que as demais empresas teriam um plano único, com votação unificada (consolidação substancial). Tal cisão foi implementada em benefício da coletividade dos credores, tendo sido possibilitada graças a negociação das recuperandas com os credores, inclusive os extraconcursais. Na hipótese de consolidação processual, que se refere ao litisconsórcio ativo, ou seja, o ajuizamento de pedido de recuperação judicial de forma conjunta por várias empresas, são apresentados diversos planos, bem como realizadas votações separadas, baseadas nas diversas listas de credores, podendo ser realizadas diversas AGC ou uma única (porém com votações separadas). Acerca dessa situação, vale mencionar o precedente da recuperação judicial do grupo PDG10. As recuperandas apresentaram, num primeiro momento, planos de recuperação judicial separados para cada SPE com patrimônio de afetação, na tentativa de compatibilizar o regime de afetação com a processo de recuperação judicial. Apresentaram, também, um plano de recuperação judicial unificado para o restante do grupo (holding e SPEs sem patrimônio de afetação), ou seja, um misto de consolidação processual e consolidação substancial. Ao final das negociações com os credores, foi apresentado um plano unificado para as sociedades do grupo econômico (em consolidação substancial), reconhecendo-se que o patrimônio de afetação não se sujeita à recuperação judicial. O plano apresentado nesses moldes foi aprovado pelos credores concursais, em AGC. CONCLUSÃO Verifica-se, assim, algumas das inúmeras situações passíveis de serem enfrentadas por credores e recuperandas às vésperas e na própria assembleia, ato de extrema relevância para o processo recuperacional. É preciso estar atento para que se saiba (i) o que será deliberado (PRJ, eventual suspensão e inclusive consolidação substancial, (ii) quais são os quóruns necessários para aprovação das deliberações (conforme as deliberações a serem tomada) e (iii) quem são os votantes. Além disso, é preciso saber que o cenário que está no edital da AGC pode vir a ser alterado por força de liminares, proferidas pelo juiz da causa ou pelo respectivo TJ. E isso tudo no âmbito de um ato que demanda muito de todos: - para as recuperandas (que despendem com locação de espaço e contratação de equipe de apoio para a realização do ato) - para os credores (que precisam se deslocar pelo país, de dimensões continentais, ou até mesmo de outros países, no caso de credores estrangeiros) - para o administrador judicial (que disponibiliza sua equipe em diversas ocasiões - ao menos em duas, se não instalada a assembleia em primeira convocação). Assim, as formalidades da AGC podem e devem ser repensadas para, por exemplo, se colher eletronicamente os votos dos credores, de forma a conferir maior praticidade e economicidade ao ato, evitando-se deslocamentos e custos desnecessários para sua realização. __________ Texto em coautoria: Andressa Borba Pires é graduada pela USP. Advogada da Caixa Econômica Federal, com atuação na área de recuperação judicial e falência. __________ 1 O que acontece na assembleia geral de credores realizada na recuperação judicial? 2 São credores extraconcursais: - proprietário fiduciário (titular de crédito garantido por garantia fiduciária), - arrendador mercantil (leasing), - proprietário ou promitente vendedor de imóvel com cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, - proprietário com reserva de domínio e - titular de crédito derivado de adiantamento a contrato de câmbio para exportação (ACCs) - créditos tributários (conforme CTN, artigo 187 e LRJ, artigo 6º, §7º; assim, mesmo com a RJ as execuções fiscais prosseguem normalmente) - créditos pós-concursais (posteriores ao pedido de recuperação judicial) 3 Para uma visão geral acerca do procedimento de uma recuperação judicial e suas diversas fases e listas, vide coluna anterior. 4 Processo 10371333120158260100, 2ª Vara Falência e RJ de São Paulo. 5 Como caso concreto, a deliberação, aprovada por maioria, acerca da suspensão da AGC da RJ do grupo Sete Brasil (processo 0142307-13.2016.8.19.0001, em trâmite na 3ª Vara Empresarial da Comarca do Rio de Janeiro. 6 Podemos citar a deliberação acerca do PRJ do Grupo Renuka do Brasil em AGC realizada em 29/08/2018, referente ao processo 10996714820158260100, em trâmite na 1ª Vara de Falência e RJ de São Paulo. No caso, o plano foi homologado e a recuperação judicial concedida nos seguintes termos: "Segundo consta da ata da AGC, houve a aprovação de mais da metade dos créditos presentes no ato, a rejeição do plano em somente uma das quatro classes votantes, qual seja, a classe II, na qual foi obtida uma aceitação ao plano superior a 1/3 dos créditos e credores votantes. Logo, perfeitamente possível a concessão da recuperação judicial pretendida, com fulcro no art. 58, § 1º, da Lei 11.101/2005, até mesmo porque não há qualquer previsão no plano de tratamento diferenciado para os credores que o rejeitaram". 7 Para evitar quaisquer dúvidas nesse sentido, vale requerer ao magistrado que essa informação conste expressamente da decisão que concede a liminar. 8 Podemos citar como exemplo, no âmbito do TJSP, de concessão de antecipação de tutela recursal para fins de votação em AGC o agravo de instrumento 20824172020168260000, posteriormente ratificado no acórdão que deu provimento ao recurso do credor: "Vistos. Trata-se de agravo de instrumento voltado contra decisão que indeferiu a participação dos agravantes em assembleia-geral de credores, pelo valor dos créditos por eles apontado em incidente processado na forma da lei e que ainda não foi solucionado. Para evitar prejuízo, em antecipação de tutela, defiro, em parte, a pretensão recursal, autorizando a participação dos agravantes no conclave, pelos valores pretendidos, mas que deverão ser computados em separado pelo administrador judicial. Comunique-se. Processe-se ouvindo-se, simultaneamente, a recuperanda e o administrador judicial. Oportunamente, ao Ministério Público. Int.". 9 Processo 10808719820178260100, que trata da RJ da empresa SPMar. 10 Processo 10164223420178260100, que tramita na 1ª VFRJ de São Paulo.
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa Um dos maiores obstáculos à recuperação judicial de empresas, no Brasil, é a chamada "trava bancária" que permite ao credor financeiro, em razão da natureza fiduciária de sua garantia, bloquear o acesso da devedora aos depósitos bancários realizados por seus clientes em razão dos negócios desenvolvidos pela própria empresa. É preciso, inicialmente, entender o problema. Pois bem, no modelo brasileiro de recuperação judicial, o legislador optou por excluir os credores titulares de garantias fiduciárias dos efeitos da recuperação judicial. Nesse sentido, conforme dispõe o art. 49, §3º da lei 11.101/05, "tratando-se de credor titular da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis, de arrendador mercantil, de proprietário ou promitente vendedor de imóvel cujos respectivos contratos contenham cláusula de irrevogabilidade ou irretratabilidade, inclusive em incorporações imobiliárias, ou de proprietário em contrato de venda com reserva de domínio, seu crédito não se submeterá aos efeitos da recuperação judicial e prevalecerão os direitos de propriedade sobre a coisa e as condições contratuais, observada a legislação respectiva (...)". As alienações fiduciárias são aquelas em que a garantia fiduciária é representada por bem imóvel ou móvel infungível. As cessões fiduciárias, por sua vez, são aquelas em que a garantia é composta por títulos de crédito ou direitos, presentes ou futuros. Tratando-se, portanto, de cessão fiduciária de recebíveis futuros, a devedora deverá abrir uma conta bancária na instituição financiadora, onde deverão ser depositados esses recebíveis, constituindo-se a garantia do financiamento. Caso a empresa descumpra sua obrigação de pagar as parcelas do financiamento, a instituição financeira bloqueia seu acesso à referida conta bancária e passa a retirar os valores lá depositados para quitação do financiamento. Essa é a conhecida trava bancária. Atento à sinalização legislativa, o mercado financeiro se adaptou ao benefício, de modo que quase a totalidade dos financiamentos empresariais oferecidos por instituições financeiras são, atualmente, garantidos por alienação ou cessão fiduciária. Assim o fazendo, a legislação brasileira excluiu dos efeitos da recuperação judicial um dos principais credores de uma empresa em crise, considerando que é função dos bancos, financiar a atividade empresarial. Uma empresa, ao necessitar de investimentos para o desenvolvimento de sua atividade, normalmente busca os bancos para obtenção de financiamentos que serão, naturalmente, garantidos fiduciariamente. Ocorre que, havendo a necessidade de utilização da ferramenta da recuperação judicial para superação de eventual crise, a empresa não terá a possibilidade de renegociar as dívidas bancárias, que certamente representarão parcela importante de seu endividamento total. Daí a grande dificuldade que as empresas enfrentam para superar suas crises com utilização da recuperação judicial: alguns dos seus principais credores não se sentam à mesa para negociar, restando inviabilizada a reestruturação global de suas dívidas. Esse cenário revela, na verdade, um problema estrutural do sistema brasileiro de recuperação judicial. O modelo brasileiro de recuperação judicial inspirou-se no modelo moderno criado nos Estados Unidos da América, no final do século passado. O modelo norte-americano propõe que a recuperação judicial deve ser realizada através da aplicação de uma solução de mercado para a crise da empresa, o que somente pode ser obtido através da negociação entre credores e devedora. Entretanto, para que exista de fato uma negociação efetiva entre credores e devedora, é preciso criar um ambiente que neutralize a ação dos chamados credores hold outs (credores resistentes à negociação e que pretendem prosseguir com a realização individual de seus créditos, sem consideração à existência dos demais credores). O professor Thomas H. Jackson1, ao escrever sobre o tema em seu livro The logic and limits of Bankruptcy Law, explica as dificuldades que enfrente uma empresa em crise, mesmo sendo viável, para conseguir criar um ambiente de negociação global capaz de conduzir à sua reestruturação efetiva. Thomas H. Jackson traz o exemplo do dilema do prisioneiro, da teoria dos jogos, para explicar o problema a ser neutralizado pelo sistema de recuperação judicial de empresas. Imagine uma empresa cujo valor de liquidação seja de 50 mil dólares, mas que esteja devendo a cada um de seus quatro credores o valor de 50 mil dólares. A empresa tem 50, mas deve 200 e, portanto, encontra-se insolvente. Nesse raciocínio, havendo a liquidação da empresa, cada credor receberia potencialmente 12.5 mil dólares. Entretanto, se mantida em funcionamento, a empresa poderia gerar um valor de going concern capaz de garantir o pagamento de 25 mil dólares para cada credor. Racionalmente, seria vantagem para os credores aceitar uma proposta de renegociação no montante de 25 mil dólares, ao invés de assistir a liquidação da atividade, que geraria apenas 12.5 mil dólares para cada credor. Entretanto, a teoria dos jogos demonstra que os credores não agem dessa forma racional e com espírito coletivo. A tendência é que o credor se comporte de forma egoísta e tente individualmente a realização do seu crédito na máxima extensão. Nesse sentido, imagine que os credores 1, 2 e 3 concordem com a proposta de negociação. Se o credor 4 não concorda com a proposta de 12.5 e dispara uma execução individual contra a devedora para tentar penhorar (e garantir prioridade na execução do ativo) os 50 mil de ativos da devedora (pagando-se integralmente), tal comportamento influenciará os demais credores, que diante disso, também dispararão suas execuções individuais contra a devedora. O resultado será o abandono da negociação coletiva e a liquidação da atividade e, ao final, todos receberão menos na liquidação do que teriam recebido na hipótese de aceitação do plano de recuperação apresentado pela devedora. Diante disso, os americanos criaram um modelo de recuperação pensado para neutralizar esse credor resistente (hold out), que é fundado em dois pilares fundamentais: a suspensão das ações individuais contra a devedora durante o período de negociação (stay period) e a regra de que a decisão da maioria dos credores vincula a todos os credores, inclusive os credores dissidentes. Segundo o modelo norte-americano, não deve haver hold outs, como pressuposto de criação de um ambiente capaz de conduzir à solução de mercado, em benefício da preservação da empresa e dos interesses dos próprios credores. Entretanto, embora o modelo brasileiro tenha se inspirado no modelo norte-americano, a lei 11.101/05, como já visto, preservou como hold out um dos principais credores de uma empresa em crise, qual seja, os bancos (titulares de garantias fiduciárias)2. Percebe-se, portanto, que a exclusão dos credores garantidos fiduciariamente dos efeitos da recuperação judicial é providência que viola a própria lógica/essência do modelo recuperacional adotado pelo Brasil. Como será possível garantir uma negociação coletiva, se o principal credor da empresa em crise poderá prosseguir com suas execuções individuais e o resultado da negociação com os demais credores não vai atingir os seus créditos? E mais. Se a garantia fiduciária consistir em ativo essencial ao desenvolvimento da atividade da devedora, sem o qual restará prejudicada a continuidade da empresa? Conforme já explicado por Thomas H. Jackson, esse credor bancário (hold out) será responsável pela liquidação da atividade e todos os credores acabarão recebendo menos na liquidação do que receberiam na hipótese de recuperação. E mais grave ainda. O desaparecimento da atividade empresarial viável, fará desaparecer os empregos, os tributos, as riquezas, os produtos e serviços que eram importantes para o desenvolvimento da sociedade e da economia. Deve-se lembrar que segundo o art. 47 da lei 11.101/05, a preservação da função social da empresa é o vetor principal de interpretação e de aplicação de seus institutos. Como resolver esse dilema? A resposta passa necessariamente pela correta interpretação do art. 49, §3º da lei 11.101/05 e, principalmente, pela adequada aplicação da exceção trazida nesse mesmo dispositivo legal, mas em sua parte final. Senão, vejamos. A interpretação e a aplicação dos dispositivos legais, no modelo brasileiro de recuperação de empresas, deve obedecer ao previsto na teoria da superação do dualismo pendular. Segundo a teoria da superação do dualismo pendular3, a melhor interpretação da lei não será aquela que prestigiar o interesse de credores ou da devedora, mas sim aquela que viabilizar de maneira mais intensa o atingimento dos objetivos maiores do sistema, revelados pela preservação da função social da empresa. Vale destacar que a aplicação dessa teoria já foi, inclusive, reconhecia pelo Superior Tribunal de Justiça, no julgamento do agravo de instrumento no Resp 1308957/SP. Segundo o ministro Luis Felipe Salomão, "com o advento da lei 11.101/05, o ordenamento jurídico pátrio supera o dualismo pendular, havendo um consenso na doutrina que a interpretação das regras da recuperação judicial deve prestigiar a preservação dos benefícios sociais e econômicos que decorrem da manutenção da atividade empresarial saudável, e não os interesses de credores ou devedores, sendo que, diante das várias interpretações possíveis, deve-se escolher aquelas que busca conferir maior ênfase à finalidade do instituto da recuperação judicial". Da mesma forma, deve-se ter em vista a aplicação da teoria da divisão equilibrada de ônus4, segundo a qual credores e devedores devem assumir ônus no processo recuperacional de modo que prevaleça o interesse social ao interesse particular de credores ou devedores. Cabe ao juiz fazer o controle da posição processual das partes a fim de garantir que o processo atinja a sua finalidade social, prevenindo-se condutas tendentes a transformar interesses parciais dos titulares de direitos envolvidos na recuperação judicial em verdadeiras barreiras intransponíveis ao atingimento do objetivo social do sistema. Assim, art. 49, §3º da lei 11.101/05 deve ser interpretado de forma compatível com a realização das finalidades do sistema recuperacional, em sintonia com a preservação da função social da empresa. Muito embora a lei exclua os créditos garantidos fiduciariamente dos efeitos da recuperação judicial, não se pode permitir que o credor bancário execute sua garantia em prejuízo da coletividade de credores, colocando em risco o atingimento de uma solução de mercado que permita o prosseguimento da atividade empresarial viável e geradora de benefícios econômicos e sociais. O direito brasileiro prestigia de maneira intensa a função social dos institutos do direito privado, sendo inegáveis as limitações ao exercício da propriedade privada, em função da sua função social. Da mesma forma, a função social dos contratos limita a autonomia privada da vontade. No mesmo sentido atua a função social da empresa ao exigir que os credores, num ambiente de recuperação judicial, exerçam seus direitos em consonância com a preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade viável. Vale destacar que, segundo o Código Civil (conhecido como Código Reale), somente se considera regular o exercício de um direito, desde que observada a sua função social. Conforme dispõe o art. 187 do Código Civil de 2002, também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes. O direito civil brasileiro adotou como princípios a eticidade e a sociabilidade, de modo a refletir uma nova perspectiva de exigências de condutas legítimas pelo cidadão, em abandono ao ideal individualista que regia o Código Civil de 1916. Nesse diapasão, é correto afirmar que a legislação de regência concede aos credores garantidos fiduciariamente o direito de não se sujeitar ao processo de recuperação judicial. Entretanto, como já dito, o exercício desse direito deve observar a função social da empresa, uma vez que tal direito está sendo analisado no contexto do processo de recuperação judicial. O segredo para compatibilizar esse dispositivo com as finalidades do sistema recuperacional está na interpretação adequada da ressalva constante na parte final do art. 49, §3º da lei 11.101/05, segundo a qual não se permite ao credor titular da garantia fiduciária, durante o prazo de suspensão de 180 dias (stay period), a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial. Alberto Caminã Moreira, em artigo publicado nessa mesma coluna5, já abordou com muita precisão as discussões que gravitam em torno da interpretação aplicada pelos Tribunais a esse dispositivo legal. O Superior Tribunal de Justiça já decidiu, por exemplo, que não é cabível a aplicação da ressalva nos casos em que a garantia fiduciária recai sobre dinheiro ou recebíveis futuros, pois o contrato de cessão fiduciária de crédito transfere ao credor a propriedade dos créditos até liquidação da dívida. Segundo decidido pela Min. Maria Isabel Gallotti, "nem haveria mesmo que se dizer que tais bens incorpóreos não poderiam ser retirados do estabelecimento do devedor porquanto esses títulos, de regra, estão na posse do credor para que ele possa receber diretamente do devedor os créditos cedidos fiduciariamente" (Recurso Especial 1.263.500-ES, j. em 5/2/2013). Recentemente, ao analisar o conceito de bem de capital, o Ministro Marco Aurélio Bellizze conferiu interpretação bastante restritiva e destacou que, para ser caracterizado como bem de capital, o bem precisa ser corpóreo (móvel ou imóvel), deve ser utilizado no processo produtivo e deve se encontrar na posse da empresa. Disse, ainda, que a exigência legal de restituição do bem ao credor fiduciário, ao final do stay period, encontrar-se-ia absolutamente frustrada, caso se pudesse conceber o crédito, cedido fiduciariamente, como sendo bem de capital. Explicou que a utilização do crédito garantido fiduciariamente, independentemente da finalidade, "além de desvirtuar a própria finalidade dos 'bens de capital', fulmina por completo a própria garantia fiduciária, chancelando, em última análise, a burla ao comando legal que, de modo expresso, exclui o credor, titular da propriedade fiduciária, dos efeitos da recuperação judicial". Novamente remeto o leitor ao excelente artigo de Alberto Caminã publicado nessa mesma coluna6 para observação da discussão acerca das interpretações sobre o que seria um bem de capital essencial que justifique a aplicação da exceção legal. Embora os argumentos acima expostos sejam judiciosos e bem fundamentados, tendem a interpretar o dispositivo legal de modo a prestigiar o interesse do credor e em prejuízo do objetivo do próprio sistema, na medida em que a retirada da empresa de ativos essenciais ao desenvolvimento de sua atividade impossibilitará a preservação de sua atividade e de todos os benefícios econômicos e sociais dela decorrentes. Conforme já afirmado, deve-se aplicar ao sistema recuperacional a interpretação conforme as teorias da superação do dualismo pendular e da divisão equilibrada de ônus. Assim, relembre-se, a melhor interpretação que se deve dar aos institutos da recuperação judicial é aquela que permita o aplicador da lei atingir de maneira mais eficaz os resultados de interesse social tutelados pelo sistema recuperacional e não os interesses parciais de credores ou devedores. A viabilização da superação da crise atende à tutela de interesses públicos e sociais consistentes na preservação dos benefícios econômicos e sociais que decorrem da atividade empresarial saudável, quais sejam, a geração de empregos, o recolhimento de tributos, a circulação de bens, produtos, serviços e a geração de riquezas. Os interesses maiores, garantidos pelo sucesso da recuperação da empresa, devem se sobrepor aos interesses particulares e parciais, de credores e devedores, dentro do processo de recuperação judicial. O interesse parcial de credor ou devedor nunca poderá se transformar em barreira intransponível à realização do interesse maior, de natureza pública/social, decorrente da preservação dos benefícios oriundos da atividade empresarial saudável. Não me parece que a interpretação restritiva, que permite que o credor realize sua garantia sobre bem ou ativo sem o qual a empresa reste impossibilidade de prosseguir (embora viável) seja a mais adequada às finalidades do sistema. Permitir que o credor financeiro retire os recebíveis essenciais da recuperanda, mesmo durante o prazo de negociação do plano (stay period), viola a lógica do sistema e transforma o direito do credor numa barreira intransponível à realização do interesse social, em detrimento dos próprios objetivos do sistema recuperacional. E mais. Segundo a teoria da divisão equilibrada de ônus, conforme já visto, todos os credores e devedores devem assumir ônus no processo de recuperação judicial, de modo que suas condutas viabilizem o atingimento do resultado maior do processo recuperacional. Mesmo o credor não sujeito à recuperação judicial, por ser titular da posição de credor fiduciário, deverá suportar ônus de não retirar do estabelecimento comercial um bem de capital essencial ao desenvolvimento da empresa, com o fim de se garantir o sucesso da recuperação judicial da devedora. É essa a essência desse dispositivo legal: impor limitação ao credor não sujeito em função da preservação da função social da empresa. Se assim é, não se pode admitir que outras interpretações, mais restritivas, liberem os credores para realizar suas garantias em detrimento da função social da empresa. Tendo em vista tudo o que já foi dito, resulta cristalino que a expressão legal "retirada" deve ser lida como "realizada" ou "fruída em detrimento da devedora". Não se deve permitir que a credora titular da garantia fiduciária "execute", "frua", "realize" o bem objeto da garantia em detrimento do funcionamento da devedora. Da mesma forma, a expressão "bem de capital essencial à atividade da devedora" deve ser interpretada como sendo qualquer bem, objeto da garantia fiduciária, cuja retirada, fruição imediata, excussão ou realização de qualquer forma coloque em risco a manutenção das atividades empresariais. E não é só. O período de duração em que o credor fiduciário não pode realizar sua garantia deve coincidir com o prazo de proteção conferido à devedora para negociação do plano. Conforme já definido pelo STJ, o prazo de 180 dias poderá ser prorrogado judicialmente, desde que o atraso na realização da Assembleia Geral de Credores não seja atribuído à conduta da devedora. Portanto, conclui-se que o credor fiduciário, muito embora conserve seus direitos de propriedade sobre a coisa, não poderá realizar, executar, fruir, retirar ou de qualquer forma excutir o bem objeto da garantia, durante o período de proteção da devedora (stay period) - 180 dias ou mais, desde que haja prorrogação judicial - na medida em que tal pretensão implique em risco de encerramento das atividades empresariais da devedora. Aliás, a interpretação literal aplicada pelo STJ à ressalva legal certamente levaria à criação de situações violadoras do princípio da isonomia entre os credores titulares da mesma posição jurídica. Isso porque, o credor titular de uma alienação fiduciária sobre a máquina industrial não poderia vender a máquina para realização de seu crédito, ao passo que o credor titular da cessão fiduciária de recebíveis, poderia fazê-lo sem qualquer restrição. Ora, à luz do art. 49, §3º da lei 11.101/05, os credores titulares da posição de proprietário fiduciário de bens móveis ou imóveis estão sujeitos ao mesmo regime jurídico, não sendo razoável que o interprete os coloque em situações diametralmente opostas em relação ao exercício do direito de propriedade sobre a coisa objeto da garantia. E nem se diga que a liberação da trava bancária na cessão fiduciária equivale a esvaziar a garantia, o que não aconteceria no caso da máquina industrial, que lá permaneceria existindo. A garantia não é o dinheiro e sim os recebíveis, e esses continuarão existindo na medida em que as atividades da empresa sejam preservadas. Vale destacar que o STJ já definiu, com toda a razão, que o juízo da recuperação judicial deve fazer o controle de essencialidade de bens a fim de autorizar ou não a realização de penhoras ou de qualquer ato de excussão judicial proveniente de outros juízos e relativos aos créditos extraconcursais/não sujeitos, inclusive créditos fiscais ou mesmo com origem posterior ao ajuizamento da recuperação judicial. Portanto, se o STJ entende que mesmo em relação aos credores totalmente extraconcursais/não sujeitos, não se pode admitir que a realização do crédito represente barreira intransponível ao sucesso da recuperação judicial, por qual razão se daria interpretação mais favorável aos credores com cessão fiduciária títulos ou recebíveis (tendo em conta que credores fiduciários são relativamente impactados pela recuperação judicial como explicado acima)? Tudo isso fundamenta a conclusão de que a melhor interpretação que se deve dar ao art. 49, §3º da lei 11.101/05 é aquela que equilibra o exercício do direito do credor fiduciário com a preservação da empresa e a tutela de sua função social. Qualquer ativo que seja essencial à restruturação da empresa viável - seja bem de capital ou não - deverá ser preservado durante o período em que a devedora negocia um plano de superação da crise com seus credores. Poderá o magistrado, no exercício da divisão equilibrada de ônus, estipular uma indenização adicional em razão da retenção da garantia pelo devedor, conforme bem observado por Alberto Camiña, mas nunca será adequado permitir ao credor fruir da garantia em detrimento dos objetivos maiores do processo recuperacional. __________ 1 Thomas H. Jackson. The logic and limits of bankruptcy law. BeardBooks, chapter 1. 2 Além do fisco, cuja discussão fica reservada para outra oportunidade, mas que tem gerado problemas equivalentes. 3 COSTA, Daniel Carnio. Reflexões sobre processos de insolvência: divisão equilibrada de ônus, superação do dualismo pendular e gestão democrática de processos. In: Bernardo Bicalho de Alvarenga Mendes (Org). Aspectos Polêmicos e Atuais da Lei de Recuperação de Empresas. 1 ed. Belo Horizonte. D'Plácido, 2016. V. 01, pág. 71/101 4 Vide nota 1, supra. 5 Insolvência em foco. 6 Nota 5, supra.
terça-feira, 4 de dezembro de 2018

Bem de capital na recuperação judicial

Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira A lei 11.101/05, que dispõe sobre a recuperação judicial, organizou esse instituto de maneira cuidadosa e organizada e tratou de disciplinar a disputa entre os credores e o devedor em dificuldade econômico-financeira. Os credores, na corrida contra o tempo, pretendem, se livres forem, receber, cada um, em primeiro lugar, pois sabem que não sobrarão meios de pagamento para todos. O legislador conhece essa disposição dos credores. Por isso, a lei estabeleceu mecanismos de contenção desses credores, levando-os a certos comportamentos; a lei, na verdade, retira de todos os credores o poder de excutir o patrimônio do devedor, conduzindo-os à negociação destinada à reestruturação da dívida. A lei desarma, ainda que momentaneamente, os credores na luta contra o devedor, pois as execuções são todas suspensas. A suspensão das execuções e das ações decorre da lei e não de ato judicial. Trata-se de efeito ope legis do despacho de processamento. Em nosso sistema, nem todos os credores estão submetidos ao processo de recuperação judicial. A fazenda pública, no que toca aos créditos tributários, e, basicamente, os credores que se enquadrarem nos §§ 3º e 4º do art. 49, estão excluídos dos efeitos do processo de recuperação, no sentido de que o crédito por eles titularizados não sofre a suspensão das execuções; nem ações novas estão impedidas de serem ajuizadas. Todavia, mesmo os credores excluídos do processo de recuperação são convocados a oferecer sua parcela de contribuição para a reorganização do devedor. Muito embora as execuções desses credores extraconcursais não sejam suspensas, nem seja obstada a distribuição de novas execuções, por determinado período de tempo alguns bens não podem ser expropriados ou, de alguma forma, retirados da posse do devedor. Essa previsão está contida na parte final do § 3º do artigo 49 da lei 11.101/05, alvo de considerável discussão jurisprudencial. Segundo tal dispositivo, o credor que for proprietário de bens em garantia fiduciária, credor com bem objeto de arrendamento mercantil, ou o credor promitente vendedor de imóvel, não se submete à recuperação judicial, "não se permitindo, contudo, durante o prazo de suspensão a que se refere o § 4º do art. 6º desta Lei, a venda ou a retirada do estabelecimento do devedor dos bens de capital essenciais a sua atividade empresarial". A discussão que se estabeleceu na prática envolve a abrangência da expressão "bens de capital", e é esse o ponto examinado nesta coluna. A lei, além de se referir a bem de capital, ainda o revestiu da nota de essencialidade, que cumpre observar também. Bem classificado como bem de capital está temporariamente fora do alcance do processo de execução ou de uma ação de busca e apreensão. Os bens de capital, na hipótese, são de propriedade de terceiros e estão no uso do devedor em recuperação judicial. Não obstante a propriedade seja alheia, restringe-se a posse do bem. No prazo de suspensão das ações e execuções, não permite a lei a venda ou a retirada do bem do estabelecimento do devedor. Com isso, embora não seja dono, o devedor em recuperação continua usando o bem alheio. Há uma clara compressão do direito de propriedade, que não pode ser exercido em sua integralidade, com a agravante de que a lei não prevê nenhum ressarcimento pelo não gozo da coisa pelo proprietário. Por certo a função social da propriedade seria invocada para legitimar, sob o aspecto constitucional, tal uso da coisa pelo não-dono, especialmente no contexto de recuperação judicial, em que todos os credores veem a compressão dos respectivos direitos, sendo certo que o direito de crédito também é elemento do direito de propriedade. É certo, também, que o prazo pelo qual o devedor pode usar a propriedade alheia é de 180 dias, que é o prazo do stay. Nesse prazo instituído por lei o proprietário é obrigado a suportar o uso de seu bem por parte de um terceiro, sem nenhuma previsão legal, como já dito, de ressarcimento por não poder gozar da coisa, e, para piorar, a jurisprudência tem admitido o alargamento desse prazo de suspensão(desde que por razões não atribuíveis ao devedor), o que comprime ainda mais o direito de propriedade. O dono, então, passa a pacientar a impossibilidade de gozo de um direito constitucionalmente assegurado, sofrendo suspensão do seu direito de propriedade por um período superior ao que a lei prevê. Esse uso vantajoso de bem alheio deve ser indenizado? Afinal de contas, tratando-se de bem de capital, está ele sendo usado para a produção de outros bens e, então, o devedor está obtendo clara vantagem patrimonial com base em bens de propriedade de terceiros. Há claro enriquecimento do devedor em detrimento do proprietário. Desfalcar o proprietário de capital de auferir renda que o bem pode lhe proporcionar ofende o direito de propriedade. É plausível, portanto, a indenização ao proprietário; o uso do bem alheio após o vencimento do prazo instituído em lei, por certo representa aguda obtenção de vantagem à margem da previsão que o legislador entendeu como razoável, como legítimo sofrimento do proprietário. A indenização não nasce após o vencimento do prazo do stay. Ela apenas torna-se mais ostensiva e gravosa. Para além da questão da indenização, a noção de bem de capital precisa ser colocada em evidência. Trata-se de expressão própria da seara econômica. No estudo dos fatores de produção, ou agentes de produção, três elementos são decisivos, o trabalho, a terra e o capital. Já os economistas clássicos discorreram sobre esses fatores. A terra e o trabalho são os fatores originários, e o capital é derivado da terra e do trabalho. As noções de trabalho e terra são até intuitivas, e a noção de capital é mais delicada. O § 3º do art. 49 utiliza-se da noção de capital no sentido de fatores da produção, e os economistas divergem sobre o alcance da expressão. Para um autor contemporâneo, "os economistas usam o termo capital para se referir ao estoque de equipamentos e estruturas usados para a produção. Ou seja, o capital da economia representa o estoque de bens produzidos no passado que está sendo usado no presente para se produzirem novos bens e serviços. No caso da nossa empresa produtora de maçãs, o estoque de capital inclui as escadas usadas para subir nas macieiras, os caminhões usados para transportar as maçãs, os galpões usados para armazenar as maçãs e até as próprias macieiras"1. Nessa mesma linha outro professor diz que "O termo 'capital' usualmente tem diferentes significados, inclusive na linguagem comum é entendido como 'certa soma em dinheiro'. Todavia, o conceito a ser apreendido aqui é: 'capital é o conjunto (estoque) de bens econômicos heterogêneos, tais como máquinas, instrumentos, terras, matérias-primas etc, capaz de reproduzir bens e serviços'"2. No Novíssimo Dicionário de Economia, de Paulo Sandroni, bens de capital recebeu a seguinte definição: "São bens que servem para a produção de outros bens, especialmente os bens de consumo, tais como máquinas, equipamentos, material de transporte e instalações de uma indústria. Alguns autores usam a expressão bens de capital como sinônimo de bens de produção; outros preferem usar esta última expressão para designar algo mais genérico, que inclui ainda os bens intermediários (matéria-prima depois de algumas transformações, como, por exemplo, o aço) e as matérias-primas". Para alguns autores, portanto, há um gênero, que são os bens de produção, dos quais os bens de capital são espécie, ao lado das matérias-primas, que podem ser compreendidas como insumos. A lei incorpora, sem sombra de dúvida, a noção econômica de bens de capital, e, de plano, já surge a discussão sobre a interpretação restritiva ou ampliativa da expressão. Dir-se-ia, por um lado, que a lei de recuperação está voltada à reestruturação da dívida da companhia, e, então, para alcançar essa finalidade, a interpretação seria sempre teleológica e ampliativa. Outra interpretação possível seria a restritiva. Como se trata de norma excepcional, uma norma que comprime o direito de propriedade, não se poderia lançar mão de uma interpretação ampliativa acerca da parte final do § 3º do art. 49; uma mesma lei pode conter dispositivos que levem a interpretação ampliativa e outros que levem a interpretação restritiva, que, na hipótese, é a aconselhável. A jurisprudência, à falta de uma clara diretriz, ainda não está consolidada. Por exemplo. A Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJ/SP decidiu que a soqueira não é bem de capital de uma usina de açúcar e álcool. Após o corte da cana de açúcar, a raiz que sobra, um palmo para cima da terra e um palmo para baixo da terra, recebe o nome de soqueira, que tem valor, pois dele vem a rebrota da cana. A seguirmos o exemplo do pé de maçã, dado por Gregory Mankiw, parece que a soqueira é bem de capital, pois, após o corte da cana de açúcar, ela não segue com o produto. Ela permanece na terra e pode ser usada na safra seguinte; é um instrumento de certa permanência entre os meios de produção da usina. Há um critério utilizado pela doutrina jurídica para a definição de bem de capital, que pode ser bastante útil para a compreensão do problema. Prestigiado autor escreveu que "insumos e bens de capital assemelham-se sob o aspecto de que servem para criar outros bens econômicos e não são fontes de fluxos de serviços de consumo utilizados diretamente como meio para alcançar objetivo, mas diferem sob o aspecto do período de aplicação no processo produtivo: os insumos participam de um único ciclo operacional, porque destruídos ou transformados na produção, e os bens de capital, embora não sejam perpétuos (estão sujeitos a desgaste, a obsolescência), têm prazo de vida útil superior à duração de um ciclo operacional"3 (sem grifo no original). Referido autor funda-se no ciclo operacional para estabelecer a distinção entre bens de capital e insumo (sem entrar aqui na discussão sobre o significado de insumo). Trata-se de um critério prático, de fácil emprego na prática. Sob outra ótica, pode-se falar em bens intermediários e bens finais. A farinha é um bem intermediário, e o pão o bem final. A linha é um bem intermediário, e a blusa é o bem final. O leite é um bem intermediário, e a vitamina produzida pela lanchonete é o bem final. Ocorre que, além da farinha, da linha e do leite, outros bens são utilizados para a realização do produto final. E aqui surge a seguinte diferença: alguns bens seguem com o produto final, e outros permanecem com o produtor. O cilindro, a máquina de costura e o liquidificador permanecem com o produtor. E aqui surge a distinção entre bens intermediários e bens de capital. Os primeiros seguem com o produto final, e os segundos apenas se desgastam4. Não se pretende definir o que é bem de capital. Para a solução dos problemas práticos, é importante considerar que o bem dado em garantia, para ser considerado bem de capital, deve servir a mais de um ciclo operacional, e, ao seu final (do ciclo), ele deve permanecer com o possuidor, e estar apto a ingressar em outro ciclo operacional; o bem de capital não segue com o produto final e deve estar apto a ser devolvido para o proprietário caso o inadimplemento fique patenteado. Com isso, afasta-se da noção de bem de capital o estoque e a matéria-prima. O assunto já foi apreciado pela jurisprudência, e parece que ainda não está definitivamente consolidado. Soja e milho são bens de capital de uma empresa do agronegócio? Tais produtos foram dados em garantia de dívida, que, inadimplida, e estando a devedora em recuperação judicial, foram objeto de arresto. A devedora suscitou conflito de competência no STJ, que discutiu se esses bens eram ou não bem de capital. Para a Ministra Maria Isabel Gallotti, "estoque e, portanto, mercadorias destinadas à venda, não podem ser compreendidas como bem de capital, precisamente porque, uma vez vendidas, ficaria inteiramente sem objeto a garantia fiduciária, dado que os bens alienados, obviamente, não poderia ser entregues, ao final do stay period, ao titular da propriedade resolúvel. Isso implicaria, renovada vênia, venda a non domino, com a chancela judicial...". "Os títulos de crédito dados em alienação fiduciária sequer estão na posse direta do devedor e, muito menos, são bens utilizados como insumo de produção". Dinheiro e commodities não são bens de capital, reconheceu a julgadora. Considera o voto da relatora: "tenho que, por bem de capital, deve-se compreender aqueles imóveis, máquinas e utensílios necessários à produção. Não é, portanto, o objeto de comercialização da pessoa jurídica em recuperação judicial, mas o aparato, seja bem móvel ou imóvel, necessário à manutenção da atividade produtiva, como veículos de transporte, silos de armazenamento, geradores, prensas, colheitadeiras, tratores, para exemplificar alguns que são utilizados na produção dos bens ou serviços". Embora seguido por outros dois, esse voto não prevaleceu. Orientou-se a seção de direito privado do STJ no sentido de que o conflito de competência não é veículo adequado para decidir se determinado bem pode ou não ser considerado bem de capital. O conflito apenas decide sobre competência. Prevaleceu o voto do ministro Luis Felipe Salomão, que, sobre bem de capital, adiantou o seu pensamento: "é factível que mesmo os insumos incorporados aos produtos fabricados ou comercializados ou a matéria-prima objeto de comercialização no agronegócio possam ser passíveis de enquadramento na ressalva legal, inserindo-se no conceito de bem de capital". A prevalecer a orientação emanada do Conflito de Competência 153.473, só por meio de recurso especial o assunto poderá ser examinado pelo STJ; como a questão é eminentemente fática, fica a questão sobre a aplicação da Súmula 7 e a chamada jurisprudência defensiva. Seja como for, pouco tempo após o julgamento desse conflito de competência, o STJ julgou o RESP 1.758.746, que discutiu a caracterização da trava bancária como bem de capital. Ao rejeitar tal possibilidade, a decisão conceituou: "De todo o exposto, para efeito de aplicação do § 3º do art. 49, "bem de capital", ali referido, há de ser compreendido como o bem, utilizado no processo produtivo da empresa recuperanda, cujas características essenciais são: bem corpóreo (móvel ou imóvel), que se encontra na posse direta do devedor, e, sobretudo, que não seja perecível nem consumível, de modo que possa ser entregue ao titular da propriedade fiduciária, caso persista a inadimplência, ao final do stay period". Essa definição é útil, pois, o bem não deve ser consumível e deve ser apto a ser entregue ao titular da propriedade fiduciária ao final do stay. Essa noção, claramente, afasta a matéria-prima como bem de capital. Afinal, a matéria-prima esgota-se em um ciclo produtivo, e, por isso mesmo, não pode ser entregue ao titular da propriedade fiduciária ao fim do prazo de suspensão da ação. Não se pode dizer que essa decisão, da 3ª Turma do STJ, vai prevalecer, pois ao menos um integrante da 4ª Turma já se pronunciou em sentido contrário. Esse precedente da 3ª turma encarece ainda o seguinte aspecto: é preciso, em primeiro lugar, definir se o bem objeto da controvérsia é ou não bem de capital. O passo seguinte é a verificação de essencialidade. A verificação da qualidade de bem de capital não deve ser feita abstratamente, senão que com os olhos postos na atividade efetivamente desenvolvida pela empresa, sem descurar da conexão com o contrato/estatuto social5 e à luz da concreta utilidade do bem no processo produtivo. Bem que, em tese, pode ser de capital para uma empresa, não o será para outra. Por exemplo, o TJ/SP decidiu que um veículo Kombi não é essencial à atividade usineira. Não significa que para uma empresa de transporte de coisas, ou mesmo de pessoas, não o seja. Reconheceu-se que prensa e empilhadeiras são bens de capital em empresa de estamparia; para outro tipo de atividade esses bens não necessariamente serão de capital. Impressora foi reconhecida como bem de capital de uma gráfica; já para outro tipo de atividade, a impressora poderá não ser bem de capital, por mais essencial que possa ser para o bom andamento dos trabalhos. Equipamento para rastreamento de veículos, em caso de recuperação judicial de uma transportadora, foi considerado bem imprescindível à "proteção do patrimônio essencial das recuperandas", em aplicação analógica do artigo 92 do Código Civil, que trata dos bens principais e acessórios. Estando o bem principal protegido da excussão, também estará o bem acessório. Essa interpretação alargada tem apoio na lei civil. Para finalizar, cabe o registro de que o ônus de provar a essencialidade do bem é do devedor. Não deve ser admitida a presunção de essencialidade de todos os bens que se encontrem no estabelecimento do devedor em recuperação judicial. Para a lei 11.101/05, existem bens essenciais, que o devedor pode reter sob seu poder por determinado período, e os bens não essenciais, de livre constrição e apreensão. A se presumir a essencialidade, tudo estaria protegido, e nada poderia ser retirado, o que afastaria qualquer eficácia do comando legal, e se chegaria a um resultado interpretativo absurdo; a lei jamais teria aplicação. Em conclusão, para a aplicação da ressalva constante da parte final do §3º do artigo 49 da lei 11.101/05, o operador do direito deve, em primeiro lugar, verificar se se trata de bem de capital. Para tanto, deve verificar se o bem tem vida útil superior à de um ciclo operacional e se ele segue ou não com o produto final. Se não se tratar de bem de capital, está prejudicada a análise da essencialidade. Em segundo lugar, e assentada a premissa de que se trata de bem de capital, verifica-se a essencialidade do bem para o funcionamento da empresa. É ônus do devedor demonstrar a essencialidade do bem para a atividade que desempenha. __________ 1 N. Gregory Mankiw, Princípios de microeconomia. Trad, da 3ª ed. norteamericana. São Paulo: Thomson, 2005, p. 404. 2 Juarez Alexandre Baldini Rizzieri, Manual de Economia - Equipe de Professores da USP, 3ª ed. São Paulo: Saraiva, 2002, p. 22. No glossário dessa obra, parece que a noção de bem de capital é mais restrita: "bens utilizados na fabricação de outros bens, mas que não se desgastam totalmente no processo produtivo. É o caso de máquinas, equipamentos e instalações". Sem grifo no original. Por essa noção, a matéria-prima está excluída da noção de bem de capital. 3 José Luiz Bulhões Pedreira, no livro Demonstrações financeiras da companhia, Forense, 1989, p. 189. 4 Exemplos colhidos do livro de Maura Montela, Descomplicando a Economia, 2ª ed. São Paulo: Clube dos Autores, 2016, p. 31-32. 5 Já se decidiu que "AGRAVO DE INSTRUMENTO. Recuperação judicial. Bens vinculados à alienação fiduciária, ao arrendamento ou à reserva de domínio não se submetem aos efeitos da recuperação. Bens de capital essenciais à atividade da agravante. Suspensão do processo pelo prazo de 180 dias (art. 6º, §4º e art. 49, §3º, da lei. 11.101/2005). Essencialidade examinada a partir do objeto social da recuperanda. Manifestação favorável do administrador judicial. Suspensão da execução extrajudicial até o término do stay period do art. 49, §3º, da lei 11.101/05. Recurso provido. (TJ/SP; AI 2252251-21.2016.8.26.0000; Relator (a): Hamid Bdine; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Ribeirão Preto - 8ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 9/6/2017; Data de Registro: 9/6/2017). 
terça-feira, 20 de novembro de 2018

A (in)eficiência da recuperação judicial

Texto de autoria de Marcelo Barbosa Sacramone A lei de recuperação de empresas e falência, lei 11.101/05, consagrou a empresa como importante instrumento de política pública e de desenvolvimento econômico nacional. Separada do conceito de empresário, a empresa, concebida juridicamente em seu perfil funcional como atividade econômica, foi elevada a fim para a tutela dos interesses de todos os por ela afetados. Sua preservação assegura não apenas os interesses dos credores na maior satisfação de seus créditos, mas também dos empregados na manutenção de seus postos de trabalho, dos consumidores com a redução de preços e aumento da concorrência, e da coletividade em que inserida em virtude da manutenção dos contratos e da circulação de riqueza. Diante de crise econômico-financeira que acomete o empresário devedor e que poderá ser apenas temporária e reversível, a Legislação conferiu a recuperação judicial como alternativa ao empresário para superá-la. Para que não se estimulasse o comportamento oportunista do credor em resistir à composição individual para obter todas as vantagens da restruturação da dívida enquanto os ônus fossem suportados por apenas alguns credores, o instituto da recuperação judicial foi criado como uma forma de permitir a negociação coletiva com todos os credores. Essa negociação coletiva somente poderia ser realizada mediante a criação de um ambiente favorável a tanto. Os custos de transação foram reduzidos, com o controle da simetria informacional por meio do administrador judicial; desestimularam-se os comportamentos oportunistas dos credores, com a determinação de suspensão de todas as ações e execuções em face da recuperanda por 180 dias; e organizou-se o processo de negociação com o estabelecimento de uma Assembleia Geral de Credores e quóruns de votação. Entretanto, a recuperação judicial, com a manutenção do empresário devedor na condução de sua atividade, nem sempre será o melhor para a proteção dos interesses públicos a que o instituto foi destinado. Os problemas que causaram a crise econômica do devedor podem não ser transitórios ou superáveis, mas poderão ser decorrentes de uma ineficiência do empresário, de falhas gerenciais ou da inadequação dos produtos ou serviços às necessidades dos consumidores. Nessa situação de inviabilidade da condução da atividade econômica conforme plano de recuperação judicial, a falência poderá ser economicamente mais eficiente à proteção de todos os interesses. A atividade econômica poderá ser preservada por meio de sua transferência a outro empresário que a desenvolva de forma mais eficiente. A liquidação dos ativos na falência permitiria a diverso empresário adquirir o conjunto de ativos para desempenhar a atividade, com a melhor alocação dos diversos fatores de produção. Se inadequada a atividade à demanda do mercado, mesmo a liquidação separada dos ativos permitirá melhor alocação dos recursos escassos, simplesmente por meio do aproveitamento dos bens úteis em finalidade diversa e que melhor os aproveite. A concessão de uma recuperação judicial de um empresário com atividade econômica inviável apenas acarretaria maior perda de valor a todos os envolvidos. A manutenção de uma atividade ineficiente consome os recursos escassos. O não adimplemento dos contratos permite ganho de vantagem competitiva em relação aos demais, com prejuízos à livre concorrência. O não recolhimento de impostos impede a destinação de recursos pelo Estado à mitigação dos problemas sociais e e benefício da coletividade em que a empresa atua. Por fim, a não retirada do agente econômico deficitário ainda implica aumento do risco do crédito, com redistribuição dos referidos custos a todos, mas notadamente aos empresários mais necessitados e com maior possibilidade de inadimplemento, o que reduz a possibilidade de sucesso mesmo das recuperações judiciais de atividades econômicas viáveis e afeta os próprios postos de trabalho que se procurava, num primeiro momento, preservar. A experiência do decreto-lei 7.661/45 e que atribuiu ao Judiciário o poder de preservar a atividade e assegurar a proteção dos interesses de todos os afetados, mediante a concessão da concordata ao comerciante de boa fé, revelou-se um fracasso. A falta de estrutura adequada para se aferir a viabilidade da atividade desenvolvida pelo devedor, a assimetria informacional e a onerosidade para obtê-la fizeram com que o Judiciário resolvesse os danos aos interesses apenas imediatamente perceptíveis, descurando dos efeitos de longo prazo. A concordata revelou-se, assim, um mecanismo comumente utilizado pelos devedores com atividades inviáveis para prosseguirem atuando, mesmo com agravamento da crise e deterioração do patrimônio garantidor dos credores. Diante desse cenário, a alocação do poder pela lei 11.101/05 foi realizada de forma a concentrar a decisão da viabilidade ou não da atividade do empresário devedor naqueles que sofreriam todos os seus efeitos imediatos. Os credores obteriam todos os benefícios de uma decisão correta e suportariam todos os custos de eventual insucesso imediatamente com a redução do patrimônio do devedor e, por consequência, do montante de adimplemento de seus créditos. Teriam, assim, os maiores incentivos econômicos a tomarem a decisão mais consciente. A tutela dos interesses dos terceiros, ainda que sem voto na Assembleia Geral de Credores, não é contrária à alocação exclusiva do poder aos credores. Ao tutelar seu interesse patrimonial na satisfação de seus créditos, esses credores assegurariam a recuperação judicial apenas dos empresários com atividades econômicas viáveis e garantiriam a decretação da falência e o melhor aproveitamento dos recursos dos demais, com benefício a todos. Isso significa que os objetivos pretendidos pela lei 11.101/05 estão sendo efetivamente alcançados? Os interesses de todos os afetados estão sendo realmente protegidos? Faltam maiores estudos jurimétricos sobre o cumprimento dos planos de recuperação judiciais e sobre a continuidade do desenvolvimento da atividade empresarial pelo devedor. A ampla quantidade de pedidos de aditamentos de planos de recuperação judiciais, o aumento do rating pelas instituições financeiras em face dos empresários em recuperação judicial, a dificuldade de obtenção de novos financiamentos da atividade empresarial e a rotineira previsão de alienação de unidade produtivas nos planos de recuperação judicial, entretanto, apontam para uma resposta negativa. Mas se o instituto aparentemente não preserva o desenvolvimento da atividade empresarial pelo empresário devedor, por que os credores têm aprovado (segundo dados obtidos pelo Observatório da PUC-SP em parceria com a Associação Brasileira de Jurimetria, 79,8% dos processos têm o plano de recuperação judicial aprovado pelos credores) planos de recuperação judicial de atividades econômicas sabidamente inviáveis? Uma das possíveis explicações a tanto é a incorreção dos incentivos legais. Ainda que a recuperação judicial seja, em geral, pior para o interesse de todos os afetados pela atividade inviável, poderá ser mais conveniente para os interesses apenas de uma parte da coletividade de credores e que se sujeita à recuperação. Para apenas indicar alguns, o primeiro desses incentivos equivocados pode ser apontado como o tratamento dos créditos tributários pela Lei, assim como sua dispensa de satisfação ou de equacionamento pela jurisprudência por ocasião da concessão da recuperação judicial. Como os créditos tributários não se sujeitam à recuperação judicial, mas apenas à falência, e não há na recuperação judicial obrigação de pagamentos prioritários conforme ordem legal de preferência, todos os créditos menos privilegiados que os tributários teriam incentivo a aprovar plano de recuperação judicial sabidamente inviável para terem a perspectiva de receberem mais do que na falência. Por seu turno, mesmo os credores com garantia real e que, portanto, receberiam tratamento falimentar mais benéfico aos créditos tributários poderão ter incentivos em aprovar planos de atividades econômicas inviáveis. Como as garantias dos coobrigados do devedor, avais e fianças de terceiros, não se sujeitam à recuperação judicial do empresário, referidos credores poderão concordar com pagamentos desprezíveis ou muito arriscados previstos no plano de recuperação, ainda que em detrimento de toda a coletividade de credores, desde que obtenham maior satisfação por esses terceiros. Dessa forma, embora tenha ocorrido notório avanço nacional na disciplina da insolvência, com o deslocamento do poder decisório aos credores, enquanto não se alterar a estrutura legal de modo a permitir que os credores efetivamente apreciem se a recuperação judicial é melhor do que a falência a todos, continuar-se-á a privilegiar o devedor e apenas alguns credores, em detrimento dos interesses públicos e da própria credibilidade do instituto da recuperação judicial.