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Insolvência em foco

Temas sobre Recuperação Judicial.

Daniel Carnio Costa, Fabiana Solano, Alberto Camiña Moreira, Alexandre Demetrius Pereira, Marcelo Sacramone, Paulo Penalva Santos, João de Oliveira Rodrigues Filho, Márcio Souza Guimarães e Otávio Joaquim Rodrigues Filho
A aprovação da lei 14.112/2020 causou relevante alteração em diversos institutos do procedimento da recuperação judicial, previstos na lei 11.101/2005 (Lei de Recuperação Judicial e Falência - LRF), entre os quais pode-se mencionar o da habilitação e da impugnação de crédito retardatária, questão, pode-se dizer, controvertida na prática forense. Apenas para lembrança dos leitores, importante salientar que habilitação é instituto totalmente diverso da impugnação, pelo menos por quatro singelas razões. Primeiro, em razão da fase em que cada requerimento é formulado: após o deferimento do processamento da recuperação judicial, será publicado o Edital contendo a 1ª (primeira) Relação dos Credores, apresentada pela própria recuperanda, com os créditos, sua importância e respectiva classificação. Após a publicação do indigitado Edital, os credores não contemplados na relação editalícia poderão habilitar o seu crédito, mediante procedimento de natureza eminentemente administrativa, a fim de incluir seu crédito em uma das classes de credores (art. 7º, §1º, LRF), ou, mesmo, divergir do crédito ali constante, seja para excluí-lo, seja para reclassificá-lo ou, ainda, retificar sua importância. Após a apreciação das habilitações e divergências apresentadas ao administrador judicial e por este apreciadas, será elaborada uma 2ª (segunda) Relação de Credores, também veiculada mediante Edital, a qual poderá ser objeto de impugnação, por meio da instauração de incidente distribuído por dependência aos autos principais do procedimento recuperacional. A impugnação, portanto, apresenta natureza judicial, visando tanto a incluir crédito (ainda) não arrolado, quanto a atacar crédito arrolado, seja para excluí-lo da Lista de Credores, seja para apresentar divergência a um de seus elementos, tais como classificação ou importância do crédito.1 Segundo, em razão do destinatário do requerimento: a habilitação (não retardatária) será dirigida ao administrador judicial (art. 7º, §1º, segunda parte, LRF), ao passo que a impugnação de crédito, em razão de sua natureza judicial, é dirigida ao próprio juízo da recuperação judicial, lembrando, por meio de autos em separado ao processo principal da recuperação (art. 13, parágrafo único, LRF). Terceiro, em razão do prazo para formulação de cada requerimento: a habilitação de crédito será apresentada em 15 (quinze) dias, contados da data da publicação do 1º (primeiro) Edital da Relação dos Credores no Diário Oficial (art. 7º, §1º, LRF), ao passo que a impugnação de crédito será requerida no lapso de 10 (dez) dias, contados da data da publicação do 2º (segundo) Edital da Relação dos Credores (art. 8º, caput, LRF). Ambos os prazos serão contados em dias corridos, nos termos previstos pelo (novo) art. 189, §1º, I, LRF, incluído pela Lei nº 14.112/2020, colocando (a princípio) termo à discussão quanto à forma de contagem dos prazos previstos na Lei nº 11.101/2005, especialmente após o julgamento do REsp 1699528/MG.2 Por fim, quarto, em razão da (im)possibilidade de sucumbência: inequivocamente que o requerimento de habilitação de crédito, formulado administrativamente, não ensejará ao requerente risco de condenação a título de sucumbência, ao passo que a impugnação judicial, por ostentar natureza de ação incidental, poderá implicar eventual condenação a título de sucumbência, embora haja vozes na doutrina que defendam o não cabimento de condenação a título sucumbencial em sede de incidentes processuais, em virtude da ausência de expressa previsão legal (art. 85, §1º, CPC).3 Outrossim, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça se apresenta inconsistente, uma vez que embora exista precedente defendendo a possibilidade de condenação em honorários sucumbenciais em sede de habilitação de crédito, desde que haja pretensão resistida,4 o mesmo tribunal já sinalizou acerca do não cabimento de honorários advocatícios em sede de incidente de desconsideração da personalidade jurídica, pelo mesmo fundamento da ausência de previsão legal.5 Apresentadas essas singelas diferenças, poderíamos mencionar uma quinta, que envolve, definitivamente, firme divergência jurisprudencial, acerca da possibilidade (ou não) de veicular tanto impugnações quanto habilitações, igualmente, retardatárias. Analisemos, pois, a mencionada diferença. É certo que pela rápida leitura da lei 11.101/2005, especialmente de seu art. 10, reconhece-se a possibilidade de veicular pleito habilitatório retardatário, isto é, após o prazo quinzenal previsto na LRF.6 Tal formulação se mostra razoável se pensarmos na hipótese de habilitação de crédito trabalhista. Suponha-se que após a publicação do Edital contendo a 2ª (segunda) Relação de Credores na recuperação judicial, determinado credor ainda estivesse discutindo perante o juízo trabalhista o dever de percepção de verbas rescisórias, com sentença favorável, porém com Recurso Ordinário ainda pendente de julgamento. Nesse caso, temos um crédito que, a despeito de ser reconhecido por sentença favorável, não pode ser lastreado por uma Certidão que autorize o credor a habilitá-lo, razão pela qual a posterior consolidação desse crédito, mediante Certidão lavrada após a publicação do Edital contendo a Relação dos Credores, viabilizará o credor trabalhista a postulá-lo de modo retardatário, perante o juízo da recuperação judicial, aplicando-se o regime de tratamento da impugnação à habilitação (art. 10, §5º, LRF). No tocante à impugnação retardatária, a discussão se torna mais delicada. Fala-se delicada, pois a impugnação judicial (pelo menos até o advento do art. 10, §§7º, 8º e 9º da lei 14.112/2020), prevista pelo art. 8º, caput, LRF, abrigaria, conforme julgados recentes exarados pela 3ª Turma do STJ, prazo de natureza cogente e peremptório, cuja inobservância implicaria impossibilidade do requerente de perseguir o indigitado crédito nos autos do procedimento recuperacional.7 Na mesma direção, parcela da doutrina alinha-se à posição exarada pela 3ª Turma do STJ.8 Assim, os créditos já arrolados e que não foram, oportuna e tempestivamente, impugnados dentro do decênio legal, seriam alcançados pela preclusão, embora, ainda, seja reservado ao credor-impugnante o direito de discutir, por meio de ação autônoma pelo procedimento comum, os elementos de seu crédito submetido à recuperação judicial, a fim de exclui-lo, reclassificá-lo ou mesmo retificá-lo, nas hipóteses previstas pelo art. 19, LRF, não havendo, por isso, tratamento discriminatório entre o credor trabalhista do exemplo acima (cujo crédito ainda não estava arrolado) e o credor-impugnante. Tal posição jurisprudencial, contudo, não está amparada em julgado firmado sob o rito dos recursos repetitivos, previsto no art. 927, III, CPC, e, assim, não constitui hipótese de precedente obrigatório, motivo pelo qual não tem o condão de vincular os demais tribunais brasileiros acerca da aplicação do art. 8º da lei (Federal) 11.101/2005. Não por outro motivo, alguns tribunais têm formulado entendimentos a contrario sensu daquele aviado pelo STJ, como é o caso do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo (TJ/SP) que vem sinalizando, há algum tempo, a possibilidade de apresentação da impugnação retardatária, conferindo-lhe o mesmo tratamento dado pela legislação às habilitações retardatárias.9-10 Nesse passo, também, outra parcela da doutrina vem defendendo a admissibilidade da impugnação retardatária, tal como sinalizado pelo TJ/SP.11 A lei 14.112/2020 traz importante previsão sobre o assunto, reconhecendo, inclusive, a expressão impugnação retardatária, o que colocaria uma pá de cal na discussão aqui travada, passando a ser essa uma semelhança entre os dois institutos, especialmente no que toca ao disposto no art. 10, §7º, LRF, o qual prescreve que o quadro-geral de credores será formado com o julgamento das impugnações tempestivas e com as habilitações e as impugnações retardatárias decididas até o momento da sua formação. Trata-se de questão que poderá ainda render muitas controvérsias, especialmente diante do fato de que o oferecimento da impugnação retardatária até a publicação do quadro-geral dos credores poderia ser interpretado como o reconhecimento de uma preclusão diferida, esvaziando-se, com isso, o prazo decenal previsto no caput do art. 8º, LRF, bem como o disposto no art. 223, CPC. Isso porque o impugnante, em verdade, estaria limitado cronologicamente até a publicação do indigitado quadro-geral e não mais ao prazo disposto no art. 8º para oferecer a impugnação a destempo, o que, curiosamente, acarretaria o reconhecimento de um prazo impróprio à parte/requerente. Outra discussão que poderá ser aviada diz respeito à possibilidade de a recuperanda ostentar legitimidade para veicular o pleito fora do prazo decenal do art. 8º, caput, LRF, uma vez que os §§7º a 9º do art. 10 restaram silente nesse ponto, não estabelecendo nenhuma vedação a esse respeito e deixando dúvidas acerca da viabilidade de a impugnação retardatária ser veiculada pela recuperanda (como admitido, para a impugnação tempestiva, pelo art. 8º, caput, LRF), ou, apenas, pelo credor. De modo geral, em uma primeira vista, não parece fazer sentido a recuperanda impugnar a Lista de Credores do administrador judicial, seja para retificar, seja para incluir novos créditos, quanto mais de forma retardatária, na medida em que ela própria quem elaborou a 1ª (primeira) Lista de Credores que serviu de base à lista do administrador judicial. Não à toa que há julgados do TJSP contrários à habilitação de crédito retardatária pela recuperanda, com fundamento na ausência de legitimidade.12 Nada obstante, há debate sobre os casos de créditos que se consolidem em definitivo após a publicação das Listas de Credores, embora se refiram a fatos geradores anteriores ao pedido de recuperação judicial. Num cenário em que o credor não promova a habilitação e continue executar a recuperanda na ação própria, considerando a competência do juízo da recuperação judicial para decidir acerca da natureza concursal do crédito,13 conviria levar em conta a possibilidade de a recuperanda apresentar ao menos habilitação retardatária de crédito. Por fim, ainda, vale destacar que a admissibilidade do mencionado pleito retardatário poderá gerar morosidade processual, em clara afronta ao princípio da duração razoável do processo, aplicável, por certo, ao procedimento recuperacional, à luz do disposto no art. 189, caput, LRF c/c art. 4º, caput, primeira parte, CPC, em virtude da necessidade de o juízo recuperacional (também competente para julgar os incidentes de impugnação) direcionar esforços e despender de tempo para resolver pleitos retardatários, cuja morosidade se torna inevitável especialmente em grandes recuperações judiciais. São questionamentos desta natureza que (ainda) subsistem, a despeito da edição da lei 14.112/2020 e, com isso, desaproximam o objetivo do legislador de equiparar institutos que, dada as diferenças, foram desenhados para serem distintos entre si. *Rodolfo Mascarenhas Lopes é pós-graduando em Direito Processual Civil pelo CEPED/UERJ. Bacharel em Direito pela UFRJ. Membro da Academia Brasileira de Direito Civil (ABDC). Advogado no FASV Advogados. **Pedro Simas de Oliveira é bacharel em Direito pela UERJ. Advogado especializado em contencioso cível e empresarial/insolvência no FASV Advogados.  __________ 1 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Almedina, 2016, p. 147. 2 "RECURSO ESPECIAL. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. ADVENTO DO CPC/2015. APLICAÇÃO SUBSIDIÁRIA. FORMA DE CONTAGEM DE PRAZOS NO MICROSSISTEMA DA LEI DE 11.101/2005. CÔMPUTO EM DIAS CORRIDOS. SISTEMÁTICA E LOGICIDADE DO REGIME ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA." (STJ, REsp 1699528/MG, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, j. 10/04/2018, DJe 13/06/2018). 3 Nesse sentido, cf. DIDIER JR., Fredie; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Curso de Direito Processual Civil. 14ª ed. reform. Salvador: Jus Podivm, 2017, v. 3, p. 184; ROQUE, Andre Vasconcelos. Questões controvertidas sobre a impugnação de crédito na recuperação judicial. Migalhas, São Paulo, 20 out. 2020. Coluna Insolvência em foco. Disponível aqui. Acesso em: 06 jan. 2021. 4 "(...) 5. Com relação à fixação de honorários advocatícios, a orientação pacífica da jurisprudência desta Corte Superior dispõe que é impositiva a fixação de honorários sucumbenciais na habilitação de crédito, no âmbito da recuperação judicial ou da falência, quando apresentada impugnação, o que confere litigiosidade à demanda." (STJ, AgInt nos EDcl no AgInt no REsp 1816967/PR, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 30/08/2020, DJe 08/09/2020). 5 "RECURSO ESPECIAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM. INCIDENTE DE DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. CONDENAÇÃO EM HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. DESCABIMENTO. ART. 85, § 1º, DO CPC/2015. RECURSO ESPECIAL PROVIDO." (STJ, REsp 1845536/SC, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, j. 26/05/2020, DJe 09/06/2020). 6 "Art. 10. Não observado o prazo estipulado no art. 7º, § 1º, desta Lei, as habilitações de crédito serão recebidas como retardatárias." (grifos nossos). 7 Nesse sentido, cf. STJ, REsp 1704201/RS, Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Rel. p/ Acórdão Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 07/05/2019, DJe 24/05/2019; STJ, AgInt no AREsp 1433517/SP, Rel. Min. Marco Aurélio Belizze, Terceira Turma, j. em 10/02/2020, DJe 13/02/2020. 8 AYOUB, Luiz Roberto; CAVALLI, Cássio. A construção jurisprudencial da recuperação judicial de empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2016. p. 205. 9 Nesse sentido, cf. TJSP; Agravo de Instrumento 2112507-74.2017.8.26.0000; Relator (a): Carlos Alberto Garbi; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Jaboticabal - 1ª Vara Cível; Data do Julgamento: 13/11/2017; Data de Registro: 16/11/2017). 10 Nesse sentido, ainda, cf. TJSP; Agravo de Instrumento 2190317-23.2020.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Mairinque - 1ª Vara; Data do Julgamento: 10/11/2020; Data de Registro: 10/11/2020; TJSP; Agravo de Instrumento 2147600-93.2020.8.26.0000; Relator (a): Araldo Telles; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Mairinque - 1ª Vara; Data do Julgamento: 09/10/2020; Data de Registro: 09/10/2020. 11 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de Empresas e Falência. São Paulo: Almedina, 2016, p. 146-147. Ainda, em sentido favorável à impugnação retardatária, cf. COELHO, Fábio Ulhôa. Comentários à nova lei de falências e de recuperação de empresas. São Paulo: Saraiva, 2005, p. 49. 12 Cf. TJSP; Agravo de Instrumento 2083481-26.2020.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Mogi Guaçu - 3ª V. CÍVEL; Data do Julgamento: 13/11/2020; Data de Registro: 13/11/2020; TJSP; Agravo de Instrumento 2205747-83.2018.8.26.0000; Relator (a): AZUMA NISHI; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Sorocaba - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 20/02/2019; Data de Registro: 22/02/2019. 13 Cf. STJ, AgRg nos EDcl no CC 136.508/PA, Rel. Min João Otávio de Noronha, Segunda Seção, j. 12/08/2015, DJe 20/08/2015.
O Congresso Nacional rejeitou diversos vetos presidenciais à lei 14.112/2020. Dentre os vetos rejeitados, aqueles que implicam alterações na lei 11.101/05 foram os referentes ao art. 6º, §13º; art. 6º - B; art. 50-A; art. 60, parágrafo único e art. 66, §3º. A apreciação desses novos dispositivos legais, alguns com efeitos absolutamente controversos, deve ser feita individualmente.  a)      Art. 6º, § 13. "Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei nº 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica."  O veto presidencial ao art. 6º, § 13, inserido pela lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020, era justificado na possibilidade de que a recuperação judicial somente para as cooperativas médicas feria o princípio da isonomia em relação às demais modalidades societárias e afastava "os instrumentos regulatórios que oportunizam às operadoras no âmbito administrativo a recuperação de suas anormalidades econômico-financeiras e as liquidações extrajudiciais". O veto foi rejeitado pelo Congresso Nacional. O art. 6º, §13º, possui duas determinações distintas, sem causa e efeito, como sua redação tenta induzir. A primeira delas é a não sujeição à recuperação judicial dos créditos decorrentes de atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados. Ainda que a sociedade cooperativa, como pessoa jurídica não empresária, não possa utilizar-se da recuperação judicial para superar a crise que afeta sua atividade, seja ela qual for, seus cooperados poderiam requerer recuperação judicial e submeter todos os seus débitos à negociação coletiva, desde que sejam empresários. Dentro desses débitos dos cooperados em recuperação, contudo, era excepcionado o crédito das sociedades cooperativas. As justificativas ao acolhimento da Emenda 13 ao PL 6.229 pelo relator, e que inseria o dispositivo legal, foram exclusivamente a peculiaridade que caracterizaria as operações realizadas no âmbito das cooperativas e a importância dessas para o desenvolvimento econômico nacional. O ato cooperativo praticado entre a cooperativa e seus associados é qualquer operação destinada à consecução dos objetivos sociais da cooperativa. Por essa posição adotada pelo legislador, como os atos cooperativos não visariam ao lucro, mas ao bem comum, não poderiam ser caracterizados como operação de mercado ou contrato de compra e venda regular de produto ou mercadoria (art. 79 da lei 5.764/71). Tais características peculiares do cooperativismo e que fariam com que o conflito de interesses típico dos contratos a mercado fosse atenuado em função do mutualismo entre cooperativa e do cooperado fizeram com que o legislador tratasse de forma diferenciada os créditos decorrentes desses contratos e não os submetesse às recuperações judiciais dos cooperados. Durante a tramitação legislativa da alteração ao art. 6º, § 13, foi inserida complementação ao dispositivo legal pelo Senado Federal, sem que o texto alterado  voltasse para a Câmara dos Deputados. A complementação é justamente a determinação de que a vedação às cooperativas contida no art. 2º, II, não afetaria a sociedade operadora de plano de assistência à saúde se fosse cooperativa médica. A despeito da inserção do advérbio "consequentemente" no dispositivo legal, a inserção não possui qualquer relação lógica com o restante do parágrafo, que trata da cooperativa enquanto credora na recuperação judicial dos cooperados. Por não se tratar apenas de correção redacional, imprescindível era seu retorno à Câmara dos Deputados, pelo que o dispositivo possui inconstitucionalidade formal. Outrossim, o dispositivo apenas ressalta a não aplicação às cooperativas prestadoras de assistência à saúde do art. 2º, II, o qual veda a determinados empresários o requerimento de recuperação judicial.  Pela redação do próprio dispositivo legal, a cooperativa médica continua, portanto, a não se sujeitar à recuperação judicial ou à falência pois não é considerada empresária, condição imprescindível para a submissão aos institutos da recuperação de empresas e falência, nos termos do art. 1º da Lei n. 11.101/2005. O art. 2º, II, somente concebe as sociedades operadoras de seguro-saúde como relativamente excluídas para impedi-las, em razão da atividade, de se submeter à recuperação judicial ou à extrajudicial, mas não à falência, ainda que empresária. A sociedade cooperativa, entretanto, independentemente de sua atividade, é absolutamente excluída da aplicação da legislação de insolvência em razão de sua forma ser não empresarial, conforme art. 1º, que permanece em vigor e não foi alterado ou ressalvado.  b)      Art. 6º-B. "Não se aplica o limite percentual de que tratam os arts. 15 e 16 da Lei nº 9.065, de 20 de junho de 1995, à apuração do imposto sobre a renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre a parcela do lucro líquido decorrente de ganho de capital resultante da alienação judicial de bens ou direitos, de que tratam os arts. 60, 66 e 141 desta Lei, pela pessoa jurídica em recuperação judicial ou com falência decretada. Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese em que o ganho de capital decorra de transação efetuada com: I - pessoa jurídica que seja controladora, controlada, coligada ou interligada; ou II - pessoa física que seja acionista controlador, sócio, titular ou administrador da pessoa jurídica devedora."  As alienações judiciais de ativos realizadas pelos procedimentos de recuperação judicial e de falência poderão implicar ganho de capital ao empresário devedor, que pode ter adquirido os bens por valor inferior ao produto da referida arrematação. Pela lei 14.112/2020, insere-se o art. 6º-B na lei 11.101/2005, que determina que não se aplica o limite percentual de que tratam os arts. 15 e 16 da lei 9.065, de 20 de junho de 1995, à apuração do imposto sobre a renda e da Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL) sobre a parcela do lucro líquido decorrente de ganho de capital resultante da alienação judicial de bens ou direitos, de que tratam os arts. 60, 66 e 141 desta Lei, pela pessoa jurídica em recuperação judicial ou com falência decretada. O dispositivo legal havia sido vetado pelo Presidente da República, sob a justificativa de que acarretava renúncia de receita sem o cancelamento equivalente de outra despesa obrigatória e sem que estivesse acompanhada de estimativa de seu impacto orçamentário. O veto, entretanto, foi rejeitado pelo Congresso Nacional. O dispositivo legal permite, assim, que o prejuízo fiscal apurado seja compensado, sem limite máximo de 30%, como previsto originariamente pela Lei n. 9.065/95, com o lucro líquido decorrente do ganho de capital das alienações judiciais nos procedimentos de insolvência, tanto para fins de imposto de renda quanto para a contribuição social sobre o lucro da pessoa jurídica. A compensação somente poderá ocorrer, contudo, se os bens vendidos não forem adquiridos por pessoa jurídica controladora, controlada, coligada ou interligada, ou por pessoa física que fosse acionista controlador, sócio, titular ou administrador da pessoa jurídica devedora. c)       Art. 50-A. "Nas hipóteses de renegociação de dívidas de pessoa jurídica no âmbito de processo de recuperação judicial, estejam as dívidas sujeitas ou não a esta, e do reconhecimento de seus efeitos nas demonstrações financeiras das sociedades, deverão ser observadas as seguintes disposições: I - a receita obtida pelo devedor não será computada na apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); II - o ganho obtido pelo devedor com a redução da dívida não se sujeitará ao limite percentual de que tratam os arts. 42 e 58 da lei 8.981, de 20 de janeiro de 1995, na apuração do imposto sobre a renda e da CSLL; e III - as despesas correspondentes às obrigações assumidas no plano de recuperação judicial serão consideradas dedutíveis na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, desde que não tenham sido objeto de dedução anterior. Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica à hipótese de dívida com: I - pessoa jurídica que seja controladora, controlada, coligada ou interligada; ou II - pessoa física que seja acionista controladora, sócia, titular ou administradora da pessoa jurídica devedora."  A lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020, inseriu o art. 50-A na lei 11.101/2005, o qual fora vetado pelo Presidente da República sob a justificativa de que os benefícios tributários concedidos feririam o princípio da isonomia tributária, acarretariam renúncia de receita sem o cancelamento de outra despesa obrigatória e sem que houvesse estimativa de seu impacto orçamentário e financeiro. O veto, entretanto, fora rejeitado pelo Congresso Nacional. Trata o dispositivo legal da tributação sobre o desconto obtido em razão das negociações de dívidas em virtude da recuperação judicial, sejam elas sujeitas ou não sujeitas à recuperação. Ainda que tivesse ocorrido discussão intensa sobre a necessidade de incidência ou não dos tributos sobre o desconto obtido na recuperação judicial, a inserção do art. 50-A mantém a tributação, embora permita regime diverso em razão da recuperação judicial do devedor. O regime mais benefício de tributação ocorre desde que a renegociação não tenha ocorrido com pessoa diretamente relacionada ao devedor em recuperação ou com a pessoa jurídica que fosse controladora, controlada, coligada ou interligada, ou a pessoa física que fosse acionista controladora, sócia, titular ou administradora da pessoa jurídica devedora. Dentro do regime especial definido pela lei, as renegociações de dívidas realizadas pela pessoa jurídica em recuperação judicial, com eventual obtenção do deságio, implicam receita diante da redução da dívida. Mesmo que as dívidas renegociadas não estejam sujeitas ao procedimento de recuperação ou que não haja o reconhecimento de seus efeitos nas demonstrações financeiras das sociedades, a receita decorrente da redução da dívida deve ser tributada pela incidência do imposto de renda e pela Contribuição Social sobre o Lucro Líquido. Pelo dispositivo legal, essa receita decorrente da redução da dívida não é computada na apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins). Para o Imposto de Renda das Pessoas Jurídicas e pelo regime de tributação com base no lucro real, permite-se que o lucro líquido seja ajustado com adições e exclusões, sem que haja a incidência do limite de redução em no máximo 30%. Da mesma forma, na contribuição social sobre o lucro, o lucro líquido ajustado pode ser reduzido por compensação da base de cálculo negativa de períodos anteriores sem a limitação de 30%. São também consideradas dedutíveis na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, desde que não tenham sido objeto de dedução anterior, as despesas correspondentes às obrigações assumidas no plano de recuperação judicial. d)      Art. 60, parágrafo único. "O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor de qualquer natureza, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta lei."  A lei restringiu o risco dos adquirentes de bens alienados pela recuperanda. As obrigações do devedor e os ônus que recaiam sobre os bens arrematados deverão ser de responsabilidade exclusiva do devedor1. A limitação da sucessão das obrigações do devedor ao adquirente procura garantir o princípio da preservação da empresa. Separada do conceito de empresário devedor, a empresa, entendida como atividade, poderá ser desenvolvida de modo mais eficiente pelo adquirente do conjunto de bens, que poderá garantir maior circulação de riquezas. Permitir a venda de ativos livres de ônus garante que a empresa a ser desenvolvida pelo adquirente não seja impossibilitada pela ineficiência do devedor vendedor. Por seu turno, a limitação da sucessão reduz os riscos do adquirente, o que garante aumento do valor do preço obtido pelas arrematações e, por consequência, maior satisfação de todos os credores. Quanto aos ônus, a alienação do bem na recuperação judicial assegura o levantamento de todas as constrições ou ônus que poderiam recair sobre o ativo, como penhoras de credores, submetidos ou não submetidos à recuperação judicial, impostos pendentes como IPTU ou IPVA, multas administrativas, débitos trabalhistas etc. Referidos ônus deverão ser levantados pelos órgãos administrativos competentes mediante mero ofício do juízo da recuperação judicial, ainda que a constrição tenha sido realizada mediante determinação por juiz diverso. Quanto à sucessão do arrematante, não haverá responsabilidade por nenhuma obrigação do devedor ou do bem adquirido existente até o momento da arrematação, sejam os débitos trabalhistas, tributários, ambientais, administrativos, penal, anticorrupção etc. A inclusão dos débitos ambientais, administrativos, penal, anticorrupção e trabalhistas foi expressamente mencionada no parágrafo único pela alteração promovida pela lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020. O dispositivo foi vetado pelo Presidente da República sob o fundamento de que as obrigações ambientais seriam protegidas constitucionalmente, assim como as da Lei anticorrupção deveriam ser conservadas sob pena de afronta aos direitos fundamentais da probidade e da boa administração pública. O veto fora rejeitado pelo Congresso Nacional. A despeito da inclusão expressa da não sucessão às obrigações ambientas, regulatórias, administrativa, penal, anticorrupção e trabalhista, a redação original do dispositivo já permitia exatamente essa interpretação do texto. Isso porque determinava-se que não haveria sucessão do arrematante em nenhuma obrigação, de modo que todas essas, juntamente com as tributárias, estavam incluídas. A inclusão de todas as obrigações, afinal, conforma-se com o intuito de maximização do valor e satisfação da coletividade de credores2-3. No tocante às obrigações tributárias, além de sua expressa não sucessão no art. 60 da LREF, o art. 133 do Código Tributário Nacional corrobora o dispositivo legal. Pela alteração concebida pela Lei Complementar 118/2005, o art. 133, § 1º, II, estabelece que na alienação judicial de filial ou unidade produtiva isolada em processo de recuperação judicial não haverá a sucessão do arrematante pelas obrigações tributárias do vendedor. A interpretação do dispositivo legal, ao contrário do que poderia ser deduzido do veto presidencial rejeitado pelo Congresso Nacional, não contraria a Constituição Federal. A ausência de responsabilidade não impede a satisfação dos referidos créditos pelo produto da alienação pelo devedor nos termos do plano de recuperação judicial e, outrossim, garante que o melhor valor de alienação para a satisfação de todos os créditos seja efetivamente possível, o que assegura a melhor satisfação das referidas obrigações. A não sucessão das obrigações do devedor e o levantamento dos ônus incidentes sobre o bem, entretanto, são condicionados à alienação por uma das modalidades públicas prescritas na LREF. Ao remeter ao art. 142, a LREF determina que a alienação desses ativos deverá ser realizada na modalidade do leilão, processo competitivo organizado ou qualquer outra modalidade aprovada nos termos dessa Lei. A exigência decorre da garantia de que haveria um procedimento competitivo entre os interessados e que seria alcançado o melhor preço de aquisição do bem, com vantagens a todos os credores. Com esse produto da arrematação, o devedor poderia satisfazer seus credores, tanto para os credores sujeitos quanto aos não sujeitos à recuperação judicial. A alienação de bens diretamente entre o devedor e o adquirente não é impedida pela legislação de insolvência. Todavia, a não sucessão das obrigações pelo arrematante apenas ocorrerá se a alienação ocorrer por essas formas públicas de alienação. Na hipótese de alienação direta e de modo que os credores não sejam prejudicados por uma aquisição abaixo de valor de mercado do bem, o adquirente é considerado sucessor das obrigações e passa a ser responsável pelo pagamento dos credores na medida do valor do bem adquirido, ainda que essa forma esteja prevista no plano de recuperação judicial aprovado4. A responsabilidade do adquirente ocorrerá, também, se este for sócio do devedor, for sociedade por ele controlada, parente em linha reta ou colateral até o quarto grau, consanguíneo ou afim, seja do devedor ou de sócio do devedor, ou, ainda, considerado agente do devedor5.  e)      Art. 66, §3º. "Desde que a alienação seja realizada com observância do disposto no § 1º do art. 141 e no art. 142 desta lei, o objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do adquirente nas obrigações do devedor, incluídas, mas não exclusivamente, as de natureza ambiental, regulatória, administrativa, penal, anticorrupção, tributária e trabalhista".  A LREF garantiu que a alienação de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor (UPI), desde que realizada por um dos modos públicos disciplinados no art. 142 da LREF e mediante aprovação no plano de recuperação judicial, permitirá ao arrematante a aquisição dos bens livre de toda e qualquer sucessão nas obrigações do devedor e de qualquer encargo existente sobre os bens, nos termos do art. 60. A isenção de responsabilidade para a UPI e filiais não foi reproduzida originalmente pelo art. 66 para a alienação ou oneração de bens não circulantes e fora do plano de recuperação judicial, mas a falta de previsão expressa não significava imediata sucessão. Sustentava-se que a alienação de bens individuais, que não se confundiam com estabelecimentos empresariais, não gerava o risco de ineficácia do trespasse caso não restassem bens suficientes para solver o passivo (art. 1.145 do CC), ou a sucessão geral do adquirente pelas obrigações contabilizadas do devedor (art. 1.146 do CC), por falta de previsão legal. Contudo, poderia se cogitar de o adquirente ser responsável apenas por eventuais ônus incidentes sobre o bem, porque não poderia alegar seu desconhecimento, ou pela satisfação das obrigações propter rem, como qualquer outra alienação em que o vendedor não estivesse sujeito à recuperação judicial. Entretanto, a interpretação sistemática dos diversos dispositivos da lei 11.101/2005 já impedia essa conclusão. Se a alienação do estabelecimento empresarial, desde que realizada por uma das formas públicas de alienação previstas no art. 142 e aprovada pelos credores no plano de recuperação judicial, teria seu objeto livre de qualquer ônus e não implicaria sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, o mesmo efeito deverá ser produzido em relação aos bens menos importantes ao desenvolvimento da atividade ou que, em regra, afetariam menos a garantia dos credores. Se a alienação do estabelecimento, mesmo sem remanescerem outros ativos para a satisfação do passivo ou mesmo sem a anuência da totalidade dos credores, era prevista como livre de ônus ou débitos, com mais razão e por gerar menos riscos de insatisfação das obrigações, a alienação ou oneração de outros ativos não circulantes também deveria ser realizada sem responsabilidade do adquirente. Se a situação mais gravosa aos credores é permitida, não seria lógico proibir a menos gravosa. De forma a retirar qualquer risco do adquirente e evitar qualquer controvérsia, a alteração da lei 11.101/2005 pela lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020, incluiu o art. 66, § 3º, em que se determina que a alienação, desde que feita por uma das formas públicas de alienação disciplinadas pelo art. 142, está livre de qualquer ônus e não há sucessão do adquirente nas obrigações do devedor, quaisquer que fossem. O veto do Presidente da República, fundamentado na impossibilidade constitucional de se impedir a sucessão das obrigações ambientais e da Lei anticorrupção,  fora levantado pelo Congresso Nacional. A despeito da inserção expressa, a interpretação sistemática já era permitida pela redação original da lei 11.101/2005. A alienação de bens deve ser interpretada em conjunto com o art. 60 da lei 11.101/2005. Nesse aspecto, a alienação do estabelecimento empresarial, desde que realizada por uma das formas públicas de alienação, terá seu objeto livre de qualquer ônus e não implicará sucessão do arrematante nas obrigações do devedor. A ausência de risco na aquisição assegura maior valor das arrematações e, por consequência, a maior possibilidade de satisfação dos interesses de todos os credores, sujeitos e não sujeitos à recuperação judicial. Pela mesma razão, notadamente porque exigirá inclusive a aprovação judicial na hipótese de ativos não circulantes, não deverá ocorrer sucessão nos demais bens. A alienação sem qualquer possibilidade de sucessão permitirá que os ativos dispensáveis ao prosseguimento da atividade empresarial sejam alienados a outros empresários, que poderão alocar esses fatores de produção de forma mais eficiente. Outrossim, aumenta a possibilidade de existirem interessados, o que permite ao empresário a redução dos custos com ativos desnecessários para o desenvolvimento de sua atividade, bem como o aumento do valor obtido nas arrematações, o qual reverterá ao pagamento de toda a coletividade de credores. Nem se alegue que a impossibilidade de sucessão permitiria a liquidação ordinária dos ativos, em detrimento dos credores não sujeitos à recuperação judicial. A alienação dos ativos continua condicionada à evidente utilidade para a recuperação judicial reconhecida pelo juiz e, mesmo se aprovada pela Assembleia Geral de Credores, poderá gerar a convolação em falência se verificado o esvaziamento patrimonial da devedora que implica liquidação substancial da empresa, nos termos do art. 73. __________ 1 O Supremo Tribunal Federal considerou o dispositivo legal de acordo com a Constituição Federal. A não sucessão dos adquirentes dos bens alienados pelas empresas em dificuldades garante a função social que tais complexos patrimoniais exercem (STF, ADI 3.934-2, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 6-11-2009). 2 Em sentido contrário, BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 12. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017, p. 218. Para o autor, "o adquirente deve atentar para o fato de que esta blindagem não o protegerá de sucessão nos créditos derivados da legislação do trabalho e nos decorrentes de acidentes do trabalho; quando a lei quis excluir estes créditos, mencionou-os de maneira explícita, como se vê da leitura do inc. II do art. 141". 3 STF, ADI 3.934-2/DF, rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 4-6-2009. 4 TJ/SP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 0057674-82.2013, rel. Des. Araldo Telles, j. 30-9-2013; TJSP, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, AI 0227587-33.2011, rel. Des. Francisco Loureiro, j. 30-10-2012. 5 Conferir comentários aos arts. 141 e 142.
Introdução Na semana em que se comemoram 5 anos de vigência do CPC/15, vale lembrar que um dos supostos grandes pontos positivos da "já não tão nova" legislação (lei 13.105/15), pelo menos para os advogados, seria a disciplina dos prazos processuais, especificamente quanto à sua contagem ser restrita aos dias úteis (CPC, art. 219). Tivemos a oportunidade de nos debruçar sobre isso anteriormente em diversas oportunidades1. Muitas dificuldades (e, infelizmente, intempestividades) já ocorreram nesse período. Seguem algumas delas: (i) o prazo segue em dias corridos (processo penal2); (ii) o prazo já foi em dias corridos e passou para dias úteis (processo do trabalho3); (iii) o prazo foi objeto de muita polêmica se em dias úteis ou corridos, até que lei específica definiu a contagem em dias úteis (Juizados4); e (iv) o prazo, que era em dias úteis, passou a ser em dias corridos (ECA5). Ou seja, a matéria não é uniforme, o que é péssimo para a advocacia, dado o risco que se tem de uma perda de prazo, devido à profusão de regramentos distintos. E, recentemente, essa situação tormentosa ganhou novo capítulo. É impressionante como as leis são editadas de modo a se deixar em aberto discussões a respeito de algo tão básico quanto o prazo processual. Discussões, por certo, fazem parte do Direito. Mas, em relação a questões procedimentais - especialmente no que se refere ao risco de uma intempestividade de manifestação ou não conhecimento de um recurso - não é possível normalizar que leis sejam editadas de modo a se ter dúvidas quanto à forma de contagem dos prazos. A contagem de prazos na RJ e Falência na redação original da lei 11.101/05 Até a edição do CPC/15, não havia qualquer debate quanto à contagem dos prazos na Lei de Recuperação e Falência - que se computavam em dias corridos. Com o CPC/15 e seu art. 219, contudo, começou o debate. Como se sabe, prevê esse dispositivo (e respectivo parágrafo único) que os prazos processuais serão contados em dias úteis6. Na redação original da lei 11.101/2005, não havia regra específica definindo a forma de contagem dos prazos. E, ao longo de seus dispositivos, há prazos cuja natureza (se processual ou de direito material) é controvertida. Para alguns, todos os prazos na Recuperação Judicial e na Falência seriam computados em dias úteis; para outros, todos os prazos seriam considerados em dias corridos; para outra correte, alguns prazos seriam em dias corridos, e outros em dias úteis - a depender da natureza do prazo em questão. Após muita divergência nas varas de origem e tribunais intermediários, a jurisprudência do STJ fixou-se no seguinte sentido (grifos nossos): "(...) diante do exame sistemático dos mecanismos engendrados pela Lei de Recuperação e Falência, os prazos de 180 dias de suspensão das ações executivas em face do devedor (art. 6, § 4°) e de 60 dias para a apresentação do plano de recuperação judicial (art. 53, caput) deverão ser contados de forma contínua. (STJ, REsp 1699528/MG, Rel. Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, QUARTA TURMA, julgado em 10/04/2018, DJe 13/06/2018)". Ou seja, os prazos específicos da lei (como aqueles para a suspensão das ações executivas7 e para a apresentação de objeção ao plano de recuperação judicial) eram contados em dias corridos, ao passo que os prazos tipicamente processuais (como os prazos recursais) eram contados em dias úteis. Ainda que vez ou outra algum magistrado ou Câmara de Tribunal aplicasse regra distinta, a matéria estava razoavelmente pacificada. Mas, frise-se, estava. Pois o cenário mudou... A reforma da lei 14.112/20: dispositivo lacônico Com a reforma na lei recuperacional e falimentar, e já sendo conhecida a controvérsia que se travou sobre o tema, esperava-se que o legislador esclarecesse acerca da contagem dos prazos, para evitar algumas divergências que ainda existiam, como exposto no tópico anterior. E a lei assim fez. Mas - de forma surpreendente - de maneira incompleta e que trouxe MAIS dúvidas, ao invés de DIMINUIR as polêmicas. Vejamos o texto legal (grifos nossos): Art. 189. Aplica-se, no que couber, aos procedimentos previstos nesta Lei, o disposto na Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), desde que não seja incompatível com os princípios desta Lei. § 1º Para os fins do disposto nesta Lei: I - todos os prazos nela previstos ou que dela decorram serão contados em dias corridos; Teria o legislador tentado regular, na lei, exatamente o que o STJ decidiu? Prazos típicos da recuperação judicial e falência de forma corrida e prazos processuais (especialmente os recursais) em dias úteis? Talvez. A redação, com a devida vênia, é confusa. Será que a contagem de prazos do CPC (em dias úteis) é incompatível com os "princípios" da lei recuperacional? Será que os recursos interpostos das decisões proferidas com base na lei 11.101/05 "dela decorrem" (contagem em dias corridos) - especialmente após ser inserida pela mesma lei 14.112/2020 a previsão do art. 189, §1º, II, segundo a qual "as decisões proferidas nos processos a que se refere esta Lei serão passíveis de agravo de instrumento8, exceto nas hipóteses em que esta Lei previr de forma diversa"? Essas são duas das principais dúvidas que decorrem da interpretação do novo sistema. E, a partir daí, surgem ao menos 3 correntes9 relativas à forma de contagem de prazo no âmbito das recuperações judiciais e falências, a saber: a) TODOS os prazos são contados em dias corridos10, pois, pela "principiologia de celeridade" da lei especial11 e considerando que todas as decisões proferidas no âmbito de uma RJ e falência "decorrem da própria lei11.101", há um microssistema especial que afasta, por completo, a aplicação do CPC; b) os prazos de DIREITO MATERIAL, previstos na lei 11.10112, seriam contados em dias corridos, ao passo que os prazos PROCESSUAIS13 seriam contados em dias úteis, com base no CPC - exatamente como a jurisprudência do STJ acima indicada; c) os prazos de direito material seriam contados em dias corridos; mas, quanto a atos processuais expressamente MENCIONADOS na lei 11.10114, o prazo seria em dias corridos, ao passo que em relação a recursos e manifestações NÃO MENCIONADOS NA LEI ESPECÍFICA15, o prazo seria em dias úteis. Em nosso entender, a corrente "c" é, sem dúvidas, a menos adequada, pois traz um sistema altamente complexo (o que desestimula sua aplicação, sob uma interpretação finalística), dá margem para muitos debates secundários e não encontra, em verdade, base na legislação. Logo, deve ser rechaçada. A corrente mais técnica, que aplica as diversas legislações de forma harmônica, é a "b" - inclusive por ter sido a que prevaleceu no STJ antes da reforma. Mas o ideal teria sido (i) o legislador expressamente adotá-la (e, como visto, não nos parece clara essa escolha) e (ii) identificar o rol de situações em que o prazo seria em dias corridos16. Ainda que em nosso entender a corrente "b" seja a correta, não nos surpreenderá se o STJ vier a pacificar pela tese "a", simplesmente desconsiderando a aplicação do CPC17, com base na principiologia da lei recuperacional. Contudo, não nos parece a posição mais correta pois, ainda que o art. 189-A da lei 11.101/2005 preveja a preferência dos processos de RJ e falência, o próprio CPC também prevê a celeridade como princípio18 e leis especiais que trazem a prioridade de tramitação (como o mandado de segurança19) não acarretam a contagem dos prazos em dias corridos. Até que haja a definição pelo STJ, o recomendável é verificar como cada juiz ou Câmara, no caso concreto, está realizando a contagem de prazo. Por força do princípio da cooperação (CPC, art. 6º), em verdade cada magistrado deveria, no início do procedimento, esclarecer a forma que são contados os prazos. Na maior parte das vezes, contudo, isso não ocorre. Em isso não ocorrendo, exatamente com base no mesmo princípio, cabe ao advogado provocar o juízo (por exemplo, via embargos de declaração, apontando omissão), para que se esclareça essa relevante questão procedimental. É certo que, diante dessa indefinição, a cautela e conservadorismo no prazo devem pautar a atuação do profissional. Nada obstante, com base nos princípios da cooperação, confiança, segurança jurídica e devido processo legal, eventual intempestividade pode e deve ser afastada. Afinal, os mesmos valores que informam a aplicação do princípio da fungibilidade nos recursos (dúvida objetiva e ausência de erro grosseiro) estão aqui presentes. Até que o STJ, finalmente, venha a pacificar a questão.  Conclusão Diante do que se expôs neste breve artigo, é possível concluir que: a) O art. 189, § 1º, I da lei 11.101/05, com a alteração da lei 14.112/20, tem redação insuficiente para esclarecer com segurança como se dá a contagem dos prazos no âmbito das recuperações judiciais e falências. b) A melhor interpretação é que os prazos materiais (previstos na lei 11.101/05) sejam contados em dias corridos, ao passo que os prazos processuais (como recursos, ainda que previstos especificamente na L. 11.101/05) sejam contados em dias úteis - em linha com o já decidido pelo STJ antes da recente alteração legislativa. c) Contudo, não será surpreendente se, com lei14.112/20, o STJ pacificar que todos os prazos em tais procedimentos são contados em dias corridos. d) Até que haja a definição da jurisprudência, por cautela e para evitar perda de prazo, o melhor é contar os prazos em dias corridos - salvo se houver decisão expressa, nos autos, definindo que a contagem dos prazos se dá de outra maneira (o que pode, inclusive, ser provocado pelas partes - recuperanda, credores, AJ ou MP). e) Caso não haja nos autos expressa menção à contagem em dias corridos, eventual intempestividade pode ser afastada, com base na principiologia do CPC. __________ 1 De forma mais ampla em artigos na internet (com destaque para 1/ 2 e, à luz da pandemia, clique aqui) e, com profundidade, nos Comentários ao CPC 2015, ora em sua 4ª edição (Gen, 2021). 2 Art. 798, CPP 3 Art. 775, CLT 4 Lei 9.099, art. 12-A, com a redação da lei 13.728/18). 5 Art. 152, § 2º do ECA, incluído pela L. 13.509/17). 6 Apesar de aparentemente simples, a tarefa de definir o que é um prazo processual tem complexidades. A respeito: ROQUE, Andre et alii, Comentários ao CPC/2015, Gen, 4ª. Ed, 2021, p. 329. 7 Acerca da contagem dos 180 dias do stay period ser em dias corridos. 8 Antes da alteração legislativa, o tema já estava pacificado nesse sentido, conforme exposto no seguinte texto. 9 Nesse sentido, a posição do colega desta coluna, Prof. Daniel Carnio Costa, exposta em podcast. 10 Como o prazo de impugnação perante o juiz e todos os recursos. 11 O art. 189-A destaca que os processos recuperacionais terão "prioridade sobre todos os atos judiciais". 12 Como o prazo do stay period e o prazo de divergência e habilitação perante o AJ. 13 Como os prazos recursais. 14 A lei menciona, por exemplo, agravo e apelação em algumas oportunidades (arts. 17; 58-A, p.u.; 59, § 2º; 90; 100; 135, p.u.; 154, § 6º; 156, p.u.; 159, § 5º; 164, § 7º; 167-J, § 4º e 189, § 1º, II). 15 Caso dos embargos de declaração, por exemplo. 16 Vide rodapés 10 e 12, com identificação de alguns prazos em dias úteis e corridos. 17 O STJ tem sido pródigo em não aplicar dispositivos do CPC. Nesse sentido, cf. a seguinte coluna. 18 CPC, art. 4º, que positiva "o direito de obter em prazo razoável a solução integral do mérito, incluída a atividade satisfativa". 19 A L. 12.016/2019 assim prevê: "Art. 20.  Os processos de mandado de segurança e os respectivos recursos terão prioridade sobre todos os atos judiciais, salvo habeas corpus".
Recentemente, a lei 14.112/2020, modificando a legislação falimentar, tentou pacificar um tema objeto de intensa polêmica: a renúncia de crédito ou perdão de dívidas no âmbito das recuperações judiciais (muito conhecido pela expressão haircut), assunto este que gera implicações e divergências tanto no meio jurídico (tributário) quanto no meio contábil. Na redação aprovada originalmente, o art. 50-A da lei 11.101/05 passaria a ter a seguinte redação:  Art. 50-A. Nas hipóteses de renegociação de dívidas de pessoa jurídica no âmbito de processo de recuperação judicial, estejam as dívidas sujeitas ou não a esta, e do reconhecimento de seus efeitos nas demonstrações financeiras das sociedades, deverão ser observadas as seguintes disposições: I - a receita obtida pelo devedor não será computada na apuração da base de cálculo da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS) e para o Programa de Formação do Patrimônio do Servidor Público (Pasep) e da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (Cofins); II - o ganho obtido pelo devedor com a redução da dívida não se sujeitará ao limite percentual de que tratam os arts. 42 e 58 da lei 8.981, de 20 de janeiro de 1995, na apuração do imposto sobre a renda e da CSLL; e III - as despesas correspondentes às obrigações assumidas no plano de recuperação judicial serão consideradas dedutíveis na determinação do lucro real e da base de cálculo da CSLL, desde que não tenham sido objeto de dedução anterior. Parágrafo único. O disposto no caput deste artigo não se aplica à hipótese de dívida com: I - pessoa jurídica que seja controladora, controlada, coligada ou interligada; ou II - pessoa física que seja acionista controladora, sócia, titular ou administradora da pessoa jurídica devedora.  No entanto, o dispositivo supracitado foi vetado pelo Presidente da República (Veto nº 57/2020, Mensagem nº 752/2020), sob o seguinte fundamento.  Razões do veto Os dispositivos propostos concedem benefícios tributários para hipóteses de renegociação de dívidas de pessoa jurídica no âmbito de processo de recuperação judicial, estejam as dívidas sujeitas ou não a esta, e do reconhecimento de seus efeitos nas demonstrações financeiras das sociedades, nos termos das disposições especificadas no próprio projeto. Entretanto, e embora se reconheça a boa intenção do legislador, tais medidas ofendem o princípio da isonomia tributária, acarretam renúncia de receita, sem o cancelamento equivalente de outra despesa obrigatória e sem que esteja acompanhada de estimativa do seu impacto orçamentário e financeiro, o que viola o art. 113 da ADCT, e o art. 14 da Lei de Responsabilidade Fiscal. Para tratar desta matéria, conquanto sem exauri-la, separemos o raciocínio em algumas partes: (1) a polêmica sobre a natureza jurídica e contábil do perdão da dívida e suas incidências tributárias; (2) as assimetrias tributárias envolvidas na questão; (3) a avaliação da qualidade da tributação em tais circunstâncias. Natureza jurídica e contábil do perdão da dívida A primeira grande discussão sobre o assunto consiste em saber qual a natureza jurídica da renúncia total ou parcial ao crédito por parte do respectivo credor. Sobre isso, o mundo contábil e o mundo jurídico parecem se digladiar permanentemente. Para iniciar a explicação, comecemos com um exemplo numérico simples e valores simbólicos: imaginemos uma sociedade empresária com o seguinte balanço patrimonial: Ativo Valores em R$ Passivo e Patrimônio Líquido Valores em R$ Circulante   Circulante   Caixa 100,00 Fornecedores 700,00 Estoques 250,00 Empréstimos 2.000,00 Não circulante   Patrimônio Líquido   Imobilizado 1.000,00 Capital 100,00 Investimentos 500,00 Lucros e prejuízos acumulados (950,00) Total do ativo 1.850,00 Total do passivo e PL 1.850,00 Imaginemos agora que a sociedade supracitada, em processo de recuperação judicial, obtenha a aceitação de seus fornecedores e credores de empréstimos em perdoar 40% de seu passivo total de R$ 2.700,00, totalizando a renúncia o valor de R$ 1.080,00 (= R$ 2.700,00 x 40%). O passivo passaria a ser R$ 2.700,00 - R$ 1.080,00 = R$ 1.620,00. Como restará seu balanço agora? Vamos fazer um pequeno esboço, passo a passo. Pelo lançamento (a débito) de redução do passivo, teríamos um balanço (incompleto por não termos ainda lançado a contrapartida a crédito) da seguinte forma: Ativo Valores em R$ Passivo e Patrimônio Líquido Valores em R$ Circulante   Circulante   Caixa 100,00 Fornecedores 420,00 Estoques 250,00 Empréstimos 1.200,00 Não circulante   Patrimônio Líquido   Imobilizado 1.000,00 Capital 100,00 Investimentos 500,00 Lucros e prejuízos acumulados (950,00) Total do ativo 1.850,00 Total do passivo e PL 770,00 (??!) Não é preciso muito esforço para verificar que nosso balanço estaria ainda "desbalanceado", ou seja, sem identidade de totais em seus lados. Mas como igualaríamos esses dois lados? Em outras palavras: qual seria o lançamento a crédito para contrabalançar a redução do passivo derivada do perdão de dívida? A resposta contábil para essa questão é o reconhecimento de uma receita. O meio jurídico questiona justamente essa última parte, com uma indagação similar à seguinte: como reconhecer receita se não houve acréscimo de patrimônio e se não houve ingresso ou disponibilidade de recursos ao devedor??!! Vamos responder por partes: Primeiramente, devemos consignar que receitas não derivam somente de aumentos de ativo. Ao contrário, elas podem se originar também de eliminação de passivos. Com efeito, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC), em sua estrutura conceitual (CPC 00) define receitas da seguinte forma (grifos nossos): Receitas são aumentos nos ativos, ou reduções nos passivos, que resultam em aumentos no patrimônio líquido, exceto aqueles referentes a contribuições de detentores de direitos sobre o patrimônio. Essa situação não é muito difícil de compreender. De modo não técnico, podemos dizer que, como regra geral, da mesma forma que uma despesa resulta em que a entidade empresarial fique "mais pobre", uma receita a deixa "mais rica". Mas de quais maneiras ela ficaria mais rica? Simples: quando aumentasse seus bens (ativos) ou quando reduzisse suas dívidas (passivos). O leitor pode pensar em um exemplo similar como pessoa física (devedora): se, por negociação com seu credor, deixasse de pagar uma dívida anteriormente contraída, ficaria financeiramente em melhor situação, ou seja, "enriqueceria" pelo montante que deixou de estar obrigado a pagar. Isso não é novidade em contabilidade ou no direito tributário, nem essa situação se resume às recuperações judiciais. Inúmeros são os casos de reconhecimento de receita (com implicações tributárias), dentre os quais podemos citar delegações contratuais para pagamento de impostos prediais em contratos de locação, prescrição de dívidas, renúncia de contribuição condominial, entre outros. Completemos, agora, nosso balanço. Lançaríamos no resultado, a crédito, uma receita, que seria exatamente do valor da renúncia ou eliminação do passivo. Supondo que não tivéssemos outras despesas (despesas = 0), apenas para simplificar o exemplo, teríamos uma demonstração de resultado simplificada nos seguintes termos: Transportando o lucro do exercício para a conta de lucros e prejuízos acumulados e somando algebricamente o valor do lucro do exercício, R$ 1.080,00, ao saldo de prejuízo anteriormente existente ali (R$ 950,00), teríamos um saldo final positivo (lucro acumulado) de R$ 130,00. Agora sim nosso balanço estaria correto, da seguinte forma: Ativo Valores em R$ Passivo e Patrimônio Líquido Valores em R$ Circulante   Circulante   Caixa 100,00 Fornecedores 420,00 Estoques 250,00 Empréstimos 1.200,00 Não circulante   Patrimônio Líquido   Imobilizado 1.000,00 Capital 100,00 Investimentos 500,00 Lucros e prejuízos acumulados 130,00 Total do ativo 1.850,00 Total do passivo e PL 1.850,00 Fizemos essa digressão numérica simplificada para evidenciar que não há como fugir do reconhecimento de uma receita no caso concreto. Cuida-se de um fenômeno econômico, contábil e matemático. Verifique-se diante do exemplo anterior que o não reconhecimento de uma receita nos impediria até mesmo de fechar o balanço com fidelidade aos eventos econômicos ocorridos. Note-se, porém, que essa conclusão não pacifica a discussão sobre saber se o reconhecimento de receita no caso concreto resulta em incidência tributária. Nem toda receita é tributável ou preenche os requisitos para ser considerada renda. Nessa linha, há bons argumentos jurídicos que pugnam pela não incidência tributária na hipótese, por não haver disponibilidade da renda para o devedor, não existir caráter de contraprestação, entre outros fundamentos. Cabe, entretanto, admitindo cuidar-se de uma receita, verificar se eventual incidência tributária sobre o haircut seria de boa qualidade econômica. Para isso, verificaremos a seguir as implicações da exigência de tributos no caso. Assimetrias da tributação do haircut no Brasil Seguindo as conclusões anteriores, partiremos do princípio de que o perdão da dívida implica eliminação de passivo cuja contrapartida é o reconhecimento de uma receita. Esse é o posicionamento clássico do Fisco brasileiro, que já se pronunciou sobre o assunto diversas vezes, uma delas na Solução de Consulta nº 65, de 2019, da qual destacamos o seguinte trecho: A natureza da receita decorrente do perdão de dívidas dependerá da natureza da dívida que a gerou. Na hipótese de empréstimos ou financiamentos, e.g., ter-se-á uma receita financeira - como esclarece o Ato Declaratório SRF nº 85, de 27 de outubro de 1999, ao dispor sobre "a renegociação de dívidas do crédito rural nos termos da Lei nº 9.138, de 29 de novembro de 1995" (incidência prevista no art. 397 do Decreto nº 9.580, de 22 de novembro de 2018 - Regulamento de Imposto de Renda - RIR/2018). Tratando-se de dívidas perante fornecedores de mercadorias, estar-se-á diante de uma recuperação de custos, receita especificada no art. 441, inciso II, do RIR/2018. No caso de redução de multa e juros relativos a tributos, enquadra-se a receita nesse mesmo dispositivo do RIR/2018, como recuperação ou devolução de custo ou despesa. No entanto, se o perdão da dívida é receita para o devedor, deveria, pelas mesmas razões, ser considerado despesa (dedutível) para o credor. Este último, ao conceder remissão total ou parcial da dívida incorre em uma perda (diminuição de seu ativo/crédito). No entanto, nem mesmo nos casos em que o credor é tributado no regime de lucro real se tem permitido, como regra, a dedutibilidade dessa despesa, notadamente quando não há procedimentos prévios de cobrança. Em outras palavras: usualmente, se o credor reconheceu a despesa em sua contabilidade, deverá excluí-la quando da apuração de seus impostos sobre o lucro (IR/CSLL). E o fundamento para tanto é que, se há remissão total ou parcial de dívida antes de se esgotarem todos os meios e possibilidades de cobrança, essa renúncia ao crédito não se considera necessária para o prosseguimento do negócio, constituindo-se em mera liberalidade do credor. Nesse sentido, a doutrina tributária é praticamente pacífica, podendo-se encontrar fundamentos também em julgados do CARF: Número do Processo 18471.000201/2003-87 Data da Sessão 08/12/2008 Relator(a) Leonardo Lobo de Almeida Nº Acórdão 197-00.082  Imposto sobre a Renda de Pessoa Jurídica - IRPJ Exercício: 2000 [...] IRPJ - FALÊNCIA DO DEVEDOR - DEDUTIBILIDADE DA DESPESA - Nos termos do art. 90, § 4°, da Lei 9.430/96, são dedutíveis as perdas no recebimento de créditos decorrentes das atividades da pessoa jurídica em caso de falência decretada do devedor, desde que existentes procedimentos judiciais visando o recebimento do crédito. IRPJ - PERDÃO DE DÍVIDA - INDEDUTIBILIDADE COMO DESPESA - PROVA - Cabe ao contribuinte produzir prova de suas alegações. Não estando demonstrada qualquer tentativa de cobrança da dívida existente, caracteriza-se o abatimento concedido ao devedor como perdão, não autorização a sua dedução como despesa na apuração do lucro real. CSLL - TRIBUTAÇÃO REFLEXA - Tendo em vista a íntima relação de causa e efeito que possuem com o lançamento principal, a decisão proferida em relação ao IRPJ deve ser estendida à CSLL. Esses critérios de exação resultam em que o Fisco, na maioria dos casos, será credor de tributos sobre a receita (reconhecida pelo devedor), mas não permitirá que o credor pague menos tributos sobre as despesas que reconhecer em sua contabilidade, uma vez que, nem mesmo na sistemática do lucro real essa despesa será dedutível. Por outras palavras, o Fisco ganha de ambos os lados: tributa a receita (do devedor) e não permite a dedução de despesas (do credor). Isso resulta em uma tributação altamente assimétrica, benéfica apenas ao Fisco, mas desigual com as partes envolvidas nos contratos sujeitos à recuperação, ao mesmo tempo que desincentiva a reestruturação do devedor em dificuldade econômico-financeira. Caberia, portanto, mudança nesse panorama tributário para que se alcançasse maior igualdade e justiça fiscal. Avaliando a eficiência econômica da tributação do haircut Podemos dizer que uma tributação é economicamente eficiente quando alguns princípios da ciência econômica são atendidos por dada espécie de tributação. O primeiro princípio basilar a ser analisado é o princípio da neutralidade tributária, que, em suma, preconiza que uma tributação deve causar o mínimo possível de distorção na alocação de recursos do setor privado. Um tributo, por exemplo, não deve ser decisivo na vontade das partes em formalizar ou extinguir um contrato ou de realizar uma troca mutuamente vantajosa. Em suma: um tributo neutro é aquele que não modifica o comportamento dos agentes econômicos. É bem verdade que quase nenhuma espécie tributária é completamente neutra1, mas há de se analisar, a cada caso concreto, o nível de distorção causado pelo tributo, para se concluir por sua aceitabilidade ou não. A tributação sobre o haircut é extremamente distorciva. Com efeito, tributar a receita reconhecida por força da eliminação de passivos do devedor em recuperação atinge este último justamente no momento em que se encontra em crise e dispõe de menos recursos para cumprir suas obrigações tributárias. Cria nova obrigação, novo passivo. Em última análise, essa exação influencia sobremaneira a capacidade de o devedor se recuperar, distorcendo a capacidade de o devedor apresentar um plano viável para sua recuperação e até mesmo o modo que um plano de recuperação será apresentado. Um breve exemplo ilustrará a questão: imaginemos que o devedor em recuperação tenha um passivo de R$ 10 milhões. Para se recuperar, precisaria obter de seus credores o perdão de 60% do débito (= R$ 6 milhões), restando com um passivo de R$ 4 milhões, valor de dívidas além do qual seu negócio seria inviável economicamente. Vamos admitir ainda que o montante máximo que os credores admitiriam renunciar, de modo a que tivessem futura vantagem na manutenção da atividade do devedor e na continuidade de suas relações econômico-contratuais seria também de R$ 6 milhões. Em não havendo tributação, as partes chegariam a um acordo mutuamente vantajoso. No entanto, com uma tributação sobre a renúncia de crédito (digamos em torno de 35%,2 sem contar outras despesas3), o passivo do devedor, num cálculo simplificado, seria o seguinte:   Efeito da tributação sobre o haircut (exemplo teórico com aproximadamente 35% sobre a receita, sem consideração de outras despesas) Valores em R$ Receita (renúncia) 6.000.000,00 Outras despesas 0,00 Tributos sobre o haircut (2.100.000,00) Passivo do devedor após a renúncia (valor do passivo remanescente + tributos) 6.100.000,00 Não é preciso muita análise para evidenciar que, incidente a tributação nos termos supracitados, o devedor não mais conseguirá cumprir suas obrigações, nem os credores aceitarão renunciar a mais de 60% de seu crédito (nas condições de nosso exemplo). Em conclusão, não haverá recuperação judicial em virtude da tributação, que acabou por impedir que as partes chegassem a um acordo mutuamente benéfico, distorcendo a alocação de recursos na economia. A perda de eficiência para a sociedade é enorme: impõe-se a morte (ou a redução desnecessária) de uma unidade produtiva empresarial, em detrimento dos empregos, dos consumidores e da própria arrecadação futura de tributos, mesmo quando as partes envolvidas chegariam a acordo por vontade recíproca. Economicamente, diz-se que a tributação impôs um peso morto (deadweight loss) pela perda de eficiência econômica provocada. A tributação sobre o haircut também não se adapta ao princípio da capacidade contributiva (ou da capacidade de pagar), que é princípio tanto jurídico quando econômico. Nesse sentido, bem o explicam Neves e Viceconti4: O princípio da capacidade de pagar estabelece que o sistema tributário é justo se cada cidadão contribui para o erário público na proporção de sua capacidade de pagamento. A consequência desse princípio é que pessoas que possuam idêntica capacidade de pagamento devem contribuir com o mesmo montante de tributo (a chamada equidade horizontal) e que pessoas com capacidade de pagamento distintas devem contribuir de forma também desigual no montante de tributos, de forma que as de maior capacidade contribuam mais (equidade vertical). Podemos notar que se o devedor não estiver em recuperação, mas em curso de atividade empresarial rentável e hígida, não haverá receitas a serem reconhecidas quando este toma crédito, gerando passivos/dívidas com normal e tempestiva liquidação. Já quando se encontra em crise, situação em que apresenta dificuldade para honrar seus passivos, tributa-se a melhor (ou mais comum) forma de que dispõe para retomar sua atividade: o equacionamento dos débitos com seus credores por meio de deságio de dívidas. Em outras palavras, a tributação do haircut faz exatamente o contrário do que o princípio da capacidade contributiva preconiza: não se tributa quando o devedor tem capacidade de pagar, mas se tributa quando dispõe de menos recursos para o pagamento. A perda de eficiência econômica nessas situações é patente. Não bastasse as ineficiências anteriormente apontadas, a tributação do haircut ainda tende a (ou assume o risco de) priorizar uma variável de estoque (exação presente, não contínua) em detrimento de uma variável de fluxo (exação futura e contínua). Expliquemos com um exemplo. Vamos imaginar o último exemplo supracitado, em que tributação, que arriscaria inviabilizar a atividade empresarial, ficaria no montante de R$ 2.100.000,00. Se realmente inviabilizasse a atividade empresarial, essa seria a última parcela devida ao Fisco, que receberia simplesmente seu estoque de crédito, exaurindo a fonte produtiva e os tributos futuros. Imaginemos, porém, que não houvesse a tributação do haircut. Com isso, o devedor conseguiria se recuperar e geraria um lucro anual de R$ 500 mil. Supondo uma alíquota total de 35% (como fizemos anteriormente), ele pagaria anualmente R$ 175 mil em tributos (desconsiderando outros tributos). Para fazer a comparação com a situação anterior, precisaríamos avaliar o valor presente do fluxo futuro de tributos, pois esses pagamentos ocorrerão indefinidamente ao longo do tempo. Pressupondo que a atividade empresarial do devedor não tenha limite no tempo (adotando as premissas da continuidade contábil) e usando como taxa algo compatível com a SELIC (aproximadamente em 4% a.a.), teríamos o valor presente do fluxo futuro de uma perpetuidade em R$ 175 mil / 4% = R$ 4.375.000,00. Podemos constatar que, no exemplo dado, a tributação do haircut causou prejuízo ao Fisco. Ele recebeu o valor de seu crédito de R$ 2.100.000,00, mas, ao inviabilizar a recuperação do devedor com a incidência tributária, renunciou a R$ 4.375.000,00. Usualmente, aliás, o fluxo futuro de tributos superará o estoque de créditos tributários que o Fisco tem a receber no presente, o que demonstra que, também por esse motivo, essa exação pode se mostrar bastante ineficiente na prática. Conclusão Por todos os argumentos aqui desenvolvidos, concluímos que: O perdão de dívidas (haircut) em recuperação judicial se constitui inegavelmente como receita, sob a perspectiva econômica e contábil, o que não suprime a divergência jurídica sobre se tratar ou não de base de cálculo para tributação; Se considerarmos tal remissão como receita tributável, a conclusão necessária é que ela apresenta inúmeras ineficiências: é assimétrica em relação a devedores e credores, viola a neutralidade tributária, cria distorções e perdas econômicas (deadweight loss), não atende ao princípio da capacidade contributiva e ainda incrementa o risco de serem priorizadas variáveis de estoque em detrimento de variáveis de fluxo; Por todos esses motivos, espera-se que o Congresso Nacional analise com sabedoria a questão, para derrubar o veto pelo Presidente da República (Veto nº 57/2020, Mensagem nº 752/2020) ao art. 50-A, incluído na lei 11.101/05 pela lei 14.112/2020. __________ 1 Na doutrina econômica, costuma-se apontar o tributo de montante fixo para todos os destinatários (lump sum), como a espécie que mais se aproxima da neutralidade. No entanto, suas falhas em termos de regressividade usualmente impedem sua adoção na prática. 2 Obviamente que essa alíquota é só exemplificativa e teórica. Há diversidade de tributação em cada regime, além de bases de cálculo distintas para cada tributo. 3 Note-se que se o devedor não tiver outras despesas incrementais e dedutíveis (no regime de lucro real) decorrentes diretamente da recuperação (além daquelas usuais derivadas de seu negócio), toda a receita derivada do perdão da dívida acarretará lucro tributável. No texto consideramos, por simplificação, uma tributação total das receitas/lucro, sem outras despesas, mas os impostos usualmente terão base de cálculo distinta. PIS e Cofins (além de outros tributos indiretos) incidem diretamente sobre a receita, enquanto IR e CSLL incidem sobre o lucro (real ou presumido), montante este que é diretamente influenciado pelo total de receitas reconhecidas. 4 Introdução à economia, 12ª edição, Saraiva, 362.
A falência é um instituto ainda muito estigmatizado na cultura jurídica brasileira. Há severa falta de objetividade para utilização do processo falimentar, o qual deveria funcionar como um rápido instrumento de liquidação de atividades empresariais malsucedidas, com a rápida alienação de seus ativos, sua pronta realocação em outras empresas e o pagamento dos credores na maior proporção possível, funcionando como importante recuperação de investimentos. Embora a lei 11.101/2005 tenha trazido uma modernização ao instituto e mesmo diante do amadurecimento do sistema de insolvência pelo profícuo trabalho jurisprudencial das Cortes brasileiras, um dos grandes problemas enfrentados, ainda hoje, está relacionado à venda dos bens do falido. A alienação de ativos arrecadados é ponto vital para a efetividade do processo falimentar. Importante que a alienação ocorra tão logo concluída a arrecadação dos bens, para a preservação de seu valor e, consequentemente, para permitir maior obtenção de recursos para pagamento dos credores. Entretanto, mesmo com sensível alteração do sistema de alienação de ativos proposto pela redação original da lei 11.101/2005, na prática o procedimento tem se mostrado burocrático, mormente por discussões estéreis sobre o valor de avaliação do bem provocadas, em muitos casos, por falidos ou sócios da falida que assumem uma postura nada cooperativa com o procedimento. Outro fator que impede o bom andamento dos trabalhos de venda é a consideração, equivocada, de possível espera na alienação para se aguardar melhores oportunidades de mercado, o que, na prática é de difícil ou impossível constatação, de modo a impedir a imediata realização dos bens para reversão de valores à massa falida. Isso porque alguns credores não possuem a devida compreensão da circunstância diferenciada de venda forçada de bens em processos judiciais, a qual não guarda similitude com as vendas de praxe do mercado comum. Neste ponto, houve sensível avanço do texto proposto pela lei 14.112/2020, no sentido de permitir a discussão de valores dos bens objeto de futura arrematação com a imposição de limites que evitam o abuso processual, sem qualquer comprometimento com o contraditório das partes envolvidas. Assim, o novo texto do art. 142 agora prevê: Art. 142. A alienação de bens se dará por: I - leilão eletrônico, presencial ou híbrido; II - processo competitivo organizado promovido por agente especializado e de reputação ilibada, cujo procedimento deverá ser detalhado em relatório anexo ao plano de realização do ativo ou plano de recuperação judicial, conforme o caso; III - qualquer outra modalidade, desde que aprovada nos termos desta Lei. § 1º A alienação de que trata o caput deste artigo: I - dar-se-á levando em conta o caráter forçado da venda e a conjuntura do mercado no momento da venda, mesmo que desfavorável; II - independe da consolidação do quadro geral de credores; III - poderá contar com serviços de terceiros como consultores, corretores e leiloeiros; IV - no caso de falência, deverá ocorrer no prazo máximo de cento e oitenta dias, a contar da data da lavratura do auto de arrecadação; V - não estará sujeita à aplicação do conceito de preço vil. § 2º No leilão eletrônico ou presencial, aplicam-se, no que couber, as regras do Código de Processo Civil. § 3º A alienação por leilão eletrônico, presencial ou híbrido dar-se-á: I - em primeira chamada, pelo valor mínimo de avaliação do bem; II - em segunda chamada, dentro de quinze dias, contados da primeira, por no mínimo cinquenta por cento do valor de avaliação; e III - em terceira chamada, dentro de quinze dias, contados da segunda, por qualquer preço. § 4º A alienação prevista nos incisos II e III do caput deste artigo, conforme disposições específicas desta Lei: I - será aprovada pela assembleia-geral de credores; ou II - decorrerá de disposição de plano de recuperação judicial aprovado; III - deverá ser aprovada pelo Juiz, levando em conta a manifestação do administrador judicial e do Comitê de Credores, se existente. § 5º Em qualquer modalidade de alienação, o Ministério Público e as Fazendas Públicas serão intimados por meio eletrônico, sob pena de nulidade. § 6º Todas as formas de alienação de bens realizadas de acordo com esta Lei serão consideradas, para todos os fins e efeitos, alienações judiciais. São sensíveis as mudanças no sistema atual. De proêmio temos a alteração das formas de alienação, não havendo mais a previsão das propostas fechadas ou do pregão, este último dificilmente verificado na prática, para a vinda de um procedimento inominado a ser organizado por profissional especializado de mercado e que deverá observar os requisitos do parágrafo 4º. Outro ponto louvável é a previsão do caráter forçado da venda, o que nem sempre é bem compreendido pelas partes. Muito bem ponderado o tema no agravo de autos nº 9064070-92.2008.8.26.0000 da relatoria do E. Desembargador Elliot Akel do Tribunal de Justiça de São Paulo, verbis: (...) De qualquer modo, assinale-se que em hipótese como a dos autos não há propriamente perícia avaliatória, em que devam ser observadas as regras processuais atinentes à produção de prova técnica, mas estimativa dos bens arrecadados, que poderá ser repetida quando provado erro ou dolo do avaliador ou no caso de se verificar, posteriormente, que houve considerável diminuição do valor dos bens. Nova avaliação poderá, ainda, ser admitida, se houver fundada dúvida sobre o valor atribuído ao bem. Como já decidido, "as avaliações judiciais são feitas para determinado fim (alienação de bens penhorados, em praça pública), que não coincide necessariamente com aqueles que levam os comerciantes a atuar no mercado, comprando e vendendo bens. Sempre existe uma diferença prejudicial ao executado. Vendendo-se as mesmas coisas no mercado, o resultado poderia ser melhor. Entretanto, o objeto da penhora é vendido em praça pública, em execução judicial, em condições diversas, nas quais os preços correntes no mercado nem sempre fornecem os parâmetros de valor aceitáveis no átrio do foro. Os compradores são outros e as regras são de um mercado específico. Não constitui isso nenhuma novidade" (Agravo de Instrumento nº 462 831/9, julg 12.11.90, 2ª Câmara, rel Juiz Senna (sic) Rebouças). (...) A venda forçada no ambiente do processo judicial é diversa da venda comum do bem em seu regular e específico mercado de comercialização. Desse modo, não corresponde à realidade a expectativa de venda de bens em processo de falência como se fosse uma venda regular de mercado. As circunstâncias são diversas e para uma melhor maximização dos ativos, é sempre melhor, sobretudo para perspectivas de recuperação de créditos pelos credores, que a venda seja realizada o quanto antes, tendo agora a lei previsto um prazo de 180 dias para ultimação das alienações contado a partir da lavratura do auto de arrecadação. Nesse particular, também contribui para otimização do procedimento a vedação de aplicação do conceito de preço vil e da aplicação subsidiária do Código de Processo Civil a fim de que a venda não seja obstada por uma discussão generalizada sobre a precificação de bens a qual é muitas vezes utilizada como expediente de procrastinação, na contramão dos objetivos da lei. E para que não se alegue prejuízo ao contraditório, andou bem a alteração legislativa em readequar a forma pela qual haverá impugnação ao preço do bem objeto de alienação, que deverá estar acompanhada de oferta firme de aquisição em valor superior ao estabelecido para a venda além de depósito de caução equivalente a dez por cento do valor ofertado. Por fim, na esteira de imposição de responsabilidade e acuidade no exercício do direito de ação, impôs a lei a caracterização de ato atentatório à dignidade da justiça para a arguição infundada de vício na alienação, cujo escopo é coibir discussões processuais estéreis, as quais somente servem para tumultuar o processo, sem qualquer utilidade prática em relação aos objetivos da falência. Enquanto não se firma uma jurisprudência sobre o abuso processual, a redução do espectro de discussão sobre determinados assuntos pode funcionar como importante instrumento para trazer objetividade à questões materiais e processuais, tal como, agora, consta do texto legal atinente à venda de bens em processos falimentares. Esperamos que essas medidas proporcionem maior racionalidade na tramitação do procedimento de alienação de ativos do falido, contribuindo com a celeridade e a recuperação dos créditos investidos na atividade malsucedida.
A lei 14.122/20 alterou a Lei de Falências e de Recuperação Judicial (lei 11.101/05), modificando vários institutos e introduzindo novos conceitos, tal como a insolvência transnacional, além de alterar a lei que trata do parcelamento de dívidas tributárias. Em relação à recuperação extrajudicial, a lei 14.122/20 aprimorou o instituto, tornando-o mais célere e eficiente, conforme veremos em seguida. A realidade tem demonstrado que credores e devedor procuram com frequência regularizar seus negócios extrajudicialmente. Esses acordos têm na informalidade, na rapidez e na discrição as suas principais vantagens, especialmente se comparados ao formalismo e à morosidade das lides forenses. A recuperação extrajudicial é uma alternativa prévia à recuperação judicial, pois pressupõe uma situação financeira e econômica compatível com uma renegociação parcial, envolvendo credores selecionados, aos quais o devedor propõe novas condições de pagamento. Nesse modelo da recuperação extrajudicial torna-se desnecessária a participação de todos os credores e a realização de assembleia geral para aprovar o plano1. Na recuperação extrajudicial, o devedor, para resolver problemas de liquidez, propõe a seus credores, na maioria dos casos, remissão parcial do débito ou dilação do prazo de pagamento. Esse procedimento - extremamente simples - tem por finalidade dar transparência e segurança às negociações, desde que seja garantido aos credores de mesma classe, tenham ou não aderido ao contrato, as mesmas condições de prorrogação de prazo de vencimento ou redução percentual do passivo.  Segurança jurídica Apesar de o legislador ter dado ampla liberdade para as partes sobre o conteúdo do acordo extrajudicial, há uma questão importantíssima que diz respeito à ineficácia dos atos elencados no art. 129 da lei 11.101/05. Note-se que os incisos II e III abrigam hipóteses que podem ser utilizadas nos planos de recuperação extrajudicial, como o pagamento de dívidas de forma não prevista pelo contrato ou a constituição de direito real de garantia. A lei 14.112/20 alterou a redação do artigo 131, para afastar a ação revocatória também dos acordos celebrados nos planos de recuperação extrajudicial, pois o texto anterior só impedia a declaração de ineficácia no plano de recuperação judicial. Agora, há segurança jurídica para que o acordo extrajudicial possa tratar de dação em pagamento, constituição de direito real em garantia, ou pagamento de dívidas vencidas por qualquer forma distinta da prevista no contrato, cujos atos estarão protegidos de eventual declaração de ineficácia em relação à massa falida.  Possibilidade de inclusão do credor trabalhista O parágrafo 1º. do artigo 161 da lei 11.101/2005 vedava expressamente a inclusão do crédito trabalhista no plano de recuperação extrajudicial. A lei 14.112/20 modificou essa norma, permitindo a inclusão do crédito trabalhista e por acidente de trabalho na recuperação extrajudicial, desde que haja negociação coletiva com o sindicato da respectiva categoria profissional. Alteração na remuneração dos trabalhadores é possível, desde que prevista em convenção ou acordo coletivo, na forma do disposto no artigo 7, VI da Constituição da República. A suspensão das ações A proteção legal do stay period dada pela lei é ampla no caso de recuperação judicial, pois o deferimento de seu processamento suspende a prescrição e todas as execuções em face do devedor (art. 6º). A questão que se punha anteriormente à edição da lei 14.112/20 dizia respeito se, em relação aos credores sujeitos à recuperação extrajudicial, ocorreria ou não a suspensão de suas ações individuais. Embora fosse razoável entender que os credores que não subscreveram o pedido inicial de recuperação extrajudicial, mas que estivessem obrigados por força do art. 163, § 1º, também teriam suspensas suas ações, esse entendimento não era pacífico na doutrina e na jurisprudência.  Essa polêmica ficou prejudicada, pois a lei 14.112/20 inseriu § 8º ao art. 163, ao determinar expressamente a aplicação à recuperação extrajudicial, desde o respectivo pedido, da suspensão de que trata o art. 6º, exclusivamente em relação às espécies de crédito por ele abrangidas, e afirma que somente deverá ser ratificada pelo juiz se comprovado o quórum inicial exigido pelo § 7º do mesmo artigo (um terço de todos os créditos de cada espécie). A proteção do stay period na recuperação extrajudicial é coerente com o sistema, pois o que depende da homologação são os efeitos do plano, que não se confunde com a suspensão das ações, que inclusive é um requisito essencial para que o plano possa ser analisado e homologado. Caso não houvesse a suspensão das ações, no interregno entre a ajuizamento da recuperação extrajudicial e a decisão homologatória, credores sujeitos ao plano poderiam excutir bens do devedor frustrando a eficácia da recuperação, à qual deveriam estar sujeitos. Simplificação do procedimento Ajuizado o pedido de recuperação extrajudicial, o juiz determinará a publicação de edital eletrônico, convocando os credores para, querendo, impugnarem o plano (art. 164, com redação conferida pela lei 14.112/20). A redação original da lei 11.101 exigia a publicação do edital no diário oficial e em jornal de grande circulação nacional ou das localidades da sede e das filiais do devedor. A necessidade de publicar na sede e nas filiais do devedor representava um excesso de formalismo, que felizmente foi suprimida com a reforma da lei falimentar. Agora, basta a publicação de edital eletrônico para convocar credores para a apresentação de suas impugnações ao plano.   Sugestões para novas alterações legislativas Finalmente, cumpre frisar que a reforma, embora positiva, poderia ter avançado em outras questões como, por exemplo, a legitimidade para impugnar o plano e seus efeitos em relação aos credores, temas que ainda estão longe de se tornar pacíficos na doutrina e na jurisprudência. Por exemplo, não faz sentido estender a qualquer credor a legitimidade para impugnar o plano, principalmente se a finalidade do acordo for a prevista no art. 162. Qual o interesse jurídico dos credores não abrangidos pelo plano em impugná-lo, se seus direitos não serão modificados? Evidentemente o dispositivo deve ser aplicado com cautela, sob pena de inviabilizar o próprio instituto da recuperação extrajudicial, pois não teria sentido permitir, por exemplo, que credores por contratos de arrendamento mercantil ou alienação fiduciária em garantia pudessem impugnar um plano que não os atinge. Quando a impugnação se limitar ao quantum apresentado pelo devedor, ainda que procedente, o juiz só deixará de homologar o plano de recuperação extrajudicial se esse fato novo descaracterizar o montante de metade dos créditos sujeitos à recuperação extrajudicial. É evidente que o credor tem direito de exigir que o seu crédito seja incluído no plano pelo valor correto, apurado pelo juiz. Nesse caso excepcional, seria admissível o processamento da impugnação em apartado para não prejudicar a homologação do plano, desde que, releve-se a insistência, não houvesse dúvida em relação à comprovação do percentual de metade dos créditos incluídos no plano. Conclusão Em síntese, a lei 14.112/20 trouxe inovações positivas para o regramento da recuperação extrajudicial. O art. 131 passa a ter nova redação para que, também na recuperação extrajudicial, ao lado da judicial, sejam eficazes e não atingidos pela revocatória os atos elencados nos incisos I a III e VI do art. 129. A nova lei altera o parágrafo 1º do art. 163, para permitir a sujeição de créditos de natureza trabalhista e acidentária na recuperação extrajudicial, desde que haja negociação coletiva com o sindicato da respectiva categoria profissional. Além disso, reduz o quórum de aprovação do art. 163 para metade dos créditos de cada classe, em vez do quórum anterior de 3/5. Há inclusão de novos parágrafos ao art. 163. O § 7º estabelece que o pedido poderá ser apresentado com comprovação da anuência de credores que representem pelo menos 1/3 de todos os créditos de cada espécie por ele abrangidos e com o compromisso de, no prazo improrrogável de 90 dias, contado da data do pedido, atingir o quórum referido no caput (metade dos créditos de cada classe), por meio de adesão expressa, facultada a conversão do procedimento em recuperação judicial a pedido do devedor. O novel § 8º afirma que se aplica à recuperação extrajudicial, desde o respectivo pedido, a suspensão de que trata o art. 6º, exclusivamente em relação às espécies de crédito por ele abrangidas, e somente deverá ser ratificada pelo juiz se comprovado o quórum inicial exigido pelo § 7º. Por fim, a lei 14.112/20 confere uma nova redação ao art. 164, para determinar a publicação do edital de convocação dos credores em meio eletrônico, substituindo a publicação em órgão oficial e em jornal de grande circulação. Tal medida almeja reduzir os custos da recuperação extrajudicial. No geral, as alterações realizadas pela lei 14.112/20, embora tímidas, são positivas e cumprem o objetivo de atualizar a disciplina da recuperação extrajudicial com vistas a torná-la mais eficiente, sobretudo com a expressa previsão de aplicação da suspensão do art. 6º, o que traz maior segurança jurídica, e com a redução do quórum para sua aprovação. __________ 1 "Art. 45-A. As deliberações da assembleia-geral de credores previstas nesta Lei poderão ser substituídas pela comprovação da adesão de credores que representem mais da metade do valor dos créditos sujeitos à recuperação judicial, observadas as exceções previstas nesta lei".
Desde a vigência do CPC/1973 (é isso, leitor, não estou falando do CPC/2015, mas sim do Código anterior), o agravo de instrumento é objeto de debates e propostas de reformulação. Na versão original do Código anterior, o agravo era interposto em 1º grau. E então, o efeito suspensivo (raro e esporádico), vinha por meio do mandado de segurança. Isso gerava indevida duplicidade de impugnações. Assim, menos de 2 décadas depois da vigência do Código de 1973, veio uma grande reforma: o agravo de instrumento seria interposto diretamente no Tribunal (não mais em 1º grau) e seria possível, em casos excepcionais, a concessão de efeito suspensivo ao agravo. Isso se deu quando da lei 9.139/1995. A explosão do número de agravo de instrumentos fez com que logo fosse pensada nova solução legislativa: haveria a necessidade de se limitar o número de agravos, sob pena de inviabilizar o funcionamento dos tribunais intermediários. Portanto, poucos anos depois da "reforma do agravo", veio a "reforma da reforma": a lei 10.352/2001. Por meio dessa nova alteração no CPC/1973, o relator tinha a faculdade converter o agravo de instrumento em retido, se o recurso não tratasse de uma situação de urgência. Porém, dessa decisão monocrática de conversão, era cabível agravo regimental / interno - de modo que o problema prosseguiu, pois houve inúmeros agravos da decisão de conversão... Assim, mais alguns anos e veio a "reforma da reforma da reforma". Com a lei 11.187/2005, o agravo de instrumento somente seria cabível para hipótese de urgência; a conversão do AI em retido passou a ser cogente (não mais uma opção) e a decisão monocrática de conversão seria irrecorrível. E então foi editado o CPC/2015. Não se adotou nenhum dos quatro modelos do CPC/1973, mas sim optou-se por um rol taxativo do cabimento do agravo de instrumento, nas hipóteses constantes do art. 1.015 do CPC/2015. Esse modelo de rol taxativo, curiosamente, era o modelo que existia no CPC/1939... A doutrina processual, desde o início, já vislumbrou que essa solução não iria funcionar. Afinal, se não funcionou em 1939 (tanto que não se repetiu em 1973), por que funcionaria em 2015? Obviamente, não funcionou. E, como estamos agora? Em verdade, o problema ainda não está solucionado, sendo que o ideal seria uma reforma legislativa para alterar o cabimento do recurso de agravo1. Mas o foco deste artigo é o seguinte: diante do rol claramente insuficiente, o que fazer? E a análise se dá sob dois aspectos. Vejamos, de forma separada. 1) ESQUECIMENTO DO LEGISLADOR QUANTO A DETERMINADAS MATÉRIAS E INTERPRETAÇÃO AMPLIATIVA DO CABIMENTO DO AGRAVO DE INSTRUMENTO: O EXEMPLO DA RJ E FALÊNCIA Há sempre o risco ao se elaborar um rol taxativo. Seja pela evolução da sociedade (tornando o rol insuficiente), seja pelo efetivo esquecimento de tratar de determinadas situações em que necessária a inclusão no rol (de modo que o rol é insuficiente desde seu nascedouro). Considerando que o legislador é humano e, portanto, falho, não é de se surpreender que haja esquecimentos. Foi o que, sem dúvida, ocorreu com o caso da recuperação judicial e falência quanto ao agravo de instrumento. O CPC/2015 trouxe situações em que sempre cabível o agravo de instrumento - e isso está no parágrafo único do art. 1.0152. A premissa do legislador é correta: nesses casos, a sentença não será efetivamente o momento em que se definem as principais questões do litígio (como é típico do processo de conhecimento); isso ocorrerá anteriormente, como numa penhora (execução e cumprimento de sentença) ou avaliação de bem (inventário). Mas, é certo que isso também se aplica às decisões interlocutórias proferidas no bojo de uma recuperação judicial e falência, pois estamos diante de um procedimento especial bem característico. E, de forma ainda mais aguda que o inventário, uma série de decisões interlocutórias não podem aguardar a "sentença" da recuperação judicial, após o término de todo o procedimento. Ou seja:  o legislador lembrou no inventário, mas esqueceu da RJ... Diante disso, a doutrina, já há algum tempo, defende que se interprete o parágrafo único do art. 1.015 também para incluir as interlocutórias proferias em RJ e falências. E isso pode ser sintetizado pela deliberação ocorrida nas Jornadas de Direito Processual do CJF, com a edição do Enunciado 69: "A hipótese do art. 1.015, parágrafo único, do CPC abrange os processos concursais, de falência e recuperação". E o STJ, felizmente, decidiu exatamente nesse sentido. É verdade que já havia decisões adotando esse entendimento, mas recentemente a questão foi julgada em sede de recurso especial repetitivo - ou seja, agora é um precedente vinculante conforme previsto no art. 927 do CPC3. A tese foi assim fixada (grifos nossos)4: "É cabível agravo de instrumento contra todas as decisões interlocutórias proferidas nos processos de recuperação judicial e nos processos de falência, por força do art. 1.015, parágrafo único, CPC"5 Assim, agora temos segurança jurídica e previsibilidade: de qualquer decisão interlocutória proferida em RJ e falência, cabe agravo de instrumento, com base no art. 1.015, parágrafo único do CPC/20156. Mas, o mais curioso é que estamos em vias de ter alteração legislativa acerca do tema. Isso porque o assunto é tratado no âmbito da reforma da lei de RJ e Falência (PL 4.458/2020, apenas pendente de sanção presidencial), que inclui o artigo 189 na lei, com a seguinte previsão: "as decisões proferidas nos processos a que se refere esta Lei serão passíveis de agravo de instrumento, exceto nas hipóteses em que esta Lei previr de forma diversa". Ou seja, com a inclusão dessa previsão na lei recuperacional, será desnecessário o entendimento ora firmado pelo STJ Diferente é o que se verifica em relação a outras hipóteses não previstas no art. 1.015, como se verá no tópico seguinte. 2) "CORREÇÃO" DO PROBLEMA LEGISLATIVO PELO JUDICIÁRIO, SEM ALTERAÇÃO LEGISLATIVA: A TAXATIVIDADE MITIGADA Exceto pelas hipóteses do art. 1.015, parágrafo único (analisada acima uma situação de interpretação ampliativa), o que fazer com casos em que não estão no rol do cabimento do agravo, especialmente quando se está diante do procedimento comum do processo de conhecimento? A doutrina trouxe três principais respostas7: (i) agravo de instrumento, mesmo fora dessas hipóteses, (ii) mandado de segurança e (iii) nada, aguardar o final do processo e interpor apelação. A divergência doutrinária e jurisprudencial era grande. Nesse ponto, como se sabe, o STJ já decidiu, também em recurso repetitivo, já há algum tempo, pela "taxatividade mitigada". A tese repetitiva foi assim firmada, por maioria, pela Corte Especial do STJ (grifos nossos): "O rol do art. 1.015 do CPC é de taxatividade mitigada, por isso admite a interposição de agravo de instrumento quando verificada a urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão no recurso de apelação"8. Ou seja, o rol não é exatamente taxativo. Mas, diferentemente da situação tratada acima (cabe AI de decisões proferias em RJ e falência), a solução aqui é bem distinta: pois há grande subjetividade em se saber o que é a "taxatividade mitigada", e quais as hipóteses de "urgência decorrente da inutilidade do julgamento da questão na apelação". Ou seja, enquanto a questão "mais simples" acima exposta, já está solucionada pela jurisprudência e ruma para alteração legislativa, a questão "mais complexa" dos casos do processo de conhecimento seguem subjetivas e sem previsão de alteração legislativa. Infelizmente, pois o ideal seria a regulação legislativa da situação que o STJ apontou ser de taxatividade mitigada. Assim, atualmente, tem-se grande instabilidade e insegurança quanto ao cabimento do agravo com base na taxatividade mitigada. E é de se destacar que, diferentemente do passado (vide introdução ao artigo), em que as reformas processuais eram feitas por meio do legislativo, atualmente as "reformas processuais" estão sendo feitas pelo próprio Judiciário, ao "interpretar" os diversos dispositivos do Código, de maneira muitas vezes claramente dissociada do texto legal. Isso, em meu entender, de maneira inadequada, pois em verdade aumenta a instabilidade e segurança jurídica, como já dito. Que futuras reformas legislativas resolvam isso. __________ 1 Isso, inclusive, já foi objeto de anterior texto na coluna "Tendências do Processo Civil", de minha coautoria. 2 Parágrafo único. Também caberá agravo de instrumento contra decisões interlocutórias proferidas na fase de liquidação de sentença ou de cumprimento de sentença, no processo de execução e no processo de inventário. 3 CPC, art. 927. Os juízes e os tribunais observarão: (...) III - os acórdãos em incidente de assunção de competência ou de resolução de demandas repetitivas e em julgamento de recursos extraordinário e especial repetitivos. 4 Aos interessados, a sessão de julgamento pode ser vista aqui. 5 REsp 1717213/MT, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 03/12/2020, DJe 10/12/2020, Tema Repetitivo 1022. 6 O assunto foi objeto de diversas manifestações aqui no Migalhas. Andre Roque tratou do tema na coluna Insolvência em Foco, em 2017 e Paulo Lucon também tratou do assunto em 2019. Com a decisão do repetitivo, o assunto foi enfrentado por Rogerio Mollica e Teresa Arruda Alvim e Evaristo Aragão Santos. 7 Para verificar uma visão geral do tema, cf. Execução e Recursos: Comentários ao Código de Processo Civil 2015, 2ª ed. São Paulo: Gen, 2018, p. 1028 e ss., obra de minha coautoria e nesse ponto escrita por ZULMAR DUARTE. 8 REsp 1.704.520-MT, Rel. Min. Nancy Andrighi, Corte Especial, por maioria, julgado em 05/12/2018, DJe 19/12/2018 (Repetitivo, Tema 988), Informativo 639.
A segunda década do século XX teve como marco a grande depressão econômica e o surto pandêmico da gripe espanhola. Passados mais de cem anos, o Brasil e o mundo enfrentam uma das mais graves crises da história. No cenário econômico que se desenha, o sistema falimentar toma foco e certamente será colocado à prova. Em julho deste ano, a Revista Eletrônica Infomoney alertava que a pandemia provocou, na primeira quinzena de junho, o fechamento de 39,4% das 1,3 milhão de empresas que haviam suspendido temporária ou definitivamente suas operações. No total, foram 522,7 mil negócios encerrados no período1. Entre as que foram fechadas pela pandemia, 518,4 mil (99,2%) eram de pequeno porte (tinham até 49 empregados), 4,1 mil (0,8%) de porte intermediário (de 50 a 499 empregados) e 110 de grande porte (mais de 500 empregados)2. Ainda, segundo a Boa Vista SCPC, em junho de 2020, as decretações de falência cresceram 71,3% em relação ao ano de 20193. A crise empresarial produz efeitos que se espraiam ao redor de um amplo leque de interesses (empregados, fornecedores, agentes financeiros, fisco e outros)4. O interesse da coletividade passa a ser afetado pelos sucessos ou insucessos que marcam o trajeto das pequenas e grandes empresas, que terão inevitável repercussão sobre indivíduos e/ou grupos, constituindo um problema social5. Diante da relevância do tema, as propostas de alterações legislativas sobre a Lei de Falências e Recuperações de Empresas, em especial a recente aprovação do Projeto de Lei 4.458/2020 pelo Senado, passaram a ocupar o cotidiano dos meios de divulgação de notícias mais populares do Brasil. Dentre os princípios que expressamente nortearam as mencionadas alterações, tem-se o incentivo ao rápido recomeço ("Fresh Start"), ao lado da aplicação produtiva dos recursos econômicos e do empreendedorismo, o que representa uma mudança cultural da concepção de falência na perspectiva nacional, que é encarada como uma espécie de punição ao empresário que se encontra na posição de insolvente. O empreendedor é figura central para o bom funcionamento da economia capitalista, na medida em que gera empregos, produtos, serviços e tributos, tão necessários ao bem-estar social. Por outro lado, a possibilidade de insucesso da atividade empresarial também é grande, na medida em que o empreendedorismo é, por definição, uma atividade de risco. Nesse sentido, não é razoável transformar o empreendedor falido - que não teve sucesso na sua primeira tentativa - num pária do sistema econômico. Deve-se dar a ele a chance de tentar novamente, a fim de prosperar e gerar os benefícios econômicos e sociais que se espera da atividade empresarial. O sistema anterior vinculava a reabilitação do falido ao decurso do prazo de 05 ou 10 anos, conforme tenha ou não sido condenado por crime falimentar, contado do encerramento da falência. Entretanto, por razões estruturais, o processo de falência constumava demorar anos para ser encerrado. Daí que o falido ficava, na prática, alijado da atividade empresarial e impedido de tentar novamente e prosperar.  A nova previsão decorre da redação do art. 75, inciso III ("fomentar o empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica.").  O "Fresh Start" é um instituto importado do direito norte americano que tem a intenção de permitir um retorno rápido do empresário falido ao mercado6. Conserva-se a ideia de que o indivíduo é um agente econômico e desempenha um papel essencial na produtividade do mercado. A Constituição Americana contempla o ideal de que a falência confere ao devedor a chance de um novo começo, ficando livre de obrigações e responsabilidades. A essência do sistema de falência individual americano é o perdão do endividamento. O modelo adotado pela proposta de alteração legislativa é o da seção 727 do Bankrupcy Code norte americano, seguindo a regra do Discharge, em que o devedor se torna isento de suas obrigações na medida em que não tenha se envolvido em alguma situação considerada negativa pela norma de regência.   Certo é que a legislação pátria foi inspirada na doutrina norte americana, porém, quando da edição da lei 11.101 de 2005, não foram adotadas medidas que assegurassem a plena e efetiva aplicação do instituto do "Fresh Start". Nesse passo, andará bem o legislador atual se eleger mecanismos que possibilitem o célere recomeço do empresário, deixando-o livre para explorar outra atividade, movimentando a economia7. Nessa linha, as recentes alterações contemplam, também, um encurtamento dos prazos de extinção das obrigações do falido. É nesse contexto que o art. 158 passa a surgir com uma nova redação. Diminui-se o decurso do prazo de inabilitação dos antigos 05 e 10 anos para 03 anos. Há, ainda, a mudança do termo inicial de contagem do prazo, que se transfere do encerramento da falência para a sua decretação. Sob tal perspectiva, retira-se do empresário a punição que lhe assombrava, ao carregar o fardo de inativo durante a morosa tramitação do processo, ao aguardo da extinção de suas obrigações. Estimula-se o empreendedorismo, apresentando-se a falência como decurso natural do risco inerente à atuação empresarial que, por vezes, em razão de circunstâncias externas, foge ao controle de seu gestor.  Outro importante ponto é a alteração dos requisitos específicos do pedido de reabilitação, ocorrendo a redução do percentual necessário de pagamento dos créditos quirografários, reduzindo-se a exigência de mais de 50% para o patamar de mais de 25% de adimplemento.  Some-se a isso a alteração na ordem de classificação dos créditos, que veio para propiciar mais agilidade ao processo e, por consequência, trazer maior celeridade à reabilitação do agente econômico. Trata-se da nova previsão do art. 83, que reposiciona os créditos de natureza quirografária, através da incorporação por ele de outros créditos que ocupavam posição de preferência no pagamento. Para que o Brasil supere o momento de crise econômica, faz-se necessário um sistema de falência rápido e eficiente. O diploma concursal brasileiro evidencia que tanto a recuperação judicial quanto a falência estão informadas pelo mesmo princípio, que é o da preservação da empresa.  Este princípio, quando tratado dentro do âmbito falimentar, norteia a preservação das atividades empresariais que surgirão em razão da retirada do mercado da empresa falida, mediante o reaproveitamento de seus ativos antes vinculados a uma atividade improdutiva, bem como mediante a oportunidade conferida ao insolvente de célere retorno para o exercício de atividade empresária, sem qualquer óbice a uma nova chance, conferindo à falência o status de forma regular de encerramento de uma atividade8. É assim que se consolida uma visão social do direito falimentar: o processo de insolvência se traduz em benefícios sociais e econômicos através da criação de oportunidades rápidas para a reinserção do agente insolvente no mercado, transformando uma atuação improdutiva em produtiva9, preservando-se o interesse da coletividade e oxigenando a economia. Referências bibliográficas  ABRÃO, Nelson. A continuação do negócio na falência. São Paulo: Leud, 1975.  AGÊNCIA ESTADO. 522 mil negócios faliram só na primeira quinzena de junho, diz IBGE. InfoMoney, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020.  ALMEIDA, Amador Paes de. Curso de falência e concordata. 14. edição, São Paulo: Saraiva, 1996.  ARAÚJO, José Francelino de. Comentários à lei de falências e recuperação de empresas. São Paulo: Saraiva, 2009.  BATISTA, Felipe Vieira. A Recuperação Judicial Como Processo Coletivo. Tese (Programa de Mestrado em Direito) - Universidade Federal da Bahia - UFBA. Salvador, 2017.  BEZERRA FILHO, Manoel Justino; BEZERRA, Adriano Ribeiro Lyra. Lei de falência na jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.  CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009; DELANEY, Kevin J. Strategic bankruptcy: how corporations and creditors use Chapter 11 to their advantage. California: University of California Press, 1998.  COELHO, Fábio Ulhoa. Princípios de direito comercial: com anotações ao projeto de código comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 57-58. COSTA. Daniel Carnio. A importância social e econômica da falência. BrasilJurídico, jan. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020.  GAZZONI, Marina. Os 'falidos' do coronavírus: veja as empresas que quebraram na pandemia. Seu Dinheiro. jul. 2020. Disponível aqui.Acesso em: 10 nov. 2020.  MANDEL, Julio. Nova lei de falências e recuperação de empresas anotada. São Paulo: Saraiva, 2005.  OLIVEIRA, Joana. 716.000 empresas fecharam as portas desde o início da pandemia no Brasil, segundo o IBGE. El País, São Paulo, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020. *Daniel Carnio Costa é juiz titular da 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo e Professor da PUC/SP. **Clarissa Somesom Tauk é juíza auxiliar em exercício na 3ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo. __________ 1 OLIVEIRA, Joana. 716.000 empresas fecharam as portas desde o início da pandemia no Brasil, segundo o IBGE. El País, São Paulo, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020. 2 AGÊNCIA ESTADO. 522 mil negócios faliram só na primeira quinzena de junho, diz IBGE. InfoMoney, jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020. 3 GAZZONI, Marina. Os 'falidos' do coronavírus: veja as empresas que quebraram na pandemia. SeuDinheiro. jul. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020. 4 "(...) a coletividade tem interesse metaindividual afetado, direta ou indiretamente, pelos sucessos ou insucessos que marcam a trajetória de grandes empresas" ... "É útil a imagem de três círculos em torno da empresa - a exemplo das elipses representantes dos movimentos dos planetas em redor do Sol. No círculo mais próximo ao centro, estarão representados os interesses dos empresários; mas não somente os deles, como também os dos sócios da sociedade empresária, dos investidores estratégicos, acionistas do bloco de controle e, nas companhias com elevado nível de dispersão acionária, os dos administradores graduados. No segundo círculo, o mediano, representam-se os interesses dos bystanders: os dos trabalhadores, (voltados à preservação de seus empregos e melhoria no salário e nas condições de trabalho), dos consumidores (que precisam ou querem os produtos ou serviços fornecidos pela empresa), o Fisco (cuja arrecadação aumenta em relação direta com o desenvolvimento da atividade econômica), dos fornecedores de insumo (empresas-satélite, muitas delas exploradas por micro pequenos e médios empresários), dos investidores não sofisticados do mercado de capitai (se a empresa é explorada por companhia aberta) e dos vizinhos dos estabelecimentos empresariais (normalmente beneficiados com a valorização do entorno). No terceiro círculo, o mais extenso, são representados os interesses metaindividuais coletivos ou difusos da coletividade, ou seja, o de todos os brasileiros (favorecidos, em caso de plena eficácia dos princípios de direito comercial, pelo decorrente barateamento geral dos preços), a economia local, regional, nacional e global (com o desenvolvimento, que, afinal, é a soma dos desenvolvimentos das respectivas empresas." (COELHO, Fábio Ulhoa. Princípios de direito comercial: com anotações ao projeto de código comercial. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 57-58). 5 "A empresa é a célula essencial da economia de mercado e cumpre relevante função social, na medida em que, ao explorar a atividade prevista em seu objeto e ao perseguir o seu objetivo - o lucro -, promove interações econômicas (produção ou circulação de bens ou serviços) com outros agentes do mercado, consumindo, vendendo, gerando empregos, pagando tributos, movimentando a economia, desenvolvendo a comunidade em que está inserida, enfim, criando riqueza e ajudando no desenvolvimento do país, não porque esse seja o seu objetivo final - de fato, não o é -, mas simplesmente em razão de um efeito colateral benéfico (que os economistas chamam de "externalidade positiva") do exercício da sua atividade." (SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luís Felipe; TELLECHA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2016, p. 73). 6 CLARO, Carlos R. Recuperação judicial: sustentabilidade e função social da empresa. São Paulo: LTr, 2009; DELANEY, Kevin J. Strategic bankruptcy: how corporations and creditors use Chapter 11 to their advantage. California: University of California Press, 1998. 7 De acordo com o relatório apresentado pelo Deputado Hugo Leal, verbis: "De outro modo, a Seção XII do Capítulo V da Lei, que trata do encerramento e da extinção das obrigações do falido, foi atualizada no Substitutivo para permitir um rápido recomeço ao empresário ("fresh start"), permitindo que ele possa utilizar o próprio registro do Cadastro de Pessoas Físicas (CPF) para iniciar um novo negócio. Isto se dá pela defi nição da contagem do prazo para extinção das obrigações do falido na data da decretação da quebra e não do encerramento do processo. Também o esclarecimento de que o termo inicial para reinício do prazo prescricional porventura interrompido corresponde, inclusive para as Fazendas Públicas, ao trânsito em julgado da sentença de encerramento da falência, o que permitirá, uma vez consumada a prescrição, a extinção das inscrições em dívida, e não apenas da respectiva cobrança judicial, como ocorre atualmente em razão da omissão da legislação. Também a pessoa natural que for sócia ou administradora do devedor poderá, a seu exclusivo critério, requerer que lhe sejam integralmente estendidos os efeitos da falência, declarando-se solidária e ilimitadamente responsável pelas dívidas do falido a fim de obter os benefícios de pessoa natural falida, que poderá requerer ao juízo da falência que as obrigações a ela referidas sejam declaradas extintas por sentença. Estas mudanças vão na direção de dar maior dinamismo aos nossos sistemas recuperacional e falimentar, pois é essencial para a eficiência econômica que haja possibilidade dos empresários, que tiveram dificuldade em seus negócios, de rapidamente se reerguerem e tentarem novos empreendimentos, criando novos empregos e gerando novas riquezas na economia." 8 Abordando a finalidade liquidatória da falência, Nelson Abraão afirma: "assim sendo, torna-se necessário o desmonte do estabelecimento ou estabelecimentos com a venda de seus componentes ao correr do martelo, aniquilando-se a atividade empresaria." (O novo direito falimentar. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1985, p. 167). 9 COSTA. Daniel Carnio. A importância social e econômica da falência. Brasil Jurídico, jan. 2018. Disponível aqui. Acesso em: 10 nov. 2020.
Estava em tramitação no Congresso Nacional o PL 6229/2005, que contém o apensamento de diversos outros projetos apresentados em diversas legislaturas. O texto aprovado na Câmara dos Deputados foi também aprovado, semana passada, pelo Senado Federal, e, ao que consta, apenas com alteração de redação. Não há dúvida de que a lei 11.101/05, ao longo de sua existência, provou ser suficientemente versátil para atender aos reclamos das empresas em crise, não obstante esteja também demonstrado que modificações em alguns pontos eram altamente necessárias, especialmente com relação ao financiamento da empresa em crise e à maior precisão em relação à não sucessão por dívidas, entre outros aspectos. Ocorre que o projeto 6229 não se limita a alterações pontuais e contém alterações de monta. Neste breve artigo, quero falar do impacto de um dos pontos do projeto. A nova redação do inciso IV, do artigo 86, assegura à Fazenda Pública o direito de restituição "relativamente a tributos passíveis de retenção na fonte, descontos de terceiro ou sub-rogação, e a valores recebidos pelos agentes arrecadadores e não recolhidos aos cofres públicos". Passa a lei a prever, expressamente, a possibilidade de a Fazenda Pública ajuizar pedido de restituição com fundamento em tributos que deixou de receber. Esse inciso IV incorpora à lei falimentar hipóteses de restituição em que a lei veda ao contribuinte a concessão de parcelamentos (art. 14, I e III, da pei 10.522/2002). A aprovação da lei viabilizará o pedido de restituição do imposto de renda descontado na fonte e não repassado ao Fisco, das retenções das contribuições (Contribuição Social sobre o Lucro Líquido (CSLL), da Contribuição para o Financiamento da Seguridade Social (COFINS), da Contribuição para o Programa de Integração Social (PIS/PASEP), da retenção da contribuição previdenciária, retenção do IOF, e do ISS. Sem a pretensão de ser exaustivo na enumeração, verifica-se que há fortíssimo alargamento do cabimento do pedido de restituição de tributos. Na lei vigente, o crédito tributário está em terceiro lugar na ordem de pagamentos, e os demais créditos fiscais, como as multas, estão em sétimo lugar. Porém, com o pedido de restituição das espécies tributárias ora exemplificadas, o crédito do Fisco passa a estar em primeiríssimo lugar, antes mesmo dos credores trabalhistas. A primazia do crédito caracterizado como pedido de restituição está consolidada na jurisprudência, conforme se verifica da Súmula 307 do STJ: "A restituição de adiantamento de contrato de câmbio, na falência, deve ser atendida antes de qualquer crédito". Essa súmula é, tecnicamente, correta, e é aplicável a todos os pedidos de restituição, independentemente do seu fundamento, não se limitando, portanto, ao contrato de adiantamento de câmbio. A jurisprudência tem aplicado essa ratio juris a outros pedidos de restituição. Note-se que, hoje, a jurisprudência tem reconhecido ao Fisco o direito de restituição de contribuição previdenciária recolhida do empregado e não repassada aos cofres públicos. Essa hipótese específica tem apoio no artigo 51 da lei 8.212/91, verbis: "O crédito relativo a contribuições, cotas e respectivos adicionais ou acréscimos de qualquer natureza arrecadados pelos órgãos competentes, bem como a atualização monetária e os juros de mora, estão sujeitos, nos processos de falência, concordata ou concurso de credores, às disposições atinentes aos créditos da União, aos quais são equiparados. Parágrafo único. O Instituto Nacional do Seguro Social-INSS reivindicará os valores descontados pela empresa de seus empregados e ainda não recolhidos". É a palavra reivindicará que dá sustentação a esse entendimento jurisprudencial. No RESP 1.183.383, j. 05/10/2010, há referência a diversos outros julgados do STJ que acolheram o pedido de restituição. Desde a década de 60 do século XX a contribuição previdenciária recolhida do empregado e não repassada ao empregador vem sendo caracterizada como pedido de restituição. E isso ocorre, exclusivamente, por força de lei, pois a origem do pedido de restituição atine à ação reivindicatória, atine a direito real, e não a direito pessoal, de que é espécie o direito de crédito. Em síntese, uma coisa de propriedade de terceiro, arrecadada pelo administrador judicial no estabelecimento da falida, é que pode justificar o pedido de restituição. Ao longo do tempo, as leis foram assegurando o pedido de restituição a crédito, a prestação pecuniária. Além da contribuição previdenciária, que é crédito tributário, também o adiantamento de contrato de câmbio conta com tal privilégio na falência desde a Lei 4.728/65, reforçada com a previsão contida no artigo 86, II, da lei 11.101/05. Trata-se de restituição ex lege, que em muito desborda da origem do pedido de restituição, ligada à proteção do direito de propriedade, e é um mecanismo de conferir super privilégio a alguns créditos. A reforma dilata o alcance do pedido de restituição em favor da Fazenda Pública, pois outras verbas tributárias, além da contribuição previdenciária descontada do empregado e não recolhida aos cofres públicos, também passarão a ser enquadradas no pedido de restituição. Já é criticável a previsão acerca da contribuição previdenciária, pois o empregado, que sofreu o desconto, fica sem o comprovante de pagamento perante a previdência social, e não conseguirá o benefício para fins de aposentadoria, e o quanto auferido pela Fazenda Pública a esse título, não reverterá em favor do empregado. Por outras palavras, não há correspondência entre o desconto sofrido por determinado empregado, e o posterior recebimento, via pedido de restituição, por parte do ente público, para fins de satisfazer o tempo de contribuição desse determinado empregado que foi vítima do empregador. O dinheiro vai para o cofre geral da previdência, e não para a conta do empregado que sofreu o desconto do dinheiro que ficou com o empregador. O dinheiro obtido pelo Fisco com o pedido de restituição não beneficia o empregado que sofreu o desconto. Isto é: o poder público não paga a aposentadoria e recebe o dinheiro privilegiadamente. Pensando bem, sequer a contribuição previdenciária deveria ser objeto de pedido de restituição, apesar de todo o apelo existente em torno da questão previdenciária em nosso país. O que a jurisprudência afirma, corriqueiramente, é que a quantia descontada do empregado não é de propriedade do empregador. É claro que não é, e o empregador que assim age comete crime de apropriação indébita. Ocorre que o crédito, descontado do empregado, não ingressa na propriedade do empregador, pois, na maioria das vezes, esse desconto é formal, sem que exista a efetiva disponibilidade de recursos na empresa que acabou por ter a falência decretada. Há uma ficção de que o dinheiro está na propriedade do falido, e é em cima dessa ficção que se instituiu o pedido de restituição. Dada a ilicitude do não recolhimento aos cofres públicos, e o consequente prejuízo experimentado pelo trabalhador, não há razão para dar ao fisco tratamento tão especial. Bastaria a preferência dada aos demais créditos tributários (inciso III do artigo 83). O mesmo ocorre com o imposto de renda retido na fonte. Não há lei expressa a esse respeito, mas a jurisprudência, hoje, admite a restituição, embora sem lei que a autorize, o que não se coaduna com o instituto excepcional do pedido de restituição. A mudança na lei acaba por representar uma pá de cal no crédito dos trabalhadores, pois, com a reforma já aprovada, quem vai receber à frente, e dificilmente vai deixar sobra a ser rateada, será o Fisco, pois dilata-se enormemente o cabimento do pedido de restituição. Aliás, não só os trabalhadores sofrerão. Os credores da classe II tampouco conseguirão ser contemplados em rateio, e, subsequentemente, todos os demais credores sofrerão prejuízo. A Fazenda Pública, agora com esse superprivilégio, receberá consideravelmente à frente dos demais credores. O crédito trabalhista, praticamente, desaparecerá em muitas falências. Note-se a perplexidade que esse superprivilégio gera. A Fazenda Pública tem, agora, forte incentivo para deixar de lado a execução fiscal e enveredar pela falência, para postular a restituição de crédito tributário. Caso ela leve adiante a execução fiscal, o produto obtido no seu bojo deverá ser entregue ao processo falimentar, para pagamento dos credores que preferem à Fazenda Pública (trabalhistas e credores com garantia real). Com a ida à falência, ela supera os credores trabalhistas e os credores da classe II; por certo, é o que vai acontecer, e isso não está bem calibrado. A inovação não é boa; na distribuição dos prejuízos, que é a organização da ordem de pagamento prevista na lei, houve forte desequilíbrio em favor do Fisco. Como o pedido de restituição é de interpretação restritiva, vamos aguardar o comportamento jurisprudencial a respeito da matéria.
quarta-feira, 11 de novembro de 2020

O que ocorreu de bom em 2020

Quero aproveitar a minha última participação na coluna para rememorar alguns fatos relevantes no segmento da insolvência no ano de 2020. A pandemia provocou pronta atuação do Conselho Nacional de Justiça, que, extrapolando sua função, imiscuiu-se em matéria jurisdicional, ao editar a Recomendação n. 63, declarada inconstitucional pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em vários julgados da 1ª. Câmara Reservada de Direito Empresarial. Outro efeito da pandemia foi a tentativa de introduzir no direito brasileiro um sistema de prevenção à insolvência, que, além de ter se mostrado inoportuno - não se previne uma crise já instalada pelos efeitos econômicos do combate à pandemia -, exigia prévia atuação jurisdicional para o início de uma negociação extrajudicial, colocando em risco a capacidade da organização judiciária para suportar o esperado aumento de demandas. O destino do PL 1397/20, após sua aprovação pela Câmara dos Deputados, foi o esquecimento pelo Senado Federal. Em meio a pandemia, foi julgada apelação contra sentença que havia rejeitado pedido de falência ajuizado pela Fazenda Nacional em 2019, sob o fundamento de que o credor tributário deve se valer exclusivamente execução fiscal para o recebimento de seu crédito. O Tribunal de Justiça de São Paulo deu provimento à apelação e reconheceu que o credor tributário também pode requerer falência de contribuinte que não paga os tributos, não se dispõe a parcelar os valores devidos e não tem bens suficientes para garantir o juízo, usando a inadimplência tributária como vantagem competitiva ilícita  (apelação cível n. 1001975-61.2019.8.26.0491). Outra decisão relevante nessa seara foi proferida pela Presidência do Supremo Tribunal Federal, ao deferir liminar na Reclamação 43.169, cassando decisão do Superior Tribunal de Justiça que havia dispensado do devedor em recuperação judicial a apresentação de certidão negativa de débitos tributários. Quem milita na área pode constatar que o STJ, ao firmar jurisprudência dispensando a CND e suspendendo atos constritivos em execuções fiscais contra recuperandas, não só colocou o Fisco em posição muito pior do que a legislação pretendia lhe assegurar, como criou um incentivo para os devedores deixarem de pagar os impostos correntes, e não só os anteriores ao pedido de recuperação judicial. Não deve ser saudada apenas a decisão da Presidência do STF, por iniciar um movimento de superação da jurisprudência do STJ, mas igualmente a lei 13.988/20, que instituiu a transação de créditos de natureza tributário. O devedor passou a dispor de mecanismos para equacionar suas dívidas tributárias e não cabe mais a concessão de recuperação judicial sem a regularização do passivo fiscal, seja por meio do parcelamento ou da transação. Por fim, registro a iniciativa da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, que criou um comitê de enfrentamento da crise formada pelos juízes das varas de falência e recuperações judiciais da Comarca de São Paulo, e da 1ª. RAJ, cujo trabalho deu origem a três instrumentos de padronização de procedimentos realizados por administradores judiciais. Com o propósito de conferir proteção aos credores e segurança às deliberações sobre o plano de recuperação judicial, foram estabelecidos os requisitos mínimos que os administradores judiciais possam realizar uma assembleia-geral de credores virtual (Comunicado CG n. 809/2020 - Processo 2020/76446, publicado no DOE em 24 de agosto de 2020). Também foi recomendada a uniformização, pelos administradores judiciais, de suas manifestações no procedimento verificação de créditos, mediante o fornecimento de informações claras e objetivas nas correspondências enviadas aos credores, nos editais e nos pareceres acerca das habilitações, divergências e impugnações (Comunicado CG no. 876/2020 - Processo 2020/81417, publicado no DOE de 2 de setembro de 2020). Com objetivo de permitir que o plano de recuperação efetivamente contenha informações adequadas sobre a situação econômico-financeira do devedor e acerca da origem dos recursos para pagamento de  todas as dívidas, privadas e fiscais, sugeriram à Corregedoria Geral da Justiça que passasse a ser adotado um relatório, a ser elaborado pelo Administrador Judicial. Neste relatório, deve ser apresentado: a) resumo do laudo econômico-financeiro e do laudo de avaliação. Espera-se uma análise crítica do AJ quanto às premissas usadas pelo avaliador, ao valor de mercado dos ativos e à expectativa de faturamento da recuperanda com base em seu histórico; b) resumo dos meios de recuperação, com a indicação de como será realizado o pagamento de credores sujeitos ainda não contemplados no quadro de credores,  dos créditos fiscais e dos demais créditos não sujeitos à recuperação judicial, e se tal previsão de pagamento é compatível com o fluxo de caixa da recuperanda (cf. Comunicado CG nº 786/2020 - Processo nº 2020/75325, publicado no DOE de 20 de outubro de 2020). Finalmente, destaco duas iniciativas da Corregedoria Geral da Justiça de São Paulo, materializadas nos Provimentos 11 e 19, que buscaram introduzir mecanismos de solução extrajudicial à crise empresarial, com o auxílio da mediação, instrumento já utilizado em processos de recuperação judicial, com potencial de reduzir a assimetria de informações, permitir a negociação de planos mais equilibrados e reduzir a duração do processo, tornando-o mais eficiente.
Aprovado na Câmara dos Deputados em 26/8/2020 então sob o número 6.229/2005, tramita agora no Senado Federal o PL 4.458/2020, que propõe alterações substanciais à recuperação judicial, extrajudicial e à falência do empresário e da sociedade empresária, reguladas pela lei 11.101/05. Embora haja um certo consenso quanto ao cabimento de alterações pontuais na lei 11.101/05, notadamente para acelerar o procedimento falimentar, os ajustes propostos no PL 4.458/2020 merecem maiores reflexões e aprimoramentos. Relevantes problemas da legislação vigente, há muito identificados pelos profissionais atuantes na área, acabaram por não ter proposta de solução satisfatória prevista no projeto ou maiores discussões da comunidade jurídica. É o caso, por exemplo, do financiamento DIP, hoje pouco concedido aos devedores em recuperação judicial por falta de reais incentivos ao financiador. O projeto, embora trate do tema, propõe como incentivo adicional àqueles que pretendam financiar a empresa em crise a possibilidade de constituição de garantia subordinada sobre ativos do devedor, limitada a eventual excesso resultante da alienação do ativo sobre o qual recair a garantia original e desde que a garantia prioritária não seja alienação ou cessão fiduciária (art. 69-C, §§ 1º e 2º). Não é preciso dizer que tal proposta muito provavelmente não promoverá a concessão de novos financiamentos. A subordinação da garantia, por si só, servirá de desincentivo ao financiador. Se nem a constituição de garantias em primeiro grau já permitida hoje pelo sistema vigente (desde que autorizada judicialmente se recair sobre bens do ativo permanente) foi suficiente a fomentar a concessão de novos financiamentos, a possibilidade de outorga de garantia subordinada não será capaz de fazê-lo. Não bastasse, o projeto restringe a possibilidade de oneração de bens (em grau subordinado) a garantias não fiduciárias - cada vez menos utilizadas no mercado, em razão dos privilégios e prioridades de que gozam os credores proprietários fiduciários. A inspiração para a possibilidade de concessão de garantia subordinada ao financiador muito provavelmente advém do direito norte americano, no qual, porém, os DIP Lenders podem inclusive obter prioridade sobre garantias já existentes à ocasião da concessão do financiamento (priming lien), desde que assegurada proteção adequada ao credor garantido anteriormente. Contudo, no projeto, o benefício proporcionado ao financiador que pretenda se valer da garantia subordinada é infinitamente menor (subordinado e não prioritário) e, além disso, muito restrito (limitado a garantias não fiduciárias). Semelhante desequilíbrio entre pequenos incentivos e condições muito onerosas acontece no projeto com a possibilidade de propositura do plano de recuperação judicial pelo credor. O projeto traz importante inovação quanto à legitimidade para propositura do plano de recuperação judicial e passa a prever a possibilidade de credores apresentarem plano alternativo, na hipótese de rejeição do plano de recuperação judicial originalmente proposto pelo devedor (art. 56, § 4º). Poderia se tratar de importante passo em direção ao restabelecimento do equilíbrio de forças entre devedor e credores - hoje prejudicado, dentre outras razões, pela legitimidade exclusiva do devedor para propor os termos da reestruturação da empresa, combinada com (i) o restrito controle de legalidade exercido pelo poder judiciário quanto ao plano e (ii) a grande perda de valor experimentada pelos credores no cenário falimentar. Contudo, o projeto impõe aos credores que pretendam apresentar proposta alternativa de reestruturação uma série de condições - uma delas, como se verá a seguir, especialmente desarrazoada. De acordo com o art. 56, § 6º, o plano de recuperação judicial proposto pelos credores apenas será submetido à votação, dentre outras condições (cumulativas), desde que haja apoio de mais de 25% dos créditos sujeitos à recuperação judicial ou, alternativamente, de mais de 35% dos créditos presentes à assembleia em que aprovada a apresentação de plano alternativo. A mais onerosa e questionável condição imposta aos credores que pretendam apresentar plano de recuperação judicial alternativo, porém, diz respeito à necessária previsão de liberação de garantias pessoais prestadas por pessoas naturais em relação a créditos sujeitos dos credores que (i) componham os percentuais acima indicados como apoiadores do plano de recuperação alternativo ou (ii) aprovem o plano alternativo proposto, sendo vedadas eventuais ressalvas de voto. Trata-se de exigência que, além de contrariar clara disposição da própria Lei 11.101/05, que prevê que a novação decorrente do plano de recuperação judicial não atingirá coobrigados, fiadores e obrigados de regresso (art. 49, § 1º), desconsidera entendimento consolidado no Superior Tribunal de Justiça em sede de recurso repetitivo (REsp nº 1.333.349/SP)1 e da súmula 581 daquele tribunal2. Como não poderia deixar de ser, a manutenção das garantias prestadas por terceiros também tem sido reiteradamente defendida pelos tribunais estaduais, mediante a aplicação do disposto no art. 49, § 1º, da Lei 11.101/05 e do entendimento consolidado no STJ3. Além da falta de qualquer justificativa para a imposição de tal ônus, a liberação de garantias pessoais exigida pelo Projeto dos credores apoiadores do plano de recuperação judicial alternativo sequer benefício econômico poderá proporcionar à empresa em recuperação judicial, na medida em que liberará garantias prestadas por terceiros alheios ao processo. A condição em questão, na verdade, apenas traria benefícios aos acionistas e sócios que, para obterem crédito no mercado a preços mais baixos, outorgaram garantias pessoais às dívidas contraídas pela empresa em recuperação. Em outras palavras, sob qualquer ótica que se analise a questão - seja pela preservação das garantias prestadas por terceiros assegurada pelo art. 49, § 1º, da lei 11.101/05, seja pelo entendimento consolidado nos tribunais pátrios sobre o tema, ou até mesmo pela inexistência de benefício econômico ao devedor em recuperação - a condição de liberação de garantidores pessoais imposta aos credores que pretendam apoiar o plano de recuperação alternativo carece de fundamento ou de lógica. Trata-se de verdadeira penalidade que, em última análise, desestimulará por completo o exercício de um importante direito pelos credores. Direito esse que, como indicado, se bem regulado e realmente utilizado, poderia contribuir para o restabelecimento do equilíbrio de forças entre devedor e credores e, consequentemente, para uma negociação mais equânime dos termos da reestruturação da empresa em crise. Pelos pontos expostos, o projeto de lei de recuperação de empresas e falência carece de maior debate no Senado Federal. É imprescindível que se ajustem os seus dispositivos para se criar estrutura que facilite a superação da crise pelos agentes, devedores e credores, por meio de uma melhoria no ambiente negocial. Trata-se da única forma de se garantir a segurança jurídica de todos os contratantes e a própria preservação da atividade em benefício do desenvolvimento econômico nacional. *Marcelo Barbosa Sacramone é professor da PUC/SP e do IBMEC São Paulo. Doutor e mestre em Direito Comercial pela USP. Juiz de Direito da 2ª Vara de Falência e Recuperação Judicial do Foro Central da Comarca de São Paulo. **Fernanda Neves Piva é doutoranda em Direito Comercial pela USP. Mestre em Direito Comercial pela PUC/SP. Professora do IBMEC São Paulo. Advogada. __________ 1 No âmbito do qual a Segunda Seção da Corte Superior fixou a tese de que: "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das execuções, nem tampouco induz suspensão ou extinção de ações ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória, pois não se lhes aplicam a suspensão prevista nos artigos 6º, caput, e 52, inciso III, ou a novação a que se refere o artigo 59, caput, por força do que dispõe o artigo 49, parágrafo 1º, todos da lei 11.101/2005". 2 "A recuperação judicial do devedor principal não impede o prosseguimento das ações e execuções ajuizadas contra terceiros devedores solidários ou coobrigados em geral, por garantia cambial, real ou fidejussória". 3 A título de exemplo, ver TJSP: AI 2146824-93.2020.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Maurício Pessoa, j. em 28.10.2020; AI 2168436-87.2020.8.26.000, 1ª Câmara Reservada de Direito Empresaria, rel. Des. Cesar Ciampolini, j. em 29.9.2020.
Um dos temas que mais geram dúvidas no cotidiano dos profissionais do Direito que lida com a recuperação judicial é o instituto da impugnação. Apenas para lembrar, dentro do procedimento estabelecido pela lei 11.101/2005 ("LRF"), a impugnação se volta contra a segunda relação de credores, elaborada pelo Administrador Judicial após a apresentação de habilitações e divergências pelos credores (arts. 7º, § 2º e 8º da LRF). Esquematicamente, temos o seguinte fluxo: A impugnação é, essencialmente, um incidente instaurado por iniciativa de qualquer credor, da empresa em recuperação judicial ou seus sócios ou do Ministério Público e dirigido ao juízo da recuperação judicial, para que este promova a inclusão, exclusão, reclassificação ou retifique o valor de qualquer crédito na segunda lista elaborada pelo Administrador Judicial. Embora simples sua noção básica, trata-se de instituto permeado de discussões sob o ponto de vista processual, em parte devido à insuficiente disciplina promovida pela LRF, em parte como resultado de recentes modificações introduzidas pelo atual Código de Processo Civil e não refletidas na legislação processual. Vamos a elas. 1. Prazo para a impugnação: dias úteis ou corridos?      A LRF estabelece, de forma expressa, que o prazo para a apresentação de impugnação é de dez dias, contado da publicação da segunda relação de credores (art. 8º). A questão consiste em saber se referido prazo deve ser computado em dias úteis (por se tratar de prazo processual) ou corridos (por estar contemplado em lei especial). Como já sustentamos em outra sede, não faz sentido que os prazos para impugnação (tipicamente processuais) sejam contados em dias corridos, na ausência de regra expressa que afaste a aplicação subsidiária do CPC, assegurada pelo art. 189 da LRF1. Apesar disso, por ocasião do julgamento do Recurso Especial n.º 1.699.528, a Quarta Turma do STJ concluiu que o prazo máximo do stay period (art. 6.º, § 4.º da LRF) e o prazo de apresentação do plano de recuperação judicial (art. 53 da LRF) devem ser computados em dias corridos, sob o fundamento de que esta forma de contagem "é a que melhor preserva a unidade lógica da recuperação judicial: alcançar, de forma célere, econômica e efetiva, o regime de crise empresarial". Os termos em que redigido referido julgado deixam margem para se concluir que outros prazos previstos na LRF possam também ser computados em dias corridos, como a apresentação de impugnação. Como já era de se esperar, a jurisprudência vem oscilando em torno do tema. Tem prevalecido, contudo, a tese de cômputo em dias corridos2. Para o juiz, diante da insegurança que reina sobre o tema e da inexistência de qualquer precedente com caráter vinculante, é prudente já indicar na decisão que deferir o processamento da recuperação como serão computados os prazos naquele processo de recuperação judicial (dias úteis ou corridos). Para os advogados que atuarem na área, se omissa a decisão, vale avaliar a conveniência em se embargar de declaração, apontando a omissão quanto à forma de contagem de prazo e pleiteando que isso seja esclarecido, inclusive com base no princípio da cooperação (CPC, art. 6º)3. De todo modo, na dúvida, como tenho sempre dito, divergência doutrinária é boa apenas para o prazo nos outros... Ou seja, não havendo qualquer orientação do Poder Judiciário quanto à forma de contagem do prazo no seu processo, vá pela alternativa mais conservadora: prazo em dias corridos. 2. Admite-se discussão revisional em sede de impugnação?  Uma outra discussão que se abre sobre a impugnação de créditos na recuperação judicial diz respeito aos limites de cognição do juiz neste incidente. Em síntese, pode o juiz avaliar eventual abusividade de cláusulas contratuais neste incidente, promovendo a revisão do ajuste, ou deve determinar a quantificação e classificação do crédito simplesmente de acordo com o que ficou pactuado no contrato, devendo eventual pretensão revisional ser deduzida pelas vias ordinárias, em ação autônoma? Sempre nos pareceu que a segunda alternativa revelava a melhor resposta, uma vez que a impugnação consiste em incidente processual com finalidade bastante específica, qual seja, quantificar e classificar corretamente os créditos incluídos na recuperação judicial. Além disso, uma ação revisional consiste em processo de conhecimento, a ser instaurado perante a vara cível competente, cujo prosseguimento não é obstado pelo deferimento da recuperação judicial (art. 6º, § 1º da LRF). Dessa forma, eventual discussão de natureza revisional em sede de impugnação de crédito, para além de extrapolar os limites de cognição neste incidente processual, implicaria violação ao princípio do juiz natural, retirando indevidamente a competência do juiz cível para apreciar ações de conhecimento em geral contra empresas em recuperação judicial. Apesar disso, recentemente a Terceira Turma do STJ decidiu em sentido contrário, no julgamento do Recurso Especial nº 1.799.932, apontando que o "incidente de impugnação de crédito configura procedimento de cognição exauriente, possibilitando o pleno contraditório e a ampla instrução probatória, em rito semelhante ao ordinário"4. Concluiu-se, dessa maneira, que a "defesa não encontra restrições, estando autorizada inclusive a defesa material indireta, sendo despiciendo o ajuizamento de ação autônoma". Admitiu-se, no caso, "como defesa à pretensão do credor de serem acrescidos encargos moratórios ao crédito relacionado, a abusividade das cláusulas dos contratos de financiamento". Acredita-se que aludido julgado estimulará a jurisprudência dos tribunais inferiores a admitir pretensões tipicamente revisionais em sede de impugnação de crédito. O argumentos aduzidos pela Terceira Turma do STJ, contudo, não nos convencem, tendo em vista sobretudo a já apontada usurpação de competência do juízo cível. 3. Condenação em honorários de sucumbência no julgamento da impugnação  Controvertida, por fim, a possibilidade de condenação da parte sucumbente no julgamento da impugnação pelo juiz. Note-se que, em relação à divergência e habilitação apresentada contra a primeira lista de créditos, tratava-se de mera fase administrativa, desenvolvida perante o Administrador Judicial, o que afasta qualquer possibilidade de condenação em honorários de sucumbência. O mesmo não pode ser dito quanto à impugnação, que é apreciada pelo juízo da recuperação. Temos que a impugnação possui natureza de incidente processual no processo de recuperação judicial, não formando processo autônomo. Por isso, o provimento que julga a impugnação é recorrível por agravo de instrumento (art. 17 da LRF), uma vez que se trata de decisão interlocutória, que não põe fim a qualquer processo. O CPC em vigor não contemplou em seu art. 85 a possibilidade de condenação em honorários de sucumbência nos incidentes processuais. Da mesma forma, a LRF é silente a respeito. Apesar disso, tem predominado nos tribunais a possibilidade de condenação da parte sucumbente em honorários advocatícios, quando houver resistência ao pedido formulado na impugnação5. Em sentido semelhante, o STJ já apontou que "a orientação pacífica da jurisprudência desta Corte Superior dispõe que é impositiva a fixação de honorários sucumbenciais na habilitação de crédito, no âmbito da recuperação judicial ou da falência, quando apresentada impugnação, o que confere litigiosidade à demanda" (AgInt-EDcl-AgInt-REsp 1.816.967; Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze; DJE 08/09/2020). Curiosamente, entretanto, tais fundamentos são inconsistentes com a orientação do próprio STJ quanto ao arbitramento de honorários de sucumbência no julgamento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, em que se concluiu que "não é cabível a condenação em honorários advocatícios em incidente processual, ressalvados os casos excepcionais" e que, diante da "ausência de previsão legal excepcional, (...) irrelevante se apurar quem deu causa ou foi sucumbente no julgamento final do incidente" (STJ, REsp 1.845.536, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio Bellizze, julg. 26.5.2020). Segundo pensamos, tanto na impugnação quanto no incidente de desconsideração da personalidade jurídica não deveria haver condenação em honorários sucumbenciais, mesmo diante de eventual resistência ao pedido, na medida em que, de acordo com o art. 85, § 1º, do CPC, estes serão devidos apenas na reconvenção, no cumprimento de sentença, provisório ou definitivo, na execução, resistida ou não, e nos recursos interpostos, cumulativamente. Não há referência à condenação em honorários de advogado nos incidentes processuais. Ainda que se trate de uma demanda incidental, a opção do legislador foi não contemplar o arbitramento de honorários sucumbenciais nos incidentes processuais6. De toda sorte, no que tange à impugnação, esse não é o entendimento dos tribunais, que têm admitido a condenação do vencido nos honorários sucumbenciais se: (i) o pedido formulado na impugnação for rejeitado ou (ii) se, apesar da resistência manifestada, for acolhido o pedido veiculado na impugnação. Por fim, partindo da premissa de que é possível o arbitramento de honorários sucumbenciais no julgamento da impugnação, sua quantificação apenas se pode dar por equidade, na forma do art. 85, § 8º do CPC. Isso porque, mesmo nos casos em que se discute na impugnação apenas o valor do crédito, não há como concluir que esse montante corresponde ao benefício econômico pretendido. Afinal, o pagamento de créditos concursais fica sempre sujeito às condições que forem estabelecidas no plano de recuperação judicial. Aplica-se ao caso, portanto, a regra do art. 85, § 8º do CPC, uma vez que é inestimável o proveito econômico decorrente do julgamento do incidente. *** Como se percebe, o instituto da impugnação continua envolvo em diversas controvérsias do ponto de vista processual. Espera-se que o presente artigo sirva como ponto de partida para os profissionais do Direito que atuarem com recuperação judicial para compreenderem as principais questões em discussão. Até a próxima! __________ 1 ROQUE, Andre Vasconcelos. Comentários ao art. 219 in GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Teoria Geral do Processo (Parte Geral) - Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2019, p. 710-711. 2 Computando o prazo em dias corridos: "A forma de contagem do prazo de 10 dias na recuperação judicial que melhor se coaduna com o sistema jurídico vigente é em dias corridos, sendo, portanto, inaplicável a regra dos prazos processuais previstos no CPC/2015, que determina a contagem dos prazos processuais em dias úteis, porque se trata de prazo previsto em Lei Especial o que afasta a regra geral dos prazos em dias úteis, principalmente por se tratar de prazo de natureza material, enquanto que a regra de contagem em dias corridos somente se aplica aos prazos processuais (art. 219, parágrafo único, CPC)" (TJDF; AGI 07041.95-20.2020.8.07.0000; Ac. 127.4369; Terceira Turma Cível; Rel. Des. Gilberto Pereira de Oliveira; Julg. 12/08/2020). No mesmo sentido, TJRJ; AI 0058344-08.2019.8.19.0000; Rio de Janeiro; Quarta Câmara Cível; Rel. Des. Marco Antonio Ibrahim; DORJ 03/06/2020; Pág. 344; TJSP; AI 2235414-80.2019.8.26.0000; Ac. 13338892; São Sebastião da Grama; Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Fortes Barbosa; Julg. 19/02/2020; TJRS; AG 336811-46.2018.8.21.7000; Porto Alegre; Sexta Câmara Cível; Rel. Des. Niwton Carpes da Silva; Julg. 28/03/2019. 3 DELLORE, Luiz. Prazo de 180 dias de suspensão das demandas na recuperação judicial (stay period): dias úteis ou corridos?, Migalhas, disponível aqui. 4 Na Quarta Turma do STJ, há precedente no mesmo sentido, em decisão monocrática do Min. Raul Araújo no Ag 1.241.560, julg. 26.5.2017, em que se afirmou: "Uma vez expressamente atacado o crédito quanto à validade das cláusulas pactuadas, era lícito enfrentar os argumentos da defesa, não havendo que se falar em julgamento extra petita. Outrossim, o deferimento do pleito autoral em menor extensão do que o postulado não configura julgamento extra petita, sendo perfeitamente possível o provimento parcial do pedido formulado na inicial". 5 "Arbitramento de verba honorária que depende da litigiosidade do incidente. Caráter litigioso evidenciado. Princípios da causalidade e da sucumbência. Honorários devidos. Precedentes jurisprudenciais. Fixação por apreciação equitativa. Decisão reformada para fixar os honorários advocatícios em R$ 5.000,00. Recurso parcialmente provido" (TJSP; AI 2151027-98.2020.8.26.0000; Ac. 14011259; São Caetano do Sul; Segunda Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Maurício Pessoa). No mesmo sentido, TJAC; AC 0710353-27.2018.8.01.0001; Ac. 22.390; Rio Branco; Primeira Câmara Cível; Relª Desª Denise Bonfim; DJAC 02/10/2020; TJSP; AI 2191502-96.2020.8.26.0000; Ac. 14008359; Franca; Primeira Câmara Reservada de Direito Empresarial; Rel. Des. Cesar Ciampolini; Julg. 29/9/2020. 6 ROQUE, Andre Vasconcelos. Comentários ao art. 136 in GAJARDONI, Fernando da Fonseca et al. Teoria Geral do Processo (Parte Geral) - Comentários ao CPC de 2015. São Paulo: Método, 2019, p. 450-451.
Introdução A presente coluna trata da seguinte questão: há necessidade de participação do Ministério Público nos processos dos quais a empresa em recuperação judicial seja parte? E, caso não participe, há nulidade? 1) Da previsão legal A participação do MP, no processo civil, como "fiscal da ordem jurídica", está prevista no art. 178 do CPC1. Na Lei de Recuperação Judicial e Falência (lei11.101/2005), há menção ao MP em 19 oportunidades, sendo que há relevante atuação do Parquet no trâmite da recuperação judicial2. Mas, não há previsão - nem na LRJ, nem no CPC - acerca da participação do MP em processos dos quais a empresa recuperanda seja parte. Mas, interpretando tais diplomas legais, deve haver a intimação do MP nos demais processos que envolvem a recuperanda (ou seja, não apenas na RJ propriamente dita)?  2) Da tramitação de processos contra a empresa em recuperação: necessário intimar o MP? Vale lembrar que o deferimento da RJ acarreta a suspensão dos processos, pelo prazo de 180 dias3. É o chamado stay period. Mas, superado esse prazo, as demandas voltam a tramitar. Nesse contexto, além de ser intimado na RJ, deve o MP também ser intimado nesses demais processos? A resposta há de ser negativa. Como visto no tópico anterior, não há previsão expressa nesse sentido. E falar em "interesse público" para determinar que o MP participe de TODOS os processos envolvendo a empresa recuperanda é algo que não há como se admitir, ainda que se interprete de forma consideravelmente extensiva o dispositivo. Além disso, a evolução legislativa é outro fator importante para essa conclusão: na revogada Lei de Falência, a previsão era que haveria a participação do MP em TODAS as ações envolvendo a massa falida4 - dispositivo esse que, portanto, não foi repetido na lei nova. 3) Nulidade caso não ouvido o MP? Caso se entenda necessário ouvir o MP - o que, como visto acima, não nos parece ser o caso - a não intimação do Parquet deve significar a nulidade do processo? A resposta passa pela análise do art. 279 do CPC - que inova em relação ao sistema processual anterior. Assim prevê esse artigo (grifos nossos): Art. 279. É nulo o processo quando o membro do Ministério Público não for intimado a acompanhar o feito em que deva intervir. (...) § 2º A nulidade só pode ser decretada após a intimação do Ministério Público, que se manifestará sobre a existência ou a inexistência de prejuízo5. E essa previsão passa, ainda, pela análise de outro dispositivo, o art. 282, § 1º (grifos nossos): O ato não será repetido nem sua falta será suprida quando não prejudicar a parte. Em síntese: (i) só se decreta nulidade após oitiva do MP; (ii) o MP deverá demonstrar a existência de prejuízo, se requerer a nulidade e (iii) o juiz somente decretará a nulidade se existir o prejuízo. Pensando na perspectiva de um processo (seja de conhecimento ou de execução) envolvendo  uma empresa em recuperação, é bastante difícil vislumbrar uma situação em que haja prejuízo se o MP não se manifestar. Ora, a defesa da empresa já será feita pelo seu próprio corpo jurídico, que inclusive estará em atuação na recuperação judicial - tratando-se de uma atuação bastante especializada. E mesmo nos casos em que a empresa se quedar inerte (ausência de manifestação ou revelia), não se vislumbra o prejuízo, pois não se está diante de um incapaz, mas sim de uma empresa que, eventualmente, pode até mesmo ter optado por essa estratégia de não se manifestar. 4) Precedente do STJ: RESP 1.765.288 Os temas ora em análise foram objeto de decisão por parte da 3ª Turma do STJ, em acórdão que reformou anterior decisão do TJSP que havia (i) reconhecido como fundamental a intimação do MP e (ii) diante da ausência de intimação, nulidade. O julgado foi assim ementado (grifos nossos): RECURSO ESPECIAL. EMBARGOS À EXECUÇÃO DE TÍTULO EXTRAJUDICIAL. PRESTAÇÃO DE SERVIÇOS. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. MINISTÉRIO PÚBLICO. INTERVENÇÃO. OBRIGATORIEDADE. AUSÊNCIA. NULIDADE. NÃO OCORRÊNCIA. NEGATIVA DE PRESTAÇÃO JURISIDICIONAL. NÃO VERIFICAÇÃO. 1. Ação ajuizada em 1/7/2014. Recurso especial interposto em 9/4/2018 e atribuído ao Gabinete em 3/10/2018. 2. O propósito recursal é definir se a ausência de intervenção do Ministério Público autoriza o reconhecimento da nulidade dos atos praticados em execução de título extrajudicial onde figura como parte empresa em recuperação judicial. (...) 4. De acordo com o art. 279 do CPC/15, a nulidade decorrente de ausência de intimação do Ministério Público deve ser decretada apenas quando sua intervenção como fiscal da ordem jurídica seja imprescindível. 5. A Lei de Falência e Recuperação de Empresas não exige a atuação obrigatória do Ministério Público em todas as ações em que empresas em recuperação judicial figurem como parte. 6. Hipótese concreta em que se verifica a ausência de interesse público apto a justificar a intervenção ministerial, na medida em que a ação em que a recuperanda figura como parte constitui processo marcado pela contraposição de interesses de índole predominantemente privada, versando sobre direitos disponíveis, sem repercussão relevante na ordem econômica ou social. 7. A anulação da sentença por ausência de intervenção do Ministério Público, na espécie, somente seria justificável se ficasse caracterizado efetivo prejuízo às partes, circunstância que sequer foi aventada nas manifestações que se seguiram à decisão tornada sem efeito pela Corte de origem. RECURSO ESPECIAL PARCIALMENTE CONHECIDO E PROVIDO.(REsp 1.765.288/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 18/08/2020, DJe 26/08/2020) Em linha com o exposto nos tópicos anteriores, parece-nos absolutamente correta a posição do STJ. Mas, vale destacar, ainda não se trata de precedente vinculante; resta verificar como se manifestará a 4ª Turma (outra turma que julga direito privado) e se a 2ª Seção (órgão que reúne as duas turmas de privado) fixará tese nesse sentido. Conclusão Assim, do exposto, em nosso entender: a)       Não há necessidade de intimar o MP em processos envolvendo a empresa em recuperação judicial; b)      Mesmo que se entenda necessária a oitiva do MP, somente haverá nulidade se houver prejuízo - sendo difícil vislumbrar prejuízo na falta de manifestação do MP; c)       O STJ começa a fixar a jurisprudência nesse sentido. Em linha com o preceituado pelo CPC,  necessitamos de uma atuação do MP nos casos em que estritamente necessário, e a nulidade será somente nos casos em que devidamente demonstrado o prejuízo caso o MP não se manifeste6. __________ 1 Art. 178. O Ministério Público será intimado para, no prazo de 30 (trinta) dias, intervir como fiscal da ordem jurídica nas hipóteses previstas em lei ou na Constituição Federal e nos processos que envolvam: I - interesse público ou social; II - interesse de incapaz; III - litígios coletivos pela posse de terra rural ou urbana. 2 Por exemplo, desde o deferimento o MP deve ser intimado (lei 11.101/2005, art. 52, V). 3 LRJ, Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. (...) § 4º Na recuperação judicial, a suspensão de que trata o caput deste artigo em hipótese nenhuma excederá o prazo improrrogável de 180 (cento e oitenta) dias contado do deferimento do processamento da recuperação, restabelecendo-se, após o decurso do prazo, o direito dos credores de iniciar ou continuar suas ações e execuções, independentemente de pronunciamento judicial. 4 DL 7.661/1945, Art. 210. O representante do Ministério Público, além das atribuições expressas na presente lei, será ouvido em toda ação proposta pela massa ou contra esta. Caber-lhe-á o dever, em qualquer fase do processo, de requerer o que for necessário aos interesses da justiça, tendo o direito, em qualquer tempo, de examinar todos os livros, papéis e atos relativos à falência ou à concordata. 5 Acerca desse artigo: "Regra geral, não basta alegar o prejuízo, o Ministério Público tem que demonstrar sua ocorrência efetiva, pois aquele será aquilatado pelo magistrado a quem compete expungir eventuais vícios processuais (artigo 139, inciso IX, do CPC/2015). Cabe, portanto, ao Ministério Público o ônus argumentativo de demonstrar o prejuízo para fins de decretação da nulidade. Mesmo porque, o presente artigo merece uma leitura conjugada com os artigos 277 e 282 do Código (finalidade e prejuízo)" (DUARTE DE OLIVEIRA, Zulmar. Comentário ao CPC/2015: Parte Geral. 3. ed. São Paulo: Método, 2019, p. 839. 6 Vale lembrar aqui passagem de FREDERICO MARQUES, em que critica o MP que atue apenas de "forma decorativa": "[...] se temos um Ministério Público adestrado e bem constituído, não se compreende que ele figure no processo como quinta roda do carro, ali permanecendo em posição secundária ou simplesmente decorativa". (MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal. 2. ed. rev. e atual. Campinas: Millennium, 2000. v. II. p. 344). Nesse sentido, espera-se um MP protagonista na RJ, em prol de soluções adequadas para a RJ - e não manifestando em qualquer caso contra a recuperanda ou tampouco requerendo nulidades por ausência de intimação.
Os grupos de sociedades se tornaram a estrutura societária mais comum para a organização de negócios de maior envergadura, sendo raros aqueles circunscritos a uma única pessoa jurídica. Com isso, o debate em torno da consolidação substancial se acalorou não só nos EUA, palco de origem da doutrina, mas também entre nós, em função de sua aplicação em diversas recuperações judiciais relevantes. A consolidação pode ser meramente processual, na forma de litisconsórcio ativo, de modo que vários devedores pedem recuperação judicial, em um processo único, com ganhos de eficiência e tempo. A seu turno, a consolidação substancial é um passo significativamente mais radical. Ao ser deferida, os vários devedores são considerados como um bloco único com ativos e passivos agrupados. A consequência dessa "consolidação" de devedores é que um só plano de recuperação judicial tratará da revitalização desse conjunto consolidado de devedores, não de cada um deles separadamente, sendo que sua aprovação caberá a um único conjunto de credores, com requisitos de aprovação também aglutinados. Os direitos dos credores contra devedores separados se transformam em direitos contra o devedor consolidado e obrigações ou garantias fidejussórias intragrupo passam a não ter relevância em tal processo. Por aqui, a matéria não recebe, hoje, disciplina legal. O projeto legislativo de reforma da lei 11.101/2005 propõe disciplina inédita, tratando de consolidação processual e substancial, o que é de se aplaudir, dada a insegurança jurídica em torno do assunto. Em sua disposição mais crítica, o art. 69-J prevê os requisitos aplicáveis e, desde logo, ressalta a natureza excepcional da consolidação substancial. Espera-se que esse comando explícito incentive, de fato, uma aplicação refletida, especialmente porque se testemunhava uma adoção liberal e, não raro, sem debate. Os negócios jurídicos são aperfeiçoados com base no princípio da separação da personalidade jurídica. Os credores, investidores, fornecedores, parceiros e outros interessados partiram da premissa que o devedor (um CNPJ) tem um certo conjunto de ativos para satisfazer os seus passivos, ou seja, uma certa relação dívida/ativo. Quando a consolidação substantiva é autorizada, essa equação é alterada de modo inesperado e contra as suas legítimas expectativas. Daí que deve ser infrequente. A respeito, importante julgado norte-americano alerta que "como seus efeitos rearranjam radicalmente personalidades jurídicas, ativos e passivos, a consolidação substancial é tipicamente um mecanismo de uso infrequente, para a conduta de devedores que desconsideram a separação de modo tão acentuado que os seus ativos se tornam tão embaralhados que reorganizá-los seria proibitivo em termos de custo, tempo e energia ou os credores já os percebiam como uma unidade monolítica e lidavam com eles de tal forma"1. Essa questão da percepção do mercado sobre os devedores e o modo como eles se apresentavam é um ponto crucial da doutrina norte-americana que foi pouco explorado por aqui. Se a consolidação substantiva afronta as expectativas dos interessados, eles devem ter o direito de impedi-la, desde que demonstrem que "(1) fiaram-se na separação de uma das sociedades a serem consolidadas; e (2) serão prejudicados pela consolidação substancial"2. Tal proteção aos interessados não foi refletida no Brasil nos julgados passados ou na proposta de nova legislação, mas deveria estar disponível. Vale lembrar que os artigos 231, 232 e 233 da Lei das Sociedades por Ações já preveem proteção expressa a debenturistas e credores, caso seus créditos sejam afetados por uma incorporação, fusão ou cisão, protegendo os direitos deles em situações em que a relação dívida/ativo é alterada e, portanto, comparável à consolidação substancial. A norma atribui ao magistrado o poder de autorizar a consolidação substancial. Submeter aos credores uma proposta de consolidação substancial, em regra, prolonga o processo, pois adia a deliberação sobre o plano. Além disso, tem o potencial de criar conflitos entre os credores, em função das diferentes relações dívida-ativo de cada devedora. O modo de tomada de voto também é binário (i.e., consolidar ou não), sem a discussão das nuances de uma consolidação parcial em grupos com várias empresas. Não se leva em conta em tal votação as diferentes classes de cada credores, que votam por maioria de valor por empresa. Em certos casos, a abordagem adotada foi a de uma votação da consolidação pelos credores em lista já consolidada, com todas as distorções daí decorrentes. Assim, a melhor solução é que o juiz avalie os fatos do caso de forma refletida e independente, levando em conta que a consolidação substancial pode criar injustiças para certos grupos que podem não ter condições de obter maioria em cenários de votação. Para a tomada dessa decisão, é importante que, desde o início, as devedoras já manifestem expressamente a intenção de buscar a consolidação substancial e forneçam a documentação pertinente, incluindo as relações de credores consolidada e não consolidada. Sobre os requisitos, a norma proposta se refere ao termo "interconexão", mas melhor teria sido se tivesse usado "interdependência" já que utilizado em discussões concretas no Brasil e nos EUA. Não obstante, o cerne dos requisitos repousa na confusão patrimonial, conceito já bem sedimentado no contexto da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art. 50 do Código Civil. E a norma esclarece que a confusão deve ser tal que "não seja possível identificar a sua titularidade [de ativos e passivos] sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos". Trata-se de um transplante parcial dos requisitos estabelecidos no precedente norte-americano In Re Owens Corning: ".[e]m nosso Tribunal, o que deve ser provado (ausente consentimento), em relação às empresas cuja consolidação substancial se pleiteia, é que (i) antes do protocolo, elas desconsideraram a separação tão significativamente que seus credores se basearam na eliminação dos limites entre as pessoas jurídicos e as trataram como uma só, ou (ii) após o protocolo, seus ativos e passivos se encontram tão emaranhados que os separar seria proibitivo e prejudicaria todos credores. Os proponentes de consolidação substancial têm o ônus de provar uma ou outra razão para a consolidação"3. Há ainda uma lista de quatro fatores, dos quais dois devem ser satisfeitos, em adição à interconexão e confusão patrimonial, a saber: existência de garantias cruzadas; relação de controle ou de dependência; identidade total ou parcial do quadro societário; e atuação conjunta no mercado entre os postulantes. A lista, porém, é visivelmente incompleta e é difícil compreender a opção por exigir dois entre quatro requisitos. Melhor teria sido uma lista exemplificativa aberta, desprendida de fórmulas, já que existem outros fatores evidentemente relevantes como demonstrações financeiras consolidadas, uso de conta bancária comum, compartilhamento de despesas operacionais ou de pessoal, decisões conjuntas pela administração, sede em local comum, transferências de ativos e valores dentro do grupo, não observância de formalidades societárias e ausência de registros em livros sociais. Da breve exposição acima, conclui-se que o projeto de lei atualmente sob apreciação do Senado Federal é um importante passo em prol de maior segurança jurídica, ao incluir disciplina expressa sobre consolidação substancial, mas há espaço para melhoria na redação do art. 69-J em diversos pontos. A omissão mais estrutural é detectada ao se analisar os precedentes norte-americanos. A consolidação substancial não deve ser admitida, caso credores demonstrem que confiaram e se basearam na separação da personalidade jurídica de um dos devedores; e serão prejudicados como resultado de seu deferimento. Tal direito à oposição nada mais é que um corolário da obrigação dos proponentes da consolidação substancial de demonstrar a confusão patrimonial existente antes do processo, em um grau que fazia com que o mercado os enxergasse como uma empresa única. De todo modo, é prudente que credores ou interessados em negócios com grupos de empresas conduzam análise legal (due diligence) acerca do risco de consolidação substancial. Com base nela, é possível equalizar a avaliação de risco e negociar termos e condições contratuais para mitigá-lo. A documentação poderá, inclusive, fazer prova de que o credor confiou no fato de que a empresa respeitava a separação da personalidade jurídica e não havia confusão patrimonial. *Alex Hatanaka é sócio do escritório Mattos Filho, Veiga Filho, Marrey Jr. e Quiroga Advogados. __________ 1 Genesis Health Ventures, Inc v Stapleton (In Re Genesis Health Ventures, Inc) 402 F 3d 416, 423 (3d Cir 2005) (tradução nossa). 2 Eastgroup Properties v Southern Motel Assoc, Ltd, 935 F 2d 245 (11th Cir 1991) (tradução nossa). 3 In Re Owens Corning, 419 F 3d 195 (3d Cir 2005) (tradução nossa).
Verificamos nesta última semana polêmica decisão proferida liminarmente pelo ministro Luiz Fux (Medida Cautelar na Reclamação 43.169-SP), determinando a necessidade da apresentação de certidões negativas de débitos tributários (CNDs) como condição da concessão de recuperação judicial, nos termos do art. 57 da lei 11.101/05 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional (CTN). Tentaremos nesse artigo trazer uma análise da decisão proferida, tanto sob o aspecto procedimental quanto em relação ao mérito do problema. A questão procedimental Sob a perspectiva procedimental, a liminar suspende os efeitos de decisão do Superior Tribunal de Justiça, sob o argumento de que este tribunal, ao afastar a   aplicação   dos   artigos 57 da lei 11.101/2005 e 191-A do CTN, com fundamento no princípio da proporcionalidade, teria realizado controle difuso de constitucionalidade, atividade inerente à Corte Especial daquele Sodalício. Nesse aspecto, entendemos que a decisão do ministro Fux é irretocável. Com efeito, se o STJ nega aplicação a um artigo de lei, sob a alegação de que viola um princípio constitucional (proporcionalidade), atrai para o julgamento da matéria a cláusula de reserva de plenário, prevista no art. 97 da Constituição. Melhor seria, portanto, que o STJ tivesse enfrentado claramente a questão de constitucionalidade envolvendo os   artigos   57 da lei 11.101/2005 e 191-A, do CTN em julgamento de plenário ou do respectivo órgão especial. Mas a questão formal traz menos relevância como precedente, uma vez que pode ser corrigida em outros processos que discutam o assunto. O grande problema da decisão envolve seus aspectos de mérito, uma vez que ingressa na discussão sobre a necessidade da apresentação das CNDs para a obtenção da recuperação judicial. Essa, aliás, é uma das matérias mais polêmicas desde a publicação da atual lei de recuperação e falências (LREF), não tendo, mais de quinze anos após sua vigência, encontrado pacificação. Passaremos a analisar o mérito da questão a seguir. A base do problema: situação tributária do devedor em recuperação A polêmica, em resumo, inicia-se a partir de uma situação fática: devedores em fase de recuperação costumam ter passivos tributários vultosos. A explicação para tanto deriva de que, em estado patrimonial deficitário e na tentativa de manter a atividade empresarial em funcionamento, o devedor se vê obrigado a pagar prioritariamente a seus trabalhadores, aos fornecedores e àqueles que lhe concedem crédito, sem que usualmente sobrem recursos para, ao mesmo tempo, adimplir suas obrigações tributárias. Isso é o que normalmente ocorre e não há que se fazer nenhum julgamento moral sobre esse comportamento, uma vez que é racional e economicamente esperado. Na conjuntura supracitada, não é difícil constatar que exigir quitação dos débitos tributários como condição para a obtenção da recuperação judicial equivale a, por via oblíqua, inviabilizar o instituto, pois raros serão os devedores em condições regulares com o Fisco. Justamente por isso, a exigência do art. 57 da lei 11.101/05 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional (CTN) nasceu em conjunto com a Lei Complementar 118/05, que deu nova redação ao art. 155-A, § 3º, do CTN, dizendo que: "Lei específica disporá sobre as condições de parcelamento dos créditos tributários do devedor em recuperação judicial". Com a previsão de parcelamento, a ser regulado em lei específica, pensou-se inicialmente que o devedor poderia equacionar razoavelmente seu passivo tributário. Ocorre que, aparentemente, o legislador não se apressou em regular o parcelamento aludido, que só foi previsto depois de quase dez anos da vigência da LREF, com o advento da lei 13.043/14. Nesse meio tempo, a jurisprudência, de modo sensível à situação dos devedores e visando a não esvaziar o instituto da recuperação judicial, passou a decidir reiteradamente pelo afastamento do art. 57 da lei 11.101/05 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional (CTN), enquanto não houvesse a previsão legal do parcelamento dos débitos tributários do devedor em recuperação, concedendo recuperações judiciais sem a necessidade de apresentação das certidões negativas. As possibilidades de parcelamento dos débitos federais e a transação: lei 13.043/14 e lei 13.988/20 Mesmo após a sobrevinda da lei 13.043/14, notou-se que o parcelamento nela previsto usualmente seria insuficiente para remediar a situação de muitos devedores. Primeiro porque possibilitava parcelamento das dívidas da União, nada trazendo em relação aos Estados e Municípios. Depois porque o tipo de parcelamento que trouxe fixou os pagamentos em máximas 84 (oitenta e quatro) parcelas mensais e consecutivas, calculadas observando-se os seguintes percentuais mínimos, aplicados sobre o valor da dívida consolidada: I - da 1ª à 12ª prestação: 0,666% (seiscentos e sessenta e seis milésimos por cento); II - da 13ª à 24ª prestação: 1% (um por cento); III - da 25ª à 83ª prestação: 1,333% (um inteiro e trezentos e trinta e três milésimos por cento); e IV - 84ª prestação: saldo devedor remanescente. Sem precisão científica e não incluindo eventuais juros e correções sobre as parcelas, um breve cálculo aproximado de Net Present Value (NPV), usando uma planilha de MSExcel® demonstra que, a taxas de desconto próximas àquelas dos juros básicos da economia (p.ex.: 0,2% a.m.), o valor presente do fluxo de caixa permitido pela lei 13.043/14 evidenciaria um desconto normalmente inferior a 10% do débito inicial, o que não seria suficiente para permitir a recuperação de muitos devedores. Diante desse cenário, a jurisprudência, mesmo durante a vigência da lei 13.043/14, continuou a afastar a aplicação do art. 57 da lei 11.101/05 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional (CTN), argumentando-se, a fortiori, que a concessão da recuperação judicial não impedia o Fisco de cobrar seus débitos separadamente e que a legislação que regulou o parcelamento não havia sequer fixado um prazo para a apreciação deste pela autoridade tributária. Os panoramas referentes às dívidas tributárias vieram a se alterar novamente com a edição da lei13.988, de 14 de abril de 2020, que previu a possibilidade de que a União venha a realizar transação nas hipóteses que especifica. Em resumo, a perspectiva que lei 13.988/20 traz é a seguinte: Para os devedores em geral: (1) não permite que se reduza o montante principal do crédito; (2) veda redução superior a 50% (cinquenta por cento) do valor total dos créditos a serem transacionados; (3) obsta que se conceda prazo de quitação dos créditos superior a 84 (oitenta e quatro) meses; Para o devedor pessoa natural, microempresa ou empresa de pequeno porte: a redução máxima do valor total do crédito será de até 70%, ampliando-se o prazo máximo de quitação para até 145 (cento e quarenta e cinco) meses. As modalidades de transação previstas na lei podem ser realizadas mediante adesão ou por proposta individual. Para se ter uma ideia geral da aplicação da legislação supracitada, vamos imaginar o caso hipotético de um devedor que não se constitua como ME, EPP ou pessoa natural e cuja dívida tributária seja de R$ 15 milhões. Usando os termos de alguns editais já publicados pela PGFN, vamos imaginar, em cálculo simples e sem grandes rigores, que a transação pactuada preveja pagamento de entrada no valor mínimo de 5%, sem reduções, em 5 (cinco) parcelas mensais e sucessivas, sendo o restante parcelado em até 79 (setenta e nove) meses, com redução de 10% (dez por cento). Usando uma taxa de desconto mensal de 0,2% a.m. (próxima da equivalente mensal da atual SELIC), o valor presente dessas prestações seria de R$ 12.479.912,48, o que significa que, na transação imaginada, haveria um desconto total de 16,80% em relação ao valor inicial da dívida, o que traz panorama melhor, em princípio, do que o mero parcelamento previsto na lei 13.043/14, mas pode ficar longe do suficiente para reerguer grande parte dos devedores em recuperação, seja porque os deságios serão baixos, seja porque os prazos do parcelamento serão exíguos. Note-se, dos termos da legislação, que o Fisco não renuncia a nenhuma parte do principal de seu crédito, abandonando apenas parte dos juros e da multa, que, diga-se de passagem, costumam ser elevadíssimos no Brasil, incrementando sobremaneira as dívidas tributárias. Saliente-se novamente que a lei 13.988/20 cuida apenas de transação referente a tributos da União, sem considerar as burocracias e peculiaridades legislativas/administrativas que o devedor terá de enfrentar para obter CNDs de autoridades tributárias estaduais e municipais a que estiver sujeito. Portanto, exigir parcelamento tributário ou transação e a consequente expedição de CND para a obtenção de recuperação judicial, nos termos em que foram propostos na lei 13.043/14 e na lei 13.988/20 parece algo bastante distante da realidade econômica dos devedores em recuperação. Mas os problemas trazidos com a decisão da Medida Cautelar na Reclamação 43.169-SP não param por aí. O problema da superação judicial de eventual resistência do credor Deve-se salientar que, em relação ao Fisco, ao contrário do que ocorre com outros devedores, a LREF não prevê mecanismos suficientes para superar a situação de recalcitrância do credor (holdout problem). Com efeito, para os credores que resistem injustificadamente à aprovação do plano de recuperação judicial, a LREF estabelece dispositivos para que o juiz possa suplantar esse tipo de resistência, impondo a vontade da maioria, utilizando-se, por exemplo, do mecanismo do cram down previsto no art. 58, § 1º. Aliás, até mesmo a jurisprudência tem desenvolvido meios de superação do voto abusivo de credor que opõe objeção jurídica ou economicamente injustificável ao plano. Em relação aos créditos tributários, o panorama parece bem distinto. Por um lado, podemos pensar que o parcelamento tributário é direito do contribuinte, pois o Fisco não poderia negá-lo ao devedor que preenchesse os requisitos legais, mesmo que somente se defira tal direito ao contribuinte que cumpra as condições previamente estabelecidas (com certa discricionariedade) pelo Fisco. Quando se vislumbra, entretanto, a transação tributária prevista na Lei 13.988/20, notadamente naquela espécie realizada por proposta ou aceitação individual, a discricionariedade do Fisco é muito mais pronunciada. Com efeito, as transações tributárias podem vir acompanhadas de exigências de garantias, valores mínimos de entrada e renúncias por parte do contribuinte. Há vários critérios de aceitação, incluindo análise de capacidade econômica do contribuinte, recuperabilidade do crédito etc. Antes de ingressar em recuperação judicial, aliás, algumas dívidas só podem ser transacionadas por adesão, como ocorre com o caso daquelas inferiores a R$ 15 milhões (art. 4º, §1º e art. 32, I, da Portaria PGFN nº 9917, de 14 de abril de 2020), o que obriga o contribuinte a aguardar a publicação de edital propondo a transação e aceitar integralmente seus termos. Suponhamos então que, com base em alguns desses critérios, vários deles bastante subjetivos, o Fisco se recuse a propor ou a aceitar uma transação? Como resolver? Como poderia o juiz da recuperação superar a recalcitrância? Simplesmente não há meios para tanto. Assim, no caso de resistência injustificada, mas dentro dos parâmetros legais, à concessão da transação, ficaria o credor tributário com verdadeiro poder discricionário de veto sobre a possibilidade de soerguimento do devedor, uma vez que o juiz da recuperação não teria mecanismos para superar a recalcitrância. Ocorreria, mutatis mutandis, algo semelhante a conceder ao Fisco uma golden share na recuperação judicial: não participa das assembleias, não vota, não se submete ao plano, mas tem o irrestrito poder de vetar a decisão tomada pelos demais credores, tornando sem efeito a deliberação que aprovou o plano de recuperação. A imposição de maiores riscos à concessão da recuperação e as consequências sobre a concessão de crédito ao devedor Como se sabe, um dos maiores problemas do devedor em recuperação é a obtenção de crédito. Pode-se dizer, nessa linha, que quase todas as propostas legislativas que buscam alterar o atual regime da recuperação judicial tendem a incluir dispositivos que facilitem a concessão de crédito ao devedor. Em resumo, tem-se que o crédito é o coração do processo de recuperação. Sem condições facilitadas para tanto, raríssimos serão os devedores que obterão sucesso na caminhada para a normalidade de seus negócios. Com a decisão tomada na Medida Cautelar na Reclamação 43.169-SP, entretanto, aumenta o risco de falência decorrente de o devedor eventualmente não conseguir obter junto ao Fisco transação ou parcelamento de suas dívidas e a(s) correspondente(s) CND(s). Não é preciso ser um expert para saber que maiores riscos de insolvência farão escassear ou encarecer o crédito para o devedor em recuperação, justamente quando este mais necessita da fidúcia de seus credores. A decisão tende a dificultar linhas de crédito bancário e até mesmo a negociação de planos de recuperação de devedores com passivos tributários sem condições de obter rapidamente parcelamento ou transação. Dados os riscos envolvidos, talvez os próprios credores passem a exigir CNDs como condição de crédito ou de anuência ao plano. Trocando variáveis de estoque por variáveis de fluxo e a dissonância com o PL 6.229/2005 Em favor da decisão em comento, há quem argumente que, em não se exigindo CND para a concessão da recuperação judicial, violar-se-ia o privilégio do crédito tributário, além de inviabilizar sua cobrança, pois, além de o Fisco não participar da recuperação judicial, ficaria impedido de realizar atos de constrição patrimonial, pois estes estariam submetidos ao crivo do juízo da recuperação, conforme jurisprudência que tem se consolidado. Não nos parece que esses argumentos sejam procedentes. Primeiramente, o privilégio concedido ao crédito tributário visa a garantir, dentro de determinados parâmetros, que o Fisco tenha relativa prevalência para alcançar bens de devedores em situação patrimonial deficitária definitivamente constituída. Incide naquela situação em que os ativos do devedor não bastam para pagar os passivos e não haja mais possibilidade de soerguimento do devedor. A lógica da prerrogativa dada ao crédito tributário, portanto, opera-se em relação aos créditos passados, quando a situação do devedor não mais permita o ingresso de novas receitas e a continuidade do negócio. Quando, diversamente, tenha-se a perspectiva de continuidade da atividade empresarial, conceder ao Fisco um privilégio absoluto para recebimento antecipado de seus créditos pode acarretar - e normalmente acarreta - a morte da fonte produtora. Com isso, não é difícil antever que o Fisco acabaria por fazer uma troca de bens futuros por bens presentes, em prejuízo de seus próprios interesses, recebendo seu crédito passado com prioridade sobre alguns dos demais credores, mas provocando a cessação da empresa, com a consequente renuncia à futura arrecadação que a atividade produziria. No jargão econômico, equivale a dizer que haveria a troca de uma variável de estoque (total de créditos até o momento presente) em detrimento de uma variável de fluxo (arrecadação futura). Para usar uma semelhança do cotidiano, é como se trocássemos uma banheira cheia de água (estoque), destinada à higiene presente, renunciando aos banhos futuros decorrentes da vazão (fluxo) que a companhia de saneamento poderia prover no porvir. Também não nos parece acertado argumentar que o Fisco, com a recuperação da empresa, estaria impedido de praticar atos de constrição de bens do devedor. O que a jurisprudência vem ressaltando é que atos de constrição praticados em execuções fiscais devem estar submetidos ao crivo do juízo de recuperação. Nada mais natural, aliás, uma vez que, por princípio geral, se todos os credores agirem autônoma e simultaneamente sobre o patrimônio de um devedor em posição patrimonial deficitária, acabarão por inviabilizar a respectiva recuperação. Por fim, acredita-se que a decisão não está em consonância com as mudanças que ora se discutem na disciplina das recuperações, notadamente em relação àquelas inseridas no PL 6.229/2005, recentemente aprovado pela Câmara dos Deputados, que prevê, dentre outras medidas, formas mais flexíveis e em consonância com a realidade econômica nacional, notadamente no tocante ao parcelamento dos débitos tributários. Conclusões Assim, por acarretar prejuízo à sociedade, dificultando ou inviabilizando a recuperação de empresas, a manutenção dos empregos e a produção de riquezas que beneficiam a todos, espera-se que decisão liminarmente tomada na Medida Cautelar na Reclamação 43.169-SP, ressalvadas as questões processuais envolvidas, seja superada no próprio julgamento de mérito pelo STF ou com a aprovação definitiva do PL 6.229/2005.
A recuperação judicial é um instituto do direito de insolvência voltado a conferir uma oportunidade à determinada atividade empresarial de superação de uma situação de crise econômica-financeira momentânea. Em abandono ao instituto da concordata, cuja solução era eminentemente legalista e com alta intervenção judicial, o legislador buscou conferir, através da recuperação judicial, uma solução de mercado à superação da crise da empresa, mediante a discussão e eventual aprovação pelos credores do empresário de um plano de soerguimento por ele apresentado. Isso porque a recuperação de uma atividade empresarial necessita de soluções econômicas para que haja possibilidade de sucesso. Depende de escolhas inerentes ao exercício da livre iniciativa e somente aqueles que estão no mercado é que possuem condições de avaliar se as escolhas propostas pelo empresário podem ser suscetíveis de êxito no âmbito do empreendedorismo. Não foi por outra razão que o Senador Ramez Tebet, em seu relatório sobre o PLC 71/2003, que resultou na lei 11.101/2005, elencou como um dos princípios fundamentais do sistema de insolência a participação ativa de credores, verbis: PARTICIPAÇÃO ATIVA DOS CREDORES. Fazer com que os credores participem ativamente dos processos de falência e de recuperação, a fim de que, em defesa de seus interesses, otimizem os resultados obtidos, diminuindo a possibilidade de fraude ou malversação dos recursos da empresa ou da massa falida. Portanto, a recuperação judicial deve ser considerada um instituto híbrido composto por elementos e questões tanto de ordem econômica como de ordem jurídica. Seu sucesso e o da atividade que busca o soerguimento depende da compreensão dessas características, a fim de que cada qual seja debatida e observada na sua esfera de incidência. O soerguimento de uma atividade depende de um plano realista e consentâneo com elementos de mercado e é dependente do contexto econômico no qual será aplicado. Mas a sua construção deve respeitar os limites legais, de ordem processual e material, existentes no ordenamento jurídico, com vistas à garantia de higidez do procedimento e da livre manifestação de vontade das partes, num ambiente de transparência e supervisão judicial. A jurisprudência é uníssona sobre esse entendimento. Os precedentes dos Tribunais de Justiça do país e do Colendo Superior Tribunal de Justiça ressoam ser dos credores a titularidade da análise de viabilidade da atividade empresarial, para fins de recuperação judicial, competindo ao Poder Judiciário apenas o controle sobre os aspectos de legalidade do plano votado, sem poder se imiscuir nos aspectos econômicos discutidos. O problema enfrentado nos dias atuais é a escorreita depuração sobre quais seriam elementos de ordem econômica e quais seriam elementos de ordem legal, para fins de controle do plano votado. A jurisprudência já tem alcançado diversas definições, mas o dinamismo da atividade empresarial sempre proporciona novos desafios a serem apreciados. A consequência desse processo de depuração ainda em construção são as inúmeras discussões levadas ao Poder Judiciário, sob a tese de que se tratariam de aspectos de legalidade do plano, quando, na realidade, configurariam questões de ordem econômica em seu sentido puro ou, ainda, questões que podem se revestir de caráter econômico e jurídico ao mesmo tempo. E ainda vivemos um cenário de certa imprevisibilidade sobre o âmbito de incidência de um dirigismo judicial acerca do plano votado, pois muitas dessas questões são interpretadas ora como de ordem legal, ora como de ordem econômica, não existindo completa definição sobre os limites de uma intervenção estatal nesse processo negocial. Com os fenômenos do pós-positivismo e do neoconstitucionalismo houve uma profunda alteração na hermenêutica das regras de direito privado, através de um viés de busca da igualdade material em contraposição à antiga concepção de constitucionalismo liberal, abandonando os dogmas de individualismo e absenteísmo estatal para inserção de metodologias de um dirigismo comunitário liderado pelos poderes estatais voltando a visão do direito para um conteúdo mais social, no sentido de se exigir dos titulares de um determinado direito a observância do cumprimento de sua função social, mediante baldrames axiológicos de eticidade, socialidade e operabilidade. Entretanto, a desmedida intervenção estatal na ordem econômica, sob os mais variados aspectos, impede o desenvolvimento do mercado e dificulta o exercício do empreendedorismo, ocasionado, em consequência, diminuição dos benefícios sociais decorrentes da atividade empresarial, como a geração de empregos, arrecadação de recursos para o Estado, a manutenção e a criação de novas relações comerciais, a inserção de melhores produtos e serviços no mercado pela livre concorrência entre atividades. Sobrevém, então, a Lei da Declaração dos Direitos de Liberdade Econômica, cujo escopo é a melhora do ambiente para o exercício de atividades econômicas no país. Segundo a exposição de motivos da MP 881, de 2019, convertida na lei 13.874/2019: Por meio da Exposição de Motivos Interministerial (EMI) nº 00083/2019 ME AGU MJSP, datada de 11 de abril de 2019, a Medida Provisória (MPV) nº 881, de 2019, foi justificada pela necessidade urgente de afastar a percepção de que, no Brasil, o exercício de atividades econômicas depende de prévia permissão do Estado. Esse cenário deixaria o particular sem segurança para gerar emprego e renda. E daí decorre o fato de o Brasil figurar "em 150º posição no ranking de Liberdade Econômica da Heritage Foundation/Wall Street Journal, 144º posição no ranking de Liberdade Econômica do Fraser Institute, e 123º posição no ranking de Liberdade Econômica e Pessoal do Cato Institute". A liberdade econômica, continua a EMI, é fundamental para o desenvolvimento de um país, ainda mais no caso do Brasil, que atualmente está mergulhado em crise econômica. Estudos envolvendo mais de 100 países a partir da segunda metade do século XX comprovam essa relação entre a liberdade econômica e o progresso. A MPV empodera o particular e insurge-se contra os excessos de intervenção do Estado, com vistas a estimular o empreendedorismo e o desenvolvimento econômico. A lei 13.874/2019 buscou proporcionar a melhoria do ambiente negocial e de mercado em nossa economia de livre iniciativa, cujos preceitos possuem efeito vinculante aos entes federativos e imposição de interpretação e aplicação sistêmica das normas da Lei, mediante o estabelecimento do entendimento de que a intervenção do Estado nas atividades regidas pela livre iniciativa deve ocorrer somente em casos de imprescindibilidade, prestigiando-se, no mais e em maior medida, a liberdade de vontade e de atuação dos agentes. Por se tratar de uma declaração de direitos, atribui-se ao sujeito privado o direito subjetivo de conteúdo determinado (disciplina jurídica mais precisa e determinada - fornecimento de soluções específicas), oponível diretamente ao Estado, para o livre exercício de atividades econômicas, respeitados os limites de boa-fé e do cumprimento da função social do direito respectivo, propondo, outrossim, um dirigismo estatal sobre a livre iniciativa mais otimizado e menos denso. Um importante critério hermenêutico trazido pela lei está no brocardo IN DUBIO, PRO LIBERTATEM. Isso porque temos a cultura de interpretar em sentido oposto ao da liberdade, com entendimentos muitas vezes restritivos e formalistas que repercutem até mesmo no exercício do direito privado pelos agentes econômicos, através de uma "postura de prudência" para justificar a tomada de uma decisão, sob a falsa premissa de se respeitar o ordenamento constitucional. Pela adoção de tal critério hermenêutico, deve ser abandonada essa posição entendendo que a liberdade de iniciativa envolve o prestígio à escolha de objetivos particulares, de modo a tornar o direito privado cada vez mais privado. No âmbito da recuperação, a aplicação da lei 13.874/2019 pode funcionar como importante critério hermenêutico na depuração sobre quais são as questões efetivamente de natureza econômica, nas quais deve prevalecer a autonomia da vontade, e quais são as questões de natureza jurídica que devam ser enfrentadas pelo Poder Judiciário. E, no âmbito da autonomia de vontade, importante rememorar o judicioso voto do Eminente Ministro Moura Ribeiro nos autos do REsp 1.532.943-MT, acerca da prevalência da vontade coletiva oriunda da deliberação em AGC sobre as vontades individuais, assim vernaculamente posto: A vinculação do plano a todos os credores, tanto os que expressaram sua anuência como aqueles que não concordaram com as deliberações da AGC, é destacada por HUMBERTO LUCENA PEREIRA DA FONSECA e MARCOS ANTÔNIO KOHLER: [...] a nova Lei enfatiza o soerguimento de empresas viáveis que estejam passando por dificuldades temporárias, a fim de evitar que a situação de crise culmine com a falência. Nesse sentido, é extinta a ineficiente concordata e criado o instituto da recuperação judicial, que tem como principal característica o oferecimento aos credores de um plano de recuperação que, na prática, envolverá negociações e concessões mútuas , além de providências e compromissos do devedor visando a persuadir os credores da viabilidade do plano. Esse plano deverá ser aprovado pela maioria dos credores em assembleia, e a decisão vinculará não só os que expressamente anuírem, mas também os que votarem contrariamente (A nova lei de falências e o instituto da recuperação extrajudicial. Texto para discussão 22. Consultoria Legislativa do Senado Federal. Brasília, abril/2005 - sem destaque no original). No mesmo sentido é a doutrina de PAULO FERNANDO CAMPOS SALLES DE TOLEDO: O direito das empresas em crise tem como uma de suas características básicas o fato de reger relações em que se situa, de um lado, o devedor, e de outro a coletividade dos credores. [...] Ora, como se trata de uma coletividade, e, em especial, de uma comunhão, não pode deixar de existir um meio específico para a expressão da vontade comum. Aplica-se, para tanto, o princípio da maioria , consagrado no direito societário, e também no direito público quando prevê a eleição majoritária. Assim, nas matérias submetidas à deliberação assemblear, a manifestação do órgão faz-se em obediência ao resultado da votação, prevalecendo a maioria, atendidos os requisitos exigíveis. Manifesta-se, desse modo, pela assembleia geral, a vontade coletiva dos credores. No dizer de Marlon Tomazette , de modo semelhante, a assembleia geral das sociedades anônimas, nos regimes instituídos pela LRE, "como órgão de deliberação, a assembleia tem a competência de expressar a vontade da massa de credores, isto é, a vontade coletiva interpretada como vontade unitária do grupo, vinculando inclusive credores ausentes (O Plano de Recuperação e o Controle Judicial da Legalidade. In Revista de Direito Bancário e do Mercado de Capitais: RDB, v. 16, n. 60, abr./jun. 2013 - sem destaque no original). Portanto, em contraposição ao sistema anterior, em que não havia possibilidade de negociação, se descortina um sistema que prima pela composição das partes por meio do voto em assembleia. E esse novel sistema não teria eficácia sem a vinculação dos credores às deliberações majoritárias. Logo, apenas em aspectos de legalidade, como o Colendo Superior Tribunal de Justiça também já decidiu em outras oportunidades, é que eventual situação não se sujeitará aos termos do plano aprovado, devendo prevalecer a regra de submissão de todos à vontade coletiva formada pela votação resultante da AGC. Outro ponto que não pode ser desconsiderado no âmbito da recuperação judicial, em virtude da sua natureza econômica, são os poderes econômicos existentes e, por vezes divergentes, revelados nas pessoas dos credores que buscam recuperar os investimentos feitos na atividade empresarial. E tais poderes econômicos irão se mostrar conforme a natureza do crédito sujeito e o vulto do investimento realizado na empresa. Assim, alguns credores podem assumir alguma posição de superioridade em relação a outros, como decorrência natural dos investimentos por eles realizados ou por negociações mais promissoras que lhes garantiram uma condição mais vantajosa no ambiente de negociação da recuperação judicial. É importante que essa dinâmica seja preservada em respeito à confiança dos investidores no sistema. Certamente aquele que intenciona maior volume de investimentos numa atividade empresarial espera o retorno econômico de suas ações e, caso enfrente uma situação de crise do seu parceiro comercial, terá a legítima expectativa de preservar seu poder de negociação no plano a ser apresentado, na proporção dos investimentos realizados ou das garantias que detém, presumindo-se a boa-fé nas relações predecessoras que lhe conferiram tal posição econômica. O que deve ser coibido pelo Poder Judiciário é o abuso de determinado poder econômico, que poderá se revelar por uma imposição irracional de sua vontade contra a possibilidade concreta de soerguimento da atividade, assim reconhecida pelos demais credores, ou mediante a imposição de sacrifícios desproporcionais ao devedor e aos demais credores em posição menos vantajosa, para o atendimento exclusivo de um direito descurado de sua função social por macular as finalidades contidas no art. 47 da lei 11.101/2005. Todas essas considerações são importantes porque a prática tem demonstrado que muitas discussões envolvendo questões de legalidade na análise do plano envolvem os pontos acima mencionados e que nem sempre são trazidos com um rigor na revelação de sua real natureza jurídica. Não raro, muitas situações são trazidas ao Poder Judiciário sob a roupagem da discussão de um aspecto de legalidade quando, na realidade, tal postura busca pressionar o devedor em determinada negociação ou aumentar a vantagem de um poder econômico de menor expressão frente aos demais numa determinada negociação . Todas essas demandas existem e merecem a devida atenção para evitar um dirigismo judicial sobre o ambiente de negociação sem justa causa para tal interferência, na medida em que a vontade coletiva da AGC pressupõe uma organização legal própria para sua composição, constante do art. 45 da lei 11.101/2005 e fundado em situações anteriormente consolidadas pelas relações comerciais construídas entre o empresário em crise e seus credores. Tais realidades não podem ser desprezadas e fazem parte do conjunto que compõe o processo de recuperação judicial. Embora ainda não analisada no âmbito de apreciação de planos votados em AGC, a Lei das Liberdades Econômicas pode funcionar como importante instrumento de depuração da intervenção judicial no processo de negociação entre o devedor e seus credores, privilegiando a liberdade da manifestação de vontade, o que já é visto inclusive nas situações envolvendo transações entre credores trabalhistas e consumeristas em face de seus devedores nas respectivas jurisdições, reservando a atuação judicial apenas para as hipóteses de clara violação de dispositivos legais de ordem pública ou evidente prejuízo ocasionado por abuso de direito. Ao comentar a interpretação dos negócios jurídicos à luz da Lei 13.874/2019, Paula A. Forgioni1 assim dispõe, verbis: 5. As liberdade econômicas não são apenas um "poder agir", mas também a garantia de poder agir. Se a livre-iniciativa é constitucionalmente amparada, à empresa está outorgada a garantia de atuar conforme seus interesses, respeitados os limites postos pela própria Constituição e pelas Leis [princípio da legalidade]. Ao mesmo tempo, as faculdades advindas das liberdades constitucionais não são atribuídas aos agentes para que eles possam "fazer o que quiser", mas para viabilizar o adequado funcionamento do mercado, gerando riquezas, impostos, empregos e bem-estar social. ... Nesse prisma, o princípio da legalidade é fundamental para a organização do sistema econômico. As liberdades econômicas constitucionais devem ser lidas em conjunto com o princípio da legalidade, por serem verso e reverso da mesma medalha. A empresa é livre para agir, para empreender. Contudo, essa liberdade é limitada pela Lei; à empresa é facultado organizar-se e contratar, desde que o faça dentro de parâmetros preestabelecidos pelo ordenamento jurídico. Nenhum agente "será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei" [cf. Art. 5º, II, da Constituição Federal]. Para a empresa, o texto normativo é, ao mesmo tempo, limite e garantia de sua liberdade.  A recuperação judicial deve ser compreendida como componente do universo do exercício de livre-iniciativa e o seu resultado assemblear consistente na aprovação do plano pelos credores é reconhecido por ter natureza jurídica contratual, razão pela qual a forma de interpretação acima citada cabe perfeitamente quando da aplicação do instituto e, como dito alhures, já vem sendo reconhecida pela jurisprudência, devendo apenas o Poder Judiciário aprimorar a devida depuração sobre o que é aspecto de legalidade a ser por ele enfrentado e o que é questão atinente aos aspectos econômicos da recuperação judicial, a qual deverá circunscrever-se às deliberações entre devedor e credores, privilegiando-se, neste ponto, a liberdade inerente à autonomia de vontade sem vícios. __________ 1 Comentários à Lei da Liberdade Econômica. Lei 13.874/2019. Coordenadores Floriano Peixoto Marques Neto, Otávio Luiz Rodrigues Jr., Rodrigo Xavier Leonardo. São Paulo.Thomson Reuters Brasil. 2019. Páginas 366 e 367.
Texto de autoria de Paulo Penalva Santos SUMÁRIO: 1. Introdução. 2. O conceito de filial e de UPI. 2.1. Utilidade da cisão parcial para criação de UPI. 3. Exclusão da sucessão na alienação de UPI na recuperação judicial. 3.1. Responsabilidade por sucessão na cisão parcial - a regra do direito societário. 3.1.1. Prevalência da regra da não sucessão pelo critério da especialidade. 3.2. Sucessão tributária na cisão parcial e na transferência de estabelecimento. 3.2.1. Irrelevância da forma adotada na criação da UPI para garantir a blindagem contra a sucessão tributária. 4. Conclusões. 1. Introdução O objetivo deste trabalho é tratar da alienação em processo de recuperação judicial de Unidade Produtiva Isolada ("UPI") que tenha origem em cisão parcial, bem como da aplicabilidade à alienação da UPI assim criada, das normas do Código Tributário Nacional ("CTN") introduzidas pela Lei Complementar nº 118/2005 e da Lei nº 11.101/2005 ("LFR") que afastam a sucessão do adquirente de filiais ou UPIs nas obrigações do devedor. A possibilidade de venda de estabelecimentos e UPIs livres de sucessão, inclusive tributária e trabalhista, é fator relevante para atrair interessados na aquisição, o que se reflete na valorização do ativo e viabiliza o atingimento do escopo da recuperação judicial, indicado no artigo 47 da LFR1. A valorização do ativo contribui para o soerguimento do devedor em recuperação judicial, tanto quando os recursos obtidos são direcionados ao pagamento de credores, como quando são direcionados a investimentos nas atividades remanescentes, conforme a estratégia econômica negociada entre o devedor em recuperação judicial e os seus credores. Além disso, a sobrevivência de estabelecimentos ou UPIs alienados na titularidade do adquirente, como empresa que se destacou da alienante, também atende o escopo da recuperação judicial indicado no artigo 47 da LFR, porque o que LFR protege não é o empresário, mas a atividade empresária, que cumpre a sua função social, gerando empregos e riquezas. 2. O conceito de filial e de UPI Não é qualquer alienação no processo de recuperação judicial que afasta a sucessão do adquirente nas obrigações do devedor. Somente na transferência de filial ou de UPI é que o adquirente terá a proteção da aquisição livre de responsabilidade pelas dívidas do devedor em recuperação judicial. Daí a relevância de se buscar conceitos, cuja dificuldade decorre exatamente da falta de definição legal desses institutos2. A filial pode ser considerada uma parcela do estabelecimento, mas com a característica definida por Alberto Caminã Moreira, de "unidade autônoma de negócios somente sob a ótica econômica"3. O Código Civil define estabelecimento, como sendo "todo complexo de bens organizado, para o exercício da empresa, por empresário, ou por sociedade empresária"; a filial seria uma parcela desse estabelecimento principal, mas, evidentemente, sem existência de personalidade jurídica própria4. O grande problema está na definição de UPI, porque esse conceito não é jurídico, mas sim econômico. Destacando a relevância da ótica econômica, Alberto Caminã Moreira ressalta: "tanto a filial como a unidade produtiva isolada são aquelas que, desmembradas do estabelecimento originário, poderão continuar operando empresarialmente na produção de bens e serviços; é uma forma de preservação de ativos produtivos, de racionalização e reorganização na administração da empresa devedora, de preservação de empregos etc. em consonância com o disposto no art. 47. É uma preservação parcial da empresa nas mãos de outro empresário. Uma indústria de bebidas, por exemplo, pode manter várias unidades produtivas; a alienação de uma das plantas industriais, unidade produtiva isolada, não configura a alienação do estabelecimento comercial, mas de parte dele"5. 2.1. Utilidade da cisão parcial para criação de UPI Conforme ensinamento do Professor Bulhões Pedreira, a função da cisão é dividir uma sociedade, com a transferência de parcela ou parcelas do seu patrimônio para outra ou outras sociedades criadas no procedimento de cisão6. A cisão parcial é, portanto, instituto de grande valia na criação de UPI em processo de recuperação judicial e poderia ser utilizada em casos como, por exemplo, o Parmalat, em que um mesmo estabelecimento tinha várias linhas de produção independentes, como a produção de leite, biscoitos, massas etc. Nesses casos de estabelecimento com diversas linhas de produção, ou de empresa com diversos estabelecimentos, é possível através da cisão parcial criar uma sociedade composta por uma ou algumas linhas de produção, ou por um ou alguns estabelecimentos do devedor. 3. Exclusão da sucessão na alienação de UPI na recuperação judicial Um dos grandes avanços da LFR é a permissão de alienação na recuperação judicial de filiais ou de parte de estabelecimentos sem que o adquirente responda pelas obrigações do devedor, inclusive as tributárias, anteriores à data da alienação. A exclusão da sucessão em quaisquer obrigações do devedor em recuperação judicial, inclusive trabalhista e tributária está prevista no parágrafo único do artigo 60 da LFR e no § 1º, II, do art. 133 do CTN, nos termos seguintes: LFR: Art. 60. Se o plano de recuperação judicial aprovado envolver alienação judicial de filiais ou de unidades produtivas isoladas do devedor, o juiz ordenará a sua realização, observado o disposto no art. 142 desta Lei. Parágrafo único. O objeto da alienação estará livre de qualquer ônus e não haverá sucessão do arrematante nas obrigações do devedor, inclusive as de natureza tributária, observado o disposto no § 1º do art. 141 desta Lei. CTN: Art. 133. A pessoa natural ou jurídica de direito privado que adquirir de outra, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial ou profissional e continuar a respectiva exploração, sob firma ou nome individual, responde pelos tributos relativos ao fundo ou estabelecimento adquirido, devidos até a data do ato: (...) § 1º O disposto no caput deste artigo não se aplica na hipótese de alienação judicial: (...) II - de filial ou unidade produtiva isolada, em processo de recuperação judicial. A distinção relevante consiste no fato de que o art. 133 do CTN afasta a sucessão tributária em processo de recuperação judicial; o art. 60 da LFR é mais restritivo, pois exclui a sucessão apenas nas alienações aprovadas no plano de recuperação. Apesar, de sutil, essa diferença tem gerado enorme perplexidade, pois é frequente a alienação judicial de ativos durante a recuperação judicial sem que tenham sido objeto do plano de recuperação. Por isso surge a seguinte dúvida: a alienação judicial de bens ou direitos não afastaria a sucessão tributária, pelo simples de fato de não ter constado do plano de recuperação? Não obstante a aparente complexidade da questão, na realidade a solução é simples, pois, em se tratando de norma geral de direito tributário, prevista no art. 146, III, da Constituição da República7, deve prevalecer a norma do CTN. Como a atual regra do art. 133 do CTN refere-se genericamente à alienação de filial ou unidade produtiva em processo de recuperação judicial, sem referência expressa à aprovação no plano, parece claro que deve prevalecer a interpretação da norma da lei complementar, que vincula o legislador ordinário nas matérias de sua competência. Ou seja, o inciso II do art. 133 do CTN aplica-se a todas as alienações de filial ou UPI, por uma das modalidades previstas no art. 142 da LFR, independentemente de terem constado do plano de recuperação judicial. 3.1. Responsabilidade por sucessão na cisão parcial - a regra do direito societário O Professor Bulhões Pedreira, analisando a questão referente à sucessão, lembra que no caso de cisão, a sociedade que absorve parcelas de patrimônio sucede a cindida nos direitos e obrigações que compõem a parcela de patrimônio transferida, e não em todo o patrimônio da sociedade cindida. Todavia, a lei 6.404/1976 ("LSA") contém, no § 1º do art. 229 e no art. 2338, normas especiais sobre a sucessão da sociedade cindida que asseguram, tanto na cisão parcial quanto na total, que a sucessão de parcelas de patrimônio tenha - do ponto de vista da garantia dos credores - o mesmo efeito da sucessão universal; e o parágrafo único do art. 233 somente admite a modificação desses efeitos se não houver oposição dos credores: "art. 233 - (omissis) Parágrafo único. O ato de cisão parcial poderá estipular que as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida serão responsáveis apenas pelas obrigações que lhes forem transferidas, sem solidariedade entre si ou com a companhia cindida, mas, nesse caso, qualquer credor anterior poderá se opor à estipulação, em relação ao seu crédito, desde que notifique a sociedade no prazo de noventa dias da data da publicação dos atos da cisão." 3.1.1. Prevalência da regra da não sucessão pelo critério da especialidade No regime da LSA, nos casos de cisão parcial, com delimitação dos direitos e obrigações transferidos para a sociedade criada na cisão parcial e estipulação de ausência de solidariedade com a companhia cindida, a vontade individual do credor que manifestar oposição à estipulação impedirá que a exclusão de responsabilidade produza efeitos em relação ao seu crédito. Mas a possiblidade de o credor exercer os seus direitos individualmente só existe enquanto o devedor é solvente, situação que se altera na crise da empresa, como lecionam João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli, Rodrigo Tellechea: "A situação se transforma com a instauração de um dos regimes de crise: com eles, impõe-se o concurso de credores e o princípio da igualdade (par conditio creditorum). Os credores passam a exercer seus direitos coletivamente e decisões majoritárias podem ser impostas à minoria9." Na nova situação, inaugurada com o deferimento do processamento do pedido de recuperação judicial, os credores reunidos em assembleia passam a desempenhar papel fundamental no destino da empresa. A assembleia geral de credores ("AGC") é um órgão vital no sistema da recuperação judicial, pois tem por atribuição deliberar sobre a aprovação, rejeição ou modificação do plano apresentado pelo devedor, nos termos do art. 35, I, "a", da LFR10. É nela que os credores decidem o destino no devedor, optando pela manutenção ou pelo desaparecimento da sociedade devedora11, exercendo os seus direitos coletivamente e decidindo pelo princípio majoritário. Assim, no caso de o plano de recuperação judicial aprovado pela AGC prever a criação de UPI através de cisão parcial e sua alienação na forma do art. 60 da LFR, livre de sucessão do adquirente em obrigação do devedor, será de todo irrelevante eventual oposição manifestada individualmente por credor à disposição do protocolo de cisão delimitando a responsabilidade da sociedade criada através de cisão, porque no regime da empresa em crise os credores exercem os seus direitos coletivamente. Dessa forma, a vontade da maioria, manifestada na AGC obriga todos os credores, inclusive aqueles que eventualmente tenham votado contra o plano ou se manifestado individualmente, com apoio na LSA, contra a delimitação da responsabilidade da sociedade criada através de cisão parcial. Esse é um caso em que o aparente conflito entre a LFR e a LSA resolve-se pelo critério da especialidade em favor da LFR, que rege a relação da empresa em crise com os seus credores. A LFR inovou em relação ao crédito decorrente da legislação do trabalho, ao submetê-lo à recuperação judicial. Com isso, os credores trabalhistas exercem os seus direitos coletivamente na AGC, o que tem como consequência o afastamento da sucessão nas obrigações decorrentes da legislação do trabalho se a alienação da UPI estiver prevista no plano de recuperação judicial, nos termos do parágrafo único do art. 60 da LFR12. Na relação jurídico-tributária o sistema é outro, porque a obrigação tributária decorre da lei e isso tem consequências importantes como a não sujeição do crédito tributário à recuperação judicial e a inoponibilidade ao credor de tributos das deliberações da AGC. 3.2. Sucessão tributária na cisão parcial e na transferência de estabelecimento O CTN não cuida da sucessão tributária no caso de cisão. Foi a LSA que tratou pela primeira vez da cisão, regulando nos arts. 233 e 234 os direitos dos credores na cisão13. Cabe, portanto, verificar se o art. 132 do CTN, concernente à sucessão tributária em casos de transformação, fusão e incorporação societárias, seria aplicável também no caso de cisão, tendo em vista a omissão do CTN sobre o tema, ensejando controvérsias na seara do Direito Tributário. De um lado, pode ser citada a lição Ricardo Lobo Torres no sentido de que a "responsabilidade [prevista no art. 132] se estende ainda aos casos de cisão, figura jurídica que apareceu posteriormente à publicação do CTN14." Em sentido contrário, Luciano Amaro entende que "falta uma disciplina geral sobre responsabilidade tributária na cisão, e não se pode eleger responsável sem lei expressa (CTN, art. 121, parágrafo único, II)"15. Penso que esta é a melhor orientação. 3.2.1. Irrelevância da forma adotada na criação da UPI para garantir a blindagem contra a sucessão tributária Mesmo reconhecendo a polêmica acerca da aplicação do art. 132 do CTN nos casos de cisão, a questão tem contornos específicos se examinada da ótica da recuperação judicial. A segurança jurídica que o legislador pretendeu dar aos negócios jurídicos no âmbito da recuperação judicial (art. 133, § 1º, do CTN), afastando a sucessão tributária, permite concluir que a Lei Complementar 118/2005 teve como prioridade a criação dessa proteção na recuperação judicial, que justifica uma interpretação da questão referente à cisão parcial, se realizada no âmbito da recuperação judicial, no sentido de afastar a sucessão, nos casos em que a cisão parcial precede a alienação, sendo utilizada como meio de criação de uma UPI. Esse é o entendimento de Vanilda Fátima Maioline Hin, quando ela, referindo-se à cisão de parcela do patrimônio correspondente a estabelecimento do devedor, conclui: "temos, nessa hipótese, situação que se amolda à prevista no art. 133, caput, do Código Tributário Nacional, porque: (i) a sociedade que recebeu a parcela cindida do patrimônio adquiriu o estabelecimento correspondente a essa parcela; e (ii) o art. 133, caput, diz que é sucessor quem adquire, por qualquer título, fundo de comércio ou estabelecimento comercial, industrial, ou profissional. Submetida a hipótese à norma prevista no caput do art. 133 do Código Tributário Nacional, incidirá também a norma do § 1º, que afasta a sucessão tributária na alienação judicial de filial ou unidade produtiva isolada de empresa em processo de recuperação judicial, o que viabiliza a transferência do estabelecimento sem o seu passivo tributário, que continuará a ser de responsabilidade da sociedade cindida"16. Em benefício do entendimento de que § 1º, II, do art. 133 do CTN aplica-se na alienação de UPI, em processo de recuperação judicial, criada através de cisão parcial, deve ser considerado que tal disposição contém exceção à regra da sucessão tributária estabelecida no caput do mesmo artigo, que trata da alienação a qualquer título de estabelecimento ou fundo de comércio e da qual não pode ser desvinculada. A cisão parcial pode ser utilizada para constituir uma sociedade de propósito específico, para subsequente alienação de suas ações. Aí a UPI seria as ações da sociedade constituída por cisão parcial. Nessa hipótese, deve-se considerar também que a proteção contra a sucessão incide na alienação da UPI. A alienação - o ato protegido - ocorre após a constituição da UPI e o legislador não fez qualquer exigência relacionada à forma de constituição da UPI ou a atos societários que antecedem a alienação da UPI para conceder a proteção contra a sucessão. Por fim, os argumentos da doutrina e da jurisprudência no sentido de que o CTN não tratou da cisão no art. 132 por ser posterior à LSA caem por terra diante da superveniência da Lei Complementar 118/2005, que não se limitou a regular questões tributárias na falência e na recuperação judicial, tendo tratado de outras matérias, como por exemplo, a alienação de bens em fraude à execução. Assim, persistindo a omissão no CTN sobre a responsabilidade na cisão, estando a matéria sujeita à reserva de lei complementar, nos termos do art. 146, III, da Constituição da República, não há como excluir a aplicação do § 1º do art. 133 do CTN na alienação no processo de recuperação judicial de UPI que foi criada através de cisão parcial. 4. Conclusões A UPI pode ser definida como parcela do estabelecimento ou parte dos estabelecimentos do devedor empresário em recuperação judicial que, mesmo destacada do todo, permanece capaz de desenvolver atividade empresária de forma independente. Diante desse conceito, o instituto da cisão parcial é de grande valia na criação de UPI em processo de recuperação judicial, porque permite a criação de uma sociedade composta por uma ou algumas linhas de produção, ou por um ou alguns estabelecimentos do devedor. Um dos grandes avanços da LFR é a permissão de alienação na recuperação judicial de filiais ou de UPIs sem que o adquirente responda pelas obrigações do devedor, inclusive as tributárias, anteriores à data da alienação. O parágrafo único do art. 60 da LFR - que afasta a sucessão na alienação de UPI se prevista no plano de recuperação judicial - regulando a relação do devedor em recuperação judicial e seus credores que têm voz e voto na AGC, entre eles os credores trabalhistas, afasta a norma do direito societário que permite ao credor opor-se à exclusão da responsabilidade da sociedade criada por cisão parcial por dívidas anteriores à cisão, pelo critério da especificidade e em razão da prevalência da comunhão de interesses dos credores manifestada na AGC. À relação jurídico tributária, sujeita à reserva de lei complementar, não se aplicam as disposições da LSA sobre sucessão na cisão parcial. Nos casos em que seria possível atribuir à sociedade criada por cisão parcial a qualidade de sucessora da sociedade cindida, com base no caput do art. 133 do CTN, a sucessão na alienação da UPI na recuperação judicial é excluída pelo § 1º do mesmo dispositivo. A proteção contra a sucessão garantida pelo § 1º do art. 133 do CTN se aplica à alienação da UPI no processo de recuperação judicial, independentemente da forma utilizada para sua constituição, já que o legislador não estabeleceu restrições relacionadas a atos societários que antecederam a venda. O art. 132 do CTN não regula cisão parcial e sem tenha sido regulada em lei complementar é impossível imputar responsabilidade tributária ao adquirente da UPI criada através de cisão parcial, já que a matéria está sujeita à reserva de lei complementar. __________ 1 Art. 47 - A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. 2 Nesse sentido é a autorizada lição de Eduardo Secchi Munhoz ao frisar que "A primeira dificuldade diz respeito às expressões 'filiais ou unidades produtivas isoladas', empregadas no caput do art. 60. Nesse passo, o legislador não adotou a melhor técnica, na medida em que as referidas expressões não possuem um significado jurídico próprio". (SOUZA JUNIOR, Francisco Satiro; PITOMBO, Antônio A de Moraes (coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. 2. ed. São Paulo: RT, 2005. p. 298-299). 3 CORRÊA-LIMA, Osmar Brina; CORRÊA-LIMA, Sérgio Mourão (coord.). Comentários à Nova Lei de Falência e Recuperação de Empresas. Rio de Janeiro: Forense, 2009. p. 404. 4 Sobre o conceito de atividade econômica organizada impõe-se a leitura do artigo do Professor Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa em PAIVA, Luiz Fernando Valente (coord.) Direito Falimentar e a Nova Lei de Falências e Recuperação de Empresas. São Paulo: Quartier Latin, 2005. p. 71-94. 5 Ob. cit., p. 404. 6 LAMY FILHO, Almeida; PEDREIRA, José Luiz Bulhões (coord.). Direito das Companhias. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 1.769, v. II. 7 "Art. 146 - Cabe à lei complementar: (....) III - estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, (...)". 8 Art. 229. (...) "§ 1º Sem prejuízo do disposto no art. 233, a sociedade que absorver parcela do patrimônio da companhia cindida sucede a esta nos direitos e obrigações relacionados no ato de cisão: no caso de cisão com extinção, as sociedades que absorverem parcelas do patrimônio da companhia cindida sucederão a esta na proporção dos patrimônios líquidos transferidos, nos direitos e obrigações não relacionados. (...) Art. 233. Na cisão com extinção da companhia cindida, as sociedades que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da companhia extinta. A companhia cindida que subsistir e as que absorverem parcelas do seu patrimônio responderão solidariamente pelas obrigações da primeira anteriores à cisão." 9 Conforme SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo, Recuperação de Empresas e Falência, Teoria e Prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina Brasil, 2016, p. 183. 10 "Art. 35 - A assembleia geral de credores terá por atribuições deliberar sobre: I - na recuperação judicial: a) aprovação, rejeição ou modificação do plano de recuperação judicial apresentado pelo devedor;" 11 Sobre a assembleia geral de credores leia-se o magnifico estudo do Professor Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França. Temas de direito societário, falimentar e teoria da empresa. São Paulo: Malheiros, 2009, p.7-26. 12 Nesse sentido a orientação do Tribunal Superior do Trabalho: "RECURSO DE REVISTA. ACÓRDÃO PUBLICADO NA VIGÊNCIA DA LEI Nº 13.015/2014. AQUISIÇÃO DE UNIDADE PRODUTIVA ISOLADA (UPI) DE EMPRESA EM PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. SUCESSÃO TRABALHISTA. RESPONSABILIDADE SOLIDÁRIA. No que diz respeito à sucessão trabalhista prevista nos artigos 10 e 448 da CLT, esta Corte Superior, na esteira do entendimento consolidado pelo STF no julgamento da ADI 3934/DF, tem se posicionado no sentido de que o objeto da alienação na recuperação judicial está livre de qualquer ônus, nos termos preconizados pelo artigo 60, parágrafo único, da Lei 11.101/2005. Isso porque o aludido artigo, ao dispor sobre a alienação prevista no plano de recuperação judicial, desonera o arrematante de unidades produtivas isoladas, não havendo falar em sucessão dos créditos trabalhistas. Precedentes. Recurso de revista conhecido e provido. (RR-20100-66.2016.5.04.0781, 5ª Turma, Relator Ministro Breno Medeiros, DEJT 14/02/2019). 13 PEDREIRA, José Luiz Bulhões. Ob. cit., p. 1.748. 14 Curso de Direito Financeiro e Tributário, Rio de Janeiro - São Paulo: Renovar. 2002, p. 236. 15 AMARO, Luciano, Direito Tributário Brasileiro, São Paulo. Saraiva, 10ª Edição, 2004, p. 315. 16 Ob. HIN, Vanilda Fátima Maioline. Responsabilidade Tributária na Falência e na Recuperação Judicial. In: SANTOS, Paulo Penalva (coord.). A Nova Lei de Falências e de Recuperação de Empresas - Lei 11.101/2005. Rio de Janeiro: Forense, 2007, p. 470.
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa A pandemia tem causado grande impacto no funcionamento das empresas brasileiras. De acordo com a "Pesquisa Pulso Empresa: Impacto da Covid-19 nas Empresas1", realizada em junho pelo IBGE, 522 mil empresas fecharam desde o início da pandemia. Em relação às empresas que se mantiveram em funcionamento, 70% relataram efeitos negativos da pandemia nas suas atividades, 34,6% demitiram funcionários, sendo que, dentre as empresas que reduziram seus quadros, 29,7% cortaram mais da metade dos postos de trabalho. De acordo com os dados divulgados pelo Cadastro Geral de Empregados e Desempregados - Caged, o Brasil perdeu 1.198.363 vagas de trabalho formal no primeiro semestre de 2020. A gravidade da situação é revelada pela comparação com o primeiro semestre de 2019, quando foram criados 408 mil postos de trabalho formal. Diante desse panorama, há um consenso de que as empresas precisam de auxílio para que consigam atravessar esse momento de crise aguda e para que continuem a gerar empregos, tributos, produtos, serviços e riquezas, que são essenciais para a recuperação da economia brasileira. As principais economias mundiais são dotadas de sistemas de insolvência empresarial e oferecem às empresas devedoras o acesso ao processo de recuperação judicial, como forma de auxilia-las a superar a crise. Essa é, sem dúvida, uma forma efetiva de se preservar empregos, negócios, produtos, serviços e circulação de riquezas em geral. O Brasil também possui um sistema de insolvência empresarial que prevê a recuperação judicial de empresas como ferramenta de superação da crise. Entretanto, deve-se considerar que o Poder Judiciário brasileiro já opera no limite de sua capacidade de absorção de demandas. Segundo Nota Informativa divulgada em 17/07/2020 pela Secretaria de Pesquisa Econômica do Ministério da Economia (Choques Adversos do Covid-19: mobilidades do trabalho e do capital na atual conjuntura - A importância de legislações mais eficientes de falência e que estimulem a dinâmica no mercado de trabalho), espera-se que, num cenário de choque moderado, sejam ajuizadas 1.896 pedidos de recuperação judicial no Brasil. Há, portanto, um fundado receio de que o aumento significativo do ajuizamento de recuperações judiciais no Brasil possa causar o "colapso" do Poder Judiciário, que não teria condições de absorver esse grande volume de processos complexos num curto espaço de tempo. Daí o paradoxo da recuperação judicial em tempos de pandemia: a recuperação judicial é um mecanismo eficaz para ajudar as empresas a superar a crise, mas o aumento de casos de recuperação empresarial poderá colapsar o funcionamento da Justiça, fazendo com que os processos judiciais, inclusive os de recuperação empresarial, não tenham andamento célere e eficaz. Como neutralizar esse paradoxo? A primeira resposta correta é o estímulo à negociação extrajudicial como meio alternativo à jurisdição estatal. Nesse sentido, o Conselho Nacional de Justiça aprovou recentemente uma Recomendação para que os Tribunais de Justiça instalem CEJUSCs empresariais que servirão como palco para que negociações prévias aconteçam, evitando-se o ajuizamento de ações complexas, como as ações de recuperação de empresas. Vale destacar que o CNJ chama a atenção para a necessidade de estruturação adequada dos CEJUSCs empresariais. O ato normativo destaca a necessidade de capacitação específica em matéria empresarial e remuneração adequada dos mediadores/conciliadores, bem como a possibilidade de utilização de câmaras privadas de negociação e mediação devidamente cadastradas pelos Tribunais. Entretanto, apenas a criação dos CEJUSCs empresariais pode não ser suficiente para o enfrentamento dessa crise, considerando a falta de estímulos para que os agentes de mercado cheguem a um acordo voluntário. Segundo dados revelados pela 5a edição da pesquisa do Sebrae2 o número de empresas que possuem dívidas em atraso e sem solução cresceu de 33% (na 2a ediçao) para 40% (na 5a edição). Por outro lado, apenas 18% das empresas que buscaram financiamento bancário tiveram êxito. Ainda segundo o Sebrae, apenas 12% das micro e pequenas empresas conseguiram renegociar suas dívidas. Os dados mostram que a negociação prévia sem os incentivos adequados pode apresentar resultados aquém de todo o seu potencial, mormente num período de crise aguda no qual o espaço de negociação é naturalmente limitado pela fragilidade econômica de devedores e também de credores. Os melhores resultados pressupõem a criação de incentivos legais que potencializem as negociações, como a criação de proteções semelhantes àquelas disponíveis aos devedores que estão em recuperação judicial. Analisando-se os sistemas de insolvência empresarial das economias mais relevantes do mundo, é possível identificar que são dois os estímulos mais efetivos para induzir negociação entre credores e devedores, no contexto de uma reestruturação empresarial: a ordem judicial de stay (suspensão de execuções contra a devedora) e o acesso a fontes alternativas de financiamento pelas devedoras (principalmente o financiamento na modalidade DIP). Ocorre que, no sistema brasileiro de insolvência, o stay e o financiamento DIP são medidas que os devedores conseguem obter somente a partir do ajuizamento da ação de recuperação judicial. A solução para o paradoxo parece ser, então, conceder aos devedores essas proteções do sistema de insolvência, mas sem obriga-los a ajuizar um pedido de recuperação judicial. Vale dizer, deve-se criar um sistema em que o devedor possa ficar protegido por uma ordem judicial de stay e ter acesso ao financiamento DIP durante uma negociação prévia, antes mesmo de ajuizar um pedido de recuperação judicial. Essa é, aliás, a tendência de algumas das mais relevantes economias da Europa e da Ásia. A França, o Reino Unido e Singapura, por exemplo, criaram ou aperfeiçoaram mecanismos de pré-insolvência empresarial que têm como objetivo antecipar a proteção necessária para incentivar a negociação prévia de forma efetiva. Segundo Aurélio Gurrea-Martinez3, vive-se atualmente a "era da pré-insolvência". Os mecanismos de pré-insolvência são ações judiciais desburocratizadas e que exigem atuação mínima do Poder Judiciário. São procedimentos de "toque leve", nos quais o Poder Judiciário apenas concederá a ordem de stay (presentes os requisitos objetivos previstos em lei) e garantirá a transparência necessária para que os credores financiem a recuperação da devedora, recebendo vantagens e proteções consideráveis em contrapartida. Dessa forma, o Poder Judiciário criará o ambiente necessário para que as negociações aconteçam no palco próprio, qual seja, nos CEJUSCs Empresariais. Percebe-se que os mecanismos de pré-insolvência aumentam a capacidade de absorção dessas demandas simplificadas pelo Poder Judiciário e, ao mesmo tempo, oferecem às empresas a proteção necessária para que as negociações prévias ocorram de maneira mais eficaz. Ademais, os mecanismos de pré-insolvência previnem o ajuizamento de centenas de outras ações relacionadas ao inadimplemento da devedora em razão da ordem de stay e da coletivização da solução desses conflitos. Vale destacar o recente Corporate Insolvency and Governance Act 2020, em vigor desde 20 de junho de 2020 no Reino Unido. Os britânicos, além dos mecanismos já existentes, com destaque para o Light-Touch Administration (LTA), criaram mais um novo mecanismo de pré-insolvência denomiado Moratorium. O novo mecanismo da Moratorium concede às empresas uma possibilidade de se reestruturar, protegidas por uma ordem de stay, mas sem a necessidade de terem de ajuizar as ações tradicionais de insolvência empresarial. Basicamente, concede-se à devedora uma proteção do stay por 20 dias úteis (podendo ser prorrogado ou reduzido) mediante a demonstração de que suas atividades foram afetadas pela crise da pandenia (com utilização de um critério de avaliação flexível - more likely than not), possibilitando que se inicie uma negociação coletiva com os credores. Dessa forma, concede-se à empresas uma opção mais fácil, barata e menos burocrática para que possam obter a reestruturação, preservando-se a funcionalidade do Poder Judiciário, na medida em que evitam-se ajuizamentos de ações altamente complexas. É chegada a hora no Brasil de pensarmos nos mecanismos de pré-insolvência como forma de resolvermos, na esteira das melhores experiências mundiais, o paradoxo da recuperação judicial em tempos de pandemia. __________ 1 IBGE. 2 Agência Sebrae. 3 The Future of Reorganization Procedures in the Era of Pre-Insolvency Law.
terça-feira, 21 de julho de 2020

A hipoteca judicial e o concurso de credores

Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira Notável acórdão foi proferido pela 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial de São Paulo, no julgamento do agravo de instrumento nº 2020462-46.2020.8.26.0000, com relatoria do Desembargador Pereira Calças. Foi examinado recurso contra decisão proferida em habilitação de crédito em processo de falência de uma construtora. Consta que o credor celebrou contrato de compra e venda de um imóvel, que mais tarde rescindiu. Ao não conseguir reaver o dinheiro que já havia pago, promoveu a respectiva ação, julgada procedente. A particularidade e a razão de toda a discussão é a seguinte. Ao obter a sentença de procedência, o autor fez o seu registro no Registro de Imóveis, e, então, com isso, caracterizou a chamada hipoteca judiciária1. Munido da sentença e do registro dela no álbum imobiliário, requereu a classificação do seu crédito na classe do artigo 83, II, da lei 11.101/05, o que foi rejeitado em primeiro grau, que classificou o crédito como quirografário (art. 83, VI). O recurso de agravo foi acolhido, para reconhecer a garantia real do crédito. O acórdão está amplamente fundamentado, com abundante citação doutrinária, e com a maestria de sempre do desembargador relator. O caso desperta interesse porque a hipoteca judiciária é instituto de pouco uso entre nós e o resultado do julgamento dá-lhe uma importância prática relevante. É preciso considerar que houve notável modificação legislativa a respeito da hipoteca judiciária, instituto razoavelmente controvertido. Já se disse que a hipoteca judiciária é uma excrescência, uma aberração2, tendo sido rejeitada em outros países porque "A sentença não pode criar meios de garantir o direito do credor; ela deve limitar-se a reconhecê-lo e declará-lo de acordo com os princípios: é esta a missão do juiz quando expede o decreto judicial"3. Seja como for, a hipoteca judicial está presente em nosso ordenamento jurídico desde as Ordenações Filipinas, passando pela lei 1.237, de 24/09/1864 (primeira lei hipotecária do Brasil, art. 3º, § 12, bastante preocupada com a especialização da hipoteca, para superar as críticas à chamada hipoteca geral então reinante), Decreto 169-A, de 19/01/1890 (artigo 3º, §11), que é a segunda lei hipotecária brasileira. O Código Civil de 1916, no artigo 824, disciplinou a matéria, que foi também objeto de cuidado nos Códigos de Processo Civil de 1939 e 1973. O Código de Processo Civil de 2015 inovou completamente a matéria, como veremos. Tal como disciplinada pelo artigo 824 do Código Civil de 1916, é certo que essa hipoteca não assegurava preferência do credor. Por isso a doutrina dizia que esse instituto não passava de "um preventivo de fraude, e nada mais"4. O artigo 824 do Código Civil de 1916 autorizava essa conclusão: "Compete ao exequente o direito de prosseguir na execução da sentença contra os adquirentes dos bens do condenado; mas, para ser oposto a terceiros, conforme valer, e sem importar preferência, depende de inscrição e especialização". Para a hipótese de o condenado alienar os seus bens, o registro da sentença condenatória assegurava ao credor o direito de sequela5. A definição de Clóvis Bevilaqua6 não deixa dúvida sobre a limitação da hipoteca judicial ao direito de sequela: "Hipoteca judicial, segundo já ficou indicado, é o vínculo real, que a lei faz nascer da sentença condenatória, sobre os bens do executado, para o efeito de responderem pela execução da sentença, caracterizando-se por ser mero direito de sequela, sem preferência, mas dependendo a sua eficácia de especialização e inscrição. É uma forma de hipoteca legal". O Código de Processo Civil de 1939, no artigo 284, pouco esclarecia a respeito: "Quando, em virtude de sentença, recair sobre os bens do condenado hipoteca judiciária, a respectiva inscrição será ordenada pelo juiz, mediante mandado, na forma da lei civil". Para Pedro Batista Martins7, autor do Código de Processo Civil de 1939, "A hipoteca judicial é um instituto obsoleto, que o Código só regulou porque ainda o mantém o art. 824 do Código Civil". Influenciado por esse pensamento, pouco esclareceu sobre o significado da norma em questão8. A redação era um tanto confusa, pois não é a sentença que recai sobre os bens do condenado; a lei se limitava a autorizar o ingresso da sentença condenatória no registro de imóveis, por meio do procedimento registrário da especialização, que representará a hipoteca prevista no Código Civil. Já o Código de Processo Civil de 1973 trouxe redação muito superior, mas ainda com o acanhado alcance da hipoteca judicial ou judiciária, em atenção à disposição material do Código Civil de 1916, que continuava em vigor por ocasião de sua edição. O artigo 466 do Código de Processo Civil de 1973 estava assim redigido: "A sentença que condenar o réu no pagamento de uma prestação, consistente em dinheiro ou em coisa, valerá como título constitutivo de hipoteca judiciária, cuja inscrição será ordenada pelo juiz na forma prescrita na lei de Registros Públicos". A lei processual limitava-se a criar um efeito da sentença, anexo (Pontes de Miranda) ou secundário (Liebman), como esclareceu a doutrina. A sentença não constituía a hipoteca, pois o beneficiário da sentença condenatória podia ou não levá-la ao registro de imóveis. O registro e a necessária especialização da hipoteca é que a constituía. O efeito da hipoteca judiciária continuava previsto no Código Civil. Insista-se que o Código de 1973 falava em hipoteca judiciária, sem esclarecer o seu alcance, que só seria descoberto com a leitura do artigo 824 Código Civil de 1916, que excluía, expressamente, o direito de preferência. O Código Civil de 2002 não reproduziu norma com o teor do artigo 824 do CC de 1916. E então fez surgir a dúvida. Apesar de prevista no CPC/73, a hipoteca judiciária teria desaparecido? Ou ela continuou no sistema jurídico? Continuou com o mesmo significado do Código de 1916? Maria Helena Diniz defendeu a subsistência da hipoteca judiciária ao conjugar o artigo 466 do CPC de 1973 com o artigo 2.043 do Código Civil de 2002, que estabelece o seguinte: "Até que por outra forma se disciplinem, continuam em vigor as disposições de natureza processual, administrativa ou penal, constante de leis cujos preceitos de natureza civil hajam sido incorporados a este Código". Como esse dispositivo não tem o condão de repristinar o direito de sequela que o Código Civil de 1916 outorgava à hipoteca judiciária, esse artigo do Código Civil também se presta a interpretação oposta à propugnada pela ilustre Professora. É possível afirmar que o Código Civil de 2002 não incorporou a hipoteca judiciária, e, portanto, a lei de natureza processual perdeu a sua referência. Os eminentes Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira9, afirmaram que, doravante, a hipoteca judiciária produzia o direito de preferência, por aplicação do artigo 1.422 do Código Civil. Essa interpretação, não obstante a autoridade dos autores, também se ressente de problemas. A hipoteca judiciária é uma espécie de hipoteca legal, e as previsões do Título X do Código Civil, capítulo I, sob a rubrica das disposições gerais, cuidam da hipoteca convencional. O artigo 1.419 fala em "bem dado em hipoteca", o artigo 1.420 prevê que só aquele que pode alienar pode hipotecar. Já o artigo 1.421 cuida da indivisibilidade da hipoteca, que pode ser afastada por disposição expressa, o que também acentua o caráter contratual do dispositivo. O artigo 1.423 dispõe sobre anticrese, que depende de avença entre as partes. O artigo 1.424 fala em contratos de hipoteca. O artigo 1.425, I, dispõe sobre vencimento antecipado da dívida se o bem dado em segurança se deteriorar. O artigo 1.427 começa estatuindo salvo cláusula expressa. Todas essas hipóteses envolvem, sem dúvida, a hipoteca convencional. O artigo 1.422 do Código Civil, nesse contexto, restringe-se à hipoteca convencional. Tanto que o artigo 1.489, ao disciplinar a hipoteca legal começa estatuindo que "a lei confere hipoteca", arrolando, em seguida, as diversas hipóteses. Isto é, somente a lei expressa institui a hipoteca legal, e não uma inferência extraída da disciplina da hipoteca convencional. O Código de Processo Civil acabou por inovar completamente a matéria, cuidando de assunto de direito material10. O artigo 495, § 4º, estabelece que "a hipoteca judiciária, uma vez constituída, implicará, para o credor hipotecário, o direito de preferência, quanto ao pagamento, em relação a outros credores, observada a prioridade no registro". Jamais a hipoteca judiciária, em nosso direito, teve esse direito de preferência11, agora instituído por meio de um código de processo. Para o autor deste escrito, há dúvida sobre a sobrevivência da hipoteca judiciária no período que vai da vigência do CC 2002 à vigência do CPC de 2015. Vale retomar a lição de Pedro Batista Martins acerca do CPC de 1939: "A hipoteca judicial é um instituto obsoleto, que o Código só regulou porque ainda o mantém o art. 824 do Código Civil". Cumprindo a missão própria de um código de processo, a hipoteca judiciária, tanto no CPC de 1939 como no CPC de 1973, mantinha conexão e dependência do instituto de direito material12. Como a hipoteca judiciária não mais foi mantida a partir do CC de 2002, desapareceu, correlatamente, a sua disciplina processual. É esse o ponto, de direito intertemporal, que chama a atenção no acórdão da Câmara Reservada. Consta do acórdão que a sentença foi registrada na matrícula do imóvel em 13/5/2003, e que a falência ocorreu em 1/11/2007. Nessa circunstância, por ocasião da constituição da hipoteca judiciária, estavam em vigor o Código Civil de 2002, que suprimira a hipoteca judiciária, e o CPC de 1973, que a mantinha, porém, sem lhe especificar o alcance. Até essa data, pode-se sustentar que não havia, entre nós, a hipoteca judiciária com o direito de preferência. O CPC de 1973, no artigo 466, referia-se a um direito material cujo significado - direito de sequela - havia sido revogado. A lei 6.015/73, por seu turno, em nada nos auxilia na solução do problema, pois se limita a autorizar o registro da hipoteca judicial (art. 167, I, 2), assim como autoriza o registro do dote (I, 17). O acórdão do TJSP tomou posição e entendeu presente o direito de preferência antes da vigência do Código de Processo Civil de 2015, na linha do quanto preconizado por prestigiada doutrina. Pode ser que o processo de falência ou mesmo o processo de recuperação judicial venha a representar o estímulo para que a hipoteca judiciária receba incremento no seu uso, pois é inegável a vantagem que tem o credor ao se enquadrar na ordem do artigo 83, II, da lei 11.101/05 ou na classe do artigo 41, II, da mesma lei. De outra parte, como muitos devedores têm inúmeras demandas judiciais, pode ocorrer uma abundância de registros de sentença condenatória, pois os credores certamente serão atraídos pela vantagem que a lei lhes oferece. Isso pode alterar a correlação de forças nos processos de recuperação judicial; pode ensejar discussão sobre o alcance da preferência decorrente da hipoteca judiciária no confronto com a hipoteca convencional, entre outras sutilezas que a prática é prodiga no suscitar. A hipertrofia do Código de Processo Civil, ao instituir preferência creditória, poderá causar alguma perplexidade. Por exemplo. Um acidente com duas vítimas. Ambas ajuízam ação indenizatória, separadamente. Uma obtém sentença favorável e registra a sentença, obtendo a hipoteca judiciária. Outra, vê julgado improcedente o pedido em primeiro grau e recorre. Enquanto isso, o devedor ajuíza a ação de recuperação judicial. O recurso daquele que fora derrotado é provido. Agora, porém, o registro do acórdão, com a finalidade de obter a hipoteca judiciária poderá até ser questionada. A solução para ambos os credores poderá não ser equânime. Uma outra situação. As duas vítimas do acidente promovem ação, que é distribuída a varas diferentes. Em um órgão jurisdicional a sentença é prolatada antes da outra, o que é comum; ambos os vencedores promovem, a seu tempo, o registro da sentença. A demora da prestação jurisdicional impõe, no âmbito da execução singular, tratamento distinto para cada um dos credores, cuja situação de direito material é idêntica, pois a demora na prolação da sentença implica a demora na obtenção do registro e da respectiva hipoteca judiciária. Por certo, no âmbito dos processos da empresa em crise, esses problemas e outros mais surgirão, cabendo aos tribunais encontrar a solução mais equânime. __________ 1 Como esclarece Ricardo Dip, a sentença condenatória está em potência para a hipoteca judiciária. Ela depende de especialização e registro. Não há hipoteca judiciária automática, tão só por força da sentença considerada como um fato. É esse fato levado a registro que institui a hipoteca judiciária. Como escreveu Pontes de Miranda, Tratado de Direito Privado, tomo 20, Rio de Janeiro, p. 152, a sentença é um título, assim como o credor que obteve do devedor a escritura de hipoteca. "Tem título, falta-lhe o direito real". A eficácia anexa é um direito formativo gerador, e é pré-gravame. 2 Orlando Gomes, Direitos Reais, 10ª ed.Rio de Janeiro, Forense,1988, p. 360. Para Pedro Batista Martins, autor do Código de Processo Civil de 1939, "A hipoteca judicial é um instituto obsoleto, que o Código só regulou porque ainda o mantém o art. 824 do Código Civil", cf. Comentários ao Código de Processo Civil, v. III. Rio de Janeiro, Forense, 1942, p. 333. 3 Dídimo da Veiga, Direito Hypothecário. Rio de Janeiro, Laemmert Editores, 1899, p. 133. 4 Amílcar de Castro, obra citada, p. 90. Para José Carlos Barbosa Moreira escreveu que a hipoteca judiciária "tem a função de garantir ao credor vitorioso a proficuidade da execução que eventualmente precise instaurar contra o devedor". 5 Tito Fulgêncio, Direito Real de Hipoteca, v. I, 2ª ed. Atualização de José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro: Forense, 1960, p. 219: "É a sequela, único efeito, virtude, força da hipoteca judiciária, significando que sujeita ope legis os bens imóveis do condenado, e, por vínculo rela, à execução da sentença, pode o exequente persegui-los onde estiverem, penhorá-los, excuti-los". 6 Direito das Coisas, v. II, 5ª ed. Atualização de José de Aguiar Dias. Rio de Janeiro, Forense, s/d, p. 209. 7 Comentários ao Código de Processo Civil, v, V,5ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1985, p. 465. 8 Alfredo de Araújo Lopes da Costa, Direito Processual Civil Brasileiro, v. IV, 2ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 1959, estuda a fraude à execução e, ao examinar a responsabilidade de terceiro por dívida alheia, inclui a previsão do artigo 824 do Código Civil de 1916, após reproduzir o disposto nas Ordenações, Livro III, 84, 14:'O que tiver bens de raiz que valham o conteúdo da condenação, não os poderá alhear durante a demanda, mas logo ficarão hipotecados por esse mesmo feito e por esta ordenação, para pagamento da condenação'. Uma hipoteca sem preferência, apenas reduzida à sequela. Tal como no art. 824 do Código Civil. (itálicos do original). 9 Curso de Direito Processual Civil, v. 2, 5ª ed. Salvador, Juspodium, 2010, p. 374. 10 É curiosa a opção do legislador, que fez questão de derrogar normas do Código Civil, tidas como de natureza processual. Aparentemente, pretendia deixar cada código com sua própria missão, mas acabou por invadir a seara civilista. 11 Fredie Didier Júnior, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira, na 10ª ed. da obra já citada, afirmam que o CPC 2015 resolveu omissão legislativa do CPC de 1973 e dizem que "foi uma homenagem à coerência do sistema". Aludem ao artigo 1.422 do Código Civil. É questionável que o artigo 1.422 do Código Civil seja a fonte do direito de preferência da hipoteca judiciária. Cláudia Haidamus Perri, citada por Sérgio Shimura, Arresto Cautelar, 3ª ed., p. 349, nota 25, afirma que a falta de previsão da hipoteca judiciária no CC de 2002, e porque o art. 466 do CPC de 1973 não contém qualquer expressão equivalente a sem importar preferência, ter-se-ia a hipoteca judiciária nas mesmas condições das demais hipotecas. Isto é: quando a lei civil afasta a hipoteca judiciária, a lei processual a promove a patamares mas elevados... 12 Não vem ao caso, para este estudo, a velha discussão sobre o caráter processual ou não da hipoteca.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho Sob a promessa de que ninguém terá uma lesão a seu direito sem uma solução estatal, a CF/88 reservou ao Poder Judiciário papel destacado na proteção à cidadania. O acesso à ordem jurídica justa resultou em uma multiplicidade de demandas. No ano passado foram propostas mais de 28 milhões de ações. A Magistratura tem alta produtividade, mas nossa despesa com o serviço judiciário é alta, se comparada com a de outros países. Há algo de errado no acesso à Justiça de forma descontrolada. Sem prejuízo de mudanças legislativas como a introduzida no processo trabalhista e que resultou em queda expressiva de demandas, e sem entrar na discussão acerca dos incentivos econômicos para uma desjudicialização dos conflitos, nota-se que a jurisprudência dos Tribunais Superiores passou a ser mais rigorosa na análise do interesse de agir, concluindo que o direito de acesso à Justiça deve ser responsável. A título de exemplo, o Supremo Tribunal Federal decidiu que "a concessão de benefícios previdenciários depende de requerimento do interessado, não se caracterizando ameaça ou lesão a direito antes de sua apreciação e indeferimento pelo INSS, ou se excedido o prazo para análise" (Recurso Extraordinário 631.240). Na mesma linha, o Superior Tribunal de Justiça passou a decidir que o consumidor não tem direito de exigir a exibição do instrumento contratual em juízo sem previamente ter solicitado o documento diretamente à agência bancária (REsp. 1.349.453). A releitura do princípio do acesso à Justiça pelos Tribunais Superiores foi acompanhada de modificações legislativas recentes (CPC e lei 13.140/2015) que enfatizaram a necessidade de solução adequada aos conflitos, não só pelo Poder Judiciário, mas também com o apoio da mediação e da conciliação. Nos termos do artigo 3º, § 2º do CPC: "§ 2º O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos. § 3º A conciliação, a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados pelos juízes, advogados, defensores e membros do Ministério Público, inclusive no curso do processo judicial". Como enuncia o art. 3º., parágrafo 3º do CPC, não há apenas um dever ético do advogado em estimular a solução consensual dos conflitos - por meio da efetiva negociação do devedor com seus credores antes do ingresso em juízo -, mas uma imposição legal. Embora o conciliador e o mediador possam ser atores relevantes na cena judicial, é preciso enfatizar a necessidade de uma nova visão acerca do acesso à Justiça, quando se trata de medidas colocadas à disposição do devedor para superação de sua crise econômica, especialmente neste momento trágico de pandemia da Covid-19. Muitas renegociações têm sido realizadas sem necessidade de qualquer recurso ao Poder Judiciário, pois os agentes econômicos perceberam que ajustar os contratos é a medida mais sensata. Nada mais correto porque, em um regime baseado na livre iniciativa econômica, quem tem o poder de vincular-se a outros agentes, assumindo obrigações, também tem a responsabilidade de buscar soluções para o reajuste das obrigações assumidas, adaptando-as aos tempos de pandemia. É importante ressaltar que a valorização da autonomia privada na solução da crise econômico-financeira é o modelo adotado desde 2005 pela lei 11.101. Aos diretamente afetados pela crise foi atribuído o papel de decidir acerca da melhor forma de superá-la, após uma negociação dos credores com o devedor, que resultará na aprovação ou rejeição do plano de recuperação. Porém, e aqui impõe-se a releitura do direito de acesso à Justiça no direito das empresas em crise, é preciso que o devedor que se apresenta ao Poder Judiciário demonstre ter iniciado tratativas extrajudiciais com seus credores, envidado esforços na negociação, realizado propostas razoáveis, e, além disso, que as medidas adotadas não foram suficientes para a negociação avançar e resultar em acordo que permita a superação da crise. É preciso atribuir-lhe o ônus de demonstrar, com documentos que acompanham a petição inicial, que necessita da proteção judicial para concluir o processo negociado de solução da crise já iniciado. Ademais, como a lei 11.101/2005 oferece ao devedor a opção da recuperação extrajudicial - mecanismo muito mais rápido e barato, e, portanto, mais eficiente para a solução da crise - cabe a ele igualmente demonstrar que o seu recurso à recuperação judicial se deve à impossibilidade de utilizar o meio menos oneroso. A recuperação extrajudicial, infelizmente, tem sido pouco utilizada, porém é um instrumento que pode oferecer segurança aos agentes econômicos. As lacunas legislativas a respeito de "stay period" e alienação de UPI podem ser supridas pelas normas aplicáveis à recuperação judicial. A exclusão dos créditos trabalhistas, previstas em 2005, foram superadas pelas alterações legislativas posteriores que valorizaram a autonomia da vontade dos trabalhadores na resolução dos contratos, redução de jornada e de salário. Temos mecanismos legais e adequados para a solução das crises e devemos utilizá-los. Não havendo, no âmbito privado, uma solução que possa ser implantada sem o risco de determinado credor dissidente impedir a solução coletiva mais vantajosa, então cabe ao devedor e aos credores aderentes um esforço qualificado na negociação, para a obtenção de adesão de mais de 3/5 e o uso da recuperação extrajudicial, meio menos oneroso e mais rápido para a solução da crise. E apenas em caso de insuperável necessidade, devidamente justificada, quando incapaz de obter uma adesão da grande maioria dos credores, mesmo tendo se empenhado na negociação, o devedor poderá se valer da recuperação judicial, por ser o meio mais oneroso aos credores, ao Estado, e à sociedade. Não podemos continuar, nos próximos meses e anos, repetindo o mesmo proceder dos quinze anos de vigência inicial da lei 11.101/2005. Advogados, assessores financeiros, empresários, bancos e sindicatos, além do Poder Judiciário, devem fazer um esforço coletivo para potencializar o uso da recuperação extrajudicial, reservando a recuperação judicial apenas aos casos de efetiva necessidade.
Texto de autoria de Carlos Alberto Garbi Em continuação à primeira parte deste artigo, agora pretendemos abordar outros pontos do novo regime italiano para o tratamento da insolvência no âmbito do grupo de sociedades. Aponta-se na doutrina italiana para a omissão do novo diploma a respeito das situações envolvendo grupos de sociedades caracterizados por intensa confusão patrimonial e organizativa entre as diversas sociedades integrantes, e grupos de sociedades constituídos sob a direção e coordenação de uma holding1. A questão da holding assume enorme interesse no tratamento da insolvência no âmbito do grupo de sociedades, porque o controle do grupo pode ser exercido por uma holding constituída como sociedade de capital, ou por uma holding individual, ou ainda por uma sociedade de fato ou por uma pessoa ou grupos de pessoas físicas. O controlador do grupo integra o grupo e por isso não pode ficar ao largo do processo que envolve a recuperação do grupo ou a sua liquidação. Essa questão tem sido também levantada na Itália em razão da redação dúbia e tímida que se deu à definição de grupo no CODICE. É necessário, de outra parte, ao admitir o tratamento da insolvência do grupo de sociedades, que a lei imponha o dever de transparência e informação analítica sobre a estrutura do grupo e sobre as relações das sociedades e seus vínculos, obrigação que mais avulta quanto aos grupos de fato, que representam a maioria ou a quase totalidade deste fenômeno2. Essa obrigação ocorre também quando o processo é promovido por uma única sociedade em relação de grupo, permitindo-se não só avaliar a possibilidade de comprometimento de outras sociedades do grupo e a responsabilidade interna das sociedades, como também a possibilidade do uso de outros meios alternativos para superamento da crise. Bem se poderia dizer que o dever de boa-fé basta para impor esta obrigação, mas a expressa disposição legal tem outro efeito. Um regime adequado aos grupos de sociedades na insolvência passa, nos casos de liquidação ou falência, não só pelas medidas propriamente de liquidação adequadas ao fenômeno plurissocietário, mas também pelo provimento de poderes ao administrador judicial para a propositura de eventual ação revocatória de atos e contratos intragrupo, necessário a prevenir ações do controlador do grupo em prejuízo da sociedade falida e em benefício de outra integrante do grupo. Passa, ainda, pela fixação de período suspeito mais amplo neste caso, em razão da natureza das relações envolvendo as sociedades. No CODICE esse período pode chegar a cinco anos (art. 290). Outro problema diz respeito à possibilidade dessa revocatória ser dirigida a uma sociedade que não está sujeita a liquidação, mas é integrante do grupo e foi beneficiada ou participou do ato ou negócio realizado em prejuízo da sociedade insolvente, ou nos casos em que o controle da sociedade é exercido por um holding ou por uma pessoa ou grupo de pessoas físicas. É preciso dotar a Lei de um regime de responsabilização do controlador do grupo, especialmente do grupo de fato, pelos atos de gestão praticados em violação aos princípios da correta gestão societária e da respectiva ação, no caso de liquidação ou falência, que não tem o alcance da ação revocatória. Não se pode transcurar, ainda, das hipóteses de responsabilidade solidária da sociedade controladora do grupo quando se verifique uma relação de grupo que se pode definir como de domínio total. São os casos de participação integral no capital da sociedade em liquidação (ex. subsidiária integral, sociedade unipessoal) ou de participação expressiva (mais de 90% do capital), ou ainda de controle total sobre a insolvente, assegurado por outro meio. Há outras questões envolvendo o grupo de sociedades na insolvência, especialmente em relação ao plano de recuperação. A lei deve oferecer flexibilidade para a realização de operações contratuais e reorganizativas das sociedades em relação de grupo, bem como operações de transferência de recursos intragrupo, e, também, a possibilidade de se decidir pela liquidação de uma e a continuidade de outra (art. 285). Também é necessário pensar na constituição do Comitê de Credores, e na nomeação do Administrador, quando existem planos unitário ou distintos, mas interligados, para as sociedades do grupo. Uma das questões mais interessantes, sem dúvida, é a possibilidade de apresentação de um plano unitário para as sociedades em relação de grupo, admitida pelo CODICE (art. 284.1.). Essa possibilidade abre a discussão sobre a forma de submeter a aprovação do plano unitário de recuperação à votação dos credores. A Lei italiana preferiu o critério da votação separada por sociedade envolvida e só considera o plano aprovado quando a proposta para cada uma das sociedades é aceita pelos respectivos credores. No entanto, aplicou o princípio da estabilidade do plano, impedindo a sua anulação ou resolução se a causa respectiva ocorrer em relação somente a uma das sociedades envolvidas (art. 286.7.) O plano unitário deverá respeitar a separação patrimonial das sociedades em relação de grupo, de forma que não é permitido neste caso a consolidação substancial. Prevê a lei italiana a possibilidade de oposição à homologação, em certas situações, de credores e sócios minoritários de uma sociedade singular em razão de operações que, previstas no plano de recuperação do grupo, poderão trazer a eles prejuízos por afetar a sociedade com a qual têm relações (art. 285). A oposição só terá acolhimento se da operação não se demonstrar que o benefício pode superar a vantagem compensativa. Há, portanto, um juízo pragmático de resultados, muito semelhante àquele que costuma ser considerado pelas decisões norte-americanas em face do Bankruptcy. Essa vantagem compensativa deve ser entendida como vantagem para o grupo de sociedades, e não exclusivamente para a sociedade singular observada. Essa interpretação decorre da admissibilidade de um plano unitário que compreende naturalmente a possibilidade de operações intragrupo e da busca de uma solução da crise que seja global, para todo o grupo. A questão mais difícil neste caso diz respeito a uma antiga discussão sobre as compensações necessárias nas relações de grupo, que acabou sendo acomodada (e não se pode dizer resolvida) pela chamada doutrina Rozemblum3, para a qual a compensação deve ser vista de forma mais abrangente e não apenas como contrapartida de um ato isolado. É, sem dúvida, uma das questões mais difíceis. Não se justifica impor prejuízo a uma sociedade singular, mesmo quando em benefício de todo o grupo, sem a devida compensação, que poderá ocorrer e ser compreendida, como referido, de forma mais abrangente e não apenas no plano de recuperação. A homologação do plano, em qualquer caso, unitário ou separado e interligado, dependerá da sua idoneidade, o que significa que deve representar para os credores um resultado melhor do que aquele que seria obtido com a liquidação da sociedade. É um princípio de larga aplicação nos processos de insolvência e que foi adotado expressamente pela lei italiana. O CODICE não cuidou de um tema que no Brasil tem se apresentado, inclusive em projetos de Lei, que é a questão da consolidação substancial. Foi criticado pela timidez. É um tema que não está previsto, igualmente, no Regulamento Europeu. Não é uma matéria fácil. Existem grupos de sociedades nos quais se verifica que não é observada a separação patrimonial entre as sociedades integrantes. Há confusão de patrimônio, uso em comum de recursos humanos e materiais, coincidência de gestores, mesma sede das sociedades e dificuldade até de identificação do controle. Esta promíscua relação das sociedades impede ou dificulta a organização de um plano de recuperação para as sociedades singulares em relação de grupo, assim como dificulta a adoção de medidas necessárias à recuperação no âmbito do grupo. Por forte influência norte-americana, admitiu-se raros casos na jurisprudência brasileira de consolidação substancial, permitindo-se que o grupo seja visto como uma unidade patrimonial, sem distinção de massas, para organizar um só plano de recuperação. Esta solução não está imune a toda sorte de críticas, porque fere frontalmente o princípio fundamental do direito societário de separação patrimonial, mas pragmaticamente, não obstante a irregular situação na qual as sociedades se encontram, vale o esforço para admitir um plano desta natureza se for possível oferecer ao conjunto de credores uma solução melhor do que a liquidação. Existem outras situações, e não só a confusão patrimonial, a suscitar a consolidação substancial, mas o nosso propósito foi abordar nesta oportunidade somente alguns aspectos interessantes do CODICE DELLA CRISI DI IMPRESA E DELL'INSOLVENZA, que podem ser aproveitados no nosso direito a respeito da insolvência nos grupos de sociedades. As questões aqui suscitadas revelam que o tratamento da insolvência no âmbito do grupo de sociedades não deve ser feito somente a partir da inclusão, por lei reformadora, de dispositivos em favor da consolidação processual e substancial. Outras questões decorrentes podem ser também contempladas para não deixar incompleto o trabalho reformador. O modelo italiano, concebido em estágio avançado dos estudos do Direito da Insolvência na Europa, oferece boas soluções que podemos aproveitar. __________ 1 A respeito consultar o artigode Giuliana Scognamiglio "La crisi e l'insolvenza dei gruppi di società: prime considerazioni critiche sulla nuova disciplina", publicado na Rivista Telematica "Orizzonti del Diritto Commerciale", Fascicolo 3|2019. 2 É uma obrigação prevista no CODICE: Art. 289 Domanda di accesso e obblighi di informazione e collaborazione 1. La domanda di accesso a procedure di regolazione della crisi o dell'insolvenza presentata da un'impresa appartenente ad un gruppo deve contenere informazioni analitiche sulla struttura del gruppo e sui vincoli partecipativi o contrattuali esistenti tra le societa' e imprese e indicare il registrodelle imprese o i registri delle imprese in cui e' stata effettuata la pubblicita' ai sensi dell'articolo 2497-bis del codice civile. L'impresa deve, inoltre, depositare il bilancio consolidato di gruppo, ove redatto. In ogni caso il tribunale ovvero, successivamente, il curatore o il commissario giudiziale possono, al fine di accertare l'esistenza di collegamenti di gruppo, richiedere alla CONSOB o a qualsiasi altra pubblica autorita' e alle societa' fiduciarie le generalita' degli effettivi titolari di diritti sulle azioni o sulle quote ad esse intestate. Le informazioni sono fornite entro quindici giorni dalla richiesta. 3 Essa doutrina, que ficou conhecida nos anos oitenta pelo famoso caso Rozemblum na França, e pelo caso Tetrafin na Itália, já nos anos noventa. Sustenta que a desvantagem da sociedade dependente não pode ser examinada isoladamente, mas deve ser valorada em razão das vantagens que derivam do fato de pertencer ao grupo, colhidas pela sociedade dependente. O balanço entre os sacrifícios e vantagens deve ser valorado no conjunto de relações entre a sociedade dependente e a sociedade dominante. Essa doutrina foi expressamente adotada pela reforma italiana de 2003 e prevalece na França. A desvantagem não corresponde a um dano e por isso a teoria não cuida de compensar o dano com um lucro. São desvantagens que se compensam com vantagens ou benefícios. Entende-se que o dano só ocorre quando a desvantagem não for compensada a tempo.
Texto de autoria de Carlos Alberto Garbi A lei 11.101/2005 introduziu no Direito brasileiro um novo modelo para o tratamento da crise e da insolvência das sociedades empresariais. Influenciada pelo direito estrangeiro, especialmente norte-americano, criou uma solução negociada entre o devedor e credores para superar a crise econômica-financeira da empresa, deslocando o centro decisório do Juiz para os credores. Só tivemos oportunidade de testar a lei a partir da crise econômica de 2008, e mais intensamente, a partir de 2014, quando vivemos o início de uma crise política com reflexos na economia. O resultado não foi satisfatório quanto à recuperação das empresas. É sabido que a maior parte das empresas que recorreu ao processo judicial de recuperação não voltou ao mercado nas condições anteriores e muitas sucumbiram. Há vários problemas com a lei em vigor, o que motivou um movimento para a sua reforma. Nesse sentido algumas tentativas foram feitas. As mais recentes são registradas no Governo Temer e agora, com a crise pandêmica, pelo Projeto emergencial de autoria do Deputado Hugo Leal (Proj. 1.297/2020), já aprovado na Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado Federal. Um dos pontos que tem sido objeto desse movimento de reforma diz respeito ao tratamento da crise e da insolvência no âmbito dos grupos de sociedades. Não temos no direito brasileiro uma disciplina societária adequada para os grupos de sociedades, fenômeno cada vez mais presente na vida das sociedades empresárias e que oferece, pela sua complexidade, muitos desafios aos juristas. A lei brasileira (lei 6.404/76) tentou regular os grupos de sociedades formalmente constituídos, ignorando os grupos de fato, que são a imensa maioria. E não há nenhum regime legal para os grupos de sociedades na crise e na insolvência, não obstante o trabalho construtivo da jurisprudência. O legislador brasileiro ainda não olhou com atenção para o fenômeno plurissocietário e a jurisprudência pouco se ocupa de distinguir as possíveis formas de coligação societária, incluindo a maior parte delas, sem critério maior, em uma noção abrangente de grupo econômico, o que tem causado distorções. A preocupação com a crise das empresas e a insolvência tem ocupado nos últimos anos a atenção da maior parte dos países ocidentais, verificando-se um intenso movimento de renovação legislativa nos países do civil law. Recentemente a União Europeia aprovou a Diretiva 2019/1023, de 20 de junho de 2019, sobre os regimes de reestruturação preventiva, o perdão de dívidas e as inibições, e sobre as medidas destinadas a aumentar a eficiência dos processos relativos à reestruturação, à insolvência e ao perdão de dívidas, e que altera a Diretiva (UE) 2017/1132 (sobre reestruturação e insolvência). Pouco antes, entrou em vigor na Europa o Regulamento 2015/838, de 20 de maio de 2015, relativo aos processos de insolvência, que dedicou parte da sua atenção aos grupos de sociedades, estabelecendo medidas de coordenação dos processos de insolvência envolvendo sociedades em relação de grupo. Não foi além da "coordenação" dos processos, cuja autonomia e separação foram mantidas. Em razão das normativas do Parlamento Europeu e do Conselho da União Europeia, os países-membros procuraram adaptar a sua legislação. A Itália aprovou recentemente, pelo decreto legislativo 14, de 12 de maio de 2019, por força da Lei Delegada nº 155, de 19 de outubro de 2017, o CODICE DELLA CRISI DI IMPRESA E DELL'INSOLVENZA ("CODICE"), que regula de forma inovadora, no direito italiano, a insolvência no âmbito do grupo de sociedades, e que deverá entrar em vigor em 1 de setembro de 20211. O propósito desta breve abordagem é apontar as medidas legislativas adotadas neste novo diploma, que poderiam ser aproveitadas no Direito brasileiro, restringindo-se o exame ao tratamento da crise e da insolvência nos grupos de sociedades. E o interesse pela reforma italiana não está apenas no fato de que é o mais moderno diploma europeu sobre o tratamento da insolvência, mas está igualmente na influência que o direito comercial italiano e europeu tem sobre o Direito brasileiro. A reforma italiana, no que diz respeito ao grupo de sociedades, seguiu duas diretrizes: de um lado, se permitiu o tratamento unitário dos diversos procedimentos concursais das sociedades integrantes do grupo, que no CODICE são a concordata preventiva, o acordo de reestruturação de dívidas e a liquidação judicial, quando esta unidade for vantajosa para os credores; de outro lado, se reforçou a necessidade de manter distintas as massas ativas e passivas das sociedades em relação de grupo, não obstante a gestão unitária do procedimento2. Um primeiro ponto a chamar a atenção diz respeito à adoção, para efeito do tratamento de insolvência, de uma definição flexível de grupo de sociedades, que pode acomodar as mais variadas formas em que se apresenta esse fenômeno, fundada na ideia, que tem prevalecido, de que a relação de grupo se caracteriza pela existência de direção e coordenação unitárias, seja o grupo participativo ou contratual, paritário ou não3. Essa flexibilidade considera, corretamente, as múltiplas formas de organização dos grupos de sociedades, que não podem ser reduzidas a um só tipo ou modelo para o tratamento da insolvência. Já tivemos oportunidade de defender, em investigação que fizemos em sede acadêmica, ainda não publicada, que o conceito de grupo de sociedades para efeito de tratamento da insolvência pode ser mais abrangente, e menos rígido, do que ele é no campo societário. Esse foi o caminho seguido pela Lei italiana. Há uma tendência de ver nas Leis de Insolvência uma espécie de microssistema que labora conceitos próprios e flexíveis. O legislador moderno, brasileiro e europeu, sempre cuidou nos últimos anos da insolvência em diplomas separados, o que sugere e autoriza modelar noções adequadas ao melhor tratamento da matéria em favor de uma relativa autonomia que vem sendo reconhecida ao Direito de Insolvência. É o que, de certa forma, tem se verificado em recentes decisões dos Tribunais no Brasil com o alargamento da definição de empresário para admitir o uso da recuperação judicial em favor de produtores rurais e associações, o que se tem feito por um esforço de interpretação. Cabe registrar que o Projeto de Lei do Deputado Hugo Leal referido amplia ainda mais esta definição para alcançar os "agentes econômicos". Outro ponto relevante se encontra na possibilidade de apresentação de um plano unitário de recuperação ou de liquidação, bem como na possibilidade de apresentação de planos paralelos, mas interferentes ou interdependentes, para cada uma das sociedades em relação de grupo, assegurando-se, em ambos os casos, a plena autonomia e separação patrimonial entre as sociedades. Essa possibilidade, admitida pela Lei Italiana, não encontra paralelo no direito brasileiro, não obstante contar com o apoio de boa doutrina. Os projetos de modificação da lei em vigor no Brasil contemplam essa possibilidade. Há um aspecto substancial na relação de grupo que não tem sido levado em consideração no tratamento das questões relacionadas à crise das empresas, e especialmente nos processos de recuperação judicial, que é justamente a característica mais distintiva da relação de grupo, qual seja a existência de uma direção unitária. Evidentemente, não se pode esperar para o superamento da crise do grupo que as decisões não sejam tomadas de forma unitária. Separar as sociedades do grupo ou afastar as sociedades dos seus controladores, e os respectivos planos de recuperação, é medida que contraria a própria existência e a natureza do grupo de sociedades e que se revela desfuncional no tratamento da crise, sem prejuízo da separação das massas patrimoniais societárias. Em outras palavras, não se reproduz na fase de crise ou insolvência a mesma unidade de direção que caracteriza o grupo de sociedades e, muito frequentemente, se nega a possibilidade do Grupo governar a crise no processo de recuperação, impondo-se soluções separadas para cada uma das sociedades. Impede-se, quase sempre, que a sociedade controladora ou holding possa continuar a exercer o poder de direção que sempre existiu no grupo de sociedades, e quando ela própria se vê envolvida, também se nega a ela a prerrogativa de dirigir outras sociedades do grupo em favor do superamento da crise. Em favor de uma interpretação voltada ao modelo de sociedade singular, se anula a possibilidade de uma solução global da crise para o grupo. A flexibilidade que se defende para a definição de grupo é também a flexibilidade que se deve dotar a Lei para o tratamento da crise no âmbito dos grupos de sociedades, permitindo-se a solução unitária para o grupo - processo unitário, com o máximo de coordenação compatível com a separação das massas patrimoniais. Também deve ser aberta a possibilidade de levar somente uma das sociedades do grupo ao processo de recuperação, quando essa solução representar medida de maior eficiência e resultado. O CODICE atuou nesse sentido. Na segunda parte deste artigo vamos abordar a questão do controlador e da holding nos processos de recuperação e liquidação, bem como da consolidação processual e substancial e respectivos procedimentos. *Carlos Alberto Garbi é pós-Doutor pela Universidade de Coimbra. Doutor e mestre Pela PUC/SP. Professor da FMU/SP. Advogado, consultor, parecerista e desembargador aposentado do TJ/SP. __________ 1 O Decreto-legge n. 23/2020 prorrogou a entrada em vigor do novo CODICE de agosto de 2020 a 1° de setembro de 2021, em razão da pandemia. O novo CODICE está sujeito a modificações corretivas e integrativas até 14 de agosto de 2022 (Legge 8 marzo 2019, n. 20 (Gazz. Uff. 20 marzo 2019, n. 67). A Lei italiana utilizou de boa técnica de aprimoramento legislativo e determinou a entrada em vigor de poucos dispositivos, de menor relevância, em até trinta dias, e deixou um período maior, de dois anos, para a vigência por inteiro do novo regime, prevendo modificações legislativas de correção e integração. 2 Giuseppe Fauceglia. Il Nuovo Diritto Della Crisi e Dell'Insolvenza. Torino : G. Giappichelli Editore, 2019, p.213-214. 3 O CODICE definiu o grupo de sociedades no seu art. 2.1. "h": «gruppo di imprese»: l'insieme dele societa', delle imprese e degli enti, escluso lo Stato, che, ai sensi degli articoli 2497 e 2545-septies del codice civile, sono sottoposti alla direzione e coordinamento di una societa', di um ente o di una persona fisica, sulla base di un vincolo partecipativo o di um contratto; a tal fine si presume, salvo prova contraria, che: 1) l'attivita' di direzione e coordinamento di societa' sia esercitata dalla societa' o ente tenuto al consolidamento dei loro bilanci; 2) siano sottoposte alla direzione e coordinamento di una societa' o ente le societa' controllate, direttamente o indirettamente, o sottoposte a controllo congiunto, rispetto alla societa' o ente che esercita l'attivita' di direzione e coordinamento.
Texto de autoria de Marcelo Sacramone O projeto de lei 1.397/2020 visa a alterar pontualmente a legislação falimentar diante de um novo contexto social: uma pandemia que assola o mundo todo, com um isolamento social que já dura meses e o perigo cada vez mais iminente de uma crise econômica de proporções assustadoras. O PL, aliás, é temporário. Sua proposta é a de possuir um caráter transitório, até 31 de dezembro deste ano, justamente para "acomodar o impacto econômico da pandemia causada pelo coronavírus sobre empresas em dificuldades econômicas"1. Ele foi aprovado no último dia 21/05/2020 e segue, agora, para deliberação pelo Senado Federal. A intenção do PL - na mesma linha que a de tantos outros que vêm surgindo nos últimos anos para atualizar a lei 11.101/2005 - certamente é a de otimizar a eficiência do processo de recuperação judicial, ainda que nestes períodos sombrios de pandemia e isolamento social. É praticamente fato notório que o tempo é inimigo dos empresários em crise (mesmo durante a recuperação judicial), e contra ele todos os sujeitos do processo devem travar uma luta incessante2 - acrescida, agora, da preocupação com o coronavírus. Nada obstante, boas intenções não bastam para uma solução adequada. É preciso uma análise bastante atenta dos possíveis efeitos que a alteração legal pode causar num mercado já enfraquecido e na dinâmica dos agentes econômicos, devedores e credores, todos afetados, em pequeno ou maior grau, pela pandemia. Há de se lembrar que a própria Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (LINDB, decreto-lei 4.657/1942) foi alterada em 2018 e, com a inclusão dos artigos 20 e seguintes, passou a prever o que vários já chamam de um consequencialismo jurídico no ordenamento pátrio. Nenhuma autoridade (das esferas administrativa, controladora e judicial, nos dizeres da lei) pode decidir "sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão". Além disso, a Lei de Liberdade Econômica, em seu art. 5º, exige que qualquer edição ou alteração de ato normativo editado por órgão da administração pública federal devam ser precedidas da realização de análise de impacto regulatório. Ambos os dispositivos legais não fazem referência ao poder legislativo. Em boa lógica, contudo, é no mínimo prudente que alterações legais sejam feitas após um exame cauteloso de suas consequências ou efeitos, sob pena não apenas de os objetivos pretendidos não serem alcançados, como de agravar a situação justamente daquilo que se pretendia proteger. Metáforas simplesmente não garantem que os resultados pretendidos serão obtidos. A primeira delas é que se pretende adequar o "relógio financeiro ao relógio econômico" para se permitir que mercado se recupere. Ainda que absolutamente nenhum número tenha sido produzido, ou discutido, o projeto vai no sentido absolutamente oposto do pretendido. Para permitir que o devedor, mas não o mercado, se recupere, o projeto possibilita que os agentes econômicos deixem de pagar seus débitos por 120 dias, ao menos. O "período de suspensão legal" de pelo menos de 30 dias (art. 5º) e o período de negociação preventiva (que permite suspensão por mais 90 dias - art. 6º) não impõem nenhuma contrapartida ou ônus ao devedor. Cria-se, assim, um incentivo a que todo devedor se utilize efetivamente dessa verdadeira moratória de 120 dias, em que expressamente as multas não podem ser exigidas, as garantias não podem ser excutidas, os contratos não podem ser resilidos, assim como os créditos não podem ser executados. Decerto a saúde financeira do devedor seria beneficiada. Contudo, o projeto parece esquecer que o financiamento do devedor é feito às custas de outro agente econômico, o credor também afetado econômica e financeiramente pela pandemia. Pelo projeto, o credor é compelido a financiar, sem análise do risco e sem eventualmente condições financeiras, o devedor inadimplente. Como consequência, o projeto pode suspender a circulação de riquezas, comprometer o fluxo de pagamentos e, por fim, tornar o próprio credor um devedor também inadimplente, com o aprofundamento da crise já existente. Outra metáfora comumente utilizada ao versar sobre o projeto é seu intuito de "achatar a curva de demanda" das recuperações judiciais e impedir o colapso do judiciário. Não se mensurou, entretanto, sequer o impacto da crise econômica e qual sua repercussão nos pedidos de recuperação judicial. Suas disposições, contudo, vão no sentido diametralmente oposto. O projeto estende a negociação coletiva a todos os agentes econômicos e não se restringe ao conceito de empresário. A alta demanda, criada pelo próprio projeto, é direcionada ao Judiciário numa data certa e única para todos os agentes: o término dos primeiros 30 dias de período de suspensão. Isso porque a negociação preventiva, incentivada pela Lei a milhões de agentes econômicos, é inexplicavelmente um processo judicial no projeto de lei, ainda que voluntário. Sua alternativa judicial exigirá o olhar insone do juiz sobre questões de legitimidade para a negociação preventiva, como o status de agente econômico, a queda do faturamento, débitos submetidos, etc. A desjudicialização de atividades mais burocráticas, ou que possam ser resolvidas de forma consensual, é uma realidade crescente no direito brasileiro - inventário e divórcio são bons exemplos de procedimento que podem se desenvolver de forma bem mais célere e barata em cartórios, extrajudicialmente. Não há motivo para não aplicar essa lógica também ao direito das empresas em crise. Em um período de incertezas, como é o presente, quem tem as melhores condições de saber o que é melhor para as empresas em dificuldade é o próprio mercado. Logo, na inexistência de razões em contrário, é mais adequado deixar a ele a responsabilidade por tomar tais decisões, ao passo que o Poder Judiciário permanece inerte, firme em sua nobre missão de garantir o acesso à ordem jurídica justa apenas depois que o mercado falhar em adjudicar uma solução adequada para a crise que já se aproxima. O projeto, nesses termos, não endereça os principais problemas e que exigem aprimoramento na legislação de insolvência, como a agilização do processo de liquidação de empresas, aumento da segurança para venda de bens, definição de hipótese factível para que o empresário individual falido, mas de boa-fé, possa voltar a empreender, ou limita temporalmente a responsabilidade dos sócios como incentivo a empreender. Sem absolutamente nenhuma mensuração das regras propostas, o projeto não apenas pode não combater os efetivos problemas a serem enfrentados pela crise econômica que deve advir da Covid-19 como pode provocar justamente o seu aprofundamento, com sua disseminação a todos os agentes do mercado. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 1/6/2020. 2 Ver: WAISBERG, Ivo; SACRAMONE, Marcelo; NUNES, Marcelo Guedes; CORRÊA, Fernando, Judicial Restructuring in the Courts of São Paulo - Second Phase of Insolvency Monitor (Recuperação Judicial no Estado de São Paulo - 2ª Fase do Observatório de Insolvência) (April 26, 2019). Disponível em SSRN: aqui ou aqui, p. 45.
Texto de autoria de Andre Roque Diante da grave crise sanitária da Covid-19 pela qual passa o mundo, com evidentes impactos para a economia brasileira - especialmente diante do fechamento do comércio e das restrições a diversas atividades econômicas -, uma das principais preocupações do Poder Público se voltou à preservação das empresas. Nessa direção, foi apresentado o PL 1.397/2020, de iniciativa do Dep. Hugo Leal (PSD/RJ), recentemente aprovado na Câmara dos Deputados e encaminhado para apreciação do Senado Federal. Referido projeto, em síntese, busca disciplinar o regime emergencial de prevenção à insolvência. Referido projeto, com vigência limitada a 31 de dezembro de 2020, estabelece, entre suas principais medidas, a estruturação de um procedimento de negociação preventiva, com prazo máximo de 90 dias corridos, desde que o devedor comprove "redução igual ou superior a 30% (trinta por cento) de seu faturamento, comparado com a média do último trimestre correspondente de atividade no exercício anterior, o que será verificado e devidamente atestado por profissional de contabilidade". Apresentado o pedido de negociação preventiva, ocorrerá a suspensão, também pelo prazo de 90 dias corridos, de execuções contra o devedor que tenham por objeto obrigações vencidas após 20 de março de 2020, ressalvados créditos de natureza estritamente salarial e de contratos firmados ou repactuados após 20 de março de 2020. Ainda, durante esse período, o devedor será beneficiado, com o afastamento de multas de mora previstas em contrato ou decorrentes do inadimplemento de obrigações tributárias, ficando vedadas: (i) a excussão judicial ou extrajudicial das garantias reais, fiduciárias e fidejussórias contra o devedor e terceiros garantidores; (ii) a decretação de falência; e (iii) a resilição unilateral de contratos bilaterais, sendo considerada nula qualquer disposição contratual nesse sentido, inclusive de vencimento antecipado. Esgotado o prazo de 90 dias corridos, o procedimento será encerrado, independentemente do desfecho das negociações. Caso requerida recuperação judicial ou extrajudicial, o período de suspensão já usufruído pelo devedor no âmbito do procedimento de negociação preventiva será descontado do período de standstill de 180 (cento e oitenta) dias estabelecido pela lei 11.101/05 para a recuperação judicial ou extrajudicial. Finalmente, entre outras medidas relevantes estabelecidas pelo Projeto de Lei em análise, nos termos aprovados pela Câmara, podem ser destacadas as seguintes: a) a inexigibilidade das obrigações previstas nos planos de recuperação judicial ou extrajudicial homologados, independentemente de deliberação da assembleia geral de credores, pelo prazo de 120 (cento e vinte) dias, contados da vigência da nova lei; b) a autorização para que seja apresentado, dentro do prazo de 120 (cento e vinte) dias, contados da vigência da nova lei, novo plano de recuperação judicial ou extrajudicial, tenha ou não sido homologado o plano original em juízo, com direito a novo período de standstill; c) no plano de recuperação extrajudicial, a redução do quórum de credores que o assinarem de 3/5 para a metade mais um dos créditos de cada espécie por ele abrangidos; d) a majoração do limite mínimo para a decretação da falência fundada em impontualidade do devedor de 40 (quarenta) salários mínimos para R$ 100.000,00 (cem mil reais); e e) na recuperação judicial de microempresas e empresas e pequeno porte, o plano poderá prever o pagamento dos créditos por ele abrangidos em até 60 (sessenta) parcelas mensais, corrigidos pela Selic, com o primeiro pagamento, no máximo, em 360 (trezentos e sessenta) dias após ser formulado o pedido de recuperação. Não se duvida dos propósitos louváveis do Projeto de Lei, relacionados à preservação das empresas e dos empregos frente aos nefastos efeitos da pandemia. Contudo, causam preocupação os termos com que referida proposta legislativa acabou sendo aprovada na Câmara dos Deputados. Como já apontado em outro texto que tivemos a oportunidade de escrever, a respeito do ônus da argumentação especificada nas demandas revisionais que têm por pano de fundo a Covid-19, "é preciso separar o joio do trigo - ou seja, as demandas minimamente plausíveis das ações judiciais oportunistas. Em meio a uma crise de espectro amplo como a que se apresenta, não é difícil imaginar que alguns a utilização como cortina de fumaça para que seja chancelado em juízo o seu inadimplemento"1. Nesse sentido, admite o Projeto de Lei que qualquer "agente econômico", entendido este como "a pessoa jurídica de direito privado, o empresário individual, o produtor rural e o profissional autônomo que exerça regularmente suas atividades" (art. 2º, § 1º), dê início ao procedimento de negociação preventiva, bastando para isso apenas que comprove redução igual ou superior a 30% (trinta por cento) de seu faturamento, comparado com a média do último trimestre correspondente no exercício anterior. Tal previsão é insuficiente para afastar eventuais demandas oportunistas. Primeiro, porque não se exige a demonstração de efetivo desequilíbrio patrimonial, que pode simplesmente não ter se verificado, em que pese a queda de faturamento. Basta pensar, nessa direção, no devedor que consegue reduzir suas despesas no mesmo patamar ou até maior que sua redução de faturamento ou na empresa que havia espontaneamente optado por reduzir suas atividades tradicionais para concentrar seus recursos em nova atividade que lhe pareça contar com maior potencial de crescimento. Segundo, não se exige a demonstração de causalidade da queda de faturamento, que pode decorrer de má gestão da empresa ou de outras circunstâncias que nada têm a ver com o cenário de pandemia. Seria absurdo, por exemplo, que um supermercado se valesse desse procedimento se ele não teve o seu funcionamento comprometido. Terceiro, não se prevê nenhuma sanção para o devedor que, de má-fé, lança mão do procedimento de negociação preventiva para suspender indevidamente a ação de seus credores. Caso o Projeto de Lei venha a entrar em vigor em sua última versão, há o risco de que inúmeros procedimentos oportunistas de negociação preventiva venham a inundar o Poder Judiciário, trazendo insegurança jurídica, com impactos sistêmicos imprevisíveis no risco-país e na taxa de juros, entre outros indicadores econômicos. Quarto, parecem excessivas a vedação indiscriminada à excussão de garantias contra os terceiros garantidores - que podem ter extenso patrimônio pessoal, decisivo para a concessão do crédito para a empresa em crise - durante o período de negociação coletiva e a previsão de inexigibilidade das obrigações previstas nos planos de recuperação judicial ou extrajudicial homologados, independentemente de deliberação da assembleia geral de credores. Ainda que tais medidas possam, no caso concreto, serem convenientes, deveria o Projeto de Lei exigir alguma demonstração mínima de sua necessidade, sob pena de legitimar eventuais comportamentos oportunistas. Ao que parece, o Projeto de Lei em análise se preocupou apenas com um dos lados da relação - o devedor -, sem se atentar para os possíveis impactos trazidos pela pandemia para o credor e, principalmente, para o mercado de crédito. Para que seja concedido o crédito, é preciso que o credor tenha ciência dos riscos a que se submete, o que não se compatibiliza com o risco de que sejam ajuizadas demandas judiciais oportunistas, ao arrepio dos objetivos perseguidos pelo legislador. Não se nega, em absoluto, a possibilidade de intervenção estatal nas relações jurídicas privadas, mas ela deve ser realizada com parcimônia e sempre se atentando para os diversos interesses em jogo. Se a preservação da atividade econômica é um dos valores a serem tutelados pelo ordenamento jurídico, não é menos verdadeiro que a recuperação de crédito e a segurança jurídica não podem ser desprezadas, como condições essenciais para possibilitar a recuperação econômica de nosso país. Por hoje, ficamos por aqui. Até a próxima! __________ 1 Andre Vasconcelos Roque, O ônus da argumentação especificada nas demandas revisionais com base na Covid-19. Migalhas, disponível aqui. Acesso em 23/5/2020.
Texto de autoria de Paulo Furtado de Oliveira Filho A Constituição Federal garantiu aos juízes vitaliciedade, inamovibilidade e irredutibilidade de vencimentos, em nome de um bem maior e em prol da cidadania: a solução dos conflitos com independência. O juiz não está obrigado a seguir este ou aquele entendimento, deste ou daquele Tribunal, exceto em situações excepcionais, como a da súmula vinculante enunciada pelo Supremo Tribunal Federal. O juiz deve estar equidistante das partes, ouvir os litigantes, oferecer-lhes oportunidades de produzir provas e proferir o seu julgamento, de acordo com a interpretação adequada da lei, apta a melhor solucionar o conflito. É comum, no Direito, que não haja uma adesão absoluta e geral de toda a comunidade jurídica quanto à melhor aplicação da lei para a solução de determinado conflito, sendo uma constante a existência de pontos de vista contrários e respeitáveis. Por isso mesmo, a lei protege os magistrados contra medidas judiciais ou administrativas que busquem puni-lo por eventual interpretação que faça de um dispositivo legal. O Supremo Tribunal Federal já decidiu que, em não havendo impropriedade ou excesso de linguagem, ao magistrado não pode ser cerceada sua liberdade de julgar com independência. A Associação dos Magistrados Brasileiros - AMB já ingressou com ação no Supremo Tribunal Federal questionando a constitucionalidade da denominada "Lei de Abuso de Autoridade" porque interferiria na independência do julgador na sua missão de julgar. Nessa linha da raciocínio, cabe aos juízes de falências e recuperações judiciais, com equilíbrio e serenidade, no exercício de sua relevante missão constitucional, ponderar todos os aspectos envolvidos no cumprimento de um plano de recuperação. Liberar um devedor do pagamento de obrigações, sem prova da real incapacidade de cumprimento do plano, pode repercutir de forma grave na situação financeira dos credores, a ponto de falirem, com maior dano econômico-social. Pode ocorrer que um devedor em recuperação judicial integre um dos segmentos econômicos que aumentaram as vendas com as medidas de combate à pandemia da Covid-19. É de se perguntar: podem os credores, diante de uma elevação extraordinária da receita de 50% dessa recuperanda, pedir que o deságio de 25% constante do plano aprovado seja reduzido? Ou que a dívida retorne à condição originária? Há casos de devedores em recuperação com as portas fechadas e com produtos consignados. Não seria razoável permitir que parte dos prejuízos dos produtores fosse reduzido, permitindo-lhes a restituição de parte dos produtos, a fim de que pudessem se valer de outros canais de vendas? Também há devedoras que já estavam com seus planos descumpridos e cuja decretação de falência tornou-se inevitável, não havendo como evitar-se a continuidade de um negócio que consome recursos mês a mês em detrimento de credores que aguardam a satisfação de seu crédito há muito tempo. O juiz tem como seu auxiliar o administrador judicial, que, na fiscalização das atividades da devedora, pode ser intimado para apresentar um relatório acerca da realidade econômico-financeira decorrente das medidas sanitárias de combate à pandemia e o impacto no cumprimento do plano. O juiz poderá ouvir os credores e tomar alguma medida urgente ou não, e convocar ou não a assembleia geral de credores, mas sempre atento à realidade para a qual a professora Paula Forgioni chamava a atenção: "a empresa não existe sozinha, mas somente na relação com outras empresas e com os adquirentes de seus produtos e serviços".
Texto de autoria de Luiz Dellore Introdução A assembleia geral de credores (AGC) é ato de grande importância para a recuperação judicial. Nesse momento, os credores (divididos em 4 classes), se reúnem para deliberar sobre matérias de interesse comum e, em especial, para a aprovação ou rejeição do plano de recuperação judicial apresentado pela empresa devedora. O assunto já foi enfrentado por mim, em coautoria, nesta coluna. Em um 1º texto, apresentou-se uma visão geral acerca do que ocorre em uma AGC1, ao passo que em um 2º texto, o tema foi aprofundado, especialmente quanto ao direito de voto e o que acontece quando há cenários distintos para votação (principalmente em virtude de liminares proferidas às vésperas da AGC)2. Neste momento, o texto trata da possibilidade de uma AGC ser realizada de maneira virtual. 1) Da previsão legal Não há previsão, na lei 11.101/2.005 (a Lei de Recuperação Judicial e Falência - LRF), de uma assembleia realizada por meio online. Assim, de uma maneira geral, as assembleias são realizadas presencialmente, em locais que vão variar de acordo com o porte da assembleia: desde uma pequena sala de reunião em um escritório (quando há poucos credores) até mesmo um ginásio esportivo ou galpão de exposição (quando há muitos credores). Em raras situações, havia notícias de AGCs realizadas de maneira virtual3. Em projeto de lei para alterar a LRF, passa a existir previsão legal expressa de AGC por meio eletrônico. 2) A pandemia covid-19 Eis que 2020 chegou e, em março, a pandemia estava entre nós. Como é notório, passamos a conviver com quarentena, distanciamento social, prazos suspensos4 e Judiciário fechado. Nesse contexto, o que fazer com os processos de RJ (cujos prazos não são processuais, segundo decidido pelo STJ5) e, especialmente, as AGCs? O CNJ editou, no final de março, recomendação acerca de diversos aspectos relativos às recuperações judiciais e falências6. Dentre as recomendações, constou expressamente que as AGCs presenciais deveriam ser suspensas, mas que autorizada a realização de reuniões virtuais quando isso for necessário para a manutenção das atividades empresariais da devedora e início dos pagamentos aos credores. Ou seja, o CNJ - no âmbito de sua atividade de administração do Judiciário - editou ato normativo no sentido de expressamente autorizar AGCs virtuais em virtude da pandemia do coronavirus. 3) Análise de caso: A AGC da Odebrecht Possivelmente um dos primeiros casos após a pandemia e a resolução do CNJ, houve a designação de AGC virtual no processo relativo à recuperação judicial da construtora Odebrecht7. Nessa RJ, logo após o início da pandemia, houve decisão no sentido de que a AGC seria realizada por meio virtual. Vale destacar o seguinte, da decisão do juiz JOÃO DE OLIVEIRA RODRIGUES FILHO: "(...)defiro o pedido de continuidade de realização da AGC do Grupo Odebrecht a ser realizado em ambiente virtual, com a metodologia e os protocolos estabelecidos pelo administrador judicial, nos termos de sua petição de fls. 29.048/29.053, devendo o auxiliar do Juízo engendrar todos os esforços para manutenção da transparência do ato e da higidez da manifestação de vontade dos credores." Diante dessa decisão, houve interposição de agravo de instrumento por alguns credores8 e, ao decidir o efeito suspensivo, o TJSP, por meio do relator Des ALEXANDRE LAZZARINI, afirmou o seguinte: "No tocante ao ambiente virtual, não se verifica qualquer irregularidade em sua realização, desde que o sistema funcione durante toda a reunião (o que só poderá conhecer após a realização do conclave), permitindo que todos possam exercer seu direito de voz e voto, com amplo acesso aos documentos apresentados durante a AGC. (...) defiro parcialmente a liminar pleiteada, a fim de proibir qualquer deliberação na AGC do dia 31/03/2020, incluída a deliberação sobre a consolidação substancial, podendo, porém, iniciarem-se os debates, com manifestação dos credores, possibilitando, assim, esclarecimentos sobre o novo plano apresentado, além da designação de sua continuidade. Nova assembleia, com a finalidade de deliberação, não deverá ocorrer em prazo inferior ao de 20 dias corridos (e não sujeitos a suspensão dos prazos processuais decorrentes da COVID 19), contados a partir da AGC de 31/3/2020". Ou seja, decidiu-se que (i) não havia problema na realização de AGC online, mas (ii) deveriam ser observados os prazos mínimos previstos em lei para a convocação (art. 36 da LRF). Diante dessa decisão, optou-se por realizar a AGC apenas após o prazo indicado pelo relator. Com isso, foi realizada apenas uma AGC virtual, já para deliberação. Assim, a administradora judicial providenciou o sistema necessário para isso. Os credores com direito de voto tiveram um acesso específico, com possibilidade de participação em chat para fins de votação. De seu turno, ainda houve a possibilidade, para aqueles que assim solicitaram, de participar como ouvintes (logo, sem a possibilidade de interação ou voto, por certo), mediante um link para a transmissão via youtube. A AGC contou com participação de credores, debates, esclarecimentos e votações. Os resultados das votações, por exemplo, foram expostos da seguinte forma: A AGC durou mais de 6 horas - longo, mas nada muito distinto daquilo que ocorre em uma AGC usual, e possivelmente mais rápido que se fosse um encontro não virtual. Assim, pode-se dizer que reproduziu, em grande parte, aquilo que se vê uma assembleia presencial. E, ao menos nessa AGC específica, não houve nenhum problema mais grave de tecnologia - como por exemplo ocorreu em sessão virtual de julgamento do STF9. Portanto, sob uma perspectiva formal e analisando exclusivamente a realização da assembleia por meio eletrônico, o saldo é positivo. 4) E após o fim da pandemia? AGCs virtuais seguirão sendo possíveis? Como já mencionado, não há previsão legal, na LRF, para a realização de AGCs virtuais10. Sendo assim, passada a quarentena, seria possível falar-se em realização de assembleias online? Ou somente se houver alteração legislativa isso será possível? Por óbvio que há mais de uma resposta a essa questão. Mas, em meu entender, a resposta é afirmativa, por diversas razões. A uma, pois não há vedação expressa na LRF a respeito de uma AGC online, nem obrigação expressa de que a AGC seja presencial. A duas, porque no momento da edição da lei, a tecnologia que temos hoje não existia; ou seja, com a brutal evolução dos aplicativos de comunicação, em pouco tempo a transmissão de vídeo e áudio mudaram completamente11, o que permite maior confiabilidade e estabilidade às comunicações eletrônicas e possibilidade de realização de encontros por meio virtual. A três, pelos princípios processuais da cooperação, economia processual, celeridade e duração razoável do processo, uma AGC virtual é preferível a uma AGC presencial. Isso porque traz ganhos de tempo para todos (evitando deslocamento entre cidades, estados e países - ou, no caso de grandes cidades como SP ou RJ, mesmo na própria cidade), economia para a recuperanda (evitando custos elevados de locação de espaço para realização da AGC) - e, consequentemente, ganhos para todos os credores e numa atitude colaborativa entre todos. Assim, dentre outros, considerando esses três motivos, entendemos que, mesmo sem alteração legislativa, é possível a realização de uma AGC online12. E, por certo, todos os requisitos para a AGC previstos em lei devem ser observados, como por exemplo prazo mínimo para a sua convocação - o que, como já exposto, foi o que motivou a concessão de liminar em agravo de instrumento no caso concreto analisado no tópico anterior. Ademais, compete ao administrador judicial (i) garantir um ambiental adequado virtual para o número de credores da RJ, (ii) possibilitar que os credores com mais dificuldades tecnológicas (possivelmente os credores da classe I - trabalhistas) tenham acesso à AGC e (iii) que no caso de problemas técnicos, a AGC seja suspensa e/ou adiada, de modo que não haja prejuízo à vontade dos credores. Tudo, é claro, sob a supervisão e eventual correção de rumos do magistrado, se e quando provocado pelas partes interessadas. E, por óbvio, nada obsta que haja lei regulamentando a AGC virtual. Mas não se trata de algo obrigatório. Situação semelhante a essa se verificou no passado, em relação à penhora online. Quando surgiu o sistema o sistema Bacen-Jud, não havia previsão legal acerca disso. O debate se instalou na doutrina e jurisprudência, com entendimentos para ambos os lados, no sentido da possibilidade sem lei ou obrigatoriedade de lei para que permitida a penhora online. Após muita discussão, a jurisprudência firmou-se pela possibilidade da penhora online mesmo sem lei - mas posteriormente isso foi incorporado ao CPC. Esse pode ser um paradigma para a AGC virtual; afinal, a tecnologia que traz ganhos ao trâmite processual não deve ser limitada. Conclusão A AGC é dos mais importantes momentos do procedimento da recuperação judicial, senão o mais relevante. Ainda que não haja previsão legal de AGC virtual, com a pandemia do Covid-19, estão ocorrendo assembleias virtuais, com o apoio e estímulo do CNJ. Após o fim da pandemia, parece-nos que as AGCs virtuais podem e devem prosseguir, ainda que não haja alteração legislativa. Isso porque a AGC virtual não é vedada pela lei, a tecnologia hoje existente permite isso e princípios processuais estimulam isso. Além disso, a AGC ser virtual ou presencial é mais uma questão de forma do que de fundo - tal qual, no passado, o debate em relação à penhora ser física ou online. Vejamos como se portará a jurisprudência em relação a isso quando, finalmente, a pandemia e o distanciamento social forem passado. *Luiz Dellore é doutor e mestre em Direito Processual pela USP. Mestre em Direito Constitucional pela PUC/SP. Visiting Scholar na Syracuse University e Cornell University (EUA). Professor de Direito Processual do Mackenzie, Escola Paulista do Direito e Saraiva Aprova. Advogado da Caixa Econômica Federal. Ex-assessor de ministro do STJ. Membro do IBDP (Instituto Brasileiro de Direito Processual) e do CEAPRO (Centro de Estudos Avançados de Processo). __________ 1 Em coautoria com Andressa Borba Pires. 2 Com a mesma coautora. 3 Como por exemplo no caso da Zamin Mineradora, em processo que tramitou em SP (1088747-75.2015.8.26.0100) e a mineradora exercia atividades no Amapá, conforme decidido pelo juiz PAULO FURTADO. Nesse caso, a AGC foi realizada de forma presencial em SP, mas com transmissão e possibilidade de intervenção e voto em Macapá (fls. 15118: "Visando a ampla divulgação da solenidade haverá transmissão ao vivo em Macapá, via videoconferência, a ser realizada no Auditório da Ordem dos Advogados do Brasil do Amapá (OAB/AP), situado na Rua Binga Uchôa, 26, Central, Macapá/AP, CEP. 68900-090, tanto na primeira convocação (dia 15/08/2019) como na segunda convocação (dia 22/08/2019)". 4 Acerca do tema, conferir. 5 Sobre o assunto. 6 O texto por ser conferido aqui. 7 A decisão foi proferida pelo magistrado JOÃO DE OLIVEIRA RODRIGUES FILHO, que inclusive tratou do assunto AGC virtual em coluna anterior. 8 AI 2057008-03.2020.8.26.0000 e AI 2055988-74.2020.8.26.0000, por exemplo. 9 A respeito. 10 No projeto de reforma da lei, existe essa possibilidade, com a inclusão de um parágrafo no art. 39: "§ 4º Qualquer deliberação prevista nesta Lei, para ocorrer por meio de assembleia geral de credores, poderá ser substituída, com idênticos efeitos, por: I - termo de adesão firmado por tantos credores quantos satisfaçam o quórum de aprovação específico, nos termos estabelecidos no art. 45-A; II - votação realizada por meio de sistema eletrônico que reproduza as condições de tomada de voto da assembleia geral de credores; ou III - outro mecanismo reputado suficientemente seguro pelo juiz e que venha a ser proposto pelo credor interessado". O projeto pode ser acessado aqui. 11 Nesse exato sentido, o professor e magistrado JOÃO DE OLIVEIRA RODRIGUES FILHO, na já mencionada coluna anterior: "A lei 11.101/2005 não previu a possibilidade de realização de AGC em ambiente virtual de maneira expressa. Contudo, devemos compreender que no momento de sua edição não havia disseminação tão maciça e segura dos meios de comunicação eletrônicos, decorrente da evolução cada vez mais acentuada da tecnologia, fruto do dinamismo do mercado e das atividades empresariais". 12 No final de texto anterior sobre AGC (muito antes do Covid-19) já iniciamos a defesa dessa posição: "Assim, as formalidades da AGC podem e devem ser repensadas para, por exemplo, se colher eletronicamente os votos dos credores, de forma a conferir maior praticidade e economicidade ao ato, evitando-se deslocamentos e custos desnecessários para sua realização".
Texto de autoria de João de Oliveira Rodrigues Filho A pandemia relativa ao coronavírus covid-19 promoveu tremenda reviravolta na vida social em nível mundial. A despeito de debates sobre o grau de intensidade que deva prevalecer acerca das medidas de isolamento social, é fato que a reclusão das pessoas em suas casas importou severa diminuição na circulação de riquezas, de natureza empresarial, financeira e consumerista, com impacto direto e imediato em nível micro e macroeconômico. Como bem sintetizado por Cássio Cavalli1: É consabido que diversas empresas passam por grave crise financeira decorrente da interrupção de cadeias de suprimento e da redução abrupta de demanda. O faturamento de muitas empresas sofreu uma acentuada redução, sem que, no entanto, as suas obrigações fossem suspensas. Há um monumental descompasso entre o tempo econômico e o tempo financeiro, conforme a síntese de Lawrence Summers descrita pelo site da Bloomberg: "o tempo econômico parou por causa da pandemia, mas o relógio financeiro continuou a girar. Pagamentos de juros, aluguéis e outras obrigações ainda se vencem, mas o dinheiro para arcar com eles secou". O resultado desse descompasso é a crise empresarial de proporções épicas que estamos para enfrentar. Para algumas empresas, o problema será exclusivamente financeiro. Tão-logo vencida a pandemia, cadeias de suprimento tornarão a funcionar e a demanda retornará. Para estas empresas, é fundamental que sejam adotadas medidas de alívio financeiro que possibilitem que as suas agendas de pagamento sejam sincronizadas com o tempo econômico de seus faturamentos. Ninguém espera que empresas sejam fechadas pelo fato de que a terra parou de uma só vez. No Dia da Marmota não se vencem boletos dos meses seguintes. Além da crise financeira, outras empresas poderão enfrentar problema mais grave após vencermos a pandemia, pois a demanda por certos produtos ou serviços pode não se reestabelecer, dando origem a crises econômicas. Nesse caso, muitas empresas não terão como pagar suas dívidas e terão que fechar suas portas. Os impactos dessas falências serão sentidos por toda a economia. Os Poderes da República vêm adotando medidas extraordinárias voltadas a mitigar a crise econômica, buscando proporcionar, o tanto quanto possível, a conservação das estruturas econômicas existentes e dos empregos e, também, para evitar o colapso das relações comerciais e civis, com fomento à continuidade de contratos vigentes. Isso pode ser visualizado através da injeção de recursos financeiros ou mediante propostas legislativas de disciplina de relações jurídicas nesta situação de anormalidade vivida em nosso meio social. Especificamente em relação ao sistema de insolvência, ao lado dos profícuos debates e ideias surgidos no meio jurídico, há de se destacar a propositura do PL 1397/2020 pelo Deputado Hugo Leal, voltado a instituir medidas de caráter emergencial mediante alterações, de caráter transitório, de dispositivos da lei 11.101, de 9 de fevereiro de 2005; que somente terão vigência até 31 de dezembro de 2020, ou enquanto estiver vigente o decreto legislativo 6, de 20 de março de 2020 (reconhecimento do estado de calamidade pública em razão da pandemia causada pelo covid-19), além de outras providências2. Seu escopo é a manutenção das estruturas econômicas existentes, privilegiando-se a via negocial para a solução da crise econômico-financeira experimentada pela retração do volume de transações, através de procedimento de jurisdição voluntária, de modo a se impedir a proliferação do ajuizamento de demandas judiciais contenciosas, que somente produziria a pulverização de entendimentos jurídicos diversos sobre temas semelhantes e colapsaria o já assoberbado Poder Judiciário. O Conselho Nacional de Justiça, por sua vez, também atento à crise econômica resultante da anormalidade social imposta pela pandemia do covid-19, editou a Recomendação 63, de 31 de março de 2020, contendo diretrizes voltadas a auxiliar os juízos com competência para decidir questões afetas a recuperações judiciais e falências na interpretação da lei 11.101/20053. Mesmo que a solução de lege ferenda acima mencionada venha a ser implementada no ordenamento jurídico e de posse da Recomendação do Conselho Nacional de Justiça voltada aos processos de insolvência, ainda assim os operadores do direito enfrentarão dificuldades e desafios para a aplicação da lei 11.101/2005, diante do dinamismo dos fatos que se apresentarão no cotidiano do meio empresarial e forense. O que ora se propõe é uma mera reflexão sobre a leitura e compreensão de ferramentas já existentes, sejam elas normativas lato sensu, sejam de ordem extrajurídicas, a fim de que soluções possam ser construídas com o objetivo de se conferir plena efetividade à ratio essendi dos institutos da falência e da recuperação judicial, sem qualquer pretensão de esgotamento do tema e com a mente aberta à críticas construtivas que possam surgir, afastando-se as maléficas consequências do efeito Dunning-Kruger. Muitas vezes, ao aprofundarmos os estudos e discussões sobre determinados temas, acabamos por esquecer conceitos básicos e fundantes do próprio sistema, seja de ordem geral ou de algum microssistema jurídico existente. Ao olharmos para nossa Constituição Federal, quando há o tratamento sobre a ordem econômica, a eleição do Poder Constituinte foi pela economia de livre mercado, que deveria servir como instrumento para assegurar a dignidade da existência das pessoas, tendo como valores fundamentais, dentre outros, a propriedade privada, cujo exercício deve ser sempre limitado pelo cumprimento de sua função social4. A função social, por sua vez, é uma cláusula geral pelo fato do seu conteúdo possuir um conceito indeterminado. Conceitos indeterminados, segundo José de Oliveira Ascensão5: Os conceitos indeterminados trazem orientações formais. São formais, no sentido que não trazem imediatamente uma solução. É necessário que o intérprete, à luz delas, valore o caso concreto, para que a solução se torne visível. Assim, quando se fala em justo impedimento ou na diligência de um bom pai de família, dá-se um critério valorativo, nos termos do qual será possível depois verificar o que no caso concreto consista num justo impedimento ou representa a diligência devida. Mas para a valoração da função social ou de outros conceitos indeterminados não precisamos recorrer ao subjetivismo de cada operador do direito. De proêmio se faz necessária a análise da própria ordem jurídica vigentes e das regras devidamente positivadas, as quais podem funcionar muito bem como o parâmetro valorativo da cláusula geral que se pretende aplicar no caso concreto. Em outras situações, entretanto, existe a necessidade de se promover uma releitura dos termos da lei, a fim de que seu texto continue a alcançar os fatos da vida para os quais ela foi criada. Segundo Caio Mario da Silva Pereira6: A interpretação da lei, como processo mental de pesquisa de seu conteúdo real, permite ao jurista fixá-lo tanto em relação com a forma do comando coetâneo de seu aparecimento como ainda nas situações que o desenvolvimento das atividades humanas venha a criar, inexistentes quando de sua elaboração, porém suscetíveis de subordinação à sua regra em tempo ulterior. Essa pesquisa de vontade legal, que, de tão importante e construtiva, não falta quem classifique como última fase da elaboração normativa, sob o fundamento de que a lei contém na verdade o que o intérprete nela enxerga, ou dela extrai, afina em essência com o conceito valorativo da disposição, e conduz o direito no rumo evolutivo que permite conservar, vivificar e atualizar preceitos ditados há anos, há décadas, há séculos, e que hoje subsistem somente em função do entendimento moderno dos seus termos. Na verdade, só o esforço hermenêutico pôde dar vida ao nosso Código Comercial, publicado em 1850 e revogado - parcialmente - somente pelo Código Civil de 2002, diante da complexidade da vida mercantil de nosso dias; só pela atualização do trabalho do intérprete é possível conceber-se o vigor do Código Napoleão, que vem de 1804, ou a sobrevivência dos Cânones da Constituição Americana de 1787. É o que ocorre com a lei 11.101/2005, que foi fruto de percepção da comunidade jurídica e do Poder Legislativo à época, sobre a necessidade de profunda alteração das normas do direito de insolvência, que já não mais se mostravam adequadas para solucionar as questões apresentadas ao Poder Judiciário. No próprio relatório do Substitutivo do PLC 71/20037, o Senador Ramez Tebet reconheceu a necessidade de mudança da legislação de insolvência do país, que já não mais atendia às necessidades da sociedade e da economia, verbis: O PLC nº 71, de 2003, tem por objetivo ab-rogar e substituir a atual Lei de Falências, posta em vigor pelo quase sexagenário Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945, que, muito embora tenha, por seus reconhecidos méritos, servido durante tanto tempo à disciplina da matéria, não é mais adequado às necessidades da sociedade e da economia brasileira, dadas as numerosas e profundas alterações que ocorreram nas práticas empresariais no Brasil e no mundo nas últimas seis décadas É muito comum na prática forense a ocorrência de lacunas na lei e até mesmo a necessidade de alterações legislativas de temas afetos ao direito empresarial, justamente pela velocidade com que as atividades empresariais introduzem novas realidades e práticas no mercado. A própria lei 11.101/2005 é objeto de trabalho de alteração pontual em seus termos na tramitação do substitutivo do PL 10.220/18 em discussão na Câmara dos Deputados. Em que pese o trabalho de aprimoramento legislativo, o fato é que a lei 11.101/2005 necessita sempre de uma interpretação lógica, ontológica, teleológica e extensiva de seus termos, com a conformação de seu texto à realidade imposta pelo dinamismo da atividade empresarial e econômica, trabalho já realizado pela jurisprudência como forma de maximizar a utilização dos instrumentos legais dispostos para melhor atender aos reclamos sociais e de mercado. Nesse passo, o entendimento que deve ser extraído dos termos da lei 11.101/2005 deve estar em consonância com a sua própria essência, com o sistema jurídico vigente, com os avanços tecnológicos e o dinamismo do mercado, a fim de que os institutos preconizados na lei de insolvência possam ter o alcance necessário para funcionar como instrumento legítimo de resolução de questões pelo Poder Judiciário. O Eminente Ministro Luis Felipe Salomão, em seu voto no julgamento do REsp 1.337.989, forneceu importante entendimento sobre o processo hermenêutico da lei 11.101/2005, assim vernaculamente posto: Nessa ordem de ideias, a hermenêutica conferida à lei 11.101/2005, no tocante à recuperação judicial, deve sempre se manter fiel aos propósitos do diploma, isto é, nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resultar circunstância que, além de não fomentar, na verdade, inviabilize a superação da crise empresarial, com consequências perniciosas ao objetivo de preservação da empresa economicamente viável, à manutenção da fonte produtora e dos postos de trabalho, além de não atender a nenhum interesse legítimo dos credores, sob pena de tornar inviável toda e qualquer recuperação, sepultando o instituto. Com as medidas de isolamento social, não obstante a produtividade do Poder Judiciário e o seu pleno funcionamento através de procedimentos remotos, em caráter de home office, diversos atos de processos de recuperação judicial e de falência precisaram ser obstados, diante da impossibilidade de comparecimento presencial para a sua realização. Um dos maiores exemplos é a realização de assembleias gerais de credores. Muitas estavam em vias de acontecer e outras em fase de continuidade do conclave. Mas com as determinações governamentais de isolamento social, a regra geral foi a paralisação de tais eventos. Todavia, existem determinadas atividades que necessitam da conclusão do seu processo de negociação para, em caso de aprovação do plano, haja possibilidade de concretização da retomada do soerguimento, através da reestruturação da atividade e da entrada de novos recursos resultantes dos meios escolhidos para o processo de recuperação da empresa. A lei 11.101/2005 não previu a possibilidade de realização de AGC em ambiente virtual de maneira expressa. Contudo, devemos compreender que no momento de sua edição não havia disseminação tão maciça e segura dos meios de comunicação eletrônicos, decorrente da evolução cada vez mais acentuada da tecnologia, fruto do dinamismo do mercado e das atividades empresariais. Diante de todos esses elementos, mister se conferir aos termos legais atinentes à AGC o melhor alcance que se compatibilize com os objetivos da lei 11.101/2005, notadamente no que tange ao instituto da recuperação judicial e aos seus objetivos estatuídos no art. 47 do aludido diploma legal. A realização da AGC em ambiente virtual é medida que se coaduna com o respeito às medidas de distanciamento social promulgadas pelos órgãos do Poder Executivo e do Poder Judiciário, sem prejuízo da busca pelo soerguimento da atividade por meio da continuidade da discussão e votação do PRJ apresentado pelas recuperandas. Isso porque, na atualidade, existem diversas plataformas digitais seguras que possibilitam a plena participação de credores e ouvintes, com instrumentos que garantam o direito de voz e de obtenção dos esclarecimentos necessários às negociações, além de possibilitar a colheita hígida dos votos lançados para o cômputo do quórum previsto nos arts. 42 e 45 da lei de regência, conforme a espécie a ser votada. A própria comunicação entre os credores é facultada nas plataformas aplicadas, sem prejuízo da utilização dos meios de comunicação dispostos a qualquer do povo, acessíveis através de smartphones e comumente utilizados nas assembleias presenciais, seja por chamada telefônica, seja por aplicativos de envio de mensagem. E outro ponto para se refletir quando os tempos de normalidade retornarem é a maior democratização que as assembleias virtuais podem proporcionar, sobretudo quando existirem credores em localidades distantes dos juízos recuperacionais, uma vez que com o processo digital e a possibilidade de atuação plena de maneira remota na AGC, haverá maior inclusão de credores com menor poder econômico, os quais poderão participar de maneira direta na defesa de seus interesses e no destino da recuperação judicial, pelo menor custo que se imporá para sua inclusão no conclave, sempre com respeito ao princípio 9 do relatório do Senador Ramez Tebet, sobre o PLC 71/2003: PARTICIPAÇÃO ATIVA DOS CREDORES. Fazer com que os credores participem ativamente dos processos de falência e de recuperação, a fim de que, em defesa de seus interesses, otimizem os resultados obtidos, diminuindo a possibilidade de fraude ou malversação dos recursos da empresa ou da massa falida. Os recursos tecnológicos também podem ser aplicados para outros atos dos processos de falência e de recuperação judicial. Acesso às autoridades judiciárias, constatações prévias8 também poderão ser feitas remotamente através dos meios tecnológicos colocados à disposição de todos. Neste último caso, além da análise documental poder ser realizada através de comunicações virtuais, a própria visita ao estabelecimento, num primeiro momento, também poderia ser realizada por intermédio de recursos de câmeras e até o uso de drones, sempre respeitadas as normas administrativas para operação de aeromodelos9 e as normas de inviolabilidade de domicílio. A virtualização é uma realidade atualmente. Com o recrudescimento do desenvolvimento dos meios tecnológicos, permitindo a maior aproximação das pessoas, com menor custo e ampliando a gama de eventos que podem ser realizados sem a necessidade da presença física. Um exemplo que pode ser citado são as inspeções virtuais realizadas pelo Conselho Nacional de Justiça nos Tribunais de Justiças das unidades federativas10. Tais avanços tecnológicos também devem ser aproveitados para os institutos da falência e da recuperação judicial, até mesmo para proporcionar maior alcance e efetividade de seus termos, através da comprovação dos benefícios da utilização das ferramentas aliado ao trabalho hermenêutico para a manutenção da vivacidade do texto da lei. É certo que em cada caso as particularidades da espécie devem ditar a utilização de novos recursos em maior ou menor medida. Mas enquanto novas soluções de lege ferenda ainda não surgem, compete a nós, operadores do direito, com os instrumentos de que dispomos hoje, buscar a maior efetividade possível das regras do sistema de insolvência, de modo a amalgamar todos os interesses envolvidos, o devido processo legal, as necessidades e demandas de mercado e as evoluções tecnológicas existentes. __________ 1 O Brasil deve ou não adotar novas regras para enfrentar a crise econômica? 2 PL 1397/2020. 3 CNJ. 4 CF, Art. 170. A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: (...) II - propriedade privada; III - função social da propriedade; 5 ASCENSÃO, José de Oliveira. Direito Civil. Teoria Geral. Relações e Situações Jurídicas. 2ª edição. Saraiva. 2010. Página 145. 6 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. Introdução ao Direito Civil. Teoria geral do Direito Civil. 30ª edição, atualizada por Maria Celina Bodin de Moraes. Rio de Janeiro. Forense. 2017. Página 165. 7 Clique aqui. 8 Sobre o tema constatação prévia em processos de recuperação judicial: Daniel Carnio Costa e Eliza Fazan. Constatação Prévia em Processos de Recuperação Judicial de Empresas. O Modelo de Suficiência Recuperacional. Editora Juruá. 2019. 9 Drones. 10 V. Portaria 26, de 23 de março de 2020.
Texto de autoria de Paulo Penalva Santos O legislador foi bem feliz ao indicar no artigo 47 lei 11.101/2005 o objetivo da recuperação judicial, que é o de "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". A regra, como leciona o Ministro Luis Felipe Salomão, "é buscar salvar a empresa, desde que economicamente viável1. O objetivo indicado no artigo 47 da lei 11.101/2005 coincide com fundamentos, objetivos fundamentais e princípios que têm sede constitucional, como os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, os objetivos de erradicar a pobreza reduzir desigualdades sociais, enunciados nos artigos 1º e 3º da Constituição da República Federativa do Brasil2 e reafirmados no artigo 170 como princípios da atividade econômica3. Em razão do status constitucional de que goza o princípio da preservação da empresa, o Poder Judiciário, na solução das muitas controvérsias surgidas na aplicação da lei 11.101/2005, no âmbito do processo de recuperação judicial, passou a sopesar os valores envolvidos em cada caso concreto, levando em consideração os objetivos da recuperação judicial, prestigiando, assim, o interesse público primário do Estado, que não é coincidente com o interesse arrecadatório da Fazenda Pública, conforme a doutrina de Renato Alessi4, e, entre nós adotada, dentre outros por Celso Antonio Bandeira de Mello5. Exemplo de caso de aparente antinomia de normas da lei 11.101/2005, resolvido no âmbito da recuperação judicial e pelo juízo da recuperação judicial é o do cabimento ou não do prosseguimento de execução fiscal no stay period ou após a aprovação do plano de recuperação judicial, já que o crédito tributário não está sujeito à recuperação judicial6. No âmbito da recuperação judicial, os juízos, dando-se por competentes para decidir sobre a matéria, tem resolvido a questão no sentido de que a suspensão das ações e execuções contra o devedor em recuperação judicial não alcançam as execuções fiscais que tenham por objeto a cobrança de crédito tributário. Contudo, os atos de constrição de bens e direitos da empresa em recuperação judicial dependem de prévia autorização do juízo da recuperação judicial, porque tais atos podem inviabilizar o processo de soerguimento, antes da concessão da recuperação judicial, ou afetar o plano, comprometendo a capacidade do devedor de cumpri-lo. Por sua vez, os Juízos onde se processam execuções fiscais, também dando-se por competentes, passaram a resolver a mesma questão mediante interpretação literal do § 7º do artigo 6º da lei 11.101/20057, para atender a justa expectativa das Fazendas Públicas de arrecadar os seus tributos, em detrimento da não menos justa expectativa da empresa em dificuldade de superar a crise, manter-se viva no mercado, e, assim, cumprir a sua função social, com geradora de empregos, riquezas e tributos que ordinariamente revertem aos cofres públicos. Essa diversidade de orientações e entendimentos tem motivado o ajuizamento de conflitos positivos de competência, medida processual regulada nos artigos 951 a 959 do Código de Processo Civil ("CPC"), cabível se verificado conflito positivo ou negativo de competência, conforme definidos nos incisos I e II do artigo 66 do CPC. O Superior Tribunal de Justiça ("STJ") tem competência originária para julgar os conflitos de competência entre quaisquer tribunais ou entre tribunal e juiz a ele não vinculado, nos termos do artigo 105, I, "d", da CRFB, ressalvada a competência originária do Supremo Tribunal Federal, para os casos de conflito que envolva Tribunais superiores. Não foram e não são poucos os conflitos positivos de competência ajuizados perante o STJ, com fundamento na existência de conflito positivo de competência entre o juízo de execução fiscal em curso perante a Justiça Federal e o juízo da recuperação judicial, vinculado à Justiça Estadual comum, em razão da prática, pelo juízo da execução fiscal de atos de contrição de bens do patrimônio de empresa em recuperação judicial, capazes de inviabilizar o processo de soerguimento. No STJ, esses conflitos de competência vinham sendo distribuídos ora à Primeira Seção, ora à Segunda Seção, competentes, respectivamente, nos termos do Regimento Interno (RISTJ), para o julgamento dos feitos relativos a matérias de direito público e de matérias de direito privado, incluindo falência e recuperação judicial. Ambas as Turmas se davam por competentes para o julgamento do conflito de competência e, além da diversidade de entendimentos quanto à competência interna, instaurou-se divergência na solução mérito do conflito de competência. Com efeito, a jurisprudência da Primeira Turma do STJ, interpretando literalmente o § 7º do artigo 6º da lei 11.101/2005, orientou-se no sentido de que os efeitos da recuperação judicial não alcançam os créditos tributários, razão pela qual não havia obstáculo ao prosseguimento da execução fiscal, com a prática, pelo juízo da execução de atos de constrição de bens do patrimônio da empresa em recuperação judicial. Já a Segunda Turma do STJ, prestigiando o princípio da preservação da empresa, que, como visto, tem status constitucional, orientou-se no sentido de que as execuções fiscais não são suspensas, mas a competência para a prática de atos de constrição de bens do patrimônio da empresa recuperanda é do juízo da recuperação judicial. Em razão dessa diversidade de entendimentos, no CC 120.432-SP, o Relator, Ministro Antônio Carlos Ferreira propôs e a Segunda Seção, por unanimidade, acolheu questão de ordem e afetou à Corte Especial do STJ a definição do órgão fracionário competente para julgamento de conflitos de competência entre juízos da recuperação judicial e juízos da execução fiscal, vinculados a tribunais diversos. No julgamento da questão de ordem no do CC 120.432-SP, a Corte Especial, por unanimidade, decidiu competir à Segunda Seção o julgamento de conflito de competência entre o Juízo da recuperação judicial e o Juízo da execução fiscal em curso perante a Justiça Federal. No julgamento do mérito, a Segunda Seção, por unanimidade, no julgamento do Agravo Regimental no CC 120.432-SP, manteve a orientação que vinha sendo adotada no sentido de que compete ao juízo da recuperação judicial a prática de atos de constrição contra bens do patrimônio da recuperanda: "PROCESSUAL CIVIL. AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. PROCESSOS DE EXECUÇÃO FISCAL E DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL. QUESTÃO DE ORDEM. COMPETÊNCIA DA SEGUNDA SEÇÃO. EDIÇÃO DA LEI N. 13.043, DE 13.11.2014. PARCELAMENTO DE CRÉDITOS DE EMPRESA EM RECUPERAÇÃO. JURISPRUDÊNCIA MANTIDA. 1. Compete à SEGUNDA SEÇÃO processar e julgar conflito de competência entre o juízo da recuperação judicial e o da execução fiscal, seja pelo critério da especialidade, seja pela necessidade de evitar julgamentos díspares e a consequente insegurança jurídica (Questão de Ordem apreciada nestes autos pela CORTE ESPECIAL em 19.9.2012). 2. O deferimento da recuperação judicial não suspende a execução fiscal, mas os atos de constrição e de alienação de bens sujeitos à recuperação submetem-se ao juízo universal. 3. A edição da Lei n. 13.043, de 13.11.2014, por si, não implica modificação da jurisprudência desta Segunda Seção a respeito da competência do juízo da recuperação para apreciar atos executórios contra o patrimônio da empresa. 4. No caso concreto, destaca-se ademais que o deferimento da recuperação judicial e a aprovação do correspondente plano são anteriores à vigência da Lei n. 13.043/2014. 5. Agravo regimental a que se nega provimento." (AgRg no CONFLITO DE COMPETÊNCIA Nº 120.432 - SP, Relator Ministro Antonio Carlos Ferreira, Segunda Seção, DJE 19/12/2016). A Corte Especial do STJ revisitou o tema da competência para julgamento de conflitos entre juízos vinculados a tribunais diversos, no caso de um dos juízos suscitados ser juízo em que se processa execução fiscal e o outro o juízo recuperacional, no CC 153.998 - DF, suscitado pelo Ministro Mauro Campbell Marques, com o objetivo de limitar a competência da Segunda Seção, como exposto na decisão que suscitou o conflito: "Em suma, faço tais considerações para demonstrar a necessidade de que a questão seja novamente enfrentada no âmbito desta Corte Especial, evidentemente num caso concreto que isso seja possível, para excluir da competência da Segunda Seção os casos em que a discussão restringe-se ao prosseguimento da execução fiscal (ainda que com penhora determinada), sem pronunciamento do juízo da recuperação judicial acerca da incompatibilidade da medida constritiva com o plano de recuperação judicial. Nessa hipótese, há apenas um incidente no âmbito da execução fiscal, que atrai a competência da Primeira Seção. Por outro lado, havendo pronunciamento do juízo da recuperação judicial (no sentido de que a penhora inviabiliza o plano de recuperação judicial), impõe-se reconhecer a existência de incidente no âmbito da recuperação judicial, o que atrai a competência da Segunda Seção". No julgamento do CC 153.998 - DF, concluído no dia 18 de dezembro de 2019, a Corte Especial do STJ, por maioria, decidiu que compete à Segunda Seção o julgamento dos conflitos juízo onde se processa a recuperação judicial e o juízo onde se processa a execução fiscal, nos termos o voto da Ministra Nancy Andrighi. Em seu voto, a Ministra Nancy Andrighi identificou a controvérsia, registrando que o tema assume contornos mais complexos, porque a execução fiscal atrai a competência da Primeira Seção, enquanto a recuperaçao judicial atrai a competência da Segunda Seção. No voto, fazendo ponderação dos valores envolvidos, com ênfase no sistema estabelecido na lei 11.101/2005, e ao objetivo indicado no seu artigo 47, de proteger a empresa em dificuldades, de "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores", a Ministra Nancy Andrighi reafirmou a posição da Corte Especial, no sentido da competência da Segunda Seção, para qualquer caso de conflito de competência entre juízo recuperacional e juízo da execução fiscal, com base no critério da especialidade e para evitar julgados díspares. A confirmação da orientação antes adotada no julgamento da Questão de Ordem no CC 120.432-SP, pela Corte Especial do STJ representa grande contribuição para a segurança jurídica e estabilidade das relações sociais, contribuindo, inclusive para viabilizar a busca de soluções consentâneas com a realidade no que respeita a questão do equacionamento do passivo tributário. __________ 1 Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência, Editor Gen/Forense, 4ª Edição, pág. 24. 2 Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: (.....) IV - os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa; Art. 3º Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil: II - garantir o desenvolvimento nacional. III - erradicar a pobreza e marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; (....) 3 Art. 170 - A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: III - função social da propriedade; (....) VII - redução das desigualdades regionais e sociais; VIII - busca do pleno emprego; 4 ALESSI, Renato. Sistema istituzionale del diritto amministrativo italiano, 2ª ed. Milano, Giuffrè, 1958, pp 179-178. 5 "Outrossim, a noção de interesse público, tal como expusemos, impede que se incida no equívoco muito grave de supor que o interesse público é exclusivamente um interesse do Estado, engano, este, que faz ressalvar fácil e naturalmente para a concepção simplista e perigosa de identifica-lo com quaisquer interesses da entidade que representa o todo (isto é, o Estado e demais pessoas de Direito Público interno). Uma vez reconhecido que os interesses públicos correspondem à dimensão pública dos interesses individuais, ou seja, que consistem no plexo dos interesses dos indivíduos enquanto partícipes da Sociedade (entificada juridicamente no Estado), nisto incluído o depósito intertemporal destes mesmos interesses, põe-se a nu a circunstância de que não existe coincidência necessária entre interesse público e interesse do Estado e demais pessoas de Direito Público." (Destaque do original). (MELLO, Celso Antônio Bandeira de. Curso de direito administrativo, 32ª ed. São Paulo, Malheiros, 2014, pp 65-66) 6 CTN, art. 187 - A cobrança judicial do crédito tributário não é sujeita a concurso de credores ou habilitação em falência, recuperação judicial, concordata, inventário ou arrolamento. 7 Art. 6º - A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário. (.....) § 7º - As execuções de natureza fiscal não são suspensas pelo deferimento da recuperação judicial, ressalvada a concessão de parcelamento nos termos do Código Tributário Nacional e da legislação ordinária específica.
Texto de autoria de Daniel Carnio Costa Desde o início da vigência da lei 11.101/05 surgiram diversas teorias que tentam explicar e otimizar os resultados do sistema brasileiro de insolvência. Da mesma forma, tornou-se frequente a importação de soluções estrangeiras, notadamente norte-americanas, para os problemas vivenciados nos anos de aplicação das ferramentas de insolvência criadas pela legislação pátria. As teorias da superação do dualismo pendular e da divisão equilibrada de ônus são, por exemplo, algumas das teorias por mim desenvolvidas e que tentam explicar as finalidades do sistema de insolvência brasileiro. A perícia prévia (constatação prévia), o critério tetrafásico de controle judicial do plano e a gestão democrática de processos são outros exemplos de minhas criações jurisprudenciais que visam otimizar os resultados do sistema brasileiro de insolvência. Entretanto, não obstante a existência dessa gama de novidades (batizadas de "novas teorias"), uma delas será o objeto de análise nesse trabalho: a gestão democrática de processos de insolvência. Objetiva-se, nesse espaço, demonstrar que a gestão democrática de processos é uma teoria/metodologia que otimiza os resultados do sistema de insolvência brasileiro, estando em total sintonia com os seus fundamentos de existência e de acordo com os valores tutelados pela falência e recuperação judicial de empresas no Brasil. Inicialmente, é importante frisar que a interpretação das regras legais de um sistema de insolvência empresarial, para que seja útil e adequada, deve sempre observar pertinência com os objetivos maiores desse sistema e com os valores por ele tutelados. Da mesma forma, a criação de mecanismos jurisprudências de ajustes na aplicação das regras legais não pode destoar dos valores informativos do sistema como um todo. Assim, a criação de novas teorias e a importação analógica de soluções estrangeiras para os problemas brasileiros devem sempre estar atentos à compatibilidade com os fundamentos do sistema brasileiro de insolvência. Nesse contexto, esse artigo demonstrará que a técnica da Gestão Democrática de Processos1 é criação jurisprudencial compatível com os fundamentos do sistema brasileiro e de grande valia para que seus objetivos maiores sejam cumpridos, tutelando-se eficazmente os valores que informaram a edição da lei 11.101/05. Para tanto, se faz necessário identificar os fundamentos normativos do sistema de insolvência brasileiro, bem como seus objetos de tutela, contextualizando a evolução do pensamento jurídico desde os debates normativos ocorridos nos EUA no século XX, até o estabelecimento das ferramentas brasileiras criadas pela lei 11.101/05 (falência e recuperação de empresas). É sabido por todos os que atuam na área da insolvência empresarial que o modelo brasileiro de recuperação de empresas se inspirou no modelo criado pelo Código de Insolvências dos EUA. Entretanto, principalmente em tempos de mudanças legislativas na regulação da insolvência empresarial no Brasil, é importante destacar que os valores que inspiraram o modelo norte-americano não são os mesmos que determinam a aplicação dos institutos da falência e da recuperação de empresas no Brasil. É preciso ter atenção quando se pretende aplicar analogicamente no Brasil os institutos criados pela legislação e pela jurisprudência norte-americana. O Brasil superou o dualismo pendular - movimento já descrito por Fábio Konder Comparato - desvinculando-se da dualidade de tutelas de interesses de credores e devedores e optando por estabelecer como vetor de aplicação dos institutos da insolvência empresarial a tutela do interesse social, considerando esse interesse prevalecente sobre os interesses das partes diretamente envolvidas na crise da empresa (credores e devedores). No Brasil, o modelo de insolvência não é puramente pró-credor, nem puramente pró-devedor. Busca-se compatibilizar os diversos interesses envolvidos na crise da empresa, inclusive os interesses sociais, de modo a tutelar de forma prevalente a preservação dos benefícios sociais e econômicos decorrentes da atividade empresarial. Nesse sentido, a fim de demonstrar os fundamentos do sistema de insolvência brasileiro, se faz necessário explicar a evolução das abordagens filosófico-normativas que já foram objeto de muitas discussões nos EUA. Confira a íntegra da coluna. __________ 1 Costa, Daniel Carnio. Jornal Carta Forense, de 4/11/2014. Disponível aqui.
terça-feira, 3 de março de 2020

Insolvência de sociedades cooperativas

Texto de autoria de Alberto Camiña Moreira As sociedades cooperativas acham-se disciplinadas, essencialmente, pela Lei 5.764/71, e conta com aspectos referidos tanto no Código Civil, no parágrafo único do art. 982, como na lei 8.934/94, que dispõe sobre o Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades afins, artigo 32, II. Segundo o Código Civil, a cooperativa é sociedade simples (parágrafo único do art. 982), e não se sujeita à falência1 por expressa previsão do art. 4º da lei 5.764/71. À luz do Código Civil, a conclusão seria a mesma, pois, de regra, a sociedade simples não se sujeita à falência por não exercer atividade empresarial. Ainda que a doutrina veja na cooperativa uma verdadeira empresa, e, certamente, em algumas situações, ela realmente o é, o certo é que não se cogita, entre nós, da falência de sociedade cooperativa. A lei 11.101/05 disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária, sem que se possa incluir, entre os legitimados a tais institutos, a cooperativa. A cooperativa, não obstante seus elevados propósitos, com fundamento na mutualística, pode envolver-se em crise econômica e financeira, a ponto de não mais conseguir atuar na consecução de seus objetivos. Isto é: a cooperativa pode tornar-se insolvente. Examinar o regime jurídico da insolvência da cooperativa é o propósito deste breve estudo, limitada à sua liquidação. Portanto, não será feita referência à recuperação judicial. Tampouco será feita referência à insolvência de cooperativa de crédito, que é regida pela Lei Complementar. A insolvência de cooperativa dependente de autorização do Estado para funcionar, como as cooperativas que oferecem ao mercado planos de saúde, também não são referidas neste artigo. A lei 5.764/71, que define a política nacional de cooperativismo, instituiu, para funcionamento das cooperativas, autorização estatal, com possível apreciação pelo Conselho Nacional de Cooperativismo (artigos 17 a 20). Esse controle representava o controle de acesso do ato constitutivo ao registro público (Junta Comercial), sem o qual a cooperativa não adquiria personalidade jurídica nem atuava regularmente. Como desdobramento do controle estatal sobre o funcionamento da cooperativa, o artigo 75 instituía um regime de liquidação extrajudicial, verbis: "A liquidação extrajudicial das cooperativas poderá ser promovida por iniciativa do respectivo órgão executivo federal, que designará o liquidante, e será processada de acordo com a legislação específica e demais disposições regulamentares, desde que a sociedade deixe de oferecer condições operacionais, principalmente por constatada insolvência". Em essência, tratava-se de uma liquidação forçada da cooperativa. Essa liquidação extrajudicial tinha a natureza de falência administrativa. O agente do decreto de liquidação extrajudicial era o Poder Público - o órgão executivo federal - e a lei estatuía, preferencialmente, um prévio regime de intervenção (§1º do art. 75), por certo na crença de que haveria como debelar a crise da cooperativa. Essa liquidação extrajudicial era governada de acordo com a legislação específica, e essa legislação, à época, por certo, era um conjunto de disposições que foi revogado pelo artigo 57 da lei 6.024/74 (esse artigo relaciona as leis expressamente). Ao lado desse decreto de liquidação extrajudicial, forçado e expropriatório, havia outro, de caráter voluntário, fruto de deliberação da assembleia geral dos cooperados. A Constituição Federal de 1988 eliminou, do direito brasileiro, qualquer interferência estatal nas cooperativas. Segundo o artigo art. 5º, XVIII, a criação de cooperativas independe de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento. Com a proibição de prévia autorização estatal, desapareceu a base de apoio para o decreto de liquidação extrajudicial. A premissa do decreto de liquidação extrajudicial é a presença de alguma forma de controle por parte do estado, especialmente a autorização para funcionamento, que, no caso das cooperativas, desapareceu. A ordem constitucional de 1988 não recepcionou nem a prévia autorização de funcionamento, nem a liquidação extrajudicial prevista no artigo 75, na medida em que lhe retirou a premissa de sustentação. Portanto, até aqui, tem-se que estão afastados dois regimes concursais: a) a falência; b) a liquidação extrajudicial forçada. Sobram para aplicação: a) liquidação voluntária (também conhecida como liquidação ordinária), por deliberação dos sócios, fora do âmbito do Poder Judiciário; b) liquidação judicial a pedido de associados; c) liquidação judicial a pedido de credor. Podem os associados deliberar a dissolução da cooperativa. Com isso, no seio social, delibera-se o encaminhamento para a liquidação do ente jurídico, e, no âmbito privado, tudo haverá de acontecer, como a venda dos bens e pagamento dos credores. Isto é: os sócios (de sociedade empresária e de sociedade simples), os associados (de associação2), os cooperados (de cooperativa), podem deliberar, em assembleia geral, pela dissolução e posterior liquidação da sociedade. Quem cria um ente social também está investido das prerrogativas destinadas ao desfazimento dos vínculos3, com a lembrança de que a extinção do ente não é instantânea. Após a dissolução, há um mergulho no procedimento de liquidação. Essa liquidação ordinária (extrajudicial), porém, precisa ser bem entendida. Em primeiro lugar, ela não tem a natureza de execução forçada; em segundo lugar, embora levada a efeito pelo liquidante, que passa a ser um órgão do ente social (de sociedade, associação ou cooperativa), é feita no interesse dos associados, observando-se que o liquidante tem o dever de, em primeiro lugar, pagar os credores, e, em seguida, com eventuais sobras, distribui-las aos sócios ou associados. A lei 5.764/71, no que concerne à dissolução e liquidação contém regime análogo ao previsto nos artigos 1.102-1.112 do Código Civil, e artigos 208-218 da lei 6.404/76. Para se evitar confusão desnecessária, é preciso ter isso em consideração. Porém, não é disso o que cogitamos neste estudo. Queremos centrar nossa preocupação no regime judicial de insolvência de cooperativa. O artigo 64 da Lei das Cooperativas prevê o seguinte: "Quando a dissolução da sociedade não for promovida voluntariamente, nas hipóteses previstas no artigo anterior, a medida poderá ser tomada judicialmente a pedido de qualquer associado ou por iniciativa do órgão executivo federal". A iniciativa do órgão federal, como vimos, não foi recepcionada pela Constituição Federal de 1988, de sorte que remanesce a legitimidade de qualquer associado para o decreto de liquidação judicial. Esse artigo 64 só prevê a liquidação judicial a pedido de qualquer associado. Ademais disso, toda a disciplina da liquidação, constante na Lei das Cooperativas, está relacionada à liquidação ordinária, ou extrajudicial, como se queira. Nada se fala a respeito da liquidação judicial e a norma aplicável subsequentemente à decisão do juiz que acolhe o pedido de liquidação, seja ao rito, seja ao direito material aplicável. Por essa razão, há muito tempo a jurisprudência discute sobre a aplicação de alguns aspectos da lei de falências no regime da liquidação judicial de cooperativas. Há razoável divergência a respeito, que encerra grave insegurança jurídica. A liquidação judicial a pedido dos associados e a liquidação judicial a pedido de credores de cooperativa, ao que tudo indica, leva à formação de processos de natureza distinta. Embora seja controvertida a possibilidade de pedido de insolvência civil (disciplinada nos artigos 748 a 786-A do CPC de 1973, que estão em vigor por força do disposto no artigo 1.052 do CPC 2015) formulado pelo credor4, entendo que ele é plenamente possível, pois a sociedade cooperativa, como sociedade simples (ainda que desenvolvendo atividade empresarial) enquadra-se na previsão do art. 786 do CPC/73. A insolvência civil forma concurso de credores, sem a menor dúvida, e, como processo concursal, envolve a arrecadação de todos os bens do ativo, convocação de credores e respectivo pagamento, em rateio, segundo ordem de pagamento. Com base no direito de ação, o credor pode postular a tutela concursal do Estado-Juiz, que não está excluída por lei. Uma vez admitida a insolvência civil de cooperativa, a pedido de credor, não há mais dúvida sobre qual seja o regime jurídico aplicável, que é a disciplina do CPC/73. Porém, voltando ao ponto objeto de nossa preocupação na elaboração deste artigo. Qual o regime aplicável à liquidação judicial decorrente de pedido formulado por associado da cooperativa, direito que é assegurado pelo artigo 64 já mencionado5. O capítulo XI da Lei das Cooperativas é omisso a respeito. Essa liquidação judicial é a mesma liquidação ordinária da cooperativa, agora sob as vestes de um processo judicial? Ou é aplicável a lei concursal ampla, que é a lei de falências? Ou haveria ainda outro regime a ser aplicado? Já se decidiu, em São Paulo, que se aplica a lei de falências por analogia6.Determinou-se a suspensão da execução contra cooperativa sob o fundamento de que se trata de execução coletiva. Todavia, também já se afastou o caráter de execução coletiva, sob o fundamento de que se trata de ação de conhecimento7, e, então, não se admitiu a suspensão de execução contra a cooperativa em liquidação judicial. O STJ8, inicialmente, admitiu a suspensão da execução contra cooperativa em liquidação judicial sob o fundamento legal de que se aplicam o artigo 71 da lei 5.764/719 e o artigo 762 do CPC/7310, que está no capítulo da insolvência civil. Também aplicou a lei de falências de 1945 para pedido de restituição11. O Supremo Tribunal Federal12 manteve decisão proferida pelo Tribunal de Alçada Civil do Rio Grande do Sul, assim ementada: "Não é inconstitucional a sustação de ações contra a cooperativa em liquidação. Simetria desta interpretação com a do art. 18, letra a, da lei 6.024/74". Veja-se que a lei da liquidação extrajudicial de instituição financeira (que forma liquidação forçada de ativos!) foi utilizada para dar sustentação à suspensão de execução contra cooperativa em liquidação extrajudicial, de caráter voluntário. Há uma certa incompreensão do sistema nessa fundamentação. Do exame da jurisprudência, pode-se extrair uma conclusão aparentemente segura. A liquidação judicial de cooperativa forma concurso de credores13. Dada a especialidade da lei 5.764/71, deve ser seguido o rito nela previsto para fins de se proceder à liquidação. Em linhas gerais, o procedimento de liquidação contempla arrecadação de bens, alienação e satisfação dos credores, que são alvo de convocação geral. Assim, ao liquidante incumbe arrecadar14 os bens, livros e documentos da sociedade, inventariar ativo e passivo, convocar credores e devedores15, realizar o ativo16 para saldar o passivo (incisos do art. 68). Merece destaque o artigo 71 da lei 5.764/71: "Respeitados os direitos dos credores preferenciais, pagará o liquidante as dívidas sociais proporcionalmente e sem distinção entre vencidas ou não". Esse comando é bastante importante. Em primeiro lugar, só em concurso de credores é que se pagam dívidas vencidas ou não. O vencimento antecipado, decorrente da sentença de quebra, é uma técnica utilizada para igualar todos os credores num só momento e ensejar a exigibilidade da dívida. Não fosse assim, o credor submetido a termo ou condição não poderia sequer participar, tempestivamente, do concurso. Em segundo lugar, a lei manda pagar os credores segundo uma proporção. Essa proporção dar-se-á segundo as forças de cada crédito; tal qual na falência. Em terceiro lugar, esse artigo 71 faz expressa referência aos credores preferenciais, assunto típico de concurso de credores. A graduação de credores só existe em concurso; é a graduação que permite que diversos credores concorram ao crédito. Assentada a premissa de que há concurso de credores na liquidação judicial de cooperativa, e sendo esse concurso uma execução concursal forçada, a suspensão das execuções contra ela, problema corriqueiramente enfrentado pela jurisprudência, é inexorável, decorre da natureza desse regime e até prescinde de expressa previsão legal. Não há necessidade de se invocar, por analogia, regras diversas do ordenamento jurídico brasileiro, ainda que aplicáveis à espécie na sua ontologia. Há, contudo, uma previsão, na Lei das Cooperativas17, sobre suspensão das execuções. O alcance do dispositivo é limitado à liquidação ordinária (ao se referir à ata da deliberação, não deixa dúvida sobre isso). Essa mesma suspensão não ocorre na execução intentada contra uma sociedade anônima em liquidação ordinária, por exemplo, à falta de expressa previsão legal (vide artigos 206 a 218 da lei 6.404/76); tampouco o Código Civil prevê suspensão de ações nos artigos 1.102 a 1.112, que disciplina a liquidação de sociedades. Aliás, contra a sociedade anônima ou sociedade limitada em liquidação ordinária, é cabível a execução e o pedido de falência, por exemplo. A previsão do artigo 76 é excepcional, pois a liquidação ordinária atua no seio social, privadamente18, sem caráter forçado. O STF no julgamento do RE 232098 decidiu que não se exclui da apreciação do Poder Judiciário a liquidação, ainda que extrajudicial, e reconheceu que a suspensão da execução pelo prazo de um ano não ofende o disposto no artigo 5º, XXXV, da CF. Esse artigo 76, enquistado na liquidação ordinária, tem, por certo, a finalidade de aguardar a realização do ativo e pagamento dos credores19, o que tornaria, em tese, desnecessária a providência judicial do credor. Nesse contexto, a suspensão é razoável, com a seguinte observação: esse dispositivo é inaplicável à liquidação judicial, que forma concurso de credores, de natureza forçada, e ao qual todos os credores devem concorrer, em razão do chamamento editalício, ressalvada a Fazenda Pública. No âmbito da execução concursal forçada, a suspensão das ações é inevitável. Outro aspecto relevante da deficitária estrutura legal da insolvência de cooperativas. A jurisprudência do STJ tem vários precedentes que dizem que a liquidação judicial "não contempla o benefício de exclusão das multas e dos juros moratórios"20. A Constituição Federal determina o estímulo ao cooperativismo (art. 174, §2º). Veja que a sociedade empresária em falência vê paralisada a contagem dos juros21. Já a sociedade cooperativa vê aumentar o seu passivo. A solução é incongruente. Adstrita a previsão do artigo 76 à liquidação ordinária, que já é uma excepcionalidade, de duvidosa constitucionalidade até, no âmbito da liquidação judicial os juros não deveriam ser contados. É da essência do concurso de credores a necessidade de estabilização do passivo em determinado instante, o que é inviável com a contagem permanente de juros. Outro problema que fica por resolver é o seguinte. Qual é a ordem em que devem ser atendidos os credores preferenciais a que alude o artigo 71 da Lei das Cooperativas. Aplica-se a lei falimentar? Aplica-se a preferência da lei civil, como determina o artigo 769 do CPC/73 em relação à insolvência civil? Trata-se de mais uma severa omissão da lei, que desorienta completamente o intérprete. Um último ponto. A lei é omissa sobre a suspensão ou interrupção do curso do prazo prescricional em face da cooperativa em recuperação judicial, assunto sempre presente nas normas sobre concurso de credores. Neste rápido apanhado, procurei demonstrar que a sistemática em vigor, acerca da liquidação das cooperativas, é muito ruim, e gera diversos problemas práticos. A liquidação judicial a pedido de qualquer associado, nos termos do vigente artigo 64 da lei 5.764/71, não conta com disciplina legal satisfatória22, e, embora seja lugar comum, é necessária modificação legislativa. __________ 1 Apesar de não se sujeitar à falência, a cooperativa exerce atividade empresarial, pois atua produzindo bens e serviços para o mercado. Nesse sentido, Waldírio Bulgarelli, Tratado de Direito Empresarial, 4ª ed. São Paulo: Atlas, 2000, p. 268-270; do mesmo autor, As sociedades cooperativas e sua disciplina jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 178-179; Rachel Sztajn, Código Civil comentado, v. XI. Coord. Álvaro Villaça Azevedo. São Paulo: Atlas, 2008, p. 142-143; Ronie Preuss Duarte, Teoria da empresa à luz do Código Civil brasileiro. São Paulo: Método, 2004, p. 101. Em sentido contrário, Walfrido Jorge Warde Júnior, Tratado de direito empresarial, v. I. 2ª ed., Coord. Modesto Carvalhosa. São Paulo: RT, 2019, p.147-149. Sobre o caráter societário da cooperativa (que alguns consideram uma associação), vide a resenha de Jorge Manuel Coutinho de Abreu, Curso de direito comercial. Das sociedades, v. II, 6ª ed. Coimbra: Almedina, 2019, p. 46-47, esp. nota 76. Para Haroldo Verçosa, Curso de direito comercial, v. 2. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 546, "as cooperativas ficam a meio caminho entre as sociedades civis e as sociedades empresárias, cabendo-lhes a natureza jurídica de ente híbrido, ou de sociedade sui generis...". Friedrich Kübler, Derecho de Sociedade, 5ª ed., trad. espanhola. Madrid: Fundación Cultural del Notariado, p. 245, afirma que a cooperativa é um "empresário formal", pois opera no mercado com sua própria denominação social. 2 O Código Civil também é lacônico sobre a dissolução de associações, prevendo, apenas, no artigo 61, o destino do remanescente do patrimônio líquido. 3 "O termo 'dissolução', na tradição do direito societário, designa todos os modos, anormais e também normais, como se extingue uma sociedade por causas supervenientes ao negócio contratual", segundo afirma Walter Moraes, Sociedade Civil Estrita. São Paulo: RT, 1987, p. 332; "Os institutos da dissolução, assim como da liquidação e o da extinção, constituem partes integrantes da disciplina jurídica do direito societário, e dizem respeito ao processo final de existência das sociedades", como ensina Waldírio Bulgarelli, As sociedades cooperativas e sua disciplina jurídica, p. 180. O artigo 2516 do Código Civil italiano, como norma de reenvio, remete a liquidação das cooperativas à liquidação das sociedades anônimas. Advertiu Antonio Brunetti, Trattato del diritto delle società, v. 3. Milano: Giuffrè, 1950, p. 484, que a liquidação coata, que é a liquidação extrajudicial forçada, nada tem que ver com a liquidação voluntária. Como a lei brasileira contém disciplina voltada, à época, para a liquidação extrajudicial forçada, que não foi recepcionada pela Constituição Federal, o corpo normativo remanescente dá margem a algum vacilo interpretativo na aplicação da liquidação voluntária e mesmo da liquidação judicial, objeto destas linhas. 4 O extinto 1º TACSP, por meio da 8ª Câmara, na Apelação 769.907-2, j. 26/9/1999, rel. Juiz Manoel Mattos, admitiu o pedido de insolvência civil formulado pelo antigo Banespa - Banco do Estado de São Paulo S/A. em face da Cooperativa Agrícola de Cotia. Em sentido contrário, Emanuelle Urbano Maffioletti arrola, no seu artigo A insolvência das cooperativas no Brasil e reflexões sobre a liquidação extrajudicial, nota 13, página 314, arrola precedentes que não admitiram o processamento da insolvência civil de cooperativas. 5 É possível o pedido de liquidação judicial de cooperativa ainda que ela já esteja submetida a liquidação ordinária, por vontade dos sócios. Todavia, o TJSP, por meio da 3ª Câmara, na Apelação 0006938-20.2005.8.26.0201, j. 4/10/2011, decidiu que falta de interesse de agir ao associado. Entendeu-se que se trata de "matéria a ser apresentada e debatida na assembleia dos associados". 6 "Suspensão do processo. Execução por título extrajudicial. Executada em regime de liquidação judicial. Possibilidade. Cooperativas que, com o advento da nova ordem constitucional, não mais se sujeitam aos institutos da intervenção e da liquidação extrajudicial. Artigo 5.º, XVIII e XIX, da Constituição Federal. A dissolução judicial deve, por analogia, observar a legislação falimentar. Execução individual ajuizada anteriormente ao decreto judicial de dissolução que, portanto, afasta a vis attractiva do juízo universal da Comarca de Mogi das Cruzes. Possiblidade do credor habilitar-se no juízo da execução coletiva, observadas as regras dos artigos 762 do CPC e 71 da Lei 5.764/71. Permanência da execução no juízo a quo, com a determinação de suspensão do seu curso. Agravo provido para esse fim" (1º TACSP, 4ª Câmara, AI 1.028414-3, j.14/8/2002, rel. Juiz Rizzatto Nunes). 7 "Execução por título extrajudicial. Pedido de adjudicação do bem penhorado. Indeferimento, em virtude de ter sido decretada liquidação judicial da cooperativa executada. Decretação em mera ação ordinária ajuizada por alguns credores. Impossibilidade. Inexistência de previsão legal acerca da universalidade do juizo para então concorrerem todos os credores do devedor comum. Adjudicação que não pode ser obstada. Recurso provido". Do corpo do acórdão consta o seguinte: "Não é o que ocorre com aquela ação em trâmite na comarca de Mogi das Cruzes, que constitui apenas ação ordinária movida por um número limitado de credores. Não é uma execução contra devedor insolvente, não é uma falência, nem é um procedimento de liquidação previsto nos artigos 655 e seguintes do Código de Processo Civil de 1939. Portanto, inadmissível que terceiros estranhos sejam por ela atingidos". (1º TACSP, 12ª Câmara, AI 1.020.286-7 , j. em 4/9/2001, rel. Juiz Andrade Marques). 8 STJ, 2ª Seção, CC 32687, j. 8/8/2001, rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar: "Conflito de competência. Liquidação judicial. Execução trabalhista. Devem ser remetidos ao juízo universal da insolvência, onde tramita a liquidação de sociedade cooperativa, os processos de execução individual, inclusive de crédito de natureza trabalhista, salvo se designado dia para praça ou leilão, caso em que a remessa será do produto dos bens. Art. 71 da Lei 5764/71; art. 762 do CPC. Conflito conhecido e declarada a competência do juízo da 4ª Vara Cível de Mogi das Cruzes, São Paulo". No mesmo sentido, CC 28996, j. 24/4/2000, DJ 12/6/2000, rel. Min. Nancy Andrighi: "Liqüidação judicial. Concurso universal de credores. Submissão dos créditos trabalhistas. Necessidade. A execução de crédito trabalhista deve ser feita no juízo em que se processa a liqüidação de cooperativa, sendo necessária a sua habilitação ao juízo universal. Exegese do art. 23, caput, da Lei de Falência. Conflito conhecido para declarar a competência do Juízo de Direito da 4ª Vara Cível de Mogi das Cruzes-SP, o Suscitante". 9 "Respeitados os direitos dos credores preferenciais, pagará o liquidante as dívidas sociais proporcionalmente e sem distinção entre vencidas ou não". 10 "Ao juízo da insolvência concorrerão todos os credores do devedor comum". 11 3ª Turma, RESP 1317749, j. 19/11/2013, rel. Min. João Otávio de Noronha. 12 RE 218351, rel. Min. CARLOS VELLOSO, j. 6/5/02, DJ DATA-05/08/2002. 13 Decide o STJ: "Na linha dos precedentes desta Corte Superior de Justiça, compete ao Juízo universal da insolvência, em que se processa a liquidação de sociedade cooperativa, proceder à reunião e ao julgamento dos créditos advindos de execuções individuais, inclusive de crédito de natureza trabalhista, salvo se designado dia para praça ou leilão, caso em que a remessa será do produto dos bens. Precedentes.2. Agravo interno desprovido. (AgInt nos EDcl na PET no CC 158.595/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 26/06/2019, DJe 01/07/2019). Esse julgado faz referência aos precedentes CC 32687". 14 A arrecadação é própria dos processos concursais. 15 Essa convocação viabiliza a habilitação de crédito. Ela está presente no artigo 99, parágrafo único da lei 11.101/05, no artigo 22 da lei 6.024/74 e no art. 761, II, do CPC/73. 16 É a dicção do art. 139 da lei 11.101/05. 17 Art. 76. A publicação no Diário Oficial, da ata da Assembleia Geral da sociedade, que deliberou sua liquidação, ou da decisão do órgão executivo federal quando a medida for de sua iniciativa, implicará a sustação de qualquer ação judicial contra a cooperativa, pelo prazo de 1 (um) ano, sem prejuízo, entretanto, da fluência dos juros legais ou pactuados e seus acessórios. Parágrafo único. Decorrido o prazo previsto neste artigo, sem que, por motivo relevante, esteja encerrada a liquidação, poderá ser o mesmo prorrogado, no máximo por mais 1 (um) ano, mediante decisão do órgão citado no artigo, publicada, com os mesmos efeitos, no Diário Oficial. Para Waldírio Bulgarelli, As Sociedades Cooperativas e a sua disciplina jurídica. Rio de Janeiro: Renovar, 1998, p. 185, esse dispositivo assume caráter imperativo, atuando de pleno direito. 18 Qualquer liquidação ordinária se desenvolve no âmbito privado, e não há mal algum que assim seja. Registra-se, todavia, o pensamento de Emanuelle Urbano Maffioletti, para quem a "liquidação conduzida sem processo administrativo [não recepcionado, diga-se, pela Constituição Federal] ou judicial - pode afetar a imparcialidade da liquidação..." (A Insolvência das Cooperativas no Brasil e Reflexões sobre a Liquidação Extrajudicial. Artigo na coletânea Direito Empresarial. Estudos em homenagem ao Professor Haroldo Malheiros Duclerc Verçosa. São Paulo: Editora IASP, 2015, p. 322). 19 Para Waldírio Bulgarelli, "Tendo presente, portanto, que a Liquidação é um processo complexo e geralmente demorado, é que se pode entender também, a imposição legal de que fiquem suspensas as ações judiciais contra a cooperativa pelo prazo de um ano...", cf. As sociedades cooperativas, p. 184. Mauro Rodrigues Penteado, Dissolução e liquidação de sociedades. Brasília: Brasília Jurídica, 1995, p. 108, nota 207, transcreve trecho de outra obra de Bulgarelli, segundo a qual a suspensão importante, original e oportuna. Parece que o festejado especialista no direito cooperativo se referia à liquidação extrajudicial forçada, pois faz referência a decisão do Incra, BNH ou Banco Central. Ora, na liquidação extrajudicial forçada, não há dúvida da necessidade de suspensão de todas as execuções. 20 AgRg no REsp 808.241/SP, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 28/04/2009, DJe 17/06/2009; REsp 921.280/MG, Rel. Ministra ELIANA CALMON, SEGUNDA TURMA, julgado em 19/02/2009, DJe 25/03/2009; (AgRg nos EDcl no REsp 799.547/SP, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/05/2009, DJe 21/05/2009; (AgRg no Ag 1385428/MG, Rel. Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI, PRIMEIRA TURMA, julgado em 06/09/2011, DJe 13/09/2011, entre outros. 21 No caso da liquidação judicial da Cooperativa Agrícola de Cotia, é vacilante a jurisprudência do TJSP sobre o termo ad quem da contagem de juros. Para contar até a data da liquidação: Apelação Cível 9000012-79.1999.8.26.0361, 9ª Câmara, j. 23/02/2016, Relator Des. Theodureto Camargo, por aplicação subsidiária da lei de falências. Para contar juros até a data de pagamento: da mesma Câmara, Apelação 9000009-27.1999.8.26.0361,j. 10/0-9/2013, rel. Des. Antonio Vilenilson. É gravíssima a situação, pois, no mesmo processo, critérios diferentes são utilizados. 22 Aliás, a rigor, a liquidação judicial de sociedades em geral desapareceu do direito brasileiro, pois, com o Código de Processo Civil de 2015, foram definitivamente revogados os artigos 655 a 674 do CPC de 1939, que ainda estavam em vigor e disciplinavam o assunto.