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Insolvência em foco

Temas sobre Recuperação Judicial.

Daniel Carnio Costa, Fabiana Solano, Alberto Camiña Moreira, Alexandre Demetrius Pereira, Marcelo Sacramone, Paulo Penalva Santos, João de Oliveira Rodrigues Filho, Márcio Souza Guimarães e Otávio Joaquim Rodrigues Filho
1. Introdução A Lei n. 11.101/2005 prevê a nomeação de administrador judicial - órgão criado para auxiliar o Juízo - sendo este essencial para o bom funcionamento da recuperação judicial e da falência. O presente artigo tem por finalidade analisar as atribuições do administrador judicial, em especial a obrigação de fiscalizar o cumprimento do plano, que sofreu relevante alteração com a edição da Lei n. 14.112/2020. 2. Alterações da lei 14.112/20 A lei14.112/2020 alterou a alínea c e acrescentou as alíneas e, f, g e h ao inciso II do art. 22, atribuindo ao administrador judicial, na recuperação judicial as funções de (c) apresentar ao juiz, para juntada aos autos, relatório mensal das atividades do devedor, fiscalizando a veracidade e a conformidade das informações prestadas pelo devedor; (e) fiscalizar o decurso das tratativas e a regularidade das negociações entre devedor e credores; (f) assegurar que devedor e credores não adotem expedientes dilatórios, inúteis ou, em geral, prejudiciais ao regular andamento das negociações; (g)  assegurar que as negociações realizadas entre devedor e credores sejam regidas pelos termos convencionados entre interessados ou, na falta de acordo, pelas regras propostas pelo administrador judicial e homologadas pelo juiz, observado o princípio da boa-fé para a solução construtiva de consensos, que acarretem maior efetividade econômico-financeira e proveito social para os agentes econômicos envolvidos; e (h) apresentar, para juntada aos autos, e publicar no endereço eletrônico específico relatório mensal das atividades do devedor e relatório sobre o plano de recuperação judicial, no prazo de 15 (quinze) dias contado da apresentação do plano, fiscalizando a veracidade e a conformidade das informações prestadas pelo devedor, além de informar eventual ocorrência das condutas previstas no art. 64. 2.1 Apresentação de relatórios. A lei determina ao administrador judicial a apresentação de relatórios que são essenciais à fiscalização das atividades do devedor, a saber: relatório mensal das atividades do devedor (art.22, II, c), relatório sobre a execução do plano (art. 22, II, e) e relatório sobre o plano (art.22, II, g). 2.1.1. Relatório mensal das atividades do devedor (art. 22, II, c). O relatório mensal é importante porque o devedor continua na administração da atividade empresária, devendo prestar informações sobre seu exercício. Esse fluxo de informações deve ser apresentado mensalmente para lastrear o relatório preparado pelo administrador judicial. Essa obrigação de exibir contas demonstrativas mensais imposta ao devedor é de tal ordem relevante que o legislador considera o seu descumprimento causa de destituição dos administradores da sociedade devedora (art. 52, IV e art. 64, V). Da mesma forma, caso o administrador judicial não elabore, no prazo estabelecido, qualquer dos relatórios, será intimado pessoalmente a fazê-lo no prazo de cinco dias, sob pena de desobediência. A apresentação do relatório mensal das atividades do devedor já estava prevista na redação original do art. 22, II, c, mas curiosamente a nova alínea h do mesmo art. menciona novamente um relatório mensal das atividades do devedor, e outro relatório sobre o plano de recuperação judicial. É evidente a inutilidade de apresentação de dois relatórios mensais, com o mesmo objetivo. Assim, a regra da alínea h é relevante apenas por introduzir um novo relatório sobre o plano, conforme se verá a seguir. O Relatório Mensal de Atividades, usualmente denominado RMA, deve contemplar informações sobre as atividades exercidas pelo devedor, baseados em elementos fornecidos pelo devedor, que contêm, dados referentes ao respectivo mês, e que deve ser analisado em conjunto com os relatórios anteriores. Deve ser informado qualquer fato "que seja relevante para o processo, em especial aqueles que possam causar prejuízo aos credores, de que são exemplo o desvio de bens, a confusão patrimonial ou qualquer tipo de crime ou fraude. Da mesma forma, qualquer situação de anormalidade no curso das atividades da recuperanda, nas suas demonstrações contábeis ou mesmo na execução do plano devem ser reportadas, sob pena de restar caracterizada negligência, nos termos do art. 32 da LREF".1 Na hipótese de companhia aberta, devem constar no relatório os fatos relevantes e comunicados ao mercado, na forma exigida pela Comissão de Valores Mobiliários. É comum o administrador judicial relacionar o atendimento feito a credores e resumir as suas manifestações mais relevantes nos autos da recuperação judicial, informando os principais recursos nos quais se manifestou. Compete ainda ao administrador judicial indicar no relatório as obrigações do plano que se venceram no respectivo mês. 2.1.1.1 Fiscalizar a veracidade das informações do devedor Em relação às novas atribuições do administrador judicial, o maior desafio certamente será a interpretação da expressão "fiscalizar a veracidade e a conformidade das informações prestadas pelo devedor", que consta nas alíneas c e h do art. 22, II, com a redação dada pela lei 14.112/2020. Isso porque, parece evidente que o administrador judicial não tem a função de atestar a veracidade das informações prestadas pelo devedor, pois nem mesmo o auditor independente, responsável pela apresentação de laudo que demonstra a viabilidade econômico-financeira do plano (art. 53) tem essa obrigação. O objetivo deste laudo é avaliar a real capacidade econômico-financeira, sempre baseado nos trabalhos técnicos apresentados pelo devedor, os quais não são necessariamente objeto de análise independente por parte da empresa de auditoria. Além disso, com muita frequência, o auditor trabalha com dados por amostragem, o que torna impossível atestar a veracidade de todas as informações prestadas pelo devedor. Considerando que a responsabilidade do administrador judicial é subjetiva, Daniel Carnio Costa e Alexandre Correa Nasser de Melo lembram que "somente a intenção de omitir a irregularidade ou a desconformidade das informações prestadas pela devedora ou a negligência/imperícia na sua análise poderão gerar a responsabilização da administração judicial."2 2.1.2. Relatório sobre a execução do plano (art. 22.II, d). Cumpridas as obrigações vencidas no prazo de dois anos de supervisão judicial, previstas no art. 61, o juiz decretará o encerramento da recuperação judicial, determinando ao administrador judicial a apresentação de relatório circunstanciado, sobre a execução do plano de recuperação judicial. Trata-se do relatório final que deve conter "exclusivamente informações acerca do cumprimento do plano de recuperação judicial tais como (i) a forma com que as obrigações foram cumpridas; (ii) as obrigações que, eventualmente, tenham tido seu adimplemento antecipado; (iii) as obrigações que ainda restam ao devedor adimplir".3 Com a apresentação desse relatório, encerra-se a recuperação judicial e,  consequentemente, a atribuição fiscalizatória do administrador judicial. 2.1.3. Relatório sobre o plano (art.22, II, h). A Lei n. 14.112/2020 criou nova espécie de relatório, o qual deve ser apresentado no prazo de 15 dias, contado da apresentação do plano proposto pelo devedor. Percebe-se que o legislador antecipou a atividade fiscalizatória, que agora se inicia logo após a apresentação do plano, e não apenas após a concessão da recuperação judicial. Note-se que antes da concessão da recuperação judicial (art. 58) as obrigações previstas no plano são meras propostas submetidas aos credores e, portanto, não são exigíveis, não havendo razão para fiscalizar o seu cumprimento. Além disso, a utilidade desse novo relatório é questionável, pois é improvável que o administrador tenha condições de analisar o plano no prazo de 15 dias, principalmente em relação à veracidade e a conformidade das informações constantes do plano. Determina ainda o legislador que o administrador judicial verifique a eventual ocorrência das condutas previstas no art. 64, que cuidam de hipóteses que justificam o afastamento dos administradores do comando da sociedade em recuperação judicial. Esses fatos devem ser apurados com muito cuidado, e provavelmente o administrador judicial não terá tempo hábil de fazê-lo. Até a realização da assembleia-geral é frequente a apresentação de modificações do plano, caso em que o administrador judicial deverá também apresentar novo relatório. 2.1.4 Relatórios previstos na Recomendação n. 72 do CNJ. Com a finalidade de padronizar os relatórios a serem apresentados pelo administrador judicial, a Recomendação n. 72 de 19 de agosto de 2020 do Conselho Nacional de Justiça estabelece procedimentos destinados a registrar os fatos mais relevantes ocorridos em cada fase da recuperação judicial, como, por exemplo, o andamento processual, os incidentes processuais e, também, com a sugestão de modelos a serem utilizados nos relatórios previstos na Lei n. 11.101/2005. A Recomendação prevê a necessidade de o administrador judicial encaminhar "um comunicado aos representantes do devedor, informando de forma detalhada toda a documentação que irá solicitar, mês a mês, para a elaboração dos relatórios mensais de atividade."4 2.2. Fiscalizar as negociações entre devedor e credores. O art. 22, II, alíneas e e f impõem ao administrador judicial o dever de fiscalizar as tratativas e a regularidade das negociações entre as partes, bem como assegurar que devedor e credores não adotem medidas inúteis, prejudiciais ao bom andamento das negociações. O administrador judicial, como auxiliar do juiz, não pode intervir nas negociações, mas apenas "fiscalizá-las para assegurar que os devedores ou os credores não adotem expedientes que dificultem referida negociação, assim como assegurar que todas as informações imprescindíveis para a negociação e o conhecimento do negócio sejam efetivamente fornecidas, sob pena de destituição dos administradores ou do próprio devedor, com nomeação de um gestor judicial (arts. 64 e 65)".5 Ainda, a alínea g impõe ao administrador judicial o dever de assegurar que as negociações realizadas entre credores e devedor sejam regidas pelos termos convencionados entre os interessados ou, na falta de acordo, pelas regras propostas pelo administrador judicial. A dificuldade prática na aplicação dessa norma decorre do fato de que, conforme acima ressaltado, o administrador judicial não representa interesses do devedor nem dos credores, sendo apenas uma pessoa de confiança do juiz. Pelo fato de ser pessoa de absoluta confiança do juiz decorre o seu atributo mais importante, que é a imparcialidade.6 Como pode propor regras de negociação? O que tem ocorrido são hipóteses em que o administrador judicial sugere ao juiz que determine a instalação de procedimento de mediação, no qual o mediador submeterá ao juiz o procedimento a ser adotado na negociação. 2.3 Estimular a mediação e a conciliação. O Conselho Nacional de Justiça, através da Recomendação n. 58 de 22 de outubro de 2019 já sugeria aos juízes que determinassem a utilização da mediação e da conciliação nas principais fases da recuperação judicial. A mediação e a conciliação têm sido adotadas em recuperação judicial como instrumento de prevenção e solução extrajudicial de litígios sendo que, em muitos casos, com previsão expressa nos incidentes de verificação de crédito, no auxílio para a negociação do plano de recuperação e muito outros casos na recuperação judicial. A Recomendação veda a atuação do administrador judicial como mediador ou conciliador, cabendo ao juiz nomeá-los. É comum o plano de recuperação prever proposta de mediação e de conciliação, que podem ser implementadas antes da assembleia-geral de credores. Para dar efetividade a essas formas de solução extrajudicial de litígio, o juiz indica o mediador ou o conciliador, propondo regras para esses procedimentos. A Lei n. 14.112/2020 trouxe para o texto legal esse mesmo conceito da Resolução n. 58 do Conselho Nacional de Justiça, ao incluir a alínea j no inciso I do art. 22. O dever do administrador judicial de estimular a conciliação e a mediação é justificável "por ter conhecimento aprofundado dos aspectos fáticos e jurídico processuais do caso, pode identificar com maior facilidade os empecilhos à negociação entre as partes. Desde que sempre com supervisão do juiz, cabe ao administrador judicial incentivar consensos em relação a questões pontuais, para que o processo de falência ou recuperação atinja seus objetivos, com eficiência e celeridade. Para isso, o administrador judicial pode requerer ao juízo a realização de audiências de gestão democrática ou sessões de conciliação".7 3. O administrador judicial e o plano apresentado pelos credores. A Lei n. 14.112/2020 prevê a possibilidade de os credores apresentarem um plano alternativo em dois dispositivos: no art. 6º, § 4º-A e no art. 56, §§ 4º ao 8º.  Na primeira hipótese (art. 6º, § 4º-A) decorrido o prazo do stay period, sem que o plano de recuperação apresentado pelo devedor tenha sido deliberado em assembleia-geral, os credores teriam a faculdade de propor um plano alternativo. A outra previsão está no art. 56, § 4º, o qual dispõe que "rejeitado o plano de recuperação judicial, o administrador judicial submeterá, no ato, à votação da assembleia-geral de credores a concessão de prazo de 30 (trinta) dias para que seja apresentado plano de recuperação judicial pelos credores". Na prática, a possibilidade de apresentação de plano alternativo pelos credores representa um incentivo para o devedor buscar a melhor solução possível pois, caso contrário, ficará exposto ao risco de ser votado um meio de recuperação elaborado pelos credores. Em interpretação literal e mais apressada da alínea h do inciso II do art. 22 pode até parecer que a lei estaria se referindo, apenas, ao plano apresentado pelo devedor. Pondere-se, contudo, que na hipótese de o plano ter sido proposto pelos credores, é até mais relevante a atuação do poder fiscalizatório detido pelo administrador judicial, apresentando relatório com informações sobre a veracidade e a conformidade dos dados que embasaram a elaboração do plano. 4. Conclusão. Por tudo isso, diante das disposições da Lei n. 11.101/2005 e das alterações nela promovidas pela Lei n. 14.112/2020, demonstra-se essencial o papel que o administrador judicial de fiscalizar as atividades do devedor, em especial sobre o cumprimento do plano.8 __________ 1 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; e TELLECHEA, Rodrigo, Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei nº 11.101/2005, 3ª ed - rev. atual e ampl. São Paulo: Almedina, 2018, p. 251. 2 COSTA, Daniel Carnio, Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005/Daniel Carnio Costa, Alexandre Correa Nasser de Melo - Curitiba: Juruá, 2021, Ob. Cit. p. 108 3 Idem p.109.  4 COSTA, Daniel Carnio, Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005/Daniel Carnio Costa, Alexandre Correa Nasser de Melo - Curitiba: Juruá, 2021, p.106. 5 Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência/Marcelo Barbosa Sacramone. -2ª ed. - São Paulo: Saraiva Educação, 2021, p.. 168. 6 SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; e TELLECHEA, Rodrigo, Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei nº 11.101/2005, 3ª ed - rev. atual e ampl. São Paulo: Almedina, 2018, p. 244. 7 COSTA, Daniel Carnio, Comentários à lei de recuperação de empresas e falência: Lei 11.101, de 09 de fevereiro de 2005/Daniel Carnio Costa, Alexandre Correa Nasser de Melo - Curitiba: Juruá, 2021, p. 106. 8 "A boa condução de uma recuperação judicial ou de uma falência decorre em grande medida da atuação do administrador judicial, figura chave nos dois procedimentos. Isso porque o administrador judicial tem papel preponderante no sucesso ou insucesso de uma falência ou recuperação judicial. Um juiz inexperiente na matéria concursal com o auxílio de um administrador judicial competente pode bem conduzir uma recuperação judicial ou uma falência. Mas o juiz mais experimentado nesta área tendo ao seu lado um administrador judicial despreparado, negligente ou mal-intencionado terá grandes dificuldades na condução do processo". SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; e TELLECHEA, Rodrigo, Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei nº 11.101/2005, 3ª ed - rev. atual e ampl. São Paulo: Almedina, 2018, p. 243.
1. Introdução: O conceito de "caixa" e o que está abrangido na definição Para bem entender o fenômeno do saldo credor de caixa e suas repercussões jurídico-contábeis, é mister que antes estabeleçamos corretamente o conceito de caixa. A primeira noção do que se entende por caixa compreende um ativo com liquidez, apto para ser usado como meio de pagamento. Nesse conceito estaria enquadrado tudo o que determinada entidade possua a título de ativo, cuja composição esteja fisicamente em moeda (dinheiro, do inglês cash) ou congênere. Nessa concepção mais restrita, o caixa compreende parte do ativo de maior liquidez, constituído de meios físicos de pagamento. No entanto, a definição restrita de caixa não é mais satisfatória nos dias de hoje, em que os alguns meios eletrônicos (consistentes, dentre outros, em depósitos e investimentos em contas bancárias), também dispõe de grande liquidez e acabam por deter a maior parcela de participação nos processos de liquidação das transações financeiras. Mas se conceituaremos tais formas eletrônicas de pagamento como caixa, precisaremos delimitar quais delas têm liquidez suficiente para ser consideradas como tal e quais não possuem tais características. Afinal, alguns investimentos e aplicações bancárias sem possibilidade de resgate ou saque antes de longos prazos não possuem liquidez suficiente para serem conceituados como caixa. Para chegar a um denominador comum nessa definição, o Comitê de Pronunciamentos Contábeis (CPC) definiu dois conceitos: caixa e equivalentes de caixa, em seu pronunciamento técnico CPC 03, sobre Demonstração dos Fluxos de Caixa. Tais definições serão esquematizadas a seguir: Complementando a definição de equivalentes de caixa, o pronunciamento CPC 03 delimita o período de tempo que uma aplicação financeira possa ser considerada no conceito de equivalente de caixa, nos seguintes termos: Os equivalentes de caixa são mantidos com a finalidade de atender a compromissos de caixa de curto prazo e, não, para investimento ou outros propósitos. Para que um investimento seja qualificado como equivalente de caixa, ele precisa ter conversibilidade imediata em montante conhecido de caixa e estar sujeito a um insignificante risco de mudança de valor. Portanto, um investimento normalmente qualifica-se como equivalente de caixa somente quando tem vencimento de curto prazo, por exemplo, três meses ou menos, a contar da data da aquisição. Os investimentos em instrumentos patrimoniais (de patrimônio líquido) não estão contemplados no conceito de equivalentes de caixa, a menos que eles sejam substancialmente, equivalentes de caixa, como, por exemplo, no caso de ações preferenciais resgatáveis que tenham prazo definido de resgate e cujo prazo atenda à definição de curto prazo. Seguindo as definições aludidas, podemos definir caixa (e equivalentes de caixa) de modo simplificado como todo ativo composto por numerário em espécie e depósitos bancários disponíveis e por aplicações financeiras de alta liquidez e conversibilidade imediata em dinheiro ou em outros meios de pagamento, até três meses ou menos da data de aquisição ou da data em que se encerram, no exercício respectivo, as demonstrações contábeis. Dada a similitude de tratamento entre caixa e equivalentes de caixa, é comum encontrar nos balanços contábeis os valores de ativo que constituem numerário em espécie, depósitos bancários disponíveis imediatamente ou aplicações financeiras de liquidez até três meses unificadas sob única rubrica com o título "caixa e equivalentes" ou "disponível". Conceituado o que está abrangido como caixa e seus respectivos equivalentes, cabe analisar no tópico seguinte o funcionamento dessa conta e o fenômeno do saldo credor de caixa. 2. O que é saldo credor de Caixa? Como se configura? A noção contábil-financeira de saldo credor de caixa não é muito intuitiva para o jurista. Com efeito, ao ler esse conceito, a primeira impressão que se tem é que ele estaria a significar que o caixa possui recursos ou meios líquidos de pagamento, uma vez que estaria "credor" de algo ou de alguém. Ao jurista, de fato, o termo "credor" significa usualmente uma posição jurídica ativa em uma relação obrigacional, concernente àquele que tenha o direito de exigir uma prestação de outrem. Do mesmo modo, "crédito", no direito obrigacional, nada mais é que a prerrogativa titularizada pelo credor em receber uma prestação consistente em dar, fazer ou não fazer. Na estrutura contábil, porém, crédito e débito têm feições particulares, que não refletem exatamente o significado da ciência jurídica. Para explicarmos exatamente o que significa saldo credor de caixa, precisaremos fazer breve conceituação dos lançamentos contábeis em partidas dobradas, ou seja, aquelas que envolvem débito e crédito de igual valor. Vamos tomar como exemplo as contas patrimoniais constantes do balanço. No balanço patrimonial, representam-se as contas que compõem o patrimônio da entidade, separadas usualmente em ativo (= bens e direitos), passivo (= obrigações e dívidas) e patrimônio líquido (diferença entre ativo e passivo). Transcrevendo graficamente os grupos e exemplos de contas que compõem o balanço, teríamos: Da figura anterior, podemos tirar algumas lições importantes: O sentido das setas constantes da figura demonstra que o passivo e o patrimônio líquido são origens ou fontes de recursos, as quais estão aplicadas no ativo. Imaginemos dois exemplos práticos para elucidar essa questão: Se os sócios decidem aportar novas quantias em dinheiro no capital social, tal operação implicará aumento do patrimônio líquido (origem do aporte), cujos recursos serão aplicados no ativo (caixa); Se a sociedade decide contrair um empréstimo bancário, os recursos terão origem em uma dívida ou obrigação (passivo), e ingressarão também no ativo (caixa); Constituindo o passivo e o patrimônio líquido ambos fontes ou origens de recursos, podemos separá-los conforme sejam origens provenientes de recursos de terceiros (passivos) ou de recursos próprios (patrimônio líquido). Não por outra razão costuma-se chamar em finanças o passivo de "capital de terceiros" e o patrimônio líquido de capital próprio". Tais fontes de recursos também costumam ser diferenciadas quanto à exigibilidade: enquanto o passivo costuma ser uma fonte com prazo para a devolução dos recursos o patrimônio líquido, usualmente, só é passível de devolução em face de eventos dissolutórios da entidade. Na esteira das lições aludidas, podemos concluir que, se aumentam as origens de recursos próprios ou de terceiros (p.ex.: por meio de um aporte de capital ou pela contração de um empréstimo), aumenta o crédito dos titulares desses recursos (sócios terão direito, em princípio, à devolução de uma quantia de capital em um evento dissolutório; credores terão direito a restituição de quantias referentes ao empréstimo). Por outro lado, se a entidade tiver de devolver capital aos sócios ou pagar o empréstimo, terá de fazê-lo com recursos que aplicou no ativo. Desse modo, o aumento de ativo, originado no aumento de passivo ou de patrimônio líquido, representa igualmente um aumento de débito da entidade, já que terá de utilizar o ativo para restituir os recursos para os titulares dos recursos originais. Daí surge o entendimento contábil convencionado, segundo o qual, como regra geral: As contas de passivo e de patrimônio líquido são contas credoras (ou com saldo credor), por representarem o direito daqueles que titularizam os recursos conferidos à entidade; Por sua vez, as contas de ativo, que receberam recursos oriundos de passivo ou de patrimônio líquido, e cujos valores deverão ser eventualmente empregados na restituição aos respectivos titulares, são contas devedoras ou cujo aumento ocorre segundo um lançamento contábil a débito.   A conta caixa (e equivalentes de caixa), como vimos, é uma conta de ativo. Representa, portanto, bens e direitos consistentes em meios líquidos e imediatos de pagamento, cujas origens estão no passivo (recursos de terceiros) ou no patrimônio líquido (recursos próprios). Sendo uma conta de ativo, contabilmente, o caixa é uma conta devedora ou cujo saldo deve permanecer devedor. Esse fato, ao contrário do que possa parecer, obedece a uma convenção contábil e indica justamente que há recursos no caixa, que serão destinados futuramente ao pagamento de passivos ou à devolução de recursos aos titulares do patrimônio líquido. Graficamente, representando alguns eventos econômicos na conta caixa por meio de um razonete, teríamos: Ressalte-se novamente: a existência de um saldo devedor em conta de ativo como o caixa, regra geral, representa justamente o que é esperado e significa, no exemplo supracitado, que a entidade tem R$ 185 mil em dinheiro ou outros meios líquidos de pagamento (caixa e equivalentes). O contrário (saldo credor) é que, regra geral, não é esperado em uma conta de ativo como o caixa. Vejamos novamente o exemplo anterior, agora com outros valores, para verificarmos o que seria um saldo credor de caixa. Ao verificarmos esse último exemplo, veremos que a entidade pagou mais (R$ 650 mil) do que tinha ou do que recebeu em caixa (R$ 250 mil) no período, restando um saldo credor de R$ 400 mil. A pergunta é: como isso pôde ocorrer? Como houve desembolsos que superaram o valor que se tinha em caixa? Esse é exatamente o ponto onde começa a investigação do saldo credor de caixa, objeto deste artigo. Para uma melhor explicação, abriremos um tópico específico a seguir. 3. Por que um "saldo credor" no caixa (e equivalentes) é algo potencialmente irregular ou passível de fraude? Retomando o último exemplo, vemos que se houve desembolsos de caixa, é necessário antes que esses recursos tenham existido ou tenham tido alguma origem, seja no passivo ou no patrimônio líquido. Em outras palavras: se houve mais saídas (pagamentos) do que entradas de caixa (recebimentos e outros saldos anteriores), necessariamente deve ter havido alguma fonte de recursos que possa ter gerado meios de pagamento. Essas fontes de recursos podem ser variadas. Como exemplo, podemos citar um aporte de capital, a contração de um empréstimo, a emissão de títulos no mercado financeiro (debêntures, commercial papers, etc.). No entanto, não é incomum que, na prática, a fonte de recursos que gerou o saldo credor de caixa seja justamente a omissão de receitas tributáveis, quando decorre de processo de sonegação fiscal. Nessa hipótese, ocorre uma omissão intencional e mediante fraude na escrita do contribuinte, buscando a evitar o pagamento de tributos. Imaginemos o exemplo teórico anterior e vislumbremos justamente o seguinte: procurando não recolher os tributos devidos (IRPJ, ICMS, etc.), a entidade não contabilizou como receitas que deveriam entrar no caixa o montante de R$ 400 mil, o que deixou esta conta com saldo credor em igual valor. Desse modo, havendo saldo credor de caixa, podemos concluir inicialmente que seria necessária outra fonte de recursos para que as saídas de caixa (maiores que as entradas) pudessem ser efetuadas. E qual a origem? Pode ser variada, como dissemos, mas dentre elas fatalmente estará a omissão de receitas tributáveis. Não é por outra razão que o fisco federal e estadual, em processos administrativos tributários referentes a fiscalização de impostos que incidem sobre a receita ou sobre o lucro (IRPJ, IPI, ICMS, etc.) trata o saldo credor de caixa como uma presunção (relativa) de omissão de receitas. Em outras palavras: encontrado saldo credor de caixa, o contribuinte deverá provar ao fisco qual foi a origem dos recursos que permitiram pagamentos superiores às entradas de caixa. Na omissão do contribuinte, prevalece a autuação considerando tratar-se de receita omitida, efetuando-se, por consequência, a tributação cabível. Vejamos algumas decisões administrativas nesse sentido: MINISTÉRIO DA FAZENDA SECRETARIA DA RECEITA FEDERAL DELEGACIA DA RECEITA FEDERAL DE JULGAMENTO EM FORTALEZA 4 º TURMA ACÓRDÃO 08-23274 de 17 de Abril de 2012 EMENTA: OMISSÃO DE RECEITA. SALDO CREDOR DE CAIXA. PRESUNÇÃO. A presunção de omissão de receita decorrente da apuração na escrituração de saldo credor de caixa decorre de previsão contida na legislação tributária, cabendo ao sujeito passivo a prova da improcedência da presunção. Ano-calendário: 01/01/2003 a 31/12/2003. Tribunal de Impostos e Taxas - SP NATUREZA DO RECURSO LOCALIDADE AIIM Nº / SÉRIE RECURSO ORDINÁRIO MONTE ALTO 41457/"Q" ASSUNTO ICMS - FALTA DE RECOLHIMENTO, APURADA VIA LEVANTAMENTO FISCAL - SALDO CREDOR NA CONTA CAIXA. No Judiciário, da mesma forma, inúmeras decisões existem a respeito de saldo credor de caixa, no campo tributário, considerando-o como presunção de receitas tributáveis omitidas na escrituração do contribuinte. Nesse sentido: Processo REsp 1045495 / SC RECURSO ESPECIAL 2008/0067236-0 Relator(a) Ministro CASTRO MEIRA (1125) Órgão Julgador T2 - SEGUNDA TURMA Data do Julgamento 12/8/08 Data da Publicação/Fonte DJe 4/9/08 Ementa TRIBUTÁRIO. IRPJ. OMISSÃO DE RECEITAS. LUCRO PRESUMIDO. ENCARGO LEGAL. 1. Não se faz necessário o detalhamento das receitas na CDA, pois não constitui requisito legal. A especificação ocorre nos autos de infração. 2. Os valores apurados referentes às compras não registradas e ao saldo credor de caixa representam receitas omitidas, não se aplicando o disposto no art. 44, § 2º, da lei 8.541/92. 3. Segundo o art. 40 da lei 9.430/96, "a falta de escrituração de pagamentos efetuados pela pessoa jurídica, assim como a manutenção, no passivo, de obrigações cuja exigibilidade não seja comprovada, caracterizam, também, omissão de receita". A constatação de saldo credor registrado em livro caixa da autuada revela a existência de receitas à margem da escrituração, o que corrobora o entendimento de que as compras não escrituradas foram pagas com o produto de receitas omitidas. 4. Recolham as empresas imposto sobre a renda pelo lucro real ou pelo lucro presumido, a omissão de receitas implica pagamento a menor, o que é devidamente tratado pela legislação. 5. Omissão de receita não se confunde com dedução indevida para efeito de aplicação do art. 44, § 2º, da lei 8.541/92, que estabelece uma presunção de transferência automática para os sócios de receitas omitidas na escrituração fiscal da pessoa jurídica. 6. Recurso especial não provido. Processo REsp 901311 / RJ RECURSO ESPECIAL 2006/0215688-9 Relator(a) Ministro TEORI ALBINO ZAVASCKI (1124) Relator(a) p/ Acórdão Ministro LUIZ FUX (1122) Órgão Julgador T1 - PRIMEIRA TURMA Data do Julgamento 18/12/07 Data da Publicação/Fonte DJe 6/3/08 Ementa PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. TRIBUTÁRIO. ESCRITURAÇÃO IRREGULAR. SALDO CREDOR EM CAIXA. PRESUNÇÃO DE OMISSÃO DE RECEITA. FACULDADE DO CONTRIBUINTE PRODUZIR PROVA CONTRÁRIA. PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL. SUCUMBÊNCIA. PRINCÍPIO DA CAUSALIDADE. 1. A presunção juris tantum de omissão de receita pode ser infirmada em Juízo por força de norma específica, mercê do princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5.º, XXXV, da CF/88) coadjuvado pela máxima utile per inutile nom vitiatur. 2. O princípio da verdade real se sobrepõe à presuntio legis, nos termos do § 2º, do art. 12 do DL 1.598/77 (art. 281 RIR/99 - decreto 3.000/99), ao estabelecer ao contribuinte a faculdade de demonstrar, inclusive em processo judicial, a improcedência da presunção de omissão de receita, considerada no auto de infração lavrado em face da irregularidade dos registros contábeis, indicando a existência de saldo credor em caixa. Aplicação do princípio da verdade material. 3. Outrossim, ainda neste segmento, concluiu a perícia judicial pela inexistência de prejuízo ao Fisco. 4. Deveras, procedido o lançamento com base nos autos de infração, infirmados por perícia judicial conclusiva, constituiu-se o crédito tributário principal, mercê de o mesmo ter sido oferecido à tributação, por isso que inequívoco que o resultado judicial gerará bis in idem quanto à exação in foco. 5. Lavrados os autos de infração por erro formal de escrita reconhecido pelos recorrentes, não obstante materialmente exatos os valores oferecidos à tributação, impõe-se reconhecer que a parte que ora se irresigna foi a responsável pela demanda. 6. Regulada a sucumbência pelo princípio da causalidade, ressoa inacolhível imputá-la ao Fisco, independente de prover-se o recurso para que não haja retorno dos autos à instância a quo, porquanto o aresto recorrido reconheceu a higidez conclusiva da prova mas desprezou-a. 7. A responsabilidade pela demanda implica imputar-se a sucumbência ao recorrente, não obstante acolhida a sua postulação quanto ao crédito tributário em si. (Precedente: REsp 284926/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 05.04.2001, DJ 25.06.2001 p. 173) 8. Recurso Especial provido, imputando-se a sucumbência ao recorrente. Mas se no campo tributário a questão do saldo credor de caixa se resolve por uma presunção fiscal relativa, contra a qual deve o contribuinte demonstrar que outra fonte (não tributável) que não uma omissão de receitas ocorreu, como enquadrar a questão sob a ótica penal? É o que veremos no próximo tópico. 4. O enquadramento penal do saldo credor de caixa É sempre bom lembrar que a ocorrência de saldo credor de caixa não indica uma fraude, crime falimentar ou sonegação fiscal por si só: cuida-se somente de um indício. O contribuinte ou a entidade podem simplesmente ter omitido um lançamento de sua escrita por culpa ou por erro, o que não indica intenção ou dolo de fraudar ou sonegar. No campo tributário, como vimos, a questão resolve-se por uma presunção: ocorrido o saldo credor de caixa, até prova contrária a cargo do contribuinte, presume-se omitida receita tributável. Na seara penal, entretanto, não se pode acusar ou condenar por presunção. A acusação deve provar cabalmente os fatos subsumíveis ao tipo penal respectivo. Vejamos, portanto, nos subtópicos seguintes, como a existência de saldo credor de caixa pode configurar crime tributário ou até mesmo crime falimentar. 4.1. Saldo credor de caixa como crime contra a ordem tributária Sob a perspectiva da legislação penal tributária, a lei 8.137/90 preceitua em seu art. 1º, II, o seguinte: Art. 1° Constitui crime contra a ordem tributária suprimir ou reduzir tributo, ou contribuição social e qualquer acessório, mediante as seguintes condutas: I - omitir informação, ou prestar declaração falsa às autoridades fazendárias; II - fraudar a fiscalização tributária, inserindo elementos inexatos, ou omitindo operação de qualquer natureza, em documento ou livro exigido pela lei fiscal. Nessa toada, o saldo credor de caixa poderá caracterizar (embora não necessariamente em todos os casos) crime contra a ordem tributária, se derivar de omissão de receita tributável, não lançada na escrituração do contribuinte. Para que se tenha o crime caracterizado é necessário que a acusação prove cabalmente, dentre outros fatores, que o saldo credor de caixa derivou de omissão intencional (dolosa) do contribuinte em sua escrituração contábil, não lançando receitas ou outros fatos geradores de tributo, com o fim de suprimir ou reduzir a respectiva exação. Se o saldo credor de caixa, por outro lado, derivar da omissão de lançamentos contábeis decorrentes de operação sobre a qual não fosse exigível tributo (p.ex.: omissão de lançamento de aporte regular de capital ou de entrada de caixa derivada de empréstimo), não existirá crime. É bom que se reprise: no campo penal, não bastará a presunção fiscal tributária de omissão de receitas. É a acusação quem precisa evidenciar que o saldo credor decorreu de um processo econômico-contábil visando à sonegação de tributos. Na jurisprudência criminal, deve-se notar, já houve decisão reconhecendo, dentre outros fatores, o saldo credor de caixa como crime contra a ordem tributária. Processo ACR 00000254420034036125 ACR - APELAÇÃO CRIMINAL - 43746 Relator(a) DESEMBARGADOR FEDERAL JOSÉ LUNARDELLI Sigla do órgão TRF3 Órgão julgador PRIMEIRA TURMA Fonte e-DJF3 Judicial DATA: 5/8/13. Decisão Vistos e relatados estes autos em que são partes as acima indicadas, decide a Egrégia Primeira Turma do Tribunal Regional Federal da 3ª Região, por unanimidade, rejeitar as preliminares arguidas e dar parcial provimento ao recurso tão somente para reduzir a pena aplicada para 04 (quatro) anos de reclusão, em regime inicial aberto, e pagamento de 19 (dezenove) dias-multa, mantido o valor unitário fixado na sentença recorrida, substituindo-se a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos consistentes na prestação de serviços à comunidade ou à entidades públicas, pelo prazo da sanção corporal substituída, a ser cumprida na forma estabelecida pelo artigo 46 do Código Penal e demais condições do Juízo das Execuções Penais, bem como na prestação pecuniária consistente no pagamento mensal de 01 (um) salário mínimo durante o período de 01 (um) ano, à entidade pública ou privada com destinação social cadastrada no Juízo das Execuções Penais, nos termos do relatório e voto que ficam fazendo parte integrante do presente julgado. Ementa PENAL. PROCESSUAL PENAL. APELAÇÃO CRIMINAL. CRIME CONTRA A ORDEM TRIBUTÁRIA. SONEGAÇÃO FISCAL. ART. 1º, INCISO I, DA LEI 8.137/90. PRELIMINARES REJEITADAS. MATERIALIDADE E AUTORIA COMPROVADAS. DOSIMETRIA. SÚMULA 444 DO SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RECURSO DA DEFESA A QUE SE DÁ PARCIAL PROVIMENTO. 1. Imputa-se ao apelante o cometimento do crime descrito no art. 1º, inciso I, da lei 8.137/90, em continuidade delitiva. 2. Exaurida a via administrativa, resta atendida a condição de procedibilidade da ação penal nos crimes contra a ordem tributária (Súmula Vinculante 24). 3. O réu foi devidamente assistido por defensor em todos os atos processuais. A defesa prévia, como sói acontecer na maioria das vezes, é peça processual concisa. Além disso, embora sinteticamente, as alegações finais abordaram todas as teses defensivas, postulando a absolvição. O fato de não ser uma defesa prolixa não significa que não tenha poder de convencimento, caindo por terra assertiva de nulidade absoluta dos atos praticados em razão da atuação deficitária do defensor dativo. 4. Inocorrência do advento prescricional. 5. Materialidade e autoria delitiva comprovadas pelo conjunto probatório. 6. O tipo penal descrito no art. 1º da lei 8.137/90 exige apenas o dolo genérico. Não é essencial o dolo específico ou especial fim de agir. O crime de sonegação fiscal consiste em reduzir ou suprimir tributo por meio de uma das condutas arroladas, e não em adotar uma daquelas condutas com o fim de suprimir ou reduzir tributo. 7. Amplamente demonstrada a vontade livre e consciente do réu de reduzir tributo, na forma narrada na peça acusatória. O escopo fraudulento, a intenção de fraudar o fisco foi comprovada, uma vez que, o acusado, responsável pela administração da empresa omitiu, de forma injustificada, rendimentos e outras informações nos documentos fiscais, ensejando a redução de pagamento de tributos, não havendo falar em atipicidade fática por ausência de dolo. 8. O questionamento do lançamento arbitrado por auditor fiscal carece de acolhida, havendo presunção de veracidade em seus atos. Ausente impugnação ao procedimento administrativo que culminou no lançamento tributário, acomodando-se o réu ao resultado atingido. 9. A conduta de efetuar pagamentos sem causa se subsume à figura típica do art. 1º, inciso I, da lei 8.137/90, na medida em que contribuiu, e muito, para a diminuição injustificada da receita da empresa, fato que gera a incidência de tributos. 10. Não tem o condão de desconstituir a materialidade delitiva alegação genérica de que a receita declarada teria sido resultado de empréstimo realizado junto à empresa de câmbio, uma vez a defesa não se desincumbiu do ônus de provar o quanto alegado, nos termos do art. 156, primeira parte, do Código de Processo Penal. 11. Os elementos de cognição coligidos no transcorrer da instrução criminal atestam, de forma cristalina, a omissão de rendimentos e outras informações relevantes nos documentos fiscais da empresa, conduta que subsume à figura típica do art. 1º, inciso I, da lei 8.137/90. 12. O fato imputado não é atípico, porquanto a conduta de efetuar pagamentos sem causa resultou na diminuição injustificada da receita da empresa. Tampouco há bis in idem, uma vez comprovada a redução de tributos mediante omissão de receitas caracterizada pela ocorrência de saldo credor de caixa, conforme consignado no relatório fiscal. 13. Não se admite agravar a pena com alusão ao desajuste na personalidade do acusado se tal avaliação se funda no registro de inquéritos policiais e ações penais, não havendo notícia acerca do trânsito em julgado, como é o caso dos autos, visto que tal juízo choca-se com o princípio da presunção de inocência. Súmula 444 do STJ: "É vedada a utilização de inquéritos policiais e ações penais em curso para agravar a pena-base". 14. Reduzida a pena-base para 02 (dois) anos de reclusão. Mantida a majoração da pena-base de 1/3 em decorrência da causa de aumento estabelecida no art. 12 da lei 8.137/90 e o acréscimo em ½ (metade) por conta da continuidade delitiva, resulta na pena definitiva de 04 (quatro) anos de reclusão. 15. A sonegação de vultosa quantia (R$ 2.547.874,64) não está ínsita ao tipo penal, vale dizer, não consubstancia elementar da figura típica e justifica a incidência da majorante específica em comento, na terceira fase do sistema trifásico, disso não resultando bis in idem ou ofensa à taxatividade. 16. Inaplicável a atenuante da confissão espontânea, já que o acusado em nenhum momento da instrução criminal admitiu ter sonegado impostos mas, ao revés, quando instado, refutou as conclusões da autoridade fazendária. 17. A pretendida redução da pena pelo fato de a conduta de efetuar pagamentos sem causa restar absorvida pela conduta de omitir rendimentos não guarda amparo normativo, eis que o crime se configura com a prática de uma única ação, dentre aquelas disciplinadas no preceito primário do tipo penal. 18. A pena de multa não seguiu o critério da proporcionalidade com a pena privativa de liberdade, de forma que a reduzo para 19 (dezenove) dias multa, mantido o valor unitário fixado pelo Juízo "a quo". 19. O regime inicial da pena privativa de liberdade será o aberto, nos moldes do art. 33, §2º, alínea "c", do Código Penal, cujo cumprimento se dará na forma e condições estabelecidas pelo Juízo das Execuções Penais. 20. Nos termos do art. 44, §2º, do Código Penal resta substituída a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos consistentes na prestação de serviços à comunidade ou à entidades públicas, pelo prazo da sanção corporal substituída, a ser cumprida na forma estabelecida pelo art. 46 daquele Código e demais condições do Juízo das Execuções Penais, bem como na prestação pecuniária consistente no pagamento mensal de 01 (um) salário mínimo durante o período de 01 (um) ano, à entidade pública ou privada com destinação social cadastrada no Juízo das Execuções Penais. 21. Preliminares rejeitadas. Recurso parcialmente provido tão somente para reduzir a pena aplicada para 04 (quatro) anos de reclusão, em regime inicial aberto, e pagamento de 19 (dezenove) dias-multa, mantido o valor unitário fixado na sentença recorrida, substituindo-se a pena privativa de liberdade por duas restritivas de direitos consistentes na prestação de serviços à comunidade ou à entidades públicas, pelo prazo da sanção corporal substituída, a ser cumprida na forma estabelecida pelo artigo 46 do Código Penal e demais condições do Juízo das Execuções Penais, bem como na prestação pecuniária consistente no pagamento mensal de 01 (um) salário mínimo durante o período de 01 (um) ano, à entidade pública ou privada com destinação social cadastrada no Juízo das Execuções Penais. Recomendável, portanto, que nas investigações criminais em que se discuta a ocorrência de sonegação fiscal derivada de saldo credor de caixa, sejam evidenciadas provas seguras (p.ex.: documentos, perícias contábeis, etc.) de que a acusação não se baseia unicamente na presunção fiscal derivada do processo administrativo-tributário, sob pena da imputação criminal estar fadada ao insucesso. 4.2 Saldo credor de caixa como crime falimentar Na esfera criminal falimentar (ou recuperacional), a tutela penal não busca a incolumidade da arrecadação estatal, mas a proteção coletiva da comunidade de credores, além da própria higidez do processo falimentar ou de recuperação. Assim, em havendo as condições de procedibilidade necessárias ao crime falimentar ou recuperacional (art. 180 da lei 11.101/05), a omissão dolosa de lançamento em conta de caixa, com prejuízo potencial aos credores, poderá configurar o crime falimentar do art. 168, I e II, da lei 11.101/05, cuja redação é a seguir transcrita: Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem. Pena - reclusão, de 3 (três) a 6 (seis) anos, e multa. Aumento da pena § 1º A pena aumenta-se de 1/6 (um sexto) a 1/3 (um terço), se o agente: I - elabora escrituração contábil ou balanço com dados inexatos; II - omite, na escrituração contábil ou no balanço, lançamento que deles deveria constar, ou altera escrituração ou balanço verdadeiros; A mera omissão de lançamentos de caixa usualmente já poderá causar prejuízos potenciais aos credores, mesmo que não seja derivada de omissão de receitas. Deverá ainda ser provado que o saldo credor de caixa buscou assegurar vantagem para o devedor ou para outrem. Imagine-se, por exemplo, um credor em recuperação judicial que não escritura um empréstimo obtido de um credor quirografário, disso decorrendo saldo credor de caixa, tendo a omissão o fim de não sujeitar o credor aos efeitos da recuperação. Se o devedor em recuperação ou falido, por seu turno, não escriturar valores em caixa e ainda movimentar tais recursos fora da contabilidade oficial exigida pela legislação, poderá incidir em contabilidade paralela, conforme definida no art. 168, §2º, da lei 11.101/05, verbis: Contabilidade paralela § 2º A pena é aumentada de 1/3 (um terço) até metade se o devedor manteve ou movimentou recursos ou valores paralelamente à contabilidade exigida pela legislação. 5. Conclusões O saldo credor de caixa constitui-se em decorrência de lançamentos contábeis em que as entradas (débitos) são inferiores o valor das saídas (créditos) na conta de caixa ou equivalentes.  A causa do saldo credor de caixa pode ser variada: desde erros ou omissões simplesmente culposas na contabilidade, até processos sofisticados de omissão de receitas com o fim de efetivar sonegação de tributos. Sob a perspectiva tributária, o saldo credor de caixa usualmente é tratado como presunção relativa de omissão de receitas, cabendo ao contribuinte a prova de que tal omissão não ocorreu. Já sob a perspectiva penal tributária, o saldo credor de caixa pode configurar crime contra a ordem tributária, se provado que a omissão de escrituração teve por fundamento elementos que possam constituir fato gerador de tributo. Também poderá caracterizar crime falimentar, evidenciando-se prejuízo potencial aos credores e o fim de assegurar vantagem para o devedor ou para outrem, agravado o crime se houver movimentação ou manutenção de recursos fora da contabilidade.
Após trinta anos de plena vigência, o Código de Defesa do Consumidor recebeu importante atualização em julho de 2021. Com a aprovação da lei 14.181, foram acrescentados dois importantes princípios à Política Nacional das  Relações de Consumo: o fomento de ações direcionadas à educação financeira  e ambiental  dos consumidores, e a prevenção e tratamento do superendividamento, como forma de evitar a exclusão social. Eles foram seguidos de dois eficazes instrumentos para a execução de tal política, que são a instituição de mecanismos de prevenção e tratamento extrajudicial e judicial  do superendividamento e de proteção do consumidor pessoa natural, bem como de núcleos de conciliação e mediação  de conflitos oriundos  do superendividamento. Além disto, novos direitos básicos foram previstos: a garantia de práticas de crédito responsável, de educação financeira e prevenção e tratamento de situações de superendividamento; a preservação do mínimo existencial, e a adequada informação acerca de preços de produtos por unidade de medida. No Capítulo que trata sobre a prevenção e o tratamento do superendividamento, após definir os conceitos necessários à compreensão desta complexa situação socioeconômica em que determinados consumidores estão inseridos, quando não têm condições de arcar com o pagamento de dívidas vencidas e vincendas sem prejuízo da própria subsistência, o legislador passou a estabelecer regras para a concessão de crédito responsável, fazendo-o desde o momento da oferta, até a fase pós contratual. Trata-se de uma nova maneira de pensar e regulamentar este importante instrumento do mercado, o crédito, privilegiando a boa-fé como princípio, e o dever de atender mutuamente às expectativas geradas de parte a parte, que devem conduzir ao fiel cumprimento do contrato como meta. Se, por um lado, deu-se um importante passo em direção à melhora do sistema de crédito, buscando reinserir no mercado de consumo parcela importante de pessoas que dele se encontram afastadas, por outro, lançou luzes sobre as dificuldades que teremos para implementar tais transformações. No âmbito do direito empresarial, a insolvência teve nova regulamentação a partir de 2005 e, de lá para cá, seus operadores vêm se dedicando a encontrar soluções para melhor lidar com a crise econômica da empresa buscando, sempre que possível, preservar a sua atividade e, como tal, restabelecer a saúde do mercado no qual se encontra inserida, tudo com o escopo de manutenção dos benefícios sociais que emerge da empresa, quais sejam, criação de empregos, arrecadação de tributos, criação e manutenção de relações comerciais e civis, inserção de bens e serviços para o meio social. Sabemos que a economia do país depende do bom funcionamento das instituições, e que a empresa certamente é um de seus pilares de sustentação. Sendo assim, parece fácil compreender que a ruína de uma ou de várias delas pode impactar negativamente na vida de milhares de pessoas - não apenas dos sócios, mas de todos os stakeholders. Se nos valermos da figura de uma engrenagem, podemos visualizar o que acontece quando uma peça se desalinha ou deixa de funcionar a contento: pouco a pouco as demais vão se deteriorando até que, em algum momento, ela desmonta ou simplesmente para. Assim é a empresa: de nada adianta que a produção seja punjante, se não há mercado para o consumo dos seus produtos e serviços. Não basta simplesmente que a sociedade empresária ande bem, mas é imprescindível que todo o ambiente que a circunda siga em condições equivalentes. De todos os seus stakeholders, chama a atenção neste momento, a posição dos consumidores: de acordo com a FECOMERCIOSP, responsável pela PEIC (Pesquisa de Endividamento e Inadimplência do Consumidor), mais de um milhão de famílias está em situação de inadimplência, apenas na capital do Estado mais rico da  Federação, sendo este o maior número dos últimos doze anos. Do total das famílias, 9% informou não ter condições de honrar seus compromissos atrasados. Os números são expressivos e importantes: significam que parcela muito significativa da população vem vivendo à margem da economia de mercado, porque não tem recursos, seja para pagar suas dívidas, o que traz inúmeros problemas pessoais e sociais - seja para continuar a consumir - atingindo diretamente a saúde financeira do mercado e o ambiente de negócios, além de contribuir para a elevação do  risco Brasil em níveis igualmente espantosos. A lei 14.181/21 percorreu um longo e árduo caminho até a sua aprovação, em julho de 2021: teve início a partir da nomeção de uma comissão de juristas, que redigiu o projeto de lei 3515/15, o qual foi submetido a amplo debate perante a comunidade jurídica, a quem se somaram todos os representantes daqueles que de alguma maneira poderia por ele ser afetados: Febraban, Banco Central, representantes da sociedade civil, das empresas, dos consumidores, Poder Judiciário, Ministério Público, Senacon, entre outros: foram todos ouvidos até que chegasse a um texto básico e de consenso. A aprovação em plena pandemia é o primeiro passo para que passemos a pensar no que fazer com esta massa de consumidores submersa em dívidas (muitas absoltamente impagáveis). Busca-se, com ela, uma mudança de cultura, deixando de lado a ideia de que o inadimplemento das pessoas natuais não é um problema isolado, mas sim uma questão a ser tratada por toda a comunidade, diante de sua repercussão direta e imediata na economia local e do país. Os paradigmas a partir dela são outros: prestigia-se ainda mais a boa fé, a função social do contrato e a iniciativa do devedor que, sponte propria, busca o auxílio do Poder Judiciário (ou dos órgãos do sistema de defesa do consumidor) para renegociar e , de alguma maneira, pagar suas dívidas e poder voltar ao mercado de consumo. Antes desta lei, restava à pessoa natural a incômoda e ineficiente via da insolvência civil: incômoda pela extrema exposição que se lhe impunha; ineficiente, porque incapaz de trazer de volta  tanto a sua reinserção no mercado, quanto o dinheiro do credor. Começamos a engatinhar neste tema. Alguns mecanismos de atuação foram apresentados, seguindo inspiração da legislação francesa, que prestigia o pagamento, sem perdão de dívidas (a não ser que haja consenso entre os contratantes, a lei não cuida de remissão, diferentemente do sistema norte americano que prevê, a partir do cumprimento determinados requisitos, o perdão e o fresh start). Como os franceses, especialmente na forma inicial de sua lei (hoje se aproximam mais dos americanos) tratamos de trazer à negociação conjunta todos os credores para chegar a uma forma de pagamento que, de alguma maneira, possa satisfazê-los. Os envolvidos são livres para negociar como melhor lhes aprouver e, se chegarem a um consenso, o plano de pagamento é homologado e passar a valer como título executivo judicial. Se não houver acordo (que haverá de estabelecer condições de pagamento passíveis e possíveis de cumprimento, resguardando o mínimo existencial), ou se ele não for total, o consumidor pode ajuizar ação em que pedirá ao juíz que, com auxílio de um administrador, elabore tal plano. É verdade que hoje, mais de um ano após o início da vigência da lei, pouco se tem dela na prática. Parece consenso que a  competência para conhecer e julgar destas causas é do juízo cível. Segue-se, assim, a orientação de aproximar o direito do consumidor do direito civil, mas apenas o tempo dirá se esta é a melhor forma de tratar a questão. Não se perca de vista, contudo, que o novo formato proposto pela lei modifica substancialmente tanto a maneira de tratar o processo, quanto de organizar e conduzir as audiências (que terão de um lado o consumidor e, de outro, a coletividade de seus credores). Uma vez instaurado (por iniciativa exclusiva do condumidor) o processo por superendividamento para revisão e integração dos contratos, tal como estabelece a lei, toma uma formato ímpar que, salvo melhor juízo, para que possa atingir seus objetivos, deve reunir todas as ações em curso que envolvam aquela pessoa, assim podendo chegar a uma reorganização da vida financeira e a possibilidades efetivas de pagamento e reinserção social. A temática assume importância na medida de propiciar ao consumidor endividado, pelas mais variadas razões (a causa do superendividamento não é condicionante para a concessão do benefício, podendo assumir algum relevo por ocasião da construção do plano de pagamento e das negiciações em trono dele), uma forma de se reinserir no mercado de consumo como um agente econômico que irá se satisfazer de produtos e serviços necessários à sua sobrevivência (alimentação, vestuário, lazer, etc.), além de buscar uma recuperação de crédito de maneira mais eficiente, ainda que não seja possível o pagamento integral do débito tal como pactuado. Mas, além da relação inter partes, há o efeito de se preservar a manutenção de agentes econômicos que servem o mercado empresarial de maneira direta ou indireta, pois a empresa é voltada à produção e circulação de bens e serviços, razão pela qual necessita de um mercado de consumo lato sensu, para que haja escoamento das riquezas por ele produzidas. Nossa ordem econômica é fundada na livre iniciativa (art. 170, caput, CF), a qual, longe de ser um fim em si mesma, possui o objetivo de assegurar a todos existência digna, conforme ditames da justiça social. Isso sem prejuízo de prestigiar o direito de propriedade (art. 170, II, CF), o qual possui seus limites no atendimento de sua função social. A perseguição do crédito investido, independentemente da forma assumida, é medida relevante para que os investimentos no país possam ser verificados com maior facilidade e fluidez, em benefício do próprio corpo social (proteção ao direito de propriedade). Mas isso é apenas uma face da moeda. A outra é a realidade de concessão de crédito muitas vezes de maneira irresponsável e sem a escorreita análise prévia, além da ausência de instrumentos voltados à readeuqação do passivo dos agentes econômicos. Em razão de tal contexto, muitos buscam a aplicação da Lei 11.101/2005 para a recuperação de suas atividades, tais como associações civis e clubes de futebol. Isso evidencia o fato de que agentes econômicos necessitam de instrumentos jurídicos e administrativos para lidar com sua crise econômico-financeira, a fim de que sua posição seja mantida no mercado e não haja a liquidação e interrupção de relações econômico-jurídicas com o mercado empresarial. O sufocamento de associações civis, consumidores e demais agentes que não se identificam como empresários possui repercussão direta e imediata dentro da esfera das empresas, justamente porque, em larga escala, não haverá pontos de escoamento necessário ao que se produz. A engrenagem, como dito acima, não prescinde de instrumentos voltados à sua reorganização, para que possa continuar operando de maneira eficaz, ampliando a circulação de riquezas e a prosperidade econômica do país. Estamos caminhando para superar o défict legislativo. O tratamento ao consumidor superendividado, para além de sua reinserção imediata em prol do mercado empresarial e de melhoras na recuperação dos créditos a ele concedidos, permitirá uma mudança de cultura na própria concessão de crédito e na interação entre aqueles que produzem e aqueles que adquirem os frutos dessa produção, numa simbiose virtuosa entre os agentes econômicos empresários e consumidores.
quarta-feira, 30 de novembro de 2022

A arbitragem e o Direito das empresas em dificuldade

Introdução Disputas são inerentes à realidade empresarial, que reúne uma miríade de diferentes interesses, naturalmente contrapostos - os dos empresários, dos acionistas, dos investidores, dentre muitos outros1. Estes conflitos de interesses tendem a aumentar significativamente no caso de uma crise econômico-financeira, elevando os custos de transação próprios de uma negociação para superação da crise. Nesta hipótese, a necessidade por uma solução célere e justa, como aquelas proporcionadas pela arbitragem, torna-se ainda mais premente, considerando a função social desempenhada pela empresa e o consequente interesse público em sua preservação. A crise da empresa demanda, assim, solução multidisciplinar2, tendo em vista o alcance de soluções que atendam os diversos interesses envolvidos nos procedimentos de insolvência3. No presente ensaio, enfrentaremos aspectos relacionados à utilização da arbitragem em disputas que envolvam sociedades em recuperação judicial, extrajudicial e falidas, sob o ângulo da capacidade do empresário (individual ou sociedade empresária), notadamente a possibilidade da continuidade dos processos arbitrais já iniciados e a adesão da cláusula de arbitragem por um devedor insolvente. Arbitrabilidade subjetiva e capacidade das partes Como é cediço, o consentimento é a própria essência da arbitragem. Trata-se de instituto que representa uma exceção voluntária à regra constitucional da inafastabilidade da jurisdição estatal (art. 5º, inciso XXXV da Constituição Federal), devendo ser fruto de um acordo de vontades firmado entre as partes que decidem a ele se submeter. Nesse sentido, o professor Carlos Alberto Carmona4 afirma que o consentimento das partes para a submissão a um procedimento arbitral é essencial, uma vez que o efeito severo de afastar a jurisdição do Estado não pode ser deduzido, imaginado, intuído ou estendido5. Há, assim, a análise do que se cunhou doutrinariamente de arbitrabilidade6, desdobrada em arbitrabilidade objetiva e arbitrabilidade subjetiva. A primeira consiste no adequado enquadramento da questão de mérito a ser apreciada como sendo direito patrimonial disponível, ou seja, aquela demanda que verse sobre direitos que possam ser livremente dispostos pelas partes, denominados de direitos disponíveis. Já a segunda consiste no enquadramento das partes ao comando normativo imposto pelo artigo 1º da Lei 9.307/1996, segundo o qual somente pessoas dotadas de capacidade jurídica podem figurar nos polos do procedimento arbitral, sendo, portanto, condição sine qua non para que celebrem convenção de arbitragem. A capacidade jurídica é atributo da pessoa natural ou jurídica, complementando a personalidade jurídica7. Assim, tendo em vista que a existência da pessoa jurídica não é afetada pelo deferimento do processamento da recuperação judicial ou pelo decreto de falência, a sua capacidade jurídica, em que pese poder sofrer modificações, não é igualmente suprimida8 nestes casos, devendo ser analisada de diferentes maneiras, a depender de o devedor se encontrar em recuperação judicial, extrajudicial ou falência e, especificamente, se a convenção de arbitragem foi negociada antes ou durante o processo de insolvência empresarial. Antes do processo de insolvência Conforme mencionamos, o consentimento válido e expresso é o que vincula as partes a uma convenção de arbitragem. Logo, o caminho para identificar os efeitos de um processo de insolvência sobre uma cláusula de arbitragem é examinar se, no momento em que o acordo foi firmado, as partes - e especialmente o devedor insolvente - possuíam plena capacidade legal. Durante o processo de recuperação judicial ou extrajudicial, o devedor é regularmente mantido na condução de suas atividades e na posse de seus bens9, sendo a manutenção da empresa o próprio objetivo do instituto, como se depreende do art. 47 da lei 11.101/200510. Assim, conforme precisa lição doutrinária11, a capacidade legal do devedor não sofre alterações com a deflagração da recuperação judicial ou extrajudicial.                 Nesse cenário, a validade de uma cláusula de arbitragem previamente negociada é indiscutível, sendo indiferente se o procedimento arbitral teve início antes ou depois da recuperação judicial ou extrajudicial. Em ambos os momentos, considera-se válido o consentimento dado pelo devedor plenamente capaz quando da adesão à convenção de arbitragem, restando cumprido o requisito subjetivo (qual seja, a capacidade civil para contratar) imposto pelo art. 1º da Lei de Arbitragem. Ademais, como a arbitragem tem a natureza de processo de conhecimento, a decisão de processamento da recuperação não acarretará a suspensão das arbitragens em curso12, afastando a incidência do art. 6º da lei 11.101/200513. Endossando tal entendimento é que, na qualidade de membro da comissão de juristas que assessorou o Deputado Hugo Leal na reforma da lei 11.101/2005, tive a oportunidade de sugerir proposta legislativa14, que se transformou no §9º do artigo 6º da referida lei15. O novo dispositivo reflete entendimento doutrinário já anteriormente consagrado no enunciado nº 6, da I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, organizada pelo Conselho da Justiça Federal16. Em se tratando de um processo de falência, aplica-se análogo raciocínio. Com a decretação da falência e objetivando-se o melhor aproveitamento dos bens, ativos e recursos produtivos, tangíveis e intangíveis da empresa, o devedor é afastado de suas atividades e administração dos seus bens, sendo representado, no procedimento falimentar, pelo administrador judicial, a quem caberá cumprir com o compromisso arbitral validamente firmado pelo falido, anteriormente à decretação da quebra. Foi este o entendimento adotado no voto-vista da Ministra Nancy Andrighi do Superior Tribunal de Justiça, quando do julgamento do Recurso Especial nº 1.355.831-SP17. Desta forma, ainda que um dos efeitos da decisão de falência seja o afastamento do devedor da administração de seus bens, como determina o art. 103 da lei 11.101/200518, deve-se analisar se, no momento da adesão à convenção da arbitragem, a parte detinha plena capacidade legal. A posterior modificação desse cenário com o decreto falimentar torna-se irrelevante, uma vez que a verificação deve ser restrita ao momento da contratação, quando foi, de fato, concretizada a vontade das partes de se submeter à jurisdição arbitral19, entendimento este que vem sendo reiteradamente adotado pela jurisprudência brasileira20. Por fim, o início ou o prosseguimento de uma arbitragem com a participação de um devedor insolvente não encontra obstáculos na falta de recursos para o custeio do procedimento, não constituindo este fato justificativa hábil para afastar uma convenção de arbitragem válida. Nesse caso, tanto o devedor em recuperação judicial ou extrajudicial, quanto a massa falida (devidamente representada pelo administrador judicial e com a autorização do juízo falimentar), poderão buscar um contrato de financiamento de disputas por terceiro (third party funding), acordo por meio do qual um terceiro aceita arcar com as despesas da arbitragem em troca de um percentual dos valores recebidos no caso de êxito, entendimento este já endossado em sede de doutrina21 e jurisprudência22. O cenário acima explicitado sofre algumas alterações quando o devedor, já submetido a um processo de insolvência empresarial, pretende aderir a uma convenção de arbitragem, conforme explicitaremos a seguir. Durante o processo de insolvência Durante a recuperação judicial ou extrajudicial o devedor é regularmente mantido na condução de suas atividades e na posse de seus bens, mantendo-se inalterada sua capacidade. Como a única restrição legal aplicável à recuperação judicial, em relação a novos contratos, é a alienação ou oneração de bens ou direitos do ativo não circulante do devedor (art. 66 da lei 11.101/2005), não há qualquer obstáculo legal à celebração de contratos contendo compromisso arbitral relativo a direitos patrimoniais disponíveis, matéria inserida no âmbito da autonomia privada das partes.  Para além de ser possível, a celebração de uma convenção de arbitragem por sociedade em recuperação judicial ou extrajudicial trata-se de opção recomendável, em razão da redução dos custos de transação para o procedimento de reestruturação. A questão torna-se mais delicada quando tratamos do devedor submetido a um processo falimentar. Nesse caso, uma das principais consequências da sentença de falência é o afastamento do devedor da administração de seus bens, como determina o art. 103 da lei 11.101/200523. A partir de então, o administrador judicial será responsável não apenas pela administração do patrimônio da massa falida, mas também por representá-la em juízo, como determinam os arts. 22, III, 'n' e 76, parágrafo único, do referido diploma24. Entretanto, a capacidade civil do devedor não é automaticamente extinta quando decretada a falência, tendo em vista que a massa falida exercerá os seus direitos, no que se inclui o direito de ser parte em juízo e de celebrar contratos. Como o falido é afastado da administração da empresa, o administrador judicial passa a ser responsável pela sua representação, devendo assumir a defesa da devedora (massa falida) no processo arbitral25. Por se tratar de entidade dotada de direitos, a massa falida pode aderir a uma cláusula de arbitragem, se o seu representante legal (o administrador judicial) assim optar, reputando-a como a solução adequada para a defesa de seus interesses26. Portanto, ainda que exista uma modificação em sua representação, sua arbitrabilidade subjetiva mantém-se inalterada27. Outrossim, o surgimento do juízo universal falimentar (art. 76 da lei 11.101/2005) e a suspensão das execuções que versam sobre interesses da massa falida (art. 6º da lei 11.101/2005) não impedem o início de um procedimento arbitral. O objetivo das referidas disposições legais é impedir a promoção de medidas executivas individuais por parte dos credores, o que violaria o princípio da igualdade entre credores (par conditio creditorum), um dos pilares do procedimento falimentar. A jurisdição arbitral, por outro lado, tem natureza essencialmente cognitiva, sendo destituída de força executiva - razão pela qual a execução forçada de sentenças arbitrais depende, necessariamente, da adoção de medidas judiciais. Desta forma, a sentença arbitral não terá efeito automático sobre o patrimônio da massa falida, e sua execução dependerá, obrigatoriamente, de decisão do juízo falimentar sobre a inclusão no quadro geral de credores, assegurando a observância do indigitado princípio da par conditio creditorum. Conclusão Os procedimentos de insolvência empresarial não acarretam a supressão da capacidade dos agentes econômicos em crise: na recuperação judicial ou extrajudicial a capacidade do devedor permanece inalterada, havendo restrição, no primeiro caso, apenas sobre a disponibilidade dos bens do seu ativo não circulante. Na falência, a arbitrabilidade subjetiva da pessoa jurídica falida não é suprimida, sofrendo apenas modificação, em virtude da adequada representação da massa falida pelo administrador judicial, demonstrando, deste modo, a compatibilidade entre a arbitragem e os procedimentos de insolvência, desde que respeitadas as particularidades intrínsecas a cada instituto. A reforma introduzida pela lei 14.112/2020, com a inserção do §9º ao artigo 6º da lei 11.101/2005, positivou este entendimento, conferindo um melhor posicionamento do Brasil no cenário jurídico internacional, fortalecendo, assim, o próprio instituto da arbitragem em relação ao direito das empresas em dificuldade. Referências Bibliográficas CARDOSO, Marcelo Carvalho Engholm. Arbitragem e Financiamento por Terceiros. São Paulo: Almedina, 2020. CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um Comentário à Lei 9.307/96. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009. FICHTNER, José Antonio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Teoria Geral da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2019. FIGUEIRA Jr, Joel Dias. Arbitragem. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019. GRION, Renato Stephan; DE PAIVA, Luiz Fernando Valente; SILVA, Guilherme Piccardi de Andrade. A arbitragem no contexto das recuperações judiciais e extrajudiciais e das falências In: MELO, Leonardo de Campos; BENEDUZI, Renato Rezende (coord.). A reforma da arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2016. GUIMARÃES, Márcio Souza. Arbitrabilidade Subjetiva, Capacidade da Parte, Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência. In: Arbitragem, Mediação, Falência e Recuperação. MONTEIRO, André; VERÇOSA, Fabiane; FONSECA, Geraldo (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022. GUIMARÃES, Márcio Souza. Insolvency and Arbitration In: International Arbitration - Law and Practive in Brazil. SESTER, Peter (coord.). Oxford: Oxford University Press, 2020. GUIMARÃES, Márcio Souza. O Aumento do Capital Social como meio de Recuperação Judicial e a Desnecessária Submissão à Assembleia Geral de Acionistas. In: Direito Societário, Mercado de Capitais, Arbitragem e outros temas - Homenagem a Nelson Eizirik. São Paulo: Quartier Latin, 2020, PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 30ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2017. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021. SESTER, Peter Christian. Comentários à lei de arbitragem e à legislação extravagante. São Paulo: Quartier Latin, 2020. TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Arbitragem e Insolvência. In: Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 20. São Paulo: Revista dos Tribunais, Jan-Mar, 2009. TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Arbitragem e insolvência In: WALD, Arnoldo (Org.). Arbitragem e mediação: arbitragem aplicada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014. VASCONCELOS, Ronaldo; CARNAÚBA, César Augusto Martins; HANESAKA, Thais D'Angelo da Silva. Financiamento de terceiros e arbitragem no processo concursal. In: LEE, João Bosco; MANGE, Flavia. Revista Brasileira de Arbitragem. Vol. XVI. São Paulo: Comitê Brasileiro de Arbitragem, 2019. __________ 1 GUIMARÃES, Márcio Souza. O Aumento do Capital Social como meio de Recuperação Judicial e a Desnecessária Submissão à Assembleia Geral de Acionistas. In: Direito Societário, Mercado de Capitais, Arbitragem e outros temas - Homenagem a Nelson Eizirik. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 105. 2 A crise da empresa, nas palavras de Paulo Fernando Campos Salles de Toledo, "exige abordagem multifária. Vista sob apenas um ângulo, os demais ficariam a descoberto. E a solução, sendo incompleta, seria, por isso mesmo, inadequada". TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Arbitragem e Insolvência. In: Revista de Arbitragem e Mediação. Vol. 20. São Paulo: Revista dos Tribunais, Jan-Mar, 2009, p. 25.  3 "Acerca da instauração de jurisdição privada para a resolução de conflitos advindos dos desdobramentos multifacetados da recuperação de empresas, instituída por intermédio da Lei 11.101, de 09.02.2005, algumas reflexões precisam ser feitas. De início, não se pode perder de vista o objeto litigioso que decorre dessas questões que envolvem os administradores da devedora e uma plêiade de credores, especialmente durante o período de dois anos seguintes ao deferimento pelo juiz da recuperação judicial e a aprovação do plano de recuperação, com possibilidades múltiplas (quiçá inimagináveis) de surgimento de conflitos de interesses e a certeza de que o eventual descumprimento por parte da sociedade devedora dará azo à transmudação em falência da sociedade". FIGUEIRA Jr, Joel Dias. Arbitragem. 3ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 153. 4 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um Comentário à Lei 9.307/96. 3ª ed. São Paulo: Atlas, 2009, p. 83. 5 É esta a norma inserta no Art. 1º da Lei de Arbitragem, que faz expressa menção à possibilidade de pessoas capazes utilizarem a arbitragem como método de resolução de disputas relativas a direitos patrimoniais disponíveis: "Art. 1º. As pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis". 6 Sobre o conceito, debruçam-se André Monteiro, José Antonio Fichtner e Sergio Manheimer, com apoio em autores de renome: "João Bosco Lee explica, por um lado, que 'a arbitrabilidade stricto sensu se limita à análise da condição de validade da convenção de arbitragem', sendo certo que 'este conceito é utilizado amplamente pelo direito comparado'. Por outro lado, o autor afirma que a arbitrabilidade lato sensu 'consiste em determinar preliminarmente o campo de aplicação da cláusula compromissória, para, em seguida, examinar se o litígio é susceptível de ser resolvido pela arbitragem', valendo-se dizer que 'esta aplicação é utilizada principalmente pelos tribunais norte-americanos'. Philippe Fouchard, Emmanuel Gaillard e Berthold Goldman lecionam que 'the term arbitrability is sometimes given a broader meaning, covering the existence and validity of the parties' consent to arbitration, as is the case with the terminology used by the United States Supreme Court'. Os autores, porém, entendem que 'that meaning is liable to generate confusion and is not widely used in international practice'. Julian D. M. Lew, Loukas A. Mistelis e Stefan M. Kroll esclarecem que 'in the US the term 'arbitrability' is often used in a wider sense covering the whole issue of the tribunal's jurisdiction'. (.). A classificação realmente importante no que diz respeito à arbitrabilidade é aquela que a divide em subjetiva e objetiva. Referindo-se à arbitrabilidade objetiva e depois à arbitrabilidade subjetiva, Philippe Fouchard, Emmanuel Gaillard e Berthold Goldman ensinam que 'this means, first, that the agreement must relate to subject-matter which is capable of being resolved by arbitration, and, second, that the agreement must have been entered into by parties entitled to submit their disputes to arbitration". FICHTNER, José Antonio; MANNHEIMER, Sergio Nelson; MONTEIRO, André Luís. Teoria Geral da Arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 223-224. 7 Sobre o tema da capacidade civil, é a doutrina de Caio Mário da Silva Pereira: "Aliada à ideia de personalidade, a ordem jurídica reconhece ao indivíduo a capacidade para a aquisição dos direitos e para exercê-los por si mesmo, diretamente, ou por intermédio (pela representação), ou com a assistência de outrem. Personalidade e capacidade completam-se: de nada valeria a personalidade sem a capacidade jurídica que se ajusta assim ao conteúdo da personalidade, na mesma e certa medida em que a utilização do direito integra a ideia de ser alguém titular dele.". PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil. 30ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 2017, p. 221. 8 "O caput do artigo 1º da Lei de Arbitragem estabelece dois pré-requisitos subjetivos com relação às partes de uma arbitragem: trata-se da existência e da capacidade dos sujeitos que integram os polos de um procedimento arbitral. O termo técnico 'pessoa' refere-se tanto ao artigo 1º do Código Civil, que trata das pessoas naturais, quanto aos artigos 40 a 52 do Código Civil, que trazem a definição de pessoa jurídica. (...). Quanto à existência das pessoas jurídicas de direito privado, os artigos 45 e 51 do Código determinam que ela tem início com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro, e termina com o encerramento da liquidação e o cancelamento da inscrição no registro. Vale ressaltar que a decretação da falência e o processamento da recuperação judicial não têm impacto sobre a existência da pessoa jurídica. Segundo o Superior Tribunal de Justiça, 'a decretação da falência, que enseja a dissolução, é o primeiro ato do procedimento e não importa, por si, na extinção da personalidade jurídica da sociedade. A extinção, precedida das fases de liquidação do patrimônio social e da partilha do saldo, dá-se somente ao fim do processo de liquidação, que, todavia, pode ser antes interrompido, se acaso revertidas as razões que ensejaram a dissolução". SESTER, Peter Christian. Comentários à lei de arbitragem e à legislação extravagante. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 96. 9 Em relação à recuperação judicial, o artigo 64 é enfático: "Durante o procedimento de recuperação judicial, o devedor ou seus administradores serão mantidos na condução da atividade empresarial, sob fiscalização do Comitê, se houver, e do administrador judicial, salvo se qualquer deles: (...)". Não há dispositivo legal semelhante para a recuperação extrajudicial, em razão da lógica do instituto: procedimento que visa à homologação do plano de reestruturação apresentado, sem qualquer restrição à gestão da recuperanda. 10 Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica. 11 "Importante notar, como explicado por Felipe Moraes, que a convenção de arbitragem celebrada antes da declaração da recuperação ou falência é negócio jurídico bilateral perfeito, 'com efeitos já realizados por meio de opção pela arbitragem, com o consequente afastamento da jurisdição estatal. Portanto, não há que se falar em necessidade de interpelação do administrador judicial relacionada a contrato que produz efeitos esperados". SESTER, Peter Christian. Comentários à lei de arbitragem e à legislação extravagante. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 517. 12 "De forma análoga às ações de conhecimento, os procedimentos arbitrais não são suspensos pela concessão da recuperação judicial ou pela decretação da falência. A suspensão das ações em face do falido e da recuperanda visaria a assegurar o tratamento equivalente entre os credores e a satisfação de seus créditos nos termos do plano de recuperação judicial ou conforme a ordem de pagamento na falência. Não há qualquer risco de o credor ser satisfeito ou de retirar ativos em virtude do procedimento arbitral. As arbitragens visam a formar o título executivo, de modo a apurar o an debeatur (se é devido) e o quantum debeatur (quanto se é devido). Não há risco de retirada do bem da Massa Falida ou do empresário em recuperação, de modo que os procedimentos arbitrais devem ter prosseguimento normalmente.". SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2021, p. 108. 13 Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência; 14 GUIMARÃES, Márcio Souza. A Arbitragem na Reforma da Lei de Falências e Recuperação Judicial - Lei 14.112/2020. FGV Blog de Arbitragem. Disponível aqui. Acesso em 5 de novembro de 2021. 15 §9º - o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impedindo ou suspendendo a instauração de procedimento arbitral. 16 "o processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impede a instauração do procedimento arbitral, nem o suspende".   17 "A partir de uma leitura sistemática da referida legislação e ainda à luz da teoria do diálogo das fontes, a natureza contratual da convenção de arbitragem, seja ela cláusula compromissória, cheia ou vazia, ou compromisso arbitral, não é suficiente para subordinar sua eficácia ao juízo de conveniência do administrador judicial, afastando-se o art. 117 da Lei de Falências. Isso porque, como já salientado, a convenção de arbitragem é, por si só, suficiente ao afastamento efetivo da jurisdição estatal, consumando, de pronto, renúncia definitiva, ainda que sujeita a condição suspensiva. Portanto, a superveniência da quebra não afasta a exigibilidade e a eficácia da convenção arbitral celebrada validamente pelas partes plenamente capazes no momento de sua contratação". Superior Tribunal de Justiça. 3ª Turma. Recurso Especial nº 1.355.831-SP. Relator: Ministro Sidnei Beneti. Data do Julgamento: 19.03.2013. DJe: 22.04.2013, p. 18-19. 18 Art. 103. Desde a decretação da falência ou do sequestro, o devedor perde o direito de administrar os seus bens ou deles dispor. 19 Sobre o tema, Renato Stephan Grion, Luiz Fernando Valente de Paiva e Guilherme Piccardi de Andrade e Silva enfatizam que: "A convenção arbitral deverá ser considerada válida e eficaz se, no ato da contratação, havia capacidade plena da parte para a celebração de negócios jurídicos, e não no momento em que efetivamente surge o conflito a ser dirimido pela arbitragem. Ora, não fosse assim, estaria a validade da convenção arbitral sujeita, ad aeternum, a condições resolutivas, quais sejam, a eventual falta de capacidade contratual das partes envolvidas e a eventual indisponibilidade de seus respectivos direitos patrimoniais". GRION, Renato Stephan; DE PAIVA, Luiz Fernando Valente; SILVA, Guilherme Piccardi de Andrade. A arbitragem no contexto das recuperações judiciais e extrajudiciais e das falências In: MELO, Leonardo de Campos; BENEDUZI, Renato Rezende (coord.). A reforma da arbitragem. Rio de Janeiro: Forense, 2016, p. 90. 20 Por todos, destacamos trecho do acórdão proferido pelo Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo, em que o Desembargador Relator Ricardo Negrão consignou que "a superveniência da quebra não afasta a exigibilidade e a eficácia da convenção arbitral celebrada validamente pelas partes plenamente capazes no momento de sua contratação". Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. Apelação Cível nº 1004662-51.2019.8.26.0510. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Relator (a): Ricardo Negrão. Foro de Rio Claro - 4ª Vara Cível. Data do Julgamento: 18/03/2020. Data da Publicação: 18/03/2020. A respeito do tema, cite-se  também trecho de acórdão da lavra do Des. Manoel Pereira Calças, em que restou consignado que: "(...) mesmo considerando-se que no processo de falência há interesses da coletividade dos credores do devedor comum, não se entrevê qualquer impedimento ao cumprimento de convenção de arbitragem pactuada anteriormente à decretação da falência, em cláusula prevista no contrato firmado por pessoas jurídicas, regularmente constituídas e presentadas na forma de seus atos constitutivos, com plena capacidade negocial e tendo por objeto direitos patrimoniais disponíveis (...)." Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.  Agravo de Instrumento nº 9044554-23.2007.8.26.0000. Relator (a): Pereira Calças. Órgão Julgador: N/A. Data do Julgamento: 25/06/2008. Data de Registro: 30/09/2008. Em caso diverso, quando do julgamento do Conflito de Competência nº 157.099 pela 2ª seção do Superior Tribunal de Justiça, o Ministro Marco Buzzi proferiu voto, consignando que o processamento da recuperação judicial "não tem o condão de impossibilitar o devido trâmite do processo arbitral e este, portanto, poderá prosseguir, observados seus limites materiais". Superior Tribunal de Justiça. Conflito de Competência nº 157.099/RJ. Relator: Ministro Marco Buzzi. Relatora para Acórdão: Ministra Nancy Andrighi. Data do Julgamento: 10/10/2018. DJe: 30/10/2018.    21 GUIMARÃES, Márcio Souza. Arbitrabilidade Subjetiva, Capacidade da Parte, Recuperação Judicial, Extrajudicial e Falência. In: Arbitragem, Mediação, Falência e Recuperação. MONTEIRO, André; VERÇOSA, Fabiane; FONSECA, Geraldo (coord.). São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2022, p.  113. SESTER, Peter Christian. Comentários à lei de arbitragem e à legislação extravagante. São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 517. Sobre o tema, conferir também: CARDOSO, Marcelo Carvalho Engholm. Arbitragem e Financiamento por Terceiros. São Paulo: Almedina, 2020 e VASCONCELOS, Ronaldo; CARNAÚBA, César Augusto Martins; HANESAKA, Thais D'Angelo da Silva. Financiamento de terceiros e arbitragem no processo concursal. In: LEE, João Bosco; MANGE, Flavia. Revista Brasileira de Arbitragem. Vol. XVI. São Paulo: Comitê Brasileiro de Arbitragem, 2019. 22 Superior Tribunal de Justiça. Recurso Especial nº 1598220/RN. 3ª Turma. Relator: Ministro Paulo de Tarso Sanseverino. Data do Julgamento: 25/06/2019. DJe: 01/07/2019. No caso, a corte adotou o entendimento de que a validade da cláusula de arbitragem não pode ser afastada pela alegação de vulnerabilidade de uma das partes, no que se inclui, logicamente, a vulnerabilidade econômica do devedor insolvente.   23 Art. 103. Desde a decretação da falência ou do sequestro, o devedor perde o direito de administrar os seus bens ou deles dispor. 24 Art. 22, III, 'n' - "representar a massa falida em juízo, contratando, se necessário, advogado, cujos honorários serão previamente ajustados e aprovados pelo Comitê de Credores". Art.76, parágrafo único - "Todas as ações, inclusive as excetuadas no caput deste artigo, terão prosseguimento com o administrador judicial, que deverá ser intimado para representar a massa falida, sob pena de nulidade do processo." 25 GUIMARÃES, Márcio Souza. Insolvency and Arbitration In: International Arbitration - Law and Practive in Brazil. SESTER, Peter (coord.). Oxford: Oxford University Press, 2020, p. 499. 26 No mesmo sentido, Paulo Fernando Campos Salles de Toledo critica posição doutrinária contrária à celebração de convenção de arbitragem na pendência de processo falimentar: "A assertiva é, no entanto, questionável: quem não pode celebrar a convenção é o falido, que perde a administração de seus bens. Mas, pergunta-se, e o administrador judicial, representando a massa, pode? (...) Seria aplicável ao caso, por extensão, a regra segundo a qual o administrador judicial, desde que autorizado judicialmente, pode 'transigir sobre obrigações e direitos da massa falida e conceber abatimento de dívidas' (...). TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de. Arbitragem e insolvência In: WALD, Arnoldo (Org.). Arbitragem e mediação: arbitragem aplicada. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2014, p. 522-523. 27 Aqui cabe o entendimento de que, caracterizando-se a arbitragem como verdadeira jurisdição privada, aplica-se à massa falida a mesma representação que é realizada pelo administrador judicial nos processos jurisdicionais estatais, que se dá igualmente em outros ordenamentos jurídicos, como nos Estados Unidos da América, em que o trustee age como representante da massa falida e é encarregado de administrar seus bens e proteger os direitos dos credores. É o que se depreende da Section 704 do Chapter 7 do U.S Bankruptcy Code. Na Inglaterra a mesma previsão se encontra no Chapter VII do Insolvency Act de 1986 (Inglaterra) e na França no art. L. 811-1 do seu Código Comercial.
terça-feira, 8 de novembro de 2022

Aspectos polêmicos da falência da pessoa física

Estamos diante de um período de crise sem precedentes na história contemporânea. Isso se reflete no número crescente de endividados no país: segundo levantamentos recentes1, são 79,3% de famílias superendividadas no Brasil, e mais de 6 milhões de empresas inadimplentes. Essa triste realidade impõe a adoção de mecanismos legais eficientes para lidar com o problema, pois quanto mais célere for a superação da crise financeira, maior será o giro da economia, o que colabora para a manutenção (ou crescimento) da capacidade contributiva da sociedade e para um PIB sólido. Para as empresas em geral, ainda que tenha seus defeitos, a lei 11.101/05 ("LRF") trouxe esquemas sofisticados para resolver a crise, tanto por meio da recuperação quanto da falência. A recente reforma que lhe foi implementada pela lei 14.112/20, pretendeu revigorar a (até então problemática) falência, minimizando seus estigmas com um sistema mais eficiente para liquidação dos ativos e o reingresso do falido às atividades após razoáveis três anos da decretação da quebra. A partir daí o falido está reabilitado para recomeçar, com o chamado fresh start. Em contraposição a isso, para as pessoas físicas insolventes o Brasil fica muito aquém das expectativas, diante da ausência de leis que, similares à LRF, permitam a célere formação do concurso de credores e a reinserção do endividado na economia e na vida civil, trazendo a chance de um recomeço digno. Para estes endividados pessoas físicas, em regra aplica-se a obsoleta insolvência civil, regulada pelos artigos 748 a 786-A do Código de Processo Civil de 1973. Fato é que a ineficiente insolvência civil não resolve o problema para o devedor nem para os credores. Isso porque, embora a declaração de insolvência acarrete o vencimento antecipado das dívidas com a instauração de um concurso de credores a serem pagos com a alienação dos bens arrecadados, o devedor não se exonera das suas obrigações2 enquanto a dívida integral não for paga. Ou seja, o devedor permanece responsável pelo pagamento das dívidas até que o juiz declare a extinção das obrigações, o que acontecerá após 5 anos contados da data do encerramento do processo de insolvência com o pagamento integral dos credores. Isso faz com que o processo de insolvência civil perdure indefinidamente, causando uma morte civil antecipada ao devedor pessoa física, que não poderá manter contas e bens livres de penhora, ou um trabalho digno com remuneração apropriada, diante da pecha de devedor contumaz. Pois bem. Voltando à LRF, a lei reformada explicitou princípios importantes para nortear a falência, que deve buscar a preservação e otimização da utilização produtiva dos bens; a liquidação célere de empresas inviáveis; a realocação eficiente dos recursos na economia; e, mais importante para este artigo, o fomento ao empreendedorismo, com o retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica (art. 75). Para fazer valer esses princípios, a LRF deu novo ritmo à falência. Em até 60 dias após ter sido nomeado, o administrador judicial deverá apresentar um plano detalhado para venda dos ativos, a ser concretizado em até 180 dias contados da sua arrecadação, sob pena de sua destituição (art. 99, §3º). E, independentemente do pagamento dos credores, as obrigações do falido serão extintas depois de 3 anos da decretação da quebra (art. 158, V). Neste caso, transcorrido o prazo, o falido poderá requerer ao juízo da falência que suas obrigações sejam declaradas extintas (art. 159), e estará livre para recomeçar e exercer novamente qualquer atividade empresarial. Apesar da boa intenção do legislador em agilizar o fresh start do falido, com sua plena reabilitação, o texto legal deixou margem a dúvidas importantes. A principal delas se refere à amplitude da aplicação do tão desejado fresh start. Afinal, quem é o falido a que a lei se refere no art. 158/159? Quem tem direito à reabilitação em 3 anos, nos termos do art. 158, V? É a empresa falida, o empresário falido, ou seu sócio e/ou administrador? A dúvida é pertinente porque afinal, na prática, pouco interesse se vê na exclusiva reabilitação da empresa falida em 3 anos. Talvez marcas notórias pudessem se beneficiar dessa disposição (uma empresa do porte da Varig, por exemplo, que poderia tentar um renascimento no mercado), mas em geral, uma vez falida, o mais lógico e factível seria que os sócios da empresa iniciassem um novo negócio, distante da pecha da falida. Nesse contexto, pouco importaria reabilitar a empresa falida em si. A situação é diferente quando se está diante do empresário individual ou do sócio garantidor da empresa falida. Teriam essas pessoas físicas acesso aos mecanismos da LRF para a falência, com o fresh start, ou estariam elas relegadas à insolvência civil? Não nos esqueçamos que o sócio da devedora costuma ser garantidor e devedor solidário de toda a dívida bancária da empresa, por exigência dos próprios bancos na concessão de empréstimos, além de também ser responsável direto pelas dívidas trabalhistas, ambientais, e outras previstas em legislação esparsa. Em outras palavras: poderia o sócio da empresa falida, em grande parte solidário ao seu endividamento, também se reabilitar junto com a empresa em 3 anos? Ou faria sentido apenas reabilitar a empresa, deixando de lado os sócios, como potenciais empreendedores e agentes econômicos que são? Para resolver essa questão espinhosa, faz-se necessária uma intepretação sistemática das normas vigentes. O artigo 1º da LRF já anuncia que a lei somente se aplica ao empresário e às sociedades empresárias. Para estes, portanto, não existe dúvida: a lei foi desenhada para as empresas, e admite também a falência do empresário individual.  Adentrando na questão do sócio pessoa física da empresa devedora, o artigo 81 dispõe que a falência será estendida aos sócios ilimitadamente responsáveis, que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à sociedade falida. Já o artigo 115 da LRF deixa claro que os credores na falência somente exercerão seus direitos sobre os bens do falido e do sócio ilimitadamente responsável. E o art. 82-A ainda esclarece que é vedada a extensão da falência aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, a menos que haja a desconsideração da personalidade jurídica da empresa, nos casos em que estão presentes os requisitos do artigo 50 do Código Civil (se houver a configuração de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial)3. Ou seja, ao rol de empresas e empresários individuais, não há dúvidas de que a LRF adiciona como possíveis falidos os sócios de responsabilidade ilimitada ou os sócios de responsabilidade limitada ou administradores que tiveram seus bens contaminados em razão da desconsideração da personalidade jurídica da empresa falida4. Essas normas reforçam as regras do Código Civil ("CC") sobre autonomia patrimonial entre as pessoas físicas e jurídicas: o artigo 49-A do CC hoje é expresso no sentido de que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores, sendo que a autonomia patrimonial das pessoas jurídicas é um instrumento lícito de alocação e segregação de riscos, estabelecido pela lei com a finalidade de estimular empreendimentos, para a geração de empregos, tributo, renda e inovação em benefício de todos. Em razão disso, a grande maioria dos doutrinadores é enfática ao entender que os sócios de responsabilidade limitada e administradores não estão sujeitos ao regime da falência (a menos que sejam penalizados pela desconsideração da personalidade jurídica). A exceção é o Dr. Daniel Carnio Costa que entende que, pelo teor do §2º do art. 81 da LRF5, os sócios que "representam ou administram a sociedade limitada (diretores/administradores) são equiparados ao empresário individual para fins dos encargos processuais e restrição profissional" e, portanto, [assim como os sócios ilimitadamente responsáveis] "somente estarão autorizados a exercer novamente a atividade empresarial depois de extintas as suas responsabilidades e de devidamente reabilitados, nos termos da lei".6 Como já adiantando, a controvérsia se justifica pela verdadeira pouca utilidade em se ter um fresh start apenas para as empresas falidas, sem beneficiar os sócios empreendedores em geral, ainda que tenham responsabilidade limitada perante terceiros. E isso é reforçado porque o fresh start incluído no artigo 158 da LRF foi inspirado no instituto do discharge do Bankruptcy Code norte-americano, segundo o qual o devedor pessoa física "honesto, mas azarado"7 tem direito à liberação das suas obrigações, podendo reassumir seu lugar na sociedade como ser econômico produtivo, o que além de beneficiar a economia, está em linha com os princípios maiores da dignidade humana. Como esclarecem Gabriel Saad Kik Buschinelli e Ana Elisa Laquimia de Souza, nos Estados Unidos o direito ao discharge é restrito aos indivíduos/pessoas físicas e aos que agiram de boa-fé, sem a prática de atos fraudulentos8.   Neste contexto, a legislação brasileira peca ao limitar o fresh start às empresas falidas e aos sócios ilimitadamente responsáveis, ou, pior, aos sócios e administradores que foram contaminados em incidente de desconsideração da personalidade jurídica ("IDPJ") pela prática de ilegalidades. Na prática isso significa negar ao instituto os amplos e benéficos efeitos pretendidos pela lei. E mais, como se verá adiante, significa premiar a conduta ilegal de sócios/administradores em detrimento do sócio de boa-fé. Voltando aos sócios de responsabilidade ilimitada, os tipos societários que permitem esse tipo de regime são:  sociedade em nome coletivo, em comandita simples ou por ações, e sociedade em comum. "[A] extensão da falência a esses sócios independe de qualquer demonstração de fraude ou confusão patrimonial"9. Não por outra razão são raríssimos de se ver na vida real, justamente porque não se prestam a limitar e segregar os riscos patrimoniais dos sócios, caso a empresa não tenha ativos suficientes para arcar com a dívida social. Isso naturalmente inibe o empreendedorismo. Curiosamente, a prevalecer o entendimento de que o fresh start não se aplica aos sócios de responsabilidade limitada, esse quadro tende a mudar. Isso porque, como antecipado, o sistema brasileiro de insolvência hoje, apesar de se espelhar no norte-americano, traz a maior das inconsistências ao beneficiar tanto o sócio de responsabilidade ilimitada quanto os sócios e administradores de responsabilidade limitada penalizados pela desconsideração da personalidade jurídica, em detrimento do sócio de responsabilidade limitada que age em boa-fé e em estrito cumprimento da lei. Pois este sócio de boa-fé poderá ter sérios problemas diante do insucesso do negócio. Ao se deparar com a quebra da empresa, e seguindo a interpretação literal da lei sem considerar seus princípios norteadores, somente terá à sua disposição a insolvência civil, caso os credores da empresa iniciem as execuções das suas garantias pessoais. Em contrapartida, a interpretação sistemática das normas leva à conclusão de que o mau acionista ou mal administrador, aquele que praticou atos de abuso da personalidade jurídica que o levou a ser falido em razão de um IDPJ, terá tratamento mais favorável e será reabilitado em 3 anos.  E aí o tema começa a ficar espinhoso, porque começam a proliferar decisões esparsas do judiciário decretando a quebra, com a desconsideração da personalidade jurídica da empresa falida para atingir bens dos sócios e administradores. Nestes casos, todos os bens dos devedores pessoas físicas, assim como os das empresas devedoras serão (em tese) arrecadados e administrados pelo mesmo administrador judicial e vertidos na integralidade para pagamento do concurso de credores.    Algumas dessas decisões parecem ser bastante questionáveis10. Mas seja como for, o que se pretende aqui é demonstrar a inconsistência dos tratamentos dados pelo sistema brasileiro de insolvência aos sócios de responsabilidade limitada que agem nos limites da lei, frente àqueles que agem de forma ilegal, em prejuízo a credores. A conclusão é que a LRF deveria ser alterada a fim de que as disposições sobre o fresh start sejam aprimoradas, atingindo ao fim almejado com o instituto do discharge norte-americano. Enquanto isso não ocorrer, caberá ao judiciário a árdua tarefa de modular as normas e aplicação da LRF de modo a fazer com que os seus princípios sejam atingidos, notadamente o fomento ao empreendedorismo, inclusive por meio da viabilização do retorno célere do empreendedor falido à atividade econômica. Como estratégia de sobrevivência, até que haja uma jurisprudência consolidada a respeito, deixa de ser tão absurda assim a ideia de voltar aos tempos da sociedade em comandita por ações ou em nome coletivo. O Código Civil em princípio não veda a transformação do tipo societário. A única limitação vem no parágrafo único do artigo 1.115 do CC, segundo o qual a transformação não modificará, nem prejudicará os direitos dos credores, sendo que "a falência da sociedade transformada somente produzirá efeitos em relação aos sócios que, no tipo anterior, a eles estariam sujeitos, se o pedirem os titulares de créditos anteriores à transformação, e somente a estes beneficiará.". Ora, a regra acima somente se aplica quando a transformação societária resulta em prejuízo aos credores, conforme decisões reiteradas do judiciário11, o que em tese não ocorre no caso da transformação do tipo societário para permitir a alteração da responsabilidade do sócio da empresa de limitada para ilimitada. Afinal, estará o sócio de responsabilidade agora ilimitada passando a oferecer automaticamente todo seu patrimônio em benefício dos credores, permitindo que se inicie um concurso sobre seus bens mais célere e eficiente. Em troca, poderá o sócio (agora) de responsabilidade ilimitada exercer o direito à tão sonhada reabilitação em 3 anos, contados da quebra, com a decretação da extinção das suas obrigações. Seja como for, fato é que começam a surgir casos de falência da pessoa física, tanto de empresários individuais quanto de sócios que tiveram seu patrimônio contaminado por um IDPJ. Daqui a pouco, será a vez dos (recém tornados) sócios de responsabilidade ilimitada, que hoje são raríssimos. E daí surgem inúmeras indagações que deverão ainda ser analisadas pelo poder judiciário. Todo o patrimônio, ativos e passivos, do empresário individual deverá ser incluído na falência? Ou apenas a parte do patrimônio que foi angariada com a atividade empresarial? É possível fazer essa segregação? Problemática similar já havia sido enfrentada nas recuperações judiciais dos produtores rurais e a LRF hoje deixa claro que somente estarão sujeitos à recuperação judicial os créditos que exclusivamente decorram da atividade rural (art. 49, §6º). Se assim funciona para a RJ do produtor rural, o entendimento poderia ser estendido ao empresário individual na falência? Entendo que uma vez falido o empresário individual, ou o sócio da empresa devedora, todo seu patrimônio e todas as suas dívidas deverão entrar na falência, inclusive dos seus credores pessoais, por absoluta impossibilidade prática de segregação entre um e outro. Deverão, claro, ser protegidos o bem de família e o mínimo necessário para garantir uma existência digna, na esteira do que dispõe o CPC sobre impenhorabilidade de bens e a nova legislação consumerista. E como será a atividade do administrador judicial na falência da pessoa física? Caberá a ele administrar todos os seus bens e passivos, tais como o pagamento da escola dos filhos do devedor com o produto da arrecadação dos bens? E o fresh start, nesse caso, abarcará a extinção de todas as dívidas do devedor, incluindo fiscal? Penso inicialmente que o administrador judicial deverá exercer funções parecidas com a do administrador na insolvência civil (artigo 766 do CPC/73), e que todas as dívidas devem ser abrangidas pela ampla extinção das obrigações previstas no artigo 158 da LRF. Quanto às dívidas fiscais, uma dificuldade extra se impõe. O art. 19112 do Código Tributário Nacional exige a comprovação da quitação dos débitos tributários para extinção das obrigações do falido. Mais uma alteração legislativa deveria ocorrer aqui, de modo a fazer valer em sua plenitude o discharge e fresh start do devedor. De toda forma, essa regra não se justifica, considerando que os créditos fiscais estão incluídos na falência, e são sujeitos ao concurso de credores. Mais uma vez, caberá ao Judiciário a árdua tarefa de resolver definitivamente esses problemas. Enquanto isso, caberá aos julgadores aplicar a lei da forma que melhor se amolde aos seus princípios norteadores, sem penalizar o mau devedor em detrimento dos devedores "honestos, mas azarados". _____________  1 https://www.cnnbrasil.com.br/business/endividamento-atinge-80-das-familias-mais-pobres-em-setembro-um-recorde-diz-cnc/ https://www.fecomercio.com.br/pesquisas/indice/peic https://www.infomoney.com.br/minhas-financas/brasil-atinge-recordes-de-793-de-familias-endividadas-e-30-de-inadimplentes/ https://www.serasa.com.br/limpa-nome-online/blog/mapa-da-inadimplencia-e-renogociacao-de-dividas-no-brasil/ https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2022/10/26/empresas-inadimplentes-em-setembro.htm https://www.serasaexperian.com.br/sala-de-imprensa/analise-de-dados/junho-registra-mais-de-62-milhoes-de-empresas-inadimplentes-no-brasil-segundo-serasa-experian/ 2 Artigos 761, II, e 766 do CPC/73 3 Some-se a estes o artigo 102, pelo qual o falido fica inabilitado para exercer qualquer atividade empresarial até a sentença que extingue suas obrigações e, neste caso, findo o período de inabilitação, poderá requerer ao juízo da falência que proceda à respectiva anotação em seu registro (dando a entender, portanto, que se está diante dos registros na junta comercial). 4 Quando a lei se refere à figura dos sócios e administradores da empresa, o faz de modo explícito. O artigo 104 é claro ao impor aos representantes legais do falido uma série de deveres (assinatura do termo, comparecer às audiências etc). O descumprimento desses deveres (frise-se: pelos representantes legais do falido) poderá enquadrar o falido em crime de desobediência. Embora a terminologia seja, num primeiro momento, confusa, o art. 179 esclarece que na falência os seus sócios, diretores, gerentes, administradores e conselheiros, de fato ou de direito, bem como o administrador judicial, equiparam-se ao devedor ou falido para todos os efeitos penais decorrentes da Lei, na medida de sua culpabilidade. 5 §2º do artigo 81: As sociedades falidas serão representadas na falência por seus administradores ou liquidantes, os quais terão os mesmos direitos e, sob as mesmas penas, ficarão sujeitos às obrigações que cabem ao falido. 6 COSTA, Daniel Carnio. O fresh start no novo sistema de insolvência empresarial brasileiro. In Revista do Advogado, nº 150, junho 2001, ed. ASSP, p. 10. 7 Vide comentários ao art. 158 elaborados por Gabriel Saad Buschinelli e Ana Elisa Laquimia de Souza. In TOLEDO. Paulo Fernando Campos Salles de. Comentários à Lei de Recuperação de Empresas, ed. IBR e Revista dos Tribunais, 2021, p. 805, 806 e 807. 8 Op. Cit. p. 807. 9 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. In Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Ed. Saraiva, 2ª ed., 2021, p. 413 10 Por exemplo, em caso de recuperação judicial que tramita em Jundiaí - SP, em que houve incidente de desconsideração de personalidade jurídica ("IDPJ") para incluir no polo ativo da recuperação os sócios pessoas físicas das empresas recuperandas e outras empresas, o juiz de primeira instância decretou a quebra não só das empresas do grupo, como das pessoas físicas incluídas. E isso porque algumas das partes não apresentaram os documentos necessários ao processamento do pedido de RJ. Em tal decisão, o juiz deixou clara a necessária consolidação substancial existente entre as partes na recuperação judicial, em razão do IDPJ, o que ocasionou a quebra de todos indistintamente, diante da ausência de emenda à inicial para juntada de parte da documentação faltante ao processamento da RJ. Vale notar que a consolidação substancial dos recuperandos, pelo teor que se extrai da sentença, sequer foi justificada mediante a demonstração dos requisitos do art. 69-J: Art. 69-J. O juiz poderá, de forma excepcional, independentemente da realização de assembleia geral, autorizar a consolidação substancial de ativos e passivos dos devedores integrantes do mesmo grupo econômico que estejam em recuperação judicial sob consolidação processual, apenas quando constatar a interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos, cumulativamente com a ocorrência de, no mínimo, 2 (duas) das seguintes hipóteses: I - existência de garantias cruzadas; II - relação de controle ou de dependência; III - identidade total ou parcial do quadro societário; e IV  - atuação conjunta no mercado entre os postulantes. (Autos nº 1004934-08.2015.8.26.0309, em trâmite perante a 3ª VC de Jundiaí) 11 Recuperação judicial. Decisão que julgou improcedente impugnação de crédito apresentada por banco credor. Agravo de instrumento. Empresário individual. Dada a unicidade patrimonial entre a pessoa natural e a do comerciante individual, cabe a suspensão também das garantias eventualmente prestadas por aquele. Aplica-se, então, excepcionalmente, a regra do art. 6º da Lei 11.101/2005 ("A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial suspende o curso da prescrição e de todas as ações e execuções em face do devedor, inclusive aquelas dos credores particulares do sócio solidário."), e os processos são suspensos. Solução que, todavia, não pode ser aplicada em havendo alteração de tipo societário em prejuízo de credores. Art. 1.115 do Código Civil ("A transformação não modificará nem prejudicará, em qualquer caso, os direitos dos credores."). Norma que reafirma o princípio de segurança jurídica, pelo qual deve zelar o ordenamento jurídico. Norma de caráter reiterativo do que a respeito dispõe em geral o capítulo acerca da responsabilidade na teoria das obrigações, e, em especial, sobre a repressão à fraude contra credores. Os credores anteriores não podem ser prejudicados pelo negócio jurídico da transformação. Doutrina de MODESTO CARVALHOSA, MANOEL DE QUEIROZ PEREIRA CALÇAS e MARCELO FORTES BARBOSA FILHO. (...) Agravo de instrumento provido, com observação. (TJSP;  Agravo de Instrumento 2286126-40.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Campinas - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 18/03/2021; Data de Registro: 18/03/2021). No mesmo sentido: TJSP;  Agravo de Instrumento 2168436-87.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Campinas - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 29/09/2020; Data de Registro: 29/09/2020; TJSP,  Agravo de Instrumento 2178350-78.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Campinas - 3ª. Vara Cível; Data do Julgamento: 29/09/2020; Data de Registro: 29/09/2020. 12 Art. 191. A extinção das obrigações do falido requer prova de quitação de todos os tributos.  _____________  SCALZILLI, João Pedro; SPINELLI, Luis Felipe; TELLECHEA, Rodrigo. Recuperação de empresas e falência: teoria e prática na Lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2021 SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à Lei de recuperação de empresas e falência. São Paulo: Saraiva, 2018. COSTA, Daniel Carnio. O fresh start no novo sistema de insolvência empresarial brasileiro. Recuperação de empresas e falências - Alterações da Lei nº 14.112/2020 In Revista do Advogado, nº 150, junho 2001, ed. ASSP, p. 10 TOLEDO, Paulo Fernando Campos Salles de (Coord.). Comentários à Lei de Recuperação de Empresas. São Paulo: Revista dos Tribunais, Thomson Reuters, 2021. 1200 p SCALZILLI, João Pedro; BERNIER, Joice Ruiz. O administrador judicial e a reforma da lei 11.101/2005. São Paulo: Almedina, 2022
Há muito em comum entre os problemas econômicos enfrentados pelo Brasil e pela Argentina, que afligem também muitas outras economias mundo afora, coincidências que, além das boas relações internacionais de integração econômica e de vizinhança que se possam estimar, leva-nos a voltar a atenção à forma de tratamento dos problemas da empresa em crise pelo sistema de reestruturação argentino e o papel reservado ao Judiciário naquele cenário. Na recente história do Direito Concursal argentino, as duas anteriores leis que regeram a matéria, a lei 19.551, de 1972, e a lei 24.522, de 1995, coincidiram no aspecto de permitir ao devedor solução de caráter preventivo para evitar a liquidação, dispondo ser necessária apresentação de proposta que atendesse ao pagamento de uma porcentagem mínima dos créditos para ser admitida judicialmente. Naquele contexto, para não ser abusiva, deveria ser considerado o pagamento superior a 40% dos valores devidos; do contrário as consequências implicavam a quebra do devedor1. Muitas eram as diferenças, contudo, entre os dois diplomas referidos, eis que a Lei 24.522 alterou significativamente a matéria, com novo conjunto normativo sancionado no ano de 1995, que abandonou a ideia de concurso preventivo como mera ferramenta de refinanciamento de passivos em favor de visão mais ampla, que contemplava a reestruturação integral e definitiva das obrigações. Por outras palavras, deixou-se o concurso preventivo como instituição vinculada à moratória, para encampar o ideal de reorganização ou reestruturação empresarial, eliminando, inclusive, o "acuerdo resolutorio", possível na lei anterior durante a quebra2. A partir daquela reforma, não mais se exigia proposta única para todos os credores; possibilitou-se o oferecimento de propostas alternativas; adotou-se o instituto da novação, fazendo nascer uma nova obrigação, além de incentivar-se a participação dos credores por meio dos comitês provisório e definitivo, com os quais podiam obter informações e exercer "certo tipo de controle"3. Como aponta a doutrina, talvez a inovação mais significativa da Lei 24.522 foi a referente à matéria de homologação do acordo, contida no artigo 52, que dispunha que, não deduzidas impugnações à proposta ou rechaçadas as interpostas, ao juiz cabe homologar o acordo. A alteração foi substancial, porque o regime da lei anterior4 "outorgava ao juiz un conjunto de faculdades que excedían el control de legalidade del acuerdo, para introducirse en aspectos vinculados al mérito u oportunidade del mismo"5, como uma tendência já consagrada no Direito argentino6. A crise econômica vivenciada pela Argentina em 2002, representada por uma recessão generalizada da economia no contexto de emergência produtiva e creditícia, trouxe consequências ao Direito Concursal, com modificações substanciais à Ley de Quiebras, que chegou inclusive a suspender por até 180 dias os pedidos de falências, dentre outras medidas drásticas. Após três meses, o Congresso Nacional "voltou atrás em seus passos", regressando ao regime das Lei n.24.522, com reformas parciais em seu texto7. A matéria passou a ser regida conforme a alteração que se deu pela Lei 25.589 de 2002 à chamada Ley de Consursos y Quiebras (LCQ), cuja exposição de motivos e os institutos que dela emergem nos dão conta de que o objetivo a ser perseguido é o da continuidade econômica e não a liquidação da empresa8. E esse intento persistiu até mesmo durante a Pandemia iniciada em 2020, que proporcionou aguda crise no sistema econômico da Argentina, e de todo o mundo de uma forma geral, que foi enfrentado, contudo, apenas com "ferramentas de emergência"9. Na atualidade, o sistema concursal argentino, além da quiebra, que se destina à liquidação da empresa, conta com três processos concursais que objetivam a reestruturação do devedor, que são o concurso preventivo, o acuerdo preventivo extrajudicial e o salvatage de entidades deportivas10. Pelo sistema atual, houve sensível redução dos poderes do juiz em matéria de homologação do plano, restrita ao controle de legalidade sobre os termos da decisão da assembleia em cotejo com as disposições do sistema jurídico em seu conjunto, mas que não deve voltar-se aos aspectos econômicos do acordo11. Conforme aponta a doutrina, foram evitadas discussões sobre questões subjetivas, como "interesse geral, a proteção do crédito, as possibilidades de cumprimento ou a ponderação da conduta do devedor a respeito das causas que levaram à cessação de pagamentos e quanto resulta merecedor de uma solução preventiva"12. Não obstante, a lei 25.589, alterando o artigo 52 da lei 24.522, permite ao juiz homologar a proposta mesmo quando o devedor não tenha obtido as maiorias necessárias, se pelo menos uma das categorias quirografárias tenha aprovado o acordo; se houver a conformidade de pelo menos três quartos do capital quirografário; se não houver tratamento discriminatório dos credores dissidentes e se a solução proposta não importar recebimento menor do que em caso de quebra. Não há mais o limite de pagamento de porcentagem mínima dos créditos, antes expresso na lei; mas, a doutrina aponta haver necessidade de representar a proposta solução melhor do que a que se teria com a quebra do devedor13   e que a apreciação econômica da oferta cabe aos credores, ou seja, não é algo que seja suscetível de controle judicial14.   Em contrapartida, a Lei n.25.589 incorporou previsão expressa no sentido de proibir a homologação de acordos abusivos ou em fraude à lei15, dispondo a lei que a proposta que obteve sucesso na aprovação pelas maiorias em assembleia deve ser reconhecida pelo juiz, que deixará de homologar o acordo, entretanto, se representar hipótese de abuso do direito ou fraude a lei (art.52 da LCQ)16. E a jurisprudência, que antes incorporava o papel de análise sobre questões econômicas17, adaptou-se ao modelo instituído, deixando aos credores a deliberação em relação a esses temas18, ponderando, quando da aferição de eventual abuso do direito da proposta do devedor ou da recusa do credor, a necessária conciliação entre os objetivos da preservação da empresa e o da tutela do crédito19, evitando a fraude e outras soluções que contrariem a boa-fé20. Certamente, não há no sistema argentino uma fórmula concordatária única em que se moldura a solução que deve ser adjudicada pelo juiz, existe, antes, possibilidades abertas21, reconhecendo ao controle judicial o conhecimento sobre a difícil situação da empresa em crise22 e os inegáveis impactos causados aos credores, à economia e à sociedade de forma difusa23, para abordagem de questões de direito e a abstenção quanto às questões econômicas, eis que lá, como aqui, o sistema de reorganização é baseado na realidade de mercado e no consenso a que podem chegar o devedor e os credores da empresa em crise. __________ 1 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. p.32 2 Cf. RICHARD, Efraín Hugo. "Acuerdos preventivos abusivos o en fraude a la ley". p.1. (disponível aqui, acesso em 16/01/2017) 3 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. pp.132-137. 4 Art. 61 da Ley 19.551. 5 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. p.156. 6 Note-se que a ley 11.719, além de relacionar as hipóteses em que os credores inconformados com a aprovação majoritária do acordo no art.38, já dispunha que o convenio não deveria ser homologado quando contrário "al intrerés de la generalidad de los acreedores" (art.40). Se, por um lado, o juiz poderia deixar de homologar acordo aprovado, por outro, não tinha a liberdade de impor acordo que não houvesse sido aceito pela maioria, pois, como aponta a doutrina, "el juez convertiría su decisión en creadora de derechos, lo que repugna a la esencia y naturaliza de la función judicial" (Cf. MARTINEZ, Francisco Garcia. El concordato y la quiebra en el Derecho argentino y comparado. T.1. 2ª edição. Buenos Aires: Victor P. de Zavalia Editor. 1953. p.202). 7 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. pp.85-99. 8 Cf. TROPEANO, Darío. "Esbozo sobre el abuso em materia concursal", in Contribuiciones para el estúdio del Derecho Concursal: Homenage al Professor Dr. Ariel Á. Dasso. 1ª edição. Buenos Aires: Ad-hoc. 2005. p.657. 9 Conforme aponta a doutrina argentina: "Es claro que, en la actualidad y aún en épocas de una aguda crisis recesiva potenciada por la pandemia mundial provocada por el SARS-CoV-2, el parlamento no intentó una reforma del estamento concursal a través de herramientas concursales "de emergencia" como las empleadas en otras crisis vernáculas (años 2001/2002) a través de la sanción de las leyes 25.561, 25.563 y 25.589 (Cf. ALONSO, Ana C. y CULLARI, Carlos. PROPUESTA DE SANEAMIENTO ACTIVO PARA LA NORMATIVA CONCURSAL, in Derecho concursal: perspectivas actuales. Coord. Darío J. Graziabile. - 1a ed. - Ciudad Autónoma de Buenos Aires: DyD, 2021, p. 54). 10 Cf. Gerbaudo, Germán E. Pensar el derecho concursal frente a la pandemia por COVID-19, p.4. Disponível em: http://cdi.mecon.gov.ar/bases/jurid/19402.pdf. Último acesso em 28.10.2022. 11 No dizer da doutrina:  La protección del crédito de los acreedores se ha visto reflejada en 1995 con la supresión del control de mérito del acuerdo preventivo que poseía el juez con arreglo a lo dispuesto por el art. 61 de la ley 19.551. De esta manera se reconoce que son los acreedores los únicos jueces de la conveniencia del acuerdo preventivo (Cf. Germán E. Gerbaudo. "Sistema y Filosofía de la ley concursal argentina. El derecho concursal entre la tutela del crédito y la protección del deudor", in Diario Comercial Nro. 294 - 24.02.2021. 12 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. p.157 - Tradução nossa. 13 Consoante a doutrina: "... la comprobación de que la concreta propuesta aprobada es la mejor que puede formular la concursada, esto es, que el concurso no implicará un indebido enriquecimiento de la deudora en perjuicio de los acreedores, en lugar de un sacrificio compartido, y que es imposible mejorar la propuesta presentada"...." corresponde señalar que todas las pautas recién referidas deben ser tenidas en cuenta por el juez concursal y valoradas, no mediante una fórmula matemática, sino en función de las circunstancias de cada caso y atendiendo a la prioridad que corresponde asignar a los diversos valores en juego (acreedores, deudor, empresa, trabajadores, vulnerables, Fisco, Estado, etc.) en el marco del "derecho concursal pós-moderno" (Cf. Eduardo M. FAVIER DUBOIS. LA SEGUNDA QUIEBRA DE "CORREO ARGENTINO". ANTECEDENTES. CUESTIONES JURÍDICAS Y ENSEÑANZAS, p.12. Disponível aqui. Última consulta: 12.10.2022). 14 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. p.35. Consoante aponta o autor, também no Direito argentino a homologação da proposta implica em novação das obrigações e, até mesmo em caso de quebra, as obrigações a serem verificadas são aquelas nascidas após o acordo homologagado e não as obrigações originais (pp.50-51). 15 Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. Acuerdos preventivos abusivos o em fraude a la ley. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni. 2009. pp.73-74. 16 Conforme sustenta Darío Tropeano, com base no direito argentino, "abuso no es oferecer poco o mucho, porque ya dijimos se trata de la búsqueda de una finalidad continuativa. Abuso podia ser una espera sine die cuando efetivamente los conformantes esperan cobrar el percentual oferecido en un plazo que creen previamente estabelecido; abuso es no permitir representantes de acreedores en el directorio de la nueva sociedad capitalizada con acreencias concursales, o la imposicón de propuestas residuales a los no conformantes y tardios, lo que implicará discriminación, o condicionar las fechas de pago de las cuotas concordatarias en días vista de dificultosa determinación; abuso es entregar bienes aparentando un estado o condición que ellos no tienen, bonos u obligaciones negociabiles con condiciones que dificultan el ejercicio de posteriores derechos, o someter a los tardios y revisionistas a una forma de pago más gravosa que a los tempestivos, categorizados". Por outro lado, aponta o autor que o percentual que levará à quitação e o tempo de espera por mais sacrificantes que possam parecer, representam a vontade das maiorias e poderão ser livremente apreciadas pelos credores, o que não deve retirar a validade do acordo (Cf. TROPEANO, Darío. "Esbozo sobre el abuso em materia concursal", in Contribuiciones para el estúdio del Derecho Concursal: Homenage al Professor Dr. Ariel Á. Dasso. 1ª edição. Buenos Aires: Ad-hoc. 2005. p.658). 17 Nesse sentido: "La propuesta aceptada por los acreedores, que implica una quita nominal del 60% del capital adeudado y una espera de más 15 años para el cobro de las acreencias, no resulta razonable. Importa un ejercicio abusivo por parte del deudor y de los acreedores que lo votaron, que desnaturaliza el instituto del concurso preventivo al no satisfacer la exigencia mínima de integridad patrimonial establecida en el art. 43 de la ley 24.522; toda vez que, además de haberse pesificado los créditos, se ha previsto el pago de intereses compensatorios a una tasa mínima (libor), ante una nueva realidad inflacionaria, al derogarse la ley de convertibilidad, que si bien escasa y controlada actualmente, ha de influenciar sobre las obligaciones dinerarias reclamadas, que en el plazo de pago otorgado significa que la quita resulta claramente superior a la programada". (Suprema Corte de Justicia -Província de Buenos Aires - CC0000 DO 80357 RSD-183-4 S 11/05/2004 Juez PORTIS (MA) Carátula: Cosulich, Julio Gabriel s/ Pequeño Concurso s/ Incidente art. 250 del CPCC Magistrados Votantes: Portis - Gómez Ilari - Eyherabide. Disponível aqui. Última consulta em 12.02.2022). 18 Nesse sentido: "La reglamentación contenida en el art. 45 de la ley 24522 toma en cuenta la libertad del acreedor o del deudor para decidir, con amplias facultades, en torno a la propuesta del concordato, lo que incluye las prerrogativas de los distintos interesados para negociar, sin restricciones, en orden a la satisfacción de los distintos intereses implicados en el concurso preventivo. De allí que corresponda excluir del cómputo de mayorías a aquellos organismos fiscales -en el caso, la AFIP-DGI- cuyos funcionarios se encuentran constreñidos en sus facultades de negociación por rígidas resoluciones que determinan específicamente las condiciones en que se prestará el acuerdo a la propuesta del deudor" (Suprema Corte de Justicia -Província de Buenos Aires - CC0002 AZ 52754 RSD-170-8 S 02/12/2008 Juez PERALTA REYES (SD). Carátula: Ronicevi SECPA s/Concurso Preventivo. Magistrados Votantes: Peralta Reyes-De Benedictis-Galdós. Disponível aqui. Última consulta em 12.02.2022) 19 Nesse sentido: "La referencia a la ciencia económica efectuada por la cámara para definir el valor real y actual de lo ofrecido, no constituye un recurso argumental dogmático, en el análisis del abuso del derecho relacionado con la admisibilidad de una propuesta de acuerdo preventivo, el juez debe apreciar objetivamente si el deudor, en el ejercicio de su derecho, ha contrariado la finalidad económico social del mismo que, en la especie, no está solamente dada por la conservación de la empresa como fuente de producción y trabajo, sino que también está definida por el logro de una finalidad satisfactiva del derecho de los acreedores, la cual naturalmente resulta negada cuando la pérdida que se les impone a ellos resulta claramente excessiva".  (Celulosa Campana SA (TF 29047-I), 03/03/2015. Fallos: 330:834 - Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina. Disponível aqui. Última consulta em 12.10.2022). 20 Nesse sentido: "En el análisis del abuso del derecho relacionado con la admisibilidad de una propuesta de acuerdo preventivo, el juez debe apreciar objetivamente si el deudor, en el ejercicio de su derecho, ha contrariado la finalidad económico-social de aquél, que está dada no sólo por la conservación de la empresa como fuente de producción y trabajo sino que también está definida por el logro de una finalidad satisfactiva del derecho de los acreedores, no pudiendo prescindirse de las situaciones jurídicas abusivas creadas por el entrelazamiento de un cúmulo de derechos guiados por una estrategia contraria a la buena fe, las buenas costumbres o los fines que la ley tuvo en miras al reconocerlos". (Corte Suprema de Justicia de la Nación Argentina - Sociedad Comercial del Plata S.A. y otros, 620/2006-S-42-RHE 20/10/2009. Disponível aqui. Última consulta em 12.10.2022). 21 Nesse sentido: "Si bien no puede establecerse en una fórmula concordataria única y taxativa en qué puede consistir la propuesta de acuerdo preventivo, en tanto las que pueden hacerse y aceptarse resultan infinitas, pudiendo acogerse cualquier arreglo entre el deudor y los acreedores que permita solucionar las expectativas de quiebra siempre que se respeten los principios que establece la legislación concursal, no resulta admisible la condonación total de las deudas, pues ello importa un verdadero ejercicio abusivo de los derechos por parte del deudor (art. 1071 del CC) desnaturalizando el instituto del concurso preventivo y encuadrable en la noción de objeto ilícito de la regla moral ínsita en el art. 953 del citado código". (Suprema Corte de Justicia -Província de Buenos Aires - CC0100 SN 5984 RSD-243-3 S 28/08/2003 Juez RIVERO DE KNEZOVICH (SD. Disponível aqui. Última consulta em 12.10.2022). Carátula: Negri Roberto Angel s/Concurso preventivo. Observaciones: (Trib.Orig. JC 0503). Magistrados Votantes: Rivero de Knezovich-Porthé-Telechea. Disponível aqui. Última consulta em 12.02.2022). 22 Conforme aponta Vítolo: "No es una novedad -en mi pensamiento- que las empresas en crisis, dentro de un marco de procesos de concurso preventivo, o avocadas a una quiebra, están como en el limbo. Desde el punto de vista económico y financiero, no se sabe realmente a quién pertenecen, si a su propietario actual o a sus acreedores" (Cf. VÍTOLO, Daniel Roque. La reforma de la ley de quiebras en la pospandemia y la necesidad de sancionar un código de bancarrotas, a 25 años de vigencia de la ley 24522. Disponível aqui. Última consulta: 12.02.2022).   23 Conforme precisamente tem apontado a jurisprudência: "Así, si se rechazara la viabilidad del concurso preventivo y se declarara la quiebra, se generaría un daño injustificado no solo a los deudores  y  a  los  acreedores  en  los  términos vistos,   sino   también   a  los  titulares  de  aquellos  otros intereses   que  convergen   en  torno a la empresa. Estamos ante una deudora que ha logrado continuar con su actividad pese a sus dificultades y que hoy   da   empleo   a   más   de   cuarenta personas.  En un tiempo tan difícil como el que atraviesa no solo nuestro país, sino   también el  mundo,  el  juez  debe  ser especialmente   prudente  al  tomar  decisiones  como  esta,  que podrían  generar  injustificadamente   la   destrucción  de  esos valores, en cuya preservación hay interés público".(Cámara Nacional de Apelaciones en lo Comercial. Machin-Villanueva. 24995/18REPLEN SRL S/PREVENTIVO FALÊNCIA. 5/06/22. Disponível aqui. Última consulta em 12.02.2022).
Na coluna do dia 30 de agosto de 2022, intitulada A novela do Fisco na Recuperação judicial: cenas do próximo capítulo, Daniel Carnio Costa e Liliane Midori Yshiba Michels apresentaram preciso relato da discussão envolvendo o processo de recuperação e a dívida tributária, seja sob o aspecto jurisprudencial, seja sob o aspecto legislativo. Para os autores, o próximo capítulo será protagonizado pelo Superior Tribunal de Justiça, que, recentemente, por meio de decisão monocrática, voltou à cena, estabelecendo a divergência, ainda que momentânea, entre a Justiça Ordinária (TJSP) e a Corte Superior. Paulo Penalva, na coluna do dia 13/09/2022, também discorreu sobre o assunto, e o fez sob a ótica do artigo 57. Após afirmar que a possibilidade de equacionamento do passivo tributário, por meio de parcelamentos, não tem influência na interpretação do artigo 57, concluiu, com inteligência, que o equacionamento do passivo tributário é condição econômica e não condição jurídica para a superação da crise do empresário. Em razão da inegável importância, volto ao assunto nesta coluna. Recordo-me que em janeiro de 2006 (vejam que a novela é antiga) atuei no caso Parmalat. Ainda estava no Ministério Público de primeiro grau e, após a aprovação do plano de recuperação judicial pela assembleia de credores, a Fazenda Pública Estadual peticionou pedindo a apresentação das certidões previstas no artigo 57 da Lei 11.101/05. A manifestação1 da Promotoria de Justiça foi no sentido da inconstitucionalidade do artigo 57. A decisão de lavra do Magistrado Alexandre Lazzarini dispensou a apresentação das certidões negativas de tributo, e o fez por mais de um fundamento2. A inconstitucionalidade defendida pela Promotoria de Justiça jamais foi acolhida; nem discutida, a bem da verdade. Eu continuo convencido da inconstitucionalidade da norma, que é uma sanção política. Porém, o assunto desta coluna é outro, que parte da premissa de que a lei é constitucional. Com a reforma da Lei 11.101/05, em 2020, foram introduzidas modificações em prol do Fisco. Contudo, como bem explicaram Daniel Carnio e Liliane Midori, "A reforma promovida pela Lei n. 14.112/2020 não alterou a opção legislativa em relação à exclusão dos créditos tributários do processo de recuperação judicial". Essa é a questão essencial, e, por essa razão, o problema por mim suscitado em janeiro de 2006 sobrevive e a ele retorno nesta coluna, ainda que muito brevemente, e por outra ótica. Sem falar de inconstitucionalidade, pretendo usar, como pano de fundo, a derrotabilidade, tema da teoria do direito. Pois bem. Recentemente, por ocasião do julgamento sobre a possibilidade de aplicação de equidade na fixação de honorários advocatícios de sucumbência (RESP 1.664.077), o fundamento do ilustrado voto vencido, de lavra da Eminente Ministra Nancy Andrighi, foi a derrotabilidade. Clique aqui e confira a coluna na íntegra. __________ 1 O parecer foi publicado no livro Jurisprudência da nova lei de recuperação de empresas e falências, de Manoel Justino Bezerra Filho. São Paulo, RT, 2006, p. 132-143. 2 A decisão foi publicada no livro referido na nota anterior, p. 152-155.
Introdução A lei 14.112/2020 introduziu relevantes alterações no sistema recuperacional contemplando a relação jurídico-tributária entre o devedor em recuperação judicial e o fisco. Destacam-se alterações bem-vindas, como aquelas que racionalizam a tributação do lucro sobre os ganhos obtidos com a redução das dívidas na aprovação do plano de recuperação judicial e as possibilidades conferidas ao devedor em recuperação judicial para o equacionamento do passivo tributário. Além disso foi adotado meio de cooperação já previsto no Código de Processo Civil de 2015 ("CPC/2015") para regular a prática de atos de constrição de modo a viabilizar o prosseguimento das execuções fiscais com a prática de atos de constrição sobre bens do devedor, para garantia de execuções fiscais como condição ao oferecimento de embargos de devedor, no caso de créditos controvertidos, ou para alienação e pagamento do crédito exequendo. O objetivo deste artigo é analisar os eventuais reflexos dessas alterações na orientação da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça ("STJ") que abandona a literalidade do art. 57 da lei 11.101/2005, reproduzido no art. 191-A do Código Tributário Nacional ("CTN"), para dispensar a apresentação de certidões negativas de débito fiscal ("CND") como condição para o deferimento da recuperação judicial. Por comodidade, farei referência apenas ao art. 57 da leiº 11.101/2005.  O fundamento para dispensa de CND - breve contextualização histórica da jurisprudência Desde a época da antiga concordata, a apresentação de certidões negativas de débitos fiscais tem sido motivo de discussões e dificuldades no Brasil, país que adota o modelo federativo de Estado no qual o poder de tributar é exercido pela União, pelos Estados-membros, pelo Distrito Federal e pelos Municípios, cabendo a cada uma destas entidades da Federação legislar sobre os seus respectivos tributos. Assim, cabe à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios instituir condições especiais de parcelamento dos seus tributos. Por isso, se o devedor em recuperação judicial for empresa com atuação de âmbito nacional, poderia ser chamada a apresentar centenas ou até milhares de certidões fiscais, a depender do alcance de sua atividade empresária.   A experiência mostra que além de todas as dificuldades enfrentadas por quem ousa empreender, gerar empregos, rendas, pagar tributos e contribuir para o desenvolvimento nacional, há ainda a complexidade do sistema tributário, que não raro é causa de demandas legítimas do setor privado contra exações reputadas indevidas. A burocracia, por sua vez, não facilita o cumprimento das obrigações tributárias principal (de pagar o tributo) e acessórias (deveres administrativos, instituídos no interesse da arrecadação e da fiscalização). A lei 11.101/2005 surgiu com a promessa de viabilizar a superação de crise pela empresa produtiva viável e, sem nenhum favor, em muitos aspectos representou mudança de paradigma em relação ao direito anterior, atingindo, assim, a sua finalidade. Não obstante, na questão pertinente à exigência de CND para concessão da recuperação judicial, os avanços não vieram da lei, mas da adequada ponderação de valores que a jurisprudência, designadamente do Superior Tribunal de Justiça, soube fazer ao longo dos quinze anos de vigência do texto original da lei 11.101/2005. Imaginou-se que a possibilidade de parcelamento em condições favorecidas, tal como prometido no art. 68 da lei 11.101/2005, viabilizaria o equacionamento do passivo tributário e a obtenção, pelo devedor em recuperação judicial, de certidões positivas com efeitos de negativa. Contudo, as leis especiais ou não vieram a tempo, ou o legislador ordinário não resistiu à tentação de valer-se do parcelamento favorecido como meio de coagir o contribuinte com as finanças já combalidas a confessar todas as suas dívidas tributárias, incluindo aquelas que considera indevidas, e que ao bom gestor não é lícito pagar sem discutir. No âmbito federal, a lei 13.043/2014 alterou a lei 10.522/2002, para autorizar um parcelamento com prazo estendido e escalonado, sem qualquer desconto, quer no principal, quer nas multas e encargos moratórios, e, em contrapartida, condicionou o parcelamento à renúncia ao direito de discutir - seja na via administrava, seja na judicial - a legalidade da exação, conforme dispôs o §2º do art. 10-A da lei 10.522/2002, na redação dada pela lei 13.043/2014. Foi nesse cenário, de omissão legislativa e de leis incompatíveis com o escopo da recuperação judicial que foi construída a jurisprudência do STJ, a partir do julgamento do julgamento pela Corte Especial do STJ do REsp 1.187.404/MT, da relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão1. Da análise do REsp 1.187.404/MT, verifica-se que o voto do eminente Relator conclui que "nenhuma interpretação pode ser aceita se dela resulta circunstância que - além de não fomentar - inviabilize a superação da crise empresarial, com consequências perniciosas ao objetivo de preservação da empresa economicamente viável, à manutenção da fonte produtora e dos postos de trabalho, além de não atender a nenhum interesse legítimo dos credores", com forte fundamento em princípios e normas do direito concursal, consagrados na lei 11.101/20052. O voto do Ministro Luis Felipe Salomão destaca, também, a ausência, à época, de leis especiais de parcelamento. Não obstante, no plano racional, os fundamentos para a conclusão no sentido de que a apresentação de CND não é requisito para concessão da recuperação judicial estão lastreados na análise dos meios de superação da crise, contemplados na lei e na norma principiológica do art. 47 da lei 11.101/2005. No mesmo sentido, andou a Terceira Turma do STJ no julgamento do REsp 1.864.825/SP, da Relatoria da Ministra Nancy Andrighi, do qual se destaca a conclusão sintetizada no seguinte trecho da ementa: "[Assim de se concluir que os motivos que fundamentam a exigência da comprovação da regularidade fiscal do devedor (assentados no privilégio do crédito tributário), não tem peso suficiente - sobretudo em função da relevância da função social da empresa e do princípio que objetiva sua preservação - para preponderar sobre o direito do devedor de buscar no processo de soerguimento a superação da crise econômico-financeira que o acomete"3. Afastada pela Terceira Turma do STJ a tese da violação da cláusula de reserva de plenário, a União ajuizou perante o Supremo Tribunal Federal ("STF") reclamação, distribuída sob nº Rcl 43.169/SP, alegando que no julgamento do REsp 1.864.825/SP, a Terceira Turma do STJ teria violado a cláusula de reserva de plenário. Com apoio nos esclarecimentos prestados pela Ministra Nancy Andrighi, o Ministro Dias Toffoli negou seguimento à reclamação e tornou sem efeito a liminar antes concedida (decisão de 03/12/2020 - Dje de 03/12/2020)4. Mais recentemente, em sede de decisão monocrática, o Ministro Paulo de Tarso Sanseverino deferiu pedido de tutela de urgência (TP 4113/SP)5, que tem origem em caso no qual o plano de recuperação judicial foi homologado na vigência da lei 14.112/2020, com dispensa da apresentação de CND, tendo o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJ/SP") acolhido recurso da União, para anular a sentença concessiva da recuperação judicial e determinar a apresentação de novo plano6. Pois bem, a decisão concessiva da tutela de urgência tem fundamento no princípio da preservação da empresa: "Verifica-se, contudo, plausibilidade do direito alegado pelo recorrente, uma vez que a jurisprudência desta Corte excepciona a imprescindibilidade do requisito previsto no art. 57 da LRF, verbis: Após a juntada aos autos do plano aprovado pela assembléia-geral de credores ou decorrido o prazo previsto no art. 55 desta Lei sem objeção de credores, o devedor apresentará certidões negativas de débitos tributários nos termos dos arts. 151, 205, 206 da lei 5.172, de 25 de outubro de 1966 - Código Tributário Nacional. E o faz em virtude do princípio da preservação da empresa e de sua relevante função social, ponderando-se o direito do devedor de buscar, nesse processo, a superação efetiva da crise econômico-financeira que o acomete." (DJe de 18/08/2022) Em síntese, a jurisprudência do STJ interpreta o art. 57 da Lei nº 11.101/2005 sistematicamente em harmonia com a norma do art. 47 da mesma Lei e com outros princípios do direito recuperacional, levando em conta inclusive, que o interesse maior é o da empresa, não raro em detrimento do próprio empresário, como apontam os meios de recuperação previsto no art. 50 da lei 11.101/2005. Efeitos das alterações introduzidas pelo §7º-B do art. 6º na interpretação do art. 57 da lei 11.101/2005 Antes da edição da lei 14.112/2020, a cobrança do crédito tributário encontrava-se em situação fragilizada, porque embora o §7º do art. 6º da lei 11.101/2005 estabelecesse que o deferimento do processamento da recuperação judicial não acarretava a suspensão das execuções fiscais, a jurisprudência da Segunda Seção do STJ se consolidou no sentido de que a competência para os atos de constrição, mesmo na execução fiscal, era exclusiva do juízo da recuperação judicial. Essa jurisprudência tem origem em casos de deferimento de atos de constrição, pelos juízos de execução fiscal, sobre bens essenciais para viabilizar o sucesso do plano de soerguimento7.   A situação acabou por se agravar com determinação de suspensão dos processos em tramitação versando sobre o tema, em razão da afetação, em 20.02.2018, pela Primeira Seção do STJ, do Tema Repetitivo nº 987, com a questão jurídica "[p]ossibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal"8. Contudo, esse cenário alterou-se como consequência da edição da lei 14.112/2020. Com efeito, após a desafetação do REsp 1.694.316/SP e do REsp 1.712.484/SP por decisões monocráticas9, a Primeira Seção no julgamento REsp 1.694.261/SP, da relatoria do Ministro Mauro Campbell Marques, "por unanimidade, determinou a remoção da submissão do recurso especial ao regime dos recursos repetitivos, cancelando-se o Tema Repetitivo 987, nos termos da proposta do Sr. Ministro Relator."10 Em seu voto no REsp 1.694.261/SP, o Ministro Mauro Campbell Marques, analisando o §7º-B do art. 6º da lei 11.101/2005, com a redação dada pela lei 14.114/2020, destacou que "cabe ao juízo da recuperação judicial verificar a viabilidade da constrição efetuada em sede de execução fiscal, observando as regras do pedido de cooperação jurisdicional (art. 69 do CPC/2015), podendo determinar eventual substituição, a fim de que não fique inviabilizado o plano de recuperação judicial." (destaque do original). Por sua vez, quando do julgamento do Conflito de Competência 181.190/AC, da relatoria do Ministro Marco Aurélio Bellizze, a Segunda Seção do STJ, por unanimidade, seguiu nessa mesma linha, concluindo, em síntese,  que (i) ["a partir da vigência da lei 14.112/2020, com aplicação aos processos em trâmite (afinal se trata de regra processual que cuida de questão afeta à competência), não se pode mais reputar configurado conflito de competência perante esta Corte de Justiça pelo só fato de o Juízo da recuperação ainda não ter deliberado sobre a constrição judicial determinada no feito executivo fiscal, em razão justamente de não ter a questão sido, até então, a ele submetida" e (ii) "a caracterização do conflito de competência entre os Juízos da recuperação judicial e da execução fiscal, pressupõe a "materialização concreta da oposição concreta do Juízo da execução fiscal à efetiva deliberação do Juízo da recuperação judicial"11. Portanto, restituiu-se ao Juízo da execução fiscal o poder de coerção, que autoriza a prática de atos de constrição sobre o patrimônio de empresa em recuperação judicial, independentemente de prévia deliberação do Juízo recuperacional. Como consequência dessas alterações, cabe à Fazenda Pública buscar na execução fiscal - que é o meio adequado, de fato e de direito - a satisfação dos seus créditos. Concluindo, os créditos tributários não estão sujeitos à recuperação judicial e a Fazenda Pública tem a prerrogativa de constituir o próprio título executivo e, com base nele, ajuizar a execução fiscal, sendo que os atos de constrição sobre o patrimônio do devedor devem obedecer ao disposto no § 7º-B do art. 6º da lei 11.101/2005. Logo, a interpretação literal do art. 57 da lei 11.101/2005 se afigura como desarrazoada, desproporcional e não contribui para o objetivo maior da lei: viabilizar a superação da crise pelo devedor em recuperação judicial. Efeitos das possibilidades de parcelamento e de transação na interpretação do art. 57 Ao analisar as possibilidades de parcelamento e transação não pode o intérprete deixar de levar em consideração que a lei 14.112/2020 é uma lei federal de aplicação restrita aos tributos federais, porque a possibilidade de a União conceder isenções de impostos estaduais, distritais e municipais - que era admitida na vigência da Emenda Constitucional nº 1/196912 - foi abolida pela Constituição de 198813. A experiência mostra que se são oferecidas condições atrativas para liquidação das dívidas tributárias, o fisco não precisa se valer de meios indiretos de cobrança, como a exigência de CND para concessão de recuperação judicial, porque é também interesse do devedor, em recuperação judicial ou não, equacionar o seu passivo tributário.   Além disso, diante da aprovação de um plano de recuperação judicial, sem que o devedor tenha apresentado as CNDs relativas aos tributos a que está sujeito, não se pode deixar de indagar a respeito da consequência da omissão. A possibilidade de convolação da recuperação judicial em falência, nesta hipótese, deve ser afastada por não haver previsão legal expressa nesse sentido. Da mesma forma, a extinção da recuperação judicial sem julgamento do mérito deve ser afastada não só em razão da falta de previsão legal, mas principalmente porque não estando o crédito tributário sujeito à recuperação judicial, a Fazenda Pública é carecedora de legitimo interesse jurídico para impedir a homologação do plano de recuperação judicial aprovado pelos credores a ela sujeitos. Portanto, as possibilidades de equacionamento do passivo tributário, oferecidas a partir das alterações introduzidas pela lei 14.112/2020, devem ser interpretadas como relevante contribuição para que o devedor em recuperação judicial venha a equacionar o seu passivo tributário perante a União e, assim, superar a crise econômico-financeira. Mas essas possibilidades de equacionamento do passivo tributário não têm qualquer influência na interpretação sistemática dos arts. 57 e 47 da lei 11.101/2005 e, consequentemente, na inexigibilidade da CND como condição para concessão da recuperação judicial. Conclusão: o equacionamento do passivo tributário é condição econômica e não condição jurídica para superação da crise A lei 11.101/2005 trouxe para o ordenamento jurídico relevante avanço, ao colocar os titulares de créditos anteriores ao ajuizamento do pedido, na qualidade de protagonistas, porque o devedor deverá negociar com os seus credores os meios de superação da crise, o que deve ser feito com boa-fé e transparência. E aqui, não se pode deixar de lembrar, que o plano de recuperação judicial tem duas espécies de controle: um é o controle de legalidade, exercido pelo Poder Judiciário, outro é o controle econômico-financeiro, exercido pelos credores, durante todo o processo de recuperação judicial, através do comitê de credores e da assembleia geral de credores. As informações relativas ao passivo tributário são relevantes para fins de avaliação da viabilidade econômico-financeira do plano proposto pelo devedor, ou pelos próprios credores, nas hipóteses previstas na lei 11.101/2005, com as alterações introduzidas pela lei 14.112/2020. Assim, cabe ao devedor levar aos autos do processo recuperacional, para conhecimento do Juízo, do Ministério Público, do administrador judicial e dos titulares de créditos sujeitos, as informações relativas ao passivo tributário, como, aliás determina o art. 51, III, da lei 11.101/2005, que, com a redação dada pela lei 14.112/2020, estabelece que a relação nominal de credores deve incluir tanto os créditos sujeitos quanto os não sujeitos à recuperação judicial. O art. 57, tal como o art. 51, III, consagra norma que prestigia o dever de informar, a que fica sujeito o devedor em recuperação judicial, a quem não é lícito omitir informações relevantes para avaliação econômico-financeira da empresa. Não se trata, porém, de requisito para homologação da deliberação da assembleia geral de credores que tenha aprovado o plano de recuperação judicial. __________ 1 STJ - REsp: 1187404 MT 2010/0054048-4, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 19/06/2013, CE - CORTE ESPECIAL, Data de Publicação: DJe 21/08/2013. 2 Destaque-se, ainda o seguinte trecho do voto do Ministro Luis Felipe Salomão: "3. Analisando a questão pelo ângulo do direito concursal, penso que a solução para o caso concreto deve observar que, no caso da recuperação judicial da empresa, esta não pode ser observada a partir da amesquinhada visão de que o instituto visa a proteger os interesses do empresário, em detrimento de outros não menos legítimos. Na verdade, o valor primordial a ser protegido é o da ordem econômica, bastando analisar com mais vagar os meios de recuperação da empresa legalmente previstos (como, por exemplo, os incisos III, IV, V, XIII e XIV do art. 50 da LRF), para se perceber que, em alguns casos, é exatamente o interesse individual do empresário que é sacrificado, em deferência da preservação da empresa como unidade econômica de inegável utilidade social. Cumpre sublinhar também que, em se tratando de recuperação judicial, a nova Lei de Falências traz uma norma-programa de densa carga principiológica, constituindo a lente pela qual devem ser interpretados os demais dispositivos. Refiro-me ao art. 47, que serve como um norte a guiar a operacionalidade da recuperação judicial, sempre com vistas ao desígnio do instituto, que é "viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica". 3 STJ - REsp: 1864625 SP 2019/0294631-9, Relator: Ministra NANCY ANDRIGHI, Data de Julgamento: 23/06/2020, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 26/06/2020.  4 STF - Rcl: 43169 SP 0102138-58.2020.1.00.0000, Relator: DIAS TOFFOLI, Data de Julgamento: 03/12/2020, Data de Publicação: 04/12/2020. 5 STJ - TP: 4113 SP 2022/0251661-1, Relator: Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, Data de Publicação: DJ 18/08/2022. 6 AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE HOMOLOGOU O PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL, COM DISPENSA DA CERTIDÃO NEGATIVA DE DÉBITOS TRIBUTÁRIOS. INSURGÊNCIA DA UNIÃO FEDERAL. HIPÓTESE DE PROVIMENTO. PLANO HOMOLOGADO APÓS A ENTRADA EM VIGOR DA LEI Nº 14.112/2020, A QUAL MODIFICOU A SISTEMÁTICA PARA A REGULARIZAÇÃO TRIBUTÁRIA DAS EMPRESAS EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL, JUSTAMENTE PARA VIABILIZAR A EFICÁCIA DO ART. 57, DA LEI Nº 11.101/05. (....)  ANULAÇÃO DA SENTENÇA DE HOMOLOGAÇÃO DO PLANO DE RECUPERAÇÃO NÃO IMPORTA, PORÉM, EM AUTOMÁTICA CONVOLAÇÃO DA RECUPERAÇÃO EM FALÊNCIA, POIS É POSSÍVEL A FORMULAÇÃO DE NOVO PLANO, INCLUSIVE ADEQUAÇÃO DA SITUAÇÃO FISCAL. AGRAVO DE INSTRUMENTO DA UNIÃO FEDERAL PROVIDO. (Ementa do Acórdão do TJSP, transcrita na decisão concessiva da antecipação da tutela recursal).  7 CONFLITO DE COMPETÊNCIA. JUÍZO DA EXECUÇÃO FISCAL E JUÍZO DA VARA DE FALÊNCIAS E RECUPERAÇÕES JUDICIAIS. EMPRESA SUSCITANTE EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO FALIMENTAR PARA TODOS OS ATOS QUE IMPLIQUEM RESTRIÇÃO PATRIMONIAL. 1. As execuções fiscais ajuizadas em face da empresa em recuperação judicial não se suspenderão em virtude do deferimento do processamento da recuperação judicial, ou seja, a concessão da recuperação judicial para a empresa em crise econômico-financeira não tem qualquer influência na cobrança judicial dos tributos por ela devidos. 2. Embora a execução fiscal, em si, não se suspenda, são vedados atos judiciais que reduzam o patrimônio da empresa em recuperação judicial, enquanto for mantida essa condição. Isso porque a interpretação literal do art. 6º, § 7º, da Lei 11.101/05 inibiria o cumprimento do plano de recuperação judicial previamente aprovado e homologado, tendo em vista o prosseguimento dos atos de constrição do patrimônio da empresa em  dificuldades financeiras. Precedentes. 3. Conflito conhecido para declarar a competência do JUÍZO DA JUÍZO DA VARA DE FALÊNCIAS E ECUPERAÇÕES JUDICIAIS DO DISTRITO FEDERAL para todos os atos que impliquem em restrição patrimonial da empresa suscitante. (CC n. 116.213/DF, relatora Ministra Nancy Andrighi, Segunda Seção, julgado em 28/9/2011, DJe de 5/10/2011.).  8 Foram selecionados como representativos da controvérsia: REsp 1.694.316-SP; REsp 1.694.261-SP e REsp 1.712.484-SP.  9 DJe de 23/04/2021 e de 20/04/2021, respectivamente.  10 PROCESSUAL CIVIL. RECURSO ESPECIAL. SUBMISSÃO À REGRA PREVISTA NO ENUNCIADO ADMINISTRATIVO 03/STJ. PROPOSTA DE CANCELAMENTO DE AFETAÇÃO. VIGÊNCIA DA LEI 14.112/2020, QUE ALTEROU A LEI 11.101/2005. NOVEL LEGISLAÇÃO QUE CONCILIA ORIENTAÇÃO DA SEGUNDA TURMA/STJ E DA SEGUNDA SEÇÃO/STJ. 1. Em virtude de razões supervenientes à afetação do Tema Repetitivo 987, revela-se não adequado o pronunciamento desta Primeira Seção acerca da questão jurídica central ("Possibilidade da prática de atos constritivos, em face de empresa em recuperação judicial, em sede de execução fiscal de dívida tributária e não tributária.") 2. Recurso especial removido do regime dos recursos repetitivos. Cancelamento da afetação do Tema Repetitivo 987. (STJ - REsp: 1.694.261-SP, Primeira Seção, Relator Ministro Mauro Campbell Marques, DJe 28/06/2021).  11 STJ - CC: 181190 AC 2021/0221593-7, Relator: Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, Data de Publicação: DJ 07/12/2021. 12 Confira-se a redação do § 2º do art. 19 da EC 1/1969: "A União, mediante lei complementar e atendendo a relevante interêsse social ou econômico nacional, poderá conceder isenções de impostos estaduais e municipais." 13 Nesse sentido, a Constituição de 1988 estabelece: "Art. 151 - É vedado à União: (.....) III - instituir isenções de tributos da competência dos Estados, do Distrito Federal ou dos Municípios."
A reforma promovida pela lei 14.112/2020 não alterou a opção legislativa em relação à exclusão dos créditos tributários do processo de recuperação judicial, nos termos do art. 187 do CTN e do art. 29 da Lei de Execução Fiscal. Todavia, a lei 14.112/2020, ao modificar a lei 10.522/2002, dando nova redação ao art. 10-A e incluindo os arts. 10-B e 10-C, promoveu significativas e relevantes transformações na postura do Fisco no processo de recuperação judicial, ao oferecer à empresa recuperanda instrumentos para regularização do passivo fiscal em condições mais vantajosas e eficientes que a realidade legislativa anterior permitia, como o parcelamento especial e a transação tributária especial. As alternativas de equalização do passivo fiscal criadas pela reforma têm por finalidade viabilizar - ao menos essa é a intenção do legislador - a obtenção da certidão negativa de débitos tributários ou positiva com efeitos de negativa e, com isso, igualmente e em tese, a concessão da recuperação judicial, na forma dos arts. 57 e 58 da lei 11.101/2005. Com efeito, o cenário legislativo anterior praticamente inviabilizava o cumprimento do disposto nos arts. 57 e 58 da lei 11.101/2005, na medida em que a lei não apresentava alternativa viável de equacionamento do passivo fiscal. Durante vários anos, a legislação não oferecia aos devedores em recuperação judicial planos de parcelamento fiscal em condições mais favoráveis quando comparados com os REFIS disponíveis aos devedores em geral. Levando em consideração a ausência de lei específica para regulamentar o parcelamento tributário para as empresas recuperandas, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça consolidou-se no sentido de dispensar a certidão de regularidade fiscal como condição para a concessão da recuperação judicial1. O parcelamento específico de que trata o art. 68 da lei 11.101/2005 foi, na prática, instituído com a edição da lei 13.043/2014, por meio da inclusão do então art. 10-A na lei 10.522/2002. Entretanto, esse parcelamento não atendia às finalidades legais, pois dava às empresas recuperandas tratamento mais rigoroso do que aquele oferecido aos devedores em geral, além de exigir a inclusão no parcelamento específico de todos os débitos tributários da empresa recuperanda, ainda que fossem objeto de discussão judicial ou estivessem com a exigibilidade suspensa. Diante da violação aos princípios da isonomia e da inafastabilidade da jurisdição pelo dispositivo legal acima mencionado, o Superior Tribunal de Justiça permaneceu aplicando o entendimento anteriormente adotado2, não exigindo a apresentação das certidões de regularidade fiscal como condição para a concessão da recuperação judicial. No julgamento do REsp n. 1.864.625/SP3, o Superior Tribunal de Justiça reforçou o entendimento anterior, reputando inaplicável o art. 57 da Lei n. 11.101/2005 após ponderação realizada conforme o princípio da proporcionalidade, ante a aparente incompatibilidade entre os arts. 57 e 47 da lei 11.101/2005, concluindo que a exigência de apresentação de certidões de regularidade fiscal não era adequada nem tampouco necessária para a concessão da recuperação judicial. O Supremo Tribunal Federal teve a oportunidade de analisar a questão no pedido de liminar formulado na Medida Cautelar na Reclamação Constitucional n. 43.169/SP, que teve como objeto a decisão proferida no REsp n. 1.864.625/SP, tendo o Ministro Luiz Fux deferido a liminar para sobrestar os efeitos da decisão prolatada pelo Superior Tribunal de Justiça no referido recurso especial, aplicando-se o contido nos artigos 57 da lei 11.101/2005, e 191-A do CTN, até o julgamento final da referida Reclamação, já que a aplicação do art. 57 da lei 11.101/2005 teria sido afastada com fundamento no princípio da proporcionalidade, por meio do exercício do controle difuso de constitucionalidade, sem que a Corte Especial, que seria a competente, tivesse analisado a questão (cláusula de reserva de plenário). Em acréscimo, registrou que a mora legislativa em relação ao parcelamento específico a que faz menção o art. 68 da lei 11.101/2005 havia sido sanada com a edição da lei 13.043/2014. Contudo, essa Reclamação Constitucional foi redistribuída ao Ministro Dias Toffoli, que acabou negando-lhe seguimento, ao reconhecer inexistente a situação que caracterizaria violação à Súmula Vinculante n. 10 e ao art. 97 da Constituição Federal (cláusula de reserva de plenário), o que acarretou, por consequência, a revogação da liminar inicialmente concedida. A edição da lei 14.112/2020, entretanto, criou as alternativas de equacionamento do passivo fiscal, em tese, proporcionais e adequadas. A reforma aproximou mais o Fisco da recuperação judicial para que lhe seja assegurado um tratamento, na medida do possível, semelhante ao concedido aos demais créditos sujeitos à recuperação judicial. Diante da criação do parcelamento especial e da possibilidade de transação fiscal, surgiram julgados que indicam possível alteração do entendimento jurisprudencial que até então prevalecia4. Em contrapartida, diversas decisões proferidas pelos tribunais pátrios parecem não ter acompanhado a alteração promovida pelo legislador, o que indica que em significativa parte dos julgados ainda se aplica o entendimento de que a regra que exige a apresentação das certidões de regularidade fiscal deve ser flexibilizada para que tais certidões não sejam exigidas para fins de concessão da recuperação judicial. Recentemente, em decisão monocrática proferida no Pedido de Tutela Provisória n. 4113/SP, publicada no DJe em 18/08/2022, o Relator Ministro Paulo de Tarso concedeu efeito suspensivo ao recurso especial para sobrestar os efeitos do acórdão que anulou a decisão de homologação do plano de recuperação judicial, e entendeu que a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça relativa à questão da exigência de certidões negativas de débito para concessão da recuperação judicial, mesmo com a possibilidade de parcelamento do débito, não foi alterada. Apesar disso, ainda remanesce a dúvida de como a Corte Superior, por meio de suas Turmas e/ou Seção competentes, a quem incumbe uniformizar a interpretação da legislação federal no país, se posicionará, diante do atual cenário legislativo, que disponibilizou novos instrumentos às empresas em recuperação judicial para equalização do seu passivo fiscal, o que, em tese, permitiria a aplicação, na prática, do art. 57 da lei 11.101/2005 e do art. 191-A do Código Tributário Nacional. Vale destacar, por fim, que a Fazenda Nacional vem regulando a possibilidade de parcelamentos e de transação fiscal, na tentativa de oferecer concretamente aos devedores a possibilidade de fruição desses direitos previstos em lei. A Portaria PGFN n. 6.757, de 29/07/2022 regulamentou a transação na cobrança de créditos da União e do FGTS (já alterada pela Portaria PGFN 6.941, de 04/08/2022, que revogou o inciso II do art. 36) e apresentou regras de utilização dos créditos decorrentes de prejuízo fiscal e de base de cálculo negativa da CSLL. Não obstante a louvável iniciativa do Fisco, existem, em princípio, elementos indicativos de ilegalidade por excesso de poder regulamentar, em razão de alteração dos critérios da lei regulamentada (lei 14.375/2022, que alterou a lei 13.988/2020), ao restringir direitos previamente estabelecidos na referida lei. Essas ilegalidades da regulamentação fiscal podem ser corrigidas pela via judicial, enquanto não revistas pelo próprio Fisco. De toda forma, resta claro que se caminha em direção à solução do impasse do crédito fiscal na recuperação judicial, estando cada vez mais próximo o momento em que o Superior Tribunal de Justiça dará a palavra final sobre essa questão de direito federal. __________ 1 O julgamento paradigmático em relação a esse entendimento foi proferido no REsp n. 1.187.404/MT, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, Corte Especial, julgado em 19/6/2013, DJe de 21/8/2013. 2 Nesse sentido: REsp n. 1.173.735/RN, relator Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 22/4/2014, DJe de 9/5/2014. 3 REsp n. 1.864.625/SP, relatora Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/6/2020, DJe de 26/6/2020. 4 Nesse sentido: TJSP;  Agravo de Instrumento 2244665-54.2021.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Americana - 3ª Vara Cível; Data do Julgamento: 11/04/2022; Data de Registro: 11/04/2022. E ainda: TJSP;  Agravo de Instrumento 2035180-77.2022.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 24/05/2022; Data de Registro: 30/05/2022.
Uma das teses com maior acolhida pela literatura jurídica e pela jurisprudência que tratam da matéria de recuperações e de falências é a chamada subcapitalização material. Cuida-se, na verdade, de considerar, sem critério muito preciso, a sociedade empresarial falida ou em recuperação como insuficientemente capitalizada para enfrentar os riscos e as agruras impostas pela atividade constante de seu objeto social. Como consequência, impõe-se a desconsideração da personalidade jurídica e a constrição do patrimônio dos sócios. Tratados jurídicos foram escritos tentando justificar a tese supracitada, que acabou por conseguir razoável espaço na jurisprudência. Mas será que realmente procede a alegação de que dada sociedade pode ter capital insuficiente para seu objeto social? Será que o mundo jurídico ignora a realidade, mais uma vez, ao consagrar teoria sem base econômico-financeira? Este artigo busca analisar essas e outras questões correlatas. Definições - Como a teoria se insere no mundo jurídico A doutrina costuma conceituar duas formas de subcapitalização: a material e a nominal. A primeira (e única que tratamos neste artigo) caracteriza-se pelo nível insuficiente de capital social em conjunção com proporção majoritária de financiamento por capital de terceiros (= passivo). A segunda ocorreria no caso de os sócios realizarem financiamento da sociedade por meio de passivo (p.ex.: utilizando contratos de mútuo) para obterem prioridades de recebimento em eventual falência. A jurisprudência, por seu turno, acolheu a tese em alguns julgados, autorizando a desconsideração da personalidade jurídica por subcapitalização, como se verifica no exemplo seguinte: EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA. GRUPO ECONÔMICO CONFIGURADO. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. ABUSO DE DIREITO. SUBCAPITALIZAÇÃO. POSSIBILIDADE. INTELIGÊNCIA DOS ART. 50 E 187 DO CÓDIGO CIVIL. AUSÊNCIA DE OBSCURIDADE, CONTRADIÇÃO, OMISSÃO OU ERRO MATERIAL. 1. Inexistência de obscuridade, contradição, omissão ou erro material no presente acórdão, uma vez que a parte embargante demonstra, apenas, inconformidade quanto às razões jurídicas e a solução adotada no aresto atacado. 2. A falida acumulou dívidas que alcançavam R$ 700.000,00, desde o ano de 2009 até a data do pedido de autofalência, em fevereiro de 2011. Ocorre que ainda no ano de 2009, em auditoria realizada nas contas da falida, foi indicado o aporte de capitais, o que não foi atendido pelas empresas controladoras, de acordo com o teor do documento de fl. 628 dos autos. 3. Dessa forma, evidente o abuso do direito por parte das empresas sócias controladoras, ante a clara subcapitalização havida pela não manutenção do capital necessário para o pleno cumprimento do objeto social da falida. 4. O Julgador não está obrigado a se manifestar a respeito de todos os fundamentos legais invocados pelas partes, visto que pode decidir a causa de acordo com os motivos jurídicos necessários para sustentar o seu convencimento, a teor do que estabelece o art. 371 da novel lei processual civil. 5. Ausência dos pressupostos insculpidos no art. 1.022 do novo Código de Processo Civil, impondo-se o desacolhimento do recurso. Embargos declaratórios desacolhidos. (TJRS. EMBARGOS DE DECLARAÇÃO QUINTA CÂMARA CÍVEL 70073675118 (CNJ: 0131626-45.2017.8.21.7000) Vejamos, portanto, se a teoria tem fundamentos razoáveis. Capital social - Um marcador de origem e não de garantia A primeira falha da teoria da subcapitalização material está em, de alguma forma, sustentar que o capital social é um garantidor dos direitos dos credores. Essa crença, se não pode ser considerada falsa, é, ao menos, uma meia verdade. A rigor, o capital social é apenas um marcador da origem dos recursos que financiam uma atividade empresarial. Se provém de aportes dos sócios, classifica-se como capital social (ou reserva de capital). Empregando sentido figurado, o capital social caracteriza-se meramente como a identificação da porta de entrada dos recursos sociais. Dessa forma, se o balanço societário indica que há, p.ex., R$ 100 mil de capital social, isso não significa que os credores terão a sua disposição esse valor para satisfazer seus créditos na data em que foram cobrados. Esse valor, no balanço, simplesmente indica que, em determinado momento, os sócios decidiram aportar recursos para financiar a atividade. Se esses recursos estarão disponíveis no ativo, trata-se de outro problema e de algo que o montante de capital social aportado não garante, mesmo que devidamente integralizado. Vejamos um exemplo numérico simples: uma sociedade é capitalizada em seu início com um aporte de R$ 100 mil, em dinheiro. Esse valor, que entrou pela porta de entrada (= origem) do capital social, é aplicado no caixa da sociedade. Portanto, o balanço social (ignorando os passivos), estaria assim:   Se eventuais credores sociais tivessem de satisfazer seus créditos, teriam à disposição, no momento imediatamente posterior à constituição da sociedade, R$ 100 mil de caixa (e não de capital social!). No entanto, vamos imaginar que, alguns anos depois, essa mesma sociedade tivesse apresentado prejuízos acumulados de R$ 150 mil, pagando aos credores com a totalidade do que dispunha de caixa anteriormente (R$ 100 mil). Agora seu balanço hipotético estaria da seguinte forma: Veja-se que: O capital permaneceu o mesmo de antes = R$ 100 mil, mas não mais coincide com o montante de ativos; Restam créditos no montante de R$ 50 mil, que não serão satisfeitos, pois não há mais ativo (caixa) para o respectivo pagamento. Essa breve explanação, com um simples exemplo, leva-nos claramente a concluir que o capital social, ao contrário do que afirma boa parte da literatura jurídica e jurisprudencial, não é fonte de garantia dos direitos dos credores. Na verdade, o que garante o pagamento dos credores é o ativo societário (e não o capital!): os valores de capital social somente indicam a origem do ativo (= recursos próprios / dos sócios), nada indicando sobre a manutenção ou permanência de montantes para a satisfação dos credores. Portanto, constatar-se no contrato social que há "muito" ou "pouco" capital, isoladamente, nada significa em termos de garantia aos credores, uma vez que esses recursos aportados a título de capital podem sequer estar disponíveis no ativo. Aliás, fosse o capital garantia de maior segurança dos credores, não teríamos (ou teríamos menos) exemplos de sociedades empresárias que faliram quando dispunham de grandes quantias de capital social em seus balanços e contratos. Poder-se-ia questionar as conclusões iniciais a que se chega neste ponto, ao indagar: se o capital não é garantia do direito dos credores, por qual motivo a legislação societária exige que os credores anuam previamente a operações de redução de capital social (art. 1081 e seguintes do Código Civil e art. 173 e seguintes da Lei das sociedades por ações)? A pergunta supracitada, que parece contradizer as conclusões a que chegamos até aqui, na verdade, confirma-as. De fato, devemos lembrar que, como regra geral, a redução voluntária de capital é permitida pela legislação societária em duas hipóteses básicas: (1) perdas irreparáveis; (2) capital excessivo. No primeiro caso, não há o que se modificar no ativo: cuida-se de mera operação contábil (em contas de patrimônio líquido) em que se reduz o capital social para amortizar prejuízos acumulados. No segundo caso, há devolução de ativos, uma vez que parte dos recursos que o compunham retornarão ao patrimônio dos sócios. Assim, quando a redução decorre de perdas (= prejuízos), não há modificação no ativo garantidor dos direitos dos credores, não sendo necessário que estes anuam à redução do capital. Por outro lado, quando a redução decorre de devolução de capital (excessivo), os credores devem ser consultados não porque o capital, em si, diminui, mas porque o ativo (que decorreu da aplicação do aporte inicial de capital) deixará de fazer parte dos bens da sociedade, retornando para os sócios. Em suma: é pelas consequências da redução do capital no ativo que se consultam ou não os credores. Mais uma vez, a conclusão está confirmada: para os credores, o que importa é o ativo e não o capital social. A teoria da subcapitalização também conclui que deveria haver certo nível de capital social para fazer frente aos riscos oriundos de dívidas ou passivos. Será que essa conclusão é correta? É o que veremos no tópico seguinte. Proporção capital/passivos - Devemos exigir menores riscos? Uma outra conclusão que a teoria da subcapitalização material advoga é que pode haver abuso de direito quando não há capital suficiente em relação ao total de passivos assumidos pela sociedade. Assim, em havendo uma desproporção acentuada entre capital próprio (= patrimônio líquido do qual o capital faz parte) e capital de terceiros (= passivos), concluir-se-ia pelo nível insuficiente de capital próprio, uma vez que a sociedade estaria assumindo riscos exorbitantes diante do financiamento prioritário por capitais de terceiros. O efeito da subcapitalização, como asseverado anteriormente, estaria na desconsideração da personalidade jurídica. Para analisarmos a veracidade ou não dessas conclusões, devemos verificar quais são as fontes (ou origens) de financiamento de que dispõe uma sociedade empresária, além de seus custos e de seus riscos. A rigor, podemos resumir as fontes de recursos de uma sociedade em dois tipos: Capital próprio: na terminologia da literatura financeira, o capital próprio se identifica com o patrimônio líquido, abrangendo todos os recursos dos sócios empregados no financiamento da sociedade, sejam eles componentes do capital social, de lucros acumulados ou de reservas; Capital de terceiros: os quais corresponderiam aos recursos fornecidos por credores (p.ex.: empréstimos, financiamentos, debêntures, etc.). Portanto, o passivo e o patrimônio líquido (que abrange o capital social) são as duas fontes de recursos das sociedades, constituindo-se, respectivamente, em fontes de recursos próprios (capital próprio) ou fontes advindas de terceiros (capital de terceiros). Por sua vez, o ativo se constitui no total de bens e de direitos em que os recursos aportados pelas fontes foram aplicados. Resumindo, mais uma vez, temos: Fontes/origens de recursos: capital próprio e capital de terceiros, usualmente representadas do lado direito do balanço patrimonial; Aplicações de recursos advindos das fontes/origens: ativo, usualmente representado do lado esquerdo do balanço. Façamos um exemplo numérico/gráfico de um balanço patrimonial para demonstrar como isso ocorre: suponhamos que uma sociedade obtenha em seu início de operação R$ 50 mil dos sócios (aporte de capital) e outros R$ 50 mil de empréstimos de credores, ambos em dinheiro. Seu balanço ficaria organizado assim:   Percebe-se que as origens dos recursos foram duas e iguais (= R$ 50 mil) de capital próprio e de terceiros. Essas origens, somadas, tiveram destino e foram aplicadas no ativo (caixa) da sociedade, que totalizou R$ 100 mil. Explicadas como se formam as origens e como são aplicadas, cabe indagar: (1) qual a diferença de se financiar com capitais próprios ou de terceiros? (2) há alguma proporção ótima ou recomendável entre essas duas fontes de recursos? As diferenças entre o financiamento por capital próprio e por capital de terceiros se situam basicamente em dois pontos: (1) custos; (2) riscos. Regra geral, o financiamento por capital de terceiros (passivos) tende a ser mais barato que o financiamento por capital próprio (recursos dos sócios). Essa afirmação tende a causar certo espanto no meio jurídico, conquanto seja moeda corrente no meio financeiro. Explicaremos seus motivos a seguir. O titular do capital de terceiros (credor) detém uma renda fixa, ou seja, pode antever com razoável segurança, quanto receberá ao final. O titular do capital próprio (sócio/acionista), por sua vez, detém uma renda variável, não dispondo de conhecimento prévio sobre o "se" e o "quanto" irá receber no futuro. Obviamente, o risco do sócio/acionista é maior do que o do credor. Maior risco resulta em exigência de maior retorno, acarretando maiores ônus à sociedade em se financiar por capital próprio. O mundo jurídico, aliás, muitas vezes ignora que o capital próprio tenha custos. Isso ocorre porque o custo do capital próprio não é um custo explícito, mas um custo de oportunidade, ou seja, custo que se materializa pelo valor da melhor alternativa ao investimento. Vamos resumir isso ao leitor numa pergunta: você investiria seu dinheiro em uma ação cuja expectativa de rendimento anual fosse de 12%, quando um título público (com risco mínimo) rendesse 15% no mesmo período? Não? Justamente porque alguém só se dispõe a ser sócio se o investimento superar o custo de oportunidade consistente no valor de outras remunerações que seus recursos poderiam obter. No nosso exemplo, um sócio possivelmente exigiria para investir uma remuneração de 15%, acrescida de um prêmio de risco. Capital próprio, portanto, tem custo. E alto! Outro motivo que faz o capital próprio ser mais caro que o capital de terceiros é a economia tributária. A remuneração do credor (juros) é considerada, como regra, despesa dedutível, reduzindo o lucro líquido e a base de cálculo para os impostos sobre o lucro. Essa economia não ocorre com o capital próprio, uma vez que a remuneração do sócio/acionista (lucros/dividendos) não é considerada despesa contábil, não reduzindo base de cálculo de tributos. Portanto, podemos concluir que a imposição de grandes proporções de capital próprio em relação ao capital de terceiros fará com que a sociedade empresária tenha maiores gastos, em regra, com seu financiamento, o que é um ponto extremamente prejudicial da teoria da subcapitalização. Por outro lado, é bem verdade que uma maior proporção de capital próprio em relação ao capital de terceiros reduz riscos de falência, pois como o capital próprio não é, via de regra, uma obrigação exigível, eventuais prejuízos ou incapacidades de pagamento de remuneração aos sócios não acarretarão pedidos de falência ou constrição de bens. Dessa forma, podemos concluir, grosso modo, que financiamento prioritário por capital próprio é mais caro e menos arriscado que financiamento preponderante por capital de terceiros. Não há, entretanto, uma proporção ótima ou segura para que se possa dizer quanto de cada fonte deve se usar no financiamento da atividade empresarial. Até mesmo na literatura financeira, conquanto haja alguns modelos buscando eficiência, não há recomendação precisa de uma proporção de estrutura de capital. Nesse sentido, Lawrence J. Gitman (Princípios de Administração Financeira, Harbra, 7ª ed., p. 443): De modo prático, não existe maneira para calcular a estrutura ótima de capital [...]. Devido ao fato de ser impossível determinar o ponto [...] exato da estrutura ótima de capital e fixar-se nele, as empresas geralmente tentam operar num intervalo que as aproxima do que elas acreditam ser a estrutura ótima de capital. O fato de que os lucros retidos e outros novos financiamentos farão com que a estrutura de capital atual da empresa mude mais tarde justifica o enfoque em um intervalo de estrutura de capital, ao invés de um único ponto. Como se verifica da abordagem do autor supracitado, outro problema de se impor proporções de capital próprio e capital de terceiros é que a estrutura de financiamento é extremamente mutável na vida de uma sociedade empresária: há momentos em que somente algumas fontes estarão disponíveis, além de outros em que os custos podem limitar a escolha. Veja-se, aliás, como a aplicação da teoria da subcapitalização material poderia implicar sérios riscos a alguns tipos de negócios: imaginemos as chamadas aquisições alavancadas (leveraged byouts). Trata-se de modelo negocial em que a aquisição de uma determinada empresa é financiada por meio de baixo capital próprio e elevado capital de terceiros (por vezes em razões de 30% - 70%), apoiando-se na perspectiva de forte geração de caixa futuro. Aplicando a teoria da subcapitalização material, deveríamos desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade diante de abuso de direito? A resposta parece obviamente negativa. Mas os problemas não param por aqui. Veremos mais um no tópico seguinte. Fluxo e estoque - Confundindo as variáveis Para finalizar o artigo, precisamos fazer outra observação: como já se disse, uma das assunções implícitas da teoria da subcapitalização material é que o capital represente, de certa forma, garantia aos credores. Vimos que isso não é necessariamente verdadeiro, mas ainda há um outro problema que precisa ser apontado nesse tipo de raciocínio: o problema de confundir variáveis de fluxo e de estoque. Uma variável de estoque, como o nome retrata, traz uma mensuração momentânea. É como se tirássemos uma foto de um dado em um instante único no tempo. Assim, quando falamos de variáveis de estoque usualmente tratamos de fenômenos como número de objetos guardados em certo dia, nível da água num reservatório em dado momento, valor total de patrimônio/riqueza ao final do ano, etc. Por seu turno, variáveis de fluxo tratam de fenômenos continuados, repetidos ou em movimento. Não se trata de uma foto de um instante, mas de um vídeo que retrata como determinados acontecimentos se passaram em um período. Assim, poderíamos falar de vazão de água por tempo, receitas ou despesas por exercício financeiro, etc. O problema da teoria da subcapitalização material é que, propondo maiores garantias e menores riscos por intermédio de montantes ou proporções de capital social, confunde os tipos de variáveis e sugere que uma variável de estoque (capital) faça frente a um problema de variável de fluxo (despesas continuadas de remuneração de passivos). Com efeito, a vida financeira de uma sociedade não é algo que se possa resumir num instante único. Cuida-se de extremas variações sucessivas. Passivos, por outro lado, não são representados apenas por seu valor inicial (nominal), mas são acompanhados por um fluxo de remuneração (juros). Como estrutura/variável de fluxo que são, os passivos e os demais fenômenos societários não devem ser confrontados com variáveis de estoque, como o capital social (que representa o estoque de aportes dos sócios em data específica), mas com outras variáveis de fluxo (como receitas ou lucros do período). Pensar que dado aporte passado e único de capital social (variável de estoque) deva fazer frente a despesas perenes e repetíveis (variável de fluxo) é fazer plena confusão entre conceitos econômicos. Isso ocorreu várias vezes quando de discussão de fenômenos como a reforma da Previdência Social, em que se objetava que, se a Previdência cobrasse seus créditos, as reformas não seriam necessárias. Trata-se, mais uma vez, de confundir créditos (variável estoque) com pagamentos de benefícios previdenciários (variável de fluxo). Em suma: variáveis de fluxo devem ter contraponto em outras variáveis de fluxo e não em variáveis de estoque. Tem-se nesse ponto mais uma falha da teoria da subcapitalização material. Conclusões Verificam-se, portanto, os diversos problemas da teoria da subcapitalização material: Pressupõe que o capital social seja garantia dos credores, quando tal garantia se encontra no ativo social, que normalmente não coincide com o capital no decorrer da existência da sociedade; Impõe uso de fontes mais caras de financiamento, sem apontar razões econômicas que justifiquem sua utilização; Acarreta séria insegurança jurídica, ao exigir razões entre capital próprio e de terceiros as quais não são objetivamente definidas sequer na literatura financeira; Inibe, pelos possíveis efeitos de desconsideração, que os sócios assumam riscos que podem ser necessários à atividade empresarial; Confunde variáveis de estoque e de fluxo, ao contrapor capital e despesas.
O tratamento sobre habilitações e impugnações de crédito ainda não possui o amadurecimento necessário na doutrina e jurisprudência. Faço essa afirmação com base nos mais variados entendimentos sobre o tema e a profusão de situações que são vistas na prática forense. Por habilitação de crédito se entende a pretensão de ver seu crédito incluído no quadro geral de credores em processo de recuperação judicial ou de falência. Já os incidentes de impugnação ou divergência de crédito visam a correção de determinado crédito incluído, seja para modificar a classificação dada ao valor ou natureza do crédito, ou até mesmo para que se proporcione a exclusão de determinado crédito incluído pelo devedor ou pelo administrador judicial. Entretanto, o tema assume profundo relevo uma vez que são tais incidentes que ocasionam o grande volume de processos a serem julgados nas competências de falências e recuperações judiciais na justiça brasileira. Só na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, existe em tramitação o número de 18.792 processos, entre feitos principais e incidentes a eles relacionados. Além dos impactos na gestão judicial, a se considerar a otimização das rotinas judiciais e cartorárias para o cumprimento da razoável duração do processo (CF, art. 5º, LXXVIII), o grande volume dos processos nos quais tais questões são discutidas trazem implicações de ordem processual e tributária, na medida em que algumas legislações estaduais preveem o recolhimento de taxa judiciária para as habilitações retardatárias. Um primeiro problema enfrentado é que os incidentes de habilitação ou impugnação de créditos são resolvidos por decisões de mérito e não por sentenças. Tal circunstância ocasiona uma falsa percepção de produtividade judiciária em varas judiciais, pois, mesmo decidindo centenas ou milhares de processos, pela incompreensão dessa realidade diante do baixo número de sentenças prolatadas em feitos ligados à recuperação judicial ou falência, há a incorreta percepção de pouca produção das magistradas ou magistrados que atuam em tal competência. A situação, antes de 2018, no âmbito do Tribunal de Justiça de São Paulo, era ainda pior, pois a distribuição de um processo de habilitação ou divergência de crédito sequer era computada, para fins de contagem do número de processos da vara judicial, o que mudou após a edição do Comunicado CG 219/2018, o qual determinou que tais incidentes fossem distribuídos como ações judiciais autônomas, de modo a refletir a realidade das varas de falências e recuperações judiciais. Por mais que a jurisprudência venha se firmando no sentido de que as decisões em incidentes de habilitação ou impugnação de créditos assemelhem-se a sentenças judiciais, a medição da produtividade em nível de competência de falências e recuperações judiciais ainda precisa de um melhor olhar, computando-se também as decisões de mérito e não somente sentenças judiciais. Já em relação aos aspectos processuais e tributários relacionados a tais feitos, o primeiro ponto é saber se há diferenciação entre os incidentes. Há certo consenso na doutrina e na jurisprudência acerca da inexistência de diferença processual entre ambas as espécies, seja pelo texto do art. 7º, § 1º, da lei 11.101/2005, seja por força do § 5º do art. 10 do aludido diploma legal, que preceitua ser aplicado o procedimento das impugnações de crédito para as habilitações retardatárias. E o que são habilitações retardatárias? Pela leitura do art. 10, caput, da lei 11.101/2005, serão retardatárias as habilitações não propostas no prazo de 15 dias junto ao administrador judicial, conforme mandamento do art. 7º, § 1º, da lei de regência. Entretanto, nem sempre surgirá o interesse processual do credor em promover sua habilitação de crédito após a publicação do edital da lista da recuperanda/falida. Um exemplo seria a supressão do crédito pelo administrador judicial na lista do art. 7º, § 2º, da lei 11.101/2005, momento a partir do qual teria o credor o interesse processual de buscar eventual correção na lista de credores do processo de recuperação judicial ou de falência.  O entendimento que tem sido adotado na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo, até o presente momento, é o de que as habilitações e impugnações de crédito (diante da similitude dos procedimentos) serão consideradas retardatárias quando, a parte, com interesse de agir, não tiver observado: - O prazo de 15 dias previsto no art. 7, §1º, da Lei n. 11.101/05 ou, - O prazo de 10 dias previsto no art. 8º da Lei n. 11.101/05. E por serem retardatárias, os processos de habilitação e impugnação de crédito estão sujeitas ao recolhimento das custas nos termos do art. 4º, parágrafo 8º, da lei estadual 11.608/03, exceto no caso de pedido de gratuidade da justiça, que será analisado nos termos dos arts. 98 e ss. do CPC. Por tal razão é que se faz a distinção acima mencionada, malgrada a existência de doutrina que desconsidera a previsão do art. 10 da lei 11.101/2005, sem apresentar a devida justificativa para sustentar tal posicionamento. Há, ainda, outra controvérsia a ser dirimida, que reside em ser o prazo de 10 dias do art. 8º da lei 11.101/2005 peremptório ou não. No julgamento do REsp 1.704.201-RS, o voto vencido do Ministro Paulo de Tarso Sanseverino foi no sentido de se admitir a interposição de impugnações de crédito após o prazo do art. 8º da Lei 11.101/2005, observando-se o rito processual previsto nos arts. 13 a 15 do mencionado diploma legal, com necessidade de recolhimento de custas. Cito o seguinte o excerto: Possível, pois, concluir que a homologação do quadro geral consolidado é o marco fatal para impugnações embasadas em fatos conhecidos pelos credores, mas não suscitados em momento oportuno. A apresentação de impugnação extemporânea, mas antes da homologação do quadro de credores, poderá, assim, ser conhecida, exigindo-se, apenas, do impugnante o pagamento das custas respectivas. Todavia, no mencionado Recurso Especial, o voto vencedor foi da lavra da Ministra Nancy Andrighi, que considerou como peremptório o prazo do art. 8º para o credor-impugnante, verbis: A norma do artigo retro citado contém regra de aplicação cogente, que revela, sem margem para dúvida acerca de seu alcance, a opção legislativa a incidir na hipótese concreta. Trata-se de prazo peremptório específico, estipulado expressamente na lei de regência. O dispositivo, assim, é ele próprio o resultado da ponderação, levada a cabo pelo legislador, entre quaisquer princípios potencialmente colidentes (isonomia versus celeridade processual, p.ex.), não havendo espaço, nessa medida, a se proceder a interpretações que lhe tirem por completo seus efeitos, sob pena de se fazer letra morta da escolha parlamentar. Enquanto não consolidado o tema pela jurisprudência, para evitar maiores controvérsias sobre o tema e permitir o acesso à jurisdição, existem muitos precedentes no sentido de se admitir habilitações e impugnações retardatárias, até a consolidação do quadro geral de credores, cujo rito observará o previsto nos arts. 13 a 15 da lei 11.101/2005. Como critério de tempestividade, todavia, ainda não há consenso, ora se aplicando os prazos constantes ou do art. 7º, parágrafo 1º ou do art. 8º, da legislação de regência, somado ao nascimento do interesse processual para intervenção da parte, ora somente se aplicando o prazo do art. 8º da lei 11.101/2005. Como dito acima, no tocante às impugnações retardatárias, há entendimento de que a elas a lei 11.101/05 atribuiu as mesmas características e ritos das habilitações retardatárias (art. 10, §5º da lei 11.101/05), o que, por corolário lógico, implicaria, também, o recolhimento de custas (art. 10, §3º e §5º da lei 11.101/05). Cito como precedente utilizado sobre o tema, o Agravo de Instrumento autos nº 2173513-77.2020.8.26.0000, da relatoria do Desembargador Grava Brazil, data do julgamento: 08/04/2021, verbis: Agravo de instrumento - Incidente de impugnação de crédito - Decisão agravada que acolheu a alteração da classificação do crédito - Inconformismo das recuperandas - Não acolhimento - Pretensão do credor de alteração da classificação do crédito que possui conteúdo de impugnação de crédito (art. 8º, da Lei n. 11.101/05) - Impugnação de crédito retardatária que passou a ser expressamente reconhecida com a inclusão dos §§ 7º e 8º no art. 10 da Lei n. 11.101/05, com a reforma feita pela Lei n. 14.112/20 - Natureza alimentar do crédito discutido que ficou comprovada pelo teor da Confissão de Dívida, o qual é expresso a respeito da dívida ser originada de honorários advocatícios - Crédito relativo a honorários advocatícios que é equiparado ao crédito trabalhista - Crédito que fica mantido na Classe Trabalhista - Impugnação de crédito retardatária que se assemelha à habilitação de crédito retardatária no tocante ao recolhimento das custas iniciais (arts. 8º e 10 da Lei nº 11.101/05 e art. 4º, § 8º, da Lei Estadual nº 11.608/2003) - Contudo, o recolhimento de custas pelo credor, neste momento processual, não é necessário, tendo em vista a sucumbência das recuperandas e o disposto no art. 82, do CPC - Decisão mantida - Recurso desprovido.  (TJSP;  Agravo de Instrumento 2173513-77.2020.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro de Mairiporã - 2ª Vara; Data do Julgamento: 08/04/2021; Data de Registro: 08/04/2021)  Importante registrar que se tem imposto maior rigor na apreciação de questão relativa ao recolhimento de custas em São Paulo, mediante a edição do Provimento CG 01/2020, que alterou o art. 102, § 6º do artigo 1.093, "caput" do art. 1.098 e §1º do artigo 1.275 das NSCGJ, adequando-os ao disposto no artigo 1.007 do Código de Processo Civil, determinando mais acuidade com a verificação de recolhimento das taxas judiciárias pelos Juízos de primeira instância. Litigar no Brasil é barato. Em razão de uma visão de irrestrito acesso à jurisdição, tanto a concessão de justiça gratuita como a aplicação das taxas judiciárias têm sido um tema tratado de maneira lateral e insuficiente. Empiricamente é possível afirmar que a morosidade do sistema de justiça, nos dias atuais, está atrelada ao alto número de processos, ausência de filtro para o ajuizamento de demandas e recursos e uma cultura beligerante ainda ensinada nos bancos universitários. Diante dos índices de alta produtividade do Poder Judiciário1, divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça, por mais que juízas, juízes e servidores se dediquem ao cumprimento de seu dever, não haverá a devida satisfação esperada pela população brasileira. É preciso que modifiquemos nossa cultura jurídica com o fomento a métodos alternativos de resolução de conflitos, os quais devem prevalecer antes da fase judicial. Mas, se recorrer ao Judiciário for inevitável, é preciso maior acuidade com a concessão de benefícios processual, justamente para evitar a massificação de discussões judiciais, as quais, em matéria de falências e recuperações judiciais, funciona como meio de alavancagem processual na ilícita defesa de interesses não ligados aos fins dos procedimentos do sistema de insolvência. É imprescindível, nessa toada, que o tratamento dos processos de habilitações e divergências de crédito, que ocupam volume de relevo no cotidiano forense, tenha um olhar mais assertivo da comunidade jurídica, para melhor fluidez em sua tramitação e resolução de conflitos em tempo adequado e sem que o processo seja utilizado para acorbertar interesses divorciados das finalidades da recuperação judicial e da falência, ao prolongar discussões como forma de evitar o pagamento de créditos ou, ainda, como maneira de pressionar determinada parte, para conseguir melhor poder de negociação. __________ 1 No ano de 2022, a 01ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais de São Paulo promoveu a baixa de 6.754 processos, um número maior do que de distribuição de novos feitos, para o mesmo período, que ficou em 5.184 processos (números de janeiro a julho de 2022)
Introdução O direito das empresas em dificuldade tem por função responder ao risco inerente à atividade empresária. Inúmeros fatores econômicos, sociais, financeiros, jurídicos, sociais, dentre outros, podem levar o empresário (ou a sociedade empresária) ao enfrentamento de uma crise, de maior ou menor proporção. Diante de cada caso, o diagnóstico pode levar ao seu encerramento, com a falência, ou seu reerguimento, com a recuperação judicial ou extrajudicial. Entretanto, o manejo de tais institutos não acarretará, em regra, na incidência da desconsideração da personalidade jurídica, alcançando sócios e administradores, os quais não se confundem com a sociedade. I. O instituto da desconsideração da personalidade jurídica Mesmo passados muitos anos da previsão legal dos institutos de responsabilização, verifica-se ainda certa dificuldade em diferenciar o instituto da responsabilização dos sócios (a) e administradores de uma sociedade empresária (b), da desconsideração da personalidade jurídica. Ainda que ambos tenham como objetivo final a responsabilidade patrimonial de determinados agentes, cada um possui técnicas e pressupostos legais distintos. A. Os mecanismos de responsabilização dos sócios e administradores Há mais de cem anos, o Código Civil de 1916, estabeleceu expressamente no direito brasileiro o princípio da autonomia patrimonial. De acordo com o art. 20 daquele diploma1, a pessoa jurídica possui existência distinta da de seus membros, sendo capaz de deveres e direitos próprios, ostentando responsabilidade patrimonial própria. Nesse sentido, Pontes de Miranda2 já lecionava que: Ser pessoa é ser capaz de direitos e deveres. Ser pessoa jurídica é ser capaz de direitos e deveres, separadamente; isto é, distinguidos o seu patrimônio e os patrimônios dos que a compõe, ou dirigem. A previsão de autonomia patrimonial da pessoa jurídica foi um grande avanço para a atratividade dos investimentos, com a alocação de risco previsível. O sócio passou a ter noção perfeita do limite do risco do seu investimento, sabedor de que o máximo de perda (valor investido) é delimitado. Mesmo um século após o advento do Código Civil de 1916, e quase duas décadas da vigência no Código Civil de 2002, ainda foi necessária nova intervenção legislativa para explicitar o comando de 1916, o que se verificou com o novo art. 49-A do Código Civil, surgido com a Lei de Liberdade Econômica3. Assim, a sociedade é uma pessoa jurídica de direito privado e possui personalidade jurídica própria, com aptidão para responder pelos atos que pratica, diretamente com o seu patrimônio; preceito secular, mas de tão difícil compreensão prática, como já defendemos4: A pessoa jurídica é, assim, um instrumento indispensável para os incentivos empresariais dos agentes econômicos, dado que a sua criação proporcionou a limitação das eventuais perdas dos seus fundadores e a aglutinação de recursos dos sócios, permitindo a constituição de diversas sociedades que, se não fosse por sua criação jurídica (ficção jurídica), não existiriam. Em decorrência de seu significativo papel de incentivo aos agentes econômicos, a recente reforma da lei 11.101/05, pela lei 14.112/20, também reiterou o postulado da autonomia patrimonial, como se depreende do seu art. 6º-C: Art. 6º-C. É vedada atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial, ressalvadas as garantias reais e fidejussórias, bem como as demais hipóteses reguladas por esta lei. Nesse contexto, a sociedade é uma ficção jurídica, com existência limitada ao plano meramente jurídico, mas com personalidade, patrimônio e vontade distintas das dos sócios. Quanto à formação e manifestação de vontade das sociedades, nos sistemas jurídicos de tradição romano-germânica, adotou-se, comumente, a teoria organicista, em oposição à teoria da representação5. Assim, entende-se que a sociedade, por ser desprovida materialmente de meios próprios para manifestar sua vontade e realizar negócios jurídicos válidos de maneira autônoma, vale-se dos seus diversos órgãos para tanto. Estes podem ser divididos em órgãos de deliberação - assembleia geral, no caso das sociedades anônimas, conforme o art. 121 da lei 6.404/766; ou reunião de sócios, no caso das sociedades limitadas, na forma do art. 1.072 do Código Civil7 -, de controle (conselho fiscal) ou de execução (administração, direção) sendo certo que o administrador ou diretor apenas expressa a vontade da sociedade e não a sua própria, executando e pondo em prática aquilo que foi deliberado no órgão próprio de deliberação social da pessoa jurídica, desde que instaurados de acordo com as previsões legais e estatutárias aplicáveis. Nem sempre, entretanto, estes gestores atuam de acordo com os deveres e limites impostos pela lei e pelo objeto social. Podem atuar orientados por interesses diversos do interesse social, em benefício próprio, de terceiros ou mesmo de maneira contrária à lei. Desta forma, uma vez comprovada a extrapolação dos objetivos da sociedade ou a prática de atos abusivos por parte dos administradores, estes respondem pessoalmente pelos prejuízos causados. Contudo, não se quer dizer que estamos diante do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. A responsabilidade do administrador de sociedades anônimas está indicada no art. 158 da lei 6.404/76: Art. 158. O administrador não é pessoalmente responsável pelas obrigações que contrair em nome da sociedade e em virtude de ato regular de gestão; responde, porém, civilmente, pelos prejuízos que causar, quando proceder:I - dentro de suas atribuições ou poderes, com culpa ou dolo;II - com violação da lei ou do estatuto. No mesmo sentido, o art. 1.016 do Código Civil determina que os administradores respondem solidariamente perante a sociedade e os terceiros prejudicados, por culpa no desempenho de suas funções. Há ainda a possibilidade de aplicação supletiva das regras previstas na lei 6.404/76 às sociedades limitadas, na forma do parágrafo único do art. 1.053 do Código Civil, hipótese em que se autoriza a aplicação do já citado art. 158 daquele diploma para fins de responsabilização dos administradores pelo descumprimento de seus deveres. Essas são as matrizes da responsabilidade dos administradores de sociedades empresárias. Por outro lado, não se pode olvidar que, em determinados casos, prejuízos causados por condutas dos administradores estão abrangidos pelo próprio risco da atividade empresarial. A título de exemplo, o art. 159 da lei 6.404/76 prevê a possibilidade de exclusão da responsabilidade do administrador nos casos em que se comprove que agiu de boa-fé e visando ao interesse da companhia. Trata-se de regra inspirada na denominada teoria da Business Judgement Rule, criada no direito norte-americano com o objetivo de orientar a análise da regularidade das decisões tomadas pelos administradores de sociedades anônimas, visando diferenciar uma decisão de gestão equivocada de eventuais abusos. A diretriz determina que o administrador não será responsabilizado pelos prejuízos decorrentes de determinada medida quando, agindo de boa-fé, tenha tomado a decisão de forma refletida, fundamentada e informada8. Depreende-se, portanto, que a análise da responsabilização dos administradores não se confunde com o instituto da desconsideração da personalidade jurídica, prevista no art. 50 do Código Civil. Da mesma maneira, a lei prevê a possibilidade de responsabilização dos sócios controladores pelos prejuízos causados à sociedade e a terceiros, desde que presentes determinados pressupostos. Quando detentores de participação suficiente para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia - o que a lei denomina de poder de controle - podem ser responsabilizados em caso de abuso de poder, na forma do art. 117 da lei 6.404/769, aplicável subsidiariamente às sociedades regulamentadas pelo Código Civil. O regramento de conduta do acionista ou sócio controlador está prevista no art. 116, parágrafo único, da lei 6.404/76, norma que reflete a necessidade de proteção do denominado tríplice interesse transindividual societário10, ao dispor que a companhia deve atender aos direitos e interesses (i) do capital; (ii) do trabalho e (iii) da sociedade: Art. 116. P.ú. O acionista controlador deve usar o poder com o fim de fazer a companhia realizar o seu objeto e cumprir sua função social, e tem deveres e responsabilidades para com os demais acionistas da empresa, os que nela trabalham e para com a comunidade em que atua, cujos direitos e interesses deve lealmente respeitar e atender. Assim, o abuso do poder de controle não é causa para a desconsideração da personalidade jurídica, mas de responsabilização do sócio controlador. O enunciado 48 da I Jornada de Direito Comercial do Conselho da Justiça Federal bem exprime a assertiva, diferenciando a apuração da responsabilidade dos sócios, controladores e administradores da desconsideração da personalidade jurídica11: A apuração da responsabilidade pessoal dos sócios, controladores e administradores feita independentemente da realização do ativo e da prova da sua insuficiência para cobrir o passivo, prevista no art. 82 da Lei n. 11.101/2005, não se refere aos casos de desconsideração da personalidade jurídica. Diante do caso concreto, deve ser verificado se  a hipótese é de abuso de poder de controle, na forma prevista na lei 6.404/76, ou de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, com base no art. 50 do Código Civil, por se tratar de institutos diversos e com seus próprios requisitos legais. Leia a íntegra do artigo.  _____ 1 Art. 20. As pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros. 2 Como tivemos a oportunidade de escrever: "Os dispositivos do Código Comercial (1850) referentes às sociedades davam margem à dúvida sobre a consideração da personalidade jurídica, ao asseverar que dentre os sócios, ao menos um deveria ser comerciante, nos termos dos artigos 311; 315 e 317. Em 1916, o Código Civil dirimiu qualquer controvérsia ao indicar o nascimento da personalidade jurídica (artigo 18), bem como ao asseverar que as pessoas jurídicas têm existência distinta da dos seus membros (artigo 20). O mesmo caminho foi percorrido pelo Novo Código Civil, nos artigos 45 e 985." GUIMARÃES, Márcio Souza. Aspectos Modernos da Teoria da Desconsideração da Personalidade Jurídica. In: Revista da EMERJ. V. 7. N. 25. Rio de Janeiro: EMERJ, 2004, p. 231. 3 MIRANDA, Pontes de. Tratado de Direito Privado. Tomo I. Rio de Janeiro: Borsoi, 1970. p. 288. 4 Art. 49-A A pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. 5 GUIMARÃES, Márcio Souza. Redirecionamento da execução fiscal: novos contornos da jurisprudência. In: ARAÚJO FILHO, Raul; MARCONI, Cid e ASFOR ROCHA, Tiago. (coord.) Temas Atuais e Polêmicos na JUSTIÇA FEDERAL. Editora JusPodivm, 2018, p. 2. 6 Assim esclarece José Edwaldo Tavares Borba: "Os órgãos administrativos são os que dão vida à sociedade, fazendo-a funcionar. São dois esses órgãos: o conselho de administração e a diretoria. (...). Os administradores têm vários deveres para com a sociedade, podendo-se afirmar que o primeiro de todos esses deveres é o de bem administrá-la; deve o administrador agir com a competência, eficiência e honestidade que seriam de esperar de um homem 'ativo e probo' que estivesse a cuidar de seu próprio negócio." BORBA, José Edwaldo Tavares. Direito Societário. 14ª ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 307-405. Corroborando a teoria organicista, o TJSP já decidiu que "a agravante é sociedade empresária, constituída como sociedade anônima, que não tem representante legal, mas sim, presentante legal, na correta terminologia de Pontes de Miranda. A sociedade se faz presente na Assembleia de Credores e em qualquer outro ato ou negócio jurídico por seus diretores ou administradores, observada a aplicação da teoria organicista e não a teoria da representação." Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo.  Seção de Direito Privado. Câmara Especial de Falências e Recuperações Judiciais. Agravo de Instrumento 429.581.4/3-00. Relator: Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças. Data do Julgamento: 15.03.2006. p. 5. 7 Art. 121. A assembleia-geral, convocada e instalada de acordo com a lei e o estatuto, tem poderes para decidir todos os negócios relativos ao objeto da companhia e tomar as resoluções que julgar convenientes à sua defesa e desenvolvimento. 8 Art. 1.072. As deliberações dos sócios, obedecido o disposto no art. 1.010, serão tomadas em reunião ou em assembleia, conforme previsto no contrato social, devendo ser convocadas pelos administradores nos casos previstos em lei ou no contrato. 9 Sobre o tema, Alfredo de Assis Gonçalves Neto assevera que: "Por isso, na determinação da culpa, em qualquer de suas manifestações (in elegendo, in vigilando, por imprudência, negligência ou imperícia), com ou sem dolo, é preciso muita cautela para não inviabilizar o exercício dessa nobre profissão. É indispensável, na verificação da conduta do administrador, analisar sua postura profissional no cumprimento das suas obrigações, comparando-a com aquela que outra pessoa em igual posição normalmente faria se estivesse em seu lugar." NETO, Alfredo de Assis Gonçalves. Direito de Empresa - Comentários aos artigos 966 a 1.195 do Código Civil. 9ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2019, p. 262-263. No mesmo sentido, Nelson Eizirik esclarece que: "Como o dever de diligência não possui um conteúdo delimitado e não está codificado de maneira uniforme, foi desenvolvida, nos Estados Unidos, a partir do julgamento de ações de responsabilidade contra administradores, a chamada business judgement rule, para verificar se estes cumpriram o duty of care. A business judgement rule constitui um standard of judicial review, isto é, corporifica uma regra de controle judiciário sobre as decisões dos administradores, estabelecendo a presunção de que estes agiram de forma independente e desinteressada, com conhecimento e informações adequados, com boa-fé e acreditando que seus atos visaram a atender aos melhores interesses da companhia." EIZIRIK, Nelson; GAAL, Ariádna B; PARENTE, Flávia e HENRIQUES, Marcus de Freitas. Mercado de Capitais - Regime Jurídico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2019. P, 567-581. 10 Art. 117. O acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder. 11 SOUZA GUIMARÃES, Márcio. O Controle Difuso das Sociedades Anônimas pelo Ministério Público. Rio de Janeiro: Lumen Iuris, 2005, p. 22. 12 No mesmo sentido, o STJ bem delineou a distinção entre estes institutos: "Não há como confundir a ação de responsabilidade dos sócios e administradores da sociedade falida (art. 6º do decreto-lei 7.661/45 e art. 82 da lei 11.101/05) com a desconsideração da personalidade jurídica da empresa. Na primeira, não há um sujeito oculto, ao contrário, é plenamente identificável e evidente, e sua ação infringe seus próprios deveres de sócio/administrador, ao passo que na segunda, supera-se a personalidade jurídica sob cujo manto se escondia a pessoa oculta, exatamente para evidenciá-la como verdadeira beneficiária dos atos fraudulentos. Ou seja, a ação de responsabilização societária, em regra, é medida que visa ao ressarcimento da sociedade por atos próprios dos sócios/administradores, ao passo que a desconsideração visa ao ressarcimento de credores por atos da sociedade, em benefício da pessoa oculta". STJ. 4ª turma. REsp 1.180.191 - RJ. Relator: Ministro Luis Felipe Salomão. Data do Julgamento: 05.04.2011. DJe: 09.06.2011. p. 2. 
terça-feira, 12 de julho de 2022

A hora e a vez da SAF

Introdução  Estamos em um momento de profundas transformações na insolvência brasileira. Não à toa, Thomas Felsberg me chamou de lado na semana passada e, em mais uma das suas profecias, cravou direto ao gol: nosso tradicional departamento de insolvência agora passa a ser o departamento de Transformação, Reestruturação e Insolvência. A profecia é a tradução inteligente em palavras de algo que vimos observando há mais de dois anos. A evolução da jurisprudência e a reforma da lei de insolvência promovida pela lei 14.112/20 ("LRF") alteraram o pêndulo entre devedores e credores, privilegiando os últimos, e trouxeram maior segurança jurídica aos investidores. Grandes beneficiados pela última reforma da LRF, que almeja a manutenção ou reinserção eficiente de ativos na economia, os investidores vêm tomando confiança para desbravar o mercado de distressed, até então incipiente no Brasil. Isso se dá especialmente porque: (i) agora a cessão ou promessa de cessão de crédito tem que ser comunicada nos autos da recuperação judicial (§7º art. 39 LRF), garantindo maior transparência às transações nesse ambiente; (ii) há norma expressa na lei garantindo que os créditos cedidos a qualquer título manterão sua natureza e classificação (§3º, art. 83); (iii) não haverá sucessão do investidor ou novo administrador em decorrência da conversão de dívida em capital, aporte de novos recursos ou substituição dos administradores atuais dos devedores (§3º art. 50 LRF); (iv) as regras sobre as UPIs e a não sucessão do adquirente desses ativos estão mais claras e contundentes (arts. 60, 60-A, 142 LRF); (v) o financiamento a empresas em recuperação ("DIP") está mais seguro e garante privilégios e proteção eficiente ao financiador (art. 69 A-F). O resultado é que nunca se viu tantas operações estruturadas de alta complexidade em casos de insolvência. Na crise surgem as oportunidades. Credores vêm promovendo leilões regulares de seus créditos no mercado; fundos investidores se aproveitam do momento para investir em operações com alta rentabilidade e um risco (agora) controlado para quem souber dançar conforme a música. DIPs, apresentação de plano alternativo pelos credores, capitalização de créditos na devedora e implementação de nova gestão são alguns exemplos recentes deste território recém desbravado. Nesse contexto de transformações surge a SAF, por meio da lei 14.193 de agosto de 2021 ("Lei da SAF"), que promete revolucionar o meio futebolístico no curto prazo, ao criar a sociedade anônima do futebol, que aproveita diversos conceitos já testados pela LRF. Como se verá, a SAF trouxe um ambiente mais favorável aos negócios para o futebol brasileiro, ao segregar as atividades relacionadas ao futebol para uma nova estrutura, sem contaminação imediata com as dívidas atuais do clube. Essa nova estrutura necessariamente tem um sistema de governança exigido por lei, gestão profissionalizada e mecanismos societários que garantem transparência e segurança jurídica para atrair investimentos na área. Implementa, ainda, regimes fiscais mais benéficos aos clubes e abre novas possibilidades de reestruturação das dívidas. O momento é mais do que pertinente. Tradicionalmente os clubes de futebol pedalam para equilibrar suas contas. Com a pandemia, a crise se aprofundou a níveis alarmantes, impactando-os profundamente. No mundo polarizado de hoje, a torcida se divide de forma acirrada: alguns sedentos pela SAF, que traria uma mudança de patamar do futebol brasileiro com a entrada de recursos para investimento; outros avessos a ouvir a respeito, já que a SAF representaria a redenção do amado clube associativo, onde os torcedores associados têm voz e voto, às forças do capital. Fato é que, aos poucos, alguns clubes vêm aderindo à SAF e buscando a reestruturação de suas dívidas. No meio desse fla-flu, muitos investidores ainda observam desconfiados. Por enquanto. A tendência é que a SAF se consagre. E isso por um simples motivo: ela funciona bem. Apesar de alguns pontos de atenção na lei, que mereceriam ajustes, muitos dos seus conceitos estão alinhados com a LRF e com a jurisprudência dos tribunais.      De toda forma, com base nessas novas regras, é possível adotar uma série de soluções estruturantes que conciliem os interesses de parte a parte, tornem a atividade lucrativa, e ainda tragam benefícios sensíveis ao esporte e ao espectador. Mas é necessário achar o equilíbrio ótimo. Como a Lei da SAF importou diversos conceitos da LRF e inclusive abriu as portas para os clubes entrarem com pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial, é imprescindível que esses dois mundos - futebol e reestruturação - unam suas forças para gerar negócios que atinjam esses objetivos. Mas, afinal, o que é a SAF?  No Brasil, tradicionalmente a atividade futebolística é explorada por meio dos clubes, que podem ser estruturados tanto sob a forma de sociedades mercantis quanto de associações civis, modelo que prevalece na grande maioria deles. Com a promulgação da Lei 14.193/2021, agora o esporte poderá também ser explorado por meio da Sociedade Anônima do Futebol ("SAF").     O objeto social da SAF é o desenvolvimento da atividade relacionada ao futebol; a formação de atletas e a obtenção de receitas decorrentes das transações de seus direitos desportivos; a exploração de direitos de propriedade intelectual do clube; outras atividades conexas ao futebol (participação em sociedades, organização de eventos)1. A SAF poderá ser constituída de três formas: pela transformação do clube ou pessoa jurídica original em SAF; pela cisão do departamento de futebol do clube ou pessoa jurídica original, com o drop down de ativos relacionados à atividade futebol para essa nova estrutura; e pela iniciativa de pessoa natural ou jurídica ou de fundo de investimento. Especificamente no que tange à constituição da SAF via drop down de ativos, que mais se assemelha ao conceito de constituição de uma unidade produtiva isolada ("UPI") numa recuperação judicial, as atividades relacionadas ao futebol desenvolvidas pelos clubes são segregadas e cedidas para a SAF, que passa a deter os direitos e obrigações decorrentes dessas atividades. São, assim, obrigatoriamente transferidos à SAF todo esse conjunto de ativos, inclusive contratos de trabalho, contratos de direito imagem e uso, direitos e deveres relacionados a competições. Poderão ainda ser transferidos imóveis (instalações desportivas), móveis e outros tipos de ativo relacionados à atividade. Em troca, o clube receberá da SAF 20% da sua receita corrente líquida obtida com a exploração dos ativos, e ainda 10% ou mais das ações ordinárias da SAF (o clube ou pessoa jurídica original poderá integralizar a sua parcela ao capital social na SAF por meio da transferência dos seus ativos a ela). Como acionista, o clube terá alguns direitos especiais, como o direito de veto sobre as seguintes matérias sensíveis: (i) alteração da denominação; (ii) modificação dos signos identificativos da equipe de futebol profissional; (iii) mudança da sede para outro Município. Enquanto o clube mantiver participação de ao menos 10% do capital social votante ou total, também terá direito de veto sobre (iv) alienação, oneração, cessão, conferência, doação ou disposição de bens imobiliários ou direito de propriedade intelectual; (v) atos de reorganização societária; (vi) dissolução, liquidação e extinção; (vii) participação em ligas de clubes. Como já antecipado, obrigatoriamente a SAF terá uma estrutura de governança mínima constituída por Conselho de Administração, Conselho Fiscal, e diretores com dedicação exclusiva. Em mais uma similaridade com a UPI na recuperação judicial, a SAF não responde pelas obrigações e dívidas dos clubes anteriores ou posteriores à sua constituição, desde que cumpra suas obrigações financeiras para com os clubes. Ou seja, o clube permanecerá responsável pelas dívidas atuais, e deverá quitá-las com a destinação dos 20% das receitas mensais que receberá da SAF, ou 50% dos dividendos ou outras remunerações na condição de acionista da SAF, se optar por reestruturá-las por meio do RCE (vide abaixo). Caso opte por outras formas de quitação da dívida, em princípio essa remuneração poderá ser livremente utilizada pelo clube. Desde que a SAF cumpra com essas obrigações de pagamento perante o clube, seu patrimônio estará livre de qualquer sucessão nas dívidas preexistentes. Ressalte-se, no entanto, que a SAF poderá responder subsidiariamente pelas dívidas do clube, se este se tornar inadimplente com suas obrigações perante os credores. Este ponto, portanto, é extremamente sensível aos investidores, que idealmente deverão já estipular nos contratos de investimento com o clube a forma com que este deverá quitar seus credores, o que deve ser uma condição suspensiva ou resolutiva do negócio. De toda forma, essa nova estrutura promete proteger os interesses do investidor que, seguindo os termos da lei, em princípio encontrará um ambiente seguro para aportar recursos via equity ou dívida numa estrutura societária que protege o ativo futebolístico das dívidas anteriores, contraídas pelos clubes. Sob este regime, o investidor poderá receber dividendos, se a SAF der lucros, e participar efetivamente da gestão do negócio. Formas de Reestruturação do Endividamento dos Clubes  A Lei da SAF dá duas opções ao clube para reestruturar suas dívidas com a coletividade de credores: o Regime Centralizado de Execuções, ou a recuperação judicial ou extrajudicial, previstas na LRF. Essas opções, claro, não são taxativas, já que estamos no campo dos direitos disponíveis e passíveis de transação entre as partes.    Regime Centralizado de Execuções (RCE) Concentração das dívidas Por meio do RCE, todas as dívidas trabalhistas e cíveis dos clubes objeto de execução judicial serão concentradas num juízo centralizador, que será responsável por arrecadar os ativos e receitas e distribui-las entre os credores, organizando os pagamentos de forma alongada, segundo os critérios estabelecidos em lei. O clube terá o prazo inicial de 6 (seis) anos para pagamento da dívida e, se tiver pago pelo menos 60% das dívidas nesse período, poderá ter uma extensão de mais 4 (quatro) anos para sua quitação. A dívida é corrigida pela taxa SELIC durante o período. Embora não esteja clara a possibilidade de se impor um deságio coletivo aos credores sujeitos ao RCE2, a lei dispõe que o clube poderá realizar a negociação coletiva ou individual com seus credores para pagamento das dívidas. E credores que concordarem com a redução de pelo menos 30% do valor de face dos seus créditos poderão receber seus créditos de forma privilegiada. A lei infelizmente não regula a forma de aprovação de eventual acordo coletivo, nem prevê quórum de aprovação específico no RCE para que uma maioria de credores possa concordar com um possível deságio ou outra forma de pagamento dos seus créditos, diferente da originalmente contratada (prazos, valores, alterações nas ordens de prioridade, fontes de pagamento etc). Isso pode gerar questionamentos aos intérpretes da lei. Por exemplo, pode o clube impor deságio aos credores sem a anuência da unanimidade? Ou ainda, poderá estabelecer logo no início do RCE as regras para um acordo coletivo perante o juízo competente, estabelecendo quorum de aprovação para medidas de reestruturação/pagamento, desde que seja dada ciência e oportunidade de manifestação aos credores? Há bons argumentos para ambos os lados, mas particularmente não vejo óbice aos clubes e aos credores, sob a supervisão do juiz, estabelecerem a priori um mecanismo de aprovação de acordos coletivos, com o intuito de privilegiar a decisão de uma maioria. A jurisprudência deverá se encarregar do assunto.      Enquanto os pagamentos estiverem sendo cumpridos, é proibida a penhora ou qualquer constrição de bens do clube, num stay period similar ao que se observa na recuperação judicial e extrajudicial, só que de 10 anos (ao invés dos 180 dias prorrogáveis por mais 180 previstos na LRF). Essencial lembrar que se o clube não pagar a dívida nesse prazo, a SAF responderá subsidiariamente pelo pagamento das dívidas. Recuperação Judicial e Extrajudicial  Sem pretender entrar nos detalhes da recuperação judicial e extrajudicial, basta-nos relembrar que ambas as medidas têm por objetivo reorganizar a atividade empresarial e reestruturar as dívidas da empresa devedora, por meio de um plano de recuperação que vincula credores dissidentes. O plano de pagamento em ambos os procedimentos precisa ser aprovado por uma maioria dos credores, e depois homologado pelo juiz. Sabidamente, e como já introduzido neste artigo, hoje tanto a LRF quanto a jurisprudência caminharam para um ambiente de maior proteção, previsibilidade e segurança jurídica para os investidores. Logo, a recuperação judicial ou extrajudicial pode representar inúmeras vantagens, se comparadas ao RCE. Em primeiro lugar, a certeira aplicação da regra da maioria, obedecidos os quóruns específicos de cada procedimento, permitindo a adoção de amplas medidas de reestruturação (como aplicação de deságio, conversão de dívida em capital, financiamentos DIP, constituição de UPI, venda do CNPJ) sem que uma minoria insatisfeita possa impedi-las. Some-se a isso as regras protetivas ao investidor na compra de ativos, na aquisição de créditos na recuperação, no financiamento DIP, na conversão de créditos em capital. Nestes casos, a lei lhes garante a superprioridade de recebimento em caso de falência do devedor, a imutabilidade das garantias e do negócio com o desembolso dos recursos, e ainda a não contaminação dos credores e investidores nas dívidas do devedor, conforme aplicável.  Soluções Estruturantes  Fato é que ambas as alternativas para equacionamento da dívida dos clubes - RCE e recuperação judicial/extrajudicial - não são excludentes entre si. As duas, em conjunto ou sucessivamente, poderiam ser adotadas, ou ainda outras. Afinal, como a própria lei reforça, o direito de crédito das partes envolvidas é disponível, podendo o credor anuir, "a seu critério exclusivo", a deságio sobre o valor do crédito (art. 21 da Lei da SAF). Se pode anuir com o deságio, poderá também anuir com outras medidas de reestruturação.  A Lei da SAF, nesse sentido, veio para ajudar. Não só traz algumas formas de reestruturação do passivo dos clubes, como também melhora o ambiente de investimentos. E, ao absorver diversas inspirações da LRF, a Lei da SAF já nasce com certa segurança jurídica. Sabemos que a blindagem da SAF perante as dívidas dos clubes tem boas chances de funcionar, já que inspirada na UPI da recuperação judicial. A proteção dos credores que optarem por converter seus créditos em participação acionária na SAF também parece reforçada pela LRF e a jurisprudência. Portanto, nesse cenário de transformação, a criatividade deve imperar. Abre-se um caminho para a adoção de uma série de medidas conjugadas para a reestruturação saldável do clube e estabelecimento de uma atividade lucrativa. Por exemplo, com a possibilidade de cessão dos créditos no âmbito RCE (art. 22 da Lei da SAF), investidores poderiam adquirir créditos suficientes para em seguida participar de uma solução mais ampla de reestruturação do clube e da atividade futebolística, coordenada em conjunto com o clube e/ou SAF. Entram na mesa opções como a apresentação de um plano de RJ contemplando a conversão de créditos em capital na SAF, e a sub-rogação da SAF como credora do clube, ou a emissão de títulos de dívida pela SAF, ou ainda um DIP ao clube com garantia da SAF. A lei ainda prevê a possibilidade de emissão de debentures-fut para pagamento de parte da dívida do clube, tendo como garantia de pagamento as receitas a serem obtidas da SAF com a exploração das atividades. Nesse ponto, não há dúvida de que tivemos progresso palpável com a Lei da SAF. E o momento de investir nessas soluções é propício.   Conclusão  A Lei da SAF é mais um elemento que reforça o período de profunda transformação que estamos vivendo. Há, sem dúvida, um grande incentivo nas novas normas para profissionalizar o futebol brasileiro, numa estrutura mais amigável ao mercado, com governança própria e transparência. Isso ajuda a fomentar os negócios e permite melhor circulação de riquezas e investimentos no setor. Nessa toada, a lei incentiva a adoção de soluções criativas e combinadas, alinhadas entre as principais partes envolvidas: credores, investidores, SAF e clube. Para atingir e maximizar esses resultados, na esteira do que ocorre no ambiente da LRF, há um estímulo ao consenso e à autocomposição entre as partes, o que traz à tona um complexo trabalho transacional por detrás com a implementação de possíveis soluções estruturadas que redimensionem a dívida do clube à sua capacidade financeira, e ao mesmo tempo permitam o desenvolvimento de uma atividade que proporcione lucro aos acionistas/investidores. Nesse ambiente, é essencial que as partes cheguem num alinhamento prévio e amplo sobre as premissas básicas do negócio, que podem inclusive envolver temas sensíveis como percentuais de reinventimento mínimo na SAF, eventuais limites à distribuição de dividendos e outros limites ponderáveis que atendam aos anseios do clube, dos torcedores e investidores. Afinal, já restou demonstrado que, nesse jogo, o consenso é mais valioso que qualquer radicalidade.    Bibliografia  CASTRO, Rodrigo R. Monteiro de. Coordenador. Comentários à Lei da Sociedade Anônima do Futebol. 1ª Ed. São Paulo: Quartier Latin, 2021.  PEDRO, Paulo Roberto Bastos. A Recuperação dos Clubes de Futebol. In Lei de Recuperação e Falência. Coordenação  Paulo Furtado de Oliveira Filho. 1ª Ed. São Paulo: Foco, 2022. __________ 1 Art. 1º, §2º, da Lei da SAF.   2 A questão é que o artigo 21 da Lei da SAF diz que o credor poderá anuir, "a seu critério exclusivo", a deságio sobre o valor do débito, o que pode levar à interpretação de que a aprovação do deságio é sempre individual, não havendo meio de sujeitar o credor dissidente.
A execução fiscal e a falência têm em comum o fato de constituírem formas de execução, a primeira de índole individual, a ser proposta pelo credor fiscal, e a segunda, verdadeira execução concursal à qual concorrem os credores do devedor comum. Cada uma dessas espécies de processo tem regras próprias que lhes delimitam a competência, o objetivo precípuo e a forma de proceder, que se voltam, em última análise, à satisfação do crédito de forma individual, na primeira, e coletiva ou mais propriamente concursal, na segunda. Como todo e qualquer processo, ambas as formas de execução têm que ser aparelhadas com instrumentos hábeis ao exercício dos direitos de ação e de ampla defesa, para que possam levar à efetividade dos direitos. A lei das execuções fiscais (lei 6.830/80), em seu art. 5º, estabelece que: "A competência para processar e julgar a execução da dívida ativa da Fazenda Pública exclui a de qualquer outro juízo, inclusive o da falência, da concordata, da liquidação, da insolvência ou do inventário". Mesmo antes da reforma da lei falimentar, implementada pela lei 14.112/20, não obstante desvinculada a execução fiscal do juízo universal, não poderia prosseguir normalmente até a satisfação da Fazenda Pública, sob pena de afrontar as regras referentes à preferência dos créditos, pelo que eventuais valores auferidos  naquele juízo deveriam ser entregues ao juízo da falência1; agora, pelo que dispõe a lei falimentar, "as execuções fiscais permanecerão suspensas até o encerramento da falência, sem prejuízo da possibilidade de prosseguimento contra os corresponsáveis" (art.7º-A, §4º, inciso V, da lei 11.101/05). De forma clara e direta, o inciso II, do § 4º, do art. 7º-A, introduzido à lei falimentar pela lei 14.112/20, dispõe que: "a decisão sobre a existência, a exigibilidade e o valor do crédito, observado o disposto no inciso II do caput do art. 9º desta Lei e as demais regras do processo de falência, bem como sobre o eventual prosseguimento da cobrança contra os corresponsáveis, competirá ao juízo da execução fiscal". A prescrição e decadência2 são matérias relacionadas à exigibilidade dos créditos e que, portanto, pelo novo texto, não mais deveriam ser apreciadas pelo juízo da falência a teor do que consta do mencionado inciso. Até então, não havia qualquer dispositivo que tratasse especificamente da competência para dirimir questões relacionadas à prescrição ou decadência do crédito fiscal ou de outras espécies de créditos submetidos à falência antes das alterações trazidas pela lei 14.112/20; por sua vez, a jurisprudência era unânime no sentido de reconhecer a competência do juízo falimentar para apreciar essas matérias, inclusive, em relação ao crédito tributário3. E esse posicionamento jurisprudencial estava consonância com as disposições da Constituição, porque, por exemplo, com relação à competência da Justiça Federal e das execuções fiscais no geral, a própria lei Maior (art.109, inciso I) determina que compete aos juízes federais processar e julgar "as causas de interesses da União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho" (grifei) e também não há outro dispositivo constitucional que discipline a competência dos juízos das execuções fiscais de modo a implicar limitação à competência do juízo da quebra. Assim, as questões relativas à matéria falimentar no geral, mormente a verificação dos créditos e demais atos atinentes à apuração do ativo e pagamento do passivo da massa falida não competem à Justiça Federal ou aos juízos estaduais das execuções fiscais, ainda que se trate de créditos tributários, como também não se pode dizer que a nova regra do inciso II, do § 4º, do art. 7º-A, introduzido à lei falimentar pela lei 14.112/20, corresponde a qualquer determinação constitucional. Assim, com a introdução do mencionado dispositivo, é preciso indagar sobre a sua aplicabilidade aos créditos fiscais para os quais se pretende a habilitação na falência da devedora e, diga-se, a aplicabilidade de norma em vigor somente pode ser excepcionada diante de sua inconstitucionalidade, quando contraria princípios e garantias previstos na Constituição, ou no caso de conflito com outras regras do ordenamento, situação que leva a não aplicação da regra incoerente com o sistema, porque contradiz a finalidade, os objetivos, de determinado conjunto de normas. Nesse sentido, impende indagar logo de início se a norma contida no mencionado inciso II, do § 4º, do art. 7º-A, introduzido à lei falimentar pela lei 14.112/20, destoa do princípio da igualdade dos credores na falência. Veja-se que a lei determina que o credor, ao proceder a habilitação, deve indicar "...o valor do crédito, atualizado até a data da decretação da falência ou do pedido de recuperação judicial, sua origem e classificação" (inciso II, do artigo 9º, da lei 11.101/05). Contudo, essa regra é contrariada pelo novo dispositivo (art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF), pelo qual a higidez do crédito sequer teria que ser comprovada pelo credor fiscal no juízo em que tramita a falência da devedora, levando não somente ao conflito de regras como veremos, mas, ainda, conduzindo à verdadeira violação do tratamento isonômico, destoando injustificavelmente do que é determinado aos demais credores da falência. Por coerência, conclui-se que a referida regra privilegia o credor fiscal, tratando-o diferentemente dos demais, que têm que comprovar a exigibilidade dos seus créditos, violando o princípio da igualdade dos credores, que, em última análise, deriva do princípio constitucional da isonomia (art. 5º, caput, da CF/88). O dispositivo trazido com a reforma fere também o princípio da ampla defesa conferido às partes do processo de falência, consoante previsto na Constituição Federal, conforme disposto no art. 5º, LV, da CF/88. Com efeito, o art. 8º da lei 11.101/05 dispõe que: "...o Comitê, qualquer credor, o devedor ou seus sócios ou o Ministério Público podem apresentar ao juiz impugnação contra a relação de credores, apontando a ausência de qualquer crédito ou manifestando-se contra a legitimidade, importância ou classificação de crédito relacionado". Considere-se, desta maneira, que os demais credores que concorrem na falência podem ter legítimo interesse em se opor à pretensão do fisco quanto à questão da exigibilidade do crédito fiscal na falência. Na execução fiscal, dado seu caráter individual, figuram como partes apenas o credor fazendário, a devedora e eventuais corresponsáveis; nesse processo, os demais credores da falência não estarão no cenário da execução concursal, podendo ser questionada a legitimidade da defesa de seus interesses, para que possam se insurgir contra a higidez do crédito fiscal nessa seara, fechando-lhes a via de impugnação, negando-lhes a ampla defesa4. Algumas normas, instituídas em benefício ou para regular o direito de ação (como é o caso daquelas que, dentre outras, regulam a competência), como advertem Marinoni, Arenhart e Mitidiero, "...inegavelmente limitam o direito de defesa. Essas normas, embora possam afetar uma posição jurídica situada no âmbito de proteção do direito fundamental, não podem violar o seu núcleo fundamental"5 e é exatamente isso o que ocorre com o dispositivo aqui abordado, que obsta a defesa dos interesses dos credores concursais, por submeter a questão de higidez do crédito fazendário somente ao juízo da execução individual. Some-se ainda o prejuízo à razoável duração do processo que causaria a aplicação da nova regra, levando toda a discussão sobre a higidez do crédito tributário para outro juízo, que mormente não caminha no mesmo compasso que o juízo falimentar e pode até estar localizado em outro foro, dificultando sobremaneira o rápido desenvolvimento da defesa dos interesses da massa, isso sem falar naqueles casos em que não houver sido ajuizada a respectiva execução fiscal, obrigando o administrador judicial à propositura de específica ação para ver declarada a prescrição ou a decadência do crédito fiscal. Pondere-se que a razoável duração do processo6 é garantia prevista em sede constitucional (art. 5º, LXXVIII)7 e que deve ser sopesada juntamente com a eficiência, os custos do processo, as consequências negativas do congestionamento judicial e, principalmente, os prejuízos causados ao devedor e aos credores pela demora da solução à crise da empresa. A aplicação do referido dispositivo do art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF, portanto, cria situação excepcional que não se aplica aos demais credores, instituindo privilégio que não se justifica diante da par conditio creditorum, burlando a análise sobre a exigibilidade do crédito no processo de falência, que é absolutamente essencial à natureza concursal desse procedimento, ferindo os princípios da isonomia, da ampla defesa e da razoável duração do processo, previstos na Constituição. Tomemos em conta que a natureza, a função e o conteúdo jurídico, formal e material dos princípios, sejam eles expressos ou implícitos, demonstram os valores hermenêuticos superiores construídos pela sociedade, ínsitos na estrutura e na unidade do sistema jurídico, constituindo suas normas fundamentais8. Além de inconstitucional, a mencionada regra contraria frontalmente outras regras da lei falimentar. E, nesse sentido, é preciso dizer que, a partir do momento em que o devedor tem a quebra decretada, forma-se o juízo universal da falência, responsável pela deliberação acerca de todos os créditos e demais discussões atreladas à massa falida, incluindo-se aí possíveis digressões sobre o tema da exigibilidade, com a verificação da decadência ou prescrição dos créditos. A limitação de recursos na falência é evidente e leva, na grande maioria das situações, à necessidade de se recorrer ao rateio dos limitados ativos realizados e, nesse contexto, o inciso I do art. 5º da LRF dispõe que são inexigíveis ao devedor, na recuperação judicial ou na falência, as obrigações a título gratuito. Observar o disposto na regra contida no art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF, fatalmente implicará o reconhecimento do direito de compor o quadro geral de credores da falência com créditos que podem ter perdido a exigibilidade, seja pela prescrição ou pela decadência, o que corresponde ao cumprimento de obrigações a título gratuito. Nessa hipótese, há evidente contradição do disposto no art. 7-A, §4º, inciso II, da LRF, com o disposto no art. 5º, inciso I, da mesma lei. Lembremos que conflito entre regras fatalmente leva à necessidade de não aplicação de uma delas e, no presente caso, há que se eleger aquela que se amolda perfeitamente ao sistema concursal criado pela lei 11.101/05, que certamente não será a norma disposta no art. 7º-A, §4º, inciso II, da LRF. A alternativa para evitar o pagamento desses créditos indevidos seria a suspenção das habilitações de créditos impugnados com fundamento na eventual prescrição ou decadência, para a discussão na seara da execução fiscal, se ajuizada, ou em ação própria, se não ajuizada, o que, como abordado, comprometeria a razoável duração do processo e a ampla defesa dos interesses pelos demais credores da massa. Em suma, as questões atinentes à prescrição ou à decadência são matérias de ordem pública e podem ser alegadas a qualquer tempo e em qualquer grau de jurisdição, não havendo qualquer tipo de restrição quanto ao reconhecimento desta matéria pelo juízo que seja competente para o processo de falência da devedora, parecendo-nos inaplicável o disposto no art. 7-A, §4º, inciso II, da LRF, seja pela evidente inconstitucionalidade, seja pela incongruência com outras disposições da lei falimentar. No contexto de toda essa discussão, nos poucos casos que chegaram aos nossos tribunais após a última reforma da lei falimentar, ainda longe de se encontrar posição pacífica, tem se mostrado dividida a jurisprudência, ora reconhecendo a aplicabilidade da regra contida no art. 7-A, §4º, inciso II, da LRF9, ora reconhecendo que o juízo da quebra continua competente para pronunciar a prescrição ou decadência do crédito tributário submetido ao processo de falência10. Aguardemos, então, a evolução da doutrina e a posição dos nossos tribunais sobre essa relevante questão, até mesmo porque se refere à competência absoluta, instituída em razão da matéria, constituindo questão fundamental e de suma importância para o concurso de credores. _____ 1 Cf. THEODORO JUNIOR, Humberto. Lei de Execução Fiscal. Comentários e Jurisprudência. 12ª Edição. São Paulo: Saraiva. 2011, pp.94-95; ALVES, Renato de Oliveira. EXECUÇÃO FISCAL. Comentários à Lei 6.830/80. 1ª edição. Belo Horizonte: Del Rey. 2008, p.44. 2 O desenvolvimento das relações jurídicas, consoante aponta a doutrina, "não se põe imune aos efeitos inexoráveis do tempo. O pensamento jurídico concebe, assim, institutos que, vinculados a um certo intervalo temporal, criam, modificam ou extinguem direitos para os sujeitos do negócio jurídico, em nome de um elemento axiológico de maior relevo, qual seja, a segurança jurídica (cf. SABBAG, Eduardo. Manual de Direito Tributário. 12ª edição. São Paulo: Saraiva. 2020, pp.995-996). 3 Nesse sentido: TJSP - Ap 1005334-92.2000.8.26.0100, Rel. Fábio Podestá, j: 22/8/16, 5ª câmara de Direito Privado, DJe: 22/8/16; TJ/SP Apelação 0073102-95.2013.8.26.0100   Rel. Des.  J.L. Mônaco da Silva. Comarca:  São Paulo Órgão julgador:  5ª câmara de Direito Privado. Data do julgamento:  16/3/16; TJ/SP. Apelação 1031494-52.2003.8.26.0100. Rel. Des. Vito Guglielmi Comarca:  São Paulo. Órgão julgador: 6ª câmara de Direito Privado. Data do julgamento: 2/6/16. 4 Sob perspectiva abrangente, a ampla defesa implica necessidade de informação sobre a existência do processo, o direito ao prazo adequado para resposta, a liberdade de levar ao conhecimento do juiz todos os elementos úteis e principalmente a possibilidade de se opor à pretensão da parte contrária nos pontos em que contrariam as suas pretensões (Cf. COUCHEZ, Gérard. Procédure Civile. 15ª edição. Paris: Dalloz. 2008. p.246-249). 5 Cf. MARINONI, Luiz Guilherme, ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel. O novo Processo Civil. 1ª edição. São Paulo: Editora revista dos tribunais. 2015, p.155. 6 Como bem adverte a doutrina: "De nada adianta o belo discurso que se faz em torno da garantia constitucional de um processo com duração razoável se, na prática, sequer há instrumentos efetivos para permitir a concretização desse direito" (cf. BONÍCIO, Marcelo José Magalhães. Princípios do Processo no novo Código de Processo Civil. 1ª edição. São Paulo: Saraiva. 2106, p.173). 7 Art. 5º, LXXVIII, da CF: "a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação". 8 Cf. HESPANHA, Benedito. "O Direito Processual e a Constituição. A relevância hermenêutica dos princípios constitucionais do processo", in Revista de Direito Constitucional e Internacional. N.48, julho-setembro de 2004, p.23. 9 Nesse sentido: AI. 2136344-22.2021.8.26.0000, Comarca de São Paulo, TJSP, 6ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Christiano Jorge, v.u., j. 1º/6/22; AI. 2228277-76.2021.8.26.0000, Comarca de São Paulo, TJSP, 1ª câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Alexandre Lazzarini, v.u., j. 10/12/21. 10 Nesse sentido: Apelação 1054632-86.2019.8.26.0100, Comarca de São Paulo, TJSP, 7ª Câmara de Direito Privado, rel. Des. Miguel Brandi, v.u., j. 19/8/21. Ementa: "HABILITAÇÃO DE CRÉDITO - Falência - Improcedência - Insurgência da União Federal - Descabimento - Apelação que é o recurso adequado para impugnar a decisão proferida em habilitação de crédito - Falência que é anterior à nova Lei de Falências e Recuperações - Inteligência do art. 192 da Lei nº 11.101/05 - Preliminar do Ministério Público afastada - Mérito - No caso, compete ao juízo universal da falência deliberar sobre a prescrição do crédito tributário - Prescrição intercorrente caracterizada - Inaplicabilidade do art. 7º-A, § 4º, inciso II, da lei 11.101/05 - Execução fiscal arquivada, ante a falta de andamento há mais de seis anos e qualquer ato constritivo há quase duas décadas - União que optou por habilitar o crédito, submetendo-se ao juízo universal da falência - Desistência manifestada durante o trâmite desta habilitação que também deve ser considerada - RECURSO IMPROVIDO".
terça-feira, 10 de maio de 2022

Insolvência e arbitragem

1) Introdução. A consolidação da arbitragem no Brasil teve alguns marcos relevantes, dentre os quais: (i) a edição da Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996 ("Lei nº 9.307/1996" ou "Lei de Arbitragem"); (ii) a declaração incidental da sua constitucionalidade pelo Supremo Tribunal Federal ("STF") no julgamento da SE 5.206; (iii) a posterior ratificação pelo Brasil da Convenção de Nova Iorque pelo Decreto nº 4.311, de 23 de julho de 20021; e (iv) o reconhecimento da natureza jurisdicional da arbitragem, a essa altura uniforme na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça2 ("STJ"). A partir da assunção do entendimento de que a arbitragem tem natureza jurisdicional surgiu a possibilidade, em tese, de ocorrerem conflitos de competência entre os juízos estatal e arbitral, possibilidade essa admitida, sem maiores controvérsias, no âmbito da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, cuja normativa constitucional, confere competência para apreciar e julgar tais conflitos3. O objetivo deste artigo é analisar os reflexos dos princípios da kompetenz-kompetenz, positivado no art. 8º, parágrafo único, da Lei de Arbitragem4, e o da preservação da empresa, consagrado no art. 47 da lei 11.101/055 ("LFR"), na identificação do juízo competente em casos de conflito de competência entre tribunal arbitral e juízo da recuperação judicial.   2) O PRINCÍPIO DA PRESERVAÇÃO DA EMPRESA E A COMPETÊNCIA PARA A PRÁTICA DE ATOS QUE AFETEM O PATRIMÔNIO DO DEVEDOR EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL. A lei 11.101/05 disciplina a recuperação judicial, a recuperação extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. O art. 3º da LFR estabelece que é "competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil"6. Portanto, o juízo do principal estabelecimento do devedor é o competente para processar a recuperação judicial do devedor.  O STJ tem inúmeros precedentes em que esclarece que nem todas as ações contra a empresa em recuperação são processadas no juízo da recuperação judicial. No REsp 1.236.664/SP, por exemplo, o STJ afirmou que "as ações em que a empresa em recuperação judicial, como autora e credora, busca cobrar créditos seus contra terceiros não se encontram abrangidas pela indivisibilidade e universabilidade do juízo da falência, devendo a parte observar as regras de competência legais e constitucionais existentes"[7]. Na recuperação judicial a regra é que as ações, na fase de conhecimento, tramitem normalmente nos seus respectivos juízos até a quantificação dos créditos. Nesse sentido, o art. 6º, §1º da LFR[8] estabelece que terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida. A finalidade do dispositivo legal é no sentido de que as fases de conhecimento e liquidação (verificação da existência e a quantificação do crédito) sejam julgadas pelo juízo ordinariamente competente para apreciar a demanda como um todo. No entanto, o referido dispositivo legal transfere a competência de execução - que ordinariamente seria do juízo de conhecimento - ao juízo da recuperação judicial, passando este, por força de lei específica, a ser o competente para a prestação jurisdicional de medidas executórias. Essa finalidade se fundamenta, tanto no necessário tratamento isonômico entre os credores, conforme a sua classe, quanto - e principalmente - nos impactos que eventuais decisões executivas proferidas pelos juízos de conhecimento poderiam causar no processo de recuperação judicial, cujo bem jurídico tutelado é a atividade empresária. Além da disposição legal prevista no §1º do art. 6º, os incisos II e III e §4º do mesmo artigo, preveem que deferido o processamento da recuperação judicial, as execuções contra o devedor são suspensas, bem como são proibidos atos de constrição sobre seus bens, pelo prazo de 180 dias. Contudo, os créditos não sujeitos à recuperação judicial, como o tributário, não têm a sua execução suspensa pelo deferimento do processamento da recuperação judicial. Não obstante a regra geral acima exposta, a jurisprudência orienta-se no sentido de que compete exclusivamente ao juízo da recuperação judicial adotar as medidas necessárias para garantir o sucesso do processo de soerguimento, bem como para decidir sobre as questões que envolvam interesses das empresas recuperandas. Essa orientação tem fundamento no princípio da preservação da empresa, positivado no art. 47 da LFR, o qual, tal como os objetivos que representa, têm fundamento no princípio constitucional da livre iniciativa e traduzem, na ordem infraconstitucional, os objetivos fundamentais da Constituição da República Federativa do Brasil ("CRFB") previstos no art. 3º, designadamente nos incisos I a III. Por isso, constituem diretriz a ser seguida sempre que há risco de inviabilização do plano de soerguimento da atividade empresária, com frustração da finalidade da recuperação judicial. Nesse sentido, a Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça já pacificou o entendimento de que compete ao juízo da recuperação judicial, com exclusividade, adotar as medidas necessárias para resguardar os bens e interesses das recuperandas: "AGRAVO REGIMENTAL NO CONFLITO DE COMPETÊNCIA. EXECUÇÃO FISCAL E RECUPERAÇÃO JUDICIAL. COMPETÊNCIA DO JUÍZO UNIVERSAL. 1. O juízo onde se processa a recuperação judicial é o competente para julgar as causas em que estejam envolvidos interesses e bens de empresas recuperandas. 2. O deferimento da recuperação judicial não suspende a execução fiscal, mas os atos de execução devem-se submeter ao juízo universal. 3. A Lei n. 11.101/2005 visa a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, a teor de seu art. 47. 4. Agravo regimental a que se nega provimento."(grifou-se)9. *** "AGRAVO INTERNO NO CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA. RECUPERAÇÃO JUDICIAL. MEDIDAS DE CONSTRIÇÃO DE BENS INTEGRANTES DO PATRIMÔNIO DA EMPRESA. DECISÃO AGRAVADA QUE DEFERIU A LIMINAR PARA SUSPENDER A AÇÃO DE EXECUÇÃO CONTRA A SUSCITANTE. PRESENÇA DOS REQUISITOS LEGAIS (FUMUS BONI IURIS E PERICULUM IN MORA). QUESTÕES TRAZIDAS PELA AGRAVANTE QUE SERÃO ANALISADAS POR OCASIÃO DO JULGAMENTO DE MÉRITO. AGRAVO DESPROVIDO. 1. O entendimento da Segunda Seção desta Corte é no sentido de ser o Juízo onde se processa a recuperação judicial o competente para julgar as causas em que estejam envolvidos interesses e bens da empresa recuperanda, inclusive para o prosseguimento dos atos de execução que envolvam créditos apurados em outros órgãos judiciais. 2. As questões suscitadas pela agravante serão analisadas por ocasião do julgamento de mérito do presente conflito, devendo ser mantida, assim, a decisão agravada que deferiu a liminar para suspender os atos executórios em relação à empresa em recuperação judicial. 3. Agravo interno desprovido." (grifou-se)10. *** "AGRAVO INTERNO NO CONFLITO POSITIVO DE COMPETÊNCIA SUSCITADO POR EMPRESA EM RECUPERAÇÃO JUDICIAL EM FACE DE JUÍZO DO TRABALHO. COMPETÊNCIA DO JUÍZO FALIMENTAR. 1. A execução individual trabalhista e a recuperação judicial apresentam nítida incompatibilidade concreta, porque uma não pode ser executada sem prejuízo da outra. 2. O Juízo universal é o competente para julgar as causas em que estejam envolvidos interesses e bens da empresa recuperanda, inclusive para o prosseguimento dos atos de execução, ainda que o crédito seja anterior ao deferimento da recuperação judicial, devendo, portanto, se submeter ao plano, sob pena de inviabilizar a recuperação. Precedentes do STJ. 3. Competência do Juízo de Direito da 1.ª Vara Cível de Santa Helena de Goiás/GO, para o prosseguimento de execuções trabalhistas. 4. Agravo interno desprovido."(grifou-se)11. Assim, a jurisprudência do e. Superior Tribunal de Justiça é uníssona no sentido de que incumbe, com exclusividade, ao juízo onde se processa a recuperação judicial deliberar e decidir acerca das questões sensíveis às empresas em recuperação judicial. Portanto, o STJ vem entendendo que compete ao juízo recuperacional decidir determinadas matérias quando estas puderem comprometer profundamente a recuperação da empresa. Essa construção pretoriana que resultou na ampliação da competência do juízo da recuperação judicial se verifica em cada caso concreto quando a recuperação judicial estiver em risco. Assim, esse alargamento de competência tem inspiração no poder geral de cautela do magistrado, isto é, compete ao juízo decidir as questões que assegurem o resultado útil do processo. No caso específico do processo de recuperação judicial, compete ao juiz decidir as questões que possam comprometer a recuperação da empresa em crise. A doutrina de Fábio Ulhoa Coelho reforça esse entendimento: "Concluindo, o juízo recuperacional tem competência para zelar para que os objetivos do processo de recuperação judicial não sejam comprometidos por conta do aproveitamento oportunístico da vulnerabilidade momentânea da empresa do devedor. Mas não existe uma regra geral de invariável aplicação acerca da matéria, até mesmo porque a alta complexidade e dinâmica da matéria não permitem a sua elaboração. Para que a recuperação judicial não seja instrumento de ganhos indevidos nas mãos de credores, concorrentes ou mesmo sócios minoritários, em detrimento da superação da crise da empresa, o juízo recuperacional deve intervir, analisando os meios e alcances da intervenção casuisticamente"12. 3) O PRINCÍPIO DA KOMPETENZ-KOMPETENZ. O princípio da kompetenz-kompetenz (competência-competência) consagra que o árbitro é competente para decidir acerca da própria competência para analisar e decidir sobre a existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do próprio contrato em que consta a cláusula arbitral13. O princípio confere ao árbitro poderes para declarar que tem competência para julgar uma demanda arbitral ou declarar-se incompetente. Nesta segunda hipótese, será atribuição do Poder Judiciário a apreciação da demanda. Sua finalidade é proteger a eleição da arbitragem como método de resolução de litígio. Nesse sentido, por todos, a lição de Carlos Alberto Carmona14: "Agora o parágrafo único do art. 8º não deixa margem alguma a dúvidas, atribuindo ao árbitro o poder de decidir sobre a existência, validade e eficácia da cláusula de compromisso, bem como do próprio contrato que contenha a cláusula compromissória. Consagrou-se, em outras palavras, a autonomia da cláusula compromissória: ainda que o contrato em que esta esteja inserida seja viciado, a mesma sorte não terá - necessariamente - a cláusula. E diz-se necessariamente porque, em algumas hipóteses, será inevitável a falência da cláusula compromissória diante da destruição do contrato em que estiver inserida: basta imaginar que o contratante seja incapaz, que a assinatura aposta no instrumento seja falsa etc. Caberá portanto, ao árbitro decidir se o ato das partes que estabelece sua própria competência tem ou não eficácia. Se o árbitro decidir pela nulidade da convenção de arbitragem, proferirá sentença terminativa (o laudo, portanto, terá conteúdo meramente processual)". O alcance do princípio da kompetenz-kompetenz foi discutido pela Terceira Turma do STJ, no julgamento do REsp 1.355.831/SP15, interposto por Massa Falida, com alegação de invalidade da cláusula arbitral e de incompetência do juízo arbitral. Por unanimidade a Turma desproveu o recurso especial. O voto do Relator, e. Ministro Sidnei Beneti, afastou a alegação de invalidade da cláusula arbitral e de incompetência do juízo arbitral, mediante o argumento de que "a matéria relativa a validade da cláusula arbitral deve ser apreciada, primeiramente, pelo próprio árbitro nos termos do artigo 8º da Lei de  Arbitragem, sendo ilegal a pretensão da parte do de ver declarada a nulidade da convenção de arbitragem pela jurisdição estatal antes da instituição procedimento arbitral, vindo ao Poder Judicial sustentar defeitos de cláusula livremente pactuada pela qual se comprometeu a aceitar a via arbitral, de modo que inadmissível a prematura judicialização estatal da questão." Em seu voto, o e. Ministro Sidnei Beneti, cita o acórdão de sua relatoria, no REsp 1.302.900/MG16, que inadmitiu a judicialização prematura da alegação de nulidade da cláusula arbitral com fundamento no art. 8º, parágrafo único da Lei de Arbitragem. Foi, portanto, definido que a existência, validade e eficácia da cláusula compromissória não está sujeita a prévio controle pelo Poder Judiciário, por caber ao árbitro decidir primeiramente sobre toda competência. Considero importante também destacar trecho do voto-vista da e. Ministra Nancy Andrighi neste acórdão, voto esse que adentra temas relevantes para situações em que a discussão a respeito da ratio do princípio da kompetenz-kompetenz e o conflito de competência ocorre entre o juízo arbitral e o juízo da insolvência: "Todavia, a incidência simultânea das regras dos arts. 6º, 76 e 117 da Lei nº 11.101/05 à hipótese dos autos, em razão da quebra da empresa compromissada, que fora decretada antes da instalação do juízo arbitral, acrescenta dúvidas razoáveis acerca da força vinculativa da referida cláusula. Isso porque, a partir da leitura dos referidos artigos da nova Lei de Falências, infere-se: i) a vis attractiva do juízo universal da falência; ii) a suspensão, em regra, de todas as ações e execuções em trâmite perante outros juízos que não o falimentar; e iii) a necessidade de o administrador judicial decidir acerca do interesse no cumprimento dos contratos vigentes quando da decretação da quebra. (...) Por fim, conjugando-se essas considerações à interpretação do art. 76 da Lei nº 11.101/05, que excepciona da vis attractiva do juízo falimentar as causas, não disciplinadas por esta lei, em que o falido figure como autor, é de se concluir que o juízo arbitral, instaurado para apuração de crédito em favor do falido, não sofrerá os efeitos da decretação da falência, devendo, observar contudo, a representação judicial do falido pelo síndico da massa falida, nos termos do parágrafo único do art. 76 da Lei nº 11.101/05. (...) Assim, não cabe ao Poder Judiciário brasileiro suspender a instituição, initio litis, de uma arbitragem. Isso não significa, por outro lado, que as contratantes estejam impedidas de levar a matéria relativa à validade da referida cláusula arbitral ao Judiciário pátrio, haja vista tratar-se de direito constitucionalmente garantido; bem como não as impede de requerer, futuramente, a nulidade desse procedimento arbitral. Todavia, essas discussões não se darão, originariamente, no âmbito do Poder Judiciário, que apenas detém competência para execução ou homologação da futura sentença arbitral, conforme a hipótese concreta." (grifou-se). Em síntese, o princípio kompetenz-kompetenz significa que cabe ao próprio árbitro manifestar-se em primeiro lugar sobre a própria competência, mas não impede a posterior discussão da validade da cláusula compromissória perante a jurisdição estatal, em ação de declaração de nulidade da sentença arbitral, (art. 33 da Lei de Arbitragem) ou em impugnação ao cumprimento da sentença arbitral (§3º do art. 33 da Lei de Arbitragem). O §9º do art. 6º da LFR17, incluído pela lei 14.112/20, incorporou ao direito positivo a orientação fixada no Enunciado nº 6 da I Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios do Conselho da Justiça Federal: "O processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impede a instauração do procedimento arbitral, nem o suspende"18. Dessa forma, não há impedimento absoluto para a arbitragem, mas apenas restrições aos poderes do árbitro em determinadas hipóteses. Essa norma deve ser interpretada sistematicamente com o caput e os §§1º e 2º do art. 6º da LFR, dos quais decorre que as ações de que demandem quantia ilíquida não são suspensas pela decisão que defere o processamento da recuperação judicial. Logo, se o processo arbitral tem por objeto crédito controvertido decorrente de fato anterior ao ajuizamento da recuperação judicial, tal como ocorre nas ações em curso perante a jurisdição estatal, a arbitragem prosseguirá até a definição do valor devido, que deverá ser habilitado para ser pago na forma do plano de recuperação judicial. Trata-se de inovação salutar, no sentido de esclarecer que o empresário em recuperação judicial e a massa falida têm capacidade de ser parte em processo arbitral.19 Entretanto, o §9º do 6º da LFR não trata da arbitrabilidade objetiva, que decorre de algumas restrições no caso de devedores em recuperação judicial. 4) CONFLITOS DE COMPETÊNCIA ENTRE JUÍZO ARBITRAL E JUÍZO DA RECUPERAÇÃO JUDICIAL - ANÁLISE DA JURISPRUDÊNCIA DO STJ. Os princípios da preservação da empresa e da competência-competência não são inconciliáveis, porque as competências expressas e implícitas do juízo da recuperação judicial são privativas e absolutas. Já os poderes conferidos ao árbitro, os quais decorrem do princípio da competência-competência, lhe asseguram a prerrogativa de se manifestar em primeiro lugar sobre a própria competência para decidir sobre a existência, validade e eficácia da cláusula compromissória. Mas o árbitro não tem poderes absolutos e privativos, de sorte que a última palavra caberá sempre ao juiz estatal, inclusive em razão da garantia constitucional da proteção jurisdicional. Da análise dos acórdãos da Segunda Seção do STJ e dos votos proferidos no Conflito de Competência 111.230/DF20 e no AgInt no Conflito de Competência 153.498/RJ21 em que os juízos conflitados foram arbitral e da recuperação judicial é possível concluir, em raciocínio indutivo, que o princípio da kompetenz-kompetenz ganha relevo antes do pronunciamento do tribunal arbitral a respeito da própria competência. Efetivamente, no CC 111.230/DF, da relatoria da e. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 08/05/2013, DJe 03/04/2014, no qual figuram como suscitados o Tribunal Arbitral do Centro de Arbitragem e Mediação da Câmara de Comércio Brasil - Canadá e o Juízo de Direito da 2ª vara Empresarial do Rio de Janeiro/RJ, permitiu-se o prosseguimento das arbitragens, por competir ao árbitro conhecer em primeiro lugar da própria competência. O conflito foi suscitado antes de pronunciamento do tribunal arbitral sobre a existência, validade e eficácia da cláusula compromissória e a própria competência. Por outro lado, se há pronunciamento do tribunal arbitral o conflito se dá em razão da existência de decisões excludentes entre si, situação enfrentada no julgamento do caso do CC 153.498/RJ, ganha relevo a questão dos limites da jurisdição arbitral e da competência estatal. No conflito de competência aqui referido, foi reconhecida a competência do juízo estatal, em razão de (i) faltar ao árbitro o poder de coerção, que fundamenta o poder executório e (ii) a ordem de natureza coercitiva comprometer o soerguimento da empresa recuperanda. Em seu relatório, o e. Ministro Moura Ribeiro, destacou que:  "A questão relacionada à existência de cláusula compromissória válida para fundamentar a instauração do Juízo arbitral deve ser resolvida, com primazia, por ele, e não pelo Poder Judiciário. No caso sob análise não há discussão sobre a interpretação do contrato e da convenção de arbitragem que embasaram o procedimento, limitando-se a quaestio juris a definir qual é o juízo competente para deliberar sobre atos de constrição que venham a atingir a empresa recuperanda. (...) Na hipótese dos autos os Juízos suscitados proferiram decisões incompatíveis entre si, pois, enquanto a CÂMARA FGV determinou a apresentação de garantia bancária pela empresa recuperanda, o JUÍZO DA RECUPERAÇÃO se manifestou no sentido de que qualquer ato constritivo ao patrimônio da recuperanda deveria ser a ele submetido." (...) A determinação para emitir garantia bancária da suposta dívida, sem que a CÂMARA FGV tenha reconhecido o crédito pode, inegavelmente, afetar o patrimônio da recuperanda, devendo tal decisão ser submetida ao crivo do JUÍZO DA RECUPERAÇÃO. O Superior Tribunal de Justiça firmou o entendimento de que é do juízo em que se processa a recuperação judicial a competência para promover os atos de execução do patrimônio da empresa. À luz do art. 47 da Lei n.º 11.101/2005 e considerando o objetivo da recuperação judicial, que é a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica, a atribuição de exclusividade ao juízo universal evita que medidas expropriatórias possam prejudicar o cumprimento do plano de recuperação. Apesar da determinação do juízo arbitral não se referir a ato constritivo em sentido estrito, inegável que a exigência de apresentação de carta de fiança para garantia de dívida refletirá no patrimônio da sociedade recuperanda, tendo repercussão direta no seu processo de soerguimento. Com efeito, a competência do juízo recuperacional para deliberar sobre atos de constrição ou alienação de bens da sociedade em recuperação não se dá somente pela natureza do crédito, mas também por uma razão prática: o processo de soerguimento apenas é viável se o juízo universal for o único responsável pelas deliberações que envolvam o patrimônio da recuperanda, evitando, assim, que medidas constritivas impostas por diversos juízos interfiram no processamento da recuperação. (...) Por outro lado, ainda que o crédito pretendido pela HORNBECK não tenha sido constituído, é certo que as ações ilíquidas tramitarão regularmente nos demais juízos, inclusive nos Tribunais Arbitrais. Contudo, não será possível nenhum ato de constrição ao patrimônio da empresa em recuperação." (grifou-se). E concluiu: "Em suma, os atos de constrição realizados antes ou após o deferimento da recuperação judicial, bem como os demais créditos que não estão submetidos ao plano, sujeitam-se à análise do juízo recuperacional, ainda que, conforme o caso, apenas para avaliar a essencialidade do bem sujeito à constrição para que a recuperação perseguida logre o sucesso almejado".(grifou-se.) Da análise dos fundamentos e conclusões do julgado em destaque, observa-se com nitidez que o Superior Tribunal de Justiça tem posicionamento firme no sentido de que (i) há conflito de competência quando juízos distintos proferem decisões conflitantes e (ii) qualquer ato de execução que decorra de decisão arbitral em que esteja envolvido devedor empresário em recuperação judicial deverá ser submetido ao crivo do juízo onde se processa a recuperação judicial, para se verificar se este afeta ou não o soerguimento empresarial, sob pena de se usurpar a competência absoluta deste sobre atos que comprometam o soerguimento do bem jurídico tutelado, isto é, a atividade empresária. Ainda que, como visto, o princípio da competência-competência tenha sido positivado no ordenamento jurídico brasileiro, observa-se que a decisão arbitral acerca de sua própria competência não é inimpugnável: o árbitro decide em primeiro lugar sobre a sua competência (art. 8º, § único, da lei 9.307/96) e, posteriormente, a questão da competência pode ser revista pelo Poder Judiciário (art. 32, II e IV, da Lei 9.307/1996). A decisão final acerca dessa competência, por previsão constitucional22, sempre será do Poder Judiciário. O STJ se pronunciou sobre a matéria quando do julgamento do REsp 1.278.85223, sob relatoria do e. Ministro Luis Felipe Salomão, oportunidade na qual restou consignado haver "coexistência das competências dos juízos arbitral e togado relativamente às questões inerentes à existência, validade, extensão e eficácia da convenção de arbitragem" e "alternância de competência entre os referidos órgãos, porquanto a ostentam em momentos procedimentais distintos, ou seja, a possibilidade de atuação do Poder Judiciário é possível tão somente após a prolação da sentença arbitral". Pode-se cogitar também de conflito pela existência de decisões excludentes entre si inferida de decisão judicial em confronto com decisão arbitral concessiva ou mantenedora de tutela cautelar ou de urgência, conforme autorizam o art. 22-B e seu parágrafo único da Lei de Arbitragem. Observa-se, portanto, que a despeito da norma que positivou o princípio da competência-competência, a apreciação pelo Poder Judiciário, na hipótese pelo STJ24, não pode ser afastada, sob pena de, na prática, caso árbitro e juiz togado declararem-se simultaneamente competentes, haver dois órgãos jurisdicionais proferindo decisões eventualmente divergentes e, consequentemente, com potencial conflito entre elas. No entanto, a apreciação pelo Poder Judiciário não significa a redução ou a relativização desse princípio; na realidade, caracteriza deferência a tal princípio, de modo a perceber o juízo arbitral como legítimo órgão de prestação jurisdicional, permitindo, assim, cogitar-se do conflito deste com o juízo estatal. A doutrina de Arnoldo Wald, nesse sentido, assume o Conflito de Competência como a via processual adequada para se discutir a questão25:   "Cabe salientar que, no caso, não se discute, e ao contrário, reconhece-se plenamente o princípio da kompetenz-kompetenz, assegurando a prevalência cronológica da decisão arbitral. Mas, quando, assim mesmo, surge o conflito e há decisão judicial (mesmo estando sujeita a recursos) conflitando com a decisão arbitral, sem que os árbitros possam convencer o Poder Judiciário pelos seus argumentos, o que se discute é qual a via recursal que deve ser utilizada. Podemos optar pela decisão judiciária de primeira instância, com todos os seus incidentes e, em seguida, a apelação, com ou sem embargos, e finalmente, o recurso especial, quiçá o extraordinário de um lado: e de outro o conflito de competência no qual se decide, desde logo, definitivamente, a matéria. A decisão pragmática nos parece a escolha do caminho mais curto e eficiente porque já prevista pela Constituição para situações análogas senão idênticas, nas quais não parecia anteriormente existir qualquer solução." (grifou-se.).   5) CONCLUSÃO. Desse modo, entendo ser possível a existência de conflito de competência entre juízo arbitral e juízo estatal, sem que haja desrespeito ao princípio da competência-competência, bem como ser a via processual adequada para sua apreciação e julgamento aquela prevista na alínea "d" do inc. I do art. 105 da CRFB. ____________ 1 Em estudo sobre o tratamento legislativo e julgamentos sobre arbitragem no Brasil desde a proclamação da independência e até a edição da Lei nº 9.307/2002, Carlos Augusto Silveira Lobo, cita artigo de Arnoldo Wald, publicado na Revista de Direito Bancário, do Mercado e Capitais e da Arbitragem, nº 16, pág. 325, e destaca "a arbitragem no Brasil tem seus alicerces em três pilares: a Lei nº 9.307, de 23 de setembro de 1996, o julgamento do Supremo Tribunal Federal na SE 5206, que reconheceu a sua constitucionalidade em 12 de dezembro de 2001, e a ratificação pelo Brasil da Convenção de Nova Iorque, promulgada pelo Decreto nº 4.311, de 23 de julho de 2002. (....)" (Advocacia de Empresas, Renovar, Rio.São Paulo, 2012, pág. 191). 2 Nesse sentido: PROCESSO CIVIL. ARBITRAGEM. NATUREZA JURISDICIONAL. CONFLITO DE COMPETÊNCIA FRENTE A JUÍZO ESTATAL. POSSIBILIDADE. MEDIDA CAUTELAR DE ARROLAMENTO. COMPETÊNCIA. JUÍZO ARBITRAL. 1. A atividade desenvolvida no âmbito da arbitragem tem natureza jurisdicional, sendo possível a existência de conflito de competência entre juízo estatal e câmara arbitral. (CC 111.230/DF, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 08/05/2013, DJe 03/04/2014 - grifou-se). 3 Leia-se sobre o tema, com muito proveito, o artigo ""Breves palavras sobre o conflito de competência entre juízos arbitral e judicial" de Gustavo Favero Vaughn e Matheus Soubhia Sanches, publicado em 25/10/2017 e disponível aqui. 4 "Art. 8º  - A cláusula compromissória é autônoma em relação ao contrato em que estiver inserta, de tal sorte que a nulidade deste não implica, necessariamente, a nulidade da cláusula compromissória. Parágrafo único. Caberá ao árbitro decidir de ofício, ou por provocação das partes, as questões acerca da existência, validade e eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória." 5 ""Art. 47. A recuperação judicial tem por objetivo viabilizar a superação da situação de crise econômico-financeira do devedor, a fim de permitir a manutenção da fonte produtora, do emprego dos trabalhadores e dos interesses dos credores, promovendo, assim, a preservação da empresa, sua função social e o estímulo à atividade econômica." 6 "Art. 3º É competente para homologar o plano de recuperação extrajudicial, deferir a recuperação judicial ou decretar a falência o juízo do local do principal estabelecimento do devedor ou da filial de empresa que tenha sede fora do Brasil." 7 STJ, REsp 1.236.664/SP, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/11/2014, DJe 18/11/2014. 8 Art. 6º A decretação da falência ou o deferimento do processamento da recuperação judicial implica: (...) II - suspensão das execuções ajuizadas contra o devedor, inclusive daquelas dos credores particulares do sócio solidário, relativas a créditos ou obrigações sujeitos à recuperação judicial ou à falência; III - proibição de qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor, oriunda de demandas judiciais ou extrajudiciais cujos créditos ou obrigações sujeitem-se à recuperação judicial ou à falência. § 1º Terá prosseguimento no juízo no qual estiver se processando a ação que demandar quantia ilíquida. (...) § 4º Na recuperação judicial, as suspensões e a proibição de que tratam os incisos I, II e III do caput deste artigo perdurarão pelo prazo de 180 (cento e oitenta) dias, contado do deferimento do processamento da recuperação, prorrogável por igual período, uma única vez, em caráter excepcional, desde que o devedor não haja concorrido com a superação do lapso temporal. 9 STJ, AgRg. no CC 119.203/SP, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, 2ª Seção, julgado em 26/03/2014, DJe 03/04/2014 10 STJ, AgInt. no CC 149.736/DF, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, 2ª Seção, julgado em 08/03/2017, DJe 13/03/2017 11 STJ, AgInt no CC 148.536/GO, Rel. Ministro MARCO BUZZI, 2ª Seção, julgado em 08/03/2017, DJe 15/03/2017 12 COELHO, Fábio Ulhoa. Temas de direito da insolvência - estudos em homenagem ao professor Manoel Justino Bezerra Filho - Limitação ao Exercício de Direitos Societários na Companhia em Recuperação Judicial. Editora IASP. São Paulo, 2017. p 252. 13 Nesse sentido é o enunciado n.º 3, da Edição n.º 122 da Jurisprudência em Teses do e. STJ. Verbis: "A previsão contratual de convenção de arbitragem enseja o reconhecimento da competência do Juízo Arbitral para decidir com primazia sobre o Poder Judiciário, de ofício ou por provocação das partes, as questões relativas à existência à validade e à eficácia da convenção de arbitragem e do contrato que contenha a cláusula compromissória." Contudo, tal entendimento não é absoluto sendo flexibilizado o próprio e. STJ em situações excepcionais, de flagrante ilegalidade. Veja-se o enunciado n.º 4, da mesma edição n.º 122: "O Poder Judiciário pode, em situações excepcionais, declarar a nulidade de cláusula compromissória arbitral, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral, quando aposta em compromisso claramente ilegal." 14 CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e processo: um comentário à Lei 9.307/96. 3 ed., revista atualizada e ampliada. São Paulo, Editora Atlas S.A., 2009, pp. 18-19. 15 STJ - REsp: 1355831 SP 2012/0174382-7, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 19/03/2013, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 22/04/2013. 16 STJ - REsp: 1302900 MG 2012/0006413-5, Relator: Ministro SIDNEI BENETI, Data de Julgamento: 09/10/2012, T3 - TERCEIRA TURMA, Data de Publicação: DJe 16/10/2012 17 "Art. 6º (...) § 9º O processamento da recuperação judicial ou a decretação da falência não autoriza o administrador judicial a recusar a eficácia da convenção de arbitragem, não impedindo ou suspendendo a instauração de procedimento arbitral. 18 Disponível aqui. Acesso em 02/05/2021. 19 Ressalve-se a imprecisão do texto legal, porque na recuperação judicial, os administradores da empresa em recuperação judicial são mantidos na condução da atividade empresária, sob a fiscalização do administrador judicial (art. 64 c/c art. 22, II, da LFR); a massa falida é que é representada pelo administrador judicial (art. 22, III, n), porque com a decretação da falência o devedor perde o direito de administrar os seus bens. 20 STJ - CC: 111230, Relator: Ministro ALDIR PASSARINHO JUNIOR, Data de Publicação: DJe 02/08/2010 21 STJ - AgInt no CC: 153498 RJ 2017/0181737-7, Relator: Ministro MOURA RIBEIRO, Data de Julgamento: 23/05/2018, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 14/06/2018 22 Art. 5º, inciso XXXV, da Constituição da República. 23 PROCESSO CIVIL. CONVENÇÃO ARBITRAL. VIOLAÇÃO AO ART. 535 DO CPC NÃO CONFIGURADA. ANÁLISE DA VALIDADE DE CLÁUSULA COMPROMISSÓRIA "CHEIA". COMPETÊNCIA EXCLUSIVA DO JUÍZO CONVENCIONAL NA FASE INICIAL DO PROCEDIMENTO ARBITRAL. POSSIBILIDADE DE EXAME PELO JUDICIÁRIO SOMENTE APÓS A SENTENÇA ARBITRAL. (.....) 2. A cláusula compromissória "cheia", ou seja, aquela que contém, como elemento mínimo a eleição do órgão convencional de solução de conflitos, tem o condão de afastar a competência estatal para apreciar a questão relativa à validade da cláusula arbitral na fase inicial do procedimento (parágrafo único do art. 8º, c/c o art. 20 da LArb). 3. De fato, é certa a coexistência das competências dos juízos arbitral e togado relativamente às questões inerentes à existência, validade, extensão e eficácia da convenção de arbitragem. Em verdade - excluindo-se a hipótese de cláusula compromissória patológica ("em branco") -, o que se nota é uma alternância de competência entre os referidos órgãos, porquanto a ostentam em momentos procedimentais distintos, ou seja, a possibilidade de atuação do Poder Judiciário é possível tão somente após a prolação da sentença arbitral, nos termos dos arts. 32, I e 33 da Lei de Arbitragem. 4. No caso dos autos, desponta inconteste a eleição da Câmara de Arbitragem Empresarial Brasil (CAMARB) como tribunal arbitral para dirimir as questões oriundas do acordo celebrado, o que aponta forçosamente para a competência exclusiva desse órgão relativamente à análise da validade da cláusula arbitral, impondo-se ao Poder Judiciário a extinção do processo sem resolução de mérito, consoante implementado de forma escorreita pelo magistrado de piso. Precedentes da Terceira Turma do STJ. 5. Recurso especial provido. (STJ - REsp: 1278852 MG 2011/0159821-0, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 21/05/2013, T4 - QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 19/06/2013 - grifou-se). 24 Art. 150, inciso I, alínea d, da Constituição da República. 25 Wald, Arnoldo. Conflito de competência entre o Poder Judiciário e o Tribunal Arbitral. Cabimento. Competência constitucional (art. 105, I, d, da CF/1988) e legal (art. 115, I, do CPC) do STJ para resolvê-lo. Decisão majoritária que consolida a jurisprudência na matéria. Revista de Arbitragem e Mediação, v. 40, São Paulo, Editora RT, 2014 p. 383. No mesmo sentido, Caio Cesar Vieira Rocha: "Afasta-se o argumento de que o conflito que aqui se cuida não poderia ser conhecido pelo STJ, já que não constaria expressamente do rol de competência daquela corte superior indicada na Constituição Federal. A interpretação sistemática, não literal e não restritiva, da alínea d do inc. I do art. 105 da Constituição Federal, conduz à conclusão de que o árbitro deve ser considerado espécie de juiz 'vinculado a tribunal diverso'. Ao referir-se a juízes, a Constituição previu o processamento perante o STJ de conflitos de competência entre autoridades com poder jurisdicional e não necessariamente inseridas no âmbito do Poder Judiciário estatal" (ROCHA, Caio Cesar Vieira. Conflito positivo de competência entre árbitro e magistrado, Doutrinas Essenciais de Arbitragem e Mediação, v. 2, São Paulo, Editora RT, 2014, p. 658).
A reforma da Lei de Recuperação de Empresas e Falência buscou dar respostas a um sério problema de origem do modelo brasileiro de insolvência empresarial: a não sujeição do crédito fiscal e dos créditos garantidos fiduciariamente aos efeitos da recuperação judicial. Muito embora a preservação de credores hold outs - não sujeitos aos efeitos de uma recuperação empresarial - contrarie a lógica do sistema de insolvência, uma vez que esse pressupõe que todos os credores sejam impedidos de avançar contra o patrimônio da devedora durante a negociação coletiva como condição para criação de ambiente adequado e estimulado de construção de consensos, o legislador brasileiro optou por excluir da recuperação judicial os créditos fiscais, bem como aqueles garantidos fiduciariamente (notadamente os créditos titularizados por instituições financeiras). Essa opção política gerou graves incongruências sistêmicas. Como equacionar a situação em que um bem essencial de uma empresa em recuperação judicial acaba sendo atingido por atos de constrições provenientes de execuções de créditos não sujeitos aos efeitos da recuperação judicial? Nessa hipótese, cria-se um conflito entre o interesse do credor não sujeito e os interesses públicos e sociais envolvidos na recuperação da empresa, como a própria preservação da atividade e a função social da empresa. Vale dizer que muitas vezes a expropriação do ativo pertencente à empresa em recuperação judicial nos autos da execução do crédito não sujeito implicará na convolação em falência de uma empresa geradora de empregos, tributos, serviços ou produtos relevantes, com grande impacto social e em prejuízo à comunidade de credores atendida no processo recuperacional. Em razão desse conflito de interesses, a jurisprudência do STJ evoluiu para reconhecer que, nas hipóteses do art. 49, parágrafo terceiro, bem como no caso dos créditos fiscais, cabe ao juízo da recuperação judicial decidir sobre a destinação dos ativos de empresa recuperanda que são objeto de constrição em execuções em curso por outros juízos fiscais ou cíveis. Em outras palavras, o juízo da recuperação judicial será competente para aferir a essencialidade do ativo constrito na execução do crédito não sujeito aos efeitos concursais, autorizando ou não a sua expropriação naqueles autos, como forma de tutela do interesse prevalente nesse conflito, qual seja, o interesse público e social decorrente da preservação da empresa. Assim, considerando que é o juízo da recuperação judicial quem tem uma visão mais completa da atuação da empresa e da importância daquele ativo específico na manutenção de suas atividades, deverá ele decidir sobre a possibilidade ou não de prosseguimento da execução fiscal ou cível extraconcursal. Em razão disso, as devedoras passaram a utilizar o conflito de competência como ferramenta para buscar o reconhecimento judicial da competência do juízo recuperacional, bem como para obter uma determinação superior de suspensão da execução individual com preservação dos interesses maiores tutelados pela recuperação judicial. Mas como compatibilizar o direito dos credores não sujeitos ao processo concursal de receber o que lhes é devido com o direito da sociedade em preservar a atividade da empresa em recuperação judicial? Não seria também razoável que o fisco ou os credores com garantia fiduciária ficassem impedidos de prosseguir nas suas execuções por tempo indeterminado, em afronta ao direito legalmente estabelecido de não se sujeitarem aos efeitos do processo recuperacional. Foi em razão desse problema que a reforma estabeleceu que, no caso dos credores garantidos fiduciariamente, caberá ao juízo da recuperação determinar a suspensão dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial durante o prazo de stay (180 dias, prorrogáveis por mais 180 dias), suspensão essa que deve ser implementada mediante cooperação. No caso das execuções fiscais, a lei passou a dizer que o juízo da recuperação judicial tem a competência para determinar a substituição dos atos de constrição que recaiam sobre bens de capital essenciais à manutenção da atividade empresarial até o encerramento da recuperação judicial, a qual será implementada também mediante cooperação jurisdicional. Perceba-se que tanto a suspensão dos atos de constrição, como sua substituição, deverá ser implementada mediante cooperação jurisdicional. Diante dessa nova regulação legal, o entendimento do STJ evoluiu para reconhecer que seriam cabíveis conflitos de competência apenas quando houvesse concretamente uma divergência entre os juízos com relação à suspensão ou substituição dos atos de constrição sobre bens essenciais da devedora em recuperação judicial. Tal entendimento é correto, vez que o simples deferimento do processamento da recuperação judicial não pode ser utilizado como motivo bastante para o conhecimento do conflito de competência. Deverá haver uma decisão concreta do juízo da execução, determinando a constrição ou expropriação do bem, e uma decisão concreta do juízo da recuperação reconhecendo a essencialidade do mesmo bem. Não há necessidade, todavia, de que já se tenha tentado a cooperação jurisdicional. Isso porque, a suspensão da execução ou da constrição do bem é medida essencial para que a própria cooperação jurisdicional ocorra. É a suspensão da execução fiscal ou cível, onde se deu a constrição ou se pretende a expropriação do bem essencial para a recuperanda, que criará o ambiente adequado e estimulado para que a cooperação efetivamente aconteça. É evidente que, podendo o juízo fiscal ou cível prosseguir na expropriação do bem, não haverá qualquer estímulo para que sejam envidados esforços para suspensão ou substituição dos atos de constrição. Essa situação, por óbvio, violará a competência legal do juízo da recuperação para determinar essa suspensão ou substituição do ato de constrição. Por isso é que se afirma que o conflito de competência, desde que demonstrada a existência de decisões concretas e conflitantes entre os juízos sobre a destinação de ativos da recuperanda, deve ser conhecido pelo Tribunal competente (STJ nos casos de sua competência constitucional), mesmo que ainda não se tenha tentado a cooperação jurisdicional. O próprio Superior Tribunal de Justiça já decidiu nesse sentido, afirmando que tem cabimento o conflito de competência com suspensão da execução individual como medida essencial para que ema implementada a cooperação jurisdicional. Nesse sentido, confira-se: Evidentemente, cabe ao Juízo da recuperação judicial definir a qualidade do bem de capital constrito na execução fiscal como essencial, bem como cabe àquele Juízo determinar a sua substituição por outro ativo da devedora em recuperação judicial, em atividade cooperativa com o Juízo da execução fiscal. Assim, até que seja definida a qualidade do bem constrito e implementada a referida cooperação jurisdicional para sua substituição, deve a execução fiscal permanecer suspensa. Verifica-se, portanto, a presença do fumus boni iuris relativo ao pedido de suspensão da execução fiscal. O periculum in mora, por sua vez, está demonstrado por meio da decisão do Juízo suscitado, que determinou o prosseguimento da execução movida contra a empresa suscitante (fls. 33-35). (Min. Humberto Martins; Conflito de Competência 181.190 - AC; 2021/0221593-7) Conclui-se, portanto, que a cooperação jurisdicional é a ferramenta adequada para que o juízo da recuperação exerça concretamente sua competência legal de determinar a suspensão ou substituição dos atos de constrição sobre bem essencial da empresa recuperanda, mas que a determinação da suspensão da execução individual é a medida essencial para que se crie o ambiente adequado para a efetiva realização da cooperação, o que poderá ser determinado pelo Tribunal superior competente no bojo de conflitos de competência, desde que haja demonstração concreta da existência de decisões conflitantes entre os juízos sobre a destinação do bem objeto da constrição.
Tivemos oportunidade de observar, nas últimas semanas, uma decisão inédita do Tribunal de Justiça de São Paulo, entendendo que, em caso de utilização do processo de recuperação judicial como meio de fraudar credores, caberia a inclusão dos sócios como devedores solidários. Essa polêmica decisão analisou a questão sob a perspectiva cível. Cabe indagar, entretanto, as consequências da conduta no campo penal: a utilização do processo de recuperação judicial como meio para fraudar credores configuraria crime falimentar? A questão, que pode parecer simples num primeiro momento, enseja diversos pontos problemáticos a serem resolvidos, o que tentaremos fazer a seguir. Primeiramente, é preciso saber em qual tipo penal, em tese, poderia recair a conduta do devedor em recuperação que faz uso do processo de recuperação judicial para fins fraudulentos, em prejuízo aos seus credores. Essa pergunta inicial apresenta resposta aparentemente simples: a conduta parece se subsumir ao tipo penal do art. 168, caput, da Lei de Recuperações e Falências (LREF), com a seguinte redação: Art. 168. Praticar, antes ou depois da sentença que decretar a falência, conceder a recuperação judicial ou homologar a recuperação extrajudicial, ato fraudulento de que resulte ou possa resultar prejuízo aos credores, com o fim de obter ou assegurar vantagem indevida para si ou para outrem. No entanto, a simplicidade aparente da tipificação é ilusória. Como se sabe, conquanto possua distinções importantes, o tipo penal do art. 168 da LREF é delito falimentar semelhante ao crime de estelionato (art. 171 do CP), dele retirando o cerne de sua redação. Assim, o problema em tipificar no art. 168 da LREF a utilização do processo de recuperação como meio de fraude esbarra na tradição da jurisprudência brasileira, que considera atípico o estelionato quanto realizado por meio de processo judicial (o chamado "estelionato judiciário"), ressalvada a punição pelo crime (meio) de falsidade (se e quando existente) que não reste absorvido pelo estelionato. Nesse sentido, aliás, é quase unânime o entendimento dos tribunais: RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. "ESTELIONATO JUDICIÁRIO". ATIPICIDADE. DETECÇÃO DA FRAUDE PELO JUÍZO NO CURSO DA AÇÃO. CONSTRANGIMENTO ILEGAL PARCIALMENTE CARACTERIZADO. TRANCAMENTO DA AÇÃO PENAL. RECURSO PROVIDO. I - O posicionamento doutrinário e jurisprudencial, inclusive desta Corte Superior de Justiça, não admite a prática do delito de estelionato por meio do ajuizamento de ações judiciais. II - Notadamente no caso dos autos, porquanto o Juiz do feito, ciente da apuração de suposta conduta criminosa em tese praticada pelo paciente em outros processos, determinou a realização de perícia na documentação acostada, bem como encaminhou representação contra o ora recorrente ao Ministério Público Estadual e à OAB/RJ. III - Sendo a fraude passível de conhecimento e de fato apurada pelas vias ordinárias no curso do processo, é de se reconhecer a atipicidade da conduta atribuída ao recorrente em relação ao delito previsto no art. 171, § 3º, c/c art. 14, II, ambos do Código Penal, para trancamento da ação penal. Recurso ordinário provido. (RHC 81.174/RJ, Rel. Ministro FELIX FISCHER, QUINTA TURMA, julgado em 03/08/2017, DJe 10/08/2017) APELAÇÃO CRIMINAL - Condenação pela prática do crime de estelionato tentado (art. 171, "caput", c.c. o art. 14, II, ambos do CP) - Irresignação defensiva - Alegação de atipicidade da conduta reconhecida como sendo delito de "estelionato judiciário" - Acolhimento - Possibilidade, ainda que em tese, de se desvendar a fraude no curso da ação judicial em que foi praticada a conduta que afasta a tipificação expressa no art. 171 do CP - Precedentes - Insurgência ministerial visando a majoração da pena-base - Análise prejudicada, haja vista o provimento do apelo da Defesa - Recurso defensivo provido e ministerial prejudicado. (TJSP; Apelação Criminal 0027249-22.2015.8.26.0576; Relator (a): Cláudio Marques; Órgão Julgador: 15ª Câmara de Direito Criminal; Foro de São José do Rio Preto - 4ª Vara Criminal; Data do Julgamento: 12/12/2019; Data de Registro: 13/12/2019) Diante desse óbice, poder-se-ia argumentar que, atípico no Brasil o "estelionato judiciário", também atípica, por analogia, seria a conduta do devedor que usa o processo de recuperação judicial para fraudar seus credores. No entanto, a conclusão da atipicidade nos parece equivocada. Primeiro porque, conquanto parecidos, existem diferenças substanciais entre o delito do art. 168 da LREF e o crime do art. 171 do CP, como já ressaltamos em obra sobre o tema:1 [O] delito em questão não se confunde com o estelionato definido no Código Penal, como se verá mais adiante, dado terem vítimas distintas (no crime falimentar, a comunidade de credores; no estelionato, pessoa(s) determinada(s)), não admitir o estelionato o mero prejuízo potencial (como se admite no crime falimentar), além da distinção de ânimo do agente. Enquanto o delito de estelionato afeta usualmente vítimas individualizadas, o crime falimentar do art. 168 da LREF pode trazer prejuízo (efetivo ou potencial) a uma comunidade (por vezes indeterminada) de credores, além de atentar contra a administração da justiça. Outrossim, cumpre salientar que os crimes falimentares definidos na LREF têm um importante papel de guardiões da lisura e da transparência dos processos de recuperação e de falência e, por consequência, das regras e balizas do sistema de mercado em que as entidades empresariais realizam seus negócios. A potencial punição criminal para seus autores visa garantir um efeito de dissuasão (deterrence effect) sobre condutas potencialmente danosas ao mercado. Proclamar a impunidade em relação à conduta em estudo, portanto, é equivalente a sujeitar o mercado a mais riscos e ao preço daí derivado (= aumento de custos de transação). Mas não é só. A tendência de países mais desenvolvidos nessa matéria é a tipificação de delitos cujas condutas envolvam a utilização de processos de recuperação como meio de fraude. Como também já salientamos em obra própria, na legislação norte-americana, a utilização do processo falimentar ou de reorganização como meio para um resultado fraudulento em prejuízo aos credores é expressamente tipificada em lei como crime (Bankruptcy fraud - U.S. Code, Chapter 19, Title 18, § 157), cujo teor pedimos vênia para citar nos termos e na linguagem original: A person who, having devised or intending to devise a scheme or artifice to defraud and for the purpose of executing or concealing such a scheme or artifice or attempting to do so- (1) files a petition under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title; (2) files a document in a proceeding under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title; or (3) makes a false or fraudulent representation, claim, or promise concerning or in relation to a proceeding under title 11, including a fraudulent involuntary bankruptcy petition under section 303 of such title, at any time before or after the filing of the petition, or in relation to a proceeding falsely asserted to be pending under such title, shall be fined under this title, imprisoned not more than 5 years, or both." Nesse mesmo sentido, argumentamos alhures que, na doutrina norte-americana,2 aponta-se alguns exemplos de utilização fraudulenta do processo, tais como: (1) o devedor que intencionalmente ganha a confiança de seus credores por determinado período de tempo, para conseguir o fornecimento de grandes quantidades de estoque a crédito, sem pagamento imediato, vendendo o estoque a vista a terceiros e ingressando com processo de recuperação para forçar a concessão de maiores prazos de pagamento, acordos para não pagar juros ou abatimento de valores (fraude conhecida como "bustout"); (2) O devedor que desvia os valores de empréstimo obtido com garantia hipotecária para outra pessoa jurídica, controlada pelo primeiro ou por pessoa a ele ligada, evitando a execução hipotecária pelo ingresso de processo de recuperação sem qualquer fundamento, beneficiando-se da suspensão de execuções ("automatic stay period"), em prejuízo do credor hipotecário (fraude conhecida como "skimming"). Em conclusão, temos que não se pode concordar, no campo dos crimes falimentares, com a mera aplicação da jurisprudência brasileira sobre a atipicidade do "estelionato judiciário", isso porque: (1) o crime do art. 168 da LREF é mais grave que o tipificado no art. 171 do CP, afeta maior número de vítimas e viola a própria credibilidade do Poder Judiciário; (2) eventual impunidade de fraudes em processos de recuperação podem representar severos riscos às expectativas de lisura em tais procedimentos, aumentando os riscos de mercado e os custos de transação inerentes; (3) a tendência de países mais desenvolvidos nessa matéria é tipificar a conduta em estudo. __________ 1 PEREIRA, Alexandre. Crimes Falimentares, Teoria, prática e questões de concursos comentadas. São Paulo: Malheiros, 2010. 2 WICKOUSKI, Stephanie. Bankruptcy crimes. Washington: Beard Books, 2007.
Equilíbrio é tudo! Certamente haverá consenso em qualquer discussão ao se propor que deva haver equilíbrio na busca de soluções para quaisquer questões nas mais variadas relações, sejam elas de ordem social, econômica, jurídica etc. O grande desafio é conquistar esse equilíbrio. O processo para atingi-lo é árduo e sem regras definidas. Na recuperação judicial não é diferente. Este é um processo coletivo com vários interesses contrapostos, no qual o devedor busca melhores condições para o soerguimento da atividade empresarial e a reestruturação de suas dívidas e os credores perseguem as melhores condições para reaverem seus investimentos e interesses, seja em face do devedor, seja em face dos demais credores com os quais concorre. Segundo Eduardo Lemos1: As partes interessadas têm diferentes objetivos e prioridades. Para socorrer a empresa, essas intenções díspares têm de ser conciliadas e a confiança dos credores tem de ser restabelecida. O elemento central dessa conciliação é instituir um processo de comunicação aberto, com o fornecimento de informações confiáveis. A previsibilidade deve ser restaura e más surpresas evitadas de toda forma. Esse papel exige tanto uma imparcialidade em relação aos fatos quanto uma forte lealdade à empresa. O sucesso depende de conseguir que as partes interessadas reconheçam e aceitem a realidade da posição da empresa e cooperem umas com as outras para solução dos reais problemas. Com base nisso, o gestor da recuperação pode começar uma avaliação preliminar das posições das partes relacionadas e identificar logo no início o nível de apoio com que poderá contar da parte de cada uma delas para realizar o plano de recuperação, pois, dependendo das condições de reestruturação da dívida no plano, pode ser mais interessante para elas a venda ou a falência da empresa, lembrando que na falência a venda dos ativos da massa falida pode incluir a inteira unidade produtiva. Especialmente durante os primeiros estágios da recuperação, e durante todo o processo de implementação do plano, será necessário ter uma constante comunicação das posições de curto prazo do caixa, das vendas e dos indicadores de performance. Nota-se que a questão com os credores deve ser abordada tendo como foco o efetivo turnaround da empresa, e não o meandro processual da recuperação judicial para "levar vantagem em tudo, certo?" como cinicamente inferia uma velha propaganda de cigarro. Embora a lei exista para facilitar o turnaround, é praxe das estratégias advocatícias na recuperação ganhar fôlego na circunscrição da lei ficando de olho no placar (o de individualmente "levar vantagem" nas dívidas ou nos espólios), mas perdendo de vista a bola (a efetiva recuperação do valor e da performance aos benefícios de todas as partes relacionadas). A recuperação judicial é um processo de negociação compulsória. Isso dificilmente pode ser negado, seja pelos objetivos estatuídos no art. 47 da lei 11.101/05, que prevê os vetores voltados à preservação da empresa, seja pela nova previsão de que os credores devem votar no seu interesse, sem perder de vista eventual exercício abusivo desse direito (art. 39, § 6, lei 11.101/2005). A supervisão judicial sobre o cumprimento do plano de recuperação judicial, nos termos do art. 61 da lei 11.101/05, foi um instrumento voltado a garantir um enforcement eficaz, ao prever a convolação da recuperação judicial em falência, caso houvesse inadimplemento do devedor dentro do prazo de dois anos. Todavia, com o passar do tempo, os planos de recuperação judicial acabaram por prever o cumprimento de obrigações em prazos longos, muito além do biênio legal, sobretudo prazos de carência que muitas vezes se findavam após o período previsto em lei. Diante da nova redação do artigo 61 da lei 11.101/05, dada pela lei 14.112/20, foi dada a possibilidade de se pronunciar o encerramento da recuperação judicial sem a necessidade do biênio de supervisão judicial. Isso porque, na prática, poucos foram os benefícios do período de supervisão judicial. A possibilidade de convolação direta da recuperação judicial em falência durante o período de supervisão judicial, como dito acima, foi invocada como benefício legal a conferir maior segurança para os credores em relação à expectativa de recebimento de seus créditos. Todavia, muitos planos de recuperação judicial previram prestações a serem adimplidas em período superior ao marco bienal previsto na lei. Após o seu transcurso, eventual inadimplemento poderá ser objeto de execução específica ou de pedido de decretação de quebra, nos termos previstos no artigo 62 da LRF. Assim, muitas obrigações não são alcançadas pelo instrumento previsto no artigo 73, inciso IV, da lei 11.101/05. E não se pode negar que os meios de recuperação judicial possuem caráter eminentemente econômico devendo haver intervenção mínima do Poder Judiciário tão somente nos casos de evidente ilegalidade na cláusula analisada. Mesmo assim, a jurisprudência tem reconhecido que meios de pagamento, deságios e prazos de carência acabam por se circunscrever a aspectos econômicos do plano, o que deve ser bem pensado e discutido entre devedor e seus credores. Mas mesmo a convolação direta da recuperação judicial em falência pode não se mostrar um instrumento efetivo para segurança e recebimento do credor. Isso porque seu crédito pode assumir uma posição desfavorável num processo falimentar, a depender de sua natureza e do volume de créditos que lhe antecedam, de acordo com o rol dos arts. 83 e 84 da lei 11.101/05. Desse modo, uma execução específica pode se apresentar mais vantajosa, uma vez que o credor não concorrerá com uma universalidade de créditos, havendo melhores possibilidades de recuperação do valor que investiu na atividade em crise. Outro fator que deve ser levado em consideração é o próprio racional econômico da supervisão judicial e os efeitos da manutenção do trâmite de uma recuperação judicial. Ao votarem pela aprovação do plano, os credores exteriorizam a confiança no soerguimento da atividade e que a manutenção da empresa poderá ser mais benéfica na recuperação de seus créditos. Logo, é mais interessante que a recuperanda obtenha reais condições de mercado favoráveis à retomada da atividade, devendo a legislação de insolvência, nesse particular, funcionar como um facilitador de desenvolvimento econômico e social, criando estímulos ao empreendedorismo e à reabilitação da empresa em crise econômica-financeira. Uma das maiores dificuldades enfrentadas no âmbito do exercício da atividade empresarial em nosso país é a obtenção de crédito, seja em um quadro de normalidade do empreendimento, seja na situação de crise econômico-financeira da atividade, hoje ainda com métodos muito burocráticos e limitados, cuja concentração de mercado de fornecedores reside nas instituições financeiras, factorings e FIDCs de custo muito elevado aos tomadores. Como bem explica Leonardo Adriano Ribeiro Dias2: A resolução 2.682/99 do BACEN estabeleceu critérios para as instituições financeiras classificarem suas operações de crédito em função do risco que apresentam, além de estabelecer regras de provisão para créditos de liquidação duvidosa. Por força do art. 44 da ICVM 356/01, a resolução 2.682/99 se aplica aos Fundos de Investimento em Direitos Creditórios. Neste particular, Leonardo Adriano Ribeiro Dias bem esclarece a realidade da aplicação de tais normativos à empresas em recuperação judicial: "Normalmente, quando a empresa recorre ao procedimento recuperacional, ela já está inadimplente perante bancos por período superior a cento e oitenta dias, ou sua operação já foi até mesmo lançada a prejuízo. Na prática, isso inibe a concessão de novos créditos pelas instituições financeiras, pois eles também serão classificados com rating H, na medida em que as operações de um mesmo devedor ou grupo econômico possuem uma única classificação que, como regra, é a que apresenta maior risco. Assim, seria necessário provisionar 100% do valor do novo crédito, o que tornaria a operação bastante onerosa e poderia diminuir consideravelmente o lucro da instituição financeira. O chamado efeito 'arrasto' ou 'contaminação' foi criticada em pesquisa empreendida com profissionais dessas instituições, sob o argumento de que a norma desconsidera as diferentes estruturas de operação e garantiase, portanto, a perda da inadimplência. Logo, caso o banco decida conceder créditos a empresas em recuperação judicial, deverá, em regra, cobrar taxas de juros proibitivas para compensar a provisão ou socializar seus efeitos em outras operações de crédito com juros majorados". De outro lado, o escopo da recuperação judicial é a retomada da normalidade da atividade empresarial, através da superação de sua crise econômico-financeira, servindo o plano não só como forma de recuperação dos créditos de seus credores e parceiros comerciais, mas para proporcionar uma readequação da própria operação para reconstrução de sua competitividade e capacidade de enfrentamento do ambiente de riscos que é o mercado empresarial. E para que isso se torne realidade existe a necessidade da empresa gozar de boa reputação para obtenção de crédito e da confiança dos seus parceiros comerciais. Nesse passo, o encerramento do processo de recuperação judicial funciona como um importante fator de fresh start da atividade, pois permitirá que ela possa ter avaliada sua situação de crédito sem ostentar a condição de recuperanda e os efeitos deletérios decorrentes dessa situação no mercado financeiro, além de reposicioná-la em condições de normalidade no ambiente empresarial, reconquistando a confiança daqueles que com ela podem estabelecer relações comerciais. De mais a mais, o prolongamento do trâmite da recuperação judicial com o período de supervisão judicial impõe incremento dos custos do processo, pois haverá alongamento de pagamento dos honorários do administrador judicial e de advogados, além de encarecer o próprio sistema de justiça, pela necessidade de destinação de recursos materiais e humanos do Poder Judiciário e de outros órgãos, sem que se tenha certeza de efetividade da jurisdição no processo de soerguimento e de recuperação dos créditos. Embora nosso sistema processual civil tenha adotado a teoria dos negócios jurídicos processuais, segundo a qual as partes podem convencionar sobre seus ônus, poderes, faculdades e deveres processuais, há limitação de ordem pública sobre eventual convenção aos poderes processuais do juiz. Assim, impor ao Poder Judiciário a tramitação de um processo sem qualquer demonstração de utilidade de tal calendarização, viola-se o devido processo legal na perspectiva de interesse processual e do direito fundamental à razoável duração do processo. Essa visão, entretanto, não impede que o Juízo presida alguns atos necessários ao bom termo da recuperação judicial, tais como a alienação de ativos e o julgamento das habilitações ainda pendentes ao tempo da sentença de concessão e encerramento do procedimento, os quais podem ser ultimados em razão da amplitude do alcance do art. 59, § 1º da lei 11.101/05. Portanto, sob o prisma do consequencialismo jurídico constante dos arts. 20 e 21 da LINDB, inegável que o período de supervisão judicial traduz poucos efeitos benéficos ao instituto da recuperação judicial e à sua capacidade de funcionar como meio de recolocação da atividade no comércio com a superação de sua crise econômico-financeira, merecendo acolhimento a proposta de encerramento desta recuperação judicial, devidamente aprovada pelos credores. Assim, é importante que devedor e seus credores discutam a importância da manutenção do período de supervisão judicial, com a demonstração de seu racional econômico, a fim de que o Poder Judiciário possa analisar seus aspectos de legalidade, inclusive sob os fundamentos do negócio jurídico processual, uma vez que haverá irradiação de efeitos ao processo, com a manutenção do procedimento e todos os custos a ele inerentes. Mesmo no caso de aproveitamento de benefícios fiscais introduzidos pela Lei 14.112/2020, não deixa de ser um ônus da devedora a demonstração da necessidade de eventual existência do período de supervisão judicial, mediante a apresentação dos atos praticados na busca de readequação do passivo fiscal e a perspectiva, se possível, da realização da pretensão, para modulação do período em que o processo de recuperação judicial deva ficar ativo. Enfim, equilíbrio é tudo! ___________ 1 LEMOS, Eduardo. Direito da Empresas em Crise. Coordenação: Paulo Fernando Campos Salles de Toledo e Francisco Sátiro. São Paulo. Quartier Latin. 2012. Página 91. 2 DIAS, Leonardo Adriano Ribeiro. Financiamento na Recuperação Judicial e na Falência. São Paulo. Quartier Latin, 2014. Página 272.  
Introdução Os regimes de insolvência empresarial sempre foram considerados benefícios concedidos ao comerciante, consubstanciando verdadeira contrapartida aos riscos por ele assumidos e à importante função social desempenhada. Atualmente, os institutos previstos na lei 11.101/2005 - recuperação judicial, extrajudicial e falência - são destinados apenas ao empresário e às sociedades empresárias, conforme a previsão de seu art. 1º, dispositivo que deve ser interpretado em conjunto com o art. 966 do Código Civil, que, por sua vez, considera empresário aquele que exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. Debate de relevância atual diz respeito à possibilidade de submissão das sociedades de propósito específico (SPEs), com patrimônio de afetação, aos regimes de insolvência empresarial previstos na lei 11.101/2005 - mais especificamente, à recuperação judicial. Isso porque ainda que o patrimônio segregado seja destinado à atividade empresária, o art. 119, IX da lei 11.101/20051 dispõe que os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação especial, não se sujeitando à falência. Em sentido similar, o art. 31-F da lei 4.591/642 estipula que os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, gerando questionamentos sobre o acesso das SPEs, com patrimônio segregado, à recuperação judicial, eis que, em tese, pode acarretar em falência. A SPE e o patrimônio de afetação A sociedade de propósito específico (SPE) não é um modelo societário, mas uma forma (um veículo) de alocação de riscos para o desempenho de determinada atividade, a partir da constituição de uma sociedade com qualquer modelo legal (limitada, anônima, etc) e personalidade jurídica, gestão e objeto próprios. A criação de um patrimônio da afetação, disciplinada no art. 31-A da lei 4.591/643, é um regime de segregação patrimonial suplementar à SPE, que permite que o incorporador destaque um conjunto de ativos e passivos do restante de seu patrimônio, vinculando-os à determinada incorporação imobiliária, delimitando, portanto, os riscos assumidos pelos adquirentes das unidades imobiliárias e da própria incorporadora4. Trata-se de ficção jurídica que excepciona a regra geral de que o patrimônio do devedor é garantia geral de seus credores. Assim sendo, a SPE destinará alguns bens ao denominado patrimônio de afetação, os quais restarão vinculados à consecução do empreendimento imobiliário. Em que pese a situação pareça ser, na prática, similar à existência de duas pessoas jurídicas distintas, com patrimônios distintos, trata-se de uma única sociedade, que possui a particularidade de possuir parcela de seu patrimônio segregada para a consecução de determinada finalidade. De igual modo, a instituição do patrimônio segregado não implica na classificação do objeto de uma sociedade empresária (simples ou empresarial), de propósito específico ou não, nos termos do art. 966 do Código Civil5 - regra legal de relevância para fins de submissão à lei 11.101/2005. Como consequência, torna-se perfeitamente possível a recuperação judicial de uma sociedade de propósito específico com patrimônio de afetação, desde que (i) esta desenvolva atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços e (ii) seja respeitada a segregação patrimonial. O disposto no art. 119, IX da lei 11.101/2005 e art. 31-F da lei 4.591/64 não alteram esta conclusão. Quando a lei 11.101/2005 pretendeu excluir determinados agentes econômicos do regime especial de insolvência empresarial, classificados como empresários, nos termos do art. 1º da lei 11.101/2005, assim o fez de forma expressa na regra excepcional de seu art. 2º6-7. Mesmo nestes casos, a interpretação estritamente literal do dispositivo em comento é equivocada, eis que alguns dos agentes ali listados estão sim submetidos à lei 11.101/2005, ainda que de forma parcial: sua falência pode perfeitamente ser decretada, mas está condicionada à submissão a regimes administrativos regulatórios prévios e especiais (a exemplo da liquidação extrajudicial; como reconhecido pelo Superior Tribunal de Justiça8), destinados a atividades específicas cuja paralização pode gerar risco sistêmico ao mercado.  A leitura do referido art. 2º demonstra não haver qualquer impedimento à submissão das sociedades de propósito específico (com ou sem patrimônio afetado) aos regimes de insolvência empresarial. A delimitação estipulada no art. 31-F da lei 4.591/64 refere-se apenas ao alcance do patrimônio segregado, não havendo qualquer proibição da decretação da falência do incorporador na hipótese de afetação de seu patrimônio. Na mesma linha de raciocínio, o art. 119, IX da lei 11.101/2005, em redação clara, reforça a necessidade de respeito à segregação patrimonial no caso de a incorporadora ter sua falência decretada - o que não impede, naturalmente, e com o perdão da redundância, a decretação da falência da própria SPE com patrimônio afetado. Apenas determina que os bens afetados ao patrimônio não serão, em tese, destinados à alienação para saldar o passivo; ao contrário, terão o destino decidido pela "continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação" (art. 31-F, § 1º, da lei 4.591/1964)9-10. No caso da recuperação judicial, a incomunicabilidade do patrimônio de afetação também será preservada - o que não impede, repita-se, o acesso das SPEs com patrimônio segregado ao instituto, como ressalta Melhim Namen Chalhub11: Recorde-se que os patrimônios de afetação são incomunicáveis por definição legal e só por lei a incomunicabilidade pode ser excepcionada, o que não ocorre em relação à recuperação judicial. E, na medida em que a empresa recuperanda deve continuar em atividade, seus diretores prosseguirão o recebimento dos recursos provenientes das vendas e, bem assim, de financiamento, se houver, e os aplicarão na execução da obra e na liquidação do passivo da incorporação; nessa atividade, esses mesmos administradores (...) continuarão a praticar os demais atos típicos da administração dos patrimônios de afetação, definidos no art. 31-D da Lei 4.591/1964.  A análise da viabilidade econômica das empresas em dificuldade é matéria atinente aos credores e às devedoras, reunidos em assembleia geral de credores para votação do plano de recuperação judicial. Em razão da incomunicabilidade do patrimônio de afetação, haverá, nestas hipóteses, o diferencial de que não se pode admitir a consolidação substancial (art. 69-J da lei 11.101/200512). Nesse caso, as SPEs com patrimônio segregado não poderão se valer dos bens afetados como mecanismo de recuperação, uma vez que estes estão vinculados à consecução da incorporação. Isso não impede, entretanto, que outras formas de reestruturação (exemplificadas no rol do art. 50 da lei 11.101/2005) - diversas da utilização do patrimônio afetado - sejam buscadas no âmbito da negociação coletiva, restando evidente que a existência de patrimônio de afetação é apenas um dos itens a ser considerado no plano de reestruturação, mas jamais como empecilho peremptório de acesso ao instituto da recuperação judicial. Nestes casos, apenas os credores do patrimônio afetado, em conjunto com os adquirentes das unidades autônomas, poderão deliberar sobre a utilização dos bens segregados para fins de superação da crise, viabilizando a reestruturação das SPEs com patrimônio afetado. Os demais bens existentes no patrimônio "geral" do incorporador, por outro lado, estão livres e poderão ser utilizados no plano de reestruturação a ser negociado entre as devedoras e seus credores. Com efeito, a assembleia de adquirentes das unidades autônomas pode deliberar de forma distinta, de modo a destinar os bens afetados à superação da crise da empresa, como forma de liquidação do patrimônio de afetação13, sendo este o foro próprio para tal decisão, não se confundindo com a assembleia geral de credores, prevista na lei 11.101/2005. Para melhor compreensão, vejamos que o patrimônio total de uma SPE pode ser equivalente a X, e apenas 20% de X estar afetado para determinada incorporação. Assim sendo, é perfeitamente possível a recuperação judicial da SPE com patrimônio afetado: enquanto os 20% de X ficarão vinculados às obrigações relacionadas ao empreendimento segregado, os demais 80% serão destinados aos demais credores da incorporadora, na forma do plano aprovado. Qualquer solução diversa necessita da deliberação da assembleia de adquirentes. A jurisprudência vai se consolidando O tema já foi objeto de análise pelo Tribunal de Justiça de São Paulo em dois casos emblemáticos: o do Grupo Viver e o do Grupo PDG, duas grandes incorporadoras brasileiras. Em 12 de junho de 2017, quando do julgamento de agravo de instrumento interposto na recuperação judicial do Grupo Viver14, a 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial considerou incompatível com a recuperação a situação de SPEs dotadas de patrimônio de afetação. Posteriormente, em 10 de setembro de 2018, ao analisar agravo de instrumento interposto no caso do Grupo PDG15, aquele mesmo órgão colegiado reviu o seu entendimento e admitiu a recuperação judicial das SPEs (com e sem patrimônio de afetação), excluindo do feito recuperatório, todavia, os patrimônios segregados, não sujeitos ao plano de reestruturação. O Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, adotando tese que parece-nos mais acertada, reputou plenamente possível a harmonização entre o patrimônio de afetação e a recuperação judicial, desde que respeitado o regime de segregação patrimonial, destacando que "[a submissão das SPEs com patrimônio segregado à recuperação judicial] não coloca em risco o chamado patrimônio de afetação vinculado aos referidos empreendimentos, ao contrário, confere a incomunicabilidade e autonomia do patrimônio afetado"16. O Superior Tribunal de Justiça, até o presente momento, não teve a oportunidade de fixar posição definitiva sobre a matéria, havendo decisão monocrática liminar no sentido de suspender decisão do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, a qual havia indeferido, em grau recursal, o pedido de recuperação judicial de SPE com patrimônio de afetação, no caso do Grupo João Fortes Engenharia17. Conclusão Nesse contexto, impedir o acesso das SPEs com patrimônio de afetação ao instituto da recuperação judicial, direito conferido a todos aqueles que desenvolvem atividade empresária, vai de encontro não apenas ao espírito da lei 11.101/2005, cuja pedra de toque é a preservação da empresa, mas às previsões expressas contidas em seus arts. 2º e 119, IX, além de violar os arts. 31-A e 31-F da lei 4.591/1964. Não se pode afirmar, assim, categoricamente, que a existência de um patrimônio de afetação enseja, por si só, a impossibilidade da submissão da sociedade à recuperação judicial, sendo certo, tão somente, que deverá ser respeitada a segregação patrimonial engendrada, deixando à cargo da recuperanda, em razão de cada caso concreto, demonstrar aos seus credores sua capacidade de reerguimento, ultrapassando as dificuldades momentâneas por esta amargadas.   __________ 1 Art. 119. Nas relações contratuais a seguir mencionadas prevalecerão as seguintes regras: IX - os patrimônios de afetação, constituídos para cumprimento de destinação específica, obedecerão ao disposto na legislação respectiva, permanecendo seus bens, direitos e obrigações separados dos do falido até o advento do respectivo termo ou até o cumprimento de sua finalidade, ocasião em que o administrador judicial arrecadará o saldo a favor da massa falida ou inscreverá na classe própria o crédito que contra ela remanescer. 2 Art. 31-F. Os efeitos da decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador não atingem os patrimônios de afetação constituídos, não integrando a massa concursal o terreno, as acessões e demais bens, direitos creditórios, obrigações e encargos objeto da incorporação. 3 Art. 31-A. "A critério do incorporador, a incorporação poderá ser submetida ao regime da afetação, pelo qual o terreno e as acessões objeto de incorporação imobiliária, bem como os demais bens e direitos a ela vinculados, manter-se-ão apartados do patrimônio do incorporador e constituirão patrimônio de afetação, destinado à consecução da incorporação correspondente e à entrega das unidades imobiliárias aos respectivos adquirentes." No mesmo sentido, o parágrafo 1º do referido dispositivo legal esclarece que o patrimônio afetado não se comunica com o patrimônio geral do incorporador ou outros patrimônios de afetação por ele constituídos, respondendo apenas por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva: "§ 1o O patrimônio de afetação não se comunica com os demais bens, direitos e obrigações do patrimônio geral do incorporador ou de outros patrimônios de afetação por ele constituídos e só responde por dívidas e obrigações vinculadas à incorporação respectiva." 4 Nesse sentido: "É nesse plano das garantias que se compreende o patrimônio de afetação, que consiste, em suma, na adoção de um patrimônio próprio para cada empreendimento. Operacionalmente, terá a sua própria contabilidade, separada das operações da incorporada e (ou) construtora, o que confere segurança aos adquirentes quanto à destinação dos recursos. Não resta dúvida quanto à natureza do patrimônio: é garantia constituída em favor dos adquirentes." GOMES, Orlando. Direitos Reais. 21ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2012, p. 345-347. 5 Art. 966. Considera-se empresário quem exerce profissionalmente atividade econômica organizada para a produção ou a circulação de bens ou de serviços. 6 Art. 2º Esta Lei não se aplica a: I - empresa pública e sociedade de economia mista; II - instituição financeira pública ou privada, cooperativa de crédito, consórcio, entidade de previdência complementar, sociedade operadora de plano de assistência à saúde, sociedade seguradora, sociedade de capitalização e outras entidades legalmente equiparadas às anteriores. 7 Eduardo Takemi Kataoka comenta a possibilidade de submissão dos incorporadores imobiliários, não mencionados no rol taxativo do art. 2º da lei 11.101/2005: "Assim como acontece com empresas de diversos setores da economia, é possível que um incorporador imobiliário pretenda pleitear a recuperação judicial ou requerer a falência, na forma dos art. 1º e 2º da Lei de Falências. O art. 1º prevê as entidades que estão sujeitas ao regramento recuperacional e falimentar da lei: (i) a pessoa jurídica de direito privado constituída na forma de sociedade empresária e (ii) a pessoa física empresária. Por sua vez, o art. 2º apresenta as entidades às quais não se aplica o regime da Lei de Falências, sem qualquer menção ao incorporador imobiliário." KATAOKA, Eduardo Takemi. A recuperação judicial e o patrimônio de afetação in: Revista dos Tribunais. Vol. 6. Jul-Ago, 2014. 8 STJ, REsp 1878653 / RS, Min. Paulo de Tarso Sanseverino. Julg.: 14/12/2021. DJe: 17/12/2021. 9 Art. 31-F, § 1º -  Nos sessenta dias que se seguirem à decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador, o condomínio dos adquirentes, por convocação da sua Comissão de Representantes ou, na sua falta, de um sexto dos titulares de frações ideais, ou, ainda, por determinação do juiz prolator da decisão, realizará assembléia geral, na qual, por maioria simples, ratificará o mandato da Comissão de Representantes ou elegerá novos membros, e, em primeira convocação, por dois terços dos votos dos adquirentes ou, em segunda convocação, pela maioria absoluta desses votos, instituirá o condomínio da construção, por instrumento público ou particular, e deliberará sobre os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação (art. 43, inciso III); havendo financiamento para construção, a convocação poderá ser feita pela instituição financiadora.   10 Sobre a possibilidade de declaração de falência das SPE com patrimônio afetado, Daniel Carnio Costa e Alexandre Correa Nasser de Melo asseveram: "Recorde-se que os patrimônios de afetação são incomunicáveis por definição legal e só por lei a incomunicabilidade pode ser excepcionada, o que não ocorre em relação à recuperação judicial. E, na medida em que a empresa recuperanda deve continuar em atividade, seus diretores prosseguirão o recebimento dos recursos provenientes das vendas e, bem assim, de financiamento, se houver, e os aplicarão na execução da obra e na liquidação do passivo da incorporação; nessa atividade, esses mesmos administradores (...) continuarão a praticar os demais atos típicos da administração dos patrimônios de afetação, definidos no art. 31-D da Lei 4.591/1964." COSTA, Daniel Carnio; MELO, Alexandre Correa Nasser de. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência. Curitiba: Juruá. 2021, p. 268. 11 CHALHUB, Melhim Namem. Incorporação Imobiliária. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 141. 12 Art. 69-J. O juiz poderá, de forma excepcional, independentemente da realização de assembleia-geral, autorizar a consolidação substancial de ativos e passivos dos devedores integrantes do mesmo grupo econômico que estejam em recuperação judicial sob consolidação processual, apenas quando constatar a interconexão e a confusão entre ativos ou passivos dos devedores, de modo que não seja possível identificar a sua titularidade sem excessivo dispêndio de tempo ou de recursos, cumulativamente com a ocorrência de, no mínimo, 2 (duas) das seguintes hipóteses: 13 Art. 31-F, § 1o Nos sessenta dias que se seguirem à decretação da falência ou da insolvência civil do incorporador, o condomínio dos adquirentes, por convocação da sua Comissão de Representantes ou, na sua falta, de um sexto dos titulares de frações ideais, ou, ainda, por determinação do juiz prolator da decisão, realizará assembléia geral, na qual, por maioria simples, ratificará o mandato da Comissão de Representantes ou elegerá novos membros, e, em primeira convocação, por dois terços dos votos dos adquirentes ou, em segunda convocação, pela maioria absoluta desses votos, instituirá o condomínio da construção, por instrumento público ou particular, e deliberará sobre os termos da continuação da obra ou da liquidação do patrimônio de afetação (art. 43, inciso III); havendo financiamento para construção, a convocação poderá ser feita pela instituição financiadora. 14 TJSP; Agravo de Instrumento 2236772-85.2016.8.26.0000; Relator (a): Fabio Tabosa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Foro Central Cível - 2ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais; Data do Julgamento: 12/06/2017; Data de Registro: 20/06/2017. 15 Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo. 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial. Agravo de Instrumento nº 2023264-85.2018.8.26.0000. Declaração de voto convergente: Desembargador Grava Brazil. Data do Julgamento: 10.09.2018. DJe: 14.09.2018.  16 TJ-DF 07050749520188070000 DF 0705074-95.2018.8.07.0000, Relator: Fátima Rafael, Data de Julgamento: 20/09/2018, 3ª Turma Cível, Data de Publicação: Publicado no PJe : 26/09/2018. Pág.: Sem Página Cadastrada. Naquele caso, o Tribunal destacou que houve o cuidado de resguardar o patrimônio afetado (e, consequentemente, os interesses dos adquirentes das unidades imobiliárias), que responderia apenas pelas obrigações vinculadas à incorporação específica, como determina a legislação federal: "Da análise dos autos, verifica-se que o MM. Juiz a quo, ao proferir a r. decisão agravada, cuidou de resguardar o patrimônio afetado para responder apenas pelas obrigações vinculadas à própria incorporação. Como se sabe, nos moldes do artigo 31-A da Lei n° 4.591/64, com redação determinada pela Lei n° 10.931/04, o patrimônio de afetação justifica-se em razão da vulnerabilidade dos adquirentes das unidades imobiliárias frente às mudanças do negócio incorporativo. Assim, reconhecida à existência do patrimônio segregado, ele passa a responder somente pelas dívidas e obrigações vinculadas à respectiva incorporação". 17 Decisão monocrática proferida pelo Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva nos autos do Pedido de Tutela Provisória nº 3752-RJ (2021/0265210-4), em 19 de agosto de 2021.
terça-feira, 8 de março de 2022

Quando as exceções ameaçam virar a regra

1. Introdução Pouco mais de um ano após a entrada em vigor da reforma à lei 11.101/05 ("LRF"), instituída pela lei 14.122/20, observamos alterações palpáveis ao sistema de insolvência do país, hoje cada vez mais visíveis. Vários exemplos foram abordados nesta coluna nos últimos meses, e incluem a possibilidade de credores apresentarem um plano de recuperação judicial  ("RJ"), a limitação às prorrogações sem-fim do stay period na RJ que eram habituais, a simplificação do sistema de alienação de ativos, o incentivo ao fresh start do falido e regras mais claras em benefício do investidor no financiamento aos devedores em RJ ("DIP Financing"). Há consenso no sentido de que essas alterações pontuais na LRF tiveram como mote facilitar a recuperação das empresas insolventes e viáveis, e a retirada do mercado daquelas inviáveis, que ao longo dos anos prorrogavam sua situação de insolvência sem propriamente falir, tornando-se zumbis na cadeia produtiva. A nova LRF, nessas situações, incentiva que ativos troquem de mãos de maneira mais célere e eficiente, sendo reempregados na economia produtiva. Com isso, procura estimular um maior equilíbrio à economia do país, ainda mais num cenário de crises profundas fomentado pela pandemia, e agora pela guerra de proporções globalizadas.  Apesar desses claros avanços, que têm permitido que a LRF atinja melhor os seus objetivos, percebe-se ainda a adoção de certas posições antagônicas e pontuais ao sistema idealizado na LRF, que afetam o frágil equilíbrio dos pesos e contrapesos entre as partes num cenário de insolvência. Em geral, como se verá, essas posições vêm à tona quando buscam fortalecer o sistema de exceções na RJ, permitindo que credores sejam excluídos dos seus efeitos, blindando-os do concurso e da negociação de um plano de pagamento aprovado pela maioria, que afete toda a coletividade. Ou então quando se limita a competência do juízo da RJ para julgar matérias afeitas ao concurso de credores e ao direito recuperacional, transferindo essa competência para outros julgadores que desconhecem os meandros da insolvência, a essencialidade de certos bens para o soerguimento da empresa e os mecanismos aprovados pela coletividade por meio do plano de recuperação judicial. Essas posições pontuais, que buscam legitimar a fuga de alguns ao sistema da LRF, deveriam ser revisitadas sob a ótica do direito concursal e econômico. Afinal, um ou outro credor pode considerar um êxito momentâneo a sua blindagem da RJ. Entretanto, no médio prazo, se a empresa for inviabilizada por não conseguir reorganizar sua estrutura de capital, dificilmente os credores recuperarão seus créditos nessa corrida desenfreada por ativos, que muitas vezes é limitada pela própria essencialidade dos bens. Outros credores, legalmente excluídos da RJ antes da reforma, já perceberam esta circunstância, e hoje participam voluntariamente da regra do jogo concursal, ao negociarem planos de RJ e participarem como "credores extraconcursais aderentes" ou concordarem com transações que cabem no bolso da devedora, como é o caso do fisco. Resta saber qual será a postura desses novos credores "excluídos" ou dos que buscam a interpretação dos negócios jurídicos travados com os recuperandos sob uma ótica dissociada do direito concursal, como se a insolvência passasse ao largo das suas relações. A intuição baseada no comportamento humano, que no direito concursal se manifesta pelo "dilema do prisioneiro", diz que a médio prazo eles perceberão que a melhor alternativa será acompanhar os demais credores concursais. Até a ficha cair, no entanto, muitas empresas viáveis poderão vir a falir. Para evitar esse resultado, no atual cenário de grandes desafios políticos, sociais e econômicos, é aconselhável que tanto o poder legislativo quanto os operadores do direito apliquem com sabedoria as regras do direito concursal estabelecidas pela LRF. Assim será possível estabelecer um jogo mais equilibrado, em que todos mitigam suas perdas: credores, a economia e até mesmo os devedores.     2. Os resultados da reforma da LRF em casos concretos Como já abordei em outros artigos, os objetivos maiores da RJ são permitir que os devedores reorganizem sua estrutura de capital e superem seus problemas de liquidez. Ao mesmo tempo, busca-se poupar os credores de uma corrida pantagruélica e destrutiva por bens do devedor, que em regra será infrutífera, já que a empresa insolvente não possui bens suficientes para pagar todas as dívidas. Ocorre que a LRF sofreu diversas críticas ao longo dos anos, e a sua eficiência foi empiricamente medida por baixos índices de recuperação de créditos e pelo fracasso da falência. Desde que entrou em vigor, em janeiro de 2021, alguns efeitos da nova LRF foram imediatamente sentidos por todos. O mais emblemático deles é que hoje, em casos paradigmáticos, os planos de recuperação são frutos de um intenso e profícuo processo de negociação com os credores, ao invés de serem impostos pelos devedores, que não raras vezes empurravam os credores a um plano menos ruim do que a falência representaria aos seus créditos, mas ainda assim insuficiente para recuperar atividades econômicas viáveis. Em casos recentes mais representativos, esses planos vêm sendo redigidos em conjunto por credores, devedores e investidores em longas horas, dias e meses de negociação. Em duas RJ recentes nas quais representamos os devedores, o resultado final desses planos redigidos a diversas mãos foi a sua aprovação maciça em AGC e a sua rápida homologação judicial em primeira instância, diante da existência de divergências mínimas, em geral apresentadas por credores vocais com baixíssima representatividade frente à coletividade. Esses planos contaram com o apoio ostensivo dos credores, inclusive dos extraconcursais e investidores nos autos, blindando a RJ de ataques infundados. Além da convergência de interesses obtida por meio da intensa negociação entre as partes, os DIP financing foram outro destaque da reforma da LRF. Se antes eram artigo raro, hoje viraram a coqueluche do mercado, e são disputados por investidores que competem pela oportunidade de investimento lucrativo, em benefício de todos -credores, fornecedores correntes, devedores e demais agentes econômicos envolvidos direta e indiretamente na atividade produtiva. Hoje é comum ver investidores DIP e potenciais adquirentes de bens e UPIs participando ativamente das negociações e redação dos planos de RJ. Não se pretende aqui dizer que a reforma resolveu todos os problemas dos que se veem às voltas com situações de insolvência, mas os avanços foram importantes. Mais do que isso, demonstram que o sistema de insolvência e do direito concursal funcionam, bastando ajustes aqui e acolá. Também é imprescindível que as normas sejam interpretadas de forma sistemática, à luz dos princípios e objetivos maiores previstos na LRF. Isso melhora o ambiente de negócios, e todos saem felizes com a certeza de que as transações se revestem da segurança jurídica necessária para prosperarem.  3. As exceções que estão virando regras: uma reflexão sobre a situação dos representantes comerciais, do fiador que honra o crédito após o pedido, e do não reconhecimento da competência do juízo da RJ Em paralelo aos avanços do sistema de insolvência com a nova LRF, um problema sempre presente, desde o início da vigência da lei em 2005, permanece à espreita e alarga sua amplitude: a exclusão de créditos relevantes dos efeitos da RJ. Antes da reforma da LRF, muito se criticava a exclusão dos créditos com garantia fiduciária e oriundos de ACC da RJ (artigos 49, §§3º e 4º). Isso sem contar o fisco, claro, que também sempre esteve fora do jogo. No entanto, depois de mais de 15 anos de batalhas entre devedores e credores, esses problemas foram melhor equacionados na reforma da LRF. Como vimos, o sistema procura se corrigir, e hoje essas partes são incentivadas a trabalhar lado a lado para buscar soluções que melhor atendam à recuperação de créditos e a preservação de atividades econômicas. Ocorre que esse movimento de excepcionar certos credores dos efeitos da RJ tem reaparecido em diversas instâncias. E os efeitos disso são preocupantes. Por exemplo, a recente lei 14.195/21, que alterou dispositivos da lei 4.886/65 relativa aos representantes comerciais, excluiu da RJ os créditos dos representantes comerciais reconhecidos em título executivo judicial, ainda que existentes na data do pedido, mas que transitarem em julgado após o deferimento do processamento da RJ (o que altera a regra clara do artigo 49 da LRF). A constitucionalidade desses dispositivos legais vem sendo questionada na ADIn 7.054 ajuizada pelo Conselho Federal da OAB. Paulo Penalva Santos1 tem um excelente artigo a respeito dos problemas causados pelo novo diploma legal publicado nesta coluna. Vale conferir. Para além dos representantes comerciais, uma longa discussão no judiciário vem sendo travada a respeito dos créditos detidos por fiadores, que são instados a honrar a fiança após o ajuizamento da RJ. As discussões em torno do assunto versam sobre a definição do fato gerador do crédito objeto da fiança: se é o momento da constituição da obrigação principal, ou se é o momento em que o fiador honra a fiança, quando, segundo alguns, seu direito de crédito passaria a existir. Nesses casos, em geral os instrumentos de dívida garantidos pela fiança estabelecem como causa de vencimento antecipado o ajuizamento da RJ em si (a chamada cláusula ipso facto de insolvência), de tal modo que o credor original rescinde o contrato imediatamente após o ajuizamento da RJ e, na sequência, notifica o fiador para honrar o pagamento da dívida. Ocorre que a fiança é contrato acessório, que depende do negócio principal (artigos 818 e 823 do Código Civil). Além disso, o fiador se sub-roga no crédito com o pagamento, de modo que assume a posição do credor original, com todos os seus direitos e deveres, sem a criação de um novo vínculo obrigacional entre as partes (artigos 346, III, 349 e 831 do CC). Apesar da posição maciça dos doutrinadores nesse sentido2, corroborada por decisões em todos os graus de jurisdição, alguns magistrados têm dado ganho de causa aos fiadores, excluindo-os dos efeitos da RJ por julgarem que seu crédito foi constituído após o ajuizamento do pedido. Parte dos que assim entendem utilizam como paradigma acórdão de relatoria da Ministra Nancy Andrighi no caso da OAS, mas que no entanto trata de uma situação diversa, bastante específica e inaplicável à grande maioria dos contratos de fiança objeto de controvérsia: lá se trata de uma carta de crédito em garantia, esta sim autônoma em relação à obrigação principal, se interpretada segundo os termos da publicação ISP98 (International Standby Practices) da Câmara Internacional3, e que foi instada para pagamento apenas no curso da RJ. Qual é o problema que surge se esse entendimento prevalecer em nossos tribunais? Simplesmente ficam excluídos da RJ todos os créditos representados por instrumentos de dívida que possuem (i) a cláusula ipso facto de insolvência; e (ii) garantia de fiança. O volume de créditos negociados no país sob essas condições está longe de ser trivial e sem dúvida crescerá muito diante da possibilidade de não ser reconhecida a concursalidade de tais créditos. Em outras palavras, potencialmente todo e qualquer crédito poderia estar excluído da RJ. Basta ao credor esperto, no momento da contratação, exigir a previsão contratual de vencimento antecipado em caso de RJ e a garantia de fiança para se ver livre (juntamente com o próprio fiador garante) do estigma do devedor insolvente. Isso representaria, sem dúvida, o bug do milênio na insolvência. Por fim, aproveitando o tema da necessária interpretação conjugada das normas esparsas de direito com a LRF e seus princípios de direito concursal, quando se está diante de bens e negócios jurídicos envolvendo uma empresa insolvente, vale tecer breves linhas sobre outro problema que vem se descortinando no horizonte. Trata-se da limitação injustificada da competência do juízo da RJ para apreciar questões relacionadas a contratos e ativos essenciais à recuperanda e ao concurso de credores, à luz do processo recuperacional em curso, quando houver previsão de cláusula arbitral no instrumento contratual. Isso acontece porque, à primeira vista, o princípio da competência-competência (parágrafo único do artigo 8º da Lei nº 9.307/96) que rege a arbitragem dispõe que o próprio tribunal arbitral tem a atribuição para decidir sobre a extensão da sua própria jurisdição.  Isso, aliado à renúncia à jurisdição estatal inerente ao compromisso arbitral, num primeiro olhar retiraria a competência do juízo da RJ para decidir sobre certas matérias. O problema (não tão óbvio à primeira vista) é que muitas das matérias a serem decididas a respeito de um contrato envolvendo a recuperanda são de competência absoluta do juízo recuperacional. Portanto, estão fora do alcance da arbitragem (inteligência do art. 1º da lei 9.307/96). E a justificativa de ordem prática para isso, quase intuitiva, é que os árbitros, por mais familiarizados que estejam com o direito falimentar, não conhecem os meandros da RJ do devedor envolvido na arbitragem, de modo que a questão controvertida passa a ser apreciada preponderantemente sob o viés civilista e contratual, tangenciando apenas o direito recuperacional e (com boa vontade dos julgadores) as circunstâncias que norteiam aquele procedimento de RJ. Em razão disso, doutrina e a jurisprudência4 reconhecem que tais matérias, ainda que em princípio se submetam à cláusula compromissória, são deslocadas para a competência absoluta do juiz da recuperação judicial. Não se trata de desconsiderar a cláusula compromissória e a competência do juízo arbitral. Trata-se, sim, de promover a convivência harmônica entre ambas as jurisdições arbitral e recuperacional, sendo certo que, em caso de conflito, o STJ já consolidou o entendimento de que cabe ao juízo recuperacional decidir sobre matérias atinentes ao acervo patrimonial das recuperandas. É justamente o que a Ministra Nancy Andrighi considerou no julgado paradigma sobre a questão, oriundo da RJ da Oi5. Apesar da jurisprudência caminhar nesse sentido, ainda há julgados delegando as decisões sobre quaisquer temas, diante de um contrato envolvendo cláusula compromissória, aos árbitros. Tais julgados desconsideram as matérias de direito recuperacional, o que é problemático, porquanto desrespeita as esferas de competência de parte a parte, e pode permitir novamente ao credor esperto se desvincular do processo recuperacional, em detrimento de todos os demais credores. 6. Conclusão O resumo desta ópera é que, embora a insolvência no país esteja em constante aperfeiçoamento, com uma legislação mais eficiente, juízes cada vez mais especializados e partes que compreendem o tabuleiro, ainda há ajustes pontuais a serem feitos, com o intuito de manter a higidez do sistema. O regime de exceções de certos credores à RJ, e a limitação da competência dos juízes de RJ em matérias que são claramente de direito concursal, são exemplos que militam contra a segurança jurídica e a eficiência do sistema, em prejuízo a toda a coletividade de agentes envolvidos nesse processo: credores, investidores, a economia e os devedores. À medida que os operadores do direito e legisladores se conscientizarem de que o sistema funciona bem quando as regras do jogo são compreendidas e aplicadas a todos, de forma equânime, o sistema da RJ será mais eficiente. Trocando em miúdos, quando a maioria sai de campo, não se tem jogo. Sob este prisma, estou convencida de que as exceções acima comentadas não passarão a ser regra.  VENOSA, Silvo de Salvo. Direito Civil - Obrigações e Responsabilidade Civil - Vol. 2. 20ª ed. São Paulo: Atlas, 2020, p. 293. Stolze, Pablo; Filho, Rodolfo Pamplona. Novo curso de direito civil 2 - obrigações. 21ª ed. São Paulo: Saraiva, 2019, p. 197 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código civil, volume V, tomo I: do direito das obrigações, do adimplemento e da extinção das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 458. Orlando, GOMES. Obrigações, 19ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019, p. 111-112. Arnaldo, RIZZARDO. Direitos das Obrigações, 9ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 352 TARTUCE, Flávio. Direito Civil - Direito das Obrigações e Responsabilidade Civil. Vol. 2. 15ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p. 177. BDINE, Hamid. in Código Civil Comentado, Coord. Cezar Peluso, 12ª ed., Manole, 2018, p. 320.   SACRAMONE, Marcelo Barbosa e PIVA, Fernada Neves. "O pagamento dos débitos da recuperanda: a sub-rogação e o direito de regresso na recuperação judicial". Texto publicado na obra Direito Societário III (Flávio L. Yarshell e Guilherme Setoguti Pereira coord.), Quartier Latin, São Paulo, 2018. ____________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/353273/contrato-de-representacao-comercial-e-recuperacao-judicial 2 PEREIRA, Caio Mário da Silva. Instituições de Direito Civil - Teoria Geral das Obrigações - Vol. II. 32ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020, p 206 3 Vide parecer do Prof. Guerreiro nesse sentido (Apelação Cível nº 1068244-62.2017.8.26.0100, 23ª Câmara de Direito Privado do TJSP, "Negaram provimento ao recurso. V. U.")   4 CC 153.498-RJ e CC 157.099-RJ, ambos do STJ, e TJ/MG AC 10000170156913006 5 CC 153.498-RJ
Os interesses públicos e privados a serem realizados no campo da insolvência1 e a grande variedade de problemas que cotidianamente surgem nas recuperações judiciais e falências nos levam a pensar se é possível o acordo de vontade das partes sobre o desenvolvimento dos processos e os limites em que essa composição pode se dar por meio dos chamados negócios jurídicos processuais. A lei estabeleceu a negociação como meio para enfrentar a crise da empresa, até mesmo porque a imposição de decisões judiciais, que poderiam resolver as questões entre as partes, seria insuficiente para os problemas que originam a litigiosidade, o que equivale dizer que a solução idealizada pelo legislador deve ser obtida pelo apoio dos credores ao reerguimento do devedor. Se o destino final, na recuperação judicial, é o reerguimento do devedor em dificuldade cuja permanência no mercado ainda seja viável; na falência, o objetivo é rápida e eficaz liquidação da empresa. Não se pode perder de vista, porém, que os meios exercem influência sobre o resultado e que as convenções em matéria processual se inserem na moderna tendência de contratualização das relações sociais e, enquanto técnica, também podem incidir sobre a relação processual, para a adaptação do procedimento às especificidades da causa2, sem afrontar normas cogentes que se apoiam sobre os princípios e garantias do processo civil. Poderia se cogitar, desse modo, da composição entre credores e devedor a respeito de diversos aspectos, como a adoção do chamado calendário processual, com a fixação de prazos diversos daqueles referidos na lei; a superação da preclusão; a modificação de procedimentos, com a adoção ou dispensa de fases procedimentais, como o período de fiscalização da execução do plano; a realização de outras formas de deliberação ou de alienação de ativos e até mesmo as convenções processuais nos incidentes dos processos concursais e naquelas ações em que a devedora é parte, entre outras formas de composição que poderiam conformar a prestação jurisdicional às peculiaridades dos casos concretos, que na prática divergem significativamente. Nesse contexto, é preciso observar que a lei 11.101/05 dispõe rigidamente sobre o processo e o percurso que deve ser cumprido pelos atores processuais, sem grandes margens para modificação do procedimento, seja pelo gerenciamento judicial ou por meio de acordo das partes, salvo poucas exceções. Ao contrário da Lei Concursal, o CPC dispõe, no art. 190, sobre a possibilidade de celebração de negócios processuais que versem sobre o procedimento, ônus, poderes, faculdades e deveres processuais das partes, antes ou durante o processo, além de, no art, 191, dispor que: "De comum acordo, o juiz e as partes podem fixar calendário para a prática dos atos processuais, quando for o caso" (art.191), condicionando tais acordos, entretanto, à eficiência das medidas estipuladas pelas partes para o desenvolvimento do processo. Não obstante a ausência de disposição específica, há regra geral na lei 11.101/05, que, por extensão, possibilita à assembleia geral deliberar, por maioria de seus membros, sobre matéria processual. Nesse contexto, pode ser objeto do acordo de vontades dos envolvidos não somente as disposições sobre o plano de recuperação, mas, 'qualquer outra matéria que possa afetar os interesses dos credores', consoante dispõe o art. 35, I, f, da LRE, o que certamente inclui a matéria processual e, também, evidentemente, não exclui o controle jurisdicional em termos de existência e validade sobre o que fora estabelecido pelas partes3. Quando o legislador especifica prazos, dispõe sobre a ordem dos atos processuais e o modo pelo qual devem se realizar, baseando-se em casos comuns, que seguem a média dos processos em curso, e acaba, por vezes, desconhecendo situações intrínseca e extrinsecamente muito diferentes. Para essa conclusão, basta comparar a recuperação judicial de uma empresa de médio porte ao processo que envolve grande grupo econômico em litisconsórcio ativo, muitas vezes, com milhares de credores; estaremos diante de problemas com dimensões diferentes, que certamente se refletirão sobre a suficiência dos prazos estabelecidos na lei para a apresentação do plano ou para o oferecimento de objeções, para a realização da assembleia de credores ou outras formas deliberativas previstas na lei, como ainda do chamado período de supervisão do cumprimento do plano aprovado, entre outros temas. No processo inglês, os juízes fixam o calendário em consulta com as partes e advogados, diante da multiplicidade de situações, tomando em conta os casos de grande importância financeira; em contrapartida, há uma série de sanções relativas a custos para coibir os desvios, conferindo certa margem de adaptação às necessidades concretas em favor da eficiência, sem exclusão do controle judicial4. No direito norte-americano, além da fixação de datas e programação do processo, a lei prevê alguma flexibilidade do procedimento, que se apoia principalmente sobre o gerenciamento judicial, como é o exemplo do poder do tribunal para a análise de motivos que podem levar à redução do prazo de exclusividade para a apresentação do plano ou a sua ampliação, normalmente autorizada pelas bankruptcy courts nos maiores casos5. No Direito brasileiro, após a reforma empreendida pela lei 14.112/20, conferiu-se alguma flexibilidade ao procedimento com a possibilidade de aumento do período de suspensão das ações movidas em face do devedor, fixando esse prazo em 180 dias, prorrogável por igual período (§4º, do art. 6º da LRE). Evidentemente, o legislador tomou em conta a prática de nossos tribunais, que já havia abrandado a rigidez da lei diante de hipóteses justificativas para a ampliação desse período. A previsão da possibilidade de aumento do chamado stay period constituiu grande avanço e certamente contribuirá para a flexibilização do processo em favor da consecução dos seus objetivos diante de realidades que não se podem igualar Contudo, essa previsão de flexibilização não se vê em relação aos demais prazos, levando a cogitar da alternativa da fixação de um calendário processual6, principalmente, mas não exclusivamente, para aqueles casos mais intricados, expostos a inúmeros percalços que podem surgir e que ocorrem no dia a dia dos nossos tribunais. É preciso dizer que, embora o calendário possa contar com a participação das partes, devedor e credores, é imprescindível a determinação judicial para a fixação das datas, até mesmo porque o desenvolvimento do processo depende da disponibilidade dos serviços da vara na qual tramita, algo que se relaciona à prestação do serviço público. Tecnicamente, o calendário do processo não constitui espécie de negócio jurídico processual; mas, antes, ato conjunto do juiz e das partes, pois, embora tenda a modificar o procedimento, muitas vezes fixando prazos diversos daqueles estipulados na lei e, portanto, produzindo consequências processuais e alterando o procedimento, há a necessária determinação judicial que o descaracteriza como convenção processual7. Não obstante essa classificação, importante ter em conta que a calendarização da atividade processual de forma razoável flexibiliza o procedimento e pode contribuir fundamentalmente para extrair maior efetividade do processo. Ponderemos que as partes podem ter interesse em influir na atividade-meio e não raramente conhecem as especificidades da causa, estando habilitadas a participar da fixação dos rumos do processo, desde que em harmonia com os objetivos publicísticos8, mesmo que se trate de ato que dependa da palavra final do Judiciário. Por outro lado, é preciso que se diga, também, com relação às convenções processuais, que certas estipulações podem trazer prejuízos injustificados a uma minoria ou mesmo ao serviço público em geral, como seria o caso da eternização de dado processo; por isso, a autonomia da vontade não deve ser total e a lei concursal dita alguns limites expressos, como é o caso do impedimento à negociação sobre a natureza jurídica e a classificação de créditos, critérios de votação em assembleia-geral de credores9, e outros, implícitos, que podem ser extraídos dos princípios constitucionais voltados ao processo, a exemplo daqueles que dão fundamento à publicidade e à ampla defesa. Tais limites expressos e implícitos justificam o exercício do controle judicial sobre as deliberações das partes em termos processuais, levando em conta pontos fundamentais como a disponibilidade do direito em questão; as garantias processuais fundamentais e a previsibilidade do iter processual. De forma mais específica, é preciso notar que avançou também a lei em vigor com a flexibilização das formas de deliberação dos credores no processo concursal, conforme autoriza o art. 39, §4º, da LRF, que se reflete também em relação aos custos do processo, que podem ser reduzidos pela adoção de meios deliberativos mais simples, principalmente, naqueles casos em que a formação da vontade coletiva pode ser alcançada mais facilmente; noutras situações, porém, a realização da assembleia de credores parece ainda ser fundamental e muitas questões podem surgir durante a sua realização, o que pode levar à premente necessidade de se decidir de imediato sobre tais pontos, e nada mais apropriado que o ambiente da assembleia para que ocorram tais deliberações, inclusive sobre a forma pela qual se deve proceder. Isso não leva a concluir que não deva haver o controle judicial posterior sobre a deliberação dos credores, como a correta distribuição do direito de voto; o quórum a ser considerado; a contagem de voto de credor presente na instalação e ausente no momento da deliberação; a exclusão do quórum de credor que se absteve de votar; a forma de votação e outras, para que não haja ofensa ao princípio da inafastabilidade do controle jurisdicional e contrariedade aos objetivos fixados pela LRE10. Já em relação às outras formas de deliberação dos credores, agora autorizadas pelas modificações trazidas pela lei 14.112/20 (incisos I a III, §4º, do art. 39), os credores manifestarão seu voto isoladamente, pelo que a opção pela forma de proceder dificilmente será objeto de negociação e normalmente se dará pela opção do devedor. Nesses casos, se for escolhido "outro mecanismo", deve ser autorizado pelo juízo, que decidirá se é suficientemente seguro nos termos da lei (inciso III, §4º, do art.39), devendo ser, ainda, todas essas formas, fiscalizadas pelo administrador judicial, que emitirá parecer sobre sua regularidade (§5º do art. 39) a ser submetido ao controle judicial. Também, não há vedação aos acordos de voto na lei 11.101/05, que podem tomar por fundamento legal as regras do CC/02 (art. 425) e as disposições do art. 190 do CPC, que não contrariam o sistema instituído pela lei 11.101/05, ainda que não tenham sido tipificados na legislação concursal. Dessa forma, como tem ressaltado a doutrina11, há a possibilidade da celebração de acordo de credores para influenciar os resultados do processo de recuperação judicial, o que o caracteriza como negócio jurídico processual, pois, além dos efeitos substanciais, produz efetivamente consequências processuais. Deve-se notar, ainda, que o negócio jurídico processual não exige a participação de todas as partes, basta que seja apto a criar, modificar ou extinguir situações jurídicas processuais ou alterar o procedimento12. Impõe-se, contudo, limites para manter a licitude do acordo de voto dos credores e, para que não haja abuso do direito, deve-se lembrar que o voto deverá ser "exercido pelo credor no seu interesse e de acordo com o seu juízo de conveniência e poderá ser declarado nulo por abusividade somente quando manifestamente exercido para obter vantagem ilícita para si ou para outrem" (art. 39, §6º, da lei 11.101/05). O art. 61, caput, da LRF, conforme a redação conferida pela lei 14.112/20, determina que o juiz "poderá" determinar a manutenção do devedor em recuperação judicial pelo prazo máximo de dois anos da concessão da recuperação judicial, o que confere flexibilidade para ser estipulado o prazo em que perdurará esse período de fiscalização. Com essa previsão, cumpre indagar se as partes podem de comum acordo fixar esse prazo13. Veja-se que a extinção do processo após a concessão da recuperação judicial pode ser aconselhável em algumas situações, considerando-se a diferença de custo entre o financiamento concedido no curso do processo de recuperação judicial e aquele que ocorre após a aprovação do plano14, pelo qual são cobrados juros mais baixos; noutras situações, em vista da necessidade de fiscalização de determinadas medidas previstas no plano ou outras causas, necessária a supervisão (art. 61, caput, da LRE). Dessa forma, nem sempre está presente a necessidade dessa fase do processo e, nessas hipóteses, nada obsta que devedor e credores deliberem sobre o tempo que perdurará o período de fiscalização, o que não significa que deva essa questão ser subtraída ao controle judicial; mas, certamente, será evidenciada ao juiz a real vontade das partes nesse ponto, vontade essa que poderá ser contrariada apenas por decisão judicial fundamentada que se apoie na necessidade concreta de fiscalização. Na falência, além de se aproveitar a oportunidade dos negócios processuais relativos a eventuais assembleias gerais, não tão comuns nessa espécie processo, também é possível a formulação de calendários processuais, tomando-se em conta a necessidade da participação direta do juízo, que exercerá o gerenciamento judicial, necessário para a administração do volume de serviço da vara em que tramita o processo. Há utilidade dos negócios processuais também em relação aos incidentes e eventuais ações em que a massa ou a recuperanda sejam partes, em que são cabíveis, dentre outras, convenções para a adoção de meios alternativos de solução de controvérsias ou sobre o ônus da prova; desistência de recursos; renúncia ao direito ou desistência da ação, por parte do credor e do devedor em recuperação; no caso da massa falida, certamente de forma mais limitada, posto depender de autorização do juízo da quebra, ouvidos os credores, devedor e MP, por envolverem, esses negócios, interesses de terceiros e reflexos sobre os direitos substanciais da massa falida. Veja-se, com relação às formas de realização do ativo, que a lei abre oportunidade à deliberação dos credores, quando se trata de alienação de bens pelo chamado "processo competitivo organizado" ou por "qualquer outra modalidade", referidas nos incisos IV e V, do caput, do art. 142 da lei 11.101/05, conforme determina o inciso I, do §3º B, do mesmo artigo, que remete à assembleia de credores.  Mesmo que a deliberação dos credores não envolva todas as partes do processo, pode-se dizer que se trata propriamente de negócio processual, porque vincula aqueles que deliberaram por maioria e também as demais partes. Veja-se que não são as consequências materiais que determinam a natureza processual do negócio e sim os efeitos que produz sobre processo, que não podem ser negados, porque a escolha de uma forma ou outra de venda representa o modo de proceder para esse específico ato processual de alienação de ativos. Também a disposição do art. 145 da LRE torna possível a convenção processual, porque permite aos credores "adjudicar os bens alienados na falência ou adquiri-los por meio de constituição de sociedade, de fundo ou de outro veículo de investimento, com a participação, se necessária, dos atuais sócios do devedor ou de terceiros, ou mediante conversão de dívida em capital"; nessa hipótese, caso seja superavitária a falência, necessariamente, os sócios da devedora devem aquiescer ao negócio.  Como o eventual acordo de vontades certamente produzirá efeitos em relação ao processo, quando pouco, levando ao seu encerramento, eventual ajuste nesse sentido também constitui negócio jurídico processual, que se pode dizer típico, porque relacionado na lei. Não obstante, é preciso notar que a alternativa de constituição de sociedade não obriga aos dissidentes na falência, eis que ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado, conforme assegurado na CF/88 (art.5º, XX), devendo a massa ressarcir tais pessoas pelo valor a que teriam direito pela regular realização do ativo15.    Ainda outras convenções processuais podem ser cogitadas nos processos de insolvência, lembrando sempre que algumas disposições em matéria processual são cogentes porque a conformação do processo em determinadas situações prende-se ao interesse público; em outras, a flexibilização do procedimento não deixa de ser compatível com as garantias fundamentais do processo16 e oportuna para levar à eficiência do instrumento e evitar o agravamento da crise que se procura solucionar. Não há como negar, desta maneira, a autonomia privada em termos processuais, se não houver contrariedade à eficiência do sistema de justiça estatal17 ou aos direitos e garantias fundamentais. _____ 1 Mencionando valores explícitos e as dimensões públicas e privadas da lei nessa seara, bem como valores e objetivos que devem ser confrontados nos processos de insolvência: FINCH, Vanessa. Corporate Insolvency Law: Perspectives and principles. 2ª ed., Cambridge, 2009, p.780-787. 2 Cf. CADIET, Loic. "Les conventions relatives au procès n droit français sur la contractualisation du règlement des litiges", in Revista de Processo. Ano 33. N.  160. São Paulo: Revista dos Tribunais. Jun./ 2008, p. 62. 3 Cf. YARSHELL, Flávio Luiz. "Convenção das partes em matéria processual", in Revista de Direito Recuperacional e Empresa. V.1, julho-setembro de 2016. 4 Cf. BONCI, Marco. "Active case management - English reception and Italian rejection" in Revista de Processo. Ano 38. Vol. 219. Revista dos Tribunais. Maio de 2013. p.235-237. 5 Cf. KORDANA, Kevin A., POSNER, Eric A. "A Positive Theory of Chapter 11", cit., in New York University Law Review 74 (1999), pp.181-183. 6 Consoante ressalta Paulo Furtado, podem as partes "fixar calendário processual, com o objetivo de trazer previsibilidade, celeridade e economia ao procedimento, ficando os credores cientes desde o início das datas em que os atos processuais serão praticados, incluindo a apresentação do plano e as datas de realização da assembleia-geral de credores". FURTADO, Paulo. O negócio jurídico processual na recuperação judicial. Migalhas. São Paulo. Disponível aqui. 7 No mesmo sentido: CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: entre o privatismo e o publicismo. Tese de livre docência apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2015, p.59. 8 Cf. GRECO, Leonardo. "Os atos de disposição processual - primeiras reflexões", in Revista Eletrônica de Direito Processual. 1ª edição. Outubro/dezembro. 2007, p.8. 9 Sobre a vedação da utilização da mediação e conciliação para a natureza jurídica e a classificação de créditos proíbe expressamente a lei 11.101/05, bem como a vedação de negociação sobre a questão dos critérios de votação em assembleia-geral de credores (art.20-B, §2º). 10 Cf. YARSHELL, Flávio Luiz. "Convenção das partes em matéria processual", in Revista de Direito Recuperacional e Empresa. V.1, julho-setembro de 2016. 11 Cf. GONTÍJO, Vinícios J.M. "Falências e Recuperação de empresas: acordo de credores na assembleia geral", in Revista de Direito Mercantil 159/160. 2011, p.167. 12 Cf. CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: entre o privatismo e o publicismo. Tese de livre docência apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2015, p.232. 13 Já se decidiu no sentido que essa é tarefa incumbe ao juiz (AI. 2277616-38.2020.8.26.0000, da Comarca de Guarulhos, TJSP, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial, rel. Des. Araldo Telles, por maioria, j. 9/4/21). 14 Cf. KEBREDLE, Richard; PASIANOTTO, Ricardo M. "Os desafios do 'Financiamento DIP' em casos de reestruturações brasileiros", in Revista de Direito Recuperacional e Empresa. N. 1. Julho - setembro. São Paulo: Thomson Reuters. 2016, p. 2. 15 Cf. SACRAMONE, Marcelo Barbosa. Comentários à lei de Recuperação de empresas e Falência. 2ª edição. Saraiva. 2021, p.584. 16 Cf. CABRAL, Antonio do Passo. Convenções processuais: entre o privatismo e o publicismo. Tese de livre docência apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo. 2015, p.207. 17 Cf. CAPONI, Remo. "Autonomia privata e processo civile: gli accordi processuali", in Rivista Trimestrale di Diritto e Procedura Civile. Ano LXII - Splemento n.3. Milão: Giuffrè. Setembro 2008. pp.102, 104 e 108.
quinta-feira, 23 de dezembro de 2021

Consolidação substancial e project finance

Os empreendimentos de infraestrutura, de que o nosso país tanto carece, demandam vultosos investimentos. O financiamento para a construção desses empreendimentos depende de estudos muito sofisticados, e, em grande medida, há um cálculo para que o financiamento seja pago pelo faturamento que vier a ser obtido, no futuro, com aquela obra a ser construída. O financiador sabe que nesse tipo de empreendimento há um tempo de projeto e um tempo de construção (muitas vezes, demorado) até a entrega da obra.  É a partir deste instante que se abre a possibilidade de cobrar pelo serviço usufruído pela população. Os empréstimos para financiamento desses empreendimentos são de longo prazo, especialmente porque o pagamento ao financiador será feito com recursos auferidos pelo empreendimento financiado. Nesse tipo de financiamento, os contratos são expressos na previsão de que o pagamento dar-se-á com os recursos obtidos pelo financiado decorrentes da exploração do empreendimento. Há um vai e vem, no sentido de que o dinheiro do financiador vai para a obra, e o dinheiro da exploração da obra volta para o financiador. Cada empreendimento é visto como um negócio isolado, pois é ele que vai se pagar. O risco é isolado no empreendimento em si, sem consideração relevante para com a própria pessoa do empreendedor. O risco não se transmite a outras unidades de negócio. Tal é a noção de project finance, que se define como a "captação de recursos para financiar um projeto de investimento de capital economicamente separável, razão de ser das SPEs (Sociedades de Propósito Específico). Neste caso, os provedores de recursos veem o fluxo de caixa e/ou ativos do projeto como fonte primária de recursos para atender ao serviço da dívida (juros), mais a amortização do principal, a fim de fornecer um retorno compatível sobre o capital investido" (...)."Uma das características que distingue o project finance das demais modalidades de financiamento é a concessão de crédito a uma entidade jurídica segregada"1. Há necessidade de se promover uma segregação jurídica e uma segregação econômico-financeira, pois cada operação deve ser apta a suportar o pagamento dos juros e o pagamento do principal. Luis Ferreira Xavier Borges2, em estudo de 1998, ao apontar os figurantes de um clássico project finance, aponta o patrocinador, fornecedores de equipamentos, de serviços e de insumos, operador, comprador da produção, engenheiro independente, consultor de seguros, conselheiros legal e financeiro, financiador. Afirma que   "Essas mesmas personagens podem coexistir no todo ou em parte, mas a figura da sociedade de propósito especial - special purpose company (SPC) - costuma ser uma constante, que se explica pela própria necessidade de segregar o risco e pelo imperativo de uma personalidade jurídica distinta daquela dos sócios para o veículo dos investimentos". Outro ponto destacado pela doutrina é "A segregação de riscos e, consequentemente, de recursos entre os participantes torna essa estrutura de financiamento mais atrativa para os setores intensivos de capital, como o de infraestrutura"3. Ilustre administrativista4, ao notar a aproximação dos instrumentos de direito privado na seara do direito público, escreveu que "Para o project finance, a constituição da SPE é essencial. Ela figurará como a concessionária de serviço público, no polo prestador do contrato. Por meio dela, o projeto será isolado de quaisquer outros desenvolvidos pelos participantes e nela será administrado o fluxo de caixa do empreendimento (...)" (sem grifo no original). "As garantias do project finance são precipuamente aquelas relativas aos ativos do projeto, os quais espelham a sua rentabilidade (o que mitiga mas não exclui a possibilidade de garantias dos responsáveis do projeto - no caso, os acionistas da SPE concessionária). O contrato de financiamento deixa, portanto, de ter a tradicional característica subjetiva que a ele desde sempre esteve associada (a pessoa-investidora como a razão suficiente para que o mútuo seja celebrado) e assume nota puramente objetiva (o investimento lui même como razão e garantia do empréstimo" (grifos do original). Outro autor5 ensina que "A SPE tem como uma de suas principais finalidades a segregação do risco da atividade concedida do risco das demais atividades desenvolvidas pelas sociedades componentes do grupo vencedor da licitação (normalmente um consórcio). Essa segregação é essencial para o project finance, que é baseado em análise e controle de riscos (...) Com a segregação, limita-se o risco assumido pelos financiadores/credores à atividade de prestação de serviço público". Tem-se, em síntese, a concepção de sociedades de propósito específico com a finalidade de captar recursos com maior facilidade, dada a segregação de riscos e a possibilidade de satisfação do crédito por meio de recursos gerados pelo próprio empreendimento financiado. O isolamento dos riscos, por meio da constituição de sociedades de propósito específico, contribui para a obtenção de recursos; tudo fica isolado já na origem, tudo é segregado, de modo consciente, pelos empreendedores e pelos financiadores. A constituição de uma pessoa jurídica já tem a finalidade de limitar o risco empresarial. Quando se concebe o mecanismo do project finance e a respectiva SPE, tem-se mente especial preocupação com a segregação de riscos, tanto pelo empreendedor como por parte do financiador. Claro que o empreendedor de um projeto de grandes dimensões poderá estar integrado a um grupo empresarial, e esse grupo empresarial poderá experimentar crise econômico-financeira, a ponto de necessitar ajuizar uma recuperação judicial. No âmbito do processo de recuperação judicial poderá ser discutida a chamada consolidação substancial. E é aqui que nasce a conexão entre os dois termos deste artigo. Que papel desempenha o project finance na recuperação judicial. Na consolidação substancial há episódica criação ficcional de uma única entidade devedora, pois todos os devedores são considerados como se fossem um só, e os ativos de todas as empresas em recuperação são reunidos para a satisfação dos credores. Trata-se de uma das consequências da consolidação substancial, nos termos expressos do artigo 69-K da Lei 11.101/05: "Em decorrência da consolidação substancial, ativos e passivos de devedores serão tratados como se pertencessem a um único devedor". Segundo o artigo 69-J, é requisito da consolidação substancial a "confusão entre ativos ou passivos dos devedores". É aqui que surge o conflito entre a consolidação substancial e a SPE criada com recursos oriundos do project finance. A consolidação substancial representa a mistura de todos os empreendimentos como se fossem um só, o que "destrói as bases que fundamentam o cálculo do risco envolvido nos negócios"[6], e isso é o oposto do project finance, que é concebido para se manter isolado até o pagamento do financiamento. No julgamento do AI 2198895-43.2018.8.26.0000, a 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do TJSP entendeu que "Não há que se falar na suspensão total do pagamento dos financiadores, o que seria danoso ao sistema de financiamento de infraestrutura, já que a principal garantia do project finance não teria qualquer serventia diante de dificuldades financeiras enfrentadas pelas concessionarias". Nesse caso, os recebíveis do empreendimento (aeroporto) estavam cedidos em alienação fiduciária. Outro julgado, o AI 2297840- 94.2020.8.26.0000, este da 2ª Câmara Reservada, também faz referência ao project finance, todavia, sem discutir as consequências desse arranjo financeiro no âmbito do processo de recuperação (concessionária de rodovia, remunerada por pedágio). A consolidação substancial não se afeiçoa à ideia do project finance, cuja deliberada e necessária segregação, jurídica e financeira, tem a vocação de permanecer isolada, ainda que o devedor integre um grupo empresarial. A garantia do financiamento é o próprio empreendimento (ou melhor, os recebíveis do empreendimento), mais que os empreendedores, ainda que estes tenham, eventualmente, prestado outras garantias. A confiança do financiador advém do próprio empreendimento a ser financiado, segundo estudos econômicos e financeiros de consultorias especializadas. Por isso, o foco da garantia são os recebíveis gerados pelo projeto financiado, e as considerações de ordem subjetiva, especialmente à garantia, são colocadas em segundo plano. Por essa razão, não influenciam na consolidação substancial. Em rápidas palavras, e à guisa de conclusão, deve ser dito que a regra é a inadmissibilidade da consolidação substancial envolvendo sociedade de propósito específico concebida para a construção de determinado empreendimento, garantido pelos respectivos recebíveis, dada a especial segregação dos riscos envolvendo esse negócio. Rejeitar, prima facie, a consolidação substancial nessas hipóteses é assegurar a confiança do investidor, atraindo-o para o financiamento de longo prazo, tão necessário para a realização de obras de infraestrutura. Certamente, somente em circunstâncias muito excepcionais, é de ser admitida a consolidação substancial entre empresas de um mesmo grupo econômico, em que esteja presente negócio financiado por meio de project finance. _____________ 1 Luis Ferreira Xavier Borges e Viviana Cardoso de Sá e Faria. Project Finance: Considerações sobre a aplicação em infraestrutura no Brasil. Revista do BNDES, v. 9, n. 18, dez. 2002, p. 244. Os autores louvam-se em Finerty. 2 Project finance e infraestrutura: descrição e críticas. Revista do BNDES, v. 5, n. 9, p. 108. 3 Ob. Cit., p. 271. 4 Egon Bockmann Moreira, Concessões de serviços públicos e project finance. Revista Zênite de Licitações e Contratos, n. 199, setembro 2010, p. 870. 5 Henrique Bastos Rocha. Project finance e serviço público, in  Direito Administrativo. Estudos em homenagem a Diogo de Figueiredo Moreira Neto. Coord. Fábio Medina Osório e Marcos Juruena Villela Souto. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2006,  p. 839. 6 Gilberto Deon Corrêa Júnior, A consolidação substantiva no direito americano. Artigo publicado na Revista Ajuris, 73, 1998, página 2 da versão eletrônica.
1) Contextualização A lei 14.112/20, que alterou a lei 11.101/05, tratou da contagem de prazos no âmbito das recuperações judiciais e falências. Contudo, conforme já exposto neste espaço, a redação do art. 189 da Lei 11.101/2005, com a reforma, não foi das mais felizes, criando uma verdadeira armadilha para quem atua na área. Assim se afirmou em coluna anterior1: a) O art. 189, § 1º, I da lei 11.101/05, com a alteração da lei 14.112/20, tem redação insuficiente para esclarecer com segurança como se dá a contagem dos prazos no âmbito das recuperações judiciais e falências. b) A melhor interpretação é que os prazos materiais (previstos na lei 11.101/05) sejam contados em dias corridos, ao passo que os prazos processuais (como recursos, ainda que previstos especificamente na L. 11.101/05) sejam contados em dias úteis - em linha com o já decidido pelo STJ antes da recente alteração legislativa. c) Contudo, não será surpreendente se, com lei14.112/20, o STJ pacificar que todos os prazos em tais procedimentos são contados em dias corridos.  Passados alguns meses da vigência da nova lei, vejamos como está a jurisprudência acerca do tema. Infelizmente, como já previsto, há divergências e risco de intempestividade ao advogado. Em síntese, há duas principais posições, como antes se cogitou: i) Há julgados que concluem pela contagem dos prazos processuais em dias úteis, conforme prevê o CPC; ii)  Há decisões pela contagem em dias corridos, considerando as alterações promovidas pela Lei 14.112/20 à Lei 11.101, bem como a "celeridade e a efetividade". 2) Entendimento do TJ/SP O TJ/SP tem duas câmaras de direito empresarial que, portanto, julgam os temas afetos a RJ e falência. Esse Tribunal - felizmente - tem se posicionado pela contagem de prazos em dias úteis. Vejamos alguns julgados que demonstram a assertiva. De início, da 1ª Câmara(grifos nossos): AGRAVO DE INSTRUMENTO. DECISÃO QUE NÃO CONHECEU EMBARGOS DE DECLARAÇÃO. INTEMPESTIVIDADE. PRAZOS CONTADOS EM DIAS ÚTEIS. LEI 14.112/2020. (...) (TJSP; Agravo de Instrumento 2299349-60.2020.8.26.0000; Relator (a): Alexandre Lazzarini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 10/06/2021)  E do inteiro teor, extraímos o seguinte (grifos nossos): Isso porque, a Lei 14.112/2020 encerrou qualquer discussão sobre a contagem dos prazos, estabelecendo que aqueles previstos na lei de falências sejam contados em dias corridos, enquanto os prazos recursais, em dias úteis, nos termos do CPC/20152.  Também a 2ª Câmara se manifesta no sentido de contagem dos prazos processuais em dias úteis. Vejamos, exemplificadamente, o seguinte julgado (grifos nossos): Contraminuta - Preliminar de inadmissibilidade por intempestividade - Rejeição - Contagem do prazo para interposição realizada em dias úteis (Lei nº 11.101/2005, art. 189, "caput" e par. ún.; CPC, art. 1.003, § 5º, c.c. 219) - Tempestividade configurada - Recurso conhecido. Agravo de instrumento - (...). (TJSP; Agravo de Instrumento 2093946-60.2021.8.26.0000; Relator (a): Maurício Pessoa; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 20/10/2021)3.  Pode-se dizer que essa é a posição dominante do TJSP: contagem dos prazos processuais em dias úteis4.  3)      Entendimento do TJ/RJ  Não há, no âmbito do TJ/RJ, câmaras especializadas em direito empresarial. Sendo assim, nesse Tribunal, são diversas as câmaras que julgam temas de RJ e falência. Isso torna a questão, por certo, mais pulverizada. De qualquer forma, o TJ/RJ tem decisões pela contagem de prazos em dias corridos. Vejamos um julgado (grifos nosso): AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO EMPRESARIAL E PROCESSUAL. RECURSO INTERPOSTO CONTRA DECISÃO QUE HOMOLOGOU PLANO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL APROVADO EM ASSEMBLEIA GERAL DE CREDORES. MICROSSISTEMA PRÓPRIO DA LEI Nº 11.101/2005, EM QUE A CELERIDADE E A EFETIVIDADE SE IMPÕEM, COM PRAZOS PRÓPRIOS E ESPECÍFICOS, QUE, VIA DE REGRA, DEVEM SER BREVES, PEREMPTÓRIOS, INADIÁVEIS E, DESSA FORMA, CONTADOS DE CONTÍNUA. CÔMPUTO DOS PRAZOS EM DIAS CORRIDOS, SENDO A APLICAÇÃO DO CPC/2015 APENAS SUBSIDIÁRIA. PRECEDENTES DESTA CORTE E DO C. STJ. CARÊNCIA DE PRESSUPOSTO RECURSAL EXTRÍNSECO DE ADMISSIBILIDADE. INTEMPESTIVIDADE MANIFESTA. NÃO CONHECIMENTO DO RECURSO, NA FORMA DO ARTIGO 932, III, DO CPC (0087120-81.2020.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). FERNANDO FERNANDY FERNANDES - Julgamento: 22/03/2021 - DÉCIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL)  E existem outros julgados nesse mesmo sentido (contagem de prazos em dias corridos5). Contudo, essa não é a única posição do tribunal fluminense. Há, também, julgados que entendem que o prazo processual deve ser contado em dias úteis. Vejamos um exemplo (grifos nossos): AGRAVO DE INSTRUMENTO. Recuperação judicial. Decisão interlocutória que, a requerimento da recuperanda, determinou que o prazo do stay period, de que trata o artigo 6º, §4º, da Lei n. 11.101/2005, seja contado em dias úteis, nos termos do CPC, artigo 219, e seu parágrafo único. Inaplicabilidade à hipótese da contagem em dias úteis prevista no artigo 219 do CPC, que se refere exclusivamente a contagem dos prazos processuais. Prazo do stay period que não possui eficácia meramente processual, já que, nos termos do artigo 6º da Lei n. 11.101/2005, é possível verificar que ele regula institutos de natureza evidentemente material. E. Superior Tribunal de Justiça que, em reiteradas decisões, reconheceu a natureza material do prazo do stay period, determinando que a sua contagem ocorra em dias corridos e ininterruptos. RECURSO PROVIDO. (0003384-34.2021.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). CELSO SILVA FILHO - Julgamento: 15/06/2021 - VIGÉSIMA TERCEIRA CÂMARA CÍVEL)  Ou seja, a questão está em aberto no âmbito do TJ/RJ.  4)      Outros tribunais intermediários.  Houve análise específica de SP e RJ pois são os tribunais do país que mais recebem recuperações judiciais e falências. Mas a divergência segue Brasil afora. O TJ/MS, por exemplo, já decidiu pela contagem em dias úteis dos prazos processuais. Vejamos (grifos nossos): AGRAVO DE INSTRUMENTO - RECUPERAÇÃO JUDICIAL - PRELIMINAR DE INTEMPESTIVIDADE DO AGRAVO DE INSTRUMENTO - PRAZO ESPECIAL PREVISTO NA LEI DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL E DE FALÊNCIA, CONFORME ALTERAÇÃO REALIZADA PELA LEI FEDERAL Nº 14.112/2020 - CONTAGEM EM DIAS CORRIDOS - NÃO APLICAÇÃO AOS PRAZOS RECURSAIS - RECURSO IMPROVIDO - DECISÃO MANTIDA. A Lei Federal nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020, alterou a legislação referente à recuperação judicial, extrajudicial e falência, entrando em vigor no dia 23 de janeiro de 2021, sendo que, entre as inúmeras alterações realizadas na legislação está a afeta à contagem dos prazos relativos ao processo falimentar e recuperacional, os quais devem ser em dias corridos. A norma prevê que todos os prazos nela previstos ou que dela decorram serão contados em dias corridos e a melhor interpretação a ser dada ao dispositivo é a de que está-se referindo aos prazos decorrentes da referida lei são os prazos materiais, não se aplicando ao prazo para os recursos interpostos contra as decisões proferidas nos processos judiciais, os quais estão previstos exclusivamente no Código de Processo Civil e são computados apenas em dias úteis, na forma do art. 219 do CPC. Parece mais razoável essa interpretação como forma de estabelecer uma solução à controvérsia acerca da contagem de prazos, de modo a se considerar que todos os prazos processuais previstos na Lei de Recuperações e Falências, ou que dela decorram, devam ser contados em dias úteis (...) (TJMS. Agravo de Instrumento n. 1405199-76.2021.8.12.0000, N/A, 3ª Câmara Cível, Relator (a):  Des. Dorival Renato Pavan, j: 24/06/2021, p:  28/06/2021).  Nesse mesmo sentido, há outros tribunais, como: - TJDF; Acórdão 1315748, 07047191720208070000, Relator: FÁBIO EDUARDO MARQUES, 7ª Turma Cível, data de julgamento: 10/2/2021, publicado no PJe: 17/2/2021; - TJGO, Agravo de Instrumento 5580313-76.2020.8.09.0000, Rel. Des(a). CARLOS HIPOLITO ESCHER, 4ª Câmara Cível, julgado em 12/04/2021, DJe de 12/04/2021; - TJPR - 18ª C.Cível - 0028932-45.2021.8.16.0000 - Chopinzinho -  Rel.: DESEMBARGADORA DENISE KRUGER PEREIRA -  J. 25.10.2021)  De seu turno, no TJ/MT encontra-se julgados nos dois sentidos. Pela contagem em dias corridos (grifos nossos): RECURSO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO - AÇÃO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL - DEFERIMENTO DO PEDIDO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL - BEM ESSENCIAL AO DESENVOLVIMENTO DA ATIVIDADE - MANUTENÇÃO DO BEM NA POSSE DA EMPRESA - FORMA DE CONTAGEM DE PRAZOS - CÔMPUTO EM DIAS CORRIDOS - SISTEMÁTICA E LOGICIDADE DO REGIME ESPECIAL DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL E FALÊNCIA (...). (N.U 1002204-85.2021.8.11.0000, CÂMARAS ISOLADAS CÍVEIS DE DIREITO PRIVADO, CLARICE CLAUDINO DA SILVA, Segunda Câmara de Direito Privado, Julgado em 09/06/2021, Publicado no DJE 10/06/2021).  E no sentido inverso, pela contagem em dias úteis (grifos nossos): RECURO DE AGRAVO DE INSTRUMENTO - PROCESSO DE RECUPERAÇÃO JUDICIAL - PRELIMINAR DE INADMISSIBILIDADE DAS CONTRARRAZÕES - CONTAGEM DE PRAZO PROCESSUAL EM DIAS ÚTEIS - PRAZO EM DIAS CORRIDOS APENAS PARA ATOS DE NATUREZA MATERIAL DO PROCESSO RECUPERACIONAL - PRELIMINAR REJEITADA (...) I - Os prazos de natureza processual, como para contrarrazões, continuam a ser contados em dias úteis, na forma do Código de Processo Civil. (...) (N.U 1009160-20.2021.8.11.0000, CÂMARAS ISOLADAS CÍVEIS DE DIREITO PRIVADO, SERLY MARCONDES ALVES, Quarta Câmara de Direito Privado, Julgado em 25/08/2021, publicado no DJE 26/08/2021)  5)      STJ  Considerando a legislação não ser clara e a divergência entre tribunais intermediários, é certo que a última palavra acerca do tema será do STJ (CF, art. 105, III, "a" e "c"). Ainda não existe decisão vinculante - e, sem dúvidas, o ideal é que o tema seja sumulado ou objeto de REsp repetitivo. Mas já existem algumas decisões dessa Corte. O primeiro acórdão que tratou do tema foi da 4ª Turma, relatado pelo Ministro Buzzi. E, felizmente, entendeu-se pela contagem de prazo recursal em dias úteis. O acórdão, proferido em setembro de 21, foi assim ementado (grifos nossos): AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL - AUTOS DE AGRAVO DE INSTRUMENTO NA ORIGEM - DECISÃO MONOCRÁTICA QUE DEU PARCIAL PROVIMENTO AO RECLAMO. INSURGÊNCIA DA PARTE AGRAVADA. (...)  1.1 Na medida em que regulamentado em diploma normativo diverso do microssistema que compõe o processo recuperacional e falimentar, os prazos processuais para interposição de agravo de instrumento contra decisões interlocutórias nos processos de recuperação judicial e de falência devem observar os ditames da Legislação Processual Civil, sendo computados, por conseguinte, em dias úteis, nos termos do art. 219, do CPC/15. 2. Agravo interno desprovido. (AgInt no REsp 1937868/RJ, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 27/09/2021, DJe 01/10/2021)  Vale destacar alguns trechos do voto condutor (grifos nossos):  (...) embora o art. 17, da Lei 11.101/05 disponha que "da decisão judicial sobre a impugnação caberá agravo", essa regra deve ser interpretada em conformidade com o disposto no art. 1.015, parágrafo único, do CPC/15. (...) Assim, apesar do entendimento firmado pela instância de origem, não se está, no presente caso, diante de uma regra excepcional, inserida no microssistema da recuperação judicial, que disciplina prazos próprios e específicos. A regulamentação do recurso de agravo de instrumento está disciplinada em um diploma normativo diverso da Lei 11.101/05. O Código de Processo Civil de 2015. Logo, questionamentos quanto as suas hipóteses de cabimento e prazo deverão ser dirimidos à luz da Legislação Processual Civil.  Essa decisão, como dito, é da 4ª Turma. E, como se sabe, a outra Turma que aprecia questões de direito privado é a 3ª Turma. Não identificamos, até o momento, nenhum acórdão desse órgão sobre o tema. Contudo, identificamos uma decisão monocrática, que trata do tema incidentalmente - e cuja tendência é ir no sentido contrário, ou seja, pela contagem em dias corridos. Vejamos trecho dessa decisão - frise-se, não colegiada (grifos nossos): (...) Sustenta omissão no acórdão recorrido quanto à intempestividade da própria manifestação da agravada (...). Isso porque, a contagem dos prazos na LRF não é em dias úteis, mas sim em dias corridos, como reconhecido pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. (...) Da análise do processo, constata-se que, de fato, o Tribunal não analisou tal questão, em que pese tenha sido devidamente suscitada nos embargos de declaração opostos pela parte agravante. (...) Ressalta-se, ademais, que de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça "A Lei de Recuperação e Falência (Lei nº 11.101/2005) prevê um microssistema próprio em que a celeridade e a efetividade se impõem, com prazos próprios e específicos, que, via de regra, devem ser breves, peremptórios, inadiáveis e, dessa forma, contados de forma contínua" (AgInt no AREsp 1548027/MT, TERCEIRA TURMA, julgado em 24/08/2020, DJe 31/08/2020). Forte nessas razões, com fundamento no art. 932, V, "a", do CPC/2015, bem como na Súmula 568/STJ, CONHEÇO agravo para CONHECER do recurso especial e DARLHE PROVIMENTO, a fim de determinar a remessa dos autos ao Tribunal de origem, para que este se pronuncie, na esteira do devido processo legal e de acordo com a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, sobre o referido argumento deduzido nos embargos de declaração opostos pela parte agravante (...). (AREsp n 1914724-MT, Min. Relatora Nancy Andrighi, Data do Julgamento 01/09/2021).  Ou seja, não se pode afirmar que há posição pacífica no STJ acerca da contagem de prazos na RJ e falência.  6)      Conclusão: o que fazer?  Da breve compilação de julgados acima reproduzida, percebe-se que a questão da contagem de prazos na RJ e falência, a partir da interpretação da norma contida no art. 189, § 1º, I da Lei 11.101/05, encontra-se ainda longe de estar pacificada. Ademais, mesmo que haja uma maioria de tribunais concluindo pela contagem em dias úteis (como é o caso do TJSP), a questão não está pacífica em outros (como no TJRJ). Resta, então ao STJ definir o tema. Nessa Corte, o primeiro acórdão, da 4ª Turma, filiou-se à corrente da contagem dos prazos processuais em dias úteis (AgInt no REsp 1937868/RJ). Porém, ainda não se trata de precedente vinculante. De seu turno, na 3ª Turma, identificou-se apenas uma decisão monocrática que, em obiter dictum, deixa transparecer a adesão à tese de prazo em dias corridos (AREsp 1914724-MT). O ideal é o que o STJ decida a questão com brevidade - e, ainda melhor, via uma súmula ou REsp repetitivo. Mas, até que isso ocorra, o melhor é a cautela ao advogado. E isso significa contar o prazo em dias corridos; salvo nos casos em que houver, nos autos, decisão expressa definindo a contagem dos prazos em dias úteis - pois aí se tem, no mínimo, a aplicação dos princípios da cooperação e confiança, bem como do ato jurídico processual perfeito, para argumentar no caso de uma posterior fixação de entendimento no sentido dos prazos em dias corridos. E, por certo, é de se lamentar essa indefinição quanto a algo tão básico e relevante como contagem de prazo.  *Daniel Krumpanzl é graduando em Direito na Faculdade Ibmec. Estagiário no escritório Mange Advogados, na área de recuperação judicial e falência. ____________ 1 Texto escrito por Andre Roque e Luiz Dellore, disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/insolvencia-em-foco/341808/a-armadilha-dos-prazos-processuais-na-recuperacao-judicial-e-falencia. 2 Também da 1ª Câmara, de outro relator, no mesmo sentido: Agravo de Instrumento 2063796-96.2021.8.26.0000; Relator (a): Fortes Barbosa; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 06/05/2021). 3 Essa tem sido a posição 2ª Câmara, também em julgado relatado pelo processualista SHIMURA: Agravo de Instrumento 2098585-58.2020.8.26.0000; Relator (a): Sérgio Shimura; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 17/03/2021. 4 Em relação a outros relatores, além dos já antes indicados: Agravo de Instrumento 2272721-34.2020.8.26.0000; Relator (a): Cesar Ciampolini; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 29/04/2021; Agravo de Instrumento 2174608-45.2020.8.26.0000; Relator (a): Azuma Nishi; Órgão Julgador: 1ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 01/04/202; Agravo de Instrumento 2032508-33.2021.8.26.0000; Relator (a): Grava Brazil; Órgão Julgador: 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial; Data do Julgamento: 08/06/2021. 5 Vejamos alguns, de outras Câmaras: 0053120-89.2019.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). MARÍLIA DE CASTRO NEVES VIEIRA - Julgamento: 29/01/2020 - VIGÉSIMA CÂMARA CÍVEL e 0022781-79.2021.8.19.0000 - AGRAVO DE INSTRUMENTO. Des(a). CARLOS EDUARDO DA ROSA DA FONSECA PASSOS - Julgamento: 26/05/2021 - DÉCIMA OITAVA CÂMARA CÍVEL).
1) Introdução  O objetivo deste artigo é analisar o tratamento do crédito do representante comercial na recuperação judicial do representado, considerando que o dispositivo do art. 44 lei 4.886/1965, que regula a atividade de representante comercial, com a redação dada pela lei 14.195/2021, passou a ter o seguinte teor: "Art. 44 - No caso de falência ou recuperação judicial do representado, as importâncias por ele devidas ao representante comercial, relacionadas com representação, inclusive comissões vencidas e vincendas, indenização e aviso prévio, e qualquer outra verba devida ao representante oriunda da relação com base nesta Lei, serão créditos da mesma natureza dos créditos trabalhistas para fins de inclusão no pedido de falência ou plano de recuperação judicial. Parágrafo único. Os créditos devidos ao representante comercial reconhecidos em título executivo judicial transitado em julgado após o deferimento do processamento da recuperação judicial, e a sua respectiva execução, inclusive quanto aos honorários advocatícios, não se sujeitarão à recuperação judicial, aos seus efeitos e à competência do juízo da recuperação, ainda que existentes na data do pedido, e prescreverá em 5 (cinco) anos a ação do representante comercial para pleitear a retribuição que lhe é devida e os demais direitos garantidos por esta Lei." (grifos acrescentados).  No enfrentamento do tema serão examinadas a constitucionalidade formal e material das alterações introduzidas pela lei 14.195/2021, que resultou da conversão em lei da Medida Provisória nº 1.040/2021 ("MP nº 1.040/2021" ou "MP"). No exame da constitucionalidade material será analisada a possibilidade de interpretação conforme a Constituição, considerando a doutrina e a jurisprudência construída na vigência da anterior redação do art. 44 da lei 4.886/1965, que, incluído pela lei 8.420/1992, estabelecia: "Art. 44 - No caso de falência do representado as importâncias por ele devidas ao representante comercial, relacionadas com a representação, inclusive comissões vencidas e vincendas, indenizações e aviso prévio, serão considerados créditos da mesma natureza dos créditos trabalhistas." 2) inconstitucionalidade formal De acordo com a sua exposição de motivos, a MP 1.040/2021 foi editada com o objetivo de melhorar o ambiente de negócios no Brasil e impactar positivamente a posição do País na classificação geral do relatório Doing Business do Banco Mundial. Para tanto, a MP previu mudanças legislativas destinadas a simplificar a abertura de empresas, aperfeiçoar a proteção aos acionistas minoritários, mediante alterações na Lei das Sociedades Anônimas, desburocratizar o comércio exterior, elevar a segurança jurídica, tudo com o objetivo final de melhorar o ambiente de negócios. A urgência e o relevante interesse público que motivaram a edição da MP foram justificados na necessidade de melhorar a posição do Brasil no Relatório Doing Business 2022, de modo a minimizar os efeitos negativos da pandemia de Covid-19 sobre a atividade econômica, em razão reflexos que essa melhoria tem nas entradas anuais de investimento estrangeiro1. Durante a sua tramitação no Congresso Nacional, a MP recebeu mais de três centenas de emendas parlamentares, dentre elas a que resultou na alteração da lei 4.886/1965, dando nova redação ao caput e incluindo o parágrafo único do art. 44. Com isso, foi estabelecida relevante modificação no tratamento que se pretende atribuir aos créditos de titularidade de representante comercial na falência e na recuperação judicial. O casuísmo da modificação é denunciado, em primeiro lugar, por ter vindo após as importantes alterações na legislação recuperacional e falimentar, que, após ampla discussão no Congresso Nacional, foram introduzidas pela lei 14.112, de 24 de dezembro de 2020. Além disso, as alterações não têm pertinência com o escopo da MP 1.040/2021. Muito pelo contrário, trazendo insegurança jurídica em matérias que já estavam consolidadas na doutrina e na jurisprudência, a alteração vem na contramão do objetivo de melhorar o ambiente de negócios. Se não, vejamos. Insegurança jurídica trazida pela nova redação do art. 44 e seu parágrafo único. Na vigência do art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação dada pela Lei nº 8.420/1992, a jurisprudência, com apoio na doutrina, consolidou-se no sentido de que os créditos equiparados aos trabalhistas, na falência e na recuperação judicial do representado, são aqueles de titularidade do representante comercial pessoa física, não beneficiando o representante comercial pessoa jurídica: "Agravo de Instrumento. Impugnação à relação de credores. Crédito decorrente de representação comercial titularizado por sociedade empresária, dotada de personalidade jurídica, não se equipara aos créditos derivados da legislação do trabalho. O artigo 44 da Lei n° 4.886/65 não foi revogado pelo artigo 83, I, da lei 11.101/2005, nem pela Lei Complementar n° 118/2005 que deu nova redação ao artigo 186 do Código Tributário Nacional. No entanto, sua interpretação deve ser feita sob a óptica do artigo 114 da Constituição Federal, com a redação da Emenda Constitucional 45/2004, que trata da competência da Justiça do Trabalho para dirimir os conflitos das relações de trabalho, que abrange relações de emprego e relação de trabalho prestado por pessoa física (v.g. representante comercial autônomo). A equiparação do crédito derivado de representação comercial aos créditos decorrentes da legislação de trabalho, na falência e na recuperação judicial (art.  83, I, LRF) só pode ser reconhecida quando o representante comercial for pessoa física ou "firma individual" inscrita no Registro de Empresas. Agravo provido para classificar o crédito derivado de representação comercial, titularizado por pessoa jurídica, como quirografário, para fins de falência e recuperação judicial." (AI nº 550 678 4/4-00 TJSP, Seção de Direito Privado, Câmara Especial de Direito Privado, Relator Desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, unânime, julgado em 27.08.2008). Da leitura do voto do Relator colhe-se que é a natureza alimentar dos créditos que autoriza a equiparação ao crédito trabalhista2: "III) A solução justa para a hipótese retratada nestes autos tem que levar em conta o entendimento do Juiz Marcelo Papaléo de Souza, acima transcrito, que ao tratar da competência da Justiça do Trabalho, com acuidade, afirma que apenas os representantes comerciais pessoas físicas poderão buscar a solução de seus conflitos com os representados na Justiça Laboral, em virtude da natureza alimentar de seus créditos. Por isso, somente poderão invocar a equiparação de seus créditos decorrentes do exercício de representação comercial, na falência ou recuperação do representado, os representantes comerciais pessoas físicas (nesta categoria incluídos os inscritos nas Juntas Comerciais como "firmas individuais" [...]." A nova redação do caput ora comentado não contribui para a segurança jurídica, que é uma das condições identificadas pelo Presidente da República na edição da MP 1.040/2020, para melhorar o ambiente de negócios no Brasil. Com efeito, em atenção ao princípio da supremacia da Constituição tal dispositivo só poderá ser interpretado no sentido que vinha sendo adotado pela jurisprudência consolidada do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo ("TJSP"), e isso leva a concluir, em primeiro lugar, que a alteração ou era desnecessária ou é materialmente inválida (tema que será analisado no item 4) e, em segundo lugar, que em qualquer hipótese a modificação poderá reacender discussões em matéria já pacificada na jurisprudência, o que não contribui para melhoria do ambiente de negócios no Brasil. Por sua vez, o parágrafo único do art. 44 da lei 4.886/1965, incluído pelo art. 53 da lei 14.195/2021, afastou o critério adotado pelo Superior Tribunal de Justiça ("STJ") em julgamento de recurso especial afetado ao rito do art. 1.036 do Código de Processo Civil de 2015 ("CPC/2015"), para resolver controvérsia assim delimitada: "interpretação do artigo 49, caput, da lei 11.101/2005, de modo a definir se a existência do crédito é determinada pela data de seu fato gerador ou pelo trânsito em julgado da sentença que o reconhece. 2. Recurso especial afetado ao rito do artigo 1.036 do CPC/2015." (ProAfR no REsp: 1843332 RS 2019/0310053-0, Relator: Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, Data de Julgamento: 28/04/2020, S2 - SEGUNDA SEÇÃO, Data de Publicação: DJe 06/05/2020). Pois bem, no julgamento dos recursos especiais paradigmas do Tema Repetitivo 1.051, foi afastada a interpretação no sentido de que a existência do crédito seria determinada pela data do trânsito em julgado da sentença que o reconhece, com a fixação, para os fins do art. 1.040 do CPC/2015 da seguinte tese: "Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador." (REsp 1843332/RS, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 09/12/2020, DJe 17/12/2020). Além da inconstitucionalidade material (tema que será tratado no item 4), o parágrafo único do art. 44 da lei 4.886/1965, incluído pela lei 14.195/2021, não contribui para a elevar a segurança jurídica, ao adotar a data do trânsito em julgado como o marco temporal para identificar os créditos sujeitos à recuperação judicial do representado, afastando, assim, o critério estabelecido no Tema Repetitivo 1.051. Violação do processo legislativo. Além de a exposição de motivos indicar o seu objetivo, o art. 1º da MP 1.040/2021, o delimita claramente ao estabelecer: "Esta Medida Provisória dispõe sobre a facilitação para abertura de empresas, a proteção de acionistas minoritários, a facilitação do comércio exterior, o Sistema Integrado de Recuperação de Ativos - Sira, as cobranças realizadas pelos conselhos profissionais, a profissão de tradutor e intérprete público, a obtenção de eletricidade e a prescrição intercorrente na lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil"3. Da leitura da exposição de motivos e do art. 1º da MP 1.040/2021, conclui-se que o Presidente da República não cogitou de alteração da legislação falimentar ou da instituição de privilégio de representantes comerciais, muito menos da introdução no direito positivo de normas que são incompatíveis com os objetivos da MP, já que são motivo de grave insegurança jurídica, como visto acima. Há, assim, inequívoca falta de pertinência temática entre a emenda parlamentar que deu origem à alteração do art. 44 e seu parágrafo único, da lei 4.886/1965, com a MP 1.040/2021. Esse tema - emendas de contrabando - foi objeto de profunda discussão no julgamento da ADI 5.127-DF, que foi julgada improcedente por maioria, mas "com a cientificação do Poder Legislativo de que o Supremo Tribunal Federal firmou o entendimento, ex nunc, de que não é compatível com a Constituição da República a apresentação de emendas parlamentares sem relação de pertinência temática com medida provisória submetida à apreciação do Congresso Nacional" (DJe 15.05.2016). Conforme sintetizado na ementa, viola "a Constituição da República, notadamente o princípio democrático e o devido processo legislativo (arts. 1º, caput, parágrafo o único, 2º, caput, 5º, caput, e LIV, CRFB), a prática da inserção, mediante emenda parlamentar no processo legislativo de conversão de medida provisória em lei, de matérias de conteúdo temático estranho ao objeto originário da medida provisória.". Nessas condições, em consonância com a orientação do plenário do Supremo Tribunal Federal ("STF"), firmada com efeito ex nunc, em maio de 2016, no julgamento da ADI 5.127-DF, conclui-se pela inconstitucionalidade formal do art. 44 e seu parágrafo único da lei 4.886/1965, na redação dada pela lei 14.195/2021, que resultou da conversão da MP 1.040/2021, porque se trata de disposição que teve origem em emenda parlamentar sem pertinência com o objeto da MP. 3) Inconstitucionalidade material e interpretação conforme a Constituição Na recuperação judicial, os credores a ela sujeitos são divididos em quatro classes (lei 11.101/2005, art. 41, incisos I a IV), todos, em regra, com direito a voto na assembleia geral de credores. Na Classe I, estão os titulares de "créditos decorrentes da legislação do trabalho ou decorrentes de acidente do trabalho" ("Crédito Trabalhista"), que mereceu tratamento favorecido na Lei, sendo os benefícios mais relevantes os estabelecidos no art. 54 da lei 11.101/2005, no sentido de que o plano não poderá prever prazo superior a 1 (um) ano para o pagamento dos créditos vencidos até a data do pedido (caput), podendo ser estendido em até dois anos, mediante apresentação de garantias suficientes para garantir a integralidade dos créditos e desde que aprovado pela Classe I (§2º do art. 54), o que corresponde à vedação ao cram down. Por sua vez, na falência, os créditos trabalhistas, limitados a até 150 (cento e cinquenta salários-mínimos), preferem a todos os demais (lei 11.101/2005, art. 83 e Código Tributário Nacional, art. 186). O que justifica o tratamento favorecido é a natureza alimentar dos créditos decorrentes da relação de trabalho, cuja caracterização, como visto no item 3 acima, não é exclusiva daquele que presta serviços pelo regime da Consolidação das Leis do Trabalho, podendo validamente alcançar créditos de outros trabalhadores, que, tal como os créditos dos empregados, têm natureza alimentar. Relembre-se que a Corte Especial do STJ, no julgamento do REsp 1.152.218/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, DJe de 09.10.2014, decidiu sob o sistema dos recursos repetitivos na vigência do Código de Processo Civil de 1973, que "[os] créditos resultantes de honorários advocatícios têm natureza alimentar e equiparam-se aos trabalhistas para efeito de habilitação em falência, seja pela regência do decreto-lei 7.661/1945, seja pela forma prevista na lei 11.101/2005, observado, neste último caso, o limite de valor previsto no artigo 83, inciso I, do referido Diploma legal." (grifos aditados) No âmbito das relações de direito público, o debate a respeito do tratamento a ser dado ao crédito decorrente de relação de trabalho sem vínculo empregatício foi travado no STF com o objetivo de identificar o significado de "débitos de natureza alimentícia", de que trata o § 1º do art. 100, da Constituição da República4, segundo o qual os precatórios relativos a tais créditos serão pagos com preferência em relação aos demais créditos. Os casos que ensejaram a discussão são relativos a precatórios expedidos para pagamento de honorários advocatícios, destacados do principal. Consolidada a jurisprudência, foi editada a Súmula Vinculante 47, aprovada nos termos do art. 103-A da Constituição da República, que declarou os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar.5 A Súmula Vinculante foi aprovada antes da vigência do CPC/2015, o qual, no § 14 do art. 85 reafirma a natureza alimentar dos honorários, com os mesmos privilégios dos créditos oriundos da legislação do trabalho. Há que se considerar, ainda, que a peculiar natureza do crédito relativo a honorários advocatícios tem fundamento na própria natureza da profissão ante a essencialidade do advogado para o funcionamento do Poder Judiciário, conforme prescreve a Constituição da República: "O advogado é essencial à administração da Justiça" (art. 133). Daí a precisa observação de José Afonso da Silva, com apoio na lição de Eduardo J. Couture6:"A advocacia não é apenas uma profissão, é também um múnus e "uma árdua fadiga posta a serviço da justiça"." O advogado, no seu mister privado, presta serviço público e exerce função social (lei 8.906/1994, art. 2º, §1º). É essencial à administração da justiça porque sem a sua presença não se cumpre a garantia do devido processo legal, que integra o rol das garantias individuais que constituem cláusula pétrea (CRFB, art. 5º, LIV e LV, cc art. 60, §4º, I). A proteção conferida aos honorários advocatícios não constitui benesse ou privilégio conferido ao advogado, mas garantia deferida aos jurisdicionados, porque os honorários proporcionam ao advogado os meios  para que ele, sem mercantilizar a profissão - o que lhe é absolutamente vedado7 - obtenha meios necessários para a sua subsistência e de sua família, em condições dignas, equiparáveis às demais profissões incumbidas da Administração da Justiça, e, assim, exercer o múnus que a Constituição e a Lei lhe atribuem. Em suma, a investigação da compatibilidade do tratamento favorecido a determinados créditos no processo de falência e de recuperação com a Constituição deve ser feita mediante a averiguação da existência de fundamento constitucional que autorize o tratamento diferenciado sem violar o princípio do par condicio creditorum, corolário do princípio da isonomia. Interpretação conforme a Constituição. Examinadas as alterações do art. 44 da lei 4.886/1965, o que se conclui, no aspecto material, é que o caput é passível de preservação, mediante interpretação conforme a constituição, mecanismo de controle de constitucionalidade que impede a aplicação da norma em sentido que conduziria à sua inconstitucionalidade, como leciona o Ministro Luís Roberto Barroso: "[...] a interpretação conforme a Constituição não é mero preceito hermenêutico, mas, também, um mecanismo de controle de constitucionalidade pelo qual se declara legítima uma determinada leitura da norma legal. Na interpretação conforme a Constituição, o órgão jurisdicional declara qual das possíveis interpretações de uma norma legal se revela compatível com a Lei Fundamental. Isso ocorrerá, naturalmente, sempre que um determinado preceito infraconstitucional comportar diversas possibilidades de interpretação, sendo qualquer delas incompatível com a Constituição. Note-se que o texto legar permanece íntegro, mas sua aplicação fica restrita ao sentido declarado pelo tribunal." (Interpretação e aplicação da Constituição, Editora Saraiva, 1996, p. 175). Trata-se de mecanismo que tem sido adotado pelo Supremo Tribunal Federal, ao julgar parcialmente procedente ação direta de inconstitucionalidade, atribuindo ao dispositivo de lei impugnado "interpretação conforme à Constituição da República"8 para afastar a interpretação que conduziria à inconstitucionalidade da norma infraconstitucional impugnada. Para preservá-lo, o caput art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação que lhe foi dada pela lei 14.195/2021, deve ser entendido no sentido adotado pela jurisprudência do TJSP citada no item 3, que distingue o  crédito do representante comercial autônomo (pessoa física) do crédito da representação comercial exercida por pessoa jurídica/empresa, para afastar a equiparação do crédito de titularidade do representante comercial pessoa jurídica do trabalhador sob vínculo, admitindo-a para o representante comercial pessoa física. A distinção tem fundamento constitucional, tendo em vista que para o representante comercial autônomo (pessoa física), a remuneração decorrente do contrato de representação comercial tem natureza alimentar, tal como o crédito do empregado e essa identidade de natureza autoriza a equiparação, sem incorrer em violação ao princípio do par condicio creditorum. A natureza alimentar não está presente no crédito da empresa que exerce atividade de representação comercial, de modo que a equiparação aos créditos decorrentes da legislação do trabalho resultaria em privilégio odioso, por injustificado e, portanto, incompatível com o princípio constitucional da isonomia. Por essa razão, a interpretação no sentido de que o caput do art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação da lei 14.195/2021, abarcaria créditos de empresas, deve ser afastada ante a ausência de fundamento constitucional que possa justificar o privilégio. Pondere-se ainda, que a sociedade empresária, pessoa jurídica que exerce atividade de representação comercial, pode ser uma grande empresa que não atende os requisitos da Lei Complementar 123/2006 para ser enquadrada como microempresa ou empresa de pequeno porte e, caso os seus créditos fossem equiparados aos decorrentes da legislação do trabalho, tais créditos passariam a ter, na falência e na recuperação judicial, tratamento mais benéfico do que o atribuído à microempresa ou empresa de pequeno porte. Portanto, além de violar o princípio constitucional da isonomia, a interpretação que considere o crédito da grande empresa abrangido pelo caput do art. 44 da lei 4.886/1965, com a redação da pela lei 14.195/2021, é inconstitucional também porque viola o art. 170, IX, da CRFB, que ao dispor sobre os princípios da ordem econômica, inclui o do tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte. No sistema recuperacional, o princípio do tratamento favorecido foi atendido com a inclusão, no art. 41, dos créditos Classe IV, dos titulares de créditos enquadrados como microempresa ou empresa de pequeno porte, medida que resulta no fortalecimento deste grupo de credores nas negociações com o devedor em recuperação judicial, com reflexos nas condições de pagamento dos respectivos créditos. Norma materialmente inconstitucional. A partir das inovações trazidas com a introdução, pela lei 14.195/2021, do parágrafo único do art. 44 da lei 4.886/1965, passou-se a atribuir ao representante comercial tratamento diferenciado - e favorecido - no elemento temporal considerado para identificar os créditos sujeitos à recuperação judicial do representado.   De fato, enquanto para todos os demais credores o critério temporal previsto no art. 49 da lei 11.101/2005 é o da data do fato gerador da obrigação, para a categoria dos representantes comerciais, o critério que foi preconizado seria o da data do trânsito em julgado da sentença que reconhecer o crédito. O tratamento é mais benéfico do que o atribuído ao titular de crédito decorrente da legislação do trabalho, ao qual o caput pretendeu equiparar o crédito do representante comercial. Isso porque, enquanto o trabalhador tem a sujeição do seu crédito à recuperação judicial definida pela aplicação do critério da "existência na data do pedido", o crédito do representante comercial, ainda que existente na data do pedido, não ficaria sujeito se reconhecido por sentença transitada em julgado após o ajuizamento do pedido de recuperação. Trata-se, assim, de privilégio odioso, mesmo quando o caput do art. 44 da lei 4.886/1965 é interpretado conforme a Constituição, no sentido de que o crédito equiparado ao decorrente da legislação do trabalho é, apenas, o de titularidade do representante comercial pessoa física, porque depois de equiparar, estabeleceu-se no parágrafo único tratamento mais benéfico do que o atribuído ao próprio empregado. Há, assim, clara violação ao princípio constitucional da isonomia consagrado no caput do art. 5º da Constituição da República. Garantia constitucional do ato jurídico perfeito. Ainda que fossem superadas as inconstitucionalidades do parágrafo único do art. 44 lei 4.886/65 acima mencionadas, seria preciso fazer uma interpretação conforme a Constituição da República para se concluir que essas alterações apenas são aplicáveis às recuperações judiciais ajuizadas e às falências decretadas após a vigência da lei 14.195/2021. O art. 5º, inciso XXXI da Constituição da República estabelece que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". Por sua vez, "reputa-se ato jurídico perfeito o já consumado segundo a lei vigente ao tempo em que se efetuou" (Decreto-Lei nº 4.657/42). Já o art. 49 da lei 11.101/2005 dispõe que "estão sujeitos à recuperação judicial todos os créditos existentes na data do pedido, ainda que não vencidos". Do exposto facilmente se conclui que é a data do pedido o marco temporal que submete os créditos à recuperação judicial. Isso significa que as recuperações judiciais requeridas anteriormente lei 14.195/2021, já possuíam o seu rol de créditos sujeitos com base na norma então vigente. A classificação de créditos segundo a lei vigente é ato jurídico perfeito protegido pela Constituição da República. Portanto, deve ser afastada a interpretação de que lei posterior pode "reclassificar" os créditos existentes e já submetidos à recuperação judicial.  4) Conclusões O art. 44 e respectivo parágrafo único da Lei nº 4.886/65, com a redação dada pela Lei nº 14.195/2021, é motivo de insegurança jurídica, porque: (i) a alteração do caput ou era desnecessária ou pretendeu estabelecer privilégio para determinada atividade empresarial já afastado por jurisprudência consolidada no sentido de que somente o crédito de natureza alimentar, de titularidade do representante comercial pessoa física, é que foi validamente equiparado ao crédito decorrente da legislação do trabalho, não o crédito de empresa que exerça atividade de representação comercial; (ii) a alteração estabelecida no parágrafo único é conflitante com a tese firmada no julgamento, pela Segunda Seção do STJ, dos recursos especiais paradigmas do Tema Repetitivo 1.051, com a definição, para os fins do caput do art. 49 da Lei nº 11.101/2005, da seguinte tese de direito: "Para o fim de submissão aos efeitos da recuperação judicial, considera-se que a existência do crédito é determinada pela data em que ocorreu o seu fato gerador"; o conflito está caracterizado pela pretensão de se excluir dos efeitos da recuperação judicial os créditos dos representantes comerciais anteriores ao pedido, se declarados por sentença transitada após o ajuizamento da recuperação judicial. Sendo motivo de insegurança jurídica, as alterações padecem do vício de inconstitucionalidade formal, porque provenientes de Emenda parlamentar ao Projeto de Conversão da MP 1.040/2021, sem nenhuma pertinência temática com a matéria disposta na MP, cujo objetivo foi o de melhorar o ambiente de negócios, inclusive estabelecendo normas voltadas a garantir a necessária segurança jurídica, justamente o que a Emenda não faz. O caput do art. 44 da Lei nº 4.886/65, conforme alterado pela Lei nº 14.195/2021, deve ser interpretado no sentido de que os créditos do representante comercial pessoa física são equiparados ao Crédito Trabalhista na recuperação judicial e na falência do representado. Eventual interpretação que inclua a empresa entre os destinatários do tratamento favorecido importa em criar privilégio sem fundamento constitucional plausível e, por isso, deve ser afastada por incompatível com a Constituição. Por outro lado, o dispositivo comporta interpretação conforme a Constituição, no sentido de que o crédito equiparado ao Crédito Trabalhista é o de titularidade do representante comercial pessoa física, que tem natureza alimentar e, assim, é merecedor do mesmo tratamento dispensado ao Crédito Trabalhista. O parágrafo único do art. 44 Lei nº 4.886/65, incluído pela Lei nº 14.195/2021, é materialmente inconstitucional porque, sem nenhuma justificação plausível para tanto, cria exceção ao sistema da Lei nº 11.101/2005, sedimentado em julgamento pelo regime dos recursos repetitivos, com fixação de tese vinculante para todos os órgãos do Poder Judiciário. O parágrafo único pretende atribuir a determinada categoria - a dos representantes comerciais, pessoa física ou jurídica - tratamento mais favorecido do que o dispensado ao Crédito Trabalhista, incorrendo, assim, em clara violação do princípio constitucional da isonomia. Por fim, caso superadas as inconstitucionalidades expostas, ainda assim seria preciso ser feita interpretação conforme a Constituição da República para se concluir que essas alterações apenas são aplicáveis às recuperações judiciais ajuizadas e às falências decretadas após a vigência da lei 14.195/2021, uma vez que o art. 5º, inciso XXXI da Constituição da República garante que "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada", sendo a data do pedido de recuperação judicial e a decretação da falência, respectivamente, os marcos temporais que submetem os créditos a estes regimes. __________ 1 Conforme exposição de motivos, que corresponde à proposta dos Ministros Economia, da Justiça e de Minas e Energia. da Advocacia-Geral da União e da Secretaria-Geral da Presidência da República, dirigida ao Chefe do Poder Executivo: "11. Por fim, temos a certeza de que a revisão do arcabouço legal por meio das inovações e mudanças mencionadas mostra-se urgente e de relevante interesse público por se inserir no conjunto de medidas de curto prazo editadas pelos Ministérios da Economia, da Justiça e de Minas e Energia, da Advocacia-Geral da União e da Secretaria-Geral da Presidência da República que objetivam minimizar os efeitos negativos da pandemia de Covid-19 sobre o nível da atividade econômica. Além disso, para que o Brasil alcance a posição desejada no Relatório Doing Business 2022, é necessário implementar as mudanças regulatórias a tempo para que sejam refletidas pelos respondentes no primeiro semestre de 2021 e constem do relatório 2022. 12. Registre-se, ademais, que Resultados de um estudo de 2013 do Banco Mundial sugerem que, em média, uma melhoria de 1 ponto percentual no ambiente de negócios medido pela pontuação do Doing Business (em comparação com as melhores economias para se fazer negócios) representa uma diferença nas entradas anuais de Investimento Estrangeiro Direto na ordem de US$250-500 milhões por ano." Disponível aqui (acesso em 11.10.2021). 2 No mesmo sentido, Agravo de Instrumento nº 2123265-10.2020.8.26.0000, 2ª Câmara Reservada de Direito Empresarial do Tribunal de Justiça de São Paulo, Relator Desembargador Araldo Telles, julgado em 27.07.2020. 3 Disponível aqui. (acesso em 11.10.2021). 4 Art. 100. Os pagamentos devidos pelas Fazendas Públicas Federal, Estaduais, Distrital e Municipais, em virtude de sentença judiciária, far-se-ão exclusivamente na ordem cronológica de apresentação dos precatórios e à conta dos créditos respectivos, proibida a designação de casos ou de pessoas nas dotações orçamentárias e nos créditos adicionais abertos para este fim. § 1º Os débitos de natureza alimentícia compreendem aqueles decorrentes de salários, vencimentos, proventos, pensões e suas complementações, benefícios previdenciários e indenizações por morte ou por invalidez, fundadas em responsabilidade civil, em virtude de sentença judicial transitada em julgado, e serão pagos com preferência sobre todos os demais débitos, exceto sobre aqueles referidos no § 2º deste artigo. 5 Súmula vinculante 47 - Enunciado: Os honorários advocatícios incluídos na condenação ou destacados do montante principal devido ao credor consubstanciam verba de natureza alimentar cuja satisfação ocorrerá com a expedição de precatório ou requisição de pequeno valor, observada ordem especial restrita aos créditos dessa natureza. 6 Eduardo J. Couture. Los Mandamientos del Abogado, Buenos Aires, Depalma, 1951, pp. 11 e 31, apud, José Afonso da Silva. Curso de Direito Constitucional Positivo, Editora Revista dos Tribunais, 6ª Edição, 2ª Tiragem, São Paulo, 1990, pp. 502/503. 7 Nesse sentido o Código de Ética e Disciplina da Ordem dos Advogados do Brasil, aprovado pela Resolução nº 2/2015 do Conselho Federal da OAB, estabelece: "Art.  5º - O exercício da advocacia é incompatível com qualquer procedimento de mercantilização." (destaques acrescentados). 8 Nesse sentido: (ADI 5139, STF - Tribunal Pleno, Relatora: Min. CÁRMEN LÚCIA, Julgamento: 11/10/2019, Publicação: 06/11/2019).
A lei 14.112/20, em vigor desde 23 de janeiro de 2021, promoveu recente e importante alteração no sistema de insolvência empresarial brasileiro, alterando substancialmente o texto da lei 11.101/05, que regula a recuperação judicial, extrajudicial e a falência do empresário e da sociedade empresária. A reforma aprimorou algumas das ferramentas jurídicas já existentes no nosso sistema de insolvência empresarial, mas também trouxe ferramentas novas, introduzindo importantes mecanismos para o tratamento mais eficaz da crise da empresa. Dentre as novidades trazidas pela reforma, pode-se citar o sistema de pré-insolvência empresarial, criado sob inspiração do modelo francês da conciliacion e do mandat ad hoc, da Diretiva da União Europeia 2019/1023 e da moratorium do direito britânico, criada pelo Corporate Insolvency and Governance Act de 2020. Conforme já explicado em artigo1 publicado no Migalhas, comentando o sistema de pré-insolvência ainda na fase de projeto: O sistema de pré-insolvência criado pelo PL 4458/20 cria estímulos para que empresas devedoras busquem a renegociação coletiva de suas dívidas de forma predominantemente extrajudicial, com mínima intervenção judicial. A utilização da mediação e da conciliação preventivas necessita da criação de estímulos para que seja eficaz e adequada. Nesse sentido, é preciso proteger o devedor de execuções individuais, como condição para que se crie um espaço adequado para realização dos acordos com os credores. Os credores somente se sentarão à mesa para negociar se não puderem prosseguir nas suas execuções individuais. Por outro lado, a devedora somente terá condições de propor um acordo aos seus credores se tiver um espaço de respiro e uma proteção contra os ataques patrimoniais provenientes de ações individuais. Da mesma forma, um credor somente se sentirá seguro para negociar se houver uma proteção ao acordo entabulado, evitando-se que seja prejudicado pelo uso sucessivo de um processo de insolvência. De igual modo, deve-se cuidar para que os devedores não façam uso predatório dessa ferramenta, apenas com o intuito de prolongar a proteção do stay contra os credores. Tendo em vista essas premissas, o projeto estimula a conciliação e a mediação nos CEJUSCs, criando-se alternativa extrajudicial de renegociação das dívidas. Por outro lado, oferece à devedora a essencial proteção do stay, típico da recuperação judicial, a fim de se criar um ambiente adequado à negociação coletiva. Considerando que a determinação de suspensão de ações deve ser judicial - só uma decisão judicial pode ter o condão de suspender o andamento de ações judiciais - o mecanismo oferece à devedora a oportunidade de requerer ao juízo competente a medida de stay com natureza cautelar, eventualmente preparatória de futura recuperação judicial. No entanto, a fim de se evitar a utilização do mecanismo apenas como uma forma de alongar a proteção típica de uma recuperação judicial, o projeto determina que o prazo de proteção antecipado à devedora durante as negociações no CEJUSC será descontado do prazo de stay típico. Superada a discussão travada durante o processo legislativo, o sistema de pré-insolvência brasileiro tornou-se realidade e se encontra regulado na Seção II-A da lei 11.101/05 pelos artigos 20-A a 20-D. Nesse sentido, faz-se importante destacar algumas características bastante práticas para orientação de utilização desse novel instituto no direito brasileiro. De início, vale destacar que a utilização dessa ferramenta pressupõe o entendimento de que a lei trouxe uma gradação no tratamento da crise da empresa. Nesse sentido, o sistema de pré-insolvência foi pensado para ser utilizado como ferramenta eficaz para o tratamento precoce da crise da empresa, num momento em que a situação econômico-financeira da devedora ainda não é de extrema gravidade. Essa é a razão pela qual o art. 20-B, parágrafo primeiro, dispõe que a suspensão das execuções, no bojo de um procedimento de mediação ou conciliação prévia, poderá ser obtida por empresas em dificuldade e não necessariamente empresas insolventes. O sistema estimula o uso dessa ferramenta por empresas que estejam em dificuldades, mas que ainda tenham condições de negociar com seus credores em condições de equalizar seu passivo e reestruturar suas atividades empresariais com intervenção judicial mínima. Portanto, o sistema de pré-insolvência mostra-se como ferramenta adequada para o tratamento da crise do empresário individual, da micro e da pequena empresa, seja pelo perfil mais simples das suas crises, seja pela menor quantidade de credores envolvidos na negociação. Destaca-se, também, que esses procedimentos possuem menor custo, se comparados à recuperação judicial ou extrajudicial, ampliando-se o acesso à mecanismos de reestruturação para micro e pequenas empresas É certo que até mesmo grandes empresas podem se utilizar do sistema de pré-insolvência como estratégia para o enfrentamento da crise, antecipando-se ao problema e evitando-se o desgaste e o estigma associados aos processos de recuperação judicial. Analisando-se em detalhes o procedimento da pré-insolvência (mediação ou conciliação antecedentes), é importante que fique claro que a concessão da medida cautelar prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 pressupõe a demonstração pelo requerente de que o procedimento de mediação ou conciliação já foi instaurado no CEJUSC do Tribunal competente ou da câmara especializada, com a comprovação de expedição das cartas endereçadas aos credores convidados a participar do referido procedimento. O texto da lei condiciona o deferimento da tutela de urgência cautelar à demonstração de que o procedimento de mediação ou conciliação já esteja instaurado perante o CEJUSC ou câmara privada. Entretanto, é necessário definir o momento em que se considera instaurado o referido procedimento. Nesse sentido, deve-se considerar iniciado o procedimento de mediação ou conciliação quando o CEJUSC do tribunal competente ou a câmara privada expedir a carta-convite endereçada aos credores envolvidos na negociação. O pedido de medida cautelar deve ser instruído com os documentos elencados no art. 48 da lei 11.101/05. Conforme dispõe o art. 20-B, parágrafo primeiro, a obtenção da medida de suspensão das execuções somente será possível por empresas que preencham os requisitos legais para requerer recuperação judicial. Os documentos que demonstram a existência desse direito são aqueles elencados pelo art. 48 da Lei n. 11.101/05 (não ser falido, não ter requerido recuperação judicial nos últimos 05 anos etc.). Não é necessária a juntada dos documentos relacionados pelo art. 51 da lei 11.101/05, uma vez que não se trata de ajuizamento da recuperação judicial, mas apenas de medida cautelar antecedente. Conforme já explicado na obra Comentários à Lei de Recuperação de Empresas e Falência2, "a probabilidade do direito consiste na apresentação dos documentos relacionados no art. 48, que comprovam que a devedora tem direito á pedir recuperação judicial". A definição exata dos credores convidados a participar do procedimento de mediação ou de conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada deve ser exigida como requisito para a concessão da medida cautelar prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. Isso porque, toda e qualquer medida cautelar pressupõe a demonstração de fumus boni juris e de periculum in mora. No caso dessa medida cautelar nominada, o periculum in mora é in re ipsa, sendo presumido por lei na medida em que a suspensão das execuções é essencial para a criação de um ambiente mais adequado à realização das negociações, sem o qual as chances de êxito nas mediações ou conciliações serão reduzidas drasticamente. Entretanto, compete à devedora comprovar a fumaça do bom direito, sendo que a apresentação organizada e precisa dos credores sujeitos ao procedimento de mediação ou conciliação é fundamental para demonstrar, ao menos em tese, a possibilidade de reorganização de suas atividades e de superação da crise da empresa, sem a necessidade de utilização das ferramentas da recuperação extrajudicial ou judicial. O prazo de 60 dias de suspensão previsto no art. art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 é decadencial e improrrogável, considerando que se trata de medida cautelar requerida em caráter antecedente, cuja eficácia cessa se o autor não deduzir o pedido principal de recuperação judicial ou extrajudicial nos termos do art. 309, inc. i, do CPC. O prazo de suspensão das execuções previsto nesse artigo tem natureza jurídica de medida cautelar preparatória. Portanto, o não ajuizamento do pedido principal subsequente, decorrido o prazo de 60 dias, implica no reconhecimento da decadência da medida, cuja eficácia cessará nos termos do art. 309, inc. I, do CPC. Cabe ao requerente comunicar aos juízos responsáveis pelas execuções a concessão da medida cautelar de suspensão deferida com base no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. A prática forense na condução das medidas cautelares preparatórias ou antecedentes deve ser observada na utilização dessa nova medida prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05. Nesse sentido, se mostra desnecessária a citação dos credores para apresentação de contestação da medida cautelar. Basta que os credores sejam cientificados da medida pela própria devedora, momento em que devem aguardar o decurso do prazo de suspensão ou impugná-lo mediante o recurso próprio. A medida cautelar de suspensão prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 vincula apenas os credores convidados a participar do procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada. O objetivo da medida cautelar de suspensão das execuções é proporcionar um espaço de respiro e um ambiente mais adequado de negociação da devedora com os seus credores. Na medida em que os credores sujeitos à negociação não podem prosseguir nas suas execuções individuais, cria-se o estímulo necessário para que se sentem à mesa para negociar com a devedora. Nesse sentido, é importante esclarecer que a suspensão das execuções só faz sentido em relação àqueles credores envolvidos na mediação ou conciliação, não atingindo os demais credores que não tenham sido convidados a participar do procedimento de negociação. A devedora não poderá renovar o pedido de suspensão previsto no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 depois de cessada a sua eficácia, salvo em relação a credores que não participaram do procedimento de mediação ou conciliação, nos termos do art. 309, parágrafo único, do CPC. A medida cautelar de suspensão das execuções prevista no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 está sujeita ao regime jurídico das tutelas cautelares requeridas em caráter antecedente. Nesse sentido, depois de cessada a eficácia da medida pelo decurso do prazo de 60 dias sem o ajuizamento do pedido principal, é vedado à devedora renovar o pedido, salvo em relação a outros credores, conforme dispõe o art. 309, parágrafo único, do CPC. Pode o juiz revogar a medida cautelar deferida com base no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05, diante da demonstração por qualquer credor de que a devedora não promove ou procrastina, de qualquer forma, o regular andamento do procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada. O juiz que concede a medida cautelar prevista no no art. 20-B, parágrafo primeiro, da lei 11.101/05 deverá fiscalizar a presença dos requisitos autorizadores da concessão da cautelar durante todo o período de sua vigência. Nesse sentido, desaparecendo a fumaça do bom direito durante o prazo de suspensão das execuções de 60 dias, a medida deverá ser revogada. Nesse sentido, se depois de iniciada a mediação ou conciliação, o comportamento da devedora demonstrar de forma inequívoca o seu intuito procrastinatório ou refratário às negociações, deverá o juiz competente revogar a medida cautelar. Os acordos obtidos durante o procedimento de mediação ou conciliação instaurado no CEJUSC do tribunal competente ou na câmara privada vinculam apenas os credores anuentes, não se aplicando nessa fase a regra da maioria ou a extensão aos dissidentes do acordo aceito pela maioria dos credores. A lógica dos procedimentos de pré-insolvência é a concessão de algumas das vantagens oferecidas pela recuperação judicial, mas sem algumas de suas desvantagens, como o estigma causado à devedora que se utiliza dessa ferramenta. No Brasil, a pré-insolvência concede à devedora a suspensão das execuções mesmo sem estar em recuperação judicial, criando um ambiente adequado de negociação e buscando evitar o ajuizamento de uma recuperação judicial. Entretanto, por opção legislativa, o sistema brasileiro de pré-insolvência não adotou a regra da maioria nessa fase prévia de mediação ou conciliação. Nesse sentido, os acordos realizados nessa fase vinculam apenas as partes que expressamente anuírem, não podendo ser impostos aos credores resistentes, ainda que minoritários. A novação decorrente do acordo feito entre devedora e credor no procedimento previsto nos artigos 20-B e 20-C da lei 11.101/05 somente se consolida com o decurso do prazo de 360 dias a contar da sua homologação judicial e desde que a devedora não ajuíze pedido de recuperação judicial ou extrajudicial, nos termos do art. 20-C, parágrafo único. A regra do art. 20-C, parágrafo único, da lei 11.101/05 tem por objetivo dar aos credores maior tranquilidade e conforto para realizarem acordos nessa fase de pré-insolvência, sem o risco de serem prejudicados pelo sucessivo ajuizamento de recuperação judicial com inclusão do crédito já renegociado. Assim, a novação decorrente do acordo é provisória durante o prazo de 360 dias a contar da sua homologação judicial. Caso a devedora ajuíze recuperação judicial ou extrajudicial dentro desse prazo, incluindo o crédito já renegociado na fase de pré-insolvência, o credor voltará a ser titular do valor integral do crédito, em suas condições originais, deduzidos os valores eventualmente pagos e ressalvados os atos validamente praticados naquela fase. Protege-se o interesse do credor, a fim de criar mais um estímulo à realização de acordos nas mediações ou conciliações antecedentes. Essas são algumas ponderações práticas sobre o uso adequado do sistema de pré-insolvência brasileiro. Espera-se que essa importante ferramenta de enfrentamento da crise da empresa tenha no Brasil a mesma relevância já observada nos países europeus e asiáticos que possuem a tradição de gerenciamento precoce da crise das empresas, eliminando-se os custos e os estigmas associados á utilização das ferramentas judiciais e tradicionais de recuperação empresarial. __________ 1 COSTA, Daniel Carnio. CUEVA., Ricardo Villas Boas. Disponível aqui. 2 COSTA, Daniel Carnio. MELO, Alexandre Nasser. Comentários à lei de recuperação de empresas e falência; 2ª edição - Curitiba: Juruá.2021; pág. 130.
terça-feira, 31 de agosto de 2021

Plano recuperação apresentado por credor

Uma das novidades1 da reforma da lei 11.101/05, de dezembro de 2020, foi a possibilidade de o próprio credor apresentar plano de recuperação. Essa relevante alteração poderá significar importante melhoria não só na apresentação do plano de recuperação judicial do devedor, que, ciente da prerrogativa assegurada aos credores, tende a melhorar a sua proposta de pagamento dos credores, mas também no próprio ambiente de negociação. A negociação é o instrumento central da reestruturação de dívidas; o aparato judicial é utilizado para que, com o respiro do stay period, todos possam conversar dentro das regras do jogo, sem que um possa prevalecer-se sobre outro se fosse admitida uma corrida de credores ao patrimônio do devedor. Essa possibilidade aberta aos credores, de apresentação de plano de recuperação, como toda e qualquer inovação legislativa, terá de passar pelo teste da prática, especialmente da jurisprudência, que terá papel decisivo sobre sua aplicabilidade, pois alguns dispositivos geram debate. Para que se abra aos credores a possibilidade de apresentação de plano de recuperação, o primeiro requisito é a rejeição do plano apresentado pelo devedor. A lei dá preferência ao devedor e ao seu plano. Ele tinha a obrigação de pagar as suas dívidas e não o fez, e a lei, em nome da preservação da atividade empresarial, assegura-lhe o direito de negociar com os credores uma solução do passivo acumulado. Por ocasião da assembleia de credores, uma vez rejeitado o plano de recuperação apresentado pelo devedor, deve o administrador judicial proceder à votação sobre interesse dos credores em apresentarem plano de recuperação. O administrador judicial não tem escolha. É dever legal seu submeter a escrutínio dos credores a instituição ou não da faculdade de apresentação de plano de recuperação. Poderá, eventualmente, o devedor entender que há voto abusivo, por exemplo, por ocasião da rejeição do seu plano, cuja caracterização poderia levar à sua aprovação. Nem assim o administrador judicial está dispensado de colocar em votação a matéria, ainda que possa estar convencido de que há abuso de voto. O § 4º do art. 56 tem natureza cogente para o administrador judicial. Após a juntada da ata da assembleia no processo, poderá o juiz apreciar a alegação de voto abusivo e conceder a recuperação judicial, circunstância em que a votação sobre apresentação do plano pelos credores ficará prejudicada. Vota-se a abertura de prazo para que os credores apresentem ou não um plano de recuperação; não há vinculação dos credores a esse prazo, de sorte que não é obrigatória a apresentação do plano. Na realidade, a aprovação por mais da metade dos créditos presentes cria uma faculdade aos credores, que pode ser exercida ou não. A lei não esclarece se o plano deve ser apresentado nos autos do processo ou se em assembleia já agendada por ocasião da deliberação sobre o prazo aos credores. Esse ponto é relevante porque o plano dos credores só poderá ser colocado em votação caso sejam satisfeitas as condições previstas no artigo 56, § 6º, da LFR, e a lei não indica quem faz a verificação da presença das condições por ela instituídas. A lei é clara ao estabelecer que o plano "somente será posto em votação" caso as exigências legais específicas sejam satisfeitas. Registre-se que não há exigência legal específica para o plano apresentado pelo devedor, a não ser a observância das normas gerais de direito privado, especialmente os requisitos de validade dos negócios jurídicos. Já o plano do credor, além de obedecer aos requisitos de validade dos negócios jurídicos, tem de preencher os requisitos arrolados no § 6º do artigo 56. A votação do plano só será possível se houver prévia deliberação sobre os requisitos do § 6º do art. 56, e essa verificação cabe exclusivamente ao juiz, pois não foi cometida ao administrador judicial essa tarefa. O contraditório é de observância obrigatória e, sobre o plano de recuperação do credor o devedor será intimado a se manifestar, assim como o administrador judicial. A discussão sobre o preenchimento dos requisitos do artigo 56, §6º, pode dilatar o procedimento, atrasando (i) a decretação da falência ou (ii) a deliberação sobre o plano dos credores. Para fins de agilização do processo, a lei poderia ter cometido ao administrador judicial o papel de promover uma verificação preliminar das exigências legais e, uma vez convencido de que tudo está regular, colocar o plano em votação, sem prejuízo de posterior deliberação judicial a respeito da matéria. O administrador judicial teria, em respeito ao contraditório, de colher a manifestação do devedor. Ocorre que, sem amparo legal, essa alternativa parece instaurar insegurança jurídica aos agentes do processo. O plano dos credores poderá prever um dos meios previstos no artigo 50 da LFR. O § 7º do art. 56 enfatiza uma das possibilidades: "O plano de recuperação judicial apresentado pelos credores poderá prever a capitalização dos créditos, inclusive com a consequente alteração do controle da sociedade devedora, permitido o exercício do direito de retirada pelo sócio do devedor". A conversão de crédito em capital social é uma das melhores medidas para a reestruturação de dívidas de qualquer sociedade, pois, sem desembolso de recursos, limpa-se o balanço e a empresa estará livre do peso da dívida para empreender no mercado. Ocorre que, enquanto para a empresa essa solução é ótima, para o empresário (rectius, sócio) pode não ser, pois é evidente que ele será diluído ao ponto de, muitas vezes, "perder" sua participação social. Está clara a opção da lei, que quer a preservação da atividade, preservação da empresa e não do sócio. Como já fora rejeitado o plano de recuperação, a falência seria a consequência natural, e o patrimônio social seria expropriado independentemente da vontade do sócio. Como a falência, apesar da dicção do artigo 75, acaba, na maioria das vezes, acarretando perda de valor, perda de riqueza, a transferência do controle, parcial ou total, para as mãos dos credores, durante o processo de recuperação, evitando-se a quebra, culmina em relevante prestígio da função social da empresa. É de se ter em conta ainda o seguinte. Se, em termos jurídicos, o sócio é titular de participação social que não se altera nem na falência, o certo é que, em termos econômicos, sua participação social pode ser negativa. Pode o balanço patrimonial apresentado pelo próprio devedor ostentar patrimônio líquido negativo, circunstância em que o valor da participação do sócio é igual a zero. Não tem valor algum, não tem significado patrimonial. Nem simbolicamente se pode dizer que o sócio tem algum ativo, ou tem alguma propriedade. Como dizem os contadores, nessa circunstância o sócio é titular de um buraco e nada mais. No exemplo acima, o próprio devedor apresentou, no processo de recuperação, um balanço com patrimônio líquido negativo, que é um exemplo mais extremado, para mostrar que não há ofensa ao direito de propriedade do devedor. Ainda que o patrimônio líquido seja positivo, e, portanto, a participação do sócio tenha valor real, como o plano fora rejeitado pelos credores, e à alternativa da falência os credores preferiram a conversão do crédito em ações ou quotas da sociedade em recuperação, nem assim há ofensa ao direito de propriedade. A efetivação cogente de obrigações é um modo de tutela de direitos quando há previsão legal. No âmbito do processo de recuperação o devedor tem a primazia de liderar tanto a apresentação do plano de recuperação como as próprias negociações. Sendo infrutífera a sua iniciativa, e diante da alternativa da falência, a lei consagra aos credores a possibilidade de uma solução melhor, que consiste no prosseguimento da atividade empresarial nas mãos de outras pessoas, ainda que contra a vontade do devedor. Essa opção da lei, entre a execução forçada do patrimônio da sociedade na falência e a execução forçada da participação do sócio na sociedade que teria a falência decretada, é legítima e não ofende o direito de propriedade. Antes, há absoluto respeito ao direito de propriedade do sócio, mas na medida de sua real existência econômica, pois a propriedade acionária não é uma ficção jurídica, mas realidade prática da vida empresarial. Com o patrimônio líquido da sociedade negativo, o patrimônio do sócio é zero, e a conversão de crédito em participação social não lhe causa prejuízo algum. Com patrimônio líquido da sociedade positivo, o patrimônio do sócio também é positivo, e esse valor será considerado por ocasião da conversão de crédito em participação, ainda que haja diluição. A diluição é justificada porque a sociedade pode ter a falência decretada, e, diante dessa possibilidade, a lei assegura a conversão dos créditos por parte dos credores. Sequer é preciso fazer apelo à função social da empresa para justificar a conversão de créditos sem a vontade do sócio se se atentar ao real valor do seu patrimônio. Somente um direito de propriedade fundado na ficção patrimonial eliminaria o direito dos credores de promover a conversão dos créditos em participação social. É por demais evidente que eventual plano abusivo por parte dos credores, com vistas à tomada do controle da sociedade, será rechaçado pelo Poder Judiciário. Essa circunstância, porém, terá de ser demonstrada em cada caso. Há, contudo, uma circunstância com potencial de instaurar impasse. Há diferença entre a solução do processo de recuperação, com a conversão de crédito em participação social, que é, sob o aspecto procedimental, relativamente simples, e a solução de ordem societária, endo-social. No âmbito interno da sociedade em recuperação é preciso que se tomem as medidas pertinentes à alteração do controle.  É preciso discutir se a deliberação da assembleia geral de credores e posterior deliberação judicial é suficiente para tornar o credor um sócio. á Essa interface entre o direito da insolvência e o direito societário deve ser harmônica e de respeito aos limites de cada área. Admitido o caráter constitutivo da decisão concessiva da recuperação judicial, ela, na hipótese aqui tratada, tem o condão jurídico de transformar o credor em sócio, e o condão jurídico-econômico de reestruturar o passivo da sociedade. A mesma força que a sentença tem para transformar a dívida (carência, deságio e parcelamento, v.g.) tem para transformar o credor em sócio. Em nome da segurança jurídica, é útil, embora não obrigatório, que a própria sentença seja expressa a esse respeito, dizendo que tais e tais pessoas, doravante, deixaram de ser credores e passaram a ser sócios, viabilizando a rápida solução no interior da sociedade em recuperação. Deve ser descartada a suficiência da sentença concessiva da recuperação para fins de alteração do controle e ulteriores providências no seio social; o processo de recuperação é externo à vida societária, embora possa influir no seu destino. É possível e pode ser conveniente que o próprio plano preveja a substituição do administrador da sociedade (art. 64, VI) além de outros detalhamentos sobre as consequências da conversão de crédito em participação societária. A sentença pode intimar os administradores da sociedade para que convoquem o órgão deliberativo o mais rápido possível, e que acolham, como sócios legitimados a votar, os credores que assumiram tal posição por força da concessão da recuperação judicial.   Outro aspecto relevante da reforma da lei 11.101/05, no que toca aos meios de recuperação, é a previsão do inciso XVIII do artigo 50, verbis: "venda integral da devedora, desde que garantidas aos credores não submetidos ou não aderentes condições, no mínimo, equivalentes àquelas que teriam na falência, hipótese em que será, para todos os fins, considerada unidade produtiva isolada".   A locução venda integral da devedora não é feliz, pois pode significar a venda de toda a participação societária ou a venda de todos os elementos do estabelecimento empresarial. Essa previsão afasta de vez entendimento jurisprudencial que rejeitava a venda relevante de ativos da sociedade. Quando essa proposta vem do devedor, não há maior dificuldade, pois ele mesmo vai esclarecer, no plano de recuperação, o alcance da medida. Quando a proposta for apresentada pelo credor, por certo surgirá discussão sobre o direito de propriedade. Novamente, a opção da lei é, entre a falência, assegurar a possibilidade de continuidade da atividade empresarial nas mãos de outra pessoa. Quotas e ações são direitos relacionais, cujo valor depende da sociedade em que dividido o capital. Quotas e ações não têm valor intrínseco e estático e dependem da situação da entidade em que foi investido o capital. Elas tanto podem não ter nenhum significado econômico e, portanto, a propriedade está zerada, completamente esvaziada, como podem ter significado econômico, que terá de ser respeitado. As alterações promovidas na lei 11.101/05, ao permitirem a apresentação de plano de recuperação por parte dos credores, propiciará importantes discussões sobre o significado jurídico e econômico do direito de propriedade de quotas e ações, o que fortalecerá, sem dúvida alguma, nosso sistema de direito empresarial. Mesmo diante da insolvência da empresa, sócios empedernidos poderão lutar para a manutenção do status quo, e esse status, por ocasião da apresentação do plano pelos credores, terá de ser avaliado sob o aspecto econômico; a propriedade de quotas e ações é a propriedade de um fruto cuja casca pode envolver coisa positiva ou negativa; pode ter significado econômico ou não. A titularidade de crédito é expressão do direito de propriedade, assim como é expressão do direito de propriedade a titularidade de participação societária. Ambos os direitos ostentam o mesmo grau de proteção constitucional. É legítima, por deliberação da assembleia, tanto a redução do direito de propriedade dos credores (deságio), como a redução do direito de propriedade dos sócios. Se a função social da propriedade servir de fundamento para o deságio do credor, também haverá de servir de fundamento para a alteração do direito de propriedade do sócio. Haveria odiosa ofensa à igualdade constitucional admitir que o direito de propriedade do credor possa ser comprimido por deliberação de assembleia de processo de recuperação, e o direito de propriedade do sócio não pudesse ser afetado pela mesma deliberação. Pode a lei, de modo legítimo, com vistas a assegurar as intenções do art. 47 da lei 11.101/05, atribuir ora ao devedor, ora ao credor, a prerrogativa de propor a reestruturação da dívida da entidade que a lei pretende proteger, oscilando o direito de propriedade ora entre o sócio ora entre o credor, na exata medida da força econômica de cada um. __________ 1 Na reunião ordinária do IBR - Instituto Brasileiro de Estudo de Recuperação de Empresas do dia 25/8/2021, o tema dos debates foi exatamente a apresentação de plano de recuperação por parte dos credores. Veio dessa reunião a inspiração para este artigo.
O sistema de insolvência brasileiro sofreu profunda modernização com o advento da lei 11.101/05. Saíram de cena os arcaicos processos de falência e concordata tratados pelo decreto-lei 7.661/45, para a entrada de um novo procedimento falimentar, mais célere e objetivo, e do instituto da recuperação judicial, com alguma inspiração no modelo norte-americano de reorganização de atividades empresariais, previsto no Chapter 11 do US Bankrupcty Code. Entretanto, a despeito da modernização proporcionada pela lei 11.101/05, não houve o alcance de maior objetividade no tratamento da falência, seja pela insuficiência das regras estabelecidas, seja pela cultura de desvalorização da figura do empreendedor e do lucro no cenário nacional. Ao permanecer o estigma sobre a figura do falido e a incompreensão de que o empreendedorismo se faz num ambiente de risco, no qual o insucesso nem sempre é fruto de fraude ou dolo de lesionar os demais players do mercado, muitas recuperações judiciais foram ajuizadas de forma temerária, quando já não mais havia atividade empresarial para se soerguer. Nesses casos, embora o ideal fosse a adoção da via falimentar para aplicação ao direito de recomeço (fresh start), por meio da liquidação da atividade mediante o pagamento dos credores com os ativos que ainda restavam, em razão da ausência de objetividade para utilização do instituto, acabou-se por criar um cenário de má utilização das recuperações judiciais e da continuidade da imagem negativa da falência. Diante do dinamismo inerente à vida humana e, consequentemente, ao exercício da empresa, além das situações acima descritas, foi percebida a necessidade de atuação do legislador para fortalecer a lei 11.101/05, a fim de que soluções consolidadas pela jurisprudência pudessem ser incorporadas ao texto legal, bem como para que novos institutos fossem inseridos, tudo com vistas à melhoria do sistema não só visando maior segurança jurídica, mas, também, com o escopo de conferir aos agentes econômicos e aos operadores do direito outros instrumentos voltados a garantir efetividade tanto da recuperação judicial como do processo falimentar. A sobrevinda da lei 14.112/20 trouxe auspiciosas inclusões no texto da lei 11.101/05. Dentre muitas alterações, pode ser notado um profundo trabalho legislativo, após oitiva democrática das pessoas do meio jurídico e acadêmico, com a intenção de se conferir mais objetividade e eficiência dos processos de falência e de recuperação judicial. Uma das boas alterações trazidas pela novel legislação está no artigo 114-A da lei 11.101/05, que permite o encerramento da falência da empresa acaso não existam bens suficientes sequer para o custeio do processo. Embora no Brasil ainda não exista aprofundamento na discussão sobre a análise econômica do Direito, é importante ter em mente a realidade da finitude de recursos materiais e humanos em qualquer área, pública ou privada. No Poder Judiciário não é diferente. A inafastabilidade da jurisdição (art. 5º, XXXV, CF) não pode funcionar como elemento único no acesso à justiça, desprezando-se as inexoráveis limitações existentes para atendimento das demandas que lhe são submetidas. Trazendo a discussão para o campo do direito de insolvência, temos situações diversas de tramitação de processo de falência sem utilidade alguma, seja porque inexistem recursos para serem revertidos em pagamento aos credores, seja pela própria ausência de credores habilitados para formação da massa falida subjetiva. Esse contexto evidencia o puro desperdício de recursos públicos, ao manter a atuação do Poder Judiciário sem qualquer utilidade no provimento jurisdicional final. Na 1ª Vara de Falências e Recuperações Judiciais da Comarca de São Paulo/SP, adotou-se a posição de extinção de tais processos, por perda superveniente de objeto relacionado à pretensão deduzida. Mas, embora houvesse aceitação, a solução não estava presente na lei 11.101/05. Com o advento do artigo 114-A da lei 11.101/05, não só a previsão legal atinge a segurança jurídica de previsibilidade legislativa sobre o encerramento de processos de falência sem ativos para reversão aos credores, mas, de outro lado, garante o equilíbrio que deve existir entre o direito de acesso à jurisdição e a possibilidade de encerramento de um processo judicial em razão da impossibilidade de entrega material da prestação jurisdicional, em razão de circunstâncias de fato alheias à atuação do Poder Judiciário. Manoel Justino Bezerra Filho1 bem sintetiza a essência do processo de falência: 5. com certa liberdade, pode-se dizer que a falência é uma "grande execução", processo no qual são arrecadados todos os bens do devedor para formar a "massa falida", de um lado: de outro lado, faz-se o ordenamento de todos os débitos do falido, encontrando-se o valor devido, para a formação do "quadro-geral de credores", que é elaborado classificando-se os créditos para serem pagos na ordem que a lei determina. Na sequência, transforma-se a "massa falida" em dinheiro e rateia-se o resultado aos componentes do "quadro-geral de credores", na ordem legal.  Como se observa, o escopo maior da falência é a liquidação dos bens do falido, a fim de que seus débitos sejam pagos com o proveito da venda de tais ativos, respeitada a ordem legal estabelecida, cuja função é proporcionar tratamento paritário entre os credores. A existência de um procedimento de execução concursal é bem explicitada por Fábio Ulhoa Coelho2: Para evitar injustiça - privilegiando os mais necessitados, tornando eficazes as garantias legais e contratuais ou conferindo iguais chances de realização do crédito a todos os credores de mesma categoria -, o direito afasta a regra da individualidade da execução e prevê, na hipótese, a instauração da execução concursal, isto é, do concurso de credores (no passado recente, a tecnologia costumava designá-lo também por execução "coletiva" expressão que hoje deve ser reservada ao processo de satisfação do direito objeto de ação civil pública, na forma da Lei n. 7.347/85). Se o devedor possui patrimônio negativo, menos bens que os necessários ao integral cumprimento de suas obrigações, a execução deles não poderá ser feita de forma individual, o que levaria à injustiça referida de início. Deve processar-se como concurso, ou seja, envolvendo todos os credores e abrangendo todos os bens, reunindo a totalidade do passivo e do ativo do devedor.  Outra função do processo falimentar, a qual não encontra consenso doutrinário, seria proporcionar o encerramento da própria atividade empresarial, com o advento da sentença de encerramento do procedimento. Sérgio Campinho3, ao afirmar não ser a pluralidade de credores pressuposto essencial ao processo de falência, firma a seguinte posição: Professamos a orientação de que o fim maior e imediato do instituto falimentar é o de propor providência judicialmente realizável para resolver a situação jurídica de insolvência do devedor empresário. Está vocacionado, na nova lei, a promover a liquidação do patrimônio insolvente, saneando o mercado e assegurando a proteção do crédito. Esse escopo deve ser perseguido e para sua realização se faz desinfluente a verificação da existência de um ou mais credores, seja para a instauração da falência, seja para o seu prosseguimento, a qual, por certo, adotará, na existência de credor único, rito simplificado, com a superação de diversos atos processuais.  Tal posição jurídica coloca o processo de falência como instrumento não só voltado ao pagamento dos créditos do empresário ou sociedade empresária insolvente, mas, também, como medida jurídica destinada ao saneamento do mercado, com objetivo de recuperação dos créditos investidos na atividade e com a retirada da atividade do cenário de empreendedorismo, permitindo que o espaço seja ocupado por outro empreendimento em condições de melhor operabilidade. Nesse ponto, o citado autor, ao tratar do encerramento da falência, assim dispõe vernaculamente4: Diversa, porém, será a consequência se o falido for sociedade empresária. A falência é causa de dissolução da sociedade (Código Civil e 2002, arts. 1.044; 1.051, I; 1.087 e Lei 6.404/76, art. 206, II, c). Com a sentença que decretar a falência, tem-se verificado a causa dissolutória, desencadeando a liquidação do ativo para pagamento do passivo. A partir do trânsito em julgado da sentença de encerramento, a pessoa jurídica estará extinta, competindo arquivar a prefalada decisão, para se ter por cancelado o registro na Junta Comercial. A ideia do procedimento falimentar como uma das formas de dissolução e liquidação da sociedade empresária, consagrada na Lei de Sociedades Anônimas e no Código Civil de 2002, vem corroborada na Lei n. 11.101/2005. Com efeito, a falência é um fato jurídico irreversível. Não se recuperanda a empresa, segundo os procedimentos nela disciplinados, serão ela e a sociedade que a explora liquidadas. A própria permissão legal para continuação da atividade é sempre em caráter provisório e será executada por terceiro, que não a sociedade falida. O conceito de falência-liquidação na lei vigente ganha reforço com a regra transitória que obsta a concordata preventiva nos processos em curso anteriormente à vigência da nova lei, os quais, de resto, permanecem regidos pelo Decreto-Lei n. 7.661/45. Inclusive, nesses casos, poderá ser promovida a alienação dos bens que integram a massa falida assim que concluída a sua arrecadação, independentemente da formação do quadro-geral de credores (art. 192, caput, e § 1º). Mas a constatação não impede que os sócios, de posse do remanescente do ativo, ao invés de partilharem seu produto, restabeleçam a mesma empresa, constituindo, porém, nova sociedade para esse fim, embora com o mesmo objeto.  Já Manoel Justino Bezerra Filho5 possui entendimento diverso sobre esse tema: 5. Com liberdade de linguagem, pode-se dizer que o decreto falimentar transforma o falido em uma espécie de "morto-vivo", pois após a sentença de encerramento e a sentença de extinção das obrigações, os sócios podem voltar à atividade empresarial com a mesma sociedade empresária, "revertendo os efeitos da dissolutórios da falência com o objetivo de fazê-la retornar à exploração da atividade", como examinado com detalhes na Apelação 555.048-4/6-00, de 28.05.2008, rel. Romeu Ricupero, do TJSP; no mesmo sentido, consulte-se Bezerra Filho (Temas de Direito Societário...p. 624). Por outro lado, é certo que dificilmente haverá interesse na "ressurreição" da falida, pois seu bom nome empresarial não mais existirá, sua história estará indelevelmente marcada pela falência; de qualquer forma, não há impedimento legal à retomada da atividade se, por qualquer motivo houver tal interesse. Ainda a propósito, no REsp 1.359.273-SE, j. 4.4.2013, Rel p/ acórdão Min. Benedito Gonçalves, entendeu-se que a falência dissolve a pessoa jurídica, que a seguir é liquidada; porém não a extingue, o que apenas ocorre depois de cumprido o art. 51 do CC/2002.  De toda forma, há o consenso sobre a finalidade da falência em buscar a recuperação de crédito dos credores da falida por intermédio de aplicação das regras da execução concursal. Todavia, em muitos casos verifica-se a ausência de ativos necessários ao pagamento de créditos e ao próprio custeio do processo. Com o advento da lei 14.112/20, há, agora, previsão expressa de encerramento do processo falimentar, quando ausente a arrecadação de ativo, ou quando aqueles que forem arrecadados forem insuficientes ao pagamento das despesas do processo, verbis: Art. 114-A. Se não forem encontrados bens para serem arrecadados, ou se os arrecadados forem insuficientes para as despesas do processo, o administrador judicial informará imediatamente esse fato ao juiz, que, ouvido o representante do Ministério Público, marcará, por meio de edital, o prazo de 10 (dez) dias para os interessados requererem o que for a bem dos seus direitos. § 1º Um ou mais credores poderão requerer o prosseguimento da falência, desde que paguem a quantia necessária às despesas e aos honorários do administrador judicial, que serão consideradas despesas essenciais nos termos estabelecidos no inciso I-A do caput do art. 84 desta Lei. § 2º Na hipótese de não haver apresentação de requerimento pelos credores, o administrador judicial promoverá a venda dos bens arrecadados no prazo máximo de 30 (trinta) dias, para bens móveis, e de 60 (sessenta) dias, para bens imóveis, e apresentará o seu relatório, nos termos e para os efeitos dispostos neste artigo. § 3º Proferida a decisão, a falência será encerrada pelo juiz nos autos. § 5º O disposto no inciso VI do caput do art. 158 terá aplicação imediata, inclusive às falências regidas pelo decreto-lei 7.661, de 21 de junho de 1945 .  Agora, o administrador judicial, ao constatar a insuficiência de ativos para pagamento de credores e de custeio do processo, deverá informar o Juízo que, ouvido o Ministério Público, fixará prazo de 10 dias para que os credores se manifestem sobre eventual interesse no prosseguimento do processo falimentar, inclusive nos casos regidos pelo decreto-lei 7.661/45. Algumas observações sobre o texto do art. 114-A. Embora a inserção legal seja benéfica ao sistema, isso não afasta a responsabilidade de atuação cooperativa e pragmática das partes, para evitar a continuidade do trâmite processual, sem que resultados práticos buscados pela lei possam ser atingidos, conforme mandamento do art. 8º do Código de Processo Civil. Em relação ao Ministério Público, seja para se manifestar sobre a continuidade do processo de falência na hipótese insuficiência de ativos, seja para sua intervenção em qualquer dos demais termos do procedimento falimentar, há que ser observada a nova redação dos arts. 20 e 21 da LINDB. Em suas manifestações, o órgão ministerial deverá sempre demonstrar e comprovar as consequências práticas do seu posicionamento, frente aos interesses buscados nos diferentes processos do sistema de insolvência, vedando-se manifestações meramente baseadas em valores jurídicos abstratos (art. 20 da LINDB), sem prejuízo de demonstrar a necessidade e a adequação da medida proposta ou da invalidação de ato por ele requerida, inclusive em face das possíveis alternativas (art. 20, parágrafo único da LINDB) Ademais, em qualquer pretensão veiculada pelo Ministério Público, levando-se em consideração os objetivos dos mais variados processos do sistema de insolvência, o interesse público do sistema e os interesses privados existentes em jogo, deverá o aludido órgão estatal, quando buscar a invalidação de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa indicar de modo expresso suas consequências jurídicas e administrativas (art. 21 da LINDB). Verifica-se, assim, o equilíbrio entre a previsão de atuação do Ministério Público nos processos da lei de insolvência e a busca de real efetividade em sua participação, considerando, ainda, que a oportunidade de eventual apuração de crime falimentar não restará prejudicada na hipótese de encerramento do processo falimentar por ausência de ativos. Já em relação aos credores, o mesmo raciocínio também deve ser seguido. Ainda que eventualmente algum credor se disponha em custear o prosseguimento do processo falimentar, na hipóteses de insuficiência de ativos para reversão em recursos voltados ao seu custeio e ao adimplemento de débitos, haverá de justificar seu interesse processual, seja em relação à necessidade de atuação do Poder Judiciário na espécie, seja em função da utilidade do provimento jurisdicional que se busca na falência, que é o pagamento de créditos e a liquidação sociedade empresária falida como forma de saneamento do mercado. Desse modo, o credor que se manifestar pela continuidade do processo de falência, nos termos do art. 114-A da lei 11.101/05, deverá demonstrar como realizará o pagamento das despesas do processo falimentar, compreendendo a remuneração do administrador judiciais e dos demais atos processuais, o racional econômico voltado ao prosseguimento do feito e lastro probatório que permita aferir, em tese, a possibilidade de real entrega da prestação jurisdicional que se busca na execução concursal. Ausentes esses elementos, está o Poder Judiciário autorizado a encerrar o processo falimentar por insuficiência de ativos, sem a necessidade de formação da massa falida subjetiva e remetendo cópia da decisão a fim de que seja dada baixa nos registros da sociedade empresária junto à Junta Comercial local e à Receita Federal do Brasil, para cancelamento dos cadastros, como forma de dissolução da sociedade, nos termos do art. 51, §3º, do Código Civil. Outro ponto que merece destaque é a possibilidade imediata de aplicação do art. 114-A da lei 11.101/05 aos processos pendentes. O art. 5º, caput e seu §1º, da lei 14.112/20 estabelecem as regras de direito intertemporal das alterações que introduziu na Lei 11.101/2005 e estão assim dispostos: Art. 5º Observado o disposto no art. 14 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil) , esta Lei aplica-se de imediato aos processos pendentes.  § 1º Os dispositivos constantes dos incisos seguintes somente serão aplicáveis às falências decretadas, inclusive as decorrentes de convolação, e aos pedidos de recuperação judicial ou extrajudicial ajuizados após o início da vigência desta Lei:  I - a proposição do plano de recuperação judicial pelos credores, conforme disposto no art. 56 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ;  II - as alterações sobre a sujeição de créditos na recuperação judicial e sobre a ordem de classificação de créditos na falência, previstas, respectivamente, nos arts. 49 , 83 e 84 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ;  III - as disposições previstas no caput do art. 82-A da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005 ;  IV - as disposições previstas no inciso V do caput do art. 158 da Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005.  Em nenhuma das situações elencadas está descrita qualquer proibição à aplicação imediata do art. 114-A da lei 11.101/05, o que permitirá, por pedido do administrador judicial ou por determinação de ofício do Juízo respectivo, a observância do novo dispositivo legal, a fim de que os processos de falência pendentes, inclusive aqueles que tramitam sob a égide do decreto-lei 7.661/45, nos quais não haja ativos suficientes para pagamento de credores ou custeio de sua tramitação, possam ser encerrados, com o esgotamento da prestação jurisdicional e o saneamento do mercado com a retirada das empresas não recuperáveis. Portanto, com a previsão do artigo 114-A da lei 11.101/05 foi conferido ao sistema de insolvência brasileiro um importante instrumento não somente para o encerramento de processos que não conseguirão atingir sua finalidade, mas, um elemento norteador para o caminho de maior objetividade no tratamento do processo falimentar e, consequentemente, de aprimoramento do sistema de insolvência brasileiro. __________ 1 BEZERRA FILHO, Manoel Justino. Lei de Recuperação de Empresas e Falência. Lei 11.101/2005 comentada artigo por artigo. 12ª edição. São Paulo. Editora Revista dos Tribunais. 2017. Página 238. 2 COELHO, Fábio Ulhoa. Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas. 14ª edição. São Paulo. Thomson Reuters Brasil. 2021. Página 287 3 CAMPINHO, Sérgio. Curso de Direito Comercial. Falência e Recuperação de Empresa. 11ª edição. São Paulo. Saraiva Educação. 2020. Página 212. 4 Op. cit, páginas 406/407. 5 Op. cit, página 307.
Introdução  A pessoa jurídica equipara-se à pessoa física no que tange à capacidade que lhe é conferida para ser sujeito de direitos e contrair obrigações e, dessa forma, se consubstancia em importante instrumento para a promoção do valor constitucional da livre iniciativa (art. 1º, IV, da Constituição da República Federativa do Brasil - "CRFB").  Para tanto, a ela é reconhecida autonomia patrimonial em relação aos seus sócios e administradores, o que permitiu a mobilização de recursos e de incentivo ao empreendedorismo para o atendimento de interesses privados e públicos. Mas a limitação da responsabilidade pode ser danosa para a sociedade e para a economia, se for usada com finalidade diversa daquela que motivou a limitação da responsabilidade do sócio. Daí surgiu a teoria da desconsideração da personalidade jurídica. Contudo, o uso sem critério da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, em casos de dificuldades no recebimento do crédito, pode gerar insegurança jurídica e desestímulo ao empreendedorismo. Na busca de equilíbrio entre a autonomia patrimonial da sociedade, protegendo os seus sócios, administradores e sociedades do mesmo grupo e, por outro lado, o estabelecimento de norma eficaz para coibir fraudes e abusos, andou bem o legislador de 2020 ao incluir os artigos 6º-C e 82-A na Lei nº 11.101/2005, conforme veremos a seguir. Desconsideração da personalidade jurídica - art. 50 do Código Civil e o art. 6º-C da lei 11.101/2005  O regramento da desconsideração da personalidade jurídica está atualmente previsto no art. 50 do Código Civil, que indica requisitos específicos para a desconsideração. Aliás, tais requisitos foram recentemente detalhados por meio da lei 13.874/2019 (Lei da Liberdade Econômica), que modificou o dispositivo com objetivo de ressaltar a excepcionalidade desse remédio diante da banalização do instituto, incorporando, assim, a orientação da doutrina e jurisprudência majoritária sobre o tema. Por comodidade transcreve-se o art. 50 do Código Civil: "Art. 50.  Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.  § 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza.  § 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por:  I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa;  II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e  III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial.  § 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica.  § 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. § 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Grifou-se) Da transcrição acima infere-se que é conditio sine qua non para a desconsideração da personalidade jurídica a comprovação, por parte do interessado, da prática de atos ilícitos que caracterizem abuso da personalidade jurídica, quais sejam, desvio de finalidade e confusão patrimonial. Desvio de finalidade se verifica, segundo Gustavo Tepedino, "quando essa imputação autônoma de situações subjetivas na pessoa jurídica é desvirtuada, de modo que sua autonomia seja utilizada de forma disfuncional, isto é, em contrariedade aos propósitos para os quais o ordenamento tutela sua existência autônoma"1. Por sua vez, a confusão patrimonial se caracteriza pela ausência da separação de fato entre patrimônios. O §2º, do art. 50 do Código Civil traz dois importantes parâmetros para aferir a confusão patrimonial: (i) cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (ii) transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante. O inciso III, §2º, do art. 50 do Código Civil ao dispor que a confusão patrimonial pode ser caracterizada por "outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial", adota conceito jurídico indeterminado na medida em que "outros atos de descumprimento" deverão ser aferidos no caso concreto. Note-se, ainda, que para além do desvio de finalidade e da confusão patrimonial, a nova redação do caput do art. 50 do Código Civil, dada pela lei 13.874/2019, dispõe que para haver abuso da personalidade jurídica é necessário ainda mais um requisito: existência de benefício, ainda que indireto, do sócio e/ou administrador da pessoa jurídica a que se pretende desconsiderar a personalidade. Dentre outros pontos, o dispositivo ainda trata da desconsideração na hipótese de grupos econômicos, ressalvando-se, no §4º do próprio art. 50 do Código Civil, que "a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica." Nesse sentido, a doutrina civilista, antes mesmo da inserção do §4º, no art. 50, do Código Civil pela Lei da Liberdade Econômica, já havia consolidado entendimento de que a desconsideração só alcançaria grupos econômicos quando estivessem presentes os requisitos do caput, do art. 50, do Código Civil (v.g. desvio de finalidade ou confusão patrimonial) e houvesse, ainda, prejuízo aos credores, até o limite dos valores transferidos entre as sociedades. Verbis: Enunciado 406 da V Jornada de Direito Civil do CJF: "A desconsideração da personalidade jurídica alcança os grupos de sociedade quando estiverem presentes os pressupostos do art. 50 do Código Civil e houver prejuízo para os credores até o limite transferido entre as sociedades". Portanto, em atenção ao princípio da segurança jurídica, não se admite que o credor possa simplesmente escolher contra quem direcionar o comando executivo de uma sentença para ver adimplido seu crédito - o que restou devidamente explicitado pela lei 13.874/2019. Outros diplomas também tratam da desconsideração da personalidade jurídica da sociedade, como faz o Código de Defesa do Consumidor ("CDC"), aprovado pela lei 8.078/1990, autorizando-a em caso de falência:    "Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração. (...) § 5º Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores." Diante de normas como a do CDC, que adotando a teoria menor da desconsideração da personalidade jurídica, ganham relevo o arts. 6º-C e 82-A da lei 11.101/2005, incluídos pela lei 14.112/2020. O primeiro porque ao estabelecer que "É vedada a atribuição de responsabilidade a terceiros em decorrência do mero inadimplemento de obrigações do devedor falido ou em recuperação judicial, ressalvadas as garantias reais e fidejussórias, bem como as demais hipóteses reladas por esta lei" derrogou o art. 28 do CDC2, na parte em que elevava a mera falência à categoria de fundamento para a atribuição de responsabilidade pessoal a terceiros, o que não mais é possível porque foi expressamente afastada a possiblidade de desconsideração da personalidade jurídica de sociedade falida para o fim de atribuição de responsabilidade a sócio, administrador ou outra sociedade integrante do mesmo grupo, ressalvada a hipótese do art. 82-A, que será tratada no capítulo seguinte. A extensão dos efeitos da falência, a desconsideração da personalidade jurídica na falência e o artigo 82-A da lei 11.101/2005 O art. 81 da lei 11.101/20053 determina a extensão da falência da sociedade aos sócios ilimitadamente responsáveis pelas obrigações da sociedade. Contudo, não autoriza a extensão da falência para o sócio de responsabilidade limitada. Nesse sentido, o Ministro Luis Felipe Salomão, em sede doutrinária, leciona: "(...) a extensão só se aplica em caso de sociedade em nome coletivo e comandita simples, em que a responsabilidade dos sócios é ilimitada, vedada a extensão na hipótese de LTDA. e S.A."4  (grifos aditados). A decretação da falência da sociedade impõe aos seus administradores, ao tempo da quebra, os deveres enumerados no art. 104 da lei 11.101/2005. Mas os administradores da sociedade falida não são falidos e não são atingidos pelos efeitos da falência5. A extensão da falência, a desconsideração da personalidade jurídica e a responsabilidade pessoal de administradores são institutos distintos, admitidos no direito positivo em hipóteses também distintas e produzem efeitos também distintos. A falência é meio de dissolução e liquidação do devedor, com a consequente extinção da empresa individual ou sociedade empresária falida. Dentre os efeitos da falência previstos na lei 11.101/2005, destacam-se: (i) a inabilitação para exercer atividade empresarial (art. 102); (ii) perda do direito de administrar os seus bens ou deles dispor (art. 99, VI, c/c art. 103) e (iii) vencimento antecipado de todas as dívidas da sociedade e dos sócios de responsabilidade ilimitada (art. 77), que, como visto, são atingidos pelos efeitos da falência. Já a desconsideração da personalidade jurídica tem objetivo e efeitos diversos e mais restritos, posto que a sua finalidade é exclusivamente afastar a separação patrimonial entre a sociedade e o sócio de modo a permitir que os bens de um respondam pela dívida do outro, não se cogitando de dissolução e liquidação da sociedade cuja personalidade jurídica e ou da produção de outros efeitos da falência. Na perspectiva do credor, cujo interesse repousa na satisfação do seu crédito, os resultados práticos da falência e da desconsideração da personalidade jurídica podem ser equivalentes, na medida que ambos os institutos permitem que bens de uma pessoa (física ou jurídica) respondam por dívidas de outra. Mas no plano jurídico, os institutos são inconfundíveis. Em outro giro, a responsabilidade de administrador nada tem em comum com extensão de falência ou desconsideração da personalidade jurídica e, como visto acima, o administrador da sociedade falida não é atingido pelos efeitos da falência. De qualquer modo, quaisquer discussões a respeito da possibilidade de extensão da falência ou dos seus efeitos aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores, e aos administradores da sociedade falida, ficam superadas com a inclusão na lei 11.101/2005 do art. 82-A, com a seguinte redação: "Art. 82-A - É vedada a extensão da falência ou de seus efeitos, no todo ou em parte, aos sócios de responsabilidade limitada, aos controladores e aos administradores da sociedade falida, admitida contudo, a desconsideração da personalidade jurídica. Parágrafo único - A desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para os fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, somente pode ser decretada pelo juízo falimentar com a observância do art. 50 da Lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil) e dos arts. 133, 134, 135, 136 e 137 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), não aplicada a suspensão de que trata o §3º do art. 134 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil)." O art. 82-A representa relevante avanço em favor do princípio da separação patrimonial entre a sociedade e o sócio de responsabilidade limitada, a sociedade e os seus administradores e entre sociedades do mesmo grupo, em primeiro lugar, em razão da norma contida no caput, ao vedar a extensão da falência. Além disso, ao mesmo tempo em que vedou a extensão da falência, o legislador ressalvou a possiblidade de desconsideração da personalidade jurídica da sociedade falida, para fins de responsabilização de terceiros, grupo, sócio ou administrador por obrigação desta, medida suficiente para coibir abusos e eventuais fraudes e, além disso, na perspectiva do credor, com resultado equivalente ao da falência, que é o de viabilizar a arrecadação de bens de terceiro para satisfação dos credores. A possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica como sucedâneo da extensão da falência atende o escopo de estimular o empreendedorismo e de manutenção das empresas viáveis, que poderão vir a responder por dívida da falida, mas não sendo atingidas pelos efeitos na falência, não serão dissolvidas e liquidadas. Ou seja, mantém-se a fonte produtora, o que se justifica na circunstância de que a falência não é medida sancionatória, como expressamente esclarece o art. 75 da lei 11.101/2005, na redação dada pela lei 14.112/2020, ao enumerar os objetivos da falência. Também de grande relevância para o direito positivo são as duas normas do parágrafo único do art. 82-A, a primeira esclarecendo que a desconsideração da personalidade jurídica deverá observar os requisitos do artigo 50-A do Código Civil, e a segunda ao condicionar a desconsideração da personalidade jurídica à instauração do incidente regulado no Código de Processo Civil de 2015. Antes da vigência do Código de Processo Civil de 2015, reconhecia-se o direito ao contraditório com base na garantia constitucional da ampla defesa e do contraditório (art. 5º, LIV e LV, da CRFB), havendo discussões sobre necessidade de contraditório prévio através de ação ordinária, matéria que o resolvida com a instituição do incidente de desconsideração da personalidade jurídica. Com o parágrafo único do art. 82-A incluído na lei 11.101/2005, as discussões ficam definitivamente superadas, pois o contraditório prévio, com a instauração do incidente passa a ser condição expressamente exigida na Lei para validade de decisão que desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade falida. Conclusões  O legislador de 2020, seguindo o caminho inaugurado com a Lei da Liberdade Econômica, prestigiou o princípio da separação patrimonial entre os sócios e as sociedades regularmente constituídas com apoio nas leis vigentes, com limitação da responsabilidade dos sócios, contribuindo, assim, para estimular o empreendedorismo. Fez isso com a inclusão na lei 11.101/2005 do art. 6º-C, que veda, expressamente, o redirecionamento de execução a terceiro em razão da falência do devedor, derrogando, portanto, pelo critério da anterioridade, os dispositivos de lei que indicavam a falência da sociedade devedora como fundamento para desconsideração da personalidade jurídica, caso, por exemplo, do CDC, e também com a inclusão do art. 82-A que veda, expressamente, a extensão da falência a sócios de responsabilidade limitada, controladores e aos administradores da sociedade falida. Ao mesmo tempo, o art. 82-A trouxe mecanismo suficiente para coibir o abuso da personalidade jurídica, ao dispor sobre a desconsideração da personalidade jurídica, mas exclusivamente, nas hipóteses do art. 50 do Código Civil e, em homenagem às garantias constitucionais da ampla defesa e do contraditório, determina que a desconsideração da personalidade jurídica se faça mediante prévia instauração do incidente regulado no Código de Processo Civil de 2015. __________ 1 Tepedino, Gustavo. Fundamentos do Direito Civil (p. 130). Forense. Edição do Kindle. 2 E os demais diplomas legais em que a falência era motivo para a desconsideração da personalidade jurídica. 3 "Art. 81. A decisão que decreta a falência da sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes, que ficam sujeitos aos mesmos efeitos jurídicos produzidos em relação à sociedade falida e, por isso, deverão ser citados para apresentar contestação, se assim o desejarem." 4 Recuperação judicial, extrajudicial e falência: teoria e prática. 3ª ed. Rio de Janeiro, Forense, 2017. p. 148. No mesmo sentido, João Pedro Scalzilli, Luis Felipe Spinelli e Rodrigo Tellechea: "O caput do art. 81 e os arts. 115 e os arts. 115 e 190 da LRFE estipulam que a decisão que decreta a falência de uma sociedade com sócios ilimitadamente responsáveis também acarreta a falência destes. Essa categoria de sócio também acaba inabilitada a desapossada de seus bens, o que, a contrario sensu, evidencia que os sócios de responsabilidade limitada não se sujeitam aos efeitos da falência" (Recuperação de Empresas e Falência, Almedina, 2016, pág. 2016, pág. 476. 5 Dentre as alterações introduzidas pela lei 14.112/2020 está a nova redação do caput do art. 104 para, adotando melhor técnica, esclarecer que os deveres impostos nos seus incisos I a XII cabem aos representantes legais do falido, que, não obstante a sujeição a deveres como, por exemplo, o dever de assinar termo de comparecimento e prestar informações (inciso) não é falido.
A falência, segundo o novo art. 75, parágrafo segundo, da lei 11.101/05, incluído pela lei 14.112/20, também é mecanismo de preservação dos benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial (empregos, produtos, serviços, tributos etc) assim como a recuperação judicial. Ambas as ferramentas do tratamento da insolvência no Brasil possuem objetivos comuns, mas os métodos para o seu atingimento são diferentes. Na recuperação judicial, tem-se uma empresa em crise, porém viável. Assim, busca-se criar condições para superação da crise através da negociação entre os agentes do mercado. Na falência, por outro lado, tem-se uma empresa em crise em razão de sua total inviabilidade. Não há possibilidade de manutenção daquela atividade empresarial. Assim, a falência buscar preservar os benefícios econômicos e sociais decorrentes da atividade empresarial pela liquidação imediata do devedor, abrindo-se o espaço de mercado para o surgimento de uma nova atividade empresarial geradora de empregos, tributos, produtos, serviços e riquezas, bem como pela realocação útil dos ativos da falida em outras cadeias produtivas, fazendo com que tais ativos voltem a ser fonte daqueles mesmos benefícios econômicos e sociais já mencionados. Entretanto, para que a falência seja eficiente e funcione como um instrumento de saneamento do mercado, é necessário que além de criar condições para preservação dos benefícios decorrentes da atividade empresarial (pela substituição do agente e pela realocação dos ativos) também viabilize ao empreendedor uma nova chance, um recomeço na atividade empresarial. Isso é importante pois, do contrário, desapareceriam da sociedade os empreendedores e com isso desapareceria também a atividade empresarial. Tendo em vista que a atividade empresarial envolve risco e que é comum que um negócio não prospere, condenar aqueles que tentaram empreender ao ostracismo empresarial é conduta que prejudica brutalmente a atividade de empreendedorismo. Nesse sentido, a reforma também se preocupou com a reabilitação do falido, oferecendo aos empresários desaventurados uma nova chance de empreender. No sistema brasileiro, o falido é o empresário individual ou a sociedade empresária, não os seus sócios. Entretanto, dependendo do modelo societário ou da posição exercida pelo sócio, os representantes legais da sociedade falida podem suportar as limitações processuais e de atuação profissional decorrentes da falência da empresa. Os sócios de sociedades de responsabilidade ilimitada ou que representam e administram a sociedade de responsabilidade limitada (diretores/administradores) são equiparados ao empresário individual para fins dos encargos processuais e restrição profissional, conforme se depreende do art. 81, parágrafo segundo, e do art. 102 da lei 11.101/05. Quanto à responsabilidade civil, somente os sócios de responsabilidade ilimitada podem ter seu patrimônio pessoal arrecadado (embora devam ser vendidos os bens da sociedade em primeiro lugar). São considerados falidos, a teor do art. 81 da lei 11.101/05. Nesse sentido, os sócios diretores/administradores de uma sociedade falida (ou os sócios de uma sociedade de responsabilidade ilimitada) somente estarão autorizados a exercer novamente a atividade empresarial depois de extintas as suas responsabilidades e de devidamente reabilitados, nos termos da lei. O tratamento que a lei 11.101/05 conferia ao empresário falido, no que tange às extinções de suas obrigações e à sua reabilitação para voltar a empreender condenava o falido a uma pena perpétua de inabilitação comercial. Conforme dispunha o sistema revogado, o falido ficava inabilitado para exercer qualquer atividade empresarial a partir da decretação da falência e até a sentença que extingua suas obrigações.  Mas o art. 158 da lei 11.101/05, antes da reforma, dispunha que as obrigações do falido seriam extintas somente ao término do processo de falência, mediante o pagamento integral dos créditos ou mediante o pagamento de mais de 50% dos créditos quirografários. Caso não existisse ativo suficiente para esses pagamentos, a extinção das obrigações do falido ocorreria somente depois do decurso do prazo de 5 ou 10 anos, contados do encerramento da falência, conforme o falido tenha ou não sido condenado por crime falimentar. Tendo em vista que o sistema revogado vinculava o início do prazo de reabilitação do falido (em casos de falências sem ativos suficientes para o pagamento dos credores) ao encerramento do processo de falência e considerando que o término da falência demorava muitos anos para ocorrer, o falido ficava, na prática, condenado a uma pena quase que perpétua de inabilitação comercial. Esse tratamento legal tornava o pedido de autofalência, na prática, um suicídio empresarial. Nenhum empresário desejava buscar a decretação de sua falência, na medida em que ficaria vinculado a um processo de longuíssima duração sem a oportunidade de poder reempreender. O novo sistema trazido pela lei 14.112/2020 facilitou a extinção das obrigaçoes do falido ao diminuir de 50% para 25% o limite mínimo de pagamento dos credores quirografários (art. 158, II) e, principalmente, ao dispor que decorrido o prazo de 03 anos da decretação da quebra, o falido já pode ter extintas as suas obrigações mediante a entrega do patrimônio sujeito à falência (art. 158, V). O art. 159, por sua vez, dispõe que nessas hipóteses acima, o falido poderá requerer ao juízo de falência que suas obrigações sejam declaradas extintas por sentença. Dessa forma, o novo sistema de insolvência empresarial brasileiro, ao permitir que o falido possa voltar às atividades de empreendedorismo em prazo razoável (03 anos depois da decretação da falência) alinha-se aos mais modernos diplomas falimentares e passa a oferecer mecanismos de incentivo ao reemprendedorismo aos empresários e sociedades empresárias. Uma consequência ainda pouco percebida dessa nova regulação é a de que a autofalência agora surge como opção interessante para o enfrentamento da crise de uma empresa inviável. Isso porque, pode ser mais vantajoso ao empresário buscar a extinção de suas responsabilidades e sua reabilitação através de um processo célere (03 anos) ao invés de se aventurar numa recuperação judicial sem chances de êxito e que acabará sendo convolada em falência. Na prática, muitos processos de recuperação judicial são ajuizados como uma tentativa desesperada de se evitar a falência. Empresas inviáveis tentam postergar uma inevitável falência através do ajuizamento de recuperações judiciais que já nascem sem chances de êxito. Compreende-se essa conduta quase como um ato de legítima defesa, uma tentativa do empresário de não se tornar falido e, portanto, de não se tornar um pária do sistema econômico. Doravante, com o novo sistema de fresh start, a autofalência surge como uma opção razoável de tratamento da crise da empresa, permitindo ao empresário o encerramento de suas atividades, com extinção de suas responsabilidades e retorno ao mundo empresarial no prazo de 03 anos. É a autofalência no cardápio do tratamento da crise da empresa!
terça-feira, 4 de maio de 2021

A cooperativa na reforma da lei 11.101/05

Na coluna do dia 3 de março de 2020 tratei da insolvência das cooperativas, e me concentrei no exame de alguns aspectos da lei 5.471/71, que é a chamada lei das cooperativas. Hoje quero falar sobre a reforma da lei 11.101/05, introduzida pela lei 14.112/2020, e que tem provocado alguma celeuma sobre o seu impacto nas cooperativas. As cooperativas, como regra geral, estão afastadas do regime de insolvência da lei 11.101/05. Essa afirmativa pode ser feita sem nenhum receio. Pode-se dizer que, de lege lata, essa é a única interpretação possível. Ainda que se queira ver a cooperativa como um agente econômico organizado sob a forma de empresa, que de fato é, ela não pode ajuizar a ação de recuperação judicial, por opção do legislador. Há quem sustente que a previsão do inciso II do art. 2º, que estatui não se aplicar a lei 11.101/05 a cooperativa de crédito implica dizer que as demais cooperativas estão autorizadas a ajuizar a recuperação. O raciocínio seria o seguinte. Como a lei só excluiu do regime da lei 11.101/05 as cooperativas de crédito, automaticamente teria admitido que as demais cooperativas possam ajuizar recuperação judicial. O equívoco interpretativo reside no seguinte ponto. A restrição do inciso II do artigo 2º não significa dilatação do âmbito de aplicação do artigo 1º da lei 11.101/05. Por outras palavras, a previsão expressa de não cabimento da recuperação judicial para as cooperativas de crédito não leva, não transforma, as demais cooperativas em sociedade empresária. Por que o inciso II do artigo 2º da lei 11.101/05 só se refere às cooperativas de crédito não significa que as demais sociedades cooperativas estão, automaticamente, enquadradas no regime do artigo 1º da lei 11.101/05. Pode ser dito ainda que a previsão do inciso II do artigo 2º não transforma a sociedade cooperativa de sociedade simples em sociedade empresária. Não duvido, porém, que a jurisprudência brasileira, que sempre foi voluntarística em relação à crise da empresa, e isso vem desde o regime da concordata preventiva da lei de insolvência de 1945, acabe por aceitar o processamento de recuperação judicial de cooperativas. As perplexidades que a concordata preventiva suscitava, e que causaram a perda de sua credibilidade, ainda que seu perfil fosse de reduzida eficácia, vão sendo reproduzidas na vigência da lei 11.101/05, e, talvez, até com mais intensidade. O fato de certo ente jurídico ser um agente econômico não é suficiente para o uso da recuperação judicial, que não é um dado da natureza, senão uma criação jurídica, um instituto que tem seus contornos estabelecidos pela lei, cuja observância, no estado de direito, é imperativo democrático e respeito à separação de poderes. A reforma advinda da lei 14.112/2020 contém previsões acerca das cooperativas. Elas estão muito mal alocadas, pois inseridas no artigo 6º, § 13, quando, ao menos formalmente, deveriam estar contempladas ou no artigo 49 ou no artigo 1º. Porém, esse é um aspecto de menor relevância, dado o contexto legislativo em que vivemos. O § 13 do artigo 6º, na redação dada pela lei 14.112/2020, está assim redigido: "Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica". São dois os assuntos contidos nesse dispositivo. O primeiro, diz respeito à não submissão de créditos e o segundo (na parte em itálico do dispositivo acima transcrito) à legitimidade ativa de uma entidade jurídica. Como se verá, não há nexo lógico nem jurídico entre os dois temas tratados no dispositivo. A primeira parte do § 13 tem o seguinte significado. Uma vez admitida a recuperação judicial do produtor rural, a lei estabelece exclusão de crédito dos seus efeitos. Assim, estão excluídos da recuperação judicial do produtor rural o crédito da cooperativa à qual é cooperado ou associado. Note-se que, aqui, a cooperativa é credora e mantém  incólume o seu direito de crédito. Ao que tudo indica, a ratio legis é a proteção da cooperativa, tendo em vista os princípios que governam a sua idealização e concretização, cujo crédito não será reestruturado como os demais créditos sujeitos o serão. Ato cooperativo é o ato celebrado entre a cooperativa e o seu cooperado (vide definição no art. 79 da lei 5.674/71). Somente o crédito oriundo dessa relação está excluído da recuperação judicial do produtor rural. Duas observações se impõem: a) caso exista relação jurídica entre o produtor rural e a cooperativa que integra, e que não se caracterize como ato cooperativo, o respectivo crédito estará submetido à recuperação judicial, presentes os demais requisitos (art. 49); b) eventual dívida que o produtor rural tenha para com uma cooperativa da qual não seja associado, não é dívida oriunda de ato cooperativo, e, então, poderá ser crédito submetido ao processo de recuperação, respeitado o comando do artigo 49 da lei 11.101/05. A reforma da lei, aliás, pode ser interpretada como um retrocesso para o produtor rural, pois, além da restrição do crédito decorrente de ato cooperativo, ainda viu excluído o crédito decorrente de cédula de produto rural física (CPR com liquidação física). (art. 11 da lei 8.929/1994, na redação dada pela lei 14.112/2020. A segunda parte do § 13 do artigo 6º tem uma redação curiosa: "...consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica". Da primeira parte do dispositivo, que cuida de exclusão de crédito, a própria lei extrai uma consequência. Note-se que o legislador saiu do campo prescritivo e foi ao campo doutrinário, no qual é próprio o caráter descritivo. Extrair consequência de uma norma é descrever seu âmbito de incidência e, portanto, é tarefa da doutrina, e não da lei. O ponto é recheado de perplexidades. Não há antecedente lógico que suporte a consequência estabelecida; não há premissa que sustente a consequência que a própria lei extraiu. Pode-se dizer que o legislador é um péssimo intérprete do seu próprio texto. Em termos lógicos, a previsão do § 13 do artigo 6º da lei 11.101/05 é um verdadeiro desastre. Em termos gramaticais, consequentemente é uma conjunção (conclusiva ou ilativa), e já vimos que não há nenhuma relação com a primeira oração do parágrafo. Excluir crédito (primeira parte) não se afeiçoa, nem longinquamente, com a legitimidade ativa assegurada pela segunda parte do dispositivo. Há, na realidade, uma falsa oração subordinada, pois, para que ela se caracterize, a ligação entre as duas proposições exige que "uma esteja contida na outra como o efeito na causa" (Carneiro Ribeiro), e não é o que ocorre na espécie. Nada foi alterado em relação à oração subordinante. Em termos lógicos e gramaticais, não há congruência alguma no texto. É precisa, a respeito, a lição de Fábio Ulhoa Coelho1: "Não é possível, sob o ponto de vista lógico, extrair qualquer conclusão de algo que não está sedimentado na premissa. Quer dizer, não é possível extrair-se de norma sobre cooperativas credores nenhuma consequência acerca de cooperativas devedoras" (itálico do original). Poder-se-ia tentar salvar o preceito recorrendo-se ao canône hermenêutico que procura aproveitar as palavras da lei, que não conteria nenhuma inutilidade. Para salvar o dispositivo, nessa linha e argumentação, seria preciso conferir certa autonomia à parte final do texto legal em relação à primeira parte. Ter-se-ia de dizer que a segunda parte do § 13 do artigo 6º, da lei 11.101/05, é um verdadeiro parágrafo dentro do parágrafo, que contém regra própria e autônoma em relação à primeira oração. Ter-se-ia, então, a seguinte conclusão: "não se aplica a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica". Trata-se de um preceito possível, evidentemente, pois, a critério do legislador, elege-se tal ou qual sociedade para este ou aquele regime de insolvência, pois não temos, entre nós, ao menos por enquanto, um regime universal de insolvência. Ocorre que essa conclusão tem um complicador fatal.  O comando legislativo, segundo o qual as operadoras de plano de assistência à saúde, instituídas sob a forma de cooperativas, não se submetem à restrição do inciso II do artigo 2º da lei 11.101/05, surgiu apenas no Senado Federal. Não houve apreciação desse tema por ocasião de sua tramitação na Câmara dos Deputados. No Senado Federal, a oração surbordinada "consequentemente não se aplicando a vedação contida no inciso II do art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica" foi admitida como emenda de redação, o que não corresponde à realidade. É evidente que se trata de um assunto relevante e importante, mas completamente dissociado da oração subordinante, contida na primeira parte do § 13. O texto que admite um novo regime jurídico para uma espécie societária não é apenas uma emenda de redação, sem alteração de texto normativo. Em termos jurídicos, a inovação é muito grande, sem que haja pertinência com a exclusão de crédito perpetrada pela primeira parte do dispositivo legal. A conclusão definitiva a ser extraída é a de que é inconstitucional a parte final do parágrafo treze do artigo 6º da Lei de Falências e Recuperação de Empresas, o que já foi notado por Fábio Ulhoa Coelho2 e por Marcelo Barbosa Sacramone. Diz o artigo O STF apreciou assunto dessa natureza no julgamento da ação declaratória de constitucionalidade nº 3, j.02-12-1999, rel. Min. Nelson Jobim. Transcrevo trecho de interesse para esta coluna: "O retorno do projeto emendado à Casa iniciadora não decorre do fato de ter sido simplesmente emendado. Só retornará se, e somente se, a emenda tenha produzido modificação de sentido na proposição jurídica. Ou seja, se a emenda produzir proposição jurídica diversa da proposição emendada. Tal ocorrerá quando a modificação produzir alterações em qualquer um dos âmbitos de aplicação do texto emendado: material, pessoal, temporal ou espacial. Não basta a simples modificação do enunciado pela qual se expressa a proposição jurídica. O comando jurídico - a proposição - tem que ter sofrido alteração. O conceito de emenda de redação é: modifica-se o enunciado, sem alterar a proposição" (sem grifo no original). Definitivamente, não foi o que ocorreu com a Lei 14.112/2020, cujo trâmite, no Senado Federal, trouxe inequívoca alteração da proposição aprovada pela Câmara dos Deputados. Ora, o texto aprovado pela Câmara Federal continha a seguinte e única previsão: "Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do art. 79 da Lei no 5.764, de 16 de dezembro de 1971." (NR). Já a redação aprovada pelo Senado Federal, que se se tornou lei, é a seguinte, com o perdão pela insistência: § 13.  Não se sujeitam aos efeitos da recuperação judicial os contratos e obrigações decorrentes dos atos cooperativos praticados pelas sociedades cooperativas com seus cooperados, na forma do Art. 79 da lei 5.764, de 16 de dezembro de 1971, consequentemente, não se aplicando a vedação contida no inciso II do Art. 2º quando a sociedade operadora de plano de assistência à saúde for cooperativa médica.   A parte final (em negrito) é rigorosamente autônoma em relação à primeira parte, e ela pretende assegurar a legitimidade para as cooperativas de planos de saúde ajuizarem recuperação judicial. Trata-se de clara inovação legislativa, e não de emenda de redação, e, por isso, está contrariado o disposto no artigo 65, parágrafo único, da Constituição Federal, segundo o qual: "sendo o projeto emendado, voltará à Casa iniciadora". O Regimento Interno das Casas do Congresso, no artigo 135, prevê que "A retificação de incorreções de linguagem, feita pela Câmara Revisora, desde que não altere o sentido da proposição, não constitui emenda que exija sua volta `à Câmara iniciadora". Na interpretação a contrario sensu, a norma regimental só admite a chamada emenda de redação quando se assentar em dois pressupostos: a) correção de linguagem; b) manutenção do sentido da proposição. Como, na espécie ora comentada, não se trata de correção de linguagem, ter-se-ia de examinar se se trata de alteração de sentido da proposição. Ora, não há a menor dúvida de que houve alteração de sentido, e de larga magnitude. Jamais se poderá inferir que, da redação aprovada pela Câmara Federal, as cooperativas de planos de saúde estariam autorizadas a ajuizar a recuperação judicial. Essa fórmula de legislar (a mídia diz que se trata de inserir um jabuti no projeto), tão depreciadora do trabalho legislativo, é causa de forte insegurança jurídica. Caso não haja rápido pronunciamento do STF a respeito da matéria, a jurisprudência, por certo, oscilará, o que não é nada conveniente para quem experimenta crise econômico-financeira. Um outro aspecto da inovação implementada exclusivamente pelo Senado Federal é a distorção no mercado. A administração de planos de saúde é uma atividade que depende de especial autorização do estado para funcionamento, com controles intensos, ao longo do exercício da atividade, de diversos aspectos, inclusive o da liquidez e solvência do administrador que recolhe recursos do público em geral. Admitida a recuperação judicial da cooperativa administradora de planos de saúde, as demais sociedades que atuam no mesmo mercado terão recebido tratamento distinto, pois a insolvência de uma sociedade anônima ou limitada passará pelos regimes especiais de direito público (intervenção e liquidação extrajudicial, entre outros).  E fica ainda a seguinte perplexidade: a ANS poderá decretar a liquidação extrajudicial da cooperativa, a despeito de ela poder ajuizar a recuperação judicial? Ou ficará derrogada a atuação da ANS no que concerne à insolvência da cooperativa médica? O assunto é muito sério para ser tratado como uma mera emenda de redação, pois, na verdade, provoca uma profunda alteração na sistemática regulatória da atividade de administração de planos de saúde. Em conclusão, tem-se: a) cooperativa de crédito não pode fazer uso da recuperação judicial; b) crédito de cooperativa está excluído dos efeitos do processo de recuperação judicial do produtor rural, desde que se refira a ato cooperativo; c) as cooperativas, de modo geral, não têm legitimidade ativa para o ajuizamento da recuperação judicial; d) ainda que as cooperativas sejam agentes econômicos, a lei, ao caracterizá-la como sociedade simples, afastou-a do regime da insolvência da sociedade empresária; e) pretendeu-se reconhecer legitimidade à cooperativa médica para ajuizar recuperação judicial. Porém, a previsão, tal como consta da lei 11.101/05, é inconstitucional. __________ 1 Comentários à Lei de Falências e de Recuperação de Empresas, 14ª ed., complemento de rejeição dos vetos. São Paulo, RT, p. 3. 2 Ob.cit., p. 3. No mesmo sentido, Marcelo Barbosa Sacramone, coluna Insolvência em Foco, Migalhas, 30/03/2021.