1) Um
leitor diz ter lido, como plural da expressão amicus
curiae, a expressão
amici curiae.
E indaga se isso é correto.
2) Essa é
uma expressão latina (pronuncia-se amícus cúrie), que significa,
na origem, amigo da corte e foi introduzida em nosso ordenamento para significar
a intervenção de entidades que, mesmo não sendo partes, se munem de
representatividade adequada para contribuir com elementos significativos em
questões de direito em demanda que diga respeito a controle de
constitucionalidade.
3) Quanto a
seu plural, as opiniões se dividem: a) alguns querem que a expressão fique
invariável, e, assim, que se reconheça seu plural apenas pela anteposição do
artigo ou outro vocábulo que indique tal circunstância (o
amicus curiae, os amicus
curiae); b) outros querem que, além do artigo, também o primeiro
vocábulo da expressão vá para o nominativo plural latino (o
amicus curiae, os amici
curiae). Essa última posição é majoritária, e desse modo é que
o próprio Supremo Tribunal Federal manda pluralizar a expressão em seu site.
Dicionários jurídicos ingleses adotam idêntica postura.
4) Em
realidade, quanto ao polêmico e tormentoso problema da pluralização de palavras
e expressões de outros idiomas ainda não incorporadas ao vernáculo, desde logo
se observa não haver regramento específico por parte dos órgãos competentes, e,
assim, o que se tenta aqui é equacionar o assunto por um raciocínio
cientificamente correto, com o acompanhamento do bom-senso que deve nortear
soluções dessa natureza.
5) Com essa
observação, fixa-se a premissa de que palavras e expressões de outros idiomas
podem cristalizar-se no vernáculo de maneiras diversas: a) campus veio na forma
do nominativo singular (caso latino que serve para vestir a função sintática de
sujeito); b) quorum sedimentou-se aqui na forma do genitivo plural (caso que
serve para exercer a função do antigo complemento restritivo, hoje adjunto
adnominal); c) a quo veio na forma do ablativo singular por
regência da preposição antecedente (caso que normalmente serve para desempenhar
a função sintática de complemento circunstancial, hoje adjunto adverbial); d)
ad quem, também por regência da preposição antecedente, veio no
acusativo singular (que, normalmente, serve para desempenhar a função de objeto
direto).
6) E, como
não é difícil compreender nem observar, mesmo para aqueles que não possuem
rudimento algum do latim, essa cristalização do vocábulo estrangeiro em nosso
idioma e seu emprego em estruturas sintáticas vernáculas normalmente ocorrem do
seguinte modo: a) não há preocupação alguma sobre qual seja a função sintática
de tal palavra na oração em português; b) no vernáculo, não se estabelece
vínculo algum com a estrutura sintática em latim; c) não se procede a ligação
alguma com a conduta ou a flexão do vocábulo ou expressão no idioma de origem.
7) Em
continuação, para facilitar o raciocínio no caso concreto, considerem-se, em
português, os seguintes exemplos, com a especificação da função sintática da
palavra amicus neles empregada: a) "O
amicus
curiae apresentou sua manifestação" (sujeito); b) "O
Ministro questionou o amicus
curiae" (objeto direto); c) "O
Ministro questionou os amicus
curiae" (objeto direto); d) "O
Ministro deu a palavra ao amicus
curiae" (objeto indireto); e) "O
Ministro deu a palavra aos amicus
curiae"; f) "A manifestação
dos amicus
curiae foi precisa e concisa" (adjunto adnominal).
8)
Partindo-se do princípio de que não se há de pretender flexionar pela metade a
palavra ou expressão no idioma de origem (ou seja, mandando-a para o plural na
língua de origem, mas apenas no caso latino em que se cristalizou no vernáculo),
e considerando-se que, além da variação em gênero e número, o latim ainda tem a
flexão dos substantivos em caso (a ser determinada pela função sintática que o
vocábulo exerce na oração), forçoso é concluir que, se alguém quer levar o
vocábulo amicus para o plural latino
nos exemplos acima, também deve, por coerência, alterá-lo quanto ao caso, de
acordo com a função sintática que o vocábulo exerce na oração. E, assim, veja-se
o resultado desastroso nos exemplos anteriormente formulados: a) "O
amicus
curiae apresentou sua manifestação" (sujeito); b) "O
Ministro questionou o amicum
curiae" (objeto direto); c) "O
Ministro questionou os amicos
curiae" (objeto direto); d) "O
Ministro deu a palavra ao amico
curiae" (objeto indireto); e) "O
Ministro deu a palavra aos amicis
curiae"; f) "Foi precisa e
concisa a manifestação dos amicorum
curiae" (adjunto adnominal).
9) Não é
difícil perceber as implicações desse raciocínio: a) um emprego assim requer do
usuário do vernáculo uma informação que ele normalmente não tem; b) ou seja:
exige dele conhecimentos razoáveis de latim, que já não é ensinado em nossas
escolas faz um bom tempo; c) além disso, a par de não haver gênero neutro em
português, também não há correspondência absoluta de gênero em ambos os idiomas;
d) isso significa que um vocábulo feminino em latim pode ter vindo para o
masculino em português, e vice-versa.
10) E não é
só: a adoção do critério aqui combatido exige coerência, de modo que deveria dar
algum tipo de solução parecida para a seguinte frase: "A nova ombudsman da
Folha manifestou-se veementemente contra a opinião do jornal". Vale dizer:
deveria fazer as adaptações necessárias, conforme se tratasse de feminino ou de
plural.
11) Por
isso, com o devido respeito por aqueles que pensam de modo diverso - e são
maioria, além de contar, entre nós, com o aval do próprio Supremo Tribunal
Federal em seu site - , a melhor solução para a pluralização de tais palavras ou
expressões estrangeiras em português parece obedecer aos seguintes parâmetros:
a) devem desvincular-se de sua função sintática de origem para efeito de sua
flexão em português, quer quanto ao gênero (masculino ou feminino), quer quanto
ao número (singular ou plural), quer mesmo quanto ao caso (nominativo, vocativo,
genitivo, dativo, ablativo e acusativo); b) devem ser empregadas, assim, como
acabaram por sedimentar-se em português, sem variações, adaptações ou tentativas
de acertamento em nosso idioma; c) apenas sua pluralização em português deve
obedecer aos critérios de nosso idioma (normalmente com o acréscimo de s); d) no
caso de amicus, como já existe o s no
singular, o reconhecimento do plural se dá pela flexão de outra palavra que se
agrega a tal substantivo (o amicus,
os amicus).
11)
Vejam-se, assim, as seguintes frases, quando se segue esse critério: a) "O
amicus
curiae apresentou sua manifestação"; b) "Os
amicus
curiae apresentaram suas manifestações"; c) "O Ministro
questionou o amicus
curiae"; d) "O Ministro
questionou os amicus
curiae"; e) "O Ministro deu a palavra
ao amicus
curiae"; f) "O Ministro deu a palavra aos
amicus
curiae"; g) "A manifestação do
amicus curiae foi
precisa e concisa"; h) "A manifestação dos
amicus curiae foi precisa
e concisa".
12)
Qualquer outra solução - sempre com o devido respeito pelos que pensam de modo
diverso - afronta a etimologia, fere os critérios mínimos científicos e
marginaliza o próprio bom-senso, além de fazer do emprego de vocábulos e
expressões dessa natureza, no vernáculo, uma armadilha e um tormento adicional
gravíssimo para o usuário médio do idioma.