1) Em expressões dessa natureza, ao menos cinco problemas podem surgir:
a) por primeiro, se é ou não correto o uso do numeral cardinal (vinte e duas), ou se o adequado é o ordinal (vigésima segunda);
b) ao depois, é de se definir qual preposição se usa (a ou em), e também se se emprega apenas a preposição, ou também o artigo (a ou às);
c) em continuação, há de se resolver se a segunda palavra da expressão fica no singular ou vai para o plural (folha ou folhas);
d) em quarto lugar, impende solucionar se o numeral fica invariável no masculino, ou se flexiona em concordância com o substantivo modificado (vinte e dois ou vinte e duas);
e) por fim, resta saber o adequado modo de abreviar o substantivo da indigitada expressão (fl. ou fls.).
2) De início, quanto ao emprego de números cardinais ou ordinais, ao lecionar que "por amor da brevidade empregam-se muitas vezes os numerais cardinais em vez dos ordinais, quando estes são muito extensos", lembra Alfredo Gomes, sem condenação alguma e até mesmo com aprovação implícita, a possibilidade do uso de ambos, "quando queremos designar ...a folha de um volume": "A folhas novecentas e trinta e uma do seu dicionário encontrará... o significado desta palavra".1
3) Para Napoleão Mendes de Almeida, a expressão em epígrafe, tida por ele como correta, significa "a vinte e duas folhas do início do trabalho".2
4) Exatamente com tal estrutura, Vitório Bergo, que cita exemplo de Camilo Castelo Branco, confirma tratar-se de "boa sintaxe, de que se servem excelentes escritores".3
5) Em tais casos, o fato de tomar o numeral cardinal o lugar do numeral ordinal é considerado estrutura perfeitamente correta por João Ribeiro, para quem "os ordinais podem ser substituídos por cardinais, especialmente em números altos".4
6) No segundo aspecto fulcral desse problema "de se definir qual preposição se usa (a ou em), e também se se emprega ou não artigo (a ou às) - observa-se, desde logo, o posicionamento de Silveira Bueno de aceitar o uso de ambas as preposições, a e em: "o lugar onde pode ser indicado pela preposição a ou em - estar à porta, estar na porta; estar na janela, estar à janela. Em Portugal prefere-se a preposição a; no Brasil, a preposição em: com a cruz às costas; com a cruz nas costas".5
7) Eliasar Rosa - além de justificar o emprego de em folhas - refere a possibilidade concomitante de uso das expressões à folha, às folhas e a folhas, observando que, "na última forma, não se usa o sinal de crase, por só estar folhas no plural".6
8) Observando que o uso forense consagrou há muito as expressões a folhas e de folhas, Geraldo Amaral Arruda anota ser freqüente encontrar a primeira das locuções como se houvesse também o artigo as (às folhas).
9) Aconselha tal autor, entretanto, ser melhor dizer a folhas, "da mesma forma que nos referimos a documento de folhas".7
10) Em outra passagem de mesma obra, tal autor, invocando lição de Napoleão Mendes de Almeida, reitera que "as regras gramaticais autorizariam também o uso de às folhas ou nas folhas, em determinados textos", mas observa que "nada recomenda o abandono da fórmula tradicional do foro (a folhas), mesmo porque corresponde à outra locução em que entra a preposição de".
11) E acrescenta: "de fato, se escrevemos 'conforme documento de fls. 10' (e não 'das folhas 10'), não há por que não escrever também 'documentos 'juntados a fls.'".
12) E conclui tal autor ser "preferível, na linguagem forense, manter o uso tradicional. Mas isso não importa em considerar errôneos outros usos". Gramaticalmente, assim, tanto é correto escrever na folha tal como à folha tal, ou a fls. tais.8
13) Quanto ao terceiro problema de expressão desse jaez - de se resolver se a segunda palavra da expressão fica no singular ou vai para o plural (folha ou folhas) - além da própria observação advinda dos exemplos dos demais autores, vale trazer o abono do ensinamento de Luís A. P. Vitória, que considera corretas ambas as expressões: à folha cinco e a folhas cinco.9
14) Nessa mesma esteira é a lição de Silveira Bueno: "Se o sr. admitir que os cardinais estão empregados pelos ordinais, poderá deixar no singular o substantivo: ...folha vinte e um, isto é, ...folha vigésima primeira... Evidentemente, em tais expressões, ainda que tomemos a forma plural ...folhas, sempre entendemos referir-nos ao singular".10
15) No que tange ao quarto problema dessa expressão - solucionar-se o numeral fica invariável no masculino, ou se flexiona em concordância com o substantivo modificado (vinte e dois ou vinte e duas) - vê-se que, por primeiro, Celso Cunha, de modo bem simples, equipara o caso ao da enumeração de casas, apartamentos, quartos de hotel, cabines de navio e poltronas de casas de diversão, mandando empregar os cardinais e justificando que "nesses casos sente-se a omissão da palavra número". E exemplifica: folha 8,11 podendo-se notar, em sua explanação, que a palavra folha vem sempre no singular.
16) De igual modo, refere Edmundo Dantès Nascimento que se diz, na linguagem forense, "a fls. trinta e duas".12
17) Já para Vitório Bergo se há de dizer folha dois, e não folha duas, "porquanto o adjetivo determinativo numeral cardinal fica invariável quando equivale ao ordinal".13
18) Aires da Mata Machado Filho, por sua vez, num primeiro momento, observa que "os numerais cardinais empregados por ordinais ficam às vezes no masculino, subentendo-se número".
19) Escudando-se, a seguir, no magistério de Antenor Nascentes, complementa, sem cunho algum condenatório de construção diversa, que tal posicionamento "não é observado na linguagem do foro, em que se diz: "a folhas trinta e uma".14
20) Evanildo Bechara, nessa mesma esteira, ao tratar do emprego dos cardinais pelos ordinais, muito embora diga não ocorrer normalmente sua flexão (página um, figura vinte e um), defende a possibilidade de, na linguagem jurídica, dizer-se "a folhas vinte e uma", "a folhas quarenta e duas".15
21) Eduardo Carlos Pereira, a par da observação genérica de que "os numerais cardinais, empregados pelos ordinais, não recebem flexão feminina" - página dois, casa vinte e um - acrescenta que, "na linguagem forense", se diz a folhas trinta e duas".16
22) Luiz Antônio Sacconi observa, por primeiro, que, "a título de brevidade, usamos constantemente os cardinais pelos ordinais" - casa vinte e um, página trinta e dois - para complementar, em seguida, que "os cardinais um e dois não variam nesse caso porque está subentendida a palavra número".
23) Por outro lado, sem outras explicações, acrescenta textualmente que, "na linguagem forense, vemos o numeral flexionado: a folhas vinte e uma, a folhas trinta e duas".17
24) Acrescente-se que também Carlos Góis, num primeiro aspecto, assim leciona: "Deixam de flexionar-se em gênero os adjetivos numerais cardinais, quando empregados em substituição aos ordinais. Assim deve dizer-se: 'Página dois' - e não 'Página duas'; 'Casa trinta e um' - e não 'Casa trinta e uma'".
25) Num segundo aspecto, todavia, excetua da regra tal gramático o estilo forense, em que justifica ser "corrente dizer: a folhas vinte e duas, trinta e duas...".18
26) Ainda a respeito da flexão para o feminino ou não em tais casos, Silveira Bueno resume a questão em duas regras:
a) "Nestas expressões em que entram cardinais que possuem terminações próprias para ambos os gêneros, como um, uma, dois, duas, manda o uso que se não faça a concordância da expressão numérica com o gênero do substantivo, mas com o vocábulo subentendido número. Assim: página dois, casa trinta e um, e não página duas, casa trinta e uma";
b) "Admite-se a exceção da linguagem forense onde se dá tal concordância: folhas vinte e duas".19
27) Para a possibilidade de deixar sem flexão um numeral, em discordância com o substantivo a que se refere, assim justifica Júlio Nogueira: "em vista de serem variáveis em gênero somente os numerais um e dois, o emprego deles, às vezes, também se faz como se fossem invariáveis: folha um".20
28) Quanto ao quinto e último problema que normalmente ocorre com tal expressão - saber o adequado modo de abreviar o substantivo nela existente (fl. ou fls.) - não se pode esquecer que o próprio Formulário Ortográfico oficial, que traz registradas as "reduções mais correntes", com a explicação de que "uma palavra pode estar reduzida de duas ou mais formas",21 não mostra uniformidade, é confuso e deficiente nesse campo, deixando sem solução diversos problemas.
29) Por essa razão, quando se abreviar, deve-se ter em mente a advertência de Napoleão Mendes de Almeida: "O que a abreviatura, contração ou sigla deve objetivar é a clareza; alcançada esta, não cabem objeções".22
30) Vale dizer: o melhor é concluir que o usuário do idioma desfruta de certa liberdade para abreviar as palavras e expressões, guardados determinados parâmetros e princípios, razão pela qual a abreviatura de folhas tanto pode ser fl. quanto fls.
31) Registre-se apenas que, a esse respeito, realça Geraldo Amaral Arruda que a locução a fls., muito usada na linguagem forense, "é uma forma tradicional e gramaticalmente justificada".23
32) Quanto a todos os problemas apresentados, assim se podem resumir as lições referidas:
a) tanto se pode usar o numeral cardinal quanto o ordinal, estando aquele em lugar deste, por amor à brevidade (folhas vinte e dois ou folha vigésima segunda);
b) podem-se usar as preposições a ou em (indiferentemente) ou mesmo de, conforme o caso, daí resultando as associações a folha, à folha, a folhas (jamais à folhas), às folhas, em folhas, na folha, nas folhas, não se devendo olvidar a possibilidade de existência de de folhas;
c) a segunda palavra da expressão fica no singular ou vai para o plural, indiferentemente (folha ou folhas);
d) no que concerne aos textos jurídicos e forenses, o numeral da expressão fica invariável no masculino, ou se flexiona, optativamente, em concordância com o substantivo modificado (vinte e dois ou vinte e duas);
e) quanto ao adequado modo de abreviar o substantivo da indigitada expressão (fl. ou fls.), fica ao usuário do idioma a liberdade para abreviar de uma ou de outra forma, apenas com a ressalva de que não empregará fls. Como forma reduzida de folha.
___________
1Cf. GOMES, Alfredo. Gramática Portuguesa. 19. ed. Livraria Francisco Alves, 1924. p. 356.
2Cf. ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo: Editora Caminho Suave Ltda., 1981. p. 2.
3Cf. BERGO, Vitório. Erros e Dúvidas de Linguagem. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1944. v. II, p. 29.
4Cf. RIBEIRO, João. Gramática Portuguesa. 20. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1923. p. 161.
5Cf. BUENO, Francisco da Silveira. Questões de Português. São Paulo: Saraiva, 1957. 2º v, p. 307.
6Cf. ROSA, Eliasar. Os Erros Mais Comuns nas Petições. 9. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S/A, 1993. p. 23.
7Cf. ARRUDA, Geraldo Amaral. A Linguagem do Juiz. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 16-17.
8Cf. ARRUDA, Geraldo Amaral. A Linguagem do Juiz. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997. p. 104-105.
9Cf. VITÓRIA, Luiz A. P. Dicionário de Dificuldades, Erros e Definições de Português. 4. ed. Rio de Janeiro: Tridente, 1969. p. 179.
10Cf. BUENO, Francisco da Silveira. Questões de Português. São Paulo: Saraiva, 1957. 2º v, p. 391.
11Cf. CUNHA, Celso. Gramática Moderna. 2. ed. Belo Horizonte: Editora Bernardo Álvares S/A, 1970. p. 136.
12Cf. NASCIMENTO, Edmundo Dantès. Linguagem Forense. 5. ed. São Paulo: Saraiva, 1982. p. 8.
13Cf. BERGO, Vitório. Erros e Dúvidas de Linguagem. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1944. v. II, p. 181.
14Cf. MACHADO FILHO, Aires da Mata. "A Correção na Frase". In: Grande Coleção da Língua Portuguesa. 1. ed. São Paulo: co-edição Gráfica Urupês S/A e EDINAL. Editora e Distribuidora Nacional de Livros Ltda, 1969. v. 2, p. 554.
15Cf. BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 19. ed., segunda reimpressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974. p. 302.
16Cf. PEREIRA, Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. 15. ed. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924. p. 232.
17Cf. SACCONI, Luiz Antônio. Nossa Gramática. 1. ed. São Paulo: Editora Moderna, 1979. p. 60. 1943. p. 305.
18Cf. GÓIS, Carlos. Sintaxe de Concordância. 8. ed. São Paulo: Livraria Francisco Alves, 1943. p. 305.
19Cf. BUENO, Francisco da Silveira. Questões de Português. São Paulo: Saraiva, 1957. 2º v, p. 391.
20Cf. NOGUEIRA, Júlio. Programa de Português: 3ª série secundária. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1939. p. 204.
21Cf. Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 2. ed., reimpressão de 1998. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional, 1999. p. 783.
22Cf. ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo: Editora Caminho Suave Ltda., 1981. p. 6.
23Cf. ARRUDA, Geraldo Amaral. A Linguagem do Juiz. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 104-105.