1) Um ilustre leitor envia a seguinte consulta: a) não encontrou, no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, o registro da palavra quorum, nem com acento nem sem acento; b) no Dicionário Aurélio, todavia, há quórum, em forma aportuguesada pelo acento; c) a partir do fato de que quorum é genitivo plural do pronome relativo latino quis, quae, quod, indaga: deve usar "quorum", assim entre aspas e sem acento, ou, como registra o Aurélio, quórum, sem aspas e com acento?
2) Fixe-se que quorum é o genitivo plural do pronome relativo latino - qui, quae, quod - substantivado com o sentido de número legal, "geralmente empregado na terminologia jurídica, para indicar o número de pessoas, que deve comparecer às assembléias ou reuniões, para que estas, validamente, possam deliberar"1. Ex.: "Por falta de 'quorum', a sessão nem chegou a ser aberta".
3) Domingos Paschoal Cegalla assim observa: "Contrariamente ao que em geral se ensina, julgamos conveniente acentuar este latinismo, por ser palavra de largo uso e por haver outros com idêntica terminação, como álbum, fórum e médium, unanimemente acentuados".
4) E complementa que "há falta de critério e de coerência da parte de dicionaristas e autores de manuais de ortografia, acerca da grafia dos latinismos. Vemos, por exemplo, fórum acentuado e quorum sem acento, múnus (latinismo de uso restrito) com acento, habitat (latinismo generalizado) sem acento"2.
5) Com todo o respeito pelo ilustre gramático, o certo é que, para solucionar a questão, parte-se da premissa de que a Academia Brasileira de Letras, em obediência à vetusta lei Eduardo Ramos, nº. 726, de 8 de dezembro de 1900, tem a responsabilidade legal de editar o Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, também conhecido por VOLP.
6) O objetivo de tal obra é atestar a existência e consolidar a grafia dos vocábulos em português, além de classificá-los pelo gênero (masculino ou feminino) e categoria morfológica (substantivo, adjetivo...).
7) Incumbido por lei específica para sua confecção em caráter oficial, quem o elabora goza de autoridade para, nesse campo, dizer o Direito, motivo por que, ao consultá-lo, legem habemus e devemos prestar-lhe obediência, como devemos fazer com respeito aos demais diplomas legais.
8) Em comunhão com tal pensamento, afirmam José de Nicola e Ernani Terra que esse vocabulário "é a palavra oficial sobre ortografia das palavras da língua portuguesa no Brasil"3. Complemente-se: também é a palavra oficial no que concerne à própria existência dos vocábulos em nosso idioma, além de outros aspectos que eventualmente venha a mencionar (pronúncia, gênero, etc.).
9) Isso quer dizer, desde logo, que nossos dicionaristas (como os ilustres Aurélio e Houaiss), por mais respeitados que sejam e por melhores serviços que tenham prestado ao idioma, não são autoridades oficiais no assunto. Desse modo, quando suas lições contrariam o VOLP, a este se deve prestar obediência, independentemente, até mesmo, de eventuais incoerências ou imperfeições que se possam apontar nos critérios por ele seguidos. Vale aqui a observação que se faz à lei: pode-se, em tese e no plano da Ciência, discuti-la, questionar seus critérios, sua própria justiça; mas, na prática, incumbe segui-la e prestar-lhe obediência.
10) Com especificidade para o caso da consulta, anota-se que o VOLP, em sua quinta edição, não arrola quorum entre as palavras da língua portuguesa. Mais do que isso, registra-a entre as palavras estrangeiras, confere-lhe a grafia quorum (sem acento) e especifica tratar-se de substantivo masculino pertencente ao idioma latino4.
11) Por ser vocábulo pertencente a outro idioma, não deve ser acentuado (já que não o era na língua mãe), e deve ser grafado entre aspas, em itálico, negrito, sublinha ou qualquer outro modo indicador de ser alheio ao vernáculo.
12) Reconhece-se, por oportuno e no plano da Ciência, mas sem alterar em nada o que aqui se explicita, que a manutenção do vocábulo como latinismo dificulta a formação de seu plural em português, tal como, aliás, também se dá com campus, por exemplo.
13) Importa anotar, por fim, que nossos textos de lei não são uniformes quanto ao modo de empregar (ou de deixar de empregar) tal vocábulo, conforme se pode constatar por consulta ao "site" de legislação da Presidência da República.
14) Assim, o Código Eleitoral (lei 4.737, de 15/7/65 - clique aqui), no art. 28, § 1º, traz o acerto parcial do legislador, que grafa o vocábulo sem acento gráfico, mas esquece o sinal indicador de estrangeirismo.
15) A Lei das Sociedades por Ações (lei 6.404, de 15/12/76 - clique aqui), não mostra sequer uniformidade de uso do vocábulo: a) na rubrica que encima o art. 125, emprega-o corretamente, sem acento gráfico e entre aspas; b) acerta, de outro modo, o emprego no art. 136, caput, em redação conferida pela Lei 9.457/97 (clique aqui), quando deixa de empregar o acento gráfico e escreve o vocábulo em itálico; c) no art. 129, § 1º, entretanto, utiliza-o sem acento gráfico, mas também sem elemento algum indicador de estrangeirismo, equívoco esse que se repetia na redação original do art. 136 caput, hoje revogada, e que continua na redação do art. 136, § 2º, ainda em vigor, e no art. 140, IV, e 141, § 5º (ambos com redação conferida pela lei 10.303/01 - clique aqui).
16) A Constituição Federal de 1988 (clique aqui), por seu lado, evitou seu uso e preferiu expressões substitutivas (voto da maioria, por exemplo).
17) O Código Civil de 2002 (lei 10.406, de 10/1/02 - clique aqui) alterna critérios em tal emprego: a) no art. 59, parágrafo único, acerta pela metade, ao deixar de usar o acento gráfico, mas ao esquecer os elementos indicadores de estrangeirismo (com redação dada pela lei 11.127/05 - clique aqui); b) no art. 1.094, acerta integralmente, grafando o vocábulo sem acento e em itálico; c) no art. 1.334, III, volta a acertar parcialmente, ao grafar sem acento gráfico e sem aspas ou sinal indicador de estrangeirismo; c) tal conduta de acerto parcial, em tais moldes, volta a repetir-se no art. 1.352 e 1.353.
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1 Cf. SILVA, De Plácido e. Vocabulário Jurídico, vol. IV. Rio de Janeiro: Editora Forense, 1989, p. 17.
2 Cf. CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 346.
3 Cf. NICOLA, José de; TERRA, Ernani. 1.001 Dúvidas de Português. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 231.
4 Cf. Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 5. ed., 2009. São Paulo: Global, p. 863.