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Gramatigalhas

Esclarecendo dúvidas da Língua Portuguesa.

José Maria da Costa
quarta-feira, 31 de agosto de 2022

Feita - É adjetivo?

1) Uma leitora indaga se, na frase "segundo pesquisa recente feita por uma revista americana ", é correto afirmar que a palavra feita é adjetivo. 2) Para bem entender a extensão da dúvida da leitora, vejam-se os seguintes exemplos: (a) "O trabalho feito não correspondeu ao projeto"; (b) "O ponto estudado não caiu na prova"; (c) "O professor aposentado continuou as pesquisas". 3) E se considerem também os seguintes exemplos: (a) "O pesquisador tinha feito o trabalho"; (b) "O aluno havia estudado a matéria"; (c) "O serviço público tinha aposentado o professor". 4) Ora, uma atenta observação faz concluir que feito, estudado e aposentado nada mais são, originalmente, do que particípios passados dos verbos fazer, estudar e aposentar. 5) Com essa premissa, é preciso complementar que os particípios passados têm dupla função. 6) Como adjetivos, acompanham substantivos e concordam com eles em gênero (masculino ou feminino) e número (singular ou plural). Exs.: o trabalho feito, a tarefa feita, os trabalhos feitos, as tarefas feitas; o ponto estudado, a matéria estudada, os pontos estudados, as matérias estudadas; o professor aposentado, a professora aposentada, os professores aposentados, as professoras aposentadas. 7) Já como verbo, o particípio passado normalmente compõe uma locução verbal: tinha feito, havia estudado, tinha aposentado. 8) Seguindo mais adiante para uma nova observação, impende acrescentar que, com os verbos ter e haver, o particípio passado fica invariável, como aconteceu nos exemplos dados: (a) "O professor tinha feito..."; (b) "A professora tinha feito..."; (c) "Os professores tinham feito..."; (d) "As professoras tinham feito...". 9) Já com os verbos ser e estar, o particípio passado concorda com o nome a que se refere: (a) "O trabalho foi feito pelo pesquisador"; (b) "A pesquisa foi feita pelo professor"; (c) "Os trabalhos foram feitos pelo pesquisador"; (d) "As pesquisas foram feitas pelo professor". 10) Passando ao caso da consulta trazida pelo leitor, pode-se dizer que sua dúvida admite duas saídas. 11) Num primeiro modo, pode-se entender feita como adjetivo normal, que está modificando o substantivo "pesquisa". 12) Num segundo modo, pode-se pensar que feita é apenas uma forma reduzida de uma expressão maior: "segundo pesquisa que foi recentemente feita...". E, nesse caso, então, feita receberá o nome de oração subordinada adjetiva restritiva, já que é uma oração inteira que continua qualificando o substantivo pesquisa; e, ainda, é reduzida de particípio, de modo que sua correspondente estendida é "que foi recentemente feita". 13) Importa realçar que, mesmo quando em locução verbal, o verbo no particípio pode ter reflexos de sua função adjetiva, como está claro nos exemplos dados com locuções formadas pelo verbo ser.
quarta-feira, 24 de agosto de 2022

Fazer valer ou Fazer valerem

1) Um leitor indaga qual a forma correta de se dizer e escrever: "'Fazer valer as regras' ou 'Fazer valerem as regras'?" Em realidade, trata-se do tormentoso assunto de emprego do infinitivo, ora pessoal e flexionado, ora impessoal e não flexionado. 2) Para facilitar a análise, já que o exemplo se apresenta incompleto, procede-se a uma pequena alteração no texto, sem que haja modificação no plano sintático: "Ele fez valerem as regras". E, como valerem está no infinitivo (o que caracteriza uma forma reduzida de oração), vamos estender um pouco mais, para desaparecer o infinitivo e facilitar a compreensão: "Ele fez que valessem as regras". 3) Com a estrutura do exemplo assim definida, podem-se extrair as seguintes ilações, que são importantes para o raciocínio que aqui se pretende seguir: (i) contrariamente à aparência inicial, fazer valer não é uma locução verbal, mas cada verbo pertence a uma oração distinta; (ii) "Ele fez" é a oração principal; (iii) "que valessem as regras" é a oração subordinada, que funciona como objeto direto da primeira oração, motivo por que se chama oração subordinada substantiva objetiva direta. 4) Com base nessas ilações como premissas, Silveira Bueno traz duas lições. Por um lado, nesses casos, "quando os dois verbos possuem sujeitos diferentes, usa-se o modo pessoal". Ex.: "Napoleão viu caírem as armas das mãos de seus soldados". Por outro lado, "quando a frase do infinito serve de objeto ao verbo principal, podemos empregar o infinito impessoal ainda que ambos tenham sujeitos diferentes". Ex.: "Napoleão viu cair as armas das mãos de seus soldados".1  Vale dizer que, em tal caso, em última análise, é optativa a flexão do infinitivo. 5) Voltando ao exemplo trazido pelo leitor, que se encaixa com perfeição nas considerações acima postas: (i) "Ele fez valer as regras" (forma correta); (ii) "Ele fez valerem as regras" (forma correta). 6) Importa acrescentar que as mesmas observações acima feitas valem para quatro verbos, quando se encontrarem em construções similares: ver, fazer, mandar e deixar. Observem-se, portanto, os seguintes exemplos, todos corretos quanto à sintaxe vernácula: (i) "A queda do dólar viu disparar as vendas de moedas estrangeiras"; (ii) "A queda do dólar viu dispararem as vendas de moedas estrangeiras"; (iii) "A queda do dólar fez disparar as vendas de moedas estrangeiras"; (iv) "A queda do dólar fez dispararem as vendas de moedas estrangeiras"; (v) "A autoridade monetária mandou disparar as vendas de moedas estrangeiras"; (vi) "A autoridade monetária mandou dispararem as vendas de moedas estrangeiras"; (vii) "A autoridade monetária deixou disparar as vendas de moedas estrangeiras"; (viii) "A autoridade monetária deixou dispararem as vendas de moedas estrangeiras". 7) Por fim, resguardados certos parâmetros mínimos de correção e de bom-senso, o certo é que, diante das dificuldades encontradas nesse campo bem como da diversidade de posicionamentos entre os estudiosos do idioma, vale trazer à colação a frase de José Oiticica, de que Aires da Mata Machado Filho lamentou não ter sido o autor, restando-lhe apenas a satisfação de repetir: "Mandem os gramáticos às favas e empreguem o infinitivo à vontade".2 __________ 1 BUENO, Francisco da Silveira. Português pelo Rádio. São Paulo: Saraiva & Cia., 1938, p. 96-100. 2 MACHADO FILHO, Aires da Mata. "Novas Lições de Português". In: Grande Coleção da Língua Portuguesa. São Paulo: coedição Gráfica Urupês S/A e EDINAL - Editora e Distribuidora Nacional de Livros Ltda., 1969. vol. 1, p. 324.
quarta-feira, 17 de agosto de 2022

Equipara-se ou Equiparam-se?

1) Um leitor traz a seguinte dúvida: "Professor, o caput do art. 21 da lei 8.213/91 diz: 'Equiparam-se também ao acidente do trabalho, para efeitos desta lei: (...).' Está correto o uso do verbo no plural, se, no caso, o 'se' é índice de indeterminação do sujeito, bem como, pelo fato de o verbo equiparar não ter transitividade direta?" 2) Ora, a dúvida trazida pela consulta exige um raciocínio prévio e algumas premissas de importância, motivo pelo qual se pede um pouco de atenção e paciência a quem vai ler estas observações. 3) Diferentemente da frase "Gosta-se de um bom vinho" - com a qual se deve sempre comparar em análise - uma frase como "Aluga-se uma casa", em que há um se também acoplado ao verbo, pode ser dita de outra forma: "Uma casa é alugada". 4) E, por permitir essa transformação, pode-se dizer que "Aluga-se uma casa" é uma frase reversível, que serve de modelo para todas as outras, também reversíveis, que tenham o se unido ao verbo desse modo. 5) Em frases dessa natureza, podem-se extrair as seguintes conclusões: a) a frase reversível está na voz passiva sintética; b) o se é partícula apassivadora; c) o sujeito é uma casa (sujeito, e não objeto direto). 6) Por essas razões, se, em vez de uma casa, se diz casas, tem-se, por consequência, o sujeito no plural. 7) Exatamente por isso e por mera aplicação da regra de concordância verbal de sujeito simples, é que, se o sujeito está no plural, o verbo também deve ir para o plural: "Alugam-se casas". 8) Atente-se a que essa é uma construção muito comum nos meios jurídicos, devendo-se zelar por sua concordância adequada, no plural, e não no singular: "Buscaram-se soluções para o conflito"; "Citem-se os réus"; "Devolvam-se os autos"; "Entreguem-se os autos da carta precatória"; "Intimem-se as testemunhas"; "Processem-se os recursos". 9) Um segundo modelo é "Gosta-se de um bom vinho", do qual se podem extrair as seguintes ilações: a) o exemplo não pode ser dito de outra forma (ninguém pensaria em dizer "Um bom vinho é gostado"); b) não é, portanto, uma frase reversível; c) nesse caso, o exemplo não está na voz passiva, muito menos na voz passiva sintética; d) o se, no exemplo, não é partícula apassivadora, mas símbolo (ou índice) de indeterminação do sujeito; e) o sujeito da oração não é um bom vinho, mas é indeterminado; f) seria impossível considerar um bom vinho o sujeito, porquanto, como bem lembra Sousa e Silva, "o sujeito é membro regente, não pode vir regido de preposição"1; g) em tais circunstâncias, pela própria estrutura sintática apontada, se, em vez de um bom vinho, se diz bons vinhos, o sujeito não se altera, mas continua indeterminado; h) exatamente porque, ao se pluralizar o referido termo, não se altera o sujeito, não há razão alguma para modificar o verbo; i) o correto, então, no plural, é "Gosta-se de bons vinhos", e não "Gostam-se de bons vinhos". 10) Também é comum essa construção nos meios jurídicos, de modo que se há de atentar à concordância adequada no singular, e não no plural, em casos como os que seguem: a) "Trata-se de embargos à execução"; b) "Proceda-se aos inventários"; c) "Obedeça-se aos princípios legais". Oportuno lembrar que o traço comum, nesses casos, é a existência de uma preposição antes do termo que alguém poderia pensar ser o sujeito (de embargos, aos inventários, aos princípios). 11) Com essas ponderações como premissas, volta-se ao exemplo da consulta, ou seja, ao art. 21 da Lei 8.213/91, complementando o caput com alguns incisos não trazidos pelo leitor e eliminando o que não interessa para o raciocínio que aqui se faz: "Equiparam-se também ao acidente do trabalho [...]: I - o acidente ligado ao trabalho [...]; II - o acidente sofrido pelo segurado [...]; III - a doença proveniente de contaminação acidental [...]; IV - o acidente sofrido pelo segurado ainda que fora do local e horário de trabalho [...]". 12) Num primeiro aspecto, vamos extrair apenas o primeiro inciso, reduzindo, ainda mais, o exemplo e fazendo algumas adaptações: "Equipara-se também ao acidente do trabalho o acidente ligado ao trabalho". E, quando se tenta comparar essa estrutura (que tem em si um se), percebe-se que - assim como "Aluga-se uma casa", esta é uma frase reversível, que pode ser dita de outro modo: "O acidente ligado ao trabalho é equiparado ao acidente de trabalho". E, relembrando aspectos já analisados, em frases dessa natureza, podem-se extrair as seguintes conclusões: a) o exemplo está na voz passiva sintética; b) o se é partícula apassivadora; c) o sujeito é o acidente ligado ao trabalho (sujeito, e não objeto direto). 13) Pois bem. Se juntarmos ainda mais o caput do art. 21 com seus incisos, podemos dizer o exemplo do seguinte modo: "Equiparam-se também ao acidente do trabalho o acidente ligado ao trabalho, o acidente sofrido pelo segurado e a doença proveniente de contaminação acidental". E, valendo-nos das premissas anteriormente lançadas, daqui se podem extrair as seguintes ilações: (i) o verbo equiparar tem um sujeito composto com diversos núcleos; (ii) tal sujeito é posposto ao verbo; (iii) o primeiro núcleo do sujeito que vem depois do verbo está no singular; (iv) quando o sujeito é composto, o verbo normalmente vai para o plural; (v) por essa regra, está correto dizer "Equiparam-se também ao acidente do trabalho o acidente ligado ao trabalho, o acidente sofrido pelo segurado e a doença proveniente de contaminação acidental"; (vi) acresce dizer que, se o sujeito é posposto ao verbo, este também pode concordar com o primeiro núcleo de sujeito que vem após o verbo; (vii) por essa razão, de igual modo está correto dizer "Equipara-se também ao acidente do trabalho o acidente ligado ao trabalho, o acidente sofrido pelo segurado e a doença proveniente de contaminação acidental"; (viii) vale lembrar que, se o primeiro núcleo do sujeito fosse os acidentes, então seria obrigatório o plural; (ix) no caso dessa última hipótese, então, a única forma correta de dizer seria "Equiparam-se também ao acidente do trabalho os acidentes ligados ao trabalho...". 14) Por fim, dois pequenos reparos devem ser feitos à consulta do leitor: (i) porque a frase da consulta é reversível, o se é partícula apassivadora, e não símbolo de indeterminação do sujeito; (ii) no caso, o verbo equiparar é, sim, transitivo direto e indireto; (iii) para comprovar, basta ver o exemplo: "A lei (sujeito) equipara o acidente ligado ao trabalho (objeto direto) ao acidente de trabalho (objeto indireto)". __________ 1 SILVA, A. M. de Sousa e. Dificuldades Sintáticas e Flexionais. Rio de Janeiro: Organização Simões Editora, 1958, p. 264.
quarta-feira, 10 de agosto de 2022

Egrégio - Qual seu real significado?

1) Um leitor parte da etimologia do vocábulo egrégio (que quer dizer separado da grei, do grupo), e indaga se não parece estranho utilizá-lo para um tribunal como um todo. 2) Ora, Antonio Henriques vê tal vocábulo como composto do prefixo e (ex), denotador de afastamento, e grex, gregis (rebanho), significando, assim, aquele ou aquilo "que sai do rebanho, do comum e se distingue da multidão". 3) Por outro lado, ressaltando que seu uso normal é antes do substantivo para realçá-lo, complementa que ele "ocorre em expressões próprias do Direito e, em geral, com maiúsculas e sentido superlativo: Egrégio Tribunal, Egrégia Corte, Egrégio Juiz, Egrégia Câmara e outras".1 4) E se deve acrescentar que, em interessante determinação, o art. 3º, caput, do Regimento Interno do Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo assim estatui: "Têm o Tribunal e todos os seus órgãos o tratamento de Egrégio...". 5) Feitas essas considerações e partindo para solucionar a questão do leitor, o que parece é que sua dúvida reside no fato de que, se se tratasse de uma pessoa, então poderia fazer sentido em sair do rebanho, deixar o comum ou distinguir-se da multidão; mas - sempre segundo o leitor - não faria sentido aplicar o termo a uma entidade, como é o caso de um tribunal. 6) O que se deve ver, entretanto, é que não apenas uma pessoa pode destacar-se entre seus iguais ou seus pares; um tribunal, de mesmo modo, pode ter lugar de proeminência entre as demais entidades similares, podendo, assim, sobressair entre elas. 7) Desse modo, não deve causar estranheza alguma seu emprego com referência a uma entidade, da mesma maneira como é empregado quando se refere a uma pessoa; em ambos os casos, está perfeitamente correto seu uso. __________ 1 HENRIQUES, Antonio. Prática da Linguagem Jurídica. 2. ed. São Paulo: Atlas, 1999, p. 53.
quarta-feira, 3 de agosto de 2022

Dona - Como abreviar?

1) Um leitor indaga como se deve abreviar a palavra Dona, que é o título que precede o nome próprio das senhoras e provém do latim (domina, que significa senhora). 2) Ora, o Formulário Ortográfico oficial - que é um conjunto de instruções estabelecido pela Academia Brasileira de Letras para a organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa e registra as reduções mais correntes, a par de trazer a explicação de que "uma palavra pode estar reduzida de duas ou mais formas"1  - não mostra, por seu lado, uniformidade, nem, muito menos, critérios fixos. É confuso e deficiente nesse campo, e deixa sem solução diversos problemas. 3) Mas, ante a própria visão oficial mais permissiva, quando se tiver que abreviar, o melhor será ter em mente a advertência de Napoleão Mendes de Almeida: "O que a abreviatura, contração ou sigla deve objetivar é a clareza; alcançada esta, não cabem objeções".2 4) Em outras palavras, o melhor é concluir que não existe necessariamente apenas uma forma oficial para tanto, de modo que ao usuário do idioma assiste certa liberdade para abreviar as palavras, guardados, obviamente, determinados parâmetros e princípios. 5) No caso específico de Dona, a forma abreviada mais corriqueira é o d. ou D. (o emprego da minúscula ou maiúscula é facultativo, assim como na forma por extenso - dona Maria ou Dona Maria): assim, d. Maria ou D. Maria. Não parece inviável, todavia, usar também da. Maria ou Da. Maria. __________ 1 Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 5. ed. São Paulo, Global Distribuidora Editora Ltda., 2009, p. 865. 2 ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo: Editora Caminho Suave, 1981, p. 6.
quarta-feira, 13 de julho de 2022

Compareceu e requer - Combinação correta?

1) Um leitor envia a seguinte mensagem: "Gostaria de esclarecer uma dúvida, para saber se é aceitável, quanto ao uso de tempos verbais distintos, a seguinte redação feita em uma manifestação por cota nos autos: 'compareceu o autor nesta data, oportunidade em requer a expedição de mandado de pagamento'. Ressalta-se que a data de comparecimento da parte será, com muita frequência, anterior à data em que o Magistrado apreciará o requerimento. Assim, pergunto, seria correto o uso do mesmo tempo verbal: "compareceu e requereu"? Ou seria possível a forma "compareceu e requer", até mesmo para se transmitir a ideia de contemporaneidade do requerimento, ou seja, de que requereu e continua a requerer até que se aprecie?" 2) Ora, existem, em português, normas de correlação, de correspondência temporal ou, ainda, de consecução dos tempos verbais (em latim, com regras mais rígidas, consecutio temporum), determinadoras de harmonização quanto ao uso das formas dos verbos. 3) Por essas normas é que, na prática, assim se redigem os seguintes exemplos, guardando a correlação dos tempos (o uso primeiro de um tempo exige o emprego de um outro a seguir): a) "Se é clara, a lei dispensa interpretação"; b) "Se for clara, a lei dispensará interpretação"; c) "Se fosse clara, a lei dispensaria interpretação". 4) Por aplicação desses princípios, não se olvide, nesse ponto, a lição de Vasco Botelho do Amaral: "Modernamente, contra a índole da língua dos melhores escritores, com frequência se perde de vista o paralelismo das formas verbais, e redige-se: 'Há dias que se trabalhava'. Evite-se essa construção". Em tal caso, o correto é redigir-se: "Havia dias que se trabalhava".1 5) Juntando os problemas de referência a tempo passado e a tempo futuro no que tange ao verbo haver, Arnaldo Niskier sintetiza o problema da seguinte forma: "Tendo como ponto de referência o momento presente, use a para o futuro e há para o passado. Se o ponto de referência já for passado, use havia em vez de há".2 Exs.: a) "Ele estará casado daqui a dois meses"; b) "Ele está casado há dois meses"; c) "Ele estava casado havia dois meses". 6) Para ilustrar, veja-se que, ao comentar o art. 324 do Projeto do Código Civil - que registrava "se forem casados há mais de dois anos" Rui Barbosa, preocupado com o assunto, já questionava a estrutura de modo expresso: "Forem está no futuro; há, no presente. Será legítima esta combinação gramatical?".3 7) Em análise do exemplo "A Espanha já lutava há muito tempo contra aquele semelhante estado de coisas", José de Sá Nunes aponta a ausência de correlação entre os tempos - há no presente e lutava no pretérito imperfeito - explicando: "Assim nesta como em todas as construções análogas, o verbo da segunda oração tem de ficar, obrigatoriamente, para que haja consecutio temporum, no mesmo tempo em que se acha o verbo da oração anterior: se esta tem o verbo no presente, no presente há de estar o verbo daquela; e se o verbo de uma se acha no passado, também no passado se deve achar o verbo da outra". 8) Em seguida, traz tal autor exemplos de autorizados escritores, que fizeram uso adequado da consecução dos tempos: a) "Havia dois dias que nenhum incógnito atravessava o Crissus" (Alexandre Herculano); b) "Começara, havia dois meses, a guerra da Crimeia" (Rui Barbosa). 9) Remata ele, todavia, com a observação de que "nem sempre os dois verbos deverão ficar no mesmo tempo, presente ou passado, porque muitas vezes a verdade dos fatos exige que os verbos estejam em tempos diferentes". 10) E exemplifica os casos de tal aspecto: a) "Escrevia então o jovem poeta de São Paulo, há mais de cinquenta anos"; b) "Há dezessete anos, o progresso material desconhecia a precisão dos cafés" (Camilo). 11) Alinhando significativas observações para conseguir adequada consecução dos tempos verbais, o próprio José de Sá Nunes, por primeira regra, anota que, quando se emprega o imperfeito do subjuntivo na oração condicional, o verbo da oração principal deve ficar no futuro do pretérito ou no imperfeito do indicativo. Exs.: a) "Se quisesse anular a sentença, o advogado deveria entender-se com a Justiça"; b) "Se quisesse anular a sentença, o advogado devia entender-se com a Justiça". 12) Em segunda regra, leciona que, quando o verbo da oração condicional está no futuro do subjuntivo, emprega-se, na oração principal, o futuro do indicativo, ou, às vezes, o imperativo. Exs.: a) "Se quiser anular a sentença, o advogado deverá entender-se com a justiça"; b) "Se o advogado quiser anular a sentença, entenda-se com a Justiça". 13) Em terceira observação, realça o ilustre gramático que "o que não está em harmonia com a índole de nosso idioma, nem encontra apoio nos grandes padrões da vernaculidade, é a correlação do imperfeito do subjuntivo com o futuro do indicativo. Ex.: "Se quisesse anular a sentença, o advogado deverá entender-se com a Justiça" (errado).4 14) Não se olvide, também, o ensinamento de Vitório Bergo, que parte de um exemplo de Alexandre Herculano: "... eles tinham sido, havia dois séculos, inimigos armados..."; e registra sua lição: "deve empregar-se havia (pretérito imperfeito) e não há (presente do indicativo) para indicar o termo de período referente a época passada".5 15) Oportuno, neste assunto, é atentar a dois importantes lembretes de João Ribeiro: a) "Na correlação dos tempos só importa conhecer os casos em que os verbos se correspondem em modos diferentes"; b) Nesse assunto, "não só as regras são todas lacunosas, como a verdade geral é que só o sentido, positivo ou hipotético, isto é, o modo e não os tempos, determina o uso. Dizer que quando o sentido é incerto ou hipotético o verbo vai para o subjuntivo, é nada dizer, pois isso decorre da definição do subjuntivo". 16) E se complemente com a doutrina do mesmo gramático, para quem "a falta de simultaneidade de tempos nas proposições" configura, em realidade verdadeiro galicismo, como nos seguintes exemplos: a) "É isso que me incomodou" (errado); b) "Foi isso que me incomodou" (correto); c) "É Jesus quem dizia..." (errado); d) "Foi Jesus quem dizia" (correto).6 17) Com essas observações como premissas, volte-se ao exemplo da consulta: "Compareceu o autor nesta data, oportunidade em requer a expedição de mandado de pagamento". Uma leitura atenta do trecho mostra que as duas ações verbais aconteceram em mesma oportunidade: comparecer e requerer. Quando compareceu, o autor também requereu. Então, com base em todas as explicações dadas, observem-se as seguintes construções e o apontamento de sua respectiva correção ou erronia: (i) "Compareceu o autor nesta data, oportunidade em que requer a expedição de mandado de pagamento" (forma errada); (ii) "Comparece o autor nesta data, oportunidade em que requer a expedição de mandado de pagamento" (forma correta); (iii) "Compareceu o autor naquela data, oportunidade em que requereu a expedição de mandado de pagamento" (forma correta). _____ 1 ALMEIDA, Napoleão Mendes de. Dicionário de Questões Vernáculas. São Paulo: Editora Caminho Suave Ltda., 1981, p. 133. 2 NISKIER, Arnaldo. Questões Práticas da Língua Portuguesa: 700 Respostas. Rio de Janeiro: Consultor, Assessoria de Planejamento Ltda., 1992, p. 4. 3 BARBOSA, Rui. Parecer sobre a Redação do Código Civil. Rio de Janeiro: edição do Ministério da Educação e Saúde, 1949, p. 141. 4 NUNES, José de Sá. Aprendei a Língua Nacional - Consultório Filológico. São Paulo: Saraiva, 1938, vol. I, p. 12-3 e 26-7. 5 BERGO, Vitório. Erros e Dúvidas de Linguagem. Rio de Janeiro: Livraria Editora Freitas Bastos, 1944. vol. 2, p. 131. 6 RIBEIRO, João. Gramática Portuguesa. 20. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1923, p. 190 e 250.
quarta-feira, 6 de julho de 2022

Concordância do particípio passado

1) Um leitor, em síntese, indaga qual a forma correta: (a) "Foi dado vista dos autos"; (b) "Foi dada vista dos autos". 2) Ora, quando se busca pelo sujeito dessa oração, vê-se que é "vista dos autos". 3) E, então, colocando-se o exemplo em ordem direta, tem-se a seguinte estrutura sem maior esforço: "Vista dos autos foi dada". 4) Para ampliar um pouco a questão, vejam-se os seguintes exemplos: (a) "O livro foi devolvido ao vendedor"; (b) "A revista foi devolvida ao vendedor"; (c) "Os livros foram devolvidos ao vendedor"; (d) "As revistas foram devolvidas ao vendedor"; (e) "O livro já está devolvido ao vendedor"; (f) "A revista já está devolvida ao vendedor"; (g) "Os livros já estão devolvidos ao vendedor"; (h) "As revistas já estão devolvidas ao vendedor"; (i) "O leitor tinha devolvido o livro; (j) "A leitora tinha devolvido o livro"; (k) "Os leitores tinham devolvido o livro"; (l) "As leitoras tinham devolvido o livro"; (m) "O leitor havia devolvidoo livro; (n) "A leitora havia devolvido o livro"; (o) "Os leitoreshaviam devolvidoo livro"; (p) "As leitoras haviam devolvido o livro". 5) E, desses exemplos, podem ser extraídas algumas observações importantes no que tange ao comportamento gramatical do particípio passado: (i) quando a locução verbal for formada pelos verbos ser e estar, o particípio concorda com o sujeito, variando para o singular ou plural, para o masculino ou para o feminino; (ii) quando a locução verbal for formada pelos verbos ter ou haver, o particípio, por via de regra, fica invariável. 6) Essa regra de capital importância para flexionar ou não o particípio passado é assim expressa por Alfredo Gomes: "O particípio passado empregado como adjetivo ou com os auxiliares ser ou estar é sempre variável; empregado, porém, com os auxiliares ter ou haver, é invariável". Exs.: a) "As armas eram feitas de pedaços de metal"; b) "As autoridades estavam insatisfeitas com o resultado do inquérito"; c) "Até as presidiárias tinham feito suas armas"; d) "Até as presidiárias haviam feito suas armas". 7) O mesmo autor, em seguida, lembra que ter e haver "admitiam flexão, o que ainda se verifica até o décimo sexto século", exemplificando com excertos de Camões: a) "... nobres cavaleiros, que tanto mar e terra têm passadas"; b) "... depois de ter pisada longamente / co'os delicados pés a areia ardente"; c) "Da determinação que tens tomada não tornes por detrás...". 8) Por fim, tal gramático - após anotar que, em francês, "a variabilidade do particípio só é possível e dá-se de acordo com o objeto direto quando este precede o particípio" - observa que, "em português, quer o objeto direto preceda, quer siga o particípio, a concordância era possível até o século 16º".1 9) No caso da dúvida do leitor, o correto é "Foi dada vista dos autos", e isso com base nos seguintes argumentos: (i) a locução verbal tem como auxiliar o verbo ser; (ii) na atualidade, quando o auxiliar da locução verbal é o verbo ser ou estar, a concordância do particípio passado se dá normalmente com seu sujeito em gênero (masculino ou feminino) e número (singular ou plural). _____ 1 GOMES, Alfredo. Gramática Portuguesa. 19. ed. Livraria Francisco Alves, 1924, p. 388-389.
quarta-feira, 8 de junho de 2022

Cada um de nós - Adquire ou Adquirimos?

1) Uma leitora indaga qual das duas formas é gramaticalmente correta: (a) "O conhecimento que cada um de nós adquire..."; ou (b) "O conhecimento que cada um de nós adquirimos...". 2) Ora, em expressões como alguém de nós, alguém de vós, algum de nós, algum de vós, cada um de nós, cada um de vós, qual de nós, qual de vós, quem de nós, quem de vós, o que se tem, em suma, é uma mesma estrutura, que precisa ser analisada para efeito de concordância verbal. 3) Em tais expressões, duas observações são de extrema importância para resolver o assunto: a) nesse sujeito, há dois pronomes (cada um e nós ou vós); b) a primeira expressão pronominal (alguém, algum, cada um, qual, quem) está no singular. 4) E, quando se tem uma expressão dessa natureza, em que o primeiro pronome está no singular, a concordância do verbo se faz, sempre e tão somente, na terceira pessoa do singular: a) "Alguém de nós sabe o que fazer?"; b) "Alguém de vós sabe o que fazer?"; c) "Algum de nós sabe o que fazer?"; d) "Algum de vós sabe o que fazer?"; e) "Cada um de nós sabe o que fazer?"; f) "Cada um de vós sabe o que fazer?"; g) "Qual de nós sabe o que fazer?"; h) "Qual de vós sabe o que fazer?"; i) "Quem de nós sabe o que fazer?"; j) "Quem de vós sabe o que fazer?" 5) Assim, são erradas as seguintes construções, em que se busca a concordância com o segundo de tais pronomes: a) "Alguém de nós sabemos o que fazer?"; b) "Alguém de vós sabeis o que fazer?"; c) "Algum de nós sabemos o que fazer?"; d) "Algum de vós sabeis o que fazer?"; e) "Cada um de nós sabemos o que fazer?"; f) "Cada um de vós sabeis o que fazer?"; g) "Qual de nós sabemos o que fazer?"; h) "Qual de vós sabeis o que fazer?"; i) "Quem de nós sabemos o que fazer?"; j) "Quem de vós sabeis o que fazer?". 6) Não confundir com expressões como alguns de nós (em que o primeiro pronome está no plural), cujo sistema de concordância é diverso. 7) De modo prático, vamos considerar os exemplos trazidos pela consulta: (a) "O conhecimento que cada um de nós adquire..." (forma correta); (b) "O conhecimento que cada um de nós adquirimos..." (forma errada).
quarta-feira, 1 de junho de 2022

Artigos combinados - Prioridade na citação?

1) Um leitor traz interessante questão: se precisar citar um artigo de lei combinado com (cc, c.c. ou c/c) outro artigo de lei, deve dar preferência a alguma das normas? E exemplifica: se citado um artigo do CPC e outro de uma lei posterior ou de menor importância, o CPC deve ser citado primeiro? (p. ex., art. 55 do CPC c/c art. 35 da lei nº...)? 2) Ora, normalmente, quando se cita algum artigo da Constituição Federal, tem-se nela a origem do direito em tese, e esse artigo, em seguida, será especificado e concretizado por alguma norma de cunho infraconstitucional. Nesse caso, a própria sequência do próprio raciocínio faz com que a ideia parta do dispositivo constitucional e caminhe, em continuação, pelas outras regras infraconstitucionais. 3) Isso, no entanto, é questão de desenvolvimento das ideias que integram o raciocínio no caso concreto. Não há, para tanto, regra alguma de Gramática ou de Direito que determine ordem nessa citação, nem mesmo qualquer consideração atinente a uma suposta importância maior de determinados dispositivos em detrimento de outros tidos como de menor importância. 4) Em realidade, até pode muito bem acontecer que, pelo raciocínio desenvolvido pelo autor de um texto, uma norma de direito municipal adquira maior relevância no contexto do que uma norma federal, ou mesmo do que uma disposição constitucional, de modo que o próprio raciocínio, em estruturação inversa à ordem aventada pela dúvida do leitor, determine a prioridade do dispositivo de lei municipal, vindo, apenas na sequência, a referência a um dispositivo da Constituição Federal. 5) Como se vê - insista-se - tudo depende da relevância que os dispositivos ganhem no raciocínio que se está desenvolvendo: se o elaborador do texto, em sua argumentação, quer dar importância a partir da esfera de poder mais elevada para a menos elevada, começará sua citação pela Constituição Federal; se, porém, em seu modo de sentir, o dispositivo legal emanado da esfera de poder menos elevada for o de maior relevo para seu raciocínio, então iniciará ele por este último. 6) E, em síntese, para desenvolver essa estruturação de raciocínio, o relevo há de estar na ordem das ideias, não havendo norma gramatical ou jurídica a ser obedecida. E essa ordem de ideias pode emanar do próprio raciocínio realizado, como também pode nascer da subjetividade dos argumentos postos pelo elaborador do texto.
quarta-feira, 25 de maio de 2022

Que ou De que?

1) Um leitor pede que se comente um vício comum entre jornalistas e membros do Congresso, que é o uso indiscriminado do de que em objetos diretos, como 'eu penso de que'. 2) Vejam-se os seguintes exemplos: (a) "Eu noto seu semblante triste"; (b) "Eu imagino uma história complicada"; (c) "E declaro minha opinião". 3) É perceptível que os verbos notar, imaginar e declarar são transitivos diretos, de modo que pedem complementos sem preposição, de modo que não é normal que alguém erre os exemplos, dizendo-os do seguinte modo: (a) "Eu noto do seu semblante triste"; (b) "Eu imagino de uma história complicada"; (c) "E declaro de minha opinião". Não faz o mínimo sentido pensar em expressar-se desse modo. 4) Pois bem. Imaginem-se, na sequência, os seguintes exemplos, já mais complexos: (a) "Eu notei que seu semblante estava triste"; (b) "Eu imaginei que haveria por trás uma história complicada"; (c) "Eu declaro que você está alterado". 5) Nesse caso, muito embora o complemento desses verbos seja uma oração inteira, nem por isso eles deixam de ser transitivos diretos. Por isso continuam sendo construídos sem preposição, razão pela qual estão errados os seguintes exemplos: (a) "Eu notei de que seu semblante estava triste"; (b) "Eu imaginei de que haveria por trás uma história complicada"; (c) "Eu declaro de que você está apavorado". 6) Mas é preciso observar que esse acréscimo da preposição de com verbos transitivos diretos, embora errado, é bastante comum em discursos que primam mais pelo tom de voz e pela pompa do que pelo conteúdo e pela correção do vernáculo. Por isso é preciso corrigi-los. 7) Para tanto, vale a pena trazer aqui a precisa observação de Eliasar Rosa para essa situação: "Há uma forma de errar muito curiosa nas sustentações orais, ou em discursos forenses, ou parlamentares. Consiste ela em usar-se a preposição de com verbos que não a exigem. Exemplos: 'O Dr. Promotor afirmou de que o réu matou por motivo fútil; entretanto a defesa vai demonstrar de que isto não é verdade, pois o que está provado, nos autos, é de que o réu matou impelido por relevante valor social...' Ora, os verbos afirmar, demonstrar, provar não se constroem com a preposição de. Logo o certo seria: 'O Dr. Promotor afirmou que...; entretanto a defesa demonstrará que..., pois está provado que...'".1 __________ 1 ROSA. Eliasar. Os Erros Mais Comuns nas Petições. 9. ed. Rio de Janeiro: Livraria Freitas Bastos S/A, 1993, p. 54-55.
quarta-feira, 18 de maio de 2022

Diagnosticar - Como construir seu complemento

1) Um leitor indaga, em síntese, qual das duas construções é gramaticalmente correta: (i) "A doença foi diagnosticada no paciente"; (ii) "O paciente foi diagnosticado com a doença". 2) Observe-se, num primeiro plano, que o verbo diagnosticar vem do grego, mais especificamente do prefixo dia (que significa através de) e do radical gnos (que quer dizer conhecer). Assim, no campo da Medicina, através dos diversos exames e outras circunstâncias, vêm a ser conhecidas as causas de uma doença específica. 3) E, como os dois exemplos trazidos pelo leitor estão na voz passiva (ou seja, os sujeitos "doença" e "paciente" recebem ou sofrem a ação indicada pelo verbo), pode-se alargar a questão, para assim também ampliar os exemplos para a voz ativa (em que o sujeito pratica a ação indicada pelo verbo) e, assim, tornar de mais fácil solução o desafio: (i) "O médico diagnosticou a doença no paciente"; (ii) "O médico diagnosticou o paciente com a doença". 4) E, com isso, passa-se, de início, à análise dos exemplos na voz ativa, observando que a indagação do leitor, em síntese, busca saber se o correto, no plano da Gramática, é construir (i) o objeto da ação de diagnosticar como coisa (no caso, doença), ou como pessoa (na hipótese versada, o paciente). 5) Ora, Francisco Fernandes, em obra clássica sobre a complementação dos verbos em tais circunstâncias, defende como única possibilidade, em casos dessa natureza, a construção do complemento como a coisa e se esteia, para tanto, em exemplo de autor insuspeito: "Há uma enfermidade? Eles a diagnosticam" (Rui Barbosa).1 6) Não diverge dessa posição outro autor de peso, Celso Pedro Luft, que traz exemplos não menos significativos, e em todos figura a coisa (e não a pessoa) como complemento: (i) "Diagnosticar a origem de um mal"; (ii) "Diagnosticar deficiências, males sociais, etc."2 7) Com essas considerações como premissas, podem-se extrair as seguintes conclusões, com os olhos diretamente voltados aos exemplos do leitor: (i) "O médico diagnosticou a doença no paciente" (correto); (ii) "A doença no paciente foi diagnosticada pelo médico" (correto); (iii) "O médico diagnosticou o paciente com a doença" (errado); (iv) "O paciente foi diagnosticado com a doença pelo médico" (errado). __________ 1 FERNANDES, Francisco. Dicionário de Verbos e Regimes. Porto Alegre: Editora Globo, 1971, 4. ed., 16. Impressão, p. 241. 2 LUFT, Celso Pedro. Dicionário Prático de Regência Verbal. São Paulo: Editora Ática, 1999, 8. ed., p. 211.
1) Um ilustre leitor faz os seguintes e importantes registros: (i) é preciso inserir no Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa palavras como compliance, coworking, lockdown, poadcast, além de hacker e hackeamento; (ii) o VOLP, ademais, ignora palavras encontradiças em peças jurídicas, como viralizar, oportunizar, dinamicidade e colidência; (iii) nesse quadro, qual o critério utilizado pela Academia Brasileira de Letras para incluir termos na mencionada obra. 2) Anote-se, de início, que a Academia Brasileira de Letras detém autoridade para definir a existência, a grafia, o gênero e outras circunstâncias das palavras em nosso idioma, e ela se desincumbe desse mister pela edição do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa, uma espécie de dicionário que lista as palavras oficialmente reconhecidas e lhes fornece a grafia oficial e outros aspectos, muito embora normalmente não aponte seu significado. 3) E essa autoridade lhe advém de delegação ao longo dos tempos, como se pode constatar pelos seguintes dados históricos: (i) a introdução do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1943 registrava que "a Academia Brasileira de Letras recebeu de Sua Excelência o Senhor Presidente da República a incumbência de elaborar o vocabulário ortográfico de que tratam os decretos-leis 292, de 23 de fevereiro de 1938, e 5.186, de 13 de janeiro de 1943"; (ii) décadas mais tarde, quando houve alterações na acentuação gráfica, a lei 5.765/1971, em seu art. 2º, incumbiu a ABL de promover "a atualização do Vocabulário Comum, a organização do Vocabulário Onomástico e a republicação do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa"; (iii) pelo Acordo de 1990, a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras foram incumbidas de publicar um vocabulário ortográfico comum; (iv) por fim, quando da edição dos Decretos federais 6.583, 6.584 e 6.585, todos de 2008, com os quais que se aprovou o Protocolo Modificativo do Acordo Ortográfico daquele ano, o art. 2º deste último determinava que os Estados signatários tomariam as providências necessárias à elaboração de um vocabulário ortográfico por intermédio das instituições e órgãos competentes, o que, no que tange ao Brasil, significava a ABL. 4) Com essas informações como premissas, listam-se as seguintes datas em que foram editadas as versões do VOLP: 1981, 1998, 1999, 2004, 2009 e 2021 (esta disponível exclusivamente em versão on-line no site da ABL ou em aplicativo oficial). 5) Cingindo as presentes observações apenas às três últimas, anota-se que sua quarta edição (2004) removeu arcaísmos e termos dialetais em total desuso (como dereito, despois, frauta, frecha e treição, usados por Camões), aperfeiçoou o sistema de registro dos plurais de muitas palavras, principalmente dos substantivos compostos, e enriqueceu significativamente o rol dos vocábulos. Buscava, com isso, atender "a determinadas necessidades, cotidianas e práticas, dos usuários de um idioma vivo [...], tal como dele se servem, contemporaneamente, as pessoas instruídas no Brasil". 6) Sua quinta edição (2009), por um lado, incorporou as Bases do Acordo Ortográfico de 2008 e registrou as palavras do idioma já com as modificações atinentes à acentuação gráfica, ao trema e ao hífen; por outro lado, também acrescentou novos vocábulos. 7) Por fim, a sexta edição (2021), conforme registra sua Nota editorial, "conta com 382 mil entradas, mil palavras novas, incluindo os estrangeirismos, além de correções e informações complementares nos verbetes, como acréscimos de ortoépia (com indicação dos casos de metafonia), plural e, apenas em alguns casos, para desfazer dúvidas e ambiguidades, a indicação de homonímia, paronímia e significado". 8) Como se vê, num lapso temporal de pouco mais de dez anos, a mais recente edição inseriu oficialmente em nosso léxico nada menos do que mil vocábulos novos, tecnicamente denominados neologismos. Nesse passo, procurando acompanhar de perto o uso e a evolução do idioma, acrescentou termos originados do desenvolvimento científico e tecnológico e até mesmo incluiu palavras que surgiram no contexto da pandemia do novo coronavírus, além de adicionar vocábulos de uso comum, muito divulgados na mídia impressa e em textos acadêmicos, como biopsiar, bucomaxilofacial, ciberataque, cibersegurança, ciclofaixa, covid-19, feminicídio, gerontofobia, homoparental, judicialização, laudar, negacionismo, sororidade, telemedicina e viralizar. 9) Com essas anotações quanto aos fatos e às ocorrências, que mostram um pouco os passos normalmente seguidos para confecção e atualização do VOLP, conforme deixa entrever a Apresentação da edição  de 2021, a intenção dos responsáveis é ampliar, de acordo com o uso diário do idioma, o número dos termos oficialmente reconhecidos; e, nessa tarefa, por um lado, as "antenas da Academia Brasileira de Letras seguem abertas, sensíveis, aos apelos e às vozes de nossa língua", enquanto, por outro lado, nesse trabalho, "a oportuna sabedoria do corte, o estudo da frequência contribuem claramente para a fixação vocabular". 10) Esclarece a ABL, também na referida Apresentação de sua sexta edição, que, no interregno entre esta e a anterior, "a equipe de Lexicologia e Lexicografia da Academia Brasileira de Letras [reuniu] novas palavras colhidas em textos literários, científicos e jornalísticos ou recebidas como sugestão por consulentes do Volp", sempre atenta ao "grande volume de palavras que passaram a fazer parte do cotidiano da língua". 11) Nesse quadro, apesar de não escritos, podem-se registrar os seguintes aspectos e condutas seguidos pela ABL para a expansão do rol das palavras oficialmente reconhecidas: (i) cuidadosos estudos de vocábulos novos em corrente uso no idioma são feitos por uma Comissão de Lexicologia e Lexicografia da entidade, antes que seja tomada uma posição para sua inserção oficial na Língua Portuguesa; (ii) e a Academia mostra-se receptiva a sugestões, atenta que está à expansão da lista de vocábulos em uso corrente, as quais possam pertencer oficialmente ao idioma. 12) Importa realçar, todavia, que, embora precedido o processo de cuidadosa operação e triagem, não está ele, todavia, imune a questionamentos e equívocos: (i) é discutível, assim, o critério que introduziu oficialmente no idioma, na edição de 1998, a palavra imbróglio, mas, mesmo após mais de vinte anos, continua não agindo de mesmo modo com a palavra pizza, que ainda é reputada estrangeirismo; (ii) laborou em erro a ABL durante muito tempo, já que, nas edições anteriores do VOLP, contrariamente à unanimidade dos estudiosos e aos padrões normais de uso da língua, sempre considerou o vocábulo cônjuge como substantivo comum de dois gêneros (de modo que se poderia dizer o cônjuge e a cônjuge, como se dá com pianista, chefe e policial), e apenas veio a corrigir o erro na edição de 2021, para tê-lo como sobrecomum do masculino (isto é, para permitir dizer apenas o cônjuge [como a criança ou a testemunha], sendo a especificação feita por algum outro elemento, como em cônjuge varão ou cônjuge feminino); (iii) por mais ampliativo que seja o critério de inserção de vocábulos no idioma, é discutível a necessidade de um verbo como inicializar, introduzido pela edição de 2004 do VOLP, o qual nada parece acrescentar ao significado do já existente iniciar. 13) Num segundo aspecto, entre os estrangeirismos recentemente inseridos no VOLP estão botox, bullying, compliance, coworking, crossfit, delay, hacker, home office, live-action, lockdown, personal trainer e podcast, entre muitos outros da língua inglesa. Também se incluem vocábulos que atestam a influência de outras línguas, como emoji, shiitaki e shimeji, do japonês, parkour, physique du rôle e sommelier, do francês, cappuccino e paparazzo, do italiano, e chimichurri, do espanhol. 14) Nesse campo, oportuno é observar que o gramático João Ribeiro, no primeiro quartel do século passado, conceituava tecnicamente os estrangeirismos como expressões tiradas de outras línguas e que constituem vício, quando os vocábulos estranhos não são indispensáveis em textos nossos.1  E essas palavras, ainda no plano da técnica e da ciência, são denominadas barbarismos, os quais, para especificação, recebem o nome do país de origem (anglicismo, francesismo ou galicismo, germanismo, helenismo, italianismo, latinismo...).2  É preciso acentuar, porém, que vivemos tempos novos, em que a imbricação entre as línguas é mais intensa, mais tolerada e, às vezes, mais necessária do que em outras épocas, de modo que, observados determinados limites, não se pode viver hoje, nesse aspecto, com postura de um purismo exacerbado e de uma intransigência rígida, motivo por que precisam ser atenuados os respectivos conceitos e suas consequências. 15) Pondere-se, ademais, quanto a essas palavras ou expressões estrangeiras usadas em textos vernáculos, que algumas observações podem ser feitas a seu respeito: (i) a impressão que transparece do VOLP é que o enquadramento de uma palavra estrangeira nessa categoria de emprego expressamente permitido constitui um primeiro passo no caminho rumo a sua integração definitiva e oficial no idioma; (ii) a demora ou recusa em sua inserção nesse sentido, num primeiro aspecto, pode resultar da desnecessidade, quando há vocábulo que corresponda com perfeição a seu significado, o que parece acontecer com expertise (experiência, perícia, preparo) e performance (desempenho); (iii) num segundo aspecto, essa delonga pode também advir das dificuldades em acomodar a grafia aos moldes dos nossos vocábulos, sobretudo para registrar letras cujos sons correspondam a escritas diversas dos caracteres de nossa fonética (como é o caso de imbróglio, que, já acoplado ao idioma a contar da edição de 2009 do VOLP, precisou vir com a explicitação da pronúncia lh entre parênteses); (iv) mesmo nesse campo, entretanto, a ABL já tem suavizado a rigidez de parâmetros, como quando oficializou a palavra internet, com terminação bastante estranha à estrutura da língua. 16) Com essas ponderações como premissas, outras considerações ainda podem ser feitas quanto aos estrangeirismos: (i) se um vocábulo não está oficialmente registrado no VOLP como integrante de nosso léxico, isso não significa a impossibilidade de seu emprego em textos de nosso idioma; (ii) e mesmo o fato de uma palavra não constar como estrangeirismo na lista da ABL também não constitui fator impeditivo de seu uso; (iii) assim, em qualquer dessas hipóteses, quando for necessário escrever um vocábulo estrangeiro em textos vernáculos (o mesmo se diga do aportuguesamento de um vocábulo ainda não feito pela ABL, como se dá com hackeamento, lembrado pelo leitor), basta submeter a palavra a uma formalidade bastante simples, que registrá-la em negrito, em itálico, "entre aspas" ou sublinhada; (iv) desse modo, podemos escrever normalmente compliance, coworking, hacker, lockdown ou podcast, sem que se façam acompanhar de tradução, bastando que se grafe compliance, coworking, hacker, lockdown, podcast, ou compliance, coworking, hacker, lockdown, podcast, ou "compliance", "coworking", "hacker", "lockdown", "podcast", ou mesmo compliance, coworking, hacker, lockdown e podcast. 17) Por fim, aos que se interessam pelo nosso léxico e com ele queiram contribuir, acresce registrar alguns pontos importantes: (i) em explícita demonstração de interesse pela contribuição dos usuários, todas as edições do VOLP têm sido dedicadas "aos que usam da língua portuguesa como bem comum", e eles são "chamados a colaborar no aperfeiçoamento desta coleta, com achegas, sugestões, críticas, correções"; (ii) como demonstração ainda mais clara desse sentimento, na primeira de tais edições, até mesmo consta um agradecimento nominal a diversas pessoas pela "colaboração no oferecimento de verbetes"; (iii) isso, sem dúvida, mostra um canal aberto à participação dos usuários de todos os cantos, de todas as especialidades e de todos os níveis na construção de nosso léxico, de modo que sugestões, críticas e comentários podem ser endereçados diretamente à Comissão de Lexicologia e Lexicografia da ABL, a qual tem os olhos continuamente voltados para essa tarefa e para essas circunstâncias. __________ 1 RIBEIRO, João. Gramática Portuguesa. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1923, 20. ed., p. 245. 2 PEREIRA. Eduardo Carlos. Gramática Expositiva para o Curso Superior. São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., 1924, p. 260.
quarta-feira, 4 de maio de 2022

A gente - Briga? Ficou sozinho?

1) Um ilustre leitor indaga, em síntese, qual a posição do circunlóquio a gente perante a estrutura do idioma pátrio, e isso implica analisar a expressão com enfoque em três aspectos: (i) pertence à norma culta ou fica adstrita à linguagem coloquial?; (ii) é pronome pessoal do caso reto?; (iii) em qualquer das hipóteses, como fica sua concordância (verbal e nominal)? 2) Num primeiro aspecto, é de praxe afirmar que a mencionada expressão não pertence à norma culta, razão pela qual se afirma simplesmente que deve ser banida dos escritos que devam submeter-se ao referido padrão. 3) Essa afirmação, todavia, precisa ser tomada com o devido tempero, certo como é que, apenas para exemplificar, já no século XIX, Alexandre Herculano, em seu livro Lendas e Narrativas, assim registrava: "É verdade que a gente, às vezes, tem cá as suas birras...". 4) E Machado de Assis, em mesma época, em sua obra Memórias Póstumas de Brás Cubas, também escrevia: "Na vida, o olhar da opinião, o contraste dos interesses, a luta das cobiças obrigam a gente a calar os trapos velhos...". 5) Essa postura de emprego da mencionada expressão por autores que, como os citados, se serviram do idioma com reconhecido apuro linguístico, faz com que se deva acolher, num primeiro aspecto, a afirmação do gramático Francisco da Silveira Bueno, ainda na longínqua década de 1940: expressões como essa "são correntias na pena dos escritores e na boca do povo".1 6) Anote-se, porém, que, embora encontrada até mesmo em abalizados autores, a referida expressão está longe de ser aceita na linguagem que deva submeter-se aos ditames da norma culta, de onde é sistematicamente banida. 7) E é com este parâmetro que, num primeiro aspecto, deve ela ser tida em nosso idioma: é aceita como existente e até mesmo é estudada e sistematizada pelos gramáticos; não se permite seu uso, todavia, nos escritos que devam pautar-se pela norma culta, mas, como bem lembra Domingos Paschoal Cegalla, "deve restringir-se à comunicação coloquial".2 8) Quanto à categoria gramatical em que deva ser inserida, assim a conceitua Evanildo Bechara: "O substantivo gente, precedido do artigo a e em referência a um grupo de pessoas em que se inclui a que fala, ou a esta sozinha, passa a pronome e se emprega fora da linguagem cerimoniosa".3 9) Ainda quanto à categoria gramatical, Antenor Nascentes afirma que "a locução a gente vale às vezes, em estilo familiar, por um pronome da primeira pessoa do plural"; e, seguindo para o plano da concordância verbal a ser obedecida, tal autor continua sua observação, para fixar que é errado dizer "A gente fomos ao teatro", de modo que o verbo, em tal circunstância, deve ficar na terceira pessoa do singular, ou seja, "A gente foi ao teatro".4 10) Indo um pouco além, agora no que respeita à concordância nominal, Silveira Bueno frisa que tal forma pronominal indefinida "exige a concordância com o gênero da pessoa que ela representa e não com o gênero dessa palavra". Assim, o homem haverá de dizer: "A gente ficou pasmado"; a mulher, porém, dirá: "A gente ficou pasmada".5 11) Cândido Jucá Filho também partilha da opinião de que se deve observar, em casos dessa natureza, a concordância com a ideia, vale dizer, por silepse: "A gente está cansado (se fala um homem)".6 12) O Padre José F. Stringari invoca também ensino do abalizado vernaculista Mário Barreto, para quem, "por silepse, poderia dizer-se corretamente: A gente ficou ofendido ou aborrecido, evidentemente quando se trata dum homem". 13) O mesmo padre gramático, por outro lado, lembra que, nesses casos, a questão da concordância nominal não é tão pacífica, e anota lição de João Ribeiro, para quem "o sujeito indefinido a gente é sempre feminino: A gente ficou ofendida, ou aborrecida, e não ofendido ou aborrecido. Os que não observam essa concordância cometem grosseiro e inexplicável erro".7 14) Em tempos mais recentes, Domingos Paschoal Cegalla repete esse ensinamento: "Recomenda-se a concordância no feminino, ainda quando o falante é pessoa do sexo masculino: 'A gente deve estar prevenida', disse o motorista".8 15) Para evitar polêmicas e focar a questão em um modo de utilização do idioma imune a quaisquer dúvidas ou discussões, o autor eclesiástico acima citado propõe o estratagema do emprego de se em lugar de a gente, e, com isso, a concordância ideológica ou por silepse se faz com facilidade; desse modo, assim se deve falar e escrever em casos dessa natureza: "Fica-se ofendido", "Fica-se calado" (quando quem fala é um homem); "Fica-se ofendida", "Fica-se calada", quando quem fala é uma mulher.9 16) No plano histórico, Pedro A. Pinto traz as seguintes ponderações: (i) tal construção não é um brasileirismo, mas, "antes, lusitanismo ou, talvez, latinismo"; (ii) "na era pré-clássica da língua, em regra, o sujeito gente levava o verbo ao plural"; (iii) "nos quinhentistas, gente ora está com o verbo no singular, ora no plural"; (iv) esse duplo uso de concordância se encontra nos versos de Camões, que ele registra: (a) "Esperam que a guerreira gente saia" (singular); (b) "O grande estrondo a maura gente espanta, / Como se vissem hórrida batalha" (plural); (v) em períodos clássicos posteriores, há exemplos dessa convivência sintática em João de Barros, Camilo e Trindade Coelho.10 17) Objete-se, contudo, que o exemplo de Camões, para comprovar a possibilidade de concordância no plural, não se mostra adequado para ilustrar o pensamento expresso por quem o citou, uma vez que, conforme conhecida regra de Gramática, quando palavras de significação coletiva não venham seguidas de termos especificador, quer quando o verbo se distancia do sujeito, mesmo sendo um só, quer quando há um segundo verbo, pode este, facultativamente, ficar no singular, ou ir para o plural. 18) E se finalize dizendo que, nos dias de hoje, o melhor, nos casos em que se permite o emprego da referida expressão, é proceder do seguinte modo: (i) deixar o verbo na terceira pessoa do singular; (ii) proceder, adicionalmente, à concordância ideológica quanto ao gênero dos adjetivos. Exs.: (a) "A gente está cansado" (se fala um homem); (b) "A gente está cansada" (se fala uma mulher). __________ 1 BUENO, Francisco da Silveira. Gramática Normativa da Língua Portuguesa. São Paulo, Saraiva, 1968, 7. ed., p. 301. 2 CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 180. 3 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa - cursos de 1º e 2º graus. São Paulo, Editora Nacional, 1974, 19 ed., p. 96. 4 NASCENTES, Antenor. O Idioma Nacional. 3. ed. São Paulo: Editora Nacional, 1942, vol. II, p. 90. 5 BUENO, Francisco da Silveira. Português pelo Rádio. São Paulo: Saraiva & Cia., 1938, p. 76. 6 JUCÁ FILHO, Cândido. Dicionário Escolar das Dificuldades da Língua Portuguesa. 3. ed. Rio de Janeiro: Fename - Fundação Nacional de Material Escolar, 1963, p. 326. 7 STRINGARI, Padre José F. Canhenho de Português. São Paulo: Editorial Dom Bosco, 1961, p. 63-64. 8 CEGALLA, Domingos Paschoal. Dicionário de Dificuldades da Língua Portuguesa. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p. 180. 9 STRINGARI, Padre José F. Canhenho de Português. São Paulo: Editorial Dom Bosco, 1961, p. 63-64. 10 PINTO, Pedro A. Termos e Locuções - Miudezas de Linguagem Luso-Brasileira. Rio de Janeiro: Tipografia Revista dos Tribunais, 1924, p. 300-302.
quarta-feira, 27 de abril de 2022

Vulgar - Pode ser verbo?

1) Um leitor envia mensagem, indagando, em síntese, se existe a palavra vulgar como verbo, e, em caso positivo, se seu significado é manifestar. 2) Como em outras dúvidas que pretendem saber se existe ou não um determinado vocábulo em português, ou mesmo qual sua categoria gramatical ou suas características, traça-se aqui um roteiro para tornar o leitor autônomo, autossuficiente e capaz de resolver por si próprio casos futuros de mesma natureza. 3) Inicia-se, assim, esta resposta com a observação de que, entre nós, a Academia Brasileira de Letras é o órgão incumbido, desde a edição da lei 726/1900, de definir a existência, a grafia oficial, o gênero e as peculiaridades dos vocábulos em nosso idioma. E a ABL, para exercitar essa autorização legal, o faz oficialmente pela edição, de tempos em tempos, do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP). Mais modernamente, ela também tem disponibilizado em seu site pela internet o rol dessas palavras e expressões oficialmente existentes. 4) Com essa anotação como premissa, uma consulta à referida obra da ABL revela que o vocábulo vulgar, além de se apresentar como adjetivo e como substantivo, também existe em nosso idioma como efetivo verbo.1 5) Como adjetivo, traz o sentido de comum, ordinário, trivial ou reles. Ex.: "Você não deveria portar-se como uma garota vulgar". 6) Como substantivo, traz o mesmo sentido, apenas alterando a categoria gramatical de tal palavra. Ex.: "Não confunda o simples com o vulgar". 7) Como verbo (pouquíssimo usado), tem a conotação semântica de vulgarizar ou de tornar conhecido ou notório2, ou, ainda, de difundir ou divulgar.3 Exs.: a) "Quis-me punir do ousado sacrilégio / Com que os segredos seus vulguei na lira" (Almeida Garrett); b) "Os concertos populares costumam vulgar a música clássica"; c) "Uma parte dessa sinfonia vulgou-se, tornando-se um hino popular". _____ 1 Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Imprinta, 2004, p. 845. 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010, p. 2.176. 3 HOUAISS, Antônio (Organizador). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Ob­jetiva, 2001, p. 2.284.
quarta-feira, 20 de abril de 2022

Voz ativa e voz passiva

1) Um leitor envia a seguinte dúvida, que acaba sendo autoexplicativa: Na voz ativa, temos um sujeito + um verbo transitivo direto e um objeto direto. Na voz passiva, o objeto direto passa a ser o sujeito paciente, e o sujeito da voz ativa passa a ser o agente da passiva. Mas e o verbo? É certo que se torna ele uma locução verbal, mas qual a sua transitividade? Pode-se dizer que continua um verbo transitivo direto? 2) A dúvida do leitor pode ser respondida de modo bastante simples e direto, mas, para uma compreensão mais ampla de toda a matéria, são necessárias algumas ponderações. 3) Voz ativa e voz passiva são duas maneiras sintaticamente diversas de dizer a mesma realidade de fato, conforme o sujeito pratique ou receba a ação indicada pelo verbo: a) "O magistrado proferiu a sentença" (voz ativa, porque o sujeito magistrado pratica a ação indicada pelo verbo proferir); b) "A sentença foi proferida pelo magistrado" (voz passiva, porque o sujeito sentença recebe a ação indicada pelo verbo proferir). 4) Da observação dos exemplos dados, algumas regras são de importância vital para o emprego de diversos verbos e para a própria criação de estruturas sintáticas. 5) Assim, por primeiro, o objeto direto da voz ativa torna-se sujeito da voz passiva, e o que era sujeito na voz ativa passa a ser o agente da passiva. 6) Observe-se esta transposição no esquema a seguir: 7) Por essa explicação, vê-se que, por via de regra, só tem voz passiva um verbo que seja transitivo direto ou transitivo direto e indireto (bitransitivo). 8) Exemplificando essa asseveração, vê-se que a frase "O juiz não gostou do depoimento" não tem voz passiva, porque não há, na voz ativa, objeto direto que possa tornar-se o sujeito da voz passiva. 9) O verbo obedecer, embora seja transitivo indireto, tem voz passiva, por questões históricas, configurando exceção. Ex.: a) "A suposta vítima não obedeceu ao comando do policial" (voz ativa); b) "O comando do policial não foi obedecido pela suposta vítima" (voz passiva). 10) Verbos que, num sentido, são transitivos diretos e, noutro sentido, transitivos indiretos (como assistir), apenas na primeira hipótese, por via de regra, podem ser usados na voz passiva. Assim, "O advogado assiste o constituinte" faz, na voz passiva, "O constituinte é assistido pelo advogado". 11) Já a frase ativa "Dezenas de estagiários assistiram aos debates" não permite a utilização da voz passiva, de modo que é errado dizer "Os debates foram assistidos por dezenas de estagiários". 12) Ressalve-se, porém, que Napoleão Mendes de Almeida (1981, p. 214) - sob o argumento de que alguns desses verbos por último referidos, embora transitivos indiretos, "têm recipiente" na voz ativa - defende-lhes o uso na voz passiva, exemplificando de modo textual: a) "A missa foi assistida por muitas pessoas"; b) "Ele foi perdoado por todos". 13) De igual modo, Mário Barreto admite, de modo expresso, o apassivamento de determinados verbos transitivos indiretos, como aludir, obedecer, perdoar e responder, observando, porém, Aires da Mata Machado Filho (1969a, p. 599), que lhe citou a lição, que "as formas passivas fixaram-se na vigência da construção transitiva direta", do que teria advindo "a aparente contradição". 14) O autor por último citado, por um lado, aceita a construção passiva de perdoar seguido de complemento de pessoa, argumentando que, em épocas passadas, tal verbo "já foi construído com objeto direto", fixando-se, por isso, "a possibilidade do apassivamento" (MACHADO FILHO, 1969b, p. 745); por outro lado, contudo, quanto ao verbo assistir, no sentido de ver, presenciar, lança-o na vala comum dos verbos transitivos indiretos sem voz passiva, aplicando-lhe o argumento de que "a voz passiva repugna à quase totalidade dos verbos transitivos indiretos" (MACHADO FILHO, 1969b, p. 758). 15) Tais posicionamentos peculiares e exceções episódicas, todavia, não infirmam as regras estabelecidas para a estrutura considerada. 16) Já se observou que "Assisto ao filme" é regência correta e significa que eu vejo o filme na qualidade de espectador; já "Assisto o filme" também é regência correta, mas significa, em última análise, que auxilio em sua produção, em sua confecção. Pelas regras já postas acerca da conversão da voz ativa para a voz passiva, podem-se extrair as seguintes conclusões: a) "Assisto o filme" (com o sentido de "auxílio na confecção do filme") faz, na voz passiva: "O filme é assistido por mim"; b) "Assisto ao filme" (com a acepção de "vejo o filme na qualidade de espectador") não pode ser empregado na voz passiva. 17) Quanto à dúvida do leitor, importa observar, por fim, que: (i) na voz ativa, o verbo é transitivo direto; (ii) na voz passiva, ele se torna uma locução verbal (ou seja, duas ou mais palavras desempenhando o papel de um único verbo); (iii) e, quanto a sua natureza, esse verbo em locução continua sendo transitivo direto, mas flexionado na voz passiva.
quarta-feira, 13 de abril de 2022

Volto de ou Volto do?

1) Uma leitora envia mensagem, indagando, em síntese, porque se diz Volto do Recife, se, com outro nome de localidade, digo Volto de Curitiba? 2) A dúvida da leitora pode ser respondida de modo bastante simples e direto: alguns nomes de localidades (cidades, estados, países) admitem artigos antes de si; outros não. 3) Vejam-se alguns países que não admitem artigo: a) "Estive em Portugal"; b) "Estive em Mônaco"; c) "Estive em Andorra". Vejam-se outros que admitem artigo: a) "Estiveno Chile"; b) "Estive nos Estados Unidos"; c) "Estive na Alemanha". 4) Por isso, de modo bem prático, dizemos: a) "Voltei de Portugal"; b) Voltei de Mônaco"; c) "Voltei de Andorra". Todavia dizemos: a) "Voltei do Chile"; (b) "Voltei dos Estados Unidos"; c) "Voltei da Alemanha". 5) Talvez seja importante acrescentar que determinados países e continentes não admitiam artigo antigamente, e hoje deixam ao usuário empregá-lo ou não antes de si, de modo que são corretas ambas as formas: a) "Estive em Espanha" ou "Estive na Espanha"; b) "Estive em França" ou "Estive na França"; c) "Estive em Inglaterra" ou "Estive na Inglaterra"; d) "Estive em Ásia" ou "Estive na Ásia"; e) "Estive em África" ou "Estive na África"; f) "Estive em Europa" ou "Estive na Europa". 6) Por isso, de modo bem prático, dizemos: a) "Voltei de Espanha" ou "Voltei da Espanha"; b) "Voltei de França" ou "Voltei da França"; c) "Voltei de Inglaterra" ou "Voltei da Inglaterra"; d) "Voltei de Ásia" ou "Voltei da Ásia"; e) "Voltei de África" ou "Voltei da África"; f) "Voltei de Europa" ou "Voltei da Europa". 7) Vejam-se alguns estados que não admitem artigo: a) "Estive em Santa Catarina"; b) "Estive em São Paulo"; c) "Estive em Pernambuco". E outros que admitem o artigo: a) "Estive no Maranhão"; b) "Estive no Paraná"; c) "Estive no Rio de Janeiro". 8) E, assim, dizemos de modo bem prático: a) "Voltei de Santa Catarina"; b) "Voltei de São Paulo"; c) "Voltei de Pernambuco"; d) "Voltei do Maranhão"; e) "Voltei do Paraná"; f) "Voltei do Rio de Janeiro". 9) Quanto às cidades, a situação não é diferente, embora seja difícil encontrar alguma que admita o artigo. Vejam-se algumas delas que não admitem artigo antes de si: a) "Estive em Barcelona"; b) "Estive em Manaus"; c) "Estive em São Paulo". E outras que admitem artigo antes de si: a) "Estive no Rio de Janeiro"; b) "Estive no Cairo"; c) "Estive no Porto". 10) E, assim, dizemos de modo bem prático: a) "Voltei de Barcelona"; b) "Voltei de Manaus"; c) "Voltei de São Paulo"; d) "Voltei do Rio de Janeiro"; e) "Voltei do Cairo"; f) "Voltei do Porto". 11) Por fim, é preciso observar que, quando o nome de localidade vem modificado por alguma expressão, normalmente ele adquire um artigo. Exs.: a) "Voltei da bela Santa Catarina"; b) "Voltei do Maranhão dos lençóis"; d) Voltei da Curitiba dos pinheirais"; e) "Voltei da Franca do Imperador". 12) Quanto à consulta do leitor, é importante observar que Recife tradicionalmente pedia o artigo ("Estive no Recife"); atualmente, porém, pode-se dispensá-lo ("Estive em Recife"). Dizendo de outro modo, é facultativo o emprego do artigo antes do mencionado nome de localidade.
quarta-feira, 6 de abril de 2022

Via angusta - O que é isso?

1) Um leitor envia mensagem, que pode ser dividida nos dois seguintes itens: (i) é verdade que antigamente, na capa dos processos que deviam ser deliberados com urgência, de importância maior, como o habeas corpus e o mandado de segurança com pedido de liminar, vinha escrito 'via angusta' (em itálico claro), para dizer que o juiz teria que resolver logo, e era uma situação realmente angustiante, de estreiteza, de desconforto no peito?; (ii) e é verdade que o serventuário, por vezes, riscava o nome angusta e colocava augusta (venerável), pensando ser adjetivo destinado a saudar o Presidente do Tribunal ou o Diretor do Fórum? 2) Ora, em latim, existe o adjetivo angustus, que vem para o português com o mesmo sentido que tinha no idioma original, de apertado, estreito. Com essa acepção, já desde os tempos dos romanos, vem o brocardo "ad augusta per angusta" (aos [lugares] elevados pelos [caminhos] apertados), locução latina essa a significar que se chega "a resultados sublimes por veredas estreitas". 3) Em português, há diversas palavras que provêm desse mesmo radical, como o substantivo angústia (um verdadeiro aperto no coração), o verbo angustiar (que traz a ideia de apertar, comprimir ou restringir internamente), os adjetivos angusto, angustiado e angustiante (que envolvem o sentimento de aflição e tormento), angustifólio (vegetal que tem folha estreita) e angustura (vocábulo esse que, além do sentido físico de passagem estreita, também traz a ideia emocional de inquietude). 4) Em estradas de ferro, são conhecidas, ademais, as expressões estrada de ferro de via estreita, estrada de ferro de via angusta ou estrada de ferro de bitola angusta, para significar o tipo de transporte ferroviário cuja largura da via ou bitola é inferior ao considerado normal no transporte ferroviário. E, assim, enquanto a bitola normal (que depende das características de cada país) é utilizada na rede principal das vias férreas, já a via angusta é empregada para as linhas secundárias. 5) No plano jurídico, é certo que o mandado de segurança e o habeas corpus, por sua natureza, não admitem abertura de fase para produção de provas, de modo que têm um conteúdo probatório mais restrito, e por isso se encontram, nos escritos jurídicos e forenses, frases como as seguintes: a) "O mandado de segurança é via processual angusta, em que não há fase de dilação probatória"; b) "Dizer da existência ou não de crime tentado é pretensão que não se coaduna com a via angusta do 'habeas corpus'"; c) "Inviável, na via angusta do 'habeas corpus', a valoração do testemunho de policiais militares, a cujos depoimentos não faz a lei processual qualquer restrição". 6) Com essas ponderações como premissas, podem-se extrair algumas ilações com referência à indagação do leitor: (i) a expressão via angusta significa, apenas e tão somente, caminho limitado ou restrito, quer no sentido físico, quer no sentido figurado; (ii) constitui expressão vernácula, já que ambos os vocábulos que compõem tal circunlóquio se encontram plenamente integrados ao nosso idioma, razão pela qual não há necessidade de escrevê-la em itálico, negrito, entre aspas ou sublinhada, providência essa que seria obrigatória para palavras ou expressões estrangeiras; (iii) em Direito, exatamente com esse significado de caminho limitado, costuma ser empregada para falar de medidas jurídicas em que se dá uma atuação jurisdicional limitada, sem abertura de fase para produção de provas em audiência, como é o caso do mandado de segurança e do "habeas corpus"; (iv) quanto a constar tal expressão, em tempos passados, na capa dos autos de medidas que precisassem de urgente solução, até faz sentido a versão apresentada pelo consulente, mas o subscritor destas linhas não tem notícia de tal ocorrência e até mesmo agradeceria por eventuais subsídios comprovados nessa direção; (v) sendo verdadeira ou não a história trazida pelo leitor, aplica-se, em realidade, ao caso por ele relatado o vetusto brocardo italiano a dizer que "se non è vero, è ben trovato" (se não é verdadeiro, é muito bem inventado).
quarta-feira, 30 de março de 2022

Ultratividade ou Ultra-atividade? O que é isso?

1) Um leitor envia mensagem, indagando, em síntese o que significa ultratividade, vocábulo esse que viu inserido na reforma trabalhista, mais especificamente quando diz que a Convenção Coletiva tem validade de dois anos, mas que é vedada a ultratividade. 2) Embora não faça parte da dúvida do leitor, é preciso tecer algumas considerações iniciais acerca da grafia do vocábulo objeto da consulta. 3) Como costuma acontecer com os prefixos terminados por vogal, apenas em dois casos o prefixo ultra se une ao segundo elemento por hífen: a) quando o segundo elemento se inicia por h (como em ultra-hipérbole, ultra-honesto e ultra-humano); b) quando o segundo elemento principia com a mesma letra que finda o prefixo (como em ultra-americanismo, ultra-apressado e ultra-aquecer). 4) Antes de outra consoante, que não seja h, tal prefixo acopla-se diretamente ao elemento seguinte, sem hífen: ultrabárbaro, ultracansado, ultradivino, ultrafamoso, ultraliberal. 5) De igual modo, junta-se sem hífen, quando o elemento seguinte se inicia por outra vogal, que não a mesma que finaliza o prefixo: ultraescuro, ultraindependente, ultraobscuro. 6) Por fim, para a hipótese de ser o segundo elemento iniciado por r ou s, dobram-se tais consoantes para continuidade do som originário: ultrarracional, ultrarradical, ultrassensível, ultrassom. 7) Com essas observações, desde logo se anota, num primeiro momento, que a grafia correta é ultra-atividade, e não ultratividade. E tal grafia, como é de fácil percepção para casos similares, não advém como novidade do Acordo Ortográfico de 2008, mas assim já era mesmo antes, como comprovam as edições anteriores do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP), que é o meio de que se serve a Academia Brasileira de Letras (ABL) para desincumbir-se da delegação legal de registrar a correta grafia dos vocábulos pertencentes ao nosso idioma. 8) Resolvidos os aspectos gramaticais, o certo é que, em termos jurídicos, costuma-se conceituar ultra-atividade como "o efeito que se concede à norma de ultrapassar o prazo de sua vigência"1. Ou seja: mesmo após o término do prazo previsto para que se mantenha em vigor, a norma continua sendo aplicada. Veja-se, por exemplo, o caso de uma lei que já contenha a previsão do fim de sua vigência. Mesmo após tal prazo, ela continuará sendo aplicada a fatos que ocorreram durante sua vigência. 9) No caso trazido pelo leitor, quando se afirma que é vedada a ultra-atividade, quer-se reforçar o fato de que as normas, circunstâncias e condições de uma Convenção Coletiva não subsistirão em extensão alguma após o término do prazo de sua vigência. __________ 1 DE PLACIDO E SILVA. (Atualizadores - Nagib Slaibi Filho e Priscila Pereira Vasques Gomes). Vocabulário Jurídico. Rio de Janeiro. Gen Forense. 2016, 32. ed., p. 1.448.
quarta-feira, 23 de março de 2022

Tirar de dentro - É correto?

1) Um leitor envia mensagem, trazendo um tema que se repete com certa frequência: diz ele que lhe "causa espécie o uso de expressões como tirar de dentro, sair para fora, subir para cima, descer para baixo". E indaga se são elas efetivamente corretas ou não. 2) Ora, o vocábulo pleonasmo (de pleos, em grego, que quer dizer abundante) significa, em síntese, uma repetição, no falar ou no escrever, de ideias ou palavras que tenham o mesmo sentido. 3) Trata-se de termo genérico, que tanto pode adornar a linguagem, como torná-la feia e sem encanto. No primeiro caso, em que se busca dar força à expressão, chama-se pleonasmo de estilo. Ex.: "Vi com meus próprios olhos". No segundo caso, caracteriza vício da linguagem e chama-se pleonasmo vicioso, porquanto, longe de enfeitar o estilo, apenas repete desnecessariamente ideia já referida. Ex.: "Subir para cima". 4) Na lição de Vitório Bergo (1944, p. 183), a expressão com pleonasmo de estilo constitui construção irrepreensível, porque "o pleonasmo deixa de considerar-se vício para classificar-se como figura desde que, sem tornar deselegante a frase, contribua para dar maior relevo à ideia". 5) Lembrando que o pleonasmo pode ser representado pela repetição de pronomes, Mário Barreto leciona que "uma boa coleção de pleonasmos possui a língua portuguesa na combinação das formas pronominais, tônicas e atônicas, podendo o pronome absoluto preceder o pronome conjunto complemento: dá-lhe a ele; a mim parece-me que...; parece-me a mim que...; a ti não te faço mal; a mim basta-me a satisfação de ter descoberto estas pérolas; a ele eu não lhe disse nada; ele disse-mo a mim..." (1954a, p. 264). Acrescentem-se aqui expressões como "Não lhe resta ao credor outro caminho...". 6) Quando, em vez de dar reforço ao estilo, significa desnecessária e feia redundância, o pleonasmo é vicioso e também se denomina tautologia (de tautos, em grego, que exprime a ideia de mesmo, de idêntico). Caracteriza-se, em síntese, pela seguida repetição, por meio de palavras diferentes, de um pensamento anteriormente enunciado, baseando-se "no desconhecimento da verdadeira significação dos termos empregados, provocando redundância ou condenável demasia verbal" (XAVIER, 1991, p. 95). 7) Além dos lapsos mais comuns nesse campo dos pleonasmos viciosos (subir para cima, descer para baixo, entrar para dentro, sair para fora, menino homem...) e verifi cáveis até com perfunctório cuidado, há outros de identifi cação mais difícil, mas que, de igual modo, devem ser evitados, ainda que à custa de maior atenção: breve alocução (alocução já signifi ca um discurso breve), monopólio exclusivo (está ínsita em monopólio a ideia de exclusividade), principal protagonista (protagonista já é o personagem principal), manusear com as mãos (manusear já tem por radical, em latim, a ideia de atuar com as mãos), preparar de antemão (por força do prefi xo latino pre, preparar já tem em si a ideia de anterioridade), prosseguir adiante (não há como prosseguir para trás, já que o prefi xo latino pro tem o signifi cado de movimento para a frente), prever antes (por força do prefi xo latino pré, signifi cando anterioridade, prever depois não é prever), prevenir antecipadamente (o prefi xo latino pre já traz em si a ideia de anterioridade), repetir de novo (em razão do prefi xo latino re, repetir já significa atuar de novo), boato falso (boato já signifi ca um relato sem correspondência com a verdade). 8) Veja-se como nem sempre é fácil identificar tautologias, quer por desconhecimento do real significado das palavras, quer porque há expressões que estão enraizadas no uso e são de difícil expurgo: abertura inaugural, acabamento fi nal, detalhes minuciosos, metades iguais, empréstimo temporário, encarar de frente, planejar antecipadamente, superávit positivo, vereador da cidade 9) Quanto à questão da consulta, não há dúvida de que são pleonasmos viciosos as expressões sair para fora, subir para cima, descer para baixo. 10) Mas é preciso que o leitor não se deixe enganar por falsas aparências. Quanto ao exemplo por ele trazido à consulta, veja-se que nem tudo o que se tira está dentro de algo. A par de exemplos com significação clara de retirar do interior de algo (como "Tirar os objetos da gaveta", de modo que "Tirar os objetos de dentro da gaveta", poderia ser tido como caso de pleonasmo vicioso), podem-se citar diversos outros em que o mencionado verbo tem o conteúdo semântico de extrair, mas não do interior de algo. Exs.: a) "O general tirou seus soldados da linha de tiro"; b) "O engenheiro mandou tirar da estrada a pedra que caíra do morro". E, nesses casos, obviamente não se há de ver em tais frases a existência de pleonasmos viciosos.
quarta-feira, 16 de março de 2022

Reconstrói-a - Como completar?

1) Um leitor relata uma história fictícia, para deixar mais clara sua pergunta: "Digamos que minha casa caiu e está destruída. Agora, quero pedir ao pedreiro que a reconstrua, mas de modo que ela jamais torne a ruir. Assim, qual seria a formulação correta do pedido: 'Reconstrói-a uma construção eterna' ou 'Reconstrói-a numa construção eterna'?" 2) Observa-se, de início, que a questão aqui posta não diz respeito tanto à Gramática, e sim mais fortemente à Estilística, que é o "ramo da linguística que estuda a língua na sua função expressiva, analisando o uso dos processos fônicos, sintáticos e de criação de significados que individualizam estilos".1  E se faz essa observação, porque o leitor parece querer saber muito menos da correção gramatical e muito mais dos modos como expressar-se para comunicar com mais adequação e eficiência seu pensamento. 3) Com essa ponderação como premissa, parece que se podem alinhar, sem pretender exaurir esse rol, ao menos quatro modos gramaticalmente corretos de expressar a mesma realidade, com ligeiras alterações de matiz nas diversas expressões: (i) "Reconstrói-a uma construção eterna"; (ii) "Reconstrói-a numa construção eterna"; (iii) "Reconstrói-a como uma construção eterna"; (iv) "Reconstrói-a para uma construção eterna". 4) Resolvida a indagação no plano da consulta formulada, acresce dizer que o leitor parece integrar aquele grupo de usuários do idioma que procuram não apenas escrever de modo gramaticalmente correto, mas que, em atenção a uma revisão estrita de seus textos, buscam, dentre os diversos modos corretos, optar por aquele que mais adequadamente expresse o pensamento e conte com o maior apuro estilístico. E é exatamente para essas pessoas que é útil lembrar um vetusto conselho, a dizer que a arte de escrever tem muito mais a ver com a borracha do que com o lápis. Vale dizer: registrar as ideias na escrita é apenas um primeiro passo; rever o que se escreveu é a parte mais importante e que toma o maior tempo. E, se essa observação vale para todos os usuários da língua, tem ela muito maior peso para os operadores do Direito. __________ 1 HOUAISS, Antônio (Organizador). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 1.254.
quarta-feira, 9 de março de 2022

Quem viver verá ou Quem viver, verá?

1) Um leitor indaga, em síntese, qual a forma correta de escrever, se com vírgula ou sem vírgula: a) Quem viver verá; ou b) Quem viver, verá? E desde logo se posiciona, dizendo que o emprego da vírgula estaria equivocado, já que é regra de Gramática que não se separa por vírgula o sujeito do predicado. 2) Ora, o exemplo trazido para a consulta costuma ser analisado sintaticamente de dois modos pelos gramáticos, e ambos têm sido aceitos como corretos. 3) Assim, para uma primeira corrente de gramáticos: (i) "Quem viver" seria o sujeito de "verá"; (ii) como tal sujeito está representado por uma oração, diz-se que é um sujeito oracional; (iii) e, como o pronome relativo quem não tem antecedente, ele é chamado de pronome relativo indefinido.1 4) Entendido o exemplo desse modo, pode-se aplicar ao caso exatamente a regra trazida pelo leitor: não se separa por vírgula o sujeito e o verbo (ou predicado). 5) Ocorre, todavia, que um outro grupo de gramáticos tem entendimento diverso: (i) em uma frase como essa, o pronome relativo "Quem" se desdobra, para efeito de análise sintática, na expressão "Aquele que"2; (ii) e o período todo, então, passa a ser, para tal análise, "Aquele que viver verá"; (iii) e, quando assim ocorre, tem-se, nesse período composto, uma oração principal ("Aquele [...] verá") e uma oração subordinada ("que viver"). 6) Entendido o exemplo desse último modo, então se segue este raciocínio: (i) a oração subordinada ("que viver"), iniciada por um pronome relativo, é oração subordinada adjetiva; (ii) e as orações adjetivas se bipartem em adjetivas explicativas e adjetivas restritivas; (iii) a restritiva serve para "delimitar ou definir melhor o seu antecedente"; (iv) assim, no exemplo, "O homem que trabalha vence" (não se diz que todo homem vence, mas, de modo restritivo, quer-se dizer apenas daquele que trabalha); (v) já a adjetiva explicativa "encerra uma simples explicação ou pormenor do antecedente, uma informação adicional de um ser que se acha suficientemente definido, podendo ser omitida sem prejuízo"3 ; (vi) assim acontece no exemplo "O homem, que é mortal, pode imortalizar-se por seus feitos"; (vii) vale dizer, o atributo de mortal, que a oração subordinada confere ao termo homem, não o restringe em extensão alguma, mas apenas lhe dá uma explicação. 7) Com essas informações sobre o conteúdo e a natureza dessas orações adjetivas, segue-se em frente para dizer o que se dá com sua pontuação: (i) a oração subordinada adjetiva explicativa vem separada da oração principal por vírgulas; (ii) porque, no caso, ela se intercala na oração principal, acaba tendo vírgula antes e depois de si; (iii) reveja-se o exemplo dado ("O homem, que é mortal, pode imortalizar-se por seus feitos"; (iv) já a oração subordinada adjetiva restritiva não se separa por vírgulas da oração principal; (v) confira-se o exemplo dado ("O homem que trabalha vence"). 8) Obedecidas essas regras gerais, acrescem-se as seguintes ponderações: (i) com relação ao cerne da questão posta pelo leitor, embora seja obrigatório não haver vírgula no começo da oração adjetiva restritiva, acaba sendo optativo seu emprego ao final dela; (ii) desse modo, também estaria correto pontuar o exemplo por último referido obedecendo-se a essa observação ("O homem que trabalha, vence"); (iii) reiterando, porque o período contém uma oração subordinada adjetiva restritiva, tanto é correto não colocar vírgula alguma para separá-la da oração principal ("O homem que trabalha vence"), como também é correto empregar uma vírgula ao final da oração adjetiva restritiva ("O homem que trabalha, vence"). 9) Considerando o exemplo trazido pelo leitor ("Quem viver verá"), pode-se desenvolver o seguinte raciocínio completo: (i) numa primeira interpretação, pode-se considerar "Quem viver" como sujeito de "verá"; (ii) por ser formado por uma oração, diz-se que esse é um sujeito oracional; (iii) e, como o pronome relativo quem não tem antecedente, chama-se pronome relativo indefinido; (iv) e, uma vez feita tal análise, aplica-se a regra trazida pelo leitor, segundo a qual não se separa por vírgula o sujeito do verbo (ou do predicado); (v) quando, porém, se observa a lição de um outro grupo de gramáticos, então se desdobra o pronome relativo "Quem" na expressão "Aquele que"; (vi) tem-se, então, o período "Aquele que viver verá"; (vii) e, nesse novo período, tem-se uma oração principal ("Aquele [...] verá") e uma subordinada ("que viver"); (viii) essa oração subordinada ("que viver"), por força do raciocínio anteriormente feito, é uma adjetiva restritiva; (ix) ora, quando se tem uma oração subordinada adjetiva restritiva, tanto é correto não colocar vírgula alguma para separá-la da oração principal ("O homem que trabalha vence"), como se pode empregar uma vírgula ao final da oração adjetiva restritiva ("O homem que trabalha, vence"); (x) essa mesma lição se aplica à oração estendida do exemplo do leitor ("Aquele que viver verá" ou "Aquele que viver, verá"; (x) e também essa mesma lição vale para o exemplo original trazido pelo leitor ("Quem viver verá" ou "Quem viver, verá"). __________ 1 CUNHA, Celso. Gramática Moderna. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1970, 2. ed., p. 163. 2 CUNHA, Celso. Gramática Moderna. Belo Horizonte: Bernardo Álvares, 1970, 2. ed., p. 164. 3 BECHARA, Evanildo. Moderna Gramática Portuguesa. 19. ed., segunda reimpressão. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1974, p. 228.
quarta-feira, 2 de março de 2022

Botim, Potim, Butim - Existem em nosso idioma?

1) Um leitor indaga, em síntese, qual é o termo que se usava para nomear o conjunto de bens arrebanhados pelos piratas em suas pilhagens: potim, putim, botim? 2) O que se vai fazer aqui é, em última análise, um roteiro de como se deve proceder em situações como esta, em que (i) quer saber se o vocábulo existe em nosso idioma e/ou (ii) qual é o significado da palavra. A ideia é deixar o leitor autônomo, autossuficiente e capacitado a resolver questões dessa natureza por si próprio. 3)Quando se quer saber se um determinado vocábulo existe ou não em nosso idioma, o primeiro passo é lembrar que, entre nós, a Academia Brasileira de Letras é o órgão incumbido, desde a edição da Lei 726/1900, de definir a existência, a grafia oficial, o gênero e as peculiaridades dos vocábulos em nosso idioma. 4) E a ABL, para atender a essa autorização legal, o faz oficialmente pela edição, de tempos em tempos, do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP). Mais modernamente, ela também tem disponibilizado em seu site pela internet o rol dessas palavras e expressões oficialmente existentes, bem como tem registrado as demais peculiaridades dos vocábulos. Reitere-se, então, que o primeiro passo para solucionar o desafio é consultar o VOLP, a fim de saber se o vocábulo efetivamente existe na língua portuguesa. 5) Com essa anotação como premissa, uma consulta à referida obra revela que os vocábulos botim e butim existem em nosso idioma, mas não potim nem putim. Em continuação, embora normalmente não insira o significado dos vocábulos que registra, o VOLP, no caso, por entender que deve fazer distinção de casos que podem gerar confusão, dá para botim o conteúdo semântico de botinha e a butim dá o sentido de espólio.1 6) E, como o VOLP normalmente não fornece o significado das palavras que registra, então o segundo passo é consultar dicionários abalizados, para se ter uma ideia real do conteúdo semântico dos vocábulos pretendidos. 7) O Dicionário Aurélio confere a botim a significação de "bota de cano curto"2, enquanto o Dicionário Houaiss fala em "bota de cano mole, que chega ao meio da perna".3 8) Já para butim, Houaiss registra o significado de "produto de roubo ou pilhagem"4, e Aurélio o conceitua como o "despojo do inimigo, de que o vencedor se apropria".5 9) Voltando, de modo direto, à consulta do leitor, então se pode dizer que o termo que se usa para nomear o conjunto de bens arrebanhados pelos piratas em suas pilhagens só pode ser butim. É claro que, nessa tarefa, nada impedia que os piratas estivessem usando botins. __________ 1 Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Imprinta, 2004, p. 129 e 138. 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010, p. 342. 3 HOUAISS, Antônio (Organizador). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Ob­jetiva, 2001, p. 498. 4 HOUAISS, Antônio (Organizador). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Ob­jetiva, 2001, p. 535. 5 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010, p. 363.
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Vírgula e orações subordinadas adverbiais

1) Um leitor traz dúvida quanto ao emprego de vírgula para separar as orações subordinadas adverbiais de suas respectivas orações principais, podendo-se destacar os seguintes pontos: (i) a vírgula pode ou não pode ser usada para separar a oração principal da subordinada adverbial na ordem direta?; (ii) em uma informação encontrada na internet, teve ele a informação de que "a vírgula pode ser usada para separar a oração principal da subordinada adverbial"; (iii) e ele ficou na dúvida; (iv) afinal, pode ou não pode? 2) Ora, para não haver um excesso de informações teóricas (até porque a indagação do leitor é direta e pressupõe seu conhecimento do assunto especificamente tratado quanto à análise sintática), deixa-se de trazer uma série de informações sobre o que sejam orações subordinadas adverbiais e o que sejam orações principais. 3) Feitas essas observações, invoca-se, por aplicável ao caso, uma regra específica para o emprego da vírgula nos períodos compostos: as orações subordinadas adverbiais, desde que não sejam de pequena extensão, normalmente são separadas por vírgula de suas orações principais, não importando qual delas vem antes. Exs.: (i) "A memória dos velhos é menos pronta, porque seu arquivo é mais extenso" (oração subordinada adverbial causal); (ii) "O homem prudente se humilha pela experiência, como as espigas se curvam por maduras" (oração subordinada adverbial comparativa); (iii) "Não desfrutou o resultado de seu esforço, embora tenha trabalhado a vida toda" (oração subordinada adverbial concessiva); (iv) "Os homens seriam incapazes de heroísmo, se não tivessem alguma coisa de loucos" (oração subordinada adverbial condicional); (v) "Viajou para o exterior com todos os seus pertences, conforme lhe determinara o severo pai" (oração subordinada adverbial conformativa); (vi) "Devemos viver a nossa vida de tal modo, que possamos não recear depois da morte" (oração subordinada adverbial consecutiva); (vii) "Fiz-lhe sinal de modo claro e intenso, para que não cometesse alguma indiscrição naquela hora" (oração subordinada adverbial final); (viii) "O instinto dos homens enfraquece, à medida que sua razão se desenvolve" (oração subordinada adverbial proporcional); (ix) "Ele se desesperou de todas as circunstâncias e possibilidades, quando percebeu a total falta de saídas para seu problema" (oração subordinada adverbial temporal). 4) Com essas informações, podem-se extrair as seguintes ilações com respeito às indagações formuladas pelo leitor: (i) se a oração subordinada é de razoável extensão, usa-se a vírgula para separá-la de sua oração principal, não importando a ordem em que elas se encontrem, tudo como está no item anterior; (ii) se, porém, a oração subordinada é de pequena extensão e vem depois da oração principal, pode-se dispensar a vírgula (como no exemplo "Vim aqui para trabalhar"; (iii) nesse caso, entretanto, se a oração subordinada vem antes da principal, utiliza-se a vírgula (como no exemplo "Se quiser, pode ficar aqui"; (iv) deve-se ponderar, entretanto, que, diferentemente de outros aspectos de Gramática (como os equívocos de concordância e de regência), a pontuação não constitui ponto em que exista clara distinção entre o certo e o errado; (v) por essa razão, o leitor vai encontrar diversos exemplos que podem vir a contrariar o que aqui se afirma; (vi) importa finalizar dizendo, contudo, que, seguindo pelos caminhos aqui traçados, o leitor não vai cometer erros nesse assunto.
quarta-feira, 16 de fevereiro de 2022

Um dos que - Denunciou ou Denunciaram?

1) Um leitor indaga, em suma, se, com a expressão um dos que, o verbo fica no singular ou vai para o plural. Vejam-se os seguintes exemplos trazidos para consulta: (i) "O professor José Maria é um dos que dá aula de português" (ou um dos que dão?); (ii) "Bob Woodward foi um dos que denunciou o Presidente Nixon" (ou um dos que denunciaram?); (iii) "Severino é um dos nordestinos que migrou para São Paulo nos últimos cem anos" (ou um dos que migraram?). 2) Ora, o circunlóquio da consulta configura expressão que traz problemas quanto à concordância verbal. 3) Com ela no sujeito, o verbo pode concordar optativamente no singular ou no plural. Exs.: a) "Dentre nossos juristas, Vicente Rao foi um dos que maisabusou do talento e da cultura" (correto); b) "Dentre nossos juristas, Vicente Rao foi um dos que mais abusaram do talento e da cultura" (correto). 4) Após lembrar que tal expressão às vezes faz o verbo concordar no singular, às vezes no plural, Júlio Nogueira observa o que sintaticamente se dá: na segunda hipótese, "predomina o plural os, contido em dos; na primeira, um". 5) Em continuação, opina o referido gramático: "Parece-nos preferível o verbo no plural, e usá-lo assim é a tendência mais generalizada"1. 6) Embora haja a condenação de alguns gramáticos ora a esta, ora àquela construção, Laudelino Freire2, fundando-se em diversos exemplos de abalizados autores e reforçado pela autoridade de conceituados gramáticos, defende a concordância do verbo, em tais casos, tanto no singular quanto no plural, refutando superiormente tais invectivas adversárias. 7) Júlio Nogueira3, de seu lado, assevera que, "com um dos que é preferível o plural"; por outro lado, assevera que, "se, porém, vale o exemplo dos clássicos, pode-se usar o singular", passando a arrolar exemplos abalizados de bons escritores: a) "Foi uma das primeiras terras de Espanha que recebeu a fé de Cristo"4; b) "Uma das causas que derribou a Galba do Império foi...". 8) Para Laudelino Freire5, "há dupla sintaxe para as orações em que o pronome que vem precedido de um dos, uma das", observando tal gramático que, à semelhança do que ocorre na língua francesa, são facilmente justifi cáveis ambas as concordâncias. 9) Em realidade, autorizadas que estão as duas construções em nosso idioma, pode-se asseverar que, hoje, a questão é apenas de sentido: com o verbo no singular, realça-se a ideia da ação individual; com o verbo no plural, reforça-se o aspecto da ação coletiva. 10) Voltando, de modo específico, à indagação do leitor, pode-se dizer que, com a expressão um dos que, o verbo pode tanto concordar no singular como no plural, de modo que estão corretas todas as concordâncias trazidas nos exemplos: (i) "O professor José Maria é um dos que dá aula de português"; (ii)"O professor José Maria é um dos que dão aula de português"; (iii) "Bob Woodward foi um dos que denunciou o Presidente Nixon"; (iv) "Bob Woodward foi um dos que denunciaram o Presidente Nixon"; (v) "Severino é um dos nordestinos que migrou para São Paulo nos últimos cem anos; (vi) "Severino é um dos nordestinos que migraram para São Paulo nos últimos cem anos". _____ 1 NOGUEIRA, 1959, p. 112. 2 1937a, p. 18-23. 3 1939, p. 212. 4 Frei Luís de Sousa. 5 1937b, p. 97.
quarta-feira, 9 de fevereiro de 2022

Um deles - Foi ou Foram?

1) Um leitor indaga, em suma, qual das duas formas é correta: "Um deles foi (ou foram?) aos Jogos Olímpicos". 2) Vejam-se as seguintes expressões: um deles, um de nós, alguém deles, alguém de nós, alguns deles, alguns de nós, cada um deles, cada um de nós, vários deles, vários de nós. 3) Em estruturas como essas na função sintática de sujeito, a concordância do verbo é bastante fácil e simples. 4) Assim, se o primeiro desses vocábulos está no singular, o verbo haverá de concordar, sempre e necessariamente, na terceira pessoa do singular: (i) "Um deles foi até o árbitro tirar satisfação"; (ii) "Um de nós, necessariamente, deverá apresentar-se ao fiscal da Receita Federal"; (iii) "Alguém deles descumpriu o regulamento"; (iv) "Alguém de nós deveria ter ido ao casamento de Rogéria"; (v) "Cada um deles agia como se fosse dono da empresa"; (vi) "Cada um de nós precisará trabalhar por dois". 5) Reforce-se, para não remanescer dúvida alguma, que apenas essa é a forma correta e adequada de concordância do verbo, de modo que não é possível nem correto, nesses casos, fazer a concordância com o segundo de tais pronomes: (i) "Um deles foram até o árbitro tirar satisfação" (errado); (ii) "Um de nós, necessariamente, deveremos apresentar-nos ao fiscal da Receita Federal" (errado); (iii) "Alguém deles descumpriram o regulamento" (errado); (iv) "Alguém de nós deveríamos ter ido ao casamento de Rogéria" (errado); (v) "Cada um deles agiam como se fosse dono da empresa" (errado); (vi) "Cada um de nós precisaremos trabalhar por dois" (errado). 6) Se, porém, o primeiro desses vocábulos está no plural, o verbo pode concordar ou com o primeiro pronome ou com o segundo deles, conforme se queira realçar ou não a atuação da pessoa que está falando: (i) "Uns de nós foram até o árbitro tirar satisfação" (correto); (ii) "Uns de nós fomos até o árbitro tirar satisfação" (correto); (iii) "Alguns de nós deveriam ter ido ao casamento de Rogéria" (correto); (iv) "Alguns de nós deveríamos ter ido ao casamento de Rogéria" (correto); (v) "Vários de nós invadiram o gramado" (correto); (vi) "Vários de nós invadimos o gramado (correto)". 7) Respondendo diretamente à indagação do leitor, apontam-se os exemplos, com a indicação da correta ou incorreta concordância entre parênteses: (i) "Um deles foi aos Jogos Olímpicos" (correto); (ii) "Um deles foram aos Jogos Olímpicos" (errado) ; (iii) "Uns de nós foram aos Jogos Olímpicos" (correto); (iv) "Uns de nós fomos aos Jogos Olímpicos" (correto).
quarta-feira, 2 de fevereiro de 2022

Sucedâneo ou Supedâneo?

1) Um leitor indaga, em suma, qual das duas formas é correta: sucedâneo ou supedâneo. 2) Antes de qualquer outro comentário, importa observar que, entre nós, tem-se a Academia Brasileira de Letras como o órgão incumbido, desde a Lei 726/1900, de definir a existência, a grafia oficial, o gênero e as peculiaridades dos vocábulos em nosso idioma; e ela, para atender a essa autorização legal, o faz oficialmente pela edição, de tempos em tempos, do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (VOLP). Mais modernamente, ela também tem disponibilizado em seu site pela internet o rol dessas palavras e expressões oficialmente existentes. 3) E uma consulta ao VOLP revela que nele se registram ambos os vocábulos: sucedâneo e supedâneo.1 4) Como, todavia, não é usual o registro do significado dos vocábulos no VOLP, então se deve recorrer aos dicionaristas para solucionar o desafio. 5) O Dicionário Aurélio conceitua sucedâneo como "qualquer coisa capaz de substituir outra".2 Ex.: "Daí resultou o drama de Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Pessanha, almas atormentadas pela angústia metafísica, pela idealização da beleza como sucedâneo da perfeição moral" (Henriqueta Lisboa). Já para supedâneo, que tem os sentidos mais diretos de banco para descanso dos pés, o Dicionário Houaiss, além da conotação objetiva de pedestal, traz o sentido figurado de base ou suporte.3 Ex.: "A decisão foi tomada com supedâneo em princípio constitucional". 6) Ambos os termos - que coexistem no idioma, mas com conteúdo semântico totalmente distinto um do outro - são muito utilizados na linguagem forense e jurídica, e a leitura de alguns exemplos demonstra com facilidade essa questão. 7) Assim, num primeiro aspecto, vejam-se casos de emprego de sucedâneo (a significar, portanto, substituto com as mesmas propriedades do substituidor): (i) "Como sedimentou a Súmula 267 do STF, o mandado de segurança não é sucedâneo de outros recursos"; (ii) "De igual modo, como se registra na Súmula 269 do mesmo STF, o mandado de segurança não é sucedâneo da ação de cobrança". 8) Já num segundo aspecto, considerem-se alguns exemplos de supedâneo (com o conteúdo semântico, assim, de fundamento, base ou suporte: (i) "Como é de fácil percepção apenas pela leitura do acórdão, não há supedâneo algum para a condenação do réu"; (ii) "Com supedâneo no art. 840 do Código Civil, o magistrado homologou a transação havida entre as partes". _____ 1 Academia Brasileira de Letras. Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa. 4. ed. Rio de Janeiro: Imprinta, 2004, p. 770 e 772. 2 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Dicionário Aurélio da Língua Portuguesa. 5. ed. Curitiba: Positivo, 2010, p. 1976 e 1982. 3 HOUAISS, Antônio (Organizador). Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2001, p. 2.639.
quarta-feira, 26 de janeiro de 2022

Que posicionou-se ou Que se posicionou?

1) Um leitor indaga, em síntese, se é correta a colocação do pronome pessoal oblíquo átono se na seguinte frase que encontrou: "'A decisão é da 1ª câmara Cível do TJ/SC, que posicionou-se pela manutenção da sentença...". E complementa se não seria melhor escrever "que se posicionou". Vale dizer: questiona ele se, no caso, não seria melhor colocar o pronome em próclise (antes do verbo), e não em ênclise (depois do verbo), e isso por conta da força de atração do que. 2) Para dar ao leitor uma resposta mais fundamentada, parte-se de algumas considerações, que servem de premissas necessárias a um raciocínio adequado quanto à colocação dos pronomes. 3) Expressão também conhecida como topologia pronominal, a colocação de pronomes significa, em Gramática, o estudo da colocação do pronome pessoal oblíquo átono na frase, considerado em relação ao verbo. 4) Por ser átono (sem autonomia sonora), tal pronome depende do verbo por ele completado, cingindo- -se a questão a verifi car onde a sonoridade melhor aconselha seu posicionamento. 5) Se o pronome átono vem antes do verbo, diz-se que há próclise. Ex.: "O advogado não se conteve em au- diência". 6) Se o pronome átono vem no meio do verbo, diz-se que há mesóclise. Ex.: "Realizar-se-á o júri de acordo com a designação anterior". 7) Se o pronome átono vem depois do verbo, diz-se que há ênclise. Ex.: "Conteve-se o advogado apesar das ofensas do causídico adversário". 8) Porque o emprego desta ou daquela colocação de- pende da eufonia, há quem diga, como Antenor Nascentes, que "o uso da próclise e o da ênclise, isto é, da colocação anterior ao verbo e da posterior, no tocante aos pronomes pessoais oblíquos, regula-se exclusivamente pelo ouvido" (1942, p. 152). 9) Fundado em tal posicionamento, assevera, em se- quência, o referido gramático: "Em matéria de co- locação de pronomes não há certo nem errado; há elegante e deselegante" (NASCENTES, 1942, p. 153). 10) Em termos genéricos - até para se ter a real dimensão da divergência que, nesse assunto, grassa ente os gramáticos, sobretudo pela diversidade de entonação entre a pronúncia brasileira e a portuguesa - para alguns deles, a posição considerada normal dos pronomes átonos é a ênclise (depois do verbo). J. Mattoso Câmara Jr., entretanto, em lição transcrita por Geraldo Amaral Arruda (1997, p. 60) tem opinião diferente, quando afirma que "o gênio da língua, para o português (do Brasil) não favorece a ênclise; e a próclise é geral, em princípio". 11) Com essas considerações como premissas, visto que não se tem o verbo no futuro do presente nem no futuro do pretérito (o que afastaria a possibilidade de ênclise e permitiria o raciocínio correspondente como mesóclise), deve-se atentar aos seguintes aspectos: (i) o lugar natural do pronome, nesses casos, é a ênclise; (ii) esse pronome apenas é atraído para a colocação em próclise, quando há, logo antes do verbo, alguma daquelas palavras chamadas atrativas (e isso porque a eufonia, em tais hipóteses, diz que o melhor lugar para o pronome é antes do verbo): (iii) as palavras atrativas são (a) as negativas , (b) os advérbios, (c) os pronomes relativos, (d) os pronomes indefinidos e (e) as conjunções subordinativas; (iv) e, quando se faz presente uma dessas palavras atrativas logo antes do verbo, a próclise é obrigatória. 12) Como, no caso da consulta, o que pode ser substituído por o qual, a conclusão óbvia é que ele constitui um pronome relativo e, por conseguinte, tipifica uma dessas chamadas palavras atrativas. 13) E isso faz concluir que o leitor tem razão, de modo que a única forma correta para a frase apontada é "que se posicionou", e não "que posicionou-se".
quarta-feira, 19 de janeiro de 2022

Gostaria que ou Gostaria de que?

1) Um leitor indaga, em síntese, qual a forma correta (e aqui se completam os exemplos por ele trazidos, para maior facilidade didática): (i) "Gostaria de que você viesse visitar-me"; (ii) "Gostaria que você viesse visitar-me". 2) No que concerne à regência, não se discute que é correto dizer estar certo de que, estar persuadido de que, não há dúvida de que... 3) Assis Cintra, todavia, prega que, em tais casos, "a preposição de pode ser omitida com vantagem para a elegância da frase". 4) E traz ele exemplos dos mais significativos, extraídos dos mestres de nossa língua: a) "Não podemos duvidar que nos dará outro..." (Padre Antônio Vieira); b) "Lembrava-se que o pai a prevenira" (Camilo Castelo Branco). 5) Com argumentos dessas e de outras autoridades da língua, assim conclui o referido autor: "Não se deve considerar erro a frase 'Estou certo que o amigo virá' por 'Estou certo de que o amigo virá'. Tanto uma como outra é correta, porém há casos em que a supressão da preposição imprime elegância à frase" (CINTRA, 1922, p. 110-1). 6) Considerando exemplos como "Estou certo de que és culpado" e "Estamos persuadidos de que o fato existiu", anota, de igual modo, Cândido Jucá Filho (1981, p. 67) que tais estruturas "permitem a supressão do nexo prepositivo". 7) Também justifica o mencionado autor a possibilidade de omissão da preposição antes da conjunção integrante: assim, para ele, "Gosto que tu te divirtas" será tão correta quanto "Gosto de que tu te divirtas". 8) De igual modo, dá ele por justificada a omissão da preposição antes do infinitivo (JUCÁ FILHO, 1981, p. 67): a) "Apenas tive notícias de que V. M. gostaria ver escritas as vidas dos sereníssimos reis portugueses" (Melo); b) "... embora gostasse conduzir um cavalo bravo" (Antero de Quental). 9) Além desses, lembra ainda Laudelino Freire (1937b, p. 107) outros casos em que se dá a supressão da preposição antes do que, ainda que imposto seu emprego pela regência gramatical, trazendo em corroboração exemplos de autores insuspeitos: a) "Terrível palavra é um não. Não tem direito nem avesso; por qualquer lado que (em que) tomeis, sempre soa e diz o mesmo" (Vieira); b) "E o Arcebispo saía a continuar o seu ofício com a mesma vigilância e cuidado que (com que) soia" (Frei Luís de Sousa). 10) Com essas observações como premissas e voltando à dúvida trazida pelo leitor, pode-se, então, afirmar que estão corretas ambas as formas por ele trazidas: (i) "Gostaria de que você viesse visitar-me"; (ii) "Gostaria que você viesse visitar-me".