1) Um leitor, após pesquisar, observa que não encontrou lei que delegue à Academia Brasileira de Letras "a responsabilidade de editar o VOLP, nem de ditar a grafia oficial dos vocábulos da língua pátria". Por isso, pede esclarecimentos sobre o assunto.
2) Remontando a cronologia, diga-se que, três anos após sua fundação (20/7/1897), a Academia Brasileira de Letras se beneficiou com a edição do Decreto federal 726, de 8/12/1900, pelo qual:
(i) se autorizava o Governo a dar permanente instalação à ABL em prédio público,
(ii) se concedia à ABL franquia postal e
(iii) se determinavam outras providências.
3) Em homenagem a alguém que sempre procurou o bem da ABL, incluindo seu reconhecimento como instituição de utilidade pública, tal decreto acabou sendo também conhecido pelo nome de Lei Eduardo Ramos. Quanto a esse personagem, acrescente-se que, mesmo sendo conhecido entre os escritores de sua época e tido como um dos fundadores da Academia, por nunca fazer campanha em benefício próprio, só conseguiu entrar na Casa de Machado de Assis no fim da vida. E mais: faleceu antes de tomar posse.
4) Pois bem. Costuma-se dizer que, desde a Lei Eduardo Ramos, a ABL tem a incumbência e a delegação legal para listar oficialmente os vocábulos que integram nosso léxico, bem como fixar sua grafia, pronúncia, gênero, etc. Independentemente de rigidez e técnica jurídica sobre a questão, essa posição tem sido assim reconhecida sem contestações ao longo de décadas.
5) Exatamente com esse perfil de conduta, por iniciativa da ABL e anuência da Academia de Ciências de Lisboa, para minimizar os inconvenientes de duas ortografias oficiais da língua portuguesa, foi aprovado, em 1931, o primeiro acordo ortográfico entre Brasil e Portugal, o qual, na prática, acabou não produzindo a tão desejada unificação dos dois sistemas ortográficos.
6) Por não se implementar, na prática, o acordo de 1931, a ABL, em sessão de 12/8/1943, por votação unânime, aprovou as instruções para a organização do Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa (o que se denominou Formulário Ortográfico). Mais uma vez sem o rigor técnico do que juridicamente se tem como delegação legal, a ata da respectiva reunião registrava que esse regramento se fazia "consoante a sugestão do Sr. Ministro da Educação".
7) E mais: confirmando esse aspecto de delegação efetiva, mesmo sem o rigor técnico do vocábulo, a introdução do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa de 1943 assim registrava:
"A Academia Brasileira de Letras recebeu de Sua Excelência o Senhor Presidente da República a incumbência de elaborar o vocabulário ortográfico de que tratam os decretos-leis 292, de 23 de fevereiro de 1938, e 5.186, de 13 de janeiro de 1943".
8) Dois anos depois, ante as divergências dos vocabulários publicados por ambas as academias, em evidente demonstração da pobreza dos resultados práticos do acordo de 1943, realizou-se, em 1945, em Lisboa, novo encontro entre representantes das duas agremiações, o qual conduziu à chamada Convenção Ortográfica Luso-Brasileira de 1945. Mais uma vez, contudo, esse acordo não produziu os almejados efeitos, sendo adotado em Portugal, mas não no Brasil, por ser tido aqui como inaceitável, porquanto se conservavam consoantes mudas e não articuladas, já abolidas em nosso país, além de haver radicalismo na questão da acentuação de certas proparoxítonas (como acadêmico, gênero e tônico), sobre as quais os portugueses queriam pôr acento agudo, e não circunflexo.
9) Mais de vinte anos depois, veio a lei 5.765, de 18/12/1971 (em Portugal, a lei respectiva foi promulgada em 1973), a qual nada mais fez do que sacramentar um parecer conjunto da ABL e da Academia de Ciências de Lisboa sobre as alterações na ortografia da língua portuguesa. E, no art. 2º dessa lei, constou o registro claro da delegação à ABL para a incumbência: "a Academia Brasileira de Letras promoverá, dentro do prazo de dois anos, a atualização do Vocabulário Comum, a organização do Vocabulário Onomástico e a republicação do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa nos termos da presente lei".
10) Ao depois, porque, apesar dessas iniciativas louváveis, continuavam a persistir divergências sérias entre os dois sistemas ortográficos, as duas academias elaboraram em 1975 um novo projeto de acordo, que não foi levado adiante por razões de ordem política.
11) Por isso, em maio de 1986, houve um novo encontro no Rio de Janeiro, e nele, pela primeira vez na história da língua portuguesa, se encontraram representantes não apenas de Portugal e Brasil, mas também dos novos países africanos lusófonos emergidos da descolonização portuguesa (só Guiné-Bissau não veio, e o Timor Leste ainda não era independente). A tentativa de acordo foi abandonada, porque as propostas foram tidas como drásticas (em um dos itens, pretendia-se, simplesmente, suprimir o acento em todas as palavras paroxítonas e proparoxítonas).
12) Anos depois, em 1990, os países lusófonos, em inteligente atitude de concessões mútuas e de abrangência para aceitar diversidades práticas, firmaram o chamado Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, e nele, para o que aqui interessa, alguns aspectos importantes podem ser observados:
I) o Brasil se fez representar, naquela oportunidade, por seu próprio Ministro da Educação;
II) o projeto de texto de ortografia unificada, pelo lado brasileiro, fora elaborado pela ABL;
III) por ser menos radical que o anterior, o acordo acabou sendo frutífero;
IV) os signatários deveriam torná-lo lei em seus respectivos países;
V) a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras seriam as responsáveis pela publicação de um vocabulário ortográfico comum.
13) Para implementar o referido Acordo Ortográfico, editaram-se, aqui no Brasil, os Decretos federais 6.583, 6.584 e 6.585, todos de 29/9/2008, e se aprovou o Protocolo Modificativo ao mencionado acordo, tendo o art. 2º deste último a seguinte redação:
"Os Estados signatários tomarão, através das instituições e órgãos competentes, as providências necessárias com vista à elaboração de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa, tão completo quanto desejável e tão normalizador quanto possível, no que se refere às terminologias científicas e técnicas".
14) Uma síntese cronológica dessa exposição demonstra que a ABL sempre foi e continua sendo a instituição incumbida de autoridade oficial pelo Poder Público brasileiro para organizar, gerir e ditar as regras sobre ortografia:
I) assim, para as normas do Formulário Ortográfico de 1943, "a Academia Brasileira de Letras recebeu de Sua Excelência o Senhor Presidente da República a incumbência de elaborar o vocabulário ortográfico de que tratam os decretos-leis 292, de 23 de fevereiro de 1938, e 5.186, de 13 de janeiro de 1943";
II) quando veio a lume a lei 5.765, de 18.12.1971, que nada mais fez do que sacramentar um parecer conjunto da ABL e da Academia de Ciências de Lisboa sobre as alterações na ortografia da língua portuguesa, seu art. 2º também outorgava delegação clara à ABL sobre o assunto: "a Academia Brasileira de Letras promoverá, dentro do prazo de dois anos, a atualização do Vocabulário Comum, a organização do Vocabulário Onomástico e a republicação do Pequeno Vocabulário Ortográfico da Língua Portuguesa nos termos da presente lei";
III) pelo Acordo de 1990, assinado pelo próprio Ministro da Educação brasileiro, a Academia de Ciências de Lisboa e a Academia Brasileira de Letras seriam as responsáveis pela publicação de um vocabulário ortográfico comum;
IV) quando da edição dos Decretos federais 6.583, 6.584 e 6.585, todos de 29.9.2008, com o que se aprovou o Protocolo Modificativo ao Acordo Ortográfico de 2008, o art. 2º deste último determinava que os Estados signatários tomariam as providências necessárias à elaboração de um vocabulário ortográfico comum da língua portuguesa por intermédio das instituições e órgãos competentes, o que, no que tange ao Brasil, significa que as providências a tanto necessárias seriam tomadas pela Academia Brasileira de Letras;
V) assim, na prática e em resumo, ainda que se entenda, em interpretação restritiva, que a Lei Eduardo Ramos, de 1900, não outorgava delegação legal à ABL, o certo é que tal incumbência para ditar oficialmente regras sobre ortografia lhe foi concedida por leis posteriores, e a referida entidade continua detendo, nos dias de hoje, essa autoridade oficial por delegação do Poder Público;
VI) porque a ABL detém delegação legal para ditar normas de ortografia e porque ela exerce tal autoridade por via do VOLP, a grafia neste constante é lei e a ela devemos prestar obediência, ainda que com ela não concordemos pelas mais diversas razões, inclusive de ordem científica, como, às vezes, acontece com outras leis, às quais, todavia, continuamos a obedecer.