1) Um leitor quer saber alguns aspectos centrados na palavra negro:
a) sua gênese;
b) se, na origem, é referência à cor das pessoas ou à ausência de luz;
c) se denegrir tem conotação racista e se é referência, já há mais de 2.000 anos, aos negros.
2) Observe-se, num primeiro aspecto, que, nos idiomas em geral, os nomes ou apelidos pelos quais as pessoas passam a ser conhecidas originam-se às vezes de suas características físicas, e isso não necessariamente com intento de zombaria ou depreciação, mas como facilitação para seu reconhecimento e identificação. Assim, Laura significa loura, Flávio também quer dizer loiro, e Nívea é aquela da cor da neve. Cláudio, em latim, quer dizer manco (daí o verbo claudicar na etimologia, hoje com o significado de tropeçar), e esse não era o nome do imperador romano, que assim ficou conhecido, porque tinha um defeito na perna. De igual modo, Paulo não era nome, mas significava, apenas e tão somente, pequeno. O apóstolo, de nome Saulo, bem possivelmente, recebeu esse apelido em razão de sua estatura. E Cícero também não era o nome nem o sobrenome de Marco Túlio, mas significa grão-de-bico e tinha sido dado como apelido a um antepassado seu, em razão de uma verruga no nariz, semelhante ao mencionado vegetal. Ao entrar na vida pública, sugeriram a Marco Túlio que se abstivesse de usá-lo. Ele se negou, e foi com ele que se celebrizou para a posteridade.
3) Feita essa observação, acrescenta-se, quanto ao vocábulo negro, de existência multissecular no latim e nas línguas dele oriundas, que sempre serviu, desde a origem, para indicar a coloração escura dos objetos e sempre possuiu diversos cognatos, ou seja, palavras do mesmo radical: niger (adjetivo que significa negro, preto ou escuro), nigrescere e nigrare (verbos que têm o sentido de tornar negro ou escurecer), nigricolor, nigritia e nigritudo (de cor preta, negror e negritude).
4) E, das coisas, a aplicação de seu sentido passou também para as pessoas, a fim de que, por meio de nomes próprios, estas pudessem ter neles a caracterização desse aspecto físico da tez de sua pele mais escura ou mesmo negra: Nigel, nome muito usado em inglês, significa negro ou escuro; Nigella, nome de chef famosa, como diminutivo feminino que é, quer dizer negrinha ou escurinha; Nigro, sobrenome de tantas famílias italianas, tem o mesmo significado; e o livro de Atos dos Apóstolos menciona que, na igreja de Antioquia, havia uma pessoa chamada "Simeão cognominado Níger" (At 13:1). Será difícil, em qualquer critério de hermenêutica, entender que a Bíblia quisesse dar conotação racista à referência do apelido aqui mencionado.
5) Ainda como real apelido, nas décadas de sessenta e setenta do século passado, falava-se que, na noite anterior, o Santos ganhara mais um jogo, e o Negrão havia feito dois gols. Todos sabiam que o termo se referia ao maior jogador de futebol de todos os tempos. E todos também sabiam que o termo era falado com orgulho e como sinal de distinção entre todos os demais, mesmo pelos torcedores dos times adversários, sem conotação de xingamento, depreciação ou racismo. E também não parece haver alguém que veja alguma conotação de xingamento, ironia ou diminuição, quando se fala em Dia da Consciência Negra.
6) Por outro lado, pela observação da natureza, verifica-se que a um dia claro, de sol brilhante, contrapõe-se uma noite escura, ou nuvens carregadas, ou um mar tempestuoso e plúmbeo. E todas essas são situações de características físicas advenientes da coloração, que fazem com que se diga noite negra, ou nuvens negras, ou mar negro. Ou seja: mera oposição de circunstâncias físicas, e só há de ver racismo nesse modo de falar quem esteja predisposto a tanto.
7) Além disso, no sentido figurado, a uma situação límpida e clara, em que os elementos de raciocínio podem ser entrevistos de modo bastante preciso e cristalino, contrapõe-se um outro quadro de confusão, em que não se podem distinguir as ideias, nem direcionar o modo de pensar. Na primeira situação, diz-se que o raciocínio é claro, enquanto na segunda, que tudo está escuro. Tão difícil como encontrar um outro modo de expressar com tanta felicidade o que se quer dizer numa situação como essa é acreditar que essa última forma de concluir seja depreciativa e racista.
8) Mas não é só. Se alguém difama outrem, costuma-se dizer que denegriu sua honra. É que uma mancha ou nódoa traz ínsita em si a ideia de parte que indevidamente se põe em coloração diferente do restante. Nessa acepção é que se diz mancha de sangue, mancha da pele, ou mesmo mancha branca em superfície escura. E, assim, em sentido figurado, quando se diz que alguém denigre a honra de outrem, o que se quer significar é que a limpidez da honra de alguém recebeu uma mácula, uma nódoa, uma mancha, decorrente da ação do ofensor. E, para que a coloração dessa mancha tenha sentido no contexto de uma honra límpida, clara e cristalina, deve trazer em si a ideia de algo escuro em relação à cor original. Por isso se emprega o verbo denegrir. Querer, todavia, mais uma vez, entrever conotação racista ou pejorativa no emprego desse verbo, na situação referida, é ir longe demais nesse assunto.
9) Diante dessas considerações, parece importante anotar que o racismo e a depreciação não residem necessariamente nas palavras, mas na mente e no coração das pessoas. Existe até mesmo uma figura de linguagem denominada ironia, segundo a qual o usuário do idioma diz em suas palavras uma coisa, mas o sentido que lhes quer conferir é exatamente o contrário, com intenção depreciativa ou sarcástica. É isso o que ocorre, por exemplo, quando se diz "Que alunos preparados!", quando se quer significar exatamente que não sabem nem somar.
10) Ora, é conhecido o provérbio que diz que o mesmo sol que amolece a cera endurece o barro. Aplicado ao caso vertente, isso quer significar que as mesmas palavras, se na boca de quem quer a paz e a concórdia ou se na de quem busca a desarmonia e a desavença, geram efeitos opostos. Para os primeiros, de um modo geral, não há grande necessidade de escolha dos vocábulos a serem ditos ou escritos, porque o que disserem virá regado com o azeite da verdade e da boa-fé. Para os últimos, de nada servirá determinar-lhes o que deva ser dito ou escrito, nem haverá politicamente correto que solucione ou remedeie a situação, pois o fel da má-fé e da mentira sempre há de se fazer presente em suas falas. E, por último, mas não menos importante, explicita-se que, infelizmente, há pessoas de ambas as modalidades referidas tanto entre os falantes como entre os ouvintes do idioma.
11) Respondendo, em síntese, ao leitor:
a) na origem, o vocábulo negro e seus cognatos, nos diversos idiomas, sempre serviram para designar a coloração das coisas e das pessoas;
b) da cor dos objetos e da pele das pessoas, passaram a integrar seus próprios nomes ou cognomes;
c) as situações climáticas também passaram a sofrer os efeitos dessa maneira de ver, como, por exemplo, a contraposição entre a clareza do dia ensolarado e o negror da noite, das nuvens carregadas e do mar tempestuoso;
d) do aspecto físico, passou-se, ao depois, também, ao aspecto figurado, vindo a ocorrer, então, algo como um raciocínio claro ou um raciocínio obscuro;
e) ainda no plano figurado, em raciocínio até mais apurado, pela similitude com a existência de uma mancha, passou-se a empregar expressões indicativas dessa contraposição em aspectos morais, como em denegrir a honra de alguém;
f) em qualquer desses empregos, contudo, não se pode ver, na origem e na maneira objetiva de falar ou escrever, a existência de uma necessária conotação de natureza irônica, depreciativa, pejorativa ou racista, que está, muitas vezes, mais na subjetividade do usuário do idioma ou do ouvinte, do que na objetividade dos vocábulos;
g) vedar o emprego de termos como negro ou preto, para designar a raça ou a coloração das pessoas, ou mesmo fixar que algo é o politicamente correto ou incorreto não resolve nem remedeia a situação, até porque, na boca ou no ouvido do maldoso, os melhores termos podem ser distorcidos.