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German Report

Decisões do STJ e STF alemão.

Karina Nunes Fritz
O Bundesgerichtshof proferiu recentemente importante decisão acerca da responsabilidade médica em casos de doação de órgãos. A mais alta Corte infraconstitucional da Alemanha apreciou dois processos que envolviam pedido de indenização por danos materiais e morais de doadores de rim que alegaram não terem sido adequadamente esclarecidos sobre os riscos de dano à sua própria saúde, decorrente da retirada do órgão. A legislação alemã sobre doação de órgãos A Alemanha possui, desde 1997, uma lei especial que regulamenta a doação, retirada e transplantação de órgãos e tecidos - a chamada Transplantationsgesetz (TPG) ou Lei do Transplante. Promulgada em 5/11/1997, a lei sofreu sua última alteração recentemente, em 22/3/2019. A Transplantationsgesetz regula em detalhes o processo de doação de órgãos e tecidos por pessoas vivas e falecidas, estabelecendo um rígido procedimento para a obtenção do consentimento livre e informado do doador, no qual são impostos uma série de deveres aos médicos e instituições envolvidas no procedimento e instituídas sanções penais para determinadas condutas. Segundo o § 8, inc. 1 TPG, a retirada de rim, parte do fígado ou outro órgão não regenerável só pode ser feita para fins de transplantação em pessoas próximas ao doador, como familiares até segundo grau, cônjuge ou companheiro, noivos ou outra pessoa com clara vinculação pessoal. O § 8, inc. 2 TPG impõe uma série de rígidos deveres aos médicos, dentre os quais o dever de informar detalhadamente, de forma clara e compreensível, o doador sobre o tipo de intervenção a ser realizada, sua finalidade e as consequências, atuais e futuras, ainda que indiretas, da planejada retirada do órgão para a saúde do próprio doador. O médico tem que esclarecer o doador ainda sobre os riscos e consequências do transplante para o receptor, as chances de êxito esperadas, bem como sobre quaisquer circunstâncias que reconhecidamente possam ter importância para o mesmo. Ou seja: tratam-se de rígidos e complexos deveres de informação e, mais que isso, esclarecimento. Todas as conversas e consultas realizadas entre o médico e o doador e/ou receptor devem ser detalhadamente documentadas e acompanhadas por um médico neutro, que não participará do processo de retirada ou implantação do órgão ou tecido, nos termos do § 5, inc. 2 TPG. Este, ao final, precisa assinar toda a documentação. Fim da norma evitar que apenas médicos interessados no transplante participem do processo, evitando-se conflitos de interesse, já que o médico interessado na realização da doação poderia forçar o consentimento do doador. O primeiro caso: doação de rim da filha para o pai No primeiro processo, proveniente da Comarca de Essen, a autora doou, em 2009, um rim ao pai, que sofria de grave deficiência renal, mas este veio a falecer em 2014 em decorrência da transplantação. Alegando estar sofrendo da síndrome de fadiga crônica (chronisches Fatigue-Syndrom) e insuficiência renal desde o transplante, a autora processou os médicos e a clínica universitária, onde o procedimento fora realizado. Ela pediu indenização por danos materiais e morais, bem como o reconhecimento do dever de indenizar danos futuros que possam ainda lhe acometer em decorrência do transplante. A autora alegou não ter sido suficientemente informada acerca dos riscos à sua própria saúde em decorrência da retirada do rim, nem acerca do alto risco de fracasso do transplante no pai em decorrência da doença base dele. Isso configuraria, em sua visão, clara violação aos deveres de informação e esclarecimento previstos no § 8, inc. 2, alíneas 3 e 5 da Lei de Transplante. Desse modo, o consentimento emitido apresentava-se apenas formalmente em consonância com o § 8, inc. 2 da Lei de Transplante, mas materialmente desinformado. Além disso, houve a inobservância do procedimento imposto na Lei de Transplante, que exige, dentre outras coisas, a participação e assinatura de médico neutro no procedimento pré-cirúrgico. A ação foi julgada improcedente em primeira instância, em sentença de 2.11.2015, tendo sido confirmada pelo Tribunal de Justiça de Hamm, em acórdão de 7.9.2016. Trata-se do processo OLG Hamm I-3 U 6/16, transformado no processo BGH IV ZR 495/16. Segundo o OLG Hamm, embora tenha havido falha procedimental, pois não houve a presença de médico neutro (o médico indicado tinha ligação com a clínica universitária) durante as consultas pré-cirúrgicas e não tenha sido feito um esclarecimento adequado acerca dos riscos para a doadora e receptor, isso não conduz automaticamente à ineficácia do consentimento da doadora. Houve, no caso, para o Tribunal a quo um "consentimento hipotético" (hypothetische Einwilligung) da doadora, pois ela não demonstrou de forma plausível que teria desistido da doação se tivesse sido adequadamente informada. O segundo caso: marido fez doação de rim à esposa No segundo processo analisado, proveniente do mesmo juízo (BGH VI ZR 318/17), o marido fez a doação de rim à esposa, que sofria de insuficiência renal e fazia semanalmente hemodiálise. A alegação foi praticamente igual à do caso anterior, ou seja, de ter havido esclarecimento insuficiente acerca dos riscos do transplante e que, desde a retirada do órgão, o autor passara a sofrer da fadiga crônica, que o impedia de levar uma vida normal. Ele perdeu em primeira e segunda instância pelos mesmos fundamentos: embora tenha havido falha no procedimento pré-cirúrgico, poder-se-ia presumir o consentimento hipotético, vez que ele teria provavelmente realizado a doação do órgão mesmo tendo o médico cumprido seu dever de informar. A decisão do BGH O 6o. Senado Civil do Bundesgerichtshof, competente para as questões de direito médico, deu, contudo, provimento a ambos os recursos (Revision) interpostos pelos doadores e ordenou a devolução dos autos ao Tribunal de origem para a fixação do valor da indenização. Segundo a Corte, o pleito dos doadores não prospera pela simples falha procedimental constatada na fase pré-cirúrgica, ou seja, em decorrência da falta de médico neutro durante as consultas e das assinaturas dos participantes obrigatórios nos protocolos das consultas (§ 8, inc. 1 c/c § 5, inc. 2 TPG). Embora visem evitar conflitos de interesse entre médico e doador, protegendo esse último contra um consentimento precipitado e garantido a autonomia de sua decisão, essas regras têm caráter eminentemente formal e procedimental, e acompanham, por assim dizer, o dever do médico na preparação do consentimento informado, isto é, na "autodeterminação esclarecida" (informationelle Selbstbestimmung) do doador. Mas sua inobservância não gera, per se, a invalidade e antijuridicidade (contrariedade ao direito) do consentimento do doador para a retirada do órgão. Ela pode, entretanto, ser um forte indício de que o paciente não foi devidamente informado e esclarecido pelo médico, o que deve ser avaliado no momento da valoração das provas. A pretensão dos doadores retira, a rigor, sua legitimidade da falha informativa, disse o BGH. Apesar de doador e receptor terem assinado um documento onde declaravam ter sidos suficientemente esclarecidos e não terem mais dúvidas sobre todo o procedimento, o documento era apenas um check list sobre determinados esclarecimentos e exames realizados. Faltava quaisquer referências aos riscos concretos e a circunstâncias especiais dos envolvidos, acerca dos quais os médicos envolvidos teriam efetivamente esclarecido os doadores. Dessa forma, o BGH conclui que do conteúdo do documento não emanava o esclarecimento necessário àquele caso concreto, apresentando-se apenas formalmente em consonância com os requisitos exigidos pelo § 8, inc. 2 da Lei de Transplante. Segundo comprovado na instância probatória, a doadora já se encontrava no período pré-operatório com os próprios valores da função renal no limite, não tendo sido corretamente esclarecida acerca dos possíveis e sérios efeitos futuros da retirada do órgão para sua saúde. Da mesma forma, não fora adequadamente esclarecida acerca do alto risco de fracasso do transplante em seu pai, em decorrência da doença preexistente. Dessa forma, conclui o BGH, seu consentimento ao procedimento restou maculado pela invalidade e a intervenção em seu corpo, antijurídica. O argumento dos réus, sufragado nas instâncias inferiores, de que teria havido em ambos os casos um "consentimento hipotético" dos doadores, não encontra aplicação aos casos de transplante de órgãos, disse o BGH. É bem verdade que doutrina e jurisprudência alemãs admitem a figura do consentimento hipotético na seara do direito médico, de forma que, podendo-se presumir que o paciente teria dado seu consentimento de qualquer forma, ainda quando alertado e esclarecido dos riscos envolvidos, afastada resta a responsabilidade do médico. Mas a Corte entendeu que a figura não encontra guarida nos casos de transplante, para os quais o legislador teve a preocupação de criar um regime legal especial, de onde não se consegue deduzir a figura do consentimento hipotético. Assim, não se pode simplesmente querer transportar a figura, desenvolvida no direito da responsabilidade médica, para os casos regidos na Lei de Transplante, acentuou o BGH. Segundo o Tribunal, a alegação de consentimento hipotético não se deixa justificar na ideia do chamado "legítimo comportamento alternativo" - ou "comportamento alternativo conforme ao direito" (rechtsmäßiges Alternativverhalten) - do direito dos danos, porque a admissão do consentimento hipotético contraria claramente o fim de proteção que se busca alcançar com o elevado nível de esclarecimento exigido nas doações em vida de órgãos, nos termos do § 8, inc. 2, frases 1 e 2 da Transplantationsgesetz. As rígidas diretrizes de informação e esclarecimento do doador, formuladas conscientemente pelo legislador e sancionadas penalmente no § 19, inc. 1, n. 1 da TPG, têm o claro objetivo de proteger o doador de órgão, evitando que ele cause grave dano a si mesmo. Elas objetivam, em outras palavras, a "proteção do doador contra si próprio" (Schutz des Spenders vor sich selbst), como formulou precisamente a Corte de Karlsruhe. E isso tem importância principalmente nas hipóteses de doação de órgãos não regeneráveis. Como essa só é admitida em casos de pessoas especialmente próximas (§ 8, inc. 1, frase 2 da TPG), o doador se encontra em uma situação de conflito qualificada, pois, na maioria das vezes, sente-se moralmente obrigado a fazer a doação em razão da proximidade com o receptor. Por isso, qualquer informação sobre os riscos do procedimento pode adquirir extrema relevância para o doador. Outra não é a razão pela qual a livre vontade do doador deve ser verificada previamente por uma comissão, nos termos do § 8, inc. 3 TPG. Se fosse possível afastar a responsabilidade com a simples alegação de que o doador teria doado mesmo tendo sido esclarecido dos graves riscos, como base na teoria do legítimo comportamento alternativo ou causalidade hipotética, toda retirada antijurídica de órgãos acabaria sem sanção e os rígidos requisitos exigidos para o esclarecimento do doador restariam esvaziados, o que ainda abalaria a confiança necessária dos potenciais doadores na medicina de transplante. Dessa forma, a observância dos procedimentos e requisitos de esclarecimento, detalhados na Lei de Transplante, são pressupostos irrenunciáveis quando se quer fomentar, de forma permanente, a disposição das pessoas de doar órgãos em benefício da vida de outrem. A importância da decisão A decisão do BGB fortalece consideravelmente os direitos dos doadores vivos de órgãos ao agravar o dever de indenizar ao médico que não esclarece adequadamente o doador sobre os riscos e consequências da retirada do órgão para sua saúde e para a saúde do receptor, em especial sobre a chance de êxito do procedimento, considerando a doença do paciente. Ela também chama atenção para o dever do médico de documentar detalhadamente as consultas, bem como à participação de médico neutro no procedimento, embora, no caso concreto, isso possa ser relativizado. Ao afastar o critério do comportamento alternativo legítimo (causalidade hipotética), amplamente utilizado em casos de responsabilidade civil contratual e extracontratual, o BGH reforçou a responsabilidade médica em casos de transplantes de órgãos não regeneráveis feitos por pessoas vivas, as quais se encontram em uma situação de conflito qualificada, pois geralmente se sentem obrigadas a fazer a doação, devido aos laços de afetos com o receptor. O Brasil tem desde 1997 uma Lei de Transplante (lei 9.434/1997). O Capítulo 3 da lei regula as hipóteses de doação de tecidos, órgãos ou partes do corpo humano vivo, estabelecendo no art. 9º que a doação só pode ser feita para fins terapêuticos ou para transplante em cônjuge (e companheiro, agora) ou parentes consanguíneos até quarto grau. A doação para qualquer outra pessoa depende de autorização judicial. Nossa lei, contudo, não detalha o procedimento pré-cirúrgico e os importantíssimos deveres de informação, esclarecimento e documentação do médico e do hospital, como faz a lei alemã. Nada obstante, eventuais lacunas relacionadas aos deveres médicos podem - e devem - ser preenchidas com base no princípio da boa-fé objetiva, que vem positivada no art. 422 do Código Civil exatamente em sua função criadora de deveres ético-jurídicos de conduta, os quais devem ser observados antes, durante e depois do procedimento. Para tanto, crucial se apresenta um lançar de olhos na experiência estrangeira, que tem sido fonte de bons exemplos da aplicação da cláusula geral da boa-fé objetiva e de seus deveres de consideração (Rücksichtspflichten), nova terminologia pela qual a doutrina alemã contemporânea vem denominando os deveres laterais da boa-fé.
Inicia-se hoje, na coluna German Report, a série "Decisões Históricas", cujo objetivo é apresentar ao público brasileiro alguns julgados alemães que fizeram história, seja por dar início ou por consagrar institutos e teorias que tiveram impacto no direito dos demais países pertencentes à família romano-germânica. E a coluna inicia com um dos mais importantes julgados do Reichsgericht (RG), o Tribunal Imperial alemão, que funcionou de 1879 a 1945 como a Corte suprema infraconstitucional do Império alemão e foi o embrião do atual Bundesgerichtshof (BGH). Essa decisão foi o pontapé inicial para o desenvolvimento de um processo que culminaria com a modernização do Direito das Obrigações, positivada na reforma do BGB em 2001. O caso Trata-se do chamado caso dos tapetes de linóleo, conhecido mundialmente por ser o primeiro julgado impactante sobre a culpa in contrahendo, isto é, culpa durante a formação dos contratos, instituto mais conhecido entre nós como responsabilidade pré-contratual1. O caso ocorreu em 1911. Uma mulher entrou, com uma criança, em uma loja a fim de olhar rolos de tapetes de linóleo. Durante a exposição do produto pelo vendedor, a mãe e a criança foram gravemente feridas em razão da queda de rolos de tapetes de linóleo, negligentemente arrumados na prateleira pelo atendente. A lide, a rigor, poderia ter sido solucionada com recurso à responsabilidade extracontratual, vez que o § 823 I BGB considera a lesão culposa ao corpo, vida, liberdade, propriedade e "outros direitos" como ato ilícito (unerlaubte Handlung), impondo o dever de indenizar. Mas o problema era que o dono do estabelecimento comercial, em 1911, poderia eximir-se da responsabilidade se demonstrasse ter agido com diligência ao escolher e instruir o funcionário (culpa in elegendo), causador do ato ilícito, pois o § 831 BGB - tal como o antigo art. 1.523 do CC1916 - prevê o afastamento da responsabilidade nesses casos2. Mas o Tribunal Imperial considerava injusta e insatisfatória essa solução para os casos de lesão a clientes (consumidores, na linguagem atual) em estabelecimentos comerciais, considerando o intenso trânsito de pessoas e, consequentemente, a elevada exposição a riscos de dano existentes nesses locais de circulação em massa. Por isso, ao invés de fundamentar a pretensão ressarcitória no ato ilícito, o Tribunal Imperial preferiu recorrer à figura da culpa in contrahendo, formulada alguns anos antes, em 1861, em suas linhas iniciais, por Rudolf von Jhering. Para o RG, houve culpa durante a formação do contrato, pois a simples entrada de um potencial contratante - ou de um visitante, sem clara intenção de compra! - em um estabelecimento comercial faz surgir uma relação jurídica preparatória do contrato ("ein den Kauf vorbereitendes Rechtsverhältnis") entre a loja e o cliente. Essa relação preparatória, se bem analisado seu suporte fático, guarda muitas semelhanças com a relação contratual, da qual é preparatória. Dela brotariam, segundo o RG, "obrigações jusnegociais" (rechtsgeschäftliche Verbindlichkeiten), dentre as quais o dever de proteger a integridade físico-corporal e o patrimônio do potencial cliente. Esse dever exige que o estabelecimento comercial adote uma série de condutas positivas para evitar o dano, o que mostra que se trata de dever jurídico mais intenso que o simples dever geral de não lesar, que é geralmente cumprido com uma conduta meramente omissiva. Dessa forma, o Reichsgericht aplicou o regime jurídico contratual ao caso, dando aos lesados as vantagens decorrentes da impossibilidade de exclusão da responsabilidade in eligendo por atos do preposto (§ 278 BGB), da presunção de culpa e do prazo prescricional elevado, à época 30 anos, conforme o antigo § 195 BGB/1900. A decisão foi prolatada pelo 6o Senado do Reichsgericht em 7 de dezembro de 1911 e publicada, ainda em alemão gótico, no repertório RG 78/1912, p. 239-241. A importância da decisão Não é difícil perceber a relevância desse julgado para o que hoje entendemos como direito do consumidor, pois foi a partir daí que começou a se desenvolver na Alemanha a ideia de que os fornecedores têm o dever de garantir segurança aos (potenciais) clientes - sejam eles consumidores ou não! - em seus estabelecimentos comerciais. Não foi, portanto, a partir do discurso do ex-presidente norte-americano, John Fitzgerald Kennedy, como comumente se imagina, que ganhou corpo na Alemanha os deveres de proteção ao consumidor3. No Brasil, os deveres pré-contratuais em geral e, em especial, o dever de proteção só se estabeleceram como regra a partir da promulgação da Lei de Proteção e Defesa do Consumidor, em 1990, que logo no art. 6o, inc. 1, elenca como deveres básicos dos consumidores a proteção da vida, saúde e segurança. Dessa forma, casos como os do tapete de linóleo ou as frequentes quedas em supermercado são subsumidos no art. 14 do CDC, que trata dos defeitos na prestação dos serviços, estabelecendo a responsabilidade objetiva dos fornecedores. Antes do CDC, porém, a jurisprudência era vacilante: enquanto alguns julgados reconheciam o dever de ressarcir com base na cláusula geral do ato ilícito (art. 159 CC1916), outros negavam o ressarcimento por considerar um "acidente" ou "azar" ou um risco inerente à vida em sociedade a ser suportado pelo lesado, o que frequentemente vinha escondido por trás da alegação de falta de prova do nexo causal4. De qualquer forma, a decisão do Tribunal Imperial sobre os tapetes de linóleo é, com acerto, considerada uma das mais célebres e importantes decisões do judiciário alemão5. O vanguardismo da decisão A decisão pode mesmo ser considerada vanguardista, considerando ter sido prolatada apenas uma década após a entrada em vigor do BGB. Primeiro, porque antecipa em mais de cinquenta anos a discussão sobre a proteção de consumidores e by standers no mercado de consumo, dando o pontapé inicial para o debate em torno da proteção de terceiros no âmbito de situações negociais, pré-contratuais e, na sequência, contratuais. Não por outra razão fala-se hoje em dia, entre nós, com ares de vanguarda, acerca dos contratos com eficácia de proteção perante terceiros. Segundo, porque rompe com o dogma pandectista da irrelevância das negociações, pois mostra que já nessa fase surge uma relação jurídica especial da qual brotam deveres de conduta entre as partes, dentre os quais o dever de proteção (Schutzpflicht), conhecido no Brasil como dever de segurança, positivado em diversos artigos da Lei do Consumidor6. Terceiro, porque, com essa decisão, a figura da responsabilidade pré-contratual se estabelece definitivamente no cenário jurídico alemão, vindo, na sequência, a penetrar no meio jurídico latino - inicialmente na Itália e, depois, em Portugal, Espanha e Grécia, atravessando o Atlântico e ancorando em terras brasileiras em 1936. A culpa in contrahendo não foi, contudo, aqui recepcionada como uma responsabilidade pela violação de deveres de proteção - ou melhor: pela violação de qualquer dever lateral durante a fase de preparação do contrato. Ela aportou no Brasil na restrita modalidade de responsabilidade pela violação do dever de lealdade, traduzido no rompimento abusivo das negociações, após despertar ou fortalecer no outro a certeza de que o contrato planejado seria concluído. Quarto, porque, consagrando a figura, o RG se afasta definitivamente da doutrina pandectista, majoritária à época, que via o contrato - ainda que fictício - como a fonte única de deveres, inclusive dos deveres pré-contratuais de conduta. Quinto, porque, admitindo na fase de preparação do contrato a existência de uma "relação jurídica especial", jurisprudência e doutrina alemã dão um passo histórico na reformulação do conceito romano de obrigação e de relação obrigacional - passo que, aliás, ainda não foi bem compreendido pela doutrina brasileira. Com isso, diz-se que a relação obrigacional não surge com o contrato, mas já antes, com o contato negocial, embora esse vínculo tenha natureza sui generis e não produza obrigações em sentido técnico, mas apenas deveres laterais de conduta. É a chamada relação obrigacional sem dever de prestação ou, de forma mais provocativa, relação obrigacional sem obrigação7. O papel de Ruy Rosado de Aguiar no reconhecimento da culpa in contrahendo A culpa in contrahendo não teria tido reconhecimento no Brasil sem o saudoso Min. Ruy Rosado de Aguiar Junior, que há pouco nos deixou, deixando um vazio intelectual na magistratura, difícil de ser preenchido. Ele foi o grande responsável por resgatar a responsabilidade in contrahendo das profundezas, onde fora soterrada por uma doutrina e jurisprudência legalista-positivista, ainda fiel aos postulados do pandectismo, embora esses já estivessem abandonados em seu próprio país de origem. De fato, após sua estreia triunfal em dois célebres julgados8 do Tribunal de Justiça de São Paulo, datados de 1936 e 1959, a responsabilidade in contrahendo foi banida de cena ao argumento de ser uma doutrina incoerente. A uma, porque romper as negociações a qualquer tempo e independente do motivo apresentado era visto como uma faculdade ilimitada, permitida pelo ordenamento em razão do princípio da liberdade contratual, corolário do sagrado dogma da autonomia da vontade, pilar estruturante do direito privado liberal do século 19. A duas, porque quem rompe as negociações não abusa, mas usa o direito de não contratar, não podendo, consequentemente, ser penalizado através da imposição do dever de ressarcir os danos causados à contraparte. Daí - cabe o aparte - ser inadequada a fundamentação da responsabilidade pré-contratual na figura do abuso do direito. Na raiz desses (e de outros) argumentos contrários ao reconhecimento da responsabilidade pelo rompimento abusivo das tratativas está na ausência - ou na falsa compreensão - da boa-fé objetiva e dos deveres ético-jurídicos de conduta, os quais impõem a ambas as partes o dever de agir com lealdade e consideração pelos interesses legítimos da outra antes, durante e depois do contrato. Ruy Rosado de Aguiar Júnior teve o mérito de resgatar o instituto, ainda no Tribunal de Justiça do Rio Grande do sul. Célebre são os casos dos tomates e do posto de gasolina, ambos de sua relatoria. No caso dos tomates, a empresa de conservas alimentícias CICA distribuiu durante anos sementes de tomates aos agricultores da região de Canguçu, no Rio Grande do Sil, para plantio e posterior aquisição da safra para a produção de molho de tomate. Em um ano, simplesmente deixou de adquirir a safra dos agricultores, que não conseguiram revender a mercadoria, amargando vultuosos prejuízos. O TJRS, sob o voto condutor do saudoso Ministro, reconheceu a responsabilidade pré-contratual da empresa por quebra da confiança ao deixar de celebrar, sem motivo justificável, a compra da safra de tomates dos agricultores, embora tenha - como de costume - distribuído as sementes. Trata-se do processo TJRS, Apelação Cível 591.028.2915, 5ª. Câmara Cível, Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Junior, julgado em 6/6/1991, no qual fundamenta-se pela primeira vez a responsabilidade pré-contratual no princípio da boa-fé objetiva, à época ainda não positivado na Codificação9. No caso do posto de gasolina, o TJRS negou a responsabilidade pré-contratual do potencial comprador que desistiu da aquisição de um posto de gasolina após descobrir que o vendedor não era, ao contrário do que dizia, o único sócio da empresa10. Trata-se do processo: TJRS, Apelação Cível 591.017.058, 5ª. Câmara Cível, Rel. Des. Ruy Rosado de Aguiar Junior, julgado em 25/4/1991. A partir desses dois julgados paradigmáticos, a jurisprudência brasileira passou a reconhecer a responsabilidade pré-contratual por rompimento injustificado das negociações, com fundamento na cláusula geral da boa-fé objetiva, positivada em sua função criadora de deveres no art. 422 do CC2002. Dessa forma, livrou do esquecimento um riquíssimo instituto, ainda pouco compreendido entre nós11. Jhering deve estar feliz! __________ 1 GIARO. Tomasz. Culpa in contrahendo: eine Geschichte der Wiederentdeckung. In: Ulrich Falk e Heinz Mohnhaupt (org.). Das Bürgerliche Gesetzbuch und seine Richter - Zur Reaktion der Rechtsprechung auf die Kodifikation des deutschend Privatrechts (1896-1914). Frankfurt am Main: Vittorio Klostermann, 2000, p. 135 e SCHMIDT, Jan Peter. Sentencias famosas: Alemania. Sobre el caso de los "rollos de linóleo", Revista de Derecho Privado, Bogotá, n. 24, p. 329-334, jan.-jun. 2013. No mesmo sentido: NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo para reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. Revista de Direito Civil Contemporâneo, v. 15, ano 5, 2018, p. 173 ss. 2 O art. 1.523 do CC1916 rezava: "Excetuadas as do art. 1.521, V [partícipes do produto de crime], só serão responsáveis as pessoas enumeradas nesse e no art. 1.522, provando-se que elas concorreram para o dano por culpa, ou negligência de sua parte". Esse dispositivo foi substituído pelo art. 933 do CC2002, dispensando-se a culpa. 3 Recorde-se que o movimento consumerista se inicia na década de 1960, com o pronunciamento de John Fitzgerald Kennedy, enumerando direitos básicos dos consumidores. 4 Confira-se, a título ilustrativo: TJSP; Apelação Com Revisão n. 9191314-38.2007.8.26.0000 (numeração antiga 540.044-4/3-00), Rel. Des. Elcio Trujillo, 7ª Câmara de Direito Privado, j. 08.04.2009. Queda em supermercado de consumidora que, após escorregar em casca de fruta, teve seu pleito ressarcitório negado com base na ausência de nexo causal e de negligência do supermercado, que, segundo testemunha, mantinha o local limpo. Do acórdão, percebe-se que o Tribunal considerou o fato mais como um infortúnio da vítima, do que como infração ao dever de segurança do estabelecimento. No voto consta expressamente que: "... Considerando que a ré é um mercado, por onde circulam várias pessoas durante o dia, cada qual com seus costumes e educação, inviável a pretensão de impor à ré a responsabilidade pela existência de casca de fruta no chão. O fato ocorrido com a autora, embora lastimável, não é decorrente de culpa, do tipo omissivo ou comissivo, de qualquer dos funcionários da ré. Não se trata de falta de higiene, pois a fruta pode ter caído da gôndola ou simplesmente ter sido jogada ao chão por outro cliente. E, neste passo, inviável tentar cogitar do número de funcionários necessários para manutenção da limpeza local, pois tal fato sempre poderá ocorrer, por mais higiene que se possa imaginar". 5 GIARO, Tomasz. Op. cit., p. 135 e SCHMIDT, Jan Peter. Op. cit., p. 329 ss. 6 Confira-se, dentre outros, os arts. 6º, inc. I, 8º, 9º, 10 e 12 a 14 do CDC, todos tendo como ideia nuclear a proteção da vida, saúde e segurança do consumidor. 7 Desde 2008 venho falando dessa relação obrigacional, ainda mal compreendida pela doutrina brasileira. Confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Boa-fé objetiva na fase pré-contratual - a responsabilidade pré-contratual por ruptura das negociações. Curitiba: Juruá, 2008, p. 47 ss. 8 Tratam-se do caso da casa de modas, primeiro caso documentado no Brasil de culpa in contrahendo, julgado em 1936 e do caso da atriz, datado de 1959. Cf. NUNES FRITZ, Karina. Da boa-fé objetiva na fase pré-contratual..., p. 250 s. 9 Para maiores detalhes do caso, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. Da boa-fé objetiva na fase pré-contratual..., p. 253-254. 10 Para maiores detalhes do caso, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. Da boa-fé objetiva na fase pré-contratual..., p. 254-255. 11 Não faltam importantes vozes a questionar, ainda hoje, a utilidade da responsabilidade pré-contratual, o que revela a falta de um estudo comparado sério e verticalizado, tendo em vista o amplo reconhecimento do tema no nos ordenamentos jurídicos europeus mais modernos.
A Corte infraconstitucional alemã, Bundesgerichtshof (BGH), negou recentemente o pedido de uma mulher trans de figurar como mãe na certidão de nascimento do filho gerado com a parceira, provocando acesa discussão no meio LGBTI, que reivindica urgente atuação do legislador. 1. Para entender o caso O caso envolvia um transexual que nasceu biologicamente homem, mas alterou oficialmente seu gênero para feminino em 2012. Ela passou a viver em união estável com outra mulher, que deu à luz ao filho do casal em 2015. A criança foi gerada com o sêmen da mulher trans e o óvulo da companheira. Antes do nascimento, o casal registrou em cartório um acordo no qual o transexual reconhecia a "maternidade" da criança e a companheira concordava que aquela figurasse também como mãe nos documentos do filho. O cartório de registro civil, contudo, anotou como mãe no registro de nascimento da criança apenas o nome da mãe biológica, recusando-se a registrar o pai biológico como mãe e a reconhecer validade do acordo registrado em cartório. 2. O processo nas instâncias inferiores O casal solicitou, então, ao juízo de primeira instância que ordenasse ao oficial do registro civil a inclusão de ambas como mães da criança, pedido que foi negado. Com isso, ambas recorreram ao Tribunal de Berlim, onde a decisão de primeira instância foi confirmada, em julgado de 6/9/2016. Para o Tribunal, a autora não poderia ser registrada como mãe, porque, de acordo com o § 1.591 BGB, mãe é apenas quem dá luz à criança. O Direito alemão vigente desconhece a hipótese de "reconhecimento de maternidade", só admitindo o reconhecimento de paternidade, nos termos do § 1.592, inc. 2 BGB, cuja aplicação analógica a Corte de Berlim afastou alegando ausência de lacuna legal. Isso, porque o legislador vinculou a verificação da maternidade ao elemento objetivamente apurável de quem pariu a criança. Não é possível, portanto, disse o Tribunal, se criar uma posição jurídica de maternidade por mera declaração de vontade, só restando a via da adoção para que a criança possa ser registrada como filha de duas mães, opção, contudo, que a autora recusa aceitar. O Tribunal acentuou ainda inexistir lacuna em situações envolvendo transexuais, pois o legislador regulou a questão no § 11 da Lei dos Transexuais (Transsexuallengesetz), de 10/9/1980, alterada recentemente em 20/7/2017. Segundo o (polêmico) § 11 da TGS, a decisão de alteração do gênero não altera a relação jurídica de parentalidade existente entre o transexual e seus ascendentes e/ou descendentes. Dessa forma, ainda quando a pessoa trans possa alterar seu nome nos seus documentos, não poderia alterar o vínculo de filiação, de modo a se anotar, no caso, como mãe o genitor que contribuiu com sêmen para a concepção da criança. Por fim, salientou o Tribunal de Berlim, que a criança tem direito ao conhecimento de sua origem biológica, direito esse de status constitucional e que é garantido através do conhecimento de fatos e não através do registro pessoal dos pais. Inconformadas com a decisão, as partes interpuseram recurso (Revision) ao BGH a fim de permitir o registro das duas como mães da criança na certidão de nascimento. 3. A decisão do BGH Em julgado de 29/11/2017, o 12o. Senado do BGH confirmou a decisão das instâncias inferiores, afirmando que, segundo o direito vigente, a autora não pode ocupar a posição materna nos documentos do filho, pois contribuiu com sêmen para a concepção da criança. Diz a ementa: "Um transexual feminino, com cujo sêmen congelado fora gerada uma criança, nascida depois de decisão definitiva de alteração do gênero, só pode obter, segundo o direito de filiação, a posição de pai e não a posição de mãe (continuação da decisão do Senado de 6 de setembro de 2017 - XII ZB 600/14 - [publicada no periódico] FamRZ 2017, 1855). Um reconhecimento de maternidade por ela realizado é inválido"1. a) Alteração do gênero não impacta na imputação da maternidade/paternidade O Tribunal observou, inicialmente, que segundo o § 1.591 BGB, mãe é apenas a mulher que deu à luz à criança. Essa é a única forma legal de imputação de maternidade, além da adoção. Dessa forma, para o BGH, o legislador conscientemente excluiu outras formas de atribuição de paternidade, como a da mulher que doa célula reprodutora feminina para gestação por barriga de aluguel, que na Alemanha só é reconhecida como mãe se adotar a criança2. Em razão da contribuição genética da autora para a concepção - doação de material genético masculino para a inseminação da companheira - só se deixa, no caso concreto, fundamentar a paternidade da criança. E isso independe do pertencimento de gênero da autora. Segundo o BGH, se por um lado é certo que, nos termos do § 10 I da Transsexuellengesetz, os direitos e deveres condicionados ao gênero devem ser, em princípio, orientados e regulados segundo o novo gênero, por outro é certo que o § 11 da mesma lei diz de forma clara que a mudança de gênero não altera o status jurídico pessoal em relação aos pais e filhos. E isso tem impacto principalmente na imputação da filiação. b) A constitucionalidade da regra legal: melhor interesse da criança Para o BGH, não há inconstitucionalidade nas normas dos § 1.591 BGB e § 11 da TSG, pois a solução legal não colide nem com a Lei Fundamental, nem com a Convenção Europeia de Direitos Humanos. Para o Tribunal, o fato do direito alemão vigente atribuir ao transexual - desconsiderando a circunstância de que ele agora pertence a outro gênero - um status jurídico parental de acordo com seu gênero anterior e com as contribuições específicas de sua efetiva participação no processo reprodutivo não colide com os direitos fundamentais e humanos do transexual. A regra legal dos §§ 1.591 e 1.592 BGB c/c § 11 da TSG não viola a pessoa transexual em seu direito geral de personalidade, consagrado no art. 2, inc. 1 c/c art. 1 da Lei Fundamental. Ainda quando se admita que isso possa interferir no reconhecimento da identidade dos pais transexuais, ao lhes atribuir um status jurídico parental em discordância com sua autopercepção de gênero, o desenvolvimento da personalidade do transexual ainda é tutelada nos limites da ordem constitucional. Os § 1.591 e 1.592 do BGB e § 11 da Transsexuellengesetz são, dessa forma, formal e materialmente constitucionais, afirmaram os juízes da Corte de Karlsruhe. Segundo o BGH, o Tribunal Constitucional (Bundesverfassungsgericht - BverfG) também condiciona a imputação jurídica da parentalidade, em princípio, às circunstâncias biológicas3, privilegiando a origem genética e, dessa forma, supostamente, o melhor interesse do ser gerado. Com isso, assegura-se aos filhos de pessoas que mudam de gênero o direito de ter - ou permanecer - sempre um pai e uma mãe, independentemente de alteração jurídica no gênero de um dos genitores. Esse é o sentido e o fim (Sinn und Zweck) da regra do § 11 da Lei dos Transexuais, que visa garantir os direitos fundamentais e o melhor interesse do ser gerado, disse o BGH. A repercussão do caso na comunidade LGBTI A decisão do BGH foi duramente criticada pelos ativistas trans. Segundo a Associação Federal Trans* (Bundesvereinigung Trans*), a decisão do Tribunal foi extremamente conservadora e ignora a realidade das pessoas trans e das famílias "arco-íris" (Regenbogenfamilie), com suas variadas constelações. Além disso, favorece a discriminação das crianças de pessoas trans, pois um dos genitores continua a ser chamado pelo antigo nome na certidão de nascimento, gerando constrangimentos na escola e em outras situações, o que não corresponde ao bem-estar da criança. Por isso, a comunidade quer que o Parlamento regule a situação das "famílias coloridas" e permita que pais trans possam ser inscritos sem indicação de gênero nos documentos dos filhos e com seus nomes atuais. A relevância do tema O tema é, por certo, altamente polêmico e atual. Há, sem dúvida, um conflito de posições jusfundamentais: de um lado, o direito à intimidade e ao livre desenvolvimento da personalidade do genitor, o que inclui um "apagar" (se é que isso é possível) do passado e recomeço de nova vida e, do outro, o direito fundamental ao conhecimento - e certeza - da origem biológica da criança, que também tem, sob outro aspecto, o interesse que seus documentos reflitam e espelhem sua realidade de vida. No Brasil, o tema parece despertar pouco interesse diante do reconhecimento da multiparentalidade pelo STF e do Provimento 63, de 14/9/2017, do Conselho Nacional de Justiça, que torna desnecessária a menção ao pai ou à mãe nas certidões de nascimento, bastando a indicação da "filiação". Aparentemente, parece que não haveria dificuldades em se permitir que a mulher que deu à luz figure na certidão de nascimento como pai ou o homem que contribuiu com sêmen figure como mãe, ainda que, no atual estágio da ciência médica, homem não possa dar à luz e nem mulher produza (espontaneamente) sêmen. Mas o mesmo problema enfrentado na Alemanha se coloca na discussão sobre se o genitor (pai ou mãe), que muda de gênero, pode compelir o filho a alterar sua certidão de nascimento, que, a rigor, é documento do filho e não dos genitores. Aqui aflora, em essência, a mesma discussão travada no tribunal alemão, pois, em última instância, trata-se de decidir qual dos direitos fundamentais em colisão merece maior tutela: se o direito à intimidade e desenvolvimento da personalidade do genitor trans, a legitimar a mudança do nome na certidão de nascimento do filho ou o direito fundamental do filho à certeza e clareza de sua origem biológica. O tema na Europa é cercado de controvérsias, devido, principalmente, à necessidade de tutela do direito fundamental da criança ao conhecimento e certeza da origem biológica e do melhor interesse do menor. Esse conflito não é fácil de ser solucionado, mas precisa ser resolvido pelo Judiciário, enquanto o legislador (e não órgãos como o CNJ) não regula a questão. A palavra final, no caso alemão, cabe agora ao Tribunal Constitucional, já que as partes interpuseram queixa constitucional para a Suprema Corte de Karlsruhe. Recorde-se que a Corte já proferiu paradigmática decisão reconhecendo definitivamente a existência de um terceiro gênero entre o masculino e feminino, quebrando, dessa forma, o sistema binário de gênero existente no direito alemão. A decisão, comentada aqui no Migalhas (leia aqui), foi decisiva para a elaboração da lei, em vigor desde o início de 2019, que permite aos intergêneros inserir em seus documentos a opção "diverso(a)", sem necessidade de se enquadrar nas categorias masculino ou feminino. Dessa forma, só nos resta agora aguardar a decisão do Tribunal Constitucional. __________ 1 "Eine Mann-zu-Frau-Transsexuelle, mit derem konserviertem Spendersamen ein Kind gezeugt wurde, das nach rechtskräftiger Entscheidung über die Änderung der Geschlechtszugehörigktie geboren worden ist, kann abstammungsrechtlich nur die Vater und nicht die Mutterstellung erlangen (Fortführung des Senatsbeschlusses vom 6. September 2017 - XII ZB 660/14 - FamRZ 2017, 1855). Eine von ihr gleichwohl erklärte Mutterschaftsanerkennung ist unwirksam". BGH XII ZB 459/16 - Kammergericht Berlin AG Schöneberg. 2 O BGH fez referência, no acórdão, ao caso: BGHZ 203, 350 = FamRZ 2015, 240. 3 O BGH fez referência à decisão do BVerfG de 2011 (BVerfGE 128, 109), na qual se proclamou o direito dos filhos de ter sempre um pai e uma mãe, apesar da mudança de gênero por um dos genitores, a qual será objeto de posterior comentário nessa coluna.
Um dos casos mais paradigmáticos decididos recentemente pelo Bundesgerichtshof (BGH) diz respeito à atualíssima discussão em torno da transmissibilidade - ou não - da chamada herança digital. No leading case, julgado em 12 de julho de 2018, a Corte obrigou o Facebook a liberar aos herdeiros o acesso à conta do usuário falecido1. O caso Os pais de uma adolescente de 15 anos, falecida em acidente no metrô de Berlim, em 2012, entraram com uma ação contra o Facebook por terem sidos impedidos de acessar a conta da filha, transformada em memorial depois que um "amigo" desconhecido informou a empresa acerca do óbito. As circunstâncias da morte não estavam esclarecidas, havendo suspeita de suicídio. Por isso, os pais queriam acessar a conta a fim de buscar pistas que permitissem esclarecer o caso e se defender em processo judicial movido pelo condutor do metrô, que pleiteava danos morais pelo abalo emocional sofrido em decorrência do envolvimento no suposto suicídio. Entretanto, como a página da adolescente já havia sido transformada em memorial, os pais não conseguiam acessá-la, embora tivessem conseguido os dados de acesso. Como se sabe, quando uma conta é transformada em memorial, o conteúdo compartilhado em vida pelo falecido com o público permanece visível e as pessoas podem postar mensagens, mas ninguém - detalhe: exceto o Facebook - tem acesso ao conteúdo da conta. Segundo o Facebook, a transformação da página em memorial, com a consequente vedação de acesso a qualquer pessoa, visa tutelar o direito à privacidade do usuário falecido e de seus contatos e interlocutores, que "confiam" que as mensagens trocadas permanecerão em sigilo mesmo após a morte. Isso protege principalmente os usuários adolescentes da plataforma de comunicação, que costumam trocar detalhes íntimos nas redes sociais, que desejam manter longe do conhecimento dos pais. Por isso, o Facebook disse em contestação que, embora se "solidarize com os pais da falecida", precisa garantir que a comunicação entre os usuários da rede social seja protegida mesmo após a morte. O processo O juízo de primeiro grau de Berlim (Landesgericht Berlin) deu ganho de causa aos pais da adolescente e ordenou o Facebook a liberar o acesso à conta da falecida ao argumento de que a herança digital pertence aos herdeiros, que podem acessar todas contas de e-mails, celulares, WhatsApp e redes sociais do falecido. Em grau de recurso, o Kammergericht reviu a decisão sob o fundamento de que o acesso ao conteúdo digital violaria o sigilo das comunicações dos interlocutores da pessoa falecida. Apesar de reconhecer que os direitos e obrigações relacionadas a um contrato, como o do Facebook, são, em princípio, transmissíveis via herança, afirmou que não havia ainda "clareza jurídica" acerca da transmissibilidade ou não dos bens com conteúdo personalíssimo. A decisão do Bundesgerichtshof A família, então, recorreu ao BGH, que julgou procedente a revisão interposta e reconheceu o direito sucessório dos pais de ter acesso à conta da filha falecida e, consequentemente, a todo o conteúdo lá armazenado. Trata-se do processo BGH III ZR 183/17, julgado em 12/7/2018, que já se tornou o leading case do tema na Europa. Em síntese, a Corte infraconstitucional alemã reconheceu a pretensão dos pais, herdeiros únicos da menor, de ter acesso à conta e a todo o conteúdo nela existente. Essa pretensão decorre do contrato de consumo (contrato de uso de plataforma digital) existente entre a adolescente e o Facebook, o qual é transmissível aos herdeiros por força do princípio da sucessão universal, que vigora no mundo digital da mesma forma que no mundo analógico, disse o Tribunal. Segundo esse princípio - consagrado no § 1922 I BGB - todo o patrimônio, vale dizer, todas as relações jurídicas do falecido são transmitidas a seus sucessores, exceto aquelas que se devam extinguir por sua natureza, por força de lei, acordo ou pela vontade do autor da herança. Fora esses casos, os herdeiros se inserem imediatamente na titularidade das relações jurídicas do falecido com a abertura da sucessão, por força do princípio da saisine. Dessa forma, a Corte concluiu que o contrato de consumo celebrado entre a adolescente e o Facebook - cujo objeto era a criação e utilização do perfil - fora transmitido aos pais, que passaram a ocupar a posição jurídica contratual da filha com todos os direitos e obrigações. Em decorrência disso, eles teriam uma pretensão de acesso à conta e ao conteúdo digital armazenado, seja esse conteúdo de cunho patrimonial ou estritamente pessoal. Para afastar a transmissibilidade da conta, o titular deve - em vida, seja em testamento ou qualquer documento que comprove sua intenção inequívoca - vedar expressamente o acesso dos herdeiros, afastando, por ato de autonomia privada, a transmissibilidade do acervo digital. Se não o faz, o acervo digital é automaticamente transferido aos sucessores com a abertura da sucessão. Ou seja, para o BGH, em regra, a herança digital é transmitida aos herdeiros, salvo disposição expressa em contrário. E, rebatendo os argumentos a favor da intransmissibilidade da herança digital, defendido por doutrina minoritária na Alemanha, a Corte de Karlsruhe fez questão de acentuar que o reconhecimento do direito sucessório à herança digital não afronta os direitos de personalidade post mortem do falecido e nem o direito geral de personalidade dos terceiros interlocutores. Da mesma forma, não contraria o sigilo das comunicações e as regras sobre a proteção de dados pessoais. Abusividade da cláusula imposta pelo Facebook De início, o BGH fez questão de salientar que o contrato do Facebook com o usuário pode e deve ser submetido ao controle de abusividade pelo Judiciário, como qualquer outro contrato. E, analisando o conteúdo do contrato - que, não custa relembrar, é de adesão - considerou abusiva e, consequentemente, nula a cláusula imposta pelo Facebook em seus Termos de Uso (condições contratuais gerais) que transforma automaticamente a conta em memorial, bloqueando o acesso de qualquer pessoa, salvo o contato herdeiro indicado. Para o BGH, a abusividade da cláusula justifica-se, a um, porque fora fixada unilateral e posteriormente pelo Facebook, não tendo a usuária dela tomado prévio conhecimento, razão pela qual não integrava o contrato, nos termos do § 305, inc. 2 BGB. E, a dois, porque a cláusula da intransmissibilidade da herança digital promove uma alteração unilateral no dever de prestação principal do contrato, que consiste em viabilizar o acesso e a disposição da conta e do conteúdo armazenado aos usuários - e, com a morte, a seus sucessores. Dessa forma, além de contrariar o princípio da sucessão universal, a proibição de acesso à conta ainda frustra o fim essencial do contrato de utilização da plataforma de comunicação, enquadrando-se, portanto, nas hipóteses descritas no § 307, inc. 2 do BGB, como bem salientou o BGH. O acesso dos herdeiros não viola o sigilo das comunicações e nem a proteção dos dados pessoais No histórico julgado, o Tribunal também descartou o argumento do Facebook de que o acesso dos herdeiros ao conteúdo digital ofenderia o sigilo das comunicações e a proteção dos dados pessoais dos usuários e dos terceiros interlocutores, os quais "confiam legitimamente" no sigilo das mensagens trocadas. Em relação à suposta violação do sigilo das comunicações, o BGH acentuou que o fim da norma que garante o sigilo das comunicações é impedir que terceiros estranhos à comunicação tenham acesso a seu conteúdo, mas observou que os herdeiros, por força do direito sucessório, não podem ser qualificados como tal. Além disso, a norma não tem por fim impedir a transmissibilidade do conteúdo digital aos herdeiros, sucessores legítimos do falecido. Tanto isso é verdade que as cartas mais íntimas e sigilosas do morto, ainda quando guardadas em um baú ou cofre lacrado, são transmitidas automaticamente aos sucessores sem que se alegue ofensa ao sigilo das comunicações. Seria, então, incoerente sustentar a quebra do sigilo nas "cartas digitais", armazenadas no servidor da plataforma digital, mas não nas "cartas de papel", guardadas em baú lacrado, vez que o grau de confidencialidade e existencialidade é, obviamente, o mesmo. Isso mostra que a confidencialidade das comunicações não é violada com a sucessão universal, tratem-se de comunicações analógicas ou digitais. Também insubsistente se apresenta o argumento de que a transmissibilidade da herança digital ofenderia a proteção dos dados pessoais do falecido e de seus interlocutores. A um, porque o Regulamento EU 2016/679, de 27/4/2016, fala expressamente que as regras sobre a proteção dos dados pessoais não se aplicam a pessoas falecidas. A dois, porque, em relação aos dados pessoais dos interlocutores do falecido, o art. 6o, inc. 1, letra b do Regulamento 679/2016 - reproduzido no direito brasileiro no art. 7o, V da lei 13.709/2018 - permite o tratamento dos dados pessoais quando necessário à execução de um contrato. E, nesse caso, o tratamento dos dados pessoais dos interlocutores do usuário falecido seria feito pelo Facebook de forma legítima, em cumprimento de obrigação contratual, traduzida na transmissão e disponibilização para acesso do conteúdo digital aos sucessores do usuário. Diante disso, o Tribunal conclui que atribuir ao interessado a possibilidade de proteger, em vida, suas correspondências e materiais mais íntimos, subtraindo-as dos olhares indesejados de familiares e/ou herdeiros, é o meio mais adequado e eficiente para tutelar a privacidade e intimidade dele e de seus interlocutores, sem quebras sistemáticas no Direito Sucessório. Além disso, esse seria o meio menos restritivo aos direitos fundamentais em colisão: de um lado, o direito fundamental à herança, de outro o direito fundamental à privacidade do usuário e de seus interlocutores. Dessa forma, a aplicação da técnica da proporcionalidade veio corroborar a decisão do BGH no sentido de que a regra é a transmissibilidade do acervo digital, salvo disposição em contrário do falecido. Os limites da confiança nas redes sociais O Tribunal alemão chamou ainda a atenção para uma distinção importantíssima. É verdade que o usuário, que celebra um contrato de utilização de uma plataforma de comunicação, pode legitimamente confiar que a plataforma não vá acessar, divulgar ou permitir que terceiros acessem indevidamente esse conteúdo. Mas ele não pode "legitimamente" esperar - se nada dispôs em vida em sentido contrário - que esse "sigilo" tenha eficácia post mortem perante os herdeiros, que sucedem o falecido em suas relações jurídicas. Na verdade, diz o BGH, quem envia uma mensagem suporta o risco que terceiro tenha acesso a seu conteúdo, seja porque o destinatário mostrou a mensagem a terceiro, seja porque o terceiro tinha acesso à conta do destinatário. Quem envia a outrem uma carta, sabe - ou deveria saber - que não pode controlar quem, ao fim e a cabo, terá conhecimento de seu conteúdo. Ele também tem consciência que a obrigação dos correios se encerra com a colocação da carta na caixa postal do destinatário, não respondendo o serviço postal caso terceiros peguem indevida ou inadvertidamente a carta ou caso o próprio destinatário a mostre a terceiros. Ora, da mesma forma, disse o BGH, quem envia uma mensagem por meio digital sabe - ou deveria saber - que o destinatário pode salvá-la antes de morrer em seu computador ou em um USB-Stick ou imprimi-la e guardá-la numa gaveta. E todos sabem - ou devem saber - que esses bens serão automaticamente transmitidos aos herdeiros com a morte do titular da conta da rede social. Logo, conclui o Tribunal, o risco de que terceiros tenham acesso à mensagem é de todo emissor, tanto na comunicação analógica, como na digital. Distinção entre conteúdo patrimonial e existencial Por fim, o Tribunal afastou a tese, sustentada por minoritária doutrina, de que apenas os conteúdos digitais de caráter patrimonial devem ser transmitidos aos herdeiros, excluindo-se aqueles de caráter extrapatrimonial, ou seja, estritamente pessoal. Primeiro, porque a lei não faz distinção entre herança patrimonial e herança existencial, nem os valores subjacentes às normas do Direito Sucessório autorizam tal distinção. Tanto isso é verdade, afirma o BGH, que documentos existenciais como cartas e diários são transmitidos desde sempre aos herdeiros mesmo quando contenham informações íntimas e confidenciais, envolvendo terceiros e estejam guardados em um baú lacrado. Assim, seria incoerente, na visão da Corte, permitir a transmissão de informações confidenciais contidas em cartas e diários guardados em baú lacrado e vedar a transmissão daquelas armazenadas em nuvens ou nos servidores de plataformas digitais como o Facebook, pois a existencialidade não resulta da forma como tais informações estão corporificadas, mas de seu próprio conteúdo. Segundo, porque essa a proposta de distinção entre conteúdo patrimonial e conteúdo existencial põe graves problemas de ordem prática. Como o conteúdo digital deixado pelo falecido pode ter cunho patrimonial e existencial, seria necessário primeiro fazer uma análise de todo o conteúdo deixado e, em seguida, uma triagem para só então permitir - ou não - sua transmissibilidade aos herdeiros. Além de quebrar o princípio da sucessão universal, coloca-se aqui uma importante questão de legitimidade, na medida em que se precisaria definir quem estaria legitimado - mais que os herdeiros! - para acessar e fazer a triagem de todo o material. Isso sem falar nas infindáveis discussões que abarrotariam o Judiciário questionando o caráter patrimonial ou existencial de um determinado conteúdo. E, tudo isso, já na abertura da sucessão. Não é difícil perceber, portanto, o tempo que os processos de inventário e partilha poderiam levar para serem definitivamente encerrados. E, não custa alertar, essa reflexão se impõe principalmente no Brasil, onde processos dessa natureza arrastam-se durante décadas a fio. Por todas essas razões, a Corte de Karlsruhe concluiu que, se o usuário não afasta em vida o acesso dos herdeiros a todo ou a partes do conteúdo digital, usando sua autonomia privada para proteger sua privacidade e a de seus interlocutores, aplica-se a regra da sucessão universal, com a consequente transmissão de toda a herança (analógica e digital) aos herdeiros. Reflexões para o direito brasileiro Não é difícil perceber quão relevante é essa discussão para o direito brasileiro, pois aqui algumas decisões têm negado aos herdeiros, sob pálidos argumentos, o direito de acessar a conta do familiar falecido. Os consistentes fundamentos utilizados pelo BGH mostram que a decisão, antes de violar o direito à privacidade, fortalece autonomia privada e a autodeterminação dos usuários das redes sociais, chamando a todos (emissores e receptores) a assumir responsabilidades no mundo digital. A decisão deixa claro que o poder de decidir sobre o destino da herança digital cabe a seu titular. Apenas quando o titular nada faz, deixando de indicar quem terá acesso às mensagens, fotos, vídeos ou outro material confidencial, incide a regra geral do direito sucessório, que confere aos herdeiros o acesso ao conteúdo digital. Vários outros aspectos da decisão do Bundesgerichtshof merecem ser destacados e objeto de reflexão. Em primeiro lugar, o reconhecimento de que os contratos dos usuários com as plataformas de internet são relações obrigacionais regidas pelos princípios e regras do Direito Obrigacional e do Direito Sucessório, quando da morte de seu titular. Isso permite não só o reconhecimento de sua transmissibilidade post mortem, mas principalmente que o magistrado faça um controle da legalidade dos termos de uso impostos pelo Facebook (ou por qualquer outra plataforma digital), à luz da boa-fé objetiva e das demais normas cogentes no ordenamento brasileiro. Dessa forma, permite-se a declaração de nulidade pelo juiz das cláusulas do contrato de adesão que impeçam a transmissão da conta aos herdeiros e que esvaziem princípios basilares do Direito Sucessório. Em segundo lugar, é interessante notar que o BGB decidiu a questão à luz dos dispositivos legais existentes, sem lamentar qualquer lacuna ou reclamar a elaboração de lei específica, como comum por aqui em situações atípicas. Com isso, a Corte demonstrou que os novos problemas precisam primeiro ser analisados à luz do instrumental (teórico e legal) existente e as soluções integradas, quando possível, no sistema jurídico vigente, a fim de evitar desnecessárias quebras sistemáticas que dão ao ordenamento a aparência de uma - nem sempre harmônica! - colcha de retalhos. Em terceiro lugar, é fundamental observar que dar aos herdeiros acesso ao conteúdo digital do falecido não implica permitir que as contas sejam utilizadas livremente, nem tampouco que as mensagens ou outros dados sejam divulgados, como ressaltou a decisão do BGH. Os herdeiros não podem abusar de seu direito de acesso, causando dano ao próprio falecido ou a seus interlocutores. Não por outra razão alguns autores alemães sustentam a existência de um "direito à conservação de segredos", que seria um elemento integrante do âmbito de proteção do direito de personalidade post mortem. Esse, quando violado (ou sob ameaça de), pode ser objeto de tutela inibitória ou ressarcitória, como ocorre com qualquer outro direito ou interesse tutelado pela ordem jurídica. Em quarto lugar, não se pode descurar que, sob uma análise econômica, a ideia da intransmissibilidade da herança digital não se mostra a mais eficiente, pois implica tempo e dinheiro, impactando diretamente no custo e duração dos processos de inventários. Sem falar na potencial explosão de litígios na "fase preliminar" de análise da transmissibilidade ou não do conteúdo digital, pois infindáveis discussões surgirão acerca do que deve ou não ser considerado conteúdo existencial, sobre quem tem legitimidade - e capacidade técnica - para fazer a triagem dos dados patrimoniais e existenciais, quais critérios distinguiriam ambas as categorias, sem falar na dificílima questão de como tratar dados existenciais com valor patrimonial. Por fim, não custa relembrar que há séculos o direito confere aos herdeiros - enquanto pessoas presumidamente próximas e integrantes do núcleo familiar - o "poder-dever" de suceder o falecido em suas relações jurídicas. Isso inclui o poder de tomar decisões fundamentais relacionadas ao falecido, inclusive questões relacionadas à tutela de sua personalidade post mortem, o que torna mais difícil explicar porquê eles não teriam legitimidade para decidir sobre conteúdos armazenados nas nuvens. E mais ainda: considerando que poucos usuários dispõem em vida sobre seu acervo digital, a pergunta que se põe é porquê o Facebook teria maior legitimidade que os herdeiros para se apropriar do conteúdo digital de bilhões de usuários em todo o globo, pois é isso o que, em última instância, legitima a tese da intransmissibilidade da herança digital. Dessa forma, sob qualquer ângulo que se analise a questão, parece que a decisão do BGH foi a mais sensata e coerente dogmaticamente, pois privilegia a autonomia privada e a autoresponsabilidade do autor do legado digital, em harmonia com o sistema jurídico. Quem pretende sustentar o contrário tem que necessariamente suportar o ônus argumentativo de desconstruir a sólida argumentação da Corte alemã, desenvolvida - frise-se - com amparo na doutrina majoritária na Alemanha. A decisão, contudo, não pode ser simplesmente ignorada, como não raro ocorre por aqui. __________ 1 Para uma análise mais aprofundada da decisão, confira-se: NUNES FRITZ, Karina e SCHERTEL MENDES, Laura. Case Report: Corte alemã reconhece a transmissibilidade da herança digital. In: Revista de Direito da Responsabilidade, Coimbra, 2019, p. 525-555.
Ultimamente, não há uma semana em que o conglomerado digital de Mark Zuckerberg não se veja envolvido com algum problema legal. Das recentes novelas, primeiro foi uma multa milionária imposta pelo Ministério da Justiça alemão pela falta de transparência na resolução dos problemas de comentários racistas e de ódio na internet. Depois, outros tantos milhões de dólares foram pagos em acordo no escândalo da Cambridge Analytica, que, segundo noticiado, teria pago pelo acesso aos dados pessoais de milhões de usuários da rede social durante as eleições norte-americanas. Há pouco, surgiu o processo movido pelo estudante de Direito, Max Schrems, contra o envio indevido de dados pessoais de cidadãos europeus aos Estados Unidos, feito que também corre no Tribunal de Justiça Europeu (TJE). Fato é que a cada dia o Facebook se vê enrolado em pendengas legais. Apesar de todos os escândalos, suspeitas e acusações de ser o maior sugador de dados pessoais do planeta (a imprensa alemã fala em "polvo de dados" ou "Datenkrake"), permanece inabalável o interesse de usuários (privados ou comerciais) pela rede social, o que - na visão das agências regulatórias - só confirma e alerta para os poderes "quase-estatais" do Facebook. Semana passada, o Facebook se viu no epicentro de mais outra pendenga jurídica, desta feita envolvendo uma Central de Defesa dos Consumidores na Alemanha. O caso "Peek & Cloppenburg" Muitas empresas instalam em seus sites plug-ins de mídias sociais, como o botão de curtida do Facebook. O objetivo da ferramenta é atrair mais visitantes para suas páginas, obter mais feedbacks dos usuários que curtem, compartilham ou comentam e, dessa forma, incrementar a venda de seus produtos e/ou serviços. Uma das empresas que instalaram o botão de like do Facebook em sua homepage foi o famoso conglomerado internacional de roupas de Düsseldorf "Peek & Cloppenburg/Fashion ID". A particularidade do plug-in do Facebook, contudo, é que ele coleta automaticamente os dados dos usuários (ex: endereço de IP, agente do usuário (user agent) e o navegador utilizado) que acessam o site de moda e os transmite diretamente ao Facebook na Irlanda. E isso acontece mesmo que o usuário não clique no botão de curtida ou sequer tenha conta no Facebook. O simples navegar no site já permite a captação e transmissão dos dados ao Facebook que, a partir daí, faz o que bem quer com essas informações. Não é difícil imaginar que tudo isso aconteça sem conhecimento e - em todo caso - sem autorização do titular dos dados pessoais. Por isso, a Central de Defesa do Consumidor do Estado de Nordrhein-Westfalen (Verbraucherzentrale NRW) processou a empresa Peek & Cloppenburg e o Facebook pela violação de dados pessoais dos usuários. A Central alega que os usuários não são (suficientemente) informados e esclarecidos acerca desse procedimento, além do que faltaria autorização para a coleta de dados e a possibilidade de recusá-la. O processo judicial na Alemanha Em primeira instância, o juízo da Comarca de Düsseldorf deu ganho de causa à Central de Defesa dos Consumidores, reconhecendo que a prática viola o direito dos dados pessoais. Para o Tribunal de Justiça de Düsseldorf, contudo, a questão não é tão clara assim. Por isso, o Oberlandsgericht Düsseldorf fez um questionamento direto ao Tribunal de Justiça Europeu solicitando o esclarecimento de seis questões relacionadas à interpretação da Diretiva 95/46, que instituiu a proteção dos dados pessoais na União Europeia. O objetivo era, em essência, definir a compatibilidade - e, consequentemente, a admissibilidade - do botão de curtida com as regras europeias de proteção de dados pessoais. Por isso, o processo ficou suspenso no OLG Düsseldorf até a decisão dos juízes de Luxemburgo. A decisão do TJE: responsabilidade até o momento da transmissão ao Facebook O TJE enfrentou, então, a questão central de saber se a empresa que utiliza o plug-in do Facebook - ou de qualquer outro fornecedor de plug-ins de mídias sociais - pode ser responsabilizada com ele em caso de violações dos dados pessoais dos usuários. A decisão, prolatada no processo TJE Az. C-40/17, julgado em 29/7/2019, seguiu a linha já esboçada em outro julgado anterior, onde a Corte de Luxemburgo havia decidido que o operador de uma fanpage do Facebook, isto é, uma empresa que tem uma página comercial no Facebook, responde solidariamente com ele em casos de violação dos dados pessoais dos usuários. Trata-se do processo TJE Az. C-210/16, julgado em 5/6/2018. No processo julgado semana passada, o TJE reconheceu a responsabilidade solidária do operador do site e do Facebook pela coleta de dados pessoais durante a visita do internauta ao site da empresa e pelo envio desses dados ao Facebook na Irlanda. Essa responsabilidade resta configurada ainda quando a empresa, operadora do site, não tenha mais acesso algum aos dados pessoais após o envio ao Facebook. Ela responde pelo simples fato de ter possibilitado - através da instalação no site do botão de curtida - a transmissão dos dados, vez que dele se beneficia, ainda que de modo geral, através da publicidade vinculada ao botão de curtida. Dessa forma, disse o TJE, ambos decidem conjuntamente sobre os fins e os meios do tratamento de dados e auferem vantagens financeiras. A decisão da Corte Europeia seguiu a posição do Advogado-Geral, Michael Bobek, que, em dezembro de 2018, emitiu parecer favorável à reponsabilidade conjunta do operador do site e do Facebook pela violação das normas de dados pessoais dos usuários. O Advogado-Geral ainda sugeriu que fossem disponibilizadas informações claras aos usuários acerca dessa forma de tratamento dos dados e que se exigisse a concordância prévia daqueles para a coleta e transmissão de seus dados. As repercussões da decisão As repercussões da decisão do TJE foram imediatas na Europa. Na Alemanha, os especialistas ponderam que a decisão do TJE não visa impedir a instalação de plug-ins de mídias sociais nas páginas das empresas, mas essas precisam alertar os usuários sobre o tratamento comum de dados com o Facebook e pedir sua concordância - antes da coleta e envio dos dados - para legitimar a sua parte no processo de tratamento dos dados. Muitos acreditam que, em breve, o Facebook adaptará seus termos de uso, informando acerca da responsabilidade solidária com os operadores de sites. Esses, por sua vez, deverão remeter os usuários a esse acordo padronizado de responsabilidade e alertar, em suas declarações de proteção de dados, ao modo de funcionamento dos plug-ins e à possibilidade do usuário de vedar a coleta e o tratamento de dados. Através da instalação de determinados plug-ins, o operador do site poderia impedir, em princípio, a coleta e transmissão automática de dados pessoais ao Facebook & Co., deixando então a cargo do usuário a faculdade de autorizar - por exemplo, po meio de um ou dois clics - o compartilhamento do conteúdo. Alguns questionam ainda se seria viável assegurar ao internauta um direito de arrependimento, aos moldes do que ocorre no mercado de consumo a fim de conferir uma maior proteção ao titular dos dados contra decisões afoitas e precipitadas. Como visto, muitas questões técnicas, jurídicas e econômicas ainda estão em aberto. Há de se aguardar agora como o OLG Düsseldorf irá se pronunciar no processo, suspenso até então. Mas, sobretudo, há de se aguardar sobre o que os agentes reguladores irão dizer a respeito de mais esse sensível - e relevantíssimo - problema concreto de coleta e tratamento de dados pessoais sem autorização dos titulares.
O Tribunal de Justiça (Oberlandsgericht) de Stuttgart, na Alemanha, proferiu polêmica decisão ao negar o pedido de guarda compartilhada de uma cadelinha Labrador, de sete anos de idade, formulado pela ex-mulher após a separação do casal. O caso Antes do casamento, o casal resolveu pegar a cadela em um canil público, pagando por ela uma taxa de 450,00 euros. Como todos os animais de estimação na Alemanha precisam ser registrados em instituições cadastradas pelo Governo, o marido colocou seu nome nos documentos do animal, figurando como proprietário, com todos os direitos e obrigações. Com o registro, todos os animais recebem um número de identificação (uma espécie de carteira de identidade), o qual deve ficar colocado permanentemente na coleira ou ser implantado em forma de chip a fim de que, em caso de perda, o animal - e seu dono - possam ser devidamente identificados. Segundo a esposa, embora constasse o nome do marido nos documentos do animal, era ela quem cuidava diariamente de Lilly - nome fictício dado pela imprensa, diante do sigilo dos dados das partes. Ela a tratava praticamente como filha, mas quatro anos após o casamento, veio a separação e o marido ficou com a cadelinha na antiga residência do casal. Nove meses depois, a ex-mulher requereu o direito de ficar com Lilly todo final de semana, das 9h da manhã de sábado até as 18h de domingo. O casal chegou a fazer um acordo fixando normas para a convivência da mulher com o animal, aos moldes do que é feito em relação aos filhos. Mas o "acordo de visitação" não durou muito tempo em razão de desentendimento entre as partes. A disputa judicial A ex-mulher, então, pediu judicialmente a guarda definitiva do animal, iniciando uma emotiva disputa judicial, tal como frequentemente ocorre em relação à prole. Ela alegou que cuidou da cadelinha doente quando ela foi retirada do canil e que a pequena estaria sofrendo muito com a separação. Para ela, Lilly era importantíssima, ajudando, inclusive, em sua estabilidade emocional e psicológica. O ex-marido, ao contrário, não tinha condições de cuidar da "criança", pois era impaciente e intolerante, alegou a autora em juízo. O pai de Lilly, por sua vez, alegou ser o proprietário exclusivo da cadelinha, com quem já morava desde a separação e que uma mudança de lar agora iria causar sensíveis transtornos ao animal. A autora perdeu em primeira e segunda instância. A decisão do OLG Stuttgart Em grau de recurso, o OLG Stuttgart negou o pleito, reconhecendo o direito do marido de ficar com a cadelinha. Trata-se do processo OLG Stuttgart 18 UF 57/19, julgado em 23/4/2019. Segundo o Tribunal, tendo transcorrido mais de três anos da separação, não seria adequado alterar o ambiente do animal, que vive com seu dono em uma casa com jardim, ambiente propício ao dia-a-dia do animal. Além disso, na visão do Oberlandsgericht, o ex-marido comprovou ser, de fato, o dono da cadelinha, detendo sobre ela propriedade exclusiva. Segundo o Tribunal, é inegável que os animais não têm a natureza jurídica de coisa, o que, aliás, consta expressamente no § 90a do BGB desde 1990, quando a norma fora modificada para a atual redação, segundo a qual: "Animais não são coisas. Eles são protegidos por leis especiais. Sobre eles devem-se aplicar respectivamente as normas válidas para os bens, enquanto não se dispuser de outra forma"1. Em assim sendo, prosseguiu a Corte, impõe-se reconhecer que o marido adquiriu - antes do casamento - a propriedade exclusiva sobre a cadelinha, titularidade que permaneceu inalterada após o surgimento do vínculo matrimonial. Ele não só pagou por ela, constando no contrato como único proprietário e responsável, como também tem assumido o cuidado e as despesas com ela desde então. A autora - na visão do Tribunal - não comprovou ser coproprietária do animal. Depõe, segundo a Corte, contra a alegada copropriedade o fato da ex-mulher só ter solicitado a devolução do animal nove meses após a separação e ter deixado o animal com o ex-marido ao abandonar o antigo lar da família. O fundamento da decisão Apesar do reconhecimento de que os animais não são coisas, os tribunais alemães solucionam as lides envolvendo a posse de animais de estimação, quando compatíveis, com base nas regras que disciplinam a divisão dos bens comuns ao casal, dentre as quais o § 1.568b do BGB. O inciso 1 da norma permite a um dos cônjuges exigir que o outro abra mão, em prol dele e/ou dos filhos, dos "bens de uso domésticos", pertencentes ao casal, quando o requerente e/ou os filhos deles dependerem consideravelmente ou, ainda, por razões de equidade. A rigor, o § 1.568b do BGB trata dos bens adquiridos na constância do casamento para a manutenção comum do lar. Esses, em regra, são partilhados como bens comuns, exceto na hipótese do inciso 1 do § 1.568b, acima mencionado ou quando sejam comprovadamente propriedade exclusiva de um dos cônjuges (inciso 2 do § 1.568b). Por isso, a autora fundamentou sua pretensão de ficar com Lilly no § 1.568b, inc. 1 do BGB. Mas o problema é que o § 1.568b BGB pressupõe a copropriedade sobre o bem, não incidindo quando o bem for de titularidade exclusiva de um dos cônjuges. E o Tribunal reconheceu a propriedade exclusiva do réu sobre a cadelinha labrador, afastando, consequentemente, a incidência da norma. Entender o contrário representaria forte intervenção na posição jurídica proprietária do titular, protegida constitucionalmente, o que desde o pós-Guerra não mais se justificativa - disse o OLG Stuttgart. Não tendo demonstrado sua qualidade de coproprietária, a autora não tem qualquer pretensão de conviver com a cadelinha, pois para tanto falta-lhe uma base legal. Essa não se deixa deduzir, segundo a Corte, nem das normas que regem a situação jurídica dos bens, nem tampouco das normas que regulam o direito de guarda e convivência com os filhos, inaplicáveis à espécie por analogia. Repercussões do caso A decisão do OLG Stuttgart não deixou de causar polêmica, principalmente entre aqueles que conseguem amar animais não humanos. Essa relação de afeto, que independe de vínculo formal, precisa ser levada em conta pelo julgador mesmo diante da inafastável necessidade de se conferir estabilidade e segurança jurídica às situações da vida. Talvez por isso, outros tribunais, embora aplicando as regras sobre a divisão do mobiliário doméstico aos animais de estimação, sublinham que a decisão sobre quem ficará com o animal precisa ser tomada com base na equidade, considerando o melhor interesse do animal. Foi o que sublinhou o Tribunal de Justiça de Oldenburg no processo Az. 11 WF 141/18, julgado em 16/8/2018. O contexto fático assemelhava-se ao julgado acima, com a diferença, contudo, que o casal havia adquirido a cadelinha Dina na constância do casamento. Contudo, como a mulher saiu de casa, deixando Dina com o ex-marido e só veio a pedir a guarda depois de dois anos, a Corte achou por bem deixar a cadelinha com o pai, pois esse era, de fato, a principal pessoa de referência para o animal. No acordão, o Tribunal assinalou que, embora a posse dos animais de estimação seja determinada segundo as regras de partilha dos bens comuns ao casal, a decisão deve ser tomada levando em consideração de que se trata de um ser vivo, que constrói e mantém relações com as pessoas e que pode sofrer com a ausência de alguém. Decisivo deve ser quem cuidou na maior parte do tempo do animal, tornando-se a principal referência para ele, que, no caso, foi o marido, com quem a cadelinha ficou desde o fim do relacionamento. A regra, portanto, seria a busca do melhor interesse do animal, o que - precisa-se assinalar - também foi ponderado pelo OLG Stuttgart no caso de Lilly. A mesma Corte já tomou, em 2014, uma surpreendente decisão no famoso caso da cadelinha Babsi. Aqui, o casal havia adquirido a cadela conjuntamente, embora a esposa tenha contribuído com a maior parte do valor. Com o fim da relação, o marido simplesmente levou Babsi consigo ao sair de casa, impedindo qualquer contato da esposa com a cadela durante mais de um ano. Ele recusou, inclusive, as tentativas de conciliação propostas pela Vara de Família, onde o feito tramitou, rejeitando uma espécie de "guarda compartilhada" - embora esse termo não tenha sido usado na decisão. O juiz, então, deixou Babsi escolher com quem queria ficar: ela adentrou na sala de audiência e logo pulou, feliz da vida, no colo da mãe, onde permaneceu quietinha durante toda a sessão, levando o magistrado a concluir que a mulher permanecia sendo a referência para Babsi, mesmo após mais de um ano de separação forçada - decisão que acabou confirmada pelo OLG Stuttgart. Tema atualíssimo: disputa pelos animais A disputa em torno de animais não humanos tem ganhado cada vez mais espaço nos tribunais europeus, pois muitas são as famílias formadas por um casal e os peludos, onde se constrói entre as partes uma verdadeira uma relação filial. Aqui no Brasil a situação não é muito diferente e o problema se põe nas lides familiares com frequência. A questão é complexa e envolve uma profunda mudança de paradigma de que animais não são coisas, mas seres sencientes, capazes de sentir prazer e dor, de pensar e se expressar e, sobretudo, de construir uma relação com os animais humanos. Por enquanto, os animais ainda são tratados como bens semoventes (art. 82 CC2002). Mas no último dia 10/7/2019 a Comissão do Meio Ambiente do Senado Federal aprovou o Projeto de lei 27/18 que modifica o tratamento jurídico dado aos animais. Segundo o Projeto, os animais são sujeitos de direitos despersonificados, que devem gozar de tutela jurisdicional em caso de violação, sendo vedado seu tratamento como coisa. Eles têm natureza biológica e emocional, possuindo, portanto, uma natureza jurídica sui generis. Segundo informa o Parecer 18/2019, de relatoria do Senador Randolfe Rodrigues, o Senado já aprovou e encaminhou à Câmara dos Deputados o PL 351/2015, do Senador Antônio Anastasia, que tem por objetivo alterar o Código Civil (lei 10.406, de 10.01.2002) para determinar que os animais não sejam considerados como coisas, embora possam ser classificados na categoria dos bens móveis para os efeitos legais, salvo o disposto em lei especial. Esse Projeto tramita na Câmara como o PL 3.670/2015. Esse é, sem dúvida, um grande passo para uma nova visão sobre os animais não humanos e um estímulo a refletir sobre a ideia antropocêntrica de mundo, fundada na superioridade do animal humano sobre todos os demais. Muito ainda precisará ser discutido e refletido sobre o assunto. No entanto, uma coisa é certa: animais não são coisas. No máximo, coisa fofa! __________ 1 "§ 90a. Tiere sind keine Sachen. Sie werden durch besondere Gesetze geschützt. Auf sie sind die für Sachen geltenden Vorschriften entsprechend anzuwenden, soweit nicht etwas anderes bestimmt ist".  
Quem anda a 200 km/h na Autobahn tem que ter atenção redobrada, disse o OLG Nürnberg Andar sem limite de velocidade nas autoestradas alemãs, as famosas Autobahns1, é um sonho para muitos motoristas. Principalmente se for a bordo de um Mercedes Benz. Mas esse privilégio pode sair caro, como mostra uma recente decisão do Tribunal de Justiça de Nurembergue, de 25/5/2019. Em 2015, um motorista resolveu alugar um Mercedes Bens para viajar da pequena cidade de Erlangen, na Bavária, para Berlim. Ele fechou com a locadora um contrato de locação e de seguro, que o liberava do pagamento de qualquer franquia em caso de dano. No contrato, também estava autorizado a pilotar o veículo uma outra pessoa, que acabou provocando o acidente ao manusear o sistema de navegação do carro enquanto dirigia a uma velocidade de 200 km/h na Autobahn. Em seu depoimento, o motorista afirmou que estava vendo informações acerca da quilometragem e do tempo que ainda faltavam até o destino final, bem como verificando a distância até o próximo posto de gasolina. Durante o uso do sistema de navegação, ele segurou o volante com a mão esquerda, mas perdeu o controle do carro, chocando-se com a grade divisória entre as pistas da autoestrada, danificando consideravelmente o automóvel. A locadora processou não apenas o locatário, mas também o motorista, causador do acidente, acusando-o de ter agido com culpa grosseira ao dirigir a 200 km/h na Autobahn manuseando o sistema de navegação do carro. No contrato de locação havia uma cláusula, inserida nas condições gerais, que reduzia a responsabilidade da locadora no caso de o dano ao veículo ser decorrente de culpa grosseira do condutor. E, para a seguradora, o motorista, enquanto pessoa autorizada a dirigir o carro, estava incluído na eficácia de proteção da cláusula restritiva de responsabilidade, tal como o próprio locatário. A locadora requereu, então, que os réus fossem condenados ao pagamento de metade dos danos sofridos em razão do comportamento gravemente culposo do causador do acidente. Em defesa, os réus alegaram a abusividade da cláusula, inserida nas condições contratuais gerais, que permitia à locadora responsabilizar o condutor do veículo com base na gravidade de sua culpa. Segundo o motorista, ele dirigia apenas a 130 km/h na hora do acidente, não se podendo falar em culpa grosseira de sua parte. Eles ganharam em primeira instância, mas o OLG Nürnberg reformulou a sentença do juízo de Nürnberg-Fürth, condenando o motorista imprudente a pagar à locadora a soma de 11.947,69 euros, mais juros, além de condená-lo ao pagamento de 31% das custas processuais. Para a Corte, a responsabilidade do condutor baseia-se no § 823, inc. 1 do BGB (responsabilidade extracontratual), porque ele violou culposamente a propriedade da locadora. E essa responsabilidade não pode ser afastada pelo contrato entre a locadora e o locatário do carro. Em relação a esse pacto, o Tribunal afirmou inexistir abusividade na cláusula que prevê a redução da responsabilidade da seguradora em função da culpa grave do motorista. Segundo o Tribunal, no caso concreto, o condutor do veículo teria agido culposamente ainda que estivesse andando a uma velocidade de 130 km/h, pois, concomitantemente, usava o sistema de navegação do veiculo. A culpa grosseira, diz o acórdão, exige que a violação do dever seja subjetiva e objetivamente grave, de modo a ultrapassar consideravelmente a medida padrão da culpa, prevista no § 276, inc. 2 do BGB. O cuidado exigido no trânsito precisa ser infringido de forma extraordinária, deixando o causador do dano de observar grosseiramente aquilo que qualquer um teria observado naquela situação. Quem anda em autoestrada nessa velocidade (comprovada de 200 km/h) cria um alto risco potencial de dano não só para si próprio, mas também para os outros. Não por outra razão, em todos os países do mundo a alta velocidade em autoestradas é proibida - exceto na Alemanha, sublinhou criticamente o Tribunal, acentuando que no exterior o comum é a velocidade máxima girar em torno de 130 km/h, quando não inferior. A perícia apontou que quando o motorista, a 200 km/h, tem uma distração de apenas três segundos (ao mexer no sistema de navegação, por exemplo), o carro anda, no mínimo, um trecho de 167 metros sem que o condutor tenha qualquer visão sobre a pista, dificultando enormemente qualquer reação. E no caso concreto, o motorista mexeu por mais de três segundos no "navi" com o carro em alta velocidade, o que fez com o veículo desviasse, chocando-se com a mureta de proteção entre as pistas, caracterizando culpa grave. O Tribunal ressaltou, portanto, que quem anda acima de 130 km/h tem que se concentrar bastante na direção. E ainda quando o condutor desvie rapidamente o olhar da pista para o sistema de navegação, isso pode configurar culpa grave, legitimadora do dever de indenizar, como previa o contrato celebrado. __________ 1 Autobahn é substantivo feminino, cujo plural é Autobahnen. Pede-se aqui, contudo, licença ao leitor para, "abrasileirando" o termo, formar o plural com o acréscimo do "s" com o fim exclusivo de facilitar a compreensão aos leitores não familiarizados com o idioma de Goethe. 
Dois médicos foram acusados criminalmente na Alemanha por prática de suicídio assistido, conduta punida no § 217 do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch - StGB) desde 2015. Os casos ocorreram em Hamburgo e Berlim. O processo de Hamburgo Duas amigas, já na idade de 81 e 85 anos, sofriam de doenças que, embora sem risco de vida, limitavam tão consideravelmente a qualidade de vida e movimentação, que ambas, já cansadas, desejavam pôr um fim à própria existência. Elas procuraram, então, uma associação para auxiliá-las na prática do suicídio. A associação exigiu que as duas se submetessem a exames e a parecer neuropsiquiátrico para atestar suas capacidades de compreensão e avaliação do passo a ser dado. O acusado, um médico especialista em neurologia e psiquiatria, foi quem assinou o laudo, atestando inexistir dúvidas acerca da vontade sólida e consciente de ambas de praticar o suicídio. A pedido das duas senhoras, ele, então, assistiu-as no momento da ingestão de medicamentos letais e, de acordo com o desejo expresso de ambas, deixou de adotar medidas de salvamento após as duas atingirem o estágio de inconsciência. O médico foi processado pelo Ministério Público sob acusação de prática de suicídio "comercial" assistido, tipificado no § 217 StGB, segundo o qual: "§ 217 - Promoção comercial do suicídio. (1) Quem, com a intenção de fomentar o suicídio de outrem, fornece, proporciona ou intermedia comercialmente a oportunidade para tanto, é punido com pena privativa de liberdade de até três anos ou com pena de multa. (2) Não será punido como partícipe quem não agiu com fim comercial e ou é familiar ou pessoa próxima da pessoa indicada no inciso 1."1 O médico, contudo, foi absolvido da acusação tanto por razões fáticas, quanto jurídicas. Segundo o juiz, as duas senhoras tiveram sozinhas o domínio do ato de provocar a própria morte, pois ingeriram, por ato próprio, os medicamentos letais. Em razão da autoresponsabilidade das pacientes, não se poderia considerar que o médico estava obrigado a salvar das duas, até porque não havia nenhum indício de que as duas senhoras mudaram de ideia, arrependendo-se da ação, após a ingestão dos medicamentos, hipótese na qual ele poderia ser obrigado a agir para salvar a vida das pacientes. O processo de Berlim: dois dias de agonia até a morte No processo em Berlim, um clínico geral fora acusado de ter permitido o acesso da paciente a uma alta dose de medicamento letal. A suicida sofria, desde jovem, de uma doença grave que, embora também não fosse letal, causava-lhe permanentes convulsões dolorosíssimas. A mulher, de 44 anos, já tentara inúmeras vezes o suicídio. Até que resolveu pedir ao médico ajuda para morrer. Ele a assistiu, conforme a vontade da paciente, durante os dois dias em que esteve inconsciente em decorrência da ingestão da substância, não adotando, contudo, qualquer medida para salvá-la nesse período. O clínico geral também foi absolvido pela Corte em Berlim, pois a colocação de medicamentos letais à disposição do paciente para que este cometa suicídio não é uma assistência punível, nos termos do § 217 do Código Penal alemão. O Tribunal também afastou, no caso, o dever do médico de tentar salvar a paciente após a perda da consciência, pois a falecida exercitara livremente - e com autoresponsabilidade - seu direito de autodeterminação, de forma que qualquer dever de salvamento do médico fora afastada pela autonomia privada da suicida. Ou seja: nem a disponibilização de medicamentos, nem a omissão em tentar salvar a vida do paciente suicida são puníveis penalmente, segundo a decisão da Justiça de Berlim. A decisão do Bundesgerichtshof de Leipzig O 5o. Senado do BGH, especializado em Direito Penal, negou a revisão interposta pelo Ministério Público em ambos os casos, confirmando a absolvição dos dois médicos nos processos 5 StR 132/18 (Landgericht Hamburg) e 3 StR 393/18 (Landgericht Berlin), ambos julgados em 3.7.2019. Essa câmara penal do BGH é a única que não se situa em Karlsruhe, onde ficam a maioria dos senados que compõem a Corte infraconstitucional, equivalente ao nosso Superior Tribunal de Justiça. O 5o. Senado situava-se incialmente em Berlim Ocidental e sempre esteve um pouco longe do "comando" de Karlsruhe, o que lhe dava certa independência. Em 1997, depois que Bonn deixou de ser a capital da Alemanha, ele foi transferido definitivamente para Leipzig, sede do histórico Reichsgericht (Tribunal Imperial). Segundo o BGH de Leipzig, para a configuração da responsabilidade penal dos acusados, por seu envolvimento no suicídio, seria necessário que as pacientes não estivem em condições de formar uma vontade, livre e responsável, acerca do próprio suicídio. Nos dois casos, contudo, as instâncias inferiores constataram, corretamente, a inexistência de quaisquer circunstâncias restritivas da autoresponsabilização das suicidas. A vontade de morrer de ambas não era o resultado de distúrbios psicológicos, mas estava solidamente calcada na falta da vontade de viver, desenvolvida ao longo do tempo. O 5o. Senado ressaltou que nenhum dos dois médicos estavam obrigados, na situação, a adotar medidas para tentar salvar a vida das pacientes após as mesmas atingirem o estágio de inconsciência. Dito em outras palavras: não havia o dever de tentar salvar a vida das pacientes. No caso de Hamburgo, o acusado - na visão do Tribunal - sequer assumira o tratamento médico das duas senhoras suicidas, o que poderia, em tese, tê-lo obrigado a adotar medidas de socorro a fim de evitar a morte. A simples elaboração de parecer médico ou o acordo de prestar auxílio durante o suicídio são insuficientes para criar deveres de proteção (Schutzpflichten) para com a vida do paciente, disse o BGH. Já no caso do clínico de Berlim, o qual era efetivamente médico da suicida, o mesmo fora liberado do (existente) dever de salvamento pela própria paciente, em decorrência do exercício de seu direito à autodeterminação (Selbstbestimmungsrecht). Aqui, note-se, havia o dever de adotar medidas para salvar a vida do paciente em função da relação médica entre ambos, mas a autonomia privada da paciente desobrigou o médico da observância dessa obrigação. Não se pode também dizer que os dois médicos violaram, de forma criminosa, o dever de socorro geral, existente face a todos em casos de acidente, nos termos do § 323c do StGB. Tendo em vista que o suicídio representava exatamente a concretização do direito de autodeterminação das pacientes, os dois acusados sabiam que quaisquer medidas destinadas ao salvamento da vida seriam contrárias à vontade das mesmas. Por fim, salientou a Corte de Leipzig que ao tempo do suicídio das pacientes ainda não estava em vigor o § 217 do StGB, de forma que o comportamento dos acusados, por óbvio, não pode ser medido e enquadrado no suporte fático do auxílio "comercial" ao suicídio, tipificado na norma. As repercussões da decisão: palavra final caberá ao Bundesverfassungsgericht A decisão não apaziguou as discussões em torno do tema na Alemanha. A classe médica está dividida. Enquanto alguns saudaram a decisão, outros criticaram-na ao argumento de que o acompanhamento na morte não pode ser entendido como ajuda ao suicídio, que acabou sutilmente legalizada pela decisão do BGH. Segundo Rudolf Henke, Presidente da Liga Médica de Marburg, por trás do desejo de suicídio há sempre uma carência da alma. O papel do médico é, em sua visão, apontar caminhos para a continuidade da vida. Uma coisa parece certa: a preocupação que guiou o legislador alemão na criminalização da conduta do § 217 do StGB foi evitar que se possa ganhar dinheiro com a morte dos outros. Organizar um suicídio não é o mesmo que organizar uma festa, disse um advogado aos jornais, comentando o caso. A palavra final caberá, de fato, ao Tribunal Constitucional (Bundesverfassungsgericht), onde tramitam várias queixas constitucionais envolvendo a questão do suicídio assistido. Os processos estão sob relatoria da eminente Min. Sibylle Kessal-Wulf, que esteve no Brasil, em diferentes ocasiões, proferindo palestras. A última audiência pública ocorreu dia 16.4.2019, em Karlsruhe, na sede do BVerfG. Só nos resta, por enquanto, aguardar a decisão da Corte Constitucional. __________ 1 "§ 217 Geschäftsmäßige Förderung der Selbsttötung. (1) Wer in der Absicht, die Selbsttötung eines anderen zu fördern, diesem hierzu geschäftsmäßig die Gelegenheit gewährt, verschafft oder vermittelt, wird mit Freiheitsstrafe bis zu drei Jahren oder mit Geldstrafe bestraft. (2) Als Teilnehmer bleibt straffrei, wer selbst nicht geschäftsmäßig handelt und entweder Angehöriger des in Absatz 1 genannten anderen ist oder diesem nahesteht".  
Quem perde um prazo confiando nas informações do cliente, incorre em violação de dever e precisa indenizar. Foi o que entendeu recentemente, em 14/2/2019, a Corte infraconstitucional alemã, o Bundesgerichtshof (BGH), em processo movido por uma cliente contra seu advogado. O caso A cliente havia sido demitida por seu empregador por meio de comunicação escrita, datada de 22/12/2012 e lançada, por mensageiro, no mesmo dia, às 10h52, em sua caixa postal. Seu esposo, então, contratou o advogado para mover uma ação contra o empregador, informando-o, contudo, que a demissão teria ocorrido dia 23/12/2011. O advogado protocolou, dia 13/1/2012, perante a Justiça Trabalhista, uma ação visando a declaração de que a relação trabalhista não havia sido desfeita. Segundo o § 4, frase 1 da Lei de Proteção contra Demissão (Kündigungsschutzgesetz ou KSchG), de 10.08.1951, de acordo com a última redação feita em 17/7/2017, quando o trabalhador pretende ver declarada a invalidade da demissão, alegando ser a mesma socialmente injustificada, ele precisa mover uma ação dentro do prazo de três semanas, nos termos do § 4, frase 1 c/c § 13, frase 2 KSchG. Se o juiz constatar que a demissão extraordinária carece de fundamento, o trabalhador deve ser imediatamente reintegrado, exceto se a continuidade da relação trabalhista for irrazoável, hipótese na qual o vinculo será desfeito e o empregador condenado ao pagamento da devida indenização (§ 13, frase 3 KSchG). A ação interposta foi, entretanto, julgada intempestiva, porque o prazo se esgotara no dia anterior (12/1/2012), vez que a cliente recebera - e teve, portanto, possibilidade de acesso ao conteúdo da correspondência (dispensa imotivada) - no mesmo dia (22/12/2011) e não no dia seguinte, como informara o marido da cliente. A cliente, inconformada, processou o causídico pela propositura tardia da ação, aduzindo que cabia a ele se certificar acerca da data exata da demissão, o que poderia ter feito por meio de simples consulta dos documentos, pois a carta de demissão estava datada do dia 22/12/2011 e havia sido entregue por mensageiro, o que pressupõe ter sido entregue no mesmo dia. O juízo de primeira instância julgou a ação improcedente, o que foi confirmado pelo Tribunal de Justiça (Oberlandsgericht) de Hamburgo ao argumento de que o advogado poderia confiar na informação prestada pelo marido da mandante, pois se tratava de dado fático e não de fato jurídico. Na verdade, segundo o OLG Hamburg, o marido da autora foi quem agiu culposamente, pois poderia supor que uma correspondência retirada da caixa de correio em um dia poderia ter sido entregue no dia anterior, como aliás indicava a data assentada no documento. Dessa forma, o advogado não violara nenhum dever culposamente, já que não precisava reconhecer a incorreção das informações prestadas pelo esposo da autora. BGH: dever de diligência O BGH, entretanto, não se convenceu dos argumentos e reenviou o caso ao Tribunal a quo para reanálise. Para a Corte, era dever do advogado ter conferido a data exata da entrega da carta de demissão. É verdade que o causídico pode, em princípio, confiar nas indicações fáticas fornecidas pelos clientes, disse o Tribunal. Mas a informação sobre a data de recebimento de uma demissão constitui indicação jurídica que o cliente nem sempre consegue avaliar com segurança, até por falta de conhecimento técnico e experiência. E a contratação de um advogado tem exatamente por fim deixar na mão de um especialista a avaliação jurídica da situação fática, disse a Corte sublinhando o fim (Zweck) elementar do contrato de prestação de serviços jurídicos. Por isso, o dever de assessorar de forma correta e completa o cliente pressupõe que o advogado, através de questionamentos ao mandante, esclareça os fatos relevantes para a correta avaliação jurídica da questão. Se os fatos narrados não forem claros ou forem incompletos, o advogado tem o dever de agir para (tentar) obter uma visão mais objetiva e completa da situação, conforme reiterada jurisprudência da Corte. No caso, como a carta de demissão estava datada de 22/12/2011, o Tribunal entendeu que o advogado estava obrigado a esclarecer, junto ao marido da autora ou à própria, se a carta não poderia ter sido eventualmente acessada, isto é, ter sido colocada efetivamente na caixa de correspondência no mesmo dia (22/12/2011). Se isso [acesso] não pudesse ser afastado com segurança, ele estava obrigado a escolher o caminho mais seguro e a protocolar a ação de proteção contra a demissão imotivada já em 12 de janeiro de 2012. O réu agiu, assim, de forma "contrária ao dever" (pflichtwidrig), ou seja, em desacordo com o dever de diligência esperado na situação, pois, sem qualquer verificação, simplesmente tomou como certa as informações do marido da autora para determinar sua conduta. Em outras palavras: o advogado deveria, segundo a Corte de Karlsruhe, ter verificado a data exata do recebimento da correspondência e não simplesmente ter confiado nas informações do cliente, até porque este não tem conhecimento acerca dos critérios legais exigidos para se determinar o início da contagem de um prazo processual. Já a data indicada na carta deveria ter motivado o causídico a apurar a data exata da entrega (possibilidade de acesso) e, consequentemente, o início do prazo para ajuizar a ação. Como deixou de verificar, o advogado violou negligentemente seu dever de diligência, devendo responder pelos danos causados à autora. Decisão polêmica A decisão do BGH chama atenção por diversos motivos, sobressaindo-se dois em especial. Primeiro, ela confirma uma tendência, que vem se delineando nas últimas décadas na jurisprudência alemã, de agravamento da responsabilidade do advogado. Este vem sendo frequentemente chamado a responder não apenas pelo descumprimento de deveres inerentes ao contrato de prestação de serviços jurídicos, bem como pela violação de deveres laterais, oriundos da boa-fé objetiva, positivada no § 242 do Código Civil alemão (BGB). Segundo, o Tribunal aplicou ao caso a regra segundo a qual uma declaração de vontade (carta de demissão) tem-se como presumidamente acessada pelo destinatário quando, de acordo com os usos do tráfego, pode-se legitimamente esperar que ele dela tenha tido conhecimento, salvo prova em contrário. No caso, como o depósito da carta na caixa de correio da ex-funcionária fora feito por mensageiro pela manhã, o BGH considerou razoável supor que, salvo prova em contrário, ela dela teve conhecimento no mesmo dia. De qualquer forma, para a Corte, o erro do advogado foi simplesmente ter confiado nas informações prestadas pelo cliente, sem se certificar acerca do início do prazo para o protocolo da medida contra a demissão imotivada, pois isso não é uma questão fática, mas jurídica, que o cliente não consegue adequadamente avaliar.
Segundo o Tribunal de Justiça de Frankfurt am Main, na família há um círculo onde as pessoas podem se expressar sem medo de ser processadas O círculo familiar é uma área para discussões e palavras duras, sem que um de seus membros precise temer consequências jurídicas, disse recentemente o Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Frankfurt am Main ao julgar caso em que um genro pedia que a sogra fosse proibida de falar mal dele no grupo de WhatsApp da família. Tudo começou com uma briga de casal, em 2016, por suposta traição. Durante a discussão, o genro teria pego pela nuca o filho pequeno e o empurrado para fora do recinto. O pequeno começara a chorar com a gritaria dos pais e se recusava a deixar a sala sozinho, embora exortado pelo genitor a ir para o quarto. Com a confusão instaurada, o marido saiu de casa e a esposa gravou um vídeo do pequeno chorando, onde ele, em resposta a suas perguntas, relata o acontecido e diz que o pai se comporta dessa forma com frequência, dando a entender que o pai seria agressivo. A esposa, então, enviou o vídeo por WhatsApp para sua mãe, que fez um "protocolo de maus-tratos", onde listava uma série de comportamentos supostamente agressivos do genro. Essa lista de agressões foi encaminhada, juntamente com o vídeo gravado, pelo WhatsApp para sua irmã, tia da esposa do acusado. Em seguida, denunciou o genro por maus-tratos e apresentou o protocolo e o vídeo na polícia e no Juizado da Infância. O genro, então, moveu uma ação cautelar requerendo que a sogra se abstivesse de falar mal dele no grupo de mensagens da família. O juízo de primeiro grau negou a cautelar ao argumento de que o autor não demonstrou a urgência da medida. Em grau de recurso, o OLG Frankfurt a.M. reconheceu que a primeira instância havia se equivocado ao denegar a liminar, mas afirmou que o autor não tinha nenhuma pretensão de abstenção contra a sogra. Trata-se do processo Az. 16 W 54/18, julgado em 17/1/2019. Para o Tribunal, determinadas relações marcadas por alto grau de confiança, como as relações familiares, precisam ter uma área livre onde os familiares possam falar e discutir uns com os outros sem precisar temer consequências jurídicas, como ações judiciais ou mesmo, acresça-se, dano moral, bem ao sabor brasileiro. Essas relações de confiança privadas gozam de proteção constitucional e se sobrepõem à proteção da honra, na ponderação dos interesses em jogo, disse o Tribunal. A sogra expressou-se dentro dessa "zona livre", pois é muito íntima da irmã e da própria filha. Isso justifica, para o OLG Frankfurt a.M., que ela possa falar (mal) do genro sem que isso caracterize ato ilícito absoluto, violador da honra, nos termos do § 823 BGB, uma das três cláusulas gerais que compõem o sistema de responsabilidade extracontratual no direito alemão. Ainda quando essas opiniões e comentários possam violar a honra do outro, elas não são qualificadas como antijurídicas, porque se tratam das chamadas "manifestações privilegiadas" (privilegierte Äußerungen), emanadas dentro de um círculo estreito e íntimo de pessoas. Diz a ementa da decisão: "Dentro do estreito círculo familiar existe uma área livre da proteção da honra, que permite que se possa se expressar livremente sem precisar temer perseguições judiciais. Mesmo quando a sogra afirma perante a irmã e a filha que seu genro maltrata membros da família, este não tem nenhuma pretensão de abstenção." Para a Corte, a jurisprudência alemã deduz dos arts. 1o., inc. 1 e 2o., inc. 1 da Lei Fundamental1 a existência de uma área de comunicação sigilosa, dentro das relações marcadas por uma confiança especial, como as relações familiares mais próximas, na qual a proteção da honra fica em segundo plano. "Com isso, deve-se dar a cada um um espaço livre no qual não é observado e dentro do qual [a pessoa] pode decidir o que acha mais pertinente e pode se manifestar livremente com seus familiares mais próximos sem consideração a expectativas comportamentais sociais, podendo expressar livremente suas emoções, revelar desejos ou medos secretos e expressar, com coragem, seu próprio julgamento sobre relações ou pessoas, sem ter que temer uma perseguição judicial", diz o Tribunal de Frankfurt a.M. E isso vale tanto para o conteúdo (assunto), quanto para a forma da manifestação. É irrelevante, portanto, se a sogra se expressou oralmente ou se utilizou de mensagens escritas via WhatsApp, anexando vídeos ou quaisquer outros documentos. Ela se movimentou nessa área livre de interferência estatal, afirmou o OLG Frankfurt a.M. Diferente seria se ela tivesse falado mal do genro para terceiros ou publicamente, pois, nesse caso, sua manifestação não seria mais digna de proteção, devido ao conteúdo ofensivo à honra do genro. Para a Corte, "aqueles comentários feitos a estranhos ou em público, que, por conta de seu conteúdo ofensivo à honra, não seriam dignos de proteção, recebem tutela constitucional nessas relações de confiança privada, que goza de prioridade em relação à proteção da honra do afetado pelas manifestações. A justificação intrínseca aqui é a proteção especial das relações de confiança, assegurada através do direito geral de personalidade, embora, em manifestações dentro da família, o direito fundamental do art. 6, inc. 1 da Lei Fundamental2 fortaleça ainda mais essa proteção...". Independentemente da assertividade da decisão do Tribunal de Frankfurt, que só será decidida pelo Bundesgerichtshof, em sede de uma eventual revisão, uma coisa é certa: a decisão precisa ser lida - principalmente pelo leitor brasileiro - com a máxima cautela e sem arroubos, dentro do contexto fático para o qual foi proferida. Por óbvio, o Tribunal alemão não está aqui a autorizar ofensas e/ou agressões morais ou físicas entre familiares. O que a Corte chama atenção é que nem todos os problemas e ofensas trocadas entre parentes precisam parar na Justiça. A família, enquanto locus fundamental para o livre desenvolvimento da personalidade de seus membros, também precisa ser um espaço para as pessoas, dentro dos limites do razoável, expressarem suas emoções, desejos, opiniões ou mesmo julgamentos sobre outros familiares ou situações que os envolvam, sem temer um processo judicial. Por óbvio, não se pode pretender exigir que seus membros emitam sempre opiniões favoráveis sobre os outros. Pelo contrário, opiniões desagradáveis são, por vezes, necessárias. E a mediação comprova que o diálogo aberto e franco, ainda quando rude, pode evitar disputas judiciais desnecessárias, como a bizarra briga dos irmãos por causa de um blusão de moletom, que ocupou o 1o. Juizado Especial Cível de Cascavel, no Paraná. Nesse caso, considerando que os irmãos ainda moravam na casa dos pais, parece razoável admitir que faltou uma boa "chamada" dos filhos pelos genitores - a menos que se conclua pela falência do núcleo familiar em solucionar uma birra de criança. Evidentemente, nem sempre é fácil encontrar essa tênue linha divisória entre a ofensa "permitida" e a ofensa antijurídica, contrária ao direito, salientada pelo Tribunal alemão. Mas esse é um desafio que o Poder Judiciário precisa enfrentar, com amparo na boa doutrina. E o direito comparado muito tem a contribuir, na medida em que permite ver como outros ordenamentos jurídicos têm solucionado o mesmo problema. O ganho será enorme ao evitar a excessiva judicialização dos conflitos familiares. __________ 1 Tradução livre do original em alemão: "Art. 1 (1) A dignidade do homem é inviolável. Respeitá-la e protege-la é dever de todos os poderes estatais". "Art. 2 (1) Todos têm direito ao livre desenvolvimento de sua personalidade, desde que não viole os direitos de outrem, a ordem constitucional ou os bons costumes". 2 "Art. 6 (1) Matrimônio e família encontram-se sob a proteção especial da ordem estatal".  
Recentemente, a Corte superior alemã, Bundesgerichtshof (BGH), decidiu uma bizarra briga de família: tia e sobrinha foram parar na Justiça por conta das "decorações" que a neta colocava no túmulo do avô. O caso O falecido estava sepultado em um belo campo verde, embaixo de uma árvore. O local fora escolhido de acordo com a vontade do falecido, que ainda em vida manifestou o desejo de ser enterrado em uma área verde, longe dos mármores, granitos e demais elementos artificiais, comumente encontrados nos cemitérios tradicionais. Por isso, sua filha (tia da neta) escolhera um cemitério verde para sepultar os pais. Segundo o regulamento do cemitério, era proibida a decoração e colocação de objetos ao redor dos jazigos a fim de manter uma composição uniforme dos túmulos. Só era permitida a colocação de flores naturais em um local apropriado, construído próximo ao túmulo. Uma placa na entrada do local alertava familiares e visitantes para essa proibição. Não obstante o impedimento, a neta do falecido colocava com frequência vasos de plantas, rosas de latão e flores artificiais fora do local destinado a esse tipo de ornamentação. Além dos arbustos artificiais, ela chegou a depositar no local, em diversas oportunidades, corações de madeira, vasos de cerâmicas, estrela de natal, lanternas e anjos decorativos, os quais, entretanto, foram retirados pela tia, provocando desentendimento entre as duas. Sem chegar a um consenso, a neta fez uma queixa-crime contra a tia por furto. Esta, por meio de advogado, notificou a sobrinha para que retirasse todos os objetos por ela colocados no cemitério e se abstivesse de decorar de tal forma o jazigo de seu pai, solicitando ainda o pagamento dos custos dispendidos com o causídico. Em seguida, moveu com mesmo intento uma ação judicial contra a sobrinha, a qual foi julgada improcedente em primeira instância. Em grau de recurso, o Landgericht de Darmstadt condenou a neta a se abster de colocar quaisquer objetos não autorizados pelo regulamento do cemitério e pelas determinações do Município, bem como a pagar os custos extrajudiciais com advogado estimados em 334,75 euros, suportados pela tia. A decisão do BGH: tia tem direito de cuidado póstumo A briga foi parar no Bundesgerichtshof, a corte infraconstitucional alemã, que denegou o recurso interposto pela neta contra a decisão do Tribunal de Darmstadt. Trata-se do processo BGH VI ZR 272/18, julgado em 26/2/2019. Para o BGH, com a colocação indevida de objetos no tumulo do avô, a neta violou o direito póstumo de cuidado (Totenfürsorgerecht) da tia, protegido pelo § 823, inc. 1 do BGB, segundo o qual todo aquele que, dolosa ou culposamente, violar ilicitamente a vida, o corpo, a saúde, liberdade, a propriedade ou um outro direito de outrem, fica obrigado a ressarcir o dano. O dispositivo consagra o ato ilícito (unerlaubte Handlung) no BGB, causa da responsabilidade extracontratual. A norma é frequentemente criticada pela doutrina brasileira por enumerar - em numerus clausus - os bens jurídicos tutelados, mas a verdade é que se trata de uma das três "pequenas" cláusulas gerais que forma a base do sistema de responsabilidade civil alemão. Em sua literalidade, não há dúvidas de que a norma possui elasticidade semântica para ser interpretada como uma ampla cláusula geral de ato ilícito, aos moldes do modelo francês e brasileiro, que nele se inspirou. Mas essa nunca foi a intenção do legislador alemão e nem do aplicador do direito, que lá subsume apenas a ofensa a direitos absolutos. Por isso, a jurisprudência alemã qualifica o chamado direito póstumo de cuidado como uma espécie de direito absoluto, deduzindo-o a partir do conceito de "outros direitos", previsto na norma para permitir a tutela de outros direitos absolutos não previstos expressamente pelo legislador. Consequentemente, o BGH reconheceu ter a tia uma pretensão de cunho indenizatório e proibitório contra a sobrinha, deduzida do § 823 I c/c § 1004, inc. 1, frase 2 do BGB, que obriga esta a abster-se de colocar objetos ao redor do túmulo e flores artificiais fora da floreira destinada às flores naturais. Segundo a Corte de Karlsruhe, o direito de cuidado póstumo inclui, dentre outros, o direito de definir o funeral, a construção e aparência do túmulo do falecido, além de conter o poder de manter e conservar sua aparência de acordo com a vontade do de cujus. Diz a ementa: "O direito póstumo de cuidado inclui, dentre outros, o direito de definir o funeral (de acordo com a decisão do BGH, de 26.11.2015, do III ZB 62/14, publicada em FamRZ 2016, 301, Rn. 12; e decisão de 26.02.1992, do XII ZR 58/91, publicada em NJW-RR 1992, 834, II 1, juris Rn. 9). Isso inclui a determinação sobre a configuração e aparência de um tumulo. O direito póstumo de cuidado compreende, além disso, a autorização para manter e conservar sua aparência externa. O direito póstumo de cuidado é um outro direito, nos termos do § 823, inc. 1 BGB, que, em caso de violação, pode fundamentar pretensões ressarcitórias, bem como pretensões de remoção e abstenção de interferência, nos termos do § 1004 BGB." Direito de cuidado póstumo O princípio determinante do direito de cuidado post mortem é a vontade do falecido. Esse pode, diz o Tribunal, determinar não apenas o modo e local de seu sepultamento, bem como escolher a pessoa a quem confiará a defesa de seus interesses após a morte. O escolhido pelo falecido está legitimado a realizar sua vontade mesmo contra a vontade dos (demais) familiares. E, diante da impossibilidade de se determinar a vontade do de cujus, pode o titular do direito de cuidado póstumo decidir sozinho sobre todos esses aspectos. Diz o BGH: "O princípio dominante do direito póstumo de cuidado é a decisiva vontade do falecido (cf. BGH, julgado em 26 de fevereiro de 1992 - XII ZR 58/91, NJW-RR 1992, 834, em II 1, juris Rn. 9). Este pode determinar não apenas o modo do seu funeral e o local da última morada, como também a pessoa a quem ele vai encarregar a defesa desse interesse... O encarregado pelo falecido está legitimado a executar a vontade do falecido, em caso de necessidade mesmo contra a vontade dos (demais) familiares... Se e enquanto a vontade do falecido não for perceptível, o titular do direito póstumo de cuidado pode decidir sobre a forma do enterro e escolher o local da última morada". O Tribunal salientou ainda que para a perquirição da vontade do falecido não é necessária uma declaração de vontade expressa, manifestada, por exemplo, em testamento ou qualquer outra disposição de vontade, sendo suficiente que a mesma resulte, com segurança, das circunstâncias. E o Tribunal a quo comprovou que a tia, filha do falecido, havia sido designada pelos pais para escolher e cuidar do túmulo após a morte dos genitores. Na instância probatória também restou comprovado que a neta alterou frequentemente a aparência do jazigo com a colocação arbitrária de objetos, em desacordo com a vontade do falecido, que desejava repousar cercado pela natureza, longe de elementos artificiais. Diante desse contexto fático, o BGH concluiu que a tia, enquanto titular do direito póstumo de cuidado, tem o poder jurídico de fazer respeitar a vontade do falecido e a sua própria, impedindo a decoração do túmulo pela sobrinha.  
Segundo o Tribunal de Justiça de Düsseldorf, Alemanha, o portal de reservas Booking.com pode proibir os hotéis de oferecer quartos por preços mais baratos em suas próprias páginas na internet. A discussão começou quando os portais online de reservas como Booking.com, Expedia e HRS passaram a exigir que os hotéis parceiros ofertassem sempre condições melhores aos clientes na plataforma das agências do que as praticadas regularmente em seus próprios sites. O Booking é um portal online de reservas que atua como intermediário entre as empresas hoteleiras lá cadastradas e os clientes. Pela intermediação, ele recebe uma taxa (remuneração) sempre que o cliente faz a reserva do hotel no site Booking.com e não diretamente na página do próprio hotel. Essa prática do Booking, materializada na chamada cláusula "ampla" do melhor preço ("weite" Bestpreisklausel) - entre nós conhecida como "cláusula de paridade" - foi considerada ilegal, em 2015, pelo próprio OLG Düsseldorf e pelo Bundeskartellamt (BKartA), o órgão de defesa da concorrência na Alemanha, equivalente ao CADE brasileiro (Conselho Administrativo de Defesa Econômica), por contrariar as regras do Direito Concorrencial. O portal de reservas, então, modificou sua política e passou a exigir "apenas" que os hotéis não praticassem menor preço em suas próprias homepages. Assim, foram inseridas nos contratos entre o portal de reservas e os hotéis a chamada cláusula "estreita" do melhor preço ("enge" Bestpreisklausel), pela qual os hotéis ficam proibidos de oferecer preço menor em suas páginas na internet. Essa cláusula, contudo, também foi censurada pelo órgão antitruste, vez que, dentre outros problemas, impede que os hotéis fixem seus preços livremente. Por isso, foi retirada, desde 2016, das condições gerais dos contratos do Booking com os hotéis parceiros. Entretanto, no último dia 4/6/2019, a 1a Câmara do Oberlandsgericht de Düsseldorf, especializada em Direito Antitruste, concluiu pela admissibilidade da cláusula, liberando seu uso pelo portal de reservas. Segundo o OLG, esse tipo cláusula tem por fim evitar "desvios desleais" na reserva dos hotéis, pois impede que o hóspede, ciente do preço oferecido nas plataformas das agências, faça a reserva do quarto diretamente no site (ou presencialmente) do hotel em razão do menor preço ou das melhores condições contratuais oferecidas pelo estabelecimento. É o chamado "efeito carona". Com a decisão, o Tribunal de Justiça de Düsseldorf revogou a proibição do órgão antitruste (BKartA), que se disse decepcionado com a decisão. Segundo o presidente do órgão, Andreas Mundt, a decisão é lamentável, tendo em vista a rápido crescimento do mercado de reservas de hotéis por meio de portais e a dependência das redes de hotelaria ao Booking, que já domina mais de 60% do mercado na Alemanha. A decisão, segundo o BKartA, prejudica não apenas os consumidores, mas também os hotéis, cadastrados ou não, além de outros portais menores, fortalecendo a posição dominante do Booking.com. As redes hoteleiras, contudo, já vêm reagido de forma criativa ao poder dominante do Booking através da criação de um programa de fidelidade, que oferece aos participantes descontos e vantagens extras quando as reservas são feitas diretamente no hotel. No Brasil, surgiu o mesmo problema e o CADE celebrou, em 2018, Termos de Compromisso de Cessação com o Booking, Expedia e Decolar, onde as empresas renunciaram à política de cláusula de paridade de preços e condições, o que suspendeu a investigação sobre o uso abusivo da cláusula1. Entretanto, ao negociar os acordos, o CADE permitiu a utilização da cláusula de paridade (conhecida na Alemanha como cláusula estreita do melhor preço) proibindo que os hotéis ofereçam preços menores em seus próprios sites, evitando, assim, o efeito carona no mercado de reservas online de hotéis, no qual compradores e vendedores se conectam pela plataforma das agências, mas negociam fora dela. A solução do CADE harmoniza-se, assim, com a decisão do Tribunal de Justiça de Düsseldorf, que o órgão antitruste alemão pretende barrar. O OLG, contudo, denegou o pedido de revisão interposto à instância superior, o Bundesgerichtshof, de modo que sua decisão só pode ser impugnada sob rígidos pressupostos. Só resta agora aguardar o desenrolar do imbróglio para saber como o BGH se pronunciará sobre tema tão relevante para os consumidores e a livre concorrência, quando a discussão chegar a Karlsruhe. __________ 1 Cf. Booking, Decolar e Expedia acordam com Cade renúncia a exigência sobre preços de hotéis. Migalhas, 27 de março de 2018.  
terça-feira, 4 de junho de 2019

A vida não configura dano

Médico não responde pelo prolongamento desnecessário da vida. A corte infraconstitucional da Alemanha - Bundesgerichtshof (BGH) - causou recente polêmica ao negar pedido ressarcitório de um filho contra o médico que tratou seu pai no fim da vida por ter o mesmo prolongado inutilmente a vida do moribundo, impingindo-lhe supostamente grande sofrimento. O caso Segundo o filho, enfermeiro de profissão, seu pai estava à beira da morte, acometido por demência grave, infecções no pulmão e vesícula, sendo alimentado artificialmente por meio de sonda e sem condições de tomar qualquer decisão autonomamente. Apesar desse grave e irreversível quadro clínico, o médico, que o acompanhava há quatro anos, teria prolongado sua vida desnecessariamente, no mínimo, durante dois anos, sem amparo em qualquer recomendação médica e às custas de grande sofrimento, tanto para o paciente, que já contava com 82 anos de idade, quanto para o filho, que viu o genitor desvanecer lentamente. O pai não deixara qualquer diretiva antecipada de vontade que pudesse indicar se ele teria ou não concordado com essas medidas. Diante disso, o médico decidiu prolongar a vida do paciente, mesmo contra a opinião do filho, herdeiro único do falecido e do advogado, que desde a demência do idoso, em 1997, era seu representante legal. Por isso, após a morte de seu pai, em 19/10/2011, o filho processou o médico pedindo o ressarcimento de 150 mil euros a título de dano material referentes aos custos do tratamento e compensação pelo dano moral sofrido por ver o calvário do pai no fim da vida. Para ele, o médico deveria responder pela prorrogação inadequada do sofrimento do paciente, pois, diante da falta de qualquer perspectiva de melhora, ele deveria ter modificado a finalidade do tratamento, permitindo a morte do paciente com ajuda de medidas paliativas. Além disso, ele não teria esclarecido suficientemente de que não havia mais indicação clínica para a manutenção da alimentação por sonda. Com isso, o médico teria violado o corpo e o direito geral de personalidade do paciente, de forma que ao autor caberia, por herança, uma pretensão indenizatória extrapatrimonial, além do dano material, que não teria surgido sem o desnecessário tratamento. Em primeira instância, o pedido foi julgado improcedente, mas o Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht - OLG) de Munique, reformando a decisão, concedeu 40 mil euros a titulo de dano moral ao autor da ação. Para o OLG, o médico violara o dever de esclarecimento ao não explicar adequadamente acerca da utilidade ou não da continuidade da alimentação artificial, tendo, ao contrário, prolongado desnecessariamente a vida - e, ao mesmo tempo, o sofrimento - do paciente a partir do momento em que não mais havia qualquer perspectiva de melhora efetiva no quadro clínico. E essa postergação desnecessária da vida configuraria um dano ressarcível. Para o juízo de segundo grau, diante da ausência de qualquer diretiva de vontade, o médico deveria ter deixado a família (no caso, o filho) ou o representante legal decidir pela continuidade ou não do tratamento. Com isso, o OLG abraçou a tese - polêmica tanto no campo jurídico, quanto ético - de que a continuidade da vida, inútil e sofrida para o paciente, pode configurar dano ressarcível. BGH: vida humana não é dano ressarcível Mas o 6o Senado do Tribunal, câmara especializada em Direito Médico, reformou a decisão do tribunal a quo, afirmando que a vida humana nunca pode ser vista como um dano ressarcível. Trata-se do processo BGH VI ZR 13/18, julgado em 2/4/2019, cuja ementa reza: "A vida humana é bem jurídico dos mais elevados e absolutamente digno de conservação. A decisão sobre o seu valor não cabe a nenhum terceiro. Por isso, é vedado ver a vida - mesmo uma vida dolorosamente prolongada - como dano. Da continuidade da vida de um paciente, resultante de medidas conservativas, não se deixa deduzir, por isso, nenhuma pretensão ao pagamento de dano moral. A finalidade de proteção de eventuais deveres de esclarecimento ou de tratamento, conexos a essas medidas conservativas da vida, não é evitar gravames financeiros relacionados com a prolongação da vida e o sofrimento decorrente da doença, inerente à vida. Esses deveres não têm principalmente por fim conservar para os herdeiros, da melhor forma possível, o patrimônio do paciente." A controvertida questão sobre se a vida humana pode - ou não - ser reconhecida como uma posição de dano em um processo cível, coloca-se não só no fim, mas também no início da vida. Basta-se pensar nas discussões em torno do nascimento de crianças doentes ou deficientes em decorrência de falha no diagnóstico ou tratamento médico. Por isso, o BGH, no julgamento, fez referência expressa a precedente no qual a Corte negou a possibilidade da vida ser qualificada como dano ressarcível. Trata-se do famoso caso da rubéola ou Röteln-Fall, também conhecido na literatura jurídica como "wrongful life" (BGH VI ZR 114/81), julgado em 18/1/1983. No caso, o Tribunal negou indenização por dano moral a uma criança que nasceu com grave deficiência em decorrência da rubéola que acometeu a genitora durante os primeiros meses de gravidez, a qual fora tardiamente diagnosticada pelo médico, retirando a chance da mãe de interromper a tempo - e licitamente - a gravidez. Na época, a Corte consignou que um filho, saudável ou doente, jamais pode ser visto como um dano ressarcível. Reconheceu, contudo, o dano material dos pais relativo às despesas extras dispendidas com o filho deficiente, as quais surgem além daquelas "normais", gastas necessariamente com a criação de um filho. No julgamento, o BGH assinalou ser difícil avaliar se uma vida com severa deficiência pode ser considerada um dano em sentido jurídico quando comparada à inexistência de vida ou se, ao contrário, apesar da deficiência, ainda poderia ser considerada uma situação mais vantajosa. Não cabe ao Estado decidir sobre o valor da vida humana, disse a Corte. O Tribunal Constitucional (Bundesverfassungsgericht) também já se manifestou nesse sentido em outras ocasiões, como no chamado caso da interrupção da gravidez, julgado em 28/5/1993, no qual o BVerfG entendeu que qualificar juridicamente a existência de uma criança como fonte de dano não se harmonizava com o art. 1o, inc. 1 da Lei Fundamental, segundo o qual: "A dignidade do homem é inviolável. É dever de todo poder estatal respeitá-la e protegê-la". Mas, o tema é polêmico e, em outros julgados, ambas as Cortes já se manifestaram a favor do reconhecimento do dano patrimonial decorrente do ônus financeiro conexo à existência de uma vida. A jurisprudência do BGH, mesmo negando o dano moral pela existência de um filho, não hesita em reconhecer a ressarcibilidade do dano patrimonial experimentado pelos pais em decorrência dos custos com o permanente tratamento do filho. Mas no caso do herdeiro, a Corte foi mais rígida, negando-lhe qualquer indenização, seja a título de dano moral, seja a título de dano material. Segundo o Tribunal, não cabe dano moral, pois o prolongamento da vida, ainda quando doloroso, não configura dano ressarcível. Para a verificação de um dano é necessária uma análise comparativa entre duas situações: a situação existente com aquela que existiria sem o evento lesivo. E a eventual desvantagem daí decorrente só pode ser qualificada como dano juridicamente quando a ordem jurídica assim o reconheça. Isso significa que o intérprete precisaria, no caso, comparar a prorrogação artificial da vida, ainda que dolorosa, com a situação que existiria sem a alimentação artificial, ou seja, com a morte do paciente, pois não havia a alternativa de continuidade da vida sem ou com menos sofrimento. Para o BGH, é difícil avaliar se realmente uma vida sofrida constitui uma desvantagem face à morte. "A vida humana é bem jurídico dos mais valiosos e absolutamente digno de conservação" e, em razão da posição axiológica da vida e da dignidade humana na Lei Fundamental alemã, a ninguém cabe decidir sobre seu valor, muito menos ao Estado. Essa decisão só cabe, quando muito, ao paciente, na medida em que esse pode, por ato de autonomia privada, decidir sobre o tratamento médico a receber, inclusive optando pela recusa e/ou interrupção de medidas destinadas à manutenção da vida. Do mandamento constitucional de conceber a pessoa como sujeito - e não como objeto - do tratamento médico, resulta que o paciente tem o direito, em todas as fases da vida, inclusive no fim, de decidir autonomamente se irá aceitar ou não ajuda médica. Trata-se do direito à autodeterminação (Selbstbestimmungsrecht), o qual goza de proteção constitucional e vem sendo cada vez mais reforçado no plano infraconstitucional, através do reconhecimento, judicial e legislativo, do papel da autonomia privada. A outra face do direito à autodeterminação é a pretensão de defesa (Abwehranspruch) que o paciente tem contra medidas indesejadas procrastinadoras da vida. Para o BGH, decisivo é a vontade, expressa ou presumida, do paciente de se submeter ou não a tais medidas. Mas, no caso, inexistia qualquer diretiva antecipada de vontade, nem era possível concluir pela vontade presumida do paciente. Assim, restava para a Corte a difícil tarefa de avaliar se a prorrogação da vida do paciente, que diante do comportamento adequado do médico teria falecido mais cedo, poderia configurar um dano ressarcível à sua pessoa. Mas a surpresa geral da comunidade jurídica não foi a afirmação de que a vida humana não representa dano ressarcível, mas sim a negação, no caso, do ressarcimento do dano material. Isso, porque, como dito, em outros precedentes o Tribunal, embora negando o dano moral, determinou o ressarcimento dos custos do tratamento destinado a prolongar a vida, realizado inutilmente por negligência médica. Para o 6o Senado do BGH, contudo, faltou a necessária conexão entre o fim de proteção da norma violada (deveres médicos) e o dano material (custos com o tratamento) indicado, que é um dos pressupostos gerais da obrigação de indenizar no direito alemão, vez que o dever de indenizar é limitado pelo fim de proteção da norma. Trata-se da teoria do fim de proteção da norma (Schutzzwecklehre), que auxilia na apuração do nexo de causalidade. Segundo essa teoria, amplamente aplicada pela jurisprudência alemã, o dever de indenizar só existe quando o prejuízo que se pleiteia ressarcimento localiza-se na área de risco que a norma (dever jurídico) tutela. A grosso modo, é como se cada norma tivesse um campo dentro do qual o dano precisa surgir para ser indenizado. No caso, o BGH considerou que os custos com o tratamento médico não são abarcados pela finalidade de proteção da norma (deveres médicos), pois esses deveres não têm como escopo evitar encargos financeiros conexos à prorrogação da vida do paciente e, muito menos, poupar o patrimônio do paciente em benefício dos herdeiros. Por isso, a Corte negou o pedido de ressarcimento dos danos materiais, que reduziram o patrimônio do paciente, transmitido ao herdeiro com a morte. O advogado do filho do paciente falecido disse aos jornais que, com a decisão, os médicos poderão a partir de agora prolongar a vida dos pacientes sem temer qualquer sanção civil, restando aos pacientes e/ou a seus familiares apenas o espinhoso caminho da comprovação de lesão corporal na esfera penal. Resta, agora, saber se o filho do paciente falecido irá interpor reclamação constitucional ao Bundesverfassungsgericht.  
Com grande alegria inicio hoje a coluna German Report no Portal Migalhas, destinada a intensificar o diálogo com o Direito alemão, que, assim como o brasileiro, pertence à tradição jurídica romano-germânica, o que, por si só, demonstra que ambos possuem uma mesma base jurídica comum, tornando ainda mais enriquecedor o diálogo. O objetivo da coluna, que será publicada todas as terças-feiras, é trazer ao público brasileiro as mais recentes - e interessantes - decisões dos tribunais alemães, sejam de primeira, segunda ou última instância, como o Tribunal Constitucional (Bundesverfassungsgericht - BVerfG) ou o Bundesgerichtshof (BGH), a corte infraconstitucional alemã, equivalente ao nosso STJ. Isso não só permitirá ao leitor do Migalhas ficar a par do que se discute atualmente na Alemanha e na Europa, mas ainda fomentará, através de uma análise crítico-comparativa, a reflexão e autocrítica do próprio Direito brasileiro, o que muito contribui para a evolução da ciência e da prática jurídica. O direito não evolui sem estudo comparado, como o comprova a história. Em um mundo cada vez mais conectado e interligado, as visões nacionalistas do direito, que taxam tudo o que vem de fora de "importação acrítica", pouco têm a contribuir efetivamente para a solução de problemas que, em maior ou menor medida, desafiam todas as ordens jurídicas. Além de retrocesso, essas ideias xenofobistas representam uma negação de nossa própria história e tradição, sempre rica em grandes comparatistas. Por isso, a coluna German Report pretende ser um canal aberto e atual para o intercâmbio de ideias com o Direito alemão, que - pela sua peculiar capacidade de combinar o rigor científico do discurso com soluções justas - é reconhecidamente uma das mais avançadas ciências jurídicas da atualidade. E é extremamente instigante inaugurar a coluna com um caso que toca - efetivamente - a dignidade do ser humano, qual seja a atualíssima discussão acerca do Direito ao conhecimento da origem biológica de filhos gerados a partir de reprodução heteróloga, na qual utiliza-se material genético de doador anônimo. O caso alemão Aos 23 anos de idade, uma alemã descobriu que seu pai biológico não era quem a vida inteira considerara como tal, mas sim um doador de sêmen anônimo. Ela havia sido gerada por meio de reprodução heteróloga, técnica através da qual o material biológico, usado na fecundação, provém de terceiro. No caso, o sêmen utilizado provinha de doador, cuja identidade seus próprios pais desconheciam. O caso aconteceu na antiga Alemanha Oriental, à época ainda dividida geopoliticamente pelo Muro de Berlim. Seus pais moravam em Dresden e celebraram com uma clínica de reprodução humana um contrato para a realização de inseminação artificial na mãe com o sêmen do doador anônimo, em concordância com o marido. O material genético fora obtido por intermédio da clínica, que assegurou contratualmente ao doador sigilo absoluto sobre sua identidade, como permitia o direito vigente na Alemanha Oriental da época. Os pais também concordaram em manter o anonimato no contrato de reprodução assistida celebrado com a clínica. A inseminação artificial ocorreu em abril de 1990 e a criança nasceu em dezembro de 1990, sendo imediatamente reconhecida como filha pelo pai registral, marido da mãe, que concordara com o processo de reprodução assistida e era presumidamente pai, de acordo com o § 1592 c/c § 1600 IV BGB, à semelhança do que estipula o atual art. 1.597 V Código Civil brasileiro. A menina cresceu na crença de que o pai registral era realmente seu pai biológico até que, em 2013, tomou conhecimento das circunstâncias de sua concepção e decidiu investigar a identidade de seu genitor. Por isso, solicitou à clínica de reprodução assistida que lhe informasse a identidade do pai biológico e a clínica, pari passu, entrou em contato com o doador para saber se sua identidade poderia ser revelada. Mas o mesmo opôs-se terminantemente à ideia. Por essa razão, a clínica recusou-se a fornecer qualquer tipo de informação à moça, alegando que o contrato de doação de sêmen continha cláusula de sigilo absoluto acerca da identidade do doador, o que era, inclusive, de conhecimento de seus pais. O processo A filha, inconformada, entrou com ação contra a clínica de reprodução para saber a identidade do doador do sêmen. Esta, em sua defesa, alegou que o contrato com o doador do sêmen fora celebrado validamente, de acordo com as leis vigentes à época, que asseguravam total anonimato e, dessa forma, o doador teria garantida a proteção contratual de seus dados pessoais. A recusa em fornecer a informação era, portanto, legítima, pois amparada no dever de sigilo médico. A autora perdeu em primeiro e segundo grau. O Tribunal de Justiça de Dresden (Oberlandsgericht - OLG) reconheceu, em grau de recurso, o direito da autora de conhecer sua origem biológica, decorrente do direito geral de personalidade, consagrado no art. 2, inc. 1 c/c art. 1, inc. 1 da Lei Fundamental de Bonn. Mas esse direito, na visão do OLG Dresden, não poderia prevalecer diante do interesse juridicamente tutelado do doador de ver mantido seu anonimato, tendo em vista a validade dos contratos celebrados entre a clínica, o doador e os pais da autora. A decisão do BGH Mas a Corte de Karlsruhe não se convenceu dos argumentos e deu razão à filha. Trata-se do processo BGH XII ZR 71/18, julgado em 23.01.2019. Segundo o Bundesgerichtshof, toda pessoa tem direito a conhecer sua origem biológica. Isso é uma decorrência direta do direito geral de personalidade, positivado no art. 2 I c/c art. 1 da Lei Fundamental, o qual goza de proteção constitucional - ideia que a Corte já havia esposado na decisão BGHZ 204, 54, julgada em 2015, objeto de comentário por esta colunista em outra ocasião. O Tribunal reconheceu a existência, no caso em exame, da colisão de várias posições jusfundamentais e, por isso, na ponderação dos interesses em jogo, analisou inicialmente o contexto fático no qual as partes estavam inseridas, ou seja, as relações contratuais existentes entre clínica-doador e clínica-pais. A peculiaridade deste caso é que os contratos em análise foram celebrados ainda sob a vigência do Código Civil da Alemanha Oriental, o chamado Zivilgesetzbuch (ZGB), substituído com a reunificação pelo Bürgerliches Gesetzbuch (BGB). E, por isso, o BGH afirmou que, em princípio, deveria se interpretar tais contratos de acordo com o direito então vigente, desde que isso não contrariasse a Lei Fundamental. E uma primeira análise revelava que os dois contratos foram, de fato, validamente celebrados. Do contrato entre a clínica e o doador do material genético decorre o dever do anonimato, a corroborar a tutela constitucional - emanada do direito geral de personalidade - dos dados pessoais do doador do sêmen. De outro lado, há o contrato de reprodução assistida, celebrado entre a clínica e os pais da criança, no qual estes concordam em manter o anonimato. Ocorre que o contrato de reprodução assistida não é um simples contrato bilateral. Ele configura dogmaticamente aquilo que a doutrina alemã denomina de "contrato com eficácia de proteção em favor de terceiro", em que o terceiro é a criança gerada, umbilicalmente afetada pela execução contratual. O contrato com eficácia de proteção em favor de terceiro não é um tipo contratual novo, ao lado da compra e venda, locação ou prestação de serviços, mas antes uma característica estrutural de determinados negócios jurídicos, marcados pelo fato do terceiro (aqui entendido como alguém que, embora não seja parte, é perfeitamente identificável pelos contratantes) encontrar-se dentro do campo normativo do contrato e ser diretamente afetado pela execução, de forma que se pode dizer que, em razão disso, ele merece a mesma proteção dispensada aos contratantes. Em razão dessa peculiaridade (proximidade ao campo contratual e afetação pelo cumprimento contratual), surge um vínculo obrigacional especial entre o responsável pela execução da prestação (devedor) e o terceiro - no caso: entre clínica e a criança. E sobre essa relação especial, que tem sua causa no contrato de reprodução assistida, incide o princípio da boa-fé objetiva do § 242 BGB, impondo, em sua função criadora, deveres laterais de conduta entre as partes, cuja violação dá ensejo ao surgimento de uma pretensão contratual direta do terceiro face ao contratante. Aqui cabe um parêntese para alertar que, antes que se queira ver nas supostas "deficiências" do regime da responsabilidade extracontratual alemão a justificativa para a atribuição de natureza contratual à pretensão do terceiro, deve-se recordar que os direitos da personalidade são expressamente enumerados entre os bens jurídicos tutelados pelo § 823 BGB. Dessa forma, a razão última para o reconhecimento de uma pretensão contratual direta do lesado contra o contratante - e, consequentemente, para a aplicação do regime contratual ao caso - reside no fato do terceiro ser diretamente afetado pelo contrato e isso pode ser facilmente previsto e evitado pelas partes. O BGH, então, enfatizou que decorre do § 242 BGB (boa-fé objetiva) o dever da clínica informar a identidade do doador do sêmen à filha. A esse dever corresponde uma pretensão à informação da autora da ação, que depende dessa informação para concretizar seu direito ao pleno desenvolvimento da personalidade. Para o BGH, é irrelevante a discussão, levantada nos autos, sobre a aplicabilidade ou não do direito vigente na Alemanha Oriental, vez que a pretensão da filha só surgiu após a reunificação, quando o BGB já disciplinava as relações privadas em todo o território alemão. E isso por uma razão muito simples: o princípio da boa-fé objetiva (Grundsatz von Treu und Glauben), consagrado no famoso § 242 do BGB e fonte legal do dever de informação, é um princípio supralegal (übergesetzlicher Rechtssatz) imanente a todas as ordens jurídicas, inclusive à da antiga Alemanha Oriental, de forma que o resultado seria o mesmo. A questão, então, é solucionar a colisão de direitos fundamentais: de um lado, o direito do doador de ter sua identidade e dados pessoais mantidos sob sigilo e, de outro, o direito ao conhecimento da origem genética, ambos decorrentes do direito geral de personalidade. E, para o Tribunal, ainda quando o anonimato tenha sido assegurado contratualmente, a pretensão existencial da criança, de conhecer sua origem biológica, merece, em regra, maior tutela pelo ordenamento jurídico que o interesse ao anonimato ou eventuais interesses econômicos do doador. Isso se justifica na medida em que o conhecimento da origem genética é um elemento da identidade pessoal, um aspecto imprescindível à autocompreensão do indivíduo, ao pleno desenvolvimento de sua personalidade e à própria dignidade, de modo que a obtenção dessa informação pode ter um significado elementar para a pessoa. Por outro lado, não se pode desconsiderar que os doadores de sêmen contribuem conscientemente para a geração de uma vida humana e, com isso, assumem uma responsabilidade ética e social, que não pode ser minimizada, salientou a Corte. Por isso, a proteção do anonimato do doador do material genético deve, em regra, ficar em segundo plano na ponderação das posições jusfundamentais em colisão. O mesmo diga-se em relação à "proteção da confiança" dos doadores, que teriam legitimamente confiado no sigilo acordado, que perde aqui qualquer relevância em face da tutela da dignidade e do livre desenvolvimento da personalidade do ser gerado. Também irrelevante, diz o Tribunal, o fato dos pais terem concordado com o anonimato do doador, pois os mesmos não podem validamente dispor sobre o direito fundamental dos filhos de conhecer sua origem biológica. A clínica de reprodução tem, portanto, o dever de revelar a identidade do genitor da filha, sem precisar temer - ressaltou o BGH - qualquer pretensão indenizatória do doador, pois ela está juridicamente vinculada ao fornecimento dessa informação. Por outro lado, o doador do material genético também não precisa temer assumir qualquer responsabilidade pela filha biológica, porque a origem genética não cria necessariamente vinculo parental. Além disso, já estava esgotado o prazo prescricional de 02 anos do § 1600b I e III BGB para a impugnação da paternidade, o qual começara a correr a partir do momento em que o legitimado toma conhecimento das circunstâncias que depõem contra a paternidade. Como não houve impugnação da paternidade, nem mesmo pela filha, o vínculo parental entre ela e o pai registral permanece inalterado, até porque a Alemanha mantém-se fiel ao princípio da dualidade parental (Zwei-Eltern-Prinzip), não admitindo, como no Brasil, a multiparentalidade1. A situação no Brasil O caso alemão retrata um problema que já vem sendo discutido no Brasil. E justamente por isso, convida os aplicadores do direito à reflexão, tanto sob o aspecto formal, quanto material. Sob o ponto de vista formal, a Corte infraconstitucional alemã dá um bom exemplo de como manusear o arsenal dogmático-sistemático do Direito Civil mesmo em casos limítrofes envolvendo direitos fundamentais. Isso, porque, embora reconhecendo a natureza jusfundamental dos direitos e interesses em colisão, o BGH não se furtou em solucionar a lide com base na dogmática obrigacional, tendo em vista a existência de negócios jurídicos entre os envolvidos, que tocam direitos fundamentais da clínica, dos pais, da filha gerada e do doador. Enquanto alguns magistrados brasileiros não hesitariam em "criar" a solução do caso com base nos vagos argumentos da dignidade humana ou dos direitos fundamentais da personalidade, ignorando totalmente a - supostamente insuficiente - doutrina do Direito Privado, alegadamente inapta a solucionar os novos casos, o colega alemão busca no Direito Privado a solução, ainda que dialogando com a Lei Fundamental. Mas não relega ao ostracismo o arcabouço dogmático jusprivado, tampouco o Código Civil. Sob o ponto de vista material, o caso provoca a discussão acerca da existência - ou não - do direito ao conhecimento da origem biológica, tema que ainda gera certa insegurança. Parte da doutrina, que tem se ocupado do tema, admite a existência desse direito2. Mas não poucos tendem a privilegiar o anonimato do doador em respeito à sua autodeterminação, à proteção dos dados pessoais e à sustentabilidade do sistema, que poderia entrar em colapso com a quebra do anonimato. Significativo nesse sentido é o item 4, n. 4 da Resolução 2.168, de 10.11.2017, do Conselho Federal de Medicina, que - diante do vácuo legislativo - tem disciplinado a matéria e imposto, como regra, a obrigatoriedade do sigilo acerca da identidade de doadores e receptores de material genético. Apenas em situações excepcionais, por motivação de ordem médica, o CFM admite o fornecimento de informações acerca do doador, as quais devem ser, contudo, fornecidas exclusivamente para os profissionais da área médica, conforme frisa a citada Resolução, com o que se veda, por completo, a revelação da identidade do titular do material genético ao filho gerado. Até que ponto essa orientação do CFM tem compatibilidade constitucional, é algo que se pode seriamente questionar. Mais consentâneo com a ampla tutela da pessoa humana parece ser a orientação seguida pela nova Lei de Adoção (lei 12.010, de 3/8/2009), que, dentre outras providências, deu nova redação ao art. 48 do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 12.010/2009), reconhecendo o direito do adotado de conhecer sua origem biológica3. Esse entendimento já encontrava precedente no STJ, REsp. 127.541/RS, julgado em 2000, no qual reconheceu-se esse direito ao adotado4. Apesar da adoção ser um instituto específico, o que está em jogo em ambos os casos é o reconhecimento de um aspecto fundamental do direito de personalidade. O Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça, de 14/11/2017, que uniformizou o procedimento de reconhecimento extrajudicial da filiação socioafetiva e de filhos gerados por reprodução assistida, nada diz, por óbvio, a respeito do direito ao conhecimento da origem biológica. Mas contém lúcida disposição acerca dos efeitos jurídicos do conhecimento da origem biológica, na linha do que já previa o Provimento 52 da Corregedoria Geral de Justiça. De acordo com o art. 17 § 3o do Provimento 63, "o conhecimento da ascendência biológica não importará no reconhecimento do vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador ou a doadora e o filho gerado por meio da reprodução assistida". Dessa forma, tal qual na Alemanha, a identificação do doador de material genético não gera vínculo de parentesco entre ascendente e descente, afastando-se, consequentemente, todos os efeitos jurídicos (inclusive patrimoniais) daí decorrentes. Vamos aguardar como STJ e STF vão se pronunciar sobre o assunto, em futuro próximo. __________ 1 Confira-se, nesse sentido, o RE 898.060/SP, julgado em 22.09.2016 e a tese aprovada pelo STF na Repercussão Geral 622: "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios". 2 Confira-se, dentre, outros: CALMON, Guilherme. Filiação e reprodução assistida: introdução ao tema sob perspectiva do direito comparado. Revista Brasileira de Direito de Família do IBDFAM, vol. 5, abr-jun 2000, p. 7-28 e LÔBO, Paulo. Direito ao conhecimento da origem genética difere do direito à filiação. Conjur, 14.02.2016. 3 "Art. 48. O adotado tem direito de conhecer sua origem biolo'gica, bem como de obter acesso irrestrito ao processo no qual a medida foi aplicada e seus eventuais incidentes, apo's completar 18 (dezoito) anos. Para'grafo u'nico. O acesso ao processo de adoc¸a~o podera' ser tambe'm deferido ao adotado menor de 18 (dezoito) anos, a seu pedido, assegurada orientac¸a~o e assiste^ncia juri'dica e psicolo'gica". 4 REsp. 127.541/RS, T3, Rel. Min. Eduardo Ribeiro, j. 10.04.2000, DJ 28/8/2000.