A coluna German Report inicia hoje uma série de entrevistas com diversas personalidades do mundo jurídico, nacional e internacional, para tratar sobre variados temas de interesse na atualidade. O intuito, ainda, é apresentar ao leitor brasileiro - em alguns casos, homenagear - grandes juristas contemporâneos, que contribuem com suas ideias e seus escritos para o desenvolvimento da ciência jurídica ocidental.
E com grande alegria inauguramos essa série com um dos mais proeminentes civilistas e comparatistas da nova geração: Prof. Dr. Nils Jansen, titular da cátedra de Direito Privado Alemão e Europeu, Direito Romano e História do Direito Privado na Universidade de Münster (Alemanha). Nils Jansen estudou Direito, Filosofia e Política em Passau. Foi assistente de Robert Alexy na Christian-Albrecht-Universidade em Kiel, onde doutorou-se, em 1997, com a tese "A estrutura da justiça", tendo sido seu artigo, nela baseado, agraciado com o prêmio Young Scolar pela Associação Internacional de Filosofia Jurídica e Social.
Em seguida, Jansen tornou-se assistente de Reinhard Zimmermann na Universidade de Regensburg e, durante esse período, desempenhou a mesma função na Universidade de Cambridge. Em 2002, ele escreveu sua tese de livre-docência com o tema: "A estrutura do direito da responsabilidade". No mesmo ano, assumiu a cátedra de Direito Civil, Direito Romano, História do Direito Privado e Filosofia do Direito na Universidade de Augsburg. Em seguida, foi chamado para a Universidade Heinrich Heine, em Düsseldorf e, desde 2006, é professor titular na Universität de Münster, onde preside o Instituto de História do Direito e o Núcleo de Excelência de Religião e Política.
Suas pesquisas comparatistas o levaram como professor visitante à Duke University, EUA (2008), St. John's College em Oxford (2009) e Universidade de Stellenbosch na África do Sul (2015). Em 2014, ele recusou uma nomeação como Regius Chair of Civil Law na Universidade de Oxford, dedicando-se na Alemanha à pesquisa das bases fundamentais do direito europeu e do direito obrigacional, contratual e da responsabilidade civil. Ao German Report, ele concedeu gentilmente essa entrevista, falando sobre os efeitos do coronavírus nos contratos e alertando para a necessidade de adaptação dos pactos. Confira:
GR: Os efeitos do novo coronavírus sobre muitos contratos em andamento têm sido graves. Quais mecanismos jurídicos o Código Civil alemão (BGB) coloca à disposição do contratante afetado para compensar ou corrigir esses efeitos maléficos?
O BGB dispõe de mecanismos tanto no direito geral das obrigações, como no direito contratual para debelar as dificuldades que podem surgir no curso de relações obrigacionais duradouras, ou seja, em relações contratuais nas quais prestações devam ser cumpridas durante longo período de tempo.
As disposições especiais de direito contratual têm, em princípio, aplicação prioritária e o BGB, conforme o tipo contratual, faz valorações de risco especiais, geralmente unilaterais. Assim, por exemplo, no direito de locação, o impedimento pessoal de uso da coisa locada não conduz à liberação do dever de pagar o aluguel, nos termos do § 537 I 1 BGB. Essa regra é válida ainda, nos termos do § 578 II BGB, no caso em que o arrendatário não pode exercer seu direito de uso por razões relacionadas à sua pessoa. Em caso de contratos de viagem (contratos de prestação de serviços de turismo), a lei, por outro lado, imputa o risco econômico ao organizador, mesmo em casos de circunstâncias extraordinárias e inevitáveis, conferindo ao viajante (contratante) uma pretensão à restituição do valor pago.
Se uma das partes não pode (mais) executar a prestação, afasta-se, nos termos do art. 275 BGB, o dever de cumprir a prestação tornada impossível. Por outro lado, o dever de realizar a contraprestação também se extingue, nos termos do § 326 I 1 BGB, de forma que dentro do quadro da impossibilidade os deveres de prestação principais, oriundos da relação obrigacional, não mais são devidos. Permanecem hígidos, entretanto, os deveres de prestação e contraprestação parcialmente possíveis. A fim de permitir uma extinção completa da relação contratual em casos de impossibilidade, pode-se lançar mão da resolução contratual (§ 326 V BGB). As relações obrigacionais de longa duração podem ainda ser desfeitas por motivo justificável, nos termos do § 314 BGB, sem se observar um prazo de resilição (denúncia), quando então os interesses de ambas as partes precisarão ser ponderados.
Todas essas normas têm em comum o fato de que elas não admitem uma compensação ou correção. A aplicação desses dispositivos a relações contratuais perturbadas pela pandemia transfere o risco de uma situação excepcional apenas para uma das partes. Uma solução flexível, que permita uma adaptação posterior do contrato, só pode ser feita no caso de perturbação da base do negócio, nos termos do § 313 BGB.
GR: Quando o § 313 BGB pode ser aplicado nesse contexto?
Em princípio, o § 313 BGB tem caráter subsidiário em relação às normas acima mencionadas, de modo que ele não se aplica, por exemplo, em casos de impossibilidade da prestação. Entretanto, em certas situações fáticas falta certa clareza acerca de quando o § 275 BGB poderia ser aplicado, pois alguns casos de impossibilidade de realização da prestação podem ser compreendidos como alteração substancial das circunstâncias, nos termos do § 313 I BGB, quando a realização e o recebimento da prestação estiverem igualmente dificultados. Por exemplo, no caso de restrições relacionadas à pandemia, é indiferente se o agente público vetou a execução ou a aceitação da prestação, isto é, se decretou o isolamento social e com isso perturbou o recebimento de prestações ou se determinou o fechamento de determinados estabelecimentos e, dessa forma, proibiu a execução de prestações. A aplicação do § 313 BGB aqui depende de verificar se, de acordo com a valoração do contrato, se trata de risco comum, que deve ser suportado por ambas as partes ou se, ao contrário, se trata de risco unilateral (por exemplo: capacidade de pagamento), quando, em princípio, o § 313 BGB não tem aplicação.
Quando ocorre, então, uma perturbação na base do negócio? É necessária a conjugação de um elemento real com os elementos hipotético e normativo. É necessário que as circunstâncias ou, pelo menos, a representação das partes, presentes no momento da conclusão do contrato, tenham se alterado (elemento real) de forma tão fundamental que se possa admitir que elas só teriam celebrado o contrato com outro conteúdo (elemento hipotético). Isso vale ainda quando as condições contratuais gerais contenham aparentemente uma regra sobre isso (exemplo: regra sobre cancelamento de jogos de futebol), pois com essa regra as partes certamente não tinham em vista uma paralisação de várias semanas da vida pública.
Portanto, a parte que poderia - ou deveria - contar com uma possível modificação de determinadas circunstâncias, tem que suportar esse risco, pois ela teve a chance de trazer isso para as negociações e alocar diferentemente os riscos. Não é, evidentemente, o caso da atual pandemia. Excepcionalmente, pode a parte ter que suportar o risco de alterações, ainda quando imprevisíveis, como, por exemplo, em casos de operações em bolsas de valores, nas quais a parte assume conscientemente os riscos da especulação. Nesses casos, uma pandemia como a de agora ou uma guerra não suprimem a base do negócio, ainda quando essa circunstância não tenha sido considerada na formação do preço.
Para desencadear as consequências jurídicas do § 313 BGB (adaptação ou extinção do contrato), é necessário finalmente que a manutenção do vínculo seja irrazoável (elemento normativo). Aqui, é impossível, por natureza, dar uma definição clara, de modo que a irrazoabilidade precisa ser apurada no caso concreto. Por isso, jurisprudência e parte da doutrina hesitam em aplicar o § 313 BGB, pois temem que a regra deixe margem (ao contrário do § 275 BGB) para decisões não uniformes no plano dos efeitos jurídicos. Caso o risco não seja imputado à esfera de responsabilidade de nenhuma das partes, a repartição do risco tem que ser equilibrada.
GR: Em caso de perturbação na base do negócio, as partes devem primeiro tentar um acordo e, se não conseguirem, deve o julgador adaptar o contrato. Há, de fato, um dever de renegociação em decorrência do princípio da boa-fé objetiva (§ 241 II c/c § 242 BGB)?
A partir da regra geral da boa-fé objetiva não se deduz um dever de renegociar nos casos de quebra da base do negócio (§ 313 BGB). Entretanto, o BGH (Corte infraconstitucional) considera que isso resulta dos efeitos da adaptação do contrato e, caso a contraparte se recuse a renegociar, poderia surgir até uma pretensão indenizatória, nos termos do § 280 BGB. Uma parte da doutrina, contudo, nega a existência desse dever, primeiro porque a proposta de positivá-lo na Reforma do BGB de 2002 foi rejeitada e, segundo, porque esse dever de negociar construtivamente é difícil de ser concretizado.
GR: O que o juiz deve observar no caso de uma revisão do contrato?
No caso de uma revisão judicial do contrato, o julgador deve observar os interesses de ambas as partes e, de modo algum, apenas os interesses da parte prejudicada. O risco geral não pode ser deslocado nem sobre uma, nem sobre a outra parte, a fim de se evitar um resultado severo. O risco, não imputado contratualmente a nenhuma das partes, precisa ser repartido de acordo com as peculiaridades do caso individual, de forma a tornar novamente razoável a execução do contrato. Aqui, a intervenção do julgador precisa se manter mínima e só pode ir até o estritamente necessário, considerando a circunstância não antevista.
GR: A Lei alemã do Coronavírus suspendeu temporariamente, no Art. 5 § 2 I, o dever de pagamento dos alugueis, beneficiando, em princípio, até grandes empresas como Adidas e H&M, que logo anunciaram a suspensão do pagamento dos alugueis de suas lojas. Como o BGB pode impedir ou sancionar condutas oportunistas no contexto da pandemia de covid-19?
Através do Art. 5 § 2 I modificou-se o EGBGB (Lei de Introdução ao BGB), de forma que os locadores não têm direito de denunciar o contrato caso os alugueis, vencíveis entre 01.04.2020 e 30.06.2020, fiquem em aberto e não sejam quitados até 30.06.2022 (em geral, o direito de denúncia já pode ser exercido a partir do momento em que o locatário está em mora de, pelo menos, dois alugueis). Além disso, a falta de pagamento tem que decorrer dos efeitos da pandemia. Exatamente por isso, criou-se grande indignação pública contra a Adidas e H&M, pois as pessoas acharam que esses grupos não sofreram restrições em sua capacidade de pagamento por conta da pandemia. Em casos como esses, o juiz poderia recorrer ao caráter corretivo do § 242 BGB quando esse tipo de conduta se mostrar inaceitável segundo a boa-fé objetiva. Prioritariamente deve-se fazer uma interpretação restritiva do texto legal, de forma que o Art. 5 § 2 I não seja aplicado a empresas com liquidez, ainda quando elas sejam afetadas pelos efeitos da pandemia.
GR: No Brasil tem-se discutido intensamente a questão acerca de quem tem que suportar o risco do fechamento, por agentes públicos, de estabelecimentos comerciais, principalmente em shopping centers. Como solucionar essa questão sob a ótica da dogmática obrigacional?
No direito locatício, um vício poderia restar configurado quando o estabelecimento comercial não mais se mostrar adequado para a venda de produtos. Pode ainda ser entendido como vício uma circunstância exterior ao objeto da locação, como, por exemplo, o fechamento do estabelecimento por ordem de autoridade pública. Em caso de vício que cessa totalmente a utilidade da coisa, o aluguel reduz-se a zero, de modo que não mais seria devido o pagamento e o risco seria imputado unilateralmente ao locador. Isso, contudo, é inaceitável à luz do § 313 do BGB quando o fechamento do estabelecimento é determinado pelo Poder Público e se dirige, da mesma forma, a locatários e locadores. Nesse caso, tratar-se-ia de risco comum, de modo que decisivo seriam as regras sobre a quebra da base do negócio. A adaptação do contrato, necessária nessas situações, vai depender do impacto que eventual redução no volume de vendas vai provocar no negócio do locatário, por exemplo, se as vendas poderão ser recuperadas no futuro. As partes conseguem avaliar isso muito melhor que um juiz, de modo que a renegociação aqui seria muito mais eficiente.
GR: No Brasil, foi aprovado recentemente no Parlamento um Projeto de Lei para fazer frente aos efeitos da pandemia do coronavírus nas relações jurídicas de direito privado. O art. 7o do Projeto diz que não se consideram fatos imprevisíveis, para fins de revisão ou extinção do contrato, o aumento da inflação, a variação cambial, desvalorização ou substituição do padrão monetário. Como o Senhor analisaria uma regra como essa se o Parlamento alemão a tive introduzido na lei alemã do coronavírus?
A inflação - enquanto fenômeno permanente, mas moderado - não é vista hoje na Alemanha como um evento imprevisível. A inflação acompanha a economia há muitas décadas. Apenas uma hiperinflação, como a que ocorreu na Alemanha, por exemplo, nos anos 20 do século passado em decorrência da crise econômica mundial, é considerada um evento imprevisível. Não por acaso o Reichsgericht (Tribunal Imperial) realizou pela primeira vez a revisão e adaptação dos contratos por quebra da base do negócio justamente quando ele se viu confrontado com casos nos quais os contratos estavam desequilibrados por causa da hiperinflação da época. Quando o Parlamento alemão quisesse excluir do campo de aplicação do § 313 BGB uma alteração a nível monetário, tão imprevisível e extrema como essa, então isso seria realmente passível de crítica.
GR: A Corte infraconstitucional brasileira (STJ), em algumas decisões, parte do princípio de que em países de economia instável, como o Brasil, até mesmo o aumento elevado da inflação ou uma considerável desvalorização da moeda são eventos previsíveis, de modo que o devedor deve cumprir a prestação ainda quando extraordinariamente onerosa. Nesse contexto, como poderiam as partes calcular seus riscos antes da celebração do contrato?
Esse nível de inflação não pode evidentemente ser considerada, desde o início, pelas partes na composição do preço. Só restaria às partes acordar por meio de cláusulas que elas só estariam vinculadas às suas obrigações até um determinado nível inflacionário ou acordar, por exemplo, desde o início, uma adaptação escalonada do contrato à inflação ou, ainda, um dever de renegociar o preço.
GR: Por que é importante reequilibrar a paridade dos contratos?
Em decorrência da liberdade contratual, as partes são livres para se obrigar dentro do quadro daquilo permitido. Uma perturbação imprevisível, porém, afeta as partes em um momento no qual elas já fizeram, de alguma forma, a alocação dos riscos. Essa perturbação altera, em última instância, o significado do acordo e quebra, com isso, a confiança na fidedignidade do pactuado. Caso não houvesse um mecanismo de adaptação dos contratos desequilibrados, a liberdade contratual seria restringida ou se tornaria sem sentido. Em última análise, o contrato restaria ameaçado enquanto instituição do direito civil.
GR: O Senhor é reconhecido, principalmente na Europa, por seu trabalho de comparatista. O direito brasileiro é marcado, desde sua origem, pelo comparativismo, inicialmente com o direito português, depois com o francês, alemão e italiano. Nada obstante, ouve-se aqui e ali discursos adversos a teorias alemãs. Como um discurso nacionalista pode prejudicar o desenvolvimento do direito comparado e da ciência jurídica e, nesse contexto, qual a importância do direito comparado para o desenvolvimento do direito nos ordenamentos jurídicos nacionais?
Creio que por trás da resistência contra pensamentos jurídicos alienígenas escondem-se possivelmente experiências coloniais. A exportação do direito foi - e ainda é, para atores como os EUA - durante muito tempo um instrumento de influência político-econômica. É evidente que determinadas nações tenham aqui "conjunturas" em determinados períodos: durante muito tempo importou-se o direito das ordens jurídicas "mães" e, posteriormente, dos atores dominantes.
Que a transferência de direito e de conhecimento científico por esse modo possa ter uma conotação insípida, não significa necessariamente que se deva recusá-la. Muitos países aprenderam e se beneficiariam das teorias constitucionais e da experiência de grandes cortes constitucionais como a Supreme Court norte-americana, depois do Tribunal Constitucional alemão e atualmente do Tribunal Constitucional sul-africano. A comparação do direito e a recepção de teorias "alienígenas" podem sempre enriquecer uma ordem jurídica. Nem sempre precisam participar desse processo mecanismos coloniais. Deve-se tomar o cuidado de não se rejeitar, de plano, teorias pelo simples fato delas terem sido desenvolvidas em um determinado país. Uma comparação jurídica segura, que analisa diferentes regras de diferentes ordenamentos jurídicos e examina, com imparcialidade, sua utilidade para o próprio direito, pode resguardar contra mecanismos de influência indevida. Esse tipo de comparação científica do direito só pode enriquecer significativamente qualquer ordem jurídica.