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German Report

Decisões do STJ e STF alemão.

Karina Nunes Fritz
No dia 25/4/2022, a Escola da Magistratura do Estado do Rio de Janeiro (EMERJ) realizou um Webinar para debater o espinhoso tema da responsabilidade civil do árbitro. O evento foi organizado pelo Fórum Permanente de Direito Comparado, que esta articulista tem o prazer de coordenar juntamente com o Des. Eduardo Gusmão com o objetivo de fomentar o diálogo comparado acerca de temas importantes e atuais. O evento contou com a ilustre participação da Profa. Dra. Mafalda Miranda Barbosa, Professora Auxiliar da milenar Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, da arbitralista Ana Carolina Weber e do Prof. Dr. Thiago Rodovalho (PUC-Campinas), que lançou instigantes provocações no debate. O ponto alto do evento foi a visão técnica apresentada pela conceituada Professora portuguesa acerca da relação de base existente entre os árbitros e as partes, da qual surgem deveres, cuja violação dá ensejo, a seu ver, à responsabilidade contratual do árbitro, leitura que destoa do entendimento majoritário na doutrina arbitralista nacional, que prega a imunidade (quase) absoluta do árbitro. Mafalda Miranda Barbosa explicou que o debate acerca da eventual responsabilidade civil do árbitro é marcado por duas posições extremadas: a absoluta imunidade e a absoluta responsabilidade, embora não se trate aqui de uma responsabilidade de cunho objetivo, mas de uma responsabilidade contratual especial1. Dentre os principais argumentos a favor da imunidade dos árbitros, tem papel central a comparação funcional com os juízes e suas garantias de independência, essenciais ao desempenho da função jurisdicional. Segundo essa corrente, o interesse público na realização da justiça seria incompatível com eventuais pressões que as partes possam exercer durante a arbitragem com base na ameaça de responsabilização2. Autores há, como António Menezes Cordeiro, que entendem que o árbitro, "sabendo-se responsabilizável", poderia tender a proferir decisões mais neutras ou pender para a parte mais litigante, temendo responsabilizações3. Por outro lado, há outros que rejeitam a total equiparação do árbitro ao juiz4, sustentando - não sem boa dose de razão - que a imunidade encorajaria a "falta de cuidado" e geraria uma situação de total imunidade, criando uma casta privilegiada de atores (rectius: contratantes) irresponsáveis, i.e., insuscetíveis de responsabilização. A tese legalista Como explicou a renomada jurista, a tese legalista assenta na ideia de que o árbitro, tal como o juiz, exerce uma função jurisdicional e, por isso, só poderia, quando muito, ser responsabilizado em casos de dolo ou culpa grave. Atente-se que no Brasil, parte considerável da doutrina só admite responsabilização em caso de dolo, i.e., diante da prova cabal da intenção do árbitro agir conscientemente no intuito de prejudicar uma das partes, embora a dogmática civilista há muito equipare a culpa grave ao dolo.  Essa tese busca amparo legal no art. 9º/4 da lei de arbitragem portuguesa - lei 63/2011, Lei de Arbitragem Voluntária (LVA) - segundo o qual "os árbitros não podem ser responsabilizados por danos decorrentes das decisões por eles proferidas, salvo nos casos em que os magistrados judiciais o possam ser". O dispositivo trata da específica hipótese da responsabilidade por decisões errôneas, mas, como explicou a palestrante, existem diversas outras situações de responsabilidade civil do árbitro, algumas delas elencadas na própria lei, como a responsabilidade do árbitro que, tendo aceito o encargo, se escusar injustificadamente ao exercício da função (art. 12/3) ou que não se desincumbir, em tempo razoável, de suas funções (art. 15/2) ou que obstar injustificadamente que a decisão seja proferida dentro do prazo fixado (art. 43/4). Segundo Mafalda Miranda Barbosa, a tese legalista dá ênfase à dimensão funcional (jurisdicional) dos árbitros, deixando em segundo plano o ato de autonomia privada das partes da escolha dos árbitros, que, ao aceitar o encargo, celebram com as partes um contrato de árbitro, que toma a forma de um contrato oneroso de prestação de serviço. A contratualidade da situação jurídica subjacente à arbitragem impede, por si só, que se enquadre a responsabilidade do árbitro como uma espécie de responsabilidade extracontratual, fundada entre nós no ato ilícito, vale dizer, na violação de direitos absolutos, válidos erga omnes (art. 186 CC2002), em contraposição à responsabilidade contratual, cuja causa reside na violação culposa de deveres obrigacionais, eminentemente relativos, como os deveres de prestação (obrigações) e os deveres laterais de conduta, impostos pelo princípio da boa-fé objetiva, como recentemente sintetizou didaticamente o Superior Tribunal de Justiça no julgamento do REsp. 1.303.374/ES, julgado em 30/11/2021 sob a relatoria do e. Min. Luis Felipe Salomão. Não apenas os contratos que envolvem a arbitragem depõem a favor da responsabilidade contratual do árbitro, mas ainda o fato de que não se poder afirmar que os árbitros - sobretudo nas arbitragens voluntárias - desempenham uma função jurisdicional absolutamente equivalente à dos juízes estatais, disse a Professora de Coimbra. A tese contratualista A tese contratualista parte do fato de que a espinha dorsal do fenômeno arbitral é a autonomia privada das partes que, de comum acordo, decidem afastar o Poder Judiciário e se submeter a um tribunal arbitral por elas constituído. Para tanto, as partes celebram um negócio jurídico (convenção de arbitragem) submetendo um litígio - presente (compromisso arbitral) ou futuro (cláusula compromissória) - à decisão de árbitros que, por sua vez, aceitam a incumbência de solucionar o conflito. Surge, então, entre as partes e os árbitros um contrato de árbitro ou Schiedsrichtervertrag, no vernáculo alemão. Dessa forma, a autonomia privada das partes é a fonte de legitimação direta do poder dos árbitros. Em outras palavras: é o contrato que legitima a arbitragem, sobretudo a voluntária. Mesmo a arbitragem institucionalizada funda-se no contrato, pois requer a celebração de um contrato de colaboração arbitral, concluído entre o árbitro e o centro de arbitragem, e de um contrato de organização de arbitragem, celebrado entre as partes e a instituição, explica Mafalda Miranda Barbosa. E conquanto na arbitragem institucionalizada não haja um contrato entre o árbitro e as partes, a pujante dogmática obrigacional continental justifica a responsabilidade contratual do árbitro em face das partes com base na eficácia protetora a terceiros irradiante do contrato de colaboração arbitral5. A figura do contrato com eficácia de proteção em favor de terceiros (Vertrag mit Schutzwirkung zugunsten Dritter), vale recordar, surgiu no direito alemão à partir da ideia de que o contrato - rectius: a relação obrigacional (Schuldverhältnis) - pode gerar uma eficácia protetora a terceiros que se encontram especialmente próximos ao campo normativo do negócio jurídico e podem ser afetados pelo cumprimento da prestação, o que justifica a concessão de uma pretensão ressarcitória ao lesado face ao devedor, mesmo quando aquele não tenha contra este nenhuma pretensão contratual direta. De qualquer forma, para o que aqui interessa, deve-se reter que a vontade das partes desempenha papel fulcral na medida em que fundamenta e justifica o próprio instituto da arbitragem enquanto instrumento alternativo de resolução de conflitos. Estruturando-se a relação dos árbitros com as partes sobre um contrato, a responsabilidade civil do árbitro se põe necessariamente no quadro da responsabilidade contratual, afirmou a brilhante jurista portuguesa.  Os contratos celebrados na arbitragem A painelista explicou que surgem na arbitragem diversos contratos. De início, destaca-se a convenção de arbitragem, negócio jurídico por meio do qual as partes submetem aos árbitros a decisão de um litígio. Essa convenção, porém, não basta, sendo imprescindível para a constituição de um tribunal arbitral que sejam escolhidos árbitros e que estes aceitem a incumbência. A doutrina fala, então, em contrato de investidura ou, como prefere a Professora de Coimbra, contrato de árbitro, no qual se definem diversos elementos, como a missão, a retribuição, etc. E mesmo a arbitragem institucionalizada, a qual funciona em centros com tribunais permanentes e árbitros predeterminados, estrutura-se, segundo a autora, com base na figura do negócio jurídico (seja o contrato de colaboração arbitral, seja o contrato de organização de arbitragem), de modo que, a despeito das particularidades desses contratos, não pairam dúvidas: a arbitragem é marcada pela contratualidade. A responsabilidade contratual do árbitro A partir do momento em que se considera que entre os árbitros e as partes existe um contrato de prestação de serviços de arbitragem, conclui-se, necessariamente, que o descumprimento de deveres reconduzíveis ao contrato gera a responsabilidade contratual do árbitro. Segundo Mafalda Miranda Barbosa, reina relativo consenso no direito comparado de que o árbitro assume como obrigação principal o dever de proferir uma decisão justa ao caso que lhe foi submetido. Ele não se obriga a decidir o caso em um determinado sentido, nem conforme aos interesses da parte que o indicou, menos ainda de defender tais interesses, pois não assume uma relação de mandato ou de representação, própria dos advogados. Há também consenso de que o árbitro só responde pelas decisões errôneas que profira em caso de dolo ou culpa grave, pois em relação à responsabilização pelo conteúdo das decisões deve-se aplicar o mesmo regime jurídico dos juízes. Segundo a expositora, no ordenamento jurídico português o árbitro só é responsável pelos danos decorrentes de decisões manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou, ainda, injustificadas por erro grosseiro de fato ou de direito. Ou seja: não basta qualquer erro, é necessário a presença de um erro qualificado. Da mesma forma, não basta que a decisão seja desconforme com a Constituição ou com o texto da lei, nem que apresente uma interpretação divergente, mas plausível do direito positivo. É necessário que a inconstitucionalidade ou a ilegalidade da decisão seja manifesta e o erro, grosseiro. A doutrina lusitana diverge, porém, em relação à natureza jurídica da responsabilidade pelo (mau) conteúdo da decisão, pois alguns autores entendem que a responsabilidade do árbitro, enquanto julgador, tem natureza extracontratual, à semelhança da responsabilidade dos juízes, embora ele responda, enquanto prestador de serviços de arbitragem, segundo o regime da responsabilidade contratual6. A responsabilidade civil do árbitro se submeteria, segundo essa corrente, a uma duplicidade de regimes de responsabilidade, entendimento do qual a autora discorda por entender que a responsabilidade do árbitro tem sempre natureza contratual. Mas o árbitro não responde apenas pelo conteúdo de sua decisão. No quadro da relação contratual que entabula, ele assume uma prestação de serviço e, portanto, uma gama de deveres relacionados à arbitragem. Ele não pode, por exemplo, escusar-se de cumprir a função que aceitou, salvo causa superveniente que o impossibilite de realizar a arbitragem ou se, não tendo sido fixados os honorários na convenção de arbitragem, não for concluído acordo escrito acerca da remuneração antes da designação. O art. 12/3 da LAV prevê a hipótese de responsabilidade do árbitro que, após aceitar a designação, se escusa injustificadamente de exercer o encargo, responsabilidade que tem clara natureza contratual, como bem pontua Mafalda Miranda Barbosa, vez que o que está em jogo é o descumprimento da prestação a que se obrigou. O mesmo diga-se em relação à responsabilidade do árbitro pela demora injustificada em jugar o litígio. Ao assumir uma arbitragem, diz a painelista, o árbitro se compromete a exercer a função com elevada diligência, o que implica não só na qualidade do serviço, mas também na temporização adequada. Essa hipótese está prevista no art. 15/2 da lei portuguesa, mas, na falta de previsão legal, poderia ser exigida com base no princípio da boa-fé objetiva, afirmou a Professora da Universidade de Coimbra. Grande relevância prática possui ainda o dever de revelação dos árbitros, consagrado tanto no art. 13 da lei portuguesa, como no art. 14 § 1º da lei brasileira de arbitragem7. O mencionado art. 13/1 diz que quem for convidado a exercer funções de árbitro deve revelar todas as circunstâncias que suscitar fundadas dúvidas sobre sua imparcialidade e independência. E o inciso 2 da norma complementa estabelecendo o dever do árbitro de, durante todo o processo arbitral, revelar sem demora às partes e aos demais árbitros circunstâncias supervenientes que possam suscitar fundadas dúvidas ou das quais só tenha tomado conhecimento depois de aceitar o encargo. A ofensa ao dever de revelação é um problema sensível, porque, como afirma-se no direito comparado, a qualidade da arbitragem depende da qualidade de seus árbitros, já que nesse sistema de resolução de litígios não existem os mecanismos de controle que caracterizam o sistema judicial. É imprescindível, pois, que os árbitros sejam independentes, imparciais e neutros para bem pacificar o litígio. Mas não só: a comunidade internacional tem exigido cada vez mais uma conduta ética dos árbitros, pois comportamentos moral e eticamente reprováveis têm efeitos devastadores para a arbitragem e para o sistema arbitral como um todo. Cabe abrir um parêntese para lembrar que, no Brasil, alguns questionamentos acerca do comportamento enviesado de alguns árbitros têm chegado ao Judiciário e provocado muita polêmica, de modo que a discussão acerca da responsabilidade civil do árbitro não é um problema afeto exclusivamente à comunidade arbitral, mas tema de interesse da comunidade científica, da sociedade e do Judiciário, onde - ao fim e ao cabo - esses problemas acabam desaguando. Retornando à questão da responsabilidade contratual do árbitro, há de se ter em mente que, a rigor, a gama - e o conteúdo - dos deveres assumidos pelos árbitros só podem ser concretizados no caso concreto com base nas regras de interpretação do negócio jurídico, sendo certo que, além dos deveres expressamente previstos no contrato, na lei ou nos regulamentos dos centros de arbitragem, surgem frequentemente, de acordo com as peculiaridades do caso, deveres de consideração (Rücksichtspflichten) decorrentes do mandamento da boa-fé objetiva, que a autora denomina, com base na doutrina alemã mais antiga, deveres de proteção (Schutzpflichten). "Na verdade, a boa-fé, enquanto regra ordenadora de condutas que impõe a honestidade, a correção e a lealdade aos contraentes, inspira deveres de proteção no quadro contratual. Não basta que se cumpra o dever principal de prestação que assumiu. Imperioso é, também, o modo e o tempo de cumprimento", salientou Mafalda Miranda Barbosa8. Dessa forma, concluiu a renomada Professora, a imparcialidade e independência a que alguns autores fazem referência para justificar a irresponsabilidade dos árbitros não se justifica perante o negócio jurídico (contrato atípico, bilateral e oneroso) celebrado entre as partes e, cabe acrescentar, nem perante o ordenamento jurídico, que não imuniza a priori nenhum contratante de responsabilidade. Ao contrário, como regra, todo agente que atua no comércio jurídico responde por seus atos.  Conclusões Da riquíssima e técnica fala de Mafalda Miranda Barbosa, conclui-se, em suma, que a ideia de uma irresponsabilidade, i.e., uma imunidade absoluta dos árbitros não se justifica tecnicamente, considerando a regra geral de responsabilidade imposta aos partícipes do comércio jurídico e a natureza eminentemente contratual da relação de base que une os árbitros às partes. Conclui-se ainda que os árbitros não podem, em regra, ser responsabilizados pelos danos decorrentes de suas decisões, salvo dolo ou culpa grave materializado em erro grosseiro de fato ou de direito, como ocorre em caso de decisões manifestamente ilegais ou inconstitucionais. No mais, em relação à violação dos demais deveres obrigacionais impostos no contrato, na lei, nos regulamentos dos centros de arbitragem ou pelo mandamento da boa-fé (deveres laterais de conduta), os árbitros respondem segundo o regime jurídico contratual, calcado na presunção de culpa. Concorde-se ou não com a visão de Mafalda Miranda Barbosa, uma coisa é certa: a leitura obrigacional da responsabilidade civil do árbitro com base no contrato subjacente abre um horizonte imenso de reflexões aqui no Brasil, onde ainda se fala amplamente na imunidade dos árbitros, dando margem às críticas que alertam para a necessidade de abrir a "caixa preta" da arbitragem. __________ 1 Confira-se o Webinar "Responsabilidade civil do árbitro", realizado na EMERJ, disponível aqui. Acesso: 1/5/2022. Para aprofundamento do tema, confira-se: MIRANDA BARBOSA, Mafalda. Responsabilidade civil do árbitro. In: Actas - Colóquio "Resolução alternativa de litígios de consumo". Centro de Direito do Consumo da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2016, p. 115-154. 2 A presente coluna tem por base a exposição de Mafalda Miranda Barbosa no Webinar, bem como o artigo homônimo, mencionado na nota de rodapé anterior. 3 António Menezes Cordeiro. Tratado da arbitragem. Coimbra: Almedina, 2015, p. 137. No mesmo sentido: MULLERAT, Ramón. The liability of arbitrators: a survey of current practice. In: International Bar Association - Commission on Arbitration. Chicago, 21 September 2006, p. 10, informando que esse é o entendimento dominante nos Estados Unidos. 4 BARBOSA MIRANDA, Mafalda. Op. cit., p. 120. 5 MIRANDA BARBOSA, Mafalda. Op. cit., p. 129. 6 Nesse sentido, MENEZES CORDEIRO, António. Op. cit., p. 137. 7 Art. 14, § 1º As pessoas indicadas para funcionar como árbitro têm o dever de revelar, antes da aceitação da função, qualquer fato que denote dúvida justificada quanto à sua imparcialidade e independência.  8 No mesmo sentido: MIRANDA BARBOSA, Mafalda. Op. cit., p. 134.
A Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - afirmou recente que o transexual masculino que deu à luz a uma criança deve constar no registro de nascimento como mãe. A decisão envolvia o caso de transexual masculino, nascido biologicamente do sexo feminino e registrado com prenome de mulher (V. N.). Como ele não se identificava com seu gênero biológico, adotou um nome masculino, alterando o registro civil em 2007. Em 2015, o transexual se casou e dessa união nasceu, em 2016, a criança, que fora registrada no cartório de registro civil (Standesamt), tendo o transexual como mãe e seu marido, como pai. O cartório, porém, inseriu o antigo nome feminino do transexual na certidão, o que o levou a mover ação judicial pleiteando que o juiz ordenasse o cartório a trocar, na certidão de nascimento, seu nome feminino pelo atual nome masculino ou, alternativamente, que a certidão fosse emitida sem que as partes fossem designadas como "mãe" e "pai", mas simplesmente como "genitores" da criança. A ação foi julgada improcedente em primeira e segunda instâncias. O Tribunal de segunda instância de Berlim - Kammergericht (KG) - entendeu que o pedido de retificação do nome inserido na certidão era improcedente, porque o registro fora feito corretamente. O caso subiu para Karlsruhe como o processo BGH XII ZB 127/19, julgado em 26/1/2022.  A decisão do Bundesgerichtshof Para entender o caso, deve-se ter em vista, inicialmente, que o § 21 inc. 1 n. 4 da Lei do Estado Pessoal (Personenstandsgesetz - PStG), que disciplina o registro das pessoas naturais na Alemanha, exige expressamente que da certidão de nascimento conste o nome completo do pai e da mãe, bem como o nome, sexo, local, dia e hora exata do nascimento da criança. Diante disso, as situações de filiação de pessoas trans têm suscitado controvérsias, pois elas querem, em regra, registrar seus filhos com seus dados (prenome e/ou gênero) registrais atuais, surgindo, então, um conflito entre a realidade biológica e a realidade registral na medida em que pessoas biologicamente femininas, mas que se consideram pertencentes ao gênero masculino (transexuais masculinos), dão à luz a um filho e querem figurar como pai na certidão de nascimento. O contrário também ocorre com frequência cada vez maior: pessoas biologicamente masculinas, que se reconhecem como pertencentes ao gênero feminino (transexuais femininos), contribuem com material genético masculino (espermatozoides) para a formação do novo ser, mas pretendem figurar como mãe no registro de nascimento do filho.  A lei que permite a mudança de nome de pessoas trans na Alemanha é antiga, datada de 10/9/1980 e concebida sob algumas concepções hoje superadas, como dão prova os diversos dispositivos do diploma declarados inconstitucionais pelo Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht) ao longo do tempo. A lei veio na sequência de uma paradigmática decisão do Bundesverfassungsgericht que, em 1978, reconheceu que o direito da pessoa trans alterar seu gênero no registro de nascimento decorre do livre desenvolvimento da personalidade, consagrado no art. 2 inc. 1 c/c art. 1 inc. 1 da Lei Fundamental (Grundgesetz)1. Em apertada síntese, a lei permite a mudança do prenome e/ou gênero sempre que a pessoa não se identifique com o sexo registral, atribuído em sua certidão de nascimento, e haja grande probabilidade de que essa sensação de pertencimento a outro gênero seja definitiva. A lei protege a pessoa trans com uma garantia de sigilo de que seu nome e/ou gênero antigo não serão divulgados sem seu consentimento. Há, a rigor, uma proibição de revelação (Offenbarungsverbot) à partir do momento em que a mudança de nome e/ou gênero é realizada. Essa proteção não é, porém, absoluta. O § 5 TSG, que estabele a proibição de divulgação do antigo nome da pessoa trans, prevê duas exceções à regra em seu inc. 1: quando houver interesse público ou interesse jurídico substancial que justifique a revelação e/ou indicação do nome anterior2. A fim de tutelar o interesse dos filhos à verdade biológica, o inc. 3 do § 5 TSG prevê que no registo de nascimento do filho natural ou de uma criança adoptada antes da mudança de nome, deve ser indicado o prenome original do transexual, que ele usava antes da decisão modificativa do nome. Dessa forma, a mudança de nome não tem qualquer impacto na certidão de nascimento da prole, o que mostra que a pretensão do transexual de não revelar seu antigo nome não é tutelada de forma absoluta, ficando em segundo plano face ao interesse dos filhos de que seu registro reflita a verdade biológica e mantenha em segredo a transexualidade de um dos pais, disse a Corte de Karlsruhe. O BGH reconheceu a existência nesses casos de uma colisão de direitos fundamentais: de um lado, o direito geral da personalidade (allgemeines Persönlichkeitsrecht) e da autodeterminação informacional (informationelle Selbstbestimmung) do genitor transexual de não ter seu antigo nome revelado sem seu consentimento, o que ocorre com a indicação na certidão de nascimento do filho, e, de outro lado, o direito do filho à verdade biológica. Mas, para o BGH, o legislador solucionou adequadamente a colisão ao priorizar a tutela da prole de preservar a clareza e a veracidade do registro de nascimento. A Corte também rejeitou o pedido dos autores de que fosse adotado na certidão de nascimento uma linguagem de gênero neutra para a designação dos pais, substituindo a tradicional indicação de "pai" e "mãe" pelo termo "genitores", como determinou no Brasil o Conselho Nacional de Justiça (CNJ)3 em provimento contrário à disposição expressa do art. 54, inc. 7 da Lei 6.015/1973 (Lei de Registro Público), que exigia a indicação do nome e prenome dos pais, com indicação inclusive da idade da genitora, dentre outros dados identificadores do pai e da mãe. O Tribunal alemão denegou o pedido com fundamento no § 21 inc. 1 n. 4 da Lei do Estado Pessoal, que, como dito, é expresso no sentido de que deve constar da certidão de nascimento do filho o nome completo do pai e da mãe. Dessa forma, conclui o BGH, quando uma pessoa do sexo feminino dá à luz, ela deve ser indicada como mãe na certidão de nascimento, ainda quando tenha mudado de nome e/ou gênero em razão de sua transexualidade e, portanto, deve constar seu antigo nome registral feminino, já que a mudança de nome não tem eficácia face aos descendentes, nos termos do mencionado § 5 inc. 3 da TSG. Isso vale, por maior razão, sublinhou a Corte de Karlsruhe, nos casos, como o dos autos, em que o transexual não realizou uma mudança de gênero, mas tão só uma alteração no prenome. Segundo o BGH, o § 5 inc. 3 da lei dos transexuais (TSG) não padece do vício da inconstitucionalidade por violação do direito à autodeterminação informacional, pois há um interesse superior, digno de tutela, que justifica a restrição do direito fundamental e compensa o risco de divulgação da transexualidade do genitor, qual seja, a proteção da veracidade e completude das anotações no registro civil, que desempenham uma especial função probatória. Nesse sentido, o 12º Senado do BGH foi expresso ao afirmar que:   "O Senado não compartilha da visão defendida pelo reclamante de que o § 5 inc. 3 da TSG é inconstitucional. Ele já se manifestou sobre a questão no sentido de que um genitor transexual não é violado em seus direitos fundamentais, em particular em seu direito à autodeterminação informacional (...), pois, a isso se sobrepõe os interesses, dignos de proteção, à completude e correção das inscrições do registo do estado civil, que têm uma função probatória especial e que compensam o risco de divulgação da transexualidade..."4. Por fim, a Corte rebateu o argumento de que a lei alemã, ao exigir a indicação do nome anterior do genitor trans, violaria o art. 8º da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que assegura a cada pessoa o respeito à vida privada e familiar. Segundo o BGH, a Alemanha não ultrapassou o âmbito de discricionariedade que lhe é assegurado na regulação do problema quando o legislador optou por vincular a situação jurídica de pai e/ou mãe à função reprodutiva dos genitores e não ao nome e/ou gênero modificado do genitor transexual, que, eventualmente, pode ser novamente alterado. O § 6 da TSG prevê que a decisão que alterou o nome do requerente (transexual) poderá ser revogada pelo tribunal se ele sentir novamente que pertence ao sexo indicado em seu registo de nascimento.  Resumo da ópera Em síntese, pode-se afirmar que, de acordo com o entendimento até então majoritário em solo alemão, a pessoa trans não tem o direito absoluto de apagar o passado, riscando de seus registros as indicações de nome e/ou gênero anterior, quando confrontadas com o direito dos filhos à identidade biológica e à completude, exatidão e, em certa medida, à estabilidade de seu registro pessoal. Não é a primeira vez que o BGH se posiciona à respeito. No processo BGH XII ZB 660/14, julgado em 6/9/2017, a Corte afirmou que mãe é quem pare a criança e, com base no critério biológico, entendeu que o transexual masculino que dá à luz deve ser considerado como genitora na certidão de nascimento do filho, porque contribuiu com material genético feminino para a constituição de um novo ser5. Pelas mesmas razões, a Corte afirmou, no mesmo ano, que um homem, transexual feminino, não poderia figurar como mãe na certidão de nascimento, porque contribuiu com gametas masculinos para a concepção do filho. Aqui, novamente, o direito de personalidade e da autodeterminação informacional foram colocados em segundo plano face ao direito hierarquicamente superior do filho de conhecimento da própria origem biológica6. O tema é controvertido e aguarda-se, com expectativa, para que a sensível questão seja resolvida pelo Tribunal Constitucional ou pelo Parlamento. Enquanto isso, nos trópicos, a origem biológica tem ficado cada vez mais nebulosa. Pelo menos, nos registros públicos. __________ 1 BVerfG 1 BvR 16/72, julgado em 11/10/1978.. 2 § 5, inc. 1 TSG: Ist die Entscheidung, durch welche die Vornamen des Antragstellers geändert werden, rechtskräftig, so du¨rfen die zur Zeit der Entscheidung gefu¨hrten Vornamen ohne Zustimmung des Antragstellers nicht offenbart oder ausgeforscht werden, es sei denn, daß besondere Gru¨nde des öffentlichen Interesses dies erfordern oder ein rechtliches Interesse glaubhaft gemacht wird. 3 O art. 1º § 2º do Provimento 52, de 14/3/2016, já dispunha que, nas hipóteses de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem haver qualquer distinção quanto à ascendência paterna ou materna. O Provimento 63, de 14/11/2017, que, dentre outras providências, instituiu modelos únicos de certidão de nascimento, casamento e óbito, determinou a inclusão do campo "filiação", sem qualquer referência, como de praxe, à indicação do pai e da mãe. 4 "Die von der Rechtsbeschwerde vertretene Ansicht, § 5 Abs. 3 TSG sei verfassungswidrig, teilt der Senat nicht. Er hat zu der Frage bereits dahingehend Stellung genommen, dass der transsexuelle Elternteil durch den Inhalt der vom Gesetz angeordneten Registereintragung nicht in seinen Grundrechten, insbesondere nicht in seinem Recht auf informationelle Selbstbestimmung (...) verletzt wird. Denn es überwiegen insoweit die schützenswerten Interessen an der Vollständigkeit und Richtigkeit der mit besonderer Beweisfunktion versehenen Eintragungen in die Personenstandsregister das Interesse, sich der Gefahr einer Aufdeckung der Transsexualität auszusetzen..." 5 Confira o caso em: NUNES FRITZ, Karina. Jurisprudência comentada dos tribunais alemães. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 52ss. 6 Acerca da decisão, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Op. cit., p. 57ss.
Os tribunais alemães foram inundados por ações envolvendo o escabroso escândalo de manipulação dos veículos a diesel pela montadora Volkswagen. Relembrando o caso: em 2015 veio à tona, nos Estados Unidos, o chamado Dieselgate, um escândalo envolvendo o grupo Volkswagen por manipulação dos resultados de emissões de poluentes em motores a diesel. Após o governo norte-americano ter endurecido, entre 2005 e 2007, os padrões de emissão de óxido de nitrogênio (NOx), um dos principais poluentes resultantes da combustão do óleo diesel, a Volkswagen lançou no mercado modelos de carros a diesel supostamente menos poluentes. Os estudos, porém, mostravam considerável diferença entre o nível de emissão de NOx observado no estudo nas ruas e nos testes oficiais, feitos em laboratório, levando pesquisadores a alertar o governo e os órgãos responsáveis, dentre os quais a Agência de Proteção Ambiental (Environmental Protection Agency), que procuraram encontrar o motivo da discrepância dos dados. Em 2015, a EPA descobriu que um software instalado na central eletrônica dos carros da Volkswagen alterava as emissões de poluentes quando submetidos a vistorias. Em condições normais de rodagem, contudo, o dispositivo era desligado e os carros poluíam mais que o permitido. A montadora foi acusada criminalmente pelo governo dos Estados Unidos por burlar os índices de emissão de gases poluentes para atender à regulamentação do país, adulterando quase 500 mil veículos dos modelos Jetta, Beetle (Fusca), Gol, Passat e Audi A3, fabricados entre 2009 e 2015. Em 22/9/15, a Volkswagen acabou reconhecendo a fraude em nota oficial, bem como que aproximadamente 11 milhões de veículos adulterados foram vendidos em todo o mundo, inclusive no Brasil1. No mês seguinte, a empresa criou uma plataforma na internet a fim de que os consumidores pudessem descobrir se seu automóvel havia sido afetado pelo problema. Ainda em outubro daquele ano, o órgão federal de transportes motorizados (Kraftfahrt-Bundesamt) na Alemanha divulgou parecer confirmando que os motores da série EA189 estavam indevidamente equipados com o dispositivo fraudulento e ordenando a empresa a, através de recall, remover o dispositivo e adotar as medidas adequadas para restabelecer a conformidade dos veículos com as disposições legais pertinentes. A montadora, então, comunicou ao público - por meio de anúncios à imprensa divulgados no final de 2015 - que seria realizado o reparo nos veículos atingidos a partir de janeiro de 2016 e que os proprietários afetados pelo problema seriam notificados e informados acerca dos próximos passos, notícia repercutida intensamente na imprensa. Em vários países, a empresa viu-se à volta com processos diversos, astronômicos acordos, prisões de executivos, recalls e multas bilionárias. Na Alemanha, o legislador resolveu intervir e criar uma ação específica de tutela coletiva a fim de facilitar o processamento da enxurrada de ações indenizatórias que se avizinhava no horizonte. Novo procedimento: Musterfeststellungsverfahren Em novembro de 2018, entrou em vigor a lei que criou uma ação específica de tutela coletiva, chamada Musterfeststellungsklage, uma espécie de ação declaratória modelo2 ou, ao pé da letra, uma ação de determinação de amostra, pois visa apenas constatar a existência ou não dos pressupostos fáticos e jurídicos de pretensões ou relações jurídicas entre consumidores e uma empresa para que, na sequência, cada consumidor possa deduzir individualmente, com base em sentença declaratória, sua pretensão em juízo contra o fornecedor3. Ou seja, por meio do processo principal (amostra) esclarecem-se os fatos, o dano coletivo e a imputabilidade, permitindo, na sequência, caso a ação modelo seja julgada procedente, que cada lesado deduza sua pretensão indenizatória em juízo individualmente. O procedimento não é novo. O legislador buscou inspiração na ação modelo existente para a proteção dos investidores no direito do mercado de capital, no qual há o processo Kapitalanleger-Musterverfahren4. Não se trata da class action do direito norte-americano, mas de ação única, movida por associação de classe, com eficácia para todas a situações semelhantes. No caso Volkswagen, a sentença proferida produziu eficácia para todos os casos envolvendo a aquisição dos veículos equipados com o motor diesel tipo EA 189, nos quais foram instalados o software fraudulento. Os §§ 606 a 614 da ZPO, a lei processual civil, elenca os requisitos específicos para a propositura da ação modelo, que é processada diretamente perante os tribunais de segundo grau a fim de encurtar o caminho até o Bundesgerichtshof em Karlsruhe. No caso Volkswagen, o objetivo da demanda era resolver no processo geral toda as complexas e controvertidas questões de prova e culpa da montadora, algo extremamente caro para ser suportado por cada autor individualmente. Adicionalmente, a ação modelo visava impedir a prescrição das pretensões ressarcitórias que estavam na iminência de ser fulminadas em 2018 caso se contasse o prazo prescricional ordinário de três anos, fixado no § 195 BGB, a partir de 2015, data em que o escândalo veio à tona. Até onde se tem conhecimento, a primeira ação contra a VW foi proposta pela Associação Federal da Organizações de Consumidores (Verbraucherzentrale Bundesverband) perante o Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht - OLG) de Braunschweig, onde fica a sede de montagem mais antiga da empresa5. Para ter seu pleito submetido à eficácia da sentença proferida na Musterfeststellungsklage, o lesado deve inscrever-se no registro de ações (Klageregister) e, ao final do processo, diante da comprovação da responsabilidade da empresa, mover ação indenizatória contra a empresa. O caso concreto levado à apreciação do Bundesgerichtshof No caso em comento, o autor adquiriu, em setembro de 2013, um veículo usado da marca VW Tiguan pelo preço de 22.490,00 euros, que tinha um motor diesel da série EA189 e o mencionado software destinado a camuflar os índices de emissão de poluentes. O veículo fora alienado, em 17/9/2019, pelo preço de dez mil euros. Segundo o autor, ele se inscreveu, em dezembro de 2018, no registro da ação modelo movida contra a Volkswagen pela associação de defesa dos consumidores, mas cancelou a inscrição em junho de 2019, entrando no mês seguinte com a ação indenizatória individual. Na ação, ele pleiteou a devolução do preço pago mais juros e perdas e danos. Mas, ao invés de devolver o veículo, ele pretendia pagar um valor máximo de 10 mil euros. A empresa, em contestação, pediu a improcedência do pedido e alegou prescrição. O autor perdeu em primeira e segunda instância. O Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Naumburg julgou improcedente a apelação interposta ao argumento de que a pretensão do autor havia prescrito no fim do ano de 2018, nos termos dos §§ 195 e 199 I BGB. De acordo com o § 199 I BGB, o prazo prescricional ordinário de três anos começa a correr no final do ano em que surge a pretensão e o credor lesado tome - ou devesse ter tomado, sem grave negligência - conhecimento das circunstâncias constitutivas da pretensão e da pessoa do devedor6. O autor, porém, alegou não ter tomado conhecimento dos fatos em 2015. O OLG Naumburg entendeu, contudo, que ele tinha condições de ter tido ciência do escândalo de manipulação dos veículos ainda em 2015 e que, se desconheceu a fraude, fora por negligência grosseira de sua parte, pois no último quartel daquele ano todas as circunstâncias do Dieselgate estavam amplamente divulgadas na imprensa. Diante da divulgação do caso, o autor poderia facilmente ter empreendido medidas para se informar e verificar se seu veículo também estava adulterado, disse o OLG Naumburg. Não o fazendo, agiu com grosseira negligência, o que não impede o início da contagem do prazo prescricional. O Tribunal rejeitou ainda o argumento de que a prescrição teria sido suspensa com a inscrição do autor no registro da ação modelo. Contudo, a Corte infraconstitucional alemã, Bundesgerichtshof (BGH), deu provimento ao recurso de Revision interposto pelo consumidor, afastando a prescrição e ordenando a devolução dos autos para novo julgamento. Trata-se do processo BGH VI ZR 1118/20, julgado em 29/7/2021 pelo 6º Senado do Tribunal de Karlsruhe. A decisão do Bundesgerichtshof Em suma, o BGH deu razão ao consumidor lesado por entender que: (a) o prazo prescricional não começara a correr no final de 2015, pois não restou demonstrado nos autos que o autor teve conhecimento de todas as circunstâncias fundamentadoras da pretensão; (b) a inscrição do autor no registro da ação modelo suspendeu o curso da prescrição, nos termos do § 204 inc. 1 n. 1a BGB. a) Inocorrência de prescrição Para melhor entender o caso, é necessário ter em mente, à partida, que, no direito alemão, o prazo prescricional não começa a correr do momento da ocorrência da lesão, isto é, da violação do direito subjetivo, como consta expressamente no art. 189 do Código Civil brasileiro: "Violado o direito, nasce para o titular a pretensão, a qual se extingue, pela prescrição, nos prazos a que aludem os arts. 205 e 206." A norma consagra a teoria da actio nata com um sistema objetivo de prazo prescricional, segundo o qual esse começa a fluir a partir do momento em que nasce a pretensão em decorrência da violação do direito, pois a partir daí a pretensão passa a ser exigível em juízo. Diferentemente, na Alemanha, salvo disposição legal em contrário, o termo prescricional tem início no final do ano em que a pretensão surgiu e o credor lesado teve ciência (ou ignorou com grave negligência) da autoria e das circunstâncias fundamentadoras da pretensão (§ 199 I BGB). Duas são as consequências práticas da nova regra, introduzida com a Reforma de Modernização do BGB (2001-2002): primeiro, o prazo prescricional só tem início com a ocorrência cumulativa dos pressupostos indicados e, segundo, todas as pretensões ficam consumadas no dia 31 de dezembro do respectivo ano. Trata-se de um sistema subjetivo, que substituiu o sistema objetivo anterior, mostrando, segundo António Menezes Cordeiro, que é possível um direito civil personalizado, mais centrado na justiça7. O § 199 I BGB equipara ao conhecimento das circunstâncias o desconhecimento grosseiro, fruto de grave negligência lesado. A negligência grosseira (grobe Fahrlässigkeit), explicou o BGH no caso sub judice, pressupõe uma infração objetivamente grave e subjetivamente indesculpável da diligência exigida no comércio jurídico. Em apertada síntese, a ignorância grosseiramente negligente (grob fahrlässige Unkenntnis) configura-se quando o credor desconhece uma situação em decorrência da inobservância grosseira da diligência exigida no tráfego, que não lhe deixa levar em conta aquilo que era evidente para os demais. A Corte explicou que o desconhecimento grosseiro, da mesma forma que o conhecimento, recai sobre os fatos, as características da base fundamentadora da pretensão e a culpabilidade do devedor, nos casos de responsabilidade subjetiva (Verschuldenshaftung). O lesado, porém, não tem, segundo o BGH, um dever de se informar ou mesmo um encargo (Obliegenheit) de esclarecer as circunstâncias do dano ou da pessoa do lesado, dando início ao decurso do prazo prescricional, que transcorre - atente-se - no interesse do devedor lesante, pois que lhe confere o direito de recusar o cumprimento da prestação (obrigação de indenizar), como afirma, com precisão, o § 214 I BGB: "Após consumada a prescrição, o devedor está legitimado a recusar a prestação"8. Segundo o Tribunal, recai sobre o devedor o ônus de alegar e provar o início e o fim do prazo prescricional, e, logo, o conhecimento - ou desconhecimento grosseiro - do credor lesado, nos termos do § 199 I BGB, pois é de seu interesse que o prazo prescricional comece a fluir o mais cedo possível. O lesado, porém, deve atuar para o esclarecimento dos fatos e circunstâncias provenientes de sua esfera jurídica e, caso necessário, demonstrar quais medidas foram empreendidas para esclarecer os pressupostos de sua pretensão, ressaltou o BGH. Assentes tais linhas gerais, o BGH concluiu que o Tribunal a quo não poderia ter presumido o desconhecimento grosseiro do lesado simplesmente pelo fato do escândalo da manipulação dos veículos ter sido amplamente divulgado na imprensa. Era necessário que fosse feita a prova de que o lesado teve efetivo conhecimento das matérias publicadas na mídia, sem o quê ele restaria censurado, em última instância, por não acompanhar com regularidade as notícias e, evidentemente, frisou o BGH, ninguém pode ser obrigado pelo direito a acompanhar a imprensa no interesse de outrem, nesse caso, no interesse do agente lesivo em logo iniciar o transcurso do prazo prescricional. O fato de ser provável que o lesado tenha tomado conhecimento do escândalo, ainda que de forma geral, não desonera o juiz de apurar, no caso concreto, se houve a efetiva ciência ou o desconhecimento grosseiro da autoria e das circunstâncias constitutivas da pretensão, tarefa da qual não se desincumbiu o magistrado. Em suma: não se podendo imputar desconhecimento grosseiro por parte do lesado, o termo prescricional não começou a fluir no final de 2015, quando veio à tona o Dieselgate e, logo, não findou em 31/12/2018, como entenderam as instâncias inferiores. b) A suspensão do prazo prescricional pela ação modelo Além disso, houve - segundo o BGH - a suspensão do prazo prescricional, de modo que a ação indenizatória fora interposta a tempo pelo lesado. A controvérsia central aqui girava em torno de saber se a suspensão da prescrição ocorria com a propositura da ação declaratória modelo ou apenas com a inscrição do autor (rectius: anotação de sua pretensão) no registro de ação. Na versão anterior do § 204 inc. 1 Nr. 6a BGB, referente ao procedimento das ações modelo dos investidores, era a inscrição do investidor lesado no registro que suspendia a prescrição. Desse modo, a suspensão ocorria na data da inscrição, independente de quando foi protocolada a ação declaratória modelo. Diferente, porém, é a formulação do § 204 inc. 1 n. 1a BGB, que coloca como marco temporal da suspensão do prazo prescricional a data do ajuizamento da ação modelo e não a data da ação individual movida pelo credor, potencial beneficiário do procedimento modelo. Segundo o dispositivo, o prazo prescricional será suspenso com o ajuizamento de ação declaratória modelo para o esclarecimento de uma pretensão que o credor tenha validamente anotado no registo de ações, desde que a pretensão registrada se baseie nos mesmos fatos discutidos na ação declaratória modelo9. Embora o texto legal deixe margem de dúvida sobre se a anotação no registro deve ocorrer antes de findo o prazo prescricional ou se pode ser protocolada depois10, o BGH afirmou que para a suspensão da prescrição é necessário apenas que a ação modelo tenha sido ajuizada dentro do prazo prescricional, ainda quando a inscrição do lesado no registro de ações ocorra posteriormente. Esse entendimento corresponde, segundo a Corte, à vontade objetiva do legislador, considerando-se a literalidade, a sistemática, a origem histórica e o escopo da norma do § 204 I n. 1a BGB. O Tribunal lembrou que a finalidade política da introdução da ação modelo foi justamente evitar a prescrição, no final de 2018, das pretensões indenizatórias dos adquirentes de veículos manipulados, enganados pela Volkswagen. Interessante, por fim, anotar que o BGH também afastou a alegação - aduzida pela montadora e aceita pelo Tribunal de segunda instância - de que o autor havia agido deslealmente ao inscrever-se no registro apenas para se beneficiar da suspensão da prescrição e, em seguida, cancelar sua anotação, movendo ação individual. Os juízes de Karlsruhe rebateram a alegação aduzindo que o legislador não condicionou a suspensão do prazo prescricional à permanência do lesado no registro de ações. Pelo contrário: previu a possibilidade do lesado optar pela persecução individual de sua pretensão e cancelar sua inscrição no registro até a data da primeira audiência no processo individual (§ 608 inc. 3 ZPO). Nesse caso, a suspensão do prazo prescricional finda 06 meses após o cancelamento do registro, segundo o § 204 inc. 2, 2ª parte do BGB11. Ou seja: cancelado o registro, o lesado dispõe ainda desse prazo para decidir entrar com ação individual. Permanecendo inerte, sua pretensão restará fulminada. Epílogo De todo o exposto, é interessante notar que no direito alemão o termo prescricional não começa a correr, como no direito brasileiro, a partir do momento da lesão ao direito, independente do titular ter conhecimento pleno do ocorrido ou da extensão do dano, o que dá ensejo, obviamente, a situações de grave injustiça. Por isso, doutrina e jurisprudência têm aplacado a rigidez do art. 189 CC/02 permitindo que, em casos excepcionais, a contagem do prazo prescricional inicie a partir da ciência da lesão pelo titular do direito12. Trata-se de um viés subjetivo da teoria da actio nata, que parte de um argumento lógico e justo: não se pode exigir uma atuação positiva do sujeito que ignora a violação de seu direito. E mais: se a prescrição sanciona a inércia e a falta de diligência do titular do direito violado, esse não pode ser sancionado se desconhecia a lesão e/ou sua autoria. A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça é uníssona ao afirmar que o prazo prescricional conta-se, em regra, a partir do momento em que configurada a lesão ao direito subjetivo, independente do titular ter pleno conhecimento do ocorrido ou da extensão dos danos sofridos. Mas admite, em situações excepcionais, que o termo inicial passe a fluir a partir do conhecimento da lesão, em casos de ilícito extracontratual13. Essa criação judicial de um sistema subjetivo de prescrição, paralelo ao sistema legal objetivo do art. 189 CC/02, deve ser feita, contudo, com máxima cautela a fim de que não se permita o acionamento ad eternum do devedor por um credor inerte, pervertendo a ratio e a função do instituto. Para evitar o excesso de subjetivismo - e o caos jurídico - o conhecimento do fato não pode, por óbvio, ser apurado com base em critérios puramente subjetivos, isto é, com base na mera afirmação de desconhecimento do titular do direito. Torna-se premente a necessidade de apurar se o lesado teve - ou poderia ter tido - ciência das circunstâncias fundamentadoras da pretensão para deflagrar o início do prazo prescricional. _____ 1 Veja o histórico do imbróglio em: 'Dieselgate`: veja como escândalo da Volkswagen começou e as consequências. 5/2/2919. Disponível aqui.  2 LEAL, Adisson. Dieselgate e o despertar alemão para a tutela coletiva dos direitos do consumidor. Consultor Jurídico, 12/11/2018. 3 KERN/DIEHM. ZPO Kommentar. 2. ed., Erich Schmidt Verlag, 2020, § 606 Rn. 2. 4 KERN/DIEHM. Op. cit., § 606 Rn. 1. 5 Was ist eine Musterfestellungsklage? DW, 1/11/2018. Disponível aqui.  6 "§ 199. Beginn der regelmäßigen Verjährungsfrist und Verjährungshöchstfristen. (1) Die regelmäßige Verjährungsfrist beginnt, soweit nicht ein anderer Verjährungsbeginn bestimmt ist, mit dem Schluss des Jahres, in dem1. der Anspruch entstanden ist und2. der Gläubiger von den den Anspruch begründenden Umständen und der Person des Schuldners Kenntnis erlangt oder ohne grobe Fahrlässigkeit erlangen müsste." 7 Tratado de direito civil - Parte Geral. t. V. 3ª ed. Coimbra: Almedina, 2018, p. 184s. 8 "§ 214. Wirkung der Verjährung. (1) Nach Eintritt der Verjährung ist der Schuldner berechtigt, die Leistung zu verweigern." 9 "§ 204. (1) Die Verjährung wird gehemmt durch: (...) 1a. die Erhebung einer Musterfeststellungsklage für einen Anspruch, den ein Gläubiger zu dem zu der Klage geführten Klageregister wirksam angemeldet hat, wenn dem angemeldeten Anspruch derselbe Lebenssachverhalt zugrunde liegt wie den Feststellungszielen der Musterfeststellungsklage, (...)" 10 SCHMIDT-KESSEL, Martin. Stellungnahme zum Gesetzentwurf. BT-Ausschuss für Recht und Verbraucherschutz, Protokol Nr. 19/15, p. 107, 129. 11 A 2ª parte do inc. 2 do § 204 do BGB reza: "A suspensão, segundo o inc. 1 número 1a, termina igualmente em seis meses após o cancelamento do pedido de inscrição no registo de ações.". No original: "Die Hemmung nach Absatz 1 Nummer 1a endet auch sechs Monate nach der Rücknahme der Anmeldung zum Klageregister." 12 Na doutrina, confira-se: BODIN DE MORAES, Maria Celina e SAMPAIO GUEDES, Gisela. A prescrição e a efetividade dos direitos. In: A juízo do tempo - estudos sobre prescrição. Maria Celina Bodin de Moraes, Gisela Sampaio Guedes e Eduardo Nunes de Souza (coord.). Rio de Janeiro: Processo, 2019, p. 24s. 13 Confira-se, dentre outros julgados: REsp. 1.736.091/PE, T3, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 14/5/2021 e REsp. 1.605.604/MG, T3, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 20/4/21.
A coluna German Report desta semana recebe o contributo de Graziela Harff, Mestre em Direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), abordando a espinhosa problemática da liberdade de expressão e seus contornos. O tema não é novo, mas atualíssimo tendo em vista o fenômeno da desinformação na era digital. Se em outros tempos, antes da difusão da internet e do desenvolvimento das novas tecnologias de informação, o problema era a falta ou dificuldade de acesso à informação, hoje o grande desafio é lidar com o excesso de informação e, pior, com a desinformação. A crença de que fake news e discursos de ódio se deixam aplacar no livre mercado de ideias através do contradiscurso mostrou-se insustentável face ao uso deturpado das inovações tecnológicas. Maria Ressa, jornalista filipina vencedora do Nobel da Paz em 2021, em recente entrevista ao jornal Valor Econômico, fez severas críticas à forma como os algoritmos e as redes sociais vêm sendo manipulados para impulsionar a difusão de informações falsas1. No SXSW, o maior evento sobre inovação digital nos Estados Unidos, ela denunciou que as redes sociais e os algoritmos têm sido utilizados como meios de divulgação massiva de informações falsas, tornando-se perigosa ameaça às democracias ao redor do mundo. Segundo Ressa, eles deixaram de ser mecanismos de liberdade de expressão e se tornaram mecanismos de distribuição de fake news e de ideias antidemocráticas e hostis a grupos minoritários, que se propagam em velocidade assustadora impulsionadas por contas-robôs e disparos em massa que alcançam milhões de usuários, tudo sob a confortável condescendência das plataformas digitais de comunicação, que comodamente faturam cifras astronômicas com a economia da desinformação. A realidade tem mostrado que o mau uso das inovações e parafernálias tecnológicas não fomentam o bom combate, nem propiciam a paridade de armas necessárias para o embate de ideias idealizado por Stuart Mill para o free marketplace of ideas.  Dessa forma, o contradiscurso tem se mostrado insuficiente para derrotar a desinformação, as fake news e os discursos de ódio, porque ele não é propagado da mesma forma e velocidade que o mau discurso, nem atinge a mesma parcela do público. Gaziela Harff debruçou-se sobre esses problemas da era digital em sua dissertação de Mestrado, defendida perante a prestigiosa UFRGS com o tema: Discurso de ódio no direito comparado: um enfoque jurídico nos Estados Unidos, Alemanha e Brasil. O trabalho foi aprovado com nota máxima e recomendação de publicação, em agosto de 2021, em banca composta pelos Professores Marcelo Schenk Duque, Eugênio Facchini Neto e Fabiano Menke, da qual tive o prazer de participar como avaliadora externa. Agora, ela brinda o leitor do Migalhas com um texto que nos convida à reflexão sobre o conteúdo e os limites do direito à liberdade de expressão. Tema fundamental em uma quadra da histórica na qual presenciamos uma onda de intolerância, preconceitos, discriminações e ataques às instituições democráticas, proferidos sob o escudo da liberdade de expressão e potencializados pela internet. Confira abaixo. * * * Graziela Harff A liberdade de expressão, certamente, é um dos direitos que mais têm sido debatidos pela comunidade jurídica e sociedade em geral, tendo em vista os recentes fatos envolvendo conflitos entre liberdade de expressão e a dignidade da pessoa humana e direitos como igualdade e honra. O extremismo e a defesa de políticas totalitárias têm ocupado as manchetes dos jornais, trazendo à tona os limites que devem ser traçados à liberdade de expressão, haja vista a inexistência de direito ilimitado. Nesta equação devem ser considerados elementos diversos, sendo um dos mais importantes o contexto e o tratamento jurídico dispensado a determinadas liberdades e direitos, o que poderá ter como resultado a proscrição ou não de determinados recursos. Na Alemanha, a negação do holocausto é crime previsto no Código Penal (§ 130), no que se incluem toda manifestação que aprove, negue ou minimize algum ato cometido sob o regime nacional-socialista. Do mesmo modo, é punido criminalmente aquele que aprova, glorifica ou justifica a tirania e o governo arbitrário do nacional-socialismo. Em 2018, uma cidadã alemã teve seu recurso constitucional (Verfassungsbeschwerde) perante o Tribunal Constitucional Federal (TCF) não admitido para julgamento em um caso que envolvia negação do holocausto.[2] A reclamante, que já havia sido condenada diversas vezes por incitar ódio e violência contra segmentos da população (Volksverhetzung), ajuizou reclamação constitucional em face da condenação a dois anos de prisão pela negação da perseguição dos judeus pelos nazistas, segundo o § 130 (3) do Código Penal alemão (Strafgesetzbuch). Os fatos consistiam em diversos artigos nos quais a reclamante afirmava que o assassinato de judeus sob o regime nazista e as mortes nas câmaras de gás em Auschwitz-Birkenau não haviam acontecido. Haveria, segundo ela, uma violação a seu direito fundamental à liberdade de expressão, de pesquisa e de ensino, bem como ao devido processo legal. Ainda, a interpretação de fatos históricos contrários à visão majoritária estariam protegidos igualmente pela liberdade de expressão. Em sua decisão, o TCF afirma que o objeto da proteção do artigo 5 (1) são opiniões, que são caracterizadas pela tomada de posição e avaliação de determinada pessoa. Além disso, o escopo da proteção inclui fatos, na medida em que são pré-requisitos para a formação de opiniões. Entretanto, manifestações sobre fatos comprovadamente falsos são excluídos do âmbito de proteção da liberdade de expressão, uma vez que não contribuem para o processo de formação de opinião. O fato de afirmações fáticas serem feitas em conexão com manifestações de opinião não levam a diferente resultado. Outra conclusão a que chegou a Corte é de que a aprovação dos atos cometidos ou a sua negação podem causar distúrbios da ordem pública. Prossegue o TCF assentando que as negações são baseadas em conclusões de ordem subjetiva, para as quais a reclamante sustenta estar amparada pela liberdade de expressão, não havendo que se falar, no entanto, em violação a seus direitos fundamentais. Em relação à aprovação dos atos cometidos pelo nacional socialismo, trata-se da aprovação do reino da violência e da tirania. Por sua vez, a negação somente pode ser entendida como a trivialização de tais crimes, o que leva à sua legitimação e aprovação. Tal exaltação ou negação dos atos nazistas carregam em si a ameaça de um discurso hostil e violento, servindo como um código para instigar ações hostis contra certos grupos de pessoas. A Corte ainda recorda que, em seus artigos, a reclamante dirige requerimentos aos membros do Conselho Central de Judeus na Alemanha (Zentralrat der Juden), solicitando a retificação dos eventos que ocorreram em Auschwitz. Assim, o julgamento conclui que a negação do genocídio cometido contra os judeus é usado como meio para, de modo intencional e deliberado, formar uma opinião pública contra os judeus e seus representantes. Este caso é demonstrativo da valorização da dignidade da pessoa humana e da não admissão de qualquer afirmação fática, mesmo que revestida de opinião pessoal, que leve à negação dos atos praticados sob o regime nazista. Para evitar o retorno do partido nazista e dos atos cometidos durante seu governo, a inviolabilidade da dignidade da pessoa humana está inscrita no primeiro artigo da Lei Fundamental. Ainda, o direito constitucional alemão não permite que manifestações a favor de um regime que revelou todo seu desprezo pela pessoa humana e seus direitos fundamentais sejam defendidas. Segundo o parâmetro construído pelo TCF, as expressões protegidas são aquelas que contribuem para o processo de formação da opinião pública. Embora, à primeira vista, possa parecer árdua tarefa classificar quais seriam essas manifestações, o TCF rechaça aquelas que deliberadamente falsas, assim também já comprovadas. O debate ocorrido na Alemanha, ressalte-se, é comum a muitos países, especialmente com o advento da internet e das redes sociais, que têm o poder de veicular e propagar ideias que se revelam incompatíveis com o regime democrático e constitucional. Sob o manto da liberdade de expressão, não se pode defender o desprezo e rechaço a outros direitos, ao próprio valor da dignidade da pessoa humana ou manifestações em prol de ideias totalitárias. Mesmo que não mencionada no acórdão, essa discussão atrai o tema da democracia militante. Desenvolvido por Karl Loewenstein, defende que algumas pessoas se valem da democracia para destruí-la, de modo que o regime democrático deve prever instrumentos para sua defesa. Nessa esteira, na Alemanha é prevista a declaração de inconstitucionalidade pelo TCF dos partidos que atuarem contra a ordem constitucional e seus valores. No Brasil, é previsto expressamente na Constituição Federal, em seu art. 17, que os partidos políticos devem observância aos direitos fundamentais, do que não se cogita qualquer possibilidade de um partido que tenha ideias nazistas. As iniciativas no âmbito internacional também têm aumentado. Em mais um movimento para combater o antissemitismo, em 20/1/2022, a Assembleia Geral da ONU aprovou uma resolução que condena a negação do holocausto3, a minimização de seu número de vítimas, as tentativas dirigidas a tentar culpar os judeus pelo genocídio, afirmações que enxergam no holocausto um evento positivo e a tentativa de culpar outros países ou grupos étnicos pelo genocídio operado pela Alemanha nazista. Esta resolução foi adotada em um momento em que o antissemitismo tem se agravado e se espalhado pelo mundo, sendo necessárias ações para lembrar a importância de rejeitar qualquer ideia que remeta ao nazismo e sua política, o que tem se dado por meio de notícias falsas e graves distorções históricas, que possuem o objetivo de minimizar as atrocidades levadas a cabo, além de criar hostilidade contra suas vítimas. Destaca-se ainda a Recomendação 97/20 do Comitê de Ministros do Conselho da Europa, que recomenda que os países implementem mecanismos em sua legislação para combater o discurso de ódio, no que se inclui o hate speech. 4 Feitas estas considerações, impende tecer algumas considerações acerca dos Estados Unidos, país com muitas diferenças em seu sistema jurídico em relação à liberdade de expressão. Em primeiro lugar, deve ser lembrado que o sistema norte-americano é marcado pelo seu excepcionalismo, sendo um país em que referida liberdade assume contornos quase absolutos, o que o torna um modelo a ser contraposto ao alemão. Se é verdade que não se pode chegar ao ponto de afirmar que o direito de expressão é absoluto, também deve ser mencionado que a definição dos seus limites tem sido construída pela Suprema Corte, do que é exemplo a categoria das fighting words (palavras belicosas). Mesmo assim, tais limitações possuem muito mais o escopo de preservação da paz e ordem públicas do que proteção de direitos fundamentais das vítimas de discursos odiosos. Ilustrativo dessa afirmação é a previsão da liberdade de expressão na Constituição norte-americana, elencada logo na Primeira Emenda do Bill of Rights, prevendo que o legislador não deve legislar no sentido de limitá-la. Nesse sentido, prevalece o entendimento de que deve haver um livre mercado de ideias (free marketplace of ideas), para que estas circulem livremente, sem intervenções governamentais. Sendo assim, as más ideias devem ser combatidas com mais discurso, ou seja, com o contradiscurso (counterspeech). Um caso que ilustra esse tratamento é o da queima de cruzes. Em R.A.V. v. City of Saint Paul5, adolescentes haviam incendiado uma cruz em frente à residência de uma família afrodescendente. A cruz em chamas, lembre-se, é um símbolo da Ku Klux Klan que remete ao preconceito e discriminação. Os adolescentes foram processados com base na Bias-motivated crime Ordinance, a qual previa que aquele que colocasse cruzes em chamas com base em raça, cor, credo, religião ou gênero cometeria um ilícito penal. Contudo, a Suprema Corte entendeu ser a lei inconstitucional e invalidou a condenação, uma vez que a lei discriminava em razão do ponto de vista (viewpoint based) e era baseada em conteúdos específicos (content-based), ou seja, fora violada a necessária neutralidade em relação ao conteúdo do discurso. Esse caso, que trata do discurso de ódio através especificamente de um ato - a colocação de cruzes, é significativo da abrangência da liberdade de expressão, protegendo discursos odiosos que não seriam admitidos em outras democracias. No Brasil, essa discussão sobre discurso de ódio encontrou sede no HC 82.4246, caso Ellwanger, em que um editor de livros veiculava afirmações antissemitas, seja através das obras que publicava ou através de seus escritos, pelo que foi condenado pelo crime de racismo (art. 20, lei 7.716/89). O julgado certamente figura entre os mais importantes sobre direitos humanos julgados pelo STF, ao expressar o repúdio do sistema jurídico-constitucional brasileiro ao antissemitismo, que constitui uma forma de discurso de ódio. Por maioria, então, o STF denegou a ordem. A negação do holocausto é uma das formas de discurso de ódio que devem ser combatidas por toda a sociedade. Admitir tal forma de manifestação sob a alegação de estar inserida no âmbito da liberdade de expressão traz o risco de sérios danos à democracia, causando, então, uma erosão democrática. É dizer, deve-se atuar na defesa conjunta dos valores democráticos, nos quais se incluem os direitos fundamentais. _____________ 1 "As eleições são críticas para o Brasil", diz vencedora do Nobel da Paz sobre onda crescente de desinformação. Valor Econômico, 15/3/2022. 2 Processo BVerfG 1 BvR 673/18. 3 Disponível em: https://news.un.org/en/story/2022/01/1110202 4 Disponível em: https://go.coe.int/URzjs 5 R. A. V. v. St. Paul, 505 U.S. 377 (1992). 6 STF, HC 82.424/RS, Rel. Min. Maurício Corrêa. Paciente: Siegfried Ellwanger. Coator: Superior Tribunal de Justiça. Data do julgamento: 17/09/2003, DJU 19/03/2004.
A coluna German Report chega à sua centésima publicação trazendo uma decisão histórica da Corte infraconstitucional alemã, o Bundesgerichtshof (BGH), envolvendo a quebra da base de contratos de fornecimento de bebidas alcoólicas em decorrência da Revolução Iraniana, ocorrida em 1979, que transformou o país, então uma monarquia autocrática pró-Ocidente, em uma república islâmica teocrática comandada pelo aiatolá Ruhollah Khomeini. O momento não poderia ser mais propício, tendo em vista a lamentável guerra iniciada pela Rússia contra a Ucrânia e, em certa medida, contra o Ocidente. Além de retrocesso civilizatório e democrático, o sonho neoimperialista do neoczar Wladimir Putin trás de volta o temor de uma terceira guerra mundial. É curioso - e, por vezes, assombroso - como a história humana pode ser cíclica. Um lançar de olhos no passado permite estabelecer alguns paralelos entre os tempos atuais e aqueles loucos anos 20 do início de 1900. No apagar das luzes do século 19 para o 20, a sociedade estava deslumbrada com as inovações tecnológicas da época, como o telefone, telégrafo sem fio, cinema, automóvel e o avião, invenções que provocaram profundas transformações no quotidiano e no modo de vida das pessoas, dando espaço a um novo modo de pensar e ver o mundo. A Europa vivia uma efervescência cultural: cafés, cabarés, óperas, teatros e o cinema extasiavam uma sociedade sedenta por diversão e cultura. Irromperam novas formas de arte como o Impressionismo e a Art Nouveau e, pela primeira vez na história, a sociedade experimentava a cultura urbana do divertimento, tendo Paris como o centro cultural do mundo. Era a chamada Belle Époque, período compreendido entre 1890 e 1914 que inaugurou uma fase de expansão e progresso científico, econômico, intelectual, cultural e artístico da humanidade. Mas, infelizmente, em 1914 eclodiu a 1ª. Guerra Mundial (1914-1918), pondo fim à Belle Époque, momento em que o mundo se deu conta de que as notáveis invenções da poderiam ser usadas para fins não tão benéficos, como a militarização das nações, estimulando disputas imperialistas e sentimentos nacionalistas. Mal a guerra chegara ao fim e surgia a gripe espanhola, uma pandemia resultante da mutação do vírus Influenza (H1N1) que atingiu os quatro continentes entre 1918 e 1919, deixando um saldo de milhões de mortos. O mundo ainda não se recuperara das dramáticas consequências sociais e econômicas do conflito bélico quando veio o crash da bolsa de Nova Iorque e a catástrofe humanitária da 2ª. Guerra Mundial. A passagem do século 20 para o 21 guarda, lamentavelmente, algumas semelhanças. Vivemos a Belle Époche digital, com a sociedade fascinada e entorpecida pelos desenvolvimentos tecnológicos de nossa era. Internet, smart phones, computadores, robótica, drones, inteligência artificial e aparelhos dotados de infinitas funcionalidades prometem melhorar nossa qualidade de vida e embriagam a todos, nos levando a abrir mão de bens valiosos, como privacidade, intimidade e tempo, em troca de diversão. O objetivo das grandes empresas de tecnologia é criar um mundo cada vez mais virtual, com o metaverso e a reproduzir condições de vida em outros planetas, embora não tenhamos resolvidos problemas básicos no planeta terra, como educação, saúde, respeito e vida digna para todos. Mas nesse início de século, tal como outrora, a Belle Époche digital tem sido perturbada por acontecimentos extraordinários e inesperados, que nos relembram a fragilidade de nossa natureza humana: a pandemia de Covid-19, provocada pela mutação do coronavírus (SARS-Cov-2) e a Guerra na Ucrânia, que tende a agravar ainda mais o difícil quadro socioeconômico deixado pela pandemia. Sem dúvida, é hora de olhar o passado para aprender com os erros e acertos a fim de se posicionar quanto ao futuro. No campo jurídico não é diferente. Os recentes e dramáticos acontecimentos servem de lição à onda jurídica neoconservadora que se faz sentir em várias áreas, principalmente no direito privado, que visa não corrigir os excessos, mas podar todo um desenvolvimento anterior experimento desde o final dos anos 80. Exemplo disso é a onda antirevisionista que, embalada pelo direito anglo-saxão, pretende tolher a intervenção estabilizadora do juiz nos contratos. Essa tendência teve seu ápice com a promulgação da Lei de Liberdade Econômica que, a despeito de outras boas intenções, tentou barrar a revisão contratual, se refletindo na lei 14.010/2020, a lei emergencial de direito privado da pandemia, que em seu art. 7º pretendia impedir a revisão dos contratos desequilibrados pelas consequências econômicas da pandemia. Mas, numa espécie de revolta dos fatos contra a norma, a realidade pandêmica se impôs de forma implacável levando o Judiciário - e o Legislador - em todo o mundo a intervir nos contratos buscando um reequilíbrio. Agora, com a Guerra na Ucrânia, presenciamos mais um evento extraordinário, de consequências ainda imprevisíveis, a impactar a economia global e a base estrutural de inúmeros contratos, nos mais diversos segmentos da economia. A guerra, não custa lembrar, é um dos clássicos exemplos autorizadores da revisão judicial dos contratos devido às suas dramáticas consequências socioeconômicas em escala mundial, principalmente forte alta inflacionária e desvalorização monetária. Historicamente, foram os gravosos efeitos econômicos da 1ª Guerra Mundial que destruíram a estabilidade formal e fictícia dos contratos, levando a França a editar a falada Loi Faillot (1918) para permitiu ao juiz extinguir os contratos comerciais desequilibrados em decorrência do conflito e a jurisprudência alemã a revisar os pactos com base na teoria da quebra da base do negócio, à época ainda embrionária. O Judiciário brasileiro enfrentou a crise pandêmica sem se intimidar com as correntes conservadoras. Espera-se que a mesma postura seja adotada diante dos impactos da Guerra na Ucrânia, que pode trazer de volta os fantasmas da forte alta inflacionária e da desvalorização monetária, ponto sensível na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, que costuma afirmar que tais fenômenos econômicos são comuns entre nós. O início dos anos 20 da era digital não tem deixado espaço para posturas antirevisionistas. Afinal, dois exemplos (guerra e pandemia) saíram dos manuais para a realidade a fim de mostrar a necessidade de readaptar os contratos desequilibrados por acontecimentos de efeitos extraordinários e imprevisíveis. Esse julgado histórico do BGH dá um bom exemplo disso. O caso do fornecimento de cerveja para o Irã Em 1977, uma empresa iraniana importadora de cervejas encomendou doze mil caixas de cerveja na Alemanha para revender no Irã. A mercadoria foi despachada da cidade de Bremen para um porto persa, mas, lá chegando, o importador constatou que parte do produto estava avariado e inutilizável. Ele comunicou o fato ao exportador, apresentando laudo pericial que comprovava que 40% da mercadoria estava danificada e requerendo o pagamento de cerca de 96 mil marcos alemães (Deutsche Mark - DM) referentes à mercadoria e demais prejuízos incorridos, como perícia e taxas alfandegárias. Após negociações, as partes celebraram, em novembro de 1978, um acordo extrajudicial (außergeritlicher Ausgleich) de compensação dos danos, segundo o qual o importador seria indenizado com um pagamento em dinheiro de DM 20 mil e o restante do valor seria compensado com descontos no preço das bebidas que seriam adquiridas até a data de 31/5/1980. Além disso, após o primeiro, o vendedor deveria pagar mais DM 20 mil quando recebesse carta de crédito referente à mencionada compra. A fabricante alemã, porém, só efetuou o primeiro pagamento (DM 20 mil). O restante ficou em aberto, porque o aiatolá Khomeini tomou o poder no Irã em janeiro de 1979 e instaurou uma ditadura islâmica, proibindo a importação e comercialização de bebidas alcoólicas no país. Como o fornecedor alemão se recusou a renegociar os termos do acordo de indenização celebrado, o importador moveu ação de perdas e danos, julgada procedente em primeiro grau pelo Landgericht Hannover. Em grau de recurso, porém, o Tribunal (Oberlandesgericht) de Celle reduziu o valor a ser ressarcido. A decisão do OLG Celle O OLG entendeu que a base do acordo extrajudicial de compensação dos danos, celebrado em 1978, fora abalada com a revolução iraniana, pois a prestação acordada (fornecimento de cerveja por preço reduzido durante certo período) pressupunha a possibilidade de comercialização de bebida entre as partes. Porém, as expectativas - rectius: a representação comum das partes - de continuidade do comércio conjunto não se concretizaram, pois a venda de álcool no Irã fora proibida, impedindo a importação das cervejas fabricadas pela empresa alemã (ré), o que tornava necessária a readaptação do negócio.  Segundo o OLG, era irrelevante para a solução da lide o fato da autora eventualmente poder distribuir as bebidas fora das fronteiras do território iraniano, pois o acordo extrajudicial de compensação dos danos pressupunha a continuidade da importação de cervejas para o país. O Tribunal de Celle ressaltou que as falsas representações das partes sobre a possibilidade de seguidas importações não era caso de invalidade do contrato, como o previsto no § 779 BGB. Segundo o dispositivo, um contrato, pelo qual se elimina a disputa ou incerteza das partes sobre uma relação jurídica através de concessões mútuas (acordo), é ineficaz quando os fatos, presumidos como existentes, de acordo com o conteúdo do contrato, não corresponderem à realidade e a disputa ou incerteza não teria surgido se as partes tivessem tido conhecimento da situação fática. A norma, segundo o OLG Celle, pressupõe um equívoco sobre uma situação fática atual, conduzindo à invalidade do negócio. Porém, no caso concreto, as partes não tinham se equivocado sobre uma situação fática atual, mas sim sobre o desenrolar de acontecimentos futuros, no caso, o desenvolvimento político no Irã e seus efeitos sobre a relação contratual. O que, de fato, ocorreu foi uma alteração posterior das circunstâncias que provocou a quebra da base do acordo de compensação dos danos. Embora a (re)venda de produtos livres de vícios pertença, em princípio, à esfera de risco do importador, seria extremamente injusto, diante de circunstâncias tão extraordinárias como a revolução politico-religiosa e as inúmeras restrições comerciais impostas, deixar todo o risco da exequibilidade do acordo nas costas do autor, disse a Corte. Isso, aliás, iria de encontro ao próprio escopo do acordo, que visava justamente ressarcir o autor dos prejuízos sofridos com o fornecimento de cerveja. Portanto, a parte ainda não cumprida do acordo precisava ser readaptada à nova realidade factual de modo a atender ao fim último do negócio (indenizar o importador). O OLG Celle afirmou que a pretensão ressarcitória do autor deveria levar em conta o valor do proveito que ele obteria com a execução do acordo, ou seja, deveria ser calculada com base no interesse positivo, parâmetro padrão utilizado no cálculo do dano contratual segundo o qual o contratante lesado deve ser colocado na situação que estaria se o contrato tivesse sido regularmente cumprido. A Corte dividiu meio a meio o risco da execução do negócio, de forma que o autor - além dos DM 20 mil já recebidos - deveria ser recompensado em metade da segunda parcela de DM 20 mil e pela metade dos lucros que provavelmente auferiria com a execução do negócio, a ser arbitrado por estimativa (Schätzung), nos termos do § 287 I do ZPO, o diploma processual civil alemão. Segundo o OLG Celle, resultava dos termos do acordo que a ré teria fornecido, no mínimo, 60 mil caixas de cervejas. Considerando-se o preço por caixa - abatido do valor de DM 0,90, desconto fixado por estimativa pelo juiz de primeiro grau - o importador obteria um proveito de aproximadamente 54 mil marcos alemães, metade do qual deveria ser pago segundo a fórmula fifty-fifty estabelecida para a revisão contratual. Dessa forma, o autor receberia uma indenização total no valor de 37 mil marcos alemães (DM 27 mil mais DM 10 mil). A decisão do BGB O BGH julgou improcedente os recursos interpostos pelas partes, mantendo a decisão do OLG Celle em todos os seus fundamentos. Trata-se do processo BGH VIII ZR 254/82, julgado em 8/2/1984. A Corte, seguindo o entendimento do Tribunal a quo, negou tratar-se de impossibilidade da prestação ao argumento de que a proibição de importar cerveja para o Iran não liberou o devedor (vendedor) do dever de indenizar os prejuízos decorrentes do primeiro contrato de fornecimento. Aqui vale atentar que o objeto do acordo extrajudicial não era a importação em si, mas o ressarcimento dos prejuízos sofridos pelo importador durante o primeiro fornecimento. A encomenda (pedido de compra) de cerveja e a carta de crédito não constituíam obrigações assumidas pelo comprador, mas tão só pressupostos para os novos fornecimentos que seriam feitos conforme a conveniência do importador. O Tribunal de Karlsruhe também afirmou que não se tratava de caso de invalidade do negócio, nos termos do § 779 BGB/1900, porque as partes se equivocaram sobre o desenrolar (ocorrência ou inocorrência) de acontecimentos futuros, no caso, o desenvolvimento político no Irã e seus efeitos, e o fato dos acontecimentos terem se desenvolvido de forma contrária às expectativas dos contratantes não conduz à nulidade do acordo extrajudicial. Para o BGH não pairam dúvidas: a base do acordo extrajudicial de compensação dos danos foi quebrada com a Revolução Iraniana. A base subjetiva do negócio são aquelas representações de ambas ou de uma das partes (nesse caso, perceptíveis e não contestadas pela outra), presentes no momento da conclusão do contrato, acerca da existência ou da ocorrência futura de certas circunstâncias, as quais dão sustentação à vontade negocial, i.e., à decisão de contratar. De fato, a possibilidade de continuação da relação comercial fez parte da base do negócio de compensação dos danos, pois este pressupunha a continuidade da parceria comercial no fornecimento de bebidas. Só assim faz sentido a concessão de desconto no preço das bebidas em futuras aquisições. Em outras palavras: o escopo econômico visado com o acordo só seria alcançado se o importador pudesse encomendar e revender a mercadoria. Para a configuração da quebra da base do negócio é necessário ainda que a alteração das circunstâncias produza efeitos gravosos, "inconciliáveis com o direito e a justiça", e, portanto, insuportáveis para a parte prejudicada, como ocorre, por exemplo, quando surge grave desproporção entre prestação e contraprestação. Um credor que, por meio de acordo, deixa de fazer valer suas pretensões decorrentes do fornecimento defeituoso de mercadorias para receber, como contrapartida, determinada prestação, não precisa se dar por satisfeito com o cumprimento parcial, afirmou o BGH. Interessante registrar, ainda, que a Corte rejeitou o argumento do fabricante alemão de que o importador não poderia alegar quebra da base do negócio, pois o desenvolvimento politico no Irã era previsível. Segundo o BGH, esses acontecimentos - e, principalmente, seus efeitos - não eram tão certos a ponto da parte prejudicada (importador) tê-los considerado em sua esfera de riscos, o que vedaria o recurso à figura da quebra da base do negócio. Assim, o BGH chancelou a readaptação contratual feita pelo OLG Celle salientando que a repartição equânime dos riscos é a solução mais adequada sempre quando no caso concreto não houver base para onerar uma parte mais que a outra. Em suma: esse julgado histórico, frequentemente mencionado na literatura alemã sobre quebra da base do negócio, mostra o rigor científico e a maturidade dogmática do Bundesgerichtshof ao reconhecer a extraordinariedade e imprevisibilidade dos efeitos da Revolução no Irã sobre o contrato de fornecimento de cerveja, a justificar a revisão do acordo extrajudicial de indenização celebrado entre as partes. Como a Guerra da Ucrânia, a Revolução Iraniana talvez fosse na época um evento possível, mas suas consequências eram gravosas e imprevisíveis para o comércio jurídico, autorizando a readaptação dos pactos. Ótimo caso histórico para ser discutido e refletido.
No início deste mês, o Tribunal Constitucional alemão - Bundesverfassungsgericht (BVerfG) - publicou decisão afirmando que as plataformas digitais devem fornecer os dados de seus usuários em casos de postagens de cunho degradante e odioso na internet. O caso envolvia a parlamentar Renate Künast, do Partido Verde da Alemanha. O caso Renate Künast teve sua honra e imagem denegrida por diversas postagens de usuários da rede social Facebook. O imbróglio começou com uma publicação no site do jornal Welt.de, em 2015, que conclamava a parlamentar a dar explicações acerca de um comentário que ela supostamente teria feito afirmando que sexo com crianças seria legítimo, desde que sem violência. Renate Künast, porém, nunca disse isso. Nada obstante, esse foi o estopim para que internautas postassem comentários injuriosos e degradantes sobre ela na página da matéria no Facebook. Os comentários, longe de constituírem ácidas críticas normalmente dirigidas a políticos, beiravam o mais baixo calão, como - com o perdão da tradução, feita apenas para fins didáticos e comparatísticos - "pedaço de merda", "lixo", "loura pedófila", "buceta imunda", dentre outros impronunciáveis. Por isso, a parlamentar, uma das representantes femininas do Partido Verde no Parlamento (Bundestag), solicitou ao conglomerado digital os dados identificadores dos autores das postagens chulas, sexistas e desabonadoras de sua honra e dignidade. O objetivo era processar civil e criminalmente os responsáveis pelos comentários ofensivos. Mas a empresa de Mark Zuckerberg recusou-se a informar os dados solicitados alegando que isso constituiria ofensa ao regulamento europeu de proteção de dados pessoais. Segundo a empresa, ela só estaria autorizada a fornecer tais informações quando o requerente tivesse uma pretensão às informações reconhecida judicialmente. Trocando em miúdos: sob ordem judicial. A ação judicial Diante disso, Renate Künast moveu ação judicial contra o conglomerado norte-americano pleiteando o fornecimento dos dados para poder acionar judicialmente os responsáveis. Em primeiro grau, o tribunal (LG - Landgericht) de Berlim julgou improcedente a ação, em decisão exarada em 9/9/19, por entender que as reações dos usuários na página do Facebook, embora exageradas, polêmicas e sexistas, possuíam relação direta com o contexto factual (Sachdebatte) em torno de um comentário feito por ela no parlamento sobre pedofilia e, portanto, não constituíam crítica degradante, nem crime de injúria. O julgado do LG Berlim afirmava ainda que a autora, enquanto agente político, precisava suportar críticas contundentes no debate público e que esse nível tolerância é mais elevado do que o exigido de pessoas comuns. Em 21/1/20, após manifestação da autora, o LG Berlim modificou parcialmente sua decisão, classificando partes das postagens como degradantes e injuriosas, e ordenando o Facebook a fornecer os dados dos usuários, autores das comentários. Porém, em relação aos demais comentários, o tribunal negou a entrega de dados. A sentença virou manchete, pondo mais lenha na discussão, porque o LG Berlim entendeu que alguns dos comentários chulos acima mencionados não denegriam a parlamentar enquanto pessoa, nem configurariam crime de injúria (Beleidigung), tipo penal previsto no § 185 do StGB - Strafgesetzbuch, o Código Penal alemão1. Em grau de recurso, o KG - Kammergericht Berlim qualificou outras postagens como "manifestações inadmissíveis". No total, doze das vinte e duas postagens foram consideradas injuriosas e, portanto, criminalmente puníveis, não estando acobertadas pelo direito fundamental da liberdade de expressão e manifestação do pensamento. Mas em relação a dez outros comentários, dentre os quais "loura pedófila", "mulher doente" e "cérebro amputado", o Tribunal de Apelação entendeu que não fora ultrapassado o limiar para o tipo penal da injúria, nem configurava crítica degradante. Trata-se do processo KG Berlim 10 W 13/20, julgado em 6/4/20. A decisão do Tribunal Constitucional O BVerfG, porém, julgou procedente a queixa constitucional interposta pela parlamentar, suspendendo as decisões inferiores e ordenando a devolução dos autos ao Tribunal de origem para reapreciação dos fatos. Trata-se do processo BVerfG 1 BvR 1.073/20, julgado em 19/12/21. No acórdão, a Corte afirmou que as decisões inferiores feriram o direito geral de personalidade (allgemeines Persönlichkeitsrecht) da reclamante, consagrado no art. 2, inc. 1 c/c art. 1, inc. 1 da Lei Fundamental (Grundgesetz), por não ordenar a plataforma de mídia social a fornecer informações sobre dados em seu poder, como prevê o § 14, inc. 3 da Lei das Telecomunicações. De acordo com a mencionada norma, um prestador de serviços pode, em casos individuais, prestar informações sobre dados existentes em seus arquivos quando isso for necessário para pleitear em juízo pretensões de natureza civil oriundas de violação de direitos absolutos por meio de conteúdos ilegais. Para o Tribunal Constitucional, a decisão do KG Berlim merece reparos ainda por não ter ponderado todos os aspectos do caso concreto e não ter levado adequadamente em conta a proteção dos direitos de personalidade de políticos e agentes públicos. Crítica degradante é sempre ilegítima Inicialmente o BVerfG afirmou que uma crítica degradante, que só visa denegrir alguém, é sempre inadmissível. A crítica degradante (Schmähkritik) é aquela manifestação ignominiosa, feita por vezes em termos vulgares, que está absolutamente desconectada do contexto factual, i.e., de uma discussão objetiva dos fatos, servindo exclusivamente para ofender a pessoa. Nela, o autor vale-se do contexto de um debate apenas como pretexto para denegrir a vítima. Em outras palavras: é uma crítica que não tem base em qualquer dado objetivo posto em debate, servindo apenas para atacar a dignidade, a imagem e/ou a honra do criticado. Ainda que não reste configurada uma crítica ultrajante, isso não significa que o comentário seja sempre legítimo, sublinhou o BVerfG. Nesse caso, é necessário uma ampla ponderação entre a liberdade de expressão do declarante e o direito geral de personalidade da pessoa afetada para avaliar a admissibilidade do comentário. Quando se trata de crítica ao poder (Machtkritik), presume-se, em princípio, a prevalência da liberdade de expressão, pois é essencial na democracia que os cidadãos possam criticar o exercício do poder sem temer ações judiciais, disse o Tribunal de Karlsruhe. Critica degradante e crime de injúria Segundo a Corte, ao reconhecer que algumas críticas feitas a Renate Künast tinham relação com um contexto factual (um comentário da parlamentar), não configurando, portanto, a figura da crítica degradante, o Tribunal a quo concluiu pari passu não ter havido também injúria, equiparando, ao fim e ao cabo, ambas as figuras. Essa equiparação, porém, é equivocada, afirmou o Bundesverfassungsgericht, pois ainda quando ausente uma crítica ultrajante, pode restar configurado o crime de injúria se, na ponderação do caso concreto, o direito de personalidade do indivíduo ganhar peso maior que a liberdade de expressão. Segundo o BVerfG, para a configuração da injúria do § 185 StGB é necessário, em princípio, um sopesamento das restrições que ameaçam os bens jurídicos e os interesses afetados, nesse caso: a honra pessoal e a liberdade de expressão. Essa ponderação, em casos excepcionais, pode ser desnecessária se a declaração litigiosa constituir uma Schmähung, i.e., uma depreciação, que se configura no caso concreto, como dito, sempre que a opinião não tiver qualquer relação com o debate factual, visando apenas a degradação da pessoa. Declarações ofensivas à integridade pessoal do sujeito, ou seja, ofensas pessoais divulgadas na internet podem afetar tanto desconhecidos, quanto figuras públicas, que são denegridas - sob o manto protetor do anonimato da internet - sem qualquer referência compreensível a uma crítica factual, mas simplesmente por motivos condenáveis, como sentimentos de ódio ou raiva. Esse tipo de manifestação, com a qual se deprecia a honra de alguém, não serve de indício para a prevalência da liberdade de expressão, disse o BVerfG. Pressupostos para a sanção penal é uma ponderação orientada pelos direitos fundamentais, baseada nos elementos do suporte fático e nas condições de punibilidade do Código Penal, em particular nas noções de "injúria" e de "proteção de interesses legítimos", afirmou a Corte. Critérios de ponderação O Tribunal Constitucional aproveitou o ensejo para reafirmar alguns critérios importantes a serem observados pelo julgador no momento da ponderação desse grupo de casos. Em primeiro lugar, é necessário uma análise ampla das circunstâncias concretas do caso e da situação em que a manifestação de opinião foi emitida, além do conteúdo, motivo, forma da manifestação (verbal/escrita, espontânea/planejada), meio de divulgação, o número dos manifestantes e os efeitos da declaração. Para manifestações escritas espera-se, em regra, uma medida maior de cautela e discrição, principalmente quando feitas em redes sociais e perpetuadas na internet. Já para declarações verbais há maior tolerância, pois seria particularmente prejudicial para a liberdade de expressão se cada palavra tivesse de ser pesada na balança antes de uma declaração, afirmou o BVerfG. Além disso, quanto mais a declaração tiver por fim contribuir para a formação da opinião pública, maior peso deve o juiz conferir à liberdade de expressão. O peso será proporcionalmente menor quando se tratar da propagação emocional de sentimentos contra pessoas individuais. Crítica ao poder e proteção da personalidade de políticos Também é importante examinar se o caso diz respeito à uma critica ao poder, pois nesses casos a liberdade de expressão é especialmente digna de proteção. O Tribunal Constitucional reafirmou que, de fato, as fronteiras da crítica legítima a agentes políticos são muito mais amplas que os limites exigidos para pessoas privadas, entendimento que não destoa da posição do Tribunal Europeu de Direitos Humanos2. Na categoria dos agentes estatais devem ser feitas diferenciações. A posição dos agentes políticos difere, por exemplo, da posição de outros agentes públicos que, através do exercício de suas funções, entram em contato com os cidadãos. Aqueles têm o dever de suportar críticas mais intensas devido à sua função na sociedade. No entanto, a crítica ao poder não permite qualquer tipo de insulto e xingamento pessoal a funcionários públicos ou políticos. A Lei Fundamental impõe a todos limites legais para a manifestação de suas opiniões, principalmente quando essas se traduzem em desprezo público ou incitamento ao ódio. E dessa proteção, a Grundgesetz não exclui as pessoas públicas ou funcionários públicos, disse o Tribunal. Quais declarações as figuras públicas têm de suportar e quais não, depende não só do tipo e das circunstâncias da declaração, mas também da posição que ocupam e da atenção pública que reclamam para si, ponderou a Corte, deixando claro que não há uma fórmula pronta. A exigência de condições para a divulgação de informações nas redes sociais e na internet constitui uma efetiva proteção dos direitos da personalidade dos funcionários públicos e dos agentes políticos e isso - para além do significado individual para a pessoa afetada - é uma questão de interesse público. Essa circunstância pode aumentar o peso desses direitos no processo de ponderação, pois só se pode esperar uma disposição de colaborar para o Estado e a sociedade quando se garante a essas pessoas uma proteção adequada de seus direitos de personalidade, afirmou o Tribunal de Karlsruhe. Falta de ponderação nas decisões inferiores Para o Tribunal Constitucional, o KG Berlim não ponderou todos os aspectos do caso concreto, violando, assim, sua decisão os direitos de personalidade de Renate Künast. A mera afirmação de que a parlamentar precisa suportar críticas no debate público de ideias não substitui a ponderação dos bens jurídicos em colisão: liberdade de expressão dos usuários versus direito da personalidade da parlamentar. Segundo o BVerfG, o Tribunal de segundo grau também não levou adequadamente em conta que a efetiva proteção dos direitos de personalidade de agentes públicos e políticos se dá não só no interesse privado da pessoa atingida, mas também no interesse público3. Por essas razões, o caso foi reenviado ao Tribunal a quo para novo julgamento. A relevância do caso O caso de Renate Künast é rico e interessante para análises comparativas, pois nele o Tribunal Constitucional abordou a espinhosa questão dos limites da liberdade de expressão no contexto da crítica ao poder, especialmente ao poder político, tão importante para o aperfeiçoamento da democracia e para a evolução de uma sociedade livre e democrática. Em síntese, pode-se dizer que a Corte reafirmou a regra de que agentes políticos e funcionários públicos possuem uma esfera de proteção menor que as pessoas comuns, devendo suportar críticas duras e ácidas à sua atuação. Mas, ao mesmo tempo, impôs limites a essas manifestações, afirmando que a crítica degradante constitui o limite intransponível para uma manifestação legítima sobre determinada pessoa. Esse limite é ultrapassado a partir do momento em que a declaração ou postagem tem por fim apenas denegrir e ofender a pessoa, atingindo sua dignidade, sem estar embasada em um contexto fático. Em outras palavras: toda crítica que visa exclusivamente denegrir a honra, imagem ou dignidade humana é inadmissível. Importante frisar, para evitar mal entendidos, que essa decisão não pode ser interpretada como se a Corte Suprema tivesse proibido críticas ácidas a políticos. Como coloca Michael Kubiciel, Professor de Direito Penal na Universidade de Augsburg, o Tribunal Constitucional alemão tem inúmeros precedentes nos quais afirma que os agentes políticos são obrigados a suportar até mesmo críticas e manifestações difamantes, desde que feitas em conexão com sua atuação pública4. Afinal, como mostra a história, a democracia não vive sem liberdade de expressão e de crítica. E quando se trata de crítica ao poder, a liberdade de expressão dos cidadãos tem prioridade. Principalmente em momentos de autoritarismos e retrocessos civilizatórios. _____ 1 Beleidungen bei Facebook: Renate Künast siegt beim Bundesverfassungsgericht. LTO, 2/2/22. Agradeço aos colegas Leonardo Martins, Professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte e "Ambassador Scientist" da Alexander von Humboldt Foundation, e Alaor Leite, Docente-Assistente junto à cátedra de Direito Penal na Humboldt Universidade de Berlim, pela troca de ideias em relação ao caso em comento. 2 BVerfG 1 BvR 1.073/20, Rn. 33, p. 10. 3 No mesmo sentido: ZIMMERMANN, Felix W. BVerfG zu Facebook-Beleidigung: Nur ein Zwischenerfolg für Renate Künast. In: LTO, 2/2/22, p. 2. 4 Wie stoppt man den Hass auf Politiker? In: LTO, 19/6/19.
Com o início da vacinação de crianças e adolescentes contra a covid-19 acirrou-se a discursão entre os pais para saber se os filhos menores devem ou não ser imunizados contra o coronavírus (SARS-Cov-2). Infelizmente, por questões político-ideológicas, a vacinação contra a covid-19 virou polêmica no Brasil, onde, desde a famosa Revolta da Vacina em 1904, a população comparecia, sem resistências, regularmente aos postos de vacinação para se imunizar contra as mais variadas doenças. Na Europa, a discussão também é acessa, embora lá as razões da relutância à imunização sejam bem mais complexas. Acresça-se a isso o fato de inexistir, em geral, obrigatoriedade de vacina na maioria dos países europeus, nos quais, por uma série de fatores, há forte resistência na população contra tamanha intervenção estatal no corpo e na autodeterminação individual. Por isso, a discussão acerca da exigência de vacina contra a covid-19 tem dividido tantas opiniões. Os governos têm sido cautelosos com o problema e o legislador, tímido. Na Alemanha, o Parlamento (Bundestag) optou por exigir a vacinação apenas de determinado grupo de pessoas, os profissionais de saúde, que trabalham, sobretudo, com pessoas idosas e/ou do grupo de risco em hospitais, clínicas, consultórios e casas de abrigo1. A Áustria tomou decisão mais radical, tornando obrigatória a vacinação para a população adulta em geral. E, ao contrário daqui, onde - a despeito da obrigatoriedade da vacina - não há fiscalização, lá o Poder Público tem feito controle nas ruas e em transportes públicos, aplicando multas que variam de 600 a 3.600 euros. Nenhum dos dois países impôs, porém, uma imunização obrigatória para crianças e adolescentes (na Áustria, a exigência atinge pessoas maiores de dezoito anos). Dessa forma, a decisão de vacinar ou não a prole ainda cabe aos pais. Mesmo no Brasil, onde há em tese obrigatoriedade da vacina, discute-se se essa decisão não caberia exclusivamente aos genitores. O fato é que tanto aqui, como lá as discussões em torno da vacina contra a covid-19 têm ido parar no Judiciário. E a falta de diálogo sensato e consenso entre os genitores têm transferido, na prática, a decisão sobre a vacinação para o juiz. E a grande questão que se coloca é: afinal, quem decide se a criança deve ser vacinada ou não? Na Alemanha, um ex-casal levou a discussão a juízo, pois os dois não conseguiram chegar consensualmente a acordo sobre se os filhos de doze e quatorze anos deveriam ser imunizados contra o coronavírus. No início, eles decidiram amigavelmente delegar a decisão a terceiro, no caso, a pediatra das crianças, que se pronunciou favoravelmente à vacinação. A mãe, porém, contrária à vacinação, mudou de opinião e decidiu não acatar a sugestão da médica escolhida para mediar o conflito. O pai, então, pleiteou em juízo que o magistrado lhe atribuísse o poder de decidir sozinho acerca da imunização. O juiz da vara de Família da comarca de Bad Iburg, na região de Niedersachsen (Baixa Saxônia), acatou o pedido e transferiu ao genitor o poder de decidir sobre a imunização dos menores. Trata-se do processo Familiengericht Bad Iburg 5 F 458/21 EASO, julgado em 14/1/22. Segundo ele, a decisão de transferir o poder de decisão sobre vacinas baseia-se na jurisprudência da Corte infraconstitucional (Bundesgerichtshof), que entende que o poder de decisão deve, em princípio, ser transferido para o genitor que é favorável à vacinação da criança de acordo com as recomendações do Instituto Robert Koch, desde que do imunizante não decorram riscos especiais para a criança. A sentença impôs, portanto, duas condições: que a vacinação seja feita com um imunizante reconhecido e recomendado pelo Instituto Robert Koch, a agência do governo federal da Alemanha e instituto de pesquisa responsável pelo controle e prevenção de doenças, e que não haja graves riscos para os menores. O magistrado fundamentou sua decisão no § 1.628 do BGB, segundo o qual: "Se os pais não conseguem chegar a acordo sobre um determinado assunto individual ou sobre um determinado tipo de assunto relacionado com o poder parental, cujo acordo seja de considerável importância para a criança, o tribunal de família pode, a pedido de um dos pais, transferir a decisão para um dos genitores. A transferência pode estar sujeita a restrições ou condições"2. A norma autoriza o magistrado, em suma, a transferir, em caso de conflito, decisões importantes relacionadas aos filhos a apenas um dos genitores. Como o Robert Koch Institut tem recomendado a proteção imunológica com a vacina Comirnaty, fabricada pela Pfizer-BioNTech, que utiliza a biotecnologia mRNA - RNA mensageiro, o pai terá que optar por esse imunizante específico, a menos que outro seja aprovado e recomendado nesse ínterim. O juiz assinalou ainda que, em princípio, deve-se levar em consideração também a vontade da criança, nos termos do § 1.697a BGB. Entretanto, essa regra só vale quando o menor, considerando sua idade e desenvolvimento, consegue formar uma opinião autônoma sobre o objeto da disputa. No caso concreto, porém, os menores não tinham opinião própria sobre a vacina de covid-19, seus riscos e benefícios, pois estavam submetidos massivamente a medos e intimidações por parte da mãe, concluiu o julgador. Assim, deve prevalecer o bem-estar dos menores, afirmou a sentença. No Brasil, o STF decidiu, em dezembro de 2020, no ARE 1.267.879, com repercussão geral (tema 1103), que os pais não podem deixar de vacinar os filhos, independentemente de questões ideológicas, religiosas ou morais. A vacinação não pode ocorrer à força, mas pode ser condição para a prática de certos atos, como a matrícula na escola, a percepção de benefícios como o Bolsa Família, sendo possível inclusive a imposição de penalidades. Dessa forma, os pais devem ser obrigados a vacinar os filhos desde que o imunizante esteja registrado em órgão de vigilância sanitária, incluído no PNI - Programa Nacional de Imunizações, tenha sua aplicação determinada por lei ou seja objeto de determinação da União, Estado, DF ou município, com base em consenso médico-científico. Em tais casos, não se caracteriza violação à liberdade de consciência e de convicção filosófica dos pais ou responsáveis, nem tampouco ao poder familiar, diz a tese fixada em repercussão geral pelo STF em 17/12/20. Em janeiro passado, o ministro do STF, Ricardo Lewandowski, oficiou os procuradores-gerais de Justiça dos Estados e do DF para que adotem medidas para fiscalizar os pais que se recusam vacinar seus filhos contra a covid-19. O ofício ordena que o MP empreenda as "medidas necessárias" para a vacinação das crianças3. A medida causou polêmica, pois a vacina contra covid-19 ainda não integra o PIN do governo Federal e o Ministério da Saúde, ao anunciar a liberação do uso de imunizante para o público infanto-juvenil, teria afirmado que a vacinação não era obrigatória e só poderia ser aplicada com o consentimento dos pais4. Os críticos da medida argumentam que, como a vacina de covid não é obrigatória, não poderia ser alvo de fiscalização. Ademais, a admitir-se a medida, corre-se o risco de se instaurar um estado policialesco, no qual a população passa a vigiar e denunciar o outro. Outro ponto controverso diz respeito às sanções que podem recair sobre os pais que não vacinarem seus filhos. O Estatuto da Criança e do Adolescente prevê a aplicação de multa de três a vinte salários-mínimos para pais que descumprem deveres inerentes ao poder familiar. Mas outra medida possível é a perda da guarda ou do poder familiar, prevista no art. 129 do ECA, embora alguns argumentem que a falta de vacina não esteja listada em lei como causa determinante dessa drástica medida. No meio dessa discussão, a Secretaria de Educação de São Paulo baixou resolução em janeiro passado determinando a apresentação de comprovante de vacinação contra a covid-19 por estudantes da rede estadual, pública e privada. Caso os pais não apresentem o documento, as escolas são obrigadas a informar o conselho tutelar para que sejam adotadas as "medidas cabíveis". Porém, mesmo diante da falta de apresentação do documento ou do registro de algum imunizante, a matrícula, rematrícula ou frequência do estudante às aulas não poderá ser impedida, vez que o direito à educação tem status jusfundamental5. Disso tudo percebe-se quanta insegurança jurídica pode ser causada pela dissonância entre os poderes executivo e judiciário acerca de temas fundamentais para a sociedade. Independente de qualquer filiação político-ideológica, uma coisa é certa: o poder familiar não autoriza aos pais a - invocando convicções pessoais - colocar em risco a vida e a saúde de seus filhos. _____ 1 Alemanha aprova vacina obrigatória para setor da saúde. DW Brasil, 10/12/2021. 2 No original: "§ 1.628. Können sich die Eltern in einer einzelnen Angelegenheit oder in einer bestimmten Art von Angelegenheiten der elterlichen Sorge, deren Regelung für das Kind von erheblicher Bedeutung ist, nicht einigen, so kann das Familiengericht auf Antrag eines Elternteils die Entscheidung einem Elternteil übertragen. Die Übertragung kann mit Beschränkungen oder mit Auflagen verbunden werden." 3 Lewandowski manda MP fiscalizar pais que não vacinam filhos contra a Covid. Gazeta do Povo, 19/1/2022. 4 Juristas questionam fiscalizacao de pais sobre vacinação de crianças contra a Covid-19. Gazeta do Povo, 20/1/2022. 5 Exigência de comprovante de vacina em escolas de SP segue a linha de orientação do Ministério Público. O Globo, 29/1/2022.
A coluna German Report inicia o novo ano com o julgado mais esperado no Direito Privado durante a pandemia: a Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - proferiu decisão esclarecendo a grande dúvida que atormentou os civilistas desde o início da crise epidemiológica: mas, afinal, o fechamento das lojas configura vício na coisa locada, um caso de impossibilidade temporária ou alteração posterior das circunstâncias? Essa questão tem relevância teórica e prática, pois os pressupostos e consequências jurídicas das três figuras - vício redibitório, impossibilidade e quebra da base do negócio - são distintos, determinando, em última análise, o destino da lide. O caso A lide que foi parar no BGH, em Karlsruhe, é banal: as partes discutem acerca da redução de um único mês de aluguel do ano de 2020, quando o estabelecimento comercial ficou fechado por conta do primeiro lockdown na Alemanha. Segundo consta dos autos, as partes celebraram o contrato de locação de um prédio comercial com estacionamento em setembro de 2013. O objeto deveria ser utilizado exclusivamente como local de venda e depósito de produtos têxtis. Desde janeiro de 2019, o valor da locação - com encargos locatícios - era de 7.854,00 euros. O contrato continha, porém, uma peculiaridade: o § 5 n. 3 afastava expressamente qualquer direito do inquilino a indenização ou redução do aluguel em caso de interrompimento de gás, energia, água e escoamento d'água causado por circunstâncias não imputáveis ao locador, bem como por inundações e "outras catástrofes". Por conta da virulenta disseminação do coronavírus, o Estado de Sachsen (Saxônia) determinou, em 18/3/2020, o fechamento dos estabelecimentos comerciais não-essenciais e a suspensão dos eventos em toda a região, com base no § 28 I da Infektionsschutzgesetz, a lei alemã de proteção contra doenças infectocontagiosas. Consequentemente, o estabelecimento comercial do locatário ficou fechado pelo período de um mês, de 19 de março a 19 de abril de 2020. Em correspondência datada de 24/3/2020, o inquilino comunicou ao locador que não pagaria o aluguel do mês de abril e que iria abater do próximo pagamento a quantia desembolsada a mais no período de 19 a 31 de março. Os meses seguintes foram pagos normalmente. O processo judicial Após tentar, sem sucesso, resolver o caso amigavelmente, a proprietária do imóvel entrou com ação de cobrança contra a empresa locatária requerendo o pagamento do valor do aluguel (7.854,00 ?) mais juros e custos extrajudiciais de advogado. A ação foi julgada procedente em primeira instância pelo Landgericht de Chemnitz, em 26/8/2020, e o locatário condenado ao pagamento integral da renda. Mas o Oberlandesgericht (OLG) de Dresden reformou parcialmente a decisão, reduzindo o valor do aluguel em 50%. O Tribunal entendeu, em síntese, que as medidas do Poder Público de combate à pandemia de Covid-19 - dentre as quais o fechamento de lojas - gerou uma crise sistêmica e, consequentemente, uma perturbação na grande base do negócio, vez que tais medidas provocaram profundas alterações na vida social e econômica, o que justificaria a revisão do contrato. Como nenhuma das partes pode ser responsável pela quebra da base do negócio, o aluguel deve ser reduzido meio a meio, distribuindo-se, assim, os prejuízos da pandemia de forma equânime entre os contratantes. Segundo o OLG Dresden, não restara comprovado que o inquilino tenha recebido auxílio estatal nesse período, nem que tenha conseguido vender seus produtos por meio de entrega ou retirada, o que reforçaria a necessidade de diminuir o valor do aluguel. Trata-se do processo OLG Dresden 5 U 1782/20, julgado em 24/1/2021. O processo subiu a Karlsruhe, cidade sede dos tribunais superiores, por meio de Revision interpostas pelas partes, tendo o BGH dado provimento aos recursos, ordenando a suspensão da decisão atacada e a remessa dos autos à Corte de origem para novo julgamento. Trata-se do processo BGH XII ZR 8/21, julgado semana passada, dia 12/1/2022.  A decisão do Bundesgerichtshof O 12º Senado do Bundesgerichtshof entendeu, em suma, que faltara fundamentação adequada à decisão do OLG Dresden. Não cabe uma redução padronizada do aluguel em 50%, dividindo-se meio a meio os prejuízos da pandemia entre as partes ao mero argumento de que nenhum dos contratantes deu causa à quebra da base do negócio jurídico. É necessário uma análise detalhada de todas as circunstâncias do caso concreto para verificar a presença de todos os pressupostos da quebra da base do negócio, o que não fora feito pelo Tribunal a quo, razão pela qual os autos devem retornar à origem para reapreciação da matéria. O BGH, porém, fixou as linhas dogmáticas gerais da questão, afirmando, em apertada síntese, que o fechamento das lojas não configura vício redibitório, nem impossibilidade, mas sim quebra da grande base do negócio. E disse mais: a lei emergencial alemã não impede o recurso às regras gerais do BGB. a) A lei emergencial não impede o recurso às regras gerais do BGB Uma primeira questão posta no julgamento foi se a lei emergencial da pandemia não impediria o recurso às regras gerais do regime da perturbação da prestação do Código Civil alemão, principalmente do § 313 BGB no qual está positivado o instituto da perturbação na base do negócio. Da mesma forma, discutiu-se se a mesma afastaria a incidência das normas sobre vícios redibitórios no âmbito da locação, as quais fazem parte, na Alemanha, do sistema geral da perturbação da prestação, profundamente remodelado com a Reforma do Direito das Obrigações em 2001/2002. Recorde-se que a Alemanha editou várias leis emergenciais para tentar contornar ou minimizar os impactos da pandemia em diversas situações jurídicas. Uma delas acrescentou o Art. 240 § 2 à Lei de Introdução ao BGB - Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuch (EGBGB) - proibindo temporariamente a denúncia por falta de pagamento e o despejo de inquilinos. Com efeito, antevendo um atraso em massa no pagamento dos alugueis em função da perda ou redução da renda por pessoas físicas e jurídicas em decorrência da crise epidemiológica, a mencionada norma suspendeu temporariamente o direito do locador de denunciar a locação por falta de pagamento, desde que a mora tivesse como causa as medidas governamentais de combate à pandemia. Como comentado à época nesta coluna (clique aqui), a referida lei emergencial não decretou uma moratória geral nos contratos de locação, mas tão só suspendeu temporariamente a denúncia e o despejo dos inquilinos1. O Art. 240 § 2 EGBGB parte, portando, do pressuposto de que persiste, em princípio, o dever do inquilino de pagar a renda, ainda quando ao mesmo fosse facultado renegociar com o locador a forma de pagamento dos valores em atraso2. A lei, porém, nada dispôs sobre o valor do aluguel ou sobre quaisquer outros impactos das medidas de combate à pandemia sobre o dever de pagamento do aluguel (Mietzahlungspflicht), afirmou o BGH. Ou seja, ela não disse se o locatário - que está, sem culpa, em mora com o pagamento do aluguel em decorrência das medidas restritivas de combate à pandemia - deve ou não pagar o valor integral durante o período de interdição da atividade comercial. Não decorre da literalidade da norma, nem do seu escopo (proteger inquilinos e arrendatários contra a perda de seu ponto espacial de vida devido ao atraso não culposo no pagamento das rendas) e, menos ainda, da Exposição de Motivos (Gesetzesbegründung) que o legislador teria pretendido impedir o recurso à figura da quebra da base do negócio ou a qualquer outro instituto pertinente. Isso é importante ser frisado, porque algumas vozes sustentaram a impossibilidade de revisão dos valores do alugueis ao argumento de que o legislador emergencial teria regulado exaustivamente a questão e só permitido aos locatários em dificuldade negociar a forma do pagamento do atrasado, mas não pleitear a diminuição do valor da prestação. A Corte seguiu, porém, a doutrina flagrantemente majoritária que não atribui qualquer eficácia de bloqueio (Sperrwirkung) à lei emergencial, impeditiva do recurso à grande Codificação para disciplinar os multifacetados impactos da pandemia sobre os contratos de locação comercial e residencial. Aqui não se pode furtar em fazer um rápido paralelo com a nossa lei emergencial (lei 14.010/2020), que estabeleceu um regime jurídico emergencial de direito privado para o período pandêmico, estimado para acabar com data marcada: 30/10/2020, o que fez com que a lei caducasse, ironicamente, quando a Europa enfrentava a segunda onda de Covid-193. O problema da eficácia de bloqueio não se pôs e nem poderia se colocar no Brasil, porque a lei 14.010/2020 sequer proibiu temporariamente o despejo dos inquilinos por falta de pagamento em decorrência das medidas de isolamento social e paralisação (total ou parcial) das atividades não-essenciais, nada dispondo também sobre a possibilidade ou não de redução dos alugueis4, de modo que aqui, por maior razão, não faria qualquer sentido recorrer à linha argumentativa de aplicação exclusiva da lei emergencial. Ao contrário, por maior razão deve o magistrado recorrer - como o fez, de fato - ao Código Civil para revisar os contratos desequilibrados pela pandemia, o que mais se justifica diante da omissão da Lei 14.010/2020 em disciplinar os graves impactos do vírus sobre os contratos de locação e os contratos em geral.     Dessa forma, a confusa redação do art. 7º da lei 14.010/2020 - que não considera o aumento da inflação, a variação cambial, a desvalorização ou a substituição do (há décadas, estável) padrão monetário como fatos imprevisíveis para os fins dos arts. 317, 478, 479 e 480 do Código Civil - também não tem qualquer eficácia obstativa da aplicação das regras gerais do Código Civil. A uma, porque a intenção do legislador não foi impedir a revisão contratual, mas tão só coibir comportamentos oportunistas daqueles que, já em mora, alegam as dificuldades da pandemia para se esquivar de suas obrigações5. A duas, porque a norma, caso pretendesse regular o problema do desequilíbrio contratual superveniente, teria extrapolado sua competência ao - a priori e in abstrato, desconectado das peculiaridades do caso concreto - desqualificar os efeitos econômicos do maior evento extraordinário e imprevisível desde a 2ª Guerra Mundial: a pandemia de Covid-19, algo que não faz sequer o Código Civil. E, evidentemente, ao legislador emergencial não é dado dizer mais que a Codificação, esvaziando - sem razões de fundo convincentes - o suporte fático do art. 317 CC2002, que tem em vista justamente a variação do valor da prestação provocada por acontecimentos de efeitos extraordinários e imprevisíveis, como variação cambial, desvalorização monetária ou alta inflacionária anormais, aos moldes do ocorrido durante a 1ª Guerra Mundial na Europa, que deu ensejo na França à edição da Loi Faillot (1918) e, na Alemanha, à aplicação da teoria da quebra da base do negócio com base no princípio da boa-fé objetiva do § 242 BGB. Aceitar que o legislador emergencial, contrariando o Codex, pretendesse subtrair do contratante prejudicado toda e qualquer possibilidade de se defender judicialmente dos dramáticos efeitos socioeconômicos da maior crise de saúde pública do século, seria anular a autonomia privada material, pois ele jamais teria celebrado o contrato, ou jamais o teria celebrado naqueles termos, se tivesse antevisto a ocorrência da pandemia de Covid-19 e seus dramáticos efeitos colaterais. A norma padeceria, assim, do vício insanável da inconstitucionalidade. Não à toa ela permaneceu letra morta na prática judiciária tendo em vista a enxurrada de decisões judiciais, prolatadas de norte a sul do país, readaptando os contratos desequilibrados em decorrência da pandemia. b) Fechamento das lojas não configura vício, nem impossibilidade No que tange ao mérito do caso, o Bundesgerichtshof foi enfático ao afirmar que o fechamento da loja não configura impossibilidade, nem vício na coisa. Da mesma forma que no Brasil, mas por razões de fundo totalmente distintas, surgiu na Alemanha a dúvida sobre se o fechamento da loja poderia configurar vício na coisa, nos termos do § 536 I BGB, que - tal como o art. 567 CC2002 - autoriza o locatário a pleitear a redução do aluguel. Por aqui, essa ideia apresentou-se como alternativa teórica para justificar a redução do aluguel e, logo, a revisão contratual fora das específicas hipóteses dos arts. 317 e 478 CC2002, os quais têm sido interpretados restritivamente, por renomada doutrina, com o fim deliberado de dificultar a revisão judicial dos contratos desequilibrados pela pandemia. Com efeito, ao contrário do esperado, essa corrente não buscou, como de praxe, uma justificativa na "tábula axiológica" da Constituição para legitimar a adaptação dos contratos nos quais os devedores se viram - sem culpa - em extrema dificuldade de cumprir suas obrigações em decorrência direta e imediata do distanciamento social e da paralisação total ou parcial das atividades econômicas não-essenciais impostos pela pandemia6. Ao contrário: fechou as portas da revisão por onerosidade excessiva ao argumento de que o art. 478 CC2002 exige elevação excessiva no valor da prestação, ausente nos casos de locação e que a pandemia não teria afetado a relação contratual, mas tão só o sujeito da relação contratual, vale dizer, não teria atingido a economia do contrato, mas tão só a situação pessoal do devedor, colocando-o numa situação de dificuldade financeira, o que não autorizaria a revisão do pactuado. Na Alemanha, porém, o recurso à figura do vício na coisa deveu-se ao fato de que o conceito de vício do § 536 BGB é bem mais amplo que no Brasil, não se limitando a um defeito oculto na coisa que a torna imprópria ao uso a que se destina. De acordo com o § 536 BGB, o vício é um descompasso, i.e., uma desconformidade entre o estado real da coisa e o estado devido, segundo o contrato. Como vício da coisa locada considera-se não apenas o defeito (Mangel) que impede o uso, mas também a falta de qualidades asseguradas pelo locador (Fehlen einer zugesicherten Eigenschaft) e o vício jurídico (Rechtsmangel)7. Em situações excepcionais, doutrina e jurisprudência admitem que obstáculos e restrições ao uso da coisa, provenientes do Poder Público, que impeçam o uso do objeto locado conforme ao contrato, possam configurar vício na coisa. Para tanto, porém, é necessário que esses obstáculos e restrições baseiem-se em qualidades concretas da coisa e não em circunstâncias pessoais e/ou operacionais do locatário8. Com base nesse amplo conceito de vício, uma minoritária doutrina advogou que o fechamento da loja, determinado pelo Poder Público por causa da pandemia, configuraria vício da coisa, vez que a ordem de fechamento estaria vinculada diretamente ao objeto locado e à sua localização dentro da área de risco epidemiológico. E, em assim sendo, o locador poderia pedir um abatimento do valor do aluguel. Contudo, a opinião amplamente majoritária reconhece a necessidade de revisão do aluguel, mas sob outros fundamentos, opondo-se a essa corrente ao argumento de que o fechamento da loja não configura vício, vez que a proibição de funcionamento - embora constituindo obstáculo ao uso do imóvel locado - não tem causa na qualidade, no estado ou na localização do bem. De fato, para configurar vício na coisa, afirmou o BGH, a ordem estatal de fechamento teria que decorrer de problemas diretamente relacionados com as qualidades da coisa locada, seu estado ou localização e não com circunstâncias pessoais e/ou operacionais do locatário. E, nessa constelação de casos, a ordem de fechamento e/ou restrição de uso não se deveu a problemas substanciais ou espaciais no imóvel, mas a circunstâncias operacionais do inquilino. De fato, as restrições de uso durante a pandemia não tiveram por causa as qualidades concretas do imóvel, nem seu estado ou localização, mas simplesmente o tipo de atividade realizada e o tráfego de pessoas daí decorrente, que favorecia a propagação do vírus. A ordem de fechamento não tinha por destinatário a um locatário individual, mas dirigia-se indistintamente a todos os agentes econômicos ofertantes de serviços não-essenciais. A finalidade da medida não foi contornar um problema concreto no imóvel do locatário, mas tentar conter a propagação da pandemia provocada pelo vírus SARS-CoV-2, proteger a população e evitar o colapso do sistema de saúde. Como em lugares frequentados por várias pessoas há risco elevado de contágio, o fechamento de locais e estabelecimentos de atividades não-essenciais foi uma medida adequada e necessária para reduzir o contato humano e, consequentemente, o contaminação. Dessa forma, as medidas restritivas do Poder Público não afetaram a coisa em si, mas a utilização e a rentabilidade do bem. Ocorre que, na locação comercial, os riscos de uso do bem, principalmente o risco de obter ganho com a coisa, fazem parte, em princípio, da esfera jurídica do locatário, o que impede que se alcance a redução do aluguel com recurso à figura dos vícios redibitórios. Assim, se as expectativas de rendimento do inquilino não se concretizam devido a circunstâncias posteriores adversas, tem-se, em princípio, a materialização de um risco típico da locação comercial na esfera jurídica do locatário. Isso vale ainda quando a rentabilidade do negócio seja frustrada por medidas supervenientes de natureza legal ou administrativa, afirmou o Tribunal de Karlsruhe. Isso significa dizer que o locador de espaços comerciais não assume o risco pelo uso da coisa, o qual inclui o risco de auferir proveito econômico com o imóvel locado. Pelo § 535, inc. 1, 2º período do BGB, o locador obriga-se apenas a manter o bem em estado adequado ao uso durante todo o período do contrato. Mas, como visto, o estado do bem não fora comprometido pelas medidas governamentais de combate à pandemia. Nas palavras da Corte: "Se, durante o desenrolar da relação locatícia, surgem, devido a medidas legislativas, restrições à utilização, conforme ao contrato, do objeto comercial locado, isso também pode constituir um vício na acepção do § 536, inc. 1, 1º período do BGB. Pressuposto para tanto é, porém, que a restrição de uso, decorrente da medida legislativa, esteja diretamente relacionada com a qualidade concreta, o estado ou a localização do objeto alugado. Outras medidas legislativas que afetam o êxito comercial recaem, ao contrário, na esfera de risco do locatário, pois o locador de estabelecimentos comerciais só é obrigado, nos termos do § 535, inc. 1, 2º período do BGB, a manter o imóvel alugado, durante a vigência do contrato, em um estado que permita ao inquilino utilizá-lo como previsto no contrato. No caso de locação de espaços comerciais, porém, o locador suporta o risco de utilização da coisa locada. Isso inclui, acima de tudo, o risco de poder obter lucro com o bem alugado. Se a expectativa de lucro do locatário não for satisfeita devido à ocorrência de uma posterior circunstância, realiza-se um risco típico do locatário comercial. Isto também se aplica aos casos em que o negócio do inquilino é prejudicado por medidas legislativas ou administrativas supervenientes."9 E conclui o Tribunal, afirmando que: "Nessa base jurídica, o fechamento da loja do réu, realizado com base nas disposições gerais do Ministério de Coesão Social do Estado da Saxônia de 18 e 20 de março de 2020, não conduz a um vício na coisa locada, nos termos do § 536, inc. 1, 1º período do BGB, porque a restrição de uso, associada à ordem de fechamento, não se baseia na qualidade concreta, no estado ou na localização do bem alugado, mas liga-se às operações comerciais do réu enquanto inquilino."10 O fato da ordem estatal de fechamento impedir ou restringir o acesso de potenciais clientes ao espaço locado é insuficiente para configurar um defeito na coisa. É bem verdade, ponderou o BGH, que o acesso ilimitado ao espaço locado é pressuposto para o uso do bem conforme ao contrato, principalmente em estabelecimentos comerciais destinados ao público em geral. Porém, para evitar que o conceito de vício perca seus contornos, a restrição ao acesso só deve ser considerada vício da coisa quando decorrer diretamente de problemas de qualidade, estado ou localização do bem. É o caso, disse a Corte, de obras realizadas pelo Poder Público no entorno do objeto que dificultam ou impeçam o acesso ao bem - o que, atente-se, não configuraria vício no direito brasileiro devido à estreiteza do conceito nuclear do art. 441 CC2002. Mas, no caso em comento, a localização do imóvel é irrelevante para a configuração do vício, pois a proibição de funcionamento e a restrição de uso valem indistintamente em toda a área territorial da Saxônia, afirmou a Corte. O BGH salientou ainda que o defeito da coisa não resulta também do escopo do contrato, ou seja, do fato do contrato ter por fim o uso do espaço como local de venda e armazenamento de produtos têxteis. Aqui, o Tribunal recordou que a extensão dos deveres assumidos pelo devedor - nesse caso: os deveres de prestação a cargo do locador - deve ser apurada com base na interpretação objetiva segundo a boa-fé, tendo em vista o horizonte do receptor da declaração, nos termos dos §§ 133 e 157 BGB. Sob essa perspectiva, concluiu o BGH, um locatário probo e honesto não pode interpretar a obrigação assumida por seu locador como se ele quisesse garantir o uso da coisa em todas e quaisquer circunstâncias imagináveis, sob pena de tornar ilimitada a responsabilidade do locador11. Por isso, não é razoável admitir que a locadora, autora da ação, quis assumir o dever de garantir a utilização do bem e, consequentemente, de responder ilimitadamente por quaisquer restrições de uso, inclusive as decorrentes da pandemia de Covid-19. Em outras palavras: o locador não responde pela ordem de fechamento condicionada pela pandemia. Por fim, o BGH também descartou o argumento que pretendia justificar a aplicação do regime dos vícios redibitórios à atual constelação de casos (fechamento das lojas por causa da pandemia) com base em antigas decisões do Tribunal do Império (Reichsgericht) que, durante a 1ª. Guerra Mundial, considerara vício na coisa a interdição pelo Poder Público de danças em restaurantes e congêneres, destinados a tal fim12.  Naquela época, disse a Corte de Karlsruhe, o conceito de vício era totalmente diferente do atual, remodelado com a Reforma do Direito das Obrigações em 2001/2002, e, além disso, a teoria da quebra da base do negócio ainda estava em gestação, só sendo desenvolvida posteriormente, razão pela qual provavelmente o Reichsgericht dela não lançou mão. Em suma, o fechamento das lojas, condicionado pela pandemia, não configura vício na coisa, pois não atinge o bem em si, mas apenas seu uso e rentabilidade, riscos que fazem parte da esfera jurídica do locatário de espaços comerciais. Logo, o locatário não faz jus à redução do aluguel alegando vício na coisa. Da mesma forma, ele não se livra do dever de pagar a renda por estar o locador impossibilitado - total ou parcialmente - de cumprir a obrigação de conservar o bem em estado adequado ao uso. O dever de garantir o uso do bem, de acordo com o fim do contrato, não se tornou impossível para o locador. Ao contrário, disse o BGH: este cumpriu sua obrigação mesmo durante o período de fechamento da loja, até porque ele não assumira o dever de responder pela interdição no funcionamento decretada pelo Poder Público em decorrência da pandemia de Covid-19. Com isso, a Corte afastou o recurso aos institutos do vício redibitório e da impossibilidade, disciplinada no § 275 I BGB c/c § 326 I BGB, linha argumentativa também ouvida por aqui a fim de justificar a redução do valor do aluguel de espaços comerciais durante a pandemia. b) Fechamento das lojas configura quebra da grande base do negócio Na verdade, o BGH confirmou o que sólida doutrina já vinha afirmando desde o início da crise de saúde pública: o fechamento das lojas por determinação do Poder Público para contenção da pandemia configura quebra da base do negócio, podendo justificar a revisão contratual desde que preenchidos os demais pressupostos para a aplicação da teoria, positivada no § 313 BGB. Segundo o § 313 I BGB, quando as circunstâncias presentes no momento da conclusão do negócio, que formaram a base do negócio, sofrem profundas alterações em decorrência de eventos supervenientes, não antevistos pelas partes, de modo que se possa concluir - à partir da análise das circunstâncias do caso concreto - que as partes não teriam concluído o contrato, ou o teriam feito sob outras condições, pode o contratante prejudicado pedir a adaptação do negócio quando demonstrar, adicionalmente, que a manutenção das condições inicialmente pactuadas tornou-se insustentável, ou seja, que a manutenção inalterada do contrato tornou-se irrazoável. O § 313 II BGB vem complementar a norma afirmando que também ocorre uma quebra na base do negócio quando as representações das partes mostrarem-se posteriormente equivocadas. O inc. 2 do § 313 BGB consagra a chamada base subjetiva do negócio, que são as representações comuns às partes - ou à uma delas, mas não contestadas pela outra - acerca da existência ou da ocorrência futura de certas circunstâncias, as quais embasaram a decisão de contratar do(s) contratante(s). Ambas as situações - quebra da base objetiva ou da base subjetiva do negócio - conduzem ao mesmo resultado, permitindo a revisão contratual ou a extinção do negócio, quando não for possível a adaptação, nos termos do § 313 III BGB. Ora, é evidente que a pandemia de Covid-19 exigiu uma massiva intervenção do Estado na vida social e econômica para conter a vertiginosa propagação do vírus, não só na Alemanha, mas em outras partes do globo. Essas gravosas medidas governamentais de combate à pandemia - dentre as quais o distanciamento social, o fechamento de estabelecimentos comerciais e as restrições de funcionamento - provocaram uma crise sistêmica e, consequentemente, uma perturbação na grande base do negócio, pois alteraram profundamente a vida social e econômica, disse o BGH. Não apenas a base objetiva foi profundamente abalada, mas também a base subjetiva, pois, no caso sub judice, é evidente que as partes, ao celebrar o contrato em 2013, não imaginaram que ocorreria uma pandemia mundial que demandaria massivas intervenções do Poder Público na vida econômica e social, e, principalmente, gravosas interferências no funcionamento das atividades da empresa locatária, restringindo consideravelmente a utilização do espaço locado. Se tivessem previsto, certamente teriam disciplinado a questão ou estabelecido regras de adaptação do contrato, disse a Corte.  Dessa forma, sob qualquer ângulo que se olhe a questão, o resultado é o mesmo: as massivas restrições impostas à vida social e econômica afetaram tanto a base subjetiva, quanto a base objetiva do negócio. A rigor, considerando a dimensão e os efeitos das medidas restritivas, que geraram uma crise sistêmica mundial de severos efeitos (sobretudo macroeconômicos), houve a quebra da chamada grande base do negócio. A grande base do negócio, explica o Tribunal, são as expectativas das partes de que as condições-quadro gerais de natureza política, econômica e sociais não sejam perturbadas por eventos anormais e extraordinários, como guerras, revoluções, hiperinflação ou catástrofes naturais. Essas condições-quadro, presentes no momento da celebração, foram inquestionavelmente abaladas com as medidas estatais interventivas para a contenção da pandemia. Não por acaso o legislador emergencial alemão, a fim de espancar quaisquer dúvidas porventura ainda existentes, interveio no apagar das luzes de 2020 acrescentando o § 7 ao Art. 240 da Lei de Introdução ao BGB (EGBGB), no qual estabeleceu expressamente a presunção de que o fechamento dos estabelecimentos comerciais configurava evento (circunstância) extraordinário que provocou profundas alterações na base dos contratos de locação comercial e arrendamento13. A norma presume, contudo, apenas a presença do elemento factual (real)14 do instituto, qual seja, a ocorrência de profundas alterações supervenientes nas circunstâncias iniciais do negócio, i.e., a quebra da base do negócio. Para a revisão contratual, porém, faz-se necessário ainda o preenchimento dos demais elementos do tatbestand do § 313 BGB. Assim, é imprescindível ainda que o cumprimento do contrato, tal como originalmente pactuado, tenha se tornado irrazoável para a parte afetada (elemento normativo) e que se possa concluir - à partir da análise de todas as circunstâncias do caso concreto, dentre as quais a repartição legal ou negocial dos riscos - que os contratantes, se tivessem antevisto a alteração nas circunstâncias, teriam celebrado o contrato com outros termos ou quiçá desistido do negócio (elemento hipotético)15. O BGH frisou que, em princípio, descabe revisão contratual diante de circunstâncias e/ou expectativas que, por força do pactuado, fazem parte da esfera de risco da parte, pois a repartição - e assunção - negocial dos riscos exclui, em regra, por óbvio, a possibilidade do contratante alegar perturbação na base do negócio diante da materialização do risco. Nada obstante e a despeito do § 5 n. 3 do contrato de locação afastar o direito à indenização ou à redução do aluguel no caso do estabelecimento ficar interditado por causa de "catástrofes" em geral, a Corte entendeu que o locatário não assumiu sozinho os riscos de uso da coisa na hipótese da paralisação do estabelecimento ser provocada pela pandemia de Covid-19. Segundo o Tribunal, as disposições contratuais acerca da distribuição dos riscos devem ser interpretadas restritivamente, especialmente quando alteram a repartição legal dos riscos. Dessa forma, pela literalidade do texto, a cláusula contém apenas a renúncia a pretensões decorrentes de vícios redibitórios na coisa, mas a pandemia e seus efeitos não caracterizam vício, como demonstrado. Assim, não se pode concluir, à partir da interpretação da cláusula contratual do § 5 n. 3, que o locatário - além de renunciar às suas pretensões redibitórias - fez uma renúncia geral também para o caso da interdição decorrer de uma pandemia de extensão global, assumindo sozinho todos os riscos daí decorrentes, dentre os quais o de não poder usar regularmente a coisa locada durante determinado período. Tendo em vista que nenhuma das partes - no momento da celebração do contrato em 2013 - previu que o estabelecimento poderia ficar fechado durante certo tempo em decorrência de medidas governamentais de combate à pandemia, pode-se razoavelmente supor que elas teriam celebrado o contrato com outro conteúdo se tivessem antevisto os efeitos gravosos decorrentes dessas medidas. E mais: é de se admitir que contratantes leais e honestos não teriam jogado todos os riscos econômicos, conexos à pandemia, exclusivamente nos ombros do locatário, mas teriam, ao contrário, previsto a possibilidade de adaptação do aluguel. Dessa forma, o BGH interpretou restritivamente a distribuição contratual dos riscos, dela excluindo os riscos concretos decorrentes da pandemia. Presente, assim, o elemento hipotético (celebração do contrato sob outras condições), falta averiguar ainda a ocorrência do elemento normativo, ou seja, se a manutenção do pactuado - mais precisamente: do valor do aluguel - tornou-se insuportável para o locatário, pois não cabe revisão contratual quando a manutenção da prestação, ponderadas todas as circunstâncias, ainda for razoavelmente exigível do devedor. Inicialmente, a Corte relembrou que é o locatário quem suporta, em regra, o risco da utilização da coisa e isso inclui o risco de auferir ganho do imóvel. Assim, quando as expectativas de rentabilidade do inquilino não se concretizam por eventos supervenientes, materializa-se um risco típico do locatário de espaços comerciais. Porém, quando essas expectativas de rentabilidade são frustradas por medidas de império (ex: fechamento do estabelecimento por certo tempo) do Estado para combater uma pandemia, isso não mais se deixa acobertar pelos "riscos normais" da locação comercial. As dificuldades e prejuízos financeiros não decorreram de decisões empresariais ou de representações frustradas do locatário de poder usar o espaço para auferir retorno financeiro. Suas dificuldades e prejuízos financeiros decorreram, na verdade, das amplas intervenções estatais na vida econômica e social para combater a pandemia, vale dizer, resultaram de um fator externo, alheio à sua influência, pelo qual nenhum dos contratantes pode ser responsabilizado. "Com a pandemia de Covid-19", disse o BGH, "materializou-se, em última análise, um risco geral de vida, que não é abarcado pela repartição contratual do risco sem uma correspondente regra contratual. Essa crise sistêmica, com todas as suas consequências de largo alcance, conduziu, ao contrário, a uma perturbação da grande base do negócio."16 E o risco daí decorrente não pode, em princípio, ser imputado somente a um dos contratantes, concluiu o Tribunal.  A Corte, contudo, determinou o retorno dos autos ao Tribunal a quo, porque o reequilíbrio do contrato não pode ser feito através de uma fórmula padronizada, dividindo-se equitativamente os prejuízos entre as partes, como fez o OLG Dresden ao determinar a redução de 50% do aluguel sem analisar detidamente as circunstâncias do caso concreto. Frise-se: não há uma fórmula matemática pronta e acabada para a adaptação e reequilíbrio dos pactos. Isso requer, ao contrário, uma ampla ponderação de todas as circunstâncias e variantes do caso individual. Assim, há de se verificar, inicialmente, quais as desvantagens efetivamente sofridas pela parte prejudicada: no caso sub judice, qual a redução amargada no faturamento. Em seguida, há que se considerar as medidas empreendidas - ou que poderiam ter sido adotadas - pelo locatário para minimizar a perda durante o período de fechamento do estabelecimento: vendas online, vendas com serviço de entrega ou retirada, etc. Deve-se analisar também os benefícios financeiros eventualmente obtidos, a exemplo de auxílios financeiros concedidos pelo Estado e, por fim, há que se ter em conta na ponderação também os interesses do locador. Não há, portanto, uma fórmula matemática pronta (fifty-fifty) para reequilibrar a relação contratual afetada por eventos supervenientes de gravosas consequências. Em regra, cabe à parte prejudicada alegar e provar os requisitos da perturbação na base do negócio, principalmente que a manutenção inalterada do pactuado tornou-se insuportável. Nessa constelação de casos, isso significa que o inquilino deve alegar e provar as desvantagens com o fechamento do estabelecimento, os esforços razoáveis que empreendeu para compensar as perdas, inclusive que ele se esforçou para receber ajuda estatal, disse a Corte. Se o locador alegar que as perdas do locatário não decorrem da pandemia, cabe-lhe, evidentemente, o onus probandi quanto a esse ponto. Tudo isso mostra o equívoco em se promover a revisão contratual com base em alegações genéricas de que a pandemia a todos prejudicou, sem uma análise das individualidades do caso, como tem-se visto em algumas decisões judiciais no Brasil.  Reflexões para o direito brasileiro A decisão da Corte alemã tem importância crucial para o direito brasileiro - a rigor para todos os países pertencentes ao círculo jurídico romano-germânico. E a razão é simples: independente do texto legal, as questões de fundo nela discutidas dizem respeito à dogmática do direito obrigacional. Ela mostra a necessidade de se delimitar com clareza os institutos jurídicos, o que só contribui para sua aplicação prática e para o refinamento teórico-dogmático da ciência do direito. Nesse ponto, o julgado separa, com precisão cirúrgica, as situações jurídicas de vício na coisa, impossibilidade e alteração superveniente nas circunstâncias, enevoadas pela complexidade dos problemas postos pela pandemia. Sem dúvida, nem sempre é fácil encontrar as claras fronteiras entre as multifacetadas situações de perturbação da relação obrigacional, como bem o demonstram as discussões em torno dos contratos de locação comercial e arrendamento durante a pandemia. A decisão do BGH serve para mostrar que o fechamento dos estabelecimentos comerciais por determinação do Poder Público com o escopo de combate à pandemia de Covid-19 não configura vício na coisa locada, nos termos do art. 567 CC2002, nem hipótese de impossibilidade do locador em garantir o uso do imóvel. Isso não é uma questão de lei, mas de delimitação dogmática dos institutos em colisão. O fechamento dos estabelecimentos configura uma alteração posterior nas circunstâncias iniciais do negócio, que os alemães apropriadamente chamam de base, fundamento do negócio, pois também sobre ela se ergue e se baseia a decisão de contratar. Se o ordenamento jurídico vai permitir ou não a readaptação do contrato nessas situações, é uma questão que varia conforme o sistema jurídico de cada país. Com respeito às opiniões divergentes, parece equivocado pensar que o Código Civil não oferece solução para o desequilíbrio contratual provocado pela pandemia. A Codificação, se não dispõe de uma solução pronta e acabada, fornece um instrumental mínimo para a construção de soluções para esse intrincado problema, que tem se apresentado em todos os sistemas jurídicos. Evidentemente, o Código Civil não pode permanecer indiferente à gravosa crise sistêmica, de dimensão mundial, provocada pela pandemia de Covid-19, que comprometeu a situação socioeconômica de inúmeras pessoas físicas e jurídicas. Como deixou claro o Tribunal alemão, não está em causa um problema financeiro exclusivo de um devedor individual que, por inabilidade ou azar do destino, caiu em ruina financeira e está sem condições de cumprir suas obrigações. O problema é mais complexo, estando em causa uma dificuldade excessiva que atinge um número expressivo de pessoas naturais e empresas dos mais variados portes - excepcionados, evidentemente, aqueles que ficaram imunes à crise ou até lucraram com ela. A excessiva dificuldade de prestar que se está a tratar decorreu, ao contrário, das amplas intervenções estatais na vida econômica e social para combater a pandemia, ou seja, resultou de um fator externo, alheio à influência das partes, pelo qual não pode o devedor - nem o credor, por certo - ser responsabilizado. É imperioso, portanto, distinguir, de um lado, a dificuldade financeira subjetiva e, de outro, a excessiva dificuldade de prestar provocada pela pandemia, pois, como atentamente percebeu o BGH, com a pandemia de Covid-19 materializou-se um risco geral não abarcado pela repartição legal - e, até então, pela repartição negocial - dos riscos. Todo ordenamento jurídico precisa dispor de mecanismos de readaptação dos contratos, válvulas de escape à rigidez da força vinculante do contrato, sob pena de comprometer, em última análise, a autonomia privada material, vez que o contrato desequilibrado não encontra mais fundamento na autodeterminação negocial, pois não corresponde ao contrato celebrado e almejado pelas partes. O Código Civil, conquanto não possua um sistema harmônico e coerente de revisão contratual por alterações supervenientes das circunstâncias, não deixa o devedor desamparado quando sua situação não se enquadra nos específicos suportes fáticos dos arts. 317 e 479. A uma, porque o legislador deixou consignada a intenção de construir um sistema revisional amplo, cônscio que era das limitações das hipóteses previstas. A duas, porque a Codificação possui duas cláusulas gerais da boa-fé aptas a fundamentar a recepção e aplicação da teoria da base do negócio: os arts. 422 e 113 CC2002. Afinal, o problema da modificação superveniente das circunstâncias se põe durante a fase de execução do contrato (art. 422 CC2002), desafiando, em última análise, uma interpretação do negócio para restaurar adequadamente o equilíbrio inicialmente pactuado (art. 113 CC2002). A boa-fé objetiva exige que o contrato desequilibrado por evento extraordinário, imprevisto pelas partes no momento da celebração e da alocação dos riscos, seja reequilibrado a fim de tornar o cumprimento suportável para a parte prejudicada, restaurando-se o equilíbrio, o sentido e o escopo do negócio. Não por outra razão Karl Larenz já dizia que a reanálise do contrato (por via da revisão ou extinção) é um imperativo da boa-fé17. Entre nós, Agostinho Alvim, nos trabalhos preparatórios ao Anteprojeto do Código, registrou o mesmo entendimento quando, tratando da revisão contratual, afirmou que "não pode haver boa-fé nos contratos se uma das partes escraviza a outra parte, ou se há lucro desmesurado e prejuízo fatal para a outra parte"18. Disso se percebe que o legislador nacional não apenas deixou claro que a revisão contratual é, em última análise, um imperativo da boa-fé, como buscou inspiração no direito alemão para disciplinar - embora sem grande êxito - o fenômeno da alteração posterior das circunstâncias. Por isso, muitos autores defendem até que a boa-fé imporia ao credor um dever de renegociar o contrato desajustado, pois, de fato, nada pode ser mais desleal que o credor exigir o cumprimento de um contrato desequilibrado por eventos de consequências extraordinárias, não antevistas na celebração e não imputáveis à esfera de risco, de responsabilidade e de influência do devedor. Se a boa-fé impõe um dever de renegociar, é porque exige, como antecedente lógico e necessário, a revisão do contrato desequilibrado. Logo, não se pode - sem incorrer em grave incoerência lógica e valorativa - defender ex bonna fides a existência do dever de renegociar e recusar a aplicação da teoria da base do negócio, no seio da qual historicamente surgiu o dever de renegociação19. Aliás, o julgado alemão silenciou eloquentemente quanto à controvertida existência do dever de renegociar ex bonna fides, não mencionado - sequer en passant - por ocasião da análise da (im)previsibilidade do evento e da possibilidade das partes terem pactuado uma clausula de hardship acaso tivessem antevisto eventos dramáticos como a pandemia, deixando dúvidas sobre se o BGH vai confirmar ou abandonar antigos precedentes admitindo um dever de renegociar por força da boa-fé (Treu und Glauben). Conclui-se, do exposto, que a aplicação da teoria da base do negócio é uma decorrência lógica e axiológica da boa-fé (art. 422 c/c art. 113 CC2002) e, portanto, uma solução extraída do próprio sistema jurídico. Sua aplicação no direito brasileiro justifica-se ainda mais quando se constata que o Código Civil só disciplina duas hipóteses de modificação posterior das circunstâncias - quebra da equivalência das prestações (art. 317 CC2002) e onerosidade excessiva do custo da prestação (art. 478 CC2002) - deixando de fora outras situações de excessiva dificuldade de prestar e de frustração do fim do contrato, não subsumíveis nos estreitos limites dos arts. 317 e 478 CC2002, mas solucionáveis por meio da teoria da base do negócio. __________ 1 Para um panorama completo sobre as principais medidas legislativas adotadas na Alemanha desde o início da pandemia de Covid-19, bem como sobre importantes decisões judiciais a respeito da temática, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Jurisprudência comentada dos tribunais alemães. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 211-314. 2 Sobre as regras emergenciais referentes ao direito de locação, confira-se: NUNES FRITZ, Karina. Lei alemã para amenização dos efeitos do coronavírus altera temporariamente o direito de locação. In: Jurisprudência comentada dos tribunais alemães, p. 221-226. 3 Sobre o descompasso da lei emergencial brasileira com os modelos legislativos adotados na Alemanha e em outros países europeus, veja-se: NUNES FRITZ, Karina. Lei 14.010/2020 caduca quando a Europa enfrenta a segunda onda de Covid-19. In: Jurisprudência comentada dos tribunais alemães, p. 277-282 e O PL 1.179/2020 e a revisão dos contratos - análise comparada com o direito europeu. In: Direitos em tempos de crise - Covid-19. v. 5. Alexandre Carneiro da Cunha Filho et al (coord.). São Paulo: Quartier Latin, 2020, p. 137-150. 4 Atente-se que o art. 9º, inicialmente vetado pelo Presidente da República em 10/6/2020, apenas proibia - até 30/10/2020 - a concessão de medida liminar para desocupação de imóvel urbano em ações de despejo fundadas nas estritas hipóteses do art. 59, § 1º, incisos I, II, V, VII, VIII e IX da lei 8.245/1991. A norma não teve grande repercussão, porque o Poder Judiciário, percebendo o grave risco de contágio inerente às situações de despejo, deixara já no início da pandemia de ordenar despejos judiciais de toda ordem a fim de não pôr em risco a vida e a saúde de inquilinos e agentes públicos. 5 Relatório da Senadora Simone Tebet ao PL 1.179/2020, p. 14, o qual deu origem à lei 14.010/2020. 6 Interessante notar que embora na Alemanha a corrente flagrantemente majoritária posicione-se à favor da eficácia indireta dos direitos fundamentais sobre o direito privado, o que lhe rende muitas críticas da doutrina brasileira, autores com Jörg Neuner entendem que, mesmo que a lei emergencial não tivesse proibido o despejo e a denúncia da locação por falta de pagamento durante a pandemia e inexistisse o § 313 BGB (quebra da base do negócio), o judiciário alemão chegaria ao mesmo resultado por meio de uma interpretação conforme a Constituição. Como já frisou diversas vezes o Tribunal Constitucional alemão, o direito à moradia é direito fundamental e a casa é o centro da existência privada, dela dependendo o indivíduo para a satisfação de suas necessidades vitais mais elementares, bem como para a garantia da liberdade e do desenvolvimento da personalidade. Entrevista: Prof. Dr. Jörg Neuner. German Report, 1/9/2020. 7 EBERT, Ina. In: Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. Reiner Schulze (coord.). Baden-Baden: Nomos, 2014, § 536, Rn. 1, p. 796. 8 BGH XII ZR 8/21, Rn. 30, p. 14. 9 Tadução livre: "Ergeben sich aufgrund von gesetzgeberischen Maßnahmen erst während eines laufenden Mietverhältnisses Beeinträchtigungen des vertragsmäßigen Gebrauchs eines gewerblichen Mietobjekts, kann auch dies einen Mangel i.S.v. § 536 Abs. 1 Satz 1 BGB begründen. Voraussetzung hierfür ist jedoch, dass die durch die gesetzgeberische Maßnahme bewirkte Gebrauchsbeschränkung unmittelbar mit der konkreten Beschaffenheit, dem Zustand oder der Lage des Mietobjekts in Zusammenhang steht. Andere gesetzgeberische Maßnahmen, die den geschäftlichen Erfolg beeinträchtigen, fallen dagegen in den Risikobereich des Mieters. Denn der Vermieter von Gewerberäumen ist gemäß § 535 Abs. 1 Satz 2 BGB lediglich verpflichtet, den Mietgegenstand während der Vertragslaufzeit in einem Zustand zu erhalten, der dem Mieter die vertraglich vorgesehene Nutzung ermöglicht. Das Verwendungsrisiko bezüglich der Mietsache trägt bei der Gewerberaummiete dagegen grundsätzlich der Mieter. Dazu gehört vor allem das Risiko, mit dem Mietobjekt Gewinne erzielen zu können. Erfüllt sich die Gewinnerwartung des Mieters aufgrund eines nachträglich eintretenden Umstandes nicht, so verwirklicht sich damit ein typisches Risiko des gewerblichen Mieters. Das gilt auch in Fällen, in denen es durch nachträgliche gesetzgeberische oder behördliche Maßnahmen zu einer Beeinträchtigung des Gewerbebetriebs des Mieters kommt.". BGH XII ZR 8/21, Rn 31, p. 14s. 10 No original: "Auf dieser rechtlichen Grundlage führt die auf den Allgemeinverfügungen des Sächsischen Staatsministeriums für Soziales und Gesellschaftlichen Zusammenhalt vom 18. und 20. März 2020 beruhende Schließung des Einzelhandelsgeschäfts der Beklagten nicht zu einem Mangel der Mietsache i.S.v. § 536 Abs. 1 Satz 1 BGB, weil die mit der Schließungsanordnung zusammenhängende Gebrauchsbeschränkung nicht auf der konkreten Beschaffenheit, dem Zustand oder der Lage der Mietsache beruht, sondern an den Geschäftsbetrieb der Beklagten als Mieterin anknüpft.". BGH XII ZR 8/21, Rn 32, p. 15. 11 No mesmo sentido: HÄUBLEIN, Martin e MÜLLER, Maximilian. Wer trägt das Pandemierisiko in der Geschäftsraummiete? NZM 2020, p. 484. 12 A guisa de exemplo, confira-se RG Az. Rep. VIII 145/15, julgado em 9/11/1915. In: RGZ 87, p. 277. 13 "§ 7 Störung der Geschäftsgrundlage von Miet- und Pachtverträgen (1) Sind vermietete Grundstücke oder vermietete Räume, die keine Wohnräume sind, infolge staatlicher Maßnahmen zur Bekämpfung der COVID-19-Pandemie für den Betrieb des Mieters nicht oder nur mit erheblicher Einschränkung verwendbar, so wird vermutet, dass sich insofern ein Umstand im Sinne des § 313 Absatz 1 des Bürgerlichen Gesetzbuchs, der zur Grundlage des Mietvertrags geworden ist, nach Vertragsschluss schwerwiegend verändert hat. (2) Absatz 1 ist auf Pachtverträge entsprechend anzuwenden." Tradução livre do original do § 7 do Art. 240 EGBGB, aprovado em 17/12/2020 pelo Bundestag: "§ 7 Perturbação da base do negócio de contratos de locação e arrendamento (1) Se imóveis ou espaços alugados, que não são imóveis residenciais, em decorrência das medidas estatais de combate à pandemia de Covid-19, não forem utilizáveis para exploração pelo locatário, ou só o forem com consideráveis restrições, presume-se ter-se alterado profundamente, após a conclusão do contrato, uma circunstância, nos termos do § 313 inc. 1 do Código Civil, que se tornou base do contrato de locação. (2) O inciso 1 deve ser aplicado, no que couber, aos contratos de arrendamento.". Sobre o tema, clique aqui. 14 Confira-se, nesse sentido, as entrevistas com os professores Nils Jansen e Jörg Neuner, publicadas na coluna German Report, respectivamente, em 19/5/2020 e 1/9/2020. 15 Para uma visão geral acerca da teoria alemã da base do negócio e sua aplicabilidade no Código Civil brasileiro, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Alteração posterior das circunstâncias: a caminho da quebra da base do negócio. In: Inexecução das obrigações. v. 2. Aline Terra e Gisela Sampaio Guedes (coord.). Rio de Janeiro: Processo, 2021, p. 491-536. Confira-se ainda: AGUIAR JÚNIOR, Ruy Rosado. Extinção dos contratos por incumprimento do devedor. Rio de Janeiro: Aide, 1991, p. 160ss.; COUTO E SILVA, Clóvis. A teoria da base do negócio jurídico no direito brasileiro. RT 655, 1990; FERREIRA, Viviane. Impactos da pandemia na revisão contratual. Valor Econômico, 20/4/2020; NERY JÚNIOR, Nelson e Nery, Rosa. Manual de direito civil - obrigações. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2013, p. 169ss; NERY JÚNIOR, Nelson. Base objetiva do negócio jurídico e interpretação do acordo judicial. In: Soluções práticas de direito, v. 6, 2014, p. 268-288; SIMÃO, José Fernando. "O contrato nos tempos da COVID-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio". Migalhas Contratuais, 3/4/2020. 16 No original: "Durch die COVID-19-Pandemie hat sich damit letztlich ein allgemeines Lebensrisiko verwirklicht, das von der mietvertraglichen Risikoverteilung ohne eine entsprechende vertragliche Regelung nicht erfasst wird. Diese Systemkrise mit ihren weitreichenden Folgen hat vielmehr zu einer St rung der gro en Ge-sch ftsgrundlage geführt. Das damit verbundene Risiko kann regelm ig keiner Vertragspartei allein zugewiesen werden.". BGH XII ZR 8/21, Rn. 55, p. 26. 17 Karl Larenz coloca, com precisão, que a consideração das alterações das circunstâncias é um imperativo da boa-fé objetiva. Schuldrecht I. München: Beck, 1987, p. 322. A doutrina alemã é uníssona nesse sentido. Dentre outros: HOHLOCH, Gerhard. Erman BGB. Bd. 1, Harm Peter Westermann (coord.). 11a. ed., Köln: OVS, 2004, § 313, Rn. 4 , p. 1218. O legislador da Reforma do BGB ponderou até se não se deveria inserir o instituto da perturbação da base do negócio logo depois da cláusula geral da boa-fé objetiva do § 242, já que a quebra da base do negócio é um caso especial de aplicação da boa-fé e tem relevância não apenas para os contratos, mas para o negócios jurídicos em geral. Porém, como o problema da quebra da base afeta mais diretamente os contratos, a Comissão de Reforma optou por positivar a figura na parte geral dos contratos, mais precisamente no § 313 localizado no Título 3 que trata das relações obrigacionais oriundas do contrato, Subtítulo 3 (Adaptação e extinção do contrato) do Livro 2 (Direito das Obrigações). BT-Drucksache 14/6040, p. 175. 18 "Foi inserida uma norma relativa à boa-fé nos contratos. No Código Civil não há essa norma. No Código alemão existe, assim como em outros códigos. Na Alemanha, ela salvou aquela questão da imprevisão, porque os alemães rejeitaram a teoria da imprevisão em 1896, quando promulgaram o Código, porque o contrato ainda estava no apogeu. 'O contrato é lei entre as partes'. Mas eles não puderam resistir à pressão dos acontecimentos. Depois de 1914, passaram a admitir a teoria da imprevisão[18]. A jurisprudência alemã é posterior a 1914. E com que fundamento? Porque a lei não tratava da imprevisão. Eles foram buscar fundamentos justamente na boa-fé dos contratos. E não pode haver boa-fé nos contratos se uma das partes escraviza a outra parte, ou se há lucro desmesurado e prejuízo fatal para a outra parte. De modo que, nos contratos, não só no início, como diz o Projeto, na formação, mas também na execução, sempre deve haver boa-fé." In: MENCK, José Theodoro Mascarenhas (org.). Código Civil Brasileiro no Debate Parlamentar - Elementos históricos da elaboração da Lei 10.406, de 2002. Volume 1 - Audiências públicas e relatórios (1975-1983), Tomos 1 a 4. Câmara dos Deputados, 2012, p. 985. 19 A referência mais antiga ao dever de renegociar até agora encontrada por essa articulista foi sua previsão em projetos do chamado "código popular" (Volksgesetzbuch), elaborados para substituir ao BGB. Em anteprojeto de 1940, apresentado por Karl Larenz, o § 15 consagrava a possibilidade da revisão contratual por quebra da base do negócio e afirmava que as partes eram obrigadas a colaborar para a justa adaptação do conteúdo do contrato. SCHMIDT, Jürgen. J. von Staudingers Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch. Bd. 2, Michael Martinek (redator), 13a. ed. Berlin: De Gruyter, 1995, p. 593.
terça-feira, 14 de dezembro de 2021

Queda em home office configura acidente de trabalho

O ano está acabando e parece que estamos revivendo o final do ano passado, quando, no momento em que achávamos que o pior havia passado, estourava a segunda onda de Covid-19 na Europa. É frustrante constatar que, passado dois anos, a pandemia ainda causa surpresas desagradáveis. Quando muitos pensavam que tudo estava voltando à normalidade ou, com o perdão do clichê, ao "novo" normal, no qual máscaras e álcool gel viraram adereços indispensáveis aos humanos, eis que estoura uma quarta onda de Covid-19 no continente europeu por causa do baixo índice de vacinação e da propagação da variante africana do SARS-CoV-2 (Omicron). Com efeito, a baixa taxa de vacinação nos países pobres e nos países ricos da Europa, onde não há vacinação obrigatória, foram os ingredientes perfeitos para o estopim de uma nova onda de contágio nesse fim de ano, que colocou o mundo em alerta novamente, levando várias cidades brasileiras a - preventivamente - cancelar as festas de fim de ano, apesar da gritaria generalizada do comércio local. Na Alemanha a situação está pior que no início da pandemia em 2020, com todos os leitos de tratamento intensivo ocupados e hospitais - e corpo clínico - sobrecarregados devido à indisposição da população em se vacinar. As razões para a recusa da vacina são complexas e variadas, não se resumindo ao simples negacionismo dos "covidiotas" (tradução do alemão: Covidioten, termo criativo usado para designar a parcela da população que nega a existência e/ou a gravidade do vírus e da pandemia). Há aí, também, um fundo histórico que remonta às intervenções e perversões corporais cometidas pelo Estado durante a ditadura nacional-socialista. Para completar o quadro de mudanças, chegou ao fim a "Era Merkel". Este mês, a Chanceler Angela Merkel passou o cargo ao social-democrata Olaf Scholz, que foi oficialmente empossado dia 8/12/2021 como o novo Chanceler da Alemanha. Depois de dezesseis anos conduzida - legitimamente, frise-se - pelo Parlamento alemão ao cargo, Merkel encerra sua missão e entra para a história como a primeira mulher a comandar a maior potência europeia e, acima de tudo, como uma estadista comprometida com a defesa da democracia, da liberdade, do pluralismo, do ser humano, do respeito e da tolerância - valores tão caros no mundo atual. E o sucessor de Merkel já sinalizou a intenção de fechar o cerco contra aqueles que não querem se vacinar, manifestando-se favorável à edição de lei pelo Parlamento que torne a vacinação de Covid obrigatória. Em 10/12/2021, o Bundestag deu o primeiro passo nessa direção tornando a vacina obrigatória para determinadas atividades profissionais. A expectativa é que se amplie cada vez mais o círculo subjetivo da imunização obrigatória se os estímulos ao comparecimento espontâneo aos postos de vacinação continuarem ineficazes. Afinal, os não imunizados põem em risco a si mesmos, mas ainda a sociedade e a economia. A partir de agora, todo o pessoal que trabalha em hospitais, clínicas, consultórios, serviços de atendimento emergencial, casas de saúde, abrigos e assemelhados precisam se vacinar, conforme disposição expressa da lei de proteção contra infecções (Infektionsschutzgesetz). O objetivo da norma é proteger melhor as pessoas idosas e/ou com doenças preexistentes contra o contágio através daqueles que, podendo, não querem se vacinar1. Até 15/2/2022, todo esse pessoal precisa apresentar comprovante de vacinação ao empregador, sob pena de demissão por justa causa. Ficam fora da regra, obviamente, aqueles que não podem tomar o imunizante por razões médicas devidamente comprovadas. Os empregadores, por sua vez, devem arquivar tais documentos e apresentar, caso solicitado, ao Ministério da Saúde, sob pena de multa2. A fim de acelerar a campanha de imunização, o governo permitiu que a vacinação seja feita a partir de agora em farmácias, consultórios médicos e odontológicos, e até em clínicas veterinárias, desde que devidamente autorizados. Além disso, estão novamente em vigor diversas medidas restritivas, podendo cada estado ou município, com base em lei federal, decretar medidas mais drásticas de acordo com o agravamento da situação pandêmica, como o fechamento de estabelecimentos comerciais. No momento, em quase todo o país, para frequentar estabelecimentos comerciais e culturais tem que se observar a regra do "2G", ou seja, estar vacinado com duas doses e/ou curado da enfermidade de Covid-19. Os estabelecimentos podem fazer exigências adicionais, como a apresentação de teste rápido atestando a ausência do vírus (regra do 2G Plus*). O teste rápido pode, porém, ser substituído pela comprovação da terceira dose. Em todos os casos, o uso de máscaras, que havia sido suspenso, voltou a ser obrigatório. Vale lembrar que o Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht), em recente julgado, considerou constitucional as principais medidas de contenção adotadas até julho passado pelos governos federal e estadual, como o isolamento social (ex: toque de recolher, número máximo de pessoas em estabelecimentos e residências, distanciamento mínimo, etc.) e paralisação de atividades econômicas não-essenciais.  A Corte julgou em 30/11/2021 várias queixas constitucionais com esse objeto, merecendo destaque os processos: BVerfG Az. 1 BvR 781/21 e 1 BvR 971/21. Segundo o BVerfG, aquelas medidas restritivas dos direitos fundamentais estão em harmonia com a Lei Fundamental, pois necessárias, adequadas e proporcionais à contenção da extraordinária situação de risco provocada pela pandemia. O fato é que está cada vez mais difícil ter alguma previsibilidade face à maior pandemia dos últimos cem anos, que o legislador brasileiro, recorde-se, supôs ter data marcada para acabar3. E a nova onda de Covid adia os planos de retorno presencial ao trabalho, obrigando muitas pessoas a prorrogar o trabalho remoto, considerado um direito do trabalhador em determinadas situações. E o home office, ao tempo em que traduz forma alternativa de realização da atividade laboral em beneficio de empregados e empregadores, coloca inúmeros desafios às relações trabalhistas, já erodidas e pulverizadas com o início da era digital e da economia de dados. Nesse contexto, ponto que tem suscitado acessas discussões aqui e na Alemanha é saber se um acidente sofrido no percurso entre a cama e a escrivaninha pode - ou não - ser considerado acidente de trabalho para fins trabalhistas e previdenciários. A justiça alemã se ocupou recentemente do tema em caso envolvendo a queda de um empregado na escada de casa. O caso: queda na escada O funcionário de uma sociedade de responsabilidade limitada (GmbH), gerente de uma região de vendas da empresa, acordou pela manhã e, ao descer as escadas em direção ao porão, onde fica seu home office, escorregou e quebrou uma vértebra torácica. Ele pleiteou o reconhecimento do sinistro como acidente de trabalho, mas o pedido foi negado. Segundo relatou na inicial, o home office, improvisado durante a pandemia, era a única área da casa localizada no subsolo, acessível apenas pela escada em caracol. Segundo consta nos autos, ele saía da cama direto para a escrivaninha, sem sequer tomar café da manhã na cozinha. Um dia, dirigindo-se ao local de trabalho, ele escorregou na escada e se machucou gravemente. A fim de comprovar que estava a caminho do trabalho no momento do acidente, alegou que a escada na qual se acidentara só conduz ao home office, vez que todos os demais cômodos da casa ficam em um mesmo andar. A decisão do Bundessozialgericht A ação foi movida na vara previdenciária contra a Berufsgenossenschaft (BG), uma entidade profissional específica responsável, dentre outras coisas, por cuidar dos casos de acidente de trabalho[4]. Ao contrário daqui, na Alemanha não há uma previdência social unificada, mas diversas caixas de assistência e previdência social que pagam diretamente os benefícios aos trabalhadores. Da mesma forma, ao contrário daqui, lá há uma jurisdição social específica, ao lado da justiça trabalhista, na qual são solucionados todos os litígios envolvendo o direito social (Sozialrecht), que não se resume e se limita ao direito previdenciário, mas engloba previdência, saúde e assistência social. Lá, a legislação previdenciária e social não se encontra esparsa, mas compilada no chamado Código Social ou Sozialgesetzbuch (SGB), em claro paralelo ao Bürgerliches Gesetzbuch (BGB), o Código do Cidadão, aqui denominado Código Civil. Por isso, o processo correu perante a jurisdição social, na qual se discutem questões previdenciárias. O juízo de primeira instância (Sozialgericht) da comarca de Aachen, em decisão de 14/6/2019, reconheceu que o caminho do quarto para o home office é um trajeto para o trabalho e, dessa forma, deve ser segurado pela previdência social, reconhecendo a procedência do pedido do funcionário. Porém, o Landessozialgericht de Nordrhein-Westfalen, Corte de segunda instância, divergiu do entendimento e modificou a sentença: o caminho ao home office não seria um percurso para o trabalho, mas uma ação preparatória à atividade laboral, não sendo, portanto, assegurada pela previdência social. Trata-se do processo LZG L 17 U 487/19, julgado em 9/11/2020. O autor interpôs, então, o recurso de Revision ao Bundessozialgericht (BSG), o Tribunal Federal Social, alegando violação do direito material constante do § 8 I 1 do Livro 7 do Sozialgesetzbuch: recebimento de benefício por acidente de trabalho. O 2º. Senado da Corte deu razão ao trabalhador. Trata-se do processo BSG Az. B 2 U 4/21 R, julgado semana passada, dia 8/12/2021. O BSG afirmou que o caminho da cama até o home office ocorre no interesse do empregador e, portanto, as lesões nesse percurso são consideradas, em tese, acidentes de trabalho acobertados pelo seguro social. No caso concreto, o Tribunal assinalou que o trabalhador demonstrou que a escada só era utilizada para chegar ao home office, o que reforça a alegação de que ele, embora sem sair de casa, efetivamente se acidentou "a caminho" do trabalho. Paralelo com o Brasil Por aqui, algumas decisões reconhecem como acidente laboral a queda do empregado em casa quando ele se preparava para ir ao trabalho. Bem conhecido e citado é o caso da promotora de vendas da Avon Cosméticos Ltda que caiu da escada dentro da própria casa quando se preparava para sair para um trabalho externo e fraturou o tornozelo. No caso, o Tribunal Superior do Trabalho (TST) confirmou as decisões inferiores que condenaram a empresa a indenizar a vendedora dispensada injustamente5. O art. 75 da CLT, alterado pela reforma trabalhista, regulamentou o teletrabalho, definindo-o no art. 75-B como a prestação de serviços preponderantemente fora das dependências do empregador, com a utilização de tecnologias de informação e de comunicação que, por sua natureza, não constituam trabalho externo. Extrai-se da lei que o empregador deve fornecer condições mínimas para que o trabalho seja realizado de forma segura, inclusive instruindo como o trabalhador deve adequar sua casa ao home office e, de maneira expressa e ostensiva, quais as precauções a serem tomadas a fim de evitar doenças e acidentes de trabalho (art. 75-E CLT). Com a pandemia e o trabalho online, diversos acidentes laborais podem ocorrer. Pense-se apenas na situação banal em que o empregado tropeça na cadeira de trabalho e quebra o punho ao cair de mau jeito no chão. O mesmo diga-se em relação às doenças profissionais, como lesões na coluna, lesões por esforço repetitivo (LER) em decorrência do uso de mobiliários antiergonômicos (ex: mesa, cadeira, etc.), posturas inadequadas e prolongadas, falta de suporte adequado para levantar a altura do computador ao nível dos olhos, etc. Isso sem falar no stress, ansiedade, tensão e exaustão mental provocados por longas jornadas de trabalho, pelas exigências de realização de múltiplas tarefas com elevada produtividade, excesso de videoconferências, de e-mails e informações, e, não por último, pelo isolamento ou pela ausência de local adequado para trabalhar. Ou seja, os desafios são inúmeros. Embora as doenças desencadeadas pela forma ou condições de trabalho oferecidas pelo empregador possam ser mais facilmente configuradas, muitas discussões rondam o problema dos acidentes de trabalho em home office, ou seja, na residência do empregado. A grande dificuldade parece ser de cunho probatório, ou seja, do funcionário provar que estava em horário de trabalho realizando a atividade laboral e não funções domésticas, o que só pode ser verificado no caso concreto. Por isso, a decisão alemã é um convite à reflexão, pois mostra o quanto Judiciário precisa estar atento às novas formas de trabalho e às peculiaridades do caso concreto. Isso ainda mais se impõe quando se constata a erosão das relações trabalhistas decorrentes dos novos modelos de negócio da era digital, acentuadas pela pandemia nesse agitado primeiro terço do século 21. O German Report deseja a todos um abençoado Natal e um Ano Novo com muita saúde, prudência e tolerância. ___________ 1 Neue Regelungen zur Corona-Pandemie. Disponível aqui. Acesso: 12/12/2021. 2 Neue Regelungen zur Corona-Pandemie. Disponível aqui. Acesso: 12/12/2021. 3 Recorde-se que a lei 14.010/2020, a famosa RJET, que, regulando os impactos da Covid-19 nas relações privadas, permitiu os despejos e proibiu a revisão e/ou extinção dos contratos desequilibrados pela pandemia, caducou em 30/10/2020, poucos meses após sua entrada em vigor. 4 Agradeço ao Procurador Federal Pablo Castro Miozzo, doutorando em direito pela Universidade de Freiburg (Alemanha) e membro do Fórum Jurídico Brasil-Alemanha, pelos esclarecimentos e sugestões terminológicas ao texto. Até o fechamento da coluna, não havia ainda sido publicada a decisão do Bundessozialgericht, de modo que o presente texto foi redigido com base em notícias de jornais e nas informações constantes no site do tribunal, acessadas em 12/12/2021. 5 TST, RR 32400-96.2009.5.08.0004, 2ª Turma, Rel. Delaíde Miranda Arantes, j. em 8/4/2015.
Em março desse ano, o Parlamento alemão (Bundestag) aprovou importante lei garantindo respeito e autonomia a pessoas intergênero, ditas não-binárias ou - equivocadamente - de "agênero, pois não se deixam biologicamente enquadrar como pertencente ao gênero feminino ou masculino.  A lei tutela basicamente as crianças intergênero, que possuem sexo indefinido ao nascer, dificultando ao médico identificá-las como do gênero masculino ou feminino. A nova lei proíbe a realização de intervenções cirúrgicas e/ou hormonais feitas normalmente nos primeiros meses de vida com o objetivo exclusivo de adaptar o sexo das crianças à categoria binária (masculino ou feminino).  Cabe, de início, já salientar a importante distinção entre intergênero e transexualidade: enquanto uma pessoa intergênero nasce biologicamente sem as características sexuais definidas, a pessoa trans possui caracteres sexuais claros, razão pela qual se lhe imputa desde cedo um gênero com o qual ela, porém, não se identifica.  Em outras palavras: a pessoa trans tem biologicamente um gênero definido, mas se sente pertencente a outro gênero: masculino, feminino ou algo intermediário. O intergênero, ao contrário, apresenta ao nascer variações genéticas, hormonais, gonodais ou genitais que dificultam sua identificação como homem ou mulher. Isso levou a doutrina médica a classificar tais alterações como "distúrbios do desenvolvimento sexual" ou Disorders of Sex Development (DSD) - Störungen der Geschlechtsentwicklung, no vernáculo alemão.  A lei aqui comentada regula, portanto, apenas a realização de tratamentos cirúrgicos, clínicos e/ou hormonais em crianças intergênero sem seu consentimento e nada tem a ver com a discussão em torno da transexualidade.   As crianças intergênero: cicatrizes no corpo e na alma  Todo mundo ao nascer é identificado como pertencente ao gênero masculino ou feminino, de acordo com o sexo biológico. Essa exigência consta expressamente do art. 54 da Lei de Registros Públicos (Lei 6.015/1973) e do § 21 I 3 da lei alemã que disciplina o estado pessoal do indivíduo (Personenstandsgesetz).  Porém, desde os primórdios existem pessoas que nascem sem as características biológicas (v.g., genéticas, hormonais, gonodais ou genitais) claramente definidas, dificultando aos médicos enquadrá-las na milenar categoria binária de gênero.  Na Antiguidade, essas pessoas eram chamadas de hermafroditas, em alusão ao belo Hermafrodito, filho de Hermes e Afrodite, cujo corpo passou a apresentar características masculinas e femininas quando se fundiu ao da ninfa Salmacis, que havia caído de amor por ele. A pedido dela, ambos se transformaram em um único ser, segundo os contos do poeta grego Publius Ovidius Naso.  O termo retrata (pejorativamente) as pessoas intergênero, embora o hermafroditismo seja apenas uma variante de ampla paleta de um gênero distinto, dotado de caraterísticas biológicas masculinas e femininas: o inter-gênero. Esse não é um "diagnóstico" fácil para os pais, afinal, vivemos em um mundo binário e heteronormativo, no qual quem não se enquadra nas duas categorias de gênero é visto como alguém deformado, portador de um "distúrbio" ou "doença", vivendo à margem da aceitação, do reconhecimento e da valorização social. Por isso, os pais, temerosos com as discriminações e dificuldades que a criança enfrentará ao longo da vida, resolvem submetê-la a cirurgias corretivas e adaptadoras da genitália aos padrões masculino/feminino, como a retirada de gônadas (órgãos responsáveis pela produção de células sexuais), modelação do pênis, redução do clitóris ou a (re)construção plástica da vagina1. Frequentemente, esses infantes são submetidos ainda a permanentes tratamentos hormonais a fim de garantir o desenvolvimento de "características" masculinas ou femininas, como crescimento dos seios, surgimento de barba, etc., cujos efeitos colaterais ainda não são totalmente conhecidos. Em regra, são necessárias várias intervenções cirúrgicas ao longo da vida da criança a fim de forçar a adaptação do corpo infante aos padrões binários de gênero e os pais e/ou representantes legais são fortemente pressionados a tomar decisões sem estarem plenamente informados sobre as consequências a longo prazo do tratamento para seus filhos2. O "tratamento" das crianças intergênero é um caminho longo e doloroso. Embora feito com a melhor das intenções por médicos e familiares, deixa profundas marcas no corpo e na alma do indivíduo. Além de danos funcionais - como dor ao urinar, dores decorrentes da dilatação da vagina, restrições sexuais até perda de orgasmo e da capacidade reprodutiva - as pessoas afetadas relatam transtornos psíquicos, principalmente insegurança sexual e em sua identidade de gênero, depressões e traumas diretamente relacionados com os tratamentos médicos ou com a pressão social à "normalização" da pessoa3. A esse quadro acresça-se o fato de que, atualmente, parte considerável da ciência especializada entende inexistir indicação médica para o tratamento das pessoas intergênero4, pois não há "cura" para a intersexualidade e, na grande maioria dos casos, o intergênero é uma pessoa absolutamente saudável sob o aspecto clínico. Logo, não envolve risco para a vida, exceto em casos excepcionais nos quais o risco de morte justifica por si só a intervenção. Afora esses casos raros, a única "anomalia" seria a sexual. Por isso, aduz-se, o objetivo do tratamento é exclusivamente forçar a adaptação do corpo do intergênero ao gênero escolhido pelos pais. Daí dizer-se que o tratamento é meramente cosmético, isto é, estético, visando adaptar os órgãos sexuais a um padrão de gênero.   Pano de fundo histórico A prática de intervenções cirúrgicas em crianças com variações de desenvolvimento sexual foi iniciada pelo psicólogo norte-americano John Money que, nos idos de 1950, desenvolveu o chamado "Tratamento de Baltimore"5. Segundo Money, crianças sem genitais claramente definidas deveriam ser submetidas a intervenções cirúrgicas logo após o nascimento a fim de adaptá-las, o mais rápido possível, ao sexo mais favorável. Com isso, Money, preso numa visão binária de mundo, acreditava que se permitiria à criança uma educação de acordo com um gênero (optimaler gender policy), o que seria essencial para a construção de uma identidade de gênero estável e para o desenvolvimento de uma personalidade sã, livre de transtornos psíquicos, facilitando a vida do "paciente" em sociedade. Mas, devido aos inúmeros - e permanentes - transtornos físicos e psíquicos que os tratamentos cirúrgicos e hormonais causam à sujeito, desde a década de 1990, as pessoas intergênero lutam para enquadrar a prática como violação de direitos humanos, nomeadamente da autonomia corporal e da autodeterminação de gênero, exigindo o fim de intervenções cirúrgicas e/ou hormonais sem o consentimento prévio, livre e informado da pessoa. Em 1996, foi criado na Alemanha um grupo de trabalho contra a violência pediátrica e ginecológica que se posicionou contrário às "operações cosméticas" em crianças e adolescentes, realizadas com o fim exclusivo de adapta-las ao gênero masculino/feminino, sem o devido esclarecimento acerca da violação dos direitos humanos decorrente da prática. Os postulados de John Money só foram revistos, contudo, em 2005, por ocasião da Conferência de Chicago, organizada pela sociedade de pediatria e endocrinologia Lawson Wilkins e pela European Society for Pediatric Endocrinology. Desde então, fala-se não mais em "distúrbios", mas em "variações" do desenvolvimento sexual (Differences of Sex Development)6. Com os anos, avolumaram-se as críticas às intervenções cirúrgicas e/ou hormonais em pessoas intergênero ao argumento, sobretudo, de que essas práticas configuravam grave violação aos direitos humanos das vítimas ao forçá-las a adotar uma identidade de gênero irreversível e diferente da qual nasceram. Em 2007, especialistas internacionais em direitos humanos publicaram um manifesto exortando os países a adotar medidas adequadas - legais, administrativas, dentre outras - a impedir que crianças sofram intervenções irreversíveis em seus corpos sem seu consentimento, ressalvada as hipóteses de risco à vida e à saúde.    Em 2014, a Organização Mundial de Saúde (OMS) emitiu declaração, juntamente com o departamento de direitos humanos da Organização das Nações Unidas (ONU), alertando para a gravidade de esterilizações involuntárias e intervenções irreversíveis em diversos grupos de pessoas, inclusive em infantes com alterações genitais, recomendando que tais intervenções fossem adiadas até que a criança intergênero pudesse decidir de forma autônoma e informada. O Parlamento Europeu reconheceu o problema em 2019, condenando veementemente os tratamentos e as cirurgias de "normalização sexual". Na Proposta de Resolução B80101/2019, o Parlamento afirmou que a patologização das variações intersexuais compromete o pleno gozo do direito ao mais elevado nível de saúde possível das pessoas intergênero, instando os Estados-Membros a promover - a exemplo de Malta e Portugal - a despatologização das pessoas intergênero. Na Alemanha, há muito reina relativo consenso de que o tratamento dado às pessoas com variações no desenvolvimento sexual constitui um problema social, pois inúmeras cirurgias - masculinizadoras ou feminizadoras - são realizadas anualmente no país em crianças saudáveis, que, porém, não se deixam enquadrar nem no gênero masculino, nem no gênero feminino7. Em 2017, o Tribunal Constitucional alemão deu passo histórico ao reconhecer a existência de um terceiro gênero (intergênero) ao lado das categorias masculino/feminino, concedendo prazo de um ano para o Bundestag disciplinar a questão. O julgado, porém, não tratava do problema das cirurgias normalizadoras em crianças, não se manifestando, dessa forma, a Corte sobre esta questão específica8. No contrato de coalisão (Koalitionsvertrag) celebrado entre os partidos da base de sustentação do governo de Angela Merkel, em 2019, ficou acordado que o Parlamento regularia por meio de lei as intervenções médicas adaptadoras do sexo em crianças menores, condicionando sua realização ao consentimento informado e esclarecido do infante, salvo em casos emergenciais de grave risco à saúde ou à vida.    Por isso, o governo apresentou o Projeto de Lei (Gesetzentwurf) para proteção de crianças com variações no desenvolvimento sexual, enviado pela Chanceler ao Parlamento em 15/11/20, prevendo alterações no § 1.631 do BGB a fim de proibir a realização de tratamentos irreversíveis em menores desprovidos de aptidão para decidir autonomamente, salvo situações que exijam intervenção médica urgente. Em 25/3/2021, o Bundestag aprovou a lei proibindo as chamadas "operações de normalizações sexuais" em crianças até que elas próprias alcancem maturidade para decidir de forma livre e informada. As alterações no BGB Desde 22/5/2021, entrou em vigo nova lei que introduziu o § 1.631e no Código Civil alemão, o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB). Pelo § 1631e, inc. 1 BGB, o legislador proibe a realização de cirurgias e tratamentos de normalização sexual em crianças incapazes de manifestar seu consentimento, desde que as intervenções tenham o fim exclusivo de adaptar a aparência corporal do infante à ordem binária - salvo casos urgentes autorizados pelo Poder Judiciário. O dispositivo retira dos genitores e representantes legais o poder de decidir acerca da realização de tratamentos normalizadores do sexo ao afirmar expressamente que o dever de cuidado dos pais não inclui mais o poder de decidir acerca da realização desse tipo de tratamento. A decisão agora é da criança. Diz a norma:  "§ 1.631e - Tratamento de crianças com variações no desenvolvimento sexual (1)  O cuidado pessoal não inclui o direito de consentir no tratamento ou de realizar pessoalmente o tratamento de uma criança com variante de desenvolvimento sexual, incapaz de dar seu consentimento, e que, sem que haja qualquer outra razão para o tratamento, tenha por fim exclusivo conformar a aparência física da criança com o sexo masculino ou feminino. (2)  Os pais só podem consentir em procedimentos cirúrgicos sobre as características sexuais internas ou externas de uma criança incapaz de dar seu consentimento e com uma variante do desenvolvimento sexual, dos quais poderiam resultar uma adaptação da aparência corporal da criança à do sexo masculino ou feminino e para os quais não falta a capacidade de consentimento do inciso 1, se a intervenção não puder ser adiada até uma decisão autodeterminada da criança. O § 1.909 não se aplica.   (3)  O consentimento, nos termos do inciso, 2 frase 1, requer a aprovação do juízo da família, a menos que a intervenção cirúrgica seja necessária para evitar um perigo para a vida ou a saúde da criança e não puder ser adiada até a concessão da autorização. A autorização será concedida a pedido dos pais se a intervenção planejada corresponder ao melhor interesse da criança. Se os pais apresentarem ao juízo da família um parecer de comissão interdisciplinar favorável à intervenção, nos termos do inciso 4, presume-se que a intervenção prevista corresponde ao melhor interesse da criança."9 O escopo da norma é proteger as crianças, ainda inaptas a emitir um consentimento informado e consciente, contra tratamentos sexuais (externos e/ou internos) irreversíveis, que visem exclusivamente adaptar seu corpo ao padrão binário vigente.  O bem jurídico protegido é a integridade psicofísica do menor intergênero, portador de variações sexuais biológicas. Isso significa que crianças não portadoras de variações de desenvolvimento sexual continuam a ser operadas e tratadas normalmente, com base no consentimento dos pais e/ou representantes legais.  Além do direito à integridade psicofísica, a norma tutela ainda os direitos fundamentais à vida e à saúde, bem como os direitos de personalidade, principalmente o direito ao livre desenvolvimento sexual e o direito - fundamental e humano - à autodeterminação de gênero. A criança enquanto indivíduo e seu bem-estar foram, portanto, colocados em primeiro plano pelo legislador.  Atente-se que a norma não proíbe todo e qualquer tratamento cirúrgico ou hormonal em crianças intergênero. Se o procedimento tiver outras finalidades que não apenas enquadrar o menor na categoria binária de gênero, submetendo-o a um "tratamento cosmético", há que se verificar a urgência da intervenção.  Se a intervenção cirúrgica e/ou hormonal puder ser adiada até a criança estar em condições de decidir por si própria, com o suporte da família e de especialistas, o procedimento não poderá ser realizado. Nesses casos, os pais não podem mais decidir sobre a necessidade de realização do tratamento, pois a lei prioriza o consentimento do menor.  Portanto, a partir de agora somente em situações emergenciais podem ser feitas intervenções nos caracteres sexuais exteriores ou interiores da criança sem seu consentimento.  Nesse caso, a decisão cabe aos pais (§ 1631e, inc. 2 BGB), mas é necessário obter autorização do juiz da vara da família, nos termos do § 1631e, inc. 3 BGB. Essa autorização só é dispensada em caso de risco grave à saúde ou à vida do menor que não possa esperar pelo pronunciamento judicial.  Estima-se que cerca de 160 mil crianças nasçam na Alemanha com ambiguidade de gênero. Mas faltam estatísticas seguras acerca de quantas crianças são submetidas a cirurgias genitais, muitas das quais tem cunho nitidamente mutilador.  Interessante notar que o § 1.631e BGB não condiciona o consentimento do menor ao atingimento de maioridade civil, mas da capacidade de consentimento (Einwilligunsfähigkeit). Assim, a criança precisa estar em condições de compreender sua situação, o tipo de tratamento, significado, extensão, os riscos e as consequências a longo prazo do procedimento à qual será submetida e orientar sua vontade nessa direção. É indispensável, portanto, que a criança tenha alcançado um desenvolvimento físico e mental que lhe permita compreender a variação de gênero e sua identidade, bem como o modo de vida ao lado de uma compreensão de gênero binária. Isso significa que é impossível determinar in abstracto o momento (ou a idade) a partir do qual a criança estará em condições de emitir um consentimento livre e informado. Isso só é possível no caso concreto, a partir de uma análise interdisciplinar da criança, sendo muito improvável que isso ocorra antes dos dez anos de idade10. A proteção das pessoas intergênero no mundo Com a nova lei, a Alemanha se posiciona no cenário internacional como um dos países que vem reconhecendo o direito à autodeterminação da identidade de gênero a pessoas intergênero, movimento iniciado com a defesa das pessoas transexuais. O país parece ter sido o primeiro na Europa a realizar um registro positivo dos intergêneros ao permitir a indicação de uma terceira categoria de gênero: intergênero ou diverso, após a mencionada decisão do Tribunal Constitucional reconhecendo a existência de uma terceira categoria de gênero, ao lado do masculino e feminino. No plano internacional, Malta foi o primeiro país a promulgar, em 2013, uma declaração requerendo o fim das práticas de mutilação e "normalização" das pessoas intergêneros por meio de operações genitais ou tratamentos hormonais, postulando a despatologização do intersexualismo. Em 2015, o país promulgou lei garantindo a integridade corporal das pessoas intergênero e reconhecendo sua autonomia e poder de autodeterminação. Trata-se do Gender Identity, Gender Expression and Sex Characteristics Act, que, dentre outras medidas, criminaliza a realização de intervenções médicas em pessoas intergênero sem seu consentimento expresso e permite a retificação do registro civil por via administrativa11. No mesmo sentido é a lei regional espanhola (Ley 2/2016), que proíbe o custeamento pelo sistema público de saúde de operações normalizadoras do sexo em crianças recém-nascidas, salvo em caso de risco à vida e à saúde. Em Portugal, a Lei 38/2018 tem por objeto tutelar o direito à autodeterminação da identidade e expressão de gênero e de proteção das características sexuais de cada pessoa (art. 1º). No que aqui interessa, o art. 4º do referido diploma afirma que todas as pessoas têm direito a manter suas características primárias e secundárias, prescrevendo o art. 5º que, salvo comprovado risco à saúde, os tratamentos e intervenções cirúrgicas, farmacológicas ou de qualquer outra natureza, que impliquem modificações corporais e/ou das características sexuais do menor intergênero, só devem ser realizados no momento em que se manifeste sua identidade de gênero, vale dizer, a percepção da pessoa acerca de sua própria identidade, o que lhe torna apta a emitir um consentimento livre e informado. Regras semelhantes encontram-se ainda na Grécia, Islândia e Argentina, onde, desde 2012, transfere-se à pessoa intergênero a decisão acerca da realização de procedimentos e tratamentos de adaptação do sexo. Lá, porém, o legislador fixou idade mínima para o menor opinar pela realização ou não das intervenções médicas12. Nada obstante, o problema está longe de ter uma solução satisfatória na Europa e em outros países, como o Brasil, onde os intergêneros continuam a ser submetidos a tratamento médico-cirúrgico nos primeiros meses ou anos de vida por decisão exclusiva dos genitores e/ou representantes legais13.  A situação do intergênero no Brasil Aqui, falta norma legal regulando a existência do terceiro gênero e os direitos fundamentais e humanos - sobretudo: direito à autodeterminação da identidade de gênero e à preservação das características sexuais - das pessoas intergênero. Nem mesmo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que exerce com entusiasmo papel legiferante, tem resolução a respeito. Dessa forma, uma primeira conclusão se impõe: as pessoas intergênero, especialmente as crianças, permanecem invisíveis ao direito. Por seu turno, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul publicou o Provimento 016, de 7/6/2019, modificando as regras de registro de nascituros com Anomalia de Diferenciação Sexual (ADS). Segundo o Provimento, quando o sexo da criança for indefinido no momento do nascimento, o registrador deverá lançar no registro de nascimento o sexo como ignorado, de acordo com a constatação feita pelo médico na Declaração de Nascido Vivo. Assim que definido o sexo, mediante devida comprovação por laudo médico, os pais ou responsáveis legais poderão retificar, sem custos, o registro do menor diretamente no cartório, independentemente de autorização judicial. A resolução não trata, por certo, do problema aqui abordado: a realização de tratamentos cirúrgicos e/ou hormonais em crianças, baseado exclusivamente no consentimento dos pais e/ou representantes legais. Embora a medida instituída pelo Tribunal gaúcho possa ser saudada como inovadora devido ao ineditismo, ela nasce em descompasso com seu tempo, a começar pela visão, subjacente à norma, de intersexualismo como doença ou anomalia, quando atualmente a ciência mostra que o intergênero exprime apenas um conjunto de características biológicas diferentes das presentes na maioria das pessoas. A própria referência à sigla ADS - Anomalia de Diferenciação Sexual (Disorder of Sex Development) - traz em si a falsa noção de patologia, ao passo que usa-se atualmente a expressão "Diferences of Sex Development" (DSD) para designar as variações no desenvolvimento sexual das pessoas portadoras de gênero distinto do masculino/feminino14. O problema é que a ideia de "anomalia" patologiza as pessoas intergênero e seus corpos, contribuindo para justificar a prática - atualmente combatida - de tratamentos médicos invasivos e "normalizadores", que pretendem adaptar o corpo intersexual sadio a um dos padrões binários de gênero. Ademais, na medida em que o Provimento 016/2019 exige laudo médico atestando o sexo da criança como condição para a retificação do registro de nascimento, está a exigir - ainda que implicitamente - que a criança, nascida com sexo indefinido, seja submetida a dolorosas e traumáticas cirurgias de correção dos órgãos genitais e/ou a terapias hormonais para "normalizar" suas genitálias. Com isso, a Corte legitima flagrante violação a direitos humanos fundamentais das pessoas intergênero: à integridade psicofísica, à vida e à saúde, à autodeterminação da identidade de gênero, preservação de suas características sexuais, além do direito à vida privada, à constituição de família, ao exercício de direitos reprodutivos e a uma vida sem discriminação e sem tratamento desumano e/ou degradante. Todos esses direitos restam violados, em maior ou menor medida, quando crianças clinicamente sadias são submetidas, sem seu consentimento, a intervenções cirúrgicas e/ou hormonais irreversíveis, que deixam graves sequelas físicas e psicológicas. Por fim, a possibilidade de deixar em branco o campo referente ao sexo ou de indicar como "ignorado" é regra que já existia na Alemanha e Áustria do século 19. Essa opção confere uma identificação negativa à pessoa, que fica com o sexo indefinido em seus registros. Atualmente, porém, luta-se por uma identificação positiva, que pressupõe o reconhecimento de um gênero diverso e intermediário: o intergênero. Melhor teria sido, data venia, reconhecer que existem pessoas que biologicamente não se enquadram no sistema de gênero binário. Nessa seara, vale o lema: o que não é doença, não precisa de cura. Assim, bem mais inovadora foi a decisão da 1ª. Vara de Família do Rio de Janeiro, que reconheceu, em 21/8/2020, a existência de pessoas não-binárias, pertencentes a um "gênero neutro" e permitiu averbação no registro do nascimento para alterar o nome e o sexo do autor, que passou a constar como "não-especificado". O magistrado fundamentou a decisão no princípio da dignidade humana e nos direitos da personalidade, dentre os quais o direito ao nome, que deve espelhar a realidade do "agênero". Apesar de algumas imprecisões terminológicas, a decisão representa importante passo para o reconhecimento das pessoas intergênero, as quais não são despidas de gênero, "a-gênero", mas apenas possuem um gênero diverso do masculino e feminino. Trata-se de tema sensível, distinto da transexualidade, que ainda não mereceu a atenção devida da doutrina civilista e, menos ainda, do Estado. As pessoas intergênero e, principalmente, as crianças, continuam invisíveis para a sociedade e o direito. Crianças saudáveis continuam a ser submetidas, sem seu próprio consentimento, a cirurgias normalizadoras simplesmente com o intuito de adaptar seu corpo ao padrão binário de gênero. É chegada a hora de dar-lhes voz. ______________ 1 Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen. Organisation Intersex International Europe e.V. (org.). Tradução de Dan Christian Ghattlas, 2016, p. 10 2 Considerando G da Proposta de Resolução do Parlamento Europeu B8-0101, de 8/2/2019. 3 Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen, p. 11. 4 Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen, p. 10. 5 Confira-se o Projeto de Lei do Parlamento alemão: Deutscher Bundestag Drucksache 19/24686 (doravante: BT-Drucks. 19/24686), 25/11/2020, p. 11. 6 BT-Drucks. 19/24686, p. 12. 7 BT-Drucks. 19/24686, p. 12. 8 Sobre a decisão, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Jurisprudência comentada dos tribunais alemães. Indaiatuba: Foco, 2021, p. 19 ss. 9 § 1631e Behandlung von Kindern mit Varianten der Geschlechtsentwicklung (1) Die Personensorge umfasst nicht das Recht, in eine Behandlung eines nicht einwilligungsfähigen Kindes mit einer Variante der Geschlechtsentwicklung einzuwilligen oder selbst diese Behandlung durchzuführen, die, ohne dass ein weiterer Grund für die Behandlung hinzutritt, allein in der Absicht erfolgt, das körperliche Erscheinungsbild des Kindes an das des männlichen oder des weiblichen Geschlechts anzugleichen. (2) In operative Eingriffe an den inneren oder äußeren Geschlechtsmerkmalen des nicht einwilligungsfähigen Kindes mit einer Variante der Geschlechtsentwicklung, die eine Angleichung des körperlichen Erscheinungsbilds des Kindes an das des männlichen oder des weiblichen Geschlechts zur Folge haben könnten und für die nicht bereits nach Absatz 1 die Einwilligungsbefugnis fehlt, können die Eltern nur einwilligen, wenn der Eingriff nicht bis zu einer selbstbestimmten Entscheidung des Kindes aufgeschoben werden kann. § 1909 ist nicht anzuwenden.  (3) Die Einwilligung nach Absatz 2 Satz 1 bedarf der Genehmigung des Familiengerichts, es sei denn, der operative Eingriff ist zur Abwehr einer Gefahr für das Leben oder für die Gesundheit des Kindes erforderlich und kann nicht bis zur Erteilung der Genehmigung aufgeschoben werden. Die Genehmigung ist auf Antrag der Eltern zu erteilen, wenn der geplante Eingriff dem Wohl des Kindes am besten entspricht. Legen die Eltern dem Familiengericht eine den Eingriff befürwortende Stellungnahme einer interdisziplinären Kommission nach Absatz 4 vor, wird vermutet, dass der geplante Eingriff dem Wohl des Kindes am besten entspricht.  10 BT-Drucks. 19/24686, p. 25. 11 Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen, p. 15. 12 BT-Drucks. 19/24686, p. 18. 13 Segundo estudo realizado, em 2015, pela Agência da União Europeia para Direitos Fundamentais (European Union Agency for Fundamental Rights), ainda são praticados em toda a Europa muitos tratamentos de adequação sexual sem o consentimento da pessoa intergênero. Confira-se: European Union Agency for Fundamental Rights. FRA Focus Paper. The Fundamental Rights Situation of Untersex People. Viena, 2015, p. 1. No mesmo sentido: Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen, p. 7. 14 Confira-se novamente o estudo financiado pela União Europeia: Menschenrechte und intergeschlechtlichte Menschen, p. 21.
Aproveitando a temática comercialista iniciada na coluna anterior com a entrevista do renomado Professor da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, Erasmo Valadão, comenta-se hoje julgado paradigmático do Bundesgerichtshof (BGH) acerca do contrato de concessão comercial.  A concessão comercial entrou para a pauta do dia desde que a gigante norte-americana Ford Motors anunciou, em janeiro desse ano, o fechamento de suas fábricas de produção de veículos automotores no Brasil, provocando um cataclismo no mercado automobilístico brasileiro. Desde então, o negócio de concessão comercial voltou a atrair os holofotes e a atenção dos juristas. Para facilitar a compreensão do julgado alemão, faz-se necessário, inicialmente, relembrar algumas noções acerca desse importante tipo contratual. Noções gerais sobre o contrato de concessão O contrato de concessão comercial é uma das modalidade da categoria geral dos contratos de distribuição, os quais têm por fim precípuo viabilizar o escoamento da produção1. Desde cedo os comerciantes perceberam que não basta produzir, sendo necessário fazer os produtos chegarem até o consumidor (adquirente) final. Se isso era feito, desde os primórdios, pelo próprio fabricante, que vendia suas mercadorias diretamente aos consumidores, com a produção em série propiciada pela revolução industrial surgiu a necessidade de distribuir os bens excedentes em mercados longínquos. Como manter filiais ou deslocar funcionários para locais distantes envolve muitos riscos e custos para o produtor, logo surgiu a ideia de lançar mão de pessoas já instaladas nessas zonas e aproveitar sua organização, capacidade e credibilidade junto ao público local. Separou-se, assim, a fase da produção e da distribuição, surgindo a figura do distribuidor, uma pessoa (física ou jurídica) que se interpõem como elo de ligação entre o fabricante e o consumidor final. Inicialmente, desenvolveu-se o contrato de comissão por meio do qual o produtor (comitente) permite que outrem (comissário) - contratando em nome próprio, mas por conta do comitente - venda seus bens a terceiros, tornando-se garante das obrigações assumidas pelo adquirente em troca de uma comissão sobre os contratos realizados2. Em seguida, veio a figura do representante comercial que, de forma independente, obriga-se a promover a celebração de contratos para a empresa, recebendo comissão pelos negócios intermediados que a empresa que celebra diretamente com os clientes. Essa figura possui papel tão central no direito da distribuição que até hoje o contrato de agência é considerado o modelo padrão dos contratos de distribuição, muitos dos quais são negócios atípicos, carentes de regulamentação legal3. Com o decorrer do tempo, desenvolveram-se outras formas de distribuição como a concessão comercial e a franquia, nas quais o distribuidor (concessionário e franqueado) - ao contrário do representante comercial e do comissário - é um comerciante que compra para revenda e atua por conta e em nome próprio, assumindo sozinho todo o risco do negócio. Embora os contratos de concessão tenham surgido para atender uma necessidade do setor automobilístico, vários produtos de marca e de alta tecnologia são distribuídos no mercado por meio desse tipo contratual, como bebidas, eletrodomésticos, maquinaria, produtos de informática e de elevada tecnologia, além de artigos de luxo como roupas, perfumes, etc. No julgado alemão, objeto contratual era a revenda, na Alemanha, de produtos de informática, principalmente monitores e impressoras. Pelo contrato de concessão comercial, um comerciante (concessionário) se obriga a adquirir produtos de outrem (produtor) para revendê-los em determinada área por conta própria e risco. No caso da concessão de veículos, o concessionário adquire a propriedade dos veículos para revenda no mercado, o que significa que ele assume - e, sob outro ângulo, que a montadora lhe transfere - todos os riscos da comercialização. Conquanto a aquisição para revenda seja a alma do negócio, o objeto do contrato não se esgota nisso. O concessionário obriga-se ainda a desbravar e/ou ampliar o mercado para a marca e a promover a comercialização dos bens em conformidade com as instruções do fabricante. A concessão é um contrato complexo - em regra, duradouro, de adesão, celebrado num contexto de assimetria informativa - por meio do qual os distribuidores assumem diversas obrigações, tais como adquirir uma quota mínima mensal/anual de produtos, comprar e manter estoque de bens e peças de reposição e prestar assistência técnica e garantia aos adquirentes. Mas não só. Os contratos de concessão de veículos contém inúmeras outras obrigações. Assim, o revendedor é obrigado a se organizar empresarialmente de forma a atender os rígidos padrões exigidos pelo concedente, que vão desde o treinamento regular de pessoal, à observância de exigências mínimas em suas instalações (v.g., padrão arquitetônico, tipos de móveis, disposição do layout da loja, número de funcionários, etc.), adoção de sistemas específicos de contabilidade, envio de minuciosos relatórios, balancetes e informações detalhadas sobre as operações, o mercado e dados pessoais dos clientes, até a permissão para que a montadora examine, audite e copie todos os registros, contratos, contas, livros contábeis e documentos pertinentes às vendas e serviços realizados. Isso mostra o grau de interferência - e integração - do revendedor na estrutura de vendas do fabricante. Mas, sobretudo, põe em relevo que a concessão requer do revendedor a realização de vultosos investimentos para atender todas as obrigações e exigências impostas pela montadora. Com efeito, o concessionário investe capital, pessoal e trabalho na construção dos canais de venda para os produtos da marca e, em troca das pesadas obrigações, recebe o direito de comercializar os produtos no mercado, com exclusividade ou não. O concedente, por seu turno, obriga-se a vender ao concessionário os veículos de sua fabricação, de acordo com as condições acordadas; a permitir o uso gratuito da marca pelo concessionário; a respeitar a área operacional de cada distribuidor e a não vender diretamente seus veículos na zona demarcada para atuação do concessionário, salvo nas estritas hipóteses de venda direta previstas no contrato ou na lei4. No Brasil, a lei 6.729/79, mais conhecida como Lei Ferrari, regula a distribuição de veículos automotores terrestres, a qual deve ser feita, nos termos do art. 1º, por meio de concessão comercial. Isso significa que, em regra, cabe ao distribuidor a tarefa de revender os veículos no mercado. Excepcionalmente, nas hipóteses previstas no art. 15, pode a montadora praticar a chamada venda direta. Essa modalidade de venda recebe o nome de venda indireta, porque o fabricante não vende diretamente ao consumidor final, mas sim ao distribuidor, que adquire a propriedade do bem e o revende no mercado. O negócio de concessão comercial, como toda distribuição, baseia-se num sistema de venda indireta, com a participação do distribuidor.  O caso dos produtos japoneses  O caso julgado pelo BGH girava em torno de contrato de concessão de produtos de informática, dentre os quais monitores e impressoras de fabricação japonesa, distribuídos por uma pequena rede de concessionários na década de 1980 na Alemanha Ocidental. Pelo contrato, firmado em 1984, o distribuidor obrigava-se a adquirir uma quota mínima de produtos, a manter um estoque de produtos e acessórios, adquirir produtos suficientes para exposição e demonstração, bem como prestar garantia e assistência técnica aos consumidores. Sobre ele recaia ainda a obrigação de instruir e treinar permanentemente seus funcionários; destacar um vendedor exclusivo para os produtos da marca; promover as vendas por meio de diversas medidas, dentre as quais campanhas publicitárias em jornais e revistas; criar uma linha (hotline) de atendimento aos clientes e instrui-los através de treinamentos, auxiliando-os em caso de problemas técnicos. O concessionário deveria também enviar relatórios frequentes sobre as vendas, a clientela e o desenvolvimento do mercado em sua área de atuação, além de prognósticos de fornecimentos para os próximos meses. Segundo o contrato, o distribuidor comprava e revendia os produtos em nome e conta própria, atuando como um comerciante autônomo perante o público. Embora o concessionário possuísse uma zona de atuação delimitada, o contrato ressaltava que disso não resultava qualquer direito de exclusividade para o revendedor. Este, porém, era proibido de vender produtos concorrentes do fabricante, salvo concordância expressa deste. Em 1990, contudo, o concedente passou a vender diretamente no território de vendas do distribuidor que, ao tomar conhecimento do fato, primeiro pleiteou - sem sucesso - o pagamento de uma margem de comercialização de 15% sobre o faturamento, mas depois resolveu o contrato, requerendo indenização por perdas e danos.  A ação indenizatória Na ação, o concessionário requereu que o concedente prestasse informações acerca das vendas diretas por ele - ou por empresas do grupo, com seu consentimento - realizadas no período indicado, bem como indenização dos danos daí decorrentes e dos resultantes do fim prematuro do contrato de concessão. Em contestação, o fabricante se defendeu alegando, em síntese, que, devido à inexistência de exclusividade na revenda, a venda direta seria regular. Além disso, alegou que a extinção do contrato fora irregular, pois o direito de desfazer o vínculo havia sido fulminado pela supressio, já que o revendedor, ao invés de impugnar imediatamente a conduta, solicitou apenas o pagamento de margem de comercialização. Com isso, o autor teria criado no réu a confiança legítima de que não mais exerceria seu direito de denúncia. A ação foi julgada parcialmente procedente em primeira instância, mas em apelação (Berufung), o Oberlandesgericht (OLG) München deferiu todos os pleitos do autor. A decisão do OLG München O OLG München entendeu, em suma, que a venda direta configurou descumprimento do dever de lealdade, anexo ao contrato por força do § 242 BGB, base legal do princípio da boa-fé objetiva, que exige do contratante agir com retidão e ter consideração pelos interesses - aqui: patrimoniais - legítimos da contraparte. Segundo a Corte, o modelo de organização de vendas adotado no contrato, o dever de aquisição quota mínima e de manutenção de estoque exigiam do revendedor um investimento patrimonial difícil de ser recuperado e redirecionado para outra atividade. Isso seria suficiente para impedir, no caso concreto, o fabricante de realizar venda direta sem qualquer aviso prévio e, dessa forma, surrupiar parte considerável da clientela do distribuidor. Afinal, segundo o Tribunal, o concessionário teria feito pelo menos uma parte do faturamento das vendas que o concedente obteve com a atuação indevida na zona demarcada no contrato. O fabricante deveria, portanto, ter avisado previamente que pretendia comercializar diretamente seus produtos na área de atuação do distribuidor, como impõe o dever de informação decorrente do § 242 BGB. Ao não fazê-lo, configurado restou o descumprimento contratual. Tendo em vista que o dever jurídico violado fora um dever lateral de conduta e não um dever de prestação, o OLG München qualificou a conduta do réu como violação positiva do contrato (positive Vertragsverletzung), que se configura sempre quando deveres laterais de conduta são violados durante o desenrolar contratual. O réu, então, inconformado, interpôs recurso de Revision perante o BGH. A decisão do BGH A Corte de Karlsruhe julgou improcedente o recurso, reconhecendo o direito do distribuidor às informações solicitadas, bem como à indenização por lucro cessante e perdas e danos decorrentes da resolução contratual, mas discordou, ao menos parcialmente, quanto aos fundamentos adotados pelo Tribunal a quo. Trata-se do processo BGH VIII ZR 48/92, julgado em 10/2/1993. Segundo o Bundesgerichtshof, todo fabricante é livre, em princípio, para organizar a venda de seus produtos da forma que melhor lhe aprouver. Contudo, quando decide delegar a distribuição de suas mercadorias a uma empresa autônoma, ele precisa levar em consideração - ao lado de seus próprios interesses - também os interesses legítimos do outro contratante e, dessa forma, abster-se de tudo quanto restrinja, sem motivo justificável, a posição de mercado do revendedor. O grau da consideração devida no caso concreto só pode ser definido casuisticamente, pois depende do arranjo contratual acordado entre as partes, principalmente do quanto o concessionário está integrado na organização de vendas do concedente e, logo, subordinado aos interesses do fabricante. Aqui vale a regra: quanto mais o distribuidor estiver integrado na organização de vendas do fabricante e o apoiar através do investimento de capital e pessoal, maior grau de consideração o concedente precisa ter pelos interesses econômicos e mercadológicos de seu parceiro contratual. O contrato de concessão, disse o BGH, pressupõe uma estreita colaboração econômica entre fabricante e revendedor, estando, portanto, submetido - em medida mais elevada que em outros tipos contratuais - a um dever de lealdade recíproco (gegenseitigen Treuepflicht). Esse dever obriga as partes a colaborar mutuamente durante a execução do contrato e, na busca pela satisfação de seus interesses pessoais, levar em consideração os interesses legítimos da contraparte, para quem o contrato também precisa fazer sentido enquanto operação econômica. Por isso, o dever de lealdade obriga ambos os contratantes a abster-se de condutas que possam frustrar o fim último (função econômica) do negócio ou desequilibrar o jogo das prestações5.  O fato do distribuidor subordinar sua atividade e o capital investido aos interesses do fabricante, obriga este a ter consideração pelos interesses legítimos daquele e a abster-se de contrariar seus interesses sem um motivo justificável. Quando o contrato assegura ao distribuidor um direito exclusivo de revenda ou uma posição equivalente, apenas motivos graves justificam intervenções - v.g., através da colocação de outros distribuidores, da redução da zona de atuação, etc. - na área de responsabilidade do distribuidor, disse a Corte de Karlsruhe. O Tribunal frisou, porém, que o concedente tem dever de lealdade mesmo face a revendedores sem direito de exclusividade, donde se conclui que a exclusividade de revenda, per si, não é fator determinante para o surgimento do dever de lealdade, mas sim o grau de integração e de subordinação do distribuidor ao fabricante. Para o Bundesgerichtshof, a interpretação do contrato celebrado entre as partes permitia a conclusão de que o fabricante violara culposamente o dever de lealdade ao vender diretamente produtos na área de atuação do distribuidor, que investiu capital, pessoal e trabalho na conquista de mercado para a marca, subordinando-se às ordens e aos interesses do concedente através, por exemplo, da obrigação de aquisição de quota mínima, de manutenção de estoque, do fornecimento de inúmeros relatórios, do emprego de pessoal especializado na venda dos produtos japoneses e, não menos importante, da proibição de concorrência aos produtos da marca. Na medida em que o fabricante vincula e amarra de tal forma o revendedor em sua organização de vendas, é evidente que ele não pode fazer concorrência direta ao contratante, disse a Corte. E isso por uma razão muito simples: sob a ótica concorrencial, a venda direta configura uma concorrência desleal do fabricante face ao próprio revendedor, pois aquele sempre pode oferecer mais barato seus produtos no mercado. Por isso, o BGH afirmou que a venda direta pelo concedente prejudica muito mais as oportunidades de venda do concessionário do que a colocação de outros revendedores em sua zona de atuação, pois esses adquirem os produtos nas mesmas condições que o distribuidor, concorrendo com ele em pé de igualdade. O fabricante, ao contrário, pode oferecer seus produtos no mercado por preços mais baixos e, assim, surrupiar a clientela do revendedor. São necessárias razões de peso (ex: grave ineficiência do revendedor) para justificar uma gravosa interferência na posição de mercado do concessionário, não demonstradas pelo réu no caso sub judicie. Dessa forma, o fabricante pôs-se em concorrência desleal, i.e., sem igualdade de condições com o distribuidor, roubando-lhe a clientela e prejudicando suas chances de venda e de lucro. O Tribunal afastou ainda a alegação de que o réu havia se reservado o direito de realizar vendas diretas no mercado ao não conceder o direito de exclusividade ao distribuidor. Para o BGH, em razão das condições contratuais acordadas, vale dizer, da carga obrigacional suportada pelo revendedor e da cláusula de reserva de área de atuação, o fabricante só poderia, quando muito, reservar-se o direito de inserir outros distribuidores na área, mas não de atuar diretamente, em concorrência desleal com o autor. Dessa forma, o Bundesgerichtshof concluiu que a prática de venda direta pelo fornecedor configurou grave descumprimento contratual (violação do dever de lealdade) e, portanto, justa causa para a resolução do contrato, condenando o réu a indenizar os prejuízos causados ao autor. O justo motivo consistiu na prática de venda direta em si e não na falta de aviso prévio, como entendeu o OLG München. Os juízes de Karlsruhe afastaram, por fim, a alegação de Verwirkung, isto é, de perda do exercício do direito de desfazimento do vínculo em razão da confiança legítima despertada na contraparte de que não exerceria tal direito. A Verwirkung, conhecida no mundo latino como supressio, é um subgrupo do exercício inadmissível do direito por contrariedade à boa-fé, afirmou o BGH. Ela ocorre quando o titular, embora em condições de fazê-lo, queda inerte durante longo tempo despertando na contraparte a confiança legítima de que o direito não será exercido, fazendo com que o outro contratante guie seu comportamento de acordo com tal crença. Nesse caso, o exercício posterior do direito torna-se inadmissível, nos termos do § 242 BGB. No caso concreto, porém, o BGH entendeu que o fabricante não tinha motivos objetivos para confiar legitimamente que o distribuidor não exerceria seu direito extintivo, já que ele manifestou claramente sua discordância com a prática encetada pelo fornecedor de vender diretamente produtos na zona delimitada no contrato, que restringia suas oportunidades de venda e lucro.  A importância da decisão Essa decisão do BGH tornou-se referência quando se discute o conteúdo e a extensão do dever de lealdade no âmbito dos contratos de concessão comercial e a prática canibalesca de vendas diretas no mercado pelo produtor, pondo-se em concorrência com o próprio distribuidor. No contexto da concessão comercial, o dever de lealdade impõe ao distribuidor o dever de zelar pelos interesses patrimoniais do concedente, o que implica tudo fazer, dentro do razoável, para promover as vendas e proteger a reputação e imagem da marca, mas, por outro lado, exige do concedente ter consideração pelos interesses legítimos do concessionário durante suas decisões empresariais e não contrariar, sem motivo justificável, os interesses do distribuidor, o que ocorre sempre que o fabricante faz venda direta irregular no mercado6. A prática da venda direta inverte - e subverte - a lógica jurídica e econômica do contrato de concessão, que pressupõe a adoção do sistema indireto de vendas no qual o distribuidor compra o produto do fabricante para revender no mercado. A aquisição para revenda forma o núcleo duro da concessão, pois é a revenda dos bens que permite ao distribuidor recuperar os investimentos realizados e auferir lucro. O fim último, vale dizer, a função econômica do contrato, que a doutrina italiana chama inadequadamente de causa, consiste justamente na possibilidade de revenda e, portanto, de obtenção do lucro para ambos: concedente e concessionário. Evidentemente, o distribuidor - agente racional que age de forma a maximizar sua eficiência econômica - só assume a obrigação de adquirir os produtos do fabricante em troca em troca do privilégio de comercializar esses bens diretamente no mercado7. É em troca da oportunidade de venda que ele aceita fazer os robustos investimentos exigidos pelo concedente e se sujeita à sua orientação, controle e fiscalização. Porém, no momento em que o concedente vai ao mercado vender diretamente seus produtos, o contrato perde  todo o sentido para o distribuidor, pois vira uma operação em que apenas aquele ganha, já que o revendedor é obrigado a comprar determinada quantia (quota) de produtos, mas não consegue escoá-la no mercado devido à concorrência desleal do próprio fabricante. Nesse caso, o fabricante lucra em duas frentes: vendendo diretamente no mercado e desovando sua produção nas costas do revendedor, que adquire a propriedade dos bens para revender por própria conta e risco. O concedente, entretanto, não sofre prejuízo algum quando os produtos do concessionário ficam sem comprador. Isso configura, à toda evidência, claro oportunismo, i.e., a prossecução egoística dos interesses individuais ou, na precisa definição de Oliver Williamson, a busca do interesse próprio com perfídia e astúcia8. Por isso, conquanto a venda direta possa ser acordada entre as partes no contrato, ela não pode esvaziar o sentido (Sinn) e o fim (Zweck) do contrato de concessão, cujo núcleo essencial consiste na aquisição de produtos para revenda, como atentamente alertam doutrina e jurisprudência alemãs. Percebe-se, em síntese, que a venda direta irregular pelo concedente tem impactos brutais na operação da concessão comercial. Sob a ótica do direito contratual, representa grave violação ao dever de lealdade, pois frustra o fim último (causa ou função econômica) do contrato ao subtrair a oportunidade de venda do distribuidor. Sob a ótica da racionalidade econômica, inerente aos contratos, a venda direta impede o revendedor de obter o lucro esperado como contraprestação pelos vultuosos investimentos realizados no negócio. E, por fim, sob a ótica do direito concorrencial, o concedente coloca-se em concorrência desleal direta com o próprio concessionário, pois vende mais barato no mercado. Ou seja: verdadeira canibalismo econômico. ____________ 1 FORGIONI, Paula. Contratos de distribuição. São Paulo: RT, 2005, p. 56. 2 PINTO MONTEIRO, António. Contratos de distribuição comercial. Coimbra: Almedina, 2018, p. 39. 3 PINTO MONTEIRO, António. Op. cit., p. 38. 4 Dentre outros: ULHOA COELHO, Fábio. Novo manual de direito comercial. 31ª. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 411. 5 MENEZES CORDEIRO, António. Da boa fé no direito civil. Coimbra: Almedina, 2001, p. 606. Esse é o entendimento pacífico no direito alemão, como atesta, dentre outros: HUBER, Peter. Der Inhalt des Schuldverhältnisses. In: Staudinger BGB - Eckpfeiler des Zivilrechts. Michael Martinek (coord.). Berlin: de Gruyter, 2015, p. 328. 6 SCHMIDT, Karsten. Handelsrecht. 5a ed. Köln: Carl Heymanns, 1999, p. 755 s. A doutrina lusitana segue a mesma linha, como depreende-se de: PINTO MONTEIRO, António. Op. cit., p. 73. 7 CANARIS, Claus-Wilhelm. Handelsrecht. 24 ed. München: Beck, 2006, p. 284. 8 Markets and Hierarchies: Analysis and Antitrust Implications - A Study in the Economics of Internal Organization. New York: The Free Press, 1975, p. 26.
terça-feira, 26 de outubro de 2021

Entrevista: Prof. Dr. Erasmo Valladão

A coluna German Report dessa semana brinda os leitores com uma entrevista exclusiva com um dos mais consagrados comercialistas brasileiros da atualidade: Erasmo Valladão Azevedo e Novaes França, professor associado de Direito Comercial da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP)1. Erasmo Valladão graduou-se em Direito pela USP em 1973 e, em 1984, partiu para um Summer Program na Universidade de Columbia, nos Estados Unidos. Retornando ao Brasil, entrou para o curso de mestrado em Direito Comercial sob a orientação de ninguém menos que Waldírio Bulgarelli, apresentando, em 1992, a dissertação: Ensaio sobre o interesse da companhia e sua tutela nas deliberações assembleares. Em 1998, ele defendeu tese de doutorado, perante a mesma Faculdade e sob orientação do mesmo mestre, com o tema: Da invalidade das deliberações da assembleia das companhias brasileiras. A livre-docência veio em 2012. Desde 2000 é professor da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, onde começou como assistente do renomado Prof. Luiz Gastão Paes de Barros Leães em 1996, tendo alçado, décadas depois, a Chefia do Departamento de Direito Comercial em sua alma mater (2016-2019). Sua área de atuação centra-se basicamente no direito societário e mercado de capitais, analisados sempre sob uma ótica comparada. Poliglota, Erasmo Valladão é um exímio comparatista e o grande responsável pela difusão entre nós das ideias do brilhante societarista alemão, Herbert Wiedemann, recentemente falecido, com quem mantinha laços de amizade e estreita correspondência há muitos anos. Dentre os textos lapidares que ele traduziu do amigo alemão, merecem destaque: "O pequeno acionista é acionista?" (Ist der Kleinaktionär kein Aktionär?), juntamente com Bruno Di Dotto; "Interpretação jurídica e musical - um ensaio", (Juristische und musikalische Interpretation - ein Essay), com Thiago Saddi Tannous e o excerto do livro de Wiedemann, no qual o autor aborda os fundamentos do direito societário, publicado originalmente na RDM 143/66. Aliás, a admiração pelo direito comercial e societário alemão fez com que nosso genial societarista, aos 55 anos, com a humildade que só os grandes têm, resolvesse estudar a língua de Goethe. Sem sombra de dúvida, um grande feito! Só quem já passou por isso, sabe o esforço hercúleo que é estudar uma língua complexa e difícil como o alemão na fase adulta, em meio a todos os compromissos inadiáveis da vida cotidiana. Foram anos de dedicação, mas o sacrifício valeu à pena, porque, como diz Erasmo Valladão, o estudo dos juristas alemães descortinou novas perspectivas acerca do direito societário e da teoria geral do direito. Hoje, seus alunos têm o privilégio de, desde cedo, confrontar-se com institutos, teorias e regras do direito societário alemão que, ainda quando não aplicáveis ao direito brasileiro, ampliam demasiadamente a forma de pensar o próprio direito, aguçando o senso crítico do estudioso. O prof. Erasmo Valladão tem uma vastíssima publicação, desde artigos, pareceres, coletâneas e livros, dentre os quais merecem destaques três clássicos: Conflito de interesses nas assembleias de S. A, A sociedade em comum e Temas de direitos societário, falimentar e teoria da empresa, todas publicados pela Editora Malheiros. Ao rol acresça-se ainda a obra Direito processual societário, em coautoria  com Marcelo Vieira von Adamek, publicação da JusPodium. Comercialista renomado, compõe o Conselho Editorial da Revista de Direito Mercantil (RDM), da Editora Malheiros e coordena a prestigiosa Revista de Direito das Sociedades e dos Valores Mobiliários, publicada pela Editora Almedina. É advogado, parecerista e árbitro, atuando sobretudo nas áreas empresariais e civil. Nessa entrevista, ele faz importantes considerações sobre questões centrais do direito comercial e societário contemporâneo, falando sobre a autonomia do direito comercial, a relevância dos deveres de informação e lealdade no direito societário, bem como sobre o ensino atual da disciplina nos cursos de graduação. E, claro, fala sobre a importância do direito comparado, sobretudo da comercialista alemã capitaneada por Herbert Wiedemann e Karsten Schmidt, que tem exponentes como  Thomas Raiser, Rudiger Veil, Götz Hueck e as brilhantes professoras Christine Windbichler, da Universidade Humboldt (Berlim) e Barbara Grunewald, da Universidade de Colônia, que desde 2018 integra a comissão de modernização do direito das sociedades. Em suma: reflexões de um grande Mestre sobre temas contemporâneos desafiadores. Confira a entrevista: O senhor é um dos mais renomados comercialistas na atualidade e um profundo conhecedor do direito comercial e societário alemão. Como surgiu sua ligação com o direito germânico? EV: Eu já tinha ligação através de traduções italianas e espanholas e me dei conta, até por indicação do meu querido amigo e colega Prof. José Alexandre Tavares Guerreiro, de que precisava aprender alemão para conhecer, no original, a profundidade das obras jurídicas alemãs (e também as de alguns romancistas e poetas). Havia tentado aprender alemão por 2 vezes (aos 16 e aos 47 anos). Aos 55 anos, recomecei, sob promessa de cometer suicídio em caso de insucesso... Eu tinha uma reserva de US$20,000.00 e pensei cá comigo: quer saber, eu vou investir em mim! Principiei em janeiro de 2004, na Berlitz School (o Goethe Institut, onde eu queria fazer o curso intensivo, só tinha aulas no período noturno, em que eu leciono na Faculdade). E recomecei pra valer! Tinha aulas de 1 hora e 30 minutos 4 vezes por semana, além dos estudos e resolução de questões em casa, tudo somando de 12 a 18 horas semanais. Torrei todo o meu dinheiro no curso, que era caríssimo. Foi o melhor investimento que fiz na vida! No final do curso, tive aulas com uma excelente mestra, Beatriz Rose, que se tornou minha professora particular. O alemão é a língua-mãe dela, embora seja brasileira. O estudo dos juristas alemães me fez dar um salto no aprendizado do direito societário e da teoria geral do direito. Durante o curso, me vali dos excelentes livros da Profª Ina Warncke Ashton (Curso de Alemão para Juristas, vols. 1 e 2). Em julho, com o livro da Profª Ina, comecei a ler a Constituição Alemã (Grundgesetz) e, em setembro, já estava lendo, embora com muita dificuldade no princípio, o Gesellschaftsrecht do Karsten Schmidt. Como o vocabulário jurídico é muito mais restrito, é bem mais fácil ler o livro de um jurista do que um romance ou um poema. Quem me falou para ler imprescindivelmente o Gesellschatsrecht I (de 1980), do Herbert Wiedemann, foi o Prof. Calixto Salomão Filho. Encomendei-o na Amazon e estava esgotadíssimo. Só consegui obter um exemplar usado depois de um ano. Foi uma revelação para mim a originalidade e a profundidade do pensamento dele. O Brasil seguiu a linha do direito italiano e unificou as obrigações civis e comerciais, provocando dissenso na doutrina comercialista nacional. Na Europa há dúvidas acerca da autonomia científica do direito comercial. Como o Senhor vê a questão da autonomia do direito comercial? EV: Para mim é muito claro que o Direito Comercial é um direito especial, que se formou ao lado do direito comum da Idade Média (que abrangia principalmente o direito romano e o direito canônico). O grande mestre Tullio Ascarelli dizia que o Direito Comercial é uma categoria histórica (ou seja, não é uma categoria racional), que se desenvolveu à semelhança do direito pretoriano em relação ao  jus civile e à equity em relação ao common law. Mas, no tocante ao direito das obrigações, há muito pouca diferença - que, aliás, está assinalada no Código Civil de 2002 com relação a alguns contratos (v., por ex., o art. 658). É evidente que o Direito Comercial é muito mais dinâmico que o Civil, comportando critérios diferentes de interpretação, o que pode muito bem ser feito pelos magistrados (no direito alemão há uma palavra para isto: Rechtsfortbildung, que significa desenvolvimento jurisprudencial do direito). Como quer que seja, mesmo na Itália, em que houve a unificação do Direito Civil e do Direito Comercial, a autonomia do Direito Comercial é plenamente reconhecida, tanto que este último é estudado nas Faculdades de Direito separadamente do Direito Civil. A boa-fé objetiva do Código Civil equivale à Treu und Glauben do § 242 do BGB, que é considerada um princípio estrutural do direito alemão, principalmente do direito privado. Segundo os alemães, a boa-fé exprime, em suma, dois comandos básicos: agir com lealdade e ter consideração pelos interesses legítimos da contraparte. O dever de lealdade (Treuepflicht) é um dos deveres principais da boa-fé. Qual a importância do Treuepflicht no direito societário e quais seus principais desdobramentos dogmáticos? EV: O eminente Prof. Marcelo Vieira von Adamek, que realizou um profundo estudo sobre o desenvolvimento do Treuepflicht no direito societário alemão em sua tese de doutorado (publicada sob o título "Abuso de minoria em Direito Societário", SP: Malheiros Editores, 2014), afirmou que o dever de lealdade é um verdadeiro sobreprincípio do direito societário. É um conceito funcional que, dada a elasticidade, permite sua aplicação aos diversos tipos societários, diferenciadamente. Não se pode utiliza-lo da mesma maneira em uma macro-sociedade anônima (embora ele exista: confira-se o art. 115 da LSA) e em uma sociedade limitada personalista. Ademais, o Treuepflicht ocorre tanto nas relações entre o sócio e a sociedade como nas relações dos sócios entre si. Qual a relevância do dever de informação no direito societário contemporâneo, em especial no âmbito das companhias abertas? EV: O dever de informação é absolutamente fundamental em qualquer tipo societário, pois é um dever instrumental, que permite ao sócio exercer seus direitos. Nas companhias abertas, a sua importância é exponencialmente acentuada, sobretudo no direito contemporâneo. Imagine-se o caso de uma companhia petrolífera que descobre um novo poço de petróleo, circunstância que influirá decisivamente no preço das suas ações (que, obviamente, aumentará de valor). Na ausência de publicação de um fato relevante, vários acionistas negociam as suas ações tendo por base a cotação anterior. Posteriormente, com atraso injustificável, é publicado o fato relevante. Não é preciso salientar que os acionistas que venderam suas ações antes da publicação da informação sofrerão graves prejuízos. Qual a influência do direito societário alemão e, sobretudo, do pensamento de Herbert Wiedemann no direito societário brasileiro? EV: Eu sou até suspeito para falar sobre isso... Os meus cursos de pós-graduação, na parte expositiva, baseiam-se fundamentalmente na obra desse grande mestre, recentemente falecido, que tem uma visão dialética, não linear, do fenômeno societário. O seu enfoque, a partir dos princípios estruturais do direito societário (abrangentes do ordenamento societário propriamente dito, do ordenamento patrimonial, e do ordenamento da empresa, e suas interrelações) e dos princípios valorativos do direito societário (abrangentes dos direitos individuais, dos direitos da minoria, dos direitos dos investidores, dos interesses dos credores e dos interesses dos trabalhadores) é, fora de qualquer dúvida, uma das maiores contribuições ao estudo do direito societário de todos os tempos. E as lições do mestre eu venho ensinando aos meus alunos desde o ano de 2006! Não sei se há algum outro autor que tenha sido tão influenciado por ele como eu. No tocante aos outros mestres alemães, na segunda metade do século XX, destacam-se Karsten Schmidt, Friederich Kübler (cuja 5ª edição do seu Gesellschaftsrecht foi otimamente traduzida para o espanhol, tendo sido objeto de meus seminários de pós-graduação no segundo semestre de 2020), Thomas Raiser e Rudiger Veil, Barbara Grunevald, Götz Hueck e Christine Windbichler, entre tantos outros. Muitos autores brasileiros recorrem predominantemente à literatura jurídica norte-americana como fonte de comparação para questões dogmáticas. Em que medida esse recurso lhe parece adequado? EV: A literatura jurídica norte-americana (e sobretudo a jurisprudência norte-americana) sobre o direito societário é riquíssima, tendo como expoente, a meu ver, o Robert Charles Clark, cuja principal obra, Corporate Law (1986), até hoje é considerada a obra fundamental sobre a matéria. O grande problema é que, para fins dogmáticos, as obras norte-americanas não são de tanta valia porque o direito anglo-saxão pertence a outra família jurídica. O sistema de precedentes não encontra exata analogia ou semelhança na família do civil law, ou seja, do direito continental, da qual o nosso direito descende. Qual é a relevância, em sua visão, da tradução de textos alemães para o português? Quais suas principais traduções? EV: Veja bem. É relevantíssima. Antes de aprender alemão, eu tinha conhecimento do direito germânico através dos livros dos juristas portugueses... Todos os grandes societaristas de lá vão aprender na Alemanha. Mas, infelizmente, não há traduções para o português dos livros de direito societário alemão. Para o italiano e para o espanhol há (no tocante a este último, ao menos uma... e de um livro excelente, aliás, que já mencionei). As minhas principais traduções são as de um trecho do livro supracitado do Wiedemann, que denominei de "Excerto do Direito Societário" (RDM 143/66), do texto "O pequeno acionista é acionista?", que realizei em conjunto com meu ex-orientando Bruno Di Dotto (RDSVM - Edição Comerativa dos 40 anos da LSA - pp. 183 e ss) e "Interpretação Jurídica e Musical - Um ensaio" (RDSVM 12/55), que realizei em conjunto com meu ex-orientando Thiago Saddi Tannous. Como o Senhor avalia o ensino do direito societário nos cursos de graduação no Brasil? Seria útil, em sua visão, uma aproximação aos métodos atualmente adotados na Alemanha, em especial, a resolução de casos práticos? EV: Absolutamente insatisfatório. Após a reforma da grade de ensino, aliás, o estudo das sociedades anônimas deixou de ser obrigatório. É facultativo! Quando eu comecei a dar aula nas Arcadas, no ano 2000, o ensino das sociedades comerciais compunha a "parte geral" do Direito Comercial, lecionado no 1º semestre do 2º ano. O estudo das sociedades anônimas era realizado no 2º semestre, em cinco aulas obrigatórias, quatro expositivas e uma de seminário! Os professores de sociedades anônimas agora fomos praticamente enxotados do curso... Já quanto ao método, tenho uma visão particular. Meu método se dirige à interpretação da lei, para que o aluno pense com a sua própria cabeça. Pouco interessa o que grandes juristas dizem se a argumentação deles não for convincente. Direito, como disse certa vez o Prof. Comparato, é uma ciência da argumentação. Mas é óbvio que não dispenso, pelo menos em uma das provas bimestrais, a resolução de casos práticos e, nos seminários, a análise de julgados. O Senhor, assim como Wiedemann, também é músico e traduziu, recentemente, texto sobre a interpretação jurídica e a interpretação musical. Em sua opinião, quais são os paralelos possíveis entre o direito e a música? EV: Como nos ensina o excelente texto do Wiedemann, traduzido por mim e pelo Thiago Saddi Tannous, o principal paralelo é a questão da interpretação. Como é possível que uma obra de Beethoven, de Chopin, de Schumann, que tem indicações precisas sobre o andamento (presto, prestíssimo, adagio), sobre a dinâmica (piano, pianíssimo, molto fortissimo etc.) possa ser interpretada de formas muito diversas ao longo dos tempos? E por quê muitas vezes interpretamos as leis de ontem sob a ótica de hoje? As obras humanas se desprendem dos seus autores, adquirem vida própria... __________ 1 Agradeço ao dileto amigo, brilhante germanista, Thiago Saddi Tannous, pelas contribuições para a entrevista.
No último dia 27/9/2021, a Escola da Magistratura do Rio de Janeiro sediou um dos maiores eventos já realizados no Brasil em homenagem a Claus-Wilhelm Canaris, professor emérito da Universidade de Munique, falecido em março deste ano1. Pela primeira vez, três de seus mais renomados discípulos falaram sobre temas importantes trabalhados por Canaris ao longo da vida: Reinhard Singer (Universidade Humboldt de Berlim), Hans Christoph Grigoleit (Universidade de Munique) e Thomas Riehm (Universidade de Passau). Participaram também do evento os professores Manuel Carneiro da Frada (Universidade do Porto), Nelson Nery Júnior (PUCSP), Rosa Maria de Andrade Nery (PUCSP), Cláudia Lima Marques (UFRGS) e Aline de Miranda Valverde Terra (UERJ), além de Judith Martins-Costa, Marcos Alcino de Azevedo Torres, José Roberto de Castro Neves, Flávia Viveiro de Castro e José Guilherme Vasi Werner como debatedores. Tive o prazer de mediar o painel sobre responsabilidade pela confiança, no qual Reinhard Singer e Manuel Carneiro da Frada expuseram uma visão geral sobre a teoria da responsabilidade pela confiança, desenvolvida por Canaris em sua obra homônima: Vertrauenshaftung, publicada originalmente em 1971 e, em seguida, o painel sobre direito da perturbação da prestação, que contou com as exposições de Hans Christoph Grigoleit e Nelson Nery Júnior. A Des. Cristina Tereza Gaulia coordenou os painéis seguintes: dano contratual e interesse positivo/negativo, assunto brilhantemente tratado por Thomas Riehm e Rosa Maria de Andrade Nery e, ao final, direito do consumidor, no qual Cláudia Lima Marques abordou o problema do superendividamento e Aline de Miranda Valverde Terra defendeu a transmissibilidade da herança digital com base no leading case julgado pela Corte infraconstitucional alemã (Bundesgerichtshof), em 2018. O encerramento ficou a cargo do Des. Marco Aurélio Bezerra de Melo, comentando importantes julgados do Superior Tribunal de Justiça sobre contratos. Devido à complexidade dos temas, a coluna de hoje abordará apenas alguns pontos da exposição do Prof. Dr. Hans Christoph Grigoleit, que tratou de duas figuras centrais do chamado direito da perturbação da prestação (Leistungsstörungsrecht): impossibilidade e quebra da base do negócio. Grigoleit contou um pouco dos bastidores da Reforma de Modernização do Direito das Obrigações, ocorrida em 2002 na Alemanha, a maior reforma feita até então no Código Civil alemão: o Bürgerliches Gesetzbuch (BGB). Antes de sublinhar os principais aspectos da fala do renomado professor da Universidade de Munique, faz-se necessário uma curta retrospectiva histórica. O BGB/1900, como toda codificação, continha falhas e lacunas que foram corrigidas ao longo do tempo pelo trabalho sério e responsável da jurisprudência alemã, amparada na doutrina mais avançada da época. O prazo prescricional ordinário, por exemplo, era extremamente longo (30 anos), enquanto outros, demasiadamente curtos, como o de seis meses para reclamar vícios redibitórios na compra e venda. Outra deficiência grave da codificação era a ausência de um sistema de perturbação da prestação: a primeira versão do BGB disciplinava apenas duas hipóteses de perturbação, a impossibilidade e a mora, esta entendida no sentido técnico de cumprimento tardio da obrigação. O Codex não regulava o cumprimento defeituoso, muito menos a violação dos deveres de conduta impostos às partes pelo princípio da boa-fé objetiva - Grundsatz von Treu und Glauben (§ 242 BGB) - a fim de tutelar a retidão da conduta e a confiança no comércio jurídico. Quando o BGB entrou em vigor em 1/1/1900, os deveres de consideração - terminologia atual usada no § 241 I BGB/2002 para exprimir todos os deveres laterais - ainda não gozavam de reconhecimento doutrinário e jurisprudencial. Rudolf von Jhering foi quem primeiro intuiu a existência desses deveres ao lançar as bases teóricas da culpa in contrahendo em 18612. A culpa in contrahendo ou culpa na contratação é o termo latino usado no direito alemão para exprimir a responsabilidade pré-contratual pela violação de um dever pré-contratual na fase de preparação do negócio. Na época, Jhering vislumbrou a responsabilidade daquele que, agindo com negligência (violação do dever de diligência), deu causa à celebração de um contrato nulo. Ele deveria indenizar os danos que a contraparte sofreu por ter confiado na celebração do negócio, a exemplo dos custos de transporte para envio da mercadoria. Foi Herman Staub quem, em 1902, percebeu que esses deveres poderiam ser descumpridos também durante a execução do contrato. Staub vislumbrou uma série de situações nas quais o devedor, por meio de um comportamento positivo, descumpre o acordado, por exemplo, realizando a prestação de forma defeituosa. Essas situações distinguiam-se de violações negativas em que o devedor deixa de realizar a obrigação devida, o que dificultava seu enquadramento nas categorias da impossibilidade ou da mora. Ele fala, então, em violações positivas do contrato. Hoje, a doutrina reconhece que Staub identificou não só uma, mas duas importantes formas de perturbação da prestação: o cumprimento defeituoso (§ 281 BGB/2002) e a violação dos deveres de consideração no bojo do contrato (§ 282 BGB/2002). Foi Heinrich Stoll quem primeiro fundamentou na boa-fé objetiva do § 242 BGB/1900 os deveres de consideração - à época chamados deveres de proteção (Schutzpflichten), pois visam tutelar a esfera jurídica (status quo) do lesado3. Até então, a doutrina pandectista, a exemplo de Bernard Windscheid e Franz Leonhard, tentava explicar o surgimento desses deveres através de um contrato fictício, presa ainda à ideia de que apenas o contrato - vale dizer: a autonomia da vontade - criava deveres para as partes4. A partir daí começa a se desenvolver na Alemanha uma rica e revolucionária teoria da proteção da confiança e dos deveres de proteção, que vai permitir o surgimento de importantes figuras, ausentes no BGB/1900: culpa in contrahendo, violação positiva do contrato, responsabilidade pós-contratual, cumprimento defeituoso, quebra da base do negócio, contratos com eficácia de proteção face a terceiros, dentre outras. E vai promover a renovação de conceitos e institutos já estabelecidos: abandona-se a ideia de romana de obrigação e passa-se a visualizar a relação obrigacional como processo, renova-se o abuso do direito com o reconhecimento das figuras do venire contra factum proprium, Verwirkung (supressio) e Einwirkung (surrectio), impactando ainda a interpretação do negócio jurídico, sobretudo com o controle do conteúdo dos contratos pelo juiz. Por isso, no final da década de 1970, parte importante do direito privado vigente na Alemanha não possuía base legal no BGB, mas era fruto de construção doutrinária e jurisprudencial. Nessa época, segundo Grigoleit, ficou clara a necessidade de uma ampla reforma na codificação para recepcionar esses novos institutos e preparar o BGB para o novo século. O problema da fragmentação do direito privado se intensificou enormemente com as diretivas europeias, principalmente na área do direito do consumidor que, obviamente, também não fora disciplinado no BGB/1900. O fator desencadeador da reforma do direito das obrigações do BGB foi a Diretiva de Vendas de Bens de Consumo (Diretiva 99/44/CE, de 25/5/1999), que precisava ser transposta para o direito interno. Ela mostrou a necessidade de uma reforma estrutural no direito da compra e venda do Codex para abarcar ainda compra e venda de consumo.      Em 2000, o Governo e o Ministério da Justiça decidiram aproveitar o ensejo da transposição da mencionada diretiva para empreender uma grande reforma no direito das obrigações (Schuldrecht) do BGB, abrindo o caminho para a "grande solução" (große Lösung), i.e., a grande reforma. A comissão de juristas encarregada da reforma recebeu a tarefa não apenas integrar as diretivas europeias de consumo no BGB, mas também todos os institutos surgidos com o aperfeiçoamento judicial do direito, além de modernizar o regime prescricional e sistematizar, de forma consistente, o regime geral de perturbação da prestação. Canaris integrou a comissão responsável pela sistematização do direito da perturbação da prestação, exercendo ali forte influência em questões centrais em decorrência de seu renome e autoridade científica. Grigoleit exemplifica a influência de Canaris na elaboração dos novos §§ 275 e 313 do BGB/2002, nos quais foram positivados os institutos da impossibilidade (Unmöglichkeit) e da quebra da base do negócio (Wegfall der Geschäftsgrundlage). Segundo Grigoleit, a redação inicial do § 275 deixava uma margem muito ampla de apreciação para o juiz identificar no caso concreto a impossibilidade da prestação. O Esboço apresentado pelo Ministério da Justiça definia a impossibilidade da seguinte forma: "§ 275 Limites do dever de prestação. Se o débito não consistir em dívida pecuniária, o devedor pode recusar sua execução enquanto e na medida em que não a puder executar com os esforços que é obrigado a empregar de acordo com o conteúdo e natureza da relação obrigacional." Para Canaris, a regra causaria muita insegurança jurídica, pois flexibilizava demasiadamente o pacta sunt servanda ao deixar à intuição do juiz dizer, de acordo com o conteúdo e a natureza da relação obrigacional, quais seriam os esforços necessários ao cumprimento da prestação. Por sugestão de Canaris, o § 275 BGB/2002 passou a ter uma redação mais objetiva, com suportes fáticos claramente definidos. Dessa forma, com a nova redação do § 275 BGB, o devedor só fica liberado do cumprimento da obrigação em casos excepcionais claramente delimitados no incisos 1 a 3 do dispositivo. Canaris também foi responsável por distinguir a impossibilidade (§ 275) da quebra da base do negócio (§ 313), tanto ao nível do suporte fático, quanto dos efeitos jurídicos. Na impossibilidade, o devedor não consegue cumprir a prestação devido a um obstáculo intransponível que torna sem sentido a manutenção do dever de prestar. Por isso, o dever de realizar a prestação primária decai e o devedor se libera do cumprimento, só devendo indenizar o credor quando a impossibilidade lhe puder ser imputada a título de culpa. Exemplos: vendedor não consegue entregar o quadro destruído pelo fogo (impossibilidade física), cantora não pode se apresentar no conserto por causa do filho doente (impossibilidade pessoal) ou o devedor não pode enviar a máquina alienada ao exterior por causa de uma proibição de exportação (impossibilidade jurídica). Grigoleit chama atenção ao fato de que a impossibilidade só libera o devedor do cumprimento da obrigação primária, não afetando obrigações secundárias, como a de indenizar eventuais perdas e danos, nem os deveres ético-jurídicos de conduta. Diferentemente se passa na quebra da base do negócio em decorrência de eventos supervenientes: aqui o cumprimento ainda é possível, mas extremamente difícil para o devedor, daí a necessidade de readaptar o negócio para viabilizar a execução. Por isso, a consequência jurídica imediata da alteração das circunstâncias é o surgimento para a parte onerada de uma pretensão à revisão (Anpassungsanspruch), podendo ela, então, pleitear a adaptação do contrato a fim de que as desvantagens decorrentes da alteração superveniente das circunstâncias iniciais do negócio sejam repartidas entre as partes. Em outras palavras: enquanto a impossibilidade libera o devedor da prestação primária, a quebra da base do negócio conduz a uma repartição dos prejuízos, tendo o juiz uma margem de apreciação maior na quebra da base do que face à impossibilidade da obrigação, salienta Grigoleit. A distinção entre as duas figuras tem crucial importância devido às suas consequências práticas. Essa é uma lição a ser retida por aqui, pois, com a pandemia, muitos recorreram à impossibilidade a fim de resolver um problema de excessiva dificuldade de prestar, reflexo da quebra da base econômica do negócio provocada pelas medidas governamentais de contenção do vírus, como isolamento social e paralisação das atividades comerciais. Mas Grigoleit, nos passos de Canaris, foi claro: a verdadeira impossibilidade torna impossível o cumprimento. Enquanto o cumprimento ainda for viável, mas requeira esforço excessivo do devedor, não há impossibilidade nos termos do § 275 I BGB, mas impossibilidade econômica (§ 275 II BGB) ou perturbação na base do negócio (§ 313 BGB). E aqui temos mais uma lição do direito alemão e da genialidade de Canaris: a impossibilidade econômica - ou, nas palavras de Grigoleit, impossibilidade por desproporcionalidade (§ 275 II BGB) - só existe quando as despesas que o devedor suportaria para cumprir a obrigação estiverem em absoluta desproporção em relação às vantagens auferidas pelo credor com o cumprimento. Essa crassa desproporcionalidade deve ser apurada segundo um critério econômico, tendo em vista ainda o conteúdo da relação obrigacional e a boa-fé, tão combalida atualmente no Brasil em decorrência do uso desenfreado pela doutrina e jurisprudência. Segundo o § 275 II do BGB: "O devedor pode recusar a execução quando esta exigir um esforço que, tendo em vista o conteúdo da relação obrigacional e o mandamento da boa-fé objetiva, esteja em grosseira desproporção com o interesse do credor na execução. Na determinação dos esforços esperados do devedor, deve-se também levar em conta se o devedor deve responder pelo obstáculo à prestação." O § 275 II BGB tem em vista casos como o do devedor que precisa dragar o fundo do lago para recuperar o anel devido ao credor. É a hipótese ainda em que os custos para o içamento da carga devida, afundada com o navio, excedem significativamente seu valor ou do devedor que se compromete a reparar uma máquina, mas após o início dos trabalhos verifica que o custo do conserto excede consideravelmente o valor do equipamento, porque uma peça de reposição está indisponível. Ou seja, casos extremos nos quais economicamente o cumprimento não faz sentido algum, nem mesmo para o credor. O legislador teve em vista aqui hipóteses de absoluta ineficiência econômica, colocando à disposição do julgador um critério objetivo para a constatação da chamada "impossibilidade econômica". Esses casos de absoluta ineficiência econômica distinguem-se totalmente da quebra da base do negócio, pois aqui o cumprimento não está em extrema desproporção ao interesse do credor e ainda faz sentido para ambas as partes. Perdas extremas do devedor não o liberam do dever de prestar, mas autorizam o pedido de revisão contratual, disse Grigoleit. Assim, se os custos de produção do vendedor elevam-se consideravelmente por causa do aumento astronômico do preço do barril de petróleo, tornando o negócio para ele um prejuízo absoluto, isso não configura impossibilidade econômica, pois o comprador aufere benefícios financeiros com o preço "baixo" pago. Nesses casos, resta apenas o recurso à figura da quebra da base do negócio e, com isso, uma readaptação do contrato, não liberando o devedor do dever de cumprir a prestação, explica Grigoleit. O brilhante discípulo de Canaris explicou em detalhes a teoria da quebra da base do negócio. Em apertada síntese, para a configuração da perturbação na base do negócio é necessário que as circunstâncias integrantes da base do negócio, sobre a qual a vontade negocial comum às partes foi construída, tenham se alterado profundamente, dificultando excessivamente o cumprimento do contrato ou frustrado irremediavelmente o fim último do negócio. Diz-se, então, que a manutenção do contrato original tornou-se irrazoável, fazendo-se necessária a revisão do negócio. Grigoleit lembrou que a base subjetiva do negócio, ou seja, as representações comuns às partes no momento da contratação, não se confunde - como muitos acusam por aqui - com os motivos do negócio, que pertencem à esfera de risco exclusiva da parte. A expectativa de continuidade do casamento, diz ele, não faz parte da base subjetiva do negócio de compra e venda de um anel de noivado, ainda quando essa expectativa tenha sido informada ao vendedor. Da alteração superveniente das circunstâncias resultam duas consequências principais: revisão ou extinção do contrato. No direito alemão, a adaptação contratual goza de prioridade, de modo que o contrato só será extinto quando a adaptação for impossível ou irrazoável para uma das partes. E a explicação é simples: ao contrário da impossibilidade, a quebra da base é, conceitualmente, um problema contornável durante a execução do contrato, sendo razoável supor, inclusive sob a ótica da racionalidade econômica, que os contratantes preferem readaptar a extinguir o vínculo contratual. Como explicou Grigoleit, a revisão contratual permite ao juiz uma repartição flexível dos riscos externos e extraordinários que afetaram o contrato. Quando, porém, o magistrado simplesmente transfere as desvantagens de uma parte para outra, não há verdadeiramente reequilíbrio contratual. O juiz precisa construir um equilíbrio de interesses razoavelmente aceitável para ambos os contratantes, por exemplo, reduzindo - ou aumentando - a prestação ou a contraprestação; estipulando um pagamento compensatório em troca da manutenção do contrato ou do cancelamento da troca realizada, etc. A revisão contratual tem, portanto, enorme vantagem em relação à impossibilidade e outros instrumentos que permitem uma flexibilização do pacta sunt servanda diante da ocorrência de circunstâncias imprevistas, pois preserva o vínculo contratual. Segundo Grigoleit, à exceção da França, Inglaterra e demais países do common law, todas as modernas ordens jurídicas possuem o mecanismo da revisão judicial dos contratos. Onde não há tal mecanismo, os tribunais procuram readaptar os pactos por meio de outros instrumentos dogmáticos, como a interpretação integrativa do contrato, restrições à execução contratual com base no abuso do direito ou na boa-fé, havendo quem recorra até à figura do erro para impedir a execução do contrato desequilibrado, o que, por óbvio, soluciona o caso concreto às custas de racionalidade e coerência dogmática.   Coerência e integridade teórica foram valores caros a Canaris. Nenhuma ciência jurídica avança sem rigor científico. Com seu pensamento lógico e sistemático, Canaris deixou seu traço, de modo indelével, na grande reforma do Código Civil alemão, conferindo contornos objetivos ao direito da perturbação das prestações e entrando para a história como um dos mais geniais juristas do século 20. Um exemplo para todos nós, que estamos sentindo na pele o quão difícil é avançar sem bases sólidas. Uma ciência que pretende avançar sem a boa doutrina é como aquele que constrói sua casa na areia: vem a chuva, sopram os ventos e ela cai. E grande é a sua ruina (Mateus 7:24). __________ 1 Para um panorama sobre a vida e obra de Canaris, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Claus-Wilhelm Canaris: inovador e sistematizador. Revista de Direito Privado 109 (2021), p. 251-261. 2 Acerca da culpa in contrahendo no direito alemão, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão: um contributo para reflexões em torno da responsabilidade pré-contratual. Revista de Direito Civil Contemporâneo 15 (2018), p. 161-207. 3 NUNES FRITZ, Karina. Op. cit., p. 176. 4 NUNES FRITZ, Karina. Op. cit., p. 168 ss.
terça-feira, 5 de outubro de 2021

Tribunal Constitucional alemão comemora 70 anos

No último dia 28 de setembro, o Tribunal Constitucional da Alemanha - Bundesverfassungsgericht (BVerfG) - comemorou setenta anos de existência. Quis o destino que no dia anterior, 27/9/2021, ocorresse no Brasil o maior evento em homenagem a Claus-Wilhelm Canaris, um dos mais brilhantes juristas alemães de todos os tempos, que influenciou a jurisprudência do BVerfG ao pioneiramente explicar o modo como se processa a eficácia dos direitos fundamentais no direito privado1. Normalmente, o Tribunal Constitucional abre suas portas aos jurisdicionados em momentos festivos, apropriadamente chamados: "Dia das portas abertas" ou, no vernáculo alemão, Tag der offenen Tür. Esse ano, porém, por causa da pandemia, o BVerfG fez uma exposição em um cubo de vidro na praça principal de Karlsruhe, a Marktplatz, onde a população pôde ver objetos e vídeos sobre a Corte, suas juízas, juízes e funcionários e, dessa forma, conhecer um pouco do dia a dia do trabalho no Tribunal. Um pouco de história O Bundesverfassungsgericht foi inaugurado oficialmente em 28/9/1951 pelo Presidente Theodor Heuss e pelo Chanceler Konrad Adenauer na ensolarada cidade de Karlsruhe, na fronteira com a França, sede ainda da Corte infraconstitucional: Bundesgerichtshof (BGH). Mas os trabalhos do Tribunal começaram bem antes. Com efeito, a Corte se constituiu pela primeira vez já em 7/9/1951, iniciando suas atividades sob a presidência de Hermann Höpker-Aschoff, jurista e político alemão que fora Ministro da Economia (1925-1931) e membro do Parlamento alemão entre 1949 a 1951. A primeira sede do BVerfG foi o belíssimo Palácio Max von Banden (Prinz-Max-Palais), localizado no centro da cidade, onde atualmente funciona uma biblioteca pública e um museu. Max von Baden, herdeiro do trono de Baden, foi o último chanceler do Império alemão, em 1918. Mas logo o prédio ficou pequeno para abrigar o Tribunal, que, em 1969, mudou para um complexo de cinco blocos construído pelo arquiteto berlinense Paul Baumgarten nos arredores do jardim do castelo (Schlossgarten), antiga residência do Marquês Karl Wilhelm de Baden. O complexo de vidro e concreto, construído ao estilo Bauhaus desenvolvido por Walter Gropius na escola de arte de Weimar nos idos de 1919, quer simbolizar a transparência da Corte perante o povo alemão. Sua localização em Karlsruhe, distante mais de 600 km de Berlim, não foi obra do acaso: visa preservar a separação entre direito e política, o que nem sempre é possível quando políticos estão a poucos passos de magistrados.  No momento de sua inauguração, a Lei Fundamental de Bonn - Grundgesetz (GG) - estava em vigor a apenas dois anos. E a nova Constituição, surgida sobre os escombros do nazismo, conferiu ao BVerfG uma competência ampla, maior do que tivera o Staatsgerichtshof, Corte equivalente durante a República de Weimar. Nesse ponto, como em outros, mas diferente de povos que não aprendem com a história, a Alemanha aprendeu a amarga lição da experiência nacional-socialista e tanto o Tribunal Constitucional, como a Lei Fundamental foram concebidos sem as deficiências de outrora, as quais permitiram a derrubada da jovem república e das instituições democráticas pelo regime totalitário de Adolf Hitler. O BVerfG não é, assim, um mero tribunal para dirimir litígios entre os órgãos estatais. Ele reflete um modelo de jurisdição constitucional moderna e especializada, dotado de amplas competências de controle, inclusive em relação ao legislador2 e, principalmente, competência para julgar reclamações constitucionais (Verfassungsbeschwerde) interpostas por qualquer pessoa contra a violação de direitos fundamentais. É por isso que o Tribunal Constitucional alemão ostenta, com orgulho, o título de Tribunal do Cidadão (Bürgergericht) ou Tribunal de Direitos Fundamentais (Grundrechtsgericht). O constituinte confiou, portanto, ao Bundesverfassungsgericht a nobre - e revolucionária - função de concretização, efetivação e atualização da Lei Fundamental3. Além de Bürgergericht, o Tribunal é um órgão constitucional em pé de igualdade com o Presidente (Bundespräsident), o Parlamento (Bundestag), o Conselho Federal (Bundesrat) e o Governo Federal (Bundesregierung), dotado de plena autonomia, inclusive financeira, não se subordinando a nenhum ministério. A fim de impedir o engessamento da jurisprudência por força da longa permanência de juízes no cargo e garantir a entrada de novas ideias aptas a adaptar o direito aos novos tempos, os juízes da Corte não ficam no cargo até a aposentadoria, mas apenas por doze anos ou até o alcance da idade de 68 anos. Essa rotatividade tem a vantagem ainda de permitir ao sistema expurgar aqueles que alçam à Corte mais por méritos políticos que jurídicos. O BVerfG constitui-se de duas câmaras ou senados (Senaten), cada qual composta por oito membros, perfazendo um total de dezesseis juízes - eles não se denominam ministros, mas juízes ou juízas: Richter(in). Cada magistrado(a), tem, em regra, um secretariado e três assessores, que fazem pesquisas e preparam o esboço dos votos. Não raro, porém, depara-se com um juiz na biblioteca ou na copiadora da casa em busca de literatura para a elaboração dos votos. Quem já teve o privilégio de fazer pesquisas na Corte, sabe bem que faltam o glamour e data venia típicos da judicatura sumptuosa de outros países. Em outras palavras: há menos pompa e mais trabalho. O Tribunal Constitucional é comandado por um presidente escolhido especialmente para esse fim. Atualmente, a presidência da Corte compete ao Prof. Dr. Stephan Harbarth, advogado e, posteriormente, professor honorário da Universidade de Heidelberg. Cada senado do Tribunal tem suas próprias competências definidas na lei orgânica e/ou por determinações plenárias da Corte. O 1º Senado é composto pelos juízes: Stephan Harbarth, Andreas L. Paulus, Susanne Baer, Henning Radtke, Gabriele Britz e Ines Härtel, todos professores doutores e pelos juízes de carreira Dra. Yvonne Ott e Dr. Josef Christ. Integram o 2º Senado os professores doutores Peter Huber, Doris König, Christine Langenfel e Astrid Wallrabenstein, além dos magistrados de carreira Monika Hermanns, Peter Müller, Dr. Ulrich Maidowski e Dra. Sibylle Kessal-Wulf, que atuou no BGH por onze anos e já proferiu algumas palestras no Brasil. Embora nunca tenha assumido uma cátedra, Kessal-Wulf tem farta publicação acadêmica, dentre as quais os comentários ao Staudinger BGB, uma coleção de comentários ao Código Civil alemão publicada pela renomada editora De Gruyter. Como percebe-se pela composição dos senados, o Tribunal Constitucional alemão é formado por maioria feminina. O feito histórico ocorreu em 2020, quando a Chanceler Angela Merkel indicou para a Corte as professoras Doris König da Bucerius Law School de Hamburg; Astrid Wallrabenstein da Universidade de Frankfurt am Main e Ines Härtel da Universidade de Frankfurt an der Oder, especialista em direito digital. Quando o BVerfG iniciou suas atividades em 1951, havia apenas uma representante feminina: Erna Scheffler, que proferiu importantes decisões em favor da igualdade entre homens e mulheres, especialmente no direito de família, razão pela qual era censurada à época por seus pares por colocar em risco o modelo ocidental de família4. Seu cargo no 1º Senado foi ocupado ao longo dos anos por mulheres, mas apenas em 1994 o BVerfG recebeu mais duas juízas. No mesmo ano, Jutta Limbach foi indicada para presidir a Corte e, como era a única mulher no 1º Senado, a imprensa alemã apelidou a câmara ironicamente de "Senado da Branca de Neve" (Schneewittchen-Senat), composto por ela e sete colegas. Essa realidade foi se alterando sob o governo de Angela Merkel, que mudou definitivamente a cara da Corte Constitucional, hoje predominantemente feminina.  Decisões históricas  A primeira decisão do BVerfG foi promulgada no dia seguinte à sua instauração, em 8/9/1951, em processo cautelar no qual o 2º Senado ordenou o adiamento de plebiscito sobre a criação do estado de Baden-Württemberg, no sudoeste do país, porque os juízes precisavam de mais tempo para examinar a situação jurídica5. Uma das decisões mais paradigmáticas do BVerfG foi, sem dúvida, o famoso Caso Lüth, comentado nessa coluna em 29/10/2019 (clique aqui). A lide girava em torno da (i)legalidade da convocação a boicote feita por Erich Lüth a um filme do cineastra Veit Harlan, um dos mais proeminentes diretores à época do Terceiro Reich em razão de sua proximidade com Paul Joseph Goebbels, o ministro de propaganda nazista que, no exercício de suas funções, não se furtou de propagar fake news e desinformação na sociedade alemã. No julgado, o Tribunal Constitucional entendeu que a convocação ao boicote estava protegida pela liberdade de expressão e afirmou, pela primeira vez, que os direitos fundamentais formam uma ordem objetiva de valores, cuja eficácia irradia-se para todas as áreas do direito, inclusive para o direito privado. Portanto, a ordem jurídico-constitucional alemã, longe de ser neutra, tem valores claros como democracia, igualdade, liberdade (inclusive de expressão), respeito à dignidade humana, dentre outros. O Caso Lüth entrou para a história como o leading case sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais ou, na terminologia alemã: eficácia dos direitos fundamentais perante terceiros (Drittwirkung der Grundrechte), a exprimir que os direitos fundamentais, conquanto dirigidos prima facie ao Estado, vinculam de forma indireta os particulares, de acordo com as circunstâncias do caso concreto. Outro julgado vanguardista foi a decisão do censo (Volkszählungsurteil), de 1983, na qual o BVerfG reconheceu, pela primeira vez, a existência do direito fundamental à autodeterminação informacional (Grundrecht auf informationelle Selbstbestimmung)6. O caso é um marco na proteção de dados pessoais na Alemanha e versou sobre diversas reclamações constitucionais movidas por cidadãos a fim de impugnar a lei federal do recenseamento de 1982, que permitia aos agentes públicos não só fazer o levantamento do número de habitantes do país, mas também coletar uma série de dados pessoais. O BVerfG manteve a realização do censo, porém com sensíveis modificações a fim de resguardar a segurança dos dados dos cidadãos entrevistados, proibindo, por exemplo, que alguns dados (nome, endereço, etc.) fossem transferidos a outros órgãos do governo. No julgado, o Tribunal salientou a necessidade de proteger o indivíduo contra a coleta, o armazenamento, o uso e a transferência desenfreados dos dados pessoais como decorrência do direito geral de personalidade, previsto no art. 2, inc. 1 c/c art. 1, inc. 1 da Lei Fundamental. Esse direito fundamental garante à pessoa o poder de decidir sobre a divulgação e uso dos seus dados pessoais7. O Caso Brokdorf, de 1985, sobre a proibição de manifestações antinucleares, merece destaque como uma das mais importantes do BVerfG acerca do reconhecimento da liberdade de reunião dos cidadãos8. No julgado, o Tribunal frisou que o direito do cidadão de participar ativamente, através da liberdade de reunião, no processo político de formação da opinião pública, é um dos elementos inafastáveis de uma comunidade democrática. O papel do Tribunal Constitucional na defesa dos valores e das instituições democráticas tem sido hercúleo. Embora reconhecendo a liberdade de expressão como elemento indispensável e inafastável ao livre desenvolvimento da personalidade humana e à democracia, a Corte tem sido atenta e cirúrgica ao sancionar discursos e ataques à ordem constitucional democrática feitos sob o escudo da liberdade de expressão e/ou da imunidade parlamentar. Prova disso foi a corajosa proibição pelo BVerfG de dois partidos políticos antidemocráticos ao longo de sua existência: o Partido Socialista do Império (Sozialistische Reichspartei - SRP) em 1952 e o Partido Comunista da Alemanha (Kommunistische Partei Deutschlands - KPD) em 1956. Recentemente, em 2017, a Corte declarou inconstitucional o Partido Nacional Democrático da Alemanha (Nationaldemokratische Partei Deutschlands - NPD), de clara ideologia neonazista. Isso mostra que os juízes de Karlsruhe estão atentos aos novos inimigos da democracia, transvestidos em roupagens liberais e democráticas, como lobos em pele de cordeiro, que usam o escudo da liberdade de expressão - inclusive parlamentar - para tentar minar a democracia e a república alemãs. Discursos de ódio também têm sido cuidadosamente sancionados, inclusive quando proferidos por políticos, que inevitavelmente recorrem à imunidade dos discursos parlamentares para legitimar suas falas, como fez Udo Pastörs, antigo chefe do partido neonazista NPD, que em discursos públicos negou o holocausto e chamou de "mentira de Auschwitz" o cruel campo de concentração no qual milhares de judeus foram mortos e submetidos a tratamento desumano durante a ditadura nazista. Pastörs foi condenado a oito meses de prisão e multa por calúnia e difamação à memoria do povo judeu pelo crime de negação qualificada do holocausto, sentença confirmada pelo Tribunal Constitucional e, posteriormente, pela Corte Europeia de Direitos Humanos, em decisão comentada nesta coluna em 7/1/2020 (clique aqui). Outra polêmica, mas importante decisão da Corte foi o Caso dos Crucifixos, de 1995, na qual o BVerfG considerou que a colocação de crucifixos nas salas de aulas das escolas públicas violava a liberdade religiosa de alunos e professores9. A decisão provocou uma chuvarada de críticas na católica Baviera, onde havia previsão expressa para colocação de cruz nas escolas. Mas o Tribunal entendeu que a colocação de crucifixos, símbolo da religião católica, violava o dever de neutralidade do Estado, que não pode impor ou proibir uma crença ou religião ao individuo, cabendo aos pais, não à escola, educar as crianças de acordo com suas crenças e convicções. Destaca-se, por fim, mais uma vanguardista decisão da Corte: a admissão do suicídio assistido (Sterbehilfe-Urteil)10. Em 2020, o BVerfG, sob a relatoria da brilhante juíza Sibylle Kessal-Wulf, reconheceu que o direito geral de personalidade, expressão da autonomia do individuo, compreende o direito de determinar a própria morte e buscar ajuda de terceiros. Trata-se de uma liberdade do indivíduo, constitucionalmente tutelada, que deve ser respeitada pelo Estado e pela sociedade como um ato de determinação baseado na vontade livre, informada, permanente e definitiva de pôr fim à própria existência. Segundo o Tribunal, deve o Legislador disciplinar a questão, atento para evitar a comercialização do suicídio. Por certo, muitas outras importantes decisões do Bundesverfassungsgericht poderiam ser citadas, mas o intuito aqui é apenas mencionar alguns julgados paradigmáticos de uma das cortes constitucionais mais respeitadas da atualidade. Epílogo A doutrina alemã não se furta de criticar duramente, quando necessário, os julgados do BVerfG, mas, em geral, há relativo consenso de que o Tribunal tem desempenhado satisfatoriamente seu papel de Guardião da Constituição (Hüter der Verfassung). Amparada em sólida dogmática, a "jurisprudência de Karlsruhe" tem dado vida e materialidade aos direitos fundamentais e à Lei Fundamental ao longo dos anos, o que permitiu ao Tribunal Constitucional impor-se e estabelecer-se enquanto instituição, também responsável por assegurar que nunca mais (Nie wieder) haja outro Drittes Reich. Matthias Jestaedt, Professor da Universidade de Freiburg, em recente texto, faz um balanço positivo da atuação do Bundesverfassungsgericht, afirmando que o sucesso do Tribunal deve-se, dentre outros fatores, à eficiente combinação entre uma jurisdição constitucional especializada e uma abordagem dogmática da constituição11. Segundo ele, apesar do processo de seleção dos juízes da Corte ser estruturalmente político, o BVerfG não se deixou "capturar politicamente". Kessal-Wulf, em uma de suas palestras no Brasil, afirmou certa feita que o juiz alemão tem um dever de ingratidão (Undankbarkeitspflicht) para com quem lhe indica para o Tribunal Constitucional, deixando claro como o juiz alemão tem consciência de seu papel e compromisso com sua função de agente público à serviço das cidadãs e cidadãos do país. Consta, inclusive, das Diretrizes de Conduta das Juízas e Juízes do Bundesverfassungsgericht que esses devem se portar, dentro e fora do cargo, de modo a não prejudicar a reputação do Tribunal, a dignidade do cargo e a confiança em sua independência, imparcialidade, neutralidade e integridade12. Eles devem ainda agir com discrição, o que inclui contenção ao criticar opiniões e posições jurídicas, principalmente em relação à decisões do próprio Tribunal, bem como de outras cortes nacionais, estrangeiras ou internacionais13. Essa é uma das razões pelas quais os juízes de Karlsruhe raramente aparecem na mídia e nunca criticam publicamente as decisões e/ou as posições de seus pares, fiéis ao ditado de que roupa suja lava-se em casa. Não é, portanto, à toa que o Bundesverfassungsgericht goza de ampla respeitabilidade na sociedade alemã14. Os alemães confiam no Tribunal Constitucional enquanto instituição, na independência da justiça e no Estado Democrático e Social de Direito, disse recentemente Stephan Harbarth, Presidente da Corte, aos jornais15. De fato. Eles sabem quão importante é ter magistrados efetivamente preparados para atuar na Corte Constitucional e dar vida e eficácia à Constituição. __________ 1 SINGER, Reinhard. Claus-Wilhelm Canaris - der "Entdecker". Festschrift für C. W. Canaris. München: Beck, 2007, p. 1. 2 JESTAEDT, Matthias. Ao Tribunal Constitucional Federal Alemão, pelo seu septuagésimo aniversário. Jota, 29/9/2021. 3 JESTAEDT, p. 2 4 70 Jahre Bundesverfassungsgericht - Die letzte Instanz. Tagesschau, 28/9/2021. 5 Arbeitsaufnahme am 7. September 1951: BVerfG feiert 70. Geburtstag. LTO, 7/9/2021. 6 BVerfG 1 BvR 209/83, 269/83, 362/83, 420/83, 440/83, 484/83, julgados em 15/12/1983. 7 Sobre o tema, confira-se o excelente artigo: MENKE, Fabiano. A proteção de dados e o direito fundamental à garantia da confidencialidade e da integridade dos sistemas técnico-informacionais no direito alemão. RJLB 1 (2019), p. 781-809. 8 BVerfG 1 BvR 233/81 e 341/81, julgado em 14/5/1985. 9 BVerfG 1 BvR 1087/91, julgado em 16/5/1995. 10 BVerfG 2 BvR 2347/15, 651/16, 1261/16, 1593/16, 2354/16, 2527/16, julgados em 26/2/2020. 11 Op. cit., Jota, 29/9/2021. 12 Verhaltensleitlinien für Richterinnen und Richter des Bundesverfassungsgerichts, Capítulo I, item 1, versão de novembro de 2017 ainda em vigor. 13 Confira-se: Verhaltensleitlinien für Richterinnen und Richter des Bundesverfassungsgerichts, itens 4 e 6 do Capítulo I. 14 No mesmo sentido: JESTAEDT, Matthias. Op. cit., Jota 29/9/2021 e 70 Jahre Bundesverfassungsgericht - Die letzte Instanz. Tagesschau, 28/9/2021. 15 70 Jahre Bundesverfassungsgericht. Bundeszentrale für politische Bildung, 28/9/2021.
O Instagram é a rede do momento. Muita gente usa a ferramenta para postar fotos pessoais, mas há muita publicidade, inclusive oculta, feita principalmente por pessoas famosas, os chamados influenciadores digitais. Muitas fotos pessoais têm alto valor patrimonial, como provam as fotos de it girls que conseguem alavancar a venda de qualquer vestido usado despretensiosamente. Fica, então, a dúvida: o que pode ser considerado publicidade no Instagram? O Bundesgerichtshof, a Corte infraconstitucional alemã, equivalente ao nosso Superior Tribunal de Justiça teve a oportunidade de se manifestar há poucos dias sobre a questão em imbróglio envolvendo três influenciadoras digitais da Alemanha: Cathy Hummels, esposa do jogador Mats Hummels; Leonie Hanne, de Hamburg e Luisa-Maxime Huss, de Göttinger. Elas foram processadas por uma associação chamada Verband Sozialer Wettbewerb, que tem entre suas funções estatutárias a proteção dos interesses comerciais dos seus membros. Em síntese, a associação alega que as it-girls infringiram o direito concorrencial (Lauterkeisrecht)1 em diversas postagens. Segundo a associação, as famosas publicavam fotos em seus perfis no Instagram acompanhadas de curtos textos e em algumas delas constavam os chamados tap tags, marcações que só se tornam visíveis quando o seguidor clica na foto e que, com outro clique, remetem o usuário ao perfil da marca ou do fornecedor do produto retratado na foto. A associação, que já notificou outros influenciadores digitais, acusou as digital influencers de publicidade clandestina (oculta), vedada pelos § 8 I e III n. 2, § 3 I e § 5a inc. 6 da lei alemã da concorrência desleal (Gesetz gegen den unlauteren Wettbewerb - UWG) e requereu a abstenção da prática, porque elas influenciam milhares de seguidores através de suas postagens intransparentes. Sem indicar que se trata de postagem paga, fica difícil para o seguidor distinguir o que é opinião pessoal do que é publicidade. O BGH decidiu, em suma, que influenciadores digitais podem fazer postagens de produtos sem indicar que se trata de publicidade, desde que a publicação não seja "excessivamente promocional" (übertrieben werblich). O simples fato de colocar tap tags nas postagens é insuficiente para configurar publicidade. Porém, quando o influenciador digital recebe uma contraprestação pela postagem, há dever de informar que se trata de postagem patrocinada. Primeiro caso: a influenciadora fitness Esse foi o único caso em que a it-girl, Luisa-Maxime Huss, foi condenada por publicidade clandestina e concorrência desleal. Segundo consta no processo BGH I ZR 90/20, julgado no último dia 9/9/2021, a influenciadora digital publicava fotos de exercícios físicos, com dicas de fitness e alimentação. Ela mantinha ainda uma página comercial na internet na qual oferecia aulas de ginástica e serviço de personal training sob remuneração, além de gerir um shop online. No perfil da moça no Instagram aparece o endereço de seu site na internet. Em uma das postagens questionadas no processo, a digital influencer publicou a foto de uma geleia de framboesa, cujo nome do fabricante aparecia quando o usuário clicava na imagem do produto, quando, então, o seguidor é redirecionado para o perfil do produtor no Instagram. O problema é que a moça recebeu uma contraprestação para fazer a postagem, mas isso não fora mencionado, nem resultava do contexto geral do post. Por isso, a ré foi condenada em primeiro grau pelo Landgericht Göttingen, cidade onde Rudolf von Jhering lecionou até sua morte em 1892. A sentença foi, em seguida, confirmada pelo Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Braunschweig e, com a interposição da Revision, o caso subiu ao Bundesgerichtshof, em Karlsruhe, que negou provimento ao recurso da moça. Segundo o BGH, as postagens no Instagram, objeto da lide, eram de facto ações comerciais, nos termos do § 2, inc. 1 n. 1 da UWG, praticadas em favor da empresa da ré e da empresa que pagou pela publicação. O § 2 inc. 1 n. 1 da Lei da Concorrência Desleal (UWG) diz que, nos termos dessa lei, "ação comercial" significa qualquer conduta de uma pessoa, em benefício de seu próprio negócio ou de outra empresa, praticada antes, durante ou após a conclusão de um negócio, que esteja objetivamente relacionada à promoção da venda ou compra de bens ou serviços ou à conclusão ou execução de contrato de bens e/ou serviços2. O problema é que, nesse caso específico, não estava claro que se tratava de postagem comercial, embora a influenciadora digital tenha recebido uma contraprestação para divulgar o produto. Ou seja: ela omitiu de que se tratava de uma publicação paga. O BGH afirmou que os influenciadores digitais, que utilizam mídias sociais como o Instagram para vender mercadorias, oferecer serviços ou comercializar sua própria imagem, gerem uma empresa e a publicação de postagens é um meio adequado para aumentar sua notoriedade, impulsionar a concorrência e, assim, promover seu próprio negócio. Porém, nem toda postagem configura publicidade. Uma publicação só configura ação comercial em favor de outra empresa se a postagem for remunerada por meio de uma contraprestação ou se "excessivamente promocional". Segundo a Corte, uma postagem é excessivamente promocional quando o digital influencer, sem qualquer distância crítica, apenas elogia as qualidades do produto, de forma que a apresentação perde os contornos de uma informação objetiva, i.e., factualmente motivada. O simples fato das fotos dos produto estarem marcadas com tap tags é insuficiente para a supor que há excesso publicitário. O contrário ocorre, segundo o Tribunal, quando a foto do produto tem um link direto para a página do fabricante na internet. Nesse caso, o seguidor pode concluir que se trata, em regra, de postagem patrocinada. Cabe ao juiz verificar, com base em uma avaliação abrangente das circunstâncias, se uma postagem tem cunho excessivamente promocional ou não. A postagem da geleia de framboesa, pela qual a ré recebeu uma contraprestação do fabricante, viola o § 5a inc. 6 da UWG, pois o escopo comercial da publicação - qual seja: promover a venda do produto do fabricante - não foi adequadamente mencionado, nem resultava das circunstâncias, disse o BGH. Dessa forma, é irrelevante se os usuários perceberam que a moça estava agindo em benefício da própria empresa. Importante é que a finalidade da postagem (promover a empresa fabricante da geleia) precisava ser perceptível para os seguidores, pois a não divulgação do fim publicitário da postagem pode induzir o consumidor a tomar uma decisão negocial (clicar no link que leva ao perfil do fabricante no Instagram), que ele, de outra forma, não tomaria. Além disso, o BGH entendeu que, como a postagem da geleia de framboesa não estava claramente indicada como uma comunicação publicitária, houve a violação do § 3a da UWG c/c § 6 inc. 1 n. 1 da Lei de Telecomunicações (Telemediengesetz - TMG), o § 58 inc. 1  do diploma de radiodifusão (Rundfunkstaatsvertrag - RStV) e o § 22 inc. 1 do diploma da mídia (Medienstaatsvertrag - MStV), os quais exigem que divulgações publicitárias sejam claramente indicadas como tal. Segundo caso: a digital fashion influencer No segundo caso, referente ao processo BGH I ZR 125/20, a digital influencer mantinha uma conta no Instagram que era utilizada de forma preponderantemente comercial e era seguida por 1,7 milhões de usuários. A conta era verificada e tinha aquela cobiçada marca azul na parte superior do perfil. A moça publicava regularmente fotos suas com pequenos textos sobre moda, beleza, estilo de vida e viagens. Em primeira instância, o Landgericht Hamburg julgou a ação procedente, mas o Tribunal de Justiça (OLG Hamburg) deu provimento à apelação da influenciadora digital ao argumento de não ter restado demonstrada a publicidade clandestina, nem a prática desleal. O Bundesgerichtshof negou provimento ao recurso interposto pela associação por entender, nesse caso, ao contrário do primeiro, que as postagens da jovem não configuravam publicidade de produtos de terceiros, pois a influenciadora digital não recebera nenhuma contraprestação pela divulgação. A Corte entendeu que as postagens consistiam em atos de publicidade realizados pela it-girl em benefício de sua própria empresa e, dessa forma, o fim comercial dos posts resultavam diretamente das circunstâncias, não havendo ofensa ao § 5a inc. 6 da UWG. A citada norma considera que age deslealmente quem não deixa claro o fim comercial de sua ação, se isso não resulta imediatamente das circunstâncias e a ação for adequada a induzir o consumidor a tomar uma decisão negocial que ele, de outro modo, não tomaria. Dessa forma, como a influenciadora digital não recebeu qualquer contraprestação, suas postagens não caracterizavam publicidade para outra empresa, não configurando concorrência desleal.  Terceiro caso: Cathy Hummels O terceiro e último caso apreciado pela Corte de Karlsruhe foi o processo BGH I ZR 126/20, movido contra Cathy Hummels. A moça publica diariamente fotos pessoais acompanhadas de textos curtos sobre moda, sua vida como mãe de uma criança pequena, yoga e viagens. Segundo ela, suas postagens pagas no Instagram são claramente indicadas. Ela coloca em cada foto a referência expressa de que se trata de "parceria financiada por...". Contudo, as postagens apontadas pela associação não continham qualquer referência nesse sentido. O magistrado julgou a ação improcedente, decisão confirmada pelo Oberlangesgericht München em 25/4/2020 no processo 29 U 2333/19. O BGH negou provimento ao recurso interposto pela associação comercial, mas com fundamento distinto do Tribunal a quo. Para o BGH, ao contrário do que entendeu a Corte de segunda instância, as postagens impugnadas constituiam ações comerciais em benefício do próprio negócio e, portanto, o caráter publicitário resultava diretamente das circunstâncias, não configurando prática desleal, nos termos § 5a inc. 6 da Lei da Concorrência Desleal. Também não restou caracterizada ofensa ao § 5a inc. 6 da UWG, porque a ré não recebeu nenhuma remuneração pelas postagens. Logo, não houve publicidade - nem mesmo oculta - em benefício de outra empresa. Em síntese: os influenciadores digitais buscam com suas postagens, em princípio, se autopromover e promover seu próprio negócio. Logo, eles podem postar fotos com produtos de marca sem que isso configure publicidade para o fabricante dos produtos. Porém, se o digital influencer recebeu uma contraprestação para realizar a postagem, isso deve restar claramente perceptível para os seguidores, sob pena de incorrer em publicidade clandestina e prática concorrencial desleal. A íntegra da decisão da Corte de Karlsruhe ainda não foi divulgada, mas as críticas já começaram a surgir. Uma delas aponta a incoerência da distinção feita pelo Tribunal de que postagens marcadas com tap tags não seriam necessariamente publicitárias, mas somente as que contenham link para o site da empresa fabricante do produto. E a razão é evidente: as marcações com tap tags levam o seguidor à conta do fabricante no Instagram. De qualquer forma, por enquanto vale a regra: toda postagem paga deve ser indicada como publicidade. __________ 1 O direito concorrencial em sentido amplo é formado pelo direito antitruste e pelo chamado Lauterkeisrecht, que seria o direito concorrencial em sentido estrito. Ambos têm um objetivo comum: proteger a concorrência de distorções e assim manter o funcionamento da livre concorrência. 2 § 2 Abs. 1 Nr. 1 UWG: Im Sinne dieses Gesetzes bedeutet "geschäftliche Handlung" jedes Verhalten einer Person zugunsten des eigenen oder eines fremden Unternehmens vor, bei oder nach einem Geschäftsabschluss, das mit der Förderung des Absatzes oder des Bezugs von Waren oder Dienstleistungen oder mit dem Abschluss oder der Durchführung eines Vertrags über Waren oder Dienstleistungen objektiv zusammenhängt.
quarta-feira, 25 de agosto de 2021

Entrevista: Prof. Dr. Jan Dirk Harke

No ultimo dia 16/8/2021, a Associação dos Advogados de São Paulo (AASP) realizou um webinar sobre alteração das circunstâncias e quebra da base do negócio jurídico, que tive o prazer de mediar, ao lado de Viviane Girardi, presidente da Associação, e Clarisse Frechiani Lara, Conselheira da AASP. O evento contou com a presença de Jan-Dirk Harke, professor e desembargador do Tribunal de Justiça (Oberlandesgericht) de Jena, na Alemanha, que explicou, em erudito português, o desenvolvimento da teoria da base do negócio, desde sua origem até sua aplicação atual em decorrência da pandemia de Covid-19. Em seguida, os professores Nelson Nery Júnior (PUCSP) e José Roberto de Castro Neves (PUCRJ) falaram, com diversos enfoques, sobre o problema da revisão judicial dos contratos no direito brasileiro. Esse foi, sem dúvida, o melhor evento sobre revisão contratual desde o início da crise pandêmica. Nelson Nery Júnior demonstrou, com cirúrgica precisão, que a teoria alemã da base do negócio é perfeitamente aplicável aos contratos civis e comerciais regidos pelo Código Civil, pois construída e desenvolvida à partir do princípio da boa-fé objetiva, positivado no art. 422 CC2002. Nery foi um dos pioneiros em sustentar a recepção da teoria logo após a entrada em vigor da nova codificação, na esteira do pensamento de Clóvis do Couto e Silva e de seu mais brilhante discípulo, Ruy Rosado de Aguiar Júnior, que já admitiam a doutrina da base sob a égide do Código Beviláqua. O renomado professor da PUC/SP veio confirmar o que tenho defendido desde o início da pandemia: a teoria da base do negócio, antes de ser um corpo estranho, é uma solução inerente ao sistema jurídico brasileiro, deduzida, sem dificuldades, à partir de uma interpretação histórica, teleológica e sistemática dos arts. 317, 478, 113 e 422 CC2002. Castro Neves alertou para os excessos cometidos pelo juiz ao revisar os contratos sem critérios objetivos claros e de forma ilimitada. A crítica é de todo pertinente, tendo em vista que a revisão contratual sempre foi considerada medida excepcional no direito comparado, inclusive no alemão, pois a regra é, obviamente, o cumprimento dos pactos tal como acordados. Da mesma forma, a revisão sempre esteve limitada, segundo a melhor doutrina, ao estritamente necessário para restaurar o equilíbrio contratual, sendo defeso ao julgador reescrever o contrato no lugar das partes, o que representaria o aniquilamento da autonomia privada, principio estrutural do direito privado, especialmente do direito obrigacional e dos contratos. Os excessos cometidos pelo Judiciário - influenciados em parte por doutrina pouco técnica - não autorizam, porém, qualquer tentativa de impedir a intervenção estabilizadora do juiz nos pactos, como aparentemente pretendeu a Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019) nos arts. 421, Parágrafo único e 421-A, esquecendo-se de que a excepcionalidade da revisão contratual e a intervenção mínima são ideias há séculos sedimentadas no direito comparado. Nesse sentido, a lei nada disse além do óbvio. Falar do entrevistado de hoje, Prof. Dr. Jan-Dirk Harke, é também chover no molhado, pois se trata, sem dúvida, de um dos juristas alemães mais brilhantes da nova geração. Nascido em 1969 em Düsseldorf, Harke estudou direito na Universidade de Freiburg entre 1991 e 1994, onde trabalhou como assistente no Instituto de História do Direito (Institut für Rechtsgeschichte), experiência que marcaria definitivamente sua trajetória, transformando-o em um dos mais respeitados historiadores do direito civil e obrigacional da atualidade. Harke escreveu seu doutorado em 1998 sobre o método do famoso jurista romano Celso. Após dois anos atuando em grande escritório internacional em Berlim, ele faz a livre-docência (Habilitation) debruçando-se sobre um dos temas mais espinhosos do direito civil: o erro no direito contratual romano do período clássico. A Habilitation foi concluída em 2003 sob supervisão do renomado Prof. Ulrich Manthe, da Universidade de Passau. No mesmo ano, foi chamado para assumir uma vaga na Julius-Maximilians-Universität de Würzburg, onde lecionou Direito Civil, Romano e Direito Comparado. Após recusar convite para lecionar na Universidade de Götting, alma mater de Rudolf von Jhering, Harke assumiu, em 2016, uma cátedra na Universidade Friedrich-Schiller em Jena. Paralelamente às atividades acadêmicas, ele atua como magistrado desde 2009, quando compôs como desembargador o Tribunal de Justiça de Nürnberg e, desde 2016, o Oberlandesgericht de Jena. Harke possui farta e densa publicação, merecendo destaque as obras: Direito Romano (Römisches Recht), da editora Beck e os dois manuais de Direito das Obrigações, parte geral e especial - Allgemeines Schuldrecht e Besonderes Schuldrecht, ambos publicados pela editora Springer. Além disso, comenta parte do Livro das Obrigações do BGB no famoso comentário Soergel BGB, da editora Kohlhammer e o denso comentário histórico-crítico ao Código Civil alemão (Historisch-kritischer Kommentar zum BGB), organizado por Reinhard Zimmermann, Joachim Rückert e Mathias Schmoeckel, e publicado pela Mohr Siebeck. Nessa entrevista, ele fala, com toda propriedade, sobre pandemia, boa-fé e revisão contratual. Confira:    Desde 2020, o mundo está mergulhado em uma surpreendente pandemia que não tem dado trégua, levando países, como a Alemanha, a entrar em rígido lockdown no final do ano passado. A pandemia de Covid-19 pode ser classificada como um evento extraordinário, que impacta vários contratos em curso? Harke: Não há a menor dúvida disso. Nenhuma das partes, que celebrou um contrato antes dos primeiros sinais da epidemia, contou com sua ocorrência e a levou em consideração no cálculo da prestação e contraprestação. Exceto, naturalmente, aqueles contratos, como os de seguro, que são concluídos tendo em vista justamente esse tipo de casos de catástrofes.   Quais instrumentos jurídicos o BGB coloca à disposição das partes para corrigir ou equilibrar esses efeitos negativos? Harke: A pandemia é claramente um caso de quebra da base do negócio. O direito de perturbação da prestação - vale dizer: os institutos da impossibilidade, mora, inadimplemento - é inadequado para solucionar esses casos, pois se trata normalmente de uma crise que afeta o devedor de uma obrigação pecuniária. Esse não pode invocar a impossibilidade, nem vício na contraprestação, porque ele suporta o risco do emprego (utilização) da prestação. Em dezembro do ano passado, o Parlamento aprovou a introdução do § 7 ao Art. 240 da Lei de Introdução ao Código Civil alemão (Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuche - EGBGB). A norma presume ter havido a ocorrência de profundas alterações na base dos contratos de locação comercial e arrendamento em decorrência das medidas estatais de combate à pandemia, que impediram ou restringiram consideravelmente o uso dos imóveis pelos inquilinos. O que essa presunção significa para a aplicação do § 313 BGB, base legal do instituto da quebra da base do negócio? Harke: Considerando a intenção do legislador de facilitar o recurso à quebra da base do negócio em favor dos inquilinos de imóveis comerciais, a regra é certamente um fracasso, pois trata de um pressuposto do direito à readaptação contratual sobre o qual, até onde sei, não paira qualquer controvérsia e provoca a equivocada conclusão de que só caberia revisão do contrato em decorrência direta das medidas estatais. De acordo com § 313 BGB, o contratante pode requerer a adaptação do contrato quando: (1) ocorrer uma profunda alteração na base do negócio; (2) as partes, de acordo com suas expectativas, não teriam celebrado o contrato ou só o teriam feito com outro conteúdo e (3) a manutenção do contrato com seu conteúdo inicial for irrazoável, i.e., insuportável para um dos contratantes. A presunção do Art. 240 § 7 EGBGB limita-se apenas a medidas governamentais que impeçam ou restrinjam o funcionamento dos espaços locados ou arrendados, com a ressalva de que se pode fazer a contraprova quanto à quebra da base do negócio. Ou seja, trata-se apenas de um dos três pressupostos para a revisão contratual e, ainda por cima, de um requisito inquestionável, pois ninguém contou com a pandemia e suas consequências antes da virada do ano de 2019 para 2020. Muito mais importante em uma disputa judicial são os dois outros elementos do suporte fático e são esses que têm causado até agora o insucesso dos pleitos de revisão contratual movidos por locatários. Isso, porque tem-se colocado elevadas exigências para a configuração da irrazoabilidade (insuportabilidade) da continuidade do vínculo contratual, exigindo-se, por vezes, a demonstração de risco à existência do devedor. Mas esse risco não se deixa configurar, com frequência, com o fechamento dos estabelecimentos por dois meses, como ocorreu no primeiro lockdown na primavera de 2020, principalmente tendo em vista os auxílios estatais concedidos às empresas. No segundo lockdown, no inverno de 2020, a situação pode ser diferente. Mas a questão só se deixa responder no caso concreto, razão pela qual uma regra legal concreta, ainda que na forma de uma presunção, seria aqui impensável. Se, por um lado, o Art. 240 § 7 EGBGB ajuda muito pouco o locatário afetado diretamente pelo lockdown, por outro há o risco de que o dispositivo se transforme em obstáculo para o contratante indiretamente afetado. Embora a norma permita a conclusão de que a proibição de denúncia da locação, prevista em seu § 2, não é exaustiva e que seria possível concomitantemente recorrer à quebra da base do negócio, a referência a "medidas estatais", que fazem com que os imóveis alugados "não sejam utilizados ou só o sejam com consideráveis restrições", pode sugerir a conclusão a contrario de que não seria possível uma adaptação do contrato por quebra da base do negócio sem uma restrição do uso da coisa locada. Com isso, os inquilinos de imóveis não destinados ao público em geral e, por isso, não atingidos pelo lockdown, ficariam impedidos de rever seus contratos, embora um fabricante (fornecedor de produtos), que não faz mais negócios por causa do fechamento da loja do comerciante (revendedor), pode estar em situação tão ruim quanto esse.  Quando pode-se pleitear a revisão do contrato, segundo o direito alemão? Harke: O direito de adaptar o contrato resulta, principalmente, das regras sobre perturbação da base do negócio (§ 313 BGB), mas ainda das determinações contratuais que obrigam as partes a modificar o contrato. O que se entende no direito alemão pela expressão "agravamento da prestacao" (Leistungserschwernis)? Dificuldade de desempenho Harke: O termo não é claramente definido, mas pode designar circunstâncias que interferem menos intensamente na possibilidade de execução do que um obstáculo à prestação que conduz à impossibilidade (§ 275 BGB), a qual, por sua vez, provoca para o credor a perda do direito à prestação. A expressão pode ser ainda entendida como um conceito geral para todos os tipos de circunstâncias que dificultam a realização da prestação devida para o devedor. No caso de uma obrigação pecuniária, como a assumida pelo locatário ou arrendatário, não se pode, a meu ver, falar em agravamento da prestação, pois a prestação pecuniária, em si, não se torna mais difícil através de um impacto sobre a operação do devedor e sua mera insolvabilidade não é considerada uma perturbação da prestação face ao princípio da execução patrimonial integral ("o dinheiro deve ser tido"). Em outras palavras: não é um caso de perturbação da prestação, porque a prestação pecuniária do inquilino é sempre possível e a prestação material (coisa) do locador não contém vício algum. O problema aqui é realmente de perturbação na base do negócio. Dessa forma, quando a insolvabilidade se reconduzir a circunstâncias extraordinárias que tornem o contrato sem sentido para o devedor, ela configura um caso para a aplicação do instituto da base do negócio. O que deve o juiz observar ao realizar a revisão do contrato? Harke: Ele precisa verificar exatamente os impactos da pandemia sobre a operação do devedor a fim de constatar a irrazoabilidade, i.e., a extrema dificuldade da manutenção inalterada do vínculo contratual. Isso significa, sobretudo para o devedor, que ele deve demonstrar detalhadamente o desenvolvimento do negócio, incluindo eventuais medidas de auxílio recebidas do Poder Público durante a pandemia.  Por que é tão importante reequilibrar os contratos desequilibrados? Harke: Porque o princípio da força obrigatória dos contratos não pode ser um fim em si mesmo. Os contratos e os riscos a eles associados, são sempre celebrados com base na expectativa de um certo desenvolvimento. Se isso toma um rumo dramaticamente diferente, não se pode presumir que as partes teriam assumido os riscos envolvidos, a menos que o negócio tenha caráter especulativo. Por essa razão, ordenamentos jurídicos como o francês, no qual o princípio da força obrigatória dos contratos é extremamente importante ("Les conventions... tiennent lieu de loi..."), também recepcionaram o instituto da alteração das circunstâncias (change of circumstance). Em caso de perturbações na base do negócio, as partes devem primeiro buscar uma solução consensual e, apenas quando essa tentativa fracassa, o Judiciário precisa adaptar o contrato. Há no direito alemão um dever de renegociação deduzido à partir do princípio da boa-fé objetiva (Treu und Glauben), com base no § 241 I c/c § 242 BGB? Harke: O § 313 BGB não obriga as partes a renegociar o contrato. A parte afetada pela alteração das circunstâncias tem, de certa forma, uma pretensão direta à readaptação do contrato. Eventuais negociações só podem ter importância para a questão de saber se uma ação judicial pode ser movida imediatamente, sem suportar o risco dos ônus das custas processuais. As partes podem, evidentemente, assumir no contrato o dever de renegociar, mas esse, em si, não é executável, conduzindo sua violação apenas a uma pretensão ressarcitória, nos termos do § 280 BGB ou a um direito de resolução (§ 324 BGB) ou ao equiparável direito de resilição. O legitimado pode, portanto, desfazer o contrato ou pleitear o ressarcimento dos danos sofridos devido à indisponibilidade da contraparte de renegociar o contrato. Para isso, ele precisa - da mesma forma que no caso de revisão por quebra da base do contrato - especificar, em termos concretos ou, ao menos, dentro de certos limites ou quadros, o que a outra parte deveria ter concordado em fazer no decurso das negociações. Na Alemanha, há uma distinção entre a impossibilidade fática do § 275 II BGB e a chamada impossibilidade econômica, que é solucionada com recurso ao § 313 BGB. No que consiste exatamente a impossibilidade econômica? Harke: O § 275, inc. 2 do BGB se aplica quando há uma desproporção entre o interesse do credor na prestação e a despesa (esforço) que o devedor suportará para realizar a prestação. Na minha opinião, isto também pode e deve ser admitido nos casos de desproporção face à contraprestação, porque o interesse do credor aumenta normalmente à medida que aumenta o esforço do devedor. No entanto, esse mecanismo falha nos casos de obrigação de pagamento em dinheiro. O conceito de impossibilidade econômica remonta a uma época em que o instituto da base do negócio ainda não tinha sido suficientemente desenvolvido e a jurisprudência tinha que dominar o fenômeno com recurso às regras da impossibilidade do BGB de 1900. A meu ver, não se deve mais utilizar esse conceito hoje. A quebra da base do negócio foi desenvolvida principalmente pela jurisprudência alemã com base na boa-fé objetiva do § 242 BGB/1900, estando atualmente positivada no § 313 BGB/2002. Em que medida a boa-fé objetiva (Treu und Glauben) contribuiu para o desenvolvimento do direito das obrigações alemão? Harke: A norma sobre a boa-fé do § 242 BGB tem sido, desde a entrada em vigor do BGB, a alavanca para ancorar na lei importantes inovações. Ela desempenha, assim, o mesmo papel que o mandamento da bona fides no direito romano. Além da teoria da quebra da base do negócio, o dispositivo abriu o caminho para a responsabilidade por violação positiva do contrato e por culpa in contrahendo (responsabilidade pré-contratual). Com esses institutos, doutrina e jurisprudência compensaram as deficiências do direito alemão da responsabilidade civil aquiliana antes de ambas as figuras serem positivadas no Código em regras especiais (respectivamente: § 241, inc. 2 e § 311, inc. 2 e 3 BGB/2002) juntamente com a doutrina da base do negócio (§ 313 BGB/2002). No Brasil, vozes críticas que tentam vincular a boa-fé com ideias do nacional-socialismo. Isso está correto, sob uma perspectiva histórica? Harke: O princípio da boa-fé é, como dito, apenas a versão alemã do mandamento da bona fides e, portanto, não está de forma alguma ligada geneticamente ao nacional-socialismo. É claro que as cláusulas gerais abrem sempre um campo de aplicação que pode estar sujeito a abusos e que, no caso da boa-fé, foi, de fato, abusado ao tempo do nacional-socialismo. Isso, contudo, não desacredita o princípio, que foi a base de numerosos desenvolvimentos jurídicos antes e depois do nazismo, que nada têm em comum com ele.  No Brasil, a lei emergencial (lei 14.010/2020), que caducou já em outubro do ano passado, não previa qualquer proteção aos inquilinos contra despejo decorrente da falta de pagamento dos alugueis, condicionada pela pandemia. A isso acresce-se o fato de que as pessoas e as empresas não receberam ajuda financeira adequada do Estado, de modo que muitos estão tendo extrema dificuldade de honrar o aluguel em decorrência do fechamento dos estabelecimentos comerciais e das restrições de circulação, ou seja, em razão dos efeitos econômicos da crise pandêmica. Se essa conjuntura existisse na Alemanha, o juiz poderia, em tese, revisar os contratos de locação?  Harke: Eu não tenho a menor dúvida que sim. Quando os tribunais alemães negam um pedido de revisão contratual, isso se deve ao fato de que o negócio do locatário não foi tão gravemente prejudicado devido às medidas de auxílio recebidas do Estado, de modo que se pode dele razoavelmente esperar a manutenção e o cumprimento do contrato. Quando tais medidas não existem, pode-se questionar se manutenção do contrato tornou-se realmente insuportável devido à curta duração das restrições, como no primeiro lockdown na Alemanha, que durou cerca de dois ou três meses. De resto, os tribunais alemães certamente chegariam a uma readaptação dos contratos. E as primeiras decisões também indicam como isso teria que ser feito: o risco, realizado com a pandemia, deve ser suportado pelas partes em partes iguais, pelo que o aluguel seria reduzido em 50% (se não for já automaticamente reduzido devido à sua vinculação ao volume de venda do locatário).
A coluna German Report dessa semana recebe o contributo de Rafael Giorgio Dalla-Barba, que aborda interessantes aspectos metodológicos de uma decisão do Tribunal Constitucional alemão (Bundesverfassungsgericht) sobre os limites da liberdade artística no chamado caso do grafiteiro de Zurique. O autor é Bacharel e Mestre em Direito Público pela Universidade do Vale do Rio do Sinos - Unisinos e atualmente faz doutorado em Filosofia do Direito na Albert-Ludwigs-Universität de Freiburg, na Alemanha, sob orientação do renomado Prof. Dr. Ralf Poscher. É assistente científico no departamento de Direito Público do Max Planck Instituto para Investigação da Criminalidade, Segurança e Direito (Max Planck zur Erforschung von Kriminalität, Sicherheit und Recht),  em Freiburg, onde realiza pesquisas e participa na elaboração de estudos e publicações do Instituto. Dalla-Barba tem robustas publicações, merecendo destaques as obras Direitos fundamentais e teoria discursiva: dos pressupostos éticos às limitações práticas e Nas fronteiras da argumentação: a discricionariedade judicial na teoria discursiva de Robert Alexy, ambas publicadas pela Editora JusPodium.  O pensamento sólido e refinado do autor revela-se no texto abaixo, com o qual ele brinda os leitores do German Report. Confira: *** O caso do assim chamado "grafiteiro de Zurique",1 julgado em 19 de março de 1984 pelo Tribunal Constitucional Federal alemão, interessa mais pelos desdobramentos metodológicos do que pelo seu conteúdo final; mais pela sua fundamentação do que por seu resultado. Embora não tenha se tornado a abordagem convencional, a justificação elaborada pelo Tribunal naquele julgamento oferece condições para o desenvolvimento de métodos de construção constitucional sem recorrer a soluções controversas do ponto de vista das exigências de um Estado de Direito ou à recorrente - mas também questionável - concepção de colisão entre direitos fundamentais. Exatamente por essas razões o caso recebeu considerável atenção da dogmática dos direitos fundamentais e se tornou um dos leading cases para a discussão sobre os limites constitucionais da liberdade de expressão artística na Alemanha. Se a ideia básica que subjaz este ensaio estiver correta, a fundamentação daquele julgamento pode servir como referencial metodológico capaz de evitar essas mesmas controvérsias para a interpretação e a construção do direito fundamental à liberdade artística na ordem constitucional brasileira. A extradição do grafiteiro de Zurique Harald Naegeli, um artista suíço que nos anos 1970 se tornou relativamente famoso pela alcunha de "grafiteiro de Zurique", foi condenado pelo Tribunal Superior de Zurique (Obergericht des Kantons Zürich) a nove meses de reclusão sem liberdade condicional cumulado com o pagamento de CHF 101.534,60 por danos materiais.  Naegeli foi considerado juridicamente culpado por ter desenhado figuras com grafite em spray sobre a superfície de mais de 100 (cem) edifícios públicos e privados em diversas localidades da Suíça, sendo-lhe por isso aplicado o Art. 145 (1) do Código Penal Suíço que trata - à parte das especificidades de cada ordenamento jurídico - do instituto da continuidade delitiva.  Em última instância da jurisdição local, sua reclamação para anulação da condenação foi indeferida pelo Tribunal Federal Suíço (Schweizerisches Bundesgericht). No entanto, à época deste último julgamento Naegeli já havia deixado sua terra natal e se exilado na Alemanha, o que motivou as autoridades suíças a expedirem um mandato de extradição ao país vizinho para iniciar o cumprimento da pena. Na Alemanha, o seu pedido de extradição foi admitido pelo Tribunal de Justiça do Estado de Schleswig-Holstein (Schleswig-?Holsteinisches Oberlandesgericht) e motivou, por tabela,  o ajuizamento de reclamação constitucional.2  No âmbito da jurisprudência, o julgamento ficou conhecido como o caso da "extradição do grafiteiro de Zurique". O Tribunal Constitucional Federal (Bundesverfassungsgericht), após reiterar que a sua competência em sede de reclamação constitucional se limita a avaliar os atos jurídicos questionados em face às disposições constitucionais, mencionou que os pressupostos formais e materiais para extradição do recorrente à Suíça estavam preenchidos e encontravam igualmente conformidade com a Lei Fundamental.3 A decisão também seguiu a jurisprudência estabelecida pelo Tribunal Federal de Justiça (Bundesgerichtshof) em relação aos pressupostos objetivos para configuração do delito de dano à propriedade nos termos do Art. 303 do Código Penal alemão, mencionando que a interpretação restritiva do dispositivo tal qual realizada pelo seu tribunal vizinho em Karlsruhe não é incompatível com qualquer disposição constitucional.4 Ao final - e aqui reside o ponto nevrálgico dessa decisão -, o Tribunal julgou improcedente o pedido de Naegeli em relação à alegação de violação constitucional à sua liberdade artística, garantida pelo Art. 5 (3) 1 da Lei Fundamental.5 Naegeli, o artista suíço até então exilado na Alemanha, é extraditado ao seu país de origem para cumprir sua pena. A questão jurídico-metodológica de fundo O julgamento do grafiteiro de Zurique chama a atenção antes de tudo, porque explicita uma questão metodológica de fundo para o Direito Constitucional, tanto no contexto jurídico alemão como no brasileiro. Sob qual justificação estaria a ordem constitucional, diante de todas circunstâncias do caso concreto, deixando de proteger as condutas de Naegeli mencionadas acima? Até que medida se estende a proteção constitucional da liberdade artística para os seus titulares? Haveriam exceções não-escritas no texto constitucional que limitariam esse direito fundamental? Todas as críticas doutrinárias aos excessos da jurisdição constitucional alertando para os perigos da transformação gradual de um Estado Democrático para um Estado Juristocrático são cabíveis e legítimas. Diante do perigo real desses excessos, as vozes6 mais preocupadas com a possibilidade de ocorrerem tal resultado tendem a reagir no sentido diametralmente oposto: as disposições constitucionais deveriam ser interpretadas o mais estritamente possível. Seja para garantir maior segurança jurídica ou para resguardar o sentido original do texto constitucional, o método interpretativo a ser empregado seria primeiramente o gramatical. No entanto, se o documento constitucional - seja a Lei Fundamental ou a Constituição Federal - for interpretado rigorosamente com tamanha dose de self-restraint hermenêutico, ele levaria, na aplicação do direito, à inadmissível conclusão de que Naegeli teve o seu direito fundamental à liberdade artística violado, i.e., de que as suas manifestações pinturescas sobre o patrimônio público e a propriedade privada de terceiros sem a respectiva autorização estariam constitucionalmente protegidas e, portanto, sua extradição seria inconstitucional. No outro lado do Atlântico, a Constituição Federal Brasileira, no seu Art. 5º, IX, consagra ser "livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Ela segue referindo, em seu Art. 220, caput e § 2º, respectivamente, que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição" e que "é vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística".7 Interpretados literalmente, tais dispositivos constitucionais não oferecem nenhuma autorização para restringir a liberdade artística. Pelo contrário: a literalidade do texto indica inclusive que qualquer forma de restrição à expressão artística estaria proibida. Por essa mesma razão, o apelo a uma "interpretação sistemática" do documento constitucional que se pretenda minimamente bem-justificada precisaria explicar por que os outros dispositivos constitucionais (e.g. direito fundamental à propriedade, interesse público) permitiram - contra a literalidade dos Arts. 5º, IX e 220, caput e § 2º - fazer restrições ou exceções no direito fundamental à liberdade artística. Se o texto constitucional (seja o alemão ou o brasileiro) não prevê exceções nem autoriza restrições à expressão da liberdade artística, como desenvolver uma justificação metodologicamente compatível com a decisão do caso do grafiteiro de Zurique? Delimitação da área de proteção como alternativa metodológica Há pelo menos duas abordagens na contramão de uma interpretação estritamente literal dos referidos dispositivos constitucionais que aparentemente poderiam ser empregadas para justificar a decisão pela extradição de Naegeli. Ambas, entretanto, parecem metodologicamente controversas.  A primeira, filosoficamente mais pretenciosa, argumenta que as pinturas feitas nos prédios Suíços não são obras de arte, mas apenas um amontoado de rabiscos desprovidos de qualquer valor estético intrínsico.  Apesar da sua formação clássica em Estudos de Arte tanto na Kunstgewerbeschule de Zurique como na École des Beaux-Arts de Paris, Naegeli não teria realizado nada próximo àquilo que um seleto grupo de juristas - do alto de sua erudição artística - define como sendo verdadeiramente "arte". O Estado, por meio de um de seus tribunais, faria o favor aos experts de decidir por eles quais manifestações reúnem (e quais não) as condições para obtenção de valor artístico.8  A segunda, sublinhando o produto mainstream da dogmática constitucional, reconhece o direito fundamental à liberdade de expressão artística de Naegeli, mas complementa com o argumento de que ela entra em colisão com o direito fundamental à propriedade. Como ambos seriam aplicáveis prima facie, seria necessário realizar um teste de ponderação para avaliar qual o peso de cada direito fundamental envolvido no caso concreto.  A racionalidade e a capacidade epistêmica para chegar a um resultado incontestável por meio do um juízo de ponderação fica, no limite, por conta da razoabilidade prática dos membros do tribunal e da dose de crença em tamanha determinação jurídica.9 Oportunamente, o Tribunal Constitucional Federal não seguiu nenhuma das fundamentações acima. A fundamentação do Tribunal Constitucional Federal Ao julgar a constitucionalidade da decisão sobre o pedido de extradição do grafiteiro de Zurique, o Tribunal Constitucional Federal considerou não haver nenhuma violação à liberdade artística na decisão do Tribunal a quo. Aquele subscreveu a posição deste ao reconhecer que as condutas criminalmente relevantes, segundo os parametros do direito suíço, tinham de fato um caráter artístico, mas fez a ressalva de que o Art. 5 (3) 1 da Lei Fundamental não admite que um artista simplesmente ignore os direitos de propriedade de terceiros.  Em um primeiro momento, a Corte Constitucional de Karlsruhe reconhece em mais de uma passagem que o Art. 5 (3) 1 da Lei Fundamental não introduz quaisquer reservas legais ou administrativas para a garantia da liberdade artística. Não há outras menções no documento constitucional no sentido de que o Parlamentarischer Rat de fato pretendia inserir textualmente exceções à proteção da liberdade artística.  Além disso, a Corte também declara que a garantia constitucional da liberdade artística se estende inclusive enquanto um direito individual de ser artisticamente ativo, de realizar e divulgar obras de arte. Nesse sentido, o direito fundamental protegeria os seus titulares em face de quaisquer intervenções do Poder Público, especialmente em relação ao conteúdo, aos efeitos e inclusive às tendências da atividade artística.  Em um segundo momento, contudo, o Tribunal Constitucional Federal referiu que a área de proteção do direito fundamental à liberdade artística não se estende de antemão ao uso não-autorizado ou em prejuízo da propriedade de terceiros para fins de desenvolvimento artístico, quer na sua própria manifestação ou nos efeitos que dela se seguem. Nas palavras do Tribunal:10 "A Lei Fundamental não estabeleceu nenhuma reserva para essa garantia; no entanto, a sua amplitude não se estende de antemão ao uso sem autorização ou ao prejuízo da propriedade de terceiros para fins de desenvolvimento artístico (seja no âmbito da obra ou do alcance da arte)." Isso significa que, para fins da extensão da proteção constitucional da expressão artística, normas infraconstitucionais que penalizam danos materiais à propriedade não violariam nem deturpariam per se o significado dessa liberdade.  Da mesma forma, não haveria precedência do direito fundamental à liberdade artística frente à (também igualmente protegida) garantia constitucional da propriedade, consagrada no Art. 14 da Lei Fundamental.  O cerne da decisão do Tribunal Constitucional Federal para ratificar a decisão no sentido da extradição de Naegeli se ampara no argumento de que tanto na Alemanha como na Suíça a arte pode ser plenamente desenvolvida sem gerar danos na propriedade de terceiros, sejam eles particulares ou o Estado. A distinção analítica de Ernst-Wolfgang Böckenförde Do ponto de vista da dogmática dos direitos fundamentais alemã, o caso do grafiteiro de Zurique não deixou de receber o devido destaque. Em um dos seus mais proeminentes artigos científicos,11 o constitucionalista e ex-juiz constitucional Ernst-Wolfgang Böckenförde se vale daquele caso para exemplificar a sua abordagem alternativa - em comparação com a doutrina majoritária - para a metódica constitucional. Böckenförde assume a estrutura básica da - por ele próprio outrora denominada12 - teoria liberal dos direitos fundamentais para lhe agregar categorias dogmáticas em consonância com as exigências metodológicas de interpretação e construção judiciais. Trata-se de um desdobramento analiticamente elaborado da consagrada noção de intervenção e limites (Eingriffs- und Schrankendenken)13 dos direitos fundamentais própria da teoria liberal. Por trás e ao longo da apresentação da sua abordagem, reverbera uma implacável crítica ao decisionismo judicial e ao acentuado subjetivismo que caracterizam a ideia geral de ponderação tão recorrente na doutrina majoritária. O cerne do artigo quer antes de tudo mostrar que a dogmática constitucional, em grande medida, não precisa e nem deve depender do teste da ponderação para justificar decisões envolvendo direitos fundamentais. A originalidade do artigo de Böckenförde reside em uma distinção analítica entre de um lado a área factual (Sachbereich) e de outro o conteúdo da garantia (Gewährleistungsinhalt) para delimitar com maior precisão a área de proteção dos direitos fundamentais.14 Ao passo que a área factual designa meramente eventos e objetos fáticos aos quais o texto constitucional faz referência geral - e.g., casamento e família, formação de associação e reunião, profissão15 -, o conteúdo da garantia define contornos precisos para a extensão da proteção constitucional do respectivo direito fundamental. Tais contornos são estabelecidos hermeneuticamente para cada direito fundamental particular segundo as suas especificidades (históricas, linguísticas, sistemáticas etc.), de modo a se desprender da noção abstrata do respectivo direito em questão. Assim, o conteúdo da garantia define a própria proteção constitucional. O fundamento para tal esforço analítico de delimitação da área de proteção - além da vantagem de se evitar colisões entre direitos fundamentais e ponderações desnecessárias - remonta ao fato histórico de que os direitos fundamentais individuais surgiram enquanto defesa16 contra as mais diversas formas de arbitrariedade do Poder Público em desfavor dos indivíduos. Diante da multiplicidade de intervenções estatais na esfera individual e da complexidade hermenêutica para a aplicação do direito, a preocupação de Böckenförde no artigo passa a ser o desenvolvimento de contornos analíticos mais precisos para definir metodicamente o conteúdo da garantia constitucional em questão e assim distingui-lo das conjunturas mais gerais da sua respectiva área factual.17 O ajustamento à dogmática constitucional brasileira A distinção analítica entre área factual e conteúdo de garantia de Böckenförde se projeta com relativa clareza na decisão do grafiterito de Zurique. Ainda que o Tribunal Constitucional Federal não utilize expressamente tais categorias, é no raciocínio de distinguir entre, de um lado, a amplitude geral do âmbito factual e, do outro, o conteúdo específico protegido por determinada garantia constitucional que reside o núcleo da decisão.  O Tribunal deixa de incluir no conteúdo da garantia constitucional as condutas de Naegeli, porque assume que o que a liberdade artística pretende proteger não são as ações, métodos ou instrumentos por meio dos quais as obras de arte podem (hipotética ou concretamente) se manifestar, mas a própria manifestação da arte.  Como bem explica Benjamin Rusteberg, enfatizando que tal abordagem tampouco reforçaria a dimensão objetiva dos direitos fundamentais,18 "(...) não são as ações que servem à produção de uma obra de arte, mas as obras de arte criadas por meio de tais ações que, ao fim e ao cabo, são aquilo que a liberdade do Art. 5 (3) 1 da Lei Fundamental quer proteger".19  Com amparo em uma abordagem hermenêutica e analiticamente mais aguçada, o caso do grafiteiro de Zurique deixa de estar refém de um controverso teste de ponderação.  A proposição de que o direito fundamental à liberdade artística, tal qual referido nos respectivos documentos constitucionais, distingue-se das ações pelas quais ela se manifesta, não apenas se mantém em consonância com o texto (porque não nega que as pinturas de Naegeli sejam consideradas arte) como também se ajusta à pressuposição de que o legislador constitucional não pretendia estender a proteção da expressão artística para casos nos quais ela é produzida em detrimento da propriedade privada ou patrimônio público alheios.  Do fato de que toda expressão artística se manifesta necessariamente por meio de um método ou instrumento particular não se segue que tais ações estejam incluídas no conteúdo de garantia da liberdade artística.  Se o legislador constitucional originário determinou que "é livre a expressão da atividade (...) artística" e que "a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição", não se segue que ele pretendia proteger indiscriminadamente também as ações, métodos e instrumentos pelos quais a arte se manifesta.  Pelo contrário: como se pode inferir hermeneuticamente das evidências textuais, históricas e sistemáticas, a área de proteção fica restrita à expressão artística enquanto objeto juridicamente distinto dos diferentes meios pelos quais ela pode se manifestar. Considerações finais O caso do grafiteiro de Zurique interessa mais pelos desdobramentos metodológicos do que pelo seu resultado. Embora não tenha se tornado a abordagem convencional na dogmática dos direitos fundamentais, a justificação utilizada pelo Tribunal Constitucional Federal mostra ser um exemplo privilegiado para uma metódica constitucional hermeneuticamente preocupada com a proteção dos direitos fundamentais. A distinção entre o âmbito factual e o conteúdo da garantia constitucional elaborada por Ernst-Wolfgang Böckenförde enquanto desenvolvimento particular da teoria liberal dos direitos fundamentais não apenas encarna analiticamente essa preocupação como em princípio se mostra em pleno ajuste de aplicabilidade com as disposições sobre liberdade de expressão artística também garantida na ordem constitucional brasileira.   *Rafael Giorgio Dalla-Barba é assistente científico no departamento de Direito Público do Max Planck Institut zur Erforschung von Kriminalität, Sicherheit und Recht em Freiburg im Breisgau; bolsista de doutorado pela Stiftung der Deutschen Wirtschaft - SDW; doutorando em Filosofia do Direito pela Albert-Ludwigs-Universität Freiburg; Mestre em Direito Público e Bacharel em Direito pela Universidade do Vale do Rio do Sinos - Unisinos; Advogado. Agradeço pela atenta leitura com sugestões e comentários críticos aos colegas Artur Ferrari de Almeida e William Galle Dietrich. __________ 1 BVerfG NJW 1984, 1293-1295 - Sprayer von Zürich. 2 Como refere Leonardo Martins, a Reclamação Constitucional na ordem constitucional alemã não se equivale a recurso processual tal como ocorre com o Recurso Extraordinário no Direito Processual Brasileiro. Trata-se de ação constitucional. Para uma análise pormenorizada das razões que diferenciam as duas figuras jurídicas, ver Martins, Leonardo. Direito Processual Constitucional Alemão. 2a. ed. São Paulo: Editora Foco, 2018. p. 26-27. 3 BVerfG, NJW 1984, p. 1293. 4 Id. Ibid. p. 1294. 5 Id. Ibid. p. 1294. 6 Abordagens formalistas no direito constitucional parecem ser muito mais comuns e proeminentes no cenário norte-americano. Como exemplo privilegiado, ver Scalia, Antonin. A Matter of Interpretation: Federal Courts and the Law. Princeton: Princeton University Press, 1997. p. 23-38; para literatura complementar sobre formalismo, ver Weinrib, Ernest. Legal formalism: On the immanent rationality of law. Yale Law Journal, Vol. 97, No. 6, 949-1016, 1988. p. 957; também Pildes, Richard H. Forms of formalism. The University of Chicago Law Review, Vol. 66, No. 3, 607-621, 1999. Para um panorama geral do formalismo jurídico evitando caricaturizações, ver Leal, Fernando. "A Constituição diz o que eu digo que ela diz": formalismo inconsistente e textualismo oscilante no Direito Constitucional Brasileiro. Direitos Fundamentais & Justiça, Vol. 12, No. 39, 99-143, 2018. p. 102-107. 7 Brasil. Constituição Federal da República Federativa do Brasil de 1988. Disponível aqui. Acesso em 31 jul. 2021. 8 Sobre a proibição do Estado em definir o conceito de arte e o autoentendimento do artista, ver Martins, Leonardo. Direito constitucional à expressão artística. In: Mamede, Gladston; Franca Filho, Marcílio Toscano; Rodrigues Júnior, Otávio Luiz (Orgs.). Direito da Arte. São Paulo: Atlas, 2015. p. 33-37. 9 Como principal defensor da ponderação na dogmática dos direitos fundamentais, ver Alexy, Robert. Theorie der Grundrechte. Frankfurt: Suhrkamp, 1986; para duas recentes coletâneas reunindo críticas à ponderação, ver García Amado, Juan A. (Org.). Ponderación judicial: Estudios críticos. Lima: Zela Grupo Editorial, 2019 e Campos, Ricardo (Org.). Crítica da ponderação: método constitucional entre a dogmática jurídica e a teoria social. Sao Paulo: Saraiva, 2016. 10 "Diese Gewährleistung hat das Grundgesetz mit keinem Vorbehalt versehen; ihre Reichweite erstreckt sich aber von vorneherein nicht auf die eigenmächtige Inanspruchnahme oder Beeinträchtigung fremden Eigentums zum Zwecke der künstlerischen Entfaltung (sei es im Werk- oder Wirkbereich der Kunst)". BVerfG NJW 1984, 1294. 11 Böckenförde, Ernst Wolfgang. Schutzbereich, Eingriff, verfassungsimmanente Schranken. Zur Kritik gegenwärtiger Grundrechtsdogmatik. Der Staat, Vol. 42, No. 2, 165-192, 2003. 12 No idioma alemão, a denominação completa seria algo próximo a "teoria liberal individual do Estado de Direito" (liberale bürgerlich-rechtsstaatliche Grundrechtstheorie), ver Böckenförde, Ernst-Wolfgang. Grundrechtstheorie und Grundrechtsinterpretation. Neue Juristische Wochenschrift - NJW, Vol. 27, No. 1, 1529-1538, 1974. 13 O manual de direitos fundamentais na Alemanha que imprime com maior nitidez o pensamento baseado na noção de intervenção e limites é de Bodo Pieroth e Bernhard Schlink, atualmente sendo atualizado pelos alunos Thorsten Kingreen e Ralf Poscher, respectivamente. Para os comentários ao caso na primeira e em uma das últimas edições, ver Pieroth, Bodo; Schlink, Bernhard. Grundrechte. Staatsrecht II. Heidelberg: C. F. Müller, 1985. p. 160-161 [700] e Kingreen, Thorsten; Poscher, Ralf. Grundrechte. Staatsrecht II. 33. ed. Heidelberg: C. F. Müller, 2017. p. 197-198 [726]. No Brasil, a teoria liberal dos direitos fundamentais é marcadamente representada na obra de Martins, Leonardo. Liberdade e Estado constitucional: leitura jurídico-dogmática de uma complexa relação a partir da teoria liberal dos direitos fundamentais. São Paulo: Atlas, 2012. Passim. 14 Böckenförde, Ernst Wolfgang. Schutzbereich, Eingriff, verfassungsimmanente Schranken. op. cit., 2003. p. 174 e segs. 15 Id. Ibid. 16 Para uma leitura dos direitos fundamentais concebidos primordialmente como direitos de defesa, ver Poscher, Ralf. Grundrechte als Abwehrrechte. Reflexive Regelung rechtlich geordneter Freiheit. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003; para um ensaio do devido processo legal enquanto um direito de defesa na ordem constitucional brasileira, ver Dalla-Barba, Rafael G. Se o processo é uma garantia de liberdade, ele é um direito de defesa. Empório do Direito - Coluna Garantismo Processual, São Paulo, 2020. Disponível em: https://emporiododireito.com.br/leitura/46-se-o-processo-e-uma-garantia-de-liberdade-ele-e-um-direito-de-defesa. Acesso em 31.08.2021; para um desenvolvimento da noção na dogmática processual, ver Raatz dos Santos, Igor; Anschieta, Natascha. Uma teoria do processo sem processo? A formação da "teoria geral do processo" sob a ótica do garantismo processual. Belo Horizonte: Casa do Direito, 2021. p. 182-202. 17 Para uma introdução geral ao pensamento e à trajetória profissional de Böckenförde, ver Rusteberg, Benjamin. Theorie, Interpretation und Dogmatik der Grundrechte bei Ernst-Wolfgang Böckenförde. VerfBlog, 06 maio 2019. Disponível em: https://verfassungsblog.de/theorie-interpretation-und-dogmatik-der-grundrechte-bei-ernst-wolfgang-boeckenfoerde/. Acesso: 13 jan. 2021; para a sua versão no idioma português, cf. Rusteberg, Benjamin. Teoria, interpretação e dogmática dos direitos fundamentais em Ernst-Wolfgang Böckenförde. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito - RECHTD, 2021. No prelo. 18 Rusteberg, Benjamin. Der grundrechtliche Gewährleistungsgehalt. Eine veränderte Perspektive auf die Grundrechtsdogmatik durch eine präzise Schutzbereichsbestimmung. Tübingen: Mohr Siebeck, 2009. p. 98. 19 "Nicht primär die Handlungen, die zur Herstellung des Werkes dienen, sondern die durch diese Handlungen geschaffenen Kunstwerke sind es letztlich, deren Freiheit Artikel 5 Abs. 3 GG garantieren will". Id. Ibid. p. 255.
A União Europeia moveu a primeira ação contra a farmacêutica AstraZeneca por descumprimento contratual pelo fato da empresa não estar fornecendo a quantidade de doses de vacina contra a Covid-19 acordada no contrato. Relembrando o caso: com o estopim da pandemia do coronavírus Sars-Cov-2 em 2020, a União Europeia celebrou com a AstraZeneca, em agosto do ano passado, um contrato milionário para aquisição de 300 milhões de doses de vacinas, que deveriam ser fornecidas ao longo de 2020/2021 e distribuídas entre os vinte e sete estados-membros do bloco para imunizar cerca de 450 milhões de pessoas. Porém, o conglomerado farmacêutico anglo-sueco não conseguiu fornecer a quantidade contratada e muitas negociações foram feitas, inclusive com ameaças de levar o caso aos tribunais, o que de fato acabou acontecendo. Segundo a Comissão Europeia, os fornecimentos dos imunizantes estavam cada vez menores e a AstraZeneca só entregou 30 milhões das 120 milhões de doses previstas para o primeiro trimestre desse ano. No segundo trimestre, a União Europeia espera receber 70 milhões de imunizantes. Acordado no início, contudo, foram 180 milhões, totalizando as 300 milhões de doses inicialmente contratadas. Para agravar a situação, há fortes indícios de que a AstraZeneca não conseguirá cumprir sua obrigação. Em comunicado em março desse ano, conglomerado farmacêutico afirmou que só vai conseguir fornecer um terço da encomenda. E, para azedar ainda mais a relação entre os contratantes, a União Europeia acusa a AstraZeneca de ter beneficiado o Reino Unido, que não foi afetado por problemas de fornecimento até agora1. Diante disso, a Comissão Europeia moveu ação cautelar no final de abril contra a empresa na Bélgica pedindo a entrega imediata de 90 milhões de doses, referentes ao fornecimento do primeiro trimestre de 2021. A União Europeia acusa conglomerado anglo-sueco de descumprimento contratual e de não ter um plano confiável para garantir as entregas a tempo. Em outras palavras: mora no fornecimento dos lotes vencidos e quebra antecipada do contrato em relação ao restante das prestações, que ocorre sempre que o inadimplemento se configura antes do vencimento da obrigação, seja porque o devedor informa ao credor que não cumprirá a prestação, seja porque o descumprimento resulta objetivamente das circunstâncias2. Como o contrato da União Europeia com a AstraZeneca submete-se às leis e à jurisdição da Bélgica, a ação foi lá protocolada em nome dos países-membros integrantes do bloco. Segundo noticiado na imprensa, o contrato continha cláusulas que protegiam a empresa em caso de eventuais atrasos de entrega e que os imunizantes seriam produzidos em fábricas localizadas na União Europeia e no Reino Unido. Além disso, o contrato diz que a empresa deveria empregar "seus melhores esforços" (best reasonable efforts) para garantir o fornecimento das doses, o que inclui, caso necessário, a produção em fábricas situadas em outros locais3. A empresa ré alega estar cumprindo o pactuado, pois vem empregando todos os esforços razoáveis para cumprir sua obrigação e que o atraso deveu-se a problemas na unidade fabril de Bruxelas. O magistrado, contudo, condenou a fabricante de vacina a fornecer 50 milhões de doses à União Europeia, sob pena de multa diária por descumprimento, em sentença prolatada em junho passado. As outras 40 milhões de doses deverão ser fornecidas segundo um detalhado calendário, estabelecido pelo juízo, até o fim de setembro. No próximo dia 26 de julho, às 9h., conglomerado farmacêutico deve entregar 15 milhões de doses ou será multada em 10 euros por cada vacina ausente. No dia 23 de agosto, a AstraZeneca deverá fornecer mais 20 milhões de imunizantes e em 27 de setembro, o último fornecimento de 15 milhões. Segundo os jornais, a fabricante afirmou que irá cumprir a ordem judicial, mas sua produção ainda está deficitária. Desde o início do processo em abril, a empresa já entregou 40 milhões de doses, de forma que a primeira parcela (50 milhões) já foi substancialmente cumprida e, segundo a empresa, não haverá atrasos - nem multas - com os demais fornecimentos.  Segundo a AstraZeneca, todos os demais pedidos da Comissão Europeia foram rejeitados pelo juiz4. A União Europeia confirmou o recebimento das 40 milhões de doses durante o processo e considera exitosa a sentença, pois a Corte belga reconheceu o descumprimento contratual por parte da empresa. Nada obstante, a União Europeia ainda está insatisfeita com o desempenho da empresa, pois ela não estaria empreendendo todos os esforços razoáveis para cumprir a obrigação (fornecimento das vacinas na quantidade acordada). O bloco alega que a AstraZeneca poderia utilizar uma fábrica no Reino Unido para produzir as doses necessárias, mas ainda não o fez, nem há perspectivas concretas de que isso seja feito. Ou seja: para a credora (UE), a devedora não está empreendendo os esforços necessários e possíveis para cumprir a obrigação. Ursula von der Leyen, Presidente da União Europeia, foi categórica ao afirmar que a farmacêutica não está cumprindo suas obrigações contratuais e que a decisão na Bélgica fortalece a posição do bloco. Obviamente, não se pode tirar qualquer conclusão sem uma análise do contrato, mas, em tese, não há dúvida: o devedor deve fazer tudo o que for possível e razoável para cumprir a obrigação. Isso significa, nesse caso concreto, empregar toda as atividades e esforços que uma empresa de igual porte, estrutura e recursos empregaria para desenvolver e fabricar vacinas diante da urgência imposta por uma pandemia da dimensão da Covid-19. Não se pode perder de vista ainda que a farmacêutica tinha ciência da urgência e das dificuldades na fabricação dos imunizantes, e exigiu uma contraprestação pecuniária à altura do risco assumido. Segundo o Prof. Thomas Riehm, da Universidade de Passau (Alemanha), a AstraZeneca não pode alegar problemas em uma única fábrica na Bélgica para justificar o incumprimento, porque no contrato o dever de produção do imunizante não está vinculado a um local específico. Pelo contrário, foi pactuado que, caso necessário, a empresa deveria produzir em outras fábricas, inclusive na Grã-Bretanha5. Assim, aparentemente a razão está com a União Europeia. O problema é que, na atual conjuntura, o importante não é ter razão, mas sim vacina. E esse é um daqueles casos nos quais uma eventual indenização não satisfaz os interesses do credor. __________ 1 EU-Kommission klagt gegen Astrazeneca-Hersteller. LTO, 26/4/2021. 2 Exemplo paradigmático na jurisprudência brasileira é o caso em que a construtora, pouco antes da data aprazada para entrega, sequer havia iniciado a construção do hospital. Veja: TJRS, Apelação Cível 582000378, Rel. Des. Athos Gusmão Carneiro, julgado em 8/2/1983. 3 União Europeia processa AstraZeneca por atraso em entrega de vacinas. G1, 26/4/2021. 4 Astrazeneca muss Impfstoff liefern oder Strafgeld zahlen. LTO, 21/6/2021. 5 Die EU-Kommission ist wohl im Recht - es hilft nur nicht. Spiegel, 29/1/2021.
Recentemente, a Corte infraconstitucional alemã - Bundesgerichtshof (BGH) - deu mais um exemplo de sua sólida e bem fundamentada jurisprudência ao debruçar-se sobre caso de direito ao esquecimento envolvendo plágio cometido por conhecida política alemã.  Não é a primeira vez que um político tem problemas na Alemanha com a descoberta de plágio acadêmico. Caso rumoroso envolveu Karl-Theodor zu Guttenberg, à época Ministro da Defesa do governo de Angela Merkel, que em cerca de duas semanas perdeu o cargo e o título de doutorado concedido pela Universidade de Bayreuth.  O escândalo mais recente foi protagonizado por Annette Schavan, jurista, socióloga e ex-Ministra da Educação. A suspeita de fraude veio à tona no final de 2016: Schavan teria cometido plágio na tese de doutorado e de livre-docência apresentada na Universidade de Düsseldorf, onde era professora.  Tratava-se, portanto, de duplo plágio denunciado em primeira mão pelo site VroniPlag Wiki, coordenado por um grupo de cientistas especializado em descobrir fraudes acadêmicas. A história foi parar na imprensa e Schavan pediu demissão da Universidade em janeiro de 2017, retirando-se definitivamente da vida pública.  O processo administrativo instaurado pela Faculdade de Direito revelou que 41% da tese de doutorado continha trechos plagiados, com capítulos copiados de outros autores, frases levemente modificadas e ausência de indicação das fontes. Na tese de livre-docência, o VroniPlag Wiki detectou 38% de plágio.  Um jornalista independente, também formado em Direito, escreveu várias reportagens sobre o escândalo com citação expressa do nome da política, as quais foram publicadas em diferentes jornais, dentre os quais o renomado Frankfurter Allgemeine Zeitung. E ainda tinha a intenção declarada de continuar abordando o caso.  Por isso, Schavan, por meio de seu advogado, notificou o periodicista, exortando-o a não mencionar seu nome em futuras matérias. Ela alegava ter se retirado totalmente da vida pública e acadêmica, e que o escândalo, juntamente com as matérias mencionando seu nome, provocaram-lhe graves problemas de depressão, prejudicando sua vida pessoal.  O jornalista ignorou o apelo da política, que, então, moveu ação judicial com pedido de tutela inibitória a fim de proibi-lo de nomina-la em futuros artigos jornalísticos.  O processo Annette Schavan obteve êxito em primeira instância: o juízo (Landgericht) de Frankfurt am Main condenou o jornalista a omitir o nome da política nas futuras matérias sobre a fraude autoral.  O réu apelou ao Oberlandesgericht (OLG), que reformou a decisão e julgou improcedente a ação. Além da discussão processual acerca da (in)determinabilidade da ação (§ 253, inc. 2, n. 2 ZPO, o código de processo civil alemão), vez que o pedido formulado (proibição de citação nominal da autora em futuras publicações) seria demasiado amplo, a Corte assentou, no mérito, que ao caso não se aplicava o direito ao esquecimento e que o jornalista poderia continuar a citar o nome da plagiária em suas matérias.  De acordo com o OLG Frankfurt a.M., as matérias não diziam respeito a circunstâncias da esfera privada, mas da esfera social da autora: sua atividade profissional.  É bem verdade que a autora havia se retirado totalmente da vida pública e profissional, disse o Tribunal. Porém, fato é que sua tese de doutorado (Doktorarbeit) e de livre-docência (Habilitationsschrift) continuam no "mundo" como obra científica, seja nas faculdades ou em bibliotecas, servindo de base para o debate científico.  A livre-docência sobre o banco central europeu tem grande atualidade e ainda permanece no discurso público, já tendo sido citada pelo Tribunal Constitucional alemão, anotou o acórdão estadual.  A sociedade tem, portanto, interesse legítimo na divulgação do nome da autora nas matérias, até porque uma denúncia de plágio, sem nominar o plagiador, conduz à perpetuação do fraude autoral, o que contraria os interesses da ciência como um todo.  O Tribunal de Frankfurt a.M. assinalou que não se aplicam aos casos de reportagens sobre plágio os mesmos critérios aplicáveis a reportagens sobre crimes, pois o autor de um trabalho científico, diferentemente do delinquente, se insere e se movimenta no plano do discurso público.  Dessa forma, na ponderação dos interesses jusfundamentais em colisão, o OLG Frankfurt am Main concluiu que o direito ao esquecimento não se aplicava ao caso concreto.  Outra poderia ser a conclusão, ressaltou a Corte, se restasse devidamente demonstrado nos autos que a indicação do nome da plagiadora havia provocado graves transtornos à sua saúde física e mental, hipótese em que o direito fundamental à saúde teria peso maior em confronto com o direito à liberdade de expressão do jornalista e com o direito à informação da sociedade.  A autora interpôs o recurso de Revision e o caso foi parar em Karlsruhe, cidade sede das cortes supremas na Alemanha, localizada nas proximidades da outrora disputada região da Alsácia-Lorena.  A decisão do BGH O BGH rejeitou o recurso da recorrente, confirmando a decisão do Tribunal a quo. Trata-se do processo BGH VI ZR 73/20, julgado em 9/5/2021. De início, a Corte reconheceu que, de fato, a publicação de matérias jornalísticas com a indicação do nome da copista atingia seu direito geral de personalidade, mais precisamente sua honra objetiva (bom nome), uma vez que a reportagem tornava público um comportamento acadêmico falho e reprovável, e qualificava negativamente a pessoa da plagiadora perante o público.  Mas reconheceu que no caso concreto era necessário ponderar o direito da recorrente à proteção de seu bom nome, tutelado nos arts. 1, inc. 1 e 2, inc. 1 da Lei Fundamental (Grundgesetz) e no art. 8, inc. 1 da Convenção Europeia de Direitos Humanos com o direito à liberdade de expressão e de imprensa do jornalista, consagrado no art. 5, inc. 1 da Lei Fundamental c/c art. 10 da mencionada Convenção.  Segundo o Bundesgerichtshof, o direito geral de personalidade é uma espécie de "direito-quadro" (Rahmenrecht), cuja amplitude não está totalmente delimitada na lei, precisando, por isso, ser estabelecida através da ponderação dos interesses jusfundamentais em colisão.  E nesse processo de ponderação, deve o intérprete levar em consideração os direitos e garantias fundamentais atingidos, bem como as circunstâncias do caso concreto.  Segundo a Corte de Karlsruhe, a interferência no direito de personalidade só é contrária ao direito quando o interesse de proteção da pessoa afetada tem peso maior que os interesses merecedores de tutela da contraparte.  No caso concreto, a recorrente questionava a menção de seu nome em futuras matérias realizadas pelo jornalista acerca do escândalo de dupla fraude na qual estava envolvida. A solução do caso requeria a valoração de diversos critérios desenvolvidos ao longo do tempo em doutrina e jurisprudência, disse o BGH.  Em primeiro lugar, deve-se ter em mente que a imprensa, em princípio, não pode ser compelida a, no desempenho de sua tarefa, fazer matérias anonimizada. Faz parte da tarefa legítima da mídia relatar crimes e delitos perpetrados, afirmou o Tribunal.  A intermediação e/ou a comunicação de fatos verdadeiros de interesse geral faz parte da função elementar de uma imprensa livre, que tem, em princípio, o poder de decidir o que deve ser divulgação e como isso será feito. Dessa forma, deve-se aceitar a comunicação de fatos verdadeiros de cunho social.  Em segundo lugar, deve-se atentar que o direito geral de personalidade não confere à pessoa um direito de ser exposta em público de acordo com a imagem que a pessoa faz de si mesma, nem de forma a provocar o efeito por ela pretendido, pois, às vezes, a exposição pode produzir um efeito negativo no público destinatário da notícia.  Ademais, é vedado ao lesado pinçar da totalidade de seu comportamento social - e do retrato de sua personalidade daí resultante - apenas os aspectos positivos, deixando tudo o mais longe dos olhos do público, em uma filtragem seletiva das informações que ficarão acessíveis ao público em geral.  Porém, mesmo uma exposição verdadeira da pessoa pode violar seu direito de personalidade quando essa exposição seja apta a causar graves danos à personalidade do retratado, desproporcionais ao interesse na divulgação da notícia verídica. É o que ocorre, v.g., quando a matéria tem enorme repercussão e provoca a estigmatização, a exclusão ou o isolamento social da pessoa afetada. A lesão pode decorrer ainda da forma como a matéria é redigida ou da insistência com que é divulgada.  Esse risco de dano se potencializa exponenencialmente com a disponibilização permanente de informações relacionadas a dados pessoais do titular na rede mundial de computadores e com a amplitude da propagação da notícia que a internet proporciona, afirmou o BGH.  Outro critério central a ser ponderado no julgamento de casos de direito ao esquecimento é o decurso do tempo, pois a realidade mostra que o interesse público na divulgação da notícia se arrefece com o tempo. Também importante, nesse contexto, é verificar o comportamento da pessoa atingida.  E aqui vale o velho ditado: quem está na chuva, é pra se molhar. Nas palavras da Corte de Karlsruhe: quem está continuamente presente na vida pública, não pode exigir que seu comportamento não seja objeto de exposição e/ou discussão pública, como pode, em princípio, aquele, cujo comportamento revela um "querer ser esquecido" (Vergessenwerdenwollen).  Last but not least, deve-se analisar se a informação divulgada diz respeito à esfera privada da pessoa ou a fatos ou circunstâncias da esfera social, bem como qual a amplitude e os efeitos da notícia considerando, por exemplo, o círculo de seus destinatários, o número de edições do jornal ou revista e a disponibilidade (acessibilidade) na internet.  De acordo com esses parâmetros, o Tribunal infraconstitucional concluiu que a autora não podia exigir preventivamente do réu a omissão de seu nome em futuras matérias jornalísticas sobre a acusação de plágio e a perda dos títulos acadêmicos, não se aplicando no caso o direito ao esquecimento. A fraude autoral lesa não apenas o plagiado, mas a ciência em geral e é importante que a sociedade saiba quem foi o autor do plágio.  Le bilan Com o julgado, o BGH deu mais um exemplo de solidez dogmática: reconhecendo o instituto do direito ao esquecimento, negou sua aplicação no caso concreto.  O mesmo diga-se em relação ao Superior Tribunal de Justiça que, a despeito de todas as críticas e imprecisões em torno do direito ao esquecimento, teve maturidade dogmática de, admitindo a figura, negar sua aplicação no caso Aída Curi, levado ao Supremo Tribunal Federal em sede de repercussão geral por ocasião do julgamento do RE 1.010.606/RJ, em 11/2/21.  O caso girava em torno do assassinato da jovem Aída Curi, ocorrido em 1958 no Rio de Janeiro, que entrou para a história como um brutal feminicídio. O crime fora recontado cinquenta anos depois em documentário no programa Linha Direta da TV Globo contra expressa vontade da família, levando os irmãos da vítima a mover ação de indenização contra a emissora.  A ação foi julgada improcedente em todas as instâncias, inclusive no STJ durante o julgamento do REsp. 1.335.153/RJ, em 28/3/13, sob a relatoria do e. Min. Luís Felipe Salomão, que negou a aplicação do direito ao esquecimento por se tratar de crime de repercussão nacional que não poderia ser recontado sem referência à figura da vítima.  Porém, o STF acabou afetando caso tido como não representativo do direito ao esquecimento e - na contramão da melhor doutrina nacional e europeia, na qual o direito brasileiro finca profundas raízes - concluiu pela incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição Federal.  Interessante notar que a tese de repercussão geral fixada pela Suprema Corte diz o oposto da decisão alemã, aqui comentada, ao afirmar que "é incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como um poder de obstar em razão da passagem do tempo a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social, analógicos ou digitais."  O BGH, seguindo a doutrina mais moderna sobre a temática, não titubeia: em casos excepcionais, o decurso do tempo pode impedir a divulgação de fatos verídicos, licitamente obtidos e publicados na mídia, quando isso representar grave entrave ao pleno desenvolvimento da pessoa envolvida, incompatível com a tutela constitucional da dignidade, da personalidade e, não por último, com a autodeterminação informacional do indivíduo.    Mas, como bem ressalvou o e. Min. Luís Felipe Salomão em recente evento sobre o tema (clique aqui), a decisão do STF só se aplica a casos estritamente análogos ao de Aída Curi, pois a segunda parte da tese deixa aberta larga porta por onde passarão todos os demais casos de direito ao esquecimento, principalmente aqueles nos quais o lesado volta-se contra a divulgação - ou a permanente disponibilização - de notícias na internet, os quais vem sendo instrumentalizados através de pleitos de desindexação de conteúdos e/ou apagamento de dados pessoais por operadores de busca como Google ou Yahoo.  Com efeito, a tese afirma na sequência que "eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível.".  Ou seja: longe de banir a figura do ordenamento jurídico, o STF deixou ao juiz a tarefa de analisar no caso concreto os pleitos de direito ao esquecimento com base nos parâmetros constitucionais, em especial na proteção da "personalidade em geral", da qual o direito ao esquecimento, enquanto mecanismo de tutela ao livre desenvolvimento da personalidade, é decorrência lógica e necessária.  Dessa forma, a despeito da polêmica e controvertida decisão do STF, o direito ao esquecimento deve continuar a ser aplicado a casos com conjuntura fática diversa do julgado paradigma (Aída Curi).  O direito ao esquecimento é perfeitamente conciliável com a liberdade de imprensa, expressão e informação, como deixa claro a decisão da Corte alemã. Ainda quando se admita a primazia das liberdades comunicativas, o direito ao esquecimento constitui importante e indispensável mecanismo de tutela do pleno desenvolvimento da personalidade e da autodeterminação informacional do individuo na era digital.  Ele impede, em situações excepcionais, que informações pretéritas de cunho pessoal - e, portanto, destituídas de relevância histórica e/ou social - fiquem permanentemente expostas ao acesso de todos na internet, provocando uma situação vexatória que impede a pessoa de levar sua vida normalmente.  A decisão do BGH sobre o duplo plágio da reclusa política alemã mostra o quão importante é o Judiciário caminhar de mãos dadas com a boa dogmática.
No último dia 25/6/21, o Parlamento alemão (Bundestag) aprovou um pacote de medidas de proteção aos consumidores face às atuais práticas abusivas no mercado que restringem excessivamente a liberdade e o poder de decisão dos usuários, causando-lhes profundos aborrecimentos. Exemplo disso são as cláusulas que impõem prazo de carência e/ou dificultam o cancelamento dos contratos, impedindo o usuário de mudar de prestador em busca de produtos e serviços mais baratos, pois está preso ao prazo de vigência (carência) do contrato ou sujeito a pesadas multas rescisórias em caso de cancelamento. Outro problema crítico é o telemarketing, que consiste na promoção de vendas de produtos e serviços por telefone e mensagens de texto. Desde que os fornecedores descobriram o chamado "marketing direto ativo", estratégia de vendas que consiste em estabelecer uma interação entre fornecedor e consumidor, independente da vontade deste, com o objetivo de oferecer produtos e/ou serviços, os consumidores nunca mais tiveram sossego. Provavelmente, todo mundo já recebeu ligações ou mensagens indesejadas de fornecedores ofertando seus produtos e serviços. E, tanto aqui, como na Alemanha, as empresas de telecomunicações (telefonia fixa e/ou móvel, internet, TV por assinatura) e as instituições financeiras são campeãs em importunar os usuários. Por isso, o Governo alemão encaminhou ao Parlamento, em 24/2/21, um Projeto de Lei (Gesetzentwurf) com diversas propostas de alterações legislativas a fim de garantir que o conteúdo dos contratos de consumo tenham regras mais justas e equitativas. A proposta, aliás, foi denominada: projeto de lei para contratos de consumos justos (Entwurf eines Gesetzes für faire Verbraucherverträge)1. Diz trecho da extensa  justificativa do Projeto: "Apesar dos intensivos esforços de fortalecer a posição dos consumidores perante a economia e de fomentar contratos de consumo justos, surgem repetidamente constelações de casos que exigem outras medidas de proteção. Atualmente, trata-se, de um lado, de fenômenos já conhecidos, como a publicidade telefônica não autorizada, que representa não só um incômodo irrazoável, mas também, em muitos casos, faz com que o consumidor seja pressionado ou induzido a contratos que ele não quer celebrar. Por outro lado, verifica-se que cada vez mais as empresas utilizam certas cláusulas contratuais nos seus termos e condições gerais que dificultam desproporcionalmente o aproveitamento das oportunidades de mercado pelos consumidores ou a cessão de suas pretensões a terceiros para fins de postulação. As regras propostas devem melhorar ainda mais a posição dos consumidores perante as empresas e garantir que não só a celebração do contrato ocorra em condições mais justas, mas também que o conteúdo do contrato sujeite-se a regulamentações mais justas."2 A lei, que aguarda a sanção do Presidente, Frank-Walter Steinmeier, e publicação no diário oficial para entrar em vigor, tem dois objetivos básicos: primeiro, facilitar ao consumidor trocar de fornecedores em busca de melhores ofertas e, segundo, proibir o telemarketing sem consentimento prévio. Para tanto, algumas leis serão modificadas, dentre as quais o BGB, no capítulo referente às condições contratuais gerais.  Facilitação do cancelamento dos contratos de consumo  A partir de agora, os consumidores alemães poderão cancelar seus contratos de consumo de longa duração com mais facilidade, sem estar amarrados a longos prazos de carência, pesadas multas, nem submetidos a obstáculos burocráticos, como as longas horas de espera nos call centers, prolongadas por aquele atendente impertinente que tudo faz para impedir o cancelamento.  Esses contratos de consumo deverão ter, de agora em diante, o prazo máximo de um ano de vigência. Prazos de carência mais longos, de até dois anos, passarão a ser exceção, nos termos da nova redação que será dada ao § 308 BGB.  O atual § 309 9 do BGB já contém regra limitando o poder das empresas de estipular, nas condições contratuais gerais, um prazo de permanência mínimo nos contratos de longa duração. De acordo com a regra vigente, esses contratos não podem ter duração superior a dois anos, sendo cabível uma única prorrogação tácita pelo prazo de um ano.  O problema, segundo o Projeto de Lei, é que essa norma mostra-se inadequada, pois "a mudança dos consumidores para outro fornecedor é restringida e, dessa forma, a concorrência é inibida se só se oferecem ao consumidor prazos de carência longos. As cláusulas de prorrogação do contrato são desapercebidas ou esquecidas pelos consumidores. Longos períodos para a resilição também restringem a liberdade de escolha dos consumidores."3 O escopo da lei é permitir que consumidores e usuários possam trocar de fornecedor de forma mais ágil, beneficiando-se de preços e condições melhores de empresas concorrentes.  Aqui no Brasil, a situação não é diferente e o consumidor enfrenta os mesmos problemas: pesadas multas escondidas em condições contratuais gerais, cujo conteúdo, dependendo do serviço (ex: telefonia), o consumidor sequer tem conhecimento antes de fechar o negócio, sem falar nos irritantes serviços de call centers, que tomam tempo e acabam com os nervos de milhares de usuários.  Diante da falta de uma norma geral válida para todos os contratos de consumo de longa duração, na área específica dos contratos de telefonia, a Resolução 632/14 da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) estabelece restrições temporais para a chamada cláusula de permanência, limitada ao prazo de doze meses para os consumidores comuns (art. 57, § 1º), mas sujeita à livre negociação em caso de contratos celebrados com consumidores coorporativos (art. 59).  No AgInt no AREsp. 1.704.638/SP, apreciado pela 4ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça, em 1/3/21, sob a relatoria do e. Min. Raul Araújo, a Corte confirmou a validade de cláusula de fidelidade de dois anos em contrato de prestação de serviços de telefonia celebrado entre a operadora e uma empresa privada.  A jurisprudência do STJ também é firme em reconhecer a legalidade da cláusula de fidelização em contratos de telefonia, pois entende que o assinante recebe benefícios pela fidelização e, ademais, assegura às operadoras um período para a recuperação do investimento realizado com a concessão de tarifas menores, bônus, fornecimento de aparelhos e outras vantagens ao usuário4.  A lei alemã, porém, abarca todos os contratos de consumo de longa duração, atingindo em cheio, dentre outros, os contratos de telefonia, internet, TV por assinatura, serviços de streaming, assinaturas de jornais e revistas, academias de ginástica e contratos de fornecimento de energia, mencionados expressamente no Projeto.  Esse tipo de cláusula contratual, que tenta amarrar o usuário ao contrato por um período mínimo pré-estabelecido, contraria exageradamente os interesses econômicos dos consumidores, diz o Projeto de Lei elaborado pelo Governo5. Mais: impede-os de reagir e aproveitar as mudanças no mercado, escolhendo contratar um produto ou serviço mais barato de outro fornecedor, prejudicando, por tabela, a livre concorrência.  Segundo a Ministra da Justiça, Christine Lambrecht, "os contratos com longa vigência ou com longo prazo para denúncia restringem a liberdade de escolha dos consumidores e os impedem de mudar para ofertas mais baratas e atrativas"6.  O prazo de denúncia dos contratos também foi encurtado. A partir de agora, o consumidor/usuário pode pôr fim a qualquer tempo ao contrato, observando o prazo máximo de um mês.  As regras sobre a prorrogação automática dos contratos também sofreram alterações: com a entrada em vigor da nova lei, só será permitida a prorrogação automática do pacto se o consumidor puder cancelá-lo a qualquer tempo.  Além disso, nos contratos celebrados pela internet, a empresa deverá instalar em seu site um botão de denúncia (Kündigungsbutton) a fim de que os contratos possam ser cancelados com a mesma facilidade com que são celebrados, elevando, dessa forma, a proteção dos consumidores no comércio eletrônico.  A nova regra virá prevista no § 312k BGB e a empresa deverá implementar o botão de denúncia de forma visível, legível, com expressões claras e simples como "cancelar agora". Além disso, deverá fornecer documento comprobatório da extinção contratual que possa ser salvo e armazenado pelo consumidor.  Todas essas medidas visam, como dito, conferir maior liberdade para o consumidor exercer seu poder de escolha e mudar de fornecedor, aproveitando ofertas mais baratas e melhores condições oferecidas pela concorrência.  Elas partem da constatação de que não apenas a conclusão do contrato traz riscos aos consumidores, mas também a extinção, frequentemente obstaculizada por meio de cláusulas contratuais intransparentes. A realidade mostra que a extinção dos contratos é bem mais difícil que sua conclusão e isso compromete o poder de disposição do consumidor. Proteção contra ligações indesejadas  Outra importante alteração introduzida pela nova lei é a proibição de telemarketing sem consentimento do consumidor. A medida visa ampliar a proteção dos cidadãos face a propagandas indesejadas e impertinentes feitas por telefone, das quais são vítimas também os brasileiros, como dão provas as ofertas abusivas de crédito a aposentados, feitas em insistentes ligações diárias, mesmo contra a vontade expressa do destinatário.  Segundo o Projeto apresentado pelo Governo alemão, as ofertas feitas por telefone e/ou mensagens sem prévia autorização são uma importunação inadmissível para os consumidores. Elas fazem com que, frequentemente, os consumidores sejam pressionados ou induzidos a contratar algo que eles não desejam.  Por isso, com a entrada em vigor da lei, as empresas só poderão oferecer produtos e serviços por telefone mediante o consentimento prévio do destinatário. Além disso, esse consentimento deverá ser detalhadamente documentado pelo fornecedor e apresentado à autoridade competente quando requisitado.  A lei cria, portanto, ao lado da obrigação de obter o consentimento prévio do consumidor para o recebimento das ligações, um dever de documentação para as empresas, cujo descumprimento poderá ser sancionado com multas de até 50 mil euros. A nova regra será inserida no § 7a da lei anticoncorrencial alemã (Gesetz gegen unlauteren Wettbewerb).  No Brasil, falta lei específica regulando o telemarketing, principalmente proibindo a prática sem prévio e expresso consentimento do consumidor. Em 2019, a Anatel criou uma ferramenta, chamada "Não me perturbe", que permite a qualquer usuário solicitar o bloqueio de ligações de telemarketing.  O serviço, porém, é restrito a empresas de telecomunicações e instituições financeiras, que bombardeiam os cidadãos com ofertas de empréstimos e cartões de crédito consignado, principalmente consumidores mais vulneráveis como os idosos.  O usuário que não desejar receber chamadas dessas empresas precisa acessar o site e se cadastrar, informando o número do telefone e a prestadora que deseja bloquear.  À falta de lei federal, os órgãos de defesa do consumidor de vários estados têm oferecido serviço semelhante aos cidadãos a fim de reduzir essa prática comercial abusiva.  Em São Paulo, a lei 13.226/08, atualizada pela lei 17.334, de 9/3/21, instituiu o cadastro para bloqueio do recebimento de ligações de telemarketing e de serviços de cobrança de quaisquer naturezas. De acordo com a lei, depois do trigésimo dia do cadastro, as empresas não poderão efetuar ligações telefônicas às pessoas inscritas. Atente-se que o telemarketing, em si, é uma prática lícita e, embora inconveniente, não acarreta, a princípio, dano (moral) ao consumidor. O abuso da prática, porém, dá ensejo a indenização, pois o usuário é invadido em sua privacidade com insistentes ligações, muitas vezes fora dos horários e dias permitidos, mesmo diante de sua expressa recusa e desinteresse pelo produto ou serviço ofertado.  Vale lembrar que o art. 6º, inc. IV do Código de Defesa do Consumidor elenca como direito básico do consumidor a proteção contra publicidade enganosa e abusiva, bem como face a métodos comerciais coercitivos ou desleais, dentre os quais insere-se o telemarketing excessivo, prática que o Judiciário deve continuar a punir exemplarmente. ____________ 1 Drucksache 19/26915, de 24/2/2021, Gesetzentwurf der Bundesregierung, p. 1. 2 No Original: "Trotz intensiver Bemühungen, die Position der Verbraucher gegenüber der Wirtschaft zu stärken und faire Ver¬braucherverträge zu fördern, treten immer wieder gehäuft Fallkonstellationen auf, die nach weiteren Schutzma߬nahmen verlangen. Aktuell handelt es sich zum einen um bereits bekannte Phänomene, wie die unerlaubte Tele¬fonwerbung, die nicht nur als solche eine unzumutbare Belästigung darstellt, sondern immer noch in zu vielen Fällen dazu führt, dass dem Verbraucher Verträge aufgedrängt oder untergeschoben werden, die er so nicht ab¬schließen möchte. Zum anderen ist zu beobachten, dass Unternehmen zunehmend bestimmte Vertragsklauseln in ihren Allgemeinen Geschäftsbedingungen (AGB) verwenden, die die Nutzung von Marktchancen durch die Ver¬braucher oder die Abtretung ihrer Ansprüche zwecks Geltendmachung durch Dritte unverhältnismäßig erschwe¬ren. Die vorgesehenen Regelungen sollen die Position der Verbraucher gegenüber den Unternehmen weiter verbessern und erreichen, dass nicht nur der Vertragsschluss unter faireren Bedingungen erfolgt, sondern auch die Vertrags¬inhalte faireren Regelungen unterworfen werden." Drucksache 19/26915, p. 11. 3 No original: "Der Wechsel der Verbraucher zu einem anderen Anbieter wird beschränkt und damit der Wettbewerb gehemmt, wenn dem Verbraucher nur lange Vertragslaufzeiten angeboten werden. Die Klauseln zur Vertragsverlängerung werden von Verbrauchern übersehen oder vergessen. Lange Kündigungsfristen schränken die Wahlfreiheit der Verbraucher ebenfalls ein." Drucksache 19/26915, p. 12. 4 STJ, REsp. 1.362.084/RJ , T4, Rel. Min. Luis Felipe Salomao, j. 1/8/2017 e REsp. 1.445.560/MG, T1, Rel. Min. Napoleao Nunes Maia Filho, j. 16/6/2014; 5 Drucksache 19/26915, p. 1. 6 Bundestag beschließt Gesetz gegen lange Vertragslaufzeiten. Der Spiegel, 25/6/2021.  
A coluna German Report dessa semana recebe o contributo de uma das maiores autoridades em proteção de dados no país: o Prof. Dr. Fabiano Menke, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS).  Fabiano Menke é mestre pela UFRGS, com dissertação sobre "Assinatura digital e seus efeitos jurídicos no direito brasileiro", sob orientação da conceituada Profa. Cláudia Lima Marques.  O doutorado foi realizado na Universidade de Kassel, na Alemanha, em 2008, com o aprofundamento da temática da assinatura digital em perspectiva comparada, sob a orientação do Prof. Alexander Roßnagel.  A tese virou livro, publicado pela renomada editora alemã Nomos, em 2009, com o título: Die elektronische Signatur im deutschen und brasilianischen Recht: eine rechtsvergleichende Studie. No idioma de Camões: a assinatura eletrônica no direito alemão e brasileiro: um estudo comparado.  Durante a estadia na Alemanha, o autor integrou grupo de pesquisa da Universidade sobre proteção de dados, trazendo, na volta ao Brasil, sólidos conhecimentos sobre a área, à época, ainda incipiente.  Fabiano Menke tem farta publicação de artigos e livros, dentre os quais merecem destaque: Lei Geral de Proteção de Dados: aspectos relevantes, obra coordenada com Rafael Dresch, publicada pela editora Foco em 2021, e Studien zum deutsch-brasilianischen Recht (Estudos de direito alemão-brasileiro), publicação coletiva lançada na Alemanha, em 2013.  É conferencista em inúmeros eventos no Brasil e no exterior, e membro de diversos institutos, dentre os quais: Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD), Instituto de Direito Privado (IDP) e Membro-Fundador do Centro de Estudos Europeus Alemães (CDEA).  Integra ainda Associação Luso-Alemã de Juristas (Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung), sediada em Berlim, presidida pelo Prof. Dr. Dr. Stefan Grundmann, atual Diretor da Faculdade de Direito da Universidade Humboldt, da qual esta articulista é Secretária-Geral.  Além de professor, Fabiano Menke é ainda advogado e parecerista, atuando em disputas judiciais e arbitrais. E, acima de tudo, um exímio germanista, profundo conhecedor do direito alemão e europeu, como fica evidente do artigo ora publicado no German Report, no qual comenta, com a profundidade de costume, o aceso debate travado na Alemanha acerca da indenização de danos - sobretudo extrapatrimoniais - por violações de dados pessoais. Confira.  * * *   Fabiano Menke1 Há um desafio inerente à disciplina de proteção de dados que é o do acionamento das regras de responsabilidade civil quando se está diante de violações da legislação que podem parecer menos relevantes. Exemplifica-se a situação na hipótese de agente de tratamento de dados que envia mensagem de publicidade a determinada pessoa sem que essa operação tenha sido respaldada em base legal adequada ou sem a tomada de qualquer medida prévia demonstrando preocupação com a legislação de proteção de dados. Tem-se, nesses casos, a expressão da conhecida figura utilizada por Daniel Solove, que afirma que uma boa parte dos problemas de proteção de dados "carece de cadáveres"2. Isso significa dizer que diversas violações de proteção de dados são a um só tempo difíceis de constatar, não chegam a causar um dano material evidente, e problemáticas para que o titular dos dados pessoais reclame ou exerça pretensão de indenização, ainda que a título de danos extrapatrimoniais. O exemplo acima se inspira em casos idênticos que têm sido levados ao exame dos tribunais alemães3 desde que o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) do Parlamento e do Conselho Europeu entrou em vigor4. A regra que vem sendo desafiada é a de responsabilidade civil do art. 82 do RGPD, que tem como principal dispositivo o seguinte5: "1. Qualquer pessoa que tenha sofrido danos materiais ou imateriais devido a uma violação do presente regulamento tem direito a receber uma indenização do responsável pelo tratamento ou do subcontratante pelos danos sofridos."  O presente texto aborda a problemática acima introduzida, a partir do exame de caso julgado na Alemanha pela primeira instância da jurisdição de Goslar (I) e de seus desdobramentos perante o Tribunal Constitucional Federal (II) e finaliza com reflexões sobre o caso (III). O caso de Goslar Em processo iniciado perante a jurisdição de Goslar6, um advogado postulou reparação por danos imateriais por ter recebido de maneira indevida na sua caixa de e-mail profissional uma mensagem de publicidade.  O argumento do autor foi o de que o dado relacionado a sua pessoa foi tratado de maneira ilícita, por não contar com o seu consentimento. A petição inicial contemplou três pedidos: o primeiro relacionado à tutela inibitória, para que o réu se abstivesse de enviar novas mensagens não solicitadas com cunho de publicidade. O segundo pedido dizia respeito ao fornecimento de informações ao autor pelo réu, sobre os dados pessoais relacionados ao autor que o réu detinha em seus registros. E o terceiro pedido consistia em indenização a ser paga pelo réu em virtude do envio de mensagem de publicidade sem o consentimento do autor.  Os pedidos de cessação da conduta de envio de mensagens e de fornecimento das informações acerca do titular dos dados foram julgados procedentes pelo Juízo de Goslar. No que toca à ausência de consentimento, interessante notar que a decisão indicou que se mensagens de notícias ou de publicidade são enviadas, há a necessidade de garantir que o consentimento do destinatário seja efetivamente obtido. Nesse sentido, há que existir uma clara separação entre o formulário de consentimento para envio de publicidade do restante das cláusulas contratuais gerais. No caso, essa separação não se deu, e por isso a decisão considerou que o titular dos dados não poderia esperar que as condições gerais do negócio também contivessem autorização para envio de publicidade. Assim, a disposição escondida padeceria do vício de "cláusula surpresa", nos termos do § 305c do BGB7. Mas o ponto que atinge o cerne da problemática tratada no presente texto é o do terceiro pedido: o de indenização.  E esta pretensão foi rejeitada pelo Juízo de Goslar, muito embora tenha sido reconhecido, conforme a análise dos dois primeiros pedidos, o tratamento indevido dos dados pessoais. A decisão fundamentou a improcedência do pedido de indenização em variados argumentos. De início, sustentou que de acordo com o ordenamento jurídico alemão, a violação a direito da personalidade nem sempre gerará dever de indenizar. Ao revés, a jurisprudência do Bundesgerichtshof (BGH) indica que a pretensão de indenização será concedida sempre que se cuidar de grave intervenção nos direitos da personalidade e não houver outra forma razoável de compensar o dano sofrido. O critério a ser empregado no exame de se está diante de lesão grave é objetivo e não depende da sensibilidade concreta do titular do direito: há que se aquilatar o significado e a extensão da violação, e menos o contexto, a motivação do causador do dano e o grau de sua culpa. Mesmo passando pelo exame dos dispositivos da regra de responsabilidade civil do art. 82 do RGPD, bem como dos respectivos considerandos do diploma legal a eles atinentes, o Tribunal de Goslar entendeu que não se vislumbrou um dano de acordo com a narrativa do autor da ação. Isso porque cuidou-se do envio de apenas uma mensagem de correio eletrônico, em momento não considerado inoportuno. Além disso, considerada a aparência da mensagem no momento da visualização para o destinatário, permitia claramente perceber que se tratava de mensagem publicitária, o que fez com que não tivesse de se ocupar longamente com o e-mail.  A reversão perante o Tribunal Constitucional Federal Na continuidade do caso, o autor da demanda interpôs reclamação constitucional perante o Tribunal Constitucional Federal. Em decisão publicada em 14.01.20218, 2ª Câmara, Primeiro Senado do Tribunal Constitucional Federal, decidiu que a primeira instância de Goslar violara o Art. 101, I, parte final, da Lei Fundamental. Esse dispositivo determina que ninguém poderá ser privado do juiz legalmente competente para o caso concreto. Para que se compreenda, na comparação com a figura existente no Brasil, do princípio do juiz natural, estatuído na Constituição Federal de 1988 no art. 5º, XXXVII, que proíbe "juízo ou tribunal de exceção". O juízo cuja competência teria sido usurpada seria o Tribunal de Justiça da União Europeia (Europäischer Gerichtshof - EuGH), que, em virtude do previsto no art. 267, do Tratado de Funcionamento da União Europeia, teria de se pronunciar sobre o caso. Essa regra, em síntese, determina que o Tribunal de Justiça da União Europeia é competente para decidir, a título prejudicial, "sobre a validade e a interpretação dos atos adotados pelas instituições, órgãos ou organismos da União", além de estipular que "sempre que uma questão desta natureza seja suscitada em processo pendente perante um órgão jurisdicional nacional, cujas decisões não sejam suscetíveis de recurso judicial previsto no direito interno, esse órgão é obrigado a submeter a questão ao Tribunal". Questão processual interessante é a de que a decisão não comportava recurso, uma vez que o valor dado à causa foi inferior a 600 Euros e, neste caso, a Lei Processual Alemã veda o aviamento de irresignação recursal (§ 511, II, 1 da ZPO9). De modo que ao autor da demanda restava apenas a via da reclamação constitucional.   Analisando a demanda, o Tribunal Constitucional Federal assentou que a instância inferior extrapolou a sua atribuição ao não submeter a questão  ao EuGH e ao se pronunciar acerca de questão jurídica ainda não examinada pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Seria permitida a não submissão se o assunto em questão já tivesse sido apreciado pelo EuGH ou se a correta aplicação da regra de índole europeia fosse tão clara que não restasse margem de dúvida (acte clair10). Como esse não é o caso da regra de responsabilidade civil do art. 82 do Regulamento Geral de Proteção de Dados, que por se tratar de dispositivo relativamente recente e ainda sem apreciação pelo Tribunal de Justiça Europeu, o Tribunal Constitucional Federal entendeu indevida a usurpação de competência e a não submissão da questão ao Tribunal Europeu. Esclareceu que o caso englobava a pergunta acerca de sob quais pressupostos incidiria o art. 82 do RGPD no que diz respeito à indenização por danos imateriais, especialmente à luz do que determina o Considerando 146. Refira-se, uma vez que pertinente, que  o Considerando11 mais importante do RGPD para interpretar a regra de responsabilidade civil é justamente o de número 14612, que deixa claro que a interpretação do artigo 82 deve partir do pressuposto de um conceito de dano amplo, em linha com a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia, e que busque realizar as finalidades do Regulamento Geral de Proteção de Dados na extensão mais ampla possível. Argumento de fundamental importância para o destino da reclamação constitucional foi não só a ausência de decisões do Tribunal de Justiça da União Europeia sobre a questão da indenização em casos similares, mas também a falta de determinação direta no próprio texto do RGPD de seus requisitos, bem como a lacuna, na doutrina, de discussão envolvendo a relevante questão envolvida. Depreende-se da decisão do Tribunal Constitucional Federal que o silêncio da doutrina acerca dos detalhes e da extensão da indenização em dinheiro em casos de gravidade aparentemente menor, como o posto perante a jurisdição de Goslar, também foi elemento de convencimento para desautorizar que a instância originária não levasse o caso ao Tribunal de Justiça da União Europeia.  Por um lado, o Tribunal Constitucional Federal reconheceu que a decisão de primeira instância não ignorou a problemática envolvida na interpretação do art. 82 do RGPD, mas considerou que o erro com repercussão no regramento constitucional alemão (Art. 101, I, parte final, da Lei Fundamental) consistiu em realizar a sua própria interpretação do direito da União Europeia, especialmente por ter fundamentado a improcedência do pedido de indenização no questionável critério da falta de relevância do dano, como se estivesse criando uma "reserva de bagatela". Em complementação, o Tribunal Constitucional Federal aduziu que o critério utilizado na decisão não foi debatido na doutrina, não está previsto no Regulamento Europeu de Proteção de Dados e não foi utilizado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia. Essa "reserva de bagatela", para alegados danos de monta reduzida, poderia ser utilizada no âmbito da antiga Lei Federal Alemã de Proteção de Dados (Bundesdatenschutzgesetz) na versão anterior à vigência do RGPD13, na qual se reconhecia o critério da relevância, daí a advertência do Tribunal Constitucional Federal. Segundo Stefan Korch14, a jurisdição de Goslar de certa maneira sofreu o "tapa" desferido pelo Tribunal Constitucional Federal e "representou" outros tribunais que exararam decisões no mesmo sentido. Com efeito, em pesquisa jurisprudencial realizada por Kevin Leibold15, verifica-se que grande parte dos tribunais alemães de jurisdição civil rejeitou pedidos de indenização fundamentados no art. 82 do Regulamento Geral de Proteção de Dados. O autor expõe que dos 34 casos julgados entre 2019 e os primeiros meses de 2021, 29 foram improcedentes e 5 procedentes, esses com indenizações por danos imateriais variando entre os montantes de 920 a 4000 Euros. Enquanto isso, no mesmo período, foram julgados seis casos na jurisdição trabalhista, sendo 5 casos julgados procedentes e um improcedente. As indenizações variaram entre 500 e 5000 Euros. A consequência jurídica da decisão prolatada pelo Tribunal Constitucional Federal é o retorno do processo à primeira instância, abrindo-se a oportunidade de o Juízo de Goslar ou enviar o caso ao Tribunal de Justiça da União Europeia ou decidir novamente, dessa vez sem incorrer na violação flagrada.  Reflexões sobre o caso É possível fazer algumas observações e extrair interessantes pontos de reflexão  da rica discussão havida nas cortes alemãs e que deve prosseguir no Tribunal de Justiça da União Europeia.  Primeiramente, o Tribunal Constitucional Federal acena aos magistrados alemães com uma mensagem de alerta, para que não avancem em certas temáticas reguladas pelo direito europeu de proteção de dados e que ainda não foram devidamente amadurecidas pelo Tribunal de Justiça da União Europeia e pela doutrina. E mais, sobre um aspecto que é crucial para a disciplina da proteção de dados em qualquer parte do mundo, qual seja o das violações que muitas vezes não levam a qualquer reclamação ou insurgência por parte do titular dos dados pessoais, mas que não deixam de consistir em dano, no mais das vezes imaterial. O caso julgado pelo Tribunal de Goslar e que chegou ao Tribunal Constitucional Federal, é nesse sentido, emblemático. Há de se fazer novamente o registro e louvar o destaque dado pela decisão ao papel e à importância da doutrina16. O Tribunal Constitucional Federal assentou claramente que não foi apenas a falta de pronunciamento do Tribunal de Justiça da União Europeia acerca do critério da relevância dos danos que levou ao desfecho havido. Também a falta de pronunciamento doutrinário consistente, que amparasse o conteúdo da decisão de primeiro grau, foi fundamental para que se reconhecesse a violação do dever de apresentação do caso à Corte Europeia.    Ponto de considerável relevância é o atinente à função da regra de responsabilidade civil contida no RGPD, observadas as características do regime jurídico alemão no que diz respeito à matéria. Assim como no direito brasileiro, a função precípua da responsabilidade civil na Alemanha é a reparatória. Ocorre que, no âmbito do RGPD, alguns autores alemães17, levando em conta o texto legal e especialmente o referido Considerando 146, têm destacado a importância da função preventiva, o que representa uma influência das regras europeias no sistema alemão, a partir das diretrizes estabelecidas pela jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia18. E, como ensinam Nils Jansen e Lukas Rademacher19, eventual função preventiva não é estranha ao direito alemão. Mas ela não é reconhecida por meio de um componente indenizatório autônomo que possa ter caráter de penalidade e invocar a recepção dos punitive damages20. A função preventiva na responsabilidade civil alemã é exercida por meio da compensação justa e não com base em argumentos punitivos. Nesse sentido, o conceito de compensação, em sentido amplo, "incorpora a proteção de interesses normativos, os quais não são diretamente perceptíveis no bolso da parte lesada. Isso é comprovado, em particular, para danos de dor e sofrimento e para a violação de direitos da personalidade e de direitos do autor"21. Acerca do critério da relevância do dano, não se pode deixar de lembrar a decisão do censo, de 1983, do mesmo Tribunal Constitucional Federal, no trecho22 em que afirmou que, consoante as condições do processamento automatizado de dados, não existem mais dados irrelevantes. A analogia poderia também ser feita no sentido de que nos dias de hoje já não existem danos totalmente irrelevantes. A questão é mais um desafio a ser enfrentado pela disciplina da responsabilidade civil, pois também não se pode perder de vista que as indenizações não devem ser desproporcionais aos danos, como assentam as características do direito civil alemão e mesmo as do direito civil brasileiro, que repulsam o excesso dos valores das condenações quando não exista fundamento para tanto. É também possível argumentar, e não sem pertinência, que casos como o ora examinado talvez sejam melhor resolvidos por meio das sanções presentes nas regras de proteção de dados, a serem aplicadas pelas autoridades de supervisão, ou por meio da tutela coletiva23.   O caso também suscita a reflexão acerca da influência das regras europeias do RGPD sobre a tradicional estrutura da disciplina de responsabilidade civil daquele país. É de observar que o Tribunal Constitucional Federal fez o devido alerta para que os juízes alemães, na interpretação das regras do RGPD, devem atentar ao seu caráter supranacional e aos pronunciamentos do Tribunal de Justiça da União Europeia. O precedente de Goslar mirou a jurisprudência do BGH, mas, como se viu, o Tribunal Constitucional Federal indicou que o guia de orientação dos tribunais alemães deve ser o Tribunal de Justiça da União Europeia quando se tratar de interpretar fonte de origem supranacional, especialmente quando ainda carente de decisões anteriores e reflexões doutrinárias mais apuradas e detalhadas sobre a questão específica sob julgamento. Há que se aguardar os desdobramentos do caso em possível julgamento pelo Tribunal de Justiça da União Europeia de modo a verificar se o critério da relevância do dano será reconhecido, bem como se pela via da jurisprudência supranacional, a função preventiva da responsabilidade civil em matéria de proteção de dados ganhará novo fôlego no direito alemão. __________ 1 Fabiano Menke é advogado e consultor jurídico em Porto Alegre, professor associado de Direito Civil da Faculdade de Direito e do Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio Grande do Sul - UFRGS. Doutor em Direito pela Universidade de Kassel, com bolsa de estudos de doutorado integral CAPES/DAAD. Coordenador do Projeto de Pesquisa "Os fundamentos da proteção de dados na contemporaneidade", na UFRGS.  Membro Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados - IAPD (www.iapd.org.br). Advogado. Instagram: menkefabiano. 2 SOLOVE, Daniel. "I've got nothing to hide" and other misunderstandings. San Diego Law Review, v. 44, 2007, p. 768. 3 O presente texto concentra-se na jurisdição alemã, mas não se olvide que os tribunais de outros países integrantes da União Europeia estão enfrentando desafios similares. Para exemplos na Holanda e Áustria, ver PAAL, Boris; ALIPRANDI, Claudio. Immaterieller Schadenersatz bei Datenschutzverstößen: Bestandaufnahme und Einordnung der bisherigen Rechtsprechung zu Art. 82 DSGVO. Zeitschrift für Datenschutz (ZD), 2021, p. 241-247. 4 O Regulamento Geral de Proteção de Dados foi publicado em 27 de abril de 2016 e entrou em vigor na União Europeia em 25 de maio de 2018. 5 A regra de responsabilidade civil do art. 82  RGPD é complementada por outros incisos que tratam da responsabilidade de operador (2), de isenção de responsabilidade (3), da responsabilidade solidária em caso de co-controladoria (4), do direito de regresso (5) e da competência para ajuizamento de demandas (6). 6 AG Goslar (28. Câmara Cível, Sentença de 27.09.2019 - 28 C 7/19). KORCH, Stefan. Schadenersatz für Datenschutzverstöße: Verfassungsrechtliche Notbremsung einer Fehlentwicklung. Neue Juristische Wochenschrift (NJW), 2021, p. 978-981. A narrativa do caso feita abaixo foi baseada na consulta do original da decisão do Tribunal de Goslar. 7 Em síntese, o §305c do Código Civil Alemão (BGB) considera como não integrantes do contrato determinações em condições gerais dos negócios que, de acordo com as circunstâncias, e especialmente consoante a aparência externa do contrato, sejam tão incomuns, que o parceiro contratual do predisponente não esperaria contar com a sua presença. Esse mesmo raciocínio pode ser aplicado às operações de tratamento de dados pessoais que causem espanto ou surpresa. 8 BVerfG (2ª Câmara, Primeiro Senado), Decisão de 14.1.2021 - 1 BvR 2853/19. As considerações que seguem sobre a decisão do Tribunal Federal Constitucional são todas baseadas no original da sentença. 9 A ZPO (Zivilprozessordnung) é equivalente ao Código de Processo Civil brasileiro. 10 A doutrina do "acte clair", criada no contexto do Direito da União Europeia, determina que se um julgamento ou regra é clara o suficiente, não se faz necessária a submissão da questão ao Tribunal de Justiça da União Europeia. Ao lado da doutrina do "acte clair" foi desenvolvida pela jurisprudência da corte a doutrina do "acte éclairé", que dispensa os tribunais dos Estados Membros de submeter determinada demanda se a questão suscitada já foi objeto de apreciação, em caso similar, pelo Tribunal de Justiça da União Europeia.  Ver, quanto ao assunto aqui. 11 É sempre pertinente referir que, consoante a técnica legislativa dos textos legais editados no âmbito da União Europeia, o RGPD contempla uma lista de cento e setenta e três considerandos sobre o conteúdo de suas regras, com a função de auxiliar o intérprete. Os considerandos não têm função vinculativa, como a pesquisa de Carlos Affonso Souza, Christian Perrone e Eduardo Magrani aponta, devendo ser dado destaque à decisão referida pelos autores do Tribunal de Justiça da União Europeia, Caso 215/88 Casa Fleischhandels, 1989. ECR 2789, parágrafo 31. SOUZA, Carlos Affonso; PERRONE, Christian; MAGRANI, Eduardo. O Direito à explicação entre a experiência europeia e a sua positivação na LGPD. In: Tratado de Proteção de Dados Pessoais. BIONI, Bruno Ricardo; DONEDA, Danilo; SARLET, Ingo Wolfgang; MENDES, Laura Schertel; RODRIGUES JR, Otavio Luiz. (Org.), São Paulo: Editora Forense, 2021, p. 243-270. 12 Dignos de menção também são os considerandos 75 e 85, que contemplam rica base de exemplos de violações à legislação de proteção de dados. 13 Ver, sobre o ponto, BLASEK, Karin. Vorlagepflicht zum EuGh bei Schadenersatz gem. Art. 82 DS-GVO. Zeitschrift für Datenschutz (ZD), 2021, p. 266-269. 14 KORCH, Stefan. Schadenersatz für Datenschutzverstöße: Verfassungsrechtliche Notbremsung einer Fehlentwicklung. Neue Juristische Wochenschrift (NJW), 2021, p. 978-981. 15 LEIBOLD, Kevin. Gerichtliche Entscheidungen zum Schadenersatz nach Art. 82 Abs 1 DSGVO - ein Fall für den EuGH?. Zeitschrift für Datenschutz-Aktuell, 2021, p. 05146. 16 No Brasil, não se pode perder de vista a precisa lição da Profa. Judith Martins-Costa, ao lançar um olhar crítico ao que denomina de perda da autoridade da doutrina, num contexto da atualidade em que se prescinde de uma dogmática forte e mais se dá valor a conclusões apressadas, desprovidas de reflexão. MARTINS-COSTA. Judith. Apresentação - Autoridade e utilidade da doutrina: a construção dos modelos doutrinários. In: MARTINS-COSTA, Judith (Org.). Modelos de direito privado. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 18-19. 17 Ver, por exemplo: [17]KORCH, Stefan. Schadenersatz für Datenschutzverstöße: Verfassungsrechtliche Notbremsung einer Fehlentwicklung. Neue Juristische Wochenschrift (NJW), 2021, p. 978-981. PAAL, Boris; ALIPRANDI, Claudio. Immaterieller Schadenersatz bei Datenschutzverstößen: Bestandaufnahme und Einordnung der bisherigen Rechtsprechung zu Art. 82 DSGVO. Zeitschrift für Datenschutz (ZD), 2021, p.241-247. 18 No mesmo sentido, com destaque à função preventiva e aludindo a precedentes do Tribunal de Justiça da União Europeia que a enfatizaram,   BOEHM, Franziska. Kommentar Art. 82 DSGV. In: SIMITIS, HORNUNG, SPIECKER (Org.): Datenschutzrecht: DSGVO mit BDSG. Nomos: Baden-Baden, 2019, p. 1207. Na mesma linha, aludindo a jurisprudência do Tribunal de Justiça da União Europeia que refere o cunho dissuasor, sem assumir função punitiva, BARRETO MENEZES CORDEIRO, A. Repercussões do RGPD e a responsabilidade civil. In: TEPEDINO, Gustavo; FRAZÃO, Ana; OLIVA, Milena Donato. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais e suas repercussões no Direito Brasileiro. 1ª ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2019. p. 782. 19 JANSEN, Nils; RADEMACHER, Lukas. Punitive Damages in Germany. In: KOZIOL, Helmut; WILCOX, Vanessa (Org.). Punitive Damages: Common Law and Civil Law Perspectives. Viena: Springer, 2009, p. 75-86. 20 Com a exceção de casos envolvendo discriminação, conforme registram Nils Jansen e Lukas Rademacher, na obra citada, p. 85. 21 JANSEN, Nils; RADEMACHER, Lukas. Punitive Damages in Germany. In: KOZIOL, Helmut; WILCOX, Vanessa (Org.). Punitive Damages: Common Law and Civil Law Perspectives. Viena: Springer, 2009, p. p.85-86 (tradução livre do autor). Analisando o regramento jurídico brasileiro, Judith Martins Costa e Marina Pargendler chegam a resultado bastante similar ao diagnóstico realizado por Jansen e Rademacher. Ver MARTINS-COSTA, Judith; PARGENDLER, Mariana. Usos e Abusos da função punitiva (punitive damages e o Direito brasileiro). Revista CEJ - Justiça e Educação, nº 28, p. 15-32, jan./mar.2005. 22 BVerfG, Decisão de 15.12.1983 - 1 BvR 209, 269, 362, 420, 440, 484/83. Trata-se do seguinte trecho em alemão "Insoweit gibt es unter den Bedingungen der automatischen Datenverarbeitung kein "belangloses" Datum mehr". 23 No Brasil, a possibilidade da tutela coletiva foi prevista na LGPD, nos artigos 22 e 42, caput e §3º. O RGPD prevê no Art. 80 a possibilidade da tutela coletiva, deixando margem aos países membros regrarem os pormenores do acesso. Alexander Roßnagel e Christian Geminn criticaram a internalização da regra europeia no direito alemão, alegando que deveria ocorrer um alargamento dos legitimados a proporem a demanda, tendo em conta que na regra vigente haveria a previsão de franquear o acesso à tutela coletiva apenas às associações de consumidores, e não as que defendem outros interesses. ROßNAGEL, Alexander; GEMINN, Christian. Datenschutz-Grundverordnung verbessern: Änderungsvorschläge aus Verbrauchersicht. Baden-Baden: Nomos, 2020, p. 158.
As discussões em torno dos problemas das locações na Alemanha está na ordem do dia. Embora o Tribunal Constitucional alemão tenha declarado recentemente a inconstitucionalidade da lei berlinense que impunha teto para os alugueis na capital, a lei federal de 2015, que introduziu a possibilidade de limitações desses valores, já teve sua constitucionalidade confirmada pela Corte em 18/7/2019, em decisão comentada nesta coluna (aqui). A citada lei introduziu o § 556d, inc. 1 ao BGB, segundo o qual, em contratos de locação residencial, os alugueis não podem superar 10% do valor médio local em áreas de mercado imobiliários tenso, nos quais há risco de falta de moradia para a população. Como o dispositivo tem eficácia espacial restrita às áreas com mercado tenso, há relativo consenso de que é necessário uma legislação nacional que imponha um teto aos aluguéis a fim de resolver o problema da explosão dos preços nos últimos anos e do déficit habitacional no país. Sem falar no problema da forte especulação por fundos imobiliários1. E, não há dúvidas: a locação não é um simples contrato de escambo, mas um contrato com forte cunho existencial uma vez que a moradia é direito fundamental e afeta diretamente a dignidade humana dos envolvidos, principalmente da parte mais fraca: em regra, o inquilino. No último dia 25/5/2021, o juízo de primeira instância de Berlim, o Landgericht (LG), reforçou a necessidade de tutela da dignidade humana nesses contratos ao pôr fim a longa batalha judicial em torno da denúncia de contrato de locação envolvendo uma locatária idosa que não queria sair do imóvel, onde residia há vinte e quatro anos. O caso O imbróglio começou em 2015, quando a nova proprietária do imóvel resolveu denunciar o contrato de locação alegando necessidade própria, o que, nos termos do § 573,inc. 2, alínea 2 do BGB justifica a extinção do contrato. No direito locatício alemão, há uma regra de ouro segundo a qual a "compra não quebra a locação": Kauf bricht nicht Miete, diz o § 566 BGB, indicando que o adquirente de imóvel locado precisa respeitar a locação vigente, não podendo extinguir automaticamente o contrato. O imóvel em disputa estava alugado desde 1997, onde a locatária residia com seu marido, um sobrevivente do Holocausto que acabou falecendo em idade avançada durante a lide. Na época, eles contestaram a denúncia alegando que estavam no local há muitos anos, tendo já criado raízes no bairro e já contavam com idade avançada e limitados por problemas de saúde. Alegaram ainda não ter recursos suficientes para encontrar um imóvel equivalente na região pelo mesmo valor, tendo em vista a explosão dos preços dos alugueis nas grandes cidades, principalmente na capital alemã. A nova proprietária argumentava, porém, que não queria "viver mais de aluguel". Até então, ela residia com o filho menor em imóvel alugado. Mas, com a maioridade do rapaz, ela passou a morar sozinha e queria passar a residir no imóvel. O juiz julgou improcedente a ação de despejo movida pela proprietária ao argumento de que, em decorrência da idade avançada, os inquilinos teriam a pretensão de prorrogar o contrato por prazo indeterminado, possibilidade prevista no § 574, inc. 1, período 1 do BGB. Segundo o dispositivo, "o inquilino pode contestar a denúncia do locador e exigir a prorrogação da relação locatícia quando o fim da relação locatícia significar extremo sacrifício para o locatário, sua família ou outro membro de sua residência, o qual, considerando os interesses legítimos do locador, seja injustificável."2  A sentença, de 12/3/2019, foi confirmada em grau de recurso. Com a interposição do recurso de revisão ao Bundesgerichtshof (BGH), a proprietária obteve sucesso. Pelo menos, parcialmente. A decisão do BGH Em grau de recurso, a Corte de Karlsruhe reformou parcialmente a sentença, remetendo o caso para reapreciação em primeira instância. Segundo o BGH, a idade avançada do inquilino, por si só, seria insuficiente para caracterizar o extremo sacrifício (§ 574 I BGB) impeditivo da denúncia. O magistrado deveria analisar ainda outras peculiaridades do caso concreto, principalmente as consequências da mudança de domicílio para o locatário. Ademais, o longo período do contrato não prova automaticamente a criação de laços e raízes no local da residência. Isso dependente fundamentalmente da forma de vida de cada inquilino, o que teria que ser apurado no caso sub judice, sublinhou a Corte. Trata-se do processo BGH VIII ZR 68/19, julgado recentemente, em 3/2/2021. Retorno dos autos ao LG Berlin Com o retorno dos autos para reapreciação dos fatos e do mérito, o juiz sentenciou novamente contra a ação movida pela proprietária, negando o pedido de despejo e desocupação do imóvel, formulado com base nos §§ 985, 546 I e 566 I BGB. Trata-se do processo LG Berlin Az. 67 S 345/18, julgado no último dia 25/5/2021. Segundo o magistrado, a reavaliação dos fatos mostrou que os inquilinos haviam, de fato, criado laços e raízes no local. E isso, aliado à idade avançada da locatária, depõe contra a mudança repentina de endereço. Dessa forma, estariam preenchidos os pressupostos do § 574, inc. 1, período 1º do BGB, segundo o qual o locatário pode impedir a denúncia da locação e, consequentemente, requerer o prolongamento do contrato quando o fim da relação locatícia constituir extremo sacrífico para o locatário, sua família ou outro membro do lar, e esse sacrifício se mostrar injustificável quando ponderado com os interesses legítimos do locador. O juiz admitiu que o interesse da proprietária de retomar o apartamento era merecedor de tutela. Porém, ao interesse na obtenção (Erlangungsinteresse) da coisa contrapõe-se o interesse na continuidade (Bestandsinteresse) da posse do imóvel pelo inquilino, devendo ambos ser ponderados à luz das circunstâncias do caso concreto a fim de ser adequadamente equilibrados. Em regra, a jurisprudência alemã entende como extremo sacrifício aquelas desvantagens de natureza econômica, financeira, familiar, de saúde ou pessoal que resultam para o locatário com o fim da locação. Essas desvantagens não precisam ser apuradas com absoluta precisão, pois os malefícios à saúde física ou mental em decorrência da perda da residência, por exemplo, não precisam restar comprovados, bastando o risco sério de dano para a configuração do extremo sacrifício exigido na lei, como atentamente já sublinhou o Bundesgerichtshof3. De qualquer forma, o extremo sacrifício previsto no § 574 I BGB distingue-se dos desconfortos normalmente envolvidos com uma mudança de residência, que não legitimam a prorrogação do contrato de locação. Com base nessas linhas gerais, o magistrado concluiu que a mudança de domicílio representava grande sacrifício para a inquilina, pois ela precisaria, já em idade avançada, deixar o local no qual estava acostumada e havia construído raízes, devido à longa duração do contrato. A experiência mostra que, em regra, a mudança de domicílio representa grande sofrimento para as pessoas idosas, pois elas já estão acostumadas no imóvel e em seu entorno, e já construíram fortes laços pessoais e sociais nas redondezas. Quando a denúncia foi feita, a locatária já contava com 80 anos, idade indiscutivelmente avançada para uma mudança de residência. Agora, no momento da prolação da segunda sentença, já transcorreram dez anos, de modo que a inquilina teria que se mudar do imóvel beirando os 90 anos, o que lhe seria extremamente penoso, afirmou o LG Berlim. Isso porque a senhora já havia, inegavelmente, criado raízes no local. De acordo com a jurisprudência do BGH, quando o locatário tem contatos sociais com os vizinhos, faz as compras do dia-a-dia nas proximidades, participa de atividades culturais, religiosas ou esportivas nas redondezas e usufrui de serviços nas imediações, pode-se concluir que ele criou laços e raízes profundas no local de residência. Para o magistrado, o fato da inquilina morar há vinte e quatro anos no imóvel já indica vínculo profundo com o local. Mas a fase probatória revelou vários outros elementos a corroborar os laços no local e os penosos efeitos de eventual mudança de domicílio para a idosa locatária. Ela demonstrou que as compras diárias eram feitas em estabelecimentos próximos à sua rua e que os locais que ela frequentava também eram todos no mesmo bairro: cafés e restaurantes, filarmônica, sinagoga, os diversos médicos, dentre os quais o geriatra, ortopedista e oculista. Ou seja, todas as suas atividades eram realizadas nos entornos da residência. Da mesma forma, seu círculo familiar e de amizade estava nas redondezas, pois todos os amigos moravam nas proximidades, inclusive os filhos, netos e sua irmã. Diante dessas circunstâncias, o julgador concluiu que a mudança de residência naquela altura da vida seria extremamente difícil para a idosa senhora, preenchendo o suporte fático do § 547 I BGB, que lhe confere a pretensão de prorrogar a relação locatícia por prazo indeterminado. Diferente seria, ponderou o magistrado, se a idosa pudesse compensar a perda do imóvel de alguma forma, v.g., se ela fosse proprietária de outros imóveis ou se tivesse condições de conseguir, com facilidade, um local próximo a sua residência que lhe permitisse manter seus hábitos e os círculos de convivência. Mas, no caso concreto, faltava à locatária essa possibilidade. Em razão das inúmeras restrições que a idosa sofreria por ter que deixar o apartamento, o LG Berlim concluiu que as consequências da perda da residência seriam tão gravosas para a locatária que violariam sua dignidade, tutelada no Art. 1, inc. 1 da Grundgesetz, a Lei Fundamental alemã. Segundo o julgado, "o art. 1, inc. 1 da Lei Fundamental e o princípio do Estado Social obrigam o Estado a conservar os pressupostos fundamentais da existência individual e social. O Estado deve, por isso, tutelar um mínimo existencial que permita uma existência humana digna". E continua: "Esse princípio reivindica proeminente significado em área intensamente marcada pela jusfundamentalidade, como a situação de vida e moradia."4. Seria inconciliável com a proteção da dignidade humana se a continuidade da situação de vida e moradia da idosa, amparada em contrato de locação por tempo indeterminado, não pudesse ser garantida na última etapa de sua vida, retirando, ao contrário, o ponto central de sua vida e existência (residência), no qual ela havia construído profundas raízes. Segundo a ementa da sentença: "O encerramento da relação locatícia decorrente de denúncia pode violar o inquilino em sua dignidade humana, garantida pelo art. 1, inc. 1 da Lei Fundamental, quando ele se encontra em idade avançada, profundamente arraigado no local do imóvel locado e não há para ele nenhuma chance concreta e realizável de reconstruir, de forma permanente, com base em uma decisão autônoma, sua existência privada em outro lugar, conservando as raízes existentes em seu atual domicílio. Se as consequências da denúncia violam o locatário em sua dignidade humana, uma ponderação dos interesses, nos termos do § 574, inc. 1 BGB, pode ser favorável ao locador quando seu interesse na obtenção [do imóvel] for especialmente urgente. É insuficiente pretender evitar desvantagens corriqueiras de conforto e econômicas."5 Sem negar a relevância dos interesses legítimos da proprietária de retomar o imóvel para uso próprio após o filho ter saído de casa e ela ter passado a viver sozinha, o juiz concluiu que os interesses da inquilina idosa de permanecer no imóvel mereciam maior tutela na ponderação dos interesses em colisão. O magistrado assinalou que na valoração da denúncia do contrato, fundada na pretensão de uso do imóvel pelo proprietário, há de se considerar a necessidade e a urgência do dono em ter de volta o bem. No caso concreto, não restou configurada a urgência, vez que a proprietária queria o apartamento apenas para ter um conforto maior e evitar eventuais desvantagens econômicas decorrentes do aluguel de outro imóvel. Isso, porém, seria insuficiente para afastar os interesses da idosa locatária, que já criara profundos laços no local, afirmou o julgador. Ele também considerou irrelevante o fato, alegado pela proprietária, de que a inquilina havia lhe ofendido. Segundo ele, ainda quando isso possa qualificar, em tese, uma violação de dever (Pflichtverletzung) e, portanto, uma conduta antijurídica, ela não seria grave o suficiente para justificar a denúncia do contrato, pois para se extinguir relações contratuais de longa duração é imprescindível que a violação do dever seja considerada grave. Dessa forma, o Landgericht Berlim julgou inválida a denúncia do contrato de locação por ofensa ao § 574 I BGB. A proprietária ainda pode recorrer da decisão. Mas a sentença já sinalizou inexistir motivos para a interposição da Revision ao BGH, nos termos do § 543 ZPO, o código de processo civil alemão. A decisão do LG Berlim reforça a proteção de inquilinos idosos e com laços já estabelecidos no local contra a denúncia da locação pelo proprietário, ainda quando baseada na necessidade pessoal de uso do imóvel. Não à toa o § 574 I BGB é chamado de "cláusula social" (Sozialklausel), fazendo parte do núcleo do "direito social de locação" (soziales Mietrecht), nas palavras sempre precisas de Ina Ebert, Professora da Universidade de Munique6, mostrando a preocupação do direito alemão em tutelar o inquilino, a parte geralmente mais fraca da relação locatícia, pois depende do objeto para gozar plenamente de seu direito à moradia e a uma existência digna.  A situação no Brasil O direito de locação é uma área sensível no Brasil. Enquanto alguns anseiam por um sistema de livre mercado que atraia investidores e aumente a oferta de imóveis no mercado, outros clamam por uma maior proteção do inquilino. A pandemia escancarou a frágil solidariedade existente no setor com a acirrada disputa política em torno da proposta de proibição de despejo até 30/10/2020, data que o legislador emergencial imaginava que o coronavírus estaria debelado, apesar dos alertas sobre a gravidade da crise epidemiológica emitidos pelas autoridades sanitárias internacionais. Esse dispositivo, previsto inicialmente no art. 9º do PL 1.179/2020, acabou sendo suprimido no próprio Senado Federal, prevendo a já caduca Lei 14.010/2020 apenas a proibição de concessão de liminar de despejo nas raras hipóteses do § 1º do art. 59 da Lei do Inquilinato. Dessa forma, ao contrário do que ocorreu em outros países, inclusive na vizinha Argentina, a lei emergencial do coronavírus não proibiu os despejos por falta de pagamento durante a pandemia, mas tão só o despejo sem contraditório admitido nas restritas hipóteses do art. 59 § 1º da lei 8.425/1991. Talvez sua inaptidão para proteger os inquilinos contra a desocupação do imóvel por atraso no pagamento dos alugueis durante a pandemia tenha contribuído para o veto presidencial ao texto do art. 9º da lei 14.010/2020, o que fez com que a norma tivesse vida curta, pois só esteve em vigor por menos de dois meses após a derrubada do veto pelo Senado, em 8/9/2020. De qualquer forma, o mencionado dispositivo era inábil a resolver o principal problema das locações urbanas em tempos de pandemia: o despejo por atraso no aluguel. Até vozes defensoras da dignidade humana, função social do contrato, solidariedade constitucional e eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas, em desapego a seus princípios, se posicionaram contra a proibição de despejo por atraso no pagamento do aluguel causado pela paralisação das atividades econômicas, medida que visava impedir que famílias inteiras pudessem parar no meio da rua durante o isolamento social, pondo em risco a vida, a saúde e a dignidade das pessoas. O discurso de proteção da dignidade humana, função social do contrato, solidariedade constitucional, boa-fé e consideração pelos interesses legítimos do alter esvaíram-se como pó quando se exigiu uma parcela de sacrifício de cada um diante da maior crise sanitária e humanitária enfrentada no país. No que tange à questão da denúncia do contrato, a Lei do Inquilinato (lei 8.245/1991) proíbe, como regra geral, ao proprietário de imóvel residencial, locado por prazo determinado, pedir o bem antes do término do contrato. Dessa forma, o locatário tem a segurança de que, durante a vigência do contrato, poderá usufruir do imóvel sem o receio de ter que se mudar no curso da locação. Exceto diante das hipóteses expressamente elencadas no art. 9º da Lei do Inquilinato: mútuo acordo (inc. I), infração legal ou contratual pelo locatário (inc. II) ou falta de pagamento de aluguel e demais encargos (inc. III). Assim, se o locatário não der causa à denúncia, a locação não poderá ser desfeita, salvo acordo das partes. Se o contrato escrito tiver prazo igual ou superior a trinta meses, a resolução do contrato se dá findo o prazo estipulado, independente de notificação ou aviso prévio (art. 46). Nesses casos, o locador pode retomar o imóvel sem ter que apresentar qualquer motivo, o que se chama comumente de "denúncia vazia". Se, findo o prazo ajustado, o locatário permanecer no imóvel por mais de trinta dias sem oposição do proprietário, a locação prorroga-se automaticamente por prazo indeterminado (art. 46 § 1º). Nesse caso, o locador só poderá denunciar a locação mediante prévia notificação, concedendo o prazo de 30 dias para a desocupação do imóvel. Aqui também não se exige a apresentação de nenhum motivo para a denúncia do contrato. Disposição semelhante ao § 574 I BGB encontra-se apenas nos contratos com prazo inferior a trinta meses, prorrogados por prazo indeterminado com a permanência pacífica do locatário no imóvel. Nesses casos, a denúncia condicionada só será admitida nas hipóteses do art. 47 da lei 8.245/1991, as quais possuem caráter de numerus clausus. Dentre os casos em que a lei admite a retomada do imóvel, o inc. 3 do art. 47 prevê a devolução para uso do locador, do cônjuge ou companheiro, ascendente ou descendente, desde que o beneficiado não disponha de imóvel residencial próprio. Parte importante da doutrina afirma militar uma "presunção de sinceridade" em favor do proprietário, que só poderia ser destruída por provas concretas apresentadas pelo locatário, embora tal conclusão não encontre amparo na letra e no espírito da lei. A lógica parece ser, com a devida vênia, exatamente o contrário: o locador, parte presumidamente mais forte da relação locatícia, deve demonstrar a necessidade de retomar o imóvel para uso pessoal seu ou de familiar, até para evitar condutas maliciosas, incompatíveis com a finalidade social da lei especial. Afinal, em contratos que envolvem interesses existenciais, como moradia e existência digna, não se pode imaginar que o proprietário seja o único juiz de suas conveniências, sendo vedado ao inquilino questionar a pretensão de retomada do imóvel. O § 1º do art. 47 da Lei do Inquilinato exige a prova da necessidade da retomada em algumas situações, como quando o retomante ocupar outro imóvel de sua propriedade na mesma localidade ou quando o ascendente/descendente, beneficiário da retomada, residir em imóvel próprio. Nesses casos, o proprietário deve demonstrar que a necessidade de mudança resulta de condições de saúde, mudança de local de trabalho, aumento ou redução dos membros da família, etc., ou seja, de circunstâncias justificáveis. Dessa forma, percebe-se que a idosa alemã dificilmente seria tutelada pela lei brasileira, pois a proprietária do imóvel vivia de aluguel (doutrina majoritária presume a necessidade nesses casos) e houve redução do grupo familiar com a saída de casa do filho ao atingir a maioridade, passando a locadora a morar sozinha. Nada obstante, é fácil imaginar os danos - inclusive psíquicos - causados pela denúncia da locação de locatários idosos, que precisam abandonar suas residências após décadas vivendo no local. O caso da inquilina idosa faz-nos refletir e questionar até que ponto os empolgantes discursos de proteção da dignidade humana e da eficácia direta dos direitos fundamentais nas relações privadas são efetivamente postos em prática entre nós pela jurisprudência e pela doutrina. __________ 1 Dentre outras matérias, confira-se: O inesperado impacto após a queda da lei de controle de aluguéis em Berlim. DW Brasil, 3/5/2021. 2 § 574, Abs. 1 - Der Mieter kann der Kündigung des Vermieters widersprechen und von ihm die Fortsetzung des Mietverhältnisses verlangen, wenn die Beendigung des Mietverhältnisses für den Mieter, seine Familie oder einen anderen Angehörigen seines Haushalts eine Härte bedeuten würde, die auch unter Würdigung der berechtigten Interessen des Vermieters nicht zu rechtfertigen ist. 3 BGH VIII ZR 57/13, julgado em 16/10/2013. 4 No original: "Denn Art. 1 Abs. 1 GG und das Sozialstaatsprinzip verpflichten den Staat, die grundlegenden individueller und sozialer Existenz zu erhalten. Der Staat hat deshalb jenes Existenzminimum zu gewähren, das ein menschenwürdiges Dasein überhaupt erst ausmacht... Dieser Grundsatz beansprucht herausgehobene Bedeutung im besonders grundrechtsintensiven Bereich der menschlichen Wohn- und Lebenssituation". LG Berlim 67 S 345/18, Rn. 38, p. 5. 5 No original: "Die kündigungsbedingte Beendigung des Mietverhältnisses kann den Mieter in seiner durch Art. 1 Abs. 1 GG garantierten Menschenwürde verletzen, wenn er sich in einem hohen Lebensalter befindet, tief am Ort der Mietsache verwurzelt ist und für ihn keine konkrete und realisierbare Chance mehr besteht, seine private Existenz aufgrund einer autonomen Entscheidung anderen Ortes unter Erhalt der an seinem bisherigen Wohnort vorhandenen Wurzeln erneut und auf Dauer wieder aufzubauen. Verletzen die Kündigungsfolgen den Mieter in seiner Menschenwürde, kann eine Interessenabwägung nach 574 Abs. 1 BGB allenfalls dann zu Gunsten des Vermieters ausfallen, wenn sein Erlangungsinteresse besonders dringend ist. Die Vermeidung gewöhnlicher Komfort- und wirtschaftlicher Nachteile reicht dafür nicht aus." 6 In: Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. Reiner Schulze (coord.). 8a ed. Baden-Baden: Nomos, 2014, § 574, Rn. 1, p. 859.
quarta-feira, 2 de junho de 2021

Direito ao esquecimento: fim da linha?

No último dia 28/5/2021, a Embaixada da Alemanha e o Fórum Jurídico Brasil-Alemanha promoveram um seminário internacional sobre direito ao esquecimento com a presença do renomado Prof. Jörg Neuner, catedrático da Universidade de Augsburg e do Min. Luís Felipe Salomão, do Superior Tribunal de Justiça (STJ), o qual tive a honra de mediar. O evento teve, dentre outros, o mérito de apresentar ao público um panorama comparado sobre o tema e, principalmente, mostrar como as Cortes constitucionais de ambos países - embora herdeiros de uma tradição jurídico-cultural comum (direito romano-germânico) e dotados de instrumental normativo, teórico e dogmático semelhante - chegam a conclusões diametralmente opostas quando se trata de tutelar efetivamente, fora do plano meramente abstrato do discurso jurídico, a personalidade humana face às chamadas liberdades comunicativas na sociedade da informação. Em apertada síntese, o direito ao esquecimento impede que informações pretéritas de cunho pessoal do indivíduo - e, portanto, destituídas de relevância histórica ou social - fiquem permanentemente expostas ao acesso de todos na internet, causando situação vexatória que impede a pessoa de tocar sua vida normalmente. Na verdade, havia uma clara convergência doutrinária e jurisprudencial entre Brasil e Alemanha até bem pouco tempo, quando o Supremo Tribunal Federal (STF) julgou o Tema 786 sobre a existência do direito ao esquecimento no caso Aída Curi, no Recurso Extraordinário 1.010.606/RJ. Porém, após afetar um caso tido como não representativo do direito ao esquecimento desde a sentença até o recurso especial, a Suprema Corte concluiu pela incompatibilidade do direito ao esquecimento com a Constituição, colocando-se na contramão da jurisprudência sedimentada do STJ e da doutrina civilista majoritária, inclusive no continente europeu. A partir de então, instaurou-se uma situação de flagrante insegurança jurídica em razão do conteúdo da tese fixada que, antes de esclarecer e pacificar a questão, colocou mais lenha na discussão. Diz a tese de repercussão geral: "É incompatível com a Constituição a ideia de um direito ao esquecimento, assim entendido como um poder de obstar em razão da passagem do tempo a divulgação de fatos ou dados verídicos e licitamente obtidos e publicados em meios de comunicação social, analógicos ou digitais. Eventuais excessos ou abusos no exercício da liberdade de expressão e de informação devem ser analisados caso a caso, a partir dos parâmetros constitucionais - especialmente os relativos à proteção da honra, da imagem, da privacidade e da personalidade em geral - e as expressas e específicas previsões legais nos âmbitos penal e cível." Relembrando o caso Aída Curi Aída Curi foi uma jovem assassinada em 1958 no Rio de Janeiro, que entrou para a história como vítima de brutal feminicídio. O assassinato fora recontado cinquenta anos depois em detalhado documentário da TV Globo contra expressa manifestação da família da vítima. Por isso, seus irmãos pediram indenização por danos materiais, morais e à imagem alegando, dentre outros fundamentos, o direito ao esquecimento, violado com o revolver do caso em cadeia nacional. A ação foi julgada improcedente em todas as instâncias, inclusive no STJ. No REsp. 1.335.153/RJ, apreciado em 28/3/2013 sob a relatoria do e. Min. Luís Felipe Salomão, a Corte negou a aplicação do direito ao esquecimento por se tratar de crime de repercussão nacional que não poderia ser recontado sem referência à figura da vítima. Ademais, o STJ entendeu não ter havido abuso no documentário, afastando o pedido ressarcitório dos familiares. Por recurso da família, o processo foi parar no STF e, com base nesse julgado, que sequer era caso de direito ao esquecimento, o Tribunal fixou a tese de repercussão geral de que o direito ao esquecimento é incompatível com a Carta Magna sob clara inspiração no direito norte-americano, que - ao contrário do direito continental europeu - privilegia a liberdade, entendida em um viés claramente econômico, em detrimento à proteção do indivíduo e de sua dignidade. As críticas à decisão do STF As críticas à decisão do STF não tardaram a surgir na doutrina especializada. Dentre inúmeros aspectos, destacam-se aqui dois. Em primeiro lugar, a ausência de uma nítida resposta jurídica ao caso. Isso porque a Corte, ao tempo em que fechou a porta da frente, deixou a porta dos fundos aberta para a análise casuística da colisão de direitos fundamentais envolvendo, de um lado, a proteção da "personalidade em geral" (da qual o direito ao esquecimento, enquanto mecanismo de tutela ao livre desenvolvimento da personalidade, é decorrência lógica e necessária) e, de outro, eventuais excessos ou abusos na liberdade de expressão e informação. Por isso, muitos entendem que o STF, imerso em imprecisões dogmáticas e incoerências axiológicas, longe de banir o direito ao esquecimento do ordenamento jurídico, deixou ao juiz a tarefa de analisar caso a caso o cabimento da figura, como salientou, com perspicácia, o Min. Luís Felipe Salomão durante a live realizada pela Embaixada da Alemanha. De fato, a margem de apreciação garantida ao juiz na segunda parte da tese afasta qualquer dúvida: a decisão não encerrou a questão. Pelo contrário: como bem observou o Min. Luís Felipe Salomão, deixou de fora o campo mais importante de aplicação do direito ao esquecimento na atualidade, qual seja, o direito ao esquecimento na internet, que vem sendo instrumentalizado por meio da desindexação de conteúdos e/ou apagamento de dados pessoais por operadores de busca como Google ou Yahoo. Esses casos possuem conjuntura fática e valorativa diversa do caso Aída Curi, um típico caso de direito ao esquecimento em mídia analógica (televisiva), dotado, porém, de características ímpares na medida em que não visava a tutela do pleno desenvolvimento da personalidade da vítima, falecida há meio século. Lá discutia-se a proteção post mortem da personalidade apenas em via reflexa. Em primeiro plano, a lide girava em torno de pleito indenizatório formulado pelos familiares em razão da exibição do documentário sobre o histórico feminicídio, o qual, contudo, fora retratado em livro e, dessa forma, recolocado no espaço público por quem se dizia atingido pela exposição. Casos como esse, relacionados a fatos históricos ou de interesse público, como os crimes contra mulheres, não são, de facto, abarcados pelo direito ao esquecimento. Nesse sentido, como bem atentou o Min. Luís Felipe Salomão, o STF não divergiu do entendimento esposado pelo STJ no REsp. 1.335.153/RJ. E nem da doutrina abalizada, acresça-se, que sempre ressaltou que acontecimentos de relevância histórica ou social podem - rectius: devem - ser sempre rememorados a fim de evitar o cometimento de erros pretéritos. É por isso que não cabe invocar o direito ao esquecimento para impedir a divulgação do impeachment de Fernando Collor ou de Dilma Rousseff, nem dos crimes cometidos durante a ditadura militar ou o lendário escândalo dos precatórios1. Causa espécie, assim, que a maioria dos ministros da Suprema Corte tenham considerado o direito ao esquecimento como uma ameaça à história e à memória do país, uma ofensa à geração que lutou pela redemocratização, sendo necessário, ao contrário, "abrir as cortinas do passado", principalmente em um país sem memória como o Brasil. E aqui se põe a segunda crítica feita ao entendimento da Corte: a falta de solidez dogmática à decisão, que se reflete na vacilante tese fixada. Com efeito, a associação entre direito ao esquecimento e apagamento da história ou da memória social só pode ser entendida como desconhecimento dogmático da figura, pois o direito ao esquecimento nunca pretendeu impedir ou restringir o acesso a informações de caráter histórico ou de interesse público. O STJ deu excelente exemplo nesse sentido ao negar a aplicação do direito ao esquecimento no REsp.  1.434.498/SP em que se discutia a indenização a vítimas de crimes de tortura cometidos durante a ditadura militar por Carlos Alberto Brilhante Ustra, à época comandante do DOI-CODI. No julgado, a Corte assinalou que "a recuperação da memória histórica é fundamental para uma nação para evitar que essas graves violações aos direitos fundamentais voltem a ocorrer" e que os gravíssimos crimes praticados por agentes a serviço do Estado brasileiro devem ser devidamente desvelados em suas circunstâncias para que os danos sejam, ao menos moralmente, reparados, apaziguando-se a sensação de impunidade. Portanto, como bem pontuado pelo Min. Luís Felipe Salomão, trata-se de uma "falsa narrativa" o discurso de que o direito ao esquecimento promove o apagar da história. Ninguém muda o passado. Não se reescreve o passado. O que se busca com o direito ao esquecimento é apenas restaurar, em determinadas situações, a dignidade da pessoa humana violada pela exposição permanente a um fato pretérito, disse. Da mesma forma, afirmar que o direito ao esquecimento põe em risco a liberdade de expressão e imprensa ou a democracia é ignorar que a figura não abarca fatos de interesse público divulgados na mídia, como escândalos de corrupção envolvendo políticos, empresários ou autoridades públicas, a exemplo da operação Lava Jato, nem notícias sobre tráfico de influência, vendas de sentenças ou abuso de autoridade por magistrados, nem os recentes ataques perpetrados por agentes políticos contra o STF ou a ordem constitucional em nome, pasme-se, da liberdade de expressão. Esse exemplo mostra que, na verdade, as ameaças à democracia têm partido não do direito ao esquecimento, mas sim de discursos antidemocráticos, de discursos de ódio, fake news e desinformações de toda ordem, problemas intrinsecamente relacionados com a delimitação do conteúdo da liberdade de expressão. Mas nem por isso, nega-se ou põem-se em dúvida a importância vital da liberdade de expressão no ordenamento jurídico pátrio. Aliás, é uma falácia a oposição entre liberdade de imprensa e direito ao esquecimento, devido ao caráter excepcional desse útlimo.   Perguntado se o direito ao esquecimento, desde seu reconhecimento inicial em 1973 pelo Tribunal Constitucional no famoso caso Lebach I até o presente, pôs em risco ou causou algum dano à história, à liberdade de expressão ou à democracia alemãs, Jörg Neuner foi categórico em negar qualquer efeito nocivo à figura do direito ao esquecimento na Alemanha. Aliás, a admitir-se a ideia da ameaça às liberdades e à democracia, sustentada pelos opositores do direito ao esquecimento e ecoada em muitos votos no STF, ter-se-ia que concluir que a democracia europeia estaria ameaçada, pois o direito ao esquecimento é amplamente reconhecido tanto pelo Tribunal de Justiça Europeu, quanto por diversos tribunais nacionais, a exemplo do Bundesverfassungsgericht (equivalente ao STF) e do Bundesgerichtshof (equivalente ao STJ) na Alemanha. E isso seria, evidentemente, um absurdo diante do compromisso dos tratados da União Europeia com a democracia, as liberdades e proteção da pessoa humana. Portanto, afirmar que o direito ao esquecimento constitui ameaça às liberdades e à democracia é discurso retórico que, ignorando a função da figura, pretende desqualifica-la perante a opinião pública. E a Europa mostra muito bem que o direito ao esquecimento e a tutela da personalidade do indivíduo convivem harmoniosamente com os valores democráticos. Considerações gerais sobre o direito ao esquecimento Como bem acentuou Jörg Neuner, o direito ao esquecimento visa impedir a divulgação permanente de informações pretéritas relacionadas à esfera privada (personenbezogene Information) do indivíduo, que perderam relevância social com o decurso do tempo, mas cuja divulgação interfere gravemente na vida e no desenvolvimento da personalidade da pessoa. Embora divulgadas inicialmente de forma lícita, sua permanente publicação - ou acessibilidade na internet - afeta a pessoa em medida desproporcional, gerando constrangimentos, embaraços aos familiares, dificultando a recolocação profissional, a ressocialização ou um simples recomeço, devendo, por isso, ser retiradas do espaço público. Isso não significa, por óbvio, o total apagamento da notícia. Na era digital, na qual as pessoas buscam cada vez mais informações na internet, "esquecer" significa tão só desindexar nos resultados de busca o nome da pessoa a notícias relacionadas a fatos vexatórios pretéritos ou implantar filtros que evitem a associação do nome da pessoa à notícia. Foi o que aconteceu no famoso caso Google Spain versus Mario Costeja Gonzáles no qual o Tribunal de Justiça da União Europeia ordenou ao operador de busca suprimir da lista de resultados as conexões às páginas do jornal La Vanguardia, que noticiava que o imóvel do advogado espanhol fora levado a leilão por causa de dívidas com a seguridade social, fato ocorrido há mais de uma década, mas que ainda causava-lhe constrangimentos.   Dessa forma, não há apagamento ou exclusão total da notícia da internet. Apenas colocam-se filtros para que a informação desabonadora não seja encontrada por meio de simples busca pelo nome do envolvido a fim de permitir que a pessoa siga sua via com razoável anonimato, não sendo o fato pretérito corriqueiramente rememorado e perenizado por sistemas automatizados de busca. Segundo Jörg Neuner, os tribunais alemães têm permitido ainda a anonimização de dados, desde que sem desnaturação da informação e sem prejuízo da preservação do original da reportagem no site que publicou a notícia. Assim, quem pretende ter acesso às informações poderá consultar as fontes primárias da notícia, que continuarão acessíveis, inclusive com o nome da pessoa prejudicada. O renomado Professor da Universidade de Augsburg acentuou que o direito ao esquecimento não se confunde com o direito ao apagamento de dados pessoais, conquanto possuam um mesmo fundamento - o direito geral da personalidade - e tenham por fim último assegurar o livre desenvolvimento da personalidade. O direito ao apagamento imediato de dados pessoais tem lugar nas hipóteses do art. 17 do Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD), como, por exemplo, quando o titular retira o consentimento para o tratamento dos dados, quando os dados deixam de ser necessários para a finalidade para a qual foram coletados ou quando foram tratados ilicitamente, regra equivalente, em linhas gerais, ao art. 15 da LGPD brasileira. O direito ao esquecimento possui pressupostos diferentes: notícia pretérita que, embora divulgada inicialmente de forma lícita, perdeu relevância social com o decorrer do tempo, mas cuja propagação causa enormes empecilhos à vida da pessoa, prejudicando seu direito ao pleno desenvolvimento da personalidade. Atente-se que o direito ao esquecimento não dá ao prejudicado o poder de deletar toda e qualquer informação a seu respeito disponível na imprensa ou na internet e, muito menos, de reescrever sua biografia de forma seletiva, filtrando e apagando, de acordo com suas conveniências, acontecimentos desabonadores do passado. Essa é uma leitura simplista que visa tão só depreciar a figura do direito ao esquecimento. Na era digital, o que se pretende com o recurso ao direito ao esquecimento é evitar que notícias de cunho privado, destituídas de interesse histórico, público ou social, sejam facilmente disseminadas e facilmente acessadas na internet, prejudicando a vida da pessoa envolvida. Trata-se, no fundo, como salientado por ambos os palestrantes, de uma colisão de posições jusfundamentais e, portanto, de um problema de ponderação de direitos fundamentais, com o qual as Cortes constitucionais estão - ou devem estar - habituadas. E aqui não há nada de novo, como bem colocou o Min. Luís Felipe Salomão. Segundo ele, com a sequência de casos que surgirão, o STJ irá fazer os ajustes necessários independente da existência de base legislativa expressa consagrando o direito ao esquecimento, até porque o direito brasileiro tem ferramentas suficientes para restaurar as violações à dignidade e à personalidade da pessoa ofendida. Além disso, como dito, o STF não tratou da questão da desindexação, que não foi mencionada no julgamento e nem na tese fixada, inviabilizando, portanto, qualquer vinculação. Igualmente, o problema da redução total ou parcial de conteúdo também não foi discutido no julgado. E nem poderia, observou o Min. Luís Felipe Salomão, vez que se trata de interpretação de regra infraconstitucional, sendo muito difícil a questão chegar a ser discutida na Corte Constitucional. Dessa forma, segundo o Min. Luís Felipe Salomão, ainda há muita margem para a jurisprudência estabelecer as balizas do direito ao esquecimento na análise dos casos concretos. Na Alemanha, afora a menção no regulamento europeu de proteção de dados em conexão com o direito ao apagamento dos dados pessoais, também não há previsão legal expressa sobre direito ao esquecimento. Apesar disso, e fazendo coro com o Min. Luís Felipe Salomão, Jörg Neuner afirmou que o direito ao esquecimento não é um corpo estranho à ordem jurídica alemã. Ele deu como exemplo o apagamento dos antecedentes criminais do apenado, que tem um significado tão importante a ponto do condenado poder até omitir essas informações de seu empregador, como já reconheceu o Tribunal Constitucional alemão.  O direito ao esquecimento, segundo Jörg Neuner, precisa ser concebido em um contexto maior de tutela da esperança do individuo de ter a possibilidade de mudar sua vida. É por isso que na Alemanha, as penas de prisão perpétua devem ser reavaliadas depois de quinze anos para verificar o cabimento de sua substituição por liberdade condicional. Essa substituição da pena tem status constitucional e se justifica na medida em que o núcleo da dignidade humana acaba indevidamente afetado quando o condenado perde toda a esperança de reconquistar sua liberdade. O direito ao esquecimento é, nas sábias palavras de Jörg Neuner, expressão de um princípio geral que protege a esperança do indivíduo de que o passado permaneça no passado e o futuro possa descortinar novas perspectivas. A fala do Min. Luís Felipe Salomão mostra que, também aqui, o futuro descortinará novas perspectivas. __________ 1 Essa coluna é dedicada a Ribamar Oliveira, falecido ontem em decorrência de Covid. Brilhante jornalista econômico, ganhador de diversos prêmios, dentre os quais o Prêmio Esso de Economia por reportagem denunciando o escândalo dos precatórios, fato histórico de corrupção que nunca deve ser esquecido. Da mesma forma, seu autor sempre será lembrando por seus familiares, amigos e leitores.
A coluna German Report tem a honra de receber o contributo do germanista Artur Ferrari de Almeida, abordando tema atualíssimo no continente europeu: a perda da proeminência dos tribunais constitucionais europeus face ao protagonismo do Tribunal de Justiça da União Europeia. Em importante julgado sobre direito ao esquecimento - considerado, a propósito, incompatível com a Constituição brasileira pelo Supremo Tribunal Federal no RE 1.010.606/RJ, julgado em 11/2/2021 - o Bundesverfassungsgericht (BVerfG) reafirmou seu papel como principal instância no sistema judicial alemão para examinar violações aos direitos fundamentais assegurados na Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia. Até então o Tribunal - fazendo clara separação entre as ordens jusfundamentais nacional e europeia - deixava aos órgãos judiciais de jurisdição ordinária a tarefa de zelar pela aplicação da Carta europeia. Porém, com o julgado, a Corte de Karlsruhe deu claro recado a Luxemburgo, reagindo contra a redução de sua competência e importância no âmbito da tutela dos direitos fundamentais, tendência que pode se acentuar nos próximos anos nas cortes constitucionais dos demais países europeus em reação à proeminência do TJUE. A revolucionária decisão do BVerfG é comentada por Artur Ferrari de Almeida. O autor é Promotor de Justiça na Bahia e Mestre (LL.M) em Direito Público pela Universidade de Freiburg, na Alemanha, onde realiza atualmente seu doutoramento sob orientação do renomado Prof. Dr. Matthias Jestaedt. Em sua tese de doutorado, Artur Ferrari de Almeida analisa o controle judicial da constitucionalidade da racionalidade legislativa sob uma perspectiva comparada, investigando em especial os sistemas norte-americano e germânico de controle do processo de produção das leis. Na coluna de hoje ele nos brinda com uma meticulosa análise dessa paradigmática decisão do Tribunal Constitucional Alemão. Confira: * * *   Artur Ferrari de Almeida Em novembro de 2019, o Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF) julgou o caso "Direito ao esquecimento II"1. Tal decisão impactou profundamente a relação entre os sistemas europeu e germânico de proteção dos direitos fundamentais. A dimensão material dos casos julgados pelo TCF sobre o direito ao esquecimento já foi objeto de apreciação no Brasil, ao menos em seus aspectos fundamentais.2 Contudo, sob o prisma do direito processual constitucional, o julgamento de "Direito ao esquecimento II" ainda não recebeu a atenção devida. O caráter inovador deste caso parece residir justamente em sua dimensão processual, na releitura que fez do instituto da reclamação constitucional3 e, por consequência, das competências do TCF, razão pela qual foca-se aqui nas repercussões processuais-constitucionais do julgado. O amplo universo temático dos direitos fundamentais da União Europeia (UE), o primado do Direito da UE em face do direito dos Estados-Membros integrantes deste ente supranacional, assim como a jurisprudência expansiva do Tribunal de Justiça da UE (TJUE) sobre o âmbito de aplicação da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia, todos esses fatores, em conjunto, provocaram uma progressiva - e, aos olhos da opinião pública alemã, invisível - redução da importância dos direitos fundamentais da Lei Fundamental4, do TCF e do instrumento processual da reclamação constitucional.5 O fenômeno da europeização da Lei Fundamental - que envolve transferência gradativa de direitos de soberania pela República Federativa alemã à União Europeia (art. 23, § 1.°, da LF6) - parece implicar uma perda de importância do TCF como órgão de proteção dos direitos fundamentais. A decisão ora resenhada pode ser lida justamente como uma tentativa do TCF alemão de reagir a essa tendência. Até aqui, a dogmática constitucional alemã tem apontado que o "Direito ao esquecimento II" representa "uma das viradas jurisprudências mais importantes de toda a história da judicatura de direitos fundamentais do Tribunal".7 Na mesma linha, alude-se à "revolução de novembro na arquitetura dos direitos fundamentais, no âmbito do sistema multinível".8 1. As circunstâncias fáticas dos casos O pano de fundo tanto do "Direito ao Esquecimento II" quanto do "Direito ao Esquecimento I" eram relações multipolares de direitos fundamentais: cabia à autoridade estatal harmonizar interesses contrapostos de mais de um titular de direitos fundamentais. O TCF recebeu as reclamações - julgou-as admissíveis - e procedeu ao controle da aplicação dos direitos fundamentais realizada pelas instâncias ordinárias. A questão decisiva, tal qual colocada em ambos os julgamentos, para determinar o regime de direitos fundamentais aplicável - se os direitos fundamentais da Lei Fundamental ou os direitos fundamentais da Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia - reside em saber se a constelação fática do caso concreto envolve a aplicação unitária e completamente determinada do direito da União Europeia, hipótese em que os direitos fundamentais da Carta se aplicam de modo exclusivo, ou se o direito da UE deixa aos Estados-Membros margem de conformação legislativa, ocasião em que se aplicam, então, os direitos fundamentais nacionais.  No caso "Direito ao esquecimento I", o TCF examinou a reclamação constitucional tendo a Lei Fundamental como parâmetro de controle, já que o caso envolvia a aplicação do chamado "privilégio midiático", acerca do qual a legislação europeia não contém regra vinculante, o que deixa aos Estados-Membros margem de ação para a regulação da matéria. Em síntese, o privilégio midiático é uma decorrência da liberdade de imprensa e significa a exclusão da atividade jornalística das imposições gerais existentes no âmbito do direito europeu da proteção de dados sobre o processamento e a utilização de dados de terceiros, afastando qualquer pretensão jurídica de os cidadãos obterem informações perante as redações jornalísticas sobre quais de seus dados pessoais encontram-se armazenados em tais instituições midiáticas e qual a proveniência de tais dados9. As regras europeias de proteção de dados - aplicáveis ao caso - permitem o exercício de uma liberdade de conformação legislativa pelos Estados-Membros, atraindo a aplicação dos direitos fundamentais da Lei Fundamental.10 Sob a ótica do direito material, o caso dizia respeito ao alcance da atividade de cobertura jornalística no âmbito de reportagens criminais que implicassem a divulgação da identidade dos acusados. Cuidava-se de saber se, e sob quais condições, o acesso a uma reportagem originariamente lícita poderia se tornar ilícito com a passagem do tempo. A revista "Der Spiegel" mantinha em seu arquivo on-line matérias jornalísticas - livremente acessíveis ao público, não restritas aos assinantes da publicação - que remontavam à década de 80 e reportavam sobre o julgamento de processos criminais, cujos réus haviam sido condenados e eram identificados nos artigos. Um desses réus solicitou judicialmente a remoção da reportagem que o citava e, após ter seu pleito rechaçado nas instâncias ordinárias, manejou reclamação constitucional perante o TCF, que procedeu a uma análise do impacto do fator tempo na ponderação entre o direito geral de personalidade, de um lado, e as liberdades de expressão e de imprensa, de outro. O Tribunal acolheu a reclamação constitucional, julgando-a procedente sob o entendimento de que o BGH - tribunal superior equivalente ao nosso Superior Tribunal de Justiça -, cuja decisão era objeto de impugnação, não teria levado em conta satisfatoriamente os impactos negativos da difusão da matéria jornalística ao longo do tempo. Neste contexto, o TCF pontuou que "é inerente à dimensão temporal da liberdade a possibilidade do esquecimento". A comunicação em massa, que atualmente ocorre por meio da internet, deve possibilitar às pessoas que seus "prévios posicionamentos, exteriorizações e ações não sejam ilimitadamente apresentados à esfera pública".  Já no caso "Direito ao esquecimento II", seria em tese vedado ao TCF decidir a reclamação constitucional à luz dos direitos fundamentais da Lei Fundamental, na medida em que o caso envolvia aplicação de matéria jurídica completamente determinada pela legislação da UE, que não deixava margem de ação para atuação legiferante dos Estados-Membros. Contudo, ao invés de seguir a própria jurisprudência e não conhecer do mérito da reclamação, o Tribunal tornou a Carta de Direitos Fundamentais como parâmetro de controle da reclamação constitucional e lançou mão dos critérios formulados pelo TJUE para proceder ao controle da aplicação dos direitos fundamentais da União Europeia efetuada pelas instâncias ordinárias. Este julgamento envolvia a análise do pleito de uma empresária contra o Google. Ela solicitava que um link para específica reportagem televisiva, realizada pelo canal NDR em 2010, fosse excluído da lista de resultados dos mecanismos de busca. Nesta reportagem, a empresária é alvo de críticas por supostas práticas desleais em rescisões contratuais. Sempre que o nome dela era buscado no Google, um link para aquela reportagem era listado de forma destacada entre os resultados. No mérito, o TCF julgou a reclamação constitucional improcedente, indeferindo, portanto, o referido pleito, na medida em que não foram identificadas incorreções na ponderação efetuada pelas instâncias ordinárias. 2. A expansão do parâmetro de controle da reclamação constitucional São especialmente interessantes as repercussões processuais do caso "Direito ao Esquecimento II". Na medida em que, como já dito, o julgamento do "Direito ao Esquecimento I" envolveu o exame de reclamação constitucional tendo direitos fundamentais da LF como parâmetro de controle, este julgamento é, sob o prisma do processo constitucional, trivial, razão pela qual não trataremos dele nas linhas a seguir. O artigo 93, § 1.°, número 4a, da Lei Fundamental, estabelece a competência do Tribunal Constitucional Federal para apreciar reclamações constitucionais ajuizadas por qualquer cidadão, sob a alegação de violação de seus direitos fundamentais pelo poder público.11 Foi por meio da reclamação constitucional que o TCF se tornou a instituição que é hoje: a importância do Tribunal no âmbito do sistema jurídico alemão e o prestígio de que goza a Corte, seja na Alemanha, seja no plano internacional, deve-se à análise de casos concretos no âmbito de reclamações constitucionais.12 A partir de "Direito ao Esquecimento II", o dispositivo em tela passou a ser interpretado pelo TCF de modo tal a incluir os direitos fundamentais da UE - previstos na Carta - como novo parâmetro de controle da reclamação constitucional. Até então, o TCF rechaçara o exame da validade de atos normativos e decisões judiciais à luz da Carta europeia13, deixando tal tarefa aos órgãos judiciais alemães da jurisdição ordinária, em cooperação com o TJUE. O Tribunal fundamentou a sua competência para apreciar a validade de atos normativos e decisões judiciais à luz da Carta no já citado artigo 23, § 1.º da LF, conjugado com os dispositivos constitucionais que preveem a tarefa do TCF de proteção dos direitos fundamentais: "Também pertine ao Tribunal Constitucional Federal a responsabilidade - decorrente do artigo 23, § 1.º, da Lei Fundamental - de participar da realização de uma Europa unida". Além disso, o Tribunal salientou que a garantia de uma "proteção jusfundamental eficaz" é uma das suas tarefas centrais. Os direitos fundamentais da Carta da UE, à luz do artigo 51, § 1.º, da aludida Carta14, estariam incluídos nesta garantia. Ademais, o argumento da lacuna na proteção judicial dos direitos fundamentais da EU exerceu papel crucial na fundamentação do caso "Direito ao Esquecimento II". O Direito da União Europeia não prevê um remédio processual que possibilite ao TJUE controlar a aplicação, no caso concreto, dos direitos fundamentais da EU pelas instâncias ordinárias dos sistemas de justiça dos Estados-Membros.15 Não há, pois, um equivalente, no âmbito do direito da União Europeia, à reclamação constitucional alemã. Sem a inclusão dos direitos fundamentais da UE como um dos parâmetros de controle da reclamação constitucional perante o TCF, a proteção jusfundamental dos direitos constantes da Carta seria incompleta.  3. Conclusões O TCF promoveu uma reconfiguração da divisão de tarefas no âmbito da proteção judicial dos direitos fundamentais da União Europeia, declarando-se como principal instância alemã de controle da observância da Carta de Direitos Fundamentais. Antes do "Direito ao Esquecimento II", o TCF buscava promover uma clara separação entre as ordens jusfundamentais nacional e europeia, deixando aos órgãos judiciais alemães da jurisdição ordinária a tarefa de aplicação da Carta. No entanto, a partir do julgamento ora resenhado, o Tribunal caminha na direção de um "pluralismo jusfundamental" (Wendel), passando a controlar a interpretação realizada pelo sistema de justiça alemão acerca da Carta. O TCF deixa de concentrar a sua atividade jurisdicional apenas nos direitos fundamentais previstos na Lei Fundamental, tornando-se um garante dos direitos fundamentais constantes da Carta europeia. Abandonou-se, dessa forma, o "modelo federal"16 de proteção dos direitos fundamentais, fundado em uma delimitação de competências, que se baseava em uma relação de exclusão mútua entre o TCF e o TJUE. A partir de agora, não se pode mais falar em uma "separação estrita"17 de competências entre tais órgãos jurisdicionais.   A decisão do TCF chama a atenção por diversas razões. Em primeiro lugar, trata-se de uma contundente mudança jurisprudencial, já que o Tribunal se recusava a incluir, no parâmetro de controle da reclamação constitucional, os direitos fundamentais da União Europeia. Em segundo lugar, tal mudança de entendimento não é juridicamente trivial. Com efeito, sua adoção aparenta conflitar com dispositivos da Lei Fundamental, de acordo com os quais cabe ao TCF a guarda, tão somente, dos direitos fundamentais estatuídos pela Constituição alemã, de forma que, prima facie, não parece absurda a crítica de que o veredito demandaria uma prévia reforma constitucional, que implicasse alteração no já citado art. 93 da Lei Fundamental, a fim de respaldar a ampliação do parâmetro de controle da reclamação constitucional.18 Em terceiro lugar, o novo entendimento da Corte de Karlsruhe aponta para uma tendência entre os tribunais constitucionais europeus, consistente em adotar os direitos fundamentais da União Europeia como parâmetro de controle nos seus mecanismos internos de jurisdição constitucional, tratando-se, pois, de um desenvolvimento continental, não só alemão. A influência de que goza o TCF entre os demais tribunais constitucionais europeus possivelmente contribuirá para uma aceleração desta tendência, por meio da qual tais tribunais vem procurando reagir à redução da sua importância no âmbito da proteção judicial dos direitos fundamentais, ante o crescimento do protagonismo do TJUE. Em quarto e último lugar, a adoção dos direitos fundamentais da União como novo parâmetro de controle na reclamação constitucional poderá significar uma progressiva recepção, pelo TCF, da dogmática europeia dos direitos fundamentais, o que já se descortinou na solução de mérito do caso "Direito ao Esquecimento II", na qual o Tribunal explicitamente desiste de empregar os parâmetros usuais da dogmática alemã dos direitos fundamentais - em especial, a teoria indireta da eficácia dos direitos fundamentais nas relações privadas - e se debruça sobre a jurisprudência do TJUE e a doutrina europeia da Carta, afastando-se do tradicional approach autocentrado do direito público germânico. __________ 1 "Direito ao Esquecimento II": BVerfG, Beschluss des Ersten Senats vom 06. November 2019 - 1 BvR 276/17, Rn. 1-142. No mesmo dia 6/11/2019, o Tribunal Constitucional Federal divulgou a decisão de "Direito ao Esquecimento I": BVerfG, Beschluss des Ersten Senats vom 06. November 2019 - 1 BvR 276/17 -, Rn. 1-142.   2  Cf. a resenha escrita por Ingo W. Sarlet, que centra sua análise no julgamento do caso "Direito ao Esquecimento I". 3 A reclamação constitucional é uma ação constitucional extraordinária, que não possui natureza recursal, diferentemente do recurso extraordinário brasileiro. Compete ao TCF, de forma originária e exclusiva, processar e julgar tal ação. Veja-se, sobre o tema, Leonardo Martins, Direito Processual Constitucional Alemão, São Paulo: Atlas, 2011, p. 32-33: "Não se trata, portanto, de complemento extraordinário ao sistema processual ordinário de recursos, mas de ação constitucional específica, de instância única e subsidiária". Na literatura germânica, cf., por todos, C. Hillgruber/C. Goos, Verfassungsprozessrecht, 4. Ed., Heidelberg: C.F. Müller, 2015, p. 39-40. 4 A Lei Fundamental da República Federal da Alemanha é o documento constitucional vigente na Alemanha, promulgada em 23/5/1949. 5 Franz Schorkopf, Botschaft aus Karlsruhe, in: FAZ, Caderno de Política, edição de 5/12/2019, p. 7. 6 O citado dispositivo constitucional estabelece que, "para a realização de uma Europa unida, a República Federal da Alemanha contribuirá para o desenvolvimento da União Europeia, que está comprometida com os princípios democráticos, de Estado de direito, sociais e federativos e com o princípio da subsidiariedade e que garante uma proteção dos direitos fundamentais, comparável em sua essência à garantia constante nesta Lei Fundamental. Para tal, a Federação pode transferir direitos de soberania através de lei com anuência do Conselho Federal". 7 Mattias Wendel, Das Bundesverfassungsgericht als Garant der Unionsgrundrechte, in: JZ 2020, p. 157 e ss. 8 Jürgen Kühling, Das "Recht auf Vergessenwerden" vor dem BVerfG - November(r)evolution für die Grundrechtsarchitektur im Mehrebenensystem, in: NJW 2020, p. 275 e ss. 9 O privilégio midiático está previsto no artigo 85 do Regulamento Geral sobre a Proteção de Dados (2016) nos seguintes termos: "(1) Os Estados-Membros conciliam por meio de disposições normativas o direito à proteção de dados pessoais nos termos do presente regulamento com o direito à liberdade de expressão e de informação, incluindo o tratamento para fins jornalísticos e para fins de expressão acadêmica, artística ou literária. (2) Para o tratamento efetuado para fins jornalísticos ou para fins de expressão acadêmica, artística ou literária, os Estados-Membros estabelecem isenções ou derrogações do capítulo II (princípios), do capítulo III (direitos do titular dos dados), do capítulo IV (responsável pelo tratamento e subcontratante), do capítulo V (transferência de dados pessoais para países terceiros e organizações internacionais), do capítulo VI (autoridades de controle independentes), do capítulo VII (cooperação e coerência) e do capítulo IX (situações específicas de tratamento de dados) se tais isenções ou derrogações forem necessárias para conciliar o direito à proteção de dados pessoais com a liberdade de expressão e de informação. (3) Os Estados-Membros notificam a Comissão sobre as disposições normativas que tiverem adotado nos termos do parágrafo 2 e, sem demora, sobre quaisquer alterações legais subsequentes ou alterações nestas disposições normativas". 10 Mattias Wendel, Das Bundesverfassungsgericht als Garant der Unionsgrundrechte, in: JZ 2020, p. 158, atenta para a circunstância de que, embora os direitos fundamentais da Lei Fundamental tenham sido o parâmetro de controle no julgamento de "Direito ao esquecimento I", o TCF levou em conta, em sua fundamentação, os precedentes do TJUE e da Corte Europeia de Direitos Humanos, assim como - para fins de apreciação do fator temporal no exame da constitucionalidade da difusão de informações -, o Tribunal referiu-se a um intercâmbio em pleno curso, no sentido de um "desenvolvimento jusfundamental europeu".    11 Os §§ 13, 8a c/c 90 e ss. da Lei sobre o Tribunal Constitucional Federal regulam a reclamação constitucional no plano infraconstitucional. 12 Sobre o ponto, veja-se Matthias Jestaedt, Phänomen Bundesverfassungsgericht. Was das Gericht zu dem macht, was es ist, in: Jestaedt, Matthias/Lepsius, Oliver/Möllers, Christoph/Schönberger, Christoph, Das entgrenzte Gericht. Eine kritische Bilanz nach sechzig Jahren Bundesverfassungsgerichts, Berlin: Suhrkamp, 2011, p. 77-157. 13 Cf. BVerfGE 115, 276, número de margem 77; BVerfGE 110, 141, número de margem 55. 14 "As disposições da presente Carta têm por destinatários as instituições, órgãos e organismos da União, na observância do princípio da subsidiariedade, bem como os Estados-Membros, apenas quando apliquem o direito da União. Assim sendo, devem respeitar os direitos, observar os princípios e promover a sua aplicação, de acordo com as respetivas competências e observando os limites das competências conferidas à União pelos Tratados". 15 Através do instituto do reenvio prejudicial, previsto no artigo 267 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, o órgão jurisdicional nacional requer ao Tribunal de Justiça da UE, intérprete máximo do Direito da União, que se pronuncie sobre o correto entendimento ou sobre a validade das normas de direito europeu que condicionam a solução do litígio concreto que o órgão jurisdicional nacional é chamado a julgar. O foco do reenvio prejudicial é a aplicação uniforme dos tratados e da legislação da União Europeia no espaço comunitário, e não a proteção judicial do indivíduo.  16 A expressão é de Johannes Masing, Einheit und Vielfalt des Europäischen Grundrechtsschutzes, in: JZ 2015, p. 477 e ss. 17 Cf. Daniel Thym, Vereinigt die Grundrechte!, in: JZ 2015, p. 53 e ss.   18 Embora a mudança de entendimento do TCF represente a ruptura de uma linha jurisprudencial bastante consolidada, importa salientar que o texto da LF (artigo 93, § 1.°, número 4a), ao estipular a competência do Tribunal para apreciar a reclamação constitucional contra atos do poder público, alça os direitos fundamentais - e outros direitos a estes equiparados - como parâmetro de controle, não excluindo, pois, expressamente, direitos fundamentais que não tenham sede no próprio documento constitucional do escopo da reclamação.
O famoso leading case sobre herança digital, envolvendo o caso da garota de Berlim, foi parar novamente no Bundesgerichtshof (BGH), em Karlsruhe. Dessa vez, em fase de execução. E tudo, porque o Facebook, após ser condenado a liberar o acesso dos pais à conta da garota falecida no metrô de Berlim, resolveu entregar um pendrive com um único arquivo em PDF contendo mais de 14 mil páginas de informações. Recordando o caso: a mãe de uma adolescente entrou com ação contra o Facebook pleiteando o acesso à conta da garota após trágico acidente no metrô. Os pais queriam ter acesso a todo o conteúdo armazenado no perfil para encontrar pistas sobre o fatal incidente, pois havia suspeita de suicídio e, para completar, o condutor do metrô processou os genitores pedindo indenização pelo trauma sofrido. O juízo de primeiro grau - Landgericht (LG) Berlim - condenou o conglomerado digital a liberar o acesso dos pais à conta, em sentença prolatada em 17/12/2015. Essa decisão foi reformada em segundo grau pelo Kammergericht Berlim, mas restaurada pelo BGH em 12/7/2018, julgado comentado nessa coluna (clique aqui).  Em 30/8/2018, o Facebook entregou à mãe da falecida um pendrive com um único arquivo em PDF, com mais de 14 mil páginas de conversas, fotos, nomes de emissores e receptores, datas, horários e outros dados referentes à conta da menina. A genitora, porém, não ficou satisfeita, pois o casal queria acessar a conta e poder se "movimentar" lá dentro como fazia a própria usuária, olhando todos os detalhes em busca de explicação para a morte da filha. E para piorar, parte das informações constantes no arquivo estavam em inglês e não em alemão, idioma original da conta. A autora peticionou ao LG Berlim denunciando o descumprimento da sentença pelo réu, o que levou o juiz a ordenar ao Facebook, em 13/2/2019, a liberação imediata do perfil sob pena de multa de 10 mil euros, decisão também foi comentada no German Report (aqui).   Porém, a ordem foi imediatamente suspensa em segundo grau. Segundo o KG Berlim, o Facebook cumpriu a ordem judicial ao entregar o pendrive com todo o conteúdo da conta em arquivo no formato PDF, de forma que não se justificava a imposição das astreintes, nos termos do § 888 Zivilprozessordnung (ZPO), o código processual civil alemão. Para o Tribunal de apelação, da decisão do BGH de 12/7/2018 resulta que a obrigação do réu se esgota em dar conhecimento à autora acerca do conteúdo das comunicações armazenadas na conta. Embora a Corte superior tenha se referido ao "acesso à conta", o objeto da lide - disse o KG Berlim - girava em torno do acesso ao conteúdo da conta, vale dizer, às informações lá arquivadas, sem que o Facebook fosse obrigado a dar conhecimento desses dados por algum meio específico. Segundo o Tribunal, a empresa tinha liberdade para escolher a forma como transmitir o conteúdo aos pais e, desse modo, a ordem judicial fora cumprida com a entrega do pendrive. O imbróglio subiu novamente ao BGH que, discordando dos argumentos do KG Berlim, deu provimento ao recurso de Revision interposto pela mãe da garota. Trata-se do processo BGH III ZB 30/20, julgado em 27/8/2020 pelo 3º. Senado (Turma) de Direito Civil da Corte. A decisão do Bundesgerichtshof A Corte assinalou, de início, que era necessário no caso fazer uma interpretação do título executivo (Vollstreckungstitel) para o que se haveria de partir do teor da decisão a ser executada, e, caso necessário, verificar os fundamentos da decisão e, ainda, as alegações das partes no processo. E já do teor da decisão de primeiro grau resultava claramente que o Facebook fora condenado a permitir o pleno acesso dos herdeiros à conta da usuária falecida e, consequentemente, ao conteúdo lá armazenado. Segundo o BGH, o acesso pleno ao perfil compreende a possibilidade dos pais tomarem conhecimento da conta e do seu conteúdo da mesma forma que a usuária falecida, isto é, através da plataforma de comunicação e não por meio de arquivo em PDF. Em outras palavras: os pais deveriam entrar na conta por meio da plataforma do Facebook, inserindo os dados de acesso da usuária e lá se "movimentar" para buscar as informações que achassem necessárias. Eles não poderiam, porém, usar ativamente a conta da filha, pois essa faculdade não fora requerida na ação e, logo, não houve pronunciamento judicial sobre a questão em sede de processo de conhecimento. Dessa forma, o Facebook não precisava permitir o uso ativo da conta, mas tão só seu acesso pelos pais, herdeiros únicos da falecida. O mesmo comando depreende-se ainda da decisão proferida em grau de Revision, em 2018, disse o Tribunal. Lá consta expressamente que o Facebook deveria não só permitir o acesso ao conteúdo das comunicações, mas, além disso, dar à genitora acesso total à conta. E isso significa, literalmente, frisou o Bundesgerichtshof, que a mãe deve poder acessar - por meio da plataforma digital - a conta que se encontra sob o domínio do Facebook. O Tribunal de Karlsruhe reafirmou que a relação contratual (contrato de uso da plataforma digital) existente entre a usuária falecida e o Facebook transmite-se, no momento da morte, aos herdeiros com todos os seus direitos e obrigações por força do princípio da sucessão universal (Grundsatz der Gesamtrechtsnachfolge) do § 1922 do BGB, salvo disposição em contrário do falecido. Logo, o direito que cabia à falecida de acessar a conta e o servidor do Facebook também é automaticamente transferido aos genitores. Porém, na medida em que o Facebook se negou a liberar o acesso à conta, os sucessores universais foram colocados em situação desvantajosa em relação à autora da herança, o que é inadmissível, já que nenhuma diferença há entre os direitos da falecida e os direitos dos herdeiros - à exceção, nesse caso específico, do direito de uso ativo da conta, que, repita-se, não foi objeto de pronunciamento judicial. A Corte acentuou, ainda, que a empresa tem plenas condições técnicas de cumprir a decisão: basta desbloquear a conta, permitindo que os sucessores se conectem com os dados que já possuem, de forma que nada justificava a entrega de arquivo com mais de 14 mil páginas aos herdeiros. Moral da história: 14 mil páginas são insuficientes para garantir a transmissibilidade da herança digital. É necessário dar aos herdeiros acesso total à conta por meio da plataforma.  A herança digital no Brasil O tema da transmissão da herança digital é bastante controverso no Brasil. Parte da doutrina - seguindo a linha defendida pelo Facebook - sustenta que a conta dos usuários das redes sociais não podem ser transmitidas aos herdeiros, sob pena de invasão de privacidade do falecido e de seus interlocutores, violação do sigilo da correspondência e dos dados pessoais1. O discurso impressiona, sobretudo na era digital, em que há um clamor crescente por privacidade e proteção de dados, muito embora, paradoxalmente, as pessoas, como nunca dantes, exponham diuturnamente sua vida, imagens e informações mais íntimas nas redes sociais. O curioso, entretanto, é que quem defende a bandeira da privacidade e proteção de dados nesse caso é uma das empresas que mais coleta ilegalmente dados pessoais de bilhões de pessoas em todo o mundo, que rastreia cada clique de seus usuários - e não usuários2 - a fim de traçar detalhados perfis que são posteriormente comercializados com os mais diversos tipos de anunciantes. E esse dado fático precisa ser trazido à luz para que se estabeleça um debate público sincero e sem hipocrisia acerca da herança digital. Assim, não deixa de ser, no mínimo, irônico que justamente uma das empresas que mais devassam a privacidade de seus usuários use a bandeira da intimidade e da proteção de dados para impedir que os herdeiros - em regra: familiares mais próximo - tenham acesso à conta (=dados pessoais) do falecido. Afinal, no frigir dos ovos, o debate em torno da herança digital é uma disputa para saber quem vai ficar com a infinidade de dados armazenados ao longo de anos na conta do usuário. Desde que o mundo é mundo, os bens do morto são transmitidos aos grupo familiar mais próximo. O renomado historiador francês Fustel de Coulanges, em sua fantástica obra A cidade antiga, mostra que a noção de sucessão nasceu nos primórdios da humanidade com a transmissão do dever de culto aos mortos, simbolizado no fogo doméstico, um altar com chama permanentemente acessa colocado no centro da morada, perante o qual o grupo cultuava seus antepassados3. No filme Gladiador, de Ridley Scott, estrelado por Russel Crowe, Joaquin Phoenix e Connie Nielsen, há cena ilustrativa. Foi, portanto, a partir do culto ao fogo doméstico que se desenvolveram as ideias de religião, família, propriedade e sucessão nas épocas mais remotas da raça indo-europeia, da qual somos descendentes. Dessa forma, a ideia da sucessão universal está enraizada na cultura - inclusive, jurídica - de todos os povos. Até a chegada do Facebook. A partir de então, a empresa vem tentando afastar a eficácia o princípio da sucessão universal através de seus termos e condições, impostos unilateralmente aos usuários. Em diversos países da Europa, o Estado - juiz ou legislador - tem procurado mostrar ao conglomerado digital que as coisas não são tão simples assim. A decisão do BGH é um recado claro: na Alemanha vige o princípio da sucessão universal, que determina a transmissão automática da herança (analógica ou digital) aos herdeiros, salvo declaração expressa do falecido em sentido contrário, exarada em documento hábil. Por isso, a cláusula que obriga o usuário a indicar um contato herdeiro para decidir o destino da conta, sob pena de todo o acervo - incluindo os dados existenciais! - ficar na posse e propriedade do Facebook, é nula de pleno direito, porque não permite uma manifestação de vontade livre do usuário.  Quem quer manter sua intimidade longe dos supostos olhos bisbilhoteiros dos familiares herdeiros, basta deixar seu desejo escrito em testamento ou folha de papel guardada em local seguro. Quem não pode, porém, decidir o destino da conta é o Facebook. Na Espanha, a Ley Orgánica de Protección de Datos y de Garantías de los Derechos Digitales4, em vigor desde 25/5/2018, prevê expressamente no art. 96 que as pessoas ligadas ao falecido por razões familiares ou de fato e os herdeiros podem sucedê-lo nas redes sociais, correio eletrônico ou serviços de mensagens instantâneas como o WhatsApp, salvo disposição expressa em contrário do falecido ou da lei (art. 96, inc. 1, alínea a). E mais: segundo o inc. 1, alínea a) e inc. 2 do dispositivo, cabe aos familiares ou herdeiros o poder de alterar e/ou apagar dados armazenados na conta do falecido. Assim, tal como na Alemanha, na Espanha a regra também é a transmissibilidade dos bens digitais, salvo disposição em sentido contrário. No Brasil, alega-se faltar lei expressa a respeito, apesar da clara dicção do art. 1.784 CC2002. O que inexiste, de fato, é jurisprudência formada sobre a matéria. Há apenas algumas decisões isoladas, mas preocupantes, porque têm aceito, sem mínima reflexão crítica, o discurso da proteção da privacidade e de dados pessoais encampado pelo Facebook. A polêmica decisão do TJ/SP sobre herança digital  Bom exemplo disso é a recente decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo, nos autos da Apelação 1119688-66.2019.8.26.0100, julgada em 9/3/2021 pela 31ª. Câmara de Direito Privado, na qual a Corte chancelou a apropriação pelo Facebook da conta de usuária, em detrimento dos herdeiros. O imbróglio começou quando a mãe, após o falecimento da filha, passou a utilizar o perfil dela na rede social para recordar fatos de sua vida e interagir com amigos e familiares. A filha havia lhe informado, ainda em vida, os dados de acesso à conta. Repentinamente, porém, o Facebook excluiu a conta (a rigor, tirou do ar, porque o perfil continua em poder da empresa) sem qualquer justificativa. A mãe moveu, então, ação de obrigação de fazer e indenização por danos morais pleiteando a restauração da conta ou a obtenção dos dados lá armazenados, a qual foi julgada improcedente em primeiro e segundo graus. Para o TJ/SP, o Facebook agiu no exercício regular de direito ao excluir o perfil da filha da autora, porque a jovem, ao criar a conta no Facebook, aderiu aos Termos de Serviço e Padrões da Comunidade, que proíbe ao usuário compartilhar sua senha, dar acesso ou transferir a conta a terceiros, sem permissão da empresa. Dessa forma, a falecida teria violado os termos de uso ao passar os dados de acesso para a genitora e isso justificaria a exclusão (rectius: retirada do ar) do perfil. Além disso, a filha não havia indicado a mãe como contato herdeiro para cuidar da conta, dando a entender, na visão do Tribunal, que não queria a transmissibilidade do perfil. Segundo o acórdão, como a falecida não optou em vida pela exclusão da conta, nem indicou contato herdeiro, vale a "manifestação de vontade" (detalhe: qual?) exarada pela titular da conta ao aderir aos termos de serviço do Facebook. E, sem enfrentar nenhum dos argumentos contrários à tese da intransmissibilidade da herança digital, a Corte simplesmente tomou por certa e unânime a frágil distinção entre conteúdo patrimonial (dotado de valor econômico) e conteúdo existencial (não definido no acórdão), concluindo, em seguida, que a conta do Facebook - detalhe: objeto de contrato atípico de adesão de uso de plataforma digital - teria caráter existencial e seria intransmissível.   Os problemas de fundamentação da decisão do TJ/SP A decisão apresenta vários problemas de fundamentação. A começar pela falta de definição sobre o que vem a ser conteúdo existencial, razão principal para a Corte ter afastado o direito fundamental dos herdeiros à herança, consagrado no art. 5º, inc. XXX da Constituição Federal. E aqui já começam as dificuldades, porque, considerando que uma simples foto (bem "existencial") pode ter enorme valor econômico, abalizada doutrina europeia afirma que é praticamente impossível separar na prática os bens de conteúdo patrimonial dos bens de caráter existencial5.   As dificuldades não acabam por aí. Quem vai fazer a autópsia da conta da falecida para separar - dentre uma infinidade de informações armazenadas durante anos - o conteúdo patrimonial e o conteúdo existencial? O juiz, já abarrotado de trabalho? O perito, com base em quais critérios objetivos, fixados por quem? O próprio Facebook, interessado em se apropriar dos dados armazenados? E aqui, a pergunta que não quer calar é: por que terceiros estranhos teriam legitimidade maior que o núcleo familiar ou os herdeiros para acessar a conta da falecida, devassando toda a sua intimidade? Na verdade, essas e muitas outras perguntas precisam ser racionalmente respondidas para conferir constitucionalidade à decisão do Tribunal paulista. Além disso, ao negar a transmissão da conta ao argumento de que "não se pode ignorar que alguns direitos são personalíssimos, e, portanto, intransmissíveis, extinguindo-se com a morte do titular, não sendo objeto de sucessão, não integrando o acervo sucessório por ele deixado", a Corte parece ter confundido a personalidade do usuário com certos bens relacionados aos direitos da personalidade, como fotos, cartas e diários, como colocam apropriadamente Aline Terra, Felipe Medon e Milena Oliva6. De fato, a personalidade do sujeito não se confunde com bens do mundo corpóreo ou digital que possam refletir alguns aspectos de seus direitos da personalidade. Os documentos pessoais do falecido (RG, CPF, certidão de nascimento, casamento ou óbito) contém os dados mais sensíveis do titular e ninguém duvida de que esses bens pertençam aos familiares mais próximos e, em sua ausência, aos demais parentes. Da mesma forma, o cadáver do falecido. O corpo é parte inseparável da personalidade do individuo e, por isso, não é tratado juridicamente como coisa e nem transmitido como herança. Mas se o falecido não determina em vida o destino a ser dado ao corpo, nem nomeia ninguém para decidir, a decisão cabe aos familiares mais próximos, que têm em relação ao corpo morto um direito de guarda póstumo (Totensorgerecht). O mesmo vale para partes corporais artificiais destacáveis do cadáver e partes biológicas, como sêmen e óvulos, células sexuais que contém material genético7. Ora, se bens muito mais sensíveis do falecido são transmitidos aos familiares herdeiros, não há razão plausível para se vedar a transmissão de cartas, fotos e documentos digitais simplesmente por estarem armazenados em um servidor - pago! - de empresa privada.   Não é à toa que em todo o mundo as cartas, fotos e diários mais íntimos e sigilosos são transmitidos há séculos aos herdeiros, ainda quando guardados em baú lacrado, com o que o falecido dá claramente a entender seu anseio por privacidade. E a analogia aqui é perfeitamente cabível, porque, por óbvio, o caráter sensível do conteúdo das informações é o mesmo em ambas a situações, independente do meio (papel, digital) no qual elas se materializam. Nem se diga que a transmissão desse material aos herdeiros viola direito dos terceiros interlocutores, pois esses recebem adequada proteção da ordem jurídica, por meio da tutela ressarcitória, em caso de eventual divulgação de informações lesivas aos direitos da personalidade, à semelhança do que ocorre nos casos das biografias não autorizadas.  Na verdade, seria grave incoerência valorativa e axiológica impedir o acesso dos familiares herdeiros à conta do Facebook do morto se a eles cabe a defesa dos direitos de personalidade post mortem do falecido, nos termos do art. 12, Parágrafo Único do CC2002. Essa legitimidade, é bom que se diga, não se dá à toa, mas pela óbvia razão de que é o grupo social mais próximo (família) que mais tem interesse em tutelar a dignidade do parente falecido, como reconheceu o Superior Tribunal de Justiça, com muita lucidez, no julgamento do Recurso Especial 512.697/RJ, em 2006, sob a relatoria do Min. Cesar Asfor Rocha8. Dessa forma, data maxima venia, é evidente que o aluguel de um "cofre digital" ou um espaço na nuvem (pois é disso que se trata) não é objeto de direito da personalidade, mas sim objeto do contrato de consumo oneroso celebrado entre o usuário e o Facebook. Afinal, ninguém mais duvida, em sã consciência, que o contrato de uso de espaço digital - como a plataforma de comunicação do Facebook - é remunerado pela utilização dos dados pessoais dos usuários, cujo uso gratuito o titular é obrigado a ceder para poder utilizar a plataforma e, dessa forma, participar da vida social9. A estória de uso gratuito da plataforma mostrou-se tão falsa quanto a venda de terrenos no céu pela Igreja Católica em tempos de decadência moral. Afirmar que os termos de uso do Facebook "estão alinhados ao ordenamento jurídico" ou que devem valer simplesmente por ter o usuário com eles "concordado", é ignorar que o princípio da sucessão universal determina a transmissão da herança (detalhe: sem distinguir entre bens analógicos ou digitais) aos herdeiros no momento da morte, bem como de todas as relações jurídicas do falecido, dentre as quais o contrato de uso de plataforma digital celebrado com o Facebook. Mais: é desconhecer as características do contrato bilateral, oneroso, sinalagmático e atípico10, celebrado entre o Facebook e o usuário (em regra: consumidor) e jogar por terra noções comezinhas de direito contratual, como a de que não há liberdade de decisão plena na adesão a regra imposta unilateralmente pela empresa, em benefício exclusivo desta, como é o caso da regra que obriga a indicação de contato herdeiro, sob pena de apropriação da conta - e do conteúdo existencial! - pelo Facebook. Através dessa simples regra, o Facebook afasta o princípio da sucessão universal e se coloca na posição jurídica de herdeiro, substituindo aqueles que legitimamente devem ocupá-la, sem sequer permitir que o usuário discipline de forma livre e autônoma a sucessão de sua conta. Basta a mera abstenção do usuário (não indicar o contato herdeiro) e o Facebook se torna automaticamente proprietário de todos os seus dados - repita-se: inclusive dos dados existenciais que se pretende tutelar contra a "invasão" dos herdeiros. Tendo em vista que quase ninguém - e isso é um problema global - se preocupa com o que vai acontecer depois de sua morte, é certo que o Facebook se tornará herdeiro da maioria esmagadora de seus usuários.   O problema é que para ser herdeiro, não basta querer. A posição jurídica de herdeiro (Rechtstellung des Erben) só pode ser ocupada por aqueles expressamente indicados na lei ou por ato de plena autonomia privada do de cujus, através da liberdade de testar. Isso significa que uma empresa privada, que aluga uma "sala" em sua plataforma digital, não tem legitimidade para se colocar na posição de herdeiro por mera abstenção de seus usuários, isto é, pela falta de um click. Além disso, a indicação do contato herdeiro não transmite a conta aos sucessores, pois esses não podem acessá-la, mas tão só decidir seu destino. No fundo, trata-se de um "herdeiro amigo" do Facebook, porque a conta, mesmo "deletada", permanece nos arquivos da empresa e só por ela acessível. Em suma: por meio da regra do contato herdeiro, o Facebook se autoproclama herdeiro e proprietário das contas dos usuários falecidos, esvaziando a regra da sucessão universal e o direito fundamental à herança dos legítimos sucessores, em regra, os familiares. E dessa forma, por meio de seus termos e condições de uso, o Facebook acaba substituindo o direito posto pelo direito imposto. Por essa e outras razões é que a Corte infraconstitucional alemã declarou a nulidade da regra impositiva do contato herdeiro e da que transforma automaticamente a conta do falecido em memorial, impedindo seu acesso pelos herdeiros. Guiado, porém, por uma visão simplista e unilateral do problema, o TJ/SP chancelou a apropriação da conta e - o que é mais grave - de seu conteúdo existencial pelo Facebook, permitindo que terceiro estranho ao círculo familiar se aproprie justamente dos dados existenciais que se pretende tutelar. Sob o pretexto de tutelar os direitos de personalidade do de cujus e de seus interlocutores contra violações (?) dos herdeiros, a Corte bandeirante acabou priorizando os interesses meramente patrimoniais da gigante digital, que se apropria dos dados existenciais de seus usuários e deles se utiliza de forma, no mínimo, intransparente. Aliás, é bom que se diga que a discussão em torno da herança digital esconde uma gama de interesses (muitos, obscuros) dos conglomerados digitais. Um estudo da Universidade de Oxford, divulgado em 2019, mostrou que o Facebook continua utilizando os dados dos usuários falecidos e de seus contatos mesmo após a morte11. Além disso, o estudo chamou atenção para um aspecto importantíssimo, mas quase sempre ignorado: o perigo que é para a história da humanidade deixar que empresas com fins lucrativos fiquem na posse de dados de gerações de usuários e de uma quantidade brutal de informações sobre o comportamento e a cultura humana. Vedar a transmissão da herança digital é permitir que poucas empresas privadas controlem o acesso (inclusive para fins científicos) a esse riquíssimo arquivo histórico. Por isso, é importante garantir que as gerações futuras possam usar nosso patrimônio digital para compreender sua história, concluiu o estudo. De posse desses dados, o Facebook terá no futuro não apenas a chave de um grande cemitério virtual. Ele terá a chave do maior arquivo digital sobre a história humana, o que lhe dará incalculável poder econômico, politico e social. Em última análise, controlar esse arquivo significa controlar a história. E a empresa de Mark Zuckerberg saberá monetizar isso muito bem. Conclusão Diante do exposto, melhor teria sido, data venia, se o TJ/SP, embora impedindo a mãe de usar ativamente a conta da filha, tivesse reconhecido seu direito sucessório de simplesmente acessar e administrar a conta ou garantido, no mínimo, a obtenção de todo o material lá armazenado, como pleiteado alternativamente na inicial. Em assim não o fazendo, a decisão do TJ/SP violou o direito fundamental à herança, consagrado no art. 5º, inc. XXX da Constituição, padecendo de flagrante vício de inconstitucionalidade. Por fim, uma alegoria ajuda a ilustrar a gravidade do problema: vetar a transmissão da herança digital é como deixar o locador impedir os herdeiros de entrar no imóvel alugado para retirar os pertences do locatário falecido. __________ 1 Dentre outros: MALHEIROS. Pablo; AGUIRRE, João Ricardo Brandão; PEIXOTO, Maurício Muriack. Transmissibilidade do acervo digital de quem falece: efeitos dos direitos da personalidade projetados post mortem. Revista da Academia Brasileira de Direito Constitucional, v. 10, n. 19, jul-dez, 2018, 564-607 e LEAL, Lívia. Internet e morte do usuário: a necessária superação do paradigma da herança digital. Revista Brasileira de Direito Civil, v. 16, abr-jun, 2018, 181-197. 2 Veja o caso do botão de curtida do Facebook, julgado pelo Tribunal de Justiça da União Europeia, comentado na coluna German Report, em 6/8/2019: Tribunal de Justiça Europeu determina responsabilidade solidária de sites que utilizam botões do Facebook. Confira-se ainda: BGH manda Facebook suspender imediatamente a coleta abusiva de dados pessoais. German Report, 30/6/2020. 3 A cidade antiga - estudos sobre o culto, o direito e as instituições da grécia e de roma. 3a. ed. Tradução de Edson Bini. São Paulo - Bauru: Edipro, 2001, p. 30. 4 Luces y sombras del nuevo testamento digital reflejado en la LOPDGDD. Acessível aqui. Data de acesso: 10.12.2019. 5 KUNST, Lena. In: Staudinger BGB - Einleitung zum Erbrecht. Berlim: de Gruyter, 2016, § 1922, Rn. 633, p. 282. Sobre o tema da herança digital, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Herança digital: quem tem legitimidade para ficar com o conteúdo digital do falecido? In: Direito digital. Guilherme Magalhães Martinse João Victor Rozatti Longhi (coord.), 3a. ed. Indaiatuba: Foco, 2020, p. 193-210. 6 Aspectos controvertidos sobre herança digital. Migalhas de Peso, 9/4/2021, p. 2. 7 HOEREN, Thomas. In: Bürgerliches Gesetzbuch Handkommentar. Reiner Schulze (coord.). 8a. ed., Baden-Baden: Nomos, 2014, § 1922, p. 2169 e LEIPOLD, . Münchener Kommentar zum Bürgerlichen Gesetzbuch - Erbrecht. Franz Jürgen Säcker e Kurt Rebmann (coord.), v. 6 (Erbrecht), München: Beck, 1989, § 1922, p. 99. 8 No julgado, a Corte reconheceu a legitimidade dos filhos do jogador Garrincha para postular, em nome próprio e direito próprio, indenização por dano moral e material contra o autor de biografia do atleta e contra a editora face a violação do direito à intimidade do pai. Na ementa, o Tribunal, reconhecendo a legitimidade da família para defender os direitos de personalidade póstumos, afirma: "Os direitos da personalidade, de que o direito à imagem é um deles, guardam como principal característica a sua intransmissibilidade. Nem por isso, contudo, deixa de merecer proteção a imagem e a honra de quem falece, como se fossem coisas de ninguém, porque elas permanecem perenemente lembradas nas memórias, como bens imortais que se prolongam para muito além da vida, estando até acima desta, como sentenciou Ariosto. Daí porque não se pode subtrair dos filhos o direito de defender a imagem e a honra de seu falecido pai, pois eles, em linha de normalidade, são os que mais se desvanecem com a exaltação feita à sua memória, como são os que mais se abatem e se deprimem por qualquer agressão que lhe possa trazer mácula. Ademais, a imagem de pessoa famosa projeta efeitos econômicos para além de sua morte, pelo que os seus sucessores passam a ter, por direito próprio, legitimidade para postularem indenização em juízo, seja por dano moral, seja por dano material." REsp. 521.697/RJ, T4, Rel. Min. Cesar Asfor Rocha, j. 16/2/2006, DJ 20/3/2006. 9 DONEDA, Danilo. A proteção dos dados pessoais como um direito fundamental. Espaço Jurídico, v. 12, n. 2, jul-dez 2011, p. 97. 10 Sobre as características dos contratos de uso de espaço digital, permita-se remeter a: NUNES FRITZ, Karina. Herança digital: quem tem legitimidade para ficar com o conteúdo digital do falecido?, p. 201-205. 11 Digitales Erbe auf Facebook. Was passiert mit den Daten verstorbener Facebook-Nutzer? Disponível aqui. Acesso: 10/12/2020.
A coluna German Report dessa semana recebe o importante contributo do Prof. Dr. Marcelo Schenk Duque, abordando tema atual e controverso na Alemanha: a vacinação compulsória. No caso analisado, o Bundesverfassungsgericht confirmou a constitucionalidade da vacinação obrigatória de crianças contra o sarampo. Mas, ao contrário daqui, onde há, em princípio, obrigatoriedade de vacinas (inclusive contra o coronavírus), na Alemanha a vacinação é facultativa. O tema, portanto, não poderia ser mais pertinente e ninguém melhor que nosso convidado para tratar do problema com cientificidade. Marcelo Schenk Duque é Professor de Direito Constitucional, Política, Teoria do Estado e Direito Administrativo em diversas instituições, dentre as quais a Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre e a renomada Universidade Federal do Rio Grande do Sul. É doutor em direito pela UFRGS e pela secular Ruprecht-Karls-Universität de Heidelberg (Alemanha), onde defendeu tese sobre a eficácia horizontal dos direitos fundamentais no direito privado. A tese virou o livro: Eficácia horizontal dos direitos fundamentais e jurisdição constitucional, publicado pela Editora dos Editores, de São Paulo. Trata-se, sem dúvida, de obra de leitura obrigatória para os que se interessam pelo tema e, principalmente, para a compreensão da teoria da eficácia indireta dos direitos fundamentais no direito privado, majoritária no direito alemão. Marcelo Schenk Duque é um exímio germanista: Pesquisador junto ao Europe Institut da Universidade de Saarland (Alemanha) e membro da Deutsch-Lusitanische Juristenvereinigung (Associação Luso-Alemã de Juristas), da qual tenho a honra de ser Secretária-Geral e que é presidida por meu eterno mestre, Prof. Dr. Dr. Stefan Grundmann. Autor de diversos livros e artigos, Marcelo Schenk Duque é, acima de tudo, um profundo estudioso e pesquisador do direito público alemão, como fica claro em cada linha de seu texto. Confiram! *  * * Prof. Dr. Marcelo Schenk Duque*  1. Conjunto fático dos casos Em 11 de maio de 2020, o Tribunal Constitucional Federal alemão ? BVerfG foi chamado a decidir, em dois procedimentos de urgência,1 sobre a constitucionalidade de dispositivos da Lei Federal de Proteção contra Infecções ? IfSG,2 que condicionam o ingresso de crianças em creches públicas à vacinação contra o sarampo ou prova da respectiva imunidade contra a doença, salvo em casos de comprovada contraindicação atestada por médicos. Os demandantes eram dois casais de pais que detinham, respectivamente, a guarda de duas crianças de aproximadamente um ano de idade. Os pais das crianças entendiam que os referidos dispositivos da Lei de Proteção contra o Sarampo eram inconstitucionais. Nos casos em análise, as crianças não foram vacinadas pelo fato de seus pais serem contrários à vacinação. Referida contrariedade baseava-se em convicções pessoais dos genitores, já que, de acordo com o relato dos autos, não havia nenhuma prova de contraindicação médica. Assim, ao não comprovarem que as crianças estavam devidamente imunizadas contra o sarampo, os pais não conseguiram obter, perante os departamentos públicos competentes, a autorização de matrícula dos seus filhos nas creches municipais. Em face dessa negativa, os pais acionaram o Tribunal Federal Constitucional em um procedimento de urgência, para evitar que as crianças ficassem privadas de frequentar as creches, até que o julgamento futuro dos recursos constitucionais - que depende do esgotamento das instâncias recursais em ações próprias - fosse concluído. O foco dos requerimentos era uma medida cautelar que autorizasse o ingresso das crianças nas creches, independentemente da comprovação de vacinação ou de imunidade contra o sarampo, durante o curso dos processos principais. Os procedimentos de urgência foram recebidos pelo Tribunal, que considerou presentes os requisitos formais previstos na sua Lei Orgânica3, mas julgou improcedente as queixas constitucionais, mantendo a obrigatoriedade da vacinação como requisito de acesso às creches públicas, até o julgamento dos recursos constitucionais, com base nos fatos e fundamentos que seguem.  2. Fundamentação constitucional dos requerimentos antivacina Ambos os requerentes defendiam a tese de que condicionar a admissão das crianças em creches públicas à vacinação ou à comprovação da imunidade contra o sarampo violaria direitos fundamentais previstos na Lei Fundamental. Em que pese algumas diferenças na fundamentação de cada medida judicial, os argumentos dos requerentes podem ser sintetizados da seguinte forma: (a) violação ao art. 2 inc. 2, frase 1 da LF4; (b) violação ao art. 3 inc. 1 da LF5 e (c) violação ao art. 6 inc. 2 da LF.6 Na visão dos genitores, a obrigatoriedade de vacinação representaria uma intervenção desproporcional no direito fundamental à inviolabilidade corporal (körperliche Unversehrtheit) das crianças. Além disso, a referida obrigatoriedade representaria uma interferência desproporcional nos direitos parentais. Isso porque os responsáveis legais não poderiam ter acesso aos cuidados de seus filhos em uma creche, nos termos dos seus planos pessoais de educação, salvo se concordassem em tolerar uma medida de caráter médico, que entendiam ser desproporcional, em detrimento dos seus filhos. Alegaram, ainda, que a decisão parental sobre a não realização da vacina, que teria sido tomada com a ajuda de aconselhamento médico, seria considerada irrelevante pelo poder público.7 O requerimento de medidas judiciais provisórias, aptas a permitir o ingresso das crianças nas creches, foi, ainda, embasado na argumentação de que se fazia presente a necessidade de uma ponderação das consequências (Folgenabwägung). Essa ponderação envolvia, na visão dos requerentes, o fato de que as crianças, caso fossem obrigadas a se vacinarem, deveriam ter que suportar reações corporais habituais à vacinação, que não seriam reversíveis por uma intervenção judicial tardia. Desse modo, alegaram que as crianças ficariam expostas, na hipótese de indeferimento, ao que consideravam a existência de perigos de efeitos colaterais indesejáveis (Gefahren unerwünschter Nebenwirkungen), aptos a produzirem danos massivos e permanentes em seu estado de saúde. Nesse quadro, argumentaram que na condição de pais e responsáveis seriam dotados de um sentimento irreversível de culpa e responsabilidade, por terem escolhido cuidados socialmente reconhecidos em favor de seus filhos em creches, ao preço de uma vacinação que não desejavam e, nessa hipótese, por terem aceitado uma vacinação, embora contra todas as probabilidades, possivelmente "fora de controle" (aus dem Ruder). 3. Fundamentação constitucional pelo indeferimento dos requerimentos antivacina Por se tratar de procedimentos de urgência (espécie de medida cautelar) manejados em face de supostas violações a direitos fundamentais, a decisão tocou à Primeira Câmara do Primeiro Senado do Tribunal, composta por três juízes.8 Posteriormente, o Primeiro Senado do Tribunal, por meio dos seus oito juízes, se manifestará, pela via dos recursos constitucionais,9 sobre as questões de fundo que envolvem o tema da vacinação compulsória contra o sarampo, como condição para o ingresso de crianças em creches públicas. Nos termos da sua Lei Orgânica, o Tribunal Constitucional Federal pode, no curso de um litígio concreto, regular provisoriamente determinada situação por meio de uma medida cautelar provisória em caráter de urgência (einstweilige Anordnung), nas hipóteses em que tal providência seja urgentemente necessária para evitar sérias desvantagens aos requerentes ou por outro fundamento importante para a realização do bem comum.10 Todavia, como dito, esses requerimentos destinados a reconhecer o caráter não obrigatório das vacinas foram indeferidos pelo Tribunal. Inicialmente, o órgão julgador ponderou que a natureza do procedimento cautelar é fundamental para definir os limites da análise constitucional da matéria. Isso porque há uma espécie de cisão processual entre o requerimento de urgência e a chamada ação principal, no curso da qual a questão será oportunamente submetida ao Tribunal. Nesse sentido, os juízes observaram que enquanto a análise da vacinação compulsória permanece em aberto na via do recurso constitucional, deve-se proceder a uma ponderação das eventuais consequências de uma decisão favorável ou desfavorável às partes. Essa constatação é de suma importância para se compreender a postura do Tribunal ao avaliar procedimentos de urgência. É como se os juízes, ao analisarem essas medidas cautelares, já fizessem uma espécie de relação com a futura probabilidade de sua confirmação definitiva ou, ao contrário, de sua cassação, com os efeitos daí decorrentes. A estrutura da avaliação do Tribunal se dá no seguinte quadro de ação. Em um primeiro momento, deve-se avaliar quais consequências adviriam para as partes na hipótese de indeferimento da medida cautelar e posterior deferimento do pleito de inconstitucionalidade, no caso de sucesso do recurso constitucional interposto na ação principal: cautelar indeferida, obrigação de vacinas mantida e posteriormente declaração de inconstitucionalidade dessa obrigação. Em um segundo momento, cabe ao Tribunal ponderar aquela situação com as desvantagens de a medida cautelar ser deferida, mas posteriormente vir a ser cassada na ação principal: cautelar deferida, obrigação de vacinas afastada e posteriormente declaração de constitucionalidade dessa obrigação. Vale dizer: na acepção dos juízes constitucionais, as consequências geradas pela decisão provisória devem ser ponderadas com as que advêm da decisão definitiva. Esta é a orientação jurisprudencialmente consolidada, que guia a análise do Tribunal Constitucional Federal nos procedimentos de urgência que examina.11 Na prática, isso tem um efeito processual considerável, pois faz com que os fundamentos que os requerentes invocam para demonstrar a inconstitucionalidade da lei contestada (violação a direitos fundamentais) sejam afastados, em princípio, da consideração do Tribunal, a não ser que eventual recurso constitucional na ação principal se revele, desde já, inadmissível ou manifestamente infundado.12 Convém lembrar que, nesse ponto específico, visualiza-se uma técnica de decisão consideravelmente distinta da que se pratica na jurisdição constitucional brasileira, ao menos do ponto de vista da sua fundamentação. Em parte, isso se deixa explicar pelo fato de que, ao contrário da Alemanha, que possui um sistema concentrado de controle de constitucionalidade, pratica-se no Brasil um sistema híbrido, de difícil compatibilidade, concentrado e difuso, que permite mesmo às instâncias ordinárias do Poder Judiciário afastar a aplicação de leis nos casos concretos, com base em fundamentos de inconstitucionalidade das normas. Na realidade constitucional alemã, os fundamentos apresentados em favor de uma regulamentação temporária da questão pelo Tribunal (afastando a vigência da norma contestada) devem ser tão sérios, que tornam inevitável o deferimento de uma medida cautelar de natureza temporária. Em harmonia com esse entendimento, a jurisprudência consolidada do Tribunal13 informa que deve ser aplicado um critério particularmente rigoroso para avaliar, na ponderação das consequências, os casos em que se requer a suspensão cautelar da execução de uma lei. Fica muito presente o destaque que o Tribunal dá para as consequências das suas decisões. É aqui que entra em consideração uma característica típica do Tribunal Constitucional Federal alemão, atualmente pouco presente entre nós. É a visão, reforçada nessa decisão e em tantas outras, de que o Tribunal somente poderá fazer uso da sua competência para suspender a execução de uma lei quando agir com elevada autocontenção (Zurückhaltung), pois o deferimento de uma medida cautelar neste sentido representa uma considerável violação à liberdade de conformação do legislador (Gestaltungsfreiheit des Gesetzgebers). Essa é, sem dúvida, ao menos na atualidade, uma das principais diferenças de atuação entre o BVerfG e o STF. Portanto, na ótica do BVerfG uma lei só poderá ser provisoriamente impedida de entrar em vigor se as desvantagens que seriam associadas ao início da sua vigência, após uma determinação posterior de sua inconstitucionalidade, superarem, claramente, em extensão e severidade, as desvantagens que ocorreriam no caso da não execução provisória de uma lei que provasse, posteriormente, ser constitucional.14 Vale dizer, na apreciação de uma medida cautelar voltada a suspender a aplicação de uma lei, o Tribunal deve ponderar o que se mostra mais grave: as desvantagens de admitir a vigência de uma lei que venha a ser declarada inconstitucional ou as desvantagens geradas pela não aplicação de uma lei, que se mostra constitucional. Nota-se, claramente, que a decisão consagra um critério de ponderação de interesses, que leva em conta, na técnica de exame concreto de normas (Konkrete Normenkontrolle),15 as consequências advindas da manutenção ou da suspensão de vigência da lei. O Tribunal adverte, ainda, que nesta ponderação de consequências devem ser levados em conta os efeitos sobre todos aqueles que são afetados pela lei e não apenas as consequências que surgem para os requerentes que demandam a não a aplicação da norma.16 E foi justamente essa questão que abriu caminho para a conclusão final, de que ao menos em sede de procedimento de cognição sumário, se justifica a manutenção da obrigatoriedade da vacinação de crianças contra o sarampo, como regra geral. Com base nessas considerações, o Tribunal entendeu que a concessão de uma medida cautelar, voltada a afastar a aplicação da Lei de Proteção contra o Sarampo, dispensando as crianças da vacinação obrigatória, estaria fora de consideração. Na visão do órgão julgador, a matéria requer um exame detalhado, que não se mostra possível no marco de um procedimento sumário. A partir daí, a fundamentação convergiu para uma ponderação entre as vantagens e desvantagens da regra de vacinação obrigatória das crianças. O Tribunal partiu do pressuposto de que um juízo de ponderação de consequências aponta para a manutenção da regra vigente, em detrimento da pretensão dos pais, nos seguintes termos. Por um lado, se a medida cautelar fosse indeferida e, posteriormente, os recursos constitucionais fossem exitosos, a proibição legal das crianças frequentarem creches teria sido injustificada. Isso significaria que, enquanto isso, elas não poderiam ser atendidas nesses estabelecimentos, pelo fato de não terem sido vacinadas contra o sarampo, o que levaria seus pais a procurarem cuidados infantis em outros lugares, acarretando consequências econômicas adversas. Sem embargo, o Tribunal considerou que devido às medidas de contenção da pandemia do coronavírus, isto seria, de qualquer forma, parcialmente necessário no momento. Se, por outro lado, a medida cautelar requerida fosse concedida e os recursos constitucionais posteriores não obtivessem êxito, os interesses protegidos por direitos fundamentais de um elevado número de terceiros seriam afetados em grande intensidade, pela suspensão cautelar da execução dos dispositivos legais questionados. Esse debate ente as possíveis consequências da suspensão ou manutenção da Lei de Proteção contra o Sarampo foi novamente escorado, pelo Tribunal, na relação de complementariedade entre o procedimento sumário e ação principal. Para os julgadores, a compatibilidade do dever fundamental dos pais de fornecer e provar uma proteção vacinal suficiente contra o sarampo, como condição de acesso das crianças às creches públicas, prevista na Lei de Proteção contra o Sarampo, com os art. 2 inc. 2, frase 1, art. 3 inc. 1 e art. 6 inc. 2 da Lei Fundamental, deve ser deixada em aberto no curso de procedimentos sumários. O motivo é que, ao assim agir, o Tribunal contribui para proporcionar uma melhor proteção contra infecções por sarampo, em particular em face de pessoas que, regularmente, entram em contato com outros indivíduos na comunidade e em estabelecimentos de saúde. A partir daí o Tribunal lança mão de um poderoso instrumento de vinculação dos poderes públicos aos direitos fundamentais dos cidadãos, que é a figura dos deveres de proteção estatais.17 Nos termos expressos na decisão, a vacinação contra o sarampo em certas instalações comunitárias não se destina apenas a proteger o indivíduo contra a doença, mas sim, ao mesmo tempo, a evitar a sua propagação na população, o que será tão mais eficaz se a medida for utilizada para garantir que a taxa de vacinação da população seja suficientemente alta. Dessa maneira se contribui para proteger as pessoas que não podem ser vacinadas por motivos médicos, mas que correm o risco de sofrer de problemas clínicos severos, caso venham a ser infectadas. O objetivo da Lei de Proteção contra o Sarampo, lembrou o Tribunal, é exatamente a proteção da vida e da inviolabilidade corporal, à qual o Estado também é, em princípio, obrigado, em virtude de seu dever de proteção fundamental (Schutzpflicht) que decorre do art. 2 inc. 2, frase 1 da Lei Fundamental, nos termos da jurisprudência consolidada.18 A conclusão do Tribunal é que, ao comparar lado a lado as consequências a serem esperadas em cada caso, o interesse dos pais em ter seus filhos acolhidos e cuidados em uma creche pública, sem vacinação contra o sarampo, tem que recuar em relação ao interesse em se defender contra os riscos de infecção relacionados ao corpo e à vida de um elevado número de pessoas. Assim, o julgado encerra a sua fundamentação com a visão de que as desvantagens que estariam associadas à entrada em vigor das disposições contestadas da Lei de Proteção contra o Sarampo, após uma determinação posterior de sua inconstitucionalidade, não superam em extensão e severidade - e certamente não nitidamente - as desvantagens que ocorreriam no caso da suspensão temporária de uma lei que provasse ser constitucional.  4. Cotejo da argumentação jurídica Como se pode observar no relato apresentado, o Tribunal Constitucional Federal é muito cauteloso no momento de suspender a vigência de uma lei, tanto no controle abstrato quanto no concreto de normas. Em matéria de procedimentos de urgência, como era o caso, a chamada autocontenção do Tribunal fica ainda mais evidente. Todavia, além desta questão que diz respeito à institucionalidade, ínsita à separação dos poderes, fica evidente que a decisão dedicou elevada consideração à proteção da saúde e da vida das pessoas. Na prática, a resposta do Tribunal vai na direção de que a vontade dos pais tem que ficar em segundo plano, quando cotejada com o interesse e o dever estatais de evitar riscos de infecção, que venham a comprometer a saúde ou até mesmo a vida de um elevado número de outras pessoas. É como se em um juízo fático de ponderação, a decisão agregasse maior peso a esses bens constitucionais, em relação à convicção pessoal dos pais em relação à chamada postura antivacina. Recorrendo à figura dos deveres de proteção do Estado, o Tribunal consignou que o caráter compulsório da vacina em relação às crianças não se destina apenas a protegê-las contra o sarampo, mas, ao mesmo tempo, a evitar a sua propagação na população, o que se mostrará tanto mais eficaz quanto maior for a taxa de vacinação. Cabe, assim, ao Estado, por meio da atividade legislativa, encontrar os meios que, dentro da realidade fática vigente, logrem êxito na tarefa de imunizar a população contra doenças contagiosas, ciente de que por vezes tais meios exijam considerada intervenção em direitos constitucionalmente assegurados. Em outras palavras, o dever do Estado de proteger a vida e a integridade física das pessoas falou mais alto. Essa decisão talvez não cause grandes indagações, considerando os tempos em que vivemos, em particular no curso da pandemia do coronavírus, onde discussões de igual monta se colocam mundo afora. Entretanto, levando-se em conta a cultura alemã, os contornos da decisão adquirem outro tom, pois, em geral, os alemães são muito cautelosos no que diz respeito a obrigações de vacinação.19 Isso se deixa reconduzir até mesmo a razões conectadas à tragédia do Nacional socialismo, que fazem com que a proteção da inviolabilidade corporal seja tratada como um dos temas mais sensíveis na ordem jurídica alemã. Esse é o motivo pelo qual, mesmo diante da pandemia do Coronavírus, ainda não há nenhuma decisão política que diga que a vacinação é obrigatória na Alemanha, em que pese a intensificação dos debates, com as mais variadas posições. Atualmente, pode-se dizer que uma posição voltada à obrigatoriedade de vacinação contra o Coronavírus foi até então rejeitada na arena política, de modo que a questão da vacinação compulsória de crianças contra o Sarampo pertence ao conjunto das exceções e não da regra. É sempre bom lembrar que a decisão ora analisada foi tomada em procedimentos de urgência, o que significa que, ao menos teoricamente, poderá ser objeto de revisão, quando do julgamento dos recursos constitucionais que serão manejados nas ações principais. Contudo, pode-se arriscar o palpite de que a tradição do Tribunal Constitucional Federal tende a falar mais alto pela teoria dos deveres de proteção do Estado. Ademais, considerando que a Lei do Sarampo incide sobre crianças, pessoas que, como se sabe, são dignas de especial proteção por sua vulnerabilidade, constata-se uma tendência de manutenção da solução constitucional. O mesmo não se pode dizer, ao menos com segurança, em relação a uma obrigatoriedade de vacinação geral contra o Coronavírus, considerando a amplitude dos destinatários de eventual vacinação compulsória que, como dito, ainda não se faz presente na Alemanha. Por fim, abre-se o registro para a recente decisão do Tribunal Europeu de Direitos Humanos - TEDH, datada de 08 de abril de 2021, que confirmou a compatibilidade da vacinação obrigatória de crianças contra o sarampo, com o Art. 8 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que estipula o direito ao respeito à vida privada.20 Na visão do TEDH, não há incompatibilidade entre o dever de o Estado prevenir e combater a propagação de doenças contagiosas e a proteção da esfera privada, pelo fato de que a imunização compulsória pode-se revelar medida necessária em uma sociedade democrática, alinhada ao pensamento do melhor interesse das crianças, considerando a proteção advinda da chamada "imunidade de rebanho". Trata-se do primeiro caso julgado pelo TEDH sobre o tema. Em comum, tanto a decisão de maio de 2020 do BVerfG quanto a decisão do TEDH abarcam contextos fáticos que não se relacionam diretamente com a pandemia da Covid-19, muito embora tenham como pano de fundo a polêmica da vacinação obrigatória frente à contraposição por parte dos chamados grupos antivacina. O que fica desses julgados, dentre outros pontos que seriam dignos de registro, é em que medida o pensamento voltado à obrigatoriedade da vacina de crianças contra o sarampo influenciará as decisões que virão a ser tomadas no curso da pandemia da Covid-19, em particular no que tange à eventual concessão de privilégios às pessoas que comprovem ter adquirido a imunização por meio dos chamados "passes de vacina". Se por um lado o julgamento do TEDH pode ser visto como uma importante posição do sentido de influenciar a tese da vacinação obrigatória no caso do Coronavírus, por outro lado o número de pessoas atingidas pela eventual obrigatoriedade, com as polêmicas a ela inerentes, é consideravelmente maior, assim como suas repercussões. Isso significa que não há ainda como prever uma solução política uniforme dentro dos países da União Europeia e no mundo afora. Certo é que, por enquanto, além das vacinas construídas pela ciência, outras se fazem necessárias: vacinas contra teorias conspiratórias, desinformação e radicalismos. *Doutor em Direito do Estado pela UFRGS/ed. Ruprecht-Karls-Universität Heidelberg, Alemanha.  Professor do programa de pós-graduação da Faculdade de Direito da UFRGS; Pesquisador do Centro de Estudos Europeus e Alemães (CDEA). Professor da Escola da Magistratura Federal do Estado do Rio Grande do Sul - ESMAFE/RS, onde exerce a coordenação da matéria de direito constitucional. Professor de diversos cursos de Pós-graduação lato sensu da UFRGS, PUC/RS, AJURIS FEMARGS, FESDEPRS, FMP, dentre outros. Professor da Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Professor da Escola Superior de Advocacia da OAB/RS. Membro da Associação Luso-alemã de Juristas. __________ 1 1 BvR 469/20 e 1 BvR 470/20. Os dois procedimentos judiciais tramitaram em conjunto no Tribunal. 2 Infektionsschutzgesetz, na versão da Lei de Proteção contra o Sarampo e para o Reforço da Prevenção de Vacinação (Lei de Proteção contra o Sarampo) de 10/2/2020, que entrou em vigor em 1/3/2020. 3 § 32.1 BVerfGG. 4 Todos têm o direito à vida e à inviolabilidade corporal. 5 Todas as pessoas são iguais perante a lei. 6 O cuidado aos filhos e sua educação são o direito natural dos pais e a sua obrigação primordial. O Estado zelará pelo cumprimento dessas obrigações. 7 Muito embora a fundamentação do BVerfG tenha alertado de que não havia nos autos prova de contraindicação médica às vacinas. 8 § 93d Abs.2 BVerfGG. Juízes Harbarth, Britz e Radtke. 9 Verfassungsbeschwerde. O recurso constitucional permite em particular aos cidadãos fazer valer as suas liberdades garantidas pelos direitos fundamentais contra o Estado. Não é, contudo, uma extensão dos tribunais de recurso especializados, mas um recurso jurídico extraordinário em que apenas é examinada a violação de um direito constitucional específico. Os detalhes são regulamentados no Art. 93 inc.1 n.º 4a e 4b da Lei Fundamental e nos § 90ss da Lei orgânica do Tribunal Constitucional Federal. Mais informações aqui. 10 § 32.1 da BVerfGG. 11 BVerfGE 131, 47 (55); 132, 195 (232). 12 BVerfGE 7, 367 (371); 134, 138 (140). 13 BVerfGE 121, 1 (17ss); 122, 342 (361); 131, 47 (61). 14 BVerfGE 112, 284 (292); 121, (117s); 122, 342 (361); 131, 47 (61). 15 Na Alemanha, apenas o Tribunal Constitucional Federal é competente para decidir sobre a constitucionalidade das leis. Se um tribunal ordinário especializado considerar inconstitucional uma lei, cuja validade está em jogo na decisão, suspende o processo e obtém a decisão do Tribunal Constitucional Federal. Por esta razão, o procedimento é também chamado de apresentação por um juiz (Richtervorlage), regulamentado no Art. 100 inc. 1 da Lei Fundamental, bem como nos §§ 80 ss da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional Federal. Informações aqui. 16 BVerfGE 112, 284 (292); 121, 1 (17s); 122, 342 (361); 131, 47 (61), entre outros. 17 Sobre o tema, em detalhes, vide: DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019, p. 304ss. 18 BVerfGE 77, 170 (214); 85, 191 (212); 115, 25 (44s). 19 Esta é a observação da Juíza Sibylle Kessal-Wulf, que integra o Segundo Senado do Tribunal Constitucional Federal, em palestra proferida por ocasião do Seminário Virtual: Direito Constitucional e Vacinação - Direitos, Deveres, Tratamento Igualitário?, promovido pela Embaixada da República Federal da Alemanha no Brasil, no dia 26/2/2021 e moderado pela Titular da Coluna German Report, Prof.ª Dr.ª Karina Nunes Fritz. Disponível aqui. 20 Famílias tchecas recorreram ao TEDH contrariadas com a legislação do seu país que, de modo semelhante ao que ocorre na Alemanha, condiciona o ingresso de crianças em creches à imunização contra certas doenças. No caso, a lei tcheca determina a vacinação obrigatória das crianças contra nove enfermidades, entre elas, difteria, tétano e sarampo. TEDH, applications n.º 47621/13, entre outros, julgado em 08/4/2021. Disponível aqui.
terça-feira, 20 de abril de 2021

Entrevista: Manuel Carneiro da Frada

Quis o destino que essa coluna se seguisse à homenagem prestada a Claus-Wilhelm Canaris, um dos grandes nomes do direito mundial, recentemente falecido. O acaso foi sábio, pois nada mais pertinente que trazer na sequência ao leitor uma entrevista com um dos maiores discípulos do mestre alemão em Portugal, em cuja fala percebe-se a influência teórico-dogmática do renomado Professor da Universidade de Munique e uma linha de continuidade de pensamento - aperfeiçoada, por certo - entre dois grandes pensadores da atualidade. Com muita honra e alegria, o German Report dialoga, nesse momento histórico tão desafiador, com o Prof. Dr. Manuel António de Castro Portugal Carneiro da Frada, Professor Titular da Faculdade de Direito da Universidade do Porto. Carneiro da Frada licenciou-se pela Universidade Católica do Porto, em 1984, onde estudou com grandes nomes do direito português, como Baptista Machado e José de Oliveira Ascensão. O mestrado fora realizado na Universidade de Coimbra, em1994, sob orientação do Prof. Antunes Varela, bem conhecido do público brasileiro por sua densa obra e por seus estreitos laços acadêmicos e de amizade com nosso mestre Orlando Gomes. Em seguida, Carneiro da Frada doutorou-se, em 2002, na Universidade de Lisboa, onde foi assistente do renomado Prof. António Menezes Cordeiro. Sua tese de doutorado é, sem dúvida, o estudo mais completo sobre a responsabilidade pela confiança já escrito em língua portuguesa, publicado pela editora Almedina com o título: Teoria da confiança e responsabilidade civil. Durante o doutoramento, Carneiro da Frada esteve diversas vezes na Alemanha, frequentando a cátedra de Canaris, quem primeiro sistematizou a teoria da confiança no direito alemão em sua paradigmática obra: Vertrauenshaftung, publicada em 1971 pela editora Beck Verlag.   Nas estadias em Munique, Carneiro da Frada teve intenso contato com Canaris e seus discípulos, hoje renomados professores, como Hans-Peter Grigoleit, Reinhard Singer e Jörg Neuner, os dois últimos já entrevistados aqui nessa coluna.   Exímio germanista, idioma aprendido ainda no colégio alemão do Porto, Carneiro da Frada é profundo conhecedor do direito alemão. Além de Canaris, suas ideias são influenciadas ainda por nomes como Franz Bydlinski, Eduard Picker e Johannes Köndgen, os dois últimos com relevantes escritos sobre a culpa in contrahendo, mais conhecida no Brasil como responsabilidade pré-contratual, tema de meu doutoramento. Carneiro da Frada foi professor na Universidade de Lisboa entre 1985 a 2006 e, desde então, é titular de cátedra na conceituada Universidade do Porto, além de professor convidado da Universidade Católica de Lisboa. Paralelamente ao magistério, atua como advogado e árbitro, participando ativamente de inúmeras instituições, como a Association Henri Capitant, além de ser pesquisador visitante em universidades de renome, como a Universidade de Columbia (New York) e a milenar Faculdade de Direito de Bolonha (Itália). Carneiro da Frada é, de longe, um dos mais brilhantes juristas portugueses da atualidade, com escritos de referência e leitura obrigatória nas áreas da teoria do direito, direito civil, comercial, societário e corporate governance.   É autor de inúmeras obras, monografias, estudos, artigos e ensaios, dentre os quais destacam-se - ao lado da já mencionada Teoria da confiança e responsabilidade civil - um fabuloso estudo sobre os deveres ético-jurídicos de conduta nos contratos, intitulado Contratos e deveres de proteção, além do manual Direito civil - responsabilidade civil, todos publicados pela renomada editora Almedina. Seus escritos são leitura obrigatória para o público brasileiro, pois, para além do direito brasileiro fincar raízes históricas no direito português, em Carneiro da Frada tem-se acesso à melhor e mais pura dogmática civilista e comercial, herdeira e representante da melhor produção científica continental. Dessa forma, antes de buscar estrangeirismos, imperioso consultar a tradicional e rica doutrina lusitana. Nessa entrevista, Carneiro da Frada reflete, com peculiar profundidade, sobre os desafios no direito contratual provocados pela pandemia de Covid-19, mas também sobre impossibilidade, alteração superveniente das circunstâncias, boa-fé e tutela da confiança. Confiram: GR: A Europa ainda enfrenta a segunda onda de Covid-19, frustrando as esperanças de que a vida voltaria ao "normal" após o lockdown do ano passado. Como o Senhor avalia esse momento histórico que a humanidade está atravessando?  Carneiro da Frada: Tudo continua em curso e falta ainda a perspectiva para uma avaliação mais distanciada e consistente. Diria que a crise sanitária é, no flagelo que constitui para a nossa existência individual e colectiva, no plano económico, social e político, uma oportunidade para repensarmos a nossa vida e o que queremos que ela seja, pessoal e, conjuntamente, como sociedade.  A pandemia confrontou-nos com a nossa fragilidade de seres humanos, que nem os vastos conhecimentos da ciência ou o extenso domínio da técnica apagam, afinal: o super-homem das nossas sociedades mais desenvolvidas recebeu, porventura contrafeito, uma cura de humildade.  E fracassam as ideologias que respondem às grandes interrogações da existência com o enaltecimento do homem na ara das leis de um inexorável progresso, patentes que são as suas limitações. Mostra-se também ainda a artificialidade da recusa, no plano individual mas também da opinião pública e do diálogo social, do tema da relação do ser humano com Deus e a transcendência que aquelas interrogações também colocam, convocando resposta.  Abre-se-nos em todo o caso uma excelente oportunidade para recentrarmos a nossa existência no que mais importa, redescobrindo valores fundamentais e descortinando sentidos mais perduráveis e consistentes para a vida de cada um. A rejeição do individualismo, a busca de uma sociedade efectivamente solidária e o reforço das suas raízes de "comunidade", o respeito pela beleza da vida em todas as suas formas, a reharmonização do homem com a dádiva que é, para ele, a natureza, podem ser marcas muito positivas - é o que desejamos! - de uma crise que todos desejamos ultrapassar.   GR: A pandemia provocou disrupções nas cadeias de produção, distribuição e consumo em quase todo o globo, afetando profundamente a economia mundial. Segundo o Fundo Monetário Internacional, o mundo pode viver uma recessão só equiparável à grande depressão de 1929. Muitos contratantes estão com extrema dificuldade de cumprir os contratos por causa da perda ou redução significativa de seus rendimentos em razão do lockdown. O direito português tem mecanismos para resolver esse problema?  Carneiro da Frada: O problema, tal como é posto, não tem, nalgumas vertentes, precedente, e a pandemia oferece-nos, efectivamente, um laboratório muito vasto de análise de questões até aqui porventura não suficientemente equacionadas. Obviamente: no direito português, as dificuldades de cumprimento por parte dos devedores resultantes de um acréscimo do custo da realização do programa obrigacional (risco da prestação) podem ser aliviadas com recurso à resolução ou modificação do contrato por alteração das circunstâncias, verificados os respectivos requisitos.  E cremos mesmo que, em tese, uma grande alteração das circunstâncias como a que ocorreu presentemente com a crise sanitária não pode repercutir-se unilateralmente apenas numa das partes do contrato por ela directamente afectado, porque constitui risco de todos. Falta uma reflexão aprofundada sobre a matéria, mas já nos pronunciamos no sentido da necessidade de uma igualação das partes relativamente aos sacrifícios e prejuízos que a pandemia pode provocar.  As dificuldades económicas experimentadas pelo devedor não são porém, em Portugal como em muitos outros países, causa geral de exoneração perante o credor. Especificamente no que toca à perda de rendimentos em virtude da pandemia, julgo que ela não consubstancia, em si mesma, propriamente, uma alteração das circunstâncias. "Geld muss man haben", dizem os alemães: a falta de recursos económicos, mesmo se imprevista, não exonera o devedor.  Porém, a exigência do cumprimento dos contratos não pode implicar a ofensa ao necessário a uma existência conforme com aquele mínimo que exige a dignidade da pessoa humana (constitucionalmente garantida pelo art. 1.º da Constituição da República Portuguesa). À partida, as várias restrições de direito processual à penhorabilidade geral dos bens acautela-o, mas não pode excluir-se a directa incidência da exigência constitucional do respeito da dignidade da pessoa humana neste campo (como excepção válida do devedor ao cumprimento do contrato).  A questão não respeita às sociedades, que suportam sem limitações os riscos gerais da actividade económica a que se dedicam. Mas, no que respeita às pessoas propriamente ditas (físicas), ela coloca-se também fora do âmbito de uma alteração das circunstâncias como a que vivemos, muito embora esta a torne especialmente sensível.  Todos têm direito ao imprescindível para uma vida minimamente digna. Os interesses do crédito, particularmente se comercial, encontram nele um limite. (O abuso do direito, na forma de um exercício desproporcionado de um direito, pode também ser mobilizado no mesmo sentido.). Falo de situações extremas que, até pela complexidade de que muitas vezes se revestem, consentem várias soluções e reclamam, por isso, opções político-legislativas claras. Também para obviar à insegurança jurídica que se poderia gerar.  GR: Pode-nos dizer, em linhas gerais, como a teoria da quebra da base do negócio é aplicada em Portugal?  Carneiro da Frada: Tomo a referência à teoria da quebra da base do negócio num sentido amplo, correspondente ao do reconhecimento da possibilidade de resolver ou modificar um contrato por alteração das circunstâncias. E, de facto, o art. 437, nº. 1, do nosso Código Civil, ao admitir, verificados certos requisitos, a resolução ou a modificação do contrato "se as circunstâncias em que as partes fundaram a decisão de contratar tiverem sofrido uma alteração anormal" mostra no seu texto a influência que essa teoria exerceu no legislador histórico (em particular, no pensamento do Prof. Vaz Serra).  Sobre a sua aplicação, diria sumariamente o seguinte. Após um período inicial de aplicação menos intensa deste regime - correspondente ao início de vigência do Código Civil (1967) e à sua interiorização pela doutrina e pela cultura judiciária - segue-se hoje uma aplicação frequente e dinâmica desse regime. A crise financeira de 2008 teve um papel propulsionador de relevo, tendo-se multiplicado e aperfeiçoado a discussão em torno da figura: por exemplo, em virtude da chamada "questão dos swaps" entre nós debatida na própria opinião pública devido ao impacto político que tiveram os encargos financeiros que dela resultavam para o Estado português, e em que se colocou a pergunta de saber se contratos de swap que tenham vindo a revelar-se profundamente desequilibrados em virtude da intervenção das autoridades monetárias europeias no mercado das taxas de juro, fixando-as administrativamente, podiam ser ou não resolvidos por alteração das circunstâncias.  A resposta afirmativa que foi dada a essa questão pelos tribunais portugueses, como foi reconhecido pelo tribunal londrino que apreciou vários contratos de swap subscritos por importantes empresas públicas portuguesas perante (no caso) o Banco Santander, mostra o dinamismo e a relevância que o regime da alteração das circunstâncias adquiriu entre nós.  Apesar disso, confrontados que somos agora com uma nova "grande alteração das circunstâncias" constituída pela crise sanitária - uso a expressão no sentido técnico que adquiriu entre nós, cunhada a partir da "grande base do negócio" de Kegel, de modificação de bases gerais da vida em sociedade - verifica-se que temos ainda um enorme caminho a percorrer com vista a compreender e estruturar devidamente a distribuição dos riscos contratuais correspondentes a este tipo de alteração (deixei algumas reflexões para o efeito em A alteração das circunstâncias perante o Covid-19/Teses e reflexões para um diálogo, in Revista da Ordem dos Advogados, 2020, I-II, 153 ss).  Existe, a seu ver, um dever de renegociar no direito português? A questão que me coloca surgiu com acuidade no decurso da pandemia. Tenho expressado uma opinião divergente da sensibilidade até aqui manifestada pela maior parte dos meus colegas portugueses. Penso que não há na nossa ordem jurídica nenhum dever legal geral de, em nome da boa fé, renegociar o contrato sobrevinda uma alteração das circunstâncias. Nada impede, naturalmente, que as partes acordem então entre si uma modificação do contrato. O art. 437.º/1 prevê, no entanto, apenas o direito da parte lesada a obter do juiz a modificação do contrato segundo juízos de equidade. É uma pretensão que pode ser exercida nos tribunais, mas que não obriga a contraparte a qualquer iniciativa de renegociação do contrato propriamente dita. O exercício do direito potestativo à modificação do contrato não deve, naturalmente, ser indevidamente impedido, pois tal consubstanciaria sem dúvida uma violação da regra de conduta segundo a boa fé. De qualquer forma, não se permite à contraparte um novo exercício da sua autonomia privada negocial (reabrindo os termos de um contrato já celebrado, e possibilitando-lhe a sua renegociação). Impõe-se-lhe apenas a não obstaculização ou o acatamento do direito da contraparte à adaptação do contrato em função da alteração das circunstâncias. Tal não é propriamente renegociá-lo (reconstruindo a sua equação económica inicial e como oportunidade de procurar maximizar proveitos à custa alheia). O legitimado à modificação também não pode mais do que solicitar a adaptação do contrato segundo a medida exacta de equidade pedida pela quebra da base negocial ocorrida. Abrir genericamente as portas a uma renegociação dos contratos afectados pela pandemia conduziria infalivelmente, de parte a parte, a condutas oportunísticas e de exploração. O direito português bem andou ao - com grande realismo, e de forma muito prudente e pragmática - evitar aproveitamentos de alterações de circunstâncias em proveito próprio que o estabelecimento de um dever indiscriminado de renegociar infalivelmente propiciaria. Assim, se as partes não se entenderem quanto ao que consideram ou não ser o direito à modificação, o juiz decide. Elas só recorrerão, de resto, a tribunal porque não foi possível entenderem-se antes. No direito português, uma modificação do contrato requer por princípio o acordo delas (como estabelece o princípio do contrato proclamado no art. 406.º/1 do Código Civil). A boa fé não tem a virtualidade de obrigar as partes a renegociar um contrato, pois não é fonte de deveres de prestar, apenas comandando o modo da sua execução. Conto poder esclarecer melhor o que penso em estudo que tenho no prelo.  GR: O direito alemão considera o caso do anel no fundo do lago como impossibilidade fática, nos termos do § 275 II BGB, enquanto os casos chamados de impossibilidade econômica são solucionados pelo § 313 BGB com apoio na teoria da base do negócio. Como o problema é solucionado no direito português?  Carneiro da Frada: O direito português é similar. Apesar de o exemplo colocar de manifesto a fluidez - afinal de contas - da categoria da impossibilidade, o caso é efectivamente usado na nossa doutrina para exemplificar a impossibilidade. Talvez porque, de acordo com as concepções habituais do comércio  - talvez melhor, do próprio usuário do exemplo, que interpreta o caso segundo o propósito justificativo que presidiu à sua enunciação -, "não faça sentido" filtrar os resíduos de um lago para realizar a prestação. (São nítidas as insuficiências de uma compreensão puramente fisico-naturalística da impossibilidade, como o actual direito germânico reconhece.)  Parece claro que no direito português o limiar da impossibilidade se tem de adequar ao teor da prestação - conexionando-se assim com a interpretação e a integração do contrato (no qual a regra da boa fé pode introduzir já uma ponderação de razoabilidade e equilíbrio de interesses) - e que os esforços a prestar devem ser proporcionados. Afigura-se para o efeito relevante a compreensão usual das exigências que se colocam aos devedores no sector contratual em causa, designadamente quanto ao limiar das dificuldades que conduzem à sua exoneração por impossibilidade. Abaixo desse limiar, o art. 437.º/1 relativo à alteração das circunstâncias pode actuar; é esse o seu campo de intervenção.  GR: No Brasil, alguns autores sustentam que só cabe revisão contratual quando houver variação no valor original da prestação ou o custo da prestação se tornar excessivamente oneroso, i.e., quando houver aumento no custo do cumprimento. Porém, não caberia revisão nas situações em que a pandemia agravou a situação patrimonial do devedor, embora a Covid-19 e a paralisação parcial das atividades econômicas possam ser considerados eventos anormais e imprevisíveis, que alteraram profundamente as circunstâncias iniciais do contrato. A teoria da base do negócio soluciona esses casos?  Carneiro da Frada: Segundo o art. 437º/1 do Código Civil, a resolução e a modificação do contrato por alteração das circunstâncias requerem, efectivamente, a lesão do devedor. O conceito não está precisado, mas converge-se facilmente que o aumento do custo da prestação pode consubstanciar uma lesão para esse efeito. Como regra geral, cabe ao devedor, no nosso direito, o risco da prestação, isto é, o risco do agravamento das condições e dispêndios necessários para a sua realização. Só por si, portanto, esse agravamento não exonera o devedor nem o dispensa do pontual cumprimento das suas obrigaçoes.  Mas o aumento da sua onerosidade pode torná-la excessiva e, se - reporto-me ao direito português - decorrer de uma alteração das circunstâncias em que ambas as partes fundaram a decisão de contratar,  conduzir a que a exigência, por parte do credor, da obrigação assumida seja contrária aos princípios da boa fé. Nesse caso, o contrato é resolvido ou modificado. A onerosidade excessiva decorrente do que pode chamar-se a quebra da base do negócio torna-se então relevante.  A lei não cinge a onerosidade superveniente - no direito português, a lesão -  a uma circunstância que afecte apenas o contrato (eventualmente) a resolver ou modificar, e que dele seja privativa. Requer-se em todo o caso que haja uma repercussão negativa da alteração das circunstâncias nas condições de cumprimento do contrato em causa, ainda que mediata. Mas deve exigir-se sempre, naturalmente, que ela esteja numa relação de causalidade adequada da lesão por ele sofrida.  Compreende-se também que, quando a onerosidade afecta uma multiplicidade de contratos, a solução deva ser aferida em ligação com outros princípios que informam a actividade contratual do devedor no seu conjunto: por exemplo, no que toca aos prestadores de bens essenciais ou de serviços objecto de uma contratação de massa, com o princípio da igualdade de tratamento dos clientes.  Dou um exemplo: discutiu-se em Portugal, na sequência da crise financeira de 2008, se determinados produtos financeiros comercializados por um banco em larga escala podiam ou não dar lugar à modificação ou resolução dos respectivos contratos. Nesta situação, parece-me claro que a solução a aplicar deve ser universalizável, isto é extensível a todos os clientes em idêntica situação. Não é suficiente a demonstração pelo cliente de que uma dada alteração das circunstâncias lhe provocou uma lesão ut singuli se tal significar uma solução privilegiada relativamente à que se mostra possível para outros clientes em similar situação, ou se desse modo colocar em risco direitos idênticos dos demais.  No direito da insolvência e da recuperação de empresas parece adequado impôr-se ao devedor uma solução alargada e universal que distribua por todos os contratos que mantém com as suas contrapartes os riscos e contingências a que se viu exposto. Deve, porém, ter-se em conta que fora dos mecanismos próprios desse campo não é fácil dar relevo à necessidade de salvaguardar a igualdade com outros contratantes em situações idênticas. São os limites que os critérios de justiça distributiva encontram em relações comutativas.  Uma última nota para referir que a onerosidade excessiva não esgota o universo das alterações de circunstâncias. Os casos de frustração do fim ou de consecução do fim por outra via são de tal um expelo eloquente. Atentas as limitações do direito da impossibilidade, a teoria da quebra da base do negócio e - em Portugal, o disposto no art. 437.º/1 - podem contribuir para a sua solução.  GR: Sustenta-se no Brasil ainda que a teoria da base do negócio não teria fundamento na boa-fé, embora a figura tenha se desenvolvido no direito alemão à partir da Treu und Glauben do § 242 BGB. Qual a importância da boa-fé para a teoria da base do negócio? Entendo a pergunta como referida ao direito português. Na realidade, é sabido que a teoria alemã da base do negócio foi, com outras, considerada e ponderada pelo legislador histórico - refiro-me, em especial aos trabalhos preparatórios do Código Civil de 1967 elaborados pelo Professor Vaz Serra -, e que grande parte da doutrina lusa posterior se lhe acolheu. É também certo que o teor do art. 437.º/1, na parte em que alude à alteração das circunstâncias "em que as partes fundaram a decisão de contratar", se inspira claramente nessa conhecida concepção de Oertmann, mais tarde muito trabalhada por esse grande jurista alemão que foi Karl Larenz.  Em si mesma, a noção de base do negócio não aponta as valorações segundo as quais a sua frustração deve ser considerada pela ordem jurídica. Nesse sentido pode dizer-se que o  cerne, o critério normativo central do referido art. 437.º/1 é constituído pelos "princípios da boa fé", pois são estes que decidem se a exigência, pelo credor, das obrigações assumidas (ocorrida aquela alteração) é possível. A lei impede a sua afectação grave, mas não indica em que consistem tais princípios. Nem há paralelo legal da expressão "princípios da boa fé", preferindo o legislador integrar a palavra "boa fé" noutras locuções (procedimento de boa fé do devedor e do credor, no art. 762.º/2, limites impostos pela boa fé, no abuso do direito do art. 334, regras da boa fé no art. 275.º/2 a propósito da conduta das partes na pendência da condição, ditames da boa fé, no art. 239.º, como critério de integração de lacunas contratuais).  A doutrina mais recente tem notado que a expressão deve ser objectivada: estão em jogo exigências de justiça contratual - da relação contratual, sobrevinda a alteração -, sendo certo que essas exigências devem ser medidas em função do equilíbrio contratual inicialmente gizado pelas partes, ou seja da equação económica originária do contrato, para cuja fixação as representações das partes são evidentemente relevantes.  Não está em causa - mesmo se em muitos aspectos coincidente - o respeito pela vontade das partes, ainda que hipotética (ao contrário do que parece sugerir, na Alemanha, o disposto no § 313 do BGB). O apelo a tal vontade esconde, na realidade, no ordenamento jurídico português, ponderações de justiça objectiva. Confirma-o o facto de, no direito português, a modificação do contrato se fazer segundo juízos de equidade, uma medida objectiva: ainda que includente das valorações das partes, não se detém nelas.  Tal alarga o espaço da resolução ou a modificação do contrato por alteração das circunstâncias a casos que se encontram bem para lá das hipóteses de eleição da teoria da imprevisão francesa ou de um entendimento subjectivado da teoria da pressuposição windscheidiana. Por outro lado, confere realmente uma medida para a onerosidade excessiva, permitindo uma adequada operacionalização da noção nos sistemas jurídicos que acolhem esse conceito.  GR: Ao longo do século 20, doutrina e jurisprudência alemãs desenvolveram diversos institutos com base na boa-fé (v.g. culpa in contrahendo, violação positiva do contrato, culpa post factum finitum, teoria da base do negócio) e renovaram outros, como o abuso do direito e o próprio conceito de relação obrigacional, que hoje não retrata apenas o vínculo do qual emanam deveres prestacionais, pois pode produzir apenas deveres laterais de conduta, sendo, por isso, chamada relação de confiança ou relação obrigacional sem dever de prestação. Qual a importância da boa-fé para a modernização do direito obrigacional alemão e português?  Carneiro da Frada: Vou centrar-me no direito português. A modernização do direito português alcançada mediante a dinamização da boa fé é muito grande. Ela tem evidentemente características diferentes das de que se revestiu a evolução do direito germânico. Desde logo porque, na nossa ordem jurídica, a quase totalidade das figuras referidas - culpa in contrahendo, cumprimento defeituoso do contrato, alteração das circunstâncias, abuso do direito - se apresentam, praticamente desde o início, legislativamente consagradas ou cunhadas. Não temos, pois, em Portugal uma dinamização tão ampla e corajosa da boa fé como a que foi levada a cabo pelos tribunais alemães durante o século XX.  Apesar disso, mesmo tendo portanto em conta o acolhimento, pela lei, de tais figuras e institutos, a boa fé tem vindo a propulsioná-las muito activamente. Em virtude de uma apreciável mobilização da doutrina nesse sentido, sendo justo reconhecer, neste particular, a enorme importância da obra de Menezes Cordeiro sobre a boa fé, de meados da década de 80, nesse sentido.  O tempo decorreu, naturalmente, e, considerando a enorme proliferação de decisões proferidas com base na boa fé, assiste-se hoje a um esforço de racionalização e aprofundamento das suas exigências. Na maior parte dos sectores, o crescente analistismo da doutrina e a necessidade de diferenciar situações, trazendo à colação os critérios materiais de decisão, encarregaram-se já de relegar para o insatisfatório o pura e simples apelo à boa fé, em nome da previsibilidade das decisões e do controlo da racionalidade jurídica; não podendo também ignorar-se as "derivas" que, de forma muito criticável e indevida, a boa fé tem permitido, pelo empobrecimento do discurso jurídico que aqui ou acolá a expressão tem permitido, normalmente com desrespeito de exigências elementares do método jurídico.  Na reelaboração dogmático-crítica que muitas dessas figuras e institutos têm recebido, a boa fé é uma noção "de passagem", destinada a converter-se numa noção agregadora de argumentos materiais situados para lá dela própria. E tal, enquanto não alcançam maior maturidade e organização dogmáticas esses argumentos. Embora, no caso português, não possa esquecer-se a centralidade a que a sua difundida consagração legal obriga. O que, diga-se de passagem, requererá sempre uma cuidada e correcta metodologia na aplicação do Direito (que nem sempre se verifica).  GR: Em sua opinião, qual a importância da boa-fé na interpretação contratual?  Carneiro da Frada: De forma muito sumária, penso que o papel da boa fé não tem sido suficientemente valorado na interpretação contratual, e ao contrário do que ocorre no campo da convizinha integração, em que se reconhece, entre nós, aos ditames da boa fé o papel de critério integrador.  Posso avançar duas grandes razões. A primeira, a de que - como já apontei em estudo meu - na nossa doutrina a interpretação contratual tem sido, na maior parte das vezes, indevidamente dissolvida no tema mais geral da interpretação da declaração negocial, esquecendo-se a especificidade que apresentam os contratos em matéria de interpretação (cfr. o meu Forjar o Direito, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 11 segs). E, de facto, o nosso Código Civil não autonomiza nem menciona a boa fé enquanto critério da interpretação negocial.  A segunda razão tem a ver com o facto de na interpretação procurarmos um sentido para a declaração de vontade e, nesse juízo, uma valoração segundo a boa fé parece estar deslocada: quer-se ou não se quer, vale ou não vale um certo sentido da declaração negocial; não está em causa nenhuma apreciação do comportamento do sujeito ao emitir uma certa declaração negocial, nem depois de a produzir.  A verdade é que, num contrato, há que harmonizar as declarações das partes, simultaneamente declarante e declaratário. O que coloca a interpretação, ab initio, num plano diferente do da interpretação da declaração negocial (isolada). A interpretação procura, nos contratos, por entre a vontade das partes (rectius, nas suas declarações) um equilíbrio, uma razoabilidade intersubjectiva teleologicamente orientada pelos fins do contrato. A boa fé poderia expressá-lo, como no fundo faz em matéria de integração (em que teve essencialmente presente a realidade contratual). Mas o legislador português não terá visto com suficiente nitidez essa proximidade.  GR: O Código Civil brasileiro dedicou três cláusulas gerais à boa-fé: no art. 113 ela vem positivada como cânone interpretativo-integrativo do negócio jurídico; no art. 187 enquanto limite ao exercício abusivo do direito e o art. 422 diz que o devedor deve observar a boa-fé na formação e na execução do contrato. A teoria da base do negócio pode ser recepcionada em um ordenamento jurídico que possua essas cláusulas gerais, tendo em vista o lacunoso regime revisional legal, que não tutela todos os casos de alteração superveniente das circunstâncias?  Carneiro da Frada: A minha resposta é positiva. Penso que nada obsta à recepção ou ao desenvolvimento do tema da alteração das circunstâncias a partir da boa fé. Dado que a resolução ou modificação do contrato só se põem propriamente perante um programa contratual previamente estabilizado mediante a interpretação e a integração, e considerando também o âmbito muito geral do abuso do direito, julgo que é particularmente relevante para o efeito a regra que vincula as partes a uma conduta segundo a boa fé na execução do contrato.  Pode certamente ser contrário à boa fé que, sobrevinda uma quebra da base do negócio da qual decorre uma lesão grave para uma das partes, a outra insista no pontual cumprimento do contrato. Tratar-se-á, pois, de uma manifestação particular da regra de conduta segundo a boa fé. A quebra da base do negócio é alcançada por essa regra e constitui, dentro dela, uma sua expressão particular. Faz dentro dela sentido uma autonomização problemático-dogmática do tema da alteração das circunstâncias.  A boa fé - em qualquer uma das suas previsões no direito legislado brasileiro acima apontadas - tem certamente um enorme efeito expansivo: a sua consagração numa só dessas normas repercutir-se-á certamente no entendimento das demais e de múltiplas constelações de facto que, encontrando-se apertis verbis fora do alcance dessas normas, concitem ponderações análogas em nome da justiça (que é igualdade de tratamento).  Temos, de resto, o exemplo ímpar da lei civil alemã que, a partir de um só preceito do BGB - o § 242 - provocou em todo o século XX um fecundíssimo desenvolvimento jurisprudencial, que se ramificou por diversos institutos e figuras, entre as quais a alteração das circunstâncias (hoje codificada, na sequência da lei alemã de modernização do direito das obrigações, de 2002). Ora, se tal ocorreu num país habituado a um raciocínio formal e conceptualmente mais rígido, assim como a um método jurídico altamente preciso e diferenciador,  mais tenderá a ocorrer - ou a poder ocorrer - em culturas jurídicas às quais é inerente, por tradição (para não dizer pela legítima idiossincrasia de cada uma), uma grande flexibilidade e plasticidade argumentativa. No Brasil, a generosidade com que o seu direito legislado reconhece ou apela hoje à boa fé, quer em matéria de interpretação e integração do contrato, quer como critério do abuso do direito, quer ainda enquanto regra de comportamento na fase pré-contratual e, também, na da execução do contrato, parece legítimo dizer-se que a relativa estreiteza das normas constantes do art. 317 e do art. 478 do CC brasileiro (permitindo a revisão ou a resolução do contrato por alteração do valor da prestação ou por onerosidade superveniente) não obstará, portanto, ao reconhecimento da possibilidade de extinguir ou modificar o contrato se sobrevêem alterações das circunstâncias que se repercutam no contrato de modo diferente ao que essas disposições prevêem (por exemplo, perturbando o seu fim). Assim o têm também entendido vozes brasileiras, como a de Karina Nunes Fritz.  Neste contexto, a questão resume-se a saber se a teoria da base do negócio se apresenta ou não indispensável do ponto de vista do rigor e das necessidades da dogmática jurídica.  De facto, não me parece que o abuso do direito ou a regra de conduta segundo a boa fé - e, muito menos, a interpretação/integração do negócio - sejam sucedâneos perfeitos de uma doutrina da alteração das circunstâncias, que permitam dispensar a sua teorização autónoma. Não haverá dúvida de que essas figuras permitirão, na maior parte dos casos, resolver o essencial dos problemas postos. Só que as ponderações específicas que a alteração das circunstâncias coloca merecem, a meu ver, individualização e tratamento dogmático próprio, ainda quando as consequências jurídicas respectivas se possam justificar ao abrigo do abuso do direito ou da regra de conduta segundo a boa-fé.  De resto, a resolução ou a modificação do contrato escapam ao tipo de efeitos comummente associados ao abuso do direito ou à violação da regra da boa fé. Parece, pois, que também essas consequências justificam uma explicação dogmaticamente autonomizada relativamente ao que estatuem os preceitos do abuso do direito ou da regra de conduta segundo a boa-fé.  A teoria da base do negócio tem, portanto, total pertinência e  oportunidade. Mas é ainda, sobretudo, uma fórmula geral, compreensiva; que não dispensa de indagar as razões e os termos concretos segundo os quais se devem fazer repartir o risco da realidade subjacente ao contrato entre os contraentes. Na verdade, ela não parece, por si só, proporcionar uma justificação para a resolução ou a modificação do contrato: carece de ser precisada, e, sobretudo, de se integrar numa teoria da justiça do contrato.  Pode e deve certamente ser acolhida num espaço jurídico como o Brasil. Com a consciência embora de que, como em qualquer país, remete para um contexto referencial mais amplo que responda à questão de saber qual o verdadeiro fundamento da vinculatividade do contrato e não dispensa depois o desenvolvimento e a especificação de critérios de distribuição de risco que a operacionalizem.  Olhando pelo prisma do ordenamento jurídico português, venho defendendo - na esteira de um grande amigo do Brasil, o Prof. Doutor Oliveira Ascensão - que os "princípios da boa fé" que constituem o eixo do art. 437.º/1 significam que a justiça objectiva do contrato (rectius, da relação contratual) é o vero critério normativo central dessa norma (cfr., por exemplo, Forjar o Direito, Almedina, Coimbra, 2015, pp. 67-68). Uma justiça que tem de ter em conta as representações das partes, mas uma justiça objectiva, que não implica qualquer ilicitude de comportamento dos sujeitos, nem qualquer abuso por parte deles para poder desencadear as consequências que lhe estão associadas: a resolução e a modificação do contrato segundo juízos de equidade. E a jurisprudência sufraga-o também, independentemente de etiquetagens formais.  GR: A teoria da confiança e o terceiro gênero de responsabilidade ainda são pouco compreendidos no Brasil. O Senhor poderia explicar em linhas gerais o que entende por teoria da confiança?  Carneiro da Frada: Suponho que estará a referir-se de modo implícito à obra da minha autoria intitulada Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil (Almedina, Coimbra, 2004), que culminou uma longa investigação sobre essa temática. Nela procurei esclarecer as ligações entre a doutrina da confiança e o direito da responsabilidade civil, em termos que continuo a pensar correctos, independentemente de um ou outro acento que hoje daria.  A base de que parti estava na altura constituída, essencialmente, pela construção absolutamente fundamental de Canaris sobre a confiança (que fiquei a conhecer aprofundamente graças a algumas estadias de investigação que muito gentilmente me proporcionou junto da sua cátedra de Munique). Na doutrina portuguesa, havia então ecos muito fortes da sua obra, embora, nalguns aspectos, muito parcelares e, a meu ver, redutores.  Mas constituiu também base das minhas reflexões a crítica acesa que esse monumental esforço dogmático gerou na Alemanha, com posições muito adversas por parte de juristas de proa - várias delas negacionistas de uma doutrina da confiança no direito civil -, de que também na doutrina portuguesa havia notícia e seguidores.  Propus-me, pois, uma reconstrução dogmático-crítica da doutrina da confiança, e em especial no seio da responsabilidade civil, onde a crítica à confiança mais se fazia sentir. Pensava então - e não mudei de opinião - que era imprescindível depurá-la do que na realidade lhe não era inerente; e que, devidamente perscrutada, ela apresentava um núcleo teorético-dogmático muito forte, que, se fosse devidamente perfilado, seria capaz de resistir às investidas dos seus múltiplos inimigos. Cheguei com isso a um modelo que, na sua pureza teórica, me parece válido independentemente de consagração legislativa e cuja vigência, onde não acolhida pelo legislador, remete para o tema geral dos termos e requisitos da efectividade do Direito perante uma dada ordem jurídica.  Durante o percurso das reflexões que fiz dei-me conta de que havia incompletudes, discrepâncias e incoerências várias na doutrina de referência acerca da confiança. Procurei, pois, colmatá-las - rectius, ajudar a colmatá-las - propondo um quadro teórico-dogmático distinto. Chamei, nesse sentido, à minha concepção, uma "teoria pura da confiança".  Se bem que ainda e sempre tributária do esforço ímpar de Canaris - a Vertrauenshaftung deixara, é certo, na sombra a ligação à responsabilidade civil que me interessava, mas havia pelo menos um texto seu que a delineara no início da década de oitenta -, a minha proposta é essencialmente uma tentativa de aperfeiçoamento e integração das asserções relativas à confiança e ao direito da responsabilidade civil numa concepção que se pretende unitária, coerente e harmoniosa. Isolo, nesse sentido, a teoria pura da confiança de outras interpretações que concorrem para o domínio daquilo a que podemos chamar, inspirando-nos em Canaris, a terceira via da responsabilidade civil (para este autor efectivamente cingida e identificada, a meu ver excessivamente, com a confiança).  Em Portugal multiplicaram-se e são hoje dominantes as vozes contrárias contrárias a essa terceira via da responsabilidade civil. Mas penso que essa doutrina veio para ficar: ela corresponde a uma impostação lógica do pensamento presentes que sejam os limites da responsabilidade por violação de deveres de prestar e identificado que seja, de modo correcto também, a função e o âmbito da responsabilidade delitual. Não creio que estejamos perante realidades historicamente contingentes, dependentes de ordenamento para ordenamento. Há arquétipos e modelos de pensamento jurídico que desafiam o tempo e o espaço.  Passaram-se já alguns anos desde a publicação da minha investigação sobre o tema. Sem prejuízo de alguns esclarecimentos suplementares hoje conferiria às traves-mestras da concepção a que cheguei, mantenho a minha convicção sobre a sua pertinência. Sem deixar de chamar renovadamente a atenção para que ela convoca, sem dúvida, dimensões de teoria do Direito mais amplas. Contrariamente ao que esperava, não encontrei uma crítica profunda e consistente ao que escrevi. Mas, pela minha parte, continuo a pensar que há muito para reflectir, discutir e progredir no âmbito do magno tema da confiança e da responsabilidade civil.
quarta-feira, 7 de abril de 2021

Claus-Wilhelm Canaris: O "sistematizador"

A coluna German Report dessa semana, imbuída em profundo pesar, presta uma singela homenagem a uma das últimas lendas vivas do Direito Privado do século 20: Prof. em. Dr. h.c. mult. Claus-Wilhelm Canaris, professor Emérito da Faculdade de Direito de Munique, recentemente falecido. Canaris nasceu na cidade de Liegnitz em 1/7/1937, à época pertencente à província prussiana de Schlesien, filho de Constantin Canaris e Ilse Krenzer. Seu primeiro ano escolar foi cursado na cidade de Königsberg. Em seguida, fez o ensino fundamental em Miesbach e o ginásio em Düsseldorf, onde concluiu o Abitur, certificado de conclusão do ensino médio necessário para ingressar em qualquer universidade alemã. Entre 1957 e 1961, Canaris estudou Direito, Filosofia e Germanística em Paris, Genf e München, onde se tornou assistente do lendário Karl Larenz, seu eterno mestre, que ficara fascinado pelo pensamento lógico e sistemático do jovem assistente, então com 26 anos, durante um seminário de Metodologia Jurídica. Começava aí uma das mais belas relações de admiração e lealdade entre discípulo e mestre. Sob orientação de Larenz, Canaris doutorou-se em 1963 com a tese: "Identificação de lacunas na lei" (Die Feststellung von Lücken im Gesetz), obra de referência até hoje. Na época, ele havia se tornado o interlocutor favorito de Larenz, que lhe dedicou a obra Methodenlehre der Rechtswissenschaft, publicada originalmente em 1960, ao lado de Joachim Hruschka, Detlef Leenen e Jürgen Prölss. Após a morte de Larenz, Canaris passou a atualizar o livro, publicado com o nome de ambos desde 1995. A versão traduzida para o português foi a última revista por Larenz: "Metodologia da ciência do direito", publicada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Em 1967, Canaris concluiu sua paradigmática monografia, fruto da tese de livre-docência: Die Vertrauenshaftung im deutschen Privatrecht ("A responsabilidade pela confiança no direito privado alemão"), publicada em 1971 pela editora Beck Verlag. Concomitantemente à preparação da livre-docência, Canaris escreve o famoso estudo Systemdenken und Systembegriff in der Jurisprudenz, publicado em 1969 pela editora Duncker und Humblot e traduzida para o português por António Menezes Cordeiro com o título: "Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito", novamente editada pela Fundação Calouste Gulbenkian. Na dedicatória, lê-se: "Dedicado, em gratidão,  ao meu muito e venerado mestre", revelando a profunda ligação entre Canaris e Larenz, que permaneceu inabalável por toda a vida e lhe custou duros e injustos ataques de ferrenhos críticos do envolvimento de Larenz com o nacional-socialismo. Dessa forma, com apenas 30 anos, Canaris já havia produzido três grandes obras de referência para o direito ocidental. Para ficar apenas no campo do direito privado, basta dizer que Vertrauenshaftung é o estudo mais completo e sistematizado já escrito até agora sobre a tutela da confiança e da conduta ética no comércio jurídico. A obra revela a genialidade e o pensamento coeso, detalhista e sistematizado do autor, pois, partindo de um emaranhado confuso e desconexo de precedentes judiciais, princípios e topoi, Canaris consegue identificar a estrutura marcante do instituto e ordenar logicamente um mosaico de casos sob a rubrica da responsabilidade pela confiança, encaixada sem rupturas no sistema jurídico alemão. A tese revoluciona ainda ao demonstrar, com base em robustos fundamentos, que entre os dois ramos tradicionais da responsabilidade civil (contratual e extracontratual) existe uma zona cinzenta, uma "terceira via" autônoma: a responsabilidade pela confiança1. Em Vertrauenshaftung, Canaris desenvolveu um sistema harmônico sobre as diversas formas de proteção da confiança no comércio jurídico, permitindo que o princípio jurídico da proteção das expectativas legítimas fosse aplicado no processo de interpretação e aperfeiçoamento do direito. Segundo os estudiosos, a "descoberta jurídica" de Canaris foi tão inovadora que o coloca no mesmo patamar que Rudolf von Jhering, pai da culpa in contrahendo2, figura ainda obscura no direito brasileiro, onde é entendida como responsabilidade por rompimento abusivo das negociações, em indevido reducionismo à partir de estreita leitura do direito italiano3. Para se ter uma ideia da ressonância da criação de Canaris, basta atentar que Manuel Carneiro da Frada, Professor Titular da Universidade do Porto (Portugal), desenvolveu sua obra "Teoria da confiança e responsabilidade civil" à partir dos estudos do grande mestre alemão. Em 1968, Canaris foi convidado para assumir uma cátedra na Universidade de Regensburg (onde Reinhard Zimmermann, Diretor do Instituto Max-Planck de Hamburg, lecionaria décadas depois), mas declinou o convite, assumindo vaga na Universidade de Graz (Áustria). No ano seguinte, ele retornaria a sua terra natal para lecionar na Universidade de Hamburg, mas o destino logo o levaria de volta a Munique, cidade que ele amava e onde permaneceu por toda a vida. Com efeito, em 1972, Canaris foi chamado a suceder Larenz na Universidade de Munique, onde pôde dedicar-se intensamente à pesquisa e ao ensino do direito. Lá, lecionou Filosofia, Teoria e Metodologia do Direito, bem como Direito Civil, Comercial e do Trabalho. Canaris passou a vida pensando e refletindo sobre o sobre o direito. Seu modo de pensar e trabalhar exigiam dele muita disciplina, dedicação, sagacidade e criatividade, dizem seus assistentes mais próximos, hoje renomados professores. Sua dedicação era tão intensa que, absorvido em suas reflexões, ele não hesitava em telefonar tarde da noite para algum doutorando ou assistente a fim de discutir uma dúvida que lhe havia sido apresentada4. Nos momentos de pausa criativa, Canaris dedicava-se apaixonadamente à filosofia, literatura e história da arte, revelando sólida formação humanista, sem descuidar dos pequenos prazeres da vida como a jardinagem e filmes de faroeste. Sua esposa, Rena Canaris, partilhava com ele a paixão pelo teatro, por música clássica e ópera, transformando a residência do casal em um rico e pulsante ambiente intelectual que fascinava os frequentadores5. Devido à genialidade e originalidade de sua produção acadêmica, Canaris foi agraciado com o título de Professor honoris causa em renomadas universidades como Londres, Veneza, Lisboa, Madri e Atenas. No Brasil, ele recebeu a distinção em 2012 na PUC do Rio Grande do Sul. Em 2000, foi nomeado pelo Ministério da Justiça para integrar a Comissão de Reforma do Código Civil Alemão (Bürgerliches Gesetzbuch), que modernizou o antigo direito das obrigações do BGB ao positivar diversos institutos jurídicos desenvolvidos em doutrina e jurisprudência ao longo do século 20, muitos dos quais sob influência direta e marcante de Canaris. Com seu pensamento dogmático, racional e sistemático, Canaris influenciou intensamente a construção do moderno direito obrigacional alemão, que, devido a suas soluções lógicas e equilibradas, exerce forte influência na Europa, Ásia e América do Sul. Canaris recebeu em vida todas as honrarias que um acadêmico poderia aspirar, inclusive a Cruz do Mérito da República Federal da Alemanha pelos serviços prestados à ciência do país. Nada obstante, levou uma vida pacata, dedicada ao direito e à família. Adoentado há alguns anos, faleceu em 5/3/2021, mas, a pedido da família, a notícia só foi divulgada após o funeral, que na Alemanha pode durar algumas semanas devido aos trâmites burocráticos, não ocorrendo imediatamente como no Brasil. Divulguei, com profunda tristeza, a notícia do falecimento do grande mestre dia 1/4/2021 em minhas redes sociais, antes da nota de pesar emitida pela Universidade de Munique e publicada no jornal alemão Süddeutsche-Zeitung em 3/4/2021. Canaris deixa um vazio abissal no direito ocidental. Ele foi um grande sistematizador e criador do direito. Com sólida dogmática, aguçada racionalidade e criatividade, ele marcou a ciência do direito. Sua densa e extensa obra ficará para a posteridade, como um legado jurídico-cultural da humanidade.   No Brasil, um de seus livros mais conhecidos - ao lado do "Pensamento Sistemático" - é, sem dúvida, "Direitos fundamentais e direito privado", vertido para nosso idioma por Ingo Wolfgang Sarlet e Paulo Mota Pinto, e publicado pela editora Almedina. A monografia é fruto de espetacular palestra proferida no ano de 1985 em congresso jurídico na Alemanha. Na época, Canaris explicou, de forma precursora, o modo de eficácia dos direitos fundamentais sobre o direito privado, demonstrando que essa eficácia se processa de forma diferente de acordo com os destinatários dos direitos fundamentais, apontando, dessa forma, para uma distinção até então ignorada pelas correntes da eficácia direta e da eficácia indireta6. A produção de Canaris não se esgota aí. São dezenas de livros e mais de duzentos artigos publicados. Por óbvio, o que impressiona não é a quantidade, mas sim a qualidade teórico-dogmática de seus escritos, que o colocaram no olimpo jurídico e ajudaram a consolidar o direito alemão como uma ciências jurídicas mais importantes e influentes do mundo. Ótima lição para nossa agência de fomento científico (Capes), que exige dos pesquisadores uma produção fordista frenética de trabalhos científico quando, na verdade, nenhum ganho substancial traz à ciência do direito a publicação de milhares de artigos inúteis. O direito requer tempo para pesquisa, estudo e reflexão. Só assim se produz uma ciência jurídica de qualidade, apta a ser ouvida e discutida no plano internacional, desafio ainda não superado pela doutrina civilista nacional. Dentre os manuais que Canaris deixou para a posteridade, merecem destaque - sem qualquer ordem de importância: "Direito comercial" (Handelsrecht) e "Direito dos contratos bancários" (Bankvertragsrecht), cuja terceira edição, datada de 1995, já contava com mais de 800 páginas. Nelas, o leitor encontra uma exposição estruturada e sistematizada dessa importante e complexa área jurídica. Ainda no campo comercial, Canaris comentou durante décadas o famoso Staub HGB, o primeiro comentário ao Código Comercial alemão (Handelsgesetzbuch) concebido por Herman Staub, conhecido por aqui como o criador do instituto da violação positiva do contrato, esboçada no texto Die positiven Vertragsverletzungen und ihre Rechtsfolgen, de 1902 e republicada no ensaio: Die positive Vertragsverletzung, em 1904. Staub - que injustamente é taxado no Brasil, em tom de descaso, como um "simples" advogado de Berlim, a fim de desqualificar sua teoria pelo fato dele nunca ter ocupado uma cátedra, o que se se explica exclusivamente a sua origem judaica7 - escreveu os comentários ao HGB em 1893, antes, portanto, da entrada em vigor do BGB em 19008. A obra, composta por quinze volumes atualizados pelos mais renomados comercialistas alemães, é ainda hoje o mais respeitado comentário ao Código Comercial alemão, tendo Canaris assumido o volume 8 abordando, com costumeira profundidade, os § 343-362 do HGB, posteriormente com o auxílio de seu discípulo Ingo Koller, Professor Emérito da Universidade de Regensburg. No campo do direito civil, Canaris dedicou-se apaixonadamente ao direito obrigacional, publicando centenas de artigos sobre os mais diversos temas: autonomia privada, proteção da confiança no comércio jurídico, dogmática dos deveres de conduta da boa-fé, culpa in contrahendo, responsabilidade de terceiro, violação positiva do crédito, contrato com eficácia de proteção para terceiros, tutela externa do crédito, controle do conteúdo do contrato, enriquecimento sem causa, direito da perturbação da prestação, impossibilidade, mora, inadimplemento, cumprimento defeituoso, responsabilidade do representante, responsabilidade dos peritos,  regime de vícios na compra e venda, além de uma infinidade de outros temas fundamentais.  Sua obra de referência nessa área é, sem dúvida, o "Manual de direito das obrigações" (Lehrbuch des Schuldrechts), tomo 2, volume 2, escrito inicialmente por Larenz e praticamente reescrito por Canaris, embora com o nome de ambos, em clara demonstração de admiração, respeito e lealdade ao venerado mestre.  As ideias de Canaris penetraram no direito brasileiro, seja diretamente através de seus discípulos, seja indiretamente por meio da doutrina portuguesa e italiana. Seu contributo para a dogmática dos direitos fundamentais tem sido recepcionado por aqui, como atesta Ingo Wolfgang Sarlet, inclusive no âmbito da jurisprudência do Supremo Tribunal Federal9. No direito privado, merece destaque o reconhecimento da responsabilidade pela confiança como um terceiro gênero autônomo, situado em uma zona cinzenta entre a responsabilidade contratual e a responsabilidade extracontratual. Nesse sentido, confira-se o pioneiro precedente constante do REsp. 1.309.972/SP, julgado em 27/4/2017 pela 4ª. Turma do Superior Tribunal de Justiça sob a relatoria do e. Min. Luís Felipe Salomão10. O caso diz respeito ao rompimento imotivado das negociações, que é uma das hipóteses de responsabilidade pré-contratual, mais conhecida no direito alemão pela terminologia que lhe deu se "descobridor", Jhering: culpa in contrahendo, a expressar a responsabilidade pela violação culposa de um dever de conduta durante o contrair, isto é, durante a fase negocial preparatória do contrato. Trato do tema em diversos artigos, mostrando, com base na doutrina de Canaris, por quê a violação dos deveres ético-jurídicos de conduta, deduzidos do princípio da boa-fé objetiva do art. 422 CC2002, não se deixa enquadrar, a rigor, nem como responsabilidade aquiliana (vez que não se viola o dever de não lesar, de eficácia erga omnes), nem como responsabilidade contratual (vez que não se viola um dever de prestação). Foi a constatação de que existe, a rigor, um terceiro gênero de responsabilidade que levou a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça a afastar a teoria monista da responsabilidade civil, que - sob a falaciosa superação da dicotomia milenar entre responsabilidade aquiliana e responsabilidade contratual - pretendia unificar o prazo prescricional de ambas em três anos, nos termos do art. 206 § 3 V CC2002. No julgado, a teoria de Canaris foi decisiva para mostrar a superação da teoria unitária e, consequentemente, afastar a ideia de prazo prescricional uno, fixando a Corte em dez anos a prescrição das pretensões contratuais (art. 205 CC2002), salvo prazo especial previsto em lei11. Trata-se do EREsp. 1.281.594/SP, julgado pela Corte Especial em 15/5/2019 com relatoria para acórdão do e. Min. Felix Fischer.  Sem dúvida, a obra de Canaris ainda precisa ser estudada entre nós para que o direito brasileiro possa se beneficiar da riqueza de suas ideias, modernizando-se sob sólidas bases. Ele marcou para sempre a ciência do direito, entrando para a história como um dos maiores juristas do século 20. Isso é motivo suficiente para que sua obra seja estudada e difundida por aqui. A ele toda honra e gratidão. __________ 1 SINGER, Reinhard. Claus-Wilhelm Canaris - der "Entdecker". In: Deutschsprachige Zivilrechtslehrer des 20. Jahrhunderts in Berichten ihrer Schüler. Stefan Grundmann, Karl Riesenhuber (org.), Bd. 2, de Gryuter, 2010, p. 3 (manuscrito cedido pelo autor). 2 GRIGOLEIT, Hans Peter; SINGER, Reinhard et. al. Vorwort. In: Festschrift für Claus-Wilhelm Canaris zum 70. Geburtstag. Andreas Heldrich et al (org.), v. 1, München: Beck, 2007, p. VIII. 3 Sobre o tema, permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo no direito alemão. Revista de Direito Civil Contemporâneo 15 (2018), p. 161-207. 4 GRIGOLEIT, Hans Peter; SINGER, Reinhard et. al., op. cit., p. IX. 5 GRIGOLEIT, Hans Peter; SINGER, Reinhard et. al., op. cit., p. X. 6 SINGER, Reinhard. Op. cit., p. 2. 7 HENNE, Thomas. Diskriminierungen gegen 'jüdische Juristen` und jüdische Abwehrreaktion im Kaiserrecht - von Samuel zu Hermann Staub. In: Thomas Henne, Rainer Schröder, Jan Thiessen (org.), Anwalt - Kommentator - 'Entdecker`: Festschrift für Hermann Staub zum 150, Berlin: de Gruyter, 2006, p. 11, 14, 18 ss., onde o autor afirma que esse foi um problema específico para uma geração de juristas do qual foi vítima ainda o famoso publicista Georg Jellinek, também judeu e contemporâneo de Staub. Henne conclui que Staub nasceu muito tarde e faleceu muito cedo para ter uma carreira universitária, pois a situação só começou a melhorar na Alemanha a partir de 1918. Sintomático é o registro de que apenas nesse ano foi admitido o segundo jurista judeu como juiz do Tribunal Imperial, Georg Schaps, à época magistrado em Hamburg. Op. cit., p. 22. 8 SCHMIDT, Karsten. Staub in "Stab's Kommentar"- Exemplarisches zum Handelsrechtsbild eines Klassikers. In: Thomas Henne, Rainer Schröder, Jan Thiessen (org.), op. cit., p. 110. 9 Direitos fundamentais e direito privado: notas sobre a influência da dogmática alemã dos direitos fundamentais, em especial a contribuição de Claus-Wilhelm Canaris, no direito brasileiro. Revista de Direito Civil Contemporâneo 12 (2017), p. 63-88. 10 Permita-se remeter a NUNES FRITZ, Karina. A culpa in contrahendo como terceira via de responsabilidade civil. In: Da estrutura à função da responsabilidade civil. Alexandre Guerra et al. (coord.), Foco, 2021 (prelo). 11 NUNES FRITZ, Karina. Comentários ao REsp. 1.280.825/RJ: prazo prescricional de dez anos para a responsabilidade contratual? Revista IBERC 2 (2019), p. 1-24 e Revista Direito da Responsabilidade, ano 1, 2019, p. 731-760, ambos disponíveis online para download.
Um ano após a Organização Mundial de Saúde ter declarado, em 11/3/2020, que a pandemia de Covid-19 espalhara-se por todos os continentes, o Brasil enfrenta o pior momento da doença: são 12,5 milhões de infectados e 312 mil óbitos em um ano. No último dia 24/3/2021, o país chegou a contabilizar mais de 3.158 mortes em 24 horas, o que dá uma média de mais de duas mortes por minuto1. Para piorar, 24 das 27 unidades federativas estão com taxas de ocupação de leitos de UTI superior a 80%, com filas de espera nos maiores hospitais do país. Trata-se do maior colapso sanitário e hospitalar da história do Brasil, segundo a Fiocruz2. E mais: o país virou o epicentro mundial da pandemia, colocando em risco não apenas os vizinhos latino-americanos, mas toda a humanidade, alertam os especialistas3. Diante desse quadro dramático, muitos governos estaduais e municipais endureceram as (acanhadas) medidas de combate à pandemia e decretaram distanciamento social, toque de recolher, fechamento do comércio não essencial e/ou restrições de horário de funcionamento. E, se depender da comunidade científica, as medidas devem endurecer, pois os epidemiologistas clamam por lockdown nacional como forma frear a propagação desenfreada do vírus4. A situação está tão dramática que até economistas, banqueiros e empresários aderiram à ideia em manifesto publicado dia 21/3/20215. Isso reascende a polêmica discussão em torno da revisão contratual, principalmente dos contratos de locação comercial, atingindo em cheio os lojistas, que desde o ano passado amargam vultuosos prejuízos com o abre-fecha e as restrições de funcionamento do comércio. O Judiciário tem sido, em geral, sensível à situação e revisto inúmeros contratos sob os mais diversos fundamentos, como ocorreu recentemente na quebra de braço entre lojistas e shoppings centers pela substituição do índice IGPM pelo IPC-A na correção do aluguel mensal. Várias decisões readaptaram os contratos, em caráter de urgência, permitindo a troca dos índices6. Na doutrina, diversos fundamentos foram utilizados para justificar a revisão contratual. Uma das linhas argumentativas mais convincentes sustenta a aplicação analógica do art. 567 CC2002, que permite a redução e até a suspensão total do aluguel em caso de vício na coisa locada, vez que o fechamento dos estabelecimentos comerciais pelo Poder Público teria "deteriorado" os poderes do locatário e o locador estaria descumprindo seu dever de manter a coisa em estado apto ao uso ao qual se destina (art. 566 I CC2002). Diante da falta de consenso doutrinário, vale à pena lançar os olhos no direito alemão que, a despeito do distanciamento linguístico, está muito próximo do direito brasileiro, pertencendo ambos à grande família jurídica romano-germânica, base comum ao direito europeu e latino-americano. Legislador emergencial alemão diz que fechamento da loja é quebra da base do negócio Na Alemanha, no início da pandemia também surgiu a dúvida sobre se o fechamento dos estabelecimentos comerciais pelo Poder Público, como medida de contenção do vírus, poderia ser qualificado como vício na coisa, nos termos do § 536, inc. 1 do BGB, equivalente direto do art. 567 CC2002. Algumas decisões de primeira instância chegaram a encampar a tese, enquanto outras entediam tratar a hipótese (fechamento das lojas por determinação governamental) de típico caso de quebra da base do negócio jurídico ou - mantendo-se fiel à expressão positivada no § 313 BGB - perturbação da base do negócio (Störung der Geschäftsgrundlage). Para por fim à insegurança jurídica nos tribunais, o Legislador interveio e no apagar das luzes de 2020 acrescentou o § 7 ao art. 240 da Lei de Introdução ao BGB - Einführungsgesetz zum Bürgerlichen Gesetzbuch (EGBGB) - com a seguinte redação: "§ 7 Perturbação da base do negócio de contratos de locação e arrendamento (1) Se imóveis ou espaços alugados, que não são imóveis residenciais, em decorrência das medidas estatais de combate à pandemia de Covid-19, não forem utilizáveis para exploração pelo locatário, ou só o forem com consideráveis restrições, presume-se ter-se alterado profundamente, após a conclusão do contrato, uma circunstância, nos termos do § 313 inc. 1 do Código Civil, que se tornou base do contrato de locação. (2) O inciso 1 deve ser aplicado, no que couber, aos contratos de arrendamento."7 Com isso, o Legislador quis deixar claro que o fechamento das lojas e estabelecimentos comerciais pode - rectius: deve, em princípio (presunção juris tantum) - ser visto como uma circunstância grave que provocou (e está a provocar) profunda alteração na base dos contratos de locação comercial e arrendamento. Isso, porém, não autoriza por si só o juiz a revisar os contratos. Como já exposto em diversas ocasiões aqui no German Report, não é toda alteração posterior das circunstâncias essenciais para a formação da decisão de contratar, presentes no momento da celebração, que autorizam a readaptação contratual. A alteração posterior na base do negócio é apenas um dos pressupostos para a revisão, chamado "elemento real" pela doutrina alemã8, pois objetivamente apurável na realidade dos fatos no caso concreto. É necessário ainda que o cumprimento do contrato, tal como originalmente acordado, tenha se tornado irrazoável para a parte afetada ("elemento normativo") e que se possa concluir à partir da análise de todas as circunstâncias do caso concreto que os contratantes, se tivessem antevisto a alteração nas circunstâncias, teriam celebrado o contrato com outros termos ou quiçá desistido do negócio ("elemento hipotético"). E aqui o julgador (juiz ou árbitro) deve analisar todas as circunstâncias do caso concreto, principalmente a repartição - negocial ou legal - dos riscos, muito embora essa distribuição, conquanto deva, em princípio, prevalecer, não tem o efeito de impedir totalmente a revisão contratual. O § 7 do art. 240 EGBGB, portanto, presume preenchido apenas um dos pressupostos configuradores do instituto da quebra da base do negócio ao reconhecer expressamente um fato inegável, qual seja, que o fechamento dos estabelecimentos comerciais por ordem do Poder Público é evento excepcional apto a alterar profundamente a base de inúmeros contratos de locação comercial, pois as partes, ao contratar, não contaram (e nem poderiam contar) que haveria uma pandemia global que provocaria uma paralisação generalizada nos estabelecimentos comerciais em diversas partes do mundo, reduzindo a zero o faturamento ou acarretando abruptas perdas substanciais9. Dessa forma, reina consenso na Alemanha de que o fechamento de estabelecimentos comerciais não configura impossibilidade ou vício na coisa, mas sim quebra da base do negócio. O grande desafio tem sido apurar no caso concreto quando o cumprimento e a manutenção inalterada do contrato torna-se irrazoável para o locatário. Enquanto alguns julgados têm exigido que o locatário demonstre que o cumprimento da prestação tal como acordada - ou, como diz a lei, a manutenção inalterada do contrato - põe em risco sua existência econômica (wirtschaftliche Existenz), outros  entendem que bastaria a prova da excessiva dificuldade de prestar, dispensando o risco da ruina, requisito não elencado no § 313 BGB. Nesse sentido é a decisão da primeira instância (Landgericht) da comarca de Mönchengladbach, cidade localizada na região de Nordrhein-Westfalen. A decisão do LG Mönchengladbach A decisão foi proferida no processo 12 O 154/20, julgado em 2/11/2020 nos autos de ação de cobrança movida pelo locador face a loja de sapatos (locatária) que ficou fechada entre 23/3/2020 e 2/5/2020 e que, por isso, não queria pagar o aluguel do período. A ação foi julgada parcialmente procedente, condenando a locatária a pagar metade do aluguel do período, deduzido o valor pago a mais em março. Da mesma forma que o juiz de Heidelberg, cuja decisão foi comentada no German Report em 1/12/2020 (clique aqui), o magistrado de Möchengladbach afastou a hipótese de vício, pois, segundo o direito alemão, esse só se configura quando o problema diz respeito a qualidades concretas da coisa locada. A jurisprudência alemã até admite que medidas governamentais ou legislativas, que impedem ou restringem consideravelmente o uso da coisa, possam ser qualificadas como vício, legitimando a redução do aluguel. Mas, para isso, a causa do vício tem que estar diretamente relacionada com o bem locado, isto é, com suas caraterísticas, estado ou localização, mas não com circunstâncias pessoais ou operacionais do locatário. Porém, as atuais restrições governamentais de uso do imóvel não decorrem de problemas nas características, no estado ou na localização da coisa locada, vale dizer, de defeito relacionado diretamente com o bem. E isso afasta a hipótese de vício na coisa. Além disso, em última análise, a ordem de fechamento (total ou parcial) da loja não atinge a coisa em si, mas o êxito (rentabilidade) do negócio, risco exclusivo do lojista. O LG Möchengladbach, porém, entendeu que o risco do fechamento da loja motivado pela necessidade de combate à pandemia - vale dizer: condicionado por razões externas ao imóvel e à operação do lojista - não pode ser imputado exclusivamente ao locatário, devendo ser suportado por ambos os contratantes e, por isso, reduziu em 50% o valor do aluguel e das despesas operacionais fixas, cabendo ao lojista responder integralmente pelos custos variáveis, baseados no efetivo consumo.  Em recentíssima decisão, o Tribunal de Justiça de Munique seguiu a mesma linha afirmando que o risco de ruina do devedor não é pressuposto para a revisão contratual. A decisão do OLG München Trata-se do processo OLG München 32 U 6358/20, julgado em 17/2/2021 referente a ação de cobrança de aluguel de loja fechada no período de 18/3/2020 a 27/4/2020. Em suma, o Tribunal afirmou que a situação não configura vício, nem impossibilidade, mas sim quebra na base do negócio, não configurada, porém, no caso concreto, porque a loja não logrou demonstrar a excessiva dificuldade de prestar e, consequentemente, a irrazoabilidade da manutenção inalterada do contrato. a) Fechamento da loja não é vício Para a Corte, o fechamento da loja não pode ser caracterizado como vício, porque a causa para a proibição de funcionamento não está diretamente relacionada com o bem locado e qualquer medida (legislativa ou governamental) que, embora não relacionada diretamente com o objeto do contrato, comprometa o êxito do negócio, faz parte, em princípio, da esfera de risco do locatário, que suporta o risco da utilização - inclusive o de auferir proveito econômico - da coisa locada. É o caso da proibição ou restrição de funcionamento dos estabelecimentos em razão da pandemia, pois "o obstáculo ao uso (fechamento da loja) não diz respeito à concreta característica, ao estado ou à localização do objeto da locação"10. Como bem observado pelo OLG München, "a ordem geral não vincula a proibição [de funcionamento] à substância de uma determinada coisa locada ou ao seu estado. Como a ordem geral vigorava para toda a Bavária, também a localização do objeto da locação não tinha qualquer importância"11. Por isso, o fechamento das lojas motivado pela pandemia não pode ser imputado ao locador, sendo equivocado supor estar ele descumprindo o dever de garantir o uso da coisa durante o tempo da locação. Para o Tribunal, o locatário não pode pretender que o locador assuma todo e qualquer risco que comprometa a operação de seu negócio, principalmente quando a causa impeditiva do uso não estiver diretamente relacionada com a qualidade, o estado ou a localização do bem. O contrato de locação, disse o OLG München, não cria para o locador o dever de impedir ou afastar a proibição de funcionamento da loja - motivada exclusivamente pela necessidade de frear a propagação da pandemia - a fim de permitir o pleno funcionamento do negócio do locatário. Em outras palavras: o locador não tem um dever ilimitado e absoluto de garantir, em todas as situações, o uso pleno da coisa, acordado no contrato. Isso não significa, porém, que o locatário tenha que suportar sozinho o risco da pandemia. Até porque a situação epidemiológica - e todas as suas consequências concretas - não foram antevistas por nenhuma das partes. Elas, no momento da conclusão do negócio, não imaginaram que durante o desenrolar do contrato haveria uma pandemia que provocaria profundo impacto no comércio mundial e nas atividades econômicas em geral. Ao contrário, elas partiram do pressuposto de que o funcionamento do negócio ocorreria dentro da normalidade e não seria vedado por fatores alheios ao objeto ou à pessoa dos contratantes. Essa representação comum, disse o Tribunal a quo, fez parte da base do negócio, embora o regular desenvolvimento da operação não tenha sido elevado a condição contratual. b) Fechamento da loja como quebra da grande base do negócio Uma vez que o regular desenvolvimento do negócio fez parte da base do negócio, o fechamento da loja - repita-se: motivado pela pandemia de Covid-19 e não por qualquer problema concreto relacionado com o objeto da locação ou com a pessoa dos contratantes - provocou a quebra da chamada "grande base do negócio" (große Geschäftsgrundlage). Antes de adentrar na questão da perturbação da base do negócio do § 313 BGB, o OLG München salientou que a lei emergencial do coronavírus - a chamada Corona-Gesetz, de 27/3/2020 - não é lei exaustiva capaz de impedir a eficácia dos instrumentos gerais do BGB destinados a solucionar os diversos tipos de perturbações que podem afetar o programa obrigacional durante a execução contratual, a exemplo da alteração superveniente das circunstâncias. Isso se justifica uma vez que o legislador limitou-se a regular um problema específico (proibição de despejo e denúncia) por meio de solução temporária (lei emergencial), sem pretender regular de forma exaustiva os efeitos da pandemia sobre os direitos e deveres das partes, disse a Corte de Munique.  Vale lembrar que a citada lei acrescentou o § 2 ao art. 240 EGBGB a fim de proibir o despejo e a denúncia da locação por falta de pagamento do aluguel durante o lockdown de abril, maio e junho do ano passado, estabelecendo que o atrasado deveria ser pago posteriormente, com encargos moratórios, pelo inquilino. Não se tratava, portanto, como equivocadamente alardeado no Brasil, de uma carta branca para a suspensão total do pagamento do aluguel, mas apenas da sustação temporária de um efeito direto e imediato da mora locatícia: o despejo e a denúncia do contrato. Com essa medida, o legislador emergencial alemão impediu que a crise de saúde pública provocasse uma crise habitacional - proteção mínima não conferida aos inquilinos brasileiros pela nossa lei do coronavírus (Lei 14.010/2020), a famosa RJET, que dispôs sobre o regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de direito privado. A lei, subestimando o inimigo desconhecido, supôs que todos os problemas provocados pelo coronavírus estariam debelados até 30/10/2020, caducando ironicamente quando iniciava na Europa a segunda onda de Covid-19, que estourou aqui com a fúria de um tsunami. Cauteloso, o legislador alemão jogou o pagamento dos alugueis atrasados para 2022, se as partes não acordarem prazo diverso. No caso em comento, porém, os contratantes não litigavam em torno do prazo ou das condições de pagamento do aluguel atrasado por causa do lockdown. A lide girava em torno de saber se seria devido o pagamento integral da renda e, principalmente, se caberia a redução do aluguel, questões que a lei emergencial não disciplinou. Não tendo, pois, a lei regulado exaustivamente os efeitos da pandemia nos contratos de locação, a parte lesada pode recorrer ao § 313 BGB pleiteando a revisão contratual por alterações supervenientes nas circunstâncias. Essa conclusão é reforçada pelo § 7 do art. 240 EGBGB, segundo o qual o fechamento - ou as restrições consideráveis ao funcionamento - dos estabelecimentos comerciais pode romper a base dos contratos de locação comercial. A readaptação do contrato concreto depende, porém, do preenchimento dos demais pressupostos: irrazoabilidade da manutenção inalterada do contrato (irrazoabilidade do cumprimento) e demonstração de que os contratantes, se tivessem antevisto a alteração das circunstâncias, teriam celebrado o contrato sob outros termos ou desistido do negócio,  o que deve ser apurado mediante análise de todas as peculiaridades do caso, dentre as quais a alocação dos riscos. c) O risco da pandemia deve ser suportado pelos contratantes Segundo o Tribunal, da mesma forma que a lei não imputa ao locador o risco pelo fechamento da loja, não o atribui tampouco ao locatário, pois "o risco de uso suportado pelo locatário não compreende o risco de alterações na grande base do negócio"12. Na verdade, o risco de que um obstáculo, proveniente do Poder Público, impeça a utilização do empreendimento por motivos alheios ao bem e à concreta operação do locatário não pode ser imputado a um único contratante. A Corte observou que também não houve repartição negocial do risco, pois as partes não previram no contrato a hipótese de fechamento geral dos estabelecimentos por ordem estatal e, consequentemente, não distribuíram esse risco entre si. Por isso, o Oberlandesgericht München disse estar convencido de que as partes teriam concluído o contrato com outro conteúdo se tivessem previsto as alterações provocadas pela paralisação do empreendimento em decorrência da pandemia de Covid-19. d) O cumprimento do contrato era razoável Segundo o Tribunal, o fato do locatário não poder faturar durante o fechamento compulsório, altera profundamente as circunstâncias do negócio e isso não é amenizado com o fato dele continuar a usar o imóvel como depósito, pois esse uso não justifica, em regra, o valor do aluguel cobrado. Porém, no caso concreto, o OLG München entendeu que não restou demonstrada a irrazoabilidade da manutenção inalterada do contrato, requisito que deve ser analisado considerando todas as circunstâncias do caso concreto. Assim, além da alocação dos riscos, deve-se levar em conta a perda sofrida com a pandemia, se a mesma pode ser compensada ou minimizada com vendas online, se e em que medida a parte prejudicada recebeu auxilio emergencial do Estado, bem como a situação financeira geral de ambos os contratantes, especialmente se e em que medida a empresa faturou e fez lucros nos últimos anos, permitindo a formação de reserva financeira. E aqui residiu a causa da denegação do pedido de redução do valor do aluguel, pois a empresa locatária tem aproximadamente 2.600 filiais na Alemanha e cerca de 26 mil funcionários, controlando a matriz ainda lojas de materiais de construção e supermercados.  Em razão disso, a Corte afirmou não ser crível que o pagamento do aluguel de abril de 2020 fosse insuportável para a locatária, levando a um "resultado insuportável, inconciliável com o direito e a justiça". Em suma Em suma, o OLG München afastou a hipótese de vício, afirmando que o fechamento das lojas motivado pelo combate à pandemia configura, em tese, quebra na base do negócio, mas essa não restou configurada no caso concreto, porque a loja não logrou demonstrar a excessiva dificuldade de prestar. Interessante observar, dentre vários pontos, que o Tribunal não se contentou apenas com o montante da perda do faturamento provocado pela pandemia (no caso da locatária: 47,68% em março e 78,56% em abril), afirmando ser necessária uma análise da situação financeira global de ambos os contraentes, até para evitar condutas oportunistas. Todos aguardam ansiosamente (inclusive desse lado do Atlântico) para saber como o BGH irá solucionar a questão. __________ 1 Confira os dados na matéria: País passa das 3 mil mortes e curva continua crescendo. Valor Econômico 24/3/2021. 2 Fiocruz aponta maior colapso sanitário e hospitalar da História do Brasil. O Globo, 13/3/2021. 3 "Brasil é ameaça para humanidade", diz epidemiologista. Deutsche Welle Brasil, 10/3/2021. No mesmo sentido: 'Podemos chegar a 500 mil mortos na metade do ano`, diz Miguel Nicolelis. O Globo, 20/3/2021. 4 Dentre muitos especialistas que já se pronunciaram nesse sentido, merece destaque a recente entrevista do médico Miguel Nicolelis, Professor da Universidade Duke (EUA). 'Podemos chegar a 500 mil mortos na metade do ano`, diz Miguel Nicolelis. O Globo, 20/3/2021. 5 Economistas, banqueiros e empresários cobram medidas efetivas contra a pandemia. Folha de São Paulo, 21/3/2021. 6 Confira-se, dentre outros: TJSP, AI 2012910-93.2021.8.26.0000, 32ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Francisco Occhiuto Júnior, j. 12/2/2021 e AI 2298701-80.2020.8.26.0000, 31ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Rosangela Telles, j. 18/12/2020. 7 Tradução livre do original do Art. 240 § 7 da EGBGB, aprovado em 17/12/2020 pelo Bundestag: § 7 Störung der Geschäftsgrundlage von Miet- und Pachtverträgen   (1) Sind vermietete Grundstücke oder vermietete Räume, die keine Wohnräume sind, infolge staatlicher Maßnahmen zur Bekämpfung der COVID-19-Pandemie für den Betrieb des Mieters nicht oder nur mit erheblicher Einschränkung verwendbar, so wird vermutet, dass sich insofern ein Umstand im Sinne des § 313 Absatz 1 des Bürgerlichen Gesetzbuchs, der zur Grundlage des Mietvertrags geworden ist, nach Vertragsschluss schwerwiegend verändert hat. (2) Absatz 1 ist auf Pachtverträge entsprechend anzuwenden. 8 Confira-se, nesse sentido, as entrevistas com os professores Nils Jansen e Jörg Neuner, publicadas na coluna German Report. 9 LG Mönchengladbach 12 O 154/20, julgado em 2/11/2020, Rn. 48. 10 No Original: "Das Gebrauchshindernis beruht aber nicht auf der konkreten Beschaffenheit, dem Zustand oder der Lage des Mietibjekts." 11 No original: "Das Gebrauchshindenis beruht aber nicht auf der konkreten Beschaffenheit, dem Zustand oder der Lage des Mietobjekts... Die Allgemeinverfügung knüpft das Verbot nicht an die Substanz einer oder bestimmter Mietsache oder deren Zustand. Da die Allgemeinverfügung für ganz Bayern galt, spielt auch die Lage des Mietobjektes keine Rolle." OLG München 32 U 6358/20, julgado em 17/2/2021, Rn. 4 b. 12 No original: "Das vom Mieter zu tragende Verwendungsrisiko umfasst nicht auch das Risiko von Änderungen der großen Geschäftsgrundlage."
A coluna German Report dessa semana tem o prazer de receber o contributo especial do germanista Rodrigo Borges Valadão, procurador do Estado do Rio de Janeiro, comentando recente decisão do Tribunal Constitucional Alemão - Bundesverfassungsgericht (BVerfG).  O autor é doutor em Direito pela Universidade de Freiburg (Alemanha) e pela Universidade de São Paulo, bem como mestre em Teoria do Estado e Direito Constitucional pela PUC-RJ.  No doutoramento, foi orientado pelo renomado Prof. Matthias Jestaedt, defendendo tese de fôlego aprovada com nota máxima (summa cum laude) sobre: "Positivismo jurídico e nazismo - formação, refutação e superação do mito do positivismo".  A tese, nas palavras do próprio orientador, é o primeiro trabalho monográfico acerca da história da "lenda do positivismo" e e se tornará referência obrigatória para todas as futuras discussões sobre o tema. Nosso convidado é, portanto, profundo conhecedor do direito constitucional alemão.  Ademais, tenho o prazer de com ele coordenar o Fórum Jurídico Brasil-Alemanha, um grupo de estudiosos do direito comparado que se dedica ao estudo e debate do direito brasileiro e alemão, sem perder de vista, por óbvio, outros ordenamentos jurídicos.  Na coluna de hoje, Rodrigo Borges Valadão aborda um tema polêmico na Alemanha: a possibilidade ou não do uso de símbolos religiosos por funcionários públicos, aqui entendido em sentido amplo a abranger, como demonstra o caso, pessoas que têm a aparência de representantes do Estado. Boa leitura a todos!  * * *  Rodrigo Borges Valadão Em decisão prolatada há um ano1, o Tribunal Constitucional Federal da Alemanha (Bundesverfassungsgericht) considerou constitucional uma lei do Estado de Hessen que proibia o uso de hijab (véu islâmico) para estagiárias de Direito em determinadas situações específicas em que elas atuassem ou pudessem ser percebidas pelos jurisdicionados como representantes do Estado.  Na Alemanha, a formação jurídica é baseada em um sistema de dois níveis: após concluir a licenciatura em Direito, os aspirantes a advogado passam por um programa de formação prática de dois anos (estágio jurídico).  Ao longo de sua formação, os estagiários atuam perante o sistema judiciário desempenhando funções de diversas naturezas. Cada estado federado tem competência para editar leis que disponham sobre a estrutura específica do estágio e as obrigações a serem cumpridas pelos estágios.  E de acordo com a legislação em vigor em Hessen, os estagiários de Direito têm o dever de apresentar uma conduta neutra em relação a questões religiosas em suas interações com o público, sempre que atuem ou sempre que possam ser percebidos como representantes do sistema judicial ou representantes do próprio Estado.  A autora da demanda era uma estagiária de Direito no Estado de Hessen e, por força da sua religião, pretendia utilizar o hijab em público. Por meio da reclamação constitucional,2 ela contestou a proibição no desempenho de tarefas judiciais e, especial, na representação do Ministério Público.  O Tribunal Constitucional Federal considerou válida a interferência na liberdade religiosa da estagiária, garantida pelo Art. 4 (1) e (2) da Lei Fundamental,3 entendendo ser ela justificada diante da natureza da atuação profissional regulamentada pela legislação estadual, do bom funcionamento do sistema judicial, da necessidade de neutralidade ideológica e religiosa do Estado e, sobretudo, da chamada liberdade religiosa negativa (negative Religionsfreiheit) de outros titulares de direitos fundamentais, que, no caso em tela, nada mais é do que a garantia que todo cidadão tem de que o Estado paute sua atividade de maneira laica e não-confessional.  Dado que o Estado só pode agir por meio de indivíduos, seu dever de neutralidade implica num dever de conduta neutra para os agentes públicos. Em síntese, o funcionamento adequado do sistema judicial exige que a sociedade não só confie nos juízes individualmente, mas também no sistema judicial como tal. E a utilização de um símbolo religioso no serviço judicial é, por si só, suficiente para suscitar dúvidas quanto à objetividade dos agentes estatais.  É bem verdade que a Lei Fundamental atribui uma posição elevada à liberdade religiosa. No entanto, a proibição imposta aos estagiários de Direito pela legislação de Hessen, que os impede de usar um lenço na cabeça como símbolo religioso, é limitada a poucas e específicas tarefas no curso de seu treinamento, disse o Tribunal.  Além disso, os estagiários têm o direito de não realizar essas tarefas, que sequer podem ser levadas em conta na sua avaliação. Portanto, é possível que o estágio seja concluído sem que quaisquer dessas tarefas tenham sido realizadas.  Como regra, a resolução da tensão normativa entre os bens constitucionais em conflito, tendo em conta o pressuposto da tolerância, incumbe, antes de qualquer outra pessoa, ao legislador, uma vez que o mesmo foi eleito democraticamente e detém a legitimidade para tomar uma decisão desta natureza. Ele é quem tem a preferência de encontrar um compromisso que seja razoável para todos os participantes dos processos que levam a uma decisão judicial.  Em última análise, nenhum dos interesses jurídicos conflitantes tem um peso determinante ou supera os demais, a ponto de exigir que a estagiária impedida de usar o hijab seja, com base na Lei Fundamental, autorizada a fazê-lo, de modo que a decisão do legislador de Hessen deve ser respeitada.  O juiz Ulrich Maidowski, integrante do 2º. Senado do BverfG, porém, apresentou voto divergente. Para ele, a interferência na liberdade religiosa não poderia ser, na hipótese, justificada pela Lei Fundamental.  Segundo ele, a proibição do hijab não pode ser mantida, principalmente nas situações em que seja evidente para as partes no processo e para o público em geral que a pessoa não é propriamente um juiz ou promotor público, mas sim um profissional em formação.  Para Maidowski, a proibição impugnada diz respeito a tarefas que são particularmente significativas em termos de relevância para o objetivo de formação perseguido. Deste modo, o direito do estagiário de cumprir um requisito da sua religião e o direito de completar o treinamento jurídico necessário na íntegra deve ter precedência sobre os interesses opostos, de modo que as disposições que instituem a referida proibição devem, portanto, ser interpretadas em conformidade com a Constituição. __________ 1 BVerfG 2 BvR 1333/17, julgado em 14/1/2020. 2 A Reclamação Constitucional (Verfasungsbeschwerde) é uma ação extraordinária de competência do BVerfG da qual pode se valer qualquer pessoa submetida ao poder público alemão para suspender medida estatal que represente uma violação de direito fundamental do qual seja titular. 3 Artigo 4. [Liberdade de crença e de consciência]. (1) A liberdade de crença, de consciência e a liberdade de confissão religiosa e ideológica são invioláveis. (2) É assegurado o livre exercício da religião. (3) Ninguém poderá ser obrigado, contra a sua consciência, ao serviço militar com armas. A matéria será regulamentada por uma lei federal.