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Família e Sucessões

Desafios contemporâneos do direito de família e sucessões.

Flávio Tartuce
quarta-feira, 30 de outubro de 2019

Da mitigação de formalidades testamentárias

Nos últimos dias 16 a 18 de outubro deste ano de 2019 realizou-se em Belo Horizonte o 12º Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e das Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), com cerca de 1.500 participantes. Mais uma vez tive a oportunidade de palestrar, tratando do tema da mitigação ou relativização - e não eliminação - das formalidades testamentárias. A essência da exposição foi para responder à seguinte indagação: é possível fazer um testamento sem as formalidades legais estritas? A minha resposta, como não poderia ser diferente, foi negativa, sendo certo que o afastamento de todas as formalidades afastaria a essência do ato de última vontade, notadamente a sua finalidade de atestar a vontade do morto, do autor da herança. O foco principal da palestra foi o testamento público, sendo certo que os seus requisitos essenciais estão descritos no art. 1.864 do vigente Código Civil, a saber: a) ser escrito por Tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo este servir-se de minuta, notas ou apontamentos; b) ser lavrado o instrumento, ser lido em voz alta pelo Tabelião ao testador e a duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial; e c) ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo Tabelião. Pontue-se que esse dispositivo equivale, com alterações, ao art. 1.632 do Código Civil de 1916, tendo sido reduzido o número de testemunhas de cinco para duas, ou seja, a própria lei já realizou a mitigação das formalidades. No mesmo sentido de relativização, a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça vem, há tempos, mitigando as formalidades testamentárias, diante do princípio da conservação do negócio jurídico e da máxima favor testamenti, preservando-se ao máximo a autonomia privada do autor do ato de última vontade. Como primeira concreção jurisprudencial, destaco acórdão publicado no Informativo n. 435 da Corte Superior, que acabou por afastar a necessidade da presença de todas as testemunhas antes exigidas, bem como a de que o ato fosse lavrado pelo próprio titular do Cartório. Como ali se decidiu, "busca-se, no recurso, a nulidade de testamento, aduzindo o ora recorrente que a escritura não foi lavrada pelo oficial de cartório, mas por terceiro, bem como que as cinco testemunhas não acompanharam integralmente o ato. O tribunal a quo afirmou que não foi o tabelião que lavrou o testamento, mas isso foi feito sob sua supervisão, pois ali se encontrava, tendo, inclusive, lido e subscrito o ato na presença das cinco testemunhas. Ressaltou, ainda, que, diante da realidade dos tabelionatos, não se pode exigir que o próprio titular, em todos os casos, escreva, datilografe ou digite as palavras ditadas ou declaradas pelo testador. Daí, não há que declarar nulo o testamento que não foi lavrado pelo titular da serventia, mas possui os requisitos mínimos de segurança, de autenticidade e de fidelidade. Quanto à questão de as cinco testemunhas não terem acompanhado integralmente a lavratura de testamento, o TJ afirmou que quatro se faziam presentes e cinco ouviram a leitura integral dos últimos desejos da testadora, feita pelo titular da serventia. Assim, a Turma não conheceu do recurso por entender que o vício formal somente invalidará o ato quando comprometer sua essência, qual seja, a livre manifestação da vontade da testadora, sob pena de prestigiar a literalidade em detrimento da outorga legal à disponibilização patrimonial pelo seu titular. Não havendo fraude ou incoerência nas disposições de última vontade e não evidenciada incapacidade mental da testadora, não há falar em nulidade no caso. Precedente citado: REsp 302.767/PR, DJ 24.09.2001" (STJ, REsp 600.746/PR, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, j. 20.05.2010). Concordo com o entendimento específico constante do aresto, sendo certo que, como visto, o próprio codificador de 2002 reduziu o número de testemunhas do testamento público, de cinco para duas, por supostamente entender que havia um exagero na previsão anterior. Essa mitigação de requisitos formais e solenes, fazendo prevalecer a materialização do Direito Privado contemporâneo, foi confirmada em outro acórdão do Tribunal da Cidadania mais recente, do ano de 2013. Conforme se depreende de sua ementa, que colaciona outro precedente, "a Corte Local, ao interpretar as disposições de última vontade, considerou não haver qualquer dificuldade sobre o destino dos bens, pois o de cujus dispôs de todos os seus bens. Igualmente, em relação à qualificação dos beneficiários pelo testamento, o tribunal de origem assentou que estes se encontram suficientemente identificados. Ademais, a instância ordinária considerou inexistir qualquer mácula na entrega da minuta do testamento 2 (dois) dias antes de sua leitura e assinatura, mormente porque a autora da herança, após a sua leitura, ratificou o seu conteúdo na presença das 5 (cinco) testemunhas e do tabelião, sendo alegada irregularidade insuscetível de viciar a vontade da testadora. (...) A corte de origem asseverou que a vontade da testadora foi externada de modo livre e consciente, sendo perfeitamente compreensível e identificável as disposições testamentárias. Assim, 'a análise da regularidade da disposição de última vontade (testamento particular ou público) deve considerar a máxima preservação do intuito do testador, sendo certo que a constatação de vício formal, por si só, não deve ensejar a invalidação do ato, máxime se demonstrada a capacidade mental do testador, por ocasião do ato, para livremente dispor de seus bens' (AgRg no REsp 1.073.860/PR, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, 4ª Turma, j. 21.03.2013, DJE 01.04.2013)" (STJ, Ag. Rg. no Ag. Rg. no REsp 1.230.609/PR, 4ª Turma, Rel. Min. Marco Buzzi, DJE 02.10.2013, p. 458). De data ainda mais próxima, do ano de 2017, em caso envolvendo testamento público celebrado por deficiente visual e citando a minha posição doutrinária, deduziu o mesmo Superior Tribunal de Justiça que "atendidos os pressupostos básicos da sucessão testamentária - i) capacidade do testador; ii) atendimento aos limites do que pode dispor e; iii) lídima declaração de vontade - a ausência de umas das formalidades exigidas por lei, pode e deve ser colmatada para a preservação da vontade do testador, pois as regulações atinentes ao testamento têm por escopo único a preservação da vontade do testador". Sendo assim, "evidenciada, tanto a capacidade cognitiva do testador quanto o fato de que testamento, lido pelo tabelião, correspondia, exatamente à manifestação de vontade do de cujus, não cabe, então, reputar como nulo o testamento, por ter sido preterida solenidades fixadas em lei, porquanto o fim dessas - assegurar a higidez da manifestação do de cujus -, foi completamente satisfeita com os procedimentos adotados" (STJ, REsp 1.677.931/MG, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15.08.2017, DJe 22.08.2017). Merece destaque o trecho que aponta a possibilidade de se confirmar a vontade do testador quando faltar um ou outro requisito formal previsto em lei, e não todos eles. Como sustento em minhas obras, todas essas decisões citadas são louváveis, contando com meu pleno apoio, pois reafirme-se que a tendência contemporânea é que o material prevaleça sobre o formal; que o concreto prepondere sobre as ficções jurídicas. Além da citada conservação do negócio jurídico e da busca da preservação do testamento, tal constatação tem relação direta com o princípio da operabilidade, adotado pela codificação privada de 2002, que busca um Direito Privado real e efetivo, na linha da concretude pregada por Miguel Reale. De todo modo, como advertem Gustavo Tepedino, Heloisa Helena Barboza e Maria Celina Bodin de Moraes, "a preconizada atenuação do rigor formal do testamento deve ser aplicada com cautela. Afirma-se que a forma dos atos negociais não pode ser um fim em si mesma, arbitrária e caprichosa. Essa deve ser disposta não para uma função qualquer, mas para uma função que seja constitucionalmente apreciável (Pietro Perlingieri, Forma dei negozi, p. 61). Sem dúvida, a manifestação da última vontade, através do testamento, constitui expressão da personalidade humana. Por este motivo, em virtude dos efeitos causa mortis do ato, as formalidades testamentárias atendem aos interesses superiores do ordenamento jurídico, na medida em que garantem a espontaneidade da manifestação da última vontade e a sua fiel execução quando da abertura da sucessão, em estreita conexão com a tutela da dignidade da pessoa humana (CR, art. 1º, III)" (TEPEDINO, Gustavo; BARBOZA, Heloisa Helena; MORAES, Maria Celina Bodin de. Código Civil interpretado conforme a Constituição da República. Rio de Janeiro: Renovar, 2014. v. IV, p. 681). De fato, afastar todas as formalidades ou solenidades do ato testamentário significa negar a sua estrutura e a sua função, o que não se pode admitir. A redução de burocracias - tão defendida e difundida nos dias de hoje, inclusive por mim - não pode significar o sacrifício de categorias jurídicas há tempos consolidadas e experimentadas. Como exemplo de incidência dessa afirmação, recentemente tive um caso concreto em que o ato de última vontade foi realizado com a nefasta prática das "testemunhas de viveiro", em que elas já colocavam previamente as suas assinaturas em vários atos lavrados perante o Tabelionato de Notas, em clara ilicitude civil nulificante, por desrespeito a normas de ordem pública. Em casos como esse, em que não há o atendimento a qualquer das formalidades do testamento público, pois nenhuma das testemunhas viu e esteve presente à lavratura do ato, não se pode admitir a incidência da tese da mitigação das formalidades. O Direito não pode admitir condutas costumeiras como essas, verdadeiro costume contra legem, que coloca em descrédito o nobre instituto do testamento e também a atividade notarial de nosso País, não podendo o Poder Judiciário dar chancela decisória a tal prática, muito comum no passado, infelizmente. Em suma, a mitigação das formalidades do ato testamentário, apesar de saudável, louvável e desejável juridicamente, não pode representar a ruptura absoluta do envoltório jurídico construído para que se ateste a vontade do morto, sob pena de se sacrificar uma categoria tão útil e tão efetiva para a concretização da autonomia privada.
O art. 496 do Código Civil trata da venda de ascendente para descendente, regra que, apesar de estar inserida na seção relativa aos contratos na vigente codificação, interessa diretamente ao Direito de Família e das Sucessões. Conforme a sua dicção atual, "é anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do alienante expressamente houverem consentido". Além disso, na exata expressão do seu parágrafo único, "em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória". A norma encerrou polêmica anterior - que existia no âmbito da doutrina e da jurisprudência - a respeito de ser a venda de ascendente a descendente, celebrada sem a citada autorização, nula ou anulável. Como bem demonstram Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado, juristas que participaram do processo final de elaboração do vigente Código Civil, "no que se refere ao contrato de compra e venda feita por ascendente a descendente, torna-se ele suscetível de anulabilidade, não mais se podendo falar de nulidade. Esta, a significativa inovação. O dispositivo espanca a vacilação então dominante na doutrina, diante do preceituado pelo art. 1.132 do CC/1916, tornando defeso que os ascendentes pudessem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consentissem. A referência expressa à anulabilidade contida na nova norma encerra, por definitivo, dissenso jurisprudencial acerca das exatas repercussões à validade do negócio jurídico, quando superada por decisões recentes do STJ, a Súmula 494 do STF" (Código Civil anotado. São Paulo: Método, 2005. p. 255). Desse modo, para vender um imóvel para um filho, o pai necessita de autorização dos demais filhos e de sua esposa, sob pena de nulidade relativa da venda, a menos grave das invalidades. O objetivo da norma, entre outros fundamentos, é a proteção da legítima dos herdeiros necessários, como bem salienta Marco Aurélio Bezerra de Melo, em obra da qual sou um dos coautores: "O artigo em comento tem por objetivo resguardar a legítima dos herdeiros necessários, pois com a necessidade de anuência destes há uma fiscalização prévia que poderá evitar demandas futuras que se verificariam após a morte do doador. Para entender o fundamento da anulabilidade necessitamos mergulhar, ainda que na parte rasa desse oceano, nos meandros do Direito das Sucessões, notadamente nos artigos 1.845 e 1.846 do Código Civil, os quais estabelecem, respectivamente, que são herdeiros necessários os descendentes, os ascendentes e o cônjuge e que pertencem a estes, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima, da qual somente podem ser privados pelo instituto da deserdação. Pudesse o ascendente vender ao descendente sem o consentimento dos demais e estaria franqueada e facilitada a possibilidade de simulação de uma doação travestida documentalmente de compra e venda, contemplando determinado herdeiro necessário em detrimento de outro. Isso porque se efetivamente se tratasse de uma doação, esta, em regra, seria considerada adiantamento de legítima (art. 544 do CC) e o herdeiro contemplado estaria obrigado a trazer à colação o que recebeu em vida de seu ascendente para o fim de igualar as legítimas e conferir o valor das doações recebidas, sob pena de responder pelas sanções da sonegação, conforme prescreve o artigo 2.002 do Código Civil. Daí o interesse do ascendente que pretende fugir da regra da preservação da legítima dos herdeiros necessários de adotar o modelo da compra e venda e não da doação como era de seu real intento" (MELO, Marco Aurélio Bezerra de. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 295). Pelo que está escrito no parágrafo único do dispositivo, dispensa-se a autorização do cônjuge se o regime for o da separação obrigatória de bens, aquele que é imposto pela lei, nos termos do art. 1.641 da codificação e em três hipóteses: a) para as pessoas que o contraírem com inobservância das causas suspensivas da celebração do casamento (art. 1.523 do CC); b) casamento da pessoa maior de setenta anos, hipótese que encontra os principais debates no âmbito prático e c) de todos os que dependerem, para casar, de suprimento judicial. Como tenho sustentado há tempos, a norma necessita de reparos técnicos, o que é objeto de projeto de lei em tramitação na Câmara dos Deputados, de número 4.639/2019, de autoria do Deputado Carlos Bezerra. A proposição visa retirar a expressão "em ambos os casos", que consta do parágrafo único do art. 496 do Código Civil e que ali permaneceu por erro de tramitação legislativa. Como consta da projeção, "o artigo 496 do novo Código Civil, cujo caput corresponde basicamente ao artigo 1.132 do Código Civil anterior, proíbe a venda de bens de ascendente a descendente, salvo nas condições que especifica. Durante a tramitação do projeto, houve momento em que se proibiu, também, a venda de descendente a ascendente. Nesse período, surgiu o parágrafo único do artigo, que especifica uma exceção à proibição. No curso regular da tramitação legislativa, a proibição da segunda hipótese de venda, de descendente para ascendente, foi derrubada. No entanto, não se atualizou a redação do parágrafo único, o que procuramos fazer agora". A projeção confirma o teor do Enunciado n. 177, aprovado na III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, que assim preceitua: "por erro de tramitação, que retirou a segunda hipótese de anulação de venda entre parentes (venda de descendente para ascendente), deve ser desconsiderada a expressão 'em ambos os casos', no parágrafo único do art. 496". O autor da proposta, professor José Osório de Azevedo Jr., jurista que sempre merece todas as homenagens, pelas suas numerosas contribuições ao Direito Civil Brasileiro, assim fundamentou a sua proposta de enunciado doutrinário: "Na realidade, não existem ambos os casos. O caso é um só: a venda de ascendente para descendente. Houve equívoco no processo legislativo. O artigo correspondente do Anteprojeto do Código Civil, publicado no DOU de 07.08.1972, (art. 490) não previa qualquer parágrafo. A redação era a seguinte: Art. 490 - Os ascendentes não podem vender aos descendentes, sem que os outros descendentes expressamente consintam. A venda não será, porém, anulável, se o adquirente provar que o preço pago não era inferior ao valor da coisa. No Projeto 634/1975, DOU 13.06.1975, houve alteração: Art. 494. É anulável a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes expressamente houverem consentido. Em Plenário, foram apresentadas pelo Dep. Henrique Eduardo Alves as Emendas 390, 391 e 392 ao art. 494. A primeira delas para tornar nula a venda e para exigir a anuência do cônjuge do vendedor: Art. 494. É nula a venda de ascendente a descendente, salvo se os outros descendentes e o cônjuge do vendedor expressamente houverem consentido. A segunda, para acrescentar um parágrafo considerando nula também a venda de descendente para ascendente: Art. 494. § 1.º É nula a venda de descendente para ascendente, salvo se o outro ascendente do mesmo grau, e o cônjuge do vendedor expressamente houverem consentido. A terceira emenda acrescentava mais um parágrafo (2.º), com a redação do atual parágrafo único, com a finalidade de dispensar o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória: Art. 494. § 2.º Em ambos os casos, dispensa-se o consentimento do cônjuge se o regime de bens for o da separação obrigatória. Pelo que se vê do texto do Código, a primeira emenda (390) foi aprovada em parte, só para exigir a anuência do cônjuge. A segunda emenda (391) foi inteiramente rejeitada. E a terceira (392) foi acolhida e transformada no atual parágrafo único. Esqueceu-se de que a segunda emenda, que previa uma segunda hipótese de nulidade - a venda de descendente para ascendente -, foi rejeitada. Assim, no contexto das emendas, fazia sentido lógico a presença da expressão em ambos os casos, isto é, nos dois casos de nulidade, venda de ascendente para descendente e venda de descendente para ascendente. Agora não faz sentido, porque, como foi dito no início, a hipótese legal é uma só: 'a venda de ascendente para descendente'. Houve erro material, s.m.j., e a expressão em ambos os casos deve ser tida como não escrita, dispensáveis maiores esforços do intérprete para achar um significado impossível. A regra de que a lei não contém expressões inúteis não é absoluta. Cumpre, portanto, desconsiderar a expressão em ambos os casos" (destaque nosso). Assim, é louvável a projeção legislativa, a fim de corrigir esse equívoco histórico. Porém, há necessidade de se fazer outro reparo no parágrafo único do art. 496 do Código Civil, o que foi sugerido por emenda propositiva do Deputado Luiz Flávio Gomes, após me consultar. O comando não deveria mencionar como exceção o regime da separação obrigatória, mas a separação convencional de bens, que tem origem em pacto antenupcial. Isso porque, no regime da separação obrigatória de bens, alguns bens se comunicam, por força da antiga Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, que ainda vem sendo aplicada pelos nossos Tribunais, notadamente pelo Superior Tribunal de Justiça. Conforme essa ementa jurisprudencial consolidada, "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". E, conforme um dos últimos arestos do STJ a respeito dessa temática, determinante na interpretação da sumular: "nos moldes do art. 1.641, II, do Código Civil de 2002, ao casamento contraído sob causa suspensiva, impõe-se o regime da separação obrigatória de bens. No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento, desde que comprovado o esforço comum para sua aquisição. Releitura da antiga Súmula 377/STF (No regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento), editada com o intuito de interpretar o art. 259 do CC/1916, ainda na época em que cabia à Suprema Corte decidir em última instância acerca da interpretação da legislação federal, mister que hoje cabe ao Superior Tribunal de Justiça" (STJ, EREsp 1.623.858/MG, Segunda Seção, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5ª Região), j. 23/05/2018, DJe 30/05/2018). Ora, percebe-se que, pela sumular e na sua atual interpretação, alguns bens se comunicam no regime da separação legal ou obrigatória de bens - aqueles havidos durante o casamento pelo esforço comum -, sendo imperiosa a autorização do cônjuge para a venda de ascendente para descendente nesse regime, pois ele pode ter algum interesse patrimonial na alienação. Por isso, repise-se, a norma deveria excepcionar o regime da separação convencional de bens - aquele que decorre de pacto antenupcial -, único regime de separação em que nenhum bem se comunica, presente uma verdadeira separação absoluta, e em que a autorização do cônjuge deve ser dispensada. Nesse sentido, cabe transcrever o que pontuo a respeito do dispositivo que se pretende corrigir, confrontando-o com outra regra da própria codificação, o art. 1.647: "Interessante confrontar o parágrafo único do art. 496 CC que excepciona o regime da separação obrigatória (de origem legal), com o art. 1.647, I, também do CC, que trata da necessidade de outorga conjugal para a venda de imóvel a terceiro, sob pena de anulabilidade (art. 1.649). Isso porque o art. 1.647 dispensa a dita autorização se o regime entre os cônjuges for o da separação absoluta. Mas o que seria separação absoluta? Entendemos que a separação absoluta é apenas a separação convencional, pois continua sendo aplicável a Súmula 377 do STF. Por essa súmula, no regime da separação legal ou obrigatória comunicam-se os bens havidos pelos cônjuges durante o casamento pelo esforço comum, afirmação que restou pacificada no âmbito do Superior Tribunal de Justiça em 2018 (EREsp 1.623.858/MG, 2.ª Seção, Rel. Min. Lázaro Guimarães (Desembargador convocado do TRF 5.ª Região), j. 23.05.2018, DJe 30.05.2018). Em síntese, o regime da separação legal ou obrigatória não constitui um regime de separação absoluta, uma vez que alguns bens se comunicam. Em outras palavras, a outorga conjugal é dispensada apenas se o regime de separação de bens for estipulado de forma convencional, por pacto antenupcial. Na doutrina, essa também é a conclusão de Nelson Nery Jr., Rosa Maria de Andrade Nery, Rolf Madaleno, Zeno Veloso, Rodrigo Toscano de Brito, Pablo Stolze, Rodolfo Pamplona, entre outros" (TARTUCE, Flávio. Direito Civil. Volume 3. Teoria geral dos contratos e contratos em espécie. 14. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2019. p. 317). Não restam dúvidas de que é necessário adaptar o art. 496, parágrafo único, ao art. 1.647 do Código Civil, mencionando-se na primeira regra também o que se considera separação absoluta de bens. E, para que não pairem mais dúvidas do que seja a citada "separação absoluta", a necessidade de autorização do cônjuge na venda de ascendente para descendente deve ser afastada somente se o regime de casamento entre os cônjuges for o da separação convencional. Espera-se, por tudo isso, que o projeto de lei tenha êxito no Congresso Nacional, fazendo-se esses dois reparos no artigo ora analisado. Como palavras finais, uma outra questão poderia ser levantada, a respeito da inclusão do companheiro no art. 496 do Código Civil. Porém, essa inclusão passaria por uma reforma mais ampla de todo o Código Civil, o que será objeto de outro artigo, a ser publicado neste mesmo canal.
No último dia 14 de agosto de 2019, a Corregedoria Geral de Justiça do CNJ editou o Provimento 83/2019, que altera o anterior Provimento 63/2017, em especial quanto ao tratamento do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva. A modificação se deu diante dos pedidos de providências 0006194-84.2016.2.00.0000 e 0001711.40.2018.2.00.0000, um deles instaurado de ofício pelo próprio ministro Corregedor, Humberto Martins, e outro a pedido do Instituto dos Advogados de São Paulo (IASP). Os "considerandos" da nova norma destacam, entre outras questões e justificativas para a alteração do preceito administrativo anterior: a) o poder de fiscalização e de normatização do Poder Judiciário dos atos praticados por seus órgãos; b) a competência do Poder Judiciário para fiscalizar os serviços notariais e de registro; c) a ampla aceitação doutrinária e jurisprudencial da paternidade e maternidade socioafetiva, contemplando os princípios da afetividade e da dignidade da pessoa humana como fundamentos da filiação civil; d) a possibilidade de o parentesco resultar de outra origem que não a consanguinidade proibida toda designação discriminatória relativa à filiação: a possibilidade de reconhecimento voluntário da paternidade perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais; e) a necessidade de averbação, em registro público, dos atos judiciais ou extrajudiciais que declararem ou reconhecerem a filiação; f) o fato de que a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios, como decidiu o Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário n. 898.060/SC, em repercussão geral; g) a plena aplicação do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva para aqueles que possuem dezoito anos ou mais; h) a possibilidade de aplicação desse instituto aos menores, com doze anos ou mais, desde que seja realizada por intermédio de seus pais, nos termos do art. 1.634, inc. VII do Código Civil, ou seja, por representação; e i) ser recomendável que o Ministério Público seja sempre ouvido nos casos de reconhecimento extrajudicial de parentalidade socioafetiva de menores de 18 anos. O primeiro dispositivo alterado é o art. 10 do Provimento n. 63, que passou a ter a seguinte redação: "o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoas acima de 12 anos será autorizado perante os oficiais de registro civil das pessoas naturais". Eis aqui uma das principais modificações a ser destacada, pois a regra anterior não limitava o reconhecimento extrajudicial quanto ao critério etário, atingindo agora apenas os adolescentes, assim definidos pelo art. 1º da lei 8.069/1990 como as pessoas com idade entre 12 e 18 anos, e adultos. Seguiu-se, assim, parcialmente o critério etário da adoção, que, como a parentalidade socioafetiva, constitui forma de parentesco civil. Diz-se parcialmente pois, pelo art. 45, § 2º, do mesmo Estatuto da Criança e do Adolescente, há necessidade apenas de ouvir a pessoa adotada que tenha essa idade ou mais, mas não há essa limitação de idade para a adoção, restrição que agora atinge a parentalidade socioafetiva extrajudicial. Como escreve Ricardo Calderón, que participou dos debates prévios que permearam a elaboração da nova norma representando o IBDFAM, quanto à ausência de limitação anterior, "esta amplitude passou a sofrer alguns questionamentos, principalmente para se evitar que crianças muito pequenas (com meses de vida até cerca de 5 anos de idade) tivessem sua filiação alterada sem a chancela da via judicial. Para parte dos atores envolvidos com infância e juventude, os registros de filiações de crianças ainda na primeira infância (até 6 anos) deveriam remanescer com o Poder Judiciário. Uma das principais preocupações era que, como crianças de tenra idade podem vir a atrair o interesse de pessoas que pretendessem realizar 'adoções à brasileira' ou então 'furar a fila adoção', melhor seria deixar tal temática apenas para a via jurisdicional". Ainda segundo ele, em palavras às quais me filio, "a observação parece ter algum fundamento, visto que o intuito do CNJ é justamente deixar com as Serventias de Registros de Pessoas Naturais apenas os casos consensuais e incontroversos, sob os quais não pairem quaisquer dúvidas. Quanto aos casos litigiosos, complexos ou que possam ser objeto de alguma outra intenção dissimulada a ideia é que fiquem mesmo com o Poder Judiciário, que tem maiores condições de tratar destes casos" (CALDERÓN, Ricardo. Primeiras Impressões sobre o Provimento 83 do CNJ. Disponível aqui. Acesso em 23/8/19). Além dessa alteração no caput, o art. 10 recebeu uma alínea a, outra novidade, passando a estabelecer critérios para a configuração da parentalidade socioafetiva, que deve ser estável e exteriorizada socialmente. Conforme o seu § 1º, recomenda-se na norma que o registrador ateste a existência do vínculo socioafetivo mediante apuração objetiva, por intermédio da verificação de elementos concretos, a fim de demonstrar os três critérios da posse de estado de filhos citados no julgamento do STF: o tratamento (tractatio), a reputação (reputatio) e o nome (nominatio). O mesmo comando ainda estabelece que o ônus da prova da afetividade cabe àquele que requer o registro extrajudicial, admitindo-se todos os meios em Direito admitidos, especialmente por documentos, tais como elencados em rol meramente exemplificativo ou numerus apertus: a) apontamento escolar como responsável ou representante do aluno em qualquer nível de ensino; b) inscrição do pretenso filho em plano de saúde ou em órgão de previdência privada; c) registro oficial de que residem na mesma unidade domiciliar; d) vínculo de conjugalidade, por casamento ou união estável, com o ascendente biológico da pessoa que está sendo reconhecida; e) inscrição como dependente do requerente em entidades associativas, caso de clubes recreativos ou de futebol; f) fotografias em celebrações relevantes; e g) declaração de testemunhas com firma reconhecida (art. 10-A, § 2º, do Provimento n. 83 do CNJ). Além desses documentos, cite-se a possibilidade de prova por escritura pública de reconhecimento da parentalidade socioafetiva, que chegou a ser lavrada em alguns poucos Tabelionatos de Notas do País, de forma corajosa, e que confirma que a relação descrita no dispositivo não é taxativa ou numerus clausus. A ausência desses documentos não impede o registro do vínculo socioafetivo, desde que justificada a impossibilidade. No entanto, o registrador deverá atestar como apurou o vínculo socioafetivo (novo art. 10-A, § 3º, do Provimento n. 83 do CNJ). Percebe-se, desse modo, a existência de uma construção probatória extrajudicial e certo poder decisório atribuído ao Oficial de Registro Civil, o que representam passos avançados e importantes em prol da extrajudicialização, que contam com o meu total apoio. Todos esses documentos colhidos na apuração do vínculo socioafetivo deverão ser arquivados pelo registrador - em originais ou cópias -, juntamente com o requerimento (art. 10-A, § 4º do Provimento 83 do CNJ). Feitas essas anotações, o art. 11 do Provimento n. 63 também recebeu alterações, para se adequar a regulamentações anteriores. O dispositivo trata do processamento do reconhecimento extrajudicial, enunciando o seu caput que será feito perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, ainda que diverso daquele em que foi lavrado o assento, mediante a exibição de documento oficial de identificação com foto do requerente e da certidão de nascimento do filho, ambos em original e cópia, sem constar do traslado menção à origem da filiação. Na dicção do novo § 4º desse art. 11, se o filho for menor de 18 anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá o seu consentimento. A previsão anterior do § 4º era de que "se o filho for maior de doze anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá seu consentimento". Como se percebe, o novo texto está de acordo com a vedação de reconhecimento extrajudicial do menor de doze anos de idade. Também foi incluído o § 9º nesse art. 11 do Provimento n. 63, agora com menção expressa à atuação do Ministério Público, conforme justo pleito formulado pelas suas instituições representativas. Conforme o novo comando, atendidos os requisitos para o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva, o registrador encaminhará o expediente ao representante local do Ministério Público para que elabore um parecer jurídico. O registro da paternidade ou maternidade socioafetiva será realizado pelo registrador somente após o parecer favorável do Ministério Público. Eventualmente, se o parecer for desfavorável, o registrador civil não procederá ao registro da paternidade ou maternidade socioafetiva e comunicará o ocorrido ao requerente, arquivando o expediente. Por fim, está expresso nesse artigo que eventual dúvida referente ao registro deverá ser remetida ao juízo competente para dirimi-la, ou seja, não sendo viável o caminho da extrajudicialização, a solução está no Poder Judiciário. A previsão da necessária atuação extrajudicial do Ministério Público tem, mais uma vez, meu total apoio. Tanto isso é verdade que fiz sugestões de alterações legislativas para a Comissão Mista de Desburocratização, para que sejam viáveis juridicamente a alteração do regime de bens, o inventário e o divórcio extrajudiciais perante o Tabelionato de Notas - os dois últimos mesmo havendo herdeiros ou filhos menores ou incapazes -, sempre com a intervenção do MP. Os projetos de lei que tratam dessas possibilidades estão em trâmite no Congresso Nacional. Para encerrar, como tema mais polêmico, o art. 14 do antigo Provimento n. 63 recebeu novos parágrafos, a fim de tratar da multiparentalidade extrajudicial, na linha do que foi decidido pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento da repercussão geral sobre o tema, aqui antes citado e citado expressamente nos "considerandos" dos dois provimentos. Conforme a tese fixada pelo STF, que merece sempre ser transcrita, "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (Informativo n. 840 da Corte, de setembro de 2016). Foi mantido o caput do art. 14, in verbis: "o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais ou de duas mães no campo FILIAÇÃO no assento de nascimento". A previsão vinha gerando muitas dúvidas e incertezas a respeito da possibilidade ou não de reconhecimento extrajudicial da multiparentalidade e talvez poderia ser até aperfeiçoada, com mais clareza. Com o texto atual, acrescido dos dois novos parágrafos, a minha resposta continua sendo positiva quanto a essa polêmica, apesar de o caput não ter sido modificado. Na dicção do novo § 1º do art. 14 do Provimento n. 63 do CNJ, "somente é permitida a inclusão de um ascendente socioafetivo, seja do lado paterno ou do materno". Além disso, se o caso envolver a inclusão de mais de um ascendente socioafetivo, deverá tramitar pela via judicial (§ 2º). Penso que evidenciado e se confirma, portanto, o registro da multiparentalidade no cartório. Porém, tal reconhecimento fica limitado a apenas um pai ou mãe que tenha a posse de estado de filho. Se o caso for de inclusão de mais um ascendente, um segundo genitor baseado na afetividade, será necessário ingressar com ação específica de reconhecimento perante o Poder Judiciário. Nota-se, assim, a preocupação de evitar vínculos sucessivos, que, aliás, são difíceis de se concretizar na prática, pois geralmente a posse de estado de filhos demanda certo tempo de convivência. De toda forma, pela redação mantida no caput, não é possível que alguém tenha mais de dois pais ou duas mães no registro, ou seja, três pais e duas mães ou até mais do que isso. Esclareceu-se o real sentido do termo "unilateral" que consta do caput e que era objeto dos citados calorosos debates. Exatamente como opina mais uma vez Ricardo Calderón, "a redação destes novos parágrafos deixa mais claro o sentido do termo unilateral utilizado na redação originária do respectivo artigo 14. Como se percebe, o que se quer limitar é apenas a inclusão de mais um ascendente socioafetivo, pela via extrajudicial. Esta opção parece pretender acolher as situações mais comuns e singelas que se apresentam na realidade concreta, que geralmente correspondem a existência de apenas mais um ascendente socioafetivo. Os casos com a presença de um pai e uma mãe socioafetivos, por exemplo, são mais raros e podem pretender mascarar 'adoções à brasileira' - o que não se quer admitir. Daí a opção do CNJ em limitar este expediente extrajudicial a apenas mais um ascendente socioafetivo. Dessa forma, eventual segundo ascendente socioafetivo terá que se socorrer da via jurisdicional. Em consequência, restou esclarecida com estes novos parágrafos a manutenção da admissão da multiparentalidade unilateral: ou seja, a inclusão de um ascendente socioafetivo ao lado de um outro biológico que já preexista, mesmo que da mesma linha (dois pais, por exemplo)" (CALDERÓN, Ricardo. Primeiras Impressões sobre o Provimento 83 do CNJ. Disponível em: https://ibdfam.org.br. Acesso em 23 de agosto de 2019). Assim como ele, também elogio o aperfeiçoamento do texto, que deve trazer mais certeza a respeito do tema. Em suma, tentando atender a vários pleitos e pedidos que foram formulados por entidades distintas, o novo Provimento 83 do CNJ aperfeiçoa o anterior, firmando o caminho sem volta da redução de burocracias e da extrajudicialização. Em um momento de argumentos e teses radicais, parece trazer o bom senso e o consenso em seu conteúdo, ou seja, a afirmação de que muitas vezes a solução está no meio do caminho.
Conforme as antigas lições doutrinárias, a obrigação de alimentos familiares é, em regra, divisível, o que pode ser retirado do conteúdo dos arts. 1.696 e 1.697 do Código Civil em vigor; exceção feita ao caso em que o credor for idoso, nos termos da legislação específica. Como bem leciona Maria Helena Diniz, a obrigação de alimentos "é divisível entre os parentes do necessitado, encarregados da prestação alimentícia, salvo se o alimentando for idoso, visto que a obrigação passará, então, a ser solidária ex lege, cabendo-lhe optar entre os prestadores (lei 10.741/2003, art. 12)". (Curso de direito civil brasileiro. 22. ed. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 5, p. 550). No mesmo sentido, Yussef Said Cahali ensina que "o caráter divisível da obrigação representa o entendimento doutrinário dominante; excepcionando a lei o caso em que o credor é idoso" (Dos alimentos. 6. ed. São Paulo: RT, 2009. p. 138). De fato, como a solidariedade obrigacional não se presume, por força do art. 265 do Código Civil, haveria a necessidade de a lei prever, em sentido geral, que a obrigação não seria fracionária, cabendo sempre uma opção de demanda em relação aos devedores, o que não ocorre na legislação civil brasileira. Tal opção possibilitaria que o credor ingressasse com a ação de alimentos em face de um, alguns ou todos os devedores, estando prevista no art. 275 do Código Civil. Sendo a obrigação divisível, e não solidária, como regra geral, aplica-se a máxima concursu partes fiunt, dividindo-se o encargo de acordo com o número de partes, nos termos do art. 257 da mesma codificação privada. Não se pode negar que essa solução de divisibilidade dada pela lei afronta a solidariedade constitucional. Dessa forma, o melhor caminho seria a solidariedade passiva legal, o que facilitaria o recebimento do crédito alimentar pelo credor. Em verdade, o sistema jurídico nacional a respeito dos alimentos parece desequilibrado, ao proteger pela solidariedade passiva alimentar apenas o idoso. Não se justifica a falta de proteção de outros vulneráveis, caso das crianças e dos adolescentes, das pessoas com deficiência e das mulheres sob violência doméstica. E não se olvide que o alimentando constitui um vulnerável por excelência, o que justifica a existência de todo o aparato legal protetivo e o fundamento da matéria em normas de ordem pública e interesse social. Sendo assim, a título de exemplo sobre o atual sistema, se um pai não idoso necessita de alimentos, tem quatro filhos em condições de prestá-los e quer receber a integralidade do valor alimentar, a ação deverá ser proposta em face de todos, em litisconsórcio passivo necessário. Entretanto, como a obrigação é divisível, esse pai pode optar por receber de um ou alguns dos filhos, havendo litisconsórcio passivo facultativo, até porque cabem ações em separado. Na última situação descrita, caso a ação seja proposta em face de apenas um dos filhos, terá subsunção o polêmico e tão nebuloso art. 1.698 do CC/2002, que tem a seguinte redação: "Se o parente, que deve alimentos em primeiro lugar, não estiver em condições de suportar totalmente o encargo, serão chamados a concorrer os de grau imediato; sendo várias as pessoas obrigadas a prestar alimentos, todas devem concorrer na proporção dos respectivos recursos, e, intentada ação contra uma delas, poderão as demais ser chamadas a integrar a lide". Reafirme-se, contudo, que, nos casos em que quem pleiteia os alimentos é idoso, com idade superior a 60 anos, o art. 12 do Estatuto do Idoso (lei 10.741/2003) estabelece que a obrigação é solidária. Para essas hipóteses, no exemplo analisado, se o pai que irá pleitear os alimentos dos filhos tiver aquela idade, poderá fazê-lo contra qualquer um dos filhos e de forma integral, o que visa proteger o vulnerável, no caso, o idoso. Voltando-se ao art. 1.698 da codificação, a segunda parte do comando deixa clara novamente a divisibilidade da obrigação, aplicando-se a máxima concursu partes fiunt, de divisão igualitária de acordo com o número de devedores. No âmbito doutrinário, na IV Jornada de Direito Civil, foi aprovado o Enunciado n. 342, tratando da responsabilidade subsidiária, sucessiva e complementar dos demais parentes, caso dos avós, com a seguinte redação: "observadas as suas condições pessoais e sociais, os avós somente serão obrigados a prestar alimentos aos netos em caráter exclusivo, sucessivo, complementar e não solidário, quando os pais destes estiverem impossibilitados de fazê-lo, caso em que as necessidades básicas dos alimentandos serão aferidas, prioritariamente, segundo o nível econômico-financeiro dos seus genitores". Na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, a posição é consolidada no mesmo sentido, merecendo colação, por ser um dos primeiros precedentes sobre o tema: "A responsabilidade dos avós de prestar alimentos aos netos não é apenas sucessiva, mas também complementar, quando demonstrada a insuficiência de recursos do genitor" (STJ, REsp 579.385/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 26/08/2004, DJ 4/10/2004, p. 291). Na mesma linha é a afirmação n. 15, constante da Edição n. 65 da ferramenta Jurisprudência em Teses, da Corte Superior: "a responsabilidade dos avós de prestar alimentos aos netos apresenta natureza complementar e subsidiária, somente se configurando quando demonstrada a insuficiência de recursos do genitor". Exatamente no mesmo sentido da tese, a súmula 596 do Tribunal da Cidadania, aprovada em novembro de 2017. Dúvidas fulcrais surgem do art. 1.698 do Código Civil e desse contexto jurídico. A quem cabe a convocação dos demais parentes? Qual o instrumento jurídico cabível para tanto? A ilustrar, imagine-se que um filho ingressa com uma demanda contra o pai, que não tem condições de suportar totalmente o encargo. Como será possível a inclusão dos avós para que estes respondam pelas verbas alimentares, concretizando a citada responsabilidade subsidiária, sucessiva e complementar, retirada do entendimento doutrinário e da jurisprudência superior consolidada? Como Rodrigo Reis Mazzei, sempre sustentei que a hipótese seria de um litisconsórcio sucessivo-passivo, pois se trata de uma situação de responsabilidade subsidiária especial (Litisconsórcio sucessivo: breves considerações. In: DIDIER JR., Fredie; MAZZEI, Rodrigo (org.). Processo e direito material. Salvador: Juspodivm, 2009. p. 235). Sendo assim, tais convocações dos demais parentes devedores serão formuladas preferencialmente pelo autor da ação, e não pelo réu, presente um litisconsórcio facultativo. Acrescente-se que a tese de convocação pelo autor da ação de alimentos ganha força com o art. 238 do CPC/2015, segundo o qual a citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual. Consigne-se que o termo "convocados" não constava do art. 213 do CPC/1973, seu correspondente, que utilizava a expressão "se chama". Aproveitando o exemplo antes exposto, um filho pede alimentos ao pai, em ação própria. Após a contestação por este, mencionando que não tem condições de arcar integralmente com os alimentos, o autor da ação poderá requerer a inclusão do avô no polo passivo, com base no que consta do art. 1.698 do Código Civil Brasileiro de 2002. Parece ser um equívoco dizer que a convocação dos demais devedores cabe sempre ao réu, pois o Código de Processo Civil vigente, assim como o seu antecessor, não consagra essa forma de intervenção de terceiro. Em reforço, o atual Código Civil não menciona que a referida convocação cabe ao demandado. Do ponto de vista funcional, verifica-se que, por razões óbvias, se a convocação coubesse ao réu, não iria ele indicar os avós paternos, mas, sim, os maternos. De todo modo, sempre foi forte o entendimento de que a convocação caberia ao réu, por meio de uma forma de intervenção de terceiros sui generis, atípica ou especial. Essa é a opinião de Daniel Amorim Assumpção Neves, citando os posicionamentos, na mesma linha, de Sílvio de Salvo Venosa e Luiz Felipe Brasil Santos (Manual de direito processual civil. Volume único. São Paulo: Método, 2009. p. 179). Destaque-se, ainda, existir corrente doutrinária, a terceira delas, que sustenta a extensão da regra de solidariedade, sendo cabível o chamamento ao processo, posição liderada por Cassio Scarpinella (Chamamento ao processo. In: DIDIER JR., Fredie; WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (coord.). Aspectos polêmicos e atuais sobre os terceiros no processo civil e assuntos afins. São Paulo: RT, 2004. p. 88). Em síntese, nota-se uma torre de babel doutrinária a respeito da matéria. Na jurisprudência, o Superior Tribunal de Justiça vinha entendendo de forma majoritária que caberia aos réus da demanda - no caso, os pais - chamar ou convocar os avós. Nesse sentido, por todos: "A obrigação alimentar é de responsabilidade dos pais, e, no caso de a genitora dos autores da ação de alimentos também exercer atividade remuneratória, é juridicamente razoável que seja chamada a compor o polo passivo do processo a fim de ser avaliada sua condição econômico-financeira para assumir, em conjunto com o genitor, a responsabilidade pela manutenção dos filhos maiores e capazes. Segundo a jurisprudência do STJ, 'o demandado (...) terá direito de chamar ao processo os corresponsáveis da obrigação alimentar, caso não consiga suportar sozinho o encargo, para que se defina quanto caberá a cada um contribuir de acordo com as suas possibilidades financeiras' (REsp n. 658.139/RS, Quarta Turma, relator Ministro Fernando Gonçalves, DJ de 13/3/2006)" (STJ, REsp 964.866/SP, Rel. Min. João Otávio de Noronha, Quarta Turma, j. 1/3/2011, DJe 11/3/2011). Como se percebe, as decisões colacionadas seguem essa terceira corrente doutrinária, liderada por Cassio Scarpinella Bueno. Por fim, como uma quarta e derradeira corrente a respeito do art. 1.698 do Código Civil e a convocação dos demais responsáveis, anote-se a aprovação de enunciado, na V Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em 2011, visando facilitar a compreensão da matéria e possibilitando a citada convocação tanto pelo autor quanto pelo réu: "O chamamento dos codevedores para integrar a lide, na forma do art. 1.698 do Código Civil pode ser requerido por qualquer das partes, bem como pelo Ministério Público, quando legitimado" (Enunciado n. 523). Não se pode negar que a ideia constante do enunciado é louvável, por viabilizar a ampla tutela do alimentando, vulnerável na relação jurídica. O proponente do enunciado, Professor Daniel Ustarroz, da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, argumentou muito bem em suas justificativas que "essa solução privilegia o princípio do melhor interesse do menor e o ideal de celeridade processual, tornando desnecessária a propositura de outra ação de alimentos". No final de 2018, surgiu outro julgado superior, expondo todo o debate doutrinário - inclusive com a posição sustentada por mim, conforme a primeira corrente -, e decidindo, pelo menos em parte, na linha desse Enunciado n. 523 da V Jornada de Direito Civil, que "em ação de alimentos, quando se trata de credor com plena capacidade processual, cabe exclusivamente a ele provocar a integração posterior no polo passivo". Ainda nos termos do aresto, "nas hipóteses em que for necessária a representação processual do credor de alimentos incapaz, cabe também ao devedor provocar a integração posterior do polo passivo, a fim de que os demais coobrigados também componham a lide, inclusive aquele que atua como representante processual do credor dos alimentos, bem como cabe provocação do Ministério Público, quando a ausência de manifestação de quaisquer dos legitimados no sentido de chamar ao processo os demais coobrigados possa causar prejuízos aos interesses do incapaz" (STJ, REsp. 1.715.438/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 13/11/2018, DJe 21/11/2018). Como nele consta, explicando o teor do dispositivo em estudo, "a regra do art. 1.698 do CC/2002, por disciplinar questões de direito material e de direito processual, possui natureza híbrida, devendo ser interpretada à luz dos ditames da lei instrumental e, principalmente, sob a ótica de máxima efetividade da lei civil. A definição acerca da natureza jurídica do mecanismo de integração posterior do polo passivo previsto no art. 1.698 do CC/2002, por meio da qual são convocados os coobrigados a prestar alimentos no mesmo processo judicial e que, segundo a doutrina, seria hipótese de intervenção de terceiro atípica, de litisconsórcio facultativo, de litisconsórcio necessário ou de chamamento ao processo, é relevante para que sejam corretamente delimitados os poderes, ônus, faculdades, deveres e responsabilidades daqueles que vierem a compor o polo passivo, assim como é igualmente relevante para estabelecer a legitimação para provocar e o momento processual adequado para que possa ocorrer a ampliação subjetiva da lide na referida hipótese" (STJ, REsp 1.715.438/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 13/11/2018, DJe 21/11/2018). Em arremate final, julgou-se que: "no que tange ao momento processual adequado para a integração do polo passivo pelos coobrigados, cabe ao autor requerê-lo em sua réplica à contestação; ao réu, em sua contestação; e ao Ministério Público, após a prática dos referidos atos processuais pelas partes, respeitada, em todas as hipóteses, a impossibilidade de ampliação objetiva ou subjetiva da lide após o saneamento e organização do processo, em homenagem ao contraditório, à ampla defesa e à razoável duração do processo" (STJ, REsp 1.715.438/RS, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, j. 13/11/2018, DJe 21/11/2018). Não se pode negar que esse último julgado representa um notável avanço, por afastar a possibilidade de convocação exclusiva pelo réu, tutelando efetivamente o direito a alimentos. Espera-se, portanto, que a questão seja pacificada nesse sentido no âmbito da Segunda Seção da Corte, seguindo-se as premissas constantes do enunciado doutrinário antes destacado e revendo as correntes doutrinárias que entendiam de forma contrária.  
quarta-feira, 26 de junho de 2019

O divórcio unilateral ou impositivo

A Emenda do Divórcio (EC 66/2010) trouxe como principal impacto prático a facilitação do divórcio, não havendo mais menção, no art. 226, § 6º, da Constituição Federal, ao prazo mínimo para o seu requerimento, muito menos à prévia separação judicial. Apesar de a questão estar pendente de resolução no âmbito do Supremo Tribunal Federal, que reconheceu repercussão geral sobre o tema neste mês de junho de 2019, quando da análise do recurso extraordinário 1.167.478, sigo o entendimento segundo o qual a separação de direito - a incluir as modalidades judicial e extrajudicial -, não subsiste mais no sistema jurídico nacional. A par dessa facilitação - e também diante de uma sadia tendência de desburocratização e de extrajudicialização -, a Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco editou norma administrativa, elaborada pelo Desembargador Jones Figueirêdo Alves, no sentido de permitir o divórcio diretamente no Cartório de Registro Civil, no que se denomina divórcio unilateral ou impositivo (Provimento 06/2019). A medida acabou por ser reproduzida pela Corregedoria Geral do Tribunal de Justiça do Maranhão. Entretanto, em decisão prolatada em pedido de providências instaurado de ofício, no final de maio deste ano de 2019, o corregedor-Geral do Conselho Nacional de Justiça decidiu suspender as medidas administrativas, recomendando que os Tribunais Estaduais não editem normas no mesmo sentido. Segundo o Ministro Humberto Martins, existiriam dois óbices jurídicos no provimento do Estado de Pernambuco (CNJ, Pedido de Providências n. 0003491-78.2019.2.00.0000). O primeiro teria natureza formal, uma vez que o divórcio unilateral ou impositivo implicaria a inexistência de consenso entre os cônjuges, presente uma forma de divórcio litigioso. Sobre essa modalidade, segundo o julgador, não há amparo legal para que seja efetivada extrajudicialmente, mas apenas por meio de uma sentença judicial, nos termos do que consta dos arts. 693 a 699 do vigente Código de Processo Civil. O Ministro Humberto Martins acrescentou que por haver matéria atinente ao Direito Civil e ao Processual Civil há competência exclusiva da União para tratar do seu conteúdo e por meio de lei federal, nos termos do art. 22, incisos I e XXV, da Constituição da República. Sendo assim, não seria possível tratar do tema por meio de uma norma de cunho administrativo no âmbito da Corregedoria Geral de Justiça de uma Corte Estadual. Do ponto de vista material, o Corregedor-Geral de Justiça do CNJ pontuou que o Provimento 06/2019 do TJPE não observou o princípio da isonomia, "uma vez que estabelece uma forma específica de divórcio no Estado de Pernambuco, criando disparidade entre esse e os demais Estados que não tenham provimento de semelhante teor". Nesse contexto, caso mantida a sua vigência, haveria uma "consequência gravíssima para a higidez do direito ordinário federal, cuja uniformidade é um pressuposto da Federação e da igualdade entre os brasileiros. A Constituição de 1988 optou pela centralização legislativa nos mencionados campos do Direito. Ao assim proceder, o constituinte objetivou que o mesmo artigo do Código Civil ou do Código de Processo Civil fosse aplicado aos nacionais no Acre, em Goiás, em Natal, em São Paulo, no Rio Grande do Sul e nos demais Estados. Quando houver aplicação divergente dessas normas, entrará a função uniformizadora do Superior Tribunal de Justiça, o Tribunal da Cidadania, por meio do recurso especial. Aceitar que um tribunal local legisle, embora não se utilize essa terminologia no texto do Provimento n. 06/2019, é o mesmo que negar a existência do Superior Tribunal de Justiça e suas funções constitucionais". Por fim, está destacado no decisum que o único meio de se buscar o divórcio extrajudicial no atual sistema jurídico é pela via consensual, mediante escritura pública lavrada de comum acordo pelos cônjuges perante o Tabelionato de Notas, nos termos do que consta do atual art. 733 do Código de Processo Civil de 2015. E arremata o Ministro Corregedor Humberto Martins: "desse modo, o 'divórcio impositivo', trazido pelo Provimento n. 06/2019, ao dispor que uma das partes poderá comparecer ao registro civil para requerer o divórcio, desconsidera o fato de que não existe consenso por parte do outro cônjuge (hipótese em que o divórcio deverá ser realizado judicialmente)". Pois bem, diante desses argumentos, que são bem plausíveis e fortes juridicamente, notadamente do ponto de vista formal, resolvemos propor ao Senador Rodrigo Pacheco, de Minas Gerais, projeto de lei tratando do divórcio unilateral ou impositivo (PLS 3.457/2019). O texto foi claramente inspirado pela norma administrativa do Tribunal de Pernambuco, tendo sido revista por mim e pelos Professores Mario Luiz Delgado e José Fernando Simão, além do próprio Desembargador Jones Figueirêdo Alves. De todo modo, destaco que prefiro falar doutrinariamente em divórcio unilateral, havendo certa correspondência à resilição unilateral prevista para os contratos em geral e tratada pelo art. 473, caput, do Código Civil. A ideia é incluir um art. 733-A no vigente Código de Processo Civil, o que afasta todos os óbices - formal e material - apontados pelo Ministro Humberto Martins em sua decisão no âmbito do Conselho Nacional de Justiça. Conforme o texto proposto, na falta de anuência do outro cônjuge para a lavratura da escritura, não havendo nascituro ou filhos incapazes e observados os demais requisitos legais, qualquer um dos cônjuges poderá requerer, diretamente no Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais em que lançado o assento do seu casamento, a averbação do divórcio, à margem do respectivo assento. Esse pedido de divórcio unilateral será subscrito pelo interessado e também por advogado ou Defensor Público, constando a qualificação e a assinatura do cônjuge do pedido e da averbação levada a efeito. Sucessivamente, o cônjuge não anuente será notificado pessoalmente, para fins de prévio conhecimento da averbação pretendida. Na hipótese de não ser encontrado o cônjuge notificando, ocorrerá a sua notificação por edital, após insuficientes as buscas de endereços constantes das bases de dados disponibilizadas ao sistema do Poder Judiciário. Também está previsto na proposta legislativa que, depois de efetivada a notificação pessoal ou por edital, o Oficial do Registro Civil das Pessoas Naturais procederá, em cinco dias, à averbação do divórcio unilateral. Se for o caso, em havendo no pedido de averbação do divórcio cláusula relativa à alteração do nome do cônjuge requerente, com a retomada do uso do seu nome de solteiro, o Oficial de Registro Civil que averbar o ato no assento de casamento também anotará a alteração no respectivo assento de nascimento, se de sua unidade, ou, se de outra, comunicará ao Oficial competente para a necessária anotação. Além dessa possibilidade de alteração do nome, nenhuma outra pretensão poderá ser cumulada ao pedido de divórcio unilateral, especialmente as relativas aos alimentos familiares, ao arrolamento e à partilha de bens, ou mesmo relacionadas a medidas protetivas, que serão tratados pelo juízo competente, ou seja, somente no âmbito do Poder Judiciário. Concretiza-se, assim, a ideia doutrinária segundo a qual o pedido único e isolado de divórcio passou a ser um direito potestativo do cônjuge, notadamente se não estiver cumulado com outros pleitos de natureza subjetiva. Em havendo direito potestativo, não há como haver resistência da outra parte, que se encontra em estado de sujeição. Muitas são as situações concretas em que essa modalidade de divórcio unilateral traz vantagens práticas. Primeiro, cite-se a hipótese em que o outro cônjuge não quer conceder o fim do vínculo conjugal por mera "implicância pessoal", mantendo-se inerte quanto à lavratura da escritura de divórcio consensual e negando-se também a comparar em juízo. Segundo, podem ser mencionados os casos em que um dos cônjuges encontra-se em local incerto e não sabido, ou mesmo desaparecido há anos, não podendo o outro divorciar-se para se casar novamente. Por fim, destaquem-se as situações de violência doméstica, em que o diálogo entre as partes é impossível e deve ser evitado, sendo urgente e imperiosa e decretação do divórcio do casal. Em todos esses casos, decreta-se o divórcio do casal, deixando o debate de outras questões para posterior momento. Como últimas palavras para este breve texto, como bem pontuado pelo Professor e Registrador Gustavo Canheu, além dessa mudança no Código de Processo Civil, é preciso alterar a lei 8.935/1994 (Lei dos Cartórios) e a lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), para que seja introduzida expressamente a competência dos Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais para o registro dessa nova modalidade de divórcio unilateral. Espera-se que o projeto de lei siga adiante, e com especial atenção do Congresso Nacional quanto à sua imperiosa agilidade e pertinência, diminuindo formalidades que ainda persistem no sistema jurídico brasileiro e facilitando a vida das pessoas. Eventuais alterações no texto do projeto serão feitas no âmbito do processo legislativo, inclusive quanto a novas sugestões de alteração do texto que possam surgir e sejam apresentadas a nós, idealizadores dessa iniciativa.  
Como destacado por mim em outros textos de breve análise publicados neste mesmo canal, no último dia 30 de abril de 2019, foi assinada pelo presidente da República a Medida Provisória 881, conhecida como "MP da Liberdade Econômica". Entre outras modificações, alterou-se o art. 50 do Código Civil, que trata da desconsideração da personalidade jurídica, sendo objetivo deste artigo fazer uma abordagem mais aprofundada dos impactos das modificações para a subsunção da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do Direito de Família e das Sucessões. Apesar de ser contestável o caráter de urgência da MP, em especial no que diz respeito às modificações que fez no Código Civil, muito distantes do que consta do art. 62 da Constituição Federal, farei um estudo objetivo dos conteúdos das inovações, sem debater essa suposta inconstitucionalidade na origem. Na linha da doutrina e da jurisprudência majoritárias, existem duas teorias a respeito do instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Pela teoria maior, adotada pelo citado comando da codificação material, a incidência do instituto exige dois requisitos, quais sejam o abuso da personalidade jurídica e o prejuízo ao credor que pretende a quebra da autonomia da pessoa jurídica frente aos seus membros. Por seu turno, segundo a teoria menor, retirada do art. 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor, a desconsideração da personalidade jurídica exige apenas o prejuízo ao credor, estando facilitada no campo prático em favor dos consumidores, tidos como vulneráveis nas relações contratuais. Por óbvio que a desconsideração aplicada ao Direito de Família e das Sucessões atrai a primeira das teorias, que incide para as relações civis e empresariais: "O art. 50 do Código Civil, aplicável às relações civis-empresariais, adota a Teoria Maior da desconsideração da personalidade da pessoa jurídica, só podendo ser aplicado quando comprovado especificamente desvio de finalidade ou confusão patrimonial" (STJ, Ag. Int. no REsp 1.585.391/SP, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 07/11/2017, DJe 14/11/2017). Cite-se, como primeiro exemplo a respeito do Direito de Família, a possibilidade de desconsideração da personalidade jurídica em demanda de divórcio em que os cônjuges disputam bens, que foram transferidos a uma empresa da qual o marido é sócio, o que atrai a incidência da desconsideração inversa, para que os bens da pessoa jurídica respondam por dívidas de um de seus sócios. Como se retira de outro recente acórdão superior, "a jurisprudência desta Corte admite a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica toda vez que um dos cônjuges ou companheiros utilizar-se da sociedade empresária que detém controle, ou de interposta pessoa física, com a intenção de retirar do outro consorte ou companheiro direitos provenientes da relação conjugal" (STJ, REsp. 1.522.142/PR, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 13/6/2017, DJe 22/6/2017). Ilustrando situação no campo sucessório, imagine-se uma disputa entre herdeiros em que se pretende atingir do mesmo modo bens que foram sonegados por um deles e que foram transferidos a uma empresa por um dos filhos do falecido, que já detinha a sua posse anteriormente. Como outro exemplo concreto, cite-se acórdão do Tribunal de Justiça de Goiás, que aplicou a desconsideração inversa diante da transferência fraudulenta de bens do falecido a um dos seus filhos, por intermédio de uma pessoa jurídica: "Com o falecimento do genitor, momento em que é aberta a sucessão, os filhos que receberam em vida, por ato de liberalidade, bem ou valor que integrava o patrimônio do ascendente comum, devem trazê-lo à colação no processo de inventário, por força do art. 2.002 do Código Civil. A doação de ascendente para descendente cujo termo não dispensa expressamente a colação importa em adiantamento do que lhe cabe por herança, consoante a dicção do art. 544 do Código Civil, e, por isso, deve ser submetida à conferência de valores, a fim de igualar as legítimas de todos os herdeiros. Caracterizada a transferência fraudulenta de bens do autor da herança a alguns de seus filhos, por intermédio de pessoa jurídica, sob o mote da simulação relativa, em notório prejuízo a terceiro, resta autorizada a aplicação da desconsideração da personalidade jurídica na via inversa" (TJGO, Apelação cível n. 0251017-79.2010.8.09.0175, Goiânia, Quarta Câmara Cível, Rel. Des. Marcus da Costa Ferreira, DJGO 25/8/2014, pág. 282) Na prática, não se pode negar que a desconsideração inversa tem mais aplicação no âmbito familiar e sucessório do que a própria desconsideração regular ou direta. Dito de outra forma, são mais comuns os pedidos de responsabilização da pessoa jurídica por dívidas dos sócios e administradores do que o contrário. Por isso, louva-se a inclusão de um § 3º no art. 50 do Código Civil pela MP n. 881, estabelecendo que o "disposto no caput e nos § 1º e § 2º também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica". Somente reitero a minha sugestão de modificação no texto no sentido de que o comando seja claro quanto à categoria da desconsideração inversa, como consta do art. 133, § 2º do Código de Processo Civil de 2015, para que não paire qualquer dúvida sobre qual instituto está ali previsto. Assim, melhor ficaria o dispositivo legal com o seguinte teor: "§ 3º O disposto neste artigo também se aplica à desconsideração inversa da personalidade jurídica". Acatando sugestão por mim formulada, o Senador Rodrigo Pacheco, de Minas Gerais, propôs emenda nesse sentido à Medida Provisória 881, sem prejuízo de outras sugestões na mesma linha (proposta de emenda 173, entre as mais de 300 apresentadas. Disponível aqui. Acesso em: 22/5/19. Apesar dessa elogiável alteração, não vejo com bons olhos a inclusão do dolo como requisito para a configuração do desvio de finalidade na desconsideração da personalidade jurídica, como consta do § 1º do art. 50 do Código Civil, no texto inserido pela MP 881: "para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização dolosa da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza". Constata-se que a norma passou a estabelecer como requisito para um dos elementos da teoria maior da desconsideração a intenção do sócio ou administrador em utilizar a pessoa jurídica para o desvio de seus fins, almejando a lesão aos direitos de outrem ou a prática de ilícitos sob o seu manto. Reitero que há um claro retrocesso nessa inclusão, que traz grandes entraves para a incidência da categoria, agravados para os casos envolvendo o Direito de Família, em que há certo distanciamento, abrandamento ou até eliminação de elementos subjetivos, caso da culpa. A Emenda do Divórcio (EC 66/2010) consolidou essa tendência de declinação dos fatores intencionais e volitivos nas demandas de família, e a Medida Provisória 881 acaba por resgatá-los. Ademais, repito neste texto que a exigência do dolo distancia-se da teoria objetiva do abuso de direito, retirada do art. 187 do Código Civil, segundo o qual também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim social e econômico, pela boa-fé ou pelos bons costumes. O último comando exige apenas o exercício irregular ou imoderado de um direito para que a ilicitude esteja configurada, sem qualquer menção ao elemento subjetivo da intenção - dolo -, ou da falta de cuidado na violação de um dever preexistente - culpa em sentido estrito. A MP, seguindo outra linha que muito dificulta a desconsideração, concretiza um modelo subjetivo e agravado, uma vez que só o dolo, e não a simples culpa, gera a configuração desse primeiro elemento da disregard. Cabe ainda relembrar que o elemento doloso para a aplicação da desconsideração é exigido pela jurisprudência superior apenas para os casos de encerramento irregular das atividades, quando a pessoa jurídica não mais desenvolve as suas atividades no local indicado nos documentos formais, não paga seus credores e não informa qualquer alteração fática (STJ, EREsp. 1.306.553/SC, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Segunda Seção, julgado em 10/12/2014, DJe 12/12/2014). Entendo que o dolo, no máximo, deve ficar restrito a tais hipóteses fáticas. Por isso, a minha sugestão para o novo texto é que se retire a expressão "dolosa", passando o § 1º do art. 50 do CC/2002 a prever que "para fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza". No tocante às demandas que dizem respeito ao Direito de Família e das Sucessões, penso haver uma dificuldade maior em se construir a prova a respeito do elemento doloso, notadamente por parte de cônjuges, companheiros ou herdeiros que não conhecem a engrenagem empresarial da pessoa jurídica que pretende desconsiderar, pois nunca a administraram. Em muitas situações de dificuldade probatória, é possível até a aplicação da carga dinâmica da prova em seu favor, conforme preceitua o art. 373, § 1º do Código de Processo Civil, in verbis: "Nos casos previstos em lei ou diante de peculiaridades da causa relacionadas à impossibilidade ou à excessiva dificuldade de cumprir o encargo nos termos do caput ou à maior facilidade de obtenção da prova do fato contrário, poderá o juiz atribuir o ônus da prova de modo diverso, desde que o faça por decisão fundamentada, caso em que deverá dar à parte a oportunidade de se desincumbir do ônus que lhe foi atribuído". O mesmo se diga quanto à inserção do § 5º no art. 50 pela MP em estudo, segundo o qual "não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica". Há, mais uma vez, uma valorização excessiva e dificultosa do elemento subjetivo para a desconsideração, pois não se admite o desvio de finalidade por meras condutas objetivas descritas no comando. A exemplo do que ocorre com a menção anterior ao dolo, entendo que a última previsão também deve receber a especial atenção do Congresso Nacional, pois cônjuges, companheiros e herdeiros terão novamente grande dificuldade em comprovar o desvio de finalidade. Nesse contexto, fiz sugestão ao Senador Rodrigo Pacheco para a retirada da menção à alteração da finalidade original da atividade, pois a fraude perpetrada por sócios e administradores pode, sim, decorrer dessa modificação (proposta de emenda n. 173, disponível aqui. Acesso em 22/5/19). Assim, o preceito passaria a dispor que "Não constitui desvio de finalidade a mera expansão da pessoa jurídica". Imagine-se, a título de exemplo, o caso de um herdeiro que desvia os fins nobres de uma fundação da qual é administrador e que leva o nome do de cujus, seu pai já falecido, com o objetivo de prejudicar seus irmãos, também herdeiros, e amealhar a maior parte do patrimônio do falecido, em negócio indireto ilícito. Esse desvio de finalidade, por si só, não ensejaria a incidência da desconsideração pelo novo texto legal, pois não se explicita qual a alteração de finalidade original que nele está tratada. Espera-se, portanto, e como palavras finais para mais este artigo sobre o tema, que essas questões sejam consideradas nos debates para conversão da Medida Provisória 881 em lei, em trâmite no Congresso Nacional. Não se pode negar que a norma tem os seus méritos, mas também apresenta problemas que precisam ser sanados no âmbito do Poder Legislativo brasileiro, especialmente para a incidência da desconsideração da personalidade jurídica para o Direito de Família e das Sucessões.  
Em texto anterior, publicado neste canal, fiz uma breve e inicial análise da lei 13.811/2019, que alterou o art. 1.520 do Código Civil Brasileiro, passando a proibir, expressamente, o casamento do menor de 16 anos, denominado por alguns como casamento infantil. Conforme o atual texto do dispositivo da codificação privada, "não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código". Como antes pontuei, não houve alteração ou revogação expressa de qualquer outro comando do Código Civil em vigor. Diante dessa realidade legal, e como o menor de 16 anos já era considerado incapaz para o casamento pelo sistema anterior, manifestei a minha opinião doutrinária no sentido de subsistir a nulidade relativa ou anulabilidade do casamento do menor de 16 anos. Assim, continua plenamente em vigor o art. 1.550, inc. I, da codificação material, que assim o expressa. A mesma conclusão vale para os dispositivos que tratam da possibilidade de convalidação do casamento do menor (arts. 1.551 e 1.553 do CC/2002); da norma que elenca os legitimados para promoverem a ação anulatória (art. 1.552) e do comando que consagra o prazo decadencial de 180 dias para o ingresso da ação anulatória do casamento em casos tais (art. 1.560, § 1º). Não me convence, portanto, a afirmação feita por alguns doutrinadores no sentido de ser o casamento infantil nulo de pleno direito, diante da norma emergente. Argumentam que a lei proíbe a prática do ato sem cominar sanção, presente a chamada nulidade virtual, nos termos do art. 166, inc. VII, segunda parte, do Código Civil. Contudo, com o devido respeito, esse comando geral somente seria aplicado se não existissem todas as disposições específicas citadas, que não foram revogadas expressa ou tacitamente pela lei 13.811/2019. Para afastar a alegação de revogação tácita, lembro e insisto: o casamento do menor de 16 anos já não era admitido pelo sistema jurídico nacional, presente hipótese de incapacidade para o ato. Resta agora analisar a hipótese fática da união estável constituída pelo menor de 16 anos. Seria ela nula ou perfeitamente válida, na realidade jurídica brasileira? A resposta a essa indagação é importante pois, estando proibido peremptoriamente o casamento infantil, a união estável acaba sendo uma opção para muitas pessoas que querem constituir outra entidade familiar. Imagine, por exemplo, o caso de uma menor com 15 anos de idade que engravida do namorado de 18 anos e que pretende com ele viver em estado de conjugalidade, cuidando do filho havido dessa união, em comunhão plena de vidas. Como é notório, a união estável é tida como uma união livre, cujos elementos caracterizadores constam do art. 1.723 da codificação privada, segundo o qual é reconhecida como entidade familiar a união estável entre duas pessoas, "configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". São seus elementos fundamentais, portanto: a) a convivência pública, no sentido de notória ou conhecida; b) a continuidade e certa durabilidade da união, o que não encontra previsão de um prazo mínimo na lei, demandando análise casuística; c) o objetivo de constituição de família já presente no caso concreto (intuitu familiae), o que serve para diferenciar essa entidade familiar de um namoro ou de um noivado, hipóteses em que o objetivo é de constituição de uma família no futuro. Não há qualquer dispositivo que trate da idade mínima para a sua constituição, a exemplo do que ocorre com o casamento, estando a idade núbil de 16 anos fixada no antes citado art. 1.517 do Código Civil. Sobre a união estável, há outro comando a ser destacado, que afasta a sua caracterização em havendo impedimento matrimonial, prevendo o art. 1.727 da codificação que "as relações não eventuais entre o homem e a mulher, impedidos de casar, constituem concubinato". Todavia, como adverti em meu texto anterior, a questão da idade não importa em impedimento para o casamento, mas em questão afeita à incapacidade matrimonial. Por isso, o último preceito não tem incidência para a temática que ora se analisa. Apesar dessa ausência de norma específica relativa à capacidade para a constituição da união estável, é forte o entendimento doutrinário e jurisprudencial no sentido de que devem ser observados, por analogia, os mesmos critérios presentes para o casamento. Seguindo essa posição, a união estável do menor de 16 anos deve ser tida como nula ou até como inexistente. Isso porque, em havendo incapacidade para o casamento, esta também se faz presente para a união estável, aplicando-se o art. 1.517 do Código Civil para a última entidade familiar. Não se cogita a anulabilidade da união estável pela falta de previsão legal a respeito da invalidade, ao contrário do que ocorre com o casamento (art. 1.550, inc. I, do CC). Nesse sentido, colaciona-se, entre os arestos estaduais: "DIREITO DE FAMÍLIA. APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE RECONHECIMENTO DE UNIÃO ESTÁVEL. CONFIGURAÇÃO DA UNIÃO. REQUISITOS. MENOR DE 16 ANOS. RECUSA DO GENITOR. AUSÊNCIA DOS ELEMENTOS NECESSÁRIOS À CONFIGURAÇÃO DA UNIÃO. RECURSO DESPROVIDO. I. Para a configuração da União protegida pelo ordenamento constitucional, exige-se, primordialmente, que o relacionamento ostente estabilidade e que, por conseguinte, seja contínuo, ou seja, sem interrupções e sobressaltos, pressupondo-se, ainda, a publicidade e o essencial objetivo de constituição de família, traduzido na comunhão de vida e de interesses, além da ausência de impedimentos ao Casamento e a capacidade para casar, nos termos do artigo 1.517, do Código Civil. II. Inviável a qualificação como União Estável da relação amorosa mantida por aquele que ainda não alcançou a idade núbil, dada a ausência de capacidade para a manifestação plena da sua intenção de constituir família, circunstância essa que não restou suprida, na espécie, pela autorização do representante legal, em virtude da manifesta recusa do genitor do de cujus no reconhecimento do vínculo familiar pretendido. III. Conquanto seja certo que a Recorrente e o de cujus mantiveram relacionamento amoroso até o momento do óbito, não se afigura possível afirmar, com amparo no contexto probatório dos autos, que referida relação ostentava estabilidade, continuidade e publicidade compatível com o objetivo mútuo de comunhão familiar, afastando-se a pretensão de reconhecimento da União Estável post mortem. IV. Recurso conhecido e desprovido, nos termos do voto do Eminente Desembargador Relator" (TJES, Apelação cível n. 0011778-29.2010.8.08.0030, Segunda Câmara Cível, Rel. Des. Namyr Carlos de Souza Filho, julgado em 07.08.2012, DJES 14.08.2012). "Apelação cível. Ação de reconhecimento de união estável. Instituto equiparado, por analogia, ao casamento. Convivente menor de idade ao tempo da união. Ausência de idade núbil. Aplicação do art. 1.517, do Código Civil. Impossibilidade jurídica do pedido. Recurso conhecido e desprovido. I. Primeiramente, a Lei n. 9.278/1996 reconheceu a união estável e disciplinou os direitos e deveres dos companheiros perante a entidade familiar, bem como os direitos patrimoniais e sucessórios advindos dessa espécie de relacionamento. Contudo, omissa a aludida Lei acerca dos requisitos necessários a sua efetivação, aplicáveis, por analogia, as disposições contidas no Código Civil que regulamentam o casamento, por se tratar de institutos jurídicos que se equiparam, em que pese distintos (art. 226, § 3.º, CF). III. Consoante disposição contida no art. 1.517 do Código Civil, podem casar o homem e a mulher com dezesseis anos, exigida a autorização dos pais ou representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil. Todavia, ausente idade núbil mínima exigida pela legislação, não há falar em casamento ou reconhecimento da união estável, por impossibilidade jurídica do pedido" (TJ/SC, Apelação Cível 2008.007832-0, Criciúma, 1.ª Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Joel Dias Figueira Júnior, j. 02.05.2011, DJSC 31.05.2011, p. 114). Entretanto, é possível concluir de forma diversa, entendimento sobre o qual tenho refletido a partir da entrada em vigor da lei 13.811/2019. De início, para afastar a tese quanto à aplicação do art. 1.517 do Código Civil por analogia, lembro que se trata de norma restritiva, que, como tal, não comporta essa forma de integração, prevista no art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Sobre o argumento de equiparação das duas entidades familiares - que ganhou força com o julgamento do STF de inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, publicado no Informativo n. 864 da Corte -, anote-se a afirmação no sentido de que permanecem diferenças entre o casamento e a união estável, sobretudo quanto às normas de constituição e de formalidades. Nesse sentido, pelo menos parcialmente, o Enunciado 641, aprovado na VIII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal em 2018: "a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável. Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solidariedade familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada na solenidade do ato jurídico que funda o casamento, ausente na união estável". A eventual conclusão pela existência e validade da união estável do menor de 16 anos tem como fundamento a afirmação doutrinária no sentido de tratar-se de um ato-fato jurídico, um fato jurídico qualificado por uma vontade não relevante em um primeiro momento, mas que se revela relevante por seus efeitos. Em havendo tal instituto, mitigam-se as regras de validade, notadamente as que dizem respeito à capacidade. Nesse contexto, não deve ser considerada a incapacidade absoluta prevista no art. 3º do Código Civil, quanto aos menores de 16 anos. Relativiza-se, ainda, o que consta do art. 166, inc. I, da própria codificação, no sentido de ser nulo o negócio jurídico celebrado por absolutamente incapaz, sem a devida representação. A melhor expressão de análise casuística da vontade no ato-fato jurídico é retirada do teor do Enunciado 138, aprovado na III Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal, segundo o qual a vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese dos menores de 16 anos, é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto. Não se pode negar que a constituição de uma união estável é uma situação existencial e, tendo o menor de idade o necessário discernimento para esse ato familiar, pode ele ser tido como plenamente válido. Sempre tive minhas resistências em relação ao ato-fato jurídico, por entender que a categoria não teria a necessária e efetiva aplicação prática no ordenamento jurídico brasileiro. Ademais, quanto à união estável, vinha sustentando tratar-se de um negócio jurídico ou de um ato jurídico em sentido estrito, a depender da qualificação da vontade no caso concreto. Todavia, a hipótese fática de união estável do menor de 16 anos traz conclusão em sentido contrário, de efetividade do instituto, sendo viável doutrinariamente adotá-lo em casos tais. Como palavras finais, nota-se que o casamento e a união estável acabam por receber uma certa condenação legislativa prévia em alguns casos, no sentido de não admiti-los para não prejudicarem determinadas pessoas, tidas como em situações de vulnerabilidade. Esse raciocínio, por exemplo, fazia com que fosse proibido o casamento do enfermo mental, conforme a redação original do art. 1.548, inc. I, do Código Civil, revogado pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência (lei 13.146/2015). Essa revogação, propiciando o casamento da pessoa com deficiência, evidencia o pensamento em contrário, de não se poder considerar a constituição da entidade familiar como prejudicial. Todavia, a ideia de condenar a constituição da família parece ter voltado com a emergência da lei 13.811/2019, na alteração relativa ao art. 1.520 do Código Civil. Seria correto estender tal raciocínio à união estável? Entendo que existem motivos consideráveis para se afirmar que não, dando-se ao sistema jurídico certa margem de liberdade para o exercício da autonomia privada quanto à escolha de uma ou outra entidade familiar.  
No último dia 12 de março de 2019 foi promulgada - e já está em vigor no país - a lei 13.811, que alterou o art. 1.520 do Código Civil brasileiro, conforme a seguinte tabela, elaborada para os devidos fins de esclarecimento dos conteúdos das normas: Texto anterior Texto atual "Art. 1.520. Excepcionalmente, será permitido o casamento de quem ainda não alcançou a idade núbil (art. 1.517), para evitar imposição ou cumprimento de pena criminal ou em caso de gravidez". "Art. 1.520. Não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código". Mesmo antes da entrada em vigor da norma, o texto modificativo já vinha recebendo elogios de uns e críticas de outros, sendo certo que com a sua emergência os debates se intensificaram em vários canais, de contato pessoal e eletrônico. Vale destacar, de imediato, pois relevante para as conclusões deste breve texto, que não houve alteração ou revogação expressa de qualquer outro comando do Código Civil em vigor. Como primeiro aspecto a ser destacado, a norma anterior, que excepcionava a possibilidade do casamento do menor de 16 anos, recebia abrandamentos por três leis penais que surgiram sucessivamente à codificação material, a lei 11.106/2005, a lei 12.015/2009 e a lei 13.718/2018. A verdade é que o casamento do menor de 16 anos - denominado por parcela da doutrina como casamento infantil - já era proibido pelo nosso sistema jurídico, mesmo antes da mudança e como premissa geral, havendo apenas duas exceções previstas no anterior art. 1.520 do Código Civil que tinham sido sobremaneira mitigadas, a saber: a) para evitar a imposição e o cumprimento de pena criminal; e b) em caso de gravidez. Tal afirmação é retirada da dicção do art. 1.517 da codificação material, que não sofreu modificação pela norma emergente, segundo o qual "o homem e a mulher com dezesseis anos podem casar, exigindo-se autorização de ambos os pais, ou de seus representantes legais, enquanto não atingida a maioridade civil". Em suma, por este último preceito, a capacidade específica para o casamento é atingida aos 16 anos, sendo essa a idade núbil para todos os gêneros. Como é notório, não se pode confundir a incapacidade para o casamento com os impedimentos matrimoniais. A primeira impede que alguém se case com qualquer pessoa, enquanto os impedimentos somente atingem determinadas pessoas em situações específicas, previstas no art. 1.521 do CC/2002. Em outras palavras, os impedimentos envolvem a legitimação, conceituada como uma capacidade ou condição especial para celebrar determinado ato ou negócio jurídico. Nesse contexto, não se pode dizer que a alteração do art. 1.520 do Código Civil tenha criado hipótese de impedimento matrimonial, estando no âmbito da incapacidade, que não foi alterada, pois não houve qualquer modificação do texto do art. 1.517. Sobre as citadas leis penais que mitigaram as exceções de autorização judicial do casamento do menor de 16 anos, de início, a lei 11.106/2005 afastou a extinção da punibilidade nos casos do então estupro presumido (art. 107, incs. VII e VIII, do Código Penal), ou seja, na hipótese de alguém manter relação sexual com uma criança ou adolescente com idade inferior a 14 anos, e depois se casar com ela. Como não havia que se falar mais em extinção da punibilidade, muitos passaram a entender que o art. 1.520 do CC/2002 estaria revogado na parte que tratava da extinção da pena criminal. Todavia, nessa realidade legislativa, existia manifestação em sentido contrário, ou seja, ainda pela possibilidade do casamento, havendo o anterior estupro presumido. Segundo os que assim entendiam, não se poderia falar em revogação da norma civil, pois o menor poderia sim, em alguns casos, exercer a opção de se casar com aquele que praticara o crime contra os costumes. Como a ação penal, no caso do crime em questão, ainda era considerada de natureza privada, estávamos diante de um caso de renúncia ou perdão tácito, que decorreria de fato incompatível com a pretensão de ver o agente punido, no caso, com a celebração do casamento. Em casos tais e naquele sistema anterior, se a menor de idade quisesse se casar, a sua vontade poderia ser considerada relevante para tal finalidade, conforme o Enunciado n. 138 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil ("A vontade dos absolutamente incapazes, na hipótese do inc. I do art. 3º, é juridicamente relevante na concretização de situações existenciais a eles concernentes, desde que demonstrem discernimento bastante para tanto"). Com base nesse enunciado doutrinário, o magistrado poderia assim autorizar o casamento se a menor declarasse querer viver com o pai da criança e desde que demonstrasse discernimento bastante para tanto, o que seria provado por perícia psicológica. Além desse argumento penal, poderia ser utilizado um argumento civil. Como a família deve ser analisada de acordo com o contexto social, o casamento com o autor do crime poderia ser tido como uma forma de abrandar o problema de uma gravidez indesejada. Ou melhor, seria adequado enviar o criminoso, pai dessa criança que ainda vai nascer, para a cadeia? Alguns doutrinadores respondiam negativamente, naquela realidade anterior. Argumentava-se que o Direito Penal deve ser a ultima ratio, o último caminho a ser percorrido, ao contrário do Direito de Família, que busca a pacificação social, a vida conjunta em harmonia. Em reforço, anteriormente, poderia ser citado o princípio do melhor interesse da criança e do adolescente (best interest of the child), bem como a função social da família. Ilustrava-se com a hipótese fática de uma menina de 13 anos que teve relacionamento sexual com um homem de 18 anos e dele ficou grávida. O pai da criança não tem qualquer antecedente criminal e a menor quer casar com o "criminoso" a qualquer custo. Ambos se amam. Se entendêssemos simplesmente pela derrogação do dispositivo, esse casamento não poderia ser realizado. Como conclusão, o pai da criança iria para a cadeia e a menor ficaria em situação de desamparo. Aliás, na prática, possivelmente ela constituiria uma união estável com o pai da criança, passando a visitá-lo na prisão. Acreditava-se, ainda naquele sistema anterior, que o casamento e a consequente extinção da punibilidade do agente eram a melhor solução para esse caso descrito. E justamente por poder ser aplicado a casos como esse é que o art. 1.520 do CC/2002 deveria permanecer incólume. Por esse entendimento, o Direito de Família acabaria prevalecendo sobre o Direito Penal. De toda sorte, mesmo nessa realidade jurídica, entre os anos de 2005 e 2009, alguns juristas já defendiam a revogação parcial do art. 1.520 do CC. O meu entendimento era de uma abordagem casuística àquela época. Assim, a título de ilustração, no caso do relacionamento de uma criança de nove anos de idade com um homem adulto - conforme foi julgado pelo STF no passado (STF, RE 418.376/MS, Rel. orig. Min. Marco Aurélio, Rel. p/ acórdão Min. Joaquim Barbosa, 09.02.2006) -, dever-se-ia entender que o casamento não poderia ser realizado. Isso porque a manifestação da vontade da menor não seria juridicamente relevante para tanto. No caso em questão, o art. 1.520 do CC, em sua redação originária, não teria incidência. A minha conclusão anterior, em suma, era justamente na linha de se analisar caso a caso, o que traria a conclusão de que seria melhor considerar que o preceito civil não foi derrogado ou revogado parcialmente de forma tácita. Nesse sentido, determinando uma leitura civil-constitucional do então art. 1.520 do CC, o teor do Enunciado n. 329 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na IV Jornada de Direito Civil, ocorrida em outubro de 2006: "A permissão para casamento fora da idade núbil merece interpretação orientada pela dimensão substancial do princípio da igualdade jurídica, ética e moral entre o homem e a mulher, evitando-se, sem prejuízo do respeito à diferença, tratamento discriminatório". Sucessivamente, a segunda lei penal que mitigou a aplicação do art. 1.520 em sua redação original, a lei 12.015, de 7 de agosto de 2009, parece ter encerrado o debate anterior, não sendo mais possível o casamento da menor com aquele que cometeu o crime antes denominado como de estupro presumido, em hipótese alguma. Isso porque o Código Penal, ao tratar dos crimes sexuais contra vulnerável, passou a prever em seu art. 217-A que é crime "ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos". O tipo penal passou a ser denominado como estupro de vulnerável, sendo certo que a vulnerabilidade encerra uma presunção absoluta ou iure et de iure. Outro ponto fulcral da alteração constava do novo art. 225, parágrafo único, do Código Penal, segundo o qual, havendo pessoa vulnerável, a ação penal do crime sexual seria pública incondicionada. Nesse contexto, não sendo mais a ação penal de natureza privada, não pode - desde a lei de 2009 - o casamento funcionar como forma de perdão tácito do crime, conforme outrora afirmei. Desapareceu o fundamento principal da tese que era anteriormente seguida, de análise casuística. Em reforço, apesar das tentativas de alguns juristas e julgadores de mitigar a ideia de vulnerabilidade, essa realmente parece encerrar um conceito jurídico absoluto, como se decidiu e se consolidou no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, conforme a sua Súmula n. 593, de outubro de 2017, in verbis: "O crime de estupro de vulnerável se configura com a conjunção carnal ou prática de ato libidinoso com menor de 14 anos, sendo irrelevante eventual consentimento da vítima para a prática do ato, sua experiência sexual anterior ou existência de relacionamento amoroso com o agente". Por fim, liquidando o que já parecia estar esclarecido, a lei 13.718/2018 incluiu um novo parágrafo no art. 217-A do Código Penal, prevendo que "As penas previstas no caput e nos §§ 1º, 3º e 4º deste artigo aplicam-se independentemente do consentimento da vítima ou do fato de ela ter mantido relações sexuais anteriormente ao crime" (§ 5 º). Trata-se de confirmação legal da sumular superior por último citada. Em suma, por tudo o que foi exposto, parece-me que, de fato, o art. 1.520 do Código Civil encontrava-se já derrogado tacitamente em relação à hipótese fática de casamento envolvendo menor de 14 anos, somente sendo aplicado à pessoa entre essa idade e os 16 anos, o que passou a não ser mais permitido, de forma peremptória e inafastável. Todas essas modificações comprovam a minha afirmação, no sentido de que o casamento do menor de 16 anos não seria possível juridicamente antes da alteração de 2019, ou seja, era algo condenado e proibido como regra pelo nosso sistema jurídico. E, como consequência, diante de um tratamento específico, apesar dessa proibição, a lei previa a solução da anulabilidade, pela dicção expressa do art. 1.550 do Código Civil, segundo o qual "é anulável o casamento: (...) I - de quem não completou a idade mínima para casar". Esse dispositivo não foi revogado, expressa ou tacitamente, pela lei 13.811/2019, e, sendo assim, a solução da anulabilidade ou nulidade relativa do casamento infantil continua em vigor. O mesmo se diga quanto à possibilidade de convalidação do casamento, hipótese em que o ato inválido passará a ser válido caso tenha passado despercebida a proibição perante o Cartório de Registro Civil. Continua em vigor, nesse contexto, o art. 1.551 do Código Civil, segundo o qual não se anulará, por motivo de idade, o casamento de que resultou gravidez. O mesmo se diga em relação ao 1.553 da mesma codificação, que estabelece a possibilidade de convalidação do casamento do menor que não atingiu a idade núbil caso este, depois de completá-la, confirme a sua intenção de casar, com a autorização de seus representantes legais, se for necessária, ou com suprimento judicial. A possibilidade de convalidação, por óbvio, dar-se-á muitas vezes após a idade núbil ou mesmo a maioridade ser atingida, preservando uma família que pode estar constituída e que merece proteção, conforme o art. 226 do Texto Maior. Também não estão revogados, expressa ou tacitamente, os dispositivos que consagram regras específicas a respeito da ação anulatória, caso do art. 1.552 do Código Civil: "A anulação do casamento dos menores de dezesseis anos será requerida: I - pelo próprio cônjuge menor; II - por seus representantes legais; III - por seus ascendentes". O mesmo se diga quanto ao prazo decadencial de 180 dias para a demanda, conforme o art. 1.560, § 1º, da Lei Geral Privada: "Extingue-se, em cento e oitenta dias, o direito de anular o casamento dos menores de dezesseis anos, contado o prazo para o menor do dia em que perfez essa idade; e da data do casamento, para seus representantes legais ou ascendentes". Todos esses comandos são específicos quanto à anulação do casamento, negócio jurídico especial, devendo prevalecer sobre as regras gerais sobre a teoria geral do negócio jurídico, previstas na Parte Geral da codificação privada. Por tudo isso, não me convence a afirmação feita no âmbito doutrinário no sentido de ser o casamento infantil agora nulo de pleno direito, pois a lei proíbe a prática do ato sem cominar sanção, presente a chamada nulidade virtual, nos termos do art. 166, inc. VII, segunda parte, do Código Civil. Esse comando geral somente seria aplicado se não existissem todas essas disposições específicas, que, repise-se, não foram revogadas expressa ou tacitamente. Para afastar a alegação de revogação tácita, lembro e insisto: o casamento do menor de 16 anos já não era admitido pelo sistema jurídico nacional. Como última nota, não se pode dizer que a alteração do art. 1.520 tenha criado hipótese de impedimento matrimonial, na linha do que pontuei no início deste breve texto. Primeiro, porque não houve qualquer inclusão nesse sentido no art. 1.521 do CC, sendo certo que os impedimentos não podem ser presumidos ou subentendidos, uma vez que a norma é restritiva da autonomia privada. Segundo, pelo fato de se tratar de hipótese de incapacidade que já estava prevista no sistema, pelo art. 1.517 do Código Civil. Terceiro, porque os impedimentos são específicos, o que não é o caso. Essa afirmação repercutirá no debate a respeito da união estável do menor de 16 anos, o que será objeto de um próximo texto de minha autoria, a ser publicado neste canal.
Desde o texto anterior, publicado neste canal, estou analisando os desafios para o futuro do Direito de Família e das Sucessões brasileiro, tendo como pano de fundo os debates que foram travados quando do VIII Congresso Paulista de Direito de Família e das Sucessões do IBDFAM, realizado entre os dias 8 e 9 de novembro de 2018, na Associação dos Advogados de São Paulo. Agora, abordaremos os debates do segundo dia, relembrando o sistema que foi adotado no evento, de participação e votação do público. O congresso retomou os seus trabalhos com um primeiro painel, em que se analisou a necessidade ou não de rever a legítima no Brasil, quota atribuída aos herdeiros necessários, notadamente em seu percentual. Participaram dos debates os professores Marcelo Truzzi Otero, do IBDFAMSP, respondendo "Sim"; e Ana Luiza Nevares, do IBDFAMRJ, respondendo "Não". A presidência da mesa e os debates couberam à professora Sandra Bayer, da nossa Diretoria Paulista. Ao final, cerca de 80% dos presentes votaram positivamente, propondo que haja alguma revisão a respeito da legítima no Brasil, enquanto os outros 20% entenderam que não. O debate demonstrou as grandes dificuldades em repensar esse sistema protetivo sucessório dos herdeiros, atualmente com a atribuição de quota de 50% ou metade do patrimônio do autor da herança, como estabelece o art. 1.789 do Código Civil. A minha posição - ao lado de outros juristas como Giselda Hironaka e José Fernando Simão, conforme pareceres que apresentamos em conjunto quando da elaboração da Reforma Sucessória pelo próprio IBDFAM -, foi no sentido de sua redução para 25%, ampliando-se a liberdade de doar e de testar. No painel, afloraram outras propostas, como de instituir uma legítima variável, com maior proteção para as pessoas vulneráveis e hipossuficientes, como tem sugerido a Professora Ana Luiza Nevares. Com o devido respeito, entendo que os conceitos destacados são muito variáveis no âmbito jurídico, havendo uma ideia em cada campo do conhecimento do Direito, o que pode trazer grandes dificuldades de enquadramento. Na verdade, a legítima variável tende a acirrar as disputas sucessórias, mostrando-se incompatível com o processo de inventário, que é meramente homologatório. A legítima continuou a ser abordada no evento, pois o segundo painel da manhã do dia 9 de novembro - talvez o mais intenso e agitado de todo o Congresso -, tratou da seguinte indagação: o companheiro é herdeiro necessário com a decisão do STF sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil? O Professor Zeno Veloso, um dos fundadores do IBDFAM e um dos maiores sucessionistas brasileiros, respondeu "Sim", enquanto o Professor Mario Luiz Delgado respondeu "Não". A presidência da mesa e a condução dos debates couberam à advogada Ana Paula Copriva, nossa diretora estadual. Na exposição do primeiro jurista, com toda a sua conhecida e notória retórica, a resposta positiva disparou, chegando aos 90% do público presente. Porém, também foi bem enfático o segundo expositor, principal defensor de uma interpretação restrita do julgamento do STF sobre o tema, e, ao final, houve um empate de 50% para cada uma das posições manifestadas. Nesse painel, muito se falou sobre o julgamento dos embargos de declaração opostos na ação que analisou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil pela Suprema Corte Brasileira, em repercussão geral e publicada no seu Informativo n. 864, pois, em grande coincidência e sincronismo, a decisão dos embargos de declaração foi publicada e noticiada justamente naquele dia em que debatíamos o assunto. Como é cediço, os embargos foram, na ocasião, rejeitados, sob o argumento processual de não ter sido ventilada a questão na demanda original. Como aduziu o Ministro Roberto Barroso, no que foi seguido de forma unânime, "a embargante sustenta que o regime sucessório do cônjuge não se restringe ao art. 1.829 do Código Civil, de forma que o acórdão embargado teria se omitido com relação a diversos dispositivos que conformam esse regime jurídico, em particular o art. 1.845 do Código Civil. Requer que se esclareça o alcance da tese de repercussão geral, no sentido de mencionar as regras e dispositivos legais do regime sucessório do cônjuge que devem se aplicar aos companheiros". Em complemento, ao enfrentar a questão relativa à afirmação de ser o companheiro herdeiro necessário, pontuou que "não há que se falar em omissão do acórdão embargado por ausência de manifestação com relação ao art. 1.845 ou qualquer outro dispositivo do Código Civil, pois o objeto da repercussão geral reconhecida não os abrangeu. Não houve discussão a respeito da integração do companheiro ao rol de herdeiros necessários, de forma que inexiste omissão a ser sanada". A despeito de posições em sentido contrário, a minha interpretação é no sentido de que essa rejeição dos embargos de declaração não resolveu o dilema sobre o enquadramento do companheiro como herdeiro necessário, devendo a doutrina e a jurisprudência - notadamente do Superior Tribunal de Justiça - responder, em interpretação ao decisum anterior do Supremo Tribunal Federal, se o companheiro deve ser incluído ou não no rol do art. 1.845 do Código Civil. Em suma, o intenso debate que foi travado no nosso Congresso Paulista do IBDFAM segue a pleno vapor. No primeiro painel da tarde, tivemos mais um debate sobre o direito sucessório, especificamente sobre a situação sucessória do embrião. Perguntou-se: devem ser reconhecidos direitos sucessórios ao embrião, como sucessor legítimo? Respondeu positivamente o Professor da UFPR Erolths Cortiano Jr. A resposta negativa coube à Professora Heloísa Helena Barboza, da UERJ. A condução dos trabalhos foi do advogado Sérgio Marques da Cruz Filho, ex-presidente do nosso instituto em São Paulo. Houve ampla vitória da resposta do "Não", em cerca de 80%, concluindo o público que o embrião somente teria direitos sucessórios após a sua implantação e o seu nascimento. Com o devido respeito à tese vitoriosa no evento, a minha posição sobre o reconhecimento de direitos sucessórios ao embrião é no sentido de dar uma interpretação concreta de inclusão ao art. 1.798 do Código Civil, segundo o qual "legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão". Na verdade, hoje se entende de forma majoritária que até em relação ao nascituro - aquele que foi concebido, mas ainda não nasceu, tendo vida intrauterina - há a necessidade do nascimento com vida para que exista o seu direito sucessório. Em suma, a parte final do comando tem sido negada e afastada por doutrina e jurisprudência majoritárias. Com relação ao embrião, a tese de exclusão dos direitos sucessórios também foi a vencedora no nosso evento, mormente diante dos numerosos problemas práticos que podem surgir do seu reconhecimento, muito bem demonstrados pelos expositores. O último painel de debate voltou ao Direito de Família, com a seguinte indagação: a escritura pública de união estável pode ter eficácia retroativa? O Professor Euclides de Oliveira respondeu "Sim", compartilhando a mesma posição que sigo, enquanto o Professor Rolf Madaleno disse "Não", pelo menos em parte, pois a sua conhecida posição doutrinária é no sentido de que a escritura até pode ter eficácia retroativa, desde que beneficie o companheiro. A presidência da mesa e a condução dos debates couberam à Professora Fabiana Domingues. Houve novo empate técnico na votação do público, pois 55% ficou com a resposta negativa, e 45% com a resposta positiva. Apesar de os dois juristas defenderem, em certa medida, a possibilidade de a escritura pública retroagir, reconhecendo a existência de união estável e o regime de bens aplicável desde determinado lapso temporal, sabe-se que a resposta que tem sido dada pela jurisprudência superior é negativa. Conforme julgado relatado pelo Ministro Moura Ribeiro, que havia participado do Congresso no dia anterior, "no curso do período de convivência, não é lícito aos conviventes atribuírem por contrato efeitos retroativos à união estável elegendo o regime de bens para a sociedade de fato, pois, assim, estar-se-ia conferindo mais benefícios à união estável que ao casamento" (STJ, REsp 1.383.624/MG, Terceira Turma, julgado em 2/6/2015, DJe 12/6/2015). Com o devido respeito, não estou filiado ao teor do acórdão e penso que é possível, sim, dar um caráter retroativo ao contrato de convivência, tendo ele uma eficácia restritiva, podendo a prova fática demonstrar, por exemplo, que a união estável já existia antes da data apontada. Por fim, o VIII Congresso Paulista foi encerrado com duas conferências de nossos ex-presidentes. O Professor Francisco Cahali tratou da possibilidade da arbitragem em sede de Direito de Família e das Sucessões, o que vem defendendo há tempos e merece ser melhor debatido pela comunidade jurídica. O Desembargador Antonio Carlos Mathias Coltro, por sua vez, abordou aspectos da jurisprudência atual do Tribunal Paulista nesses âmbitos. A presidência da mesa e os debates foram conduzidos pela advogada Silvia Felipe Marzagão. Como derradeira nota, o nosso evento renovou a necessidade de continuarmos no debate de assuntos que ainda não estão resolvidos no âmbito do Direito de Família e das Sucessões. Além dos temas expostos, existem outros que merecem maiores aprofundamentos, como a guarda compartilhada de filhos, os limites de conteúdo do pacto antenupcial e do contrato de convivência, o planejamento sucessório, a parentalidade socioafetiva e a multiparentalidade. De todo modo, não se pode negar que o sistema de participação do público foi um tremendo sucesso e deve se repetir nos próximos Congressos do IBDFAMSP, ocasiões em que queremos ampliar os diálogos com juristas que pensam bem diferente de nós. Discussões como essa só fazem crescer a comunidade e o pensamento jurídico e, por isso, pretendemos seguir em projetos similares.
Com mais um ano iniciando, nada melhor do que analisar - ou tentar analisar, em certa medida até arriscando -, quais são os desafios vindouros para o Direito de Família e das Sucessões no Brasil. Procurarei fazer isso em dois textos publicados neste canal, tendo como pano de fundo os debates que foram travados quando do VIII Congresso Paulista de Direito de Família e das Sucessões do IBDFAM, realizado entre os dias 8 e 9 de novembro de 2018, na Associação dos Advogados de São Paulo. O evento foi coordenado por mim e pelo professor João Ricardo Brandão Aguirre, sendo composto por sete painéis de debates, três conferências e um talk show com o ministro Paulo Dias Moura Ribeiro, do Superior Tribunal de Justiça. Nos sete painéis, foram apresentados temas altamente divergentes e atuais sobre o Direito de Família e das Sucessões, que justamente representam os desafios para o futuro, com dois palestrantes, respondendo "Sim" e "Não" a perguntas que foram previamente formuladas pela organização. Havia também uma interação do público, que igualmente poderia participar dos debates votando "Sim" e "Não" no decorrer dos painéis. Veremos aqui, nos dois textos, quais foram as respostas dos palestrantes e como os presentes se comportaram quanto às respostas, a fim de demonstrar os problemas que devem ser enfrentados não só neste ano de 2019 que se inicia, como também nos que seguem. Antes mesmo dos painéis, anoto que houve uma bela intervenção do nosso presidente estadual, o Professor João Aguirre, associando o momento em que vivíamos com os debates que envolvem o Direito de Família. Na sequência, a Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka proferiu conferência de abertura, demonstrando todos os debates teóricos e práticos que existem - e outros que devem surgir -, no plano do Direito das Sucessões, especialmente com as duas recentes decisões do Supremo Tribunal Federal que repercutem nessa temática, ambas com repercussão geral. A primeira delas é o julgado sobre a parentalidade socioafetiva e multiparentalidade. A segunda diz respeito ao reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil e a inserção do companheiro no art. 1.829 da mesma norma privada. Pois bem, o primeiro painel de debate foi composto pelos Professores Joyceane Bezerra e Maurício Bunazar, que responderam à seguinte indagação: o Estatuto da Pessoa com Deficiência representa uma evolução para o Direito brasileiro? À primeira coube o "Sim" e ao segundo o "Não". Foram expostos os principais avanços e também os problemas do EPD, notadamente o fato de a lei ter alterado de forma substancial a teoria das incapacidades, fazendo com que não existam mais maiores de idade que sejam absolutamente incapazes. Os dois expositores, apesar das suas defesas até apaixonadas das posições jurídicas, concordaram que alguns ajustes devem ser feitos na lei, sanando também eventuais contrariedades perante o Código de Processo Civil de 2015. Já nesse primeiro painel, houve um empate técnico, com cerca de 52% dos votantes respondendo positivamente à indagação, e 48% respondendo negativamente. Essa divergência demonstra que, do ponto de vista prático, o EPD ainda traz grandes desafios aos profissionais especializados do Direito de Família Brasileiro, que compunham a grande maioria do público presente. Isso também foi percebido no terceiro painel, que teve como objeto a pergunta: a tomada de decisão apoiada é instituto com utilidade prática no Brasil? Sabe-se que essa medida de apoio foi introduzida pelo Estatuto da Pessoa com Deficiência, com inspirações nos modelos italiano e alemão, sendo uma alternativa à instituição da curatela, que somente é viável em hipóteses fáticas excepcionais e que dizem respeito a restrições de cunho patrimonial, como consta do art. 85 do EPD. Como palestrantes, o Professor Oswaldo Peregrina Rodrigues respondeu "Sim" e o Professor Anderson Schreiber "Não". O resultado da votação acabou por confirmar uma impressão teórica e prática a que cheguei, após ministrar curso para os assessores do Supremo Tribunal Federal em abril de 2018 sobre o assunto, de que o instituto terá pouca ou nenhuma aplicação prática. Pelos termos expressos da lei, notadamente pelos parágrafos do art. 1.783-A do Código Civil, a tomada de decisão apoiada é uma medida judicial, burocrática e com trâmites cheios de detalhes que chegam a confundir até mesmo os mais experientes civilistas. A medida é de iniciativa da própria pessoa com deficiência, que tem à sua disposição meios mais simples para o apoio de atos patrimoniais, como a simples outorga de mandato perante um Tabelião de Notas. Isso acabou sendo exposto e debatido no painel, e a votação foi cerca de 85% dos presentes respondendo negativamente, e apenas 15% respondendo positivamente quanto à utilidade prática da tomada de decisão apoiada. Voltando ao segundo painel do dia, ele abordou a antiga possibilidade de debate na culpa nas ações de Direito de Família, respondendo "Sim" a Professora Cláudia Stein Vieira e respondendo "Não" o presidente nacional do IBDFAM, Professor Rodrigo da Cunha Pereira. A questão envolve a Emenda Constitucional n. 66, que supostamente retirou do sistema jurídico a separação judicial, instituto que foi reintroduzido pelo Novo Código de Processo Civil, em flagrante inconstitucionalidade. Tivemos mais um empate técnico, com 49% respondendo positivamente, e 51% negativamente. Os que responderam positivamente, como foi o meu caso, concluíram que a culpa ainda pode ser debatida para os fins de alimentos, da responsabilidade civil e de fraudes praticadas pelos cônjuges ou companheiros. Os que responderam não foram movidos pelo argumento de que os alimentos não são vinculados à culpa, mas ao binômio ou trinômio alimentar, devendo os outros aspectos citados ser analisados em outras demandas, que não na de dissolução de casamento ou de união estável. Restou pacificado, contudo, que a culpa não gera impactos para fins de uso de nome pelos consortes ou para a guarda de filhos. De todo modo, eis mais um tema que não parece ter atingido a devida e esperada estabilidade jurídica, devendo o seu enfrentamento seguir nos próximos anos. Para encerrar os trabalhos do primeiro dia de evento, como mencionei no começo do texto, houve um talk show sobre o Direito de Família e das Sucessões na recente jurisprudência do STJ, com o Ministro Paulo Dias Moura Ribeiro, que contou com a minha participação, ao lado dos Professores José Fernando Simão, Luciana Faísca Nahas e Daniel Blikstein. O Ministro escolheu alguns acórdãos para o debate aberto, envolvendo assuntos como o testamento, a sucessão legítima e a concorrência do cônjuge com os descendentes na comunhão parcial de bens, o uso do nome após o divórcio, o direito real de habitação do companheiro e a multiparentalidade. As discussões foram profícuas, com um verdadeiro diálogo entre a doutrina e a jurisprudência, o que venho defendendo há tempos e que necessariamente deve ser incrementado não só nos eventos jurídicos, mas também nas obras de Direito Civil. No segundo dia de trabalhos, as discussões prosseguiram, com destaque para os desafios do Direito das Sucessões, o que será abordado por mim no próximo texto a ser publicado neste canal.
Em dois textos aqui antes publicados, tratamos do planejamento sucessório, expondo o seu conceito, suas duas regras fundamentais (regras de ouro) e sobre alguns mecanismos tradicionais para a sua efetivação, caso da doação e do testamento. Neste último texto da série, veremos dois instrumentos tidos como novos e que geram muitas dúvidas e divergências, quais sejam a holding familiar e o trust. Sobre o primeiro, explica Rodrigo Toscano de Brito que o verbo to hold significa segurar, manter, controlar, guardar, sendo a holding familiar uma sociedade ou empresa individual de sociedade limitada (EIRELI) que detém participação societária em outra pessoa jurídica com a finalidade de controlar "o patrimônio da família para fins de organização patrimonial, diminuição de custo tributário e planejamento sucessório" (Planejamento sucessório por meio de holdings: limites e suas principais funções. In: Família e sucessões: polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. p. 672). Ainda segundo o autor, a constituição pode se dar por meio de uma sociedade simples ou empresária, o que é definido pelos próprios membros da família. Dentre as suas funções e utilidades, destaca ele a maior possibilidade de conter os conflitos entre os membros da família, sem afetar a sociedade controlada, que continua produzindo riquezas, mantendo os seus funcionários e pagando os tributos. Apesar das palavras de incentivo do jurista, que vê no instituto um importante instrumento de planejamento sucessório, a verdade é que a categoria esbarra na segunda regra de ouro aqui antes apontada, qual seja a vedação dos pactos sucessórios ou pacta corvina, retirada do art. 426 do Código Civil. Conforme esse preceito, não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva. Reitere-se que a situação é de nulidade absoluta virtual, situada na segunda parte do art. 166, inc. VII, da própria codificação privada, uma vez que a lei proíbe a prática do ato sem cominar sanção. O próprio Rodrigo Toscano de Brito acaba por reconhecer esse sério entrave, apesar de não se filiar a ele: "Por um lado, teríamos que admitir que se as pessoas se reúnem em sociedade cujo objeto principal é a detenção e administração de todo patrimônio da família, por exemplo, e ali se planeja a sucessão, não haveria como negar, a priori, a afronta à regra da vedação do pacto sucessório, se analisado de modo pontual, apenas à luz do art. 426 do Código Civil. Esse é um viés relevante em relação ao tema aqui tratado, mas se assim admitirmos, todos os atos praticados no Brasil com essas características seriam nulos. E não são poucos. Preferimos pensar diferente. De fato, é possível se organizar em sociedade ou por meio de outras formas de constituição de pessoas jurídicas, dentro dos limites da autonomia privada e desde que não se afronte a legítima, que é segunda regra que não se pode perder de vista. Assim, parece-nos que todos os contratos existentes dentro dos limites das normas sucessórias são válidos e eficazes, inclusive de constituição de holdings, para fins de planejamento sucessório, diante de uma interpretação conforme a harmonização das regras sobre liberdade e as limitações aqui referidas, presentes no Código Civil" (TOSCANO DE BRITO, Rodrigo. Planejamento sucessório por meio de holdings: limites e suas principais funções. In: Família e sucessões: polêmicas, tendências e inovações. Belo Horizonte: IBDFAM, 2018. p. 671). Discordamos, com o devido respeito, uma vez que, como têm sido estabelecidos no Brasil, tais negócios jurídicos são claramente nulos. Se são muitos, então temos uma realidade em que a nulidade absoluta acabou por ser propagada de forma continuada em nosso País, sob o manto do planejamento sucessório. Se há uma sociedade - que tem natureza contratual -, instituída com o objetivo de administrar os bens de alguém ou de uma família e de dividir esses mesmos bens em caso de falecimento, a afronta ao art. 426 do Código Civil é clara e cristalina. Pontue-se que esse argumento independe da existência de fraude ou simulação na constituição da sociedade, o que pode ensejar a invalidade ou ineficácia por outros argumentos, a depender do vício presente no ato. Não se olvide que a própria jurisprudência superior já reconheceu a viabilidade de debater o vício da simulação no caso de instituição de uma holding: "COMERCIAL. CIVIL E PROCESSO CIVIL. USUFRUTO. CONSERVAÇÃO DA COISA. DEVER DO USUFRUTUÁRIO. NULIDADE. SIMULAÇÃO. LEGITIMIDADE. TERCEIRO INTERESSADO. REQUISITOS. OPERAÇÃO SOCIETÁRIA. ANULAÇÃO. LEGITIMIDADE. CONDIÇÕES DA AÇÃO. ANÁLISE. TEORIA DA ASSERÇÃO. APLICABILIDADE. DISPOSITIVOS LEGAIS ANALISADOS. ARTS. 168 DO CC/02. E 3º, 6º E 267, VI, DO CPC. (...) . 2. Recurso Especial que discute a legitimidade do nu-proprietário de quotas sociais de holding familiar para pleitear a anulação de ato societário praticado por empresa pertencente ao grupo econômico, sob a alegação de ter sido vítima de simulação tendente ao esvaziamento do seu patrimônio pessoal. 3. O usufruto. Direito real transitório de fruir temporariamente de bem alheio como se proprietário fosse. Pressupõe a obrigação de preservar a substância da coisa, sem qualquer influência modificativa na nua-propriedade, cabendo ao usufrutuário a conservação da coisa como bonus pater famílias, restituindo-a no mesmo estado em que a recebeu. 4. As nulidades decorrentes de simulação podem ser suscitadas por qualquer interessado, assim entendido como aquele que mantenha frente ao responsável pelo ato nulo uma relação jurídica ou uma situação jurídica que venha a sofrer uma lesão ou ameaça de lesão em virtude do ato questionado. 5. Ainda que, como regra, a legitimidade para contestar operações internas da sociedade seja dos sócios, hão de ser excepcionadas situações nas quais terceiros estejam sendo diretamente afetados, exatamente como ocorre na espécie, em que a administração da sócia majoritária, uma holding familiar, é exercida por usufrutuário, fazendo com que os nu-proprietários das quotas tenham interesse jurídico e econômico em contestar a prática de atos que estejam modificando a substância da coisa dada em usufruto, no caso pela diluição da participação da própria holding familiar em empresa por ela controlada. (...)" (STJ, REsp 1.424.617/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, DJE 16/06/2014). Cite-se, ainda, situação de maior gravidade analisada pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, em que se reconheceu que a holding familiar foi utilizada com intuito de desvio de dinheiro público, caracterizando improbidade administrativa: "AÇÃO CIVIL PÚBLICA. Improbidade administrativa. Itapetininga. Hospital Regional. Gestão terceirizada. Oscip. Fraude. Holding familiar. Patrimônio. Origem. Desvio de dinheiro público. Fortes indícios. Indisponibilidade de bens. Possibilidade: Cabível a indisponibilidade de bens quando presentes fortes indícios de que o patrimônio da sociedade, constituída como holding familiar, proveio do desvio de dinheiro público" (TJSP, Agravo de instrumento n. 2110897-08.2016.8.26.0000, Acórdão n. 9581506, Itapetininga, 10ª Câmara de Direito Público, Rel. Des. Teresa Ramos Marques, julgado em 04/07/2016, DJESP 01/08/2016). Demonstrados esses entraves e a possibilidade de configuração de fraudes, no que diz respeito ao trust, como aponta Milena Donato Oliva, a categoria é comum nos Países do sistema da Common Law, tendo "instrumentos compatíveis com os ordenamentos da família romano-germânica". A autora demonstra o tratamento constante da Convenção de Haia, que reconhece na figura a presença de um patrimônio em separado estruturado da seguinte forma: "Nessa esteira, a Convenção de Haia estabelece que (i) os bens em trust constituem patrimônio separado, que não se confunde com o patrimônio pessoal do trustee; (ii) a titularidade dos bens em trust fica em nome do trustee; (iii) o trustee tem o poder e o dever, do qual deve prestar constas, de administrar, gerir ou dispor dos bens, de acordo com os termos do trust e com os deveres específicos que lhe são impostos por lei; (iv) os credores pessoais do trustee não podem excutir os bens em trust; (v) os bens em trust não serão arrecadados na hipótese da insolvência ou falência do trustee; e (vi) os bens em trust não integram o patrimônio da sociedade conjugal nem o espólio do trustee" (Trust. In: Arquitetura do planejamento sucessório. Coord. Daniele Chaves Teixeira. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 367-368). Esclareça-se, na linha das lições da mesma doutrinadora, que o trustee é quem recebe a titularidade das situações jurídicas conferidas em trust, sendo proprietário desses direitos e responsável pela sua administração. Existem, ainda, duas figuras envolvidas, sendo a primeira delas o seu instituidor, que é o settlor. A segunda é o cestui que trust, que é o beneficiário da instituição, sendo o destinatário de todos os benefícios econômicos que derivam do trust. Como conclui a jurista por último citada, o trust não é equiparável a qualquer instituto jurídico do ordenamento jurídico brasileiro. A compreensão da estrutura descrita já demonstra uma série de problemas que podem surgir na realidade jurídica brasileira, notadamente diante da existência de autonomia entre o patrimônio em trust e os bens pessoais do trustee. Em uma realidade social na qual prosperam mecanismos jurídicos utilizados com intuito de fraude e a busca de sofisticados meios de blindagem patrimonial, criados para que os interessados se furtem de dívidas antes constituídas, a instituição do trust não pode e não deve resistir perante as alegações de simulação, fraude contra credores, fraude à execução, ou mesmo diante da possibilidade de aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica, em qualquer uma de suas modalidades. Eventualmente, caso haja lesão aos bens que compõem a quota dos herdeiros necessários, pode-se falar, ainda, em fraude à legítima, presente a nulidade absoluta da sua instituição por lesão a preceitos de ordem pública, havendo o objetivo de fraude à lei imperativa (art. 166, inc. VI, do CC). Ademais, parece-me que muitas vezes a instituição do trust como mecanismo de planejamento sucessório tem como objetivo a gestão e a divisão futura de bens de uma pessoa ainda viva, entrando em conflito com o teor do antes citado art. 426 do Código Civil. Haveria, assim, problema similar ao que ocorre com a holding familiar e que ora descrevi. Na verdade, como demonstrado na série de três textos aqui publicados e que serve como conclusão para esses escritos, é necessário alterar a legislação brasileira, mitigando-se a regra relativa às vedações dos pactos sucessórios prevista na codificação privada. Esse é o melhor caminho para que o planejamento sucessório seja concretizado na realidade jurídica brasileira, prestigiando-se a autonomia privada e a possibilidade de as famílias buscarem as melhores estratégias para a divisão futura de seus bens. Outro aspecto que merece ser revisto é a proteção da legítima, reduzindo-a a patamar inferior, o que será melhor desenvolvido em outros textos futuros, uma vez que o Direito das Sucessões é matéria em que tenho aprofundado meus estudos. Como palavras finais, gostaria de agradecer ao Migalhas por mais uma temporada de parceria. Tivemos um ano muito produtivo, analisando questões polêmicas e práticas do Direito de Família e das Sucessões. E que, em 2019, sigamos juntos. Um Feliz Natal e um Novo Ano de muitas felicidades ao Miguel, sua equipe e familiares. E também a você, leitor migalheiro, e a todos os seus. Até a nossa próxima coluna, em janeiro do próximo ano.
Em texto publicado anteriormente neste canal, começamos a tratar do chamado planejamento sucessório, entendido como o conjunto de instrumentos jurídicos estratégicos que visam aumentar a eficiência na transmissão do patrimônio de alguém após o seu falecimento. Vimos também as suas duas regras fundamentais, que aqui denominamos como regras de ouro. A primeira delas é a proteção da legítima, quota dos herdeiros necessários prevista no art. 1.845 do Código Civil, devendo-se no rol ser incluído o companheiro, por interpretação à decisão do STF que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1.790 da própria codificação, determinando a inclusão do convivente na ordem de sucessão legítima, ao lado do cônjuge (cf. publicação no Informativo n. 864 da Corte Máxima). A segunda regra de ouro diz respeito à vedação dos pactos sucessórios (art. 426 do CC/2002), a ensejar a nulidade absoluta dos contratos que tenham por objeto a herança de pessoa viva. Também elenquei no artigo anterior alguns dos instrumentos de planejamento sucessório, sendo pertinente aqui aprofundar três desses mecanismos, tidos como tradicionais. São eles: a) a escolha por um ou outro regime de bens no casamento ou na união estável; b) a realização de atos de disposição de vida, de doações; c) a elaboração de testamentos. Anote-se que se utiliza o termo tradicionais pelo fato de estarem essas categorias consolidadas na teoria e na prática do Direito Privado Brasileiro, havendo previsão quanto a elas já na codificação anterior, de 1916. A escolha por um ou outro regime de bens ganhou notável importância sucessória no Código Civil de 2002, pelo fato de influenciar na concorrência do cônjuge - e agora também do companheiro, no mesmo preceito -, em relação aos descendentes do falecido. Conforme a dicção literal do seu art. 1.829, "a sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: I - aos descendentes, em concorrência com o cônjuge sobrevivente, salvo se casado este com o falecido no regime da comunhão universal, ou no da separação obrigatória de bens (art. 1.640, parágrafo único); ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares". Assim, pela literalidade da norma, não haverá concorrência sucessória do cônjuge ou companheiro com os descendentes nos seguintes regimes de bens: a) comunhão universal de bens; b) separação obrigatória ou legal, imposta pela norma jurídica, nos termos do art. 1.641 da codificação; c) comunhão parcial de bens, não havendo bens particulares. Por exclusão, haverá concorrência sucessória nas hipóteses relativas aos regimes não mencionados no dispositivo, a saber: a) participação final nos aquestos; b) separação convencional de bens, decorrente de pacto antenupcial ou contrato de convivência e c) comunhão parcial de bens, havendo bens particulares, situação mais comum na prática. Como é notório, intensos foram os debates no âmbito da jurisprudência superior a respeito das duas últimas hipóteses, justamente porque chegou-se a entender no Superior Tribunal de Justiça que a escolha do regime de bens geraria efeitos não só em vida, mas também após a morte. Essa solução jurisprudencial antes adotada potencializava a escolha pelo regime como instrumento de planejamento sucessório e acabava por baralhar os contratos - representados pelos regimes de bens - e as heranças, em afronta indireta ao art. 426 do Código Civil de 2002. Nesse contexto, cumpre lembrar que a Corte Superior, em um primeiro julgado relatado pela Ministra Nancy Andrighi, entendia que, no regime da separação convencional de bens, não haveria concorrência sucessória, pois "o regime da separação obrigatória de bens, previsto no art. 1.829, inc. I, do CC/2002, é gênero que congrega duas espécies: (i) separação legal, (ii) separação convencional. Uma decorre da lei e outra da vontade das partes, e ambas obrigam os cônjuges, uma vez estipulado o regime da separação de bens, à sua observância. Não remanesce, para o cônjuge casado mediante separação de bens, direito à meação, tampouco à concorrência sucessória, respeitando-se o regime de bens estipulado, que obriga as partes na vida e na morte. Nos dois casos, portanto, o cônjuge não é herdeiro necessário" (STJ, REsp 992.749/MS, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 01/12/2009, DJe 05/02/2010). Esse entendimento, contudo, acabou por ser superado pelo próprio Tribunal da Cidadania, que consolidou posição totalmente contrária em sua Segunda Seção. Nos termos do acórdão de superação e pacificação a respeito do assunto, "quem determina a ordem da vocação hereditária é o legislador, que pode construir um sistema para a separação em vida diverso do da separação por morte. E ele o fez, estabelecendo um sistema para a partilha dos bens por causa mortis e outro sistema para a separação em vida decorrente do divórcio. Se a mulher se separa, se divorcia, e o marido morre, ela não herda. Esse é o sistema de partilha em vida. Contudo, se ele vier a morrer durante a união, ela herda porque o Código a elevou à categoria de herdeira. São, como se vê, coisas diferentes. Ademais, se a lei fez algumas ressalvas quanto ao direito de herdar em razão do regime de casamento ser o de comunhão universal ou parcial, ou de separação obrigatória, não fez nenhuma quando o regime escolhido for o de separação de bens não obrigatório, de forma que, nesta hipótese, o cônjuge casado sob tal regime, bem como sob comunhão parcial na qual não haja bens comuns, é exatamente aquele que a lei buscou proteger, pois, em tese, ele ficaria sem quaisquer bens, sem amparo, já que, segundo a regra anterior, além de não herdar (em razão da presença de descendentes) ainda não haveria bens a partilhar. Essa, aliás, é a posição dominante hoje na doutrina nacional, embora não uníssona" (STJ, REsp 1.382.170/SP, Rel. Min. Moura Ribeiro, Rel. para acórdão Min. João Otávio de Noronha, julgado em 22/04/2015, DJe 26/05/2015). Seguiu-se, portanto, a linha adotada pelo legislador codificado, no sentido de que, se o cônjuge (ou companheiro) meia, ele não herda; se herda, não meia. A frase foi cunhada pelo Professor e Desembargador do Tribunal Paulista Cláudio Luiz Bueno de Godoy, explicando muito bem o sistema sucessório nacional, sendo repetida, com claro intuito didático, por outros professores e doutrinadores. Apesar de parecer plausível, e até baseada em um suposto bom senso, a afirmação de que na separação convencional não deve haver concorrência sucessória, entra-se em conflito com as balizas estruturais do sistema sucessório previsto no Código Civil de 2002. Para corrigir este suposto equívoco, apontado muitas vezes na prática, há a necessidade de uma profunda reforma legislativa. Pelas mesmas premissas, também houve polêmica e debate no âmbito da jurisprudência superior quanto à concorrência sucessória do cônjuge com os descendentes na comunhão parcial de bens, havendo bens particulares do falecido. Como se retira do decisum que levantou a divergência, novamente relatado pela Ministra Nancy Andrighi, "preserva-se o regime da comunhão parcial de bens, de acordo com o postulado da autodeterminação, ao contemplar o cônjuge sobrevivente com o direito à meação, além da concorrência hereditária sobre os bens comuns, mesmo que haja bens particulares, os quais, em qualquer hipótese, são partilhados apenas entre os descendentes" (STJ, REsp 1.117.563/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 17/12/2009, DJe 06/04/2010). Essa forma de julgar também foi reparada posteriormente no âmbito da Segunda Seção do Tribunal, concluindo-se, na linha do Enunciado n. 270 da III Jornada de Direito Civil e da doutrina majoritária, que "nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do 'de cujus'" (STJ, REsp 1.368.123/SP, 2ª Seção, Rel. Min. Sidnei Beneti, Rel. p/ acórdão Ministro Raul Araújo, julgado em 22/04/2015, DJe 08/06/2015). Desse modo, nas duas pacificações jurisprudenciais, houve uma diminuição dos efeitos, para o planejamento sucessório, da escolha de um ou outro regime de bens, não podendo esse exercício da autonomia privada, por si só e sem amparo nas preferências do legislador, influenciar totalmente na concorrência do cônjuge (e agora também do companheiro) em relação aos descendentes. Como segundo instrumento tradicional de planejamento sucessório, e talvez o mais utilizado em nosso País na atualidade, destaque-se a doação, ato de liberalidade por excelência definido pelo art. 538 do Código Civil como "o contrato em que uma pessoa, por liberalidade, transfere do seu patrimônio bens ou vantagens para o de outra". Com relação a tal negócio jurídico, muitas são as possibilidades de sua utilização como forma de concretizar a partilha em vida, facilitando a divisão posterior dos bens. Vejamos três desses instrumentos. O primeiro deles, o mais comum, é a doação com reserva de usufruto ou doação com usufruto deducto. Esse mecanismo geralmente é utilizado em casos de vasto patrimônio imobiliário em que um dos cônjuges falece. Estabelece-se então a divisão equânime desse patrimônio em lotes de imóveis, realizando um sorteio e atribuindo a nua propriedade aos filhos. O cônjuge sobrevivente fica com o usufruto sobre todo o monte. Sucessivamente, com o seu falecimento, esse usufruto é extinto, não havendo a necessidade de abrir um novo inventário, pois os bens já se encontram divididos entre os seus herdeiros. Não se pode admitir que algum entrave tributário vede essa forma de planejamento sucessório, sendo possível atribuir a fração de 1/3 ao monte representado pelo usufruto e 2/3 sobre a nua propriedade, para fins de incidência de impostos. Com isso, ademais, o equilíbrio na partilha é mantido, sem que haja oficiosidade, ou seja, afronta à quota dos herdeiros necessários. Outra forma de doação que pode ser utilizada como forma de planejamento sucessório é a doação com cláusula de reversão, prevista no art. 547 do Código Civil. Conforme o seu teor, o doador pode estipular que os bens doados voltem ao seu patrimônio, se sobreviver ao donatário. É possível conciliar essa cláusula com a reserva de usufruto, completando o mecanismo sucessório ora citado, retornando o patrimônio ao cônjuge sobrevivente caso haja a morte de seus filhos, para uma nova partilha. Não se pode esquecer, contudo, que a cláusula de retorno é personalíssima para o doador, não prevalecendo em favor de terceiro (parágrafo único do art. 547). Trata-se de hipótese de nulidade absoluta, por afronta à proibição do art. 426 da própria codificação. Vedada está, assim, a doação sucessiva, pois, para gerar efeitos a ela similares, existem o testamento e as formas de substituição testamentária. Como terceiro instrumento de liberalidade a ser citado, o art. 551 do Código Civil trata da doação conjuntiva, que pode ser estabelecida em favor de dois filhos, por exemplo, ou para um filho e o seu cônjuge. Estabelece o comando citado que, salvo declaração em contrário, a doação em comum a mais de uma pessoa entende-se distribuída entre elas por igual. Há, assim, a presunção relativa de divisão igualitária entre os donatários (concursu partes fiunt), o que pode ser afastado pelo teor do ato de liberalidade. Em complemento, o mesmo diploma enuncia, em seu parágrafo único, que "se os donatários, em tal caso, forem marido e mulher, subsistirá na totalidade a doação para o cônjuge sobrevivo". Há, assim, um direito de acrescer legal entre os donatários se eles forem casados, havendo debate se a norma se aplica ou não aos companheiros. A priori, a minha opinião é negativa, pelo fato de ser a norma de cunho especial e afeita ao Direito Contratual. A minha interpretação sobre o decisum do STF aqui antes comentado é que ele repercute apenas para o plano sucessório. A afirmação de ser o companheiro herdeiro necessário, contudo, não tem o condão de atingir a regra da doação conjuntiva. Por fim, o testamento também é um importante e tradicional mecanismo de planejamento sucessório. Talvez seja um dos mais eficientes, por fugir do entrave da segunda regra de ouro, constante do art. 426 do Código Civil. Além da possibilidade de ter um conteúdo patrimonial, o Código Civil em vigor é expresso ao prever as disposições testamentárias de caráter não patrimonial (art. 1.857, § 2º). A título de exemplo das últimas, é possível reconhecer um filho por ato de última vontade, constituir uma fundação com o nome do falecido, nomear administradores e atualizadores de obras ou criações intelectuais, determinar o destino de material genético ou de embriões, fazer recomendações de caráter ético e comportamental aos filhos e netos, tratar do uso de conteúdo digital post mortem, entre outras previsões com grandes repercussões práticas na contemporaneidade. Apesar de um aumento, nos últimos anos, das elaborações de testamento, motivado por um incremento de uma consciência patrimonial e pelos problemas sucessórios criados pelo Código de 2002, a verdade é que o brasileiro pouco testa. Nas precisas palavras de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, "o brasileiro não gosta, em princípio, de falar a respeito da morte, e sua circunstância é ainda bastante mistificada e resguardada, como se isso servisse para 'afastar maus fluídos e más agruras...'. Assim, por exemplo, não se encontra arraigado em nossos costumes o hábito de adquirir, por antecipação, o lugar destinado ao nosso túmulo ou sepultura, bem como não temos, de modo mais amplamente difundido, o hábito de contratar seguro de vida, assim como, ainda não praticamos, em escala significativa, a doação de órgãos para serem utilizados após a morte. Parece que essas atitudes, no dito popular, 'atraem o azar'" (Direito das sucessões. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 263-264). Sem falar que o brasileiro não é muito afeito a planejamentos, movido socialmente pelo popular jeitinho e deixando a resolução de seus problemas para a última hora. No caso da morte, cabe ressaltar, a última hora já passou". Entendo que é preciso superar esses antigos costumes negativos, de não planejar o futuro e de deixar para os herdeiros a divisão de bens e as muitas vezes intermináveis disputas sucessórias. Porém, não se pode negar a persistência de paredes burocráticas em relação aos atos de última vontade, que deveriam ser facilitados, como com a possibilidade de realização de manifestações de vontade pela via digital. Com isso, talvez, esse mecanismo tradicional de planejamento seja incrementado nos próximos anos, quebrando-se a afirmação de que o brasileiro não testa.
quarta-feira, 31 de outubro de 2018

Planejamento sucessório: O que é isso? - Parte I

Nos últimos anos, tem-se falado muito em planejamento sucessório, como instrumento preventivo e supostamente eficiente, para evitar conflitos entre herdeiros, bem como para almejar uma distribuição da herança conforme a vontade do morto, prestigiando a sua autonomia privada. Muito se tem debatido e até publicado sobre o assunto nos últimos tempos, merecendo destaque a recente obra "Arquitetura do Planejamento Sucessório", lançada no VI Congresso de Direito Civil do IBDCIVIL, em Fortaleza, entre os dias 18 e 20 de outubro deste ano de 2018. O livro é coordenado pela professora Daniele Chaves Teixeira, que tem outro trabalho monográfico sobre o assunto, sendo ambos publicados pela Editora Fórum. Apesar de ter atuado em casos de efetivação de mecanismos de planejamentos sucessórios, ainda não havia escrito nada específico sobre o tema. Fá-lo-ei, assim, de forma inédita, em três textos sucessivos que serão publicados neste canal, sem prejuízo de depois desenvolver um artigo mais científico sobre o assunto e incluí-lo em minhas obras. Aqui tentaremos responder a algumas indagações. O que é o planejamento sucessório? Quais as suas possibilidades e principais instrumentos? Quais as suas premissas básicas, quais as suas regras de ouro que devem ser respeitadas para que tais instrumentos sejam válidos e eficazes perante o Direito? Sobre o seu conceito, a própria coordenadora da obra referenciada o define como "o instrumento jurídico que permite a adoção de uma estratégia voltada para a transferência eficaz e eficiente do patrimônio de uma pessoa após a sua morte" (TEIXEIRA, Daniele. Noções prévias do direito das sucessões. Sociedade, funcionalização e planejamento sucessório. In: Arquitetura do planejamento sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 35). Para Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, em seu manual de Direito das Sucessões, "consiste o planejamento sucessório em um conjunto de atos que visa a operar a transferência e a manutenção organizada e estável do patrimônio do disponente em favor dos seus sucessores" (Novo curso de direito civil. 3. ed. São Paulo: Saraiva, 2016. p. 404. v. 7. Direito das sucessões). Alguns dos instrumentos de planejamento sucessório merecem ser destacados, muitos deles retirados dos trabalhos citados, a saber: a) escolha por um ou outro regime de bens no casamento ou na união estável, até além do rol previsto no Código Civil (regime atípico misto) e com previsões específicas; b) constituição de sociedades, caso das holdings familiares, para a administração e até partilha de bens no futuro; c) formação de negócios jurídicos especiais, como acontece no trust, analisado em textos seguintes a este; c) realização de atos de disposição de vida, como doações - com ou reserva de usufruto -, e post mortem, caso de testamentos, inclusive com as cláusulas restritivas de incomunicabilidade, impenhorabilidade e inalienabilidade; d) efetivação de partilhas em vida e de cessões de quotas hereditárias após o falecimento; e) celebrações prévias de contratos onerosos, como de compra e venda e cessão de quotas, dentro das possibilidades jurídicas do sistema; f) eventual inclusão de negócios jurídicos processuais nos instrumentos de muitos desses mecanismos; g) pacto parassocial, como se dá em acordos antecipados de acionistas ou sócios; e h) contratação de previdências privadas abertas, seguros de vida e fundos de investimento. Apesar dessas múltiplas opções, não se pode negar que, nos últimos anos, o planejamento sucessório tem sido utilizado por muitos com o intuito de praticar fraudes, buscando, muitas vezes, a malfadada "blindagem patrimonial", especialmente de devedores contumazes. Tal preocupação não passou despercebida por Mario Luiz Delgado e Jânio Urbano Marinho Júnior, que citam as holdings familiares, muitas vezes utilizadas como "fachada" por sócios de fato, para desvios patrimoniais e de finalidade da pessoa jurídica, visando à fraude à execução ou em face de credores. Segundo eles, "a proliferação de situações como essas, de mau uso do planejamento sucessório por profissionais inescrupulosos, com intuito de fraude, compromete e enfraquece essa importante ferramenta, na medida em que se põe sob suspeita diversos atos e negócios jurídicos realizados em vida pelo autor da herança e resultando nas maiores controvérsias sucessórias levadas ao Poder Judiciário. A segurança jurídica que seria propiciada pelo planejamento sucessório, dando lugar a imbróglios intermináveis, os quais, não raro, implicam em deterioração do acervo hereditário" (DELGADO, Mario Luiz; MARINHO JÚNIOR, Janio Urbano. Fraudes no planejamento sucessório. In: Arquitetura do planejamento sucessório. Belo Horizonte: Fórum, 2018. p. 222). De fato, na minha experiência na advocacia consultiva, tenho visto nos últimos anos atos de blindagem patrimonial e de suposto planejamento, como transações, permutas e dações em pagamento desproporcionais realizadas entre marido e mulher ou entre pais e filhos, de forma simulada, com o intuito de excluir filhos havidos fora do casamento. Posso afirmar que tais atos engendrados são até comuns em nosso País, pela quantidade de casos concretos que me chegaram para consulta. Um deles, inclusive, foi objeto de um parecer jurídico publicado em revista científica (TARTUCE, Flávio. Dação em pagamento. Simulação. Revista de Direito Privado, n. 56, São Paulo, RT, out./dez. 2013). Mais recentemente, também como objeto de parecer, analisei uma hipótese fática patológica de um grande empresário que esvaziou todo o seu patrimônio durante três décadas, destinando a uma pessoa jurídica por atos sucessivos bens de valor considerável e sempre preservando a legítima, considerando-se os atos de disposição isoladamente. Ao final, o seu único herdeiro necessário, seu filho, recebeu apenas um quinto do que teria direito, em clara fraude à legítima. Dos últimos exemplos extrai-se a primeira regra de ouro do planejamento sucessório, qual seja de proteção da quota dos herdeiros necessários e que corresponde a cinquenta por cento do patrimônio do autor da herança (art. 1.846 do Código Civil). Não se olvide que, a exemplo do que ocorreu em momento anterior à elaboração do Código Civil de 1916, a legítima tem sido contestada pela doutrina contemporânea, com vistas a suas redução ou extinção, o que será objeto de estudo mais profundo da minha parte. A segunda regra de ouro a ser considerada para o planejamento sucessório é a vedação dos pactos sucessórios ou pacta corvina, retirada do art. 426 do Código Civil em vigor, segundo o qual não pode ser objeto de contrato a herança de pessoa viva. A hipótese é de nulidade absoluta virtual, situada na segunda parte do art. 166, inc. VII, da própria codificação privada, uma vez que a lei proíbe a prática do ato sem cominar sanção. A norma tem origem romana, diante de suposta imoralidade que havia na fusão dos atos contratuais e testamentários, entre outros argumentos. Como pontua José Fernando Simão, explicando as suas raízes: "A grande razão trazida pela doutrina é de cunho moral e seus efeitos perante a sociedade. É o chamado votum alicujus mortis. O contrato que transfere a herança de pessoa viva só produz efeitos após a morte daquele que tem o bem ou bens transferidos. Assim, desperta-se o desejo de morte ou de antecipação de morte, daquele de quem a herança se trata. Um segundo motivo é a possível pressão a que se sujeitaria o herdeiro. Se ele puder, com o autor da herança ainda vivo, dispor da herança, em momento de dificuldade financeira momentânea estaria tentado a cedê-la onerosamente. Há um outro motivo de ordem lógico-jurídica. Não há herança de pessoa viva. Simplesmente, antes da morte de certa pessoa existe o sujeito titular de um patrimônio. Herança pressupõe o fato jurídico morte. Se meu pai está vivo, herança não há. Há patrimônio apenas" (SIMÃO, José Fernando. Repensando a noção de pacto sucessório: de lege ferenda. Disponível em: . Acesso em: 25 out. 2018). Talvez aqui esteja o principal óbice jurídico para muitos atos de organização sucessória praticados no nosso meio. Aplicando a norma, da realidade jurisprudencial, tem-se entendido pela nulidade de transações que digam respeito a heranças ainda não recebidas por um dos transatores. A título de exemplo: "Acórdão recorrido que manteve a nulidade de cessão de direitos hereditários em que os cessionários dispuseram de direitos a serem futuramente herdados, expondo motivadamente as razões pelas quais entendeu que o negócio jurídico em questão não dizia respeito a adiantamento de legítima, e sim de vedada transação envolvendo herança de pessoa viva. (...). Embora se admita a cessão de direitos hereditários, esta pressupõe a condição de herdeiro para que possa ser efetivada. A disposição de herança, seja sob a forma de cessão dos direitos hereditários ou de renúncia, pressupõe a abertura da sucessão, sendo vedada a transação sobre herança de pessoa viva" (STJ, Ag. Int. no REsp 1341825/SC, Rel. Ministro Raul Araújo, 4ª Turma, julgado em 15/12/2016, DJe 10/02/2017). Na mesma linha, concluiu-se como "nula a partilha de bens realizada em processo de separação amigável que atribui ao cônjuge varão promessa de transferência de direitos sucessórios ou doação sobre imóvel pertencente a terceiros, seja por impossível o objeto, seja por vedado contrato sobre herança de pessoas vivas" (STJ, REsp. 300.143/SP, Rel. Ministro Aldir Passarinho Junior, 4ª Turma, julgado em 21/11/2006, DJ 12/02/2007, p. 262). Merece ser também citado o remoto aresto superior que entendeu pela nulidade absoluta de cláusula que previa a destinação dos rendimentos produzidos pelos ativos líquidos de uma sociedade após a morte dos fiduciantes, pois estava condicionada à sua inclusão no testamento dos mesmos (STJ, Ag. Rg. no Ag 375.914/RJ, Rel. Ministro Sálvio de Figueiredo Teixeira, 4ª Turma, julgado em 18/12/2001, DJ 11/03/2002, p. 263). Por esses julgados, não se pode negar que o art. 426 do Código Civil representa um sério entrave para muitos instrumentos que são buscados por herdeiros ou mesmo por pessoas que querem antecipar a divisão patrimonial de seus bens, evitando conflitos futuros. Por isso, existem propostas para que sejam incluídas exceções a essa regra ou mesmo que o comando seja revogado, contratualizando-se definitivamente o Direito das Sucessões Brasileiro. Propondo uma mitigação, José Fernando Simão, no seu texto aqui antes citado, sugere a inclusão de um parágrafo único no comando, passando a prever que "por meio de pacto antenupcial, os nubentes podem convencionar que em caso de dissolução do casamento por morte, a partilha se faça por qualquer dos regimes previstos no Código Civil, ainda que distinto daquele convencionado". Segundo ele, tal regra possibilitaria que os cônjuges tivessem um dupla faculdade: a) adotar um regime restritivo como forma de se proteger de eventual divórcio e b) garantir uma proteção ao viúvo ou viúva que, em caso de morte do seu consorte, passaria a ter direito à meação. A proposta é louvável, sendo interessante incluir regra semelhante para a união estável e o contrato de convivência. Também no sentido de relativizar o comando, Rolf Madaleno sugere que, mesmo no sistema em vigor, não se aplica o art. 426 do CC/2002 à renúncia prévia da herança pelo cônjuge ou companheiro, por dois motivos. Primeiro porque se trata de renúncia abdicativa e não aquisitiva, como temiam os romanos com a pacta corvina. Segundo porque o herdeiro concorrente é herdeiro irregular e credor de um benefício ex lege, e não de uma herança universal, a que o cônjuge ou convivente sobrevivo só tem direito quando vocacionados em terceiro lugar, nos termos do art. 1.829 do Código Civil (MADALENO, Rolf. Renúncia de herança em pacto antenupcial. Revista de Direito das Famílias e Sucessões, n. 27, Belo Horizonte, IBDFAM, p. 9-57, 2018). Com o devido respeito ao último doutrinador, acreditamos que a renúncia à herança antecipada por cônjuge ou companheiro ainda não é possível no atual sistema, como já ocorre em Portugal, sendo necessária a alteração da lei civil para que tal mecanismo de planejamento sucessório seja possível entre nós.
As novas tecnologias, especialmente as incrementadas pelas redes sociais e pelas interações digitais, trouxeram grandes repercussões para o Direito, especialmente para o Direito Privado. Como não poderia ser diferente, o Direito das Sucessões não escapa dessa influência, surgindo intensos debates sobre a transmissão da chamada herança digital. O tema é tratado por civilistas contemporâneos, especialmente no âmbito da sucessão testamentária e das manifestações de última vontade. Como desenvolve Jones Figueirêdo Alves, que fala na possibilidade de se elaborar um testamento afetivo, "a par da curadoria de dados dos usuários da internet, com a manutenção de perfis de pessoas falecidas, a serviço da memória digital, como já tem sido exercitada (Pierre Lévy, 2006), o instituto do testamento afetivo, notadamente no plano da curadoria de memórias da afeição, apresenta-se, agora, não apenas como uma outra inovação jurídica, pelo viés tecnológico. Mais precisamente, os testamentos afetivos poderão ser o instrumento, eloquente e romântico (um novo 'L'hymne à L'amour'), de pessoas, apesar de mortas, continuarem existindo pelo amor que elas possuíam e por ele também continuarem vivendo" (ALVES, Jones Figueirêdo. A extensão existencial por testamentos afetivos. Disponível em: clique aqui. Acesso em: 22 set. 2018). Além do testamento afetivo, pode-se falar também em testamento digital, com a atribuição dos bens acumulados em vida no âmbito virtual, como páginas, contatos, postagens, manifestações, likes, seguidores, perfis pessoais, senhas, músicas entre outros elementos imateriais adquiridos nas redes sociais. Vale lembrar que o Código Civil de 2002 admite que o testamento tenha um conteúdo extrapatrimonial, pela regra constante do seu art. 1.857, § 2º ("São válidas as disposições testamentárias de caráter não patrimonial, ainda que o testador somente a elas se tenha limitado"). Procurou-se, assim, afastar críticas anteriores existentes quanto ao art. 1.626 do Código Civil de 1916, que supostamente limitava o testamento a um conteúdo patrimonial ("Considera-se testamento o ato revogável pelo qual alguém, de conformidade com a lei, dispõe, no todo ou em parte, do seu patrimônio, para depois da sua morte"). No âmbito da herança digital, fala-se em testamento em sentido amplo, sendo certo que a atribuição de destino de tais bens digitais pode ser feita por legado, por codicilo - se envolver bens de pequena monta, como é a regra -, ou até por manifestação feita perante a empresa que administra os dados. Mas, além dessas manifestações de vontade feitas ainda em vida, o que fazer caso o falecido não tenha se manifestado sobre sua herança digital, especialmente pelo fato de ela não estar mencionada no Código Civil em vigor? Essa é a pergunta que pretendo começar a responder, sem prejuízo de aprofundamentos futuros que seguirão. Como é notório, a sucessão legítima acaba por presumir a vontade do falecido, estabelecendo a ordem de vocação hereditária, em prol do fundamento principal do Direito das Sucessões, qual seja a continuidade da pessoa. No Código Civil, essa ordem está prevista no art. 1.829, que deve ser lido com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, que equiparou a união estável ao casamento (Recurso Extraordinário 878.694, julgado em maio de 2017). Assim, a sucessão legítima defere-se na ordem seguinte: a) aos descendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro sobrevivente, salvo se o regime do casamento ou da união estável for o de comunhão universal, o da separação obrigatória de bens, ou se, no regime da comunhão parcial, o autor da herança não houver deixado bens particulares; b) aos ascendentes, em concorrência com o cônjuge ou companheiro, independentemente do regime de bens; c) ao cônjuge ou companheiro sobrevivente; e d) aos colaterais. A grande dúvida diz respeito ao fato de os dados digitais da pessoa poderem ou não compor a sua herança, conceituada como um conjunto de bens, corpóreos e incorpóreos, havido pela morte de alguém e que serão transmitidos aos seus sucessores, sejam testamentários ou legítimos. Nos termos do art. 1.791 do Código Civil, a herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros, o que inclui não só o patrimônio material do falecido, como também os bens imateriais, como supostamente seriam aqueles havidos e construídos na grande rede durante a vida da pessoa. Sendo assim, a chamada herança digital segue transmissão conforme a ordem de vocação hereditária destacada? Como respondeu Giselda Maria Fernandes Hironaka, em entrevista publicada no Boletim do IBDFAM, "entre os bens ou itens que compõem o acervo digital, há os de valoração econômica (como músicas, poemas, textos, fotos de autoria da própria pessoa), e estes podem integrar a herança do falecido, ou mesmo podem ser objeto de disposições de última vontade, em testamento, e há os que não têm qualquer valor econômico, e geralmente não integram categoria de interesse sucessório" (Boletim Informativo do IBDFAM, n. 33, jun./jul. 2017, p. 9). Acrescente-se que muitos dos bens citados pela jurista que compõem o suposto acervo sucessório digital estão protegidos pela lei 9.610/98, especialmente pela sua notória divisão entre os direitos morais e patrimoniais do autor. Sobre o tema, tramitam no Congresso Nacional projetos de lei que pretendem discipliná-lo no âmbito da sucessão legítima. O primeiro a ser mencionado é o de número 4.847, de 2012. A proposição pretende incluir os arts. 1.797-A a 1.797-C do Código Civil. Conforme a primeira norma projetada, "a herança digital defere-se como o conteúdo intangível do falecido, tudo o que é possível guardar ou acumular em espaço virtual, nas condições seguintes: I - senhas; II - redes sociais; III - contas da Internet; IV - qualquer bem e serviço virtual e digital de titularidade do falecido". Há, assim, a previsão de um rol meramente exemplificativo dos bens que compõe o acervo, o que não exclui outros, como os contatos, as fotos e os textos construídos pelo de cujus. Em continuidade, conforme o proposto art. 1.797-B, se o falecido, tendo capacidade para testar, não o tiver feito, a herança será transmitida aos herdeiros legítimos. Por fim, está sendo sugerido que "cabe ao herdeiro: I - definir o destino das contas do falecido; a) transformá-las em memorial, deixando o acesso restrito a amigos confirmados e mantendo apenas o conteúdo principal ou; b) apagar todos os dados do usuário ou; c) remover a conta do antigo usuário" (proposta de art. 1.797-C). Esse projeto tramita em conjunto com o PL 7.742/17, sugerido o mais recentemente, que aguarda parecer do relator na Câmara dos Deputados. A última norma projetada visa incluir um art. 10-A no Marco Civil da Internet (Lei 12.965/14), com a seguinte dicção: Art. 10-A. Os provedores de aplicações de internet devem excluir as respectivas contas de usuários brasileiros mortos imediatamente após a comprovação do óbito. § 1º A exclusão dependerá de requerimento aos provedores de aplicações de internet, em formulário próprio, do cônjuge, companheiro ou parente, maior de idade, obedecida a linha sucessória, reta ou colateral, até o segundo grau inclusive. § 2º Mesmo após a exclusão das contas, devem os provedores de aplicações de internet manter armazenados os dados e registros dessas contas pelo prazo de 1 (um) ano, a partir da data do óbito, ressalvado requerimento cautelar da autoridade policial ou do Ministério Público de prorrogação, por igual período, da guarda de tais dados e registros. § 3º As contas em aplicações de internet poderão ser mantidas mesmo após a comprovação do óbito do seu titular, sempre que essa opção for possibilitada pelo respectivo provedor e caso o cônjuge, companheiro ou parente do morto indicados no caput deste artigo formule requerimento nesse sentido, no prazo de um ano a partir do óbito, devendo ser bloqueado o seu gerenciamento por qualquer pessoa, exceto se o usuário morto tiver deixado autorização expressa indicando quem deva gerenciá-la. Como se pode perceber, as duas proposições atribuem o poder de decisão a respeito do destino da herança digital aos herdeiros do falecido. Apesar de a última regra mencionar a exclusão imediata dos conteúdos após a comprovação do óbito, tal prerrogativa é atribuída aos familiares do de cujus, como se retira do seu § 1º. No mesmo sentido, como outra projeção a ser destacada, o projeto de lei 4.099-B/12 tende a incluir um parágrafo único no art. 1.788 do Código Civil, com a seguinte redação: "serão transmitidos aos herdeiros todos os conteúdos de contas ou arquivos digitais do autor da herança". A proposta aguarda apreciação no Senado Federal e, como se percebe, procura tratar da herança digital no âmbito da sucessão legítima, atribuindo-a aos herdeiros do falecido, que terão total liberdade quanto à sua gestão e destino. Com o devido respeito, pensamos que os projetos colocam em debate uma questão fundamental, qual seja a titularidade do material que é construído em vida pela pessoa na internet, bem como a tutela da privacidade, da imagem e de outros direitos da personalidade do morto. Em parecer muito bem estruturado oferecido perante o Instituto dos Advogados do Brasil (IAB), o professor Pablo Malheiros Cunha Frota manifestou-se em sentido contrário às projeções, com razão, substancialmente pelo fato de estarmos tratando de direitos essenciais e personalíssimos do de cujus, que, nesse caso, não podem ser transmitidos aos herdeiros de forma automática, mas devem ser imediatamente extintos com o falecimento. Foram as razões de suas objeções e conclusões, conforme o teor do estudo doutrinário que me foi enviado, apresentado em dezembro de 2017 perante aquele instituto: a) os dois projetos autorizam que todo o acervo digital do morto transmita-se automaticamente aos herdeiros, violando os direitos fundamentais à liberdade e à privacidade, notadamente nas hipóteses em que o bem digital é uma projeção da privacidade e não houve declaração expressa de vontade ou comportamento concludente do seu titular, autorizando algum herdeiro ou terceiro a acessá-lo e geri-lo; b) terceiros que interagiram com o falecido em vida também terão as suas privacidades expostas aos herdeiros; c) é necessário o respeito às eficácias pessoal, interpessoal e social da vida privada, o que concretiza a liberdade positiva de cada um decidir os rumos de sua vida, "sem indevidas interferências externas da comunidade, particular ou do Estado, no qual essa liberdade se vincula intersubjetivamente com a comunidade, o Estado e o particular"; d) os projetos de lei pretendem transmudar o regime de direito de propriedade do Direito das Coisas para os direitos da personalidade, uma vez que o direito de personalidade do falecido transforma-se em bem patrimonial, pois a intimidade e a imagem da pessoa morta servem como fonte de riqueza econômica; e) os familiares ou terceiros somente devem ter o direito de gerenciar o acervo digital se houver declaração expressa do falecido, por instrumento público ou particular, inclusive em campos destinados para tais fins nos próprios ambientes eletrônicos, sem a necessidade de testemunhas, ou se houver comportamento concludente nesse sentido; f) caso tal declaração ou comportamento não estejam presentes, ou estejam atingidos por problema relativo à sua validade ou eficácia; todo o acervo digital que seja expressão da personalidade não deve ser alterado, visto ou compartilhado por qualquer pessoa; g) bens imateriais que projetem a privacidade de quem falece não devem e não deveriam ser acessados pelos herdeiros ou por terceiros não havendo manifestação de vontade do autor da herança. Sobre as manifestações que podem ser feitas pelo falecido, ainda em vida, perante as redes sociais, sabe-se que o Facebook oferece duas opções. A primeira delas é de transformar o perfil da pessoa em um memorial na linha do tempo, permitindo homenagens ao falecido. A segunda opção é a exclusão do conteúdo por representante que comprove a morte do usuário. O Google, por sua vez, permite uma espécie de testamento digital informal, em que o usuário pode escolher até dez pessoas que receberão as informações acumuladas em vida. O Twitter autoriza que os familiares baixem todos os tweets públicos e solicitem a exclusão do perfil, em procedimento que tramita perante a própria empresa. Por fim, merece destaque a solução dada pelo Instagram, que autoriza a exclusão da conta mediante o preenchimento de formulário online com a comprovação de tratar-se de membro da família, sendo possível igualmente a transformação do conteúdo em um memorial. Essas opções, como se nota, variam entre a valorização da autonomia privada e a atribuição dos bens digitais aos herdeiros. Talvez esse seja o melhor caminho para se construir uma proposta de alteração do Código Civil a respeito do tema, no capítulo do Direito das Sucessões. Assim como Pablo Malheiros, entendo que as projeções que existem no momento apresentam sérios problemas e, em certo sentido, são simplistas, devendo o debate a respeito do assunto ser ampliado e aprofundado. Pontuo, a propósito, que a proteção dos dados pessoais acabou por ser regulamentada pela recente lei 13.709, de 14 de agosto de 2018, norma que trata da matéria em sessenta e cinco artigos e que entrará em vigor no país no início de 2020. A nova lei sofreu claras influências do Regulamento Geral de Proteção de Dados Europeu, de maio de 2018, amparando sobremaneira a intimidade Em termos gerais, existe uma ampla preocupação com os dados e informações comercializáveis das pessoas naturais, inclusive nos meios digitais, e objetiva-se proteger os direitos fundamentais de liberdade e de privacidade; bem como o livre desenvolvimento da personalidade (art. 1º). Nos termos do preceito seguinte da norma específica, a disciplina da proteção de dados pessoais tem como fundamentos: a) o respeito à privacidade; b) a autodeterminação informativa, com amparo na autonomia privada; c) a liberdade de expressão, de informação, de comunicação e de opinião; d) a inviolabilidade da intimidade, da honra e da imagem; e) o desenvolvimento econômico e tecnológico e a inovação; f) a livre iniciativa, a livre concorrência e a defesa do consumidor; e g) os direitos humanos, o livre desenvolvimento da personalidade, a dignidade e o exercício da cidadania pelas pessoas naturais. Uma eventual projeção legislativa sobre herança digital deve dialogar com essa lei emergente, o que não parece ter sido feito com as propostas ora analisadas. Como palavras finais, entendo que é preciso diferenciar os conteúdos que envolvem a tutela da intimidade e da vida privada da pessoa daqueles que não o fazem para, talvez, criar um caminho possível de atribuição da herança digital aos herdeiros legítimos, naquilo que for possível. Entendo que os dados digitais que dizem respeito à privacidade e à intimidade da pessoa, que parecem ser a regra, devem desaparecer com ela. Dito de outra forma, a herança digital deve morrer com a pessoa. O desafio para encontrar uma premissa que afaste essa afirmação portanto, é grande, devendo ser encarado por todos os aplicadores e estudiosos do Direito Privado Brasileiro, muito além das simples proposições legislativas aqui abordadas.
Como escrevi pela primeira vez no ano de 2007, o art. 1.604 do Código Civil consagra a chamada ação vindicatória de filho, estabelecendo que "ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro". O tema foi tratado em artigo científico apresentado quando do VI Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e das Sucessões do IBDFAM, naquele remoto ano. Como ali conceituo, a ação vindicatória de filho é a demanda proposta por terceiro, suposto pai biológico, que pretende pleitear para si o vínculo de parentalidade, referente a um filho registrado em nome de outrem. Como ali conclui, essa ação judicial deve ser analisada de acordo com três verdades parentais: a registral, a biológica e a socioafetiva (As verdades parentais e a ação vindicatória de filho. Anais do VI Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e das Sucessões.). Em suma, além da verdade registral, consubstanciada pelas informações que constam do cartório de registro civil, outras verdades parentais também devem ser consideradas para o pleito referido nessa ação, o que pode representar sério entrave para a pretensão de vindicar o filho. No que diz respeito à verdade biológica, segunda a ser considerada, é ela demonstrada pelo vínculo de sangue que une as pessoas, na grande maioria das vezes comprovada pelo exame de DNA, que traz certeza quase absoluta quanto a tal ligação. Porém, como sustento desde esse meu texto, é principalmente a verdade socioafetiva, fundada na posse de filhos, que deve ser levada em conta como fator substancial nos casos de propositura de uma ação vindicatória de filiação. Isso deve ser ponderado notadamente nos casos em que o pai registral tenha estabelecido um vínculo socioafetivo com a criança registrada. Em situações tais, há tempos sustento que o vínculo existente entre o filho e o réu deve ser tido como inquebrável, inclusive diante do princípio do maior interesse da criança. Como defendo há mais de uma década, em situações tais, a ação vindicatória de filho deverá ser julgada improcedente. Refletindo melhor sobre a questão, penso que é até possível a sua extinção sem resolução do mérito, por ilegitimidade ativa do seu autor, nos termos do que consta do art. 485, inc. VI, do CPC/2015. O caminho pela improcedência da ação em situações tais vem sendo percorrido há tempos pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Como primeiro aresto de destaque, cumpre colacionar acórdão que traz essa correta interpretação do comando civil ora abordado, citando outro precedente importante: "Estabelecendo o art. 1.604 do Código Civil que 'ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade de registro', a tipificação das exceções previstas no citado dispositivo verificar-se-ia somente se perfeitamente demonstrado qualquer dos vícios de consentimento, que, porventura, teria incorrido a pessoa na declaração do assento de nascimento, em especial quando induzido a engano ao proceder o registro da criança. Não há que se falar em erro ou falsidade se o registro de nascimento de filho não biológico efetivou-se em decorrência do reconhecimento de paternidade, via escritura pública, de forma espontânea, quando inteirado o pretenso pai de que o menor não era seu filho; porém, materializa-se sua vontade, em condições normais de discernimento, movido pelo vínculo socioafetivo e sentimento de nobreza. 'O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo socioafetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação socioafetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil' (REsp. n. 878.941 - DF, Terceira Turma, relatora Ministra Nancy Andrighi, DJ de 17.9.2007). O termo de nascimento fundado numa paternidade socioafetiva, sob autêntica posse de estado de filho, com proteção em recentes reformas do direito contemporâneo, por denotar uma verdadeira filiação registral - portanto, jurídica -, conquanto respaldada pela livre e consciente intenção do reconhecimento voluntário, não se mostra capaz de afetar o ato de registro da filiação, dar ensejo a sua revogação, por força do que dispõem os arts. 1.609 e 1.610 do Código Civil" (STJ, REsp 709.608/MS, Quarta Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, julgado em 05/11/2009, DJE 23/11/2009). Mais recentemente, concluiu o mesmo Tribunal da Cidadania que "a socioafetividade é contemplada pelo art. 1.593 do Código Civil, no sentido de que o parentesco é natural ou civil, conforme resulte da consanguinidade ou outra origem. Impossibilidade de retificação do registro de nascimento do menor por ausência dos requisitos para tanto, quais sejam: a configuração de erro ou falsidade (art. 1.604 do código civil). A paternidade socioafetiva realiza a própria dignidade da pessoa humana por permitir que um indivíduo tenha reconhecido seu histórico de vida e a condição social ostentada, valorizando, além dos aspectos formais, como a regular adoção, a verdade real dos fatos. A posse de estado de filho, que consiste no desfrute público e contínuo da condição de filho legítimo, restou atestada pelas instâncias ordinárias. A 'adoção à brasileira', ainda que fundamentada na 'piedade', e muito embora seja expediente à margem do ordenamento pátrio, quando se fizer fonte de vínculo socioafetivo entre o pai de registro e o filho registrado não consubstancia negócio jurídico sujeito a distrato por mera liberalidade, tampouco avença submetida a condição resolutiva, consistente no término do relacionamento com a genitora (precedente). Aplicação do princípio do melhor interesse da criança, que não pode ter a manifesta filiação modificada pelo pai registral e socioafetivo, afigurando-se irrelevante, nesse caso, a verdade biológica" (STJ, REsp. 1.613.641/MG, Terceira Turma, Rel. Min. Ricardo Villas Boas Cueva, DJE 29/05/2017). Da Quarta Turma da Corte, e entre os julgamentos mais recentes, merece destaque o seguinte trecho de aresto, de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão: "Em conformidade com os princípios do Código Civil de 2002 e da Constituição Federal de 1988, o êxito em ação negatória de paternidade depende da demonstração, a um só tempo, da inexistência de origem biológica e também de que não tenha sido constituído o estado de filiação, fortemente marcado pelas relações socioafetivas e edificado na convivência familiar. Vale dizer que a pretensão voltada à impugnação da paternidade não pode prosperar quando fundada apenas na origem genética, mas em aberto conflito com a paternidade socioafetiva. No caso, ficou claro que o autor reconheceu a paternidade do recorrido voluntariamente, mesmo sabendo que não era seu filho biológico, e desse reconhecimento estabeleceu-se vínculo afetivo que só cessou com o término da relação com a genitora da criança reconhecida. De tudo que consta nas decisões anteriormente proferidas, dessume-se que o autor, imbuído de propósito manifestamente nobre na origem, por ocasião do registro de nascimento, pretende negá-lo agora, por razões patrimoniais declaradas. Com efeito, tal providência ofende, na letra e no espírito, o art. 1.604 do Código Civil, segundo o qual não se pode 'vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro', do que efetivamente não se cuida no caso em apreço. Se a declaração realizada pelo autor, por ocasião do registro, foi uma inverdade no que concerne à origem genética, certamente não o foi no que toca ao desígnio de estabelecer com o infante vínculos afetivos próprios do estado de filho, verdade social em si bastante à manutenção do registro de nascimento e ao afastamento da alegação de falsidade ou erro. A manutenção do registro de nascimento não retira da criança o direito de buscar sua identidade biológica e de ter, em seus assentos civis, o nome do verdadeiro pai. É sempre possível o desfazimento da adoção à brasileira mesmo nos casos de vínculo socioafetivo, se assim decidir o menor por ocasião da maioridade; assim como não decai seu direito de buscar a identidade biológica em qualquer caso, mesmo na hipótese de adoção regular" (STJ, REsp 1.352.529/SP, Quarta Turma; Rel. Min. Luis Felipe Salomão; DJE 13/04/2015) Em complemento, e isso também foi apontado naquele meu texto sobre as verdades parentais, fica em xeque a viabilidade da ação se ela puder quebrar a harmonia de famílias constituídas e consolidadas. Isso foi reconhecido em acórdão do Superior Tribunal de Justiça do remoto ano de 2002, que analisa a temática sob o prisma da legitimidade ativa: "Ação de anulação de registro. Legitimação ativa. Precedentes da Corte. 1. Os precedentes da Corte mostram que é necessário, em matéria de direito de família, oferecer temperamento para a admissão da legitimidade ativa de terceiros com o objetivo de anular o assento de nascimento, considerando a realidade dos autos e a necessidade de proteger situações familiares reconhecidas e consolidadas. 2. Recurso especial conhecido, mas, desprovido". (STJ, REsp 215.249/MG, Relator Ministro Carlos Alberto Menezes Direito, terceira Turma, julgado em 03/10/2002, DJ 02/12/2002, p. 305) Como consta de trecho importante da relatoria do então Ministro Menezes Direito, "a meu sentir, os precedentes da Corte mostram, com muita claridade, que é necessário, em matéria de direito de família, oferecer temperamento para a admissão da legitimidade ativa de terceiros com o objetivo de anular o assento de nascimento, considerando a realidade dos autos e a necessidade de proteger situações familiares reconhecidas e consolidadas" (REsp. 215.249/MG). De todo modo, é preciso revisitar essa posição anterior tendo em vista a recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a parentalidade socioafetiva, do ano de 2016, julgada em repercussão geral. Conforme a tese ali firmada, "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, julgado em 21/9/2016, publicado no seu Informativo n. 840). Não se pode negar que uma das grandes contribuições do aresto foi consolidar a posição jurídica de que a socioafetividade é forma de parentesco civil, em posição igualitária perante o parentesco consanguíneo. Nesse sentido, destaque-se o seguinte trecho do voto do Ministro Relator Luiz Fux: "A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais; (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela afetividade. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele que utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio)" (STF, Recurso Extraordinário 898.060/SC). Como se pode perceber, o julgado aponta que a parentalidade socioafetiva, fundada na posse de estado de filho, tem como parâmetros os critérios do nome, do tratamento e da reputação, a tríade nominatio, tractatio e reputatio. Sempre destaco três aspectos fulcrais e impactantes desse decisum, o que deve ser retomado neste texto. O primeiro deles é o reconhecimento expresso, o que foi feito por vários Ministros, de ser a afetividade um valor jurídico e um princípio inerente à ordem civil-constitucional brasileira, na linha do que defendo e sigo (por todos, ver: CALDERÓN, Ricardo. O princípio da afetividade no direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. p. 217). O segundo aspecto diz respeito ao fato de estar a parentalidade socioafetiva - cujo fundamento legal é o art. 1.593 do CC/2002 - em situação de igualdade com a paternidade biológica. Em outras palavras, não há hierarquia entre uma ou outra modalidade de filiação, o que representa um razoável e desejável equilíbrio sobre o assunto. O terceiro e último aspecto do decisum superior é a vitória da multiparentalidade ou pluriparentalidade, que passou a ser admitida pelo Direito brasileiro, mesmo que contra a vontade do pai biológico. Ficou claro, pelo julgamento, que o reconhecimento do vínculo concomitante é para todos os fins, inclusive alimentares e sucessórios. Como tenho sustentado, emergem grandes desafios dessa afirmação, mas é tarefa da doutrina, da jurisprudência e dos aplicadores do Direito resolver os problemas que surgem, de acordo com os casos concretos colocados a julgamento pelo Poder Judiciário. Um desses problemas diz respeito justamente à ação vindicatória de filho, pois, em uma análise superficial do panorama jurídico que emergiu com a decisão do STF, poder-se-ia afirmar que deve ser reconhecido o duplo vínculo de paternidade, tanto em relação ao pai registral e socioafetivo quanto em relação ao pai supostamente biológico, que o pleiteia com base no art. 1.604 do Código Civil. Porém, penso que essa não é a melhor solução, até porque o caso analisado pelo STF dizia respeito à ação proposta pela própria filha, em situação oposta ao que se ventila. Com o devido respeito, essa forma de julgar representaria um retrocesso, uma volta ao passado, desprezando a posse de estado de filho fundada na reputação social (reputatio) e no tratamento dos envolvidos (tractatus). Ademais, abre-se a possibilidade de um filho "escolher" o seu pai não pelo ato continuado de afeto, mas por meros interesses patrimoniais, em uma clara demanda frívola - como denomina Anderson Schreiber - ou demanda argentária - como define José Fernando Simão. O mesmo pensamento deve ser aplicado na situação inversa, quanto à demanda do art. 1.604 do Código Civil proposta pelo suposto pai biológico, movida apenas por interesses patrimoniais. Na hipótese de um pai biológico que pleiteia a paternidade para si de filho já registrado em nome de pai socioafetivo, com fins puramente econômicos, não me parece haver a possibilidade de demanda, ou mesmo legitimidade, para a ação. Em casos tais, interpreto a decisão do STF no sentido de apenas se reconhecer o direito do filho em buscar a verdade biológica, após atingir a maioridade. Em complemento, continuo a entender que a ação vindicatória de filho pode até ser admitida para que o pai biológico obste o estabelecimento do vínculo socioafetivo, pleiteando a posse de estado de filho para si. Porém, não é medida legítima para as situações em que essa realidade filial esteja consolidada. A demanda até pode ser admitida, por exemplo, na hipótese em que a criança é recém-nascida, em que ainda não há qualquer vínculo afetivo constituído (verdade socioafetiva). Nessas situações, não se pode afastar o direito do pai biológico ou de sangue pleitear o vínculo a que tem direito: a ação vindicatória de filho deve ser julgada procedente nessa situação fática. Entretanto, como palavras finais, pelos argumentos aduzidos no decorrer deste texto - e que estão mantidos mesmo com a decisão do STF antes comentada -, não pode um suposto pai biológico ingressar com a ação vindicatória de filho a fim de pleitear o vínculo parental - mesmo que seja duplo -, nas hipóteses fáticas em que há um vínculo reconhecido com outro pai, registral e socioafetivo.
quarta-feira, 25 de julho de 2018

O companheiro como herdeiro necessário

Como se retira dos estudos básicos do Direito das Sucessões, o herdeiro ou sucessor é aquele que é beneficiado pela morte do de cujus, seja por disposição de ato de última vontade, seja por determinação da norma jurídica. Sendo assim, como primeiro critério classificador, quanto à origem, o herdeiro pode ser testamentário - quando instituído por testamento, legado ou codicilo -, ou legítimo - quando o direito de suceder decorre da lei, diante da ordem de vocação hereditária, presumindo o legislador a vontade do moro. Em relação aos últimos, sucessores legítimos, quanto à amplitude de proteção do sistema sucessório nacional, duas são as modalidades de herdeiros previstas no Direito Civil Brasileiro. De início, há os herdeiros necessários, forçados ou reservatários, aqueles que têm a seu favor a proteção da legítima, composta por metade do patrimônio do autor da herança, nos termos do art. 1.846 do atual Código Civil, que enuncia: "pertence aos herdeiros necessários, de pleno direito, a metade dos bens da herança, constituindo a legítima". São herdeiros necessários, expressamente e segundo o art. 1.845 do Código Civil de 2002, os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Apesar da falta de previsão legal, um dos grandes temas de debate da atualidade diz respeito a se considerar o companheiro ou convivente como herdeiro necessário ou não, discussão que foi aprofundada diante do julgamento do Supremo Tribunal Federal, que concluiu pela inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, com repercussão geral (Recurso Extraordinário 878.694/MG, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, julgado em 10/5/2017, publicado no Informativo 864 da Corte). Não se pode esquecer que o herdeiro necessário, a quem o testador deixar a sua parte disponível, ou algum legado, não perde o direito à legítima, ou seja, é possível que a pessoa seja herdeira testamentária e legítima ao mesmo tempo, categorias que podem coexistir no sistema sucessório brasileiro (art. 1.849 do CC/2002). Assim, deduzindo com clareza e demonstrando que essa já era a solução no sistema anterior codificado: "a disposição testamentária que recair sobre a parte disponível da herança, em favor de herdeiro necessário, não afasta o direito à legítima deste herdeiro beneficiário. Nesse sentido é a clara disposição do art. 1.724 do Código Civil de 1916, vigente à época da abertura da sucessão do autor da herança. Dispositivo que encontra correspondência no atual art. 1.849 do novo Código Civil" (TJ/RS, Agravo de Instrumento 239713-37.2013.8.21.7000, 8ª Câmara Cível, Caxias do Sul, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 29/8/2013, DJERS 4/9/2013). Além dos herdeiros necessários, como segunda categoria, existem os herdeiros facultativos ou não obrigatórios, aqueles que não têm a seu favor a proteção da legítima, podendo ser preteridos totalmente por força de testamento. Também podem ser excluídos de modo integral por de meio doações feitas pelo falecido enquanto era vivo, não se aplicando a regra da nulidade absoluta parcial da doação inoficiosa, prevista no art. 549 do Código Civil. Em tom complementar, o art. 1.850 do Código Civil em vigor preceitua que, para excluir da sucessão os herdeiros colaterais, basta que o testador disponha sem contemplá-los. Reitere-se, portanto, que são herdeiros facultativos reconhecidos pela dicção expressa da lei os colaterais até o quarto grau. Na literalidade, a norma alcança os colaterais de segundo grau, que são os irmãos, sejam bilaterais ou germanos (mesmo pai e mesma mãe) ou unilaterais (mesmo pai ou mesma mãe). Abrange também os tios e sobrinhos (colaterais de terceiro grau), bem como os primos, tios-avós e sobrinhos-netos (colaterais de quarto grau). Como se percebe, também não há menção expressa ao companheiro na última regra, de exclusão dos herdeiros facultativos. Na verdade, os entendimentos majoritários da doutrina e da jurisprudência nacionais indicavam que ele não seria herdeiro reservatário, mas apenas o cônjuge. Porém, tal posição não era pacífica, pois muitos juristas já sustentavam anteriormente ser o convivente herdeiro necessário. Conforme a tabela doutrinária de explicação das polêmicas sucessórias do Código Civil de 2002, desenvolvida por Francisco Cahali, constata-se que essa era a opinião de Caio Mário da Silva Pereira, Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, Luiz Paulo Vieira de Carvalho e Maria Berenice Dias (ver em: CAHALI, Francisco José. Direito das sucessões. 4. ed. São Paulo: RT, 2012, p. 225-228). A afirmação, contudo, era minoritária, pois a grande maioria dos doutrinadores pensava de forma contrária, amparada na dicção do art. 1.845 do CC/2002, caso de Christiano Cassettari, Eduardo de Oliveira Leite, Flávio Augusto Monteiro de Barros, Francisco José Cahali, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Fujita, José Fernando Simão, Maria Helena Diniz, Maria Helena Marques Braceiro Daneluzzi, Marcelo Truzzi Otero, Mário Delgado, Mário Roberto Carvalho de Faria, Roberto Senise Lisboa, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Sílvio de Salvo Venosa; além deste autor, todos citados na tabela Cahali na obra antes referenciada. Em resumo, entendia a doutrina majoritária que poderia o companheiro ou a companheira ser totalmente excluído da sucessão por testamento ou doação do autor da herança. Não se olvide, a propósito, que alguns juristas há tempos aventavam a inconstitucionalidade desse tratamento diferenciado, caso de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka e Zeno Veloso, dois dos nossos maiores sucessionistas da atualidade. As lições dos dois últimos doutrinadores foram adotadas e citadas no julgamento do Supremo Tribunal Federal, que contribui substancialmente para uma mudança de posição a respeito do tema, para a teoria e a prática. Como desenvolvi em outros textos publicados neste canal, por maioria de votos, entendeu-se pela equiparação sucessória entre o casamento e a união estável. Nos termos do voto do relator, "não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição". Após pedidos de vistas, o julgamento encerrou-se em maio de 2017, formando maioria quanto à adesão à seguinte tese final, para fins de repercussão final e vinculação de outras ações judiciais em trâmite: "no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002". Também conforme já destaquei aqui, entendo que o julgamento do Supremo Tribunal Federal acabou por resolver algumas questões fundamentais que atormentavam os aplicadores do Direito das Sucessões no Brasil. Porém, deixou algumas brechas e dúvidas, o que pende de apreciação em embargos de declaração opostos no processo, um deles pelo IBDFAM (Instituto Brasileiro de Direito de Família). A principal dúvida diz respeito justamente à inclusão ou não do companheiro como herdeiro necessário no art. 1.845 do Código Civil, tormentosa questão relativa ao Direito das Sucessões e que tem numerosas consequências. O julgamento nada expressa a respeito da dúvida. Todavia, lendo os votos prevalecentes, especialmente o do Relator, Ministro Barroso, a conclusão é positiva, sendo essa a minha posição doutrinária, compartilhada com Zeno Veloso, Giselda Hironaka, Francisco Cahali e Euclides de Oliveira, conforme demonstrado por eles em eventos jurídicos dos quais participamos em conjunto nos últimos meses. Como consequências dessa forma de ver o julgamento do STF, alguns efeitos civis podem ser destacados, a saber: a) incidência das regras previstas entre os arts. 1.846 e 1.849 do CC/2002 para o companheiro, o que gera restrições na doação e no testamento, uma vez que o convivente deve ter a sua legítima protegida; b) o companheiro passa a ser incluído no art. 1.974 do Código Civil, para os fins de rompimento de testamento, caso ali também se inclua o cônjuge; c) o convivente tem o dever de colacionar os bens recebidos em antecipação (arts. 2.002 a 2.012 do CC), sob pena de sonegados (arts. 1.992 a 1.996), caso isso igualmente seja reconhecido ao cônjuge. Em suma, a minha posição é que da decisão do Supremo Tribunal Federal retira-se uma equiparação sucessória das duas entidades familiares, incluindo-se a afirmação de ser o companheiro herdeiro necessário. Porém, ao contrário do que defendem alguns, não se trata de uma equiparação total que atinge todos os fins jurídicos, caso das regras atinentes ao Direito de Família. Em outras palavras, não se pode dizer, como tem afirmado Mario Luiz Delgado, que a união estável passou a ser um casamento forçado. Em resumo, o decisum do Supremo Tribunal Federal gera decorrências de equalização apenas para o plano sucessório. A propósito, há corrente respeitável, encabeçada por Anderson Schreiber e Ana Luiza Nevares, no sentido de haver equiparação das duas entidades familiares somente para os fins de normas de solidariedade, caso das regras sucessórias, de alimentos e de regime de bens. Em relação às normas de formalidade, como as relativas à existência formal da união estável e do casamento, aos requisitos para a ação de alteração do regime de bens do casamento (art. 1.639, § 2º, do CC/2002, e art. 734 do CPC/2015) e às exigências de outorga conjugal, a equiparação não deve ser total. Esse entendimento doutrinário gerou a aprovação do Enunciado 641 na VIII Jornada de Direito Civil, ocorrida em abril de 2018: "a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil não importa equiparação absoluta entre o casamento e a união estável. Estendem-se à união estável apenas as regras aplicáveis ao casamento que tenham por fundamento a solidariedade familiar. Por outro lado, é constitucional a distinção entre os regimes, quando baseada na solenidade do ato jurídico que funda o casamento, ausente na união estável". Insta observar que existem recentes decisões do Superior Tribunal de Justiça que reconhecem, expressa ou implicitamente, ser o companheiro herdeiro necessário. Trazendo o reconhecimento implícito, pelo menos na minha leitura, cite-se o acórdão prolatado pela 4ª Turma do Tribunal da Cidadania, quando do julgamento do Recurso Especial 1.337.420/RS, na sessão plenária de 22 de agosto de 2017, tendo sido como relator o Ministro Luis Felipe Salomão. No caso, irmãos e sobrinho de adotante falecido ajuizaram ação de anulação de adoção em face do adotado, sob o fundamento de que a adoção de menor não atendeu às exigências legais, principalmente no que dizia respeito à hígida manifestação de vontade do adotante. Os autores da ação afirmaram que o adotante-falecido nunca teve a real intenção de adotar a criança, argumentando que a sua capacidade mental estava prejudicada quando do processo de adoção, em virtude de acidente de carro anos atrás. A controvérsia do processo consistiu em definir se os irmãos e sobrinhos do adotante seriam legitimados para a ação de anulação de adoção proposta após o falecimento do adotante, especialmente pelo fato de ter o falecido uma companheira sobrevivente. Como consta do voto do Relator, sendo declarada a nulidade da adoção - "se acolhido o pedido dos autores, irmãos e sobrinhos do de cujus -, não subsistiria a descendência, pois a filha adotiva perderia esse título, deixando, consequentemente, de ser herdeira, e, diante da inexistência de ascendentes, os irmãos e sobrinhos seriam chamados a suceder. Nessa esteira, os autores da anulatória de adoção afirmaram que, acolhida a demanda, a companheira sobrevivente não ocuparia a posição seguinte na ordem de vocação hereditária, nos termos do dispositivo invocado" (STJ, REsp. 1.337.420/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 22/8/2017). Na sequência, como desenvolve o julgador, "o novo perfil da sociedade se tornou tão evidente e contrastante com o ordenamento então vigente, impondo-se a realidade à ficção jurídica, que se fez necessária uma revolução normativa, com reconhecimento expresso de outros arranjos familiares, rompendo-se, assim, com uma tradição secular de se considerar o casamento, civil ou religioso, com exclusividade, o instrumento por excelência vocacionado à formação de uma família. Seguindo esse rumo, uma nova fase do direito de família e, consequentemente, do casamento, surgiu em 1988, baseada num explícito poliformismo familiar, cujos arranjos multifacetados foram reconhecidos como aptos a constituir esse núcleo doméstico chamado 'família', dignos da 'especial proteção do Estado', antes conferida unicamente àquela edificada a partir do casamento. Neste ponto, refiro-me ao art. 226 da Constituição Federal de 1988, que, de maneira eloquente, abandona de vez a antiga fórmula que vinculava, inexoravelmente, a família ao casamento, consagrada em todos os demais diplomas anteriores. Com efeito, quanto à forma de constituição dessa família, estabeleceu a Carta Cidadã, no caput do mencionado dispositivo, que 'a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado', sem ressalvas, sem reservas, sem 'poréns'" (REsp. 1.337.420/RS). Diante desses e de outros argumentos de necessária inclusão de todas as entidades familiares, bem como da recente decisão do Supremo Tribunal Federal, o aresto reconhece a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil para dar procedência às razões recursais, concluindo pela ilegitimidade ativa dos colaterais do falecido para propor a ação de anulação da adoção. Ainda conforme as palavras do Ministro Salomão, sobre o último dispositivo, sua "aplicabilidade não se sustenta diante da nova ordem instaurada, mormente após o julgamento do STF havido em maio deste ano. Com efeito, tendo sido retirado do ordenamento jurídico as disposições previstas no art. 1.790 do Código Civil, o companheiro passa a figurar ao lado do cônjuge na ordem de sucessão legítima (art. 1.829)" (STJ, REsp. 1.337.420/RS, 4ª Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 22/8/2017). Com grande honra, a minha posição é citada em vários trechos do voto do Ministro Relator, notadamente em quatro aspectos, de interpretação a respeito da decisão do STF: a) necessidade de se colocar o companheiro sempre ao lado do cônjuge, no tratamento constante do art. 1.829 do Código Civil; b) reconhecimento do convivente como herdeiro necessário, incluído no art. 1.845 do Código Civil; c) obrigatoriedade de o companheiro declarar os bens recebidos em antecipação, sob pena de serem considerados sonegados (arts. 1.992 a 1.996), caso isso igualmente seja reconhecido ao cônjuge; d) confirmação do direito real de habitação do companheiro, havendo uma tendência de uma unificação de tratamento. Por fim, o reconhecimento expresso de ser a companheira herdeira necessária se deu em outro julgado de 2018 da mesma Corte Superior, prolatado pela 3ª Turma e tendo como Relator o Ministro Villas Bôas Cueva. Como consta do trecho final do seu voto, "a companheira, ora recorrida, é de fato a herdeira necessária do seu ex-companheiro, devendo receber unilateralmente a herança do falecido, incluindo-se os bens particulares, ainda que adquiridos anteriormente ao início da união estável" (STJ, REsp. n. 1.357.117/MG, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, 3ª Turma, julgado em 13/3/2018, DJe 26/3/2018). Assim, em arremate final, por todos os posicionamentos expostos, sejam doutrinários e jurisprudenciais, não restam dúvidas de que, com a decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, o convivente foi alçado à condição de herdeiro necessário, mesmo não estando expressamente prevista no rol do art. 1.845 a própria codificação material. O julgamento da nossa Corte Máxima não traz dúvidas quanto a isso, mesmo em relação aos que antes eram céticos quanto a tal afirmação doutrinária, caso deste autor. Neste momento, é necessário saber interpretar o entendimento do STF, mesmo que à custa de posições doutrinárias anteriores, sempre em prol da socialidade e da efetividade do Direito Civil.
No último dia 18 de maio de 2018, tive a feliz oportunidade de palestrar no X Encontro Nacional de Direito Civil e Processo Civil, realizado na cidade de Salvador e promovido pela Múltipla Eventos, sob a coordenação geral de Francisco Salles. Foi-me atribuído um tema desafiador, relacionado à proteção de dados pessoais na internet, tendo eu analisado, entre outras situações fáticas da atualidade, a "pornografia de vingança" ou revenge porn. No âmbito do Direito de Família, tal conduta está presente quando um ex-cônjuge ou ex-companheiro expõe em ambientes virtuais vídeos ou fotos da intimidade do casal, com o objetivo de vingança pelo fim do relacionamento. Cite-se, também, a situação em que um dos ex-consortes filma o momento da traição, como aconteceu no caso conhecido como do "Gordinho da Saveiro". Outra situação fática que se tornou comum é a propagação de nudes do ex-cônjuge ou ex-companheiro após o fim da relação. Trata-se de grave desrespeito à intimidade, que deve ser sancionado com o dever de indenizar, inclusive com o seu caráter de desestímulo. Como se sabe, a lei 12.737/2012, conhecida como Lei Carolina Dieckmann, trata de tipos penais presentes em situações similares às descritas. A norma introduziu o art. 154-A no Código Penal, estabelecendo que se trata de crime o ato de invadir dispositivo informático alheio, conectado ou não à rede de computadores, mediante violação indevida de mecanismo de segurança, e com o fim de obter, adulterar ou destruir dados ou informações sem autorização expressa ou tácita do titular do dispositivo ou instalar vulnerabilidades para obter vantagem ilícita. A pena prevista para tal conduta é de detenção de três meses a um ano, e multa. O § 1º do comando estabelece que na mesma pena incorre quem produz, oferece, distribui, vende ou difunde dispositivo ou programa de computador com o intuito de permitir a prática da conduta acima mencionada. Além disso, aumenta-se a pena de um sexto a um terço se da invasão resulta prejuízo econômico (art. 154-A, § 2º, do CP). Se da invasão resultar a obtenção de conteúdo de comunicações eletrônicas privadas, segredos comerciais ou industriais, informações sigilosas, assim definidas em lei, ou o controle remoto não autorizado do dispositivo invadido, a pena passa a ser de reclusão de seis meses a dois anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave (art. 154-A, § 3º, do CP). Também está ali previsto que a pena é aumentada de um a dois terços se houver divulgação, comercialização ou transmissão a terceiro, a qualquer título, dos dados ou informações obtidos (art. 154-A, § 4º, do CP). Por derradeiro, aumenta-se a pena de um terço à metade se o crime for praticado contra: a) Presidente da República, governadores e prefeitos; b) Presidente do Supremo Tribunal Federal; c) Presidente da Câmara dos Deputados, do Senado Federal, de Assembleia Legislativa de Estado, da Câmara Legislativa do Distrito Federal ou de Câmara Municipal; ou d) dirigente máximo da administração direta e indireta federal, estadual, municipal ou do Distrito Federal. Não se olvide que a responsabilidade civil independe da criminal, conforme enuncia o art. 935 do Código Civil, consagrador da conhecida divisão das instâncias ou órbitas da ilicitude. Todavia, a lei penal pode servir como roteiro para a configuração inicial das condutas ilícitas civis, pela violação de deveres legais. Presente o dano, há o enquadramento privado nos arts. 186 e 927 do Código Civil, surgindo daí o correspondente dever de indenizar. Tratando de situações similares, não relacionadas ao casamento ou à união estável, mas com mesma conclusão sobre a responsabilidade civil, vejamos três ementas estaduais: "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. DIVULGAÇÃO DE FOTOGRAFIAS ÍNTIMAS. Provada a conduta ilícita, a autoria, o dano e o nexo de causalidade, há de ser mantida a sentença que condenou o apelante ao pagamento da indenização arbitrada em favor da autora, em razão da divulgação indevida de fotos íntimas" (TJMG, Apelação n. 1.0180.11.004047-4/001, Rel. Des. Wagner Wilson, julgado em 13/11/2013, DJEMG 22/11/2013). "RESPONSABILIDADE CIVIL. Danos morais. Partes que tiveram relacionamento amoroso. Hipótese em que o réu passou a ameaçar a autora, publicando mensagens desabonadoras na internet, fotos íntimas do casal e espalhando panfletos pelo bairro, afirmando que a autora era garota de programa. Fato de ter a autora tornado público o relacionamento entre as partes, na constância do casamento do réu, que configura risco originado da conduta do próprio réu. Danos morais devidos. Fixação da indenização em R$ 10.000,00. Valor razoável, que não merece sofrer redução. Decisão mantida por seus próprios fundamentos, nos termos do art. 252 do novo Regimento Interno deste Tribunal. Recurso desprovido" (TJSP, Apelação n. 0003141-93.2007.8.26.0224, Acórdão n. 7138060, Guarulhos, Primeira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Rui Cascaldi, julgado em 29/10/2013, DJESP 19/11/2013). "APELAÇÃO CÍVEL E RECURSO ADESIVO. RESPONSABILIDADE CIVIL. RECONVENÇÃO. Divulgação de fotos íntimas de relação sexual dos autores. Réu ex-namorado da autora. Prova da propagação das informações por ato do demandado. Procedência do pleito indenizatório. Critérios de fixação da indenização por danos morais. Majoração. Adequação aos parâmetros normalmente observados pela câmara. Apelação cível desprovida. Recurso adesivo provido" (TJRS, Apelação cível n. 341337-66.2012.8.21.7000, Tramandaí, Nona Câmara Cível, Rel. Des. Marilene Bonzanini Bernardi, julgado em 14/11/2012, DJERS 21/11/2012). Mais recentemente, já abordando a questão do revenge porn, colaciona-se, do Tribunal Fluminense, diante do compartilhamento e divulgação de vídeos em redes sociais: "APELAÇÃO CÍVEL. RESPONSABILIDADE CIVIL. DIVULGAÇÃO DE VÍDEO ÍNTIMO. REVENGE PORN. PEDIDO DE INDENIZAÇÃO DE DANOS MORAIS. PROCEDÊNCIA. INCONFORMISMO DO RÉU. PRETENSÃO RECURSAL DE EXCLUSÃO OU REDUÇÃO DOS DANOS MORAIS. (...) Pedido autoral de pagamento de indenização de danos morais decorrentes da divulgação de vídeo capturando um momento de intimidade sexual entre as partes. Sentença de procedência. Condenação ao pagamento de indenização no valor de R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais) para compensar os danos morais sofridos pela parte autora. Pedido recursal de exclusão da condenação ou, ainda, sua redução. Réu/apelante que insiste em negar a autoria do envio do vídeo para o grupo na rede social conectada pelo aplicativo "Whatsapp". Recorrente que admite ter a mensagem partido de seu aparelho celular, apesar de não ter visto ninguém além da autora na ocasião em que a mensagem foi enviada. Elementos de prova conclusivos no sentido de que o apelante empreendeu esforços para tentar camuflar a realidade e assim esquivar-se de sua responsabilidade, chegando a noticiar falsamente. Como depois veio a admitir. O roubo de seu celular (responde o apelante pelo crime de falsidade ideológica nos autos do Processo nº. 0000302-66.2016.8.19.0033). Autoria suficientemente demonstrada. Presentes os demais elementos da responsabilidade civil subjetiva, notadamente a lesão, que na espécie é eminentemente extrapatrimonial. Recorrida que se viu submetida a intensa exposição, consequência que se exaspera, tendo em vista que a autora trabalha no comércio (ou seja, com atendimento ao público) numa cidade pequena, onde sobra pouco espaço para o anonimato e os vínculos com a coletividade tendem a assumir importância maior. Prova oral convincente no sentido de que o vídeo foi compartilhado até entre grupos de adolescentes, gerando irreversível processo difamatório de repercussão devastadora na vida da apelada. (...)" (TJRJ, Apelação n. 0000445-89.2015.8.19.0033, Miguel Pereira, Vigésima Primeira Câmara Cível, Rel. Des. André Emilio Ribeiro Von Melentovytch, DORJ 25/8/2017, p. 574). O último julgado traz em sua fundamentação comentários sobre a realidade de um "sensacionalismo machista", que supostamente atuaria como um mecanismo de pressão social e coletiva, na censura à liberdade sexual da mulher. Dessa forma, essa suposta sanção social "definitivamente lesou a recorrida, que se viu prejudicada em inúmeros setores de sua vida pessoal, do familiar ao profissional". Reconheceu-se, assim, a existência do nexo de causalidade entre a gravação do vídeo e suas replicações e os prejuízos imateriais suportados pela autora. Como igualmente consta do voto do Relator, houve uma "reprovabilidade do ato que se acentua na medida em que o recorrente, no intuito único de dar vazão à sua fanfarronice, traiu a confiança depositada pela recorrida ao se deixar registrar num momento de intimidade, destruindo a reputação dela com a divulgação do vídeo". Há, por fim, menção ao caráter punitivo da indenização moral, fixada em R$ 50.000,00 (cinquenta mil reais). (TJRJ, Apelação n. 0000445-89.2015.8.19.0033, Miguel Pereira, Vigésima Primeira Câmara Cível, Rel. Des. André Emilio Ribeiro Von Melentovytch, DORJ 25/8/2017, p. 574). Outro acórdão, do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, e ainda mais recente, considerou haver violência moral contra a mulher nos casos de divulgação de material íntimo, a gerar a aplicação da Lei Maria da Penha, o que é um caminho jurídico correto, na minha opinião. Nos termos exatos do acórdão, que entendeu pela presença de danos morais presumidos, "a divulgação via whatsapp e Facebook para conhecidos e desconhecidos, de imagens de companheira nua consubstancia violência moral contra a mulher no âmbito de relação íntima de afeto, a qual foi prevista pelo legislador nacional no art. 5º, III, c/c art. 7º, V, da lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), ensejando a reparação por dano moral in re ipsa" (TJDF, Apelação cível n. 2016.16.1.009786-5, Acórdão n. 108.2311, Quinta Turma Cível, Rel. Des. Ângelo Passareli, julgado em 14/3/2018, DJDFTE 20/3/2018). Entendo que, em situações de pornografia de vingança relacionadas às entidades familiares, a competência para apreciar tais danos deve ser da Vara da Família, diante da presença de um nexo de causalidade que decorre da relação familiar, podendo tal pedido ser formulado na própria ação de divórcio ou de dissolução da união estável que assuma a feição contenciosa (arts. 693 e seguintes do CPC/2015). Entretanto, em se tratando de mero relacionamento fugaz - como no caso de "ficantes", crushes ou com "amizade colorida", por exemplo -, de um namoro ou noivado, a competência para apreciar a demanda reparatória por pornografia de vingança é da Vara Cível. A propósito, outra hipótese fática contemporânea, situação já analisada pela jurisprudência, diz respeito ao envio de fotos íntimas na iminência do casamento, o que gerou a sua não realização e a responsabilidade civil do noivo: "Violação da intimidade. Apelante que enviou e-mails, inclusive com conversas e fotos íntimas, a diversas pessoas do círculo dos apelados, em data próxima ao casamento destes. Teorias dos círculos concêntricos. Violação da intimidade. Esfera íntima da vida privada que merece proteção. Notório intuito desabonador" (TJSP, Apelação n. 0015045-05.2012.8.26.0073, Acórdão n. 8848480, Avaré, Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Rosangela Telles, julgado em 29/9/2015, DJESP 6/10/2015). Como palavras finais, pontue-se que o envio de nudes, por fotos ou vídeos, tornou-se uma prática corriqueira e perigosa entre as gerações mais novas. Cientes disso, alguns julgadores têm resolvido a questão da propagação de fotos e vídeos pela internet a partir da presença da culpa exclusiva da vítima, como se extrai da seguinte ementa: "a propagação de imagens que violam a intimidade da parte é capaz de ensejar indenização por danos morais, quando não há autorização para tanto, nos termos do artigo 20 do CC. O fato de a parte ter produzido e remetido a foto íntima para outrem caracteriza sua culpa exclusiva pela propagação das imagens acostadas nos autos". (TJMT, Apelação n. 105148/2015, Barra do Garças, Rel. Des. Maria Helena Gargaglione Póvoas, julgado em 13/4/2016, DJMT 20/4/2016, p. 99). Talvez, como a prática é geracional, essa forma de julgar seja alterada substancialmente no futuro, ou seja, não haverá mais o enquadramento da conduta na culpa ou fato exclusivo da vítima, mas no fato concorrente de todos os envolvidos, a gerar a fixação do quantum debeatur de acordo com as contribuições das partes.
Como destaquei no último texto publicado neste canal, os conceitos de parentesco e filiação passaram por grandes transformações na realidade recente do Direito de Família Brasileiro, diante do surgimento das técnicas de reprodução assistida e da parentalidade socioafetiva, reconhecidas como novas formas de parentesco civil, enquadradas na redação do art. 1.593 do Código Civil. Esse reconhecimento, paulatinamente admitido na doutrina e na jurisprudência, teve a sua culminância ou ápice com a decisão do Supremo Tribunal Federal do ano de 2016, em que se analisou a repercussão geral sobre o tema com a afirmação da seguinte tese: "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (Recurso Extraordinário 898.060/SC, Rel. ministro Luiz Fux, julgado em 21/9/2016, publicado no seu Informativo n. 840). Como aqui apontei, três são as consequências diretas desse julgamento: a) o reconhecimento de que a socioafetividade é forma de parentesco civil; b) a afirmação da igualdade entre o vínculo biológico e o socioafetivo; e c) a admissão da multiparentalidade, com o reconhecimento de mais de um vínculo de filiação. Apesar de o acórdão dizer respeito à parentalidade socioafetiva, houve também repercussões para as técnicas de reprodução assistida, como demonstrei no texto antecedente. Com a emergência dessa nova posição superior e em mais uma tentativa de extrajudicialização das contendas, o Conselho Nacional de Justiça editou o provimento 63, de novembro de 2017, visando à atuação dos Cartórios nesses âmbitos. Com também apontei no artigo anterior, nos seus "considerandos" há menção expressa ao decisum do Supremo Tribunal Federal. No texto anterior, vimos o tratamento relativo à reprodução assistida, em atualização ao anterior provimento 52, do mesmo CNJ, ora revogado. Agora veremos a regulamentação relativa à parentalidade socioafetiva, que não constava da previsão administrativa, ou seja, trata-se de tratamento inédito do assunto. Como afirmou Ricardo Calderon no X Encontro Nacional de Direito Civil e Processo Civil, realizado em Salvador no último dia 18 de maio, "a parentalidade socioafetiva chegou aos balcões dos Cartórios". Como primeira norma, estabelece o art. 10 do provimento 63 do CNJ que o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade - criança, adolescente ou adulto -, está autorizado perante os Cartórios de Registro Civil das Pessoas Naturais. Percebe-se que, apesar de a seção relativa ao tema usar a expressão "paternidade socioafetiva", admite-se também o reconhecimento do vínculo materno, como deve ser, na linha da jurisprudência superior. Entre os julgados recentes que trazem essa posição, relativa ao reconhecimento da maternidade socioafetiva após a morte: "a pretensão de reconhecimento da maternidade socioafetiva post mortem de filho maior é, em tese, admissível, motivo pelo qual é inadequado extinguir o feito em que se pretenda discutir a interpretação e o alcance da regra contida no art. 1.614 do CC/2002 por ausência de interesse recursal ou impossibilidade jurídica do pedido" (STJ, REsp. 1.688.470/RJ, Rel. ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 10/4/2018, DJe 13/4/2018). Como ocorre com a adoção (art. 39, § 1º, do ECA), o reconhecimento voluntário da paternidade ou maternidade socioafetiva será irrevogável, somente podendo ser desconstituído pela via judicial, nas hipóteses de vício de vontade - caso de erro, do dolo ou da coação -, de fraude ou de simulação (art. 10, § 1º, do provimento 63 do CNJ). Novamente reproduzindo regras previstas para a adoção (arts. 42 e 40 do ECA), no mesmo dispositivo da norma administrativa está previsto que: a) somente poderão requerer o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva de filho os maiores de dezoito anos de idade, independentemente do estado civil; b) não é possível o reconhecimento do vínculo socioafetivo entre irmãos; c) o pretenso pai ou mãe será pelo menos dezesseis anos mais velho que o filho a ser reconhecido. Seguindo no estudo da nova norma, está previsto que o reconhecimento da paternidade ou da maternidade socioafetiva será processado perante o Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais, que pode ser o diverso daquele em que foi lavrado o assento original de nascimento. Como documentação necessária, exige-se a exibição de documento oficial de identificação com foto do requerente e da certidão de nascimento do filho, ambos em original e cópia, sem constar do traslado menção à origem da filiação (art. 11 do provimento 63 do CNJ). O registrador deve, então, proceder à minuciosa verificação da identidade do requerente, mediante coleta, em termo próprio e por escrito particular em modelo cartorário, de sua qualificação e assinatura, além de proceder à rigorosa conferência dos seus documentos pessoais (art. 11, § 1º). O registrador, ao conferir o original, manterá em arquivo cópia de documento de identificação do requerente, juntamente com o termo assinado (art. 11, § 2º). Constarão desse termo os dados do requerente do vínculo, os dados do campo "filiação" - e não campos "pai" e "mãe", como tradicionalmente se utilizava -, e do filho a ser reconhecido, devendo o registrador colher a assinatura do pai e da mãe biológicos do reconhecido, caso este seja menor (art. 11, § 3º). Percebe-se, portanto, que há necessidade de autorização dos últimos, caso existam no registro, o que já abre a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade, na linha da recente decisão do STF que gerou a nova norma administrativa. Se o filho for maior de 12 anos, o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva exigirá o seu consentimento - novamente como ocorre na adoção -, sendo necessária, por igual, a anuência dos seus pais biológicos (art. 11, §§ 4º e 5º, do provimento 63 do CNJ). A coleta dessa concordância daquele a ser reconhecido deve ser feita pessoalmente perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais ou escrevente autorizado, sendo vedado que o ato seja feito por procuração. Eventualmente, na falta da mãe ou do pai do menor, na impossibilidade de manifestação válida destes ou do filho, quando exigido, o caso será apresentado ao juiz competente para apreciar o feito, nos termos das normas de corregedoria local (art. 11, § 6º). Em havendo o envolvimento de pessoa com deficiência nesse reconhecimento, seja de forma ativa ou passiva, poderão ser aplicadas as regras relativas à tomada de decisão apoiada (art. 11, § 7º, do provimento 63 do CNJ). Duas observações importantes devem ser feitas sobre essa previsão. A primeira é que a pessoa com deficiência pode reconhecer filhos, por previsão expressa do art. 6º do Estatuto da Pessoa com Deficiência (EPD). A segunda nota é que o procedimento de tomada de decisão apoiada é uma medida judicial em que a pessoa com deficiência, por sua iniciativa, nomeia dois apoiadores de sua confiança que o auxiliarão para o ato que pretende praticar (art. 1.783-A do Código Civil). A figura foi introduzida no sistema brasileiro pelo EPD, segundo os modelos italiano (amministrazione di sostegno) e alemão (Betreuung). Admite-se que o reconhecimento do vínculo socioafetivo seja feito post mortem, na linha do julgado do STJ aqui transcrito. Quanto à formalização desse ato, pode ser feito mediante documento público ou particular de disposição de última vontade, desde que seguidos os demais trâmites previstos no provimento (art. 11, § 8º, do provimento 63 do CNJ). Admite-se, nesse contexto, o reconhecimento por testamento público, particular ou mesmo cerrado, o que faz com que o ato de última vontade tenha um conteúdo extrapatrimonial, conforme está previsto no art. 1.857, § 2º, do Código Civil. Se o registrador suspeitar de fraude, falsidade, má-fé, vício de vontade, simulação ou dúvida sobre a configuração do estado de posse de filho, gerador da parentalidade socioafetiva, fundamentará a recusa, não praticará o ato e o encaminhará o pedido ao juiz competente nos termos das normas de corregedoria local (art. 12 do provimento 63 do CNJ). Vale lembrar que os requisitos caracterizadores do vínculo em questão são: o tratamento (tractatio), a reputação (reputatio) e o nome (nominatio), como se retira da decisão do STF sobre o tema, publicada no seu Informativo n. 840. Por representar questão prejudicial, eventual discussão judicial sobre o reconhecimento da paternidade ou de procedimento de adoção obstará o reconhecimento da filiação socioafetiva pela via extrajudicial (art. 13 do provimento 63). A norma também prevê, com o fim de demonstrar a boa-fé do interessado, que o requerente deverá declarar o desconhecimento da existência de processo judicial em que se discuta a filiação daquele que está sendo reconhecido, sob pena de incorrer em ilícito civil e penal. Não se pode negar, porém, que essa declaração pode não afastar a citada questão prejudicial. Conforme o art. 15 do provimento em estudo, o reconhecimento espontâneo e extrajudicial da paternidade ou maternidade socioafetiva não obstaculizará a discussão judicial sobre a verdade biológica. A título de exemplo, e na linha da tese firmada pelo Supremo Tribunal Federal, é possível que alguém que tenha um pai ou mãe socioafetivo pleiteie o vínculo em relação ao ascendente biológico, para todos os fins jurídicos, inclusive alimentares e sucessórios, outra confirmação da multiparentalidade. A possibilidade da multiparentalidade consta igualmente do art. 14 do provimento 63 do CNJ, preceito que mais gerou polêmicas nos momentos iniciais de surgimento da norma administrativa. Conforme o seu exato teor, "o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva somente poderá ser realizado de forma unilateral e não implicará o registro de mais de dois pais e de duas mães no campo filiação no assento de nascimento". Duas correntes se formaram nos principais fóruns de debates do seu conteúdo. Uma mais cética, à qual estava filiado, entendia que a norma não reconhecia a multiparentalidade pela via extrajudicial, diante do uso do termo "unilateral", o que supostamente atingia o vínculo em relação ao ascendente reconhecedor. A outra, mais otimista, concluía de forma contrária, ou seja, na linha de efetivação extrajudicial completa da decisão do STF. Felizmente - e a minha visão pessimista foi vencida -, acabou por prevalecer o segundo entendimento, ou seja, a multiparentalidade passou a ser admitida nos Cartórios de Registro Civil, limitada a dois pais - um registral e outro socioafetivo -, e duas mães - uma registral e outra socioafetiva. Importante nota de esclarecimento da Associação Nacional dos Registradores de Pessoas Naturais (Arpen), de dezembro de 2018, expressou o alcance do termo "unilateral", no sentido de que não é possível fazer o registro simultâneo de pai e mãe socioafetivos, mas apenas de um pai ou de uma mãe, devendo um dos pais e uma das mães serem registrais. E arrematou: "as pessoas que já possuam pai e mãe registral, para terem o reconhecimento de um pai e uma mãe socioafetivo, formando a multiparentalidade, deverá o registrador civil realizar dois atos, um para o pai socioafetivo e outro para a mãe socioafetiva. Neste sentido, a Arpen-Brasil orienta os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais a realizarem os reconhecimentos de paternidade e ou maternidade socioafetiva, mesmo que já existam pai e mãe registral, respeitando sempre o limite instituído no provimento de no máximo contarem dois pais e também duas mães no termo". Como palavras finais deste breve texto, destaque-se que existem vozes que sustentam resistências, ou mesmo a inconstitucionalidade do provimento 63 do CNJ, por argumentos diversos. Há quem entenda que a norma é inconstitucional, por afastar as tradicionais expressões "pai" e "mãe" do registro civil, substituídas pelo campo "filiação", o que ofenderia a proteção da família retirada do art. 226 da Constituição Federal. O argumento não convence, pois o conceito de família retirado do Texto Maior é plural, e, inclusive, como há tempos vem entendendo a jurisprudência superior, sendo sempre citado como exemplo o reconhecimento da união homoafetiva pelo Supremo Tribunal Federal. Em reforço, a multiparentalidade foi reconhecida pela decisão mais recente da mesma Corte, aqui tão citada. Também não me parece que o Conselho Nacional Federal tenha extrapolado as suas atribuições com a edição da norma em comento. Nos termos da Constituição Federal de 1988, o CNJ tem poderes de fiscalização e de normatização em relação à atuação do Poder Judiciário e quanto aos atos praticados por seus órgãos, caso das serventias extrajudiciais (art. 103-B, § 4º, incisos I, II e III). Pelos mesmos comandos, e como órgão do Poder Judiciário, cabe ao CNJ a fiscalização dos os serviços notariais, o que igualmente é retirado do art. 236 da Norma Superior. Quanto à atuação do Corregedor-Geral de Justiça, não deixa dúvidas o art. 8º, inc. X, do regimento interno do órgão, cabendo a ele "expedir recomendações, provimentos, instruções, orientações e outros atos normativos destinados ao aperfeiçoamento das atividades dos órgãos do Poder Judiciário e de seus serviços auxiliares e dos serviços notariais e de registro, bem como dos demais órgãos correicionais, sobre matéria relacionada com a competência da Corregedoria". Há assim uma atribuição para regulamentar a padronização das certidões em geral, caso das de nascimento, o que foi concretizado pelo seu provimento 63. Como palavras finais, o que feito pelo ato da Corregedoria-Geral de Justiça foi uma adequação dos atos extrajudiciais à recente decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a repercussão geral da parentalidade socioafetiva, julgado que gerou muitas dúvidas no âmbito prático, e que o provimento 63 esclarece de forma satisfatória. Além disso, procurou-se o sadio e desejável caminho da extrajudicialização, ordenado por vários dispositivos do Novo Código de Processo Civil, sem prejuízo de outras normas recentes de nosso país.
Um dos temas de Direito de Família que mais se transformou nos últimos anos em nosso país foi o parentesco, notadamente diante do impacto gerado pelo reconhecimento de duas novas modalidades de parentesco civil. A primeira delas é relacionada à técnica de reprodução assistida heteróloga, com material genético de terceiro. A segunda modalidade é a parentalidade socioafetiva, fundada na posse de estado de filhos. Os dois institutos situam-se na expressão "outra origem", mencionada pelo art. 1.593 do Código Civil, como geradoras de vínculo parental que não seja a consanguinidade. Sobre esse reconhecimento, no âmbito doutrinário, merecem destaque os enunciados aprovados nas Jornadas de Direito Civil, eventos que têm o papel fundamental de evidenciar as grandes teses do Direito Privado Brasileiro e estabelecer saudáveis diálogos entre a doutrina e a jurisprudência. Nos próximos dias 26 e 27 de abril de 2018, vale destacar, ocorrerá a oitava edição do evento, agora com a participação efetiva de ministros do Superior Tribunal de Justiça em todas as comissões. O Enunciado 103 da I Jornada de Direito Civil, realizada em 2002, estabelece que "o Código Civil reconhece, no art. 1.593, outras espécies de parentesco civil além daquele decorrente da adoção, acolhendo, assim, a noção de que há também parentesco civil no vínculo parental proveniente quer das técnicas de reprodução assistida heteróloga relativamente ao pai (ou mãe) que não contribuiu com seu material fecundante, quer da paternidade socioafetiva, fundada na posse do estado de filho". Da mesma Jornada, há o complementar Enunciado n. 108 CJF, segundo o qual "no fato jurídico do nascimento, mencionado no art. 1.603, compreende-se, à luz do disposto no art. 1.593, a filiação consanguínea e também a socioafetiva". Em continuidade, sem prejuízo de outros enunciados de eventos posteriores, na III Jornada de Direito Civil, do ano de 2004, aprovou-se o Enunciado 256, a fim de deixar bem claro o enquadramento da parentalidade socioafetiva como forma de parentesco civil, o que não pode ser negado: "a posse de estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil". Além do reconhecimento doutrinário - que tem origem nos trabalhos de João Baptista Villela e Luiz Edson Fachin -, essas novas modalidades de parentesco ganharam grande prestígio no âmbito jurisprudencial. Como ápice dessa importância, destaque-se decisão do Supremo Tribunal Federal do ano de 2016, em que se abordou repercussão geral sobre o tema da parentalidade socioafetiva. Conforme a tese firmada, "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21/9/2016, publicado no seu Informativo 840). Não se pode negar que uma das grandes contribuições do aresto foi consolidar a posição jurídica de que a socioafetividade é forma de parentesco civil. Nesse sentido, destaque-se o seguinte trecho do voto do Ministro Relator Luiz Fux: A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais; (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela afetividade. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele que utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio) (Recurso Extraordinário 898.060/SC). O julgado aponta que a parentalidade socioafetiva é fundada na posse de estado de filho, tendo como parâmetros os critérios desenvolvidos desde o Direito Romano: nome, tratamento e reputação, a tríade nominatio, tractatio e reputatio. Além do reconhecimento da parentalidade socioafetiva como forma de parentesco, outros três aspectos do decisum merecem destaque. O primeiro deles é o reconhecimento expresso, o que foi feito por vários Ministros, de ser a afetividade um valor jurídico e um princípio inerente à ordem civil-constitucional brasileira. O segundo aspecto diz respeito ao fato de estar a parentalidade socioafetiva - cujo fundamento legal é o art. 1.593 do CC/2002, frise-se -, em situação de igualdade com a paternidade biológica. Em outras palavras, não há hierarquia entre uma ou outra modalidade de filiação, o que representa um razoável e desejável equilíbrio. O terceiro é último aspecto do acórdão superior é a vitória da multiparentalidade ou pluriparentalidade, que passou a ser admitida pelo Direito Brasileiro, mesmo que contra a vontade do pai biológico. Ficou claro, pelo julgamento, que o reconhecimento do vínculo concomitante é para todos os fins, inclusive alimentares e sucessórios. Como tenho sustentado, emergem grandes desafios dessa afirmação, mas é tarefa da doutrina, da jurisprudência e dos aplicadores do Direito resolver os problemas que surgem, de acordo com os casos concretos colocados a julgamento pelo Poder Judiciário. Pois bem, com a emergência dessa nova posição superior e em mais uma sadia tentativa de extrajudicialização, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou, em 20 de novembro de 2017, o provimento 63, visando à atuação dos Cartórios em tais searas. Nos "considerandos" da norma administrativa já há menção à decisão do STF aqui aludida. Os objetivos desse preceito são: a) instituir modelos únicos de certidão de nascimento, de casamento e de óbito a serem adotados pelos ofícios de registro civil das pessoas naturais; b) dispor sobre o reconhecimento voluntário e a averbação da paternidade e maternidade socioafetiva no Livro "A", no cartório do registro civil e c) tratar do registro de nascimento e emissão da respectiva certidão dos filhos havidos por reprodução assistida. Neste primeiro texto de uma série, vamos tratar do último assunto, qual seja a reprodução assistida, sendo certo que o Provimento n. 63 revoga e substitui o Provimento n. 52 do mesmo CNJ, de março de 2016. Passando a essa análise, o art. 16 do Provimento 63 estabelece que o assento de nascimento de filho havido por técnicas de reprodução assistida será inscrito no Livro "A", independentemente de prévia autorização judicial e observada a legislação em vigor no que for pertinente, mediante o comparecimento de ambos os pais, munidos da documentação exigida pela própria norma. Nos termos do mesmo comando, se os pais forem casados ou conviverem em união estável, poderá somente um deles comparecer ao ato de registro. No caso de filhos de casais homoafetivos, o assento de nascimento deverá ser adequado para que constem os nomes dos ascendentes, sem referência a distinção quanto à ascendência paterna ou materna. Aqui, não houve qualquer alteração em face da norma administrativa anterior. O art. 17 do novo provimento elenca a documentação básica exigida para os fins de registro e de emissão da certidão de nascimento. Assim, são indispensáveis para o ato: a) declaração de nascido vivo (DNV); b) declaração, com firma reconhecida, do diretor técnico da clínica, centro ou serviço de reprodução humana em que foi realizada a reprodução assistida, indicando que a criança foi gerada por reprodução assistida heteróloga, assim como o nome dos beneficiários; c) certidão de casamento, certidão de conversão de união estável em casamento, escritura pública de união estável ou sentença em que foi reconhecida a união estável do casal. Neste comando houve um grande avanço, uma vez que o art. 2º, inc. II, do Provimento n. 52 quebrava o sigilo do doador do material genético, o que poderia gerar sérios problemas de comprometimento da técnica heteróloga, em especial diante da tese oriunda da recente decisão do STF. Esse problema já era apontado em obras de minha autoria, em especial no Volume 5 da coleção de Direito Civil e no Manual de Direito Civil. Volume Único; bem como de outros autores. Conjugando-se a quebra do sigilo constante da norma administrativa anterior com a tese final do julgamento do STF, seria possível supor que o filho poderia pedir o vínculo de filiação com o doador do material genético, o que inviabilizaria o uso da técnica, por receio dos doadores. Por bem, a Corregedoria-Geral de Justiça afastou a regra anterior. Seguindo, o mesmo art. 17 do Provimento n. 63 preceitua que, na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora tempora'ria do u'tero (gestatrix), esclarecendo a questa~o da filiac¸a~o (§ 1º). Esse esclarecimento diz respeito ao fato de que o vínculo de filiação deve ser estabelecido em relação à mulher que planejou a técnica de reprodução assistida (R.A.), muitas vezes a fornecedora do material genético (genetrix). Novamente, aqui não há mais menção - como estava no § 1º do art. 2º do Provimento 52 - de identificação do doador dos gametas ou mesmo da exigência de aprovação prévia, por instrumento público, do cônjuge ou convivente do doador ou doadora, autorizando previamente a realização do procedimento de reprodução assistida. Não só essa identificação como também a autorização, repise-se, poderia comprometer a própria existência da reprodução assistida heteróloga, uma vez que, com a decisão do STF aplicada à espécie, seria possível supor, mesmo que por engano, que o filho poderia pretender a filiação com o doador do material genético, com quem tem vínculo biológico. Sem qualquer modificação, o § 2º do art. 17 do Provimento 63 do CNJ estatui que, nas hipóteses de reprodução assistida post mortem, além dos documentos antes mencionados, conforme o caso, deverá ser apresentado termo de autorização prévia específica do falecido ou falecida para uso do material biológico preservado, lavrado por instrumento público ou particular e com firma reconhecida. A norma visa atender a necessidade de autorização prévia do cônjuge ou companheiro para que incidam as presunções de vínculo de filiação previstas nos incisos III, IV e V do art. 1.597 do Código Civil. Ademais, houve uma reafirmação administrativa a respeito da reprodução assistida post mortem, como também reconhece o Conselho Federal de Medicina por meio de suas normas éticas. Continua previsto, na nova norma administrativa, que o conhecimento da ascendência biológica não importará no reconhecimento do vínculo de parentesco e dos respectivos efeitos jurídicos entre o doador ou a doadora e o filho gerado por meio da reprodução assistida (art. 17, § 3º, do Provimento n. 63 do CNJ). Afasta-se, assim e expressamente, a aplicação da tese do julgamento do STF em repercussão geral para as técnicas de R.A. Essa previsão já constava na norma administrativa anterior (art. 2º, § 4º, do Provimento 52 do CNJ). Porém, as menções às quebras de sigilo do doador do material genético poderiam ensejar interpretações em sentido contrário ao seu conteúdo. Continua sendo vedada aos oficiais registradores a recusa ao registro de nascimento e à emissão da respectiva certidão de filhos havidos por técnica de reprodução assistida. Essa eventual recusa deverá ser comunicada ao juiz corregedor competente nos termos da legislação local, para as providências disciplinares cabíveis. Todos os documentos antes mencionados deverão permanecer arquivados no ofício em que foi lavrado o registro civil. Tudo isso está previsto no art. 18 do Provimento 63, equivalendo ao art. 3º do Provimento 52, sem qualquer alteração. Por fim, como deveria ocorrer e para que não pairem dúvidas, foi introduzida menção expressa à gratuidade dos atos de registro, conforme o art. 19 do Provimento 63 do CNJ. Como se pode perceber, quanto à reprodução assistida, louvável foi o trabalho efetuado pela Corregedoria-Geral de Justiça, atualizando a normatização administrativa perante a recente decisão do STF sobre o tema da filiação socioafetiva, o que repercute para a reprodução assistida. No próximo texto, veremos quais foram as normas introduzidas diretamente a respeito da parentalidade socioafetiva e a multiparentalidade, o que não constava do anterior Provimento 52 do próprio CNJ, ora atualizado. Não perca a coluna de maio!
quarta-feira, 28 de março de 2018

União estável e namoro qualificado

A união estável traz para os aplicadores do Direito grandes dificuldades na análise dos seus elementos caracterizadores. Nos termos do que consta do art. 1.723, caput, do Código Civil de 2002, dispositivo fundamental para a análise do tema, "é reconhecida como entidade familiar a união estável entre o homem e a mulher, configurada na convivência pública, contínua e duradoura e estabelecida com o objetivo de constituição de família". O dispositivo regulamenta o art. 226, § 3º, da CF/1988, trazendo o mesmo conceito e requisitos que constavam da lei 9.278/1996, tendo tanto essa lei como o Código Civil a contribuição doutrinária do professor Álvaro Villaça Azevedo, nosso mestre nas Arcadas. Vale lembrar que, não obstante a lei mencionar a diversidade de sexos, é possível juridicamente a união estável homoafetiva, conclusão a que chegou o Supremo Tribunal Federal no histórico julgamento prolatado no ano de 2011 e publicado no Informativo 625 da Corte. Como se extrai dessa definição, a lei não exige prazo mínimo para a constituição da união estável, sendo necessário analisar as circunstâncias do caso concreto para apontar a sua existência ou não. Os requisitos, nesse contexto, são que a união seja pública - no sentido de notoriedade, não podendo ser oculta, clandestina -, contínua - sem que haja interrupções, sem o famoso "dar um tempo" - e duradoura, além do objetivo dos companheiros ou conviventes de estabelecer uma verdadeira família (animus familiae). Para a configuração dessa intenção de família, entram em cena o tratamento dos companheiros entre si (tractatus), bem como o reconhecimento social de seu estado (reputatio). Nota-se, assim, a utilização dos clássicos critérios para a configuração da posse de estado de casados também para a união estável. De todo modo, constata-se que os elementos essenciais para configuração da união estável são abertos e subjetivos, razão pela qual se acredita existir uma verdadeira cláusula geral para a sua constituição. A lei não exige que os companheiros residam sob o mesmo teto, o que é retirado da antiga súmula 382 do STF, antes aplicada às relações de concubinato, mas cujo teor também incide para a união estável. Nesse sentido a premissa número 2, publicada na edição 50 da ferramenta Jurisprudência em Teses, do STJ, dedicada à união estável: "A coabitação não é elemento indispensável à caracterização da união estável" (precedentes citados: STJ, Ag. Rg. no AREsp 649.786/GO, Rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, 3ª Turma, julgado em 4/8/2015, DJE 18/8/2015; Ag. Rg. no AREsp 223.319/RS, Rel. ministro Sidnei Beneti, 3ª Turma, julgado em 18/12/2012, DJE 4/2/2013; Ag. Rg. no AREsp 59.256/SP, Rel. ministro Massami Uyeda, 3ª Turma, julgado em 18/9/2012, DJE 4/10/2012; Ag. Rg. nos EDcl. no REsp 805265/AL, Rel. ministro Vasco Della Giustina (desembargador convocado do TJ/RS), 3ª Turma, julgado em 14/9/2010, DJE 21/9/2010, REsp 1.096.324/RS, Rel. ministro Honildo Amaral de Mello Castro (desembargador convocado do TJ/AP), 4ª Turma, julgado em 2/3/2010, DJE 10/5/2010, e REsp 275.839/SP, Rel. ministro Ari Pargendler, Rel. p/ Acórdão ministra Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 2/10/2008, DJE 23/10/2008). Em complemento, não há qualquer requisito formal obrigatório para que a união estável reste configurada, como a necessidade de elaboração de uma escritura pública entre as partes ou de uma decisão judicial de reconhecimento. A propósito, em importante precedente, entendeu o ministro Luís Roberto Barroso, em julgamento prolatado no âmbito do STF, que "não constitui requisito legal para concessão de pensão por morte à companheira que a união estável seja declarada judicialmente, mesmo que vigente formalmente o casamento, de modo que não é dado à Administração Pública negar o benefício com base neste fundamento. (...). Embora uma decisão judicial pudesse conferir maior segurança jurídica, não se deve obrigar alguém a ir ao Judiciário desnecessariamente, por mera conveniência administrativa. O companheiro já enfrenta uma série de obstáculos decorrentes da informalidade de sua situação. Se ao final a prova produzida é idônea, não há como deixar de reconhecer a união estável e os direitos daí decorrentes" (STF, Mandado de Segurança 330.008, Distrito Federal, 3/5/2016). Justamente por tais dispensas de formalidades, ao contrário do que ocorre com o casamento, tem variado muito a jurisprudência no enquadramento da união estável. Gosto sempre de citar, com o fim de ilustrar as dificuldades existentes na configuração da união estável, aresto do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul que afastou a sua caracterização no caso em que duas pessoas namoravam havia cerca de oito anos, mas que não chegaram a constituir família. O relator do acórdão entendeu pela inexistência da união estável e pela presença de um namoro, pois "faltou um requisito essencial para caracterizá-lo como união estável: inexistiu o objetivo de constituir família. Com efeito, durante os longos anos de namoro mantido entre os litigantes, eles sempre mantiveram vidas próprias e independentes. Realizaram várias viagens juntos, comemoraram datas festivas e familiares, participavam de festas sociais e entre amigos, a autora realizava compras para a residência do réu - pagas por ele -, às vezes ela levava o carro dele para lavar, e consta que ela gozou licença-prêmio para auxiliar o namorado num momento de doença. Contudo, ainda que o relacionamento amoroso tenha ocorrido nesses moldes, nunca tiveram objetivo de constituir família" (TJ/RS, Embargos Infringentes 70008361990, 4º Grupo Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, decisão de 13/8/2004). Na esteira do que consta do julgado, o intuito de constituição de família é o que diferencia cabalmente o namoro da união estável. Conforme destacado por José Fernando Simão em aulas e exposições sobre o tema, se há um projeto futuro de constituição de família, estamos diante de namoro. Se há uma família já constituída, com ou sem filhos, ou seja, se ela já existe no presente, há uma união estável. Para que se verifique a existência dessa família no presente, devem ser levados em conta os critérios da reputação e do tratamento, antes destacados, que podem ser demonstrados por todos os meios de prova, como testemunhas e documentos, sejam eles públicos ou não. Tais critérios também servem para diferenciar a união estável do chamado namoro qualificado, aquele que se prolonga por muito tempo, mas não chega a apresentar todos os requisitos essenciais para que a família presente esteja configurada. Um dos primeiros a utilizar tal expressão entre nós foi o professor Euclides de Oliveira, em suas brilhantes palestras sobre a "escalada do afeto" (o seu instigante texto sobre o tema pode ser encontrado aqui). Mais recentemente, Zeno Veloso escreveu sobre o assunto em preciosa obra recém-lançada, que congrega a análise de vários temas por esse grande jurista. Ao tratar do namoro qualificado, ensina-nos o mestre do Pará: "Nem sempre é fácil distinguir essa situação - a união estável - de outra, o namoro, que também se apresenta informalmente no meio social. Numa feição moderna, aberta, liberal, especialmente se entre pessoas adultas, maduras, que já vêm de relacionamentos anteriores (alguns bem-sucedidos, outros nem tanto), eventualmente com filhos dessas uniões pretéritas, o namoro implica, igualmente, convivência íntima - inclusive, sexual -, os namorados coabitam, frequentam as respectivas casas, comparecem a eventos sociais, viajam juntos, demonstram para os de seu meio social ou profissional que entre os dois há uma afetividade, um relacionamento amoroso. E quanto a esses aspectos, ou elementos externos, objetivos, a situação pode se assemelhar - e muito - a uma união estável. Parece, mas não é! Pois falta um elemento imprescindível da entidade familiar, o elemento interior, anímico, subjetivo: ainda que o relacionamento seja prolongado, consolidado, e por isso tem sido chamado de 'namoro qualificado', os namorados, por mais profundo que seja o envolvimento deles, não desejam e não querem - ou ainda não querem - constituir uma família, estabelecer uma entidade familiar, conviver numa comunhão de vida, no nível do que os antigos chamavam de affectio maritalis. Ao contrário da união estável, tratando-se de namoro - mesmo do tal namoro qualificado -, não há direitos e deveres jurídicos, mormente de ordem patrimonial entre os namorados. Não há, então, que falar-se de regime de bens, alimentos, pensão, partilhas, direitos sucessórios, por exemplo" (VELOSO, Zeno. Direito Civil: temas. Belém: ANOREGPA, 2018. p. 313). Como se pode perceber também das lições transcritas, o que é fundamental para a configuração de um ou outro instituto é o objetivo de constituição de família, o que é retirado do comportamento das partes envolvidas e do reconhecimento social de haver no relacionamento uma família presente. Assim como ocorre no âmbito da doutrina, podem ser encontradas decisões que utilizam o termo namoro qualificado para denotar o namoro longo, em que não há a presença dos requisitos familiares de uma união estável. De importante precedente do Superior Tribunal de Justiça extrai-se o seguinte: "Na relação de namoro qualificado os namorados não assumem a condição de conviventes porque assim não desejam, são livres e desimpedidos, mas não tencionam naquele momento ou com aquela pessoa formar uma entidade familiar. Nem por isso vão querer se manter refugiados, já que buscam um no outro a companhia alheia para festas e viagens, acabam até conhecendo um a família do outro, posando para fotografias em festas, pernoitando um na casa do outro com frequência, ou seja, mantêm verdadeira convivência amorosa, porém, sem objetivo de constituir família" (STJ, REsp 1.263.015/RN, 3ª Turma, Rel. Min Nancy Andrighi, julgado em 19/6/2012, DJe 26/6/2012). Na linha do que defendi e das palavras de Zeno Veloso, o aresto aponta a necessidade da intenção de constituição de família, o animus familiae, como fundamento essencial para a união estável, eis que "a configuração da união estável é ditada pela confluência dos parâmetros expressamente declinados, hoje, no art. 1.723 do CC/2002, que tem elementos objetivos descritos na norma: convivência pública, sua continuidade e razoável duração, e um elemento subjetivo: o desejo de constituição de família. A congruência de todos os fatores objetivos descritos na norma, não levam, necessariamente, à conclusão sobre a existência de união estável, mas tão somente informam a existência de um relacionamento entre as partes. O desejo de constituir uma família, por seu turno, é essencial para a caracterização da união estável pois distingue um relacionamento, dando-lhe a marca da união estável, ante outros tantos que, embora públicos, duradouros e não raras vezes com prole, não têm o escopo de serem família, porque assim não quiseram seus atores principais" (REsp 1.263.015/RN). Concluindo do mesmo modo, mais recentemente, também do Tribunal da Cidadania, entendeu-se que "o propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável - a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado 'namoro qualificado' -, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros" (STJ, REsp 1.454.643/RJ, 3ª Turma, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, julgado em 3/3/2015, DJe 10/3/2015). Como palavras derradeiras, por todas as lições e conclusões expostas, nota-se que a intenção e a conduta com objetivo de constituição de uma família que existem no presente são fulcrais para a diferenciação da união estável em relação ao chamado namoro qualificado, sendo a análise de tais requisitos nas circunstâncias do caso concreto essenciais para que se chegue à conclusão pela existência ou não da entidade familiar.
Problema de induvidoso interesse prático diz respeito à hipótese em que um casal celebra pacto antenupcial, por escritura pública, elegendo determinado regime de bens, e não contrai o casamento posteriormente, passando a viver em união estável. Qual regime regerá essa união entre os conviventes? Aquele escolhido pelas partes no pacto antenupcial ou o regime legal, da comunhão parcial de bens? Imagine-se, a título de ilustração, situação concreta em que é elaborado pelo casal um pacto antenupcial escolhendo o regime da separação convencional de bens, tratado nos arts. 1.687 e 1.688 do Código Civil, não seguido pelo matrimônio. Sobre tal intrincada questão, sigo a corrente segundo a qual o regime de bens a reger a união estável no caso concreto é o previamente escolhido pelas partes no pacto antenupcial. Vejamos trecho de minha obra sobre Direito de Família, em que chego a tal conclusão: "Dúvida resta para a hipótese de elaboração de um pacto antenupcial por escritura pública, não seguido pelo casamento. Ora, passando os envolvidos a viver em união estável, é forçoso admitir que o ato celebrado seja aproveitado na sua eficácia como contrato de convivência, como querem Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald (Curso., 2012, v. 6, p. 369). Os autores citam julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul nesse sentido, mencionando o respeito à autonomia privada. Em reforço, serve como alento o princípio da conservação do negócio jurídico, que tem relação direta com a função social do contrato, como consta do Enunciado n. 22 do CJF/STJ, da I Jornada de Direito Civil" (TARTUCE, Flávio. Direito civil. 12. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017. v. 5: Direito de família, p. 166). O tema tem relação com o art. 1.653 do Código Civil Brasileiro, segundo o qual é nulo o pacto antenupcial se não for feito por escritura pública, e ineficaz se não lhe seguir o casamento. No caso descrito o pacto antenupcial é válido, pois foi feito por escritura pública. De toda sorte, deveria ele ser considerado ineficaz, caso não houvesse qualquer relacionamento entre os envolvidos. Porém, como passaram eles a viver em união estável, deve ser reconhecida a eficácia da sua opção, manifestada por escrito, como contrato de convivência ou contrato de união estável. Trata-se de posição que prestigia a autonomia privada e, como afirmo na obra citada, o princípio da conservação do negócio jurídico, uma das aplicações da eficácia interna da função social do contrato, retirada dos arts. 421 e 2.035, parágrafo único, da codificação material vigente. O último dispositivo, aliás, reconhece que a função social do contrato é princípio de ordem pública, colocado ao lado da função social da propriedade e, portanto, com substrato constitucional no art. 5º, inc. XXIII, do Texto Maior. Quanto ao citado Enunciado 22, aprovado na I Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal no ano de 2002, tem ele a seguinte redação: "a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas". Esclareça-se que o contrato em questão é justamente o pacto antenupcial a ser preservado. Compartilho, assim, da posição doutrinária de Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, para quem "realmente, caso os noivos não venham a contrair casamento, o pacto antenupcial, a toda evidência, será ineficaz. No entanto, não se pode esquecer a possibilidade de ser estabelecida uma união estável entre eles. Nesse caso, se os nubentes não casam, mas passam a conviver em união estável, o pacto antenupcial será admitido como contrato de convivência entre eles, respeitando a autonomia privada. Até mesmo em homenagem ao art. 170 do Código Civil que trata da conversão substancial do negócio jurídico, permitindo o aproveitamento da vontade manifestada" (FARIAS, Cristiano Chaves; ROSENVALD, Nelson. Curso de direito civil. 7. ed. São Paulo: Atlas, 2015. v. 6: Famílias, p. 315). Os doutrinadores citam o art. 170 do Código Civil, que trata da conversão substancial do negócio jurídico nulo, estabelecendo que "se, porém, o negócio jurídico nulo contiver os requisitos de outro, subsistirá este quando o fim a que visavam as partes permitir supor que o teriam querido, se houvessem previsto a nulidade". Pelo teor do comando, um negócio nulo pode ser convertido em outro, se as partes quiserem tal conversão - de forma expressa ou implícita - e se o negócio nulo tiver os requisitos mínimos de validade desse outro negócio, para o qual será transformado. Faço apenas uma pequena ressalva, no sentido de que a situação não é propriamente de conversão de um negócio nulo, mas de conversão do negócio ineficaz ou pós-eficacização, conforme premissas desenvolvidas por Pontes de Miranda. Trata-se de hipótese em que determinado negócio jurídico não produz efeitos em um primeiro momento, mas tem a eficácia reconhecida pela situação concreta posterior que, aqui, é a convivência entre os envolvidos. Como destaco em minha obra, no trecho antes colacionado, existe importante julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul com a mesma conclusão. Vejamos trecho de sua ementa, bem elucidativo: "o pacto antenupcial celebrado entre os litigantes que estabeleceu o regime da separação convencional de bens inclusive para aqueles adquiridos antes do casamento, é válido como ato de manifestação de vontade para estabelecer a separação total relativamente aos bens adquiridos durante a união estável que precedeu o casamento. Precedente" (TJRS, Apelação Cível n. 70016647547, 8ª Câmara de Direito Privado, Comarca de Porto Alegre, Rel. Des. José Ataídes Siqueira Trindade, julgado em 28/09/2006, DJRS 4/10/2006). No âmbito do Superior Tribunal de Justiça há acórdão na mesma linha. Trata-se do julgamento prolatado no Recurso Especial n. 1.483.863/SP, pela Quarta Turma, tendo como relatora a Ministra Maria Isabel Gallotti, em 10 de maio de 2016 e publicado em 22 de junho do mesmo ano. Como consta de seu resumo, sobre a pactuação patrimonial existente na união estável, "o contrato pode ser celebrado a qualquer momento da união estável, tendo como único requisito a forma escrita. Assim, o pacto antenupcial prévio ao segundo casamento, adotando o regime da separação total de bens ainda durante a convivência em união estável, possui o efeito imediato de regular os atos a ele posteriores havidos na relação patrimonial entre os conviventes, uma vez que não houve estipulação diversa". A clareza da premissa jurídica adotada é retirada do voto da Ministra Relatora, com destaque especial, diante de sua relevância prática: "No caso em exame, o pacto antenupcial, a par de estabelecer o regime da separação de bens, dispôs, expressamente, acerca da incomunicabilidade 'dos bens que cada cônjuge possuir ao casar e os que lhe sobrevierem na constância do casamento (...)". Ao se referir aos bens possuídos por cada cônjuge na data do futuro casamento, o pacto claramente dispôs sobre a não comunicação dos bens adquiridos ao longo da união que sucedeu ao primeiro casamento, este já formalmente encerrado com a respectiva partilha de bens conforme consta do acórdão recorrido (e-STJ fl. 1285). Assim, ao meu sentir, o pacto antenupcial, estabelecendo a livre vontade dos então conviventes e futuros cônjuges de se relacionarem sob o regime da separação total de bens, embora somente tenha vigorado com a qualidade de pacto antenupcial a partir da data do casamento (7/7/2004), já atendia, desde a data de sua celebração (16/4/2003), ao único requisito legal para disciplinar validamente a relação patrimonial entre os conviventes de forma diversa da comunhão parcial, pois é um contrato escrito, feito sob a forma solene, e mais de segura, da escritura pública. Dessa forma, a celebração de pacto antenupcial em 16/4/2003, ocasião em que foi adotado o regime de separação de bens ainda durante o período de convivência em união estável, e não tendo havido ressalva alguma acerca do início de sua vigência, faz imperioso concluir pelo acerto do acórdão recorrido ao decidir que o referido pacto possui o efeito imediato de regular os atos a ele posteriores havidos na relação informal entre os conviventes e, portanto, deve reger a união estável a partir dessa data" (STJ, REsp 1.483.863/SP, Rel. Min. Maria Isabel Gallotti, Quarta Turma, julgado em 10/05/2016, DJe 22/6/2016). Como consta do decisum, serve também como fundamento para a tese que se defende o fato de o art. 1.725 do Código Civil, ao tratar do contrato de convivência, não exigir qualquer formalidade específica para a escolha de um regime de bens diverso da comunhão parcial de bens. Como palavras finais, o que deve prevalecer é a autonomia privada manifestada pelas partes no pacto, conforme antes destacado, prestigiando-se a vontade individual dos envolvidos e a sua autonomia para a prática dos atos civis. Deixa-se de lado, portanto, um exagerado apego a formalismos, com o que o Direito Civil Contemporâneo não pode mais conviver.
Em série de textos anteriores, publicados neste mesmo canal, tive a oportunidade de escrever sobre a Extrajudicialização do Direito de Família e das Sucessões no Brasil, tendo como pano de fundo os enunciados doutrinários aprovados na I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em agosto de 2016, sob a coordenação-geral do ministro Luis Felipe Salomão. Neste texto pretendo ampliar o tema, pois a redução de burocracias ou desburocratização do Direito Privado mantém íntima relação com essa tendência de se buscar soluções e resolução de disputas fora da jurisdição. No âmbito do Direito de Família e das Sucessões tem-se ampliado muito essa tendência, podendo ser citadas duas decisões de regulamentação administrativa importantes para casos pontuais, emergentes nos últimos meses no âmbito do Poder Judiciário. A primeira delas é o provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça, de 14 de novembro de 2017, que, entre outros temas, trata do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva diretamente no Cartório de Registro Civil. Entre os seus considerandos, a norma administrativa, orientadora da atuação dos Cartórios de Registro Civil, confirma a possibilidade de o parentesco resultar de "outra origem" que não a consanguinidade, nos termos do que consta do art. 1.593 do Código Civil, incluindo-se na previsão a posse de estado de filhos geradora do vínculo socioafetivo. Reconhece-se, ainda, o fato de que "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseado na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios", conforme decidiu o Supremo Tribunal Federal em 2016 quando do julgamento da repercussão geral sobre o tema (decisão publicada no Informativo n. 840 da Corte). Mais à frente, tratando especificadamente dessa forma de parentesco civil, prevê o art. 10 do provimento 63/2017 do CNJ que o reconhecimento voluntário da paternidade ou da maternidade socioafetiva de pessoa de qualquer idade será autorizado perante os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais, sendo ato irrevogável, somente afastado por declaração judicial que reconheça a presença de vício da vontade (v. g. erro e dolo), fraude ou simulação. A mesma norma enuncia que poderão requerer o reconhecimento da paternidade ou maternidade socioafetiva os maiores de dezoito anos de idade, independentemente do seu estado civil. Seguiu-se, assim, o exemplo de outros Estados, caso do Tribunal de Justiça de Pernambuco, que já admitia esse registro por norma da sua Corregedoria Geral de Justiça (provimento 9/2013). Em complemento, após debates, chegou-se a certo consenso de que o art. 14 do provimento 63 do CNJ autoriza o reconhecimento extrajudicial da multiparentalidade, limitado ao número de dois pais e de duas mães, no máximo. Conjugando-se essa previsão com a decisão do Supremo Tribunal Federal antes citada, tal reconhecimento é para todos os fins civis, inclusive alimentares e sucessórios. A propósito da discussão inicial que surgiu sobre essa previsão, em dezembro de 2017 a Associação Nacional dos Registradores Civis (Arpen) divulgou nota de esclarecimento segundo a qual para "as pessoas que já possuam pai e mãe registral, para terem o reconhecimento de um pai e uma mãe socioafetivo, formando a multiparentalidade, deverá o registrador civil realizar dois atos, um para o pai socioafetivo e outro para a mãe socioafetiva. Neste sentido, a Arpen-Brasil orienta os Oficiais de Registro Civil das Pessoas Naturais a realizarem os reconhecimentos de paternidade e ou maternidade socioafetiva, mesmo que já existam pai e mãe registral, respeitando sempre o limite instituído no provimento de no máximo constar dois pais e também duas mães no termo". Tal entendimento tem aplicação, por exemplo, a padrastos e madrastas que tenham estabelecido a posse de estado de filhos com seus enteados ou enteadas, podendo ser incluídos no registro civil ao lado dos pais biológicos e sem a exclusão destes, para todos os fins civis. Além dessa normatização, outro marco decisório que merece destaque, na busca de redução de burocracias no âmbito do Direito de Família, é a decisão proferida pela Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de São Paulo em 1º de dezembro de 2017, passando a admitir que o pacto antenupcial de pessoa maior de setenta anos de idade afaste a aplicação da Súmula n. 377 do Supremo Tribunal Federal, tornando o regime em questão uma verdadeira separação absoluta, em que nada se comunica. Isso porque, com tal previsão decorrente da autonomia privada, não haverá a comunicação dos bens adquiridos durante o casamento, conforme consta da sumular. Conforme consta do decisum, como citação que muito me honra, "por se tratar de norma de exceção, a vedação imposta pelo art. 1.641 comporta, ademais, interpretação restritiva. O cerceamento do poder de pactuar deve ser o mínimo necessário para que o objetivo da norma seja alcançado. Não se há de impedir, portanto, a contratação de regime que amplie o cunho protetivo almejado pela norma". Como já havia defendido, o afastamento da súmula 377 do STF representa importante ferramenta de planejamento familiar e sucessório, reduzindo-se igualmente burocracias que possam surgir de intermináveis disputas judiciais no futuro. Pontue-se que também quanto a esse assunto e nessa linha de não aplicação da posição consolidada pela jurisprudência superior, por afastamento prévio dos cônjuges, já havia norma da Corregedoria Geral de Justiça do Tribunal de Justiça de Pernambuco (provimento 8/2016), pioneiro nas questões relativas à extrajudicialização. Pois bem, além dessas importantes conclusões administrativas, gostaria de destacar o recente projeto de lei de desburocratização, originário de comissão mista formada no Congresso Nacional, por deputados e senadores, que teve a presidência do Deputado Júlio Lopes e a relatoria do Senador Antonio Anastasia. Além da comissão representativa de várias entidades - como o Sebrae, a Anoreg, o Colégio Notarial do Brasil e a própria Arpen - que auxiliou na elaboração das proposições, fiz algumas sugestões que foram acatadas pela assessoria jurídica do Senado Federal, em interlocuções com o seu assessor Carlos Eduardo Elias de Oliveira. Trata-se de um projeto de lei amplo e audacioso, alterando dispositivos não só do Código Civil, como também do Código de Processo Civil e da Lei de Registros Públicos, com repercussões também para o Direito Empresarial, na constituição de empresas. Entre as sugestões que fiz para o Direito Civil, com vistas à redução de burocracias, destaco a possibilidade de a notificação extrajudicial do devedor pelo credor interromper a prescrição, ampliando-se o art. 202, inc. V, do Código Civil; bem como a introdução de previsão segundo a qual cláusula resolutiva tácita depende de interpelação judicial ou extrajudicial. Atualmente, o art. 474 da codificação privada, em sua segunda parte, menciona apenas a via judicial para que tal previsão atinja os seus fins de extinguir os contratos: "a cláusula resolutiva expressa opera de pleno direito; a tácita depende de interpelação judicial". No âmbito do Direito de Família e das Sucessões, gostaria de destacar três propostas de desburocratização. A primeira delas visa a possibilitar a alteração do regime de bens do casamento por escritura pública, diretamente no Tabelionato de Notas, com registro posterior no âmbito competente. Afasta-se, assim, a necessidade de uma ação judicial para tanto, como se retira dos vigentes arts. 1.639, § 2º, do Código Civil e 734 do Código de Processo Civil. Ora, se o casamento é celebrado em um Cartório, se o regime de bens é escolhido em um Cartório e se cabe o divórcio no Cartório, desde a lei 11.441/2007, por que a alteração do regime de bens deve ser judicial? A dúvida demonstra que a previsão atual, de judicialização dessa medida, não tem sentido técnico-jurídico. Assim, pela proposta, o § 2º do art. 1.639 do Código Civil passaria a ter a seguinte redação: "é admissível alteração do regime de bens mediante escritura pública firmada por ambos os cônjuges a ser averbada no Registro Civil das Pessoas Naturais, no Registro de Imóveis e, se for o caso, no Registro Público de Empresas Mercantis e Atividades Afins". Em complemento, como há tempos tenho sustentado, assim como outros doutrinadores, introduz-se um § 3º no mesmo preceito, prevendo que a alteração do regime de bens não terá eficácia retroativa e será ineficaz em relação a terceiros de boa-fé. Essa, aliás, é a posição atual do Superior Tribunal de Justiça, cabendo transcrever, por todos: "controvérsia em torno do termo inicial dos efeitos da alteração do regime de bens do casamento (ex nunc ou ex tunc) e do valor dos alimentos. Reconhecimento da eficácia ex nunc da alteração do regime de bens, tendo por termo inicial a data do trânsito em julgado da decisão judicial que o modificou. Interpretação do art. 1639, § 2º, do CC/2002" (STJ, REsp 1.300.036/MT, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 13/5/2014, DJe 20/5/2014). Com essa previsão, afasta-se a necessidade de maiores formalidades para a modificação do regime de bens, comprovadas hoje judicialmente, como a demonstração de ausência de demandas em face dos cônjuges. A proteção expressa aos terceiros de boa-fé resolve essa questão, dispensando toda essa construção probatória, que torna o processo de alteração do regim de bens extremamente burocrático e moroso. Além disso, retira-se a menção a um justo motivo para a modificação do regime de bens, o que é tido há tempos como superado, revogando-se expressamente o tratamento constante do art. 734 do Código de Processo Civil de 2015, que nasceu desatualizado. A respeito da união estável, em tom similar, há proposta de introdução de um parágrafo único no art. 1.725 do Código Civil, preceituando que a alteração do regime de bens poderá ser feita por meio de contrato escrito, produzindo-se efeitos a partir da data de sua averbação e, igualmente, sendo ineficaz a modificação a terceiros de boa-fé. Ainda no que concerne à união estável, outra modificação que propus é pela desnecessidade de uma ação judicial para a sua conversão em casamento, como está hoje previsto no art. 1.726 do Código Civil ("a união estável poderá converter-se em casamento, mediante pedido dos companheiros ao juiz e assento no Registro Civil"). Como é notório, o art. 226, § 3º, da Constituição Federal de 1988 ordena que a lei facilite a conversão da união estável em casamento, o que foi desobedecido pela codificação material de 2002, ao exigir a ação judicial. Por isso, muitas normas de Corregedorias dos Tribunais de Justiça dispensam essa demanda, possibilitando a conversão da união estável em casamento diretamente no Cartório de Registro Civil. Pode-se até dizer que tais normas administrativas são ilegais, por contrariarem a dicção atual do art. 1.726 do Código Civil. Entretanto, estão elas de acordo com a Constituição Federal, ou seja, são "constitucionais". Para resolver esse problema, de verdadeira crise das fontes legislativas, o art. 1.726 do Código Civil passaria a prever que "a união estável poderá converter-se em casamento mediante pedido dos companheiros ao Registro Civil, submissão ao procedimento de habilitação de casamento e assento no Registro Civil". Em seus parágrafos, a projeção estabelece que é facultado aos companheiros requererem a inserção da data de início da união estável, desde que apresentem declaração, com firma reconhecida, de todos os seus descendentes, unilaterais ou comuns, consentindo com a data informada ou, se for o caso, declaração de inexistência de descendentes. Propõe-se, ainda, que a data de início da união estável poderá ser impugnada por terceiros interessados a qualquer tempo, ainda que de forma incidente em processos judiciais. Tenho dúvidas quanto à necessidade de assinatura com firma reconhecida, uma vez que o que se busca com o projeto é a redução de burocracias. Como última proposta que pretendo comentar nesse texto, almeja-se alterar o art. 610 do Código de Processo Civil de 2015, na menção de que em havendo testamento ou interessados incapazes não é possível o inventário extrajudicial. Muitas normas de Corregedorias Gerais de Tribunais de Justiça têm amenizado essa regra, nos Estados de São Paulo e do Rio de Janeiro, por exemplo. Seguem o teor do Enunciado n. 600 da VII Jornada de Direito Civil, repetido na I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios (Enunciado 77) e na I Jornada de Direito Processual Civil (Enunciado 51). Por tais enunciados doutrinários, em havendo registro judicial ou autorização expressa do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura, registro e cumprimento de testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública. A proposta do projeto em estudo é bem mais audaciosa, pois o art. 610, caput, do Novo Código de Processo Civil passaria a prever, pura e simplesmente que, inexistindo acordo entre os herdeiros e os legatários do falecido, proceder-se-á ao inventário judicial. Se houver acordo, sem qualquer outra ressalva, a via extrajudicial, por escritura pública a ser lavrada no Tabelionato de Notas, passa a ser plenamente possível. Conforme o seu § 1º, também com tom bem abrangente, a incluir até o pedido de adjudicação de bens, "se todos os herdeiros e os legatários forem concordes ou se só houver um herdeiro, o inventário e a partilha ou, se for o caso, a adjudicação poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras". Insere-se, ainda, previsão de que, mesmo havendo herdeiro incapaz, a via extrajudicial é possível, desde que haja a atuação do Ministério Público perante o Tabelionato de Notas, sendo necessária a homologação do inventário por esse órgão em um procedimento administrativo perante o Cartório (proposta de § 3º para o art. 610 do CPC/2015). Eventualmente, se o Ministério Público desaprovar a escritura, o Tabelião de Notas, por requerimento do interessado, submeterá a escritura ao juiz, que poderá suprir a homologação do MP por meio de sentença, em sede de demanda que segue o procedimento de jurisdição voluntária (eventual § 4º do art. 610 do CPC/2015). Sem dúvidas, são propostas que alteram as estruturas de procedimentos consolidados, mas que ficam para o debate e para a reflexão pela comunidade jurídica. Entendo que as sugestões legislativas facilitam e agilizam o tráfego jurídico, além de terem a grande vantagem de desafogarem o Judiciário e reduzirem a burocracia, atribuindo aos Cartórios funções que eles podem desempenhar muito bem, cumprindo a sua verdadeira função social.
Para encerrar a série de artigos sobre a desconsideração da personalidade jurídica aplicada ao Direito de Família e das Sucessões, tema da minha conferência no XI Congresso Brasileiro do IBDFAM, em outubro de 2017, veremos como a jurisprudência tem aplicado o tratamento constante do novo CPC a respeito do tema. Adiante-se que, respondendo à pergunta que me foi formulada pelos organizadores daquele evento, o CPC/2015, sem dúvidas, consolidou, ajudou e fez avanços na teoria e prática da desconsideração da personalidade jurídica. Partindo para a análise dos julgados sobre o tema, merece destaque acórdão paulista que considerou ser o incidente de desconsideração da personalidade jurídica prevista no novo CPC uma espécie de intervenção de terceiros que recebeu disciplina processual expressa com o fito de harmonizar a desconsideração da personalidade jurídica com o princípio do contraditório, nos termos do art. 5º, inc. LV, da CF/1988 e dos arts. 7º, 9º e 10 do próprio Estatuto Processual. Por isso, nos termos da ementa, seria "imprescindível a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, quando não requerida na petição inicial, com a consequente citação do sócio ou da pessoa jurídica para manifestação e requerimento das provas cabíveis no prazo de 15 dias (art. 135, CPC), assegurando àquele contra qual foi deduzido o pedido, sua defesa e ampla produção de provas para proteção de seu patrimônio" (TJ/SP, Agravo de Instrumento 2044457-93.2017.8.26.0000, Acórdão 10510779, São Paulo, Rel. Des. Gilberto Leme, 35ª Câmara de Direito Privado, julgado em 12/6/2017, DJESP 22/6/2017, p. 2.275). No que diz respeito à aplicação do incidente em desconsideração inversa, concluiu o Tribunal do Distrito Federal que, para o seu processamento, a parte autora necessariamente deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos, tal qual dispõe o § 4º do artigo 134 do Código Instrumental em vigor. Assim, o requerimento de instauração do incidente deve trazer: a) os fatos correlatos; b) o fundamento legal para o seu deferimento; c) a indicação precisa dos requisitos da teoria a ser adotada (se a maior ou menor, como antes desenvolvido no primeiro artigo desta série), e d) a juntada dos documentos necessários à identificação da pessoa jurídica e à comprovação dos fatos narrados, "tudo a fim de possibilitar o exercício do contraditório e da ampla defesa" (TJ/DF, Agravo Interno 2016.00.2.039371-5, Acórdão 999.200, Rel. Des. Flavio Renato Jaquet Rostirola, 3ª Turma Cível, julgado em 22/2/2017, DJDFTE 9/3/2017). Note-se que os julgados insistem na questão relativa aos benefícios que o incidente trouxe para a ampla defesa e para o contraditório. Em outra ementa de destaque, o Tribunal Gaúcho entendeu que a desconsideração inversa da personalidade jurídica, pelo menos em regra, deve ser procedida mediante instauração de incidente, afastando-se o pedido de desconsideração em ação de prestação de contas. O decisum considerou, ainda, que não há que se falar em decisão extra petita em razão de o julgador monocrático ter determinado o bloqueio de ativos financeiros da pessoa jurídica, diante dos fortes indícios de que o réu - ex-marido - estava transferindo bens para ela a fim de frustrar a partilha de bens em relação à ex-mulher. Foram então mantidas as penhoras determinadas pelo juízo, "pois, na medida em que observam a ordem de preferência prevista no art. 835 do NCPC, mormente considerando que a autora vem tentando receber a sua meação há anos, sem sucesso, diante das manobras engendradas pelo réu" (TJ/RS, Agravo de Instrumento 0249353-59.2016.8.21.7000, Pelotas, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, 7ª Câmara Cível, julgado em 26/10/2016, DJERS 1º/11/2016). No âmbito do Superior Tribunal de Justiça merece ser destacado acórdão que ordenou a instauração do incidente de desconsideração da personalidade jurídica em hipótese fática na qual um escritório de advocacia cobra honorários de um famoso ex-jogador de futebol. Alegou o escritório que o requerido seria sócio oculto de empresa e que teria transferido todo o seu patrimônio para a pessoa jurídica, impedindo a satisfação obrigacional. A Corte determinou ao juiz de primeira instância que instaurasse o procedimento previsto no CPC/2015, com a desconsideração inversa da personalidade jurídica. Como consta de trecho da ementa do julgado, com honrosa citação deste autor, "a personalidade jurídica e a separação patrimonial dela decorrente são véus que devem proteger o patrimônio dos sócios ou da sociedade, reciprocamente, na justa medida da finalidade para a qual a sociedade se propõe a existir. [...]. No atual CPC, o exame do juiz a respeito da presença dos pressupostos que autorizariam a medida de desconsideração, demonstrados no requerimento inicial, permite a instauração de incidente e a suspensão do processo em que formulado, devendo a decisão de desconsideração ser precedida do efetivo contraditório. Na hipótese em exame, a recorrente conseguiu demonstrar indícios de que o recorrido seria sócio e de que teria transferido seu patrimônio para a sociedade de modo a ocultar seus bens do alcance de seus credores, o que possibilita o recebimento do incidente de desconsideração inversa da personalidade jurídica, que, pelo princípio do tempus regit actum, deve seguir o rito estabelecido no CPC/15" (STJ, REsp 1.647.362/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, 3ª Turma, julgado em 3/8/2017, DJe 10/8/2017). A conclusão constante da parte final da ementa é importante pela sua grande repercussão prática, no sentido de que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica, por ser matéria de cunho processual, tem aplicação imediata, diante da máxima segundo a qual o tempo rege o ato, ou seja, os atos jurídicos processuais são regidos pela lei da época em que geram efeitos. Outro aresto superior que merece ser apontado, exposto em minha palestra sobre o tema no XI Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e das Sucessões do IBDFAM, é o julgamento do Recurso Especial 1.522.142/PR, da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, com relatoria do Ministro Marco Aurélio Belizze, julgado em 13 de junho de 2017. Trata-se de mais um caso envolvendo a desconsideração inversa da personalidade jurídica, em que o marido utilizou-se da sociedade empresária que controlava, por meio de interposta pessoa, com a intenção de retirar da sua esposa direitos que seriam divididos, por força da meação. O acórdão conclui que a sócia da empresa, cuja personalidade jurídica pretendeu-se desconsiderar, foi beneficiada por suposta transferência fraudulenta de cotas sociais pelo marido. Assim, foi reconhecida a sua legitimidade para integrar a ação de divórcio cumulada com partilha de bens, "no bojo da qual se requereu a declaração de ineficácia do negócio jurídico que teve por propósito transferir a participação do sócio/ex-marido à sócia remanescente (sua cunhada), dias antes da consecução da separação de fato" (Recurso Especial 1.522.142/PR). Como se pode perceber, aplicando a saudável ideia de instrumentalidade processual, a desconsideração inversa da personalidade jurídica foi reconhecida na própria ação de divórcio, conclusão que deve ser a mesma para os casos de ação de dissolução de união estável, equiparada processualmente à primeira pelo novo CPC (arts. 693 e 732). Em complemento, penso que é possível que o respectivo incidente de desconsideração corra dentro dessas ações, aplicando-se o instituto do julgamento antecipado parcial de mérito, previsto no art. 356 do novo CPC. Conforme a norma, o juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais pedidos formulados ou parcela deles: a) mostrar-se incontroverso; e b) estiver em condições de imediato julgamento. A título de concreção, é perfeitamente possível cumular a ação de divórcio ou de dissolução de união estável com o pedido de desconsideração da personalidade jurídica e de outras questões pertinentes. Como primeira medida, o juiz deve conceder o divórcio, seguindo com a discussão dos outros temas da demanda, assim como ocorre com os pedidos de alimentos e de partilha de bens. Com essas conclusões finais, encerro a série de três artigos sobre o instituto da desconsideração da personalidade jurídica. Agradeço à direção e a todos do Migalhas por mais esta oportunidade. E que, em 2018, possamos renovar os nossos laços, com mais temas sobre o Direito de Família e das Sucessões. Feliz Natal e um próspero Ano Novo a todos.
Como destacado em texto anterior publicado neste canal, quando do XI Congresso Brasileiro de Direito de Família e das Sucessões, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM) entre os dias 25 e 27 de outubro deste ano de 2017, na cidade de Belo Horizonte, tive a honra de tratar do tema da desconsideração da personalidade jurídica aplicada ao Direito de Família e das Sucessões, respondendo à seguinte indagação formulada pela comissão científica do evento: "O CPC/2015 consolidou, ajudou e fez avanços na teoria e prática da desconsideração da personalidade jurídica?". No artigo anterior, demonstrei a origem da ideia, as suas modalidades - com destaque para a desconsideração inversa -, as suas teorias, a amplitude de sua aplicação, bem como diferencei o instituto em relação à despersonalização ou despersonificação. Neste segundo texto, procurarei analisar de forma breve o tratamento do incidente de desconsideração da personalidade jurídica, corretamente incluído no Novo Código de Processo Civil, entre os seus arts. 133 a 137. Diz-se corretamente, pois tal regulamentação acabou por consolidar o clamor doutrinário anterior a respeito da instituição do contraditório prévio para o deferimento da desconsideração da personalidade jurídica, substituindo-se o corriqueiramente injusto contraditório diferido, existente na realidade anterior, em especial nas ações de execução. Como bem pontua André Pagani de Souza, a instauração do incidente permite que o juiz "realize a sua cognição e profira a sua decisão no curso de um processo pendente, sem prejudicar o direito de defesa do integrante da pessoa jurídica" (Código de Processo Civil anotado. Coordenadores: José Rogério Cruz e Tucci e outros. Rio de Janeiro: GZ, 2016. p. 196). Como é notório, o incidente recebeu um título próprio no capítulo IV do Título III, que trata da intervenção de terceiros no processo, sem prejuízo de outros dispositivos. De início, estabelece o art. 133, caput, do Novo Código de Processo Civil que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica será instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo. Fica afastada, portanto, e pelo menos a priori, a possibilidade de conhecimento de ofício, pelo juiz, da desconsideração da personalidade jurídica. Lembre-se de que a menção ao pedido pela parte ou pelo Ministério Público consta do art. 50 do Código Civil, no que diz respeito à incidência da categoria ao Direito de Família e das Sucessões. Apesar disso, o presente autor entende que, em alguns casos, de ordem pública, a desconsideração da personalidade jurídica ex officio é possível. Citem-se, de início, as hipóteses envolvendo os consumidores, eis que, nos termos do art. 1º da lei 8.078/1990, o Código de Defesa do Consumidor é norma de ordem pública e interesse social, envolvendo direitos fundamentais protegidos pelo art. 5º da Constituição Federal de 1988. A esse propósito, por todos os doutrinadores consumeristas, como pondera Claudia Lima Marques, "no Brasil, pois, a proteção do consumidor é um valor constitucionalmente fundamental (Wertsystem) e é um direito subjetivo fundamental (art. 5º, XXXII), guiando - e impondo - a aplicação ex officio da norma protetiva dos consumidores, a qual realize o direito humano (efeito útil e pro homine do status constitucional); esteja esta norma no CDC ou em fonte outra (art. 7º do CDC)" (MARQUES, Claudia Lima. Comentários ao Código de Defesa do Consumidor. São Paulo: RT, 2010. p. 70). Existem arestos estaduais recentes que adotam tal ideia, caso do Tribunal de Justiça do Distrito Federal para as relações de consumo. A título de exemplo de vários arestos que assim concluem, com mesma relatoria e no âmbito do Juizado Especial Cível: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. JUIZADOS ESPECIAIS CÍVEIS. DIREITO DO CONSUMIDOR. DESCONSIDERAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INCIDÊNCIA DA TEORIA MENOR, QUE POSSIBILITA A DECRETAÇÃO, DE OFÍCIO, APENAS EM RAZÃO DA INSOLVÊNCIA. ARTIGO 28, § 5º, DO CDC. AGRAVO CONHECIDO E PROVIDO. 1. Trata-se de relação de consumo, visto que o agravante é o consumidor, e o recorrido fornecedor de serviços, conforme previsto nos artigos 2º e 3º da Lei n. 8.079, de 11 de setembro de 1990, Código de Defesa do Consumidor. 2. Tratando-se de vínculo proveniente de relação de consumo aplica-se a teoria menor da desconsideração da personalidade (§ 5º do art. 28 do CDC), para qual é suficiente a prova de insolvência da pessoa jurídica, sem necessidade da demonstração do desvio de finalidade ou da confusão patrimonial. 3. Verificada a índole consumerista da relação e o esgotamento, sem sucesso, das diligências cabíveis e razoáveis à busca de bens suficientes para satisfação do crédito do consumidor, é cabível a desconsideração da personalidade jurídica do agravado. 4. Agravo de instrumento conhecido e provido. 5. Sem custas e sem honorários, ante a ausência de recorrente vencido" (TJDF, Processo n. 0700.64.9.252017-8079000, Acórdão n. 104.6000, Segunda Turma Recursal dos Juizados Especiais Cíveis e Criminais, Rel. Juiz Arnaldo Corrêa Silva, julgado em 13.09.2017, DJDFTE 20.09.2017). Ressalve-se, contudo, que, nos termos do que consta do próprio CPC/2015, especialmente do seu art. 10, que trata da vedação das decisões-surpresa, antes do conhecimento de ofício da desconsideração da personalidade jurídica, o juiz deve ouvir as partes da demanda. Conforme essa norma, "o juiz não pode decidir, em grau algum de jurisdição, com base em fundamento a respeito do qual não se tenha dado às partes oportunidade de se manifestar, ainda que se trate de matéria sobre a qual deva decidir de ofício". Penso que também é viável a desconsideração da personalidade jurídica de ofício pelo juiz nos casos de danos ambientais, diante da proteção constitucional do Bem Ambiental, como bem difuso, retirada do art. 225 do Texto Maior. A conclusão deve ser a mesma nas hipóteses envolvendo corrupção, por força da recente lei 12.846/2013, que trata da desconsideração administrativa das empresas envolvidas com tais atos, tendo a norma interesse coletivo inquestionável. Em suma, a decretação ex officio é viável nos casos de incidência da teoria menor. Quanto às relações familiares e sucessórias, a desconsideração da personalidade jurídica de ofício parece estar descartada. Primeiro, porque nenhuma das normas citadas incide em tais relações. Segundo, pelo fato de que as relações jurídicas submetidas ao Direito de Família e das Sucessões chamam a aplicação da teoria maior, em que não é possível a desconsideração de ofício. Seguindo no estudo das regras processuais, o § 1º do art. 133 do Novo CPC estabelece que o pedido de desconsideração da personalidade jurídica observará os pressupostos previstos em lei. Desse modo, devem ser respeitadas pelas partes e pelos julgadores as regras materiais comentadas no artigo anterior desta série, bem como as interpretações doutrinárias e jurisprudenciais outrora deduzidas, especialmente quanto às teorias maior e menor. Igualmente, como antes exposto, com clara origem na evolução doutrinária e jurisprudencial a respeito do tema, enuncia o § 2º do art. 133 do Novo CPC que o incidente de desconsideração é aplicável às hipóteses de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Curiosamente, o fundamento legal para a desconsideração invertida ou indireta passou a ser a norma da lei processual, e não a codificação material. Nos termos da cabeça do art. 134 da Norma Processual Civil emergente, o incidente de desconsideração é cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial. No âmbito do Direito de Família, é cabível, por exemplo, em sede de cumprimento de sentença que reconheceu a partilha de bens do casal ou o pagamento de verbas alimentares. Não vemos problema em admitir a desconsideração, ainda, no âmbito de ação de divórcio ou de demanda que pretende a dissolução de união estável, de forma litigiosa. A instauração do incidente será imediatamente comunicada ao distribuidor para as anotações devidas (§ 1º). Dispensa-se a instauração do incidente se a desconsideração da personalidade jurídica for requerida na petição inicial, situação em que será citado diretamente o sócio ou a pessoa jurídica (§ 2º). A instauração do incidente suspenderá o processo, salvo na hipótese de pedido na exordial, com citação do sócio (§ 3º). Parece ter pecado o CPC/2015 por mencionar apenas os sócios e não os administradores da empresa, sendo viável fazer uma interpretação extensiva para também incluí-los. A menção a qualquer fase do processo é louvável, afastando o debate anterior de desconsideração em processo executivo, mormente por um suposto atentado ao contraditório e à ampla defesa. Com a instauração do incidente, essa discussão fica afastada. Também são afastadas inquietações anteriores com a previsão de que de que os sócios - e administradores - passam a compor o polo passivo da demanda. Dessa forma, devem ser tratados como partes e não como terceiros, nos casos de desconsideração da personalidade jurídica. Tanto isso é verdade que o novo art. 790, inciso VII, do Código de Processo Civil passou a enunciar que, nas situações de desconsideração da personalidade jurídica, ficam sujeitos à execução os bens do responsável. Suplementarmente, o art. 674 do Novo Código de Processo Civil define como legitimado para opor embargos de terceiros aquele que, não sendo parte no processo, sofrer constrição ou ameaça de constrição sobre bens que possua ou sobre os quais tenha direito incompatível com o ato constritivo. Ademais, conforme o § 2º, inciso III, do mesmo artigo, considera-se terceiro, para ajuizamento dos embargos de terceiro, quem sofrer constrição judicial de seus bens por força de desconsideração da personalidade jurídica, de cujo incidente não fez parte. Somente nessas hipóteses fáticas os embargos de terceiro são cabíveis. O § 4º do art. 134 do CPC/2015 preconiza que o requerimento de desconsideração da personalidade deve demonstrar o preenchimento dos pressupostos legais específicos para a sua incidência. Em suma, o pedido deve ser bem fundamentado, com a exposição da incidência das teorias maior ou menor, na linha de todas as lições que foram antes desenvolvidas no primeiro artigo desta série. Instaurado o incidente, o sócio (ou a pessoa jurídica) será citado para manifestar-se e requerer as provas cabíveis no prazo de 15 dias (art. 135 do Novo Processo Civil), o que evidencia a instauração do louvável contraditório, sempre defendido pela doutrina. Nos termos do novo art. 136 do CPC/2015, concluída a instrução, se necessária, o incidente será resolvido por decisão interlocutória, e não por sentença. Se a decisão for proferida pelo relator, caberá agravo interno, com tratamento específico no próprio Estatuto Processual emergente. Como última regra geral a respeito do incidente de desconsideração, nos termos do art. 137 do Novo CPC, acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente. Em suma, a opção legislativa é resolver a questão no plano da eficácia, e não da validade, como consta da parte final do art. 50 do Código Civil, com a notória ampliação de responsabilidades decorrentes do instituto. Outro dispositivo que merece ser citado e anotado é o art. 795 do Código de Processo Civil em vigor, segundo o qual os bens particulares dos sócios não respondem pelas dívidas da sociedade, senão nos casos previstos em lei. Nos termos do seu § 1º, o sócio-réu, quando responsável pelo pagamento da dívida da sociedade, tem o direito de exigir que primeiro sejam excutidos os bens da sociedade, o que confirma a sua responsabilidade subsidiária e não solidária, presente o benefício de ordem ou de excussão. Ao sócio que alegar esse benefício, cabe a nomeação de bens da sociedade, situados na mesma comarca, livres e desembargados, que bastem para pagar o débito (art. 795, § 2º). O sócio que pagar a dívida poderá executar a sociedade nos autos do mesmo processo (art. 795, § 3º, do Novo CPC). Por fim, para a desconsideração da personalidade jurídica é obrigatória a observância do incidente previsto no próprio CPC/2015, o que indica que a responsabilidade do sócio ou administrador passa a ser integral e solidária (art. 795, § 4º), na linha do que vinha entendendo a melhor jurisprudência nacional. Por todos os julgados superiores, merece destaque o seguinte: "tese expendida no recurso especial, consistente na limitação da responsabilidade dos sócios à correspondente participação societária ou ao exercício dos poderes de administração, a despeito da desconsideração da personalidade jurídica, em princípio, não se mostra plausível. Efetivamente, o artigo 50 do Código Civil não tece qualquer restrição nesse sentido, sendo certo que tal exegese poderia tornar inócuo tal instituto, destinado a permitir a satisfação pontual do credor, lesado pelo desvio de finalidade ou confusão patrimonial" (STJ, Ag. Rg. na MC 20.472/DF, Rel. Ministro Marco Buzzi, Quarta Turma, julgado em 03.09.2013, DJe 20.09.2013). Também em boa hora o novo art. 1.062 do CPC/2015 passa a prever que o incidente de desconsideração da personalidade jurídica aplica-se ao processo de competência dos juizados especiais. Como o incidente não traz grandes complexidades, não haveria qualquer óbice para a sua incidência nesses processos, constituindo-se em um importante mecanismo que afasta a má-fé e pune os maus sócios e administradores das pessoas jurídicas. Sobre o Direito de Família, existem projetos legislativos que pretendem trazer para o âmbito do Juizado Especial as suas demandas, o que não conta com o nosso apoio, diante das peculiaridades e complexidades pontuais dessas ações. Na jurisprudência nacional já podem ser encontrados vários arestos aplicando o novel incidente e com debates interessantes, notadamente para o Direito de Família e das Sucessões. Tais arestos, todos muito recentes, serão analisados no terceiro e último artigo desta série. De todo modo, para encerrar este estudo, merecem ser comentados brevemente dois enunciados doutrinários aprovados na I Jornada de Direito Processual Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em agosto de 2017. O primeiro deles, de número 11, estabelece a necessidade de aplicação do incidente previsto entre os arts. 133 e 137 do Novo CPC não só para a desconsideração direta, como também para a inversa ou indireta, o que, como se verá, é reconhecido por muitos acórdãos recentes. O enunciado cita ainda a desconsideração expansiva, também denominada sucessão de empresas ou desconsideração econômica, em que há a ampliação de responsabilidades de uma pessoa jurídica para outra, evidenciado o conluio fraudulento praticado pelos sócios ou administradores de ambas. O segundo enunciado doutrinário, aprovado no mesmo evento, preceitua que é cabível a concessão de tutela provisória de urgência em incidente de desconsideração da personalidade jurídica (enunciado 42). Como se sabe, a tutela provisória de urgência está tratada pelo art. 300 do CPC/2015, sendo concedida quando houver elementos que evidenciem a probabilidade do direito e o perigo de dano ou o risco ao resultado útil do processo. Duas são as suas modalidades: a) a tutela de urgência de natureza antecipada, preenchidos tais requisitos; e b) a tutela de urgência de natureza cautelar, efetivada mediante arresto, sequestro, arrolamento de bens, registro de protesto contra alienação de bem e qualquer outra medida idônea para asseguração do direito (art. 301 do CPC/2015). Vários acórdãos deferem a tutela provisória de urgência para bloqueio ou arresto de bens do fraudador, seja ele pessoa natural ou jurídica, na desconsideração da personalidade jurídica. A ilustrar, do Tribunal Paulista, entendeu-se pela viabilidade da desconsideração inversa da personalidade jurídica, instaurando-se o incidente para tal fim. Reformou-se decisão de primeiro grau, para manter o deferimento de tutela de urgência, que autorizava arresto de bens (TJSP, Agravo de Instrumento n. 2153635-11.2016.8.26.0000, Acórdão 10484765, Santo André, Rel. Des. Roberto Mac Cracken, 22ª Câmara de Direito Privado, julgado em 25/5/2017, DJESP 7/6/2017, p. 1765). Outros julgados de aplicação do incidente, notadamente no âmbito do Direito de Família e das Sucessões, serão expostos no terceiro e último texto desta série de artigos.
Mais uma vez, tive a grande honra de ser convidado para palestrar no XI Congresso Brasileiro de Direito de Família e das Sucessões do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), entre os dias 25 e 27 de outubro deste ano de 2017. Trata-se de um dos maiores congressos do mundo sobre o tema e, sem dúvidas, um dos mais importantes eventos de Direito Privado de nosso país. As temáticas das exposições, nesta oportunidade, estão baseadas em perguntas práticas que devem ser respondidas pelos palestrantes. A mim coube discorrer sobre o tema da desconsideração da personalidade jurídica aplicada ao Direito de Família e das Sucessões, respondendo à seguinte indagação: "O CPC/2015 consolidou, ajudou e fez avanços na teoria e prática da desconsideração da personalidade jurídica?". Procurarei responder a tal pergunta em uma série de três artigos, publicados neste canal. Neste primeiro texto, demonstrarei o enquadramento do tema, bem como a principal aplicação da desconsideração da personalidade jurídica no âmbito do Direito de Família e das Sucessões trazida pelo novo Estatuto Processual. Pois bem, diante de sua concepção como realidade técnica e orgânica, a pessoa jurídica é capaz de direitos e deveres na ordem civil, independentemente dos membros que a compõem, com os quais não tem vínculo. Tal realidade pode ser retirada do art. 45 do Código Civil de 2002, ao dispor que começa a existência legal das pessoas jurídicas de direito privado com a inscrição do ato constitutivo no respectivo registro. Fala-se em autonomia da pessoa jurídica quanto aos seus membros, o que constava expressamente no art. 20 do Código Civil de 1916, dispositivo que não foi reproduzido pela atual codificação material, sem que isso traga qualquer conclusão diferente. Como decorrência lógica desse enquadramento, em regra, os componentes da pessoa jurídica somente responderão por débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual dependendo do tipo societário adotado (responsabilidade in vires). A regra é de que a responsabilidade dos sócios em relação às dívidas sociais seja sempre subsidiária, ou seja, primeiro exaure-se o patrimônio da pessoa jurídica, para depois, e desde que o tipo societário adotado permita, os bens particulares dos sócios ou componentes da pessoa jurídica serem executados. Devido a essa possibilidade de exclusão da responsabilidade dos sócios ou administradores, a pessoa jurídica, por vezes, desviou-se de seus fins, cometendo fraudes e lesando a sociedade ou terceiros, provocando reações na doutrina e na jurisprudência. Visando a coibir tais abusos, surgiu no Direito Comparado a figura da teoria da desconsideração da personalidade jurídica, teoria do levantamento do véu ou teoria da penetração (disregard of the legal entity). Com isso, alcançam-se pessoas e bens que se escondem dentro de uma pessoa jurídica para fins ilícitos ou abuso, além dos limites do capital social (responsabilidade ultra vires). Entre os grandes especialistas no assunto em nosso País, Fábio Ulhoa Coelho demonstra as suas origens com precisão: "a teoria é uma elaboração doutrinária recente. Pode-se considerar Rolf Serick o seu principal sistematizador, na tese de doutorado defendida perante a Universidade de Tübigen, em 1953. É certo que, antes dele, alguns autores já haviam dedicado ao tema, como por exemplo, Maurice Wormser, nos anos 1910 e 1920. Mas não se encontra claramente nos estudos precursores a motivação central de Serick de buscar definir, em especial a partir da jurisprudência norte-americana, os critérios gerais que autorizam o afastamento da autonomia das pessoas jurídicas (1950)" (COELHO, Fábio Ulhoa. Curso de direito comercial. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2008. p. 37. v. 2). Como se extrai de obra do último jurista, são apontados alguns julgamentos históricos como precursores da tese: caso Salomon vs. Salomon & Co., julgado na Inglaterra em 1897, e caso State vs. Standard Oil Co., julgado pela Corte Suprema do Estado de Ohio, Estados Unidos, em 1892. A verdade é que, a partir das teses e dos julgamentos citados, as premissas de penetração na pessoa jurídica passaram a influenciar a elaboração de normas jurídicas visando a sua regulamentação, especialmente nos Países do modelo da "Civil Law". Na Itália, fala-se em superamento della personalitá giuridica; na Alemanha, Durchgriff der juristischen person; na Argentina, teoria de la penetración de la personalidad societaria; em Portugal, desconsideração da personalidade colectiva. Em resumo, o instituto permite ao juiz não mais considerar os efeitos da personificação da sociedade para atingir e vincular responsabilidades dos sócios e administradores, com intuito de impedir a consumação de fraudes e abusos por eles cometidos, desde que causem prejuízos e danos a terceiros, principalmente a credores da empresa. Dessa forma, os bens particulares dos sócios ou administradores podem responder pelos danos causados a terceiros. O véu ou escudo, no caso a própria pessoa jurídica, é retirado para atingir quem está atrás dele, o sócio ou administrador. Bens da empresa também poderão responder por dívidas dos sócios, por meio do que se denomina desconsideração inversa ou invertida, com grande incidência para o Direito de Família e das Sucessões. O atual Código Civil Brasileiro acolheu expressamente a desconsideração. Prescreve o seu art. 50 que: "em caso de abuso da personalidade jurídica caracterizado pelo desvio de finalidade, ou pela confusão patrimonial, pode o Juiz decidir, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares dos administradores ou sócios da pessoa jurídica". Como a desconsideração da personalidade jurídica foi adotada pelo legislador da codificação privada de 2002, não é recomendável mais utilizar a expressão teoria, que constitui trabalho doutrinário, amparado pela jurisprudência. Tal constatação também é retirada da leitura do Código de Defesa do Consumidor. O art. 28, caput, da lei 8.078/1990 enuncia que: "o Juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração"; (...) § 5º: "Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores". Faz o mesmo o art. 4º da Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), ao prever que "poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente". Tanto em relação à adoção da teoria quanto à manutenção das leis especiais anteriores, expressa o Enunciado n. 51, aprovado na I Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal (2002), que "a teoria da desconsideração da personalidade jurídica - disregard doctrine - fica positivada no novo Código Civil, mantidos os parâmetros existentes nos microssistemas legais e na construção jurídica sobre o tema". Eis um argumento doutrinário de relevo pelo qual não se pode mais utilizar a expressão teoria, uma vez que a desconsideração foi abraçada pela codificação privada. Ponto importante a ser esclarecido, diante do comum baralhamento no uso dos termos, é que a desconsideração não se confunde com a despersonificação ou despersonalização, pois essas últimas expressões significam o fim da pessoa jurídica, tratada pelo art. 51 do Código Civil Brasileiro. Reitere-se que pela desconsideração da personalidade jurídica não há extinção da pessoa jurídica, mas apenas uma ampliação de responsabilidades. A melhor doutrina aponta a existência de duas grandes teorias fundamentais acerca da desconsideração da personalidade jurídica. A primeira delas é a teoria maior ou subjetiva, segundo a qual a desconsideração, para ser deferida, exige a presença de dois requisitos. O primeiro deles é o abuso da personalidade jurídica; o segundo, o prejuízo ao credor. Essa teoria foi adotada pelo art. 50 do CC/2002, sendo aplicada para as relações civis, notadamente para aquelas fundadas em vínculo de Direito de Família ou das Sucessões. Incide, portanto, para as fraudes praticadas entre cônjuges ou entre herdeiros. Por outra via, pela teoria menor ou objetiva, a desconsideração da personalidade jurídica exige um único elemento, qual seja o prejuízo ao credor. Essa teoria foi adotada pela lei 9.605/1998, para os danos ambientais e, segundo a posição consolidada da jurisprudência superior - apesar da existência de críticas doutrinárias -, pelo art. 28 do Código de Defesa do Consumidor. Entre os principais precedentes que trazem tal conclusão está o rumoroso caso da explosão do "Shopping Center" de Osasco (STJ, REsp 279.273/SP, Terceira Turma, Rel. Ministro Ari Pargendler, Rel. p/ Acórdão Ministra Nancy Andrighi, Julgado em 4/12/2003, DJ 29/3/2004, p. 230). Como não se pode atribuir a subsunção dessas normas para as relações familiares ou entre herdeiros, a aplicação da teoria menor foge do âmbito em estudo neste texto. De todo modo, existem duas modalidades básicas de desconsideração, sujeitas às duas teorias expostas. A primeira delas é a desconsideração direta ou regular, em que bens dos sócios ou administradores respondem por dívidas da pessoa jurídica. Está ela tratada pelos expostos art. 50 do Código Civil e art. 28 do CDC. A segunda é a desconsideração indireta, inversa ou invertida, hipótese em que bens da pessoa jurídica respondem por dívidas dos sócios ou administradores. A última modalidade não estava tratada em lei, tendo surgido doutrinariamente no Brasil a partir dos estudos do Professor Rolf Madaleno - quem ora se homenageia -, especialmente no âmbito do Direito de Família e das Sucessões (por todas as suas obras: Direito de família. Aspectos polêmicos. 2. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1999. p. 31). No âmbito doutrinário, a desconsideração inversa ou invertida também foi reconhecida pelo Enunciado n. 283, da IV Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal (2006), in verbis: "é cabível a desconsideração da personalidade jurídica denominada 'inversa' para alcançar bens de sócio que se valeu da pessoa jurídica para ocultar ou desviar bens pessoais, com prejuízo a terceiros". Da jurisprudência superior anterior, vários já eram os arestos que a reconheciam (por todos: STJ, REsp. 948.117/MS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado em 22/6/2010, publicado no seu Informativo n. 444). Pensamos que a principal e mais importante inovação do Código de Processo Civil de 2015 sobre a temática foi justamente essa positivação da desconsideração inversa, incluída no seu art. 133, § 2º, no tópico relativo ao "incidente de desconsideração da personalidade jurídica". E, conforme o Enunciado n. 11, aprovado na I Jornada de Processo Civil, realizada em agosto último pelo mesmo Conselho da Justiça Federal, tal procedimento incide também para essa modalidade de desconsideração. Sobre as regras relativas ao citado incidente, e suas aplicações ao âmbito do Direito de Família e das Sucessões tratarei no artigo de continuidade a este texto.
Tema que é intensamente debatido no âmbito de supostas interações entre o Direito de Família e a Responsabilidade Civil diz respeito à responsabilidade pré-negocial no casamento, ou seja, à quebra de promessa de casamento como fato gerador do dever de indenizar, inclusive por danos imateriais. A quebra dessa promessa ocorre, muitas vezes, quando se estabelece um compromisso de noivado, de modo a fazer surgir o dever de indenizar nos esponsais, matéria, aliás, tratada pelo Código Civil Alemão, nos seus §§ 1.297 a 1.302 (Verlöbnis). A possibilidade de reparação nesses casos vem sendo abordada há tempos pela doutrina e pela jurisprudência, havendo posicionamentos em ambos os sentidos. De todo modo, cabe esclarecer que não se trata de indenização pretendida em decorrência de vínculo familiar, pois, no caso de noivado, esse ainda não existe. Essa é uma questão metodológica importante, eis que muitas vezes o instituto é relacionado ao cerne do Direito de Família, o que não é o caso. Entre os que são favoráveis à indenização nessas situações, cite-se Inácio de Carvalho Neto, que lembra o fato de que o nosso "Código, ao contrário dos Códigos alemão, italiano, espanhol, peruano e canônico, não regula sequer os efeitos do descumprimento da promessa". Porém, para o mesmo autor, "isto não impede que se possa falar em obrigação de indenizar nestes casos, com base na regra geral da responsabilidade civil. Como afirma Yussef Cahali, optou-se por deixar a responsabilidade civil pelo rompimento da promessa sujeita à regra geral do ato ilícito" (Responsabilidade civil no direito de família. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2004. p. 401). Na esteira das lições transcritas, entendo ser plenamente possível a indenização de danos morais em decorrência da quebra da promessa de casamento futuro por um dos noivos. Em sentido contrário, Maria Berenice Dias leciona que, em casos tais, são indenizáveis somente os danos emergentes ou danos positivos, os prejuízos diretamente causados pela quebra do compromisso, caso das despesas relativas à celebração do casamento. Para a doutrinadora, não há que se falar em danos morais ou mesmo em lucros cessantes ou danos negativos. São suas palavras: "falando em dano moral e ressarcimento pela dor do fim do sonho acabado, o término de um namoro também poderia originar responsabilidade por dano moral. Porém, nem a ruptura do noivado, em si, é fonte de responsabilidade. O noivado recebia o nome de esponsais e era tratado como uma promessa de contratar, ou seja, a promessa do casamento, que poderia ensejar indenização. Quando se dissolve o noivado, com alguma frequência é buscada a indenização não só referente aos gastos feitos com os preparativos do casamento, que se frustrou, mas também aos danos morais. Compete à parte demonstrar as circunstâncias prejudiciais em face das providências porventura tomadas em vista da expectativa do casamento. Não se indenizam lucros cessantes, mas tão somente os prejuízos diretamente causados pela quebra do compromisso, a outro título que não o de considerar o casamento como um negócio, uma forma de obter o lucro ou vantagem. Esta é a postura que norteia a jurisprudência" (Manual de direito das famílias. 4. ed. São Paulo: RT, 2007, p. 118). O que se percebe é que há forte corrente doutrinária que entende não ser possível a responsabilidade civil por danos morais pela quebra de promessa de casamento. De fato, não se pode afirmar que o casamento é fonte de lucro e, sendo assim, não há como ressarcir lucros cessantes. Porém, reafirmamos ser viável a reparação dos danos imateriais em situações especiais, sendo certo que a complexidade das relações pessoais recomenda a análise caso a caso. Nesse contexto, é forçoso concluir que, no Código Civil de 2002, o dever de indenizar surge não com base no art. 186, que trata do ato ilícito puro e indenizante, mas com fundamento no art. 187, que disciplina o abuso de direito, como ilícito equiparado. Esse é o ponto de divergência entre o posicionamento deste autor e o de parte da doutrina civilista, entre aqueles que reconhecem o dever de indenizar nessas hipóteses em decorrência do ato ilícito extracontratual propriamente dito. Partindo para a prática, na jurisprudência podem ser encontrados julgados que apontam para a reparabilidade dos danos morais em casos tais. Do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, como primeiro exemplo, merece destaque: "a ruptura do noivado, embora cause sofrimento e angústia ao nubente, por si só, não gera o dever de indenizar, pois, não havendo mais o vínculo afetivo, não faz sentido que o casal dê prosseguimento ao relacionamento. Todavia, se o rompimento do noivado ocorreu de forma extraordinária, em virtude de enganação, por meio de promessas falsas e mentiras desprezíveis, causando dor e humilhação na noiva abandonada, configuram-se os danos morais" (TJ/MG, Apelação Cível n. 1.0701.12.031001-9/001, Rel. Des. Rogério Medeiros, julgado em 16/06/2016, DJEMG 24/06/2016). Ou, do Tribunal de Justiça do Paraná, entre acórdãos mais antigos: "noivado não tem sentido de obrigatoriedade. Pode ser rompido de modo unilateral até momento da celebração do casamento, mas a ruptura imotivada gera responsabilidade civil, inclusive por dano moral, cujo valor tem efeito compensatório e repressivo, por isto deve ser em quantia capaz de representar justa indenização pelo dano sofrido" (TJPR, Acórdão n. 4651, Apelação Cível, comarca Londrina, 3ª vara Cível, Órgão Julgador 5ª Câmara Cível, Rel. Des. Antonio Gomes da Silva, publicação 13/03/2000). Também foram encontradas decisões que afastam totalmente a possibilidade de reparação dos danos morais por quebra de noivado. Do mesmo Tribunal de Minas Gerais: "Ausentes os requisitos do art. 186 do Código Civil, não é o caso de incidência de danos morais e materiais, ainda mais quando a parte autora não se incumbiu de provar os fatos alegados. Meros dissabores e frustrações advindas do rompimento do noivado, não ensejam a condenação em indenização" (TJ/MG, Apelação Cível n. 1.0024.10.124748-4/001, Rel. Des. Pedro Aleixo, julgado em 16/02/2017, DJEMG 06/03/2017). Ainda na mesma esteira, do Tribunal paulista: "a promessa de casamento, baseada no compromisso amoroso entre o homem e a mulher, é eivada de subjetivismo e riscos, sendo que a sua ruptura não pode acarretar dano moral indenizável" (TJ/SP, Apelação n. 386.368.4/0, Acórdão n. 3596890, São Paulo, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Luiz Gavião de Almeida, j. 14/.04/2009, DJESP 9/6/2009). Em continuidade, alguns arestos reconhecem apenas os danos materiais decorrentes da não realização do casamento, como as despesas com a realização da festa que acabou não ocorrendo. Nesse sentido, por todos: "RESPONSABILIDADE CIVIL. Indenização por danos materiais e morais. Rompimento do noivado pelo réu 10 dias antes da celebração do casamento. Danos materiais. Ressarcimento. Admissibilidade. Exclusão dos supostos gastos realizados pelo varão com o cartão de crédito da autora, não demonstrados e divisão igualitária das despesas efetivamente já adiantadas. Danos morais. Afastamento. Direito do noivo de repensar sua vida antes de contrair matrimônio. Pequeno período de duração do namoro. Ausência de situação vexatória, ou humilhante. Apelo parcialmente provido" (TJSP, Apelação n. 0005378-26.2011.8.26.0462, Acórdão n. 8107600, Poá, 9ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Galdino Toledo Junior, julgado em 16/12/2014, DJESP 20/01/2015). Por fim, há ementas que afastam o dever de indenizar em casos determinados, em que os danos não estão evidenciados, mas reconhecem a reparabilidade dos danos morais por quebra de promessa de noivado, especialmente se os fatos forem de especial gravidade, causando humilhação à outra parte: "APELAÇÃO CÍVEL. ROMPIMENTO DE NOIVADO. INDENIZAÇÃO POR DANOS MATERIAIS E MORAIS. NÃO CABIMENTO. AUSÊNCIA DE DANO MORAL. FALTA DE PROVA DE DANO MATERIAL. A simples ruptura de um noivado não pode ser causa capaz de configurar dano moral indenizável, salvo em hipóteses excepcionais, em que o rompimento ocorra de forma anormal e que ocasione, realmente, à outra pessoa uma situação vexatória, humilhante e desabonadora de sua honra, o que, no caso dos autos, como visto, não ocorreu. Não se há de falar em indenização por dano material, no caso de rompimento de noivado, se não há prova nos autos de culpa de quem quer que seja pelo rompimento havido e sequer das despesas realmente feitas com a preparação da cerimônia" (TJMG, Apelação Cível n. 1.0480.12.016815-2/001, Rel. Des. Evandro Lopes da Costa Teixeira, julgado em 3/12/2015, DJEMG 15/12/2015). "Noivado. Rompimento. Dano moral e material. Descaracterização. Somente se caracteriza a ocorrência do dano moral indenizável em decorrência de rompimento de noivado, quando este se verifica às vésperas da data do casamento. Não se configura a ocorrência de danos materiais decorrentes de despesas contraídas em virtude da declaração da data do casamento, quando, após o rompimento, os bens adquiridos permaneceram de posse da parte autora. Recurso não provido" (Tribunal de Alçada de Minas Gerais, Acórdão n. 0382351-0, Apelação Cível, 2002, Comarca Belo Horizonte/Siscon, Órgão Julgador 2ª Câmara Cível, Rel. Juiz Alberto Aluizio Pacheco de Andrade, j. 20/05/2003, dados de publicação: não publicada, decisão unânime). Conforme pesquisa recentemente realizada, o que se tem percebido na prática jurisprudencial é a prevalência de ementas que afastam a reparação dos danos morais nos casos de quebra de promessa de casamento. Na verdade, diante da casuística, é preciso conciliar todos esses entendimentos para se chegar a uma conclusão plausível dentro das circunstâncias fáticas a serem analisadas. Em suma, a questão não pode ser passível de generalização, como ocorre muitas vezes na prática, infelizmente. Repise-se que, para a primeira corrente transcrita, é possível a reparação de danos morais se a não celebração do casamento prometido causar lesão psicológica ao noivo ou ao namorado, notadamente se a ruptura ocorrer às vésperas da cerimônia. A propósito, quando de sua exposição no V Congresso Brasileiro de Direito de Família, no dia 27 de outubro de 2005, Jones Figueirêdo Alves, ao discorrer sobre o abuso de direito aplicado ao âmbito do Direito de Família, utilizou uma expressão que, aqui, serve como uma luva e que tenho utilizado em aulas e exposições sobre o tema: estelionato do afeto. Concorda-se com a afirmação segundo a qual a mera quebra da promessa não gera, por si só, o dano moral. Ademais, não há de se confundir o dano moral com os meros dissabores do cotidiano, se realmente os fatos tiveram essa qualificação. Porém, em alguns casos, os danos morais podem estar configurados, principalmente naqueles em que a pessoa é substancialmente enganada pela outra parte envolvida, a qual desrespeita toda a confiança depositada sobre si. Cite-se, a par dessas afirmações, outro rumoroso caso analisado pelo Tribunal de Minas Gerais, a seguir colacionado: "a vida em comum impõe aos companheiros restrições que devem ser seguidas para o bom andamento da vida do casal e do relacionamento, sendo inconteste o dever de fidelidade mútua. O término de relacionamento amoroso, embora seja fato natural da vida, gerará dever de indenizar por danos materiais e morais, conforme as circunstâncias que ensejaram o rompimento. São indenizáveis danos morais e materiais causados pelo noivo flagrado pela noiva mantendo relações sexuais com outra mulher, na casa em que moravam, o que resultou no cancelamento do casamento marcado para dias depois e dos serviços contratados para a cerimônia" (TJMG, Apelação Cível n. 5298117-04.2007.8.13.0024, Belo Horizonte, 10ª Câmara Cível, Rel. Des. Mota e Silva, j. 31.08.2010, DJEMG 21.09.2010). Cabe mencionar, ainda, a hipótese em que a noiva - ou o noivo - é deixada esperando no altar, na presença dos convidados do casal, o que, sem dúvidas, acarreta consequências no âmbito da responsabilidade civil. Tal situação, sem dúvidas, gera repercussões negativas sobre a honra da pessoa, de modo a caracterizar o dano imaterial. E o que dizer de um caso em que o noivo transmite à noiva uma doença sexualmente transmissível, ou vice-versa, sendo esse o motivo da ruptura? Sem dúvidas, estará presente o seu dever de reparar os prejuízos sofridos pela outra parte. Além desses exemplos, muitos outros poderiam surgir. Por isso é que se recomenda a análise específica dos fatos. De qualquer forma, merece destaque a ressalva anterior sobre o fundamento jurídico da reparação civil em casos tais. Com todo o respeito, reitere-se, não se segue o entendimento pelo qual a reparação está motivada no art. 186 do atual Código Civil, dispositivo que conceitua o ato ilícito indenizante como a soma da violação de um direito - correspondente ao desrespeito de um dever jurídico -, com um dano causado. Isso porque não há de se falar em lesão ou violação de direitos quando alguém não celebra o casamento prometido, pois a promessa de casamento não vincula a sua ocorrência futura. Desse modo, não há ato ilícito propriamente dito. O dever de indenizar, em situações tais, decorre do abuso de direito, pelo desrespeito à boa-fé objetiva, diante da norma geral contida no art. 187 da codificação material, in verbis: "também comete ato ilícito o titular de um direito que, ao exercê-lo, excede manifestamente os limites impostos pelo seu fim econômico ou social, pela boa-fé ou pelos bons costumes". Desse modo, o dever de indenizar, nos moldes do art. 927, caput, do Código Civil, tem por fundamento o segundo conceito de ilicitude indenizante. Assim, a conduta de abuso gera uma responsabilidade pré-negocial casamentária em decorrência do desrespeito aos deveres anexos na fase anterior ao casamento. Trata-se de clara aplicação do princípio da boa-fé objetiva aos institutos familiares, notadamente pela incidência dos deveres anexos de lealdade, de transparência e de confiança. Aliás, se fôssemos adeptos da corrente que aponta ser o casamento um contrato, falaríamos que a quebra da promessa de noivado gera uma espécie de responsabilidade pré-contratual, conforme entendem Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, chegando à mesma conclusão pela reparação civil em casos tais (Novo Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2011. v. VI. Direito de Família, p. 137). A propósito, é forçoso lembrar que o abuso de direito é lícito pelo conteúdo e ilícito pelas consequências, conforme conceituava Rubens Limongi França. No caso em questão, percebe-se que a promessa de um casamento futuro é perfeitamente lícita. Mas, se a parte promitente abusar desse direito, ao desrespeitar os citados deveres anexos que decorrem da boa-fé, presente estará o seu dever de indenizar. Anote-se, em complemento, que a regra a respeito do dever de indenizar o ato ilícito continua sendo a responsabilização mediante culpa em sentido amplo, que engloba o dolo e a culpa estrita. Mas, como se sabe, em caso de abuso de direito, a responsabilidade não depende de culpa, pelo que consta do sempre citado Enunciado n. 37 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na I Jornada de Direito Civil. É justamente isso que pode ocorrer na quebra da promessa de noivado ou de casamento futuro em algumas situações. Concluindo, vislumbra-se que a boa-fé objetiva dá um novo tratamento à matéria, pois a quebra de promessa de casamento futuro deve ser encarada como uma quebra dos deveres de lealdade, de transparência e de confiança, ínsitos a qualquer relação jurídica.
Como demonstrado em texto anterior, publicado neste canal, muitos acórdãos da recente jurisprudência brasileira têm afastado a indenização por abandono afetivo, não obstante o seu reconhecimento quando do acórdão prolatado pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça no Recurso Especial 1.159.242/SP, do ano de 2012. Diante desse panorama recente, recomendamos naquele artigo que os pedidos de indenização por abandono afetivo sejam bem formulados, inclusive com a instrução ou realização de prova psicossocial do dano suportado pelo filho. Notamos, também em nossa pesquisa, que muitos dos arestos estão orientados pela afirmação de que não basta a prova da simples ausência de convivência para que caiba a indenização por abandono afetivo. A nossa impressão, conforme as palavras finais do texto, foi no sentido de que a doutrina contemporânea foi bem festiva em relação à admissão da reparação imaterial por abandono afetivo pelo Tribunal da Cidadania. Porém, no âmbito das Cortes Estaduais há certo ceticismo, com numerosos julgados que afastam a indenização. E muitos deles o fazem com base no prazo prescricional a ser aplicado à espécie, o que aqui pretendemos abordar. De início, esclareça-se que, por se tratar de demanda reparatória de danos, o prazo eventualmente aplicado é de prescrição, e não de decadência. Como é cediço, o Código Civil de 2002 acabou por adotar os critérios desenvolvidos por Agnelo Amorim Filho, em clássico estudo sobre os prazos, publicado na Revista dos Tribunais n. 300. Isso foi feito em prol da operabilidade, em um sentido de facilitação dos institutos privados, um dos baluartes principiológicos da codificação em vigor. Seguindo tal orientação, os prazos de prescrição são associados às ações condenatórias, caso das demandas relativas à responsabilidade civil, seja ela contratual ou extracontratual. Já os prazos de decadência associam-se às ações constitutivas positivas ou negativas, como ocorre no reconhecimento de nulidade relativa de um ato ou negócio jurídico, nos termos dos arts. 178 e 179 do Código Civil, sem prejuízo de outras normas que tratam da anulabilidade. Pois bem, a corrente amplamente majoritária entende que o prazo prescricional, em casos tais, é de três anos, afirmando-se a subsunção do prazo especial para a reparação civil, previsto no art. 206, § 3º, inc. V, do Código Civil. No âmbito estadual, numerosos julgados seguem essa vertente, do prazo exíguo, diante de uma suposta subsunção perfeita ao caso concreto. Vejamos cinco deles, dos últimos dois anos e de cada uma das regiões do país. De início, do Tribunal de Justiça do Paraná: "Ação reparatória de danos morais e materiais em razão do homicídio da mãe dos autores e do abandono afetivo em tese praticado pelo requerido. Prescrição. Aplicação do prazo trienal previsto no art. 206, § 3º, V, CCB. Autores absolutamente incapazes à época dos fatos. Início do prazo prescricional com o alcance da maioridade" (TJPR, Apelação cível n. 1601201-4, Ipiranga, Décima Câmara Cível, Relª Desª Ângela Khury Munhoz da Rocha, julgado em 08/06/2017, DJPR 21/07/2017, pág. 130). Do Tribunal de São Paulo: "Incidência do prazo de três anos previsto no artigo 206, § 3º, inciso V, do Código Civil de 2002, em consonância com o artigo 2.028 do mesmo diploma legal" (TJSP, Apelação n. 0013103-59.2012.8.26.0453, Acórdão n. 9425346, Pirajuí, Quinta Câmara de Direito Privado, Rel. Des. A. C. Mathias Coltro, julgado em 04/05/2016, DJESP 17/05/2016). Da região Centro-Oeste, posicionou-se o Tribunal do Distrito Federal no sentido de que "a pretensão indenizatória da autora/recorrente prescreve em três anos, na esteira do art. 206, § 3º, inciso V, do Código Civil. Além disso, fundamenta-se no descumprimento, pelo réu/recorrido, das obrigações inerentes ao poder familiar, incluindo o amparo moral e econômico. Os deveres relativos ao poder familiar cessam com a maioridade plena, ainda que o genitor não os exerça. De fato, a simples alegação de que o requerido/apelado não cumpriria as obrigações relativas ao poder familiar não tem o condão de afastar a incidência da causa suspensiva prevista no art. 197, inciso II, do Código Civil. Sendo assim, resta claro que qualquer pretensão relacionada ao inadimplemento dos deveres inerentes ao poder familiar somente pode ser demandada quando encerrada a causa suspensiva acima mencionada, ou seja, com a maioridade plena do filho ou com a emancipação deste" (TJDF, Apelação cível n. 2015.01.1.064396-6, Acórdão n. 101.8971, Quarta Turma Cível, Rel. Des. Rômulo de Araújo Mendes, julgado em 11/05/2017, DJDFTE 30/05/2017). Seguindo, do Estado da Paraíba, no mesmo sentido: "a pretensão de reparação civil por abandono afetivo nasce quando cessa a menoridade civil do autor, caso a suposta paternidade seja de seu conhecimento desde a infância, estando sujeita ao prazo prescricional de três anos" (TJPB, Recurso n. 0028806-67.2013.815.0011, Quarta Câmara Especializada Cível, Rel. Des. Romero Marcelo da Fonseca Oliveira, DJPB 11/04/2016). Por derradeiro, chegando-se ao Amazonas, tem-se que "a pretensão de indenização por abandono afetivo prescreve em três anos, conforme o prazo estabelecido no art. 206, § 3º, V, do Código Civil, e começa a contar a partir da maioridade do alimentando. No caso concreto deve ser reconhecida a prescrição, porquanto a presente ação foi ajuizada quase sete anos após o autor atingir a maioridade" (TJAM, Apelação n. 0622496-32.2013.8.04.0001, Primeira Câmara Cível, Relª Desª Maria das Graças Pessoa Figueiredo, DJAM 17/08/2017, p. 12). Como se pode perceber, todos os julgados transcritos acabam por concluir que o prazo prescricional de três anos tem início com a maioridade do filho, pois, nos termos do art. 197, inc. II, do Código Civil, não corre a prescrição entre ascendentes e descendentes durante o poder familiar, o que é cessado quando o filho completa dezoito anos, em regra. Esse dispositivo, segundo tal interpretação, deve prevalecer sobre outra, enunciada pelo art. 198, inc. I, da mesma codificação, segundo a qual não corre a prescrição contra os absolutamente incapazes, os menores de dezesseis anos. Sendo assim, o prazo prescricional para o abandono afetivo acaba por vencer quando o filho completa vinte e um anos de idade (18 anos + 3 da prescrição). Entre colegas professores consultados, assim se posicionam Ricardo Calderón, Rodrigo Toscano de Brito, João Ricardo Brandão Aguirre, Maurício Bunazar, Marcelo Truzzi Otero, Eduardo Busatta, Fábio Azevedo, Alexandre Gomide, Maurício Andere Von Bruck Lacerda, Roberto Lima Figueiredo, Marcelo Junqueira Calixto, Marco Aurélio Bezerra de Melo, Fernando Carlos de Andrade Sartori e Marcos Ehrhardt Júnior. No âmbito do STJ existe acórdão da Terceira Turma concluindo exatamente dessa forma: "Indenização por danos morais decorrentes do abandono afetivo. Prescrição. Aplicação do prazo prescricional trienal previsto no artigo 206 § 3º, inciso V, do CC/2002. Precedentes deste Tribunal" (STJ, AREsp 842.666/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJE 29/06/2017). Porém, é preciso aqui fazer uma ressalva, pois, se os fatos tiverem ocorrido na vigência do Código Civil de 1916, há que se aplicar o prazo geral de vinte anos para as ações pessoais, previsto no art. 177 da codificação revogada. Nessa linha, importante precedente da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, segundo o qual "os direitos subjetivos estão sujeitos a violações, e quando verificadas, nasce para o titular do direito subjetivo a faculdade (poder) de exigir de outrem uma ação ou omissão (prestação positiva ou negativa), poder este tradicionalmente nomeado de pretensão. A ação de investigação de paternidade é imprescritível, tratando-se de direito personalíssimo, e a sentença que reconhece o vínculo tem caráter declaratório, visando acertar a relação jurídica da paternidade do filho, sem constituir para o autor nenhum direito novo, não podendo o seu efeito retro-operante alcançar os efeitos passados das situações de direito. O autor nasceu no ano de 1957 e, como afirma que desde a infância tinha conhecimento de que o réu era seu pai, à luz do disposto nos artigos 9º, 168, 177 e 392, III, do Código Civil de 1916, o prazo prescricional vintenário, previsto no Código anterior para as ações pessoais, fluiu a partir de quando o autor atingiu a maioridade e extinguiu-se assim o 'pátrio poder'. Todavia, tendo a ação sido ajuizada somente em outubro de 2008, impõe-se reconhecer operada a prescrição, o que inviabiliza a apreciação da pretensão quanto a compensação por danos morais" (STJ, REsp 1.298.576/RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, 4ª Turma, julgado em 21/08/2012, DJe 06/09/2012). Com o devido respeito às posições expostas, entendo que, em casos de abandono afetivo, não há que se reconhecer qualquer prazo para a pretensão, sendo a correspondente demanda imprescritível. Primeiro, pelo fato de a demanda envolver Direito de Família e estado de pessoas, qual seja a situação de filho. Segundo, por ter como conteúdo o direito da personalidade e fundamental à filiação. Terceiro, porque, no abandono afetivo, os danos são continuados, não sendo possível identificar concretamente qualquer termo a quo para o início do prazo. Em verdade, penso que os casos de abandono afetivo são similares aos casos de responsabilidade civil por tortura, reconhecendo o Superior Tribunal de Justiça, em vários arestos, a imprescritibilidade da pretensão em tais situações. Assim, por exemplo, entre os mais recentes, com citação de outros acórdãos: "as ações indenizatórias por danos morais decorrentes de atos de tortura ocorridos durante o Regime Militar de exceção são imprescritíveis. Inaplicabilidade do prazo prescricional do art. 1º do Decreto 20.910/1932. Precedentes do STJ: AgRg no Ag 1.339.344/PR, Rel. Ministro Herman Benjamin, 2ª Turma, DJe 28.02.2012; AgRg no REsp 1.251.529/PR, Rel. Min. Benedito Gonçalves, 1ª Turma, DJe 01.07.2011" (STJ, AgRg no REsp 1.4981.67/RJ, Rel. Min. Humberto Martins, 2ª Turma, julgado em 18/08/2015, DJe 25/08/2015). Com tom suplementar de ilustração, entre os primeiros precedentes: "o dano noticiado, caso seja provado, atinge o mais consagrado direito da cidadania: o de respeito pelo Estado à vida e de respeito à dignidade humana. O delito de tortura é hediondo. A imprescritibilidade deve ser a regra quando se busca indenização por danos morais consequentes da sua prática" (STJ, REsp 379.414/PR, Rel. Min. José Delgado, DJ 17/02/2003). Em reforço, parece-nos equivocado afirmar que o prazo prescricional, pela feição subjetiva da actio nata, terá início a partir da maioridade do filho postulante. Pela citada teoria, desenvolvida entre nós por Câmara Leal e José Fernando Simão, o prazo prescricional tem início não da lesão ao direito subjetivo, mas do conhecimento da lesão. Diante dessa feição subjetiva da actio nata que não se pode dizer qual o termo a quo para o início do prazo. Os danos são continuados, não cessam, não saem da memória do ofendido, mesmo em se tratando de pessoa com idade avançada. Em outras palavras, o prejuízo é de trato sucessivo, atinge a honra do filho a cada dia, a cada hora, a cada minuto e a cada segundo. Ninguém esquece o desprezo de um pai. Entre os colegas consultados, essa é a opinião de Pablo Malheiros da Cunha Frota, Marcos Jorge Catalan e Cesar Calo Peghini. A respeito do início do prazo, também é preciso fazer uma objeção, adotando-se a posição majoritária pelo prazo prescricional específico. Ora, nem sempre o lapso temporal de três anos será contado da maioridade do filho. Em casos de reconhecimento posterior da paternidade, mais uma vez por aplicação da teoria da actio nata subjetiva, o prazo deve ser contado do trânsito em julgado da decisão que a reconhece, momento em que não há mais dúvida quanto ao vínculo dos envolvidos. Nesse sentido, conforme se retira de recente julgamento do Tribunal Paulista, "no caso dos autos, contudo, a autora apenas soube o nome do pai em 2013, ano em que completou 30 (trinta) anos, quando o réu dela se aproximou pela rede social Facebook. Propositura de ação de reconhecimento da paternidade pela autora embasada em exame de DNA positivo realizado em laboratório particular pelas partes. Início da contagem do prazo prescricional a partir da data do trânsito em julgado da ação de paternidade. Precedente deste Egrégio Tribunal de Justiça de São Paulo" (TJSP, Apelação 1008272-98.2015.8.26.0564, Acórdão n. 9428000, São Bernardo do Campo, Oitava Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Pedro de Alcântara, julgado em 11/05/2016, DJESP 19/05/2016). Como se nota, o julgado admite a possibilidade de indenização por abandono afetivo após a maioridade, o que conta com o meu apoio. Por derradeiro, sendo adotada a corrente pelo prazo de três anos, não se pode ignorar, ainda, a aplicação da regra de Direito Intertemporal do art. 2.028 do CC, in verbis: "serão os da lei anterior os prazos, quando reduzidos por este Código, e se, na data de sua entrada em vigor, já houver transcorrido mais da metade do tempo estabelecido na lei revogada". Desse modo, tendo sido o prazo reduzido de vinte para três anos, transcorrido menos da metade do prazo, deve-se aplicar o novo lapso de três anos, a partir de 11 de janeiro de 2003, data da entrada em vigor do Código Civil de 2002. Sendo assim, várias pretensões reparatórias prescreveram no mesmo dia: 11 de janeiro de 2006, com exceção dos casos dos filhos que ainda não tinham atingido a maioridade nesse período ou cuja maioridade ainda não tenha sido reconhecida. Nesse sentido, transcreve-se: "se a ação de indenização por dano moral decorrente de abandono afetivo foi proposta após o decurso do prazo de três anos de vigência do Código Civil de 2002, é imperioso reconhecer a prescrição da ação. Inteligência do art. 206, § 3º, inc. V, do CCB/2002. O novo Código Civil estabeleceu a redução do prazo prescricional para as ações de reparação civil, tendo incidência a regra de transição posta no art. 2.028 do CCB/2002" (TJRS, Apelação cível n. 283426-62.2013.8.21.7000, Farroupilha, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Sérgio Fernando de Vasconcellos Chaves, julgado em 28/08/2013, DJERS 05/09/2013). Como se pode perceber, muitas peculiaridades técnicas devem ser percebidas, mesmo no caso de adoção do prazo de três anos. O tema do abandono afetivo, assim, apresenta dificuldades jurídicas não só no seu conteúdo, mas também na verificação da existência ou não da suposta pretensão. Em suma, limitações existentes a respeito da prova do dano e do prazo prescricional têm feito que os pedidos de reparação imaterial sejam afastados na grande maioria dos casos levados ao Poder Judiciário.
A responsabilidade civil no Direito de Família projeta-se para além das relações de casamento ou de união estável, sendo possível a sua incidência na parentalidade ou filiação, ou seja, nas relações entre pais e filhos. Uma das situações em que isso ocorre diz respeito à responsabilidade civil por abandono afetivo, também denominado abandono paterno-filial ou teoria do desamor. Trata-se de aplicação do princípio da solidariedade social ou familiar, previsto no art. 3º, inc. I, da Constituição Federal, de forma imediata a uma relação privada, ou seja, em eficácia horizontal. Como explica Rodrigo da Cunha Pereira, precursor da tese que admite tal indenização, "o exercício da paternidade e da maternidade - e, por conseguinte, do estado de filiação - é um bem indisponível para o Direito de Família, cuja ausência propositada tem repercussões e consequências psíquicas sérias, diante das quais a ordem legal/constitucional deve amparo, inclusive, com imposição de sanções, sob pena de termos um Direito acéfalo e inexigível" (Responsabilidade civil por abandono afetivo. In: Responsabilidade civil no direito de família. Coord. Rolf Madaleno e Eduardo Barbosa. São Paulo: Atlas, 2015, p. 401). O jurista também fundamenta a eventual reparabilidade pelos danos decorrentes do abandono na dignidade da pessoa humana, eis que "o Direito de Família somente estará em consonância com a dignidade da pessoa humana se determinadas relações familiares, como o vínculo entre pais e filhos, não forem permeados de cuidado e de responsabilidade, independentemente da relação entre os pais, se forem casados, se o filho nascer de uma relação extraconjugal, ou mesmo se não houver conjugalidade entre os pais, se ele foi planejado ou não. (...) Em outras palavras, afronta o princípio da dignidade humana o pai ou a mãe que abandona seu filho, isto é, deixa voluntariamente de conviver com ele" (PEREIRA, Rodrigo da Cunha. Responsabilidade Civil por abandono afetivo. In: Responsabilidade Civil no Direito de Família, ob. cit., p. 406). Para ele, nesse seu texto mais recente, além da presença de danos morais, pode-se cogitar uma indenização suplementar, pela presença da perda da chance de convivência com o pai. O doutrinador e presidente nacional do IBDFAM atuou na primeira ação judicial em que se reconheceu a indenização extrapatrimonial por abandono filial. Na ocasião, o então Tribunal de Alçada de Minas Gerais condenou um pai a pagar indenização de duzentos salários mínimos a título de danos morais ao filho, por não ter com ele convivido (Apelação Cível n. 408.550-5 da Comarca de Belo Horizonte. Sétima Câmara Cível. Presidiu o julgamento o Juiz José Affonso da Costa Côrtes e dele participaram os Juízes Unias Silva, relator, D. Viçoso Rodrigues, revisor, e José Flávio Almeida, vogal). Filiando-se ao julgado mineiro e à possibilidade de indenização em casos semelhantes também está a Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, uma das maiores juristas deste País na atualidade, expoente não só do Direito de Família, mas também da Responsabilidade Civil. De acordo com as suas lições, "a responsabilidade dos pais consiste principalmente em dar oportunidade ao desenvolvimento dos filhos, consiste principalmente em ajudá-los na construção da própria liberdade. Trata-se de uma inversão total, portanto, da ideia antiga e maximamente patriarcal de pátrio poder. Aqui, a compreensão baseada no conhecimento racional da natureza dos integrantes de uma família quer dizer que não há mais fundamento na prática da coisificação familiar (...). Paralelamente, significa dar a devida atenção às necessidades manifestas pelos filhos em termos, justamente, de afeto e proteção. Poder-se-ia dizer, assim, que uma vida familiar na qual os laços afetivos são atados por sentimentos positivos, de alegria e amor recíprocos em vez de tristeza ou ódio recíprocos, é uma vida coletiva em que se estabelece não só a autoridade parental e a orientação filial, como especialmente a liberdade paterno-filial" (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Os contornos jurídicos da responsabilidade afetiva nas relações entre pais e filhos: além da obrigação legal de caráter material. Disponível em: . Acesso em 21 jun. 2017). Entretanto, como se sabe, o Superior Tribunal de Justiça reformou a primeva decisão do Tribunal de Minas Gerais, afastando o dever de indenizar no caso em questão, diante da ausência de ato ilícito, pois o pai não seria obrigado a amar o filho. Em suma, o abandono afetivo seria situação incapaz de gerar reparação pecuniária (STJ, Recurso Especial 757.411/MG, Relator Ministro Fernando Gonçalves; votou vencido o ministro Barros Monteiro, que não conhecia do recurso. Os Ministros Aldir Passarinho Junior, Jorge Scartezzini e Cesar Asfor Rocha votaram com o Ministro relator. Data do julgamento: 29 de novembro de 2005). De qualquer modo, tal decisão do Tribunal da Cidadania não encerrou o debate quanto à indenização por abandono afetivo, que permanece intenso na doutrina. Cumpre destacar que me posiciono no sentido de existir o dever de indenizar em casos tais, especialmente se houver um dano psíquico ensejador de dano moral, a ser demonstrado por prova psicanalítica. O desrespeito ao dever de convivência é muito claro, eis que o art. 1.634 do Código Civil impõe como atributos do poder familiar a direção da criação dos filhos e o dever de ter os filhos em sua companhia. Além disso, o art. 229 da Constituição Federal é cristalino ao estabelecer que os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores. Violado esse dever e sendo causado o dano ao filho, estará configurado o ato ilícito, nos exatos termos do que estabelece o art. 186 do Código Civil em vigor. Quanto ao argumento de eventual monetarização do afeto, penso que a Constituição Federal encerrou definitivamente tal debate, ao reconhecer expressamente a reparação dos danos morais em seu art. 5º, incs. V e X. Aliás, se tal argumento for levado ao extremo, a reparação por danos extrapatrimoniais não seria cabível em casos como de morte de pessoa da família, por exemplo. A propósito, demonstrando evolução quanto ao tema, surgiu, no ano de 2012, outra decisão do Superior Tribunal de Justiça em revisão à ementa anterior, ou seja, admitindo a reparação civil pelo abandono afetivo. A ementa foi assim publicada por esse Tribunal Superior: "Civil e Processual Civil. Família. Abandono afetivo. Compensação por dano moral. Possibilidade. 1. Inexistem restrições legais à aplicação das regras concernentes à responsabilidade civil e o consequente dever de indenizar/compensar no Direito de Família. 2. O cuidado como valor jurídico objetivo está incorporado no ordenamento jurídico brasileiro não com essa expressão, mas com locuções e termos que manifestam suas diversas desinências, como se observa do art. 227 da CF/1988. 3. Comprovar que a imposição legal de cuidar da prole foi descumprida implica em se reconhecer a ocorrência de ilicitude civil, sob a forma de omissão. Isso porque o non facere, que atinge um bem juridicamente tutelado, leia-se, o necessário dever de criação, educação e companhia - de cuidado -, importa em vulneração da imposição legal, exsurgindo, daí, a possibilidade de se pleitear compensação por danos morais por abandono psicológico. 4. Apesar das inúmeras hipóteses que minimizam a possibilidade de pleno cuidado de um dos genitores em relação à sua prole, existe um núcleo mínimo de cuidados parentais que, para além do mero cumprimento da lei, garantam aos filhos, ao menos quanto à afetividade, condições para uma adequada formação psicológica e inserção social. 5. A caracterização do abandono afetivo, a existência de excludentes ou, ainda, fatores atenuantes - por demandarem revolvimento de matéria fática - não podem ser objeto de reavaliação na estreita via do recurso especial. 6. A alteração do valor fixado a título de compensação por danos morais é possível, em recurso especial, nas hipóteses em que a quantia estipulada pelo Tribunal de origem revela-se irrisória ou exagerada. 7. Recurso especial parcialmente provido" (STJ, REsp 1.159.242/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 24/04/2012, DJe 10/05/2012). Em sua relatoria, a julgadora ressalta, de início, ser admissível aplicar o conceito de dano moral nas relações familiares, sendo despiciendo qualquer tipo de discussão a esse respeito, pelos naturais diálogos entre livros diferentes do Código Civil de 2002. Desse modo, supera-se totalmente a posição firmada no primeiro julgado superior sobre o tema, especialmente o que foi desenvolvido pelo então Ministro Asfor Rocha, da impossibilidade de interação entre o Direito de Família e a Responsabilidade Civil. Para a Ministra Nancy Andrighi, ainda, o dano extrapatrimonial estaria presente diante de uma obrigação inescapável dos pais em dar auxílio psicológico aos filhos. Aplicando a ideia do cuidado como valor jurídico, com fundamento no princípio da afetividade, a julgadora deduz pela presença do ilícito e da culpa do pai pelo abandono afetivo, expondo frase que passou a ser repetida nos meios sociais e jurídicos: "amar é faculdade, cuidar é dever". Concluindo pelo nexo causal entre a conduta do pai que não reconheceu voluntariamente a paternidade de filha havida fora do casamento e o dano a ela causado pelo abandono, a magistrada entendeu por reduzir o quantum reparatório que foi fixado pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, de R$ 415.000,00 (quatrocentos e quinze mil reais) para R$ 200.000,00 (duzentos mil reais). Penso que esse último acórdão proferido pelo Superior Tribunal de Justiça representa correta concretização jurídica do princípio da solidariedade; sem perder de vista a função pedagógica ou de desestímulo que deve ter a responsabilidade civil. Sempre pontuei, assim, que esse último posicionamento deve prevalecer na nossa jurisprudência, visando também a evitar que outros pais abandonem os seus filhos. De todo modo, fazendo uma pesquisa mais atual, posterior ao último aresto superior, notei que há ainda grande vacilação jurisprudencial na admissão da reparação civil por abandono afetivo, com ampla prevalência de julgados que concluem pela inexistência de ato ilícito em casos tais, notadamente pela ausência de prova do dano. Trilhando esse caminho, de acordo com a primeira orientação do Tribunal da Cidadania, na Corte Estadual que despertou o debate, deduziu-se que "por não haver nenhuma possibilidade de reparação a que alude o art. 186 do CC, que pressupõe prática de ato ilícito, não há como reconhecer o abandono afetivo como dano passível de reparação" (TJMG, Apelação Cível n. 1.0647.15.013215-5/001, Rel. Des. Saldanha da Fonseca, julgado em 10/05/2017, DJEMG 15/05/2017). Na mesma linha, sem prejuízo de muitas outras ementas de negação do ilícito: "a pretensão de indenização pelos danos sofridos em razão da ausência do pai não procede, haja vista que para a configuração do dano moral faz-se necessário prática de ato ilícito. Beligerância entre os genitores" (TJRS, Apelação Cível n. 0048476-69.2017.8.21.7000, Teutônia, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Jorge Luís Dall'Agnol, julgado em 26/04/2017, DJERS 04/05/2017). De todo modo, pode ser notada certa confusão técnica no último decisum, pois não é o ilícito que é elemento do dano moral, mas vice-versa. Por outra via, concluindo pela ausência de prova do dano, entendeu o Tribunal de Justiça de São Paulo que "a jurisprudência pátria vem admitindo a possibilidade de dano afetivo suscetível de ser indenizado, desde que bem caracterizada violação aos deveres extrapatrimoniais integrantes do poder familiar, configurando traumas expressivos ou sofrimento intenso ao ofendido. Inocorrência na espécie. Depoimentos pessoais e testemunhais altamente controvertidos. Necessidade de prova da efetiva conduta omissiva do pai em relação à filha, do abalo psicológico e do nexo de causalidade. Alegação genérica não amparada em elementos de prova. Non liquet, nos termos do artigo 373, I, do Código de Processo Civil, a impor a improcedência do pedido" (TJSP, Apelação n. 0006195-03.2014.8.26.0360, Acórdão n. 9689092, Mococa, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. J. B. Paula Lima, julgado em 09/08/2016, DJESP 02/09/2016). Em complemento, e mais recentemente, o Tribunal gaúcho aduziu que "o dano moral exige extrema cautela no âmbito do direito de família, pois deve decorrer da prática de um ato ilícito, que é considerado como aquela conduta que viola o direito de alguém e causa a este um dano, que pode ser material ou exclusivamente moral. Para haver obrigação de indenizar, exige-se a violação de um direito da parte, com a comprovação dos danos sofridos e do nexo de causalidade entre a conduta desenvolvida e o dano sofrido, e o mero distanciamento afetivo entre pais e filhos não constitui, por si só, situação capaz de gerar dano moral" (TJRS, Apelação Cível n. 0087881-15.2017.8.21.7000, Porto Alegre, Sétima Câmara Cível, Relª Desª Liselena Schifino Robles Ribeiro, julgado em 31/05/2017, DJERS 06/06/2017). Na pesquisa que realizei, em junho de 2017, constatei que muitos julgamentos seguem a última frase da ementa, segundo a qual o mero distanciamento físico entre pai e filho não configura, por si só, o ilícito indenizante. Diante desse panorama recente, recomendo que os pedidos de indenização por abandono afetivo sejam bem formulados, inclusive com a instrução ou realização de prova psicossocial do dano suportado pelo filho. Notei que os julgados estão orientados pela afirmação de que não basta a prova da simples ausência de convivência para que caiba a indenização. Acrescente-se que no próprio Superior Tribunal de Justiça existem acórdãos recentes que não admitem a reparação de danos por abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade. Desse modo, julgando "alegada ocorrência de abandono afetivo antes do reconhecimento da paternidade. Não caracterização de ilícito. Precedentes" (STJ, AREsp 1.071.160/SP, Terceira Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJE 19/06/2017). Ou, ainda, "a Terceira Turma já proclamou que antes do reconhecimento da paternidade, não há se falar em responsabilidade por abandono afetivo" (STJ, Agravo Regimental no AREsp n. 766.159/MS, Terceira Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, DJE 09/06/2016). Em suma, parece que a doutrina contemporânea foi bem festiva em relação à admissão da reparação imaterial por abandono afetivo, em especial após o julgamento do REsp 1.159.242/SP, em 2012. Porém, no âmbito da jurisprudência, há certo ceticismo, com numerosos julgados que afastam a indenização. Muitos deles o fazem também com base na existência de prescrição da pretensão, tema a ser tratado no futuro, neste mesmo canal.
A pena de sonegados na sucessão é tratada pelo art. 1.992 do Código Civil brasileiro em vigor, sendo instituída em três hipóteses: a) se o herdeiro não descrever bens no inventário quando estejam em seu poder, ou, com o seu conhecimento, estejam no poder de outrem; b) se o herdeiro omitir bens na colação, a que os deva levar; e c) se o herdeiro deixar de restituir bens, quando tal medida for necessária para a partilha. Como consequência de tais atos, a mesma norma estatui que o herdeiro perderá o direito que sobre os bens sonegados lhe cabiam. Conforme leciona Rubens Limongi França, trata-se de um "instituto complementar à execução da herança que tem por fim prevenir, compor e punir a omissão de bens do espólio, por parte de algum herdeiro, do inventariante ou do testamenteiro" (Instituições de direito civil. São Paulo: Saraiva, 1999, p. 925). Como é notório na civilística, para a imposição dessa séria pena civil, exige-se a presença de dois elementos: um objetivo - qual seja a ocultação dos bens em si - e outro subjetivo - o ato malicioso do ocultador, o seu dolo, a sua intenção de prejudicar os outros herdeiros. A propósito da exigência da presença do dolo para a sonegação serve como ilustração o seguinte decisum superior, entre os mais recentes: "a renitência do meeiro em apresentar os bens no inventário não configura dolo, sendo necessário, para tanto, demonstração inequívoca de que seu comportamento foi inspirado pela fraude. Não caracterizado o dolo de sonegar, afasta-se a pena da perda dos bens (CC, art. 1.992)" (STJ, REsp 1.267.264/RJ, Rel. Ministro JOÃO OTÁVIO DE NORONHA, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/05/2015, DJe 25/05/2015). Em relação ao elemento subjetivo, na doutrina, Euclides de Oliveira, Sebastião Amorim (Inventários e partilhas. 20. ed. São Paulo: Leud, 2006, p. 363), Maria Helena Diniz (Curso de direito civil brasileiro. São Paulo: Saraiva, 2005, v. 6: Direito das sucessões, p. 391), Zeno Veloso (Comentários ao novo Código Civil. Rio de Janeiro: Forense, 2003, v. 21, p. 398), Dimas Messias de Carvalho e Dimas Daniel de Carvalho (Direito das sucessões. Belo Horizonte: Del Rey, 2012, v. III, p. 287-288) entendem pela necessidade da prova do dolo por quem alega a ocultação. Essa também é a posição doutrinária deste autor, em obra sobre o tema (TARTUCE, Flávio. Direito civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, v. 6: Direito das sucessões, p. 584). Essa posição, além de prevalecer na doutrina, também é amplamente majoritária na jurisprudência nacional. Nesse sentido, do Tribunal da Cidadania: "Sonegados. Sobrepartilha. Interpelação do herdeiro. Prova do dolo. A ação de sonegados não tem como pressuposto a prévia interpelação do herdeiro, nos autos do inventário. Se houver a arguição, a omissão ou a negativa do herdeiro caracterizará o dolo, admitida prova em contrário. Inexistindo arguição nos autos do inventário, a prova do dolo deverá ser apurada durante a instrução. Admitido o desvio de bens, mas negado o dolo, não é aplicável a pena de sonegados, mas os bens devem ser sobrepartilhados. Ação parcialmente procedente. Recurso conhecido e provido em parte" (STJ, REsp 163.195/SP, 4ª Turma, Rel. Min. Ruy Rosado de Aguiar, j. 12/05/1998, DJ 29/6/1998, p. 217). Não discrepa a posição desta Corte Estadual, afastando a caracterização do ato de sonegação se a outra parte não faz tal comprovação da intenção de fraudar. Nesse sentido, a ilustrar, entre muitos acórdãos: "Apelação. Ação de sonegados. Preliminar de nulidade afastada. Não comprovada a interpelação do réu para declarar os bens ditos como sonegados. Um dos bens está relacionado no inventário. Outros bens são litigiosos e quanto a eles não há que se falar em sonegação, devendo submeter-se à sobrepartilha caso depois passem a integrar o espólio (art. 1.040, inc. III, do CPC). (...). Não demonstrado, contudo, que houve dolo, sendo este imprescindível para a aplicação da pena de sonegados. Sentença mantida por seus próprios fundamentos (art. 252 do RITJSP). Recurso desprovido" (TJSP, Apelação 0097075-45.2000.8.26.0000, Acórdão 5551413, 7ª Câmara de Direito Privado, Ribeirão Preto, Rel. Des. Gilberto de Souza Moreira, j. 14/09/2011, DJESP 07/12/2011). "AÇÃO DE SONEGADOS. IMPROCEDÊNCIA COM IMPOSIÇÃO DE CONDUTA DE MÁ-FÉ. INCONFORMISMO. ACOLHIMENTO EM PARTE. AUSÊNCIA DE PROVA DO DOLO NA SONEGAÇÃO, CAPAZ DE JUSTIFICAR A IMPOSIÇÃO DA PENALIDADE CORRESPONDENTE. Sonegação, no entanto, que ocorreu, justificando, ao menos em tese, a propositura da demanda, sem que se possa vislumbrar conduta reprovável ou de dano processual. Litigância de má-fé afastada. Verba honorária reduzida, em atenção à simplicidade da causa e da prova e aos termos do art. 20, §§ 4º e 3º, do CPC. Sentença modificada em parte. Recurso provido em parte" (TJSP, Apelação com revisão n. 201.564.4/3, Acórdão n. 3511173, Assis, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Grava Brasil, julgado em 03/03/2009, DJESP 07/04/2009). Como não poderia ser diferente, tal interpretação deve guiar a incidência do art. 1.993 do Código Civil, ao estabelecer que, se o sonegador for o próprio inventariante, será ele removido da inventariança. O ônus dessa prova, por óbvio, também cabe a quem alega, nos termos do art. 373, inciso I, do CPC/2015, correspondente ao art. 333, inciso I, do CPC/1973. No que concerne aos procedimentos, Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim ensinam que a sonegação deve ser arguida nos próprios autos do inventário e "havendo apresentação do bem, serão aditadas as declarações, para o regular seguimento do processo. Mas se persistir a recusa, a controvérsia haverá de ser resolvida em vias próprias, por meio da ação de sonegados" (Inventário e partilha. Teoria e prática. 24. ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 343). Como defendo em sede doutrinária, essa posição deve ser mantida na vigência do Novo CPC, pois de acordo com a instrumentalidade e a facilitação retiradas do Estatuto Processual emergente (TARTUCE, Flávio. Direito civil. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2017, v. 6: Direito das sucessões, p. 587). Na grande maioria das vezes, no sistema anterior, estar-se-ia diante de uma questão de alta indagação, o que justificaria a ação específica. Concluindo dessa maneira, a ilustrar, vejamos outro aresto do Superior Tribunal de Justiça, do ano de 2013: "Direito civil. Direito processual civil. 1) Ação ordinária de colação e sonegados. Depósito expressivo em caderneta de poupança conjunta do de cujus com herdeiros. Apropriação pelos herdeiros mediante a saída do de cujus da titularidade da conta. Valor não levado pelos herdeiros à partilha no inventário. Ação de colação de sonegados procedente. 2) Julgamento por vara cível, a que remetidos os autos pelo juízo do inventário, por decisão irrecorrida. Questão de alta indagação ou dependente de provas. Inexistência de nulidade no julgamento pela vara cível. Ausência de prejuízo. 3) Ação ordinária de colação adequada. 4) Preclusão de homologação inexistente. Partilha amigável que não impede de colação de bens sonegados. 5) Recurso especial improvido. 1. Devem ser relacionados no inventário valores vultosos de caderneta de poupança conjunta, mantida por herdeiros com o de cujus, ante a retirada deste da titularidade da conta, permanecendo o valor, não trazido ao inventário, em poder dos herdeiros. 2. Válido o julgamento da matéria obrigacional, antecedente do direito à colação, de alta indagação e dependente de provas, por Juízo de Vara Cível, para o qual declinada, sem recurso, a competência, pelo Juízo do Inventário. Matéria, ademais, não cognoscível por esta Corte (Súmula 280/STF). 3. Ação de colação adequada, não se exigindo a propositura, em seu lugar, de ação de sobrepartilha, consequência do direito de colação de sonegados cujo reconhecimento é antecedente necessário da sobrepartilha. 4. O direito à colação de bens do de cujus em proveito de herdeiros necessários subsiste diante da partilha amigável no processo de inventário, em que omitida a declaração dos bens doados inoficiosamente e que, por isso, devem ser colacionados. 5. Recurso especial improvido" (STJ, REsp 1.343.263/CE, 3ª Turma, Rel. Min. Sidnei Beneti, j. 4/4/2013, DJe 11/4/2013). Não se olvide que o Código de Processo Civil de 2015 não faz mais menção às questões de alta indagação no seu art. 612, correspondente ao antigo art. 984 do CPC/1973. O dispositivo em vigor expressa apenas as questões que dependerem de outras provas, além da documental. Sendo assim, se a ação de sonegados demandar um aprofundamento da questão probatória, com a necessidade de oitiva de testemunhas e realização de perícias, haverá necessidade de uma ação específica, agora pelo procedimento comum, devendo, assim, a questão ser analisada sob a ótica do Estatuto Processual emergente. No mais, aquele antigo entendimento jurisprudencial deve ser mantido, com as devidas adaptações das expressões. A encerrar, cabe pontuar que a remoção da inventariante em decorrência da pena de sonegados deve ser somente admitida em casos excepcionais, desde que o elemento malicioso da sua configuração esteja presente, e devidamente provado. Em outras palavras, não havendo provas efetivas do ato subjetivo de ocultação em sede de inventário, e sendo tal fato dependente de provas complexas, não poderá ser admitida a drástica medida. O que quase sempre querem as partes de um inventário é o seu encerramento e não a existência de disputas intermináveis, aumentando-se gravemente a litigiosidade se a remoção da inventariante for feita sem critérios, o que muitas vezes se vê na prática, infelizmente.
Finalmente, o Supremo Tribunal Federal encerrou, no último dia 10 de maio de 2017, o julgamento sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil. Após pedido de vistas do ministro Marco Aurélio, dois processos foram julgados em definitivo, ambos com repercussão geral (temas 498 e 809). O primeiro deles foi o recurso extraordinário 878.694/MG (Tema 809), que teve como relator o ministro Luís Roberto Barroso. Tal julgamento teve início em agosto de 2016, já havendo desde então sete votos pela inconstitucionalidade da norma, na linha do proposto pela relatoria. Votaram nesse sentido os ministros Luiz Edson Fachin, Teori Zavascki, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e Cármen Lúcia, além do próprio ministro Barroso. Após pedido de vistas do ministro Dias Toffoli, o processo retomou seu destino neste ano de 2017, tendo esse último julgador concluído pela constitucionalidade da norma, pois haveria justificativa constitucional para o tratamento diferenciado entre o casamento e a união estável (voto prolatado no último dia 30 de março). O ministro Marco Aurélio pediu novas vistas, unindo também o julgamento do recurso extraordinário 646.721/RS, que tratava da sucessão de companheiro homoafetivo, do qual era relator, justamente o segundo processo (Tema 498). Em maio de 2017 foram retomados os julgamentos das duas demandas, iniciando-se pela última. Para começar, o ,ministro Marco Aurélio apontou não haver razão para a distinção entre a união estável homoafetiva e a união estável heteroafetiva, na linha do que fora decidido pela Corte quando do julgamento da ADPF 132/RJ, em 2011. Porém, no que concerne ao tratamento diferenciado da união estável diante do casamento, asseverou não haver qualquer inconstitucionalidade, devendo ser preservado o teor do art. 1.790 do Código Civil, na linha do que consta do art. 226, § 3º do Texto Maior que, o tratar da conversão da união estável em casamento, reconheceu uma hierarquia entre as duas entidades familiares. Ao final, restou vencido, prevalecendo a posição dos Ministros Luís Roberto Barroso, Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello, Cármen Lúcia e Alexandre de Moraes. Frise-se que o último julgador não votou no processo anterior - pois ainda era magistrado o Ministro Teori Zavascki -, mas prolatou sua visão na demanda envolvendo a sucessão homoafetiva. Com o Relator, apenas votou o Ministro Ricardo Lewandowski, que adotou a premissa in dubio pro legislatore. Assim, o placar do julgamento do Tema 498 foi de 8 votos a 2, ausente o ministro Dias Tofolli. Conforme consta da publicação inserida no Informativo n. 864 da Corte, "o Supremo Tribunal Federal (STF) afirmou que a Constituição prevê diferentes modalidades de família, além da que resulta do casamento. Entre essas modalidades, está a que deriva das uniões estáveis, seja a convencional, seja a homoafetiva. Frisou que, após a vigência da Constituição de 1988, duas leis ordinárias equipararam os regimes jurídicos sucessórios do casamento e da união estável (Lei 8.971/1994 e Lei 9.278/1996). O Código Civil, no entanto, desequiparou, para fins de sucessão, o casamento e as uniões estáveis. Dessa forma, promoveu retrocesso e hierarquização entre as famílias, o que não é admitido pela Constituição, que trata todas as famílias com o mesmo grau de valia, respeito e consideração. O art. 1.790 do mencionado código é inconstitucional, porque viola os princípios constitucionais da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade na modalidade de proibição à proteção deficiente e da vedação ao retrocesso". Quanto ao processo original, o que iniciou o julgamento da questão (RE 878.694/MG) apenas se confirmou o que estava consolidado desde o ano passado, entendendo pela constitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil os Ministros Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski, e mantendo-se a coerência de posições com a demanda anterior. Neste primeiro processo, o placar foi de 8 a 3, portanto (Tema 809). Mais uma vez, conforme consta do Informativo 864 do STF, "o Supremo Tribunal Federal afirmou que a Constituição contempla diferentes formas de família, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável. Portanto, não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada por casamento e a constituída por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares mostra-se incompatível com a Constituição. O art. 1.790 do Código Civil de 2002, ao revogar as leis 8.971/1994 e 9.278/1996 e discriminar a companheira (ou companheiro), dando-lhe direitos sucessórios inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade da pessoa humana, da proporcionalidade na modalidade de proibição à proteção deficiente e da vedação ao retrocesso". Por fim, ficou destacado que, com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento sobre a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil deve ser aplicado apenas aos inventários judiciais em que a sentença de partilha não tenha transitado em julgado e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. A tese final firmada, para os devidos fins de repercussão geral, foi aquela conhecida desde o ano passado: "no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a diferenciação de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no artigo 1.829 do Código Civil". Relembro que sempre estive filiado à corrente que via inconstitucionalidade apenas no inciso III do art. 1.790 do Código Civil, por colocar o convivente em posição de desprestígio ante os ascendentes e colaterais até o quarto grau, recebendo um terço do que esses recebessem. Aliás, alguns Tribunais Estaduais tinham reconhecido a inconstitucionalidade desse último diploma, por meio do seu Órgão Especial, caso do Tribunal de Justiça do Paraná e do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. Entretanto, reitero que o momento é de aceitar a decisão do STF, conforme expunham dois dos nossos grandes sucessionistas, os Professores Zeno Veloso e Giselda Hironaka, citados no julgamento. A principal vantagem do decisum é resolver a grande instabilidade jurídica sucessória verificada no Brasil desde a vigência do Código Civil de 2002, colocando fim a debates sobre a inconstitucionalidade ou não do art. 1.790 do Código Civil. Assim, tendo sido esse o julgamento final, como ficam os processos de inventário em curso? E os novos processos? Como devem ser elaboradas as escrituras públicas de inventários pendentes em Tabelionatos de Notas de todo o país? O companheiro passa a ser herdeiro necessário? A equiparação entre a união estável e o casamento é para todos os fins sucessórios? Atinge também todos os fins familiares? E agora? Tentaremos aqui responder tais dúvidas, pelo menos brevemente. De início, tendo prevalecido essa forma de julgar, além da retirada do sistema do art. 1.790 do Código Civil, o companheiro passa a figurar ao lado do cônjuge na ordem de sucessão legítima (art. 1.829). Desse modo, concorre com os descendentes o que depende do regime de bens adotado. Concorre também com os ascendentes o que independe do regime. Na falta de descendentes e de ascendentes, o companheiro recebe a herança sozinho, como ocorre com o cônjuge, excluindo os colaterais até o quarto grau (irmãos, tios, sobrinhos, primos, tios-avôs e sobrinhos-netos). Ressalto que tenho visto na imprensa várias notícias fazendo cálculos equivocados da divisão patrimonial, sem levar em conta o regime de bens adotado no casamento, o que é fundamental não só para a meação, como também para a sucessão, pelo que consta o primeiro inciso da última norma. Na publicação do acórdão foi mantida a modulação dos efeitos reconhecida em 2016, sem qualquer ressalva, apesar de debates no julgamento final. Conforme o voto do Ministro Barroso, "é importante observar que o tema possui enorme repercussão na sociedade, em virtude da multiplicidade de sucessões de companheiros ocorridas desde o advento do CC/2002. Assim, levando-se em consideração o fato de que as partilhas judiciais e extrajudiciais que versam sobre as referidas sucessões encontram-se em diferentes estágios de desenvolvimento (muitas já finalizadas sob as regras antigas), entendo ser recomendável modular os efeitos da aplicação do entendimento ora afirmado. Assim, com o intuito de reduzir a insegurança jurídica, entendo que a solução ora alcançada deve ser aplicada apenas aos processos judiciais em que ainda não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, assim como às partilhas extrajudiciais em que ainda não tenha sido lavrada escritura pública" (STF, recurso extraordinário 878.694/MG, relator ministro Luís Roberto Barroso). Em suma, a tese da repercussão geral aplica-se, sim, aos processos de inventário em curso, desde que não haja decisão transitada em julgado, sem pendência de recurso. Por outra via, em havendo sentença ou acórdão aplicando o art. 1.790 da codificação material, esse deve ser revisto em superior instância, com a subsunção do art. 1.829 do Código Civil. Em relação aos inventários extrajudiciais pendentes, as escrituras públicas devem ser elaboradas com o novo tratamento dado pela nossa Corte Máxima. Em todos esses casos, as afirmações valem desde que a sucessão tenha sido aberta a partir de 11 de janeiro de 2003, conforme determina o art. 2.041 do Código Civil de 2002, in verbis: "as disposições deste Código relativas à ordem da vocação hereditária (arts. 1.829 a 1.844) não se aplicam à sucessão aberta antes de sua vigência, prevalecendo o disposto na lei anterior (lei3.071, de 1º de janeiro de 1916)". Apesar do alerta anterior feito por parte da doutrina, algumas questões ficaram pendentes no julgamento do STF. A primeira delas diz respeito à inclusão ou não do companheiro como herdeiro necessário no art. 1.845 do Código Civil, outra tormentosa questão relativa ao Direito das Sucessões e que tem numerosas consequências. O julgamento nada expressa a respeito da dúvida. Todavia, lendo os votos prevalecentes, especialmente o do Relator do primeiro processo, a conclusão parece ser positiva. Como consequências, alguns efeitos podem ser destacados. Vejamos apenas três deles, pela dimensão inicial deste artigo: a) incidência das regras previstas entre os arts. 1.846 e 1.849 do CC/2002 para o companheiro, o que gera restrições na doação e no testamento, uma vez que o convivente deve ter a sua legítima protegida, como herdeiro reservatário; b) o companheiro passa a ser incluído no art. 1.974 do Código Civil, para os fins de rompimento de testamento, caso ali também se inclua o cônjuge; c) o convivente tem o dever de colacionar os bens recebidos em antecipação (arts. 2.002 a 2.012 do CC), sob pena de sonegados (arts. 1.992 a 1.996), caso isso igualmente seja reconhecido ao cônjuge. No que concerne ao direito real de habitação do companheiro, também não mencionado nos julgamentos, não resta dúvida da sua existência, na linha do que vinham reconhecendo a doutrina e a jurisprudência superior. Nesse sentido, entre os acórdãos mais recentes: "o Código Civil de 2002 não revogou as disposições constantes da lei 9.278/96, subsistindo a norma que confere o direito real de habitação ao companheiro sobrevivente diante da omissão do Código Civil em disciplinar tal matéria em relação aos conviventes em união estável, consoante o princípio da especialidade" (STJ, AgRg no REsp 1.436.350/RS, Rel. ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 12/04/2016, DJe 19/4/2016). Mas qual a extensão desse direito real de habitação ao companheiro? Terá o direito porque subsiste no sistema o art. 7º, parágrafo único, da lei 9.278/1996, na linha do último julgado? Ou lhe será reconhecido esse direito real de forma equiparada ao cônjuge, por força do art. 1.831 do Código Civil? Como é notório, os dois dispositivos têm conteúdos distintos. O Supremo Tribunal Federal não enunciou expressamente essa questão, apesar de tender à última resposta, cabendo à doutrina e à própria jurisprudência ainda resolvê-la. Por derradeiro, a equiparação feita pelo STF também inclui os devidos fins familiares sendo, portanto, total? Há quem entenda que sim, caso de José Fernando Simão e Mário Luiz Delgado, para os quais a união estável passa a ser um casamento forçado. Lembro, como sempre pontuo, que o Novo Código de Processo Civil já fez essa equiparação, para quase todos os fins processuais. Apesar de ser uma posição louvável - retirada notadamente do voto do Ministro Barroso -, penso que devemos dar tempo ao tempo, como tem pontuado Giselda Hironaka em suas exposições sobre o assunto. A propósito, surge corrente respeitável, encabeçada por Anderson Schreiber e outros, no sentido de haver equiparação somente para os fins de normas de solidariedade, caso das regras sucessórias, de alimentos e de regime de bens. Em relação às normas de formalidade, como as relativas à existência formal da união estável e do casamento, aos requisitos para a ação de alteração do regime de bens do casamento (art. 1.639, § 2º do CC e art. 734 do CPC) e às exigências de outorga conjugal, a equiparação não deve ser total. Confesso que essa última e novel posição tem me seduzido. De toda sorte, vejamos qual será o rumo que a civilística brasileira tomará nos próximos anos. Como se pode perceber, os julgamentos do Supremo Tribunal Federal resolveram um aspecto importante, qual seja a retirada do art. 1.790 do Código Civil do sistema sucessionista nacional. Porém, alguns rastros ficaram. Temos algumas pistas, mas não o caminho definitivo para todos os problemas.