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Família e Sucessões

Desafios contemporâneos do direito de família e sucessões.

Flávio Tartuce
Com grande repercussão para a prática, a lei 8.009/90 consagra regras específicas quanto à proteção do bem de família legal, prevendo o seu art. 1º que "o imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, é impenhorável e não responderá por qualquer tipo de dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas hipóteses previstas na lei". Trata-se de importante norma de ordem pública que protege pela impenhorabilidade tanto a família quanto a pessoa humana, notadamente o seu direito fundamental à moradia, previsto no art. 6º da CF/88. Sendo norma cogente ou de ordem pública, as exceções à impenhorabilidade do bem de família legal seriam apenas as previstas no rol taxativo ou numerus clausus do seu art. 3º, envolvendo as seguintes hipóteses: a) pelo titular do crédito decorrente de financiamento destinado à construção ou aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos decorrentes do contrato, o que está justificado pelo fato de a dívida ter origem na própria existência da coisa; b) pelo credor de pensão alimentícia, seja ela decorrente de alimentos convencionais, legais - de Direito de Família - ou indenizatórios - nos termos do art. 948, inc. II, do CC -, o que se fundamenta na subsistência dos respectivos credores; c) para a cobrança de impostos, predial ou territorial, taxas e contribuições devidos em relação ao imóvel familiar, presentes nesta exceção obrigações propter rem ou ambulatórias, o que inclui as dívidas de condomínio, como já decidiu o Supremo Tribunal Federal (RE n. 439.003/SP, relator ministro Eros Grau, julgado em 6/2/07); d) para a execução de hipoteca sobre o imóvel, oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar, sempre no interesse de ambos ou de sua família, tão somente (STJ, EAREsp. 848.498/PR, 2ª seção, relator ministro Luis Felipe Salomão, j. 25/4/18, DJe 7/6/18); e) no caso de o imóvel ter sido adquirido como produto de crime ou para a execução de sentença penal condenatória de ressarcimento, indenização ou perdimento de bens; e f) por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação de imóvel urbano, exceção que foi introduzida pelo art. 82 da lei 8.245/91 e que não estava originalmente na lei 8.009/90. A última previsão de quebra da impenhorabilidade tem sido debatida de forma intensa por doutrina e jurisprudência desde o surgimento do texto legal, sendo forte o argumento de sua inconstitucionalidade, o que ainda me convence. Na primeira vez que a discussão chegou ao STF, no ano de 2005, o ministro Carlos Velloso proferiu decisão monocrática, reconhecendo que "o direito à moradia, estabelecido no art. 6º, C.F., é um direito fundamental de 2ª geração - direito social que veio a ser reconhecido pela EC 26/00". Assim, "o bem de família - a moradia do homem e sua família - justifica a existência de sua impenhorabilidade: lei 8.009/90, art. 1º. Essa impenhorabilidade decorre de constituir a moradia um direito fundamental. Posto isso, veja-se a contradição: a lei 8.245/91, excepcionando o bem de família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva trazida pela lei 8.245/91, inciso VII do art. 3º, feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se do velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo do inciso VII do art. 3º, acrescentado pela lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26/00" (STF, RE 352.940/SP, relator ministro Carlos Velloso, julgado em 25/4/05). No meu entender, o principal argumento pela inconstitucionalidade da regra em estudo está associado à lesão ao princípio da igualdade material ou isonomia, retirado do art. 5º, caput, da CF/88, seja qual for a modalidade de locação, residencial ou não. Isso porque, reconhecida a sua penhorabilidade, o fiador perde o bem de família, enquanto o locatário, que é o devedor principal da relação jurídica, não. Entretanto, o plenário do STF analisou o tema em 8/2/06 e, por maioria de votos, entendeu ser constitucional a previsão do art. 3º, inc. VII, da lei 8.009/90. Segundo o relator da decisão, ministro Cezar Peluso, a norma é clara ao prever a possibilidade de penhora do imóvel de residência de fiador de locação de imóvel urbano, sendo essa regra inafastável. Entendeu, ainda, que a pessoa tem a plena liberdade de querer ou não assumir a condição de fiadora, devendo subsumir a norma infraconstitucional se assim o fizer, não havendo qualquer lesão à isonomia constitucional, ao contrário do entendimento do ministro Carlos Velloso. Por fim, sustentou que o dispositivo protege o mercado imobiliário, devendo ter aplicação plena, nos termos do art. 170 da CF/88. Votaram com ele os ministros Joaquim Barbosa, Gilmar Mendes, Ellen Gracie, Marco Aurélio, Sepúlveda Pertence e Nelson Jobim. A votação não foi unânime, pois entenderam pela inconstitucionalidade do comando legal os ministros Eros Grau, Ayres Britto e Celso de Mello (STF, RE 407.688/SP, Tribunal Pleno, relator ministro Cezar Peluso, julgado em 8/2/06). Apesar dessa decisão superior, surgiram vários acórdãos estaduais de desobediência, concluindo na linha do entendimento minoritário. Como reação a esse movimento, o STJ editou, em outubro de 2015, a sua súmula 549, estabelecendo que "é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação". A ementa parecia ter encerrado o debate, diante da força vinculativa das súmulas dos Tribunais Superiores, reconhecida em vários dispositivos do CPC. Ledo engano. A demonstrar a instabilidade a respeito do tema, em 2018 surgiu nova decisão da 1ª turma do STF concluindo pela inconstitucionalidade da previsão a respeito da penhora do bem de família do fiador em casos envolvendo locação comercial, retomando-se as afirmações do ministro Carlos Velloso (RE 605.709/SP). Acrescentou a ministra relatora, Rosa Weber, que na locação comercial não haveria justificativa para que "o devedor principal, afiançado, goze de situação mais benéfica do que a conferida ao fiador (garante), sobretudo porque tal disparidade de tratamento, ao contrário do que se verifica na locação de imóvel residencial, não se presta à promoção do próprio direito fundamental à moradia". E mais, complementou que, "no caso de locação comercial, a imposição de restrições ao direito fundamental à moradia do fiador, por meio da penhora do único imóvel destinado à sua residência, tampouco se justifica sob o ângulo da proporcionalidade. A uma, porque a medida não é necessária, ante a existência de instrumentos outros suscetíveis de viabilizar a garantia da satisfação do crédito do locador de imóvel comercial, notadamente caução, seguro de fiança locatícia e cessão fiduciária de quotas de fundos de investimento (art. 37 da lei 8.245/91). A duas, porque conjecturas meramente teóricas, sobre a dificuldade ou a onerosidade na prestação de outras modalidades de garantia ou, ainda, sobre empecilho na obtenção de fiadores com mais de um imóvel, não legitimam, segundo compreendo, o sacrifício do direito fundamental à moradia em nome de projetada promoção da livre iniciativa". Vejamos a sua publicação no informativo 906 da Corte Suprema, em que constam os argumentos dos votos vencidos: "Impenhorabilidade do bem de família e contratos de locação comercial. Não é penhorável o bem de família do fiador, no caso de contratos de locação comercial. Com base neste entendimento, a 1ª turma, por maioria e em conclusão de julgamento, deu provimento a recurso extraordinário em que se discutia a possibilidade de penhora de bem de família do fiador em contexto de locação comercial. Vencidos os Ministros Dias Toffoli (relator) e Roberto Barroso que negaram provimento ao recurso. Ressaltaram que o Supremo Tribunal Federal pacificou o entendimento sobre a constitucionalidade da penhora do bem de família do fiador por débitos decorrentes do contrato de locação. A lógica do precedente é válida também para os contratos de locação comercial, na medida em que - embora não envolva o direito à moradia dos locatários - compreende o seu direito à livre-iniciativa. A possibilidade de penhora do bem de família do fiador - que voluntariamente oferece seu patrimônio como garantia do débito - impulsiona o empreendedorismo, ao viabilizar a celebração de contratos de locação empresarial em termos mais favoráveis. Por outro lado, não há desproporcionalidade na exceção à impenhorabilidade do bem de família (lei 8.009/90, art. 3º, VII ). O dispositivo legal é razoável ao abrir a exceção à fiança prestada voluntariamente para viabilizar a livre-iniciativa" (STF, RE 605.709/SP, relator ministro Dias Toffoli, Red. p/ Ac. ministra Rosa Weber, j. 12/6/18). Outros arestos surgiram na mesma linha no STF e, diante disso, reconheceu-se a necessidade de pacificação da matéria, em sede de repercussão geral (tema 1.127). Em 8/3/22, encerrou-se o seu julgamento virtual e, por 7 votos a 4, o STF confirmou a sua posição anterior, de constitucionalidade do art. 3º, inc. VII, da lei 8.009/90, mesmo em se tratando de locação comercial garantida por fiança, sendo penhorável o bem de família do fiador em casos tais (RE 1.307.334). Prevaleceu o entendimento do relator, ministro Alexandre de Moraes, que retomou argumentos antes aduzidos pelo ministro Cezar Peluso. Assim, pontuou não haver lesão ao direito de moradia do fiador, que voluntariamente exerce atributo do direito de propriedade ao oferecer seus bens em garantia, por força da fiança. Pensar o contrário, segundo ele, também violaria os princípios da boa-fé objetiva e da livre-iniciativa. Ademais, o art. 3º, inc. VII, da lei 8.009/90 não faz qualquer distinção entre a locação residencial e a comercial. Também foram utilizados argumentos econômicos, no sentido de que a impenhorabilidade do bem do fiador no contrato de locação comercial acabaria sendo um desestímulo aos pequenos empreendedores. Tal posição foi acompanhada pelos ministros Luís Roberto Barros, Dias Toffoli, Nunes Marques, Gilmar Mendes, André Mendonça e Luiz Fux. Em sentido contrário votaram os ministros Luiz Edson Fachin, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. De toda sorte, como temática principal deste breve texto, nota-se que a constitucionalidade da previsão foi novamente reconhecida pelo STF tão somente para os casos de fiança ou caução fidejussória, hipótese em que o fiador assume a condição de responsável frente ao credor, com todos os seus bens, sem que a dívida seja sua. Melhor explicando, o fiador tem responsabilidade sem débito (Haftung ohne Schuld). Tal conclusão é retirada do art. 818 do CC/02, segundo o qual, "pelo contrato de fiança, uma pessoa garante satisfazer ao credor uma obrigação assumida pelo devedor, caso este não a cumpra". Há, assim, uma garantia pessoal, em que todo o patrimônio do fiador, como premissa geral, está vinculado à dívida, o que inclui o seu bem de família, em caso de fiança locatícia regida pela lei 8.245/91. Nesse contexto, observe-se que o fiador não "dá bem em garantia", como ocorre na hipoteca ou na caução. Repise-se que todo o seu patrimônio está vinculado à dívida. Isso fica claro pelo teor do art. 37 da lei 8.245/91, que, ao tratar das garantias locatícias, traz previsões diferentes a respeito da fiança e da caução. Conforme o dispositivo legal, "no contrato de locação, pode o locador exigir do locatário as seguintes modalidades de garantia: I - caução; II - fiança; III - seguro de fiança locatícia; IV - cessão fiduciária de quotas de fundo de investimento". E, consoante o seu parágrafo único, a confirmar essa separação de garantias, é vedada, sob pena de nulidade, mais de uma das modalidades de garantia num mesmo contrato de locação. Igualmente a demonstrar que a caução não se confunde com a fiança, o art. 38 da lei 8.245/91 estabelece que a primeira "poderá ser em bens móveis ou imóveis". Em se tratando de caução de bens móveis, "deverá ser registrada em cartório de títulos e documentos; a em bens imóveis deverá ser averbada à margem da respectiva matrícula" (§ 1º). A caução em dinheiro, também muito comum na prática, e "que não poderá exceder o equivalente a três meses de aluguel, será depositada em caderneta de poupança, autorizada, pelo Poder Público e por ele regulamentada, revertendo em benefício do locatário todas as vantagens dela decorrentes por ocasião do levantamento da soma respectiva" (§ 2º). Por fim, "a caução em títulos e ações deverá ser substituída, no prazo de trinta dias, em caso de concordata - leia-se, na atualidade, de recuperação judicial -, falência ou liquidação das sociedades emissoras" (§ 3º do art. 38 da lei 8.245/91). Exatamente no sentido de diferenciar a caução - sobretudo de bem imóvel - da fiança locatícia, a jurisprudência do STJ, nas suas 3ª e 4ª turmas, acabou por pacificar o entendimento de que a exceção prevista no art. 3º, inc. VII, da lei 8.245/91 não se aplica aos casos em que um bem imóvel é dado em garantia, seja pelo locatário seja por terceiro. Acrescente-se que também não há que se falar em hipoteca, prevista no inciso V do mesmo comando, pois a caução também não se confunde com essa garantia real. Nesse sentido, conforme decidiu a 3ª turma da Corte, "em se tratando de caução, em contratos de locação, não há que se falar na possibilidade de penhora do imóvel residencial familiar" (STJ, REsp 1.887.492/SP, relator ministra Nancy Andrighi, 3ª turma, julgado em 13/4/21, DJe 15/4/21). Conforme o preciso voto da ministra relatora, que tem o meu total apoio doutrinário, "o fato de a recorrente ter dado o imóvel em caução não é suficiente para afastar a proteção da impenhorabilidade. Isso porque, cumpre repisar, essa hipótese não está contemplada nas exceções previstas na norma de regência e já mencionadas, sendo certo que a oferta do imóvel em caução de contrato de locação não se confunde com a garantia hipotecária de que trata o art. 3º, V, da lei 8.009/90". Influenciado por esse decisum surgiram outros arestos, da mesma turma. Deste ano de 2022, destaco julgado da 4ª turma do STJ no mesmo sentido, aduzindo que "o escopo da lei 8.009/90 não é proteger o devedor contra suas dívidas, mas sim a entidade familiar no seu conceito mais amplo, razão pela qual as hipóteses permissivas da penhora do bem de família, em virtude do seu caráter excepcional, devem receber interpretação restritiva. Precedentes. (...). O benefício conferido pela mencionada lei é norma cogente, que contém princípio de ordem pública, motivo pelo qual o oferecimento do bem em garantia, como regra, não implica renúncia à proteção legal, não sendo circunstância suficiente para afastar o direito fundamental à moradia, corolário do princípio da dignidade da pessoa humana. Precedentes". E mais, aduziu-se que "a caução levada a registro, embora constitua garantia real, não encontra previsão em qualquer das exceções contidas no art. 3º da lei 8.009/90, devendo, em regra, prevalecer a impenhorabilidade do imóvel, quando se tratar de bem de família". Ao final, determinou-se a volta dos autos à Corte de origem para que, "à luz da proteção conferida ao bem de família pela lei 8.009/90 e afastada a exceção invocada no acórdão recorrido, proceda ao reexame do agravo de instrumento, analisando-se se o imóvel penhorado no caso concreto preenche os requisitos para se caracterizar como tal" (STJ, REsp. 1.789.505/SP, relator ministro Marco Buzzi, 4ª turma, julgado em 22/3/22, DJe 7/4/22). Penso que a posição já está consolidada na Corte Superior, sendo cabível até mesmo a edição de uma ementa de súmula para que a questão se consolide na prática, diante da sua força vinculativa para decisões de 1ª e 2ª instância, pelo que se retira do CPC em vigor. Assim, é interessante que sejam obervadas as devidas regras técnicas quando da elaboração dos contratos de locação com as respectivas garantias. Nesse contexto, deve-se evitar ao máximo a elaboração de cláusulas contratuais em que o garantidor dá ou oferece um imóvel em garantia, situação que não se confunde com a fiança ou com a hipoteca, como se retira dos julgados aqui apontados.
Em coluna anterior, publicada neste canal em janeiro de 2016, destaquei que uma das normas do então Novo Código de Processo Civil que poderia ter grande aplicação para as ações de família seria o seu art. 356, que trata do julgamento parcial de mérito. A sua incidência, como defendido, dar-se-ia sobretudo em ações de divórcio e de dissolução de união estável, podendo o julgador decretar o fim do vínculo familiar havido entre as partes e seguir na demanda com o debate e a análise de outros temas, como alimentos, guarda de filhos, uso do nome, partilha de bens e pedido de reparação de danos, inclusive morais. Conforme está previsto nesse comando instrumental, o juiz decidirá parcialmente o mérito quando um ou mais dos pedidos formulados ou parcela deles: a) mostrar-se incontroverso; e b) estiver em condições de imediato julgamento, por não haver a necessidade de produção de provas ou por ter ocorrido à revelia. Ademais, o seu § 1º prevê que a decisão que julgar parcialmente o mérito poderá reconhecer a existência de obrigação líquida - certa quanto à existência e determinada quanto ao valor -, ou mesmo ilíquida - que não preenche tais requisitos; o que pode ser aplicado a dívidas alimentares, por exemplo. Além disso, prescreve o comando que, eventualmente, a parte poderá liquidar ou executar, desde logo, a obrigação reconhecida na decisão que julgar parcialmente o mérito, independentemente de caução, ainda que haja recurso contra essa interposto; o que igualmente pode incidir a respeito dos alimentos (art. 356, § 2.º, do CPC/15). Na hipótese dessa execução, se houver trânsito em julgado da decisão, a execução será definitiva (art. 356, § 3.º, do CPC/15). Em complemento, a liquidação e o cumprimento da decisão que julgar parcialmente o mérito poderão ser processados em autos suplementares, a requerimento da parte ou a critério do juiz (art. 356, § 4.º, do CPC/15). Por fim, está estabelecido na norma processual que a decisão proferida com base neste artigo é impugnável por agravo de instrumento (art. 356, § 5.º, do CPC/15); posição que há tempos era defendida por parte da doutrina, inclusive para as ações de família (TARTUCE, Fernanda. Processo civil aplicado ao direito de família. São Paulo: GEN/Método, 2012. p. 253). Como também sustentei naquele meu texto anterior, ainda no âmbito doutrinário, a solução retirada do art. 356 do CPC/2015 para as ações de família, pelo menos parcialmente, era retirada do Enunciado n. 602, aprovado na VII Jornada de Direito Civil, no ano de 2015, e com a seguinte redação: "transitada em julgado a decisão concessiva do divórcio, a expedição de mandado de averbação independe do julgamento da ação originária em que persista a discussão dos aspectos decorrentes da dissolução do casamento" (enunciado 602). No mesmo sentido, o enunciado 18 do IBDFAM, aprovado no seu X Congresso Brasileiro de Direito de Família e das Sucessões, em outubro do mesmo ano, prescreve que, "nas ações de divórcio e de dissolução da união estável, a regra deve ser o julgamento parcial do mérito (art. 356 do novo CPC), para que seja decretado o fim da conjugalidade, seguindo a demanda com a discussão de outros temas". Conforme também pontuava, a norma processual em estudo dialoga perfeitamente com a EC 66/10, que suprimiu os prazos para o divórcio e a separação de direito - pelo menos na visão que sigo -, alterando o art. 226, § 6.º, do Texto Maior e facilitando a dissolução do vínculo conjugal. Esse diálogo é perfeitamente percebido pelo fato de o Estatuto Processual afastar qualquer burocracia ou entrave maior para o fim do casamento ou da união estável, deixando as questões pendentes para a solução posterior das partes. Sobre o divórcio, concretiza-se o teor do art. 1.581 do Código Civil, segundo o qual o divórcio pode ser concedido sem que haja prévia partilha de bens. Pois bem, passados seis anos de vigência do Código de Processo Civil, é preciso verificar se, de fato, a minha previsão de incidência da norma se efetivou, ou não, no campo prático das ações de família. Realizando pesquisa específica relativa ao art. 356 do CPC e a palavra "divórcio" em base de dados da Editora Lex, encontrei 77 acórdãos que aplicam ou trazem o debate de incidência do comando para as ações dessa natureza, dos Tribunais de São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Mato Grosso do Sul, Distrito Federal, Ceará, Pernambuco, Paraná, Sergipe, Santa Catarina, Goiás e Mato Grosso. A grande maioria dos arestos que encontrei é da primeira Corte citada, merecendo destaque o seguinte, que segue exatamente exemplos por mim destacados a respeito de temas que podem ser debatidos, após a decretação do fim do casamento: "DIVÓRCIO. DECISÃO QUE INDEFERIU A HOMOLOGAÇÃO DO DIVÓRCIO CONSENSUAL, ANTE O PROSSEGUIMENTO DA AÇÃO APENAS QUANTO AOS ALIMENTOS DEVIDOS AOS FILHOS. Insurgência. Acolhimento. Partes que acordaram no que diz respeito ao divórcio, partilha de bens, guarda e regime de visitas dos filhos. Caso de sentença parcial de mérito, para a decretação e homologação do divórcio consensual. Exegese do art. 356 do CPC. Precedentes desta Corte. Agravo Provido" (TJ/SP, agravo de instrumento 2230989-39.2021.8.26.0000, acórdão 15.328.528, Araraquara, 5ª câmara de Direito Privado, Rel. Des. A. C. Mathias Coltro, julgado em 19/1/22, DJE/SP 24/1/22, p. 7114). Realizando a busca pelo art. 356 do CPC/15 e o termo "separação judicial" no mesmo repertório, apenas três arestos surgiram, dos Tribunais estaduais de Goiás, Ceará e Rio Grande do Sul. Isso demonstra que - a despeito do debate sobre a manutenção ou não no nosso sistema jurídico desde a EC 66, o que pende de julgamento no STF - as ações de separação são hoje raras na prática. Dos três acórdãos que encontrei, colaciono o seguinte, com interessante análise processual sobre a sua conversão em divórcio: "de acordo com o art. 327 e §§ 1º e 2º do CPC/15, é admitida a cumulação, em um único processo contra o mesmo réu, de vários pedidos, desde que compatíveis entre si, seja competente para apreciá-los o mesmo juízo e seja empregado o mesmo tipo de procedimento. Situação em que o autor ingressou com ação de conversão de separação judicial em divórcio, requerendo, cumulativamente, a revisão de alimentos e regulamentação de visita, optando pelo procedimento comum. [...]. O provimento deste recurso limita-se à desconstituição da sentença no que diz com a extinção do feito relativamente às pretensões cumuladas (item 'a' do dispositivo sentencial). Resta, porém, subsistente o Decreto de divórcio (item 'b' do dispositivo sentencial). Tal solução é agora autorizada pelo art. 356, I, do CPC, na medida em que não há controvérsia quanto ao pedido de divórcio" (TJ/RS, apelação cível 0005725-67.2017.8.21.7000, Canoas, 8ª câmara Cível, rel. des. Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em 23/3/17, DJERS 30/3/17). Com a pesquisa pelo art. 356 do CPC e a expressão "união estável", foram encontrados 35 acórdãos, dos Tribunais Estaduais de Mato Grosso do Sul, São Paulo, Paraná, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Santa Catarina e Ceará. Da última Corte Estadual, destaco decisum com conclusão prática interessante, no sentido de que a norma processual em estudo pode ser aplicada não só para a dissolução da união estável, mas para o seu reconhecimento, quando for inconteste entre as partes: "é cediço, que nos processos de família a conciliação é de fundamental importância, tanto para as partes, como para o judiciário, interessados, familiares e a própria sociedade, uma vez que oportuniza aos envolvidos na relação processual a construção de uma decisão resolutiva dos seus próprios conflitos, além de imprimir celeridade aos feitos no âmbito de família. Também observa-se, que no caso concreto, havia a possibilidade de julgamento antecipado parcial do mérito (art. 356, do CPC), com a solução prévia da matéria incontroversa, como por exemplo, o reconhecimento da união estável, prosseguindo o processo em relação às demais, o que também constitui instrumento hábil para oferecer efetividade à prestação jurisdicional, minimizando os pontos de atrito entre as partes" (TJ/CE, apelação 0838528-40.2014.8.06.0001, 2ª câmara de Direito Privado, rel. des. Maria de Fátima de Melo Loureiro, DJCE 24/6/20, p. 228). Justamente pela não aplicação da última norma, entre outros temas, a sentença de primeiro grau acabou sendo anulada pelo Tribunal. Sendo assim, pela pesquisa realizada, parece-me que o que previ, no ano de 2016, a respeito da efetivação prática do art. 356 do CPC/2015 para as ações de família acabou se concretizando. Por fim, pela sua relevância, há que se mencionar importante julgado da 4ª turma do STJ, de 15/322, relatado pelo ministro Marco Buzzi e publicado no seu informativo de jurisprudência 729. O número do recurso especial não foi divulgado, por questão de segredo de justiça. Conforme a tese publicada, "sob a égide do CPC/73, inexiste incompatibilidade lógica entre o acordo efetuado quanto à pretensão principal de separação conjugal e o prosseguimento do feito quanto às pretensões conexas". Penso que, em certa medida, a conclusão do aresto antecipa, sob a vigência do estatuto processual anterior, conclusões que podem ser retiradas do art. 356 do CPC/15. Mais do que isso, traz orientações importantes a respeito da última norma instrumental. No caso concreto, debateu-se se houve a renúncia tácita a direito de ação ou a perda superveniente do interesse de agir, a obstar o prosseguimento do feito quanto a pedido de indenização por danos morais em ação de separação judicial, notadamente diante da composição das partes quando de audiência, a respeito da sua separação. A resposta dada pelos julgadores foi negativa, uma vez que a renúncia e a transação merecem interpretação restritiva, pelo que se retira dos arts. 114 e 843 do CC/02. Ainda como está na publicação do acórdão naquele informativo do STJ, "no particular, assinala-se que a demanda subjacente ao recurso especial, assim como a autocomposição celebrada, deu-se em momento anterior à EC 66/10, a qual introduziu o divórcio direto e, de forma elogiável, mitigou a necessidade de interferência estatal na esfera familiar, possibilitando a concretização, pelos cônjuges, de sua autonomia privada". E, mais, "conforme dispunha o vigente art. 1.123 do CPC/73, é lícito às partes, a qualquer tempo, no curso da separação judicial, requererem a conversão em separação consensual [...], sem que isso implique renúncia ou perda de interesse de agir em relação a pretensões conexas, decorrentes do descumprimento de obrigações inerentes à sociedade conjugal, mormente nas hipóteses em que igualmente consubstanciam grave lesão a direito de personalidade. No caso, nada obstante tenha a parte autora, ao entabular acordo, transmudado a natureza da demanda, no que se refere à separação - de litigiosa para consensual -, com o acertamento dos demais pedidos decorrentes (guarda, visitas), em nenhum momento declarou expressamente desistência ou renúncia ao direito em que fundamentado o pedido condenatório". Entendo que deduções do julgado dialogam perfeitamente com a possibilidade de aplicação do julgamento parcial de mérito nas ações de família. Sendo assim, eventuais transações realizadas entre as partes não podem afastar a possibilidade de ingresso de demandas ou a formulação de pedidos posteriores na própria ação que visa à dissolução do vínculo do casamento e da união estável. Essa última conclusão está totalmente adequada à instrumentalidade e à eficiência do processo, incentivando, ainda, a composição entre as partes sobre questões pacíficas da demanda, conceitos que ganharam muita força desde a elaboração do meu último texto e nos seis anos de vigência do Código de Processual Civil. 
quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Arbitragem e Direito de Família

Um dos temas que vem sendo debatido muito intensamente no âmbito da doutrina brasileira diz respeito à possibilidade da arbitrabilidade em matérias de Direito de Família. O assunto foi objeto da tese de doutorado de Ricardo Lucas Calderon, defendida na Faculdade de Direito da Universidade Federal do Paraná no último dia 7 de fevereiro de 2022, com o título "Ressignificação da indisponibilidade dos direitos: transigibilidade e arbitrabilidade nos conflitos familiares". Participaram da banca os Professores Carlos Eduardo Pianovski - orientador e presidente -, Ana Carla Matos, Anderson Schreiber, Mario Luiz Delgado e Francisco José Cahali. O trabalho foi aprovado com distinção e deve ser publicado como livro em breve. A propósito, o último doutrinador citado há tempos é um dos defensores da possibilidade de a arbitragem envolver os conflitos de direitos disponíveis no âmbito familiar, mesmo não havendo norma expressa o autorizando. Segundo ele, "vedada a arbitragem para solução de questão de estado (filiação, poder familiar, estado civil etc.) e para direitos não patrimoniais e indisponíveis, para se colocar os protagonistas de um conflito envolvendo o direito de família no palco arbitral, então, indispensável que a matéria pontual respectiva, dentro da amplitude do instituto, seja exclusivamente de natureza patrimonial disponível" (CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 435). O jurista - alterando posição anterior - é favorável a que a arbitragem resolva até mesmo as questões relativas aos valores dos alimentos: "acabamos por nos curvar à admissibilidade, em princípio, da fixação, da pensão alimentícia no juízo arbitral, sempre no pressuposto de se verificar a capacidade das partes e a convergente disposição no sentido de existir a respectiva obrigação". De toda sorte, ressalva, com razão, que "temos dificuldade em vislumbrar proveito expressivo às partes nesta situação. E, na prática, preferimos deixar esta matéria ainda aos cuidados do Poder Judiciário" (CAHALI, Francisco José. Curso de arbitragem. 6. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2017. p. 437).  Ainda no campo doutrinário, superando-se o debate que foi inaugurado na I Jornada, aprovou-se o Enunciado 96 na II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em agosto de 2021. Consoante o seu teor, é "válida a inserção da cláusula compromissória em pacto antenupcial e em contrato de união estável". Como se percebe, a ementa doutrinária prevê a validade, nos termos do art. 104 do Código Civil, da cláusula compromissória incluída em acordo de vontades prévio entre cônjuges e companheiros, como exercício legítimo da autonomia privada. Quando da plenária final daquele evento, cheguei a propor à comissão de arbitragem - presidida pelo Professor Carlos Alberto Carmona - um novo texto para a proposta, com a seguinte redação: "é possível a arbitragem que envolva questões estritamente patrimoniais de Direito de Família". A sugestão, porém, não foi acatada, e, após intensos debates, aprovou-se com pequena margem o enunciado na dicção antes apontada. Pois bem, este breve artigo visa a trazer algumas questões de debate a respeito do tema, e que ainda servem como argumento para as minhas resistências ou ressalvas quanto à arbitragem no Direito de Família. A primeira delas diz respeito ao fato de ser difícil a separação absoluta de interesses puramente patrimoniais nas disputas de família. Como está previsto no art. 852 do Código Civil, é vedado o compromisso arbitral - seja judicial ou extrajudicial - para solução de questões de estado, de direito pessoal de família e de outras que não tenham caráter estritamente patrimonial. Além disso, o art. 1º da Lei de Arbitragem (lei 9.307/96) prevê que as pessoas capazes de contratar poderão valer-se da arbitragem para dirimir litígios relativos a direitos patrimoniais disponíveis. Não se pode negar que as questões relativas à partilha de bens entre cônjuges envolvem direitos de cunho patrimonial que podem ser objeto de disposição ou alienação. Mas o que dizer de disputas que envolvem bens sobre os quais existe certo apego afetivo, caso de quadros, livros, obras de arte, veículos, peças de roupas e mesmo imóveis? E as hipóteses envolvendo os animais, que caminham para um tratamento legal em separado dos bens e das coisas? Nessas disputas, aspectos subjetivos e extrapatrimoniais, por vezes, entram em cena, a retirar a patrimonialidade pura ou a neutralidade patrimonial e objetiva das disputas. A segunda ressalva está relacionada ao modo como foi pactuada a cláusula compromissória, sabendo-se que, em muitas situações concretas, haverá sua imposição por um dos cônjuges ou companheiros, notadamente em casos de discrepância econômica entre eles. Nesse contexto, o próprio contrato ou negócio jurídico firmado poderá ter o conteúdo imposto por uma das partes, caracterizando-se como um contrato de adesão. Lembro, a propósito de uma necessária diferenciação categórica, que o contrato de adesão não necessariamente é um contrato de consumo, como se retira do Enunciado n. 171, aprovado na III Jornada de Direito Civil. A primeira categoria pode ser definida como o contrato em que alguém, o estipulante, impõe o conteúdo do negócio, restando à outra parte, o aderente, duas opções: aceitar ou não. Ora, é perfeitamente possível que tal situação se revele em pacto antenupcial ou contrato de convivência, podendo atingir todo o seu conteúdo ou determinadas cláusulas. Revelando-se tal situação, é necessário observar, quanto à cláusula compromissória, o que está previsto no art. 4º da Lei de Arbitragem. Nos termos do seu caput, a cláusula compromissória é a convenção por meio da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir relativamente a tal contrato. Como é notório, trata-se de uma previsão prévia que obriga as partes, que renunciam à jurisdição estatal e passam a se vincular, necessariamente, à jurisdição estatal, nas hipóteses de litígios futuros. Controlando o seu conteúdo, o § 2º desse preceito estabelece que nos contratos de adesão a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula. Aplicando a norma, aresto do Superior Tribunal de Justiça considerou que a cláusula que não preenche tais requisitos deve ser tida como patológica, o que acarreta a sua nulidade absoluta e não a mera ineficácia. O acórdão disse respeito a contrato de franquia, tendo sido assim ementado: "Recurso especial. Direito civil e processual civil. Contrato de franquia. Contrato de adesão. Arbitragem. Requisito de validade do art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96. Descumprimento. Reconhecimento prima facie de cláusula compromissória 'patológica'. Atuação do Poder Judiciário. Possibilidade. Nulidade reconhecida. Recurso provido. 1. Recurso especial interposto em 07/04/2015 e redistribuído a este gabinete em 25/08/2016. 2. O contrato de franquia, por sua natureza, não está sujeito às regras protetivas previstas no CDC, pois não há relação de consumo, mas de fomento econômico. 3. Todos os contratos de adesão, mesmo aqueles que não consubstanciam relações de consumo, como os contratos de franquia, devem observar o disposto no art. 4º, § 2º, da lei 9.307/96. 4. O Poder Judiciário pode, nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral 'patológico', i.e., claramente ilegal, declarar a nulidade dessa cláusula, independentemente do estado em que se encontre o procedimento arbitral. 5. Recurso especial conhecido e provido" (STJ, REsp 1.602.076/SP, 3ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 15.09.2016, DJe 30.09.2016). Além da precisa análise técnica, o aresto traz a correta diferenciação entre os contratos de consumo e os de adesão, não havendo necessariamente uma coincidência de conceitos, como antes pontuei. Além disso, sobre a eventual diferenciação entre os termos contrato de adesão e por adesão, no sentido de que os primeiros exigiriam a presença do monopólio da atividade, como muitas vezes se sustenta - de forma equivocada -, a Ministra Relatora pontuou que, "quanto à diferenciação apresentada pela recorrida segundo a qual contratos 'por adesão' são distintos de contratos 'de adesão', entendo que essa sutileza sintática é incapaz de representar alguma diferença semântica relevante, pois o Direito não trata de forma distinta essas duas supostas categorias". Isso reforça a possibilidade de se aplicar a ideia nas relações entre cônjuges e companheiros. Em continuidade de análise do acórdão, entendo que o enquadramento pela nulidade absoluta da cláusula compromissória patológica pode se dar pelo que consta do art. 424 do Código Civil, pelo qual nos contratos de adesão é nula a cláusula de renúncia a direito resultante da natureza do negócio, no caso à jurisdição estatal. Ainda quanto a essa minha segunda objeção, vale lembrar o teor do art. 1.655 do Código Civil, segundo o qual é nula - por nulidade absoluta - a convenção antenupcial ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei, entendida a última expressão como norma de ordem pública. A norma cogente violada, no caso de imposição de uma cláusula compromissória em contrato celebrado entre consortes, é justamente o art. 424 do Código Civil. Todas essas questões, sem dúvida, merecem ser melhor analisadas quando se tem a sua inserção prévia por cônjuges ou companheiros em posições econômicas discrepantes. Por fim, como terceira ressalva, nota-se que há um problema prático na aceitação da atuação por árbitros em contendas que envolvam o Direito de Família. Como é notório, toda a atuação dos árbitros nos procedimentos é efetivada para o fim de se evitar ao máximo qualquer nulidade da sentença arbitral a ser proferida no futuro. E, nos termos do art. 32, inc. I, da lei 9.307/96, é nula a sentença arbitral se for nula a convenção de arbitragem, categoria que engloba tanto o compromisso quanto a cláusula compromissória. Volta-se ao problema da neutralidade patrimonial das questões de Direito de Família, sendo difícil, no meu entender, fazer uma separação absoluta de questões que são patrimoniais puras, como anotei no desenvolvimento da primeira ressalva. De toda sorte, não se pode negar que o tema é polêmico e que existem vozes e argumentos fortes para se efetivar a arbitrabilidade familiar. O mesmo debate - até com maiores dificuldades, diante da intangibilidade da legítima - atinge o Direito das Sucessões. Pretendo desenvolver melhor essas minhas objeções em artigo científico a ser escrito no futuro.
Inaplicabilidade da tese do Tema 622, julgado pelo STF. Com enorme impacto para a teoria e prática, o STF julgou, no ano de 2016, a repercussão geral relativa à parentalidade socioafetiva. Conforme a tese firmada, "a paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante, baseada na origem biológica, com os efeitos jurídicos próprios" (Recurso Extraordinário 898.060/SC, com repercussão geral, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016, publicado no seu Informativo 840, Tema 622). Como já destaquei em textos anteriores, não se pode negar que uma das grandes contribuições do aresto foi consolidar a posição jurídica de que a socioafetividade é forma de parentesco civil, em posição igualitária frente ao parentesco consanguíneo. Nesse sentido, destaque-se o seguinte trecho do voto do Ministro Relator Luiz Fux: "A compreensão jurídica cosmopolita das famílias exige a ampliação da tutela normativa a todas as formas pelas quais a parentalidade pode se manifestar, a saber: (i) pela presunção decorrente do casamento ou outras hipóteses legais; (ii) pela descendência biológica; ou (iii) pela afetividade. A evolução científica responsável pela popularização do exame de DNA conduziu ao reforço de importância do critério biológico, tanto para fins de filiação quanto para concretizar o direito fundamental à busca da identidade genética, como natural emanação do direito de personalidade de um ser. A afetividade enquanto critério, por sua vez, gozava de aplicação por doutrina e jurisprudência desde o Código Civil de 1916 para evitar situações de extrema injustiça, reconhecendo-se a posse do estado de filho, e consequentemente o vínculo parental, em favor daquele que utilizasse o nome da família (nominatio), fosse tratado como filho pelo pai (tractatio) e gozasse do reconhecimento da sua condição de descendente pela comunidade (reputatio)" (STF, Recurso Extraordinário 898.060/SC, Tema n. 622). Como se pode notar, o julgado aponta que a parentalidade socioafetiva é fundada na posse de estado de filho, tendo como parâmetros os seus critérios já consolidados em doutrina: nome, tratamento e reputação, a tríade nominatio, tractatio e reputatio. Além do reconhecimento da parentalidade socioafetiva como forma de parentesco, tenho destacado outros três aspectos de seu conteúdo. O primeiro deles é o reconhecimento expresso, o que foi feito por vários Ministros, de ser a afetividade um valor jurídico e um princípio inerente à ordem civil-constitucional brasileira.  O segundo aspecto, frise-se, diz respeito ao fato de estar a parentalidade socioafetiva - cujo fundamento legal é o art. 1.593 do CC/2002, pela menção à "outra origem" -, em situação de igualdade com a paternidade biológica. Em outras palavras, não há hierarquia entre uma ou outra modalidade de filiação, o que representa um razoável e desejável equilíbrio. O terceiro é último aspecto do decisum superior é a vitória da multiparentalidade ou pluriparentalidade, que passou a ser admitida pelo Direito brasileiro, mesmo que contra a vontade do pai biológico. Ficou claro, pelo julgamento, que o reconhecimento do vínculo concomitante é para todos os fins, inclusive alimentares e sucessórios. De toda sorte, como se retira da tese final do julgamento, é possível o reconhecimento do vínculo biológico concomitante desde que exista um vínculo de parentalidade socioafetiva prévio, fundado na posse de estado de filhos. Esse foi o caso levado a julgamento ao STF.  Conforme tenho sustentado, emergem grandes desafios dessa tese, mas é tarefa da doutrina, da jurisprudência e dos aplicadores do Direito resolverem os problemas que surgem, de acordo com os casos concretos colocados a julgamento pelo Poder Judiciário. Uma das hipóteses de enorme debate sobre a incidência ou não da tese do Tema n. 622 diz respeito à existência de adoção prévia. Em uma análise superficial do panorama jurídico que emergiu com a decisão do STF poder-se-ia afirmar que deve ser reconhecido o duplo vínculo de paternidade nessas situações, tanto em relação ao pai adotivo como também em relação ao suposto pai biológico. Entretanto, como alerta Ricardo Calderon, em comentários à decisão do STF, "aspecto central nesta temática é que o caso concreto em si deverá indicar qual a decisão mais acertada para aquela situação fático-jurídica, o que não recomenda que se adotem soluções apriorísticas. Apenas a análise da situação em pauta poderá permitir concluir se naquele caso específico deve prevalecer uma dada modalidade de filiação, ou ainda, se devem coexistir ambas as modalidades em multiparentalidade. A manutenção de vínculos concomitantes passa a ser mais uma opção que se oferta para o acertamento de casos concretos que envolvam a questão" (CALDERÓN, Ricardo. O princípio da afetividade no Direito de Família. Rio de Janeiro: Forense, 2ª Edição, 2017, p. 217).   Nesse contexto, penso que a tese exarada pelo STF quando do julgamento do Tema 622 não incide para os casos de adoção, que é totalmente irrevogável no sistema jurídico brasileiro. Pensar o contrário feriria a legislação prevista a respeito desse instituto e o colocaria em total descrédito.   Vale lembrar que, sob a égide do Código Civil de 1916 e da lei 6.697/79, já se admitia a modalidade da adoção plena. Consoante o art. 29 do último diploma legal, "a adoção plena atribui a situação de filho ao adotado, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais". Ademais, como estava no seu art. 37, "a adoção plena é irrevogável, ainda que aos adotantes venham a nascer filhos, as quais estão equiparados os adotados, com os mesmos direitos e deveres". Tais previsões foram confirmadas pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90), que ora rege o instituto da adoção. Prevê o seu art. 41, caput, que "a adoção atribui a condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais". E mais, nos termos do seu art. 39, "a adoção de criança e de adolescente reger-se-á segundo o disposto nesta lei. § 1º. A adoção é medida excepcional e irrevogável, à qual se deve recorrer apenas quando esgotados os recursos de manutenção da criança ou adolescente na família natural ou extensa, na forma do parágrafo único do art. 25 desta Lei" (Incluído pela lei 12.010, de 2009). O entendimento pela não aplicação da tese do Tema 622 do Supremo Tribunal Federal aos casos de adoção é compartilhada por João Ricardo Brandão Aguirre. Segundo as suas palavras, "a partir dessa fundamental premissa, é possível se responder às questões relacionadas à adoção e às técnicas de reprodução assistida, posto que pleitos pautados apenas pela intenção de se obter vantagens patrimoniais ou econômicas não devem prosperar. Deste modo, o adotado que pretende desconstituir o vínculo de parentesco estabelecido com a nova família em virtude da adoção, apenas para pleitear a herança de um parente natural ou para dele requerer alimentos, não deve ter seu pedido conhecido, pois que a ausência da socioafetividade afasta a possibilidade de reconhecimento da multiparentalidade, ressalvando-se o direito de o adotado conhecer a sua origem biológica, consoante disposto pelo art. 48 do ECA. Isso significa dizer que o vínculo meramente biológico não é capaz de produzir os efeitos decorrentes das relações de parentesco, em razão da ausência da afetividade, mas será capaz de garantir o exercício do direito à identidade. O mesmo se diga daqueles que pretendem o reconhecimento da multiparentalidade com os doadores de sêmen ou de qualquer outro material genético para clínicas de reprodução assistida, eis que a eles está garantido o direito de conhecerem a origem genética, mas não os efeitos decorrentes da multiparentalidade, posto não existir a relação socioafetiva" (AGUIRRE, João Ricardo Brandão. Reflexões sobre a multiparentalidade e a repercussão geral nº 622 do STF. Direito das relações familiares contemporâneas: estudos em homenagem a Paulo Luiz Netto Lôbo. Coordenação: Marcos Ehrhardt, Fabíola Albuquerque Lobo e Gustavo Andrade. Belo Horizonte: Fórum, 2019, p. 207-208).  E mais, citando José Fernando Simão, em entendimento que conta com o meu total apoio:  "Assim sendo, é possível se afirmar, forte no escólio de José Fernando Simão, que 'o doador de esperma, na hipótese de técnica de reprodução assistida heterólogo, não é pai, mas apenas ascendente genético'. Também no caso de adoção 'há rompimento dos vínculos de filiação com a família genética, ou seja, o filho terá apenas o pai adotivo, sendo que aquele que um dia foi seu pai assume o status apenas de ascendente genético'. E, por fim, aquele que desconhece o fato de possuir um filho biológico, pois sua namorada não contou da gravidez, por exemplo, 'e um dia descobre que esse filho foi criado por outro homem, a quem chama de pai, não é pai, mas apenas ascendente genético'. Isso porque não há, em nenhum desses casos, relação socioafetiva capaz de dar fundamento à multiparentalidade".  Na mesma linha, afirmam Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho, que "em nosso sentir, apenas ilustrando, pensamos não ser possível a aplicação da tese em caso de adoção - por expressa disposição de lei - nem aos filhos havidos por inseminação artificial heteróloga" (Novo Curso de Direito Civil. Volume 6. Direito de Família. São Paulo: Saraiva, 11ª Edição, 2021, p. 637).  Também Paulo Lôbo, um dos grandes especialistas sobre o tema da parentalidade socioafetiva em nosso País, leciona que "permanece o direito ao reconhecimento da origem genética, como direito da personalidade, sem efeito de parentesco, na hipótese de adoção, conforme previsto no art. 48 do ECA, com redação dada pela Lei 12.010/2009: (...). Em caso de recusa ao acesso, pode ser ajuizada ação para tal finalidade, que não se confunde com a ação de investigação de paternidade ou maternidade. A decisão do STF não implica inconstitucionalidade de norma legal que estabelece a ruptura dos vínculos familiares de origem do adotado, exceto quanto aos impedimentos matrimoniais" (Parentalidade socioafetiva e multiparentalidade. Questões Atuais. In Direito Civil: Diálogos entre a Doutrina e a Jurisprudência. Coordenadores: Luis Felipe Salomão e Flavio Tartuce, São Paulo: Atlas, 2018, p. 607).  Para Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, "não será possível aplicar a multiparentalidade nos casos em que a filiação socioafetiva decorrer de uma adoção. Isso porque, por expressa disposição do art. 49 do Estatuto da Criança e do Adolescente, a adoção rompe todos os vínculos biológicos que não serão restabelecidos, sequer, pela morte dos adotantes. De fato, permitir o estabelecimento de uma parentalidade plúrima entre pais adotivos e biológicos poderia ser a depreciação da adoção, reduzindo a sua relevância e segurança jurídica. Quem adota, naturalmente, pressupõe a ruptura definitiva dos liames biológicos do adotado, não havendo espaço para a tese" (Curso de Direito Civil. Volume 6. Famílias. Salvador: Juspodivm, 13ª Edição, 2021, p. 656). Igualmente, Maria Berenice Dias, ao analisar especificamente a multiparentalidade pontua que "o art. 48 do ECA garante ao adotado o direito de conhecer sua origem biológica. Deste modo, não há como negar-lhe acesso à Justiça. No entanto, como a adoção é irrevogável (ECA 39 §1º), o reconhecimento da filiação biológica não enseja alterações no assento de nascimento e nem gera efeitos pessoais ou patrimoniais" (DIAS, Maria Berenice. Manual de Direito das Famílias. Salvador: Juspodivm, 13ª Edição, 2020, p. 291-292). Observe-se, na linha do que ensinam os últimos autores, que eventual reconhecimento não se dá em ação investigatória de parentalidade, mas em ação de busca de ascendência genética. E, ao final desta ação, apenas se declara o vínculo biológico, sem se estabelecer o parentesco, com todas as suas consequências jurídicas. Como última nota, é preciso fazer a distinção ("distinguishing") da hipótese de adoção prévia em relação ao que foi julgado pelo Supremo Tribunal Federal quando do Tema n. 622. Nas palavras, de Silvano José Gomes Flumignan, trata-se de "uma técnica que busca comparar os pressupostos de fato e de direito preponderantes para a tese do precedente em relação a um determinado caso concreto. Se os pressupostos forem os mesmos ou, pelo menos, existir grande similitude fática e jurídica, o precedente é adequado àquele caso. Se, por outro lado, os casos não forem similares, haverá inadequação do precedente" (Debates iniciais sobre distinção para precedentes em formação. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-jul-19/direito-civil-atual-debates-distincao-precedentes-formacao-distinguishing. Publicado em 19 de julho de 2021. Acesso em 17 de janeiro de 2021).   O caso analisado pelo STF, como antes pontuado, disse respeito à hipótese concreta em que alguém - já reconhecido por pai socioafetivo, por meio de adoção informal ou "adoção à brasileira" -, pretendia o reconhecimento do vínculo biológico. Como está das fls. 9 do inteiro teor do acórdão, em trecho de parte do voto do Ministro Fux, ", rapidamente, a verdade é que nós nos defrontamos com uma arguição no recurso extraordinário, e é o que foi afetado na repercussão geral, sobre o fato de que o recorrente se opunha ao reconhecimento da paternidade biológica, e já havia a paternidade socioafetiva. Então, havia um confronto. O que o Tribunal decidiu? Que uma coisa não inibe a outra. Qual é a minha tese? A paternidade socioafetiva, declarada ou não em registro público - no caso, essa era declarada; porque também nós reconhecemos a afetividade como um fato gerador de filiação -, não impede o reconhecimento do vínculo de filiação concomitante baseado na origem biológica, com todas as suas consequências jurídicas" (STF, Recurso Extraordinário 898.060/SC, Tema n. 622). Sendo assim e fazendo-se a referida distinção, há, sem dúvidas, inadequação do precedente à adoção. Por fim, além dessa distinção a respeito do julgado superior em si, a verdade é que os precedentes anteriores sobre a multiparentalidade também dizem respeito a vínculo de parentalidade socioafetiva cumulado com o vínculo biológico, e não quanto à adoção, o que confirma a afirmação de sua inaplicabilidade na última situação.   
quarta-feira, 29 de dezembro de 2021

Família e sucessões no segundo ano da pandemia

Esta é a última coluna Família e Sucessões do Migalhas de 2021, o segundo ano da pandemia de Covid-19. Em meio a muitas perdas e dificuldades, poucas alterações legislativas e algumas decisões judiciais de destaque, seguimos lutando contra o grande desafio imposto à nossa geração. Houve um certo contraste entre os dois semestres, o primeiro muito duro e o segundo movido pela esperança da vacina e pela diminuição de casos e de mortes em virtude da doença. Entretanto, como sempre tenho advertido, as dúvidas quanto ao fim da pandemia ainda persistem, infelizmente. Do ponto de vista legislativo, poucas foram as normas que surgiram, destacando-se duas. A primeira é a lei 14.118, de 12 de janeiro de 2021, que instituiu o programa Casa Verde Amarela - em substituição ao programa Minha Casa, Minha Vida, da lei 11.977/2009 -, para aquisição de imóveis por famílias de baixa renda. A exemplo do diploma anterior, a nova lei trouxe regras que impactam o Direito de Família, cometendo os mesmos erros da anterior. Fiz uma análise pontual desses equívocos na minha coluna de janeiro. A segunda norma que emergiu foi a lei 14.138/2021, que, após uma longa tramitação no Congresso Nacional, acrescentou um § 2º ao art. 2º-A da lei 8.560/1992 para permitir, em sede de ação de investigação de paternidade, a realização do exame de pareamento do código genético (DNA) em parentes do suposto pai. Como é notório, o último diploma específico regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, concretizando o princípio constitucional da igualdade entre os filhos, previsto no art. 227, § 6º, do Texto Maior. A nova lei consolidou a posição de alguns doutrinadores e a constante de alguns julgados, que já admitiam o citado exame, e foi objeto da minha coluna de abril de 2021. Quanto às decisões judiciais, seguimos na análise concreta de temas pandêmicos, destacando-se a mudança de orientação quanto à prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado. No início da pandemia, como é notório, o Superior Tribunal de Justiça afastou a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado, possibilitando apenas a prisão domiciliar e seguindo a recomendação n. 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça (por todos: STJ, HC 580.261/MG, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 02/06/2020, DJe 08/06/2020). Sucessivamente, veio a lei 14.010/2020, que instituiu um regime transitório em matéria de Direito Privado em tempos de pandemia (RJET). Conforme o seu art. 15, até 30 de outubro de 2020 - data considerada como de fim de abrangência da nova norma -, "a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da Lei n. 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações". Após a primeira onda da pandemia e a cessação dos efeitos da lei, surgiu debate sobre a possibilidade ou não de prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado, havendo variações de entendimentos nas Cortes Estaduais. Neste ano de 2021, infelizmente, tivemos a segunda onda da pandemia, muito pior do que a primeira, e o Superior Tribunal de Justiça voltou a se pronunciar, no sentido de afastar a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado mesmo após o fim da vigência do RJET, desde que presentes os efeitos sociais decorrentes da pandemia. Conforme preciso acórdão da sua Terceira Turma, que aponta a necessidade de se verificar os momentos diferentes da crise e admite a viabilidade de utilização de outras medidas para a efetivação do recebimento do crédito alimentar, "a experiência acumulada no primeiro ano de pandemia revela a necessidade de afastar uma solução judicial apriorística e rígida para a questão, conferindo o protagonismo, quanto ao ponto, ao credor dos alimentos, que, em regra, reúne melhores condições de indicar, diante das inúmeras especificidades envolvidas e das características peculiares do devedor, se será potencialmente mais eficaz o cumprimento da prisão em regime domiciliar ou o diferimento para posterior cumprimento da prisão em regime fechado, ressalvada, em quaisquer hipóteses, a possibilidade de serem adotadas, inclusive cumulativa e combinadamente, as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias, nos termos do art. 139, IV, do CPC, de ofício ou a requerimento do credor. Ordem parcialmente concedida, apenas para impedir, por ora, a prisão civil do devedor de alimentos sob o regime fechado, mas facultando ao credor indicar, no juízo da execução de alimentos, se pretende que a prisão civil seja cumprida no regime domiciliar ou se pretende diferir o seu cumprimento, sem prejuízo da adoção de outras medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias" (STJ, HC 645.640/SC, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/03/2021, DJe 26/03/2021). A necessidade de se verificar o momento pandêmico para as conclusões jurídicas é um ponto de destaque do aresto, servindo não só para a análise dos alimentos, mas também para outras questões de Direito Privado que ora vivenciamos. Ainda em 2021, o próprio Superior Tribunal de Justiça publicou a Edição 178 da ferramenta Jurisprudência em Teses, com orientações jurisprudenciais sobre a Covid-19. De acordo com a tese n. 1, "durante a pandemia da covid-19, faculta ao credor indicar, no juízo da execução de alimentos, se pretende que a prisão civil seja cumprida no regime domiciliar ou se prefere diferir o seu cumprimento". E, consoante a tese n. 2, "é possível a penhora de bens do devedor de alimentos, sem que haja a conversão do rito da prisão para o da constrição patrimonial, enquanto durar a suspensão de todas as ordens de prisão civil, em decorrência da pandemia da covid-19". Todavia, em novembro, o Conselho Nacional de Justiça voltou a recomendar a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado, diante da melhora do quadro pandêmico, fazendo com que a Terceira Turma do STJ se pronunciasse novamente pela viabilidade da prisão. Vejamos esse novo acórdão, com citação em destaque: "CIVIL. PROCESSUAL CIVIL. HABEAS CORPUS. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. CABIMENTO CONTRA DECISÃO DENEGATÓRIA DE LIMINAR NA ORIGEM. SÚMULA 691/STF. POSSIBILIDADE DE CONCESSÃO DA ORDEM DE OFÍCIO. EXCEPCIONALIDADE. MODIFICAÇÃO DE CAPACIDADE ECONÔMICA DO DEVEDOR. PAGAMENTO PARCIAL DOS ALIMENTOS. IRRELEVÂNCIA. AUSÊNCIA DE IMPEDIMENTO ABSOLUTO QUE JUSTIFIQUE A INADIMPLÊNCIA. IMPOSSIBILIDADE DE CUMPRIMENTO DA PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR DE ALIMENTOS EM REGIME FECHADO DURANTE A PANDEMIA CAUSADA PELO CORONAVÍRUS. EVOLUÇÃO JURISPRUDENCIAL DESTA CORTE. CUMPRIMENTO EM REGIME DOMICILIAR, DIFERIMENTO DO CUMPRIMENTO E ESCOLHA PELO CREDOR DA MEDIDA CONCRETAMENTE MAIS ADEQUADA. REVISITAÇÃO DO TEMA A PARTIR DO ATUAL CENÁRIO DA PANDEMIA NO BRASIL. NECESSIDADE. RETOMADA DE ATIVIDADES ECONÔMICAS, COMERCIAIS, SOCIAIS, CULTURAIS E DE LAZER. AVANÇO SUBSTANCIAL DA VACINAÇÃO EM TODO O PAÍS. SUPERAÇÃO DAS CIRCUNSTÂNCIAS QUE JUSTIFICARAM A IMPOSSIBILIDADE DE PRISÃO CIVIL DO DEVEDOR DE ALIMENTOS EM REGIME FECHADO. RETOMADA DA ADOÇÃO DESSA MEDIDA COERCITIVA. POSSIBILIDADE. 1- O propósito do habeas corpus é definir se, no atual momento da pandemia causada pelo coronavírus, é admissível a retomada da prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado. 2- É incabível, por força da Súmula 691/STF, a impetração de habeas corpus contra decisão denegatória de liminar proferida pelo Relator no Tribunal de origem, sem que a questão tenha sido apreciada pelo órgão colegiado, ressalvada a excepcional superação desse entendimento diante da possibilidade de concessão da ordem de ofício. 3- A jurisprudência desta Corte se consolidou no sentido de que é inviável a apreciação de fatos e provas relacionadas à capacidade econômica ou financeira do devedor dos alimentos e de que o pagamento apenas parcial das parcelas vencidas ou vincendas no curso da execução é insuficiente, por si só, para impedir a prisão civil do alimentante. Precedentes. 4- Desde o início da pandemia causada pelo coronavírus, observa-se que a jurisprudência desta Corte oscilou entre a determinação de cumprimento da prisão civil do devedor de alimentos em regime domiciliar, a suspensão momentânea do cumprimento da prisão em regime fechado e a possibilidade de escolha, pelo credor, da medida mais adequada à hipótese, se diferir o cumprimento ou cumprir em regime domiciliar. Precedentes. 5- Passados oito meses desde a última modificação de posicionamento desta Corte a respeito do tema, é indispensável que se reexamine a questão à luz do quadro atual da pandemia no Brasil, especialmente em virtude da retomada das atividades econômicas, comerciais, sociais, culturais e de lazer e do avanço da vacinação em todo o território nacional. 6- Diante do cenário em que se estão em funcionamento, em níveis próximos ao período pré-pandemia, os bares, restaurantes, eventos, shows, boates e estádios, e no qual quase três quartos da população brasileira já tomou a primeira dose e quase um terço se encontra totalmente imunizada, não mais subsistem as razões de natureza humanitária e de saúde pública que justificaram a suspensão do cumprimento das prisões civis de devedores de alimentos em regime fechado. 7- Na hipótese, a devedora de alimentos é empresária, jovem e não informa possuir nenhuma espécie de problema de saúde ou comorbidade que impeça o cumprimento da prisão civil em regime fechado, devendo ser considerado, ademais, que nas localidades em que informa possuir domicílio, o percentual da população totalmente imunizada supera 80%. 8- Habeas corpus não conhecido. Ordem denegada de ofício" (STJ, HC 706.825/SP, Rel. Min. Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 23/11/2021, DJe 25/11/2021). Portanto, na linha também do último acórdão, é preciso verificar o momento ou a fase pandêmica para se concluir se é viável a prisão civil do devedor de alimentos em regime fechado ou não. Por certo que pode haver uma variação de realidade, sobretudo se surgirem novas ondas pandêmicas diante de novas variantes, o que é bem provável, a justificar novamente a prisão em regime fechado. Como outra concreção prática importante, em 2021 emergiu paradigmático precedente a respeito da reprodução assistida, prolatado igualmente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, especialmente sobre a autorização para o destino de embriões excedentários após a morte. Em votação apertada, a Corte decidiu que "a declaração posta em contrato padrão de prestação de serviços de reprodução humana é instrumento absolutamente inadequado para legitimar a implantação post mortem de embriões excedentários, cuja autorização, expressa e específica, deve ser efetivada por testamento ou por documento análogo". Como justificativas principais do aresto, concluiu-se que "a decisão de autorizar a utilização de embriões consiste em disposição post mortem, que, para além dos efeitos patrimoniais, sucessórios, relaciona-se intrinsecamente à personalidade e dignidade dos seres humanos envolvidos, genitor e os que seriam concebidos, atraindo, portanto, a imperativa obediência à forma expressa e incontestável, alcançada por meio do testamento ou instrumento que o valha em formalidade e garantia" (STJ, REsp 1.918.421/SP, Rel. Min. Marco Buzzi, Rel. p/ Acórdão Min. Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 08/06/2021, DJe 26/08/2021). O decisum cita várias posições doutrinárias, sendo robusto na sua fundamentação. De todo modo e com o devido respeito à maioria, parece-me que houve um excesso de rigor formal no julgamento final. Por isso, estou filiado ao voto vencido, do Ministro Marco Buzzi, até porque entendo que no caso concreto os embriões teriam o direito de ser implantados. Analisadas as principais decisões jurisprudenciais no último ano, sem prejuízo de muitas outras, quanto aos eventos jurídicos, dois merecem destaque. Em agosto, ocorreu a II Jornada de Solução Extrajudicial de Prevenção e Solução Extrajudicial dos Litígios, pelo Conselho da Justiça Federal, sob a coordenação geral dos ministros Luis Felipe Salomão e Paulo de Tarso Sanseverino. Com quatro comissões temáticas - sobre arbitragem, mediação, desjudicialização e novas tecnologias -, surgiram enunciados doutrinários sobre temas de extrajudicialização, alguns deles relacionados a temas de Direito de Família e das Sucessões, como analisei na minha coluna de setembro. O segundo evento a ser mencionado ocorreu nos últimos dias 27 a 29 de outubro, promovido pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família, o XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões. De forma totalmente remota, participaram mais de dois mil inscritos, confirmando tratar-se de um dos maiores eventos de Direito Privado do País e do mundo. Como já vem ocorrendo desde a edição de 2015, foram apresentados os novos enunciados doutrinários do IBDFAM, como analisei na coluna de outubro de 2021, tratando de temas de grandes repercussões práticas na atualidade, como as consequências jurídicas da pandemia, a violência doméstica, a herança digital, o uso de imagem dos filhos no âmbito virtual, o namoro qualificado, a filiação socioafetiva, a convivência familiar e o divórcio como direito potestativo. Porém, um dos fatos mais marcantes do ano que termina foi o falecimento do grande Mestre Zeno Veloso, no dia 18 de março de 2021, vítima da Covid-19. O jurista sempre esteve presente em citações e diálogos em meus textos publicados nesta coluna, e, em 2021, três artigos foram dedicados a ele, nos meses de março, maio e junho. O próprio Congresso do IBDFAM foi feito em sua homenagem, sem prejuízo de muitas outras publicações e eventos. A nós, seus discípulos, caberá seguir com a transmissão do seu legado doutrinário nos próximos anos. Esse é um breve resumo do que de mais relevante ocorreu no último ano a respeito do Direito de Família e das Sucessões, um período muito difícil, com perdas e sofrimentos ainda intensos. Espero, sinceramente, que o ano de 2022 seja melhor do que os dois últimos. Aos nossos leitores, o meu agradecimento por acompanharem esta coluna. Ao Migalhas, mais uma vez o meu Muito Obrigado, por seguirmos com esta parceria de difusão do conhecimento técnico de temas importantes do Direito Civil Brasileiro. Até o próximo ano!
quarta-feira, 24 de novembro de 2021

Os novos enunciados doutrinários do IBDFAM

Nos últimos dias 27 a 29 de outubro de 2021, o Instituto Brasileiro de Direito de Família realizou o seu XIII Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e Sucessões, um dos maiores eventos de Direito Privado do País e do mundo. De forma totalmente remota, participaram mais de dois mil inscritos. Dentro de sua programação, como já vem ocorrendo desde a edição de 2015, foram apresentados os novos enunciados do IBDFAM, que vêm sendo utilizados no campo prático de forma crescente, notadamente pela jurisprudência nacional. Como é notório, os enunciados traduzem a posição doutrinária de um grupo de juristas ou de uma instituição, trazendo nortes interpretativos sobre determinados assuntos. Nesta oportunidade, as propostas aprovadas trataram de temas como as consequências jurídicas da pandemia, violência doméstica, herança digital, uso de imagem dos filhos, namoro qualificado, filiação socioafetiva, convivência familiar e divórcio. A comissão de enunciados do IBDFAM recebeu cento e doze propostas de seus associados até o dia 14 de outubro último, dos seguinte Estados: Alagoas, Goiás, Maranhão, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo e Sergipe. De início, foram selecionadas quinze delas, em análise cega, pelo grupo formado pelos Professores Giselda Hironaka, Marcos Ehrhardt Jr., Ana Carolina Brochado Teixeira, Gustavo Andrade, Luciana Brasileiro, Ricardo Calderón, Rodrigo Toscano, Simone Tassinari; além deste autor. A comissão ajustou a redação de algumas das proposições e elas foram submetidas à votação dos associados, em meio eletrônico. Ao final, sugiram os novos enunciados, decorrentes das dez propostas mais votadas pelos associados, após 6.799 votos no total. A seguir vejamos uma breve análise das novas ementas doutrinárias, sendo certo que estão na ordem de início pelas que receberam mais votos. Pois bem, conforme o novo Enunciado 37 do IBDFAM, nos casos que envolverem violência doméstica, a instrução processual em ações de família deve assegurar a integridade física, psicológica e patrimonial da vítima. Trata-se de proposta que procura efetivar a Lei Maria da Penha de forma correta e precisa, protegendo a vítima. Como é notório, infelizmente, houve um crescimento considerável dos casos de violência doméstica em meio à pandemia, o que evidencia a grande concretude da súmula doutrinária. Igualmente tratando de consequências da grave crise que ainda nos atinge, o Enunciado 38 estabelece que a interação pela via digital, ainda que por videoconferência, sempre que possível, deve ser utilizada de forma complementar à convivência familiar, e não substitutiva. Como se sabe, essa interação por meios eletrônicos foi intensificada nos últimos dois anos, não podendo substituir a convivência física e pessoal. A ementa é completada por outra, que será analisada a seguir, sobre guarda de filhos. No que concerne a importantes limites para o exercício do poder familiar ou da autoridade parental, outra proposição aprovada preceitua que "a liberdade de expressão dos pais em relação à possibilidade de divulgação de dados e imagens dos filhos na internet deve ser funcionalizada ao melhor interesse da criança e do adolescente e ao respeito aos seus direitos fundamentais, observados os riscos associados à superexposição" (Enunciado 39). Consubstancia-se ideia consolidada entre os civilistas de que a liberdade de expressão encontra limites em outros direitos fundamentais e da personalidade, não podendo ser tida como absoluta. Sobre a herança digital, exatamente na linha do que sustentei em outro texto aqui publicado, o Enunciado 40 prevê que ela pode integrar a sucessão do seu titular, ressalvadas as hipóteses envolvendo direitos personalíssimos, direitos de terceiros e disposições de última vontade em sentido contrário. Segue-se a vertente doutrinária que procura separar os direitos inerentes à personalidade do titular dos direitos patrimoniais puros, havendo a transmissão aos herdeiros do falecido somente quanto aos últimos; desde que o autor da herança não tenha se manifestado em sentido contrário perante o próprio provedor ou em documento idôneo, como em um testamento. Complementando a ementa anterior, novamente quanto à pandemia, o Enunciado 41 orienta que o regime de convivência que já tenha sido fixado em decisão judicial ou acordo deve ser mantido, salvo se, comprovadamente, qualquer dos pais for submetido a isolamento ou houver situação excepcional que não atenda ao melhor interesse da criança ou adolescente. Segue-se proposta de alteração legislativa que fizemos ao então Projeto 1.179, e que gerou a Lei 14.010/2020 (RJET), mas que acabou não sendo adotada pelo Senado Federal. Naquela ocasião a proposta foi elaborada em conjunto com os Professores José Fernando Simão e Maurício Bunazar ao Senador Rodrigo Pacheco, mas acabou não sendo incorporada ao texto legislativo. Trata-se de uma das questões mais judicializadas em tempos de pandemia, e a proposta doutrinária acaba trazendo um norte seguro para os aplicadores do Direito. Apesar do bom momento que vivemos quando da elaboração deste artigo - em novembro de 2021 -, novamente existem incertezas, como no último ano, quanto à possibilidade de novos surtos ou de ondas pandêmicas. Sobre o namoro qualificado - em homenagem ao Mestre Zeno Veloso, que foi um dos responsáveis por difundir a expressão -, aprovou-se o Enunciado 42, segundo o qual, diferentemente da união estável, ele não engloba todos os requisitos cumulativos presentes no art. 1.723 do Código Civil, a saber, a convivência pública, contínua e duradoura, estabelecida com o objetivo de constituição de família. O enunciado dialoga com a jurisprudência superior, sobretudo com o seguinte aresto: "o propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável - a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado 'namoro qualificado' -, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída" (STJ, REsp 1.454.643/RJ, Rel. Ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 03/03/2015, DJe 10/03/2015). Sobre os procedimentos de reconhecimento extrajudicial de filiação socioafetiva, nos termos dos Provimentos n. 83 e 63 do Conselho Nacional de Justiça e na linha do que já foi defendido por mim neste canal, o Enunciado 43 dispensa a manifestação do Ministério Público nas hipóteses envolvendo as pessoas maiores de dezoito anos. Igualmente sobre o tema, e em prol da extrajudicialização, o Enunciado 44 estabelece que, existindo consenso sobre a filiação socioafetiva, esta poderá ser reconhecida no inventário judicial ou mesmo na via extrajudicial. Por fim, foram aprovadas duas propostas sobre o divórcio. A primeira delas, de número 45, prescreve que ação de divórcio já ajuizada não deverá ser extinta sem resolução de mérito, em caso do falecimento de uma das partes. Trata-se de enunciado doutrinário que procura encerrar polêmica jurisprudencial hoje existente. Concluindo pela necessidade de extinção da demanda em casos tais, por se tratar de uma ação personalíssima: "Conversão de separação em divórcio. Extinção sem julgamento de mérito por falecimento do requerido. Manutenção. Óbito ocorrido no curso do processo, colocando fim ao vínculo conjugal. Art. 1.571, § 1º, do Código Civil. Ausência de interesse processual no prosseguimento do feito, para obter a extinção do casamento por divórcio. Art. 485, VI, do CPC. Sentença mantida. Recurso improvido" (TJ/SP, Apelação cível n. 1034529-22.2018.8.26.0576, Acórdão n. 14697452, São José do Rio Preto, Primeira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Francisco Loureiro, julgado em 07/06/2021, DJESP 16/06/2021, p. 2195). Porém em sentido contrário, colaciona-se, da mesma Corte Estadual: "DIVÓRCIO LITIGIOSO. FALECIMENTO DO CÔNJUGE NO CURSO DA AÇÃO. SENTENÇA DE EXTINÇÃO SEM JULGAMENTO DO MÉRITO. Inconformismo. Acolhimento. A morte de um dos cônjuges no decorrer da demanda não acarreta a perda de seu objeto, vez que já manifesta a vontade de um dos cônjuges de se divorciar. Divórcio no direito positivo-constitucional que verte, após a Emenda Constitucional n. 66/2010, em direito potestativo e incondicional de cada qual dos cônjuges. Inteligência da nova redação dada ao artigo 226, § 6º, da Constituição Federal, com supressão do requisito temporal e causal. Princípio da ruptura do afeto. Direito cujo exercício somente depende da manifestação de vontade de qualquer interessado. Hipótese constitucional de uma rara verdade jurídico-absoluta, a qual materializa o direito civil-constitucional, que, em última reflexão, firma o divórcio liminar. Particularidade que suprime a possibilidade de oposição de qualquer tese de defesa, salvo a inexistência do casamento, fato incogitável. Detalhe que excepciona, inclusive, a necessidade de contraditório formal. Possibilidade de Decreto do divórcio post mortem, com efeitos retroativos à data do ajuizamento da ação, de forma excepcional. Precedentes. Ação procedente. Recurso provido" (TJSP, Apelação cível n. 1032535-74.2020.8.26.0224, Acórdão n. 14857942, Guarulhos, Sétima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Rômolo Russo, julgado em 28/07/2021, DJESP 30/07/2021, p. 2815). Como última proposição aprovada, o Enunciado 46 do IBDFAM confirma o que está na ementa transcrita, no sentido de ser o divórcio um direito potestativo, expressando que "excepcionalmente, e desde que justificada, é possível a decretação do divórcio em sede de tutela provisória, mesmo antes da oitiva da outra parte". Confirma-se também a concepção do divórcio unilateral ou mesmo do divórcio liminar, como admitido por alguns julgadores, mas não de forma pacífica. De toda sorte, a demonstrar a divergência e apontando a necessidade de se observar ao menos o contraditório, entre muitas ementas do mesmo Tribunal Estadual: "o divórcio liminar constitui um direito potestativo (EC 66/2010), todavia, se faz necessário o estabelecimento do contraditório antes de seu deferimento, principalmente ao se considerar a ausência de risco de dano grave. (...). Ainda que existam decisões em sentido diverso, de ser dispensável a oitiva da parte contrária antes da decretação do divórcio, dada a natureza e o regramento do casamento o acolhimento do pedido initio litis não é adequado" (TJPR, Rec 0067504-07.2020.8.16.0000, Ponta Grossa, Décima Primeira Câmara Cível, Rel. Des. Fábio Haick Dalla Vecchia, julgado em 30/03/2021, DJPR 30/03/2021). Como palavras derradeiras para este breve artigo, ressalto que atuo na comissão de enunciados do IBDFAM desde 2015 e, desta vez, tivemos a aprovação de propostas de grande repercussão social e que, sem dúvida alguma, serão muito debatidas não só no campo teórico, mas também na prática do Direito de Família e das Sucessões nos próximos anos, antecipando tendências inquestionáveis desses ramos do Direito Privado.
quarta-feira, 27 de outubro de 2021

Família, sucessões e extrajudicialização

O Conselho da Justiça Federal promoveu, entre os dias 26 e 27 de agosto de 2021, a II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios. Sete anos após a realização da sua primeira edição, participaram dessa II Jornada ministros, desembargadores, juízes, membros do Ministério Público, profissionais da advocacia pública e privada, professores, mediadores, árbitros, registradores, tabeliães e outros profissionais que se dedicam aos temas tratados. A coordenação científica do evento foi dos Ministros Luis Felipe Salomão e Paulo de Tarso Sanseverino, do Superior Tribunal de Justiça. Foram montadas cinco comissões científicas para debates prévios das propostas e posterior encaminhamento à plenária final: arbitragem; mediação; desjudicialização; novas formas de solução de conflitos e novas tecnologias. A comissão científica foi formada pelos Professores Carlos Alberto Carmona, Selma Lemes, Cesar Cury, Rodrigo Fux, Ministro Marco Buzzi, Kazuo Watanabe, Humberto Dalla e Juliana Loss. Humberto Theodoro Júnior, Helena Lanna Figueiredo, Heitor Sica, Trícia Navarro Xavier Cabral, Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, Luis Alberto Reichelt, Caroline Tauk; além deste autor. No presente texto, analisarei alguns dos 143 enunciados aprovados que, como sabido, funcionam como orientações doutrinárias para os aplicadores do Direito e contribuem diretamente para a extrajudicialização do Direito de Família e das Sucessões, assim como ocorreu no evento anterior. Iniciando pela comissão de arbitragem, e superando o debate que foi inaugurado na I Jornada, aprovou-se uma única proposta sobre o Direito de Família, o Enunciado n. 96, segundo o qual é "válida a inserção da cláusula compromissória em pacto antenupcial e em contrato de união estável". Apesar das minhas resistências doutrinárias - pelo fato de ser difícil a separação absoluta de interesses puramente patrimoniais nas disputas de família -, não se pode negar que o enunciado representa um passo adiante na concreção prática da arbitragem, para esses âmbitos. De toda sorte, surgirão debates sobre a forma como a cláusula compromissória foi inserida em tais contratos, notadamente se houve ou não imposição de um dos consortes ao outro, sobretudo nas hipóteses fáticas em que há disparidade econômica entre eles. Passando à comissão de desjudicialização, cujo objeto principal disse respeito à atuação dos Cartórios, algumas propostas de destaque para o Direito de Família sugiram. Conforme o Enunciado n. 120, "são admissíveis a retomada do nome de solteiro e a inclusão do sobrenome do cônjuge de quem não o fez quando casou, a qualquer tempo, na constância da sociedade conjugal, por requerimento ao Registro Civil das Pessoas Naturais, independentemente de autorização judicial". Segue-se a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em sua comum valorização do nome como direito da personalidade do consorte que o incorporou. Nas suas justificativas está citado o seguinte acórdão superior: "a inclusão do sobrenome do outro cônjuge pode decorrer da dinâmica familiar e do vínculo conjugal construído posteriormente à fase de habilitação dos nubentes. Incumbe ao Poder Judiciário apreciar, no caso concreto, a conveniência da alteração do patronímico à luz do princípio da segurança jurídica" (STJ, REsp 1.648.858/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 20/08/2019, DJe 28/08/2019). Pela proposta aprovada, reconhece-se a possibilidade de efetivação dessa alteração diretamente no Cartório de Registro Civil. A propósito, na mesma linha de se reconhecer o nome como direito da personalidade, sendo viável a sua alteração na via extrajudicial, o Enunciado n. 122 prevê que "o direito à inclusão de sobrenome em virtude do reconhecimento de filiação se estende aos descendentes e cônjuge da pessoa reconhecida, faculdade a ser exercida por mero requerimento perante o Oficial de Registro Civil das Pessoas Naturais, independentemente de decisão judicial". Também a tutelar o nome da pessoa natural, porém da pessoa que nasce morta, o Enunciado n. 124 preceitua que "é direito dos genitores o registro do natimorto com inclusão de nome e demais elementos de registro, independentemente de ordem judicial, sempre que optarem por seu sepultamento, nas hipóteses em que tal providência não for obrigatória". Trata-se de proposta que dialoga com o Enunciado n. 1, aprovado na I Jornada de Direito Civil, ao reconhecer que a proteção que o Código Civil defere ao nascituro no seu art. 2º alcança o natimorto, "no que concerne aos direitos da personalidade, tais como: nome, imagem e sepultura". Mais uma vez, de forma correta, dispensa-se a ação judicial para tanto. Por fim, a respeito do nome, destaque-se o Enunciado n. 127, ao prever que "é admissível o requerimento, pelo(a) interessado(a), ao Registro Civil de Pessoas Naturais para retorno ao nome de solteiro(a), após decretado o divórcio". Tem-se aqui aplicação do Provimento n. 82/2019 do Conselho Nacional de Justiça e conforme já reconheceu o Superior Tribunal de Justiça: "O direito ao nome é um dos elementos estruturantes dos direitos da personalidade e da dignidade da pessoa humana, pois diz respeito à própria identidade pessoal do indivíduo, não apenas em relação a si, como também em ambiente familiar e perante a sociedade. Conquanto a modificação do nome civil seja qualificada como excepcional e as hipóteses em que se admite a alteração sejam restritivas, esta Corte tem reiteradamente flexibilizado essas regras, interpretando-as de modo histórico-evolutivo para que se amoldem à atual realidade social em que o tema se encontra mais no âmbito da autonomia privada, permitindo-se a modificação se não houver risco à segurança jurídica e a terceiros. Precedentes. Na hipótese, a parte, que havia substituído um de seus patronímicos pelo de seu cônjuge por ocasião do matrimônio, fundamentou a sua pretensão de retomada do nome de solteira, ainda na constância do vínculo conjugal, em virtude do sobrenome adotado ter se tornado o protagonista de seu nome civil em detrimento do sobrenome familiar, o que lhe causa dificuldades de adaptação, bem como no fato de a modificação ter lhe causado problemas psicológicos e emocionais, pois sempre foi socialmente conhecida pelo sobrenome do pai e porque os únicos familiares que ainda carregam o patronímico familiar se encontram em grave situação de saúde" (STJ, REsp 1.873.918/SP, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/03/2021, DJe 04/03/2021). Seguindo nas ementas aprovadas pela comissão de desjudicialização, consoante o Enunciado n. 121, "a manifestação do Ministério Público, nos autos do Procedimento Extrajudicial de Reconhecimento da Parentalidade Socioafetiva, é obrigatória quando a pessoa reconhecida contar com menos de 18 anos de idade na data do reconhecimento, ficando dispensada quando se tratar de pessoa reconhecida maior e capaz". A proposição interpreta corretamente o Provimento n. 83 do Conselho Nacional de Justiça, e a dispensa da atuação do MP no segundo caso está plenamente justificada pela diminuição de burocracias, tendo sido defendida por mim em textos anteriores. Sobre a união estável, aprovou-se o Enunciado n. 128, estabelecendo ser possível a sua formalização por meio do registro, "no livro E do Registro Civil de Pessoas Naturais, de instrumento particular que preencha os requisitos do art. 1.723 do CC/2002". A proposta visa a dar uma inequívoca publicidade a essa entidade familiar e fomenta a discussão sobre a possibilidade de se criar um estado civil em decorrência desse registro. Traz, assim, um conteúdo importante, não só para a teoria como para a prática. Como último enunciado a ser destacado da comissão de desjudicialização, aprovou-se que na hipótese prevista no art. 1.523, inciso II, do Código Civil não será imposto o regime de separação obrigatória de bens ao novo casamento da mulher grávida quando os contraentes firmarem declaração de que são pais do nascituro, independentemente de autorização judicial (Enunciado n. 139). Como se sabe, o último dispositivo citado estabelece a presença de causa suspensiva do casamento no caso da viúva, ou da mulher cujo casamento se desfez por ser nulo ou ter sido anulado, até dez meses depois do começo da viuvez, ou da dissolução da sociedade conjugal; o que visa a afastar confusões quanto à origem da prole, que pode repercutir patrimonialmente. A consequência da presença dessa causa suspensiva é a imposição do regime da separação legal ou obrigatória de bens (art. 1.641, inc. I, do CC). Entretanto, o parágrafo único do art. 1.523 enuncia que causa suspensiva pode ser afastada se os nubentes assim o solicitarem ao juiz, provando-se a inexistência de prejuízo, em especial a inexistência da gravidez. O enunciado aprovado amplia essa regra para os casos em que os cônjuges declaram ao Cartório de Registro Civil que o filho havido, o nascituro, é de ambos, mais uma vez reduzindo burocracias. Partindo para a comissão de novas formas e novas tecnologias, os enunciados aprovados trouxeram uma grande preocupação quanto à efetividade das plataformas digitais, que foram incrementadas nos últimos anos, sobretudo por conta da pandemia de Covid-19. Entre as propostas, destaco a que garante a participação de pessoas com deficiência no procedimento de mediação e em outras formas de resolução de conflitos, "com a observância da acessibilidade aos instrumentos, mecanismos ou tecnologias eventualmente necessárias para ela se expressar e ser compreendida" (Enunciado n. 150). O enunciado concretiza as previsões do Estatuto da Pessoa com Deficiência, com vistas à igualdade e à inclusão. Todavia, ressalvou-se que, se for "constatada a vulnerabilidade tecnológica do indivíduo para a participação em determinado ato processual, o magistrado pode facultar a realização do ato na sua forma híbrida ou presencial" (Enunciado n. 155). Por fim, quanto à comissão de mediação - a que mais aprovou propostas, e com espectro multidisciplinar -, destaco a que estabeleceu, entre os mecanismos de planejamento sucessório, a utilização da mediação, como forma de incentivar o diálogo entre as partes envolvidas e evitar ou solucionar o conflito. Segundo o Enunciado n. 167, "a mediação é instrumento extrajudicial adequado de planejamento sucessório, com aplicação preventiva aos conflitos entre herdeiros, sobre conteúdos patrimoniais e extrapatrimoniais". Trata-se de ementa que tem origem em proposta por mim formulada. De acordo com as justificativas que apresentei no evento, citando doutrina, "a mediação já é reconhecida como um dos mais eficientes mecanismos de planejamento sucessório, com o fim de colaborar preventivamente para que os herdeiros resolvam os seus conflitos de conteúdos patrimoniais e extrapatrimoniais. Como bem lecionam Fernanda Tartuce e Débora Brandão, 'o planejamento sucessório dialogado e participativo deve ser incentivado pelos advogados. A comunicação fluida deve prevalecer para que todos os envolvidos possam entender as razões do contratante do planejamento. Assim ele poderá identificar futuros rompimentos, dissabores ou estremecimentos, com algumas de suas escolhas, de modo que poderá valer-se da mediação, preventivamente. A utilização da mediação entre os futuros herdeiros necessários e o contratante do planejamento para esclarecimento de dúvidas, eliminação de ruídos e inferências que poderão culminar com ações no Poder Judiciário é medida que deve ser considerada pelos profissionais do Direito' (TARTUCE, Fernanda; BRANDÃO, Débora. Mediação em conflitos sucessórios: possibilidades antes, durante e depois da abertura da sucessão. In Arquitetura do planejamento sucessório. Coordenadora Daniele Chaves Teixeira. Belo Horizonte: Fórum, 2021, v. II, p. 221-222). As autoras citam como exemplos de conteúdo extrapatrimonial as questões relativas às diretrizes antecipadas de vontade e disposições de última vontade concernentes à cerimônia fúnebre, ao seu enterro e a bens de pouco valor do falecido". Em complemento, visando a dar efetividade prática à mediação no âmbito do inventário, destaco que no mesmo evento foi aprovado o Enunciado n. 183, segundo o qual, "nas ações de inventário envolvendo partilha de bens que compõem o espólio, instruído o processo; identificados o patrimônio; os herdeiros e os pontos controversos; o juiz, respeitada a autonomia das partes, poderá encaminhá-las para a mediação". Por fim, sobre a mediação e o Direito de Família, cito o Enunciado n. 223, segundo o qual "em conflitos familiares a mediação, combinada com outros meios, deve ser incentivada, para que as partes diminuam eventual animosidade, contemplando também a objetividade para a solução dos conflitos". A título de exemplo de sua aplicação, em ação que visa à prestação de contas de alimentos, o mediador deve estar mais atento a questões que dizem respeito aos valores devidos em si do que a questões relativas a divergências pessoais entre as partes. De fato, como se retira dos enunciados aqui analisados, sem prejuízo de outros, como bem escreveu o Ministro Luis Felipe Salomão em seu prefácio ao caderno de publicação dos enunciados aprovados, "essa Jornada foi um marco, um passo além com vistas a ampliar a utilização das soluções extrajudiciais como ferramenta útil à resolução de litígios. A implementação de mecanismos extrajudiciais de pacificação eficientes e que não desvirtuem os ideais de justiça permite a desobstrução do Judiciário, mantendo as garantias sociais e os direitos fundamentais" (disponível aqui. Acesso em: 22 out. 2021). Espera-se, assim, que os enunciados aprovados nessa II Jornada de Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios tenham a efetiva aplicação prática, contribuindo para o incremento do acesso à Justiça e para se evitar e também solucionar os conflitos que surgirem.
A lei 12.424, de 16 de junho de 2011, incluiu no sistema a usucapião especial urbana individual por abandono do lar, também conhecida como usucapião familiar. Conforme o art. 1.240-A do Código Civil, "aquele que exercer, por 2 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural". Em complemento, o seu § 1º estabelece que "o direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez". Como se pode perceber, o instituto traz algumas semelhanças em relação à usucapião constitucional ou especial urbana individual que já estava prevista no sistema, que pode ser denominada como regular, prevista no art. 1.240 do Código Civil e no art. 183 da Constituição Federal. De início, cito a dimensão de 250 m², que é exatamente a mesma, procurando o legislador manter a uniformidade legislativa. Isso, apesar de que em alguns locais a área pode ser tida como excessiva, conduzindo a usucapião de imóveis de valores milionários. Ademais, o novo instituto somente pode ser reconhecido uma vez, desde que o possuidor não tenha um outro imóvel urbano ou rural. A principal novidade da norma transcrita foi a redução do prazo para exíguos dois anos, o que faz com que a nova categoria seja aquela com o menor prazo previsto entre todas as modalidades de usucapião, inclusive em relação aos bens móveis - hipótese em que o prazo menor era de três anos (art. 1.260 do CC). A tendência contemporânea é justamente a de redução dos prazos legais, eis que a realidade possibilita a tomada de decisões com maior rapidez. O abandono do lar é tido como fator determinante para a incidência da norma, somado ao estabelecimento da moradia com posse direta. O comando pode atingir cônjuges ou companheiros, inclusive homoafetivos, diante do amplo reconhecimento jurídico da união e do casamento homoafetivo. Fica claro que o instituto tem incidência restrita entre os componentes da entidade familiar, sendo esse o seu âmbito de aplicação. Nesse sentido, enunciado doutrinário aprovado na V Jornada de Direito Civil, com a seguinte redação: "a modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil pressupõe a propriedade comum do casal e compreende todas as formas de família ou entidades familiares, inclusive homoafetivas" (Enunciado n. 500). Como outra questão prática de relevo, em havendo disputa, judicial ou extrajudicial, relativa ao imóvel, não ficará caracterizada a posse ad usucapionem, não sendo o caso de subsunção do preceito. Eventualmente, o cônjuge ou companheiro que abandonou o lar pode notificar o ex-consorte, para demonstrar o impasse relativo ao bem, afastando o cômputo do prazo, especialmente pelas ausências da posse pacífica e do animus domini. Trazendo essa ideia, do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro: "Acolhimento do pedido de reconhecimento de domínio pela usucapião que se mostra inviável. Instituto da usucapião familiar/conjugal, previsto no artigo 1.240-A que pressupõe que o imóvel que se pretende usucapir seja, por força do regime de bens, do casal, em comunhão, decorrente do regime de bens do casamento ou da união estável, ou em condomínio. Imóvel que, no caso em tela, pertence unicamente ao primeiro réu, o qual o recebeu em doação quando ainda era menor. Demais modalidades que imprescindem do animus domini, não demonstrado na hipótese em exame. Permanência da autora no imóvel, juntamente com os filhos do ex-casal, que indica somente a tolerância com a situação fática acarretada pelo rompimento do vínculo conjugal. Incidência do art. 1.208 do Código Civil. Notificação extrajudicial realizada que cumpriu a finalidade de denunciar o contrato e demonstrou o interesse da usufrutuária e do nu-proprietário em reaver o imóvel, perfectibilizando-se o esbulho. Incidência do artigo 582 do Código Civil" (TJRJ, Apelação n. 0390522-36.2016.8.19.0001, Rio de Janeiro, Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Heleno Ribeiro Pereira Nunes, DORJ 10/06/2021, p. 298). Ou, ainda, do Tribunal Paulista: "Embora o réu tenha constituído nova família, não restou configurado abandono. Réu que vem pagando pensão alimentícia e exercendo o direito de visitas à filha comum do casal. Mera ocupação autorizada do imóvel comum que restou continuada diante de permissão do coproprietário. Ausente requisito do animus domini para o seu reconhecimento" (TJ/SP, Apelação cível n. 1002348-40.2016.8.26.0704, Acórdão n. 14935725, São Paulo, Décima Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Elcio Trujillo, julgado em 19/08/2021, DJESP 24/08/2021, p. 1668). Tem-se entendido, com razão, que o requisito do abandono do lar merece uma interpretação objetiva e cautelosa. Nessa linha, o Enunciado n. 499 aprovado na V Jornada de Direito Civil, em 2011, que analisava muito bem a temática: "a aquisição da propriedade na modalidade de usucapião prevista no art. 1.240-A do Código Civil só pode ocorrer em virtude de implemento de seus pressupostos anteriormente ao divórcio. O requisito 'abandono do lar' deve ser interpretado de maneira cautelosa, mediante a verificação de que o afastamento do lar conjugal representa descumprimento simultâneo de outros deveres conjugais, tais como assistência material e dever de sustento do lar, onerando desigualmente aquele que se manteve na residência familiar e que se responsabiliza unilateralmente pelas despesas oriundas da manutenção da família e do próprio imóvel, o que justifica a perda da propriedade e a alteração do regime de bens quanto ao imóvel objeto de usucapião" (Enunciado n. 499). Como incidência concreta desse enunciado doutrinário anterior, não se pode admitir a aplicação da nova usucapião nos casos de atos de violência praticados por um cônjuge ou companheiro para retirar o outro do lar conjugal. Em suma, a expulsão do cônjuge ou companheiro não pode ser comparada ao abandono. Outra aplicação da última ementa doutrinária diz respeito ao afastamento de qualquer debate a respeito da culpa, com o fim de influenciar a usucapião a favor de um ou outro consorte. Na verdade, existindo qualquer controvérsia a respeito do imóvel, não há que se falar em posse ad usucapionem com a finalidade de gerar a aquisição do domínio. De toda sorte, na VII Jornada de Direito Civil, realizada em 2015, o Enunciado n. 499 foi cancelado, substituído por outro com linguagem mais clara, que parece englobar as hipóteses aqui mencionadas. Nos termos da nova ementa doutrinária, "o requisito do 'abandono do lar' deve ser interpretado na ótica do instituto da usucapião familiar como abandono voluntário da posse do imóvel somado à ausência da tutela da família, não importando em averiguação da culpa pelo fim do casamento ou união estável. Revogado o Enunciado 499" (Enunciado n. 595). Penso que o novo enunciado não inova substancialmente, trazendo como conteúdo exatamente o que estava tratado no anterior, ora cancelado, apenas com o uso de termos mais claros e objetivos. Merece destaque outro enunciado doutrinário aprovado na V Jornada, que conclui que não é requisito indispensável para a nova usucapião o divórcio ou a dissolução da união estável, bastando a mera separação de fato: "as expressões 'ex-cônjuge' e 'ex-companheiro', contidas no artigo 1.240-A do Código Civil, correspondem à situação fática da separação, independentemente de divórcio" (Enunciado n. 501). Julgando dessa forma, somente para ilustrar: "o evento a quo para o início da contagem do prazo prescricional é a separação de fato do casal, com o abandono do lar por um dos cônjuges" (TJ/SP, Apelação n. 0023846-23.2012.8.26.0100, Acórdão n. 7215564, São Paulo, Segunda Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Carlos Ferreira Alves, julgado em 03/12/2013, DJESP 21/01/2014). Na mesma V Jornada de Direito Civil concluiu-se que "o conceito de posse direta do art. 1.240-A do Código Civil não coincide com a acepção empregada no art. 1.197 do mesmo Código" (Enunciado n. 502 da V Jornada de Direito Civil). Isso porque o imóvel pode ser ocupado por uma pessoa da família do ex-cônjuge ou ex-companheiro que pleiteia a usucapião, caso de seu filho, conforme consta do próprio dispositivo. Em casos tais, pelo teor do enunciado e na minha opinião doutrinária, a usucapião é viável juridicamente. Como última questão divergente a ser exposta neste breve texto, há intenso debate a respeito da competência para apreciar tal modalidade de usucapião, se da Vara de Registros Públicos, da Vara Cível ou da Vara da Família. Em discussões recentes, em grupos digitais, percebi que a primeira corrente prevalece entre os civilistas, enquanto a segunda entre os familiaristas. Entendo que, por se tratar de questão eminentemente civil, em que a primeira análise para a configuração do instituto diz respeito à configuração ou não da posse ad usucapionem, a competência deve ser das duas primeiras. Exatamente nesse sentido decidiu recentemente o Tribunal de Justiça de São Paulo, confirmando a posição do seu Órgão Especial, que "a questão afeta à competência para apreciação da usucapião familiar já foi solucionada pelo Órgão Especial desse Egrégio Tribunal de Justiça, cabendo às varas cíveis ou de registros públicos (onde não houver varas cíveis) apreciar a matéria" (TJSP, Apelação cível n. 1020898-41.2019.8.26.0005, Acórdão n. 14851731, São Paulo, Oitava Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Silvério da Silva, julgado em 26/07/2021, DJESP 30/07/2021, p. 2831). Na mesma linha, julgou o Tribunal de Justiça do Distrito Federal que "a relação jurídica em discussão, de ordem eminentemente patrimonial, no que se compreende a pretensão inicial de usucapião familiar, com fundamento no art. 1.240-A do Código Civil, atrai inexoravelmente a competência do Juízo Cível. Súmula n. 24 do TJDFT e precedente julgado na 2ª Câmara Cível" (TJDF, Apelação cível n. 00380.18-62.2016.8.07.0001, Acórdão n. 134.4789, Sétima Turma Cível, Rel. Des. Fábio Eduardo Marques, julgado em 09/06/2021). Por fim, do Tribunal Fluminense, em prejuízo de muitos outros julgados, sendo essa a posição majoritária das Cortes Estaduais brasileiras: "o objeto da demanda é a aquisição originária da propriedade do imóvel em que reside a autora, de modo que a matéria a ser apreciada e julgada nos autos é de natureza eminente patrimonial, não havendo qualquer questão relativa à relação familiar. Matéria que não se encontra no rol da competência das varas de família, expressamente delimitada no art. 43 da LODJ" (TJRJ, Apelação n. 0012457-50.2019.8.19.0210, Décima Quinta Câmara Cível, Rel. Des. Ricardo Rodrigues Cardozo, DORJ 29/07/2020, p. 371). Esse último entendimento ganha força diante da comum situação de os autores das ações de usucapião alegarem a presença não só de uma de suas modalidades. Assim, é usual que a parte alegue não só a usucapião familiar, mas também a usucapião ordinária e a extraordinária, pela presença de requisitos cumulativos, de uma ou outra categoria. A configuração ou não de seus elementos é melhor apreciada pelo Juízo Cível do que pelo Juízo da Família, na minha opinião. Não se pode negar, contudo, que a questão não é pacífica, existindo acórdãos em sentido contrário, como nas hipóteses em que a usucapião é alegada como matéria de defesa em ações de divórcio ou de dissolução de união estável. Ou, ainda, as hipóteses concretas em que há divergência a respeito da presença ou não de uma união estável, motivadora da usucapião. Trazendo essa solução, pela competência da Vara da Família, colaciono o seguinte julgado, do Tribunal de Santa Catarina: "APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DIVÓRCIO C/C PARTILHA DE BENS. CASAMENTO SOB O REGIME DE COMUNHÃO UNIVERSAL DE BENS. SENTENÇA DE DETERMINOU A DIVISÃO DO IMÓVEL ADQUIRIDO PELOS LITIGANTES. RECURSO DA RÉ. DECISÃO EXTRA PETITA. INOCORRÊNCIA. JUIZ QUE DECIDIU CONFORME INTERPRETAÇÃO DOS FATOS NARRADOS PELAS PARTES. APELANTE QUE ALEGA QUE O EX-MARIDO ABANDONOU O LAR CONJUGAL, E PORTANTO O IMÓVEL DEVE SER EXCLUÍDO DA PARTILHA, POIS CONFIGUROU-SE A USUCAPIÃO FAMILIAR. APELADO QUE SEMPRE MANTEVE CONTATO COM A FILHA DO CASAL. ABANDONO DO LAR NÃO COMPROVADO. REQUISITOS DA USUCAPIÃO FAMILIAR (ART. 1.240-A, DO CÓDIGO CIVIL) NÃO PREENCHIDOS. COMPETÊNCIA DA VARA DA FAMÍLIA DA AÇÃO QUE VERSA SOBRE USUCAPIÃO FAMILIAR. AÇÃO CONEXA POR IDENTIDADE DE OBJETOS À AÇÃO DE DIVÓRCIO DADO QUE ENVOLVE RELAÇÃO FAMILIAR. SENTENÇA MANTIDA. RECURSO CONHECIDO E DESPROVIDO. Para que se configure a usucapião familiar, é necessário que o ex-cônjuge ou ex-companheiro tenha abandonado o lar conjugal de forma dolosa, deixando o núcleo familiar à própria sorte, ignorando o que a família um dia representou. Assim, a simples saída de casa, não configura o abandono do lar, que deve ser interpretado de maneira cautelosa, com provas robustas amealhadas ao longo da instrução processual" (TJSC, Apelação cível n. 0303473-85.2016.8.24.0075, Tubarão, Terceira Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Saul Steil, DJSC 12/03/2018, p. 142). Como palavras finais para este breve texto, não se pode negar que existem argumentos consideráveis para os dois caminhos a respeito da competência. De todo modo, reafirmo o meu entendimento no sentido de se tratar de tema relacionado a matéria predominantemente civil, sendo certo que a grande maioria das demandas de usucapião, como aqui se demonstrou, traz o debate sobre a caracterização ou não da posse ad usucapionem.
As aplicações da autonomia privada ao Direito de Família estão novamente no cerne do debate neste momento, o que tem relação direta com uma tendência percebida nos últimos anos de "contratualização" da matéria. Como já desenvolvi em textos anteriores, a sua viabilidade foi analisada, em território brasileiro, no ano de 2014, quando da realização, na cidade do Recife, da XV Conferência Mundial da International Society of Family Law (ISFL). Nesse evento, houve um histórico e marcante painel do qual participaram os professores Frederik Swennen e Elisabeth Alofs, da Bélgica. O primeiro jurista defendeu a premissa da "contratualização" e a segunda a "descontratualização", em um raro debate de visões antagônicas e de profundos contrapontos doutrinários visto no Brasil. Ali se comparou a autonomia privada a um pêndulo e o professor Swennen demonstrou como ele poderia ser mais pesado no âmbito do Direito de Família. Esse peso se dá justamente pelo fato de existirem muitas normas cogentes ou de ordem pública no âmbito do Direito de Família, a limitarem a liberdade manifestada nos pactos firmados nesse campo. Justamente pela presença de um peso maior, muitos têm defendido a "contratualização" como uma suposta fuga dessa intervenção, o que acaba sendo um engano. Sobre a definição do que seja a autonomia privada, essa pode ser conceituada como a liberdade de autorregulamentação negocial, ou seja, a liberdade que a pessoa tem de regular os seus próprios interesses. Nos dizeres de Francisco Amaral, que muito me influenciou, "a autonomia privada é o poder que os particulares têm de regular, pelo exercício de sua própria vontade, as relações que participam, estabelecendo-lhe o conteúdo e a respectiva disciplina jurídica. Sinônimo de autonomia da vontade para grande parte da doutrina contemporânea, com ela porém não se confunde, existindo entre ambas sensível diferença. A expressão 'autonomia da vontade' tem uma conotação subjetiva, psicológica, enquanto a autonomia privada marca o poder da vontade no direito de um modo objetivo, concreto e real" (AMARAL, Francisco. Direito Civil. Introdução. Rio de Janeiro: 5ª Edição, Renovar, 2003, p. 347-348). Ademais, a autonomia privada - ao contrário da expressão autonomia da vontade - traz em seu conteúdo a necessidade imperiosa de respeito e de observância a normas de ordem pública e a outros princípios contratuais, como são, no caso do Código Civil Brasileiro, a função social do contrato (art. 421) e a boa-fé objetiva (art. 422). No Direito Italiano, isso foi muito bem observado por Enzo Roppo, doutrinador cujo referencial a mim é conhecido, o que fez com que eu até o homenageasse dando o seu nome a um dos meus filhos. Segundo ele, "a autonomia e a liberdade dos sujeitos privados em relação à escolha do tipo contratual, embora afirmada, em linha de princípio, pelo art. 1.322.º c. 2 Cód. Civ. estão, na realidade, bem longe de ser tomadas como absolutas, encontrando, pelo contrário, limites não descuráveis no sistema de direito positivo" (O contrato. Coimbra: Almedina, 1988. p. 137). Reconhece Roppo, na sequência de sua obra, a existência de claras restrições à vontade manifestada nos negócios. Primeiro percebe-se uma limitação sobre a própria liberdade de celebrar ou não o contrato. Em outras ocasiões, sinaliza o grande jurista italiano que as limitações são também subjetivas, pois se referem às pessoas com quem as avenças são celebradas. A realidade jurídica brasileira nunca foi e não é diferente. No campo dos contratos e dos negócios jurídicos em geral, a autonomia privada se desdobra em duas liberdades. Inicialmente, percebe-se a liberdade para a celebração dos pactos e avenças com determinadas pessoas, sendo o direito à contratação inerente à própria concepção de pessoa um direito advindo do princípio da liberdade. Essa é a liberdade de contratar, que está relacionada com a escolha da pessoa ou das pessoas com quem o negócio será celebrado, bem como com o momento em que se contrata, sendo uma liberdade plena, pelo menos em regra e na grande maioria das vezes. De fato, poucas e raras devem ser as restrições a essa liberdade de contratar. Em outro plano, a autonomia pode estar relacionada com o conteúdo do pacto, ponto em que residem limitações maiores à liberdade da pessoa. Trata-se, portanto, da liberdade contratual, que tem relação específica com as previsões que as partes escolheram para a regulamentação dos seus interesses, com as cláusulas contratuais propriamente ditas. Dessa dupla liberdade do sujeito contratual é que decorre a autonomia privada, que não é absoluta, encontrando limitações em normas de ordem pública e outros princípios, afirmação que existe em nosso Direito desde sempre. Filio-me, portanto, à parcela da doutrina que propõe a citada substituição do princípio da autonomia da vontade pelo princípio da autonomia privada também diante dessas notórias restrições. Como sustenta Fernando Noronha "foi precisamente em consequência da revisão a que foram submetidos o liberalismo econômico e, sobretudo, as concepções voluntaristas do negócio jurídico, que se passou a falar em autonomia privada, de preferência à mais antiga autonomia da vontade. E, realmente, se a antiga autonomia da vontade, com o conteúdo que lhe era atribuído, era passível de críticas, já a autonomia privada é noção não só com sólidos fundamentos, como extremamente importante" (O direito dos contratos e seus princípios fundamentais: autonomia privada, boa-fé, justiça contratual. São Paulo: Saraiva, 1994, p. 113). Por isso, tenho sustentado que são desatualizadas normas recentes que utilizam o superado termo autonomia da vontade, caso da Lei de Mediação (lei 13.140/2015, art. 2.º, inc. V) e da Reforma Trabalhista (lei 13.467/2017). A propósito, a Medida Provisória 881, de 2019, também trazia a expressão autonomia da vontade no seu art. 3.º, inc. V. Porém, de forma correta, na sua conversão na Lei da Liberdade Econômica, o dispositivo passou a utilizar a expressão autonomia privada, no sentido de ser um dos direitos de concretização dessa liberdade, nos termos do art. 170 da Constituição Federal, "gozar de presunção de boa-fé nos atos praticados no exercício da atividade econômica, para os quais as dúvidas de interpretação do direito civil, empresarial, econômico e urbanístico serão resolvidas de forma a preservar a autonomia privada, exceto se houver expressa disposição legal em contrário" (lei 13.874/2019). Em complemento, como tenho sustentado, a própria Lei da Liberdade Econômica acabou por positivar o princípio da autonomia privada, valorizando a liberdade contratual, desde que isso não contrarie normas cogentes ou de ordem pública. Nesse sentido, merece destaque o seu art. 3º, inc. VIII, que prevê, como outro direito de concretização da liberdade econômica, "ter a garantia de que os negócios jurídicos empresariais paritários serão objeto de livre estipulação das partes pactuantes, de forma a aplicar todas as regras de direito empresarial apenas de maneira subsidiária ao avençado, exceto normas de ordem pública". O texto é bem melhor do que o originário, que constava da MP 881, que chegava a estabelecer que uma parte de um contrato empresarial não poderia alegar lesão a norma de ordem pública que ela própria inseriu. Por intervenções de muitos juristas no Congresso Nacional - por frentes distintas, caso deste autor -, a norma foi consideravelmente alterada para a sua redação atual. Não se olvide que o principal foco da Lei da Liberdade Econômica é o contrato civil ou empresarial paritário, com conteúdo amplamente negociado entre as partes, geralmente em posição de igualdade. E, mesmo em tais contratos, celebrados entre grandes e poderoso agentes econômicos, há a necessidade de se observar os preceitos de ordem pública. A lei mais "liberal" do nosso país traz essa ressalva... O que dizer, então, das relações familiares, sobretudo as relações estabelecidas entre cônjuges e companheiros, em que geralmente se defende e se prega a "contratualização"? É claro que também nos pactos firmados entre eles, muitas vezes como hipossuficiência econômica de uma das partes, há que se respeitar as normas cogentes. Isso, aliás, está previsto no art. 1.655 do Código Civil, ao controlar a validade das previsões constantes do pacto antenupcial, in verbis: "é nula a convenção ou cláusula dela que contravenha disposição absoluta de lei". Como "disposição absoluta de lei", entendam-se justamente as normas de ordem pública, premissa que também se aplica aos contratos de convivência, firmados entre companheiros. A título de exemplo de sua subsunção, serão nulas as seguintes cláusulas constantes do pacto antenupcial ou em contrato de convivência, diante da existência de normas de ordem pública ou de matéria cogente, que visam a uma determinada proteção: a) previsão contratual que estabelece que o marido, nos regimes da comunhão universal ou parcial de bens, possa vender imóvel sem outorga conjugal, afastando o art. 1.647, inc. I, do CC; b) cláusula que determina a administração dos bens de forma exclusiva pelo marido, pois a mulher é incompetente para tanto, afastando a isonomia constitucional; c) cláusula que estabeleça a renúncia prévia aos alimentos, infringindo a absoluta regra do art. 1.707 do CC; d) cláusula que regulamenta previamente as regras referentes à guarda dos filhos, para o caso de divórcio do casal; e) cláusula que imponha multa para caso de infidelidade, sendo certo que as perdas e os danos não podem ser fixados previamente em casos tais, pois a eventual responsabilidade que surge do fim do vínculo tem natureza extracontratual, envolvendo questões de ordem pública; f) cláusula que afaste o regime da separação obrigatória de bens nas hipóteses descritas pelo art. 1.641 do CC; e g) cláusula que exclui expressamente o direito sucessório do cônjuge sobrevivente, afastando as regras da sucessão legítima e trazendo a renúncia prévia à herança, havendo claro pacto sucessório, em infringência ao art. 426 do Código Civil. A respeito do último exemplo, a propósito, em hipótese concreta em que houve a tentativa de se criar um regime de separação total de bens com efeitos sucessórios, para que não houvesse herança no caso concreto, violando a proibição das pacta corvina, julgou-se que "as normas de direito sucessório dispostas no Título II, Capítulo I, do Código Civil (artigos 1.829 e seguintes) são de caráter cogente, não se admitindo disposição em contrário, revestindo-se de nulidade, nos termos do artigo 1.655 do Código Civil, toda e qualquer norma que confronte disposição legal" (TJMT, Apelação 15809/2016, Capital, Rel. Des. Sebastião Barbosa Farias, j. 21.06.2016, DJMT 24.06.2016, p. 82). Na mesma linha, sobre a tentativa de se afastar a concorrência sucessória por meio de pacto antenupcial, o que é nulo, mais uma vez por infração ao art. 426 do Código Civil: "o Código Civil de 2002 trouxe importante inovação, erigindo o cônjuge como concorrente dos descendentes e dos ascendentes na sucessão legítima. Com isso, passou-se a privilegiar as pessoas que, apesar de não terem qualquer grau de parentesco, são o eixo central da família. Em nenhum momento o legislador condicionou a concorrência entre ascendentes e cônjuge supérstite ao regime de bens adotado no casamento. Com a dissolução da sociedade conjugal operada pela morte de um dos cônjuges, o sobrevivente terá direito, além do seu quinhão na herança do de cujus, conforme o caso, à sua meação, agora sim regulada pelo regime de bens adotado no casamento. O artigo 1.655 do Código Civil impõe a nulidade da convenção ou cláusula do pacto antenupcial que contravenha disposição absoluta de lei" (STJ, REsp 954.567/PE, 3.ª Turma, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 10.05.2011, DJe 18.05.2011). Como consta do voto do relator, "a pretensão da recorrente de que o pacto antenupcial teria excluído o viúvo da sucessão dos bens próprios da falecida não prospera, porquanto o artigo 1.655 do Código Civil impõe a nulidade da convenção ou cláusula do pacto antenupcial que contravenha disposição absoluta de lei". Como última nota de relevo sobre o tema deste breve artigo, é fundamental deixar claro que a eventual nulidade de cláusula do pacto antenupcial não pode prejudicar o restante do ato, o que é a aplicação do princípio da conservação dos negócios jurídicos, que visa justamente à manutenção da autonomia privada, também quanto ao que foi pactuado entre as partes em sede de casamento ou união estável. Assim, a parte útil do negócio jurídico não fica viciada pela inútil, aplicando-se a máxima utile per inutile non vitiatur. Como está previsto no art. 184, primeira parte, do CC, "respeitada a intenção das partes, a invalidade parcial de um negócio jurídico não o prejudicará na parte válida, se esta for separável". No campo dos contratos, tem-se associado essa conservação à sua função social, como preceitua o Enunciado n. 22, da I Jornada de Direito Civil: "a função social do contrato, prevista no art. 421 do novo Código Civil, constitui cláusula geral que reforça o princípio de conservação do contrato, assegurando trocas úteis e justas". No meu entendimento, sendo reconhecida a "contratualização do Direito de Família", além do respeito às normas de ordem pública, é preciso valorizar essa ideia de preservação da autonomia privada, sempre que isso for possível.
O Conselho Federal de Medicina (CFM) editou, no último dia 27 de maio de 2021, a sua resolução nº 2.294, tratando mais uma vez das normas éticas para a utilização das técnicas de reprodução assistida (TRA). Como consta do seu preâmbulo, isso foi feito, novamente, "em defesa do aperfeiçoamento das práticas e da observância aos princípios éticos e bioéticos que ajudam a trazer maior segurança e eficácia a tratamentos e procedimentos médicos, tornando-se o dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros e revogando a resolução CFM n. 2.168". Como é notório, trata-se de uma regulamentação sem a "carga" de norma jurídica, sendo dirigida a esses profissionais da área da saúde e às clínicas, centros ou serviços de reprodução que lidam com as citadas técnicas. Do ponto de vista jurídico, existem várias dúvidas teóricas e práticas decorrentes do art. 1.597 do Código Civil, particularmente dos seus últimos três incisos, que tratam justamente das citadas técnicas de reprodução assistida. Consoante as suas previsões, presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos: "III - havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido; IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga; V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido". Como se percebe, a codificação privada não tratou propriamente dos procedimentos e limites das técnicas de RA, prevendo apenas que a sua utilização pode gerar a presunção de paternidade em relação ao marido que a planejou e confirmando a antiga máxima pater is est. Tem-se entendido, ademais, que a presunção do vínculo de filiação pode estar presente no caso de uma união estável, como se retira do Enunciado n. 570, aprovado na VI Jornada de Direito Civil: "o reconhecimento de filho havido em união estável fruto de técnica de reprodução assistida heteróloga 'a patre' consentida expressamente pelo companheiro representa a formalização do vínculo jurídico de paternidade-filiação, cuja constituição se deu no momento do início da gravidez da companheira". Sobre as regras do Conselho Federal de Medicina, em 15 de dezembro de 2010, foi editada a resolução n. 1.957, em substituição à antiga resolução n. 1.358/1992, que foi aplicada por quase vinte anos e que apresentava muitas insuficiências. Após isso, sucessivas foram as normas deontológicas que sugiram. Em 2013, veio a resolução n. 2.013, que procurou aperfeiçoar de forma considerável o tratamento da matéria, diante de muitos debates travados à época, como a possibilidade de casais homoafetivos e pessoas solteiras fazerem uso das técnicas. Novamente, em setembro de 2015, foi publicada a resolução n. 2.121, revogando a anterior. Em novembro de 2017 emergiu a resolução n. 2.168, agora substituída pela resolução n. 2.294. Como se observa, diante dos avanços científicos, das mudanças pelas quais passou a sociedade e do incremento da utilização das técnicas de RA no Brasil, entendeu-se pela necessidade de contínuos aperfeiçoamentos em curtos espaços de tempo. Também a merecer destaque, em março de 2016, a Corregedoria-Geral do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento n. 52, regulamentando as condutas dos Cartórios de Registro Civil no tocante à reprodução assistida. Em 14 de novembro de 2017 surgiu o Provimento n. 63, do próprio CNJ, em substituição ao anterior, já sob influência da decisão do STF sobre a parentalidade socioafetiva (STF, RE 898.060/SC, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luiz Fux, j. 21.09.2016). Além de tratar da reprodução assistida, a última norma administrativa cuidou também da parentalidade socioafetiva, de forma inédita. Em 14 de agosto de 2019, a mesma Corregedoria-Geral de Justiça do CNJ editou o Provimento n. 83, que altera o anterior Provimento n. 63/2017, em especial quanto ao tratamento do reconhecimento extrajudicial da parentalidade socioafetiva. Não houve modificações quanto à reprodução assistida na última norma. A quantidade de regras a respeito do tema chega a deixar atordoado mesmo o mais experiente aplicador do Direito. Pois bem, sobre a última norma ética do Conselho Federal de Medicina, poucas foram as inovações substanciais introduzidas, confrontando-se com as anteriores, o que pretendo neste texto analisar brevemente, sem prejuízo de novas reflexões e estudos sobre o tema. Como primeira inovação, houve alteração no número de embriões a serem transferidos, a depender da idade. Pela norma anterior, de 2017, as determinações eram as seguintes: a) mulheres até 35 anos: até 2 embriões; b) mulheres entre 36 e 39 anos: até 3 embriões; c) mulheres com 40 anos ou mais: até 4 embriões. Por decorrência de estudos científicos, houve modificação nas idades. Agora, as determinações são as seguintes, pela resolução n. 2.294/2021: a) mulheres com até 37 (trinta e sete) anos: até 2 (dois) embriões; e b) mulheres com mais de 37 (trinta e sete) anos: até 3 (três) embriões. Sobre os pacientes das técnicas de reprodução assistida (Capítulo II da resolução), passou-se a mencionar expressamente que os transgêneros ou pessoas trans podem fazer uso das técnicas, conclusão que, no meu entender, já era retirada da mesma norma da resolução anterior, pela menção a qualquer pessoa solteira (item 2). Também foram feitas alterações no tratamento da doação de gametas ou embriões, que formam o Capítulo IV da atual Resolução n. 2.294/2021. No seu item 2, foi mantida a regra de tutela da identidade dos seus doadores e receptores. Porém, por razões óbvias, introduziu-se uma exceção a respeito da doação de gametas para parentes até o quarto grau de um dos receptores, desde que não incorra em consanguinidade. No item 3, houve modificação da idade limite para a doação de gametas, de 37 anos para mulheres e de 45 anos para homens. As idades anteriores eram de 35 anos para mulheres e de 50 anos para homens, tendo havido a redução no último caso, novamente em virtude de estudos científicos. De toda sorte, passaram a ser admitidas exceções, uma vez que, em decorrência do novo item 3.1, "exceções ao limite da idade feminina poderão ser aceitas nos casos de doação de oócitos e embriões previamente congelados, desde que a receptora/receptores seja(m) devidamente esclarecida(os) dos riscos que envolvem a prole", em virtude das idades dos doadores de gametas. Ainda nesse Capítulo IV da Resolução n. 2.294/2021 do CFM, os preceitos que mais têm gerado debates são os seus novos itens 10 e 11. Conforme o primeiro deles, a responsabilidade pela seleção dos doadores é exclusiva dos usuários quando da utilização de banco de gametas ou embriões. Em complemento, pelo segundo preceito, na eventualidade de embriões formados de doadores distintos, a transferência embrionária deverá ser realizada com embriões de uma única origem para a segurança da prole e rastreabilidade. Os comandos devem ser analisados dentro dos propósitos de seus conteúdos, que é o de regulamentar a atuação ética dos médicos, como normas deontológicas que são. Sendo assim, não têm o condão de afastar ou mesmo atenuar a eventual responsabilização civil dos profissionais por suas condutas, especialmente se comprovadas as suas culpas, por violação de deveres legais ou contratuais. Como antes pontuado, as resoluções do CFM não têm a "carga" de norma jurídica, não podendo ser admitidas como excludentes, total ou parcialmente, da responsabilidade civil dos médicos ou das clínicas, tema restrito à lei federal, de iniciativa do Congresso Nacional, por força do art. 22, inc. I, da Constituição Federal de 1988. No Capítulo V, a respeito da criopreservação de gametas e embriões, manteve-se a previsão de que as clínicas, centros ou serviços podem criopreservar espermatozoides, oócitos, embriões e tecidos gonadais (item 1). Na sequência, está expresso que o número total de embriões gerados em laboratório não poderá exceder a oito, sendo certo que não havia tal limitação na norma anterior, de 2017. Diante dessa nova restrição, será comunicado aos pacientes para que eles decidam quantos embriões serão transferidos a fresco. Os embriões excedentes viáveis continuam sendo criopreservados, exatamente como estava na regulamentação anterior. Entretanto, agora está enunciado que, como não há previsão prévia de embriões viáveis ou quanto à sua qualidade, a decisão deverá ser tomada posteriormente a essa etapa. Seguindo no estudo da resolução n. 2.294/2021 do CFM, no Capítulo VI, sobre o diagnóstico genético pré-implantacional de embriões, o item 1 preceitua que as técnicas de RA podem ser aplicadas à seleção de embriões submetidos a diagnóstico de alterações genéticas causadoras de doenças, podendo nesses casos ser doados para pesquisa ou descartados, conforme a decisão dos pacientes, devidamente documentada com consentimento informado livre e esclarecido específico. Aqui também não houve qualquer alteração. Entretanto, como inovação que visa a tratar de informações sensíveis do próprio embrião, passou-se a prever que, no laudo da avaliação genética, só é permitido informar se o embrião é masculino ou feminino em casos de doenças ligadas ao sexo ou de aneuploidias (alterações numéricas) de cromossomos sexuais. Por fim, sobre a gestação ou cessão temporária e gratuita de útero - equivocadamente chamada de "barriga de aluguel", pois não se admite qualquer remuneração -, continua a resolução a estabelecer que "as clínicas, centros ou serviços de reprodução podem usar técnicas de RA para criar a situação identificada como gestação de substituição, desde que exista um problema médico que impeça ou contraindique a gestação, ou em caso de união homoafetiva ou de pessoa solteira" (Capítulo VI). Duas foram as inovações incluídas a respeito do tema, pela Resolução n. 2.294/2021. No seu item 1, passou-se a exigir que a cedente temporária do útero tenha ao menos um filho vivo, o que tende a proteger o novo filho gerado, pela exigência de uma experiência gestacional anterior. Foram mantidas as previsões de que a cedente temporária de útero ou gestatrix pertença à família de um dos parceiros, em parentesco consanguíneo até o quarto grau; e que os demais casos, além desse grau de parentesco, estão sujeitos a avaliação e autorização do Conselho Regional de Medicina. Como derradeira regra a ser comentada, no item 2 deste Capítulo VI foi incluída uma ressalva de que a clínica de reprodução assistida não poderá intermediar a escolha da cedente temporária do útero, o que tem um conteúdo ético indiscutível e louvável. Como se pode observar, de fato, a resolução n. 2.294/2021 do Conselho Federal de Medicina em pouco inovou no tratamento da reprodução assistida, ao contrário das normas éticas antecedentes, que sempre trouxeram modificações de maior impacto. Como tenho sustentado, para se ter maior certeza, segurança e estabilidade a respeito dessa intrincada temática, há a necessidade de se aprovar uma norma jurídica sobre ela, um "Estatuto da Reprodução Assistida", como é o caso de projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional, e que já necessitam de aperfeiçoamentos.
As homenagens ao grande mestre Zeno Veloso seguem, com o intuito de propagar ainda mais as suas ideias e perpetuar o seu legado, como grande jurista que foi. Entre essas louváveis iniciativas, fiquei muito honrado com o convite formulado pela Diretoria da Associação dos Advogados de São Paulo (AASP), na pessoa da sua presidente, a professora Viviane Girardi, para uma edição especial da sua prestigiada Revista do Advogado, que prestará mais uma homenagem ao jurista, coordenada pelos professores Giselda Hironaka e José Fernando Simão. O meu texto - escrito em coautoria com o professor Anderson Schreiber - trata de algumas das contribuições do homenageado para o tema da invalidade do negócio jurídico, assunto tratado em um de seus principais livros, que muito me influenciou, com o título Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade, publicado pela Editora Del Rey, sendo a sua segunda e última edição do ano de 2005, com comentários sobre o Código Civil de 2002. Neste meu artigo, procurarei discorrer sobre apenas um dos assuntos que constam daquele nosso texto, qual seja, os efeitos da sentença da ação anulatória do negócio jurídico, em se tratando de nulidade relativa ou de anulabilidade, o que repercute diretamente para asobre a ação de anulação do casamento, cujas hipóteses estão no art. 1.550 do Código Civil. Zeno Veloso, na minha leitura, foi um dos principais responsáveis pela mudança de pensamento a respeito desse tema, por ter dado um giro de cento e oitenta graus quanto à sua interpretação. O debate gravita em torno da eficácia ex nunc (não retroativa) ou ex tunc (retroativa) da decisão que acolhe o pleito de anulação do negócio jurídico, o que alcança o casamento. No vigente Código Civil, a corrente que sustenta a eficácia não retroativa está fundada na primeira parte do art. 177, segundo o qual "a anulabilidade não tem efeito antes de julgada por sentença". A vertente que defende os efeitos retroativos, por sua vez, baseia-se no art. 182, in verbis: "anulado o negócio jurídico, restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam, e, não sendo possível restituí-las, serão indenizadas com o equivalente". Ao contrário do que ocorre com a nulidade absoluta do casamento, não há regra específica relativa à sentença da ação baseada na nulidade relativa ou anulabilidade. Como é notório, é a redação do art. 1.563 do Código Civil: "a sentença que decretar a nulidade do casamento retroagirá à data da sua celebração, sem prejudicar a aquisição de direitos, a título oneroso, por terceiros de boa-fé, nem a resultante de sentença transitada em julgado". Porém, segundo o entendimento que prevalece, essa última regra somente se aplica à nulidade absoluta do casamento. O homenageado sempre esteve filiado à corrente que defende a eficácia ex tunc da sentença anulatória e, sobre a corrente contrária, ponderava: "trata-se, sem dúvida, de entendimento equivocado, que decorre, talvez, da leitura distorcida do art. 177, primeira parte (...), que corresponde ao art. 152, primeira parte, do Código Civil de 1916" (VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2ª Edição, 2005. p. 331). Sobre este tema em particular, arrematava o jurista: "O que o artigo 177, primeira parte, enuncia é que o negócio anulável ingressa no mundo jurídico produzindo os respectivos efeitos e depende de uma ação judicial, da sentença, para ser decretada a sua anulação. Os efeitos do negócio anulável são precários, provisórios. Advindo a sentença anulatória, os efeitos que vinham produzindo o negócio inquinado são desfeitos. Nada resta, nada sobra, nada fica, pois a desconstituição é retroativa, vai à base, ao começo, ao nascimento do negócio defeituoso e carente, o que, enfática e inequivocamente, afirma o artigo 182, como já dizia, no Código velho, no artigo 158. Quanto a isso não há mudança alguma, em nosso entendimento. O artigo 177, primeira parte, deve ser visto e recebido diante do sistema e interpretado conjuntamente com o artigo 182, que transcrevemos acima" (VELOSO, Zeno. Invalidade do negócio jurídico: nulidade e anulabilidade. Belo Horizonte: Del Rey, 2ª Edição, 2005. p. 331-332). Desse modo, como lecionava o mestre do Pará, seria plausível defender que a sentença anulatória produz efeitos retroativos parciais, eis que se deve buscar o retorno à situação primitiva, anterior à celebração do negócio anulado, se isso for possível. Caso não seja viável esse retorno, a parte prejudicada pela anulação do negócio jurídico poderá pleitear a indenização correspondente. Cite-se, a propósito, justamente o caso de anulação de um casamento, em que as partes voltam a ser solteiras. Percebe-se claramente a presença de efeitos retroativos nessa situação concreta. Na minha percepção, a obra de Zeno Veloso foi determinante para intensificar essa discussão, fazendo com que uma corrente então considerada minoritária ganhasse espaço e passasse a ser a corrente dominante. Tal posicionamento restou acolhido em obra coletiva escrita com Anderson Schreiber, a comprovar a efetiva influência exercida pelo pensamento de Zeno Veloso sobre os nossos trabalhos. Ao comentar o artigo 182 do Código Civil, o meu coautor afirma: "a rigor, o presente dispositivo infirma a sempre repetida lição segundo a qual a nulidade produziria efeitos ex tunc, enquanto a anulabilidade se daria ex nunc. Ao referir-se ao negócio 'anulado', o artigo atribui o efeito usualmente reconhecido pela doutrina ao negócio nulo: 'Restituir-se-ão as partes ao estado em que antes dele se achavam'. Segundo a letra do artigo, portanto, mesmo a anulação do negócio produziria efeitos retroativos, desfazendo-se todos os efeitos operados desde a celebração" (SCHREIBER, Anderson. Código Civil comentado: doutrina e jurisprudência. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 127). Ainda a tal propósito, quando da VI Jornada de Direito Civil - evento realizado pelo Conselho da Justiça Federal e pelo Superior Tribunal de Justiça em 2013 -, foi feita proposta de enunciado doutrinário no sentido de ser a corrente liderada por Zeno Veloso a majoritária. De acordo com o exato teor da proposição: "os efeitos da anulabilidade do negócio jurídico, excetuadas situações particulares como as obrigações de trato sucessivo, relações trabalhistas e em matéria societária, são idênticos aos da nulidade e ocorrem de forma ex tunc. Anulado o negócio, os efeitos se projetam para o futuro e também de forma retroativa para o passado". Nas suas justificativas, o autor da proposta, Juiz de Direito e Professor da Universidade Federal do Espírito Santo Augusto Passamani Bufulin, ressaltou: "no Brasil, apesar de haver uma corrente que defende a eficácia ex nunc da ação anulatória, como Maria Helena Diniz, Carlos Roberto Gonçalves e Arnaldo Rizzardo, a corrente majoritária, defendida por Humberto Theodoro Júnior, Zeno Veloso, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Paulo Nader, Renan Lotufo, Flávio Tartuce, Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald, Leonardo Mattietto, Orlando Gomes e Silvio Rodrigues, afirma que os efeitos da anulabilidade e da nulidade são idênticos no plano da eficácia e operam de forma ex nunc, para o futuro, e ex tunc, retroativamente ao passado, pois o vício encontra-se presente desde a formação do negócio. Esse é o entendimento correto a ser dado ao art. 182 do CC". Como se pode perceber, a sugestão de enunciado doutrinário colocava a corrente dos efeitos ex tunc como majoritária. De toda sorte, a não aprovação do enunciado doutrinário em questão demonstrou que tal tema ainda mereceria ser melhor debatido no ambiente jurídico brasileiro. Todavia, ao final do ano de 2016, surgiu importante decisão monocrática sobre a matéria no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, proferida pela Ministra Maria Isabel Gallotti, em que se afirmou o seguinte: "Na doutrina, não se desconhece da divergência quanto à eficácia da ação anulatória. Segundo defende a doutrina clássica, os efeitos da decisão judicial na ação anulatória não são retro-operantes, possuindo efeitos apenas para o futuro (Maria Helena Diniz, Carlos Roberto Gonçalves, Arnaldo Rizzardo, Caio Mário, e Nelson Nery Jr. e Rosa Maria Nery), de outro giro, a corrente majoritária defende que os efeitos da anulabilidade, no plano da eficácia, são idênticos ao da nulidade, e operam efeitos tanto para o futuro como para o passado, uma vez que algo que é ilegal não pode produzir efeitos (Humberto Theodoro Júnior, Zeno Veloso, Pablo Stolze Gagliano, Rodolfo Pamplona Filho, Paulo Nader, Renan Lotufo, Flávio Tartuce, Cristiano Chaves de Farias, Nelson Rosenvald, Orlando Gomes e Silvio Rodrigues). Esse é o entendimento que se infere do art. 182 do CC/2002. (...). Como se observa, o art. 182 do CC/2002 reza que os efeitos do negócio jurídico inválido devem cessar a partir da sua anulação, se anuláveis, ou não devem produzir efeitos, se nulos. Ressalte-se que é comando imperativo da parte final do art. 182 do CC/2002, a restituição das partes ao estado anterior, ou se impossível a restituição, que haja indenização com o equivalente, como consequência dos efeitos retro-operantes da nulidade ou anulabilidade de qualquer negócio jurídico. Isso porque a restituição das partes ao estado anterior é inerente à eficácia restituitória contida na decisão judicial, sob pena de flagrante injustiça, mesmo em se tratando de anulabilidade de negócio jurídico" (STJ, Decisão monocrática no Recurso Especial 1.420.839/MG, Min. Maria Isabel Gallotti, julgada em 07.10.2016). A referida decisão reforça, sem dúvida, a corrente doutrinária capitaneada por Zeno Veloso, no sentido de que a anulabilidade reconhecida por sentença também produz efeitos ex tunc. Ao que tudo indica, essa é a posição majoritária no momento, tendo ocorrido o citado giro de cento e oitenta graus na civilística nacional, a demonstrar mais uma imprescindível contribuição do Mestre do Pará para o Direito Privado Brasileiro.
Como não poderia ser diferente, seguirei nas minhas homenagens ao professor Zeno Veloso, que, infelizmente, nos deixou no último dia 18 de março de 2021. Neste texto tratarei de algumas de suas contribuições ao sempre divergente tema da união estável, com três questões jurídicas que sempre eram analisadas pelo grande jurista, seja em suas obras ou em suas brilhantes exposições. Sobre as últimas, lembro de uma inesquecível palestra por ele proferida, em 1º de junho de 2016, data do seu aniversário, na secular Faculdade de Direito de Coimbra, em evento coordenado pelos professores Guilherme de Oliveira e José Fernando Simão, do IBDFAM. Na ocasião tratou ele da "união estável brasileira e a união de facto portuguesa", em painel com os professores Lucília Gago (Portugal), Geraldo Ribeiro (Portugal) e Giselda Hironaka (Brasil). A respeito das suas contribuições doutrinárias, de início, Zeno Veloso tratava com profundidade sobre o contrato de namoro, assunto de controvérsia, na teoria e na prática. Nas suas palavras, pela insegurança que envolve a união estável, "para evitar riscos e prejuízos que podem advir de uma ação com pedidos de ordem patrimonial, alegando-se a existência de uma união estável, com o rol imenso de efeitos patrimoniais que enseja, quando, de fato e realmente, só havia namoro, sem maior comprometimento, algumas pessoas combinam e celebram o que se tem denominado contrato de namoro. Já se vê que não é acordo de vontades que tem por objeto determinar, singelamente, a existência de um namoro, que, se assim fosse, nem contrato, tecnicamente, seria". E, mais, "deixando de lado a questão terminológica e indo direto ao ponto, tal avença, substancialmente, é uma declaração bilateral em que pessoas maiores, capazes, de boa-fé, com liberdade, sem pressões, coações ou induzimento, confessam que estão envolvidas num relacionamento amoroso, que se esgota nisso mesmo, sem nenhuma intenção de constituir família, sem o objetivo de estabelecer uma comunhão de vida, sem a finalidade de criar uma entidade familiar, e esse namoro, por si só, não tem qualquer efeito de ordem patrimonial, ou conteúdo econômico". Em conclusão, ao sustentar a plena validade desse acordo de vontade, ponderava que "as partes declaram, expressa e inequivocamente, sem conotação de fraude, intuito dissimulatório ou ilicitude, observados os princípios de probidade e boa-fé, e sem violar normas imperativas, a ordem pública e os bons costumes, a inexistência de uma relação jurídica. Em que lei há uma proibição de que isso seja feito? E se não há proibição, em nome do liberalismo, da autonomia privada, da democracia, vigora o secular princípio: permittitur quod non prohibetur = tudo o que não é proibido é permitido" (VELOSO, Zeno. É namoro ou união estável? Disponível aqui. Publicado em 2016. Acesso em: 20 maio 2021). Apesar das minhas resistências pessoais quanto à validade desse negócio jurídico, por suposta fraude à lei imperativa (art. 166, inc. VI, do Código Civil), não se pode negar a força dos argumentos desenvolvidos pelo jurista. Mais do que isso, não se pode afastar a sua contribuição ao necessário debate sobre as limitações da autonomia privada no âmbito do Direito de Família.  O mesmo se diga, especialmente quanto às suas contribuições, a respeito da categoria do chamado namoro qualificado - uma relação não eventual, prolongada no tempo, mas que não se confunde com a união estável -, em expressão difundida por Zeno Veloso. De acordo com o Mestre do Pará, poderia até haver nesse namoro um objetivo de família futura, enquanto na união estável a família já existe (animus familiae), o que traz a diferenciação entre as duas categorias. Mais uma vez, vejamos as suas palavras: "Nem sempre é fácil distinguir essa situação - a união estável - de outra, o namoro, que também se apresenta informalmente no meio social. Numa feição moderna, aberta, liberal, especialmente se entre pessoas adultas, maduras, que já vêm de relacionamentos anteriores (alguns bem-sucedidos, outros nem tanto), eventualmente com filhos dessas uniões pretéritas, o namoro implica, igualmente, convivência íntima - inclusive, sexual -, os namorados coabitam, frequentam as respectivas casas, comparecem a eventos sociais, viajam juntos, demonstram para os de seu meio social ou profissional que entre os dois há uma afetividade, um relacionamento amoroso. E quanto a esses aspectos, ou elementos externos, objetivos, a situação pode se assemelhar - e muito - a uma união estável. Parece, mas não é! Pois falta um elemento imprescindível da entidade familiar, o elemento interior, anímico, subjetivo: ainda que o relacionamento seja prolongado, consolidado, e por isso tem sido chamado de 'namoro qualificado', os namorados, por mais profundo que seja o envolvimento deles, não desejam e não querem - ou ainda não querem - constituir uma família, estabelecer uma entidade familiar, conviver numa comunhão de vida, no nível do que os antigos chamavam de affectio maritalis. Ao contrário da união estável, tratando-se de namoro - mesmo do tal namoro qualificado -, não há direitos e deveres jurídicos, mormente de ordem patrimonial entre os namorados. Não há, então, que falar-se de regime de bens, alimentos, pensão, partilhas, direitos sucessórios, por exemplo" (VELOSO, Zeno. Direito civil: temas. Belém: Anoreg-PA, 2018. p. 313). A expressão difundida por Zeno Veloso passou a ser utilizada pela nossa jurisprudência. Conforme decidiu o Superior Tribunal de Justiça, "o propósito de constituir família, alçado pela lei de regência como requisito essencial à constituição da união estável - a distinguir, inclusive, esta entidade familiar do denominado 'namoro qualificado' -, não consubstancia mera proclamação, para o futuro, da intenção de constituir uma família. É mais abrangente. Esta deve se afigurar presente durante toda a convivência, a partir do efetivo compartilhamento de vidas, com irrestrito apoio moral e material entre os companheiros. É dizer: a família deve, de fato, restar constituída. Tampouco a coabitação, por si, evidencia a constituição de uma união estável (ainda que possa vir a constituir, no mais das vezes, um relevante indício), especialmente se considerada a particularidade dos autos, em que as partes, por contingências e interesses particulares (ele, a trabalho; ela, pelo estudo) foram, em momentos distintos, para o exterior, e, como namorados que eram, não hesitaram em residir conjuntamente. Este comportamento, é certo, revela-se absolutamente usual nos tempos atuais, impondo-se ao Direito, longe das críticas e dos estigmas, adequar-se à realidade social" (STJ, REsp 1.454.643/RJ, TERCEIRA TURMA, Rel. Min. Marco Aurélio Bellizze, j. 03.03.2015, DJe 10.03.2015). De toda forma, não há a menor dúvida que as maiores contribuições de Zeno Veloso se deram a respeito da sucessão existente na união estável, tendo sido ele, desde o surgimento do comando, um dos defensores da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil de 2002, que tratava da sucessão do companheiro ou do convivente. Nas suas palavras sobre o o preceito legal, ele não teria "nenhuma razão, quebra todo o sistema, podendo gerar consequências extremamente injustas: a companheira de muitos anos de um homem rico, que possuía vários bens na época que iniciou o relacionamento afetivo, não herdará coisa alguma do companheiro, se este não adquiriu (onerosamente!) outros bens durante o tempo de convivência. Ficará essa mulher - se for pobre - literalmente desamparada, a não ser que o falecido, vencendo as superstições que rodeiam o assunto, tivesse feito um testamento que a beneficiasse" (VELOSO, Zeno. Código Civil comentado. Coordenação Regina Beatriz Tavares da Silva. 8. ed. São Paulo: Saraiva, 2012. p. 2010). Em outra obra de sua autoria, o jurista demonstrava claramente seguir a tese da inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil, aduzindo que: "ao longo desta exposição, e diversas vezes, mencionei que a sucessão dos companheiros foi regulada de maneira lastimável, incidindo na eiva da inconstitucionalidade, violando princípios fundamentais, especialmente o da dignidade da pessoa humana, o da igualdade, o da não discriminação" (VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 185). Em 31 de agosto de 2016, o Supremo Tribunal Federal começou a julgar a controvérsia, em sede de repercussão geral. Sete votos já reconheciam a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil e a necessidade de equiparação da união estável ao casamento para os fins sucessórios. O julgamento foi encerrado em 10 de maio de 2017, reunido com outra demanda, de debate sobre os direitos sucessórios advindos de união estável homoafetiva. Por maioria, foi firmada a seguinte tese, para os fins de repercussão geral: "no sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002" (publicada no Informativo n. 864 do STF). Votaram pela inconstitucionalidade, além do Ministro Relator Luís Roberto Barroso, os Ministros Luiz Edson Fachin, Teori Zavascki (e Alexandre de Moraes, em substituição no segundo julgamento), Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia. Foram vencidos os Ministros Dias Toffoli, Ricardo Lewandowski e Marco Aurélio, que não viam inconstitucionalidade no art. 1.790 do Código Civil. A ementa do decisum foi assim concebida pelo Ministro Relator: "Direito constitucional e civil. Recurso extraordinário. Repercussão geral. Inconstitucionalidade da distinção de regime sucessório entre cônjuges e companheiros. 1. A Constituição brasileira contempla diferentes formas de família legítima, além da que resulta do casamento. Nesse rol incluem-se as famílias formadas mediante união estável. 2. Não é legítimo desequiparar, para fins sucessórios, os cônjuges e os companheiros, isto é, a família formada pelo casamento e a formada por união estável. Tal hierarquização entre entidades familiares é incompatível com a Constituição. 3. Assim sendo, o art. 1.790 do Código Civil, ao revogar as leis 8.971/94 e 9.278/96 e discriminar a companheira (ou companheiro), dando-lhe direitos sucessórios bem inferiores aos conferidos à esposa (ou ao marido), entra em contraste com os princípios da igualdade, da dignidade humana, da proporcionalidade como vedação à proteção deficiente e da vedação do retrocesso. 4. Com a finalidade de preservar a segurança jurídica, o entendimento ora firmado é aplicável apenas aos inventários judiciais em que não tenha havido trânsito em julgado da sentença de partilha, e às partilhas extrajudiciais em que ainda não haja escritura pública. 5. Provimento do recurso extraordinário. Afirmação, em repercussão geral, da seguinte tese: 'No sistema constitucional vigente, é inconstitucional a distinção de regimes sucessórios entre cônjuges e companheiros, devendo ser aplicado, em ambos os casos, o regime estabelecido no art. 1.829 do CC/2002'" (STF, Recurso Extraordinário 878.694/MG, Tribunal Pleno, Rel. Min. Luís Roberto Barroso, j. 10.05.2017, com repercussão geral). Pontuo que a doutrina de Zeno Veloso está citada no voto do Ministro Relator, Roberto Barroso, e também nos votos dos Ministros Luiz Fux e Dias Toffoli. Sua doutrina, portanto, foi a vencedora - ao lado da doutrina da Professora Giselda Hironaka - para o deslinde da questão, sanando divergência que então exisitia nos Tribunais Estaduais. Como reconhece o próprio Relator do decisum: "a título ilustrativo, os Tribunais de Justiça de São Paulo e do Rio de Janeiro chegaram a conclusões opostas sobre a questão, ambos em sede de arguição de inconstitucionalidade. O TJSP - a exemplo do TJMG - entendeu pela constitucionalidade do art. 1.790 do CC/2002, enquanto o TJ-RJ manifestou-se pela sua inconstitucionalidade. No Superior Tribunal de Justiça, a controvérsia acerca da constitucionalidade do dispositivo do Código Civil chegou a ser afetada à Corte Especial. No entanto, ainda não houve decisão final de mérito". Houve, portanto, uma pacificação sobre a temática, equalizando os direitos sucessórios do cônjuge e do companheiro, exatamente como defendia e sustentava o mestre Zeno Veloso. Como ele sempre dizia, em sua visão não existiriam diferenças relevantes entre casamento e união estável, afirmação que atingiu o nosso Direito Sucessório e que ficou para a posteridade do Direito Brasileiro.
Após uma longa tramitação no Congresso Nacional, foi promulgada e publicada a lei 14.138/2021, que acrescenta um § 2º ao art. 2º-A da lei 8.560/1992 para permitir, em sede de ação de investigação de paternidade, a realização do exame de pareamento do código genético (DNA) em parentes do suposto pai. O último diploma específico regula a investigação de paternidade dos filhos havidos fora do casamento, concretizando o princípio constitucional da igualdade entre os filhos, previsto no art. 227, § 6º, do Texto Maior. A respeito da realização do exame de DNA em si, sabe-se do grande impacto gerado pela sua utilização, trazendo certeza quase absoluta quanto ao vínculo genético, a gerar a parentalidade natural ou biológica, com todas as suas consequências jurídicas, não só para o Direito de Família como para o Direito das Sucessões. É notório também que a jurisprudência brasileira acabou por concluir que o investigado, suposto pai, não é obrigado a realizar o exame. Conforme ementa do Supremo Tribunal Federal, que analisou a viabilidade de uma condução coercitiva para a sua realização, "discrepa, a mais não poder, de garantias constitucionais implícitas e explícitas - preservação da dignidade humana, da intimidade, da intangibilidade do corpo humano, do império da lei e da inexecução específica e direta de obrigação de fazer - provimento judicial que, em ação civil de investigação de paternidade, implique determinação no sentido de o réu ser conduzido ao laboratório, 'debaixo de vara', para coleta do material indispensável à feitura do exame DNA. A recusa resolve-se no plano jurídico-instrumental, consideradas a dogmática, a doutrina e a jurisprudência, no que voltadas ao deslinde das questões ligadas à prova dos fatos" (STF, HC 71.373/RS, Tribunal Pleno, Rel. Min. Francisco Rezek, Rel. p/ Acórdão Min. Marco Aurélio, j. 10.11.1994, DJ 22.11.1996, p. 45686, Ementário v. 1.851/2002, p. 397). Julgou-se, portanto, em favor da integridade física, biológica e genética do investigado, prevalecendo esses seus direitos sobre a verdade biológica. De toda sorte, a conclusão do Supremo Tribunal Federal foi no sentido de que, caso o suposto pai se negue a fazer o exame, correrá contra ele a presunção relativa ou iuris tantum de que mantém o vínculo genético, com a consequente parentalidade. Essa decisão superior, entre outros efeitos, acabou por influenciar a inclusão dos arts. 231 e 232 no Código Civil de 2002. De acordo com o primeiro comando civil, "aquele que se nega a submeter-se a exame médico necessário não poderá aproveitar-se de sua recusa". Já a segunda norma estabelece que "a recusa à perícia médica ordenada pelo juiz poderá suprir a prova que se pretendia obter com o exame". Como se nota, para que a prova pericial seja lícita faz-se necessário contar com a participação das pessoas investigadas, o que acaba gerando potenciais problemas na produção da prova (TARTUCE, Fernanda. Processo Civil no Direito de Família. Teoria e prática. São Paulo: Método, 5ª Edição, 2021. p. 429). Em complemento às normas, na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça foi editada, no ano de 2004, a Súmula n. 301, segundo a qual, "em ação investigatória, a recusa do suposto pai a submeter-se ao exame de DNA induz presunção juris tantum de paternidade". Apesar de críticas feitas por parte da doutrina, observe-se que essa presunção relativa traz a necessidade de se analisar outros meios de prova, passando-se a julgar na própria Corte que "a recusa do investigado em se submeter ao teste de DNA implica a inversão do ônus da prova e consequente presunção de veracidade dos fatos alegados pelo autor". E mais, de acordo com a mesma ementa, "verificada a recusa, o reconhecimento da paternidade decorrerá de outras provas, estas suficientes a demonstrar ou a existência de relacionamento amoroso à época da concepção ou, ao menos, a existência de relacionamento casual, hábito hodierno que parte do simples 'ficar', relação fugaz, de apenas um encontro, mas que pode garantir a concepção, dada a forte dissolução que opera entre o envolvimento amoroso e o contato sexual" (STJ, REsp 557.365/RO, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.04.2005, DJ 03.10.2005, p. 242). Apesar de toda essa consolidação legislativa e jurisprudencial, a lei 12.004/2009 introduziu na lei 8.560/1992 norma expressa a respeito da presunção relativa pela negativa ao exame pelo próprio investigado, no seguinte sentido: "Art. 2.º-A. Na ação de investigação de paternidade, todos os meios legais, bem como os moralmente legítimos, serão hábeis para provar a verdade dos fatos. Parágrafo único. A recusa do réu em se submeter ao exame de código genético - DNA - gerará a presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório". Esse dispositivo, no meu entender, era desnecessário pela realidade anterior, notadamente diante dos artigos do Código Civil de 2002 aqui transcritos e pela jurisprudência ementada, e suas consequentes interpretações. Sucessivamente, pela modificação ora em estudo, de 2021, foi introduzido um § 2º nesse art. 2º-A da Lei da Investigação da Paternidade, segundo o qual "se o suposto pai houver falecido ou não existir notícia de seu paradeiro, o juiz determinará, a expensas do autor da ação, a realização do exame de pareamento do código genético (DNA) em parentes consanguíneos, preferindo-se os de grau mais próximo aos mais distantes, importando a recusa em presunção da paternidade, a ser apreciada em conjunto com o contexto probatório". Parte da doutrina tratava da realização desse exame em relação aos parentes, sendo necessário destacar as palavras de Rolf Madaleno, especialmente quanto aos comentários ao projeto que gerou a lei 14.138/2021: "A Súmula n. 301 do STJ é mais específica ainda, ao expor que 'em ação investigatória, a recusa do suposto pai em submeter-se ao exame de DNA, induz presunção juris tantum de paternidade', deixando evidente que apenas a recusa do indigitado pai induz à presunção, tanto que, por conta dessa omissão legal é que tramita pelo Congresso Nacional, o Projeto de Lei do Senado de n. 415/2009, com o propósito de alterar o artigo 2° da Lei n. 8.560/1992, e nele acrescentar o § 7°, que tem a seguinte redação: '§ 7° Se o suposto pai houver falecido, ou não exista notícia do seu paradeiro, o juiz determinará a realização do exame de código genético - DNA em parentes consanguíneos, preferindo os de grau mais próximo, importando a recusa desses em presunção da paternidade'. Como deflui desse projeto de lei 415/2009, em trâmite no Congresso Nacional, é justamente a ausência de lei regulando a presunção de paternidade diante da recusa dos parentes consanguíneos do investigado que infirma concluir seja inconstitucional presumir um elo de filiação, ou de confissão de negativa de paternidade, se o filho, ou os parentes do réu se negarem a realizar a perícia genética, sendo princípio constitucional intransponível, que ninguém está obrigado a fazer o que a lei não manda. A essa mesma conclusão chegou a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no Recurso Especial n. 714.969/MS, ao afirmar que a presunção relativa gerada pela recusa em realizar o exame em DNA só deve incidir quando for originada pelo pretenso genitor, conforme a dicção da Súmula n. 301 do STJ, por se tratar de direito personalíssimo e indisponível, o que não impede, evidentemente, de o juiz apreciar a negativa como um indício, de acordo com o artigo 232 do Código Civil e as demais circunstâncias e provas. Existem posições divergentes nos tribunais estaduais, merecendo destaque o acórdão oriundo do Quarto Grupo Cível do TJ/RS, nos embargos infringentes n. 70.013.371.869, concluindo por ensejar a presunção de veracidade do vínculo de filiação pelo não comparecimento injustificado dos irmãos do falecido ao exame em DNA. Agora, em câmbio, não restam dúvidas de que os herdeiros do falecido e indigitado pai devem figurar no polo passivo da ação de investigação de paternidade, cumulada ou não, com petição de herança, pois como herdeiros universais respondem pessoalmente ao processo de investigação de paternidade (CPC, art. 43; CC, arts. 1.601, parágrafo único e 1.606, parágrafo único)" (MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 549-550). Além dos julgados mencionados, o doutrinador destacava, antes da alteração legislativa de 2021, que "o indício da omissão dos parentes, portanto, não se compara com a recusa do suposto pai, primeiro, porque as regras de presunção contidas na Lei n. 12.004/2009 e na Súmula n. 301 do STJ são endereçadas ao suposto pai renitente, e não para os seus parentes. Depois, diante do evento morte do indigitado genitor, o autor da ação dispõe de outras provas biológicas, que podem ser periciadas sobre os restos mortais do falecido com a exumação do cadáver, isso se o corpo não foi cremado, isto se não existir material biológico que ele tenha, ainda em vida, depositado em custódia em um laboratório ou banco genético, com a finalidade específica de esse material ser consultado pela autoridade competente e interferir positiva ou negativamente nos direitos constitucionais concernentes à identidade e origem genética de outras pessoas" (MADALENO, Rolf. Curso de Direito de Família. 4. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011. p. 550-551).  A lei 14.138/2021 parece ter superado divergências anteriores, possibilitando de forma incontestável a realização do exame de DNA nos parentes do falecido investigado, gerando a sua recusa a presunção relativa ou iuris tantum do vínculo biológico, a ser analisada com outras provas. Assim, com o novo comando, passaram a ser úteis e necessárias as previsões anteriores do art. 2º-A da lei 8.560/1992, introduzidas em 2009, que são completadas pela nova norma. Anoto que julgados superiores já vinham entendendo dessa forma, pela presença de uma presunção relativa e aplicando o enunciado de súmula antes citado. Como se retira de acórdão da Quarta Turma do STJ, do ano de 2015 e de outros sucessivos, na mesma linha e com igual relator: "inexistindo a prova pericial capaz de propiciar certeza quase absoluta do vínculo de parentesco (exame de impressões do DNA), diante da recusa dos irmãos paternos do investigado em submeter-se ao referido exame, comprova-se a paternidade mediante a análise dos indícios e presunções existentes nos autos, observada a presunção juris tantum, nos termos da Súmula 301/STJ. Precedentes" (STJ, Ag. Rg. no AREsp. 499.722/DF, Quarta Turma, Rel. Min. Raul Araújo, j. 18.12.2014, DJe 06.02.2015). Como palavras finais, na linha das lições de Rolf Madaleno, pode-se concluir que a lei 14.138/2021 fez com que a negativa dos parentes do investigado falecido ao exame de DNA deixasse de ser um mero indício do vínculo biológico, passando a gerar uma presunção. Conforme se retira da doutrina processualista que sigo, a presunção representa uma relação entre o fato indiciário (provado) e o fato presumido (não provado), "decorrente da constatação lógica de que, se o primeiro ocorreu, muito provavelmente o segundo terá ocorrido" (ASSUMPÇÃO NEVES, Daniel Amorim. Manual de Direito Processual Civil: volume único. 11. ed. Salvador: Juspodivm, 2019. p. 714). Sendo assim, não se pode negar que o impacto da negativa ao exame de pareamento genético pelo parente passa a gerar o mesmo efeito da negativa pelo próprio investigado.
No último dia 18 de março de 2021, infelizmente, o Brasil perdeu um dos seus maiores juristas, o professor Zeno Veloso. Além de todas as homenagens já prestadas em outros canais, não poderia deixar de analisar algumas de suas contribuições para o nosso Direito de Família e das Sucessões, aqui no Migalhas. Zeno sempre esteve presente nas minhas colunas, a exemplo do que ocorreu no meu último texto publicado, de fevereiro, sobre a comunicação do FGTS no regime da comunhão parcial de bens, que dialoga com um artigo seu, publicado no jornal O Liberal, de Belém do Pará. A propósito, seus belos trabalhos ali veiculados sempre foram primorosos, de grande objetividade, técnica impecável e contando as suas encantadoras histórias. Aliás, como escrevi recentemente, era ele o "jurista que contava histórias", como propriamente se definia, por onde passava. Seguindo no tema do regime de bens, analisarei neste breve texto três de suas grandes contribuições, sem prejuízo de outros artigos que ainda escreverei, para firmar e relembrar o seu legado para o Direito Privado brasileiro, que nunca será esquecido. O primeiro assunto é relativo à aplicação da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, segundo a qual, "no regime de separação legal de bens, comunicam-se os adquiridos na constância do casamento". Um dos debates que surgiram a respeito do enunciado jurisprudencial, logo nos anos iniciais do Código Civil de 2002, disse respeito à sua persistência ou não no nosso sistema, tendo o doutrinador firmado o entendimento, ao lado da doutrina majoritária, de sua contínua aplicação, como fundamento da vedação do enriquecimento sem causa de um dos consortes frente ao outro (VELOSO, Zeno. Direito hereditário do cônjuge e do companheiro. São Paulo: Saraiva, 2010. p. 55). Além dessa posição, o mestre Veloso, sem dúvidas, foi um dos professores e autores que melhor difundiram os debates relativos à prevalência ou não da súmula 377, como bem destacado pela Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça quando do julgamento dos Embargos no Recurso Especial n. 1.623.858/MG, que pacificou a necessidade de prova do esforço comum para sua incidência (Rel. Ministro LÁZARO GUIMARÃES - DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TRF 5ª REGIÃO -, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 23/05/2018, DJe 30/05/2018). Como segunda temática, em artigo escrito no ano de 2016, Zeno Veloso despertou outro debate sobre a Súmula 377 do STF, relacionado à possibilidade ou não do seu afastamento por pacto antenupcial celebrado por cônjuges que sofrem a imposição do regime da separação obrigatória, na hipótese descrita no art. 1.641, inc. II, do Código Civil, qual seja ao maior de setenta anos. Em memorável texto publicado no Jornal O Liberal, o mestre trouxe tal indagação relatando outra de suas "histórias", com sua peculiar leveza de pena, sempre disposto a resolver os numerosos conflitos que lhe eram levados a consulta em sua atividade profissional e acadêmica: "Há cerca de um ano João Carlos e Matilde estão namorando. Ele é divorciado, ela é viúva. João fez 71 anos de idade e Matilde tem 60 anos. Resolveram casar-se e procuraram um cartório de registro civil para promover o processo de habilitação. Queriam que o regime de bens do casamento fosse o da separação convencional, pelo qual cada cônjuge é proprietário dos bens que estão no seu nome, tantos dos que já tenha adquirido antes como dos que vier a adquirir, a qualquer título, na constância da sociedade conjugal, não havendo, assim sendo, comunicação de bens com o outro cônjuge. Mas o funcionário do cartório explicou que, dado o fato de João Carlos ter mais de 70 anos, o regime do casamento tinha de ser o obrigatório, da separação de bens, conforme o art. 1.641, inciso II, do Código Civil. (...). Mas João Carlos é investidor, atua no mercado imobiliário, adquire bens imóveis, frequentemente, para revendê-los. E Matilde é corretora, de vez em quando compra um bem com a mesma finalidade. Seria um desastre econômico, para ambos, que os bens que fossem adquiridos por cada um depois de seu casamento se comunicassem, isto é, fossem de ambos os cônjuges, por força da Súmula 377/STF. No final das contas, o regime da separação obrigatória, temperado pela referida Súmula, funciona, na prática, como o regime da comunhão parcial de bens. Foi, então, que me procuraram, pedindo meu parecer" (VELOSO, Zeno. Casal quer afastar a Súmula 377. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2021). Após tal exposição, Zeno Veloso demonstra sua opinião, sustentando que seria, sim, possível o afastamento da aplicação da súmula, por não ser o seu conteúdo de ordem pública, mas sim de matéria afeita à disponibilidade de direitos. E lançou uma questão de consulta, que foi por mim respondida, ao lado de outros professores: "afinal, podem ou não os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por escritura pública, a incidência da súmula 377?". No meu caso, a consulta foi respondida na coluna deste Migalhas, de maio de 2016, sob o título "Da possibilidade de afastamento da súmula 377 do STF por pacto antenupcial". Respondi, portanto, positivamente à sua indagação, totalmente filiado ao entendimento do Mestre. Citando Mário Luiz Delgado, pontuei, com base no art. 1.639 do Código Civil, que é lícito aos nubentes, antes de celebrado o casamento, estipular, quanto aos seus bens, o que lhes aprouver; havendo restrição de relevo a essa regra quanto às disposições absolutas de lei, consideradas regras cogentes ou de ordem pública, conforme consta do art. 1.655 da mesma codificação. Todavia, não há qualquer problema em afastar a súmula 377 pela vontade das partes, pois não existe em seu conteúdo regra cogente, mas dispositiva. Ademais, tal afastamento somente ampliaria os efeitos do regime da separação obrigatória, passando esse a ser uma verdadeira separação absoluta, em que nada se comunica, aspecto observado por José Fernando Simão. Em suma, respondi ao mestre Zeno Veloso que sim, podem os nubentes, atingidos pelo art. 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar, por escritura pública, a incidência da súmula 377. Sempre acreditei que tal afastamento constitui um correto exercício da autonomia privada, admitido pelo nosso Direito, que conduz a um eficaz mecanismo de planejamento familiar, perfeitamente exercitável por força de ato público, no caso de um pacto antenupcial. Exatamente no mesmo sentido, na VIII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em abril de 2018, aprovou-se o Enunciado n. 634, prevendo que "é lícito aos que se enquadrem no rol de pessoas sujeitas ao regime da separação obrigatória de bens (art. 1.641 do Código Civil) estipular, por pacto antenupcial ou contrato de convivência, o regime da separação de bens, a fim de assegurar os efeitos de tal regime e afastar a incidência da Súmula 377 do STF". Tal enunciado doutrinário, surgido dois anos depois, sem dúvida alguma, foi incentivado pelo texto do doutrinador. A propósito, também motivada por este debate inaugurado pelo Mestre Zeno, a Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de Pernambuco acabou por editar provimento admitindo o afastamento da súmula 377 do STF por pacto antenupcial celebrado por cônjuges com idade superior a setenta anos (Provimento 08/2016). Vejamos os seus termos, que destacaram todas as posições doutrinárias ora expostas: "CONSIDERANDO que é possível, por convenção dos nubentes e em escritura pública, o afastamento da aplicação da Súmula 377 do STF, 'por não ser o seu conteúdo de ordem pública, mas, sim, de matéria afeita à disponibilidade de direitos' (ZENO VELOSO); CONSIDERANDO que, enquanto a imposição do regime de separação obrigatória de bens, para os nubentes maiores de setenta anos, é norma de ordem pública (artigo 1.641, II, do Código Civil), não podendo ser afastada por pacto antenupcial que contravenha a disposição de lei (artigo 1.655 do Código Civil); poderão eles, todavia, por convenção, ampliar os efeitos do referido regime de separação obrigatória, 'passando esse a ser uma verdadeira separação absoluta, onde nada se comunica' (JOSÉ FERNANDO SIMÃO); CONSIDERANDO que podem os nubentes, atingidos pelo artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, afastar por escritura pública a incidência da Súmula 377 do STF, estipulando nesse ponto e na forma do que dispõe o artigo 1.639, caput, do Código Civil, quanto aos seus bens futuros o que melhor lhes aprouver (MÁRIO LUIZ DELGADO); CONSIDERANDO que o afastamento da Súmula 377 do STF, 'constitui um correto exercício de autonomia privada, admitido pelo nosso Direito, que conduz a um eficaz mecanismo de planejamento familiar, perfeitamente exercitável por força de ato público, no caso de um pacto antenupcial (artigo 1.653 do Código Civil)'; conforme a melhor doutrina pontificada por FLÁVIO TARTUCE)". Como conteúdo do provimento, passou-se a estabelecer que, "no regime de separação legal ou obrigatória de bens, na hipótese do artigo 1.641, inciso II, do Código Civil, deverá o oficial do registro civil cientificar os nubentes da possibilidade de afastamento da incidência da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal, por meio de pacto antenupcial. Parágrafo único. O oficial do registro esclarecerá sobre os exatos limites dos efeitos do regime de separação obrigatória de bens, onde comunicam-se os bens adquiridos onerosamente na constância do casamento". Sucessivamente, no mês de dezembro de 2017 e igualmente influenciada pela discussão iniciada por Zeno Veloso, surgiu decisão da Corregedoria-Geral de Justiça do Tribunal Paulista com o mesmo entendimento, assim ementada: "nas hipóteses em que se impõe o regime de separação obrigatória de bens (art. 1.641 do CC), é dado aos nubentes, por pacto antenupcial, prever a incomunicabilidade absoluta dos aquestos, afastando a incidência da súmula 377 do Excelso Pretório, desde que mantidas todas as demais regras do regime de separação obrigatória. Situação que não se confunde com a pactuação para alteração do regime de separação obrigatória, para o de separação convencional de bens, que se mostra inadmissível". Sua contribuição, portanto, é inegável, merecendo relevo a sua constante vontade de debater os assuntos com outros colegas civilistas, especialmente os mais jovens, que sempre incentivou, até os seus últimos momentos. Como último tema que gostaria de destacar, Zeno Veloso foi um dos primeiros a defender, antes mesmo da vigência do Código Civil de 2002, a possibilidade de estipulação de um regime de bens além do rol previsto na Lei Geral Privada. Vejamos as suas palavras, em destaque: "A convenção pré-matrimonial é um negócio jurídico. Um negócio jurídico integrante do direito patrimonial de família. Pela convenção ou contrato antenupcial, os nubentes formalizam a sua escolha e determinam qual o regime de bens que vai vigorar depois da celebração de seu casamento. O Código edita preceitos sobre quatro regimes: o da comunhão universal, o da comunhão parcial, o da separação absoluta e o dotal (arts. 262 a 311). A liberdade dos nubentes não se limita à eleição de um desses regimes. Os interessados não estão obrigados a seguir os modelos legais, os regimes-tipos regulados no Código Civil, podendo ir além, modificando-os, combinando-os, e, até, estabelecendo um regime peculiar, um regramento atípico, imaginado e criado por eles próprios. Na França, na Bélgica e em Portugal, por exemplo, a situação é semelhante à nossa, havendo ampla liberdade para a escolha do regime de bens, inclusive com a possibilidade de introdução de modificações nos tipos previstos pelo legislador. Na Alemanha, na Itália e na Suíça, ao contrário, vigora o princípio da tipicidade e os nubentes só podem eleger um dos regimes estabelecidos na lei" (VELOSO, Zeno. Regimes matrimoniais de bens. Disponível aqui. Acesso em: 24 mar. 2021). Posteriormente, já na vigência do Código Civil de 2002, quando da realização da IV Jornada de Direito Civil, em 2006, aprovou-se o Enunciado n. 331 prevendo que "o estatuto patrimonial do casal pode ser definido por escolha de regime de bens distinto daqueles tipificados no Código Civil (art. 1.639 e parágrafo único do art. 1.640), e, para efeito de fiel observância do disposto no art. 1.528 do Código Civil, cumpre certificação a respeito, nos autos do processo de habilitação matrimonial". Tal posição, na minha interpretação, passou a ser majoritária na doutrina brasileira. A título de exemplo, sempre defendi a possibilidade de o casal estabelecer que, quanto aos bens móveis, incide o regime da separação convencional e absoluta de bens; em relação aos imóveis adquiridos, o regime da comunhão parcial. Como se percebe deste texto, Zeno Veloso deixou marcas indeléveis e permanentes a respeito do tema do regime de bens para o Direito Privado brasileiro, sempre dialogando com seus colegas doutrinadores e com a jurisprudência nacional, modificando entendimentos.   Como tenho dito, foi ele um grande jurista, de precisão teórica impressionante, que explicava conceitos completos com simples frases ou por meio das histórias que contava. Perdemos o nosso "contador de histórias", mas os seus escritos ficarão para a posteridade. O seu legado persiste e nós, seus amigos e eternos alunos, seguiremos a sua missão de levar adiante a boa Justiça, que tanto defendia.
No último dia 6 de fevereiro de 2021, o professor Zeno Veloso publicou um interessante artigo, na sua coluna do jornal O Liberal, de Belém do Pará, demonstrando o entendimento majoritário da doutrina e da jurisprudência no sentido de haver a comunicação dos valores recebidos em FGTS por um dos cônjuges ou companheiros, estando vigente entre as partes o regime da comunhão parcial de bens. Na ocasião, como doutrina majoritária foram citados os professores Rodrigo da Cunha Pereira, Maria Berenice Dias, Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald; além do autor deste texto e do próprio articulista. Como fundamento jurisprudencial, destacou-se o seguinte aresto, da Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça: "O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do ARE 709.212/DF, debateu a natureza jurídica do FGTS, oportunidade em que afirmou se tratar de 'direito dos trabalhadores brasileiros (não só dos empregados, portanto), consubstanciado na criação de um pecúlio permanente, que pode ser sacado pelos seus titulares em diversas circunstâncias legalmente definidas (cf. art. 20 da Lei 8.036/1995)' (ARE 709212, Relator (a): Min. GILMAR MENDES, Tribunal Pleno, julgado em 13/11/2014, DJe-032 DIVULG 18-02-2015 PUBLIC 19-02-2015). (...). No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, a Egrégia Terceira Turma enfrentou a questão, estabelecendo que o FGTS é 'direito social dos trabalhadores urbanos e rurais', constituindo, pois, fruto civil do trabalho (REsp 848.660/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, DJe 13/05/2011). (...). O entendimento atual do Superior Tribunal de Justiça é o de que os proventos do trabalho recebidos, por um ou outro cônjuge, na vigência do casamento, compõem o patrimônio comum do casal, a ser partilhado na separação, tendo em vista a formação de sociedade de fato, configurada pelo esforço comum dos cônjuges, independentemente de ser financeira a contribuição de um dos consortes e do outro não. (...). Assim, deve ser reconhecido o direito à meação dos valores do FGTS auferidos durante a constância do casamento, ainda que o saque daqueles valores não seja realizado imediatamente à separação do casal" (STJ, REsp 1.399.199/RS, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, Rel. p/ Acórdão Ministro Luis Felipe Salomão, Segunda Seção, julgado em 09/03/2016, DJe 22/04/2016). Esse último acórdão, a propósito, excluiu da comunicação os valores recebidos por um dos cônjuges em momento antecedente à união, por terem uma causa anterior, nos termos do que está no art. 1.661 do Código Civil, in verbis: "são incomunicáveis os bens cuja aquisição tiver por título uma causa anterior ao casamento". Em suma, a posição atual do STJ pode ser resumida na seguinte afirmação, constante da Edição n. 113 da ferramenta Jurisprudência em Teses da Corte, publicada em 2018 e que trata da dissolução do casamento e da união estável: "as verbas de natureza trabalhista nascidas e pleiteadas na constância da união estável ou do casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial ou universal de bens integram o patrimônio comum do casal e, portanto, devem ser objeto da partilha no momento da separação" (tese n. 3). E, mais, sobre o FGTS: "deve ser reconhecido o direito à meação dos valores depositados em conta vinculada ao Fundo de Garantia de Tempo de Serviço - FGTS auferidos durante a constância da união estável ou do casamento celebrado sob o regime da comunhão parcial ou universal de bens, ainda que não sejam sacados imediatamente após a separação do casal ou que tenham sido utilizados para aquisição de imóvel pelo casal durante a vigência da relação" (tese n. 4, publicada na mesma ferramenta e edição). Diante de toda a polêmica gerada pelo destacado texto do professor Zeno Veloso, não percebida em anos anteriores, resolvi escrever este artigo. A propósito, o que me parece é que as redes sociais, nos últimos tempos, acabaram por incentivar respostas rápidas, imediatas e instantâneas por muitos, baseadas em um "suposto bom senso", muitas vezes sem se conhecer todo o debate técnico que envolve determinado assunto, no âmbito do Direito Privado. Sobram opiniões, mas faltam leituras prévias... De início, sobre ser esse o entendimento jurisprudencial majoritário, a posição do Superior Tribunal de Justiça quanto à existência de um fruto civil, decorrente do salário recebido por um dos consortes, é há muito tempo aplicada. Entre os primeiros julgados a respeito de verbas trabalhistas, a propósito, destaco o seguinte: "ao cônjuge casado pelo regime da comunhão parcial de bens é devida a meação das verbas trabalhistas pleiteadas judicialmente durante a constância do casamento. As verbas indenizatórias decorrentes da rescisão do contrato de trabalho só devem ser excluídas da comunhão quando o direito trabalhista tenha nascido ou tenha sido pleiteado após a separação do casal" (STJ, REsp 646.529/SP, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, julgado na remota data de 21/06/2005). Trata-se, portanto, de aplicação do art. 1.660, inc. V, do Código Civil de 2002, que estabelece a comunicação, na comunhão parcial de bens, dos frutos dos bens comuns, ou dos bens particulares de cada cônjuge, percebidos na constância do casamento, ou pendentes ao tempo de cessar a comunhão. As verbas trabalhistas, por óbvio, são frutos civis ou rendimentos sobre bens particulares, assim entendidos os valores oriundos do trabalho individual, como rendimentos privados. Confirmando essa minha afirmação, em outro aresto, publicado no Informativo n. 430 do STJ, concluiu a mesma relatora: "O ser humano vive da retribuição pecuniária que aufere com o seu trabalho. Não é diferente quando ele contrai matrimônio, hipótese em que marido e mulher retiram de seus proventos o necessário para seu sustento, contribuindo, proporcionalmente, para a manutenção da entidade familiar. Se é do labor de cada cônjuge, casado sob o regime da comunhão parcial de bens, que invariavelmente advêm os recursos necessários à aquisição e conservação do patrimônio comum, ainda que em determinados momentos, na constância do casamento, apenas um dos consortes desenvolva atividade remunerada, a colaboração e o esforço comum são presumidos, servindo, o regime matrimonial de bens, de lastro para a manutenção da família. Em consideração à disparidade de proventos entre marido e mulher, comum a muitas famílias, ou, ainda, frente à opção do casal no sentido de que um deles permaneça em casa cuidando dos filhos, muito embora seja facultado a cada cônjuge guardar, como particulares, os proventos do seu trabalho pessoal, na forma do art. 1.659, inc. VI, do CC/2002, deve-se entender que, uma vez recebida a contraprestação do labor de cada um, ela se comunica" (STJ, REsp 1.024.169/RS, 3.ª Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 13.04.2010, DJe 28.04.2010). Esse último acórdão tem o mérito de esclarecer o conteúdo do art. 1.659, inc. VI, do Código Civil de 2002, que prevê a não comunicação, na comunhão parcial de bens, dos proventos do trabalho de cada consorte. Muitos utilizam tal regra como argumento para afastar não só a comunicação dos salários recebidos como as verbas e frutos que deles decorrem. De toda sorte, se tal entendimento fosse aplicado, haveria uma negação ou esvaziamento quase total do próprio regime da comunhão parcial de bens, notadamente da sua regra fundamental, prevista no art. 1.658 da codificação privada em vigor, no sentido de que se comunicam os bens que sobrevierem ao casal na constância do casamento. Mais do que isso, haveria também um esvaziamento da comunhão universal, pois o art. 1.668, inc. V, do CC/2002 exclui da comunicação, igualmente, os citados proventos do trabalho de cada um dos consortes. De forma impecável, a doutrina há tempos adverte sobre a necessidade de uma leitura restritiva do art. 1.659, inc. VI, sob pena de se colocar em descrédito os dois regimes. Segundo Alexandre Guedes Alcoforado Assunção, jurista que participou da última fase do processo de elaboração do Código Civil de 2002, "a previsão da exclusão dos proventos do trabalho de cada cônjuge, indicada no inciso VI, produz situação que se antagoniza com a própria essência do regime. Ora, se os rendimentos do trabalho não se comunicam, os bens sub-rogados desses rendimentos também não se comunicam, conforme o inciso II, e, por conseguinte, praticamente nada se comunica nesse regime, no entendimento de que a grande maioria dos cônjuges vive dos rendimentos do seu trabalho. A comunhão parcial de bens tem em vista comunicar todos os bens adquiridos durante o casamento a título oneroso, sendo que aqueles adquiridos com frutos do trabalho contêm essa onerosidade aquisitiva" (Código Civil comentado. Coordenador Deputado Ricardo Fiuza. São Paulo: Saraiva, 2004. p. 1519). A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem concluído do mesmo modo, como se extrai dos acórdãos antes citados. De data mais recente, acrescente-se o seguinte: "não se pode olvidar que o art. 1.659, VI, do CC/2002, é fruto de profunda discussão no âmbito doutrinário e jurisprudencial, especialmente porque, se fosse a regra interpretada literalmente, o resultado seria a incomunicabilidade quase integral dos bens adquiridos na constância da sociedade conjugal, desnaturando-se por completo o regime da comunhão parcial ou total de bens" (STJ, REsp 1.651.292/RS, Terceira Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, julgado em 19/05/2020, DJe 25/05/2020). A crítica à última regra também é encontrada na doutrina clássica. Silvio Rodrigues, por exemplo, traz outra solução plausível para a interpretação do art. 1.659, inc. VI, defendendo que "no exato momento em que as referidas rendas se transformam em patrimônio, por exemplo, pela compra dos bens, opera-se em relação a estes a comunhão, pela incidência da regra contida nos arts. 1.658 e 1.660, I, até porque não acrescenta o inciso em exame a hipótese e os bens sub-rogados em seu lugar. Entendimento diverso contraria a essência do regime da comunhão parcial e levaria ao absurdo de só se comunicarem os aquestos adquiridos com o produto de bens particulares e comuns ou por fato eventual, além dos destinados por doação ou herança ao casal" (RODRIGUES, Silvio. Direito civil. São Paulo: Saraiva, 2006. v. 6: direito de família. p. 183). Por esse caminho, também há que se reconhecer a comunicação de todas as verbas trabalhistas recebidas durante o casamento ou a união estável, na mesma linha do que sustentei. Portanto, no âmbito do Direito Civil, é cada vez mais fundamental conhecer todos os caminhos percorridos, pela doutrina e pela jurisprudência, na interpretação e na experimentação concreta da lei, não se fazendo apenas afirmações baseadas em percepções superficiais da leitura do texto da norma jurídica.
A lei 14.118, de 12 de janeiro de 2021, instituiu o programa Casa Verde Amarela - em substituição ao programa Minha Casa, Minha Vida (Lei 11.977/09) -, para aquisição de imóveis por famílias de baixa renda. O diploma legal emergente recebeu muitos comentários neste início de ano, notadamente a respeito das regras que impactam o Direito de Família. Porém, na verdade, como se verá por este breve texto, a nova norma reproduziu comandos que estavam previstos na legislação anterior. Sobre a sua amplitude de aplicação, o art. 1º da lei 14.118/21 prevê que o novo programa tem a finalidade de promover o direito à moradia a famílias residentes em áreas urbanas com renda mensal de até R$ 7.000,00 (sete mil reais) e a famílias residentes em áreas rurais com renda anual de até R$ 84.000,00 (oitenta e quatro mil reais). A norma também estatui que o programa está associado ao desenvolvimento econômico, à geração de trabalho e de renda e à elevação dos padrões de habitabilidade e de qualidade de vida da população urbana e rural. Como ressalva importante, o seu § 1º enuncia que, na hipótese de contratação de operações de financiamento habitacional, a concessão de subvenções econômicas com recursos orçamentários da União fica limitada ao atendimento de famílias em áreas urbanas com renda mensal de até R$ 4.000,00 (quatro mil reais) e de agricultores e trabalhadores rurais em áreas rurais com renda anual de até R$ 48.000,00 (quarenta e oito mil reais). Como primeiro dispositivo com importante impacto para o Direito de Família, o seu art. 13 preceitua que os contratos e os registros efetivados no âmbito desse programa serão formalizados, preferencialmente, em nome da mulher e, na hipótese de esta ser chefe de família, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647, 1.648 e 1.649 do Código Civil. O art. 1.647 da codificação privada exige a outorga conjugal - uxória, da mulher, e marital, do marido - para os seguintes atos civis: a) alienar ou gravar de ônus real os bens imóveis, o que engloba a venda e a hipoteca; b) pleitear, como autor ou réu, acerca desses bens imóveis ou direitos correspondentes; c) prestar fiança ou aval e d) fazer doação, não sendo remuneratória, de bens comuns, ou dos que possam integrar futura meação. Nos termos do seu caput, está dispensada a outorga conjugal para esses atos, se o regime de bens entre as partes for o da separação absoluta, entendida essa como apenas a separação convencional de bens, fixada por pacto antenupcial, nos termos do art. 1.687 do Código Civil ("Estipulada a separação de bens, estes permanecerão sob a administração exclusiva de cada um dos cônjuges, que os poderá livremente alienar ou gravar de ônus real"). Isso porque na separação obrigatória de bens - imposta pela lei, nas hipóteses do art. 1.641 da codificação - não há uma separação absoluta, pois, por força da corriqueira aplicação da súmula 377 do Supremo Tribunal Federal pelas nossas Cortes, comunicam-se alguns bens, havidos durante o casamento e desde que comprovado o esforço comum dos cônjuges (ver: STJ, EREsp. 1.623.858/MG, Rel. Ministro Lázaro Guimarães (Desembargador Convocado do TRF 5ª Região), Segunda Seção, julgado em 23/5/18, DJe 30/5/18). Seguindo no estudo do tema, o art. 1.648 do CC/02 prevê a possibilidade de suprimento da falta de outorga conjugal pelo juiz, quando um dos cônjuges a denegue sem motivo justo, ou lhe seja impossível concedê-la. A consequência da falta da outorga conjugal, sem esse suprimento judicial, conforme o art. 1.649, é a nulidade relativa ou anulabilidade do ato correspondente, podendo o outro cônjuge pleitear-lhe a anulação no prazo decadencial de dois anos depois de terminada a sociedade conjugal. Voltando-se à lei específica, em um primeiro momento observa-se que a aquisição de imóvel pelo citado programa não necessitaria dessa autorização ou vênia conjugal, uma vez que o inciso I do art. 1.647 prevê apenas a alienação, caso da venda, e não a compra do bem. De toda sorte, é possível que o imóvel seja dado em garantia real para os fins de financiamento, o que geraria o enquadramento na parte final do comando, afastada pelo art. 13 da lei 14.118/21. Ainda sobre esse diploma especial, nos termos do seu § 1º, esse contrato de aquisição será registrado no Cartório de Registro de Imóveis competente, sem a exigência de dados relativos ao cônjuge ou ao companheiro e ao regime de bens. Está ainda previsto no seu § 2º que o disposto nesse comando não se aplica aos contratos de financiamento firmados com recursos do FGTS. Apesar da menção ao companheiro ou convivente, anote-se que a jurisprudência superior somente tem admitido a necessidade de outorga convivencial, com a incidência de todos os comandos da codificação privada ora citados, caso a união estável esteja formalizada e registrada no Cartório de Registro de Imóveis do domicílio das partes. A esse propósito, por todos: "a invalidação da alienação de imóvel comum, realizada sem o consentimento do companheiro, dependerá da publicidade conferida à união estável mediante a averbação de contrato de convivência ou da decisão declaratória da existência união estável no Ofício do Registro de Imóveis em que cadastrados os bens comuns, ou pela demonstração de má-fé do adquirente" (STJ, REsp 1.424.275/MT, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 4/12/14, DJe 16/12/14). Na verdade, ainda sobre esse art. 13 da lei de 2021, seguiu-se, em parte, o texto do art. 73-A da Lei Minha Casa, Minha Vida, incluído pela lei 12.693/12, segundo o qual, "excetuados os casos que envolvam recursos do FGTS, os contratos em que o beneficiário final seja mulher chefe de família, no âmbito do PMCMV ou em programas de regularização fundiária de interesse social promovidos pela União, Estados, Distrito Federal ou Municípios, poderão ser firmados independentemente da outorga do cônjuge, afastada a aplicação do disposto nos arts. 1.647 a 1.649 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002. § 1º O contrato firmado na forma do caput será registrado no registro de imóveis competente, sem a exigência de documentos relativos a eventual cônjuge. § 2º Prejuízos sofridos pelo cônjuge por decorrência do previsto neste artigo serão resolvidos em perdas e danos". A menção às perdas e danos passou a compor o art. 15 da nova lei, conforme será exposto ainda. Outro dispositivo a ser destacado, esse gerador de intensos debates, é o art. 14 da lei 14.118/21, segundo o qual, nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido, construído ou regularizado na constância do casamento ou da união estável será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuadas as operações de financiamento habitacional firmadas com recursos do FGTS. Todavia, como exceção, estabelece o seu parágrafo único que, na hipótese de haver filhos do casal e a guarda ser atribuída exclusivamente ao homem, o título da propriedade do imóvel construído ou adquirido será registrado em seu nome ou a ele transferido, revertida a titularidade em favor da mulher caso a guarda dos filhos seja a ela posteriormente atribuída. Reitero que não se tratam propriamente de novidades, pois previsões no mesmo sentido já constavam do art. 35-A da lei 11.977/09, novamente incluídos pela lei 12.693/12 ("Nas hipóteses de dissolução de união estável, separação ou divórcio, o título de propriedade do imóvel adquirido no âmbito do PMCMV, na constância do casamento ou da união estável, com subvenções oriundas de recursos do orçamento geral da União, do FAR e do FDS, será registrado em nome da mulher ou a ela transferido, independentemente do regime de bens aplicável, excetuados os casos que envolvam recursos do FGTS. Parágrafo único. Nos casos em que haja filhos do casal e a guarda seja atribuída exclusivamente ao marido ou companheiro, o título da propriedade do imóvel será registrado em seu nome ou a ele transferido"). O que é curioso perceber é a intensidade do debate que as regras geraram no ano de 2021, algo que não ocorreu da mesma forma no já remoto ano de 2012, na vigência do sistema anterior. De início, há quem veja nas normas inconstitucionalidade, por favorecer a mulher, violando o art. 5º, inc. I, do Texto Maior. E de fato, no âmbito dos Tribunais Estaduais, a inconstitucionalidade do art. 35-A da lei 11.977/20 foi reconhecida pelos Órgãos Especiais dos Tribunais de Justiça de Minas Gerais, do Rio Grande do Sul, do Mato Grosso do Sul e de São Paulo (TJ/MG, Arguição de Inconstitucionalidade 1.0702.12.054293-2/002, Rel. Des. Wagner Wilson, Órgão Especial, julgamento em 11/3/15, publicação em 15/5/15; TJ/RS, Incidente de Inconstitucionalidade 70082231507, Rel. Des. Luiz Felipe Brasil Santos, julgado em sessão realizada em 10/10/19; TJ/MS, Recurso 0809355-66.2015.8.12.0001, Rel. Des. Paschoal Carmello Leandro, Órgão Especial, DJMS 4/9/18, p. 46, e TJ/SP, Arguição de Inconstitucionalidade 0083671-96.2015.8.26.0000, Rel. Des Ferreira Rodrigues, Órgão Especial, j. 9/3/16). Na última Corte Estadual, ementou-se o seguinte: "Examinando a questão com base no artigo 5º, inciso I e no artigo 226, § 5º, ambos da Constituição Federal; e considerando nessa avaliação, principalmente, a inexistência de situação de desigualdade ou de vulnerabilidade (objetivamente considerados) que pudesse justificar o tratamento diferenciado conferido à mulher em detrimento do homem (ou ao homem em detrimento da mulher), aquela imposição, referente à atribuição da propriedade do bem exclusivamente à mulher (na hipótese do art. 35-A, caput) ou ao homem (na hipótese do parágrafo único), não pode ser compreendida de outra forma, senão como atuação ilegítima, não só do ponto de vista da violação do princípio da isonomia, mas também pela caracterização de discriminação injustificada (em razão do sexo), vedada pelo artigo 3º, inciso IV, da Carta Magna, bem como por ofensa ao princípio da razoabilidade e do direito de propriedade. Inconstitucionalidade manifesta" (TJ/SP, Arguição de Inconstitucionalidade 0083671-96.2015.8.26.0000, Rel. Des Ferreira Rodrigues, Órgão Especial, j. 9/3/16). Talvez a edição da nova lei e o crescimento do debate sobre o seu art. 14 aumentem tal reconhecimento de inconstitucionalidade no âmbito das nossas Cortes Estaduais e façam com que a questão seja levada ao Supremo Tribunal Federal. Igualmente com sentido de crítica, há quem aponte de forma negativa o afastamento do regime de bens adotado pelos consortes, desrespeitando o exercício da autonomia privada pelas partes. Em sentido contrário, porém, argumenta-se com a situação de hipossuficiência econômica e de vulnerabilidade das mulheres, a justificar os comandos. Aponta-se, ainda com tom de crítica, a falta de tratamento quanto aos casais homoafetivos, em havendo entidade familiar constituída por eles. Não se pode negar que são argumentos jurídicos que devem ser considerados, inclusive nos novos julgamentos de inconstitucionalidade das duas normas, que devem surgir em breve. Seguindo nos estudos da lei 14.118/21, lamento também o teor do texto ao relacionar a guarda unilateral - que quebra a regra de prioridade da guarda compartilhada, prevista nos arts. 1.583 e 1.584 do Código Civil - com o domínio sobre o imóvel. A propriedade ganha uma natureza ambulatória, seguindo a guarda sobre os filhos, o que causa estranheza, pelas dificuldades de sua efetivação, sem a necessária e esperada estabilidade relacionada ao domínio. Por fim, caso essa atribuição da propriedade traga a um dos consortes algum prejuízo, a questão é resolvida com perdas e danos. Esse é o teor do art. 15 da lei 14.118/21, in verbis: "os prejuízos sofridos pelo cônjuge ou pelo companheiro em razão do disposto nos arts. 13 e 14 desta Lei serão resolvidos em perdas e danos". Aqui, pode-se dizer que há uma novidade parcial no texto, pois a menção às perdas e danos apenas estava no art. 73-A da Lei n. 11.977/2009, no tocante à dispensa da outorga conjugal, como visto. De toda sorte, a imputação de responsabilidade civil e o correspondente pagamento de indenização por perdas e danos decorrem de qualquer situação em que uma parte cause prejuízo a outrem, em virtude de um ilícito praticado, nos termos do que está previsto no art. 927, caput, do Código Civil. Em verdade, o que me parece é uma necessidade política constante de se criar, em cada governo, um programa habitacional próprio, com uma nomenclatura que agrade a um determinado grupo. E com isso, em havendo modificações ou não no texto, alteram-se as regras burocráticas ou mantêm-se problemas técnicos e inconstitucionalidades nos diplomas. Confusões, dúvidas e incertezas são geradas, afastando a propriedade e o domínio de uma desejada perpetuidade, tão comum aos institutos relacionados ao Direito das Coisas.   
Chegamos ao final de mais um ano e, como já se tornou tradição, é o momento de resumir e fazer uma retrospectiva do que ocorreu em 2020 nos temas relativos a esta nossa coluna, relacionada ao Direito de Família e das Sucessões. Em poucas palavras, pode-se dizer que 2020 foi o ano da pandemia e de decisões difíceis nesses dois ramos do Direito Privado. Sobre a pandemia de Covid-19, como tratamos em textos anteriores, a lei 14.010/2020 criou o Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), tendo sido sancionada em 12 de junho. Nunca é demais repetir que a norma tem origem no Projeto de Lei n. 1.179/2020, proposto originalmente pelo Senador Antonio Anastasia, após iniciativa dos Ministros Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, e Antonio Carlos Ferreira, do Superior Tribunal de Justiça. Para o trabalho de sua elaboração foi composta uma comissão de juristas - liderada pelos professores Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rodrigo Xavier Leonardo -, que elaborou o texto e depois fez modificações, contando com minha participação, mediante sugestões enviadas à coordenação dos trabalhos e também ao Senador Rodrigo Pacheco e ao Deputado Vanderlei Macris, na tramitação no Congresso Nacional. Sobre o Direito de Família e das Sucessões, as duas regras que estavam no projeto de lei 1.179/202 foram totalmente mantidas, sem qualquer modificação ou veto. O art. 15 da lei 14.010/2020 enuncia que, até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º, do CPC/2015, deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, e não mais em regime fechado, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações. Seguiu-se, assim, a Recomendação n. 62, de 17 de março de 2020, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que em seu art. 6º orientou os magistrados com competência cível que "considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus". A atual dúvida a respeito da norma diz respeito à possibilidade de prisão civil em regime fechado do devedor de alimentos após a data de 30 de outubro de 2020, uma vez que, infelizmente, a pandemia ainda não está controlada no Brasil. Entendo que, mantidas as razões fáticas que fundamentaram a elaboração da lei, a prisão não é possível nestes moldes, devendo-se dar preferência à modalidade domiciliar e a outras medidas para a efetivação do recebimento da dívida. Nessa linha, entendendo que a prisão em regime fechado não deve ser aplicada até o fim das medidas de distanciamento social, do Tribunal Paulista: "impetração em face de decisão que decretou a prisão do paciente e a inscrição no cartório de protestos do pronunciamento judicial. Prisão que, por conta da excepcionalidade do momento com a pandemia do COVID-19, deve ser suspensa até o encerramento das medidas de isolamento social. Decisão judicial mantida, quanto ao protesto, não sendo desnecessário pedido da parte (art. 528, § 1º, CPC). Expedição de salvo-conduto determinado. Ordem concedida para esse fim" (TJSP, HC 2213075-93.2020.8.26.0000, Acórdão n. 14190576, Presidente Prudente, Terceira Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Carlos Alberto de Salles, julgado em 28/11/2020, DJESP 04/12/2020, p. 2404). Ou, ainda, na mesma linha: "Ordem de prisão civil do devedor, com cumprimento suspenso enquanto pendentes as medidas de contenção social decorrentes da pandemia de Covid-19. Cabimento" (TJSP, Agravo de instrumento n. 2141712-46.2020.8.26.0000, Acórdão n. 14194762, Monte Alto, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Galdino Toledo Júnior, julgado em 30/11/2020, DJESP 04/12/2020, p. 2627). Porém, na própria Corte Paulista há divergência a respeito do tema, podendo ser destacado o seguinte acórdão, que possibilitou a prisão civil em regime fechado do devedor de alimentos, tendo em vista o término do prazo previsto no RJET: "Cumprimento de sentença. Conversão do regime de prisão do devedor em domiciliar diante da pandemia de Coronavírus. Irresignação. Acolhimento parcial. Fundamentos e natureza jurídica da ordem que impedem, como regra, a prisão domiciliar do devedor de alimentos. Término do prazo estabelecido na lei 14.010/2020 que afasta a imposição legal dessa espécie de prisão. Ordem, ao que consta, ainda pendente. Cabimento do cumprimento do saldo de prisão mediante o encarceramento do executado. Agravo provido em parte" (TJ/SP, Agravo de instrumento n. 2144146-08.2020.8.26.0000, Acórdão n. 14194763, São Paulo, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Galdino Toledo Júnior, julgado em 30/11/2020, DJESP 04/12/2020, p. 2628). Eis uma questão que precisa ser pacificada no âmbito dos Tribunais Estaduais e do Superior Tribunal de Justiça no ano de 2021, o que depende, ainda, do controle ou não da pandemia nos próximos meses. A outra regra da Lei n. 14.010/2020 é o seu art. 16, que prevê a suspensão dos prazos para a instauração e o encerramento dos processos de inventário e da partilha, previstos no art. 611 do CPC/2015. Para as sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020, o termo inicial para a instauração é o dia 30 de outubro de 2020, e não mais dois meses da abertura da sucessão, da morte do falecido, como consta da norma processual. Em complemento, o prazo de doze meses para que seja ultimado o processo de inventário e a partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da entrada em vigor da norma - 12 de junho de 2020, quando foi publicada -, até a citada data de 30 de outubro. O meu entendimento doutrinário, aqui já manifestado, é no sentido de que essa suspensão afasta a imposição da multa fiscal prevista pela legislação estadual e distrital das respectivas unidades da federação, sendo esse o fim social da norma, nos termos do art. 5º da LINDB. Veremos também como a jurisprudência analisará essa temática. Além dessas alterações legislativas, 2020 revelou-se como um ano de decisões de casos difíceis no âmbito da jurisprudência superior. Para constatar essa conclusão, vejamos duas decisões relativas ao Direito de Família, de grande repercussão nos ambientes acadêmicos e profissionais. De início, destaco o acórdão proferido pela Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça a respeito da possibilidade de quebra do vínculo socioafetivo em havendo engano quanto à prole e posterior distanciamento entre as partes. Nos termos de trecho da ementa, "mesmo quando configurado o erro substancial no registro civil, é relevante investigar a eventual existência de vínculos socioafetivos entre o genitor e a prole, na medida em que a inexistência de vínculo paterno-filial de natureza biológica deve, por vezes, ceder à existência de vínculo paterno-filial de índole socioafetiva". Porém, no caso concreto, restou evidenciado que, "conquanto tenha havido um longo período de convivência e de relação filial socioafetiva entre as partes, é incontroverso o fato de que, após a realização do exame de DNA, todos os laços mantidos entre pai registral e filhas foram abrupta e definitivamente rompidos, situação que igualmente se mantém pelo longo período de mais de 06 anos, situação em que a manutenção da paternidade registral com todos os seus consectários legais (alimentos, dever de cuidado, criação e educação, guarda, representação judicial ou extrajudicial, etc.) seria um ato unicamente ficcional diante da realidade" (STJ, REsp 1.741.849/SP, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 20/10/2020, DJe 26/10/2020). O acórdão inaugura no STJ a ideia de vínculo socioafetivo ficcional, notadamente quando o engano gera um afastamento posterior entre as partes e a quebra da posse de estado de filhos. Eis um caso de dificílimo julgamento, uma vez que a Corte tinha acórdãos anteriores no sentido de que tal vínculo não poderia ser quebrado. Será necessário aguardar se tal posição colocará em xeque a parentalidade socioafetiva como forma de parentesco civil e em igualdade de tratamento em relação ao parentesco natural ou biológico. O segundo acórdão a ser destacado, agora no âmbito do Supremo Tribunal Federal, diz respeito ao reconhecimento de vínculos concomitantes de convivência para fins previdenciários, ou seja, de uniões estáveis plúrimas. Em setembro de 2019 iniciou-se a sua análise, em sede do Recurso Extraordinário 1.045.273/SE, que abordava a concomitância de uma união estável homoafetiva com uma heteroafetiva (Tema 529). Foi ele encerrado neste mês de dezembro de 2020, com apertada maioria, de 6 a 5, pela impossibilidade de se reconhecer um segundo vínculo familiar. Os ministros Alexandre de Moraes (Relator), Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski, Dias Toffoli, Luiz Fux e Nunes Marques entenderam, assim, pela inviabilidade jurídica de se atribuir quaisquer efeitos previdenciários nas uniões estáveis concomitantes, diante do princípio da monogamia, que se aplica plenamente à união estável, assim como ocorre com o casamento. Como decorrência, apenas o primeiro vínculo de união estável deve ser admitido. A tese final fixada, para os fins de repercussão geral, foi a seguinte: "a preexistência de casamento ou de união estável de um dos conviventes, ressalvada a exceção do artigo 1.723, parágrafo 1º, do Código Civil, impede o reconhecimento de novo vínculo referente ao mesmo período, inclusive para fins previdenciários, em virtude da consagração do dever de fidelidade e da monogamia pelo ordenamento jurídico-constitucional brasileiro". A única exceção feita, portanto, diz respeito à hipótese de o falecido estar separado de fato. Como se pode perceber, a tese final também abarca a concomitância de casamento com um segundo relacionamento, que ainda pende de julgamento específico pela Corte em outro processo de repercussão geral (Recurso Extraordinário 883.168/SC - Tema 526). Em sentido contrário, seguindo o voto do ministro Luiz Edson Fachin, os Ministros Marco Aurélio e Rosa Maria Weber julgaram pela possibilidade de efeitos previdenciários para atingir companheiros de boa-fé nas uniões estáveis plúrimas, aplicando-se por analogia o art. 1.561 do Código Civil, que trata do casamento putativo, conclusão que é por mim compartilhada. Os ministros Barroso e Carmen Lúcia votaram também pelo reconhecimento desses efeitos, mas sem a necessidade da boa-fé, pois prevaleceria a equidade que deve guiar o Direito Previdenciário. Apesar dessa ressalva, concordaram com o voto do ministro Fachin. A conclusão do Supremo Tribunal Federal, como tem sido comum nos últimos anos, gerou muitas manifestações contrárias e favoráveis, com argumentos jurídicos fortes nos dois sentidos, o que demonstra toda a divergência que existe sobre o tema. Há quem entenda que a conclusão deve ficar adstrita ao campo previdenciário. De toda sorte, parece-me que o julgamento fecha a possibilidade de se admitir as uniões estáveis plúrimas, para os fins de gerarem efeitos para o Direito de Família e das Sucessões. Aguardemos, de todo modo, novos posicionamentos das nossas Cortes, a respeito da extensão dos efeitos do decisum. Todo esse cenário, de dificuldades e de grandes divergências, demonstra como foi duro e complicado o ano de 2020, especialmente por conta da pandemia de Covid-19. Mesmo assim, procurei cumprir o meu papel, de informação e de análise técnica dos principais temas relacionados ao Direito de Família e das Sucessões. Agradeço ao Migalhas pela longa parceria, e que possamos continuar em 2021, com um ano melhor para todos. Um Feliz Natal!
quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Testamentos e pandemia

Apesar do otimismo de alguns, no sentido de estarmos já vivendo uma fase de pós-pandemia, tenho sustentando em vários ambientes que estamos muito longe de superar a crise multifatorial que ora enfrentamos. Estamos, na verdade, em meio à pandemia de Covid-19, com várias dúvidas e incertezas sobre as curvas da doença, o índice de contaminação, as possibilidades de reinfecções e a viabilidade das vacinas, ainda em desenvolvimento. Quando da elaboração deste breve texto, em novembro de 2020, uma suposta "segunda onda" já chegou ao hemisfério ocidental e o Brasil teme pelo aumento do número de internações em algumas localidades. Entendo que somente poderemos falar em pós-pandemia quando o vírus estiver, enfim, controlado. Nesse contexto social, desde o início da crise, em março de 2020, novas demandas surgiram no âmbito do Direito Privado, algumas delas tratadas pela lei 14.010/2020, cuja prorrogação de vigência não só pode como deve ser considerada, uma vez que a sua extensão foi limitada ao dia 30 de outubro, quando supostamente os efeitos da pandemia já estariam resolvidos no país, o que não se concretizou. Uma dessas demandas que surgiram diz respeito ao crescimento do número de testamentos, o que foi revelado por pesquisa realizada pelo Colégio Notarial do Brasil, publicada em setembro de 2020. Houve também um incremento da busca de outras ferramentas de planejamento sucessório, o que já era uma tendência apontada em outro textos anteriores. Segundo essa pesquisa, houve um aumento de 134% na elaboração de testamentos, na comparação entre abril e julho de 2020 (Disponível aqui. Acesso em 18 de novembro de 2020). Os dados foram levantados pelo Colégio Notarial do Brasil, por meio da Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados (CENSEC), e, em números absolutos, o Brasil passou de 1.249 testamentos realizados em abril para 2.918 em julho. Na análise estadual, destacaram-se os seguintes aumentos, novamente em percentuais: Amazonas (1.000%), Ceará (933%), Roraima (400%), Distrito Federal (339%), Maranhão (300%), Mato Grosso (300%), Sergipe (260%), Pernambuco (225%), Espírito Santo (175%), Minas Gerais (170%), Alagoas (167%) e Santa Catarina (108%). Essa nova realidade deve inverter uma tendência anterior, de pouco se testar no Brasil. Como expõe Paulo Lôbo, na tradição de alguns povos, o testamento é a forma de sucessão preferencial, o que não ocorre no Brasil. Aqui, o testamento "teve sempre utilidade secundária e residual, não penetrando nos hábitos da população, como se vê na imensa predominância da sucessão legítima nos inventários abertos" (Direito civil: sucessões. São Paulo: Saraiva, 2013. p. 189). O jurista ressalta que a doutrina brasileira sempre se dedicou mais à sucessão legítima do que à testamentária, o que é verdade inafastável. Como primeiro fator do afastamento testamentário, cite-se a falta de patrimônio para dispor, o que atinge muitos dos brasileiros, e que deve ser agravado pela crise econômica que vivemos. O que testar, se não há nada de relevante que pode ser objeto do conteúdo testamentário para muitas pessoas e para muitas famílias? A par dessa realidade, o testamento acaba ficando reservado para aqueles com melhores condições econômicas. Como segundo aspecto, há aquele tão conhecido "medo da morte", o que faz com que as pessoas fujam dos mecanismos de planejamento sucessório. Nas palavras de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, "o brasileiro não gosta, em princípio, de falar a respeito da morte, e sua circunstância é ainda bastante mistificada e resguardada, como se isso servisse para 'afastar maus fluidos e más agruras...'. Assim, por exemplo, não se encontra arraigado em nossos costumes o hábito de adquirir, por antecipação, o lugar destinado ao nosso túmulo ou sepultura, bem como não temos, de modo mais amplamente difundido, o hábito de contratar seguro de vida, assim como, ainda não praticamos, em escala significativa, a doação de órgãos para serem utilizados após a morte. Parece que essas atitudes, no dito popular, 'atraem o azar'" (Direito das sucessões. São Paulo: RT, 2012. p. 263-264). Sem falar que o brasileiro não é muito afeito a planejamentos antecipados em sentido amplo, deixando a resolução de seus problemas para a última hora. No caso da morte, cabe ressaltar, a última hora já passou. O terceiro aspecto que pode ser citado é a existência de custos e formalidades para a elaboração do testamento, mormente se realizada a opção pela modalidade pública, perante o Tabelionato de Notas, mais certa e segura. O Provimento n. 100 do Conselho Nacional de Justiça, de 26 de maio de 2020, ao possibilitar a realização de testamentos pela via digital ou eletrônica, reduziu a burocracia, sem dúvidas, apesar de os custos ainda serem altos. Pontue-se que essa norma administrativa trouxe requisitos de validade para os atos eletrônicos, inclusive sobre a gravação da videoconferência notarial (art. 3º). Ademais, criou regra de competência específica no seu art. 6º, com o intuito de vedar a concorrência predatória pelos serviços extrajudiciais prestados remotamente. Nos termos do último comando, "a competência para a prática dos atos regulados neste Provimento é absoluta e observará a circunscrição territorial em que o tabelião recebeu sua delegação, nos termos do art. 9º da lei 8.935/1994". Apesar de haver uma louvável iniciativa pela extrajudicialização e desburocratização, ainda mais em meio a uma grave pandemia, não são poucos os que se manifestam pela ilegalidade das previsões, argumento que tem força jurídica relevante, uma vez que o tema deveria ser tratado exclusivamente por lei. Como quarto e último fator a ser destacado a respeito da falta de iniciativa em testar, muitos não fazem testamentos por pensarem que a ordem de vocação hereditária prevista em lei é justa e correta, premissa que não é mais a verdadeira, uma vez que o sistema de sucessão legítima do Código Civil de 2002 é confuso e gerador de várias polêmicas, notadamente se confrontado com o sistema da codificação anterior. Nesse aspecto, a falta de esclarecimento sobre o sistema legal brasileiro continua a guiar muitos em um  falta de iniciativa de se elaborar o ato de última vontade. De toda forma, os novos tempos pandêmicos têm revelado a necessidade de se rever essa antiga realidade, sendo imperiosa a necessidade de se reavaliar esse "costume" de não testar, passando o brasileiro a pensar mais no planejamento sucessório post mortem, especialmente porque as confusas e intrincadas regras da sucessão legítima em vigor no País não atendem mais aos anseios da sociedade, não presumindo realmente a vontade do morto. A pandemia de Covid-19 trouxe uma tendência de reversão deste quadro de poucos testamentos, uma vez que passamos a ver que a morte é real, e que pode até estar próxima. Assim, as demandas pela elaboração de mais atos de declaração de última vontade no Brasil aumentaram e devem crescer mais ainda no futuro, fazendo com que a sucessão testamentária encontre o devido destaque no âmbito do nosso Direito das Sucessões.
Tem-se afirmado, no âmbito do Direito das Sucessões, uma tendência crescente de "contratualização", incrementada sobretudo pela busca de mecanismos de planejamento sucessório. Nessa linha, destaco o recente artigo de Gustavo Henrique Baptista Andrade e Marcos Ehrhardt Jr., publicado na coluna Migalhas Contratuais, do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont (A autonomia da vontade no direito sucessório: quais os limites para a denominada "sucessão contratual". Porém, como tenho advertido em exposições sobre o tema, é preciso conhecer os limites dessa valorização da autonomia privada, com respeito e observância de regras fundamentais da matéria sucessória, como a proteção da legítima - quota dos herdeiros necessários, fixada em 50% do patrimônio do falecido - e a vedação dos pactos sucessórios ou pacta corvina - retirada do art. 426 do Código Civil de 2002. Mas não são só essas limitações que devem ser consideradas pelo intérprete a respeito da citada "contratualização", que encontra óbices nos próprios fundamentos do Direito das Sucessões no Brasil. Nesse contexto, o nosso sistema não admite, por exemplo, a renúncia prévia ou mesmo o repúdio à herança por qualquer contrato ou negócio jurídico que a almeje. A respeito da renúncia à herança, aliás, trata-se de um ato jurídico formal, que deve observar estritamente os requisitos previstos no Código Civil. Assim, conforme o seu art. 1.806, a renúncia da herança deve constar expressamente de instrumento público ou termo judicial, após o falecimento do de cujus. Para que a renúncia ou o repúdio prévio à herança seja possível, é preciso alterar a legislação a respeito da matéria, inserindo uma previsão nesse sentido no art. 426 do Código Civil. No contexto da proposta deste texto, interessante lembrar quais fundamentos sucessórios seriam esses, a partir de algumas das lições da doutrina nacional. Para tanto foram escolhidos dois doutrinadores, um clássico e uma contemporânea. Ao tratar da justificação do Direito das Sucessões, Orlando Gomes aponta uma certa "condenação" da disciplina, por razões diversas, citando Lassalle, que a combateu por basear-se em ideias anacrônicas, quais sejam a de continuação da vontade do defunto e a de compropriedade aristocrática da família romana. Menciona o jurista, ainda, que outros sustentaram, com o apoio de Saint-Simon, que o Estado deveria ser o "herdeiro universal das fortunas privadas", obtendo sem violência a transferência de todos os bens ao domínio público (Sucessões. Atualizador Humberto Theodoro Júnior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 2). Entre os negacionistas, lembra que Menger "preconiza a proibição de se transmitirem, mortis causa, os bens de produção, admitindo, entretanto, o direito de disposição dos bens de consumo". Ainda conforme Orlando Gomes, entre os que afirmam positivamente o Direito das Sucessões, o argumento mais forte é o de que a herança "não é mais do que a extensão da propriedade privada além dos limites da vida humana. O próprio Menger reconhece que está intimamente ligado o destino das duas instituições, a propriedade e sucessão. Se a apropriação individual de bens de qualquer espécie é legalmente protegida, e até estimulada, não se justifica a expropriação com a morte do proprietário. Em todos os tempos, a sucessão tem sido admitida e, até nos povos que aboliram a propriedade privada dos bens de produção, ocorre em relação aos bens de uso e consumo, como no Código Civil soviético (art. 416)" (Sucessões. Atualizador Humberto Theodoro Júnior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 2-3).  Com base em Cimbali, ensina ainda Orlando Gomes que a propriedade é constituída sob o impulso de fatores diferentes, que concorrem para a sua formação e a sua garantia: "são elementos subjetivos que se tripartem. O elemento individual prepondera em sua aquisição. O familiar, na sua conservação. O social, em sua garantia. Enquanto vive, os três fatores compartilham das utilidades da propriedade. Por sua morte, cada um dos três fatores reivindica a parte lhe que cabe". Finaliza dizendo que a sucessão mortis causa encontra a sua justificação e a sua fundamentação nos mesmos princípios que fundam o direito de propriedade individual (Sucessões. Atualizador Humberto Theodoro Júnior. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2001. p. 2-3). Essa é uma conclusão muito comum no Direito Civil Brasileiro, no sentido de que o direito de propriedade - atualmente previsto no art. 5º, inc. XXII, da Constituição e no art. 1.228 do Código Civil - estriba a sucessão, assim como ocorre em outros Países do sistema da Civil Law.  Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, em sua tese de titularidade, defendida perante o Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, aponta fundamentos diferentes para o Direito das Sucessões e para a transmissão sucessória no transcorrer dos tempos. Cita, de início e nas civilizações antigas, a necessidade de se ocupar o lugar do pater familias. Destaca, ainda, a necessidade de se preservar as forças da família (Morrer e suceder: passado e presente da transmissão sucessória concorrente. Tese apresentada para concurso público de Professor Titular junto ao Departamento de Direito Civil da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo - Edital FD 44/2009. São Paulo, 2010. p. 394). Em continuidade histórica, aponta que os jusnaturalistas procuraram compreender a sucessão - assim como se dá com a propriedade - como mera construção positivista, podendo "ser abolida logo que isso interessasse às conveniências sociais". Seguindo nos seus estudos, assinala a corrente defendida pelo já citado Cimbali, e também por D'Aguano, para quem o "fundamento da sucessão encontrava sua ênfase em pesquisas biológicas que buscavam demonstrar existir uma espécie de continuidade da vida humana por meio da transmissão de ascendentes a descendentes, não apenas das características genéticas mas também psicológicas. Como conclusão, os estudiosos advertiram que a permissão legal acerca da transmissão do patrimônio do morto para seus descendentes operava-se por razões de ordem biopsíquica. Com o passar do tempo, essa corrente de matiz biológico foi enriquecida com novos fundamentos, como a afeição e unidade familiar, atualizando e humanizando o tema". Giselda Hironaka, ao final, sustenta, o que também é defendido por muitos autores brasileiros, caso de Caio Mário da Silva Pereira, Itabaiana de Oliveira e Clóvis Bevilaqua, que a justificativa do Direito das Sucessões tem as suas bases na necessidade de se fazer um alinhamento - ou uma sincronização - entre o direito de propriedade e o Direito de Família: "esta corrente procura demonstrar que o fundamento da transmissão causa mortis estaria além de uma expectativa de continuidade patrimonial, quer dizer, na simples manutenção dos bens na família, como forma de acumulação de capital que, por sua vez, estimularia a poupança, o trabalho e a economia, porém, mais que isso, o grande fundamento da transmissão sucessória habitaria o fator de proteção, coesão e de perpetuidade da família" (Morrer e suceder: passado e presente da transmissão sucessória concorrente, cit., p. 395-396). Assim também vejo a correta fundamentação da sucessão na realidade jurídica brasileira. Essa sincronização, baseada igualmente na solidariedade familiar, tem justificado a manutenção da legítima, quota dos herdeiros necessários, em percentual fixo de 50%. E a legítima, sem dúvida alguma relacionada a citados fundamentos do Direito das Sucessões, impede, no atual sistema legislativo brasileiro, a tão mencionada "contratualização" da matéria, que pode representar até o seu fim, com o afastamento da sua justificação. De toda sorte, muitas dúvidas permeiam o debate, algumas delas vindas de longa data, desde a elaboração do Código Civil de 1916, como destacado pelo próprio Clóvis Bevilaqua. Seria o caso de se extinguir a legítima, retirando-se esse importante controle relativo à autonomia privada? Mantendo-se a legítima, ela deveria ser revista, diminuindo-se o seu montante? Tais mudanças, no plano legislativo, justificam-se na atualidade, em especial diante da crise pandêmica que nos assola? Não seria o caso de se instituir entre nós um sistema de legítima variável? São interrogações que tenho procurado responder nos últimos anos, tendo a pandemia de covid-19 alterado algumas de minhas conclusões anteriores, notadamente a respeito de eventual diminuição da quota da legítima. Voltarei a esses temas em outro artigo.
De acordo com o art. 549 do Código Civil, é nula a doação quanto à parte que exceder o limite de que o doador, no momento da liberalidade, poderia dispor em testamento. Essa liberalidade, que prejudica a legítima ou reserva, quota dos herdeiros necessários, é denominada desde tempos remotos de doação inoficiosa. Como herdeiros necessários, na literalidade do art. 1.845 do Código Civil estão previstos os descendentes, os ascendentes e o cônjuge. Porém, com a recente e tão comentada decisão do Supremo Tribunal Federal, de reconhecimento da inconstitucionalidade do art. 1.790 e equiparação sucessória da união estável ao casamento, tenho sustentado que ali também deve ser incluído o companheiro (Informativo n. 864 da Corte, com repercussão geral de maio de 2017). Esclareça-se que se trata de consequência sucessória do decisum que, indiretamente, repercute no plano contratual. Voltando-se à doação inoficiosa, apesar da existência de entendimento em contrário - que sustenta haver nulidade relativa ou anulabilidade nessa situação, o que é sustentado por José Fernando Simão -, entendo que o caso é de nulidade absoluta textual, pois a lei prevê expressamente que o ato é nulo (art. 166, inc. VII, primeira parte, do CC). De todo modo, há uma nulidade parcial, que atinge apenas a parte que excede a tutela da legítima ou reserva. A título de exemplo, se o doador tem o patrimônio de R$ 100.000,00 e faz uma doação de R$ 70.000,00, o ato será válido até R$ 50.000,00 (parte disponível) e nulo nos R$ 20.000,00 que excederam a proteção da legítima. O que se percebe é que o art. 549 do Código Civil tem como conteúdo o princípio da conservação do negócio jurídico, uma vez que procura preservar, dentro do possível, a autonomia privada manifestada na doação. Julgando dessa forma, entre acórdãos remotos do STJ, destaco o seguinte: "A doação ao descendente é considerada inoficiosa quando ultrapassa a parte que poderia dispor o doador, em testamento, no momento da liberalidade. No caso, o doador possuía 50% dos imóveis, constituindo 25% a parte disponível, ou seja, de livre disposição, e 25% a legítima. Este percentual é que deve ser dividido entre os 6 (seis) herdeiros, tocando a cada um 4,16%. A metade disponível é excluída do cálculo" (REsp 112.254/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Fernando Gonçalves, j. 16.11.2004, DJ 06.12.2004, p. 313). Ainda em sede de Superior Tribunal de Justiça, tem-se entendido que o valor a ser apurado com o fim de se reconhecer a nulidade deve levar em conta o momento da liberalidade. Assim, "para aferir a eventual existência de nulidade em doação pela disposição patrimonial efetuada acima da parte de que o doador poderia dispor em testamento, a teor do art. 1.176 do CC/1916, deve-se considerar o patrimônio existente no momento da liberalidade, isto é, na data da doação, e não o patrimônio estimado no momento da abertura da sucessão do doador. O art. 1.176 do CC/1916 - correspondente ao art. 549 do CC/2002 - não proíbe a doação de bens, apenas a limita à metade disponível. Embora esse sistema legal possa resultar menos favorável para os herdeiros necessários, atende melhor aos interesses da sociedade, pois não deixa inseguras as relações jurídicas, dependentes de um acontecimento futuro e incerto, como o eventual empobrecimento do doador" (STJ, AR 3.493/PE, Rel. Min. Massami Uyeda, j. 12.12.2012, publicado no seu Informativo n. 512). Entretanto, tratando-se de doações sucessivas, praticadas por meio de vários atos, tal regra não só pode como deve ser mitigada. Como pontua, entre os clássicos, Pontes de Miranda, "se houve diferentes doações, todas - desde que houve herdeiros necessários - se computam, para saber se há violação da porção disponível. Não se levam em conta as doações que foram feitas ao tempo em que o doador não tinha herdeiros necessários; mas somam-se os valores das que se fizeram em todo o tempo em que o doador tinha herdeiros necessários" (PONTES DE MIRANDA, Francisco Cavalcanti. Tratado de Direito Privado. 3. ed. Rio de Janeiro: Borsoi, 1972. t. XLVI, p. 250-251). No mesmo sentido, Agostinho Alvim leciona que, "quando várias doações são feitas, o ponto de partida, para o cálculo da inoficiosidade, é a primeira. Do contrário, o doador iria doando, cada vez metade do que tem atualmente, e todas as doações seriam legais até extinguir a fortuna" (ALVIM, Agostinho. Da doação. São Paulo: Saraiva, 1963. p. 184-185). Constata-se, portanto, que parte da doutrina defende que, tratando-se de aferir se houve violação da legítima ou não, devem ser consideradas todas as liberalidades realizadas, e não apenas o valor de cada doação, isoladamente considerada. Sigo, nessa linha, a posição de se considerar, da última doação até a primeira, qual foi a que invadiu a legítima, reconhecendo-se a invalidade de todas aquelas que extrapolaram a quota dos herdeiros necessários. Exatamente neste sentido, já decidiu o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro em célebre julgado, verdadeiro precedente estadual sobre o tema, que foi assim ementado: "Doação inoficiosa. Doação feita a netos, desfalcando a legítima das filhas. Laudos comprovando a parte excedente. Interpretação finalística do art. 1.176 do C.C. Procedência" (TJRJ, Apelação Cível 4344/92, 4.ª Câmara Cível, Rel. Des. Semy Glanz, j. 19.02.1993). Observe-se que, além de constar da ementa do acórdão o caráter finalístico da interpretação do art. 1.176 do Código Civil de 1916, correspondente ao atual art. 549 do Código Civil de 2002, o Relator explicitou que a finalidade da nulidade imposta por esses dispositivos não é outra que não o respeito à legítima dos herdeiros necessários. Após citar a doutrina de Agostinho Alvim, ora mencionada, arrematou o julgador: "logo, a finalidade da nulidade é a proteção das legítimas". Como a questão envolve ordem pública, entendo que a ação declaratória de nulidade da parte inoficiosa - também denominada de ação de redução -, é não sujeita à prescrição ou à decadência (didaticamente, imprescritível), podendo ser proposta a qualquer tempo, como está expressamente previsto no art. 169 do CC/2002, segundo o qual a nulidade não convalesce pelo decurso do tempo. De todo modo, tem prevalecido, especialmente no âmbito do STJ, um outro entendimento, no sentido de que, pelo fato de a questão envolver direitos patrimoniais, e por questão de se proteger a segurança jurídica, a ação de redução está sujeita a prazo prescricional, que é próprio dos direitos subjetivos de cunho patrimonial. Como não há prazo especial previsto, deverá ser aplicado o prazo geral de prescrição, que na vigência do CC/1916 era de vinte anos (art. 177), e na vigência do CC/2002 é de dez anos (art. 205). Concluindo desse modo, vejamos um primeiro aresto superior: "Civil e processual. Acórdão estadual. Nulidade não configurada. Ação de reconhecimento de simulação cumulada com ação de sonegados. Bens adquiridos pelo pai, em nome dos filhos varões. Inventário. Doação inoficiosa indireta. Prescrição. Prazo vintenário, contado da prática de cada ato. Colação dos próprios imóveis, quando ainda existentes no patrimônio dos réus. Exclusão das benfeitorias por eles realizadas. CC anterior, arts. 177, 1.787 e 1.732. § 2.º Sucumbência recíproca. Redimensionamento. CPC, art. 21. Se a aquisição dos imóveis em nome dos herdeiros varões foi efetuada com recursos do pai, em doação inoficiosa, simulada, em detrimento dos direitos da filha autora, a prescrição da ação de anulação é vintenária, contada da prática de cada ato irregular. Achando-se os herdeiros varões ainda na titularidade dos imóveis, a colação deve se fazer sobre os mesmos e não meramente por seu valor, a teor dos arts. 1.787 e 1.792, § 2.º, do Código Civil anterior. Excluem-se da colação as benfeitorias agregadas aos imóveis realizadas pelos herdeiros que os detinham (art. 1.792, § 2.º). Sucumbência recíproca redimensionada, em face da alteração decorrente do acolhimento parcial das teses dos réus. Recurso especial conhecido em parte e provido" (STJ, REsp 259.406/PR, Quarta Turma, Rel. Min. Aldir Passarinho Junior, data da decisão: 17.02.2005, DJ 04.04.2005, p. 314). A aplicação do prazo geral de dez anos foi confirmada em acórdão de 2014, do mesmo Tribunal Superior, segundo o qual "aplica-se às pretensões declaratórias de nulidade de doações inoficiosas o prazo prescricional decenal do CC/2002, ante a inexistência de previsão legal específica. Precedentes" (STJ, REsp 1.321.998/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 07.08.2014). Todavia, merece destaque o voto vencido do Ministro João Otávio de Noronha, seguindo o mesmo entendimento por mim compartilhado, de que a ação de redução não está sujeita a qualquer prazo, seja ele prescricional ou decadencial. Ponderou o julgador que "discute-se, em ação declaratória de nulidade de partilha e doação, qual o prazo para que a herdeira necessária possa insurgir-se contra a transferência da totalidade dos bens do pai para a ex-esposa e para a filha do casal, sem observância da reserva da legítima, circunstância que caracteriza a doação inoficiosa. Trata-se, portanto, de caso de nulidade expressamente prevista no art. 549 do atual Código Civil, em razão do disposto nos arts. 1.789 e 1.846 do mesmo diploma legal. E, a teor da norma contida no art. 169 do mesmo Código, 'o negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo', a significar que a nulidade é imprescritível. Essa é a tese que defendo. Não desconheço a discussão existente a respeito dessa norma e que, em nome da paz social, levou ao entendimento jurisprudencial de que tal nulidade não fica imune à ocorrência de prescrição. Reservo-me o direito de, em momento oportuno, trazer a matéria a debate na profundidade que entendo necessária" (REsp. 1.321.998/RS). A temática voltou a ser debatida no âmbito da Terceira Turma da Corte em 2019, prevalecendo mais uma vez o entendimento pela incidência do prazo geral de prescrição e vencido o argumento pela não sujeição ao prazo. Também foi analisado se o caso seria de nulidade absoluta ou relativa - tendo o Ministro Moura Ribeiro votado pela última solução e pela incidência de prazo decadencial de dois anos, do art. 179 do CC/2002 -, mas vencendo mais uma vez a primeira posição e pela aplicação do prazo prescricional. O aresto traz citações à doutrina contemporânea, inclusive ao meu posicionamento, ao lado de Pablo Stolze e José Fernando Simão, entre outros autores. Como constou da sua ementa, "o Superior Tribunal de Justiça há muito firmou entendimento no sentido de que, no caso de ação anulatória de doação inoficiosa, o prazo prescricional é vintenário e conta-se a partir do registro do ato jurídico que se pretende anular. Precedentes. Na hipótese, tendo sido proposta a ação mais de vinte anos após o registro da doação, é de ser reconhecida a prescrição da pretensão autoral" (STJ, REsp 1.755.379/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Moura Ribeiro, Rel. p/ Acórdão Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 24.09.2019, DJe 10.10.2019). A menção ao prazo de vinte anos novamente se deu pois os fatos ocorreram na vigência do Código Civil de 1916. Como se pode perceber, o entendimento pela aplicação do prazo geral de prescrição para a ação de redução de doação inoficiosa tende a se consolidar no âmbito do Superior Tribunal de Justiça. Deve ser considerado, contudo, que há divergência no âmbito da Corte, pois há quem entenda pela incidência da regra do art. 169 do Código Civil, pela não sujeição de prazo; ou pela aplicação de prazo decadencial de dois anos do art. 179 da codificação privada, pela presença de nulidade relativa. Constata-se, portanto, que em matéria de doação inoficiosa, hipótese de nulidade absoluta parcial, o art. 169 não tem sido aplicado na prática, seja pelo argumento da existência de questão patrimonial, seja pela afirmação da segurança jurídica. Trata-se, na verdade, de um dos dispositivos mais ignorados da nossa legislação privada, tema que voltarei a analisar em outro texto.
O instituto do Bem de Família Legal - tratado pela Lei n. 8.009/1990 - constitui um dos mais importantes não só no âmbito do Direito Civil, como também no campo processual, passando a sua análise pela abordagem de questões interdisciplinares, que envolvem ainda outras áreas jurídicas, como o Direito do Trabalho, o Direito Tributário e o Direito Constitucional; o último diante da proteção da moradia como direito fundamental, prevista no art. 6º da Constituição Federal de 1998. O tratamento legislativo, como se sabe, tem origem nas lições doutrinárias de Álvaro Villaça Azevedo - que sempre merece as nossas homenagens -, ao abordar a categoria do homestead do Direito Norte-Americano em seus estudos e trazer tal instituto ao nosso País, colaborando para a elaboração da norma citada. Também nesse tema, além da união estável, Villaça deixou a sua "marca legislativa", que ficará para a posteridade e para as futuras gerações. Assim, o art. 1º da Lei n. 8.009/1990 consagra a proteção automática, pela impenhorabilidade, do imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, não respondendo por qualquer dívida civil, comercial, fiscal, previdenciária ou de outra natureza, contraída pelos cônjuges ou pelos pais ou filhos que sejam seus proprietários e nele residam, salvo nas exceções previstas na própria lei. No âmbito da jurisprudência, tem-se interpretado o comando extensivamente em alguns casos, justamente para a tutela da moradia. Por isso, considera-se que também é impenhorável o imóvel onde resida a pessoa solteira (Súmula n. 364 do STJ). Ainda, também é considerado bem de família o único imóvel locado para terceiros, cujo aluguel é utilizado para a locação de outro imóvel, este sim destinado à moradia (Súmula n. 486 do STJ). Na última situação, tem-se o que denomino como bem de família indireto. A respeito dos bens que podem ser penhorados ou não, alguns acessórios do imóvel, tido como bem principal, são excluídos da proteção. Como consta do art. 2º da Lei n. 8.009/1990, "excluem-se da impenhorabilidade os veículos de transporte, obras de arte e adornos suntuosos". Lembro que, por força do art. 833, inc. II, do CPC/2015, são impenhoráveis os móveis, os pertences e as utilidades domésticas que guarnecem a residência do executado, salvo os de elevado valor ou os que ultrapassem as necessidades comuns correspondentes a um médio padrão de vida. Constata-se, portanto, que a lei especial escolheu alguns bens como excluídos do padrão médio de vida do devedor. Quanto às exceções à impenhorabilidade do próprio imóvel, estão previstas no art. 3º da norma em estudo. Pontue-se que o seu inciso I, relativo ao empregado doméstico, foi expressamente revogado pela Lei Complementar n. 150/2015, restando apenas seis exceções, todas elas com polêmicas na devida análise prática, notadamente no âmbito do Superior Tribunal de Justiça (sobre o tema, ver: TARTUCE, Flávio. Direito Civil: Lei de Introdução e Parte Geral. 16. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2020. v. 1, p. 380-384).  A primeira exceção diz respeito ao crédito decorrente do financiamento destinado à construção ou à aquisição do imóvel, no limite dos créditos e acréscimos constituídos em função do respectivo contrato. A segunda é relativa aos alimentos familiares, resguardados os direitos, sobre o bem imóvel, do seu coproprietário que, com o devedor, integre união estável ou conjugal, observadas as hipóteses em que ambos responderão pela dívida. A terceira exceção abrange a cobrança de impostos, predial ou territorial - caso do IPTU que recaia sobre o próprio imóvel -, taxas e contribuições devidas em função do imóvel familiar, o que alcança as dívidas condominiais, assim como outras obrigações propter rem. A quarta possibilidade de quebra da impenhorabilidade é relativa à execução de hipoteca sobre o imóvel oferecido como garantia real pelo casal ou pela entidade familiar, nos seus interesses conjuntos. Também se admite a penhora no caso de o imóvel ter sido adquirido com produto de crime ou para execução de sentença penal condenatória a ressarcimento, indenização ou perdimento de bens. Por fim, apesar de persistente o debate da sua inconstitucionalidade, admite-se que a proteção do bem de família seja afastada no caso de obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação de imóvel urbano, regulado pela Lei n. 8.245/1991. Sobre a última previsão, sabe-se que o Pleno do Supremo Tribunal Federal, em fevereiro de 2006, julgou pela sua constitucionalidade (RE 407.688/SP). Diante da insistência de alguns Tribunais Estaduais em aderirem ao entendimento da inconstitucionalidade - que havia sido adotado em decisão monocrática anterior, do Ministro Carlos Velloso (RE 352.940/SP) -, em outubro de 2015, o Superior Tribunal de Justiça editou a Súmula n. 549 da Corte, segundo a qual "é válida a penhora de bem de família pertencente a fiador de contrato de locação". De toda sorte, a demonstrar toda a divergência a respeito da exceção, no ano de 2018, a Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal voltou a aderir à tese da inconstitucionalidade, em se tratando de locação não residencial, em que a proteção da moradia do credor não está presente, mesmo que de forma indireta (STF, RE 605.709/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, Red. p/ Ac. Min. Rosa Weber, j. 12.06.2018, Informativo n. 906 do STF). Toda essa variação diz respeito a uma norma que nunca foi de pacífica aceitação, a gerar instabilidade e insegurança. Além desse rol de exceções, o Superior Tribunal de Justiça tem concluído que a boa-fé, notadamente a de natureza objetiva, deve ser levada em conta na análise da tutela do bem de família, o que representaria uma outra exceção à estudada impenhorabilidade. De início, em julgado do ano de 2012, entendeu a Corte que a impenhorabilidade não prevalece nas hipóteses em que o devedor atua de má-fé, alienando todos os seus bens e fazendo restar apenas o imóvel de residência. Conforme voto da Ministra Nancy Andrighi, "não há, em nosso sistema jurídico, norma que possa ser interpretada de modo apartado aos cânones da boa-fé. Todas as disposições jurídicas, notadamente as que confiram excepcionais proteções, como ocorre com a Lei 8.009/1990, só têm sentido se efetivamente protegerem as pessoas que se encontram na condição prevista pelo legislador. Permitir que uma clara fraude seja perpetrada sob a sombra de uma disposição legal protetiva implica, ao mesmo tempo, promover uma injustiça na situação concreta e enfraquecer, de maneira global, todo o sistema especial de proteção objetivado pelo legislador" (STJ, REsp 1.299.580/RJ, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 20.03.2012). A premissa tem sido confirmada em decisões posteriores, uma vez que "deve ser afastada a impenhorabilidade do único imóvel pertencente à família na hipótese em que os devedores, com o objetivo de proteger o seu patrimônio, doem em fraude à execução o bem a seu filho menor impúbere após serem intimados para o cumprimento espontâneo da sentença exequenda" (STJ, REsp 1.364.509/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 10.06.2014). Ou, ainda mais recentemente: "a regra de impenhorabilidade do bem de família trazida pela Lei 8.009/90 deve ser examinada à luz do princípio da boa-fé objetiva, que, além de incidir em todas as relações jurídicas, constitui diretriz interpretativa para as normas do sistema jurídico pátrio. Nesse contexto, caracterizada fraude à execução na alienação do único imóvel dos executados, em evidente abuso de direito e má-fé, afasta-se a norma protetiva do bem de família, que não pode conviver, tolerar e premiar a atuação dos devedores em desconformidade com o cânone da boa-fé objetiva. Precedentes" (STJ, REsp 1.575.243/DF, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.03.2018, DJe 02.04.2018). Além dessa reiteração de julgamentos na Terceira Turma da Corte, na sua Quarta Turma, de 2020, destaco o acórdão que admitiu que o bem de família seja objeto de alienação fiduciária em garantia, hipótese em que não se admite a alegação da impenhorabilidade, novamente com base no argumento da quebra da boa-fé. Como consta dos seus termos, como regra geral, "a proteção legal conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não pode ser afastada por renúncia do devedor ao privilégio, pois é princípio de ordem pública, prevalente sobre a vontade manifestada (Ag. Rg. nos EREsp 888.654/ES, Rel. Ministro João Otávio de Noronha, Segunda Seção, julgado em 14.03.2011, DJe 18.03.2011)". Todavia, ainda nos termos do decisum, "à luz da jurisprudência dominante das Turmas de Direito Privado: (a) a proteção conferida ao bem de família pela Lei n. 8.009/90 não importa em sua inalienabilidade, revelando-se possível a disposição do imóvel pelo proprietário, inclusive no âmbito de alienação fiduciária; e (b) a utilização abusiva de tal direito, com evidente violação do princípio da boa-fé objetiva, não deve ser tolerada, afastando-se o benefício conferido ao titular que exerce o direito em desconformidade com o ordenamento jurídico. No caso dos autos, não há como afastar a validade do acordo de vontades firmado entre as partes, inexistindo lastro para excluir os efeitos do pacta sunt servanda sobre o contrato acessório de alienação fiduciária em garantia, afigurando-se impositiva, portanto, a manutenção do acórdão recorrido no ponto, ainda que por fundamento diverso" (STJ, REsp 1.595.832/SC, Quarta Turma, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 29.10.2019, DJe 04.02.2020). Como se observa, a Corte Superior, em suas duas Turmas de Direito Privado, tem entendido reiteradamente que a boa-fé objetiva deve ser levada em conta para a análise da impenhorabilidade ou não do bem de família legal. Como se pode observar, os acórdãos abrem mais uma exceção, além do rol previsto no art. 3º da Lei n. 8.009/1990, concebido como meramente exemplificativo ou numerus apertus. As decisões trazem uma interessante análise, prestigiando a socialidade e a eticidade, dois dos princípios do Código Civil de 2002. Também efetivam a boa-fé objetiva, argumento que tem prevalecido em muitos debates existentes no âmbito do Direito Privado. De todo modo, encontram obstáculo na antiga máxima segundo a qual as normas de exceção não admitem interpretação extensiva; além de sacrificar a proteção da moradia, de índole constitucional. Eis, portanto, uma questão que envolve uma difícil escolha aos julgadores e juristas. De todo modo, fico com as segundas afirmações e com a tese de que o rol do art. 3º da Lei n. 8.009/1990 é taxativo ou numerus clausus.
No último dia 16 de julho de 2020, participei, a convite dos professores Rodrigo da Cunha Pereira e Maria Berenice Dias, de curso sobre Alimentos, promovido em plataforma online pelo Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). O evento procurou trazer uma análise interdisciplinar a respeito do instituto, e a mim coube analisar a aplicação da desconsideração inversa da personalidade jurídica na ação de execução de alimentos. Procurarei aqui compartilhar alguns dos temas abordados naquele encontro, notadamente julgados estaduais pesquisados sobre a temática. Como é notório, a desconsideração da personalidade jurídica está tratada, em termos gerais, pelo art. 50 do Código Civil, que foi recentemente alterado pela Lei da Liberdade Econômica, a lei 13.874/2019. O comando recebeu cinco novos parágrafos e uma locução final no seu caput, visando a trazer parâmetros objetivos para um maior controle na aplicação da categoria. O Código Civil, como se sabe, adotou a teoria maior da desconsideração, que exige o abuso da personalidade jurídica - caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial -, somado a um prejuízo ao credor. Essa vertente contrapõe-se à teoria menor - adotada, por exemplo, pelo art. 28, § 5º, do Código de Defesa do Consumidor -, que exige apenas o prejuízo ao credor para que a desconsideração seja efetivada. Por óbvio que, em matéria de Direito de Família, sobretudo quanto aos alimentos, incide a primeira teoria. Voltando-se à essência do art. 50 do Código Civil, a norma continua a enunciar que, em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte interessada ou até do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica. Trata-se da chamada desconsideração da personalidade jurídica direta ou regular, em que bens dos sócios ou administradores respondem por dívidas da pessoa jurídica, ampliando-se a responsabilidade patrimonial da última. Com a Lei da Liberdade Econômica, passou-se a prever, na antes citada locução final, que somente serão responsabilizados os sócios ou administradores "beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso". Adotou-se, portanto, o entendimento de parte considerável da doutrina, consubstanciado no Enunciado n. 7, aprovado na I Jornada de Direito Civil, segundo o qual "só se aplica a desconsideração da personalidade jurídica quando houver a prática de ato irregular e, limitadamente, aos administradores ou sócios que nela hajam incorrido". De fato, pela teoria maior, a desconsideração deve atingir apenas o sócio ou administrador que tenha praticado a irregularidade e que por ela tenha sido beneficiado de alguma forma. Em todos os casos, não se pode negar que a desconsideração da personalidade jurídica é uma exceção à autonomia existente entre a pessoa jurídica e seus membros, inserida expressamente no art. 49-A, caput, do Código Civil pela mesma Lei da Liberdade Econômica, ao preceituar que a pessoa jurídica não se confunde com os seus sócios, associados, instituidores ou administradores. Alguns julgados a seguir expostos confirmam essa premissa para as execuções dos alimentos. O novo § 1º do art. 50 procurou trazer parâmetros para a definição do que seja o desvio de finalidade, prevendo que esse representa a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. Retirou-se, por bem, a menção expressa ao dolo, que constava na Medida Provisória n. 881, que originou a lei. Na previsão atual, o ilícito pode ser doloso, culposo ou praticado em abuso de direito, nos termos do art. 187 do Código Civil, sendo o último gerador de uma responsabilidade sem culpa, conforme o Enunciado n. 37, aprovado na I Jornada de Direito Civil. No âmbito das ações de alimentos - e também em outras ações de família -, a prova do dolo é diabólica, de difícil superação, e caso a lei mencionasse esse requisito subjetivo os alimentados teriam grandes dificuldades para efetivar a desconsideração em suas demandas. Já quanto à confusão patrimonial, outro elemento que pode gerar a configuração do abuso da personalidade jurídica, o § 2º do art. 50 trouxe um rol meramente exemplificativo de situações, tais como a) o cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; e b) a transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante. A abertura da norma fica clara pelo inciso III do preceito, que estabelece que outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial também podem gerar a confusão patrimonial, caso da hipótese em que a gestão patrimonial de pessoa jurídica e seus membros é compartilhada. Sobre a desconsideração inversa ou invertida, foi ela positivada pelo § 3º do art. 50 do Código Civil, ao prever que "o disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica". Isso já tinha ocorrido com o CPC/2015, que em seu art. 133, § 2º, havia utilizado a expressão já difundida na doutrina e na jurisprudência, no sentido de que o capítulo relativo ao incidente de desconsideração é aplicável "à hipótese de desconsideração inversa da personalidade jurídica". As duas previsões, material e processual, equivalem-se, sem qualquer distinção de conteúdo. Além da desconsideração direta e da inversa, o § 4º do art. 50 do Código Civil acabou por positivar - pelo menos indiretamente - a chamada desconsideração econômica ou a sucessão de empresas, com a possibilidade de extensão de responsabilidades de uma pessoa jurídica para outra, em especial nos casos de confusão patrimonial entre elas. Pelo comando, contudo, "a mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica". Sobre os julgados que tratam da desconsideração inversa no âmbito dos alimentos, nota-se que existem acórdãos que a deferem para a responsabilização até de empresa individual de responsabilidade limitada, tratada pelo art. 980-A do Código Civil, formada por apenas uma pessoa (TJSP, Agravo de instrumento n. 2073431-09.2018.8.26.0000, Acórdão n. 13360188, Ribeirão Preto, Nona Câmara de Direito Privado, Rel. Des. José Aparício Coelho Prado Neto, julgado em 28/02/2020, DJESP 10/03/2020, p. 2227). Não há qualquer óbice para tanto, como já constava do Enunciado n. 470, da V Jornada de Direito Civil: "o patrimônio da empresa individual de responsabilidade limitada responderá pelas dívidas da pessoa jurídica, não se confundindo com o patrimônio da pessoa natural que a constitui, sem prejuízo da aplicação do instituto da desconsideração da personalidade jurídica". Essa deve ser a conclusão sobre o tema, mesmo com a nova redação do art. 980-A, § 7º, do Código Civil, novamente inserido pela Lei da Liberdade Econômica: "somente o patrimônio social da empresa responderá pelas dívidas da empresa individual de responsabilidade limitada, hipótese em que não se confundirá, em qualquer situação, com o patrimônio do titular que a constitui, ressalvados os casos de fraude". A nova norma não afasta, no meu entender, a possibilidade de se aplicar a desconsideração da personalidade jurídica em relação à EIRELI. Da mesma forma, não há qualquer óbice para a desconsideração da personalidade jurídica, inclusive em execução de alimentos, da sociedade limitada unipessoal, incluída pela lei 13.874/2019 no art. 1.052 do Código Civil. Como regra geral, contudo, a desconsideração da personalidade jurídica deve seguir o incidente previsto no Estatuto Processual, a fim de concretizar o contraditório e a ampla defesa. Nessa linha, em ação de execução de alimentos, julgou o Tribunal de Santa Catarina no final de 2019 (TJSC, Agravo de instrumento n. 4020797-22.2019.8.24.0000, Florianópolis, Quinta Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Ricardo Orofino da Luz Fontes, DJSC 29/11/2019, p. 367). Além dessa importante ressalva, diante da incidência da teoria maior da desconsideração, muitos julgados apontam a necessidade de se comprovar os seus requisitos, o desvio de finalidade ou a confusão patrimonial. Assim sendo, a mera ausência de bens do devedor alimentante, por exemplo, não pode dar ensejo à desconsideração inversa. Somente a título ilustrativo, transcreve-se, trazendo análise a respeito desses elementos em ações de execução de alimentos: "AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA EM EXECUÇÃO DE ALIMENTOS DEVIDOS À FILHA. DECISÃO INTERLOCUTÓRIA DE REJEIÇÃO. ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. ABUSO DA PERSONALIDADE CARACTERIZADO PELO DESVIO DE FINALIDADE E CONFUSÃO PATRIMONIAL. CONJUNTO PROBATÓRIO QUE DEMONSTRA A UTILIZAÇÃO DA PERSONALIDADE JURÍDICA COM INTUITO DE LESAR CREDORES, ESPECIFICAMENTE, NO CASO, A ALIMENTANDA. Na desconsideração inversa da personalidade jurídica de empresa comercial, afasta-se o princípio da autonomia patrimonial da pessoa jurídica, responsabilizando-se a sociedade por obrigação pessoal do sócio. Tal somente é admitido, entretanto, quando comprovado suficientemente ter havido desvio de bens, com o devedor transferindo seus bens à empresa da qual detém controle absoluto, continuando, todavia, deles a usufruir integralmente, conquanto não integrem eles o seu patrimônio particular, porquanto integrados ao patrimônio da pessoa jurídica controlada. (TJSC, AI n. 2000.018889-1, Rel. Des. Trindade dos Santos, j. 13-9-2001). (...)" (TJSC, Agravo de instrumento n. 4001454-11.2017.8.24.0000, Palmitos, Sétima Câmara de Direito Civil, Rel. Des. Álvaro Luiz Pereira de Andrade, DJSC 05/08/2019, p. 206). "AGRAVO DE INSTRUMENTO. DIREITO CIVIL E PROCESSUAL CIVIL. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. Pedido de desconsideração inversa da personalidade jurídica. Decisão que indeferiu o pedido. Recurso interposto pela autora. Inconformismo com o indeferimento repisando os argumentos aduzidos no pedido. Alimentos que devem ser buscados do provedor inadimplente. Inexistência de comprovação de insolvência do devedor de alimentos. Ausência de motivos que justifique a instauração do incidente processual requerido. Decisão que não se mostra teratológica. Recurso a que se nega provimento. Manutenção da decisão" (TJRJ, Agravo de instrumento n. 0033765-64.2017.8.19.0000, Niterói, Sétima Câmara Cível, Rel. Des. Cláudio Brandão de Oliveira, DORJ 10/04/2018, p. 20). "DIREITO CIVIL. AGRAVO DE INSTRUMENTO. PEDIDO LIMINAR. CUMPRIMENTO DE SENTENÇA. EXECUÇÃO DE ALIMENTOS. IMPOSSIBILIDADE DE DESCONSIDERAÇÃO INVERSA DA PERSONALIDADE JURÍDICA. INOCORRÊNCIA DOS REQUISITOS DO ART. 50 DO CÓDIGO CIVIL. FALTA DE PROVAS DE CONFUSÃO PATRIMONIAL OU OCORRÊNCIA DE FRAUDE. LIMINAR INDEFERIDA. AGRAVO IMPROVIDO. 1. Cuida-se de agravo de instrumento, com pedido de efeito suspensivo, interposto contra decisão proferida em execução de alimentos, que indeferiu a desconsideração inversa da personalidade jurídica, sob o fundamento de que simples ausência de bens em nome do executado não acarreta necessariamente na desconsideração da personalidade jurídica inversa da empresa que é sócio. 1.1. No recurso, o agravante pede a reforma da decisão, sustentando, em resumo, que estariam presentes os requisitos exigidos pela legislação para o deferimento da medida, pois o agravado, na condição de sócio de empresa, utiliza-se da pessoa jurídica para deixar de cumprir as suas obrigações, especialmente do pagamento da prestação alimentícia do agravante. 2. Não há que se falar em desconsideração inversa da personalidade jurídica da empresa em que o alimentante é sócio, porquanto constitui medida excepcional, aplicável somente nos casos em que evidenciadas as circunstâncias legalmente definidas, o que não é a hipótese dos autos. 2.1. Para que haja a desconsideração inversa deve haver o abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, conforme art. 50 do Código Civil. (...). 4. Na desconsideração inversa, os bens da sociedade devem responder por atos praticados pelo sócio. Ou seja: A proteção patrimonial da sociedade é retirada, permitindo-se que a pessoa jurídica responda com seus bens por atos praticados pela pessoa física do sócio. 5. Tal instituto foi criado para casos em que o devedor esvazia o seu patrimônio pessoal, transferindo os seus bens para a titularidade da pessoa jurídica, em flagrante abuso da personalidade jurídica, desvio de finalidade ou confusão patrimonial. 6. O Superior Tribunal de Justiça admite a desconsideração da personalidade jurídica inversa quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02: [...] III. A desconsideração inversa da personalidade jurídica caracteriza-se pelo afastamento da autonomia patrimonial da sociedade, para, contrariamente do que ocorre na desconsideração da personalidade propriamente dita, atingir o ente coletivo e seu patrimônio social, de modo a responsabilizar a pessoa jurídica por obrigações do sócio controlador. IV. Considerando-se que a finalidade da disregard doctrine é combater a utilização indevida do ente societário por seus sócios, o que pode ocorrer também nos casos em que o sócio controlador esvazia o seu patrimônio pessoal e o integraliza na pessoa jurídica, conclui-se, de uma interpretação teleológica do art. 50 do CC/02, ser possível a desconsideração inversa da personalidade jurídica, de modo a atingir bens da sociedade em razão de dívidas contraídas pelo sócio controlador, conquanto preenchidos os requisitos previstos na norma. V. A desconsideração da personalidade jurídica configura-se como medida excepcional. Sua adoção somente é recomendada quando forem atendidos os pressupostos específicos relacionados com a fraude ou abuso de direito estabelecidos no art. 50 do CC/02. Somente se forem verificados os requisitos de sua incidência, poderá o juiz, no próprio processo de execução, levantar o véu da personalidade jurídica para que o ato de expropriação atinja os bens da empresa. [... ] (RESP 948.117/MS, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, DJe 03/08/2010). 7. No caso dos autos, a simples afirmação de que o agravado não possui bens penhoráveis, é insuficiente para que haja a desconsideração inversa da personalidade jurídica, porquanto não há provas da concretização de fraude à Lei ou a terceiros. 7.1. Ademais, não existem fundamentos para a alegação de confusão patrimonial entre a empresa e o executado, ou mesmo a ocorrência de fraude com o intuito de afastar a responsabilidade pelo pagamento de dívidas. 8. Agravo improvido" (TJDF, Processo n. 0703.88.8.372018-8070000, Acórdão n. 111.1403, Segunda Turma Cível, Rel. Des. João Egmont, julgado em 25/07/2018, DJDFTE 01/08/2018). Como se pode notar, apesar de contar com uma série de benefícios materiais e processuais, inclusive com a possibilidade de prisão civil do devedor, o credor dos alimentos que executa a sua dívida está submetido à teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica, com mais requisitos e rigor para que qualquer uma das suas modalidades seja efetivada, especialmente a desconsideração inversa. Não deixa de ser uma contradição, mas é a nossa realidade legislativa, que deve ser considerada para os devidos fins práticos.
Foi sancionada no último dia 10 de junho de 2020 a lei 14.010/2020, que cria um Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado no período da pandemia do coronavírus. Como se sabe, a nova norma tem origem no PL 1.179/2020, proposto originalmente pelo senador Antonio Anastasia, após iniciativa dos ministros Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal, e Antonio Carlos Ferreira, do Superior Tribunal de Justiça. Para o trabalho de sua elaboração foi composta uma comissão de juristas, liderada pelos professores Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rodrigo Xavier Leonardo, que elaborou o texto, contando com minha participação, mediante sugestões enviadas à coordenação dos trabalhos e também ao senador Rodrigo Pacheco e ao deputado Vanderlei Macris, na tramitação no Congresso Nacional. As propostas feitas por mim também foram assinadas pelos professores José Fernando Simão e Maurício Bunazar. Ao final, muitos foram os vetos realizados pelo sr. presidente da República, Jair Bolsonaro, após ouvir os seus respectivos Ministérios, o que acabou por esvaziar a concretude da nova lei, especialmente no âmbito dos contratos. Houve também um grande atraso na sua votação na Câmara dos Deputados, o que prejudicou o seu caráter emergencial, pois quando da sua sanção já estamos, aparentemente, superando a primeira onda da pandemia em muitos locais do País. Sobre o Direito de Família e das Sucessões, as duas regras que estavam no PL 1.179/2020 foram totalmente mantidas, sem qualquer modificação ou veto. São os arts. 15 e 16 da lei 14.010/2020, o primeiro sobre alimentos e o segundo sobre a abertura e encerramento dos inventários. Pois bem, a primeira norma dispões que, até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º, do CPC/2015, deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, e não mais em regime fechado, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações. Esse art. 15 da lei 14.010/2020 segue o texto constante da Recomendação n. 62, de 17 de março de 2020, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que em seu art. 6º orienta os magistrados com competência cível que "considerem a colocação em prisão domiciliar das pessoas presas por dívida alimentícia, com vistas à redução dos riscos epidemiológicos e em observância ao contexto local de disseminação do vírus". No mesmo sentido, aliás, já vem decidindo o Superior Tribunal de Justiça, desde o início da crise pandêmica, como se retira dos seguintes acórdãos, das suas duas Turmas de Direito Privado: "HABEAS CORPUS. PRISÃO CIVIL. DEVEDOR DE ALIMENTOS. PEDIDO DE SUBSTITUIÇÃO DA MEDIDA POR PRISÃO DOMICILIAR. SUPERAÇÃO DO ÓBICE PREVISTO NA SÚMULA N. 691/STF. RECOMENDAÇÃO N. 62/2020 DO CNJ. PANDEMIA DO CORONOVÍRUS (COVID 19). SITUAÇÃO EXCEPCIONAL A AUTORIZAR A CONCESSÃO DA ORDEM. SUSPENSÃO DO CUMPRIMENTO DA PRISÃO CIVIL. 1. Controvérsia em torno da regularidade da prisão civil do devedor inadimplemente de prestação alimentícia, bem como acerca da forma de seu cumprimento no momento da pandemia pelo coronavírus (Covid 19). 2. Possibilidade de superação do óbice previsto na Súmula n. 691 do STF, em casos de flagrante ilegalidade ou quando indispensável para garantir a efetividade da prestação jurisdicional, o que não ocorre no caso dos autos. 3. Considerando a gravidade do atual momento, em face da pandemia provocada pelo coronavírus (Covid-19), a exigir medidas para contenção do contágio, foi deferida parcialmente a liminar para assegurar ao paciente, o direito à prisão domiciliar, em atenção à Recomendação CNJ n. 62/2020. 4. Esta Terceira Turma do STJ, porém, recentemente, analisando pela primeira vez a questão em colegiado, concluiu que a melhor alternativa, no momento, é apenas a suspensão da execução das prisões civis por dívidas alimentares durante o período da pandemia, cujas condições serão estipuladas na origem pelos juízos da execução da prisão civil, inclusive com relação à duração, levando em conta as determinações do Governo Federal e dos Estados quanto à decretação do fim da pandemia (HC n. 574.495/SP). 5. ORDEM DE HABEAS CORPUS CONCEDIDA" (STJ, HC 580.261/MG, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 02/06/2020, DJe 08/06/2020). "HABEAS CORPUS. OBRIGAÇÃO ALIMENTÍCIA. INADIMPLEMENTO PRISÃO CIVIL. DECRETAÇÃO. PANDEMIA. SÚMULA N. 309/STJ. ART. 528, § 7º, DO CPC/2015. PRISÃO CIVIL. PANDEMIA (COVID-19). SUSPENSÃO TEMPORÁRIA. POSSIBILIDADE. DIFERIMENTO. PROVISORIEDADE. 1. Em virtude da pandemia causada pelo coronavírus (Covid-19), admite-se, excepcionalmente, a suspensão da prisão dos devedores por dívida alimentícia em regime fechado. 2. Hipótese emergencial de saúde pública que autoriza provisoriamente o diferimento da execução da obrigação cível enquanto pendente a pandemia. 3. Ordem concedida" (STJ, HC 574.495/SP, Rel. Ministro RICARDO VILLAS BÔAS CUEVA, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/05/2020, DJe 01/06/2020). "HABEAS CORPUS. FAMÍLIA. PRISÃO CIVIL. OBRIGAÇÃO ALIMENTAR EM FAVOR DE EX-CÔNJUGE. INADIMPLEMENTO DE OBRIGAÇÃO ATUAL (SÚMULA 390/STJ). SITUAÇÃO FINANCEIRA DO DEVEDOR. INCURSÃO PROBATÓRIA INVIÁVEL EM SEDE DE RITO SUMÁRIO. PACIENTE IDOSO E CONVALESCENTE DE DOENÇA GRAVE. SITUAÇÃO OBJETIVA. PANDEMIA DO COVID-19. RISCO DE CONTÁGIO. CABIMENTO DE PRISÃO DOMICILIAR. ORDEM PARCIALMENTE CONCEDIDA. 1. No caso em exame, a execução de alimentos refere-se a débito atual, não estando demonstrada pelas provas pré-constituídas a efetiva ausência de rendimentos. A verificação da redução da capacidade econômica do alimentante e a revisão das justificativas apresentadas para o inadimplemento da obrigação demandam dilação probatória, inviável em sede de Habeas Corpus. 2. Diante do iminente risco de contágio pelo Covid-19, bem como em razão dos esforços expendidos pelas autoridades públicas em reduzir o avanço da pandemia, é recomendável o cumprimento da prisão civil por dívida alimentar em regime diverso do fechado em estabelecimento estatal. 3. Ordem de habeas corpus parcialmente concedida para que o paciente, devedor de alimentos, possa cumprir a prisão civil em regime domiciliar" (STJ, HC 563.444/SP, Rel. Ministro RAUL ARAÚJO, QUARTA TURMA, julgado em 05/05/2020, DJe 08/05/2020). De todo modo, como se pode retirar da parte final do art. 15 da lei 14.010/2020 e também dos julgados, o afastamento da prisão civil em regime fechado no presente momento não afasta a viabilidade de cobrança posterior da dívida em aberto. Merece ser destaque, ainda, o último acórdão, ao afastar a prisão do devedor idoso, o que já vinha sendo aplicando mesmo antes do surgimento da Covid-19. Acrescente-se ainda decisão do próprio STJ que afastou a prisão civil do devedor de alimentos compensatórios - aqueles que visam apenas a reequilibrar o equilíbrio econômico-financeiro após o fim do casamento ou da união estável -, em tempos de pandemia. Como constou do trecho final da ementa, "na hipótese dos autos, a obrigação alimentícia foi fixada, visando indenizar a ex-esposa do recorrente pelos frutos advindos do patrimônio comum do casal, que se encontra sob a administração do ora recorrente, bem como a fim de manter o padrão de vida da alimentanda, revelando-se ilegal a prisão do recorrente/alimentante, a demandar a suspensão do decreto prisional, enquanto perdurar essa crise proveniente da pandemia causada por Covid-19, sem prejuízo de nova análise da ordem de prisão, de forma definitiva, oportunamente, após restaurada a situação normalidade" (STJ, RHC 117.996/RS, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 2/6/2020, DJe 8/6/2020). Na verdade, o próprio Tribunal já vinha entendendo que não cabe a prisão civil em casos tais, presentes esses alimentos. Sobre o Direito das Sucessões, o art. 16 da lei 14.010/2020 trata da suspensão dos prazos para a instauração e o encerramento dos processos de inventário e da partilha, previstos no art. 611 do CPC/15. Para as sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020, o termo inicial para a instauração será o dia 30 de outubro de 2020, e não mais dois meses da abertura da sucessão, como consta da norma processual. Além disso, está previsto no comando que o prazo de doze meses para que seja ultimado o processo de inventário e a partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da entrada em vigor da lei - 12 de junho de 2020, quando foi publicada -, até a citada data de 30 de outubro. Como se sabe, as sanções para o descumprimento dessa norma processual dizem respeito à possibilidade de cada Estado da Federação ou o Distrito Federal instituir uma multa pelo retardamento do início ou da ultimação do inventário, não havendo qualquer inconstitucionalidade nessa instituição, conforme consta da Súmula 542 do Supremo Tribunal Federal. No caso de São Paulo, por exemplo, o tema está tratado pela lei estadual 10.750/2000, no seu art. 21, inc. I, que prevê uma multa de 10% a 20%, calculada sobre o ITCMD, a última se houver um atraso superior a 180 dias no seu requerimento. No Rio de Janeiro, o art. 37, inc. V, da lei estadual 7.174/2015 também prevê uma multa de 10% sobre o imposto, cobrada em dobro quando constatada a infração no curso de um procedimento fiscal. Outras unidades da Federação, como Santa Catarina e o Distrito Federal, preveem multas fixas de 20% sobre o ITCMD, nas leis 13.136/2004 e 5.452/2015, respectivamente. Rodrigo Reis Mazzei e Deborah Azevedo Freire entendem que todas essas multas fiscais foram afastadas pelo artigo da nova lei emergencial, eis que "como é a lei federal que trata do prazo de instauração do inventário causa mortis, os diplomas estaduais e o distrital estão atrelados a tal comando, somente podendo aplicar a multa se não for descumprido o preceito que emana da legislação produzida pela União Federal, em respeito ao art. 22, I, da CF/88. Em suma, somente a União Federal pode regular Direito Civil e Direito Processual Civil, sendo o prazo para a instauração do inventário causa mortis assunto íntimo à competência prevista no art. 22, I, do Diploma Constitucional. O fato faz com que, inclusive, não seja incomum que a legislação local traga menção à aplicação de legislação federal em relação ao prazo para a instauração do inventário causa mortis" (MAZZEI, Rodrigo Reis; FREIRE, Deborah Azevedo. A instauração do inventário causa mortis. Breves (mas não óbvias) anotações a partir do regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Revista Nacional de Direito de Família e das Sucessões, n. 35, Porto Alegre: Magister, mar./abr. 2020. p. 23). Sendo assim, concluem que a suspensão dos prazos do art. 611 do CPC/2015 pela lei 14.010/2020 afasta essas multas fiscais: "isso, porque como os ditames do citado dispositivo do CPC estão afetados pelo art. 19 do RJET, caso se obedeça à normatização transitória não há conduta contrária à legislação que permita a imposição de qualquer multa, inclusive de natureza fiscal" (MAZZEI, Rodrigo Reis; FREIRE, Deborah Azevedo. A instauração do inventário causa mortis. Breves (mas não óbvias) anotações a partir do regime jurídico emergencial e transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do coronavírus (Covid-19). Revista Nacional de Direito de Família e das Sucessões, n. 35, Porto Alegre: Magister, mar./abr. 2020. p. 23). Anote-se que os autores comentaram o art. 19 do então projeto 1.179/2020, que hoje equivale ao art. 16 da lei 14.010/2020. Todavia, a questão não é pacífica. José Fernando Simão - em artigo ainda inédito, escrito em coautoria comigo e com Maurício Bunazar -, sustenta que essa conclusão não vale para o Estado de São Paulo, citando os últimos autores e rebatendo os seus argumentos. Vejamos as suas palavras: "Curiosa é a conclusão, em meu sentir, equivocada, sobre a legislação tributária do Estado de São Paulo. Afirmam os autores que: 'Em São Paulo, por exemplo, o art. 21, I, da lei 10.705/2000, prevê que se o inventário (ou arrolamento) não for requerido dentro do prazo fixado pela legislação federal, o ITCMD será calculado com acréscimo de multa equivalente a 10% (dez por cento) do valor do imposto, mas se o atraso exceder a 180 (cento e oitenta) dias, a multa será de 20% (vinte por cento). Com a devida vênia, a lei estadual de São Paulo não diz isso. O artigo 21 deve ser lido conjuntamente com o artigo 17. Seguindo máxima de Jean Portalis, um dos autores do Code Napoleón, uma lei não se interpreta por leitura de um artigo isoladamente, mas sim, um artigo pelo outro. E o artigo 17 da lei 10.705 de 2000 assim determina: 'Artigo 17 - Na transmissão 'causa mortis', o imposto será pago até o prazo de 30 (trinta) dias após a decisão homologatória do cálculo ou do despacho que determinar seu pagamento, observado o disposto no artigo 15 desta lei. § 1º - O prazo de recolhimento do imposto não poderá ser superior a 180 (cento e oitenta) dias da abertura da sucessão, sob pena de sujeitar-se o débito à taxa de juros prevista no artigo 20, acrescido das penalidades cabíveis, ressalvado, por motivo justo, o caso de dilação desse prazo pela autoridade judicial'. Há prazo limite para recolhimento do tributo expresso e que, como se sabe, o prazo da lei especial (para recolhimento do tributo), ao não mencionar a abertura do inventário, não se suspende pela lei especial. Aliás, a interpretação em sentido contrário ignora um fato: o tributo pode ser recolhido, mesmo se inventário não houver. Uma tabela ajuda na compreensão da questão. (...). Em conclusão, a data da abertura do inventário, para fins da lei paulista, é irrelevante, pois o ITCMD deve ser recolhido em 180 dias da abertura da sucessão, da morte, sem qualquer relação com o prazo de 2 meses do artigo 611 agora 'dilatado' pelo RJET. Para o caso de São Paulo, o RJET é inócuo caso o recolhimento do ITCMD não ocorra no prazo máximo de 180 dias contados da morte: haverá multa de 20%. Vamos agora explicar, então, o texto do artigo 21, I da lei paulista, compilado por Rodrigo Mazzei e Deborah Azevedo Freire: 'I - no inventário e arrolamento que não for requerido dentro do prazo de 60 (sessenta) dias da abertura da sucessão, o imposto será calculado com acréscimo de multa equivalente a 10% (dez por cento) do valor do imposto; se o atraso exceder a 180 (cento e oitenta) dias, a multa será de 20% (vinte por cento)'. Se o inventário não for requerido em 60 dias da abertura da sucessão (o que não corresponde aos dois meses do art. 611 do CPC, pois prazo que se conta em dia difere de prazo que se conta em meses), mas o tributo for recolhido nesse prazo, multa não há. Se o inventário for requerido nesse prazo e o tributo não for recolhido, multa haverá de 10%, salvo dilação desse prazo pela autoridade judicial (art. 17 da lei 10.705/2000). Essa é a interpretação sistemática da lei paulista. Não por fatias, mas um artigo lido pelo outro. O artigo 17 é chave de interpretação do artigo 21" (SIMÃO, José Fernando. Comentários ao que sobrou da lei 14.010/2020, que cria um sistema emergencial de Direito Privado em Tempos de pandemia. No prelo). De fato, essa é uma questão tormentosa, que deve atingir o Poder Judiciário, havendo fortes argumentos nas duas teses levantadas. A priori, estou filiado às primeiras lições, diante da competência da União Federal para tratar de temas atinentes ao Direito das Sucessões, correlato ao Direito Civil e Processual Civil. Ademais, a lei emergencial de 2020 parece ser mais específica do que as normas estaduais, como se o seu próprio nome demonstra. Além disso, vale lembrar que o fim social da norma emergencial - nos termos do art. 5º da LINDB -, foi justamente o de suspender esses prazos processuais e, como consequências, as multas fiscais. Sendo assim, concluir o contrário esvaziaria sobremaneira a nova regra. De toda sorte, reitero a minha percepção que o debate exposto existirá no futuro, com interesses conflitantes de contribuintes e do Fisco Estadual. Veremos como a jurisprudência brasileira se comportará no futuro.
Notícia veiculada no site do Superior Tribunal de Justiça, em 22 de maio de 2020, revela que a sua Segunda Seção passou a admitir a utilização de medidas coercitivas atípicas em ações de investigação de paternidade (disponível aqui). Conforme o Tribunal, no caso de pais que se recusam a fornecer material para exame de DNA, o juiz pode fazer uso das medidas coercitivas autorizadas pelo art. 139, inciso IV, do Código de Processo Civil, não só contra o réu da ação investigatória, mas contra outros familiares do suposto pai. No âmbito dos alimentos, tem-se entendido que todas as medidas previstas em lei para a efetivação do recebimento do crédito alimentar, caso da prisão civil do devedor e em regime fechado, estão em rol meramente exemplificativo (numerus apertus), admitindo-se as citadas medidas atípicas, retiradas do art. 139 do CPC/2015, in verbis: "o juiz dirigirá o processo conforme as disposições deste Código, incumbindo-lhe: (...) IV - determinar todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias necessárias para assegurar o cumprimento de ordem judicial, inclusive nas ações que tenham por objeto prestação pecuniária". Sobre esse comando, escreve Daniel Amorim Assumpção Neves, um dos primeiros a defender o uso de medidas como a apreensão do passaporte ou da carteira de motorista do devedor, que "o dispositivo consagra de forma clara o princípio da atipicidade dos meios executivos, e nesses termos não chega a ser uma novidade, considerando-se a aceitação de tal princípio pela doutrina e pela jurisprudência durante a vigência do CPC/1973. A novidade pode ser computada à expressa menção de aplicação do princípio da atipicidade dos meios executivos às execuções de obrigação de pagar quantia certa, em previsão não existente, ao menos não de forma expressa, no diploma processual revogado" (ASSUMPÇÃO NEVES, Daniel Amorim. "Medidas executivas coercitivas atípicas na execução de obrigação de pagar quantia certa - art. 139, IV, do Novo CPC". Publicado na Revista de Processo n. 127, de março de 2017). A respeito da sua admissão nas ações de alimentos, vejamos importante precedente superior que trata da execução de alimentos e da combinação das medidas executórias: "Diferentemente do CPC/73, em que vigorava o princípio da tipicidade dos meios executivos para a satisfação das obrigações de pagar quantia certa, o CPC/15, ao estabelecer que a satisfação do direito é uma norma fundamental do processo civil e permitir que o juiz adote todas as medidas indutivas, coercitivas, mandamentais ou sub-rogatórias para assegurar o cumprimento da ordem judicial, conferiu ao magistrado um poder geral de efetivação de amplo espectro e que rompe com o dogma da tipicidade. Respeitada a necessidade de fundamentação adequada e que justifique a técnica adotada a partir de critérios objetivos de ponderação, razoabilidade e proporcionalidade, conformando os princípios da máxima efetividade da execução e da menor onerosidade do devedor, permite-se, a partir do CPC/15, a adoção de técnicas executivas apenas existentes em outras modalidades de execução, a criação de técnicas executivas mais apropriadas para cada situação concreta e a combinação de técnicas típicas e atípicas, sempre com o objetivo de conferir ao credor o bem da vida que a decisão judicial lhe atribuiu. Na hipótese, pretende-se o adimplemento de obrigação de natureza alimentar devida pelo genitor há mais de 24 (vinte e quatro) anos, com valor nominal superior a um milhão e trezentos mil reais e que já foi objeto de sucessivas impugnações do devedor, sendo admissível o deferimento do desconto em folha de pagamento do débito, parceladamente e observado o limite de 10% sobre os subsídios líquidos do devedor, observando-se que, se adotada apenas essa modalidade executiva, a dívida somente seria inteiramente quitada em 60 (sessenta) anos, motivo pelo qual se deve admitir a combinação da referida técnica sub-rogatória com a possibilidade de expropriação dos bens penhorados" (STJ, REsp 1.733.697/RS, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 11.12.2018, DJe 13.12.2018). Sobre a possibilidade de combinação dos ritos de execução - de prisão e de penhora ou expropriação -, vale destacar o Enunciado n. 32 do IBDFAM, aprovado no seu XII Congresso Brasileiro, realizado em outubro de 2019: "é possível a cobrança de alimentos, tanto pelo rito da prisão como pelo da expropriação, no mesmo procedimento, quer se trate de cumprimento de sentença ou de execução autônoma". Como não poderia ser diferente, em prol da efetividade e da instrumentalidade, e visando também ao recebimento do crédito pelo alimentando, o enunciado doutrinário teve o meu total apoio naquele evento. De todo modo, resta saber de será viável a sua utilização em tempos pandêmicos e pós-pandêmicos, pela dureza da efetividade da combinação das medidas, ainda mais em uma realidade que revelará a perda considerável de ganhos financeiros e de renda pela sociedade brasileira em geral. Voltando-se ao tema central deste breve artigo, além da combinação de medidas executórias, tem-se debatido a viabilidade jurídica da apreensão de passaporte ou de carteira de motorista do devedor nas demandas de alimentos, o que tende a ser aplicado também nas ações de investigação de paternidade, na linha do primeiro julgado aqui citado. Em outro importante precedente, que não dizia respeito a dívida de alimentos, a Corte Superior acabou por não admitir a sua possibilidade no caso concreto, apesar de não afastar a sua viabilidade jurídica, em termos gerais, e analisar importante questão procedimental. Nos termos do aresto que igualmente merece destaque especial em um dos seus trechos: "O CPC de 2015, em homenagem ao princípio do resultado na execução, inovou o ordenamento jurídico com a previsão, em seu art. 139, IV, de medidas executivas atípicas, tendentes à satisfação da obrigação exequenda, inclusive as de pagar quantia certa. As modernas regras de processo, no entanto, ainda respaldadas pela busca da efetividade jurisdicional, em nenhuma circunstância, poderão se distanciar dos ditames constitucionais, apenas sendo possível a implementação de comandos não discricionários ou que restrinjam direitos individuais de forma razoável. Assim, no caso concreto, após esgotados todos os meios típicos de satisfação da dívida, para assegurar o cumprimento de ordem judicial, deve o magistrado eleger medida que seja necessária, lógica e proporcional. Não sendo adequada e necessária, ainda que sob o escudo da busca pela efetivação das decisões judiciais, será contrária à ordem jurídica. Nesse sentido, para que o julgador se utilize de meios executivos atípicos, a decisão deve ser fundamentada e sujeita ao contraditório, demonstrando-se a excepcionalidade da medida adotada em razão da ineficácia dos meios executivos típicos, sob pena de configurar-se como sanção processual. A adoção de medidas de incursão na esfera de direitos do executado, notadamente direitos fundamentais, carecerá de legitimidade e configurar-se-á coação reprovável, sempre que vazia de respaldo constitucional ou previsão legal e à medida em que não se justificar em defesa de outro direito fundamental. A liberdade de locomoção é a primeira de todas as liberdades, sendo condição de quase todas as demais. Consiste em poder o indivíduo deslocar-se de um lugar para outro, ou permanecer cá ou lá, segundo lhe convenha ou bem lhe pareça, compreendendo todas as possíveis manifestações da liberdade de ir e vir. Revela-se ilegal e arbitrária a medida coercitiva de suspensão do passaporte proferida no bojo de execução por título extrajudicial (duplicata de prestação de serviço), por restringir direito fundamental de ir e vir de forma desproporcional e não razoável. Não tendo sido demonstrado o esgotamento dos meios tradicionais de satisfação, a medida não se comprova necessária. O reconhecimento da ilegalidade da medida consistente na apreensão do passaporte do paciente, na hipótese em apreço, não tem qualquer pretensão em afirmar a impossibilidade dessa providência coercitiva em outros casos e de maneira genérica. A medida poderá eventualmente ser utilizada, desde que obedecido o contraditório e fundamentada e adequada a decisão, verificada também a proporcionalidade da providência. A jurisprudência desta Corte Superior é no sentido de que a suspensão da Carteira Nacional de Habilitação não configura ameaça ao direito de ir e vir do titular, sendo, assim, inadequada a utilização do habeas corpus, impedindo seu conhecimento. É fato que a retenção desse documento tem potencial para causar embaraços consideráveis a qualquer pessoa e, a alguns determinados grupos, ainda de forma mais drástica, caso de profissionais, que têm na condução de veículos, a fonte de sustento. É fato também que, se detectada esta condição particular, no entanto, a possibilidade de impugnação da decisão é certa, todavia por via diversa do habeas corpus, porque sua razão não será a coação ilegal ou arbitrária ao direito de locomoção, mas inadequação de outra natureza" (STJ, RHC 97.876/SP, Quarta Turma, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, j. 05.06.2018, DJe 09.08.2018). Merece ser citado, ainda, acórdão da mesma Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça que confirmou decisão inferior de não admissão dessas medidas restritivas em ação específica de alimentos, por entender que não seriam viáveis no caso concreto: "segundo a jurisprudência desta Corte Superior, as medidas de satisfação do crédito devem observar os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade, de forma a serem adotadas as providências mais eficazes e menos gravosas ao executado. No caso concreto, o Tribunal de origem concluiu que as medidas de apreensão do passaporte e suspensão da CNH do executado são inadequadas e desproporcionais aos propósitos da credora. Alterar esse entendimento demandaria o reexame das provas produzidas nos autos, o que é vedado em recurso especial" (STJ, Ag. Int. no REsp 1805273/DF, Quarta Turma, Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira, j. 29.10.2019, DJe 06.11.2019). De todo modo, como se pode perceber, a Corte não fecha as possibilidades para a sua utilização também nesse último acórdão. O meu entendimento doutrinário vinha sendo no sentido de que no caso dos alimentos familiares o debate ganharia especial magnitude, uma vez que é possível medida até mais severa, qual seja a prisão civil do devedor, em regime fechado. Sendo assim, se é viável o mais é possível o menos, ou seja, a apreensão de documentos com a consequente restrição de direitos, o que acaba sendo medida até menos onerosa e alternativa à restrição da liberdade, e deve ser buscado nestes tempos de Covid-19. Assim, não vejo óbice para que a apreensão do passaporte ou da carteira de motorista do devedor de alimentos seja efetivada em casos excepcionais, observados os parâmetros constantes do último acórdão. Porém, como derradeira ressalva, resta saber se, superada a pandemia, essas medidas se mostrarão realmente efetivas no caso concreto, especialmente a apreensão do passaporte, pelas dificuldades que serão encontradas nos deslocamentos e nas viagens internacionais, notadamente nos próximos anos. Somente o tempo dirá...
A pandemia de covid-19 trouxe grandes impactos para todo o planeta, não podendo o Direito Privado Brasileiro ficar alheio a tais repercussões, o que inclui o Direito das Sucessões e o tema do testamento, que, não obstante a sua rigidez e "dureza técnica", também devem ser influenciados pelas mudanças pelas quais passa a sociedade. Vivemos uma realidade totalmente diferente daquela anterior ao surgimento da pandemia. Chamo a atenção, nesse contexto, para artigo escrito pelo Professor José Fernando Simão, em que analisa as "Realidades A, B e C" e suas repercussões para o Direito de Família, afirmações que, penso, também servem em certa medida para o Direito das Sucessões. Segundo ele, o dia 13 de março de 2020 foi, para o Brasil, o último dia de uma antiga realidade, que ele chamada de "Realidade A". Nessa, segundo ele, "vivíamos um sonho de abundância e felicidade perpétuas em que o adjetivo INCURÁVEL tinha sido riscado do Dicionário. Na realidade A, o direito de família era o da filosofia dos estetas: belo e fantasioso. Cheio de glamour e de premissas frágeis. Na época de abundância, em que o homo sapiens sapiens se sente eterno, há muito espaço para a filosofia e pela busca da felicidade em um mundo hedonista" (SIMÃO, José Fernando. Direito de família em tempos de pandemia: hora de escolhas trágicas. Uma reflexão de 7 de abril de 2020. Acesso em: 24 abr. 2020). Porém, essa "Realidade A" foi substituída por uma "Realidade B", que vivemos no momento da elaboração deste artigo, da primeira onda da pandemia no Brasil. Vejamos suas exatas palavras: "Em 13 de março vivemos o último dia daquela Belle Époque. A realidade A acabou e começou a B, que é temporária, fugaz, mas persiste. O homo sapiens sapiens percebe que, antes de ser feliz, ele precisa sobreviver e a pandemia mostra que a simples sobrevivência deixa de ser óbvia. O ser humano se vê, repentinamente, em contato com sua animalidade por conta da inevitabilidade da disseminação de uma doença mortalmente perigosa. Problema que se coloca na Realidade B é que as pessoas, vivendo um autoengano (típico do homo sapiens que precisa criar narrativas para sobreviver), assumindo uma negação de que a era da euforia e da abundância acabou (de maneira definitiva?), prosseguem repetindo velhas máximas da Realidade A e, juridicamente, prosseguem repetindo os mantras dessa velha e já extinta Realidade. Vivemos, então, a síndrome do Peru descrita por Taleb (vide citação no início dessas linhas). As nossas crenças precisam ser revistas, ainda que na hora do último suspiro quando o carrasco vier com a faca para decapitar o peru no dia de Ação de Graças. É compreensível a negação e a dificuldade pela qual passamos. Vivemos com a pandemia o fenômeno chamado de Cisne Negro. A metáfora de Taleb é genial. Havia uma crença europeia arraigada e inquestionável que todos os cisnes eram brancos (Cygnus olor). Isso porque a espécie europeia de cisne efetivamente o é. Essa crença inabalável desmorona quando os europeus se deparam com o cisne australiano (Cygnus atratus), que é negro. É nesse momento de abalo de crenças, de realidade aparente imutável, que vale ler o pensamento de Taleb: 'O Cisne Negro é um Outlier, pois está fora do âmbito das expectativas comuns, já que nada no passado pode apontar convincentemente para a sua possibilidade. Segundo, ele exerce um impacto extremo. Terceiro, apesar de ser um outlier, a natureza humana faz com que desenvolvamos explicações para sua ocorrência após o evento, tornando-o explicável e previsível'". Nestes tempos de "escolhas trágicas" e da necessidade de superação de antigos dogmas, ainda da realidade anterior, destaca Simão, por fim, que virá a "Realidade C", cujo início ainda é incerto, mas que não será nem a "Realidade A" e nem a "Realidade B", pois viveremos um novo mundo depois de essa crise pandêmica passar, assim como ocorreu em outros momentos da História. Pois bem, na "Realidade B", é preciso pensar em mudanças efetivas para o Direito Privado, o que é almejado pelo Projeto de Lei originário do Senado Federal n. 1.179/2020, proposto pelo Senador Antonio Anastasia, após uma iniciativa do Ministro Dias Toffoli, do Supremo Tribunal Federal. A projeção cria um "regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET) no período da pandemia do Coronavírus (covid-19)"; e contou com a minha singela participação, ao lado de outros juristas, liderados pelos Professores Otavio Luiz Rodrigues Jr. e Rodrigo Xavier Leonardo, que assessoraram nos trabalhos legislativos. Cria-se um "miniCódigo Civil" para resolver questões emergenciais da "Realidade B", que vão desde a prescrição, passando pelos contratos e chegando-se ao Direito de Família e das Sucessões. Sobre sucessões, há apenas um dispositivo, que suspende os prazos de abertura e encerramento dos inventários, previstos no art. 611 do Código de Processo Civil (art. 16 da proposta legislativa). Na ocasião de sua elaboração, ao lado justamente de José Fernando Simão, e de Maurício Bunazar, fizemos algumas sugestões de aperfeiçoamento e novas proposições, em conjunto, como a seguinte, que criaria um regime de testamento particular de emergência ou hológrafo simplificado em tempos de pandemia: "Art. Para efeitos de aplicação do artigo art. 1.879 do Código Civil considera-se circunstância excepcional a pandemia de COVID19. § 1º. O disposto neste artigo aplica-se aos testamentos elaborados a partir do dia 20 de março de 2020. § 2º. Sob pena de caducar, o testamento elaborado nestas condições deverá ser confirmado pelo testador na presença de três testemunhas em até 90 dias contados da data da cessação da pandemia". Conforme o comando citado na proposição, "em circunstâncias excepcionais declaradas na cédula, o testamento particular de próprio punho e assinado pelo testador, sem testemunhas, poderá ser confirmado, a critério do juiz" (art. 1.879 do Código Civil). O objetivo, como se percebe, é facilitar o testamento particular em tempos de pandemia, sujeitando-o ao regime emergencial já previsto na codificação privada. Sobre o prazo de noventa dias, segue-se em parte o teor do Enunciado n. 611 da VII Jornada de Direito Civil, segundo o qual "o testamento hológrafo simplificado, previsto no art. 1.879 do Código Civil, perderá sua eficácia se, nos 90 dias subsequentes ao fim das circunstâncias excepcionais que autorizaram a sua confecção, o disponente, podendo fazê-lo, não testar por uma das formas testamentárias ordinárias". Sugere-se, portanto, a aplicação analógica do prazo previsto para as formas extraordinárias de testar, nos termos do art. 1.891 do próprio Código Civil: "caducará o testamento marítimo, ou aeronáutico, se o testador não morrer na viagem, nem nos noventa dias subsequentes ao seu desembarque em terra, onde possa fazer, na forma ordinária, outro testamento". O prazo de noventa dias, portanto, traz maior segurança a respeito do conteúdo da última manifestação da vontade do autor da herança. Apesar de criar certa burocracia, afasta as captações indevidas e dolosas da vontade do testador. De todo modo, justamente diante dessas possibilidades de influências de terceiros com fins ilegítimos, a proposição acabou por não ser acatada quando da elaboração do PL 1.179/2020, sendo justificados os receios, em um primeiro momento, no meu entender. De toda sorte, entendo que a proposta pode seguir por outro caminho, no Congresso Nacional, sendo cabível o seu eventual aperfeiçoamento. Ademais, mesmo sem uma lei nesse sentido, em julgamentos futuros, a pandemia de covid-19 poderá ser enquadrada como circunstância excepcional, para o fim de se admitir a declaração de vontade, nos termos do que consta do art. 1.879 do Código Civil. Além disso, será viável, juridicamente, aplicar o teor do que consta do Enunciado n. 611 da VII Jornada de Direito Civil, com a possibilidade de confirmação do testamento em noventa dias, sob pena de caducidade. Como fim da pandemia, deve-se considerar a declaração feita pela Organização Mundial da Saúde, ainda com data incerta. Como palavras finais, não se pode negar que uma norma jurídica tratando do tema traria maior certeza para a tese que ora se propõe, devendo a temática ser debatida pela comunidade jurídica nacional nestes duros tempos, de "escolhas trágicas".
Um dia a cada dia, uma semana de cada vez. Essa é uma frase que tenho repetido desde o surgimento dos casos de coronavírus do Brasil, o que gerou uma profunda crise, nunca vivida por esta geração. Temos, sem dúvida, o maior desafio de nossas vidas a superar. Não há qualquer previsibilidade quanto ao futuro, e a confiança, base da grande maioria das relações privadas, é gravemente colocada em dúvida neste momento. As relações sociais não serão como eram antes, não só nos momentos de crise, como também quando ela cessar. Como não poderia ser diferente, muito além dos contratos e de outras interações negociais, a pandemia que ora vivemos atinge em cheio o Direito de Família, em muitos dos seus aspectos e institutos, trazendo debates emergenciais. Pretendo aqui abordar um deles, que surgiu nos últimos dias, sem prejuízo de outras reflexões que seguirão em colunas seguintes. O assunto que quero discutir diz respeito às ações de alimentos, especialmente quanto aos pedidos de prisão civil, sejam os anteriores ou os novos. Como se sabe, os prazos processuais estão suspensos em todo o País até o dia 30 de abril de 2020 - por decisão do Presidente do Supremo Tribunal Federal e do Conselho Nacional de Justiça, Ministro Dias Toffoli, de 18 de março último -, não havendo qualquer menção a respeito das ações de alimentos quanto à continuidade dos prazos. O art. 4º da resolução 313 do CNJ exclui apenas as seguintes demandas da suspensão, estando submetidas ao plantão extraordinário, por diversos diferentes motivos que as fundamentam: a) o habeas corpus e o mandado de segurança; b) as medidas liminares e as de antecipação de tutela de qualquer natureza, inclusive no âmbito dos juizados especiais; c) as comunicações de prisão em flagrante, os pedidos de concessão de liberdade provisória, a imposição e a substituição de medidas cautelares diversas da prisão e desinternação; d) a representação da autoridade policial ou do Ministério Público visando à decretação de prisão preventiva ou temporária; e) os pedidos de busca e apreensão de pessoas, de bens ou de valores, as interceptações telefônicas e telemáticas, desde que objetivamente comprovada a urgência; f) os pedidos de alvarás, os pedidos de levantamento de importância em dinheiro ou valores, a substituição de garantias e a liberação de bens apreendidos, o pagamento de precatórios, de Requisições de Pequeno Valor e a expedição de guias de depósito; g) os pedidos de acolhimento familiar e institucional, bem como de desacolhimento; h) os pedidos de progressão e de regressão cautelar de regime prisional; i) a concessão de livramento condicional, indulto e comutação de penas e pedidos relacionados com as medidas previstas na Recomendação n. 62/2020 do próprio CNJ; j) os pedidos de cremação de cadáver, de exumação e de inumação; e k) a autorização de viagem de crianças e adolescentes, observado o disposto na Resolução n. 295/2019 também do CNJ. Apesar de os pedidos de alimentos provisórios e provisionais poderem se enquadrar na alínea b transcrita, o deferimento da prisão civil do devedor de alimentos não se enquadra em qualquer um dos casos listados. Muito ao contrário, a possibilidade de soltura do devedor de alimentos está abrangida pela menção ao habeas corpus (letra a), como é costume nas ações de família. Então surgem as dúvidas, objeto principal deste texto: a prisão civil do devedor de alimentos, em regime fechado, deve ser deferida no presente momento de crise? Mais do que isso, como deve ser a decisão a respeito daqueles que se encontram presos por este motivo? As minhas respostas para as duas perguntas seguem exatamente a linha da conclusão da Ministra Fátima Nancy Andrighi, do Superior Tribunal de Justiça, que, em decisão veiculada no próprio site da Corte, em 19 de março último, determinou que um devedor de alimentos deixasse a prisão civil em regime fechado e passasse ao regime de prisão domiciliar, como medida de contenção da pandemia causada pelo coronavírus. Seguiu-se, portanto, a recomendação 62/2020 do Conselho Nacional de Justiça, que autorizou a substituição da prisão em regime fechado do devedor de alimentos pelo regime domiciliar, para evitar a propagação da doença. Nas suas exatas palavras, "diante desse cenário, é preciso dar imediato cumprimento à recomendação do Conselho Nacional de Justiça, como medida de contenção da pandemia causada pelo coronavírus" (ver aqui. Acesso em 12 de março de 2020). De fato, diante de graves problemas que atingem o sistema prisional no País, a determinação da prisão do devedor de alimentos - algumas vezes, sem real potencial ofensivo - poderia somente aumentar ainda mais a crise institucional dos presídios. Nota-se que o art. 529 do Código de Processo Civil - ao mencionar a prisão civil em regime fechado - não traz qualquer exceção ou alternativa a tal medida. Entretanto, a verdade é que a doutrina e a jurisprudência já vinham mitigando a possibilidade de prisão civil em algumas hipóteses específicas, como naquelas envolvendo os devedores pessoas idosas. Ademais, alternativas para a prisão - como a retenção de documentos, caso do passaporte e da carteira de motorista - vêm sendo aplicadas por alguns juízes, com fundamento no art. 139, inc. IV, da própria Lei Processual. Nesse sentido de mitigação, no âmbito doutrinário, o Enunciado n. 599, aprovado na VII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal, ao tratar dos alimentos devidos pelos avós ou avoengos: "Deve o magistrado, em sede de execução de alimentos avoengos, analisar as condições do(s) devedor(es), podendo aplicar medida coercitiva diversa da prisão civil ou determinar seu cumprimento em modalidade diversa do regime fechado (prisão em regime aberto ou prisão domiciliar), se o executado comprovar situações que contraindiquem o rigor na aplicação desse meio executivo e o torne atentatório à sua dignidade, como corolário do princípio de proteção aos idosos e garantia à vida". Na jurisprudência, no âmbito do Superior Tribunal de Justiça, mais uma vez decisão prolatada pela Ministra Nancy Andrighi, com precisão, traz o enfrentamento de outra peculiaridade do caso concreto: "na hipótese, o fato de a credora ter atingido a maioridade civil e exercer atividade profissional, bem como o fato de o devedor ser idoso e possuir problemas de saúde incompatíveis com o recolhimento em estabelecimento carcerário, recomenda que o restante da dívida seja executado sem a possibilidade de uso da prisão civil como técnica coercitiva, em virtude da indispensável ponderação entre a efetividade da tutela e a menor onerosidade da execução, somada à dignidade da pessoa humana sob a ótica da credora e também do devedor" (STJ, RHC 91.642/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/03/2018, DJe 09/03/2018). Como disse no início deste breve texto, a pandemia de coronavírus trará uma nova roupagem para os institutos jurídicos. Yuval Harari - autor da célebre obra Sapiens - aponta em artigo publicado no jornal Financial Times, de 20 de março deste fatídico ano de 2020, que a humanidade tem que fazer uma escolha. Pergunta ele: iremos todos para uma rota de desunião ou adotaremos a solidariedade global? Vamos escolher pela falta de unidade - que somente irá prolongar a crise e gerar mais catástrofes no futuro -, ou vamos nos unir não só contra o cononavírus como também contra as futuras epidemias, que possivelmente surgirão nos próximos anos? Recomendo, a propósito, a leitura dos livros de Harari nesses momentos de reclusão e de isolamento, pois ele explica muito bem o caminho e as escolhas da humanidade até aqui, bem como os movimentos pendulares da História. Penso que o valores da responsabilização civil e da utilização de penalidades - tão caras para assegurar a força coercitiva do Direito Privado - podem ceder, neste momento, para as ideias de colaboração, de cooperação e de solidariedade. O mundo está "virando a chave". Para qual lado, ainda não sabemos dizer. Porém, se certas concessões não forem feitas, não saberemos o que será da efetividade das nossas ferramentas e das nossas instituições, depois de tudo isso. No mais, no momento, eu fico em casa, como um ato coletivo, para salvar vidas. Uno-me aos que assim estão fazendo, em todo o mundo. Até a próxima coluna.
Complementando as regras básicas relativas à ordem de sucessão legítima e à vocação hereditária, com especial tratamento quanto à sucessão dos descendentes em concorrência com o cônjuge, o art. 1.832 do Código Civil de 2002 - sem correspondente na codificação anterior - trata da chamada reserva da quarta parte da herança. Conforme a sua exata redação, "em concorrência com os descendentes (art. 1.829, inciso I) caberá ao cônjuge quinhão igual ao dos que sucederem por cabeça, não podendo a sua quota ser inferior à quarta parte da herança, se for ascendente dos herdeiros com que concorrer". O objetivo da norma é assegurar um patrimônio mínimo ao cônjuge sobrevivente, papel que era exercido, no Código Civil de 1916, pelo chamado usufruto vidual. Como primeira observação a respeito do comando, diante da equiparação sucessória feita pelo Supremo Tribunal Federal, em julgamento encerrado no ano de 2017 e que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1.790 do Código Civil (decisum publicado no Informativo n. 840 do STF), passa ele a ter plena incidência para a união estável, o que foi reconhecido em 2019 pelo Superior Tribunal de Justiça, em julgado que ainda será aqui melhor explicado. Como se pode perceber, a norma da codificação privada em vigor enuncia que o cônjuge - e agora também o convivente ou companheiro - recebe o mesmo quinhão que recebem os descendentes. Ademais, em continuidade, o preceito consagra a citada reserva da quarta parte da herança ao cônjuge ou ao companheiro se ele for ascendente dos descendentes com quem concorrer, geralmente pai ou mãe do filho do falecido, de cuja herança se trata. Assim, se por outro lado o cônjuge ou companheiro concorrer somente com descendentes do falecido, não haverá a referida reserva. Na verdade, o principal debate a respeito do comando somente ganha relevo se houver a concorrência com mais de três descendentes do falecido, situação em que a reserva da quarta parte seria alvo de dúvidas. Observa-se, portanto, que a principal discussão que o dispositivo desperta tem relação com a chamada sucessão ou concorrência híbrida, expressão criada pela Professora Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, presente quando o cônjuge ou convivente concorre com descendentes comuns - de ambos -, e com descendentes exclusivos do autor da herança (HIRONAKA, Giselda Maria Fernandes Novaes. Comentários ao Código Civil. 2. ed. Coord. Antonio Junqueira de Azevedo. São Paulo: Saraiva, 2007. v. 20, p. 235-236). Isso porque tal hipótese não foi prevista pelo legislador, presente uma lacuna normativa, a ser sanada pelo intérprete. A propósito, a jurista citada tem procurado analisar a polêmica que forma o cerne principal deste artigo em suas aulas e palestras sobre a sucessão legítima. Duas foram as correntes fundamentais que surgiram sobre essa controvérsia, conforme consta de tabela doutrinária elaborada por Francisco José Cahali, em obra de grande expressão, lançada nos anos iniciais de vigência do Código Civil de 2002 (Direito das sucessões. 3. ed. São Paulo: RT, 2007. p. 189-192). Para uma primeira corrente, tida desde o início como majoritária, em havendo a sucessão híbrida, não se deve fazer a reserva da quarta parte ao cônjuge ou ao companheiro, tratando-se todos os descendentes como se fossem exclusivos do autor da herança. Assim entendem - conforme menções constantes na citada tabela doutrinária - Caio Mário da Silva Pereira, Christiano Cassettari, Guilherme Calmon Nogueira da Gama, Gustavo René Nicolau, Inácio de Carvalho Neto, Jorge Fujita, Luiz Paulo Vieira de Carvalho, Maria Berenice Dais, Maria Helena Diniz, Maria Helena Braceiro Daneluzzi, Mário Delgado, Mário Roberto Carvalho de Faria, Rodrigo da Cunha Pereira, Rolf Madaleno, Sebastião Amorim, Euclides de Oliveira e Zeno Veloso; além do presente autor. Esse entendimento prestigia os interesses e direitos dos filhos em detrimento dos do cônjuge, sendo essa a opção constitucional, como apontam os juristas citados. Adotando a premissa, na V Jornada de Direito Civil, evento promovido pelo Conselho da Justiça Federal no ano de 2011, aprovou-se o seguinte enunciado: "na concorrência entre o cônjuge e os herdeiros do de cujus, não será reservada a quarta parte da herança para o sobrevivente no caso de filiação híbrida" (Enunciado n. 527). Reitero que a destacada ementa doutrinária e todas essas afirmações têm incidência, agora, para a concorrência do companheiro com os descendentes, eis que foi ele incluído no art. 1.829 do Código Civil pela decisão do Supremo Tribunal Federal antes mencionada, com repercussão geral. Por outra via, para uma segunda corrente doutrinária, tida como minoritária, em havendo sucessão híbrida, deve ser feita a reserva da quarta parte ao cônjuge, tratando-se todos os descendentes como comuns, como pensam Francisco José Cahali, José Fernando Simão e Sílvio de Salvo Venosa. Essa corrente está baseada em uma interpretação literal do art. 1.832, pois a reserva da quarta parte deve ocorrer em havendo descendentes de ambos, não sendo relevante para afastar tal subsunção a presença também de filhos exclusivos somente do falecido. Tentando resolver esse dilema, em 2019 surgiu o antes citado precedente da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, que menciona obra de minha autoria, especialmente o debate doutrinário aqui exposto. Seguindo a primeira corrente, o aresto conclui que não deve ocorrer a reserva da quarta parte em havendo a sucessão ou concorrência híbrida. Pontue-se que o caso dizia respeito a união estável, e não a casamento, fazendo incidir a equalização sucessória entre as entidades familiares, conforme a tão citada decisão do STF. Como consta da primeira parte da sua ementa, "o Supremo Tribunal Federal, sob a relatoria do e. Min. Luís Roberto Barroso, quando do julgamento do RE 878.694/MG, reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1.790 do CCB tendo em vista a marcante e inconstitucional diferenciação entre os regimes sucessórios do casamento e da união estável" (STJ, REsp 1.617.501/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/06/2019, REPDJe 06/09/2019, DJe 01/07/2019). Na sequência é enfrentado o dilema relativo à concorrência do companheiro com os descendentes no regime da comunhão parcial de bens, sendo citado o julgado a respeito da consolidação de pensamento que se deu no âmbito da Segunda Seção da Corte, no sentido de que, "nos termos do art. 1.829, I, do Código Civil de 2002, o cônjuge sobrevivente, casado no regime de comunhão parcial de bens, concorrerá com os descendentes do cônjuge falecido somente quando este tiver deixado bens particulares. A referida concorrência dar-se-á exclusivamente quanto aos bens particulares constantes do acervo hereditário do de cujus" (STJ, REsp 1.368.123/SP, Rel. Ministro SIDNEI BENETI, Rel. p/ Acórdão Ministro RAUL ARAÚJO, SEGUNDA SEÇÃO, julgado em 22/4/2015, DJe 8/6/2015). E, por fim, enfrentando o tema principal deste texto - e com base nos entendimentos doutrinários de Paulo Lôbo, Carlos Roberto Gonçalves, Mario Luiz Delgado e Mairan Maia -, deduziu-se que "a interpretação mais razoável do enunciado normativo do art. 1.832 do Código Civil é a de que a reserva de 1/4 da herança restringe-se à hipótese em que o cônjuge ou companheiro concorrem com os descendentes comuns. Enunciado 527 da Jornada de Direito Civil. A interpretação restritiva dessa disposição legal assegura a igualdade entre os filhos, que dimana do Código Civil (art. 1.834 do CCB) e da própria Constituição Federal (art. 227, § 6º, da CF), bem como o direito dos descendentes exclusivos não verem seu patrimônio injustificadamente reduzido mediante interpretação extensiva de norma" (STJ, REsp 1.617,501/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/6/2019, DJe 1/7/2019). Como se pode perceber, o acórdão traz em seu conteúdo respostas a muitas questões que eram pendentes no passado sobre o Direito das Sucessões Brasileiro e resolve mais um dilema, qual seja a não reserva da quarta parte da herança em favor do cônjuge ou companheiro em havendo a sucessão híbrida. Espero que outros julgados estaduais e mesmo da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça sigam esse entendimento, que traduz a mais correta e prevalecente interpretação doutrinária do vigente sistema sucessório brasileiro. Sobre essa temática, como se pode perceber, doutrina majoritária e jurisprudência estão em sintonia, o que é sempre louvável na realidade contemporânea, para trazer estabilidade às relações privadas.
Como inovação festejada, o Código Civil de 2002 passou a tratar da ação de petição de herança (petitio hereditatis) entre os seus arts. 1.824 a 1.828, que é a demanda que visa a incluir um herdeiro na herança, mesmo após a sua divisão. Na dicção do primeiro comando citado, o herdeiro pode, nesta ação, demandar o reconhecimento de seu direito sucessório, para obter a restituição da herança, ou de parte dela, contra quem, na qualidade de herdeiro, ou mesmo sem título, a possua. Em complemento, nos termos do dispositivo seguinte, a ação de petição de herança, ainda que exercida por um só dos herdeiros, poderá compreender todos os bens hereditários, tendo caráter universal (art. 1.825 do CC/2002). A figura é admitida há tempos pela jurisprudência brasileira, tendo o Supremo Tribunal Federal editado, no ano de 1963, a Súmula 149, que envolve o tema central deste artigo. Conforme explicam Jones Figueirêdo Alves e Mário Luiz Delgado, trata-se de uma ação real, eis que, por força do art. 80, inc. II, do CC/2002, o direito à sucessão aberta constitui um imóvel por determinação legal (Código Civil Anotado. São Paulo: Método, 2005, p. 936). Na mesma linha, como se retira de importante julgado do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, "a ação de petição de herança é uma ação de natureza real, para a qual só tem legitimidade ativa aquele que já é herdeiro desde antes do ajuizamento, e através da qual ele pode buscar ver reconhecido seu direito hereditário sobre bem específico que entende deveria integrar o espólio, mas que está em poder de outrem" (TJ/RS, Apelação Cível n. 36960-28.2012.8.21.7000, 8.ª Câmara Cível, Santa Rosa, Rel. Des. Rui Portanova, j. 18.10.2012, DJERS 25.10.2012). Por ser uma ação real, e também universal, a petição de herança não se confunde com a ação reivindicatória, que visa a um bem específico. Aplicando tal forma de pensar, consta de aresto do Superior Tribunal de Justiça que "ocorre turbação à posse de bem imóvel quando coerdeiros reconhecidos em ação de petição de herança molestam a posse anterior de outros herdeiros que exerciam tal direito com base em formal de partilha. Isso porque a ação de petição de herança tem natureza universal, pela qual o autor pretende o reconhecimento de seu direito sucessório, o recebimento da fração correspondente da herança, e não a restituição de bens específicos. Isso é o que a diferencia de uma ação reivindicatória, de natureza singular, que tem por objeto bens particularmente considerados. Desse modo, é equivocado concluir que, por força da ação de petição de herança, foram transmitidos o domínio e a posse dos bens herdados, quando, em verdade, transferiu-se o direito à propriedade e a posse comum da universalidade e não dos bens singularmente considerados. Por força da procedência da ação de petição de herança, os herdeiros que exerciam a posse anterior ficam obrigados a devolver, no plano jurídico e não fático, os bens do acervo hereditário, que voltam a ser de todos em comunhão até que nova partilha se realize" (STJ, REsp 1244118/SC, Terceira Turma, Rel. Min. Nancy Andrighi, j. 22.10.2013, DJe 28.10.2013). A respeito do prazo para a propositura dessa demanda, a citada e antiga Súmula 149 do Supremo Tribunal Federal estabelece que "é imprescritível a ação de investigação de paternidade, mas não o é a de petição de herança". O fundamento da prescrição é relacionado ao fato de a herança envolver direitos subjetivos de cunho patrimonial, que são submetidos a prazos prescricionais. Além disso, tem esteio na sempre alegada segurança jurídica, comumente associada à prescrição. O entendimento sumulado é ainda considerado majoritário, para todos os fins, teóricos e práticos, inclusive na doutrina brasileira. Nesse contexto, na vigência do CC/1916, a ação de petição de herança estaria sujeita ao prazo geral de prescrição, que era de vinte anos, conforme o seu art. 177. Na vigência do Código Civil de 2002, deve ser aplicado o prazo geral de dez anos, previsto no seu art. 205. Exatamente nessa linha, do Superior Tribunal de Justiça extrai-se o seguinte: "Controvérsia doutrinária acerca da prescritibilidade da pretensão de petição de herança que restou superada na jurisprudência com a edição pelo STF da Súmula n. 149. (...). Ausência de previsão, tanto no Código Civil de 2002, como no Código Civil de 1916, de prazo prescricional específico para o ajuizamento da ação de petição de herança, sujeitando-se, portanto, ao prazo geral de prescrição previsto em cada codificação civil: vinte anos e dez anos, respectivamente, conforme previsto no art. 177 do CC/16 e no art. 205 do CC/2002" (STJ, REsp 1.368.677/MG, Rel. Ministro Paulo de Tarso Sanseverino, Terceira Turma, julgado em 05.12.2017, DJe 15.02.2018). Voltarei a esse acórdão mais à frente. Em ambas as hipóteses, entende-se desde os tempos remotos que o prazo tem início da abertura da sucessão, como regra, que se dá pela morte daquele de quem se busca a herança (STF, RE 741.00/SE, Tribunal Pleno, Rel. Min. Eloy da Rocha, j. 03.10.1973, DJU 02.01.1974). Todavia, a questão não é pacífica, pois alguns acórdãos superiores mais recentes trazem o julgamento de que o prazo deve ter início do reconhecimento do vínculo parental em demanda própria, ou seja, do trânsito em julgado da sentença na ação de investigação de paternidade, tema principal deste texto. Como é notório, na grande maioria dos casos concretos, a petição de herança está cumulada com esse pedido relativo à filiação. Nessa linha, em 2016, surgiu importante julgamento do Superior Tribunal de Justiça que representa uma quebra dessa primeira corrente, tida como clássica, concluindo que o prazo de prescrição da ação de petição de herança deve correr do trânsito em julgado da sentença da ação de reconhecimento de paternidade. Vejamos a sua publicação, constante do Informativo n. 583 do Tribunal da Cidadania: "Na hipótese em que ação de investigação de paternidade post mortem tenha sido ajuizada após o trânsito em julgado da decisão de partilha de bens deixados pelo de cujus, o termo inicial do prazo prescricional para o ajuizamento de ação de petição de herança é a data do trânsito em julgado da decisão que reconheceu a paternidade, e não o trânsito em julgado da sentença que julgou a ação de inventário. A petição de herança, objeto dos arts. 1.824 a 1.828 do CC, é ação a ser proposta por herdeiro para o reconhecimento de direito sucessório ou a restituição da universalidade de bens ou de quota ideal da herança da qual não participou. Trata-se de ação fundamental para que um herdeiro preterido possa reivindicar a totalidade ou parte do acervo hereditário, sendo movida em desfavor do detentor da herança, de modo que seja promovida nova partilha dos bens. A teor do que dispõe o art. 189 do CC, a fluência do prazo prescricional, mais propriamente no tocante ao direito de ação, somente surge quando há violação do direito subjetivo alegado. Assim, conforme entendimento doutrinário, não há falar em petição de herança enquanto não se der a confirmação da paternidade. Dessa forma, conclui-se que o termo inicial para o ajuizamento da ação de petição de herança é a data do trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade, quando, em síntese, confirma-se a condição de herdeiro" (STJ, REsp 1.475.759/DF, Terceira Turma, Rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 17.05.2016, DJe 20.05.2016). Em 2018, essa mesma posição foi confirmada pela mesma Terceira Turma do Tribunal, no aresto há pouco mencionado e que cita a teoria da actio nata subjetiva, segundo a qual o prazo prescricional deve ter início do conhecimento da lesão ao direito subjetivo. Como consta do trecho final da sua ementa, "nas hipóteses de reconhecimento 'post mortem' da paternidade, o prazo para o herdeiro preterido buscar a nulidade da partilha e reivindicar a sua parte na herança só se inicia a partir do trânsito em julgado da ação de investigação de paternidade, quando resta confirmada a sua condição de herdeiro. Precedentes específicos desta Terceira do STJ. Superação do entendimento do Supremo Tribunal Federal, firmado quando ainda detinha competência para o julgamento de matérias infraconstitucionais, no sentido de que o prazo prescricional da ação de petição de herança corria da abertura da sucessão do pretendido pai, seguindo a exegese do art. 1.572 do Código Civil de 1916. Aplicação da teoria da 'actio nata'" (STJ, REsp 1.368.677/MG, Terceira Turma, Rel. Min. Paulo de Tarso Sanseverino, j. 05.12.2017, DJe 15.02.2018). Essa forma de julgar consubstancia uma visão que pode ser chamada de contemporânea. No final de 2019, todavia, instaurou-se divergência na atual composição do Superior Tribunal de Justiça, pois surgiu outro acórdão, da sua Quarta Turma, voltando a aplicar a visão clássica, de que o prazo prescricional deve ter início da abertura da sucessão. O julgamento se deu nos autos do Agravo no Recurso Especial n. 479.648/MS, em dezembro de 2019. Conforme notícias retiradas do site do Tribunal, uma vez que a decisão ainda não foi publicada quando da elaboração deste texto, o relator, Ministro Raul Araújo, seguiu os fundamentos apresentados pela Ministra Isabel Gallotti, na linha de que o entendimento de que o trânsito em julgado da sentença de reconhecimento de paternidade marca o início do prazo prescricional para a petição de herança conduz, na prática, à imprescritibilidade desta ação, causando grave insegurança às relações sociais. De fato, trata-se de profundo debate que envolve a segurança e a certeza - de um lado -, e a efetividade da herança como direito fundamental, previsto no art. 5º, inc. XXX, da Constituição da República. Entre uma e outra corrente, fico com a segunda, tida como contemporânea, justamente pelo argumento da necessidade de se efetivar o direito à herança. A propósito, apesar de não ter sido essa a opção expressa do nosso legislador - ao contrário do que ocorreu com o Código Civil Italiano, nos termo do seu art. 533, e com o Código Civil Peruano, art. 664 -, entendo que não há prazo para se demandar a petição de herança, especialmente no caso de estar cumulada com a investigação de paternidade. Na doutrina, a propósito, essa é a posição de Giselda Maria Fernandes Novaes Hironaka, para quem "a petição de herança não prescreve. A ação é imprescritível, podendo, por isso, ser intentada a qualquer tempo. Isso assim se passa porque a qualidade de herdeiro não se perde (semel heres semper heres), assim como o não exercício do direito de propriedade não lhe causa a extinção. A herança é transferida ao sucessor no momento mesmo da morte de seu autor, e, como se viu, isso assim se dá pela transmissão da propriedade do todo hereditário. Toda essa construção, coordenada, implica o reconhecimento da imprescritibilidade da ação, que pode ser intentada a todo tempo, como já se afirmou" (Comentários ao Código Civil. Volume 20. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 202). A propósito, na mesma esteira, pondera Luiz Paulo Vieira de Carvalho que, "em nosso sentir, as ações de petição de herança são imprescritíveis, podendo o réu alegar em sede de defesa apenas a exceção de usucapião (Súmula 237 do STF), que atualmente tem como prazo máximo 15 anos (na usucapião extraordinária sem posse social, art. 1.238, caput, do CC)" (Direito das Sucessões. São Paulo: Atlas, 2014, p. 282-283). De toda sorte, apesar dessa imprescritibilidade, sigo a possibilidade, em outros sistemas jurídicos, de se alegar a usucapião a respeito de bens singularizados. Isso faz com que a situação de cada bem seja analisada especificamente, atribuindo a determinado herdeiro, se for o caso, a propriedade da coisa caso estejam preenchidos os requisitos da usucapião, em qualquer uma das suas modalidades. Como palavras finais, não se pode negar que o tema é de difícil análise e que gera intensos debates, sendo fortes os argumentos das duas correntes. Portanto, o Superior Tribunal de Justiça encontra-se defronte a mais um desafio, que é pacificar a questão no âmbito da sua Segunda Seção. Aguardemos qual será a posição seguida pela Corte.
Neste meu último texto de 2019, farei uma retrospectiva dos principais acontecimentos do último ano sobre o Direito de Família e das Sucessões no Brasil, tendo como foco principal as alterações legislativas, as principais decisões judiciais superiores e os avanços e trabalhos doutrinários. Iniciando-se pelas alterações legislativas, o ano começou com a edição da Medida Provisória 871, no mês de janeiro, tratando de fraudes previdenciárias e que incluiu uma nova exceção à impenhorabilidade do bem de família, no art. 3º da lei 8.009/1990 (art. 22). Essa exceção dizia respeito à "cobrança de crédito constituído pela Procuradoria-Geral Federal em decorrência de benefício previdenciário ou assistencial recebido indevidamente por dolo, fraude ou coação, inclusive por terceiro que sabia ou deveria saber da origem ilícita dos recursos". De toda sorte, essa tentativa de modificação na lei do Bem de Família era inconstitucional, por tratar de matéria atinente ao processo civil, em clara afronta ao art. 62, § 1º, letra b, da Constituição Federal de 1988. Por essa razão, na conversão da MP na lei 13.846, de 18 de junho de 2019, a previsão não foi encampada. Sucessivamente, em março de 2019, surgiu a lei 13.811, que alterou o art. 1.520 do Código Civil, proibindo peremptoriamente o casamento da pessoa menor de dezesseis anos, conhecido como casamento infantil. De acordo com a nova redação da norma codificada, "não será permitido, em qualquer caso, o casamento de quem não atingiu a idade núbil, observado o disposto no art. 1.517 deste Código". Não houve a modificação ou revogação de qualquer outro preceito civil, o que gera muitas dúvidas teóricas e práticas, como a nulidade absoluta ou relativa desse casamento, caso seja celebrado. O meu entendimento é pela anulabilidade ou nulidade relativa do ato, permanecendo hígidos os comandos que tratam do tema, caso do art. 1.550, inc. I, da própria codificação privada. Ainda a respeito da legislação, em 2019 foi ampliada a proteção das mulheres sob violência doméstica. De início, a lei 13.871/2019 incluiu três novos parágrafos no art. 9º da Lei Maria da Penha (lei 11.340/2006), prevendo expressamente o direito a ressarcimento de valores à mulher que sofre violência doméstica. Nos termos do seu caput, que permaneceu inalterado, "a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada e conforme os princípios e as diretrizes previstos na Lei Orgânica da Assistência Social, no Sistema Único de Saúde, no Sistema Único de Segurança Pública, entre outras normas e políticas públicas de proteção, e emergencialmente quando for o caso". Conforme o novo § 4º do art. 9º, incluído pela lei 13.871/2019, aquele que, por ação ou omissão, causar lesão, violência física, sexual ou psicológica e dano moral ou patrimonial a mulher fica obrigado a ressarcir todos os danos causados, inclusive ressarcir ao Sistema Único de Saúde (SUS), de acordo com a tabela SUS, os custos relativos aos serviços de saúde prestados para o total tratamento das vítimas em situação de violência doméstica e familiar, recolhidos os recursos assim arrecadados ao Fundo de Saúde do ente federado responsável pelas unidades de saúde que prestarem os serviços. Nota-se que, ao contrário do art. 186 do Código Civil, o novo dispositivo não menciona a omissão voluntária (dolo), a negligência ou imprudência (culpa), sendo possível sustentar que esse dever de ressarcir o SUS independe da culpa em sentido amplo, ou seja, está relacionado à responsabilidade objetiva. Também os dispositivos de segurança destinados ao uso em caso de perigo iminente e disponibilizados para o monitoramento das vítimas de violência doméstica ou familiar amparadas por medidas protetivas passam a ter os seus custos ressarcidos pelo agressor (art. 9º, § 5º, da Lei Maria da Penha, igualmente incluído pela lei 13.871/2019). Como essas medidas de segurança podem ser citadas as previstas no art. 26 da mesma lei 11.340/2006, cabíveis por atuação do Ministério Público, quais sejam a requisição de força policial, de serviços públicos de saúde, de educação, de assistência social e de segurança; bem como o uso de mecanismos para fiscalizar os estabelecimentos públicos e particulares onde a mulher se encontra, como câmeras de segurança, "botão do pânico" a ser por ela acionado em casos de emergência e o uso de tornozeleiras eletrônicas pelo agressor. Os custos de todos esses mecanismos devem ser arcados por este último, de acordo com a nova lei, frise-se. Por fim, a nova norma estatui que esses ressarcimentos materiais não poderão importar ônus de qualquer natureza ao patrimônio da mulher e dos seus dependentes, caso dos filhos, nem configurar atenuante ou ensejar a possibilidade de substituição da pena aplicada ao agressor, seja de natureza penal ou civil (art. 9º, § 6º, da Lei Maria da Penha, incluído pela lei 13.871/2019). As alterações legislativas são salutares, e espera-se um aumento da efetividade na proteção dos direitos das mulheres, atendendo-se inclusive à função pedagógica da responsabilidade civil. Depois disso, a lei 13.880/2019 alterou o art. 12 da Lei Maria da Penha, estabelecendo, entre as medidas protetivas, a possibilidade de determinar a apreensão imediata de arma de fogo sob a posse do agressor. Sucessivamente surgiu a lei 13.894/2019, que trouxe previsões de foro privilegiado para a mulher sob violência doméstica nos casos de ações de divórcio, separação e dissolução da união estável, sem prejuízo de outras previsões. Alterou-se, assim, o art. 53 do Código de Processo Civil e incluiu-se na Lei Maria da Penha o novo art. 14-A, estabelecendo que a ofendida tem a opção de propor ação de divórcio ou de dissolução de união estável no Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher. Excluiu-se essa competência para as pretensões relacionadas à partilha de bens e estabeleceu-se que, iniciada a situação de violência doméstica e familiar após o ajuizamento da ação de divórcio ou de dissolução de união estável, a ação terá preferência no juízo onde estiver. Essa última previsão, alerte-se, havia sido vetada pelo Presidente da República, mas o Congresso Nacional derrubou o veto, em 10 de dezembro de 2019. Como última norma a ser destacada, originária da Medida Provisória 881, a Lei da Liberdade Econômica (lei 13.874/2019) alterou o tratamento relativo à desconsideração da personalidade jurídica no art. 50 do Código Civil. Confirmou-se a possibilidade de desconsideração inversa ou invertida, como já estava previsto no Código de Processo Civil de 2015, o que tem grande incidência para o Direito de Família e das Sucessões. Ao final e de forma correta, retirou-se o elemento doloso como requisito do desvio de finalidade para a incidência da desconsideração pela teoria maior, o que foi salutar, pois, mantido esse requisito intencional, a aplicação do instituto para o Direito de Família e das Sucessões praticamente despareceria na prática, pelas dificuldades de sua comprovação. Na verdade, o Congresso Nacional trabalhou intensamente e pode melhorar em muito o texto da anterior MP 881, em vários de seus aspectos. Quanto à jurisprudência, duas decisões provisórias do Supremo Tribunal Federal, ainda não encerradas, merecem ser citadas, prenunciando temas para o próximo ano. A primeira delas foi o reconhecimento da repercussão geral a respeito da manutenção ou não do instituto da separação judicial no ordenamento jurídico brasileiro. Isso se deu nos autos do Recurso Extraordinário 1.167.478/RJ, em junho de 2019, tendo como Relator o Ministro Luiz Fux. O STF deve analisar, portanto e definitivamente, se o instituto da separação judicial permanece ou não no ordenamento jurídico brasileiro, encerrando essa polêmica que já dura quase dez anos, desde a emergência da Emenda Constitucional 66/2010. O segundo julgamento ainda não encerrado é o relativo ao reconhecimento de efeitos previdenciários das uniões estáveis paralelas ou concomitantes (Tema 529). Em setembro de 2019 iniciou-se a sua análise, em sede do Recurso Extraordinário 1.045.273/SE, que analisa a concomitância de uma união estável homoafetiva com uma heteroafetiva. Até aqui prevalece o voto do ministro Luiz Edson Fachin, exatamente na linha do que sustento, de que são possíveis efeitos previdenciários para atingir companheiros de boa-fé nas uniões estáveis plúrimas. No mesmo sentido julgaram os Ministros Marco Aurélio e Rosa Maria Weber. Os ministros Barroso e Cármen Lúcia votaram também pelo reconhecimento desses efeitos, mas sem a necessidade da boa-fé, pois prevalece a equidade que deve guiar o Direito Previdenciário. Por seu turno, os Ministros Alexandre de Moraes (Relator), Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski entenderam pela impossibilidade de se reconhecer quaisquer efeitos previdenciários nas uniões concomitantes, diante princípio da monogamia, que se aplica plenamente à união estável. Em suma, a votação está em 5 a 3, pelo reconhecimento de efeitos previdenciários nas uniões estáveis concomitantes. Ainda faltam julgar os Ministros Dias Toffoli - que pediu vista -, Luiz Fux e Celso de Mello. Espero que prevaleça a posição que já forma maioria, especialmente se houver boa-fé objetiva da parte. Deve ficar claro que não se analisa a concomitância de casamento e de concubinato (ou união estável) - o que é objeto de outro processo na Corte, também em repercussão geral (Recurso Extraordinário 883.168/SC - Tema 526) -, mas a existência de várias uniões estáveis ao mesmo tempo. Essas duas questões, de grande repercussão para o Direito de Família e também das Sucessões, devem ser igualmente analisadas no próximo ano. No âmbito do Superior Tribunal de Justiça, responsável por uniformizar os temas relativos ao Direito de Família e das Sucessões, destaco as seguintes decisões, sem prejuízo de muitas outras ementas: - Acórdão que concluiu que não dever ocorrer a reserva da quarta parte do cônjuge, prevista no art. 1.832 do Código Civil, em havendo concorrência híbrida, com filhos comuns e exclusivos do falecido. Nos seus exatos termos, "a interpretação mais razoável do enunciado normativo do art. 1.832 do Código Civil é a de que a reserva de 1/4 da herança restringe-se à hipótese em que o cônjuge ou companheiro concorrem com os descendentes comuns. Enunciado 527 da Jornada de Direito Civil. A interpretação restritiva dessa disposição legal assegura a igualdade entre os filhos, que dimana do Código Civil (art. 1.834 do CCB) e da própria Constituição Federal (art. 227, § 6º, da CF), bem como o direito dos descendentes exclusivos não verem seu patrimônio injustificadamente reduzido mediante interpretação extensiva de norma. Não haverá falar em reserva quando a concorrência se estabelece entre o cônjuge/companheiro e os descendentes apenas do autor da herança ou, ainda, na hipótese de concorrência híbrida, ou seja, quando concorrem descendentes comuns e exclusivos do falecido. Especificamente na hipótese de concorrência híbrida o quinhão hereditário do consorte há de ser igual ao dos descendentes" (STJ, REsp 1.617.501/RS, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 11/06/2019, DJe 01/07/2019). - Decisão em que o Superior Tribunal de Justiça acabou por admitir o chamado testamento criogênico, com o destino do corpo para congelamento e eventual ressuscitação no futuro, em virtude da evolução e aprimoramento da medicina e de outras ciências; sem a necessidade de observância de qualquer formalidade quanto ao ato de última vontade (STJ, REsp 1.693.718/RJ, Rel. Ministro MARCO AURÉLIO BELLIZZE, TERCEIRA TURMA, julgado em 26/03/2019, DJe 04/04/2019). - Acórdão segundo o qual "as cláusulas de inalienabilidade, incomunicabilidade e impenhorabilidade não tornam nulo o testamento que dispõe sobre transmissão causa mortis de bem gravado, haja vista que o ato de disposição somente produz efeitos após a morte do testador, quando então ocorrerá a transmissão da propriedade" (STJ, REsp 1.641.549/RJ, Rel. Ministro ANTONIO CARLOS FERREIRA, QUARTA TURMA, julgado em 13/8/2019, DJe 20/8/2019). - Julgamento que admitiu a possibilidade de cancelamento da cláusula de inalienabilidade após a morte dos doadores, passadas quase duas décadas do ato de liberalidade, em face da ausência de justa causa para a sua manutenção. O acórdão traz a interpretação do art. 1.848 do Código Civil de acordo com o princípio da função social da propriedade, de forma correta (STJ, REsp 1.631.278/PR, Rel. Ministro PAULO DE TARSO SANSEVERINO, TERCEIRA TURMA, julgado em 19/3/2019, DJe 29/3/2019). - Acórdão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça que acabou por admitir a realização de inventário extrajudicial, mesmo havendo testamento, desde que a sua abertura seja feita anteriormente, no âmbito judicial (STJ, REsp 1.808.767/RJ, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 15/8/2019). - Aresto da Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, de outubro de 2019, que considerou que seria possível a adoção faltando apenas três meses para se completar a citada diferença de 16 anos entre o adotante e o adotado. A relativização se deu pela presença de vínculo socioafetivo entre as partes, entendimento que me parece correto (STJ, REsp 1.785.754/RS, Rel. Min. Ricardo Villas Bôas Cueva, j. 8/10/2019). - Julgado que admitiu a possibilidade de a separação de fato afastar a suspensão da prescrição - na verdade a decadência - entre os cônjuges. Nos seus termos, "na linha da doutrina especializada, razões de ordem moral ensejam o impedimento da fluência do curso do prazo prescricional na vigência da sociedade conjugal (art. 197, I, do CC/02), cuja finalidade consistiria na preservação da harmonia e da estabilidade do matrimônio. Tanto a separação judicial (negócio jurídico), como a separação de fato (fato jurídico), comprovadas por prazo razoável, produzem o efeito de pôr termo aos deveres de coabitação, de fidelidade recíproca e ao regime matrimonial de bens (elementos objetivos), e revelam a vontade de dar por encerrada a sociedade conjugal (elemento subjetivo). Não subsistindo a finalidade de preservação da entidade familiar e do respectivo patrimônio comum, não há óbice em considerar passível de término a sociedade de fato e a sociedade conjugal. Por conseguinte, não há empecilho à fluência da prescrição nas relações com tais coloridos jurídicos. Por isso, a pretensão de partilha de bem comum após mais de 30 (trinta) anos da separação de fato e da partilha amigável dos bens comuns do ex-casal está fulminada pela prescrição" (STJ, REsp 1.660.947/TO, Rel. ministro MOURA RIBEIRO, TERCEIRA TURMA, julgado em 5/11/2019, DJe 7/11/2019). De todo modo, apesar de trazer premissas corretas, o julgado é passível de crítica, ao menos em parte, pelo fato de envolver não a prescrição, mas a decadência. Por fim, a respeito das decisões judiciais de relevo, o Conselho Nacional de Justiça melhorou consideravelmente o texto do seu Provimento 63 e editou, em agosto de 2019, o Provimento 83, tratando do reconhecimento da parentalidade socioafetiva e da multiparentalidade no Cartório de Registro Civil. Entre outras previsões, incluiu-se a necessidade de atuação do Ministério Público, limitou-se tal reconhecimento aos maiores de doze anos, foram incluídos critérios objetivos para a caracterização do vínculo socioafetivo e afastadas todas as dúvidas quanto à possibilidade efetiva de registro extrajudicial da multiparentalidade. Todas as alterações vieram em boa hora, no meu entender. No âmbito da doutrina, muitas obras foram lançadas a respeito do Direito de Família e das Sucessões. Inicialmente, lançamos o nosso Código Civil Comentado, pela Editora GEN/Forense, estando este autor responsável pelo Direito de Família e o Professor José Fernando Simão pelo Direito das Sucessões. São também coautores os Professores Anderson Schreiber, Marco Aurélio Bezerra de Melo e Mário Luiz Delgado, o último com apurada análise do Direito de Empresa e suas interações com as questões familiares e sucessórias, de forma inédita entre nós. Também merece grande destaque a obra Comentários ao Código Civil. Direito Privado Contemporâneo, pela Editora Saraiva, coordenada pelo Professor Giovanni Ettore Nanni. Escreveram sobre o Direito de Família e das Sucessões os juristas Marcelo Benacchio, Guilherme Calmon Nogueira da Gama e Francisco José Cahali, com conteúdo a merecer destaque. Por fim, ainda a respeito de obras coletivas, foi lançada a segunda edição do livro Arquitetura do Planejamento Sucessório, pela Editora Fórum e coordenado pela Professora Daniele Chaves Teixeira, muito comentado pelos profissionais da área e considerado a melhor obra sobre o tema no País. Entre os livros individuais, destaco o lançamento de Sucessão Legítima, pelo Professor Rolf Madaleno, sempre com ótimas ideias e teses de relevo (Editora GEN/Forense). Entre os monográficos, Luciana Brasileiro publicou sua tese de doutorado defendida na UFPE sobre As Famílias Simultâneas e seu Regime Jurídico, pela Fórum. Pela mesma casa editorial, Gustavo Henrique Baptista Andrade escreveu sobre O Direito de Herança e a Liberdade de Testar, fruto de seu estágio pós-doutoral realizado na Alemanha. Por fim, em anos ímpares ocorrem os Congressos Brasileiros do Instituto Brasileiro de Direito de Família e das Sucessões (IBFAM). E em 2019 o evento foi enorme, majestoso, com mais de 1.500 participantes em Belo Horizonte. A organização foi impecável, abordando as vulnerabilidades no Direito de Família e das Sucessões. Exposições com as mais diversas facetas foram realizadas e, ao final, foram aprovados dez enunciados doutrinários com teses inovadoras para a teoria e para a prática. Entre eles destaco o que prevê a possibilidade de cobrança de alimentos, tanto pelo rito da prisão como pelo da expropriação, no mesmo procedimento, quer se trate de cumprimento de sentença ou de execução autônoma, o que já vem sendo admitido pelo Superior Tribunal de Justiça (Enunciado n. 32 do IBDFAM). Merece relevo, ainda, o que preceitua a viabilidade de relativização do princípio da reciprocidade acerca da obrigação de prestar alimentos entre pais e filhos "nos casos de abandono afetivo e material pelo genitor que pleiteia alimentos, fundada no princípio da solidariedade familiar, que o genitor nunca observou" (Enunciado n. 34). Como se pode notar, 2019 foi um ano intenso para o Direito de Família e das Sucessões, realidade que se espera para os seguintes. Muitos apontavam que seria um ano de enormes retrocessos, o que não se efetivou, como se retira deste texto, sobretudo diante do trabalho doutrinário e jurisprudencial. Como palavras finais deste ano, gostaria de agradecer ao Migalhas pela parceria que completa cinco anos e que foi ampliada em 2019. Além desta coluna, laçamos a Migalhas Contratuais, em pareceria com o IBDCont (Instituto Brasileiro de Direito Contratual), presidido por mim, e que tem comissões de estudos sobre a contratualização do Direito de Família e das Sucessões. Pude ainda participar de três eventos promovidos pelo informativo, dois sobre a Lei da Liberdade Econômica e um sobre a Lei dos Distratos. Espero que em 2020 os nossos laços sejam ainda mais fortalecidos. Fica o meu muito obrigado ao Miguel e à sua excelente equipe. E o meu agradecimento especial a todos vocês, leitores! Feliz Natal e um próspero 2020 para todos nós!
quarta-feira, 27 de novembro de 2019

Inventário extrajudicial com testamento

Com a aprovação pelo Congresso Nacional do projeto de lei 4.725/2004, convertido na lei 11.441/2007, o sistema jurídico brasileiro passou a admitir o inventário extrajudicial, feito por escritura pública, perante o Tabelionato de Notas. Trata-se de inovação festejada, que veio a reduzir consideravelmente a burocracia para a partilha dos bens do falecido. Nesse sentido, a redação anterior do art. 982 do CPC de 1973, já alterada pela lei 11.965/2009, pela menção ao defensor público, estabelecia que, havendo testamento ou interessado incapaz, somente seria possível o inventário judicial. Por seu turno, se todos herdeiros fossem capazes e concordes, haveria a viabilidade jurídica de processamento do inventário e da partilha por escritura pública, a qual constituiria título hábil para o registro imobiliário. A norma também enunciava que o tabelião somente lavraria a escritura pública se todas as partes interessadas estivessem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constariam do ato notarial. Por fim, estava previsto na lei anterior que a escritura e demais atos notariais seriam gratuitos àqueles que se declarassem pobres, sob as penas da lei. O Código de Processo Civil de 2015 praticamente repetiu o preceito no seu art. 610, que merece destaque, para os devidos fins de aprofundamento: "Art. 610. Havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. § 1.º Se todos forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2.º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial". Como se pode perceber, a única diferença substancial entre os dois comandos diz respeito à falta de menção à gratuidade do ato para os que se declararem pobres, assim como ocorreu com a separação e o divórcio extrajudiciais. De todo modo, defendo desde a emergência do CPC/2015 que a gratuidade permanece no sistema jurídico brasileiro, por estar prevista em lei especial anterior, qual seja a lei 11.441/2007, que não foi recepcionada nem revogada nessa parte pelo Estatuto Processual em vigor. Vale lembrar, entre outros argumentos para a sua manutenção, que há referência expressa à gratuidade no art. 5.º, inciso LXXIV, da Norma Fundamental, in verbis: "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos". Exatamente nesse sentido, e citando a minha posição doutrinária, merece relevo decisão prolatada no âmbito do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), publicada em abril de 2018, no sentido de que "a consulta é respondida no sentido que a gratuidade de justiça deve ser estendida, para efeito de viabilizar o cumprimento da previsão constitucional de acesso à jurisdição e a prestação plena aos atos extrajudiciais de notários e de registradores. Essa orientação é a que melhor se ajusta ao conjunto de princípios e normas constitucionais voltados a garantir ao cidadão a possibilidade de requerer aos poderes públicos, além do reconhecimento, a indispensável efetividade dos seus direitos (art. 5.º, XXXIV, XXXV, LXXIV, LXXVI e LXXVII, da CF/88), restando, portanto, induvidosa a plena eficácia da resolução 35 do CNJ, em especial seus artigos 6º e 7º" (CNJ, Consulta 0006042-02.2017.2.00.0000, requerente: Corregedoria-Geral da Justiça do Estado da Paraíba). Assim, a gratuidade das escrituras de inventário está mantida em todo o território nacional, na linha desse importante julgado do CNJ, que teve como relator o Conselheiro Arnaldo Hossepian. Voltando à essência do tema deste artigo, pela literalidade dos dois textos instrumentais, o anterior e o atual, constata-se que, sendo as partes capazes e inexistindo testamento, poderão os herdeiros optar pelo inventário extrajudicial. O requisito da inexistência do testamento já vinha sendo contestado por muitos doutrinadores, existindo decisões de primeira instância que afastavam tal elemento essencial, quando todos os herdeiros forem maiores, capazes e concordantes com a via extrajudicial. A questão foi anteriormente julgada pela 2ª Vara de Registros Públicos da Comarca da capital de São Paulo, tendo sido prolatada a decisão pelo magistrado Marcelo Benacchio, em abril de 2014. A dúvida havia sido levantada pelo 7º Tabelião de Notas da Comarca da Capital, com pareceres favoráveis à dispensa do citado requisito de representante do Ministério Público e do Colégio Notarial do Brasil - Seção São Paulo, este último apoiado em entendimento do Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM). Ponderou o julgador, naquela ocasião, que as posições que admitem o inventário extrajudicial havendo testamento "são entendimentos respeitáveis voltados à eficiente prestação do imprescindível serviço público destinado à atribuição do patrimônio do falecido aos herdeiros e legatários. Ideologicamente não poderíamos deixar de ser favoráveis a essa construção na crença da necessidade da renovação do Direito no sentido de facilitar sua aplicação e produção de efeitos na realidade social, econômica e jurídica". No entanto, seguindo outro caminho, deduziu o magistrado em trechos principais de sua sentença que "o ordenamento jurídico aproxima, determina e impõe o processamento da sucessão testamentária em unidade judicial como se depreende dos regramentos atualmente incidentes e dos institutos que cercam a sucessão testamentária; daí a razão da parte inicial do art. 982, caput, do Código de Processo Civil iniciar excepcionando expressamente a possibilidade de inventário extrajudicial no caso da existência de testamento independentemente da existência de capacidade e concordância de todos interessados na sucessão; porquanto há necessidade de se aferir e cumprir (conforme os limites impostos à autonomia privada na espécie) a vontade do testador, o que não pode ser afastado mesmo concordes os herdeiros e legatários". Com o devido respeito, a minha posição sempre foi no sentido de que os diplomas legais que exigem a inexistência de testamento para que a via administrativa do inventário seja possível devem ser mitigados, especialmente nesses casos em que os herdeiros são maiores, capazes e concordam com esse caminho facilitado, havendo prévio processamento de abertura do testamento na via judicial. Nos termos do art. 5º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, o fim social da lei 11.441/2007 foi a redução de formalidades, devendo essa sua finalidade sempre guiar o intérprete do Direito. O mesmo deve ser dito quanto ao CPC/2015, inspirado pelas máximas de desjudicialização e de celeridade, em vários de seus comandos. Pontue-se que o próprio Colégio Notarial do Brasil aprovou enunciado em seu XIX Congresso Brasileiro, realizado entre 14 e 18 de maio de 2014, estabelecendo que "é possível o inventário extrajudicial ainda que haja testamento, desde que previamente registrado em Juízo ou homologado posteriormente perante o Juízo competente". Como reforço para a tese na VII Jornada de Direito Civil, promovida pelo Conselho da Justiça Federal em de 2015, foi aprovado enunciado prevendo que, após registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial (Enunciado n. 600). Ainda em 2015, em outubro, no X Congresso Brasileiro de Direito das Famílias e das Sucessões do IBDFAM, aprovou-se o Enunciado n. 16 da entidade, com o seguinte teor: "mesmo quando houver testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial". Em 2016, o Provimento 37 da Corregedoria-Geral do Tribunal de Justiça de São Paulo passou a aplicar exatamente o teor desse Enunciado n. 600, da VII Jornada de Direito Civil. Conforme decisão do desembargador-Corregedor Manoel de Queiroz Pereira Calças, "diante da expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, que constituirá título hábil para o registro imobiliário. Poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, também, nos casos de testamento revogado ou caduco, ou quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento, observadas a capacidade e a concordância dos herdeiros. Nas hipóteses do subitem 129.1, o Tabelião de Notas solicitará, previamente, a certidão do testamento e, constatada a existência de disposição reconhecendo filho ou qualquer outra declaração irrevogável, a lavratura de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada, e o inventário far-se-á judicialmente". A propósito, ainda em 2016, no mês de agosto, o mesmo Conselho da Justiça Federal promoveu a I Jornada sobre Solução Extrajudicial de Conflitos, sob a coordenação do Ministro Luís Felipe Salomão, também com a aprovação de enunciados doutrinários sobre a extrajudicialização do direito. Umas das propostas aprovadas amplia o sentido do Enunciado 600 da VII Jornada de Direito Civil, possibilitando o inventário extrajudicial se houver testamento também nos casos de autorização do juiz do inventário. Nos termos do Enunciado n. 77, "havendo registro ou autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, o inventário e partilha poderão ser feitos por escritura pública, mediante acordo dos interessados, como forma de pôr fim ao procedimento judicial". Em agosto de 2017, dando ainda mais sustento doutrinário a tal posição, foi aprovado outro enunciado com o mesmo teor do último, quando da realização da I Jornada de Direito Processual Civil, promovida pelo mesmo Conselho da Justiça Federal. Por fim, pontue-se que, no mesmo ano de 2017, o Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro seguiu o exemplo paulista, e passou a admitir que, se todos os interessados forem maiores de idade, lúcidos e não discordarem entre si, o inventário e a partilha de bens poderão ser feitos por escritura pública, mediante acordo, se isso for autorizado pelo juiz da Vara de Órfãos e Sucessões onde o testamento foi aberto. Citando enunciados doutrinários aqui destacados, houve alteração do art. 297 da Consolidação Normativa da Corregedoria-Geral da Justiça da Corte, por meio do Provimento 21/2017, que passou a ter a seguinte redação: "A escritura pública de inventário e partilha conterá a qualificação completa do autor da herança; o regime de bens do casamento; pacto antenupcial e seu registro imobiliário se houver; dia e lugar em que faleceu o autor da herança; data da expedição da certidão de óbito; livro, folha, número do termo e unidade de serviço em que consta o registro do óbito, além da menção ou declaração dos herdeiros de que o autor da herança não deixou testamento e outros herdeiros, sob as penas da lei. § 1.º Diante da expressa autorização do juízo sucessório competente nos autos da apresentação e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderá fazer-se o inventário e a partilha por escritura pública, a qual constituirá título hábil para o registro. § 2.º Será permitida a lavratura de escritura de inventário e partilha nos casos de testamento revogado ou caduco, ou quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento". Outros Estados percorreram o mesmo caminho, sucessivamente, caso da Paraíba e do Paraná, que editaram normas administrativas na mesma linha. Espera-se que outras unidades da Federação sigam esse sadio caminho da desjudicialização, ou que a questão seja definitivamente regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça, valendo para todo o País. Essa possibilidade de regulamentação pelo CNJ ganhou força pelo fato de que, em 2019, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acabou por admitir a realização de inventário extrajudicial, mesmo havendo testamento público, desde que a sua abertura seja feita anteriormente, no âmbito judicial. O acórdão cita todos os enunciados doutrinários aqui referenciados e também a posição deste autor, representando um passo importante para a sadia desburocratização (STJ, Recurso Especial n. 1.808.767/RJ, Relator Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 15 de agosto de 2019). De toda sorte, acaba não dispensando que a abertura prévia do testamento seja feita judicialmente, o que representa outro entrave burocrático que deve ser repensado. Na verdade, para que não surjam argumentos contrários a todas essas posições doutrinárias e jurisprudenciais de avanço, parece-me que a melhor solução é a reforma do art. 610 do CPC/2015, admitindo-se o inventário extrajudicial mesmo com a existência de testamento - desde que todos os herdeiros concordem -, até mesmo havendo filhos incapazes do de cujus. Tais alterações são almejadas pelo grande Projeto de Lei de Desburocratização, originário de comissão mista formada no Senado Federal. Pelo PL 217/2018, que é específico sobre o preceito em comento, passaria ele a ter a seguinte dicção: "Havendo testamento, proceder-se-á ao inventário judicial. § 1º Se todos forem concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2.º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. § 3.º Havendo interessado incapaz, o Ministério Público deverá se manifestar no procedimento, para fiscalizar a conformidade com a ordem jurídica do inventário e da partilha feitos por escritura pública. § 4º Na hipótese do § 3.º, caso o tabelião se recuse a lavrar a escritura nos termos propostos pelas partes, ou caso o Ministério Público ou terceiro a impugnem, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juiz". Faz o mesmo o projeto de lei de reforma do Direito das Sucessões elaborado pelo IBDFAM, que originou o PL 3.799/2019, proposto pela Senadora Soraya Thronicke, que tem conteúdo no mesmo sentido. Pelas projeções, nota-se que o Ministério Público passa a atuar nos inventários extrajudiciais, diretamente no Tabelionato de Notas, o que já ocorre em outros países, como em Portugal. Aguarda-se, assim, que uma das proposições citadas seja aprovada com brevidade pelo Congresso Nacional, retirando-se definitivamente entraves burocráticos do inventário extrajudicial, que não fazem mais o menor sentido, e efetivando-se a saudável e esperada desjudicialização.