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Direito Privado no Common Law

Discutir as novidades legislativas, jurisprudenciais e doutrinárias do Direito Privado na Inglaterra, USA, Canadá e Austrália, dialogando com as alternativas atuais no Direito Civil brasileiro.

Nelson Rosenvald, Daniel Dias, Pedro Fortes e Thaís G. Pascoaloto Venturi
Segundo a conhecida state action doctrine, a estatuição constitucional de direitos fundamentais objetiva a proteção dos cidadãos contra ações ou omissões do Poder Público (state actions), não se aplicando, a princípio, às relações entre particulares1. Trata-se de premissa absolutamente indispensável para se compreender com maior nitidez o sistema de justiça dos Estados Unidos da América, na medida em que parametriza as decisões de todas as Cortes nas disputas envolvendo lesões ou ameaças de lesões a direitos fundamentais no âmbito das relações privadas.   Por força da doutrina da state action, a não ser que se trate de delegação do exercício a alguma entidade privada (entanglement exception), ou que a algum dos partícipes da relação se possa atribuir o exercício de função tipicamente pública (public function exception), a Suprema Corte norte-americana historicamente não reconhece a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais sobre as relações privadas2. Isto se dá a partir da interpretação de uma Constituição que simplesmente não se preocupou em proteger os direitos fundamentais contra indevidas interferências de corporações privadas ou de indivíduos, por intuir que o common law já o fazia suficientemente, com base no direito natural de todo indivíduo à vida, à liberdade e à felicidade - valores já expressamente contidos na Declaração de Independência3. Em que pese referida doutrina ser considerada como verdadeiro sustentáculo dos valores liberais intrinsecamente ligados à história e à cultura dos Estados Unidos da América, não deixa de implicar, todavia, virtual anulação ou apequenamento de direitos e garantias constitucionais fundamentais relacionadas à igualdade, à liberdade de expressão à não-discriminação e ao devido processo. Exemplificativamente, já em 1879, a Suprema Corte apressou-se em afirmar que a cláusula de igual proteção (equal protection), proveniente da ratificação da 14ª Emenda à Constituição dos EUA4, não teria aplicação a qualquer ato praticado por indivíduos ou entidades privadas, mas exclusivamente aos state actions5. Tal interpretação, como parece evidente, acabou por disseminar uma inexplicável tolerância com práticas discriminatórias oriundas do setor privado e baseadas em critérios de raça, sexo e gênero, dentre outros6. Ainda interpretando a garantia da equal protection, em 1883, ao julgar Civil Rights Cases, a Suprema Corte definiu que a vedação à discriminação por características individuais aplicava-se exclusivamente ao Estado, reafirmando sua inaplicabilidade aos particulares7. Sintetizando a state action doctrine, a U. S. Supreme Court por diversas vezes reiterou que a Constituição americana não oferece qualquer escudo protetor contra condutas privadas - ainda que discriminatórias e lesivas. Assim, a menos que haja leis específicas proibindo a discriminação por entidades privadas, ou que se trate de ação governamental, as Cortes norte-americanas não têm admitido o processamento de demandas fundadas em discriminações de toda sorte (sexo, idade, religião, raça, gênero) provenientes do setor privado, tal como empregadores, restaurantes e prestadores de serviços em geral8. Hospitais privados têm sido autorizados a negarem a realização de abortos ou esterilizações constitucionalmente admitidas. Empregadores são autorizados a demitirem funcionários por manifestações ou atividades políticas. Em síntese, segundo CHEMERINSKY, as Cortes americanas têm tolerado, pela adoção dessa doutrina, a violação de virtualmente todos os valores constitucionais9. Não é difícil perceber as razões pelas quais a state action sempre foi e ainda é tão essencial à preservação dos valores liberais no sistema de justiça norte-americano10. Contudo, parecem cada vez menos precisas as balizas definidoras dessa possível incidência, a começar pela dificuldade - já reconhecida pela Suprema Corte - em se estabelecer um critério consistente para determinar quando a conduta de um particular pode ser considerada uma state action11.  Para além disso, a ênfase na apuração dos destinatários das regras protetivas de direitos fundamentais (exclusivamente o Estado, ou também os particulares), sempre foi severamente criticada por expressiva parcela dos juristas norte-americanos, que frequentemente clamam pela revisão da state action doctrine, a partir da indagação a respeito dos motivos que levam a Suprema Corte a tolerar graves violações dos mais básicos valores como os da liberdade de expressão, intimidade e igualdade, apenas porque partem de uma entidade privada e não de uma entidade governamental12. Assim, independentemente da origem da violação dos direitos fundamentais, a doutrina da state action não poderia obscurecer a necessidade e a admissibilidade de um controle de constitucionalidade incidente sobre as próprias relações privadas, no intuito de se prestigiar, antes de tudo, os valores humanistas e democráticos contidos na Constituição13. É o que preconiza SUSTEIN, para quem as discussões a respeito da state action doctrine e da eficácia horizontal das normas constitucionais nas relações privadas estariam sendo distorcidas. Em sua visão, em qualquer disputa envolvendo a alegação de violação de direitos fundamentais como liberdade, igualdade e propriedade, sempre haveria uma state action, pelo simples motivo de que referidos direitos não subsistem sem a proteção do Estado. Dessa forma, a real questão a ser apreciada em tais disputas não seria a respeito da preliminar averiguação da presença ou ausência de ato de governo, mas sim, uma questão de mérito, relativa à própria constitucionalidade do ato praticado14. Seja como for, o condicionamento requerido pela Suprema Corte norte-americana (state action requirement) para a incidência da proteção constitucional dos direitos fundamentais, certamente pode ser considerada absurda por um jurista de civil law, sobretudo em países nos quais se reconhece a incidência tanto vertical (relações entre o Poder Público e os particulares) como também horizontal (relações entre particulares) dos direitos fundamentais15. Como parece evidente, tratam-se de orientações políticas que acabam acarretando profundos impactos nos sistemas de justiça e, em especial, na regulação das relações privadas. Por esse motivo, a aceitação da existência de um pressuposto compromisso do setor privado com a efetivação dos direitos fundamentais passou a conduzir o processo de constitucionalização do Direito privado em países como Alemanha, Itália, Espanha, Portugal e Brasil. Nesse sentido, o texto constitucional brasileiro de 1988, para além de estatuir a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e das garantias fundamentais (§2º, do art. 5º da CF), jamais afirma que tais normas seriam exclusivamente destinadas ao Poder Público16. Ademais, referida eficácia horizontal, de incidência direta e imediata, derivaria da necessidade de efetiva proteção de valores basilares do Estado Social, atinentes ao mínimo existencial e à dignidade da pessoa humana, cada vez mais ameaçados e frequentemente lesados não apenas por ações ou omissões do Poder Público, mas da própria sociedade de massa17. A coordenação das eficácias vertical e horizontal, assim, presidiria a incidência da teoria dos direitos fundamentais sobre as relações privadas18.     A jurisprudência dos tribunais brasileiros vem se consolidando, gradativamente, no sentido da afirmação de tal coordenação, ao preconizar a existência de deveres de proteção dos direitos e garantias fundamentais - impostos tanto ao Estado como aos particulares -, que devem tomar em conta referidos deveres nas relações privadas. Em julgamento paradigmático sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os direitos e as garantias constitucionais fundamentais - tal como as derivadas da cláusula do due process of law - são vinculantes não apenas ao Estado (no âmbito das relações públicas), mas também aos particulares (no âmbito das relações privadas)19. No caso examinado, discutia-se a exclusão de sócio de entidade privada, sem a oportunização do exercício da ampla defesa e do contraditório, o que representou, para o STF, violação do devido processo legal a ser observado nas relações entre os particulares.   Posteriormente, ao analisar a razoabilidade de pedido de direito de resposta como forma de desagravo contra publicação abusiva veiculada pela imprensa, o STF reiterou a tese da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais sobre as relações privadas ao afirmar que "a oponibilidade do direito de resposta a particulares sugere reflexão em torno da inteira submissão das relações privadas aos direitos fundamentais, o que permite estender, com força vinculante, ao plano das relações de direito privado, a cláusula de proteção das liberdades e garantias constitucionais, pondo em destaque o tema da eficácia horizontal dos direitos básicos e essenciais assegurados pela Constituição da República"20. A adoção dessa orientação - também responsável pela consagração da constitucionalização do direito privado -, implica relevantes consequências não apenas para a sua interpretação e aplicação por parte dos tribunais. Ela afeta a própria atividade parlamentar do Estado brasileiro, na medida em que a orienta no sentido de que os valores relativos à liberdade de contratação, à livre iniciativa e ao direito de propriedade, passem a ser pautados, sempre que necessário, pelo critério da funcionalização do Direito. A partir dessa despretensiosa análise comparada a respeito da incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas no common law e no civil law, parece claro tratar-se de tema em constante e necessária revisão, a partir da dinamicidade da vida social, econômica e política que influencia incessantemente o funcionamento dos sistemas de justiça21. De fato, a incidência (horizontal) das normas constitucionais garantidoras dos direitos fundamentais sobre as relações privadas encerra intrigantes questões que, ao fim e ao cabo, guardam respeito à preservação da autonomia e da liberdade privada, de um lado, e da efetiva proteção dos direitos essenciais, de outro. Por um lado, a relativização da dicotomia público versus privado, decorrente das dificuldades conceituais históricas do que pudesse vir a ser designado como interesse público ou interesse privado, torna extremamente delicada a tarefa de se apontar interesses particulares absolutamente desatrelados do coletivo ou do social22. Por outro lado, os valores liberais constituem marcos civilizatórios que merecem ser continuamente garantidos para a afirmação da liberdade contra todo o tipo de opressão do Estado, bem como para a prosperidade da iniciativa privada - sem a qual se inviabilizam quaisquer políticas públicas de interesse social.   Em síntese, o grande desafio suscitado pela aparente contraposição entre a doutrina da state action norte-americana e a doutrina da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas é a delimitação de um possível ponto de equilíbrio que assegure, a um só tempo, a preservação da liberdade e da autonomia privada e a efetiva proteção dos direitos fundamentais individuais e sociais. Valores esses, aliás, todos expressamente garantidos pela Constituição Federal de 1988.   __________ 1 Conforme CHEMERINSKY, Erwin. Rethinking state action. Northwestern University Law Review, vol. 80, n. 03, 1985, p. 507, a doutrina implica o reconhecimento de que "the behaviour of private citizens and corporations in not controlled by the Constitution". 2 Sobre a evolução da Action State Doctrine, SUMRALL Allen C. Epiphenomenal or Constructive?: The State Action Doctrine(s) and the Discursive Properties of Institutions. Texas Law Review, Volume 98, Issue 06, 2019-2020, p. 1139-1164. 3 CHEMERINSKY, Erwin, op. cit., p. 511. 4 "Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos, nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição igual proteção das leis". 5 Virginia v Rives, 100 U.S. 313, 318 (1879). 6 SAIDEL-GOLEY, Isaac & SINGER, Joseph William. Things Invisible to See: State Action & Private Property, 5 Tex. A&M L. Rev. 439, 2018. 7 109 U.S 3, 11 (1883). "Individual invasion of individual rights is not the subject-matter of the amendment". 8 CHEMERINSKY, Erwin. Op. cit., p. 509. 9 Ibid., p. 510. 10 SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Luís Roberto Barroso. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 197. 11 Edmonson v. Leesville Concrete Co., 500 U.S. 614, 632, 1991, ("Unfortunately, our cases deciding when private action might be deemed that of the state have not been a model of consistency"). 12 CHEMERINSKY, Erwin. Op. cit., p. 505. 13 Nesse sentido, como aponta SUMRALL (op. cit., p. 1162) para muitos críticos a State Action Doctrine não passa de uma "total confusão" elaborada pela Suprema Corte que, para além de se revelar falha na determinação do que consistem exatamente os "atos de Estado", não se presta a assegurar a efetiva implementação dos direitos constitucionais. 14 SUNSTEIN, Cass R. "State Action is Always Present," Chicago Journal of International Law: Vol. 3: No. 2, Article 15 (2002). Disponível aqui. Acesso em 2 de outubro de 2020. 15 GARDBAUM, Stephen. The "Horizontal Effect" of Constitutional Rights, 102 Mich. L. Rev. 387, 2003. 16 Conforme GEDIEL, José Antônio Peres. A irrenunciabilidade a direitos da personalidade pelo trabalhador. Constituição, direitos fundamentais e direito privado (org. SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 157. 17 Conforme CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Extensão dos direitos e deveres fundamentais às relações privadas. Direitos humanos: desafios humanitários contemporâneos: 10 anos do Estatuto dos Refugiados (lei 9.474 de 22 de julho de 1997). João Carlos de Carvalho Rocha, Tarcísio Humberto Parreiras Henriques Filho, Ubiratan Cazetta (coords.). Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 143. 18 Nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, "mínimo existencial" e direito privado: breves notas sobre alguns aspectos da possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares. Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres, Daniel Sarmento, Flávio Galdino (orgs.). Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 579; SARMENTO, Daniel. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Luís Roberto Barroso (org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 255.  19 "SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO (...)". STF, Recurso Extraordinário n.º 201819, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie (Rel. p/o acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 11/10/2005, DJ 27/10/2006, p. 064. 20 STF, AC 2695 MC, Rel. Min. Celso de Mello, j. 25/11/2010, DJe-231, div. 30/11/2010, pub. 1/12/2010. 21 Sobre a possibilidade de sujeição das plataformas digitais de mídias sociais como veiculadoras à state action doctrine, HOOKER, Matthew P., Censorship, Free Speech & Facebook: Applying the First Amendment to Social Media Platforms via the Public Function Exception, 15 Wash J. L. Tech. & Arts, 36, 2019. Disponível aqui. Acesso em 5 de outubro de 2020. 22 Por tal motivo, conforme PERLINGIERI, Pietro: "Técnicas e institutos nascidos no campo do direito privado tradicional são utilizados naquele do direito público e vice-versa, de maneira que a distinção, neste contexto, não é mais qualitativa, mas quantitativa. Existem institutos em que é predominante o interesse dos indivíduos, mas é, também, sempre presente o interesse dito da coletividade e público; e institutos em que, ao contrário, prevalece, em termos quantitativos, o interesse da coletividade, que é sempre funcionalizado, na sua íntima essência, à realização de interesses individuais e existenciais dos cidadãos". Perfis do direito civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 54.
"No man should profit from his own wrong".(aforismo do "Common Law") Em setembro de 2019, os Estados Unidos ingressaram com um processo contra Edward Snowden por "breach of contract", alegando que o livro escrito por ele violaria termos de confidencialidade. Ex-funcionário da Agência de Segurança Nacional (NSA, na sigla em inglês) entre 2005 e 2009, Snowden vazou, em 2013, documentos secretos do governo sobre existência de um sistema de vigilância mundial das comunicações e da internet. Em 2019 Snowden publicou sua autobiografia, intitulada "Permanent Record" (No Brasil publicado com o título "Eterna Vigilância", pela Editora Planeta), sem submetê-la às agências de Inteligência para revisão. A pretensão do Estado norte-americano é a de incorporar todo o lucro que Snowden venha a obter com a venda do livro. Atualmente, Snowden reside em Moscou1. Os fundamentais conceitos dos gain-based damages, disgorgement e restitutionary damages, são utilizados nas diversas jurisdições da common law para justificar os flutuantes parâmetros objetivos das diversas respostas em que um benefício ilicitamente obtido pelo ofensor deverá ser transferido para a vítima de um ilícito. Nesse sentido, os remédios restitutórios servem ao mesmo propósito fundamental: evitar que alguém lucre com a prática de um ato ilícito, pela recaptura dos ganhos auferidos com o descumprimento de um dever legal ou violação de um direito alheio. Em comum às duas espécies de restituição por ilícitos, disgorgement e restitutionary damages, a condenação não levará em conta a real existência de prejuízos por parte do demandante, ou, se esses existiram, se há proporcionalidade entre as perdas e os ganhos indevidos do réu2. Contudo, a diferença entre os dois remédios de gain-based damages está na forma como apura-se o quantum da obrigação de restituição e, primordialmente, nas próprias funções. Enquanto em restitutionary damages há reversão da transferência patrimonial entre as partes, no disgorgement há supressão da vantagem adquirida pelo réu com independência de qualquer translação de bens pelo autor. Pela primeira, beneficia-se o autor de uma quantia correspondente ao bem transferido ou subtraído do seu patrimônio. Pela segunda, suprime-se a vantagem que, sem correspondência com a utilização do patrimônio do autor, o réu obteve com a prática do ilícito3.  "Edward Snowden violou a obrigação que assumiu com os Estados Unidos ao assinar documentos de confidencialidade quando foi contratado pela Agência Central de Inteligência e como funcionário terceirizado da NSA", disse Jody Hunt, procuradora-Geral assistente da divisão civil do Departamento de Justiça", segundo ela "a habilidade dos EUA de proteger informações sensíveis de segurança nacional depende do cumprimento de acordos de confidencialidade assinados por seus funcionários e contratados. Não permitiremos que indivíduos se enriquecem, às custas dos Estados Unidos, sem cumprir suas obrigações de revisão pré-publicação". Em uma videoconferência em Berlim para promover seu livro, Snowden afirmou que por mais que tivesse assinado um acordo de confidencialidade para manter segredo, também jurou respeitar a Constituição dos Estados Unidos. O ex-analista da CIA enfatizou: "Você disse ao governo que não falaria com jornalistas. Você disse a eles que não iria escrever um livro, ao mesmo tempo, você fez um juramento para defender a Constituição e o segredo que te pedem para proteger é que o governo está violando a Constituição e os direitos das pessoas pelo mundo". O fato é que, olhando par trás na história norte-americana, em nenhum momento foi questionada a legalidade de criminosos narrarem as suas próprias versões, algo que cabe dentro de sua liberdade de expressão, resguardada eventual pretensão de reparação de danos extrapatrimoniais ou mesmo as tutelas específicas do direito de resposta ou retificação em favor de quem se sinta ofendido pelo conteúdo levado a público. Nem tão pouco houve repreensão ao direito de escritores receberem lucros pela reprodução de estórias sobre assassinos, o que atrai e fascina muitos curiosos em todo o mundo. Por conseguinte, quais seriam os antecedentes jurídicos que facultam ao Estados Unidos a prerrogativa de desapropriar Edward Snowden dos lucros obtidos com a venda de seu mais recente livro, sob o argumento de que se tratam de benefícios econômicos indevidos, auferidos da violação de um contrato de confidencialidade? Como primeiro antecedente na common law, retornamos 50 anos no tempo. A inglesa Mary Bell tinha 11 anos quando foi considerada culpada pelo assassinato de duas crianças, em 1968. Posteriormente, ela cooperou com a escritora e historiadora Gitta Sereny para a elaboração do livro "cries unheard", na qual se divulgou a sua versão sobre os fatos. Posteriormente, a imprensa denunciou que Mary Bell havia recebido parte dos lucros com a venda de suas memórias. Em razão da celeuma, a legislação sobre o escopo das cortes criminais para o confisco dos produtos do crime foi ampliada, a fim de que se incluísse um remédio civil permitindo as autoridades a recuperação de ativos que se relacionassem com a conduta criminosa, proibindo-se que um homicida adquirisse qualquer benefício em consequência de seu comportamento ilícito. Porém, o precedente inglês sobre a restituição por ganhos ilícitos foi o julgamento pela House of Lords4 do caso "Attorney General v Blake [2001]" que teve como objeto a autobiografia de um traidor. Em razão da especial natureza e relevância do seu serviço, um agente secreto britânico do M-16 havia assinado uma cláusula de confidencialidade com o Estado (Official Secrets Act contract), como parte fundamental de seu contrato de trabalho. Com base no contrato, como todos os agentes Blake prometeu à coroa britânica que não revelaria informações sobre o seu trabalho, dever cuja traição poderia mesmo custar a vida de colegas. Porém, anos mais tarde, em violação ao pactuado, redigiu as suas memórias com a finalidade de garantir uma polpuda aposentadoria. Não obstante uma ordem de prisão na Inglaterra, foragido na Rússia, narrou as suas atividades desleais contra a pátria5. Ao contrário do que ocorre nos ilícitos perpetrados contra a propriedade, no direito inglês os remédios normalmente disponíveis para as hipóteses de violação contratual consistem prioritariamente na compensação de danos e, acessoriamente, em uma tutela específica - specific performance ou injunction. Isto se explica pelo fato de que há uma certa tendência no direito inglês de se negar à violação contratual o caráter de ilícito. A quebra de um contrato não teria a mesma magnitude de uma ilicitude extracontratual ou mesmo de uma quebra de um dever fiduciário, sendo mesmo em alguns casos considerada economicamente eficiente e, portanto, justificada, desde que o demandante seja adequadamente compensado por qualquer perda econômica. A contrata a venda de mercadorias para B, porém as vende para C, que lhe ofereceu valor maior do que B. A quebra contratual não pode ser desestimulada por condenações baseadas em ganhos de A, pois a violação pode servir a uma dada função econômica. Nada obstante, isso nem sempre é verdade, pois temos que considerar custos que decorrem da violação que excedem os benefícios que dele resultam (contratos que o demandante B pode ter estipulado com terceiros e foi forçado a repudiar ou renegociar como consequência da quebra contratual de A)6. Contudo, no caso Blake, o procurador-Geral inglês obteve uma tutela específica para que a editora que publicou o livro direcionasse os "royalties" ao Estado. Pode-se indagar que o agente "Blake" violou um contrato, porém a responsabilidade ineludivelmente surgiu da prática de um ilícito. Isso é uma restituição por ganho ilícito em sede contratual, sem nenhuma relação com um enriquecimento sem causa pois a coroa inglesa não poderia ter criado qualquer conexão imediata com o ganho em questão. É evidente, portanto, que a única questão em jogo consiste em saber se essa quebra de contrato deu origem à restituição em vez do direito normal à indenização. Como bem colocou o julgador, Lord Nichols: "ao deferir condenações pecuniárias, a lei não se curva de forma subserviente ao conceito de compensação por danos mensuráveis financeiramente. Quando as circunstâncias demandam, a condenação pode ser mensurada por referência ao benefício obtido pelo infrator"7. Com relação ao caso Snowden, há um precedente bem estabelecido da Suprema Corte, "Snepp vs. United States"8, justamente considerando que a expropriação dos rendimentos auferidos por Snowden não repousa tão somente em violação de obrigações contratuais, porém de deveres fiduciárias. No precedente julgado em 1980, ao aceitar um emprego na CIA em 1968, Snepp assinou um acordo com a Agência de que ele não publicaria nenhuma informação durante ou após seu mandato relacionado às atividades da Agência sem antes obter a aprovação da Agência. Snepp publicou um livro sobre as atividades da CIA no Vietnã sem antes enviar seu manuscrito à Agência para revisão. Segundo o tribunal, a Primeira Emenda não poderia socorrer Snepp pois ele havia violado a "constructive trust" entre ele e o governo. Isso foi especialmente significativo nesse caso, já que esse tipo de violação de um ex-agente prejudicou a capacidade da CIA de cumprir suas obrigações legais, comprometendo a segurança dos agentes do governo e do próprio Snepp. Um negócio fiduciário se aparta de um simples contrato, pois enquanto neste as partes maximizam os seus próprios interesses, em um relacionamento fiduciário, a parte a quem se destinou poder e confiança (Snowden), deve atuar estritamente de acordo com os interesses do beneficiário, no caso os Estados Unidos da América, com base em sua posição em cargos de confiança especial, no qual negociava em nome da CIA e da NSA, recebia acesso regular a informações classificadas de segurança nacional e celebrava acordos de sigilo com ambas as agências. Por conseguinte, a violação a um fiduciary duty requer uma resposta jurídica mais incisiva do que um breach of contract. Retornando a Inglaterra, o caso Blake ilustra a importância dos relacionamentos fiduciários. O beneficiário (ou principal), a quem se deve confiança, tem direito à lealdade obstinada por parte de fiduciário. Quando alguém falha em alcançar os mais altos padrões de comportamento esperados de um fiduciário, a violação do dever é uma forma de ilícito - mesmo que ele esteja agindo honestamente (que não foi o caso de Blake), devido à necessidade de controle dos poderes discricionários do fiduciário, induzindo-o a resistir à tentação de servir a si próprio ao invés do beneficiário. Uma medida judicial de restituição está disponível, pois uma pessoa em situação fiduciária não pode se colocar em uma posição onde seu interesse e dever conflitem, devendo priorizar o dever ao principal a seu interesse pessoal. Destarte, um remédio baseado em ganhos indevidos somente será concedido como last resort se outros remédios forem inadequados no caso concreto (por exemplo, um remédio compensatório ou a tutela específica). No caso Blake, os remédios compensatórios não eram adequados porque a divulgação de informações não tinha valor de mercado (o dano não poderia ser mensurado) e, igualmente, não havia como aplicar tutela específica ou inibitória. Ademais, o demandante tinha um interesse legítimo em impedir as atividades lucrativas do réu e em dissuadir outros servidores de divulgar informações sigilosas. Esse é um caso de restituição por ilícito. Pertence ao regramento da violação contratual. Não tem nada a ver com enriquecimento sem causa. Se a coroa britânica não se dispusesse a pleitear a restituição por ganhos indevidos, jamais poderia ter criado qualquer conexão entre o seu comportamento e o ganho em questão. É evidente, portanto, que a única questão em causa consistia em saber se essa ilícita quebra de contrato daria origem a um direito à restituição, ou apenas ao tradicional direito à compensação de eventuais danos9. Por fim, a violação do dever foi cínica e deliberada, permitindo que o réu entrasse em um segundo contrato mais lucrativo (publicação do livro) em detrimento do primeiro contrato. Ao entrar no novo contrato, o réu eliminou a sua aptidão para cumprir o contrato com o reclamante10. Posteriormente ao reconhecimento judicial da restituição por ganhos ilícitos em Blake, o desafio consistiu (e consiste) na individuação das áreas em que o remédio restitutório poderá ser aplicado. No próprio julgamento ficou claro que a restituição não poderia ser aplicada de forma permissiva, porém com parcimônia, apenas para colmatar lacunas do sistema nos casos em que a resposta compensatória deixaria a vítima em posição de desvantagem. De fato, em contraste com os ilícitos extracontratuais, sejam os da common law como os da equity, não há tradição no direito inglês de concessão de restituição por quebra de contrato. O ganho indevido para um réu de uma violação contratual é geralmente irrelevante para a quantificação da condenação. Em regra, o réu será obrigado a compensar o autor por sua expectativa (ou confiança) contratual - expectation damages - colocando-o tão próximo quanto possível na mesma posição em que estaria se não tivesse sofrido o ilícito, mas não para restituir qualquer lucro que poderia ter obtido a partir de sua quebra de contrato, ou mesmo para contabilizar quaisquer despesas economizadas com o recesso. Todavia, a doutrina inglesa que se ocupa da temática considera que a restituição por ilícitos não é incompatível com os princípios do direito das obrigações e nem que o seu campo de aplicação já tenha sido ocupado por outras respostas legais11. Bibliografia EDELMAN, James. Gain-Based damages. Oxford: Hart Publishing, 2002. GIGLIO, Francesco. The foundations of restitution for Wrongs. Bloomsbury Publishing, 2007. ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. Salvador: Juspodivm, 2019. VIRGO, Graham. Principles of the law of restitution. Oxford: Oxford Press, 2015  *Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do MP/MG. Pós-foutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-foutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK-2016/17). Professor visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Fellow of the European Law Institute (ELI). Member of the Society of Legal Scholars (UK). Professor do corpo permanente do doutorado e mestrado do IDP/DF. __________ 1 United States v. Snowden (1:19-cv-01197) District Court, E.D. Virginia. 2 ROSENVALD, Nelson. A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. Salvador: Juspodivm, 2019, p.18. 3 EDELMAN, James. Gain-based damages. Trabalho seminal de James Edelman sobre os gain-based damages como gênero na restituição por ilícitos, contrapondo-se aos loss-based damages, base para a compreensão das respostas de índole compensatória. 4 Em 2009 terminou a função judicial da House of Lords como a instância final e mais alta corte em UK. Foi criada uma nova Suprema Corte do Reino Unido, separando a função judicial das atividades do parlamento. 5 Attorney General v Blake [2000] UKHL 45, [2001] 1 AC 268 foi o primeiro precedente em que os tribunais estenderam a restituição por ganhos ilícitos a uma pura violação contratual. 6 VIRGO, Graham. Principles of the law of restitution, p. 476. 7 Lord Nichols, "when awarding damages, the law does not adhere slavishly (subserviently) to the concept of compensation for financially measurable loss. When the circumstances required, damages are measured by reference to the benefit obtained by the wrongdoer". 8 Citation 444 US 507 (1980) Decided Feb 19, 1980. 9 Consoante a lição de Graham Virgo, seis princípios podem se extrair da referida decisão: a) remoção de ganhos ilícitos (disgorgement) é um remédio excepcional para violação contratual; b) não é possível fixar regras rígidas, pois tudo dependerá das circunstâncias do caso; c) um remédio baseado em ganhos só será aplicado se outros remédios forem inadequados (v.g cumprimento específico ou compensação de danos). No caso Blake, uma compensação de danos era inadequada pois a liberação de informações confidenciais não tem um valor de mercado e remédios específicos não estão disponíveis; d) o requerente tem interesse em evitar a atividade lucrativa do réu. No caso Blake o interesse também era o de desestimular outros servidores a revelar informações sigilosas; e) a violação foi cínica e deliberada f) a obrigação contratual devida pelo espião Blake era considerada próxima a de um fiduciário, e uma ampla restituição dos ganhos é considerada uma justa resposta à violação contratual. In: The principles of the law of the restitution, p. 472. 10 Apesar do intenso debate acadêmico sobre a viabilidade da restituição por violação contratual, a resposta judicial tradicional - anterior ao caso A-G v Blake [2001] - era em sentido negativo. O apoio à recusa da restituição derivou da teoria da "Efficient Breach" (Posner), no sentido que seria economicamente mais eficiente permitir a quebra de contrato do que a desestimular, algo que um remédio restitutório ensejaria. Vale dizer, a restituição seria uma forma monetizada de tutela específica, pois se uma pessoa sabe que será despojada de seus lucros pela quebra do contrato, não lhe restará outra saída senão a de permanecer vinculada, mesmo contra a sua vontade. 11 GIGLIO, Francesco. The foundations of restitution for wrongs, p. 38.
Os direitos das vítimas de efeitos adversos das vacinas nos Estados Unidos. Introdução Atualmente, o planeta experimenta a corrida em busca da vacina contra o novo coronavírus (SARS-CoV-2). Nesse contexto, os riscos de efeitos adversos foram evidenciados pela paralisação temporária de testes clínicos do imunizante desenvolvido pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca por conta do desenvolvimento de problema neurológico de mielite transversa em uma paciente. Questionado sobre os riscos da vacina na semana anterior por uma apoiadora, o Presidente da República teria dito que "ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina". Por outro lado, houve redução do percentual de crianças vacinadas no Brasil, o que pode facilitar novos surtos epidemiológicos graves para a saúde pública nacional. Esses dilemas contemporâneos remetem ao desafio de lidar com a necessidade da imunização coletiva para proteção da saúde pública e os direitos das vítimas individuais dos efeitos colaterais das vacinas. O presente artigo trata do tema a partir da evolução da Common Law e do modelo de compensação dos Estados Unidos. A evolução da responsabilidade dos produtores de vacinas  Em primeiro lugar, é importante reconhecer que, de fato, existe uma percentagem bem pequena dos vacinados que sofre reações severas1. O medo com relação aos perigos das vacinas historicamente decorreu de superstição e ciência de baixa qualidade, mas também aconteceram danos graves causados por falhas no processo de sua produção2. Por exemplo, durante a rodada inicial de vacinação de pólio em 1955, as vacinas produzidas pelos laboratórios Cutter continham um vírus vivo e ativo que teria infectado cerca de 220.000 pessoas e resultado em 164 casos de paralisia severa e 10 mortes nos Estados Unidos3. Como a vacinação em massa decorre de uma política pública e de uma recomendação expressa feita pelo governo de que todas as crianças devem ser imunizadas, a pretensão pelo direito de obter compensação se torna particularmente forte4. Não por acaso, dezenas de ações judiciais foram ajuizadas em face do fabricante da vacina de pólio, que teve que pagar indenizações milionárias aos lesados5.  O caso mais notório desse período foi Gottsdanker v. Cutter Laboratories6, conduzido pelo renomado advogado Marvin Belli que não conseguiu demonstrar que o laboratório foi negligente na produção da vacina, mas persuadiu o júri a condenar a empresa por força da quebra de uma garantia de segurança implícita no produto7. Esse julgamento marcou a erosão de doutrinas que dificultavam a indenização por danos causados por vícios de produtos, eis que até então não se admitia a garantia de segurança além das partes contratantes e a paciente não tinha nenhuma relação jurídica direta com a produtora da vacina8. Além disso, o simples fato de que um produto tinha um defeito - como, por exemplo, o vírus vivo e ativo no interior da vacina - não era o suficiente para demonstrar que a empresa tinha sido negligente9. Contudo, era também o momento em que a jurisprudência transformava o paradigma para a responsabilidade estrita e o Tribunal de Justiça da Califórnia aplicou o regime mais flexível relativo à venda de alimentos para as vacinas permitiu a responsabilização dos produtores, especialmente em casos que teriam sido difíceis de demonstrar a culpa do fabricante pelos antigos standards de negligência10. Outro caso relevante para o desenvolvimento da Common Law com relação à responsabilidade civil e aos danos causados pelas vacinas foi Reyes v. Wyeth Labs11. Nesse julgamento, a condenação se baseou na falha de informação, na medida em que não foi transmitida informação adequada sobre os riscos da vacina oral contra o pólio da Sabin, tendo o Poder Judiciário adotado a responsabilidade estrita também para a empresa produtora que, para a devida informação do paciente, dependia das clínicas e dos médicos que aplicavam a vacina12. Particularmente relevante nesse caso foi a seguinte passagem do voto do Relator Minor Wisdom, que ressaltou que "enquanto os americanos não tiverem um modelo abrangente de seguridade social, os tribunais devem decidir a questão através de uma ponderação da colisão de interesses entre a necessidade de compensação adequada e de viabilidade empresarial"13. Como a doutrina da quebra da garantia parecia tornar todos os produtores de vacina responsáveis por quaisquer defeitos decorrentes de suas vacinas, as seguradoras se recusaram a cobrir os danos decorrentes da vacina da gripe suína em 1976 e as farmacêuticas se recusaram a atender ao pedido do governo para desenvolver a imunização coletiva14. Tal impasse foi solucionado de maneira ágil pelo Congresso dos Estados Unidos, que aprovou uma legislação tornando a União responsável por todas as pretensões indenizatórias decorrentes da vacinação de gripe suína, sendo que houve centenas de processos e o pagamento de indenizações milionárias15. Posteriormente, a Academia Americana de Pediatria propôs o desenvolvimento de um mecanismo compensatório que permitisse que os familiares dos lesados obtivessem sua indenização sem a necessidade de ingressar com uma ação judicial e de demonstrar a culpa dos fabricantes da vacina16. Os pediatras consideravam que seria mais adequado que as decisões fossem feitas por especialistas do Departamento de Serviços de Saúde, mas os parentes das vítimas desconfiavam dos médicos pelo seu possível viés de promoção e defesa da vacinação e preferiam que o órgão decisor fosse independente e sem qualquer vínculo com vacinas17. Depois de um longo debate entre associações de médicos, organizações de vítimas e empresas do setor farmacêutico, o Congresso Nacional aprovou a Lei Nacional de Compensação para Vacinação18. O modelo de compensação de danos de vítimas da vacinação O programa de compensação de danos de vítimas da vacinação entrou em operação em outubro de 1988 e tinha distribuído cerca de 2,7 bilhões de dólares de indenizações para cerca de 3.500 lesados até maio de 201419. O processo de resolução de conflitos é linear na medida em que o escopo das disputas é restrito, não se exige a demonstração de negligência, falha de informação ou quaisquer teorias da responsabilidade civil, bastando a informação de que a vacina teria causado o dano20. Importante, a própria legislação já criou uma "tabela de lesões" que são presumivelmente causadas pelas vacinas, bastando para o lesado a demonstração dos sintomas do resultado lesivo em período subsequente à aplicação da vacina para que se presuma a causalidade21. Nos casos em que as lesões não são encontradas na tabela, também é possível a indenização, mas é necessário demonstrar a causalidade por uma preponderância de evidência22. As diretrizes de atuação da advocacia da União também foram simplificadas, sendo a audiência oral dispensável ou passível de realização célere e relativamente informal em comparação com as formalidades do processo judicial tradicional23. Em resumo, o programa reduziu o legalismo adversarial, a disputa jurídica e o risco econômico, na medida em que existem balizas normativas e padrões monetários prévios para os danos materiais, morais e a compensação pela morte da vítima24. Nos primeiros seis anos de existência do programa, foram solucionadas 3.451 disputas, sendo que foi deferida a compensação de danos para 827 requerentes que, no total, receberam pagamentos de cerca de 600 milhões de dólares25. O financiamento do programa foi estabelecido através de uma taxa na vacina, que alterou a estrutura de pagamento da compensação de danos, retirando o ônus econômico dos réus e suas seguradoras, reduzindo as preocupações dos produtores e distribuindo os custos da compensação de maneira extremamente previsível26. O programa se mostrou sustentável do ponto de vista econômico, na medida em que era solvente sem a necessidade de complementação do financiamento e resolveu o problema que tinha levado o Congresso Nacional a elaborar a Lei Nacional de Compensação para Vacinação27. Contudo, no início do século XXI, emergiu uma mobilização social anti-vacina que acusava a indústria farmacêutica de exposição infantil ao mercúrio usado em vacinas e que teria acarretado um aumento nos casos de autismo nos Estados Unidos28. Parentes de crianças autistas ingressaram com suas pretensões de indenização junto ao Programa de Compensação, mas como não existia evidência científica comprobatória, o autismo não constava da tabela de lesões e a Advocacia da União estava determinada a derrotar a teoria do autismo, os obstáculos para receber uma indenização eram grandes29. Em paralelo, mais de 100 ações judiciais foram ajuizadas com idêntica pretensão, revivendo a litigiosidade adversarial e os riscos econômicos do período anterior à implantação do Programa de Compensação30. No âmbito do Programa de Compensação, porém, todos os 5.000 casos de requerimento de indenização com base no autismo foram rejeitados coletivamente31. Finalmente, a Suprema Corte dos Estados Unidos foi levada a decidir pela constitucionalidade do Programa de Compensação no julgamento do caso Bruesewitz v. Wyeth32. Apesar da longa tradição de julgamentos cíveis pelo Tribunal do Júri nos Estados Unidos, a constitucionalidade do Programa de Compensação foi decidida por uma maioria de 6-2, tendo prevalecido a opinião do Justice Antonin Scalia que considerou que a Lei Nacional de Compensação para Vacinação Infantil uma escolha sensível de deixar julgamentos epidemiológicos complexos sobre produção de vacinas para os especialistas médicos ao invés dos júris33. Apesar das insatisfações de diversos atores relevantes e das pressões dos lesados para questionar a constitucionalidade do Programa de Compensação, existe a percepção de que houve a diluição das tensões políticas e um efeito de redução das diferenças entre associações de médicos, organizações de vítimas e empresas do setor farmacêutico34. Além disso, a existência de um Programa de Compensação acomodou as demandas dos lesados e normalizou a política das pretensões indenizatórias, diminuindo a publicidade negativa das lesões individuais decorrentes de reações adversas à vacinação infantil35. O estudo de caso da responsabilidade civil da vacina ilustra o dinamismo da Common Law e sua habilidade de se metamorfosear ao longo do tempo - do estímulo ao legalismo adversarial em Gottsdanker e em Reyes até a consolidação do legalismo tecnocrático em Bruesewitz36. Considerações finais No direito brasileiro, em contraste, a responsabilidade civil por danos decorrentes da vacinação é decidida em processos judiciais complexos, demorados e dramáticos, em que a litigiosidade adversarial da União Federal e do fabricante da vacina ampliam a vulnerabilidade dos lesados e a publicidade negativa da política nacional de vacinação. Em recente julgado do TRF1, por exemplo, os réus resistiram à pretensão do autor de indenização por danos materiais, morais e pensionamento após ter sido acometido da síndrome de Guillain-Barré em virtude de vacinação contra influenza37. Além da demora superior a dez anos para o julgamento, a Justiça Federal adotou a responsabilização objetiva apenas para manter a condenação da União Federal, tendo adotado os parâmetros da responsabilidade subjetiva para absolver o Estado de São Paulo, eis que a vacina do Instituto Butantã não seria de "má qualidade" e a possibilidade de reação adversa estaria prevista na bula da vacina. Por outro lado, a União Federal foi condenada ao pagamento da indenização por ser a responsável pela campanha nacional de vacinação e pelo fato de o nexo causal ter sido demonstrado pelo laudo do perito judicial. Nos Estados Unidos, como a síndrome de Guillain-Barré consta da tabela de lesões para vacinas sazonais de influenza, presumindo-se a causalidade quando os sintomas ocorrerem entre 03 e 42 dias após a imunização, não seria necessária a demonstração de causalidade. O lesado estaria apto a se habilitar e receber sua indenização de maneira célere e ágil através do Programa de Compensação. Porém, com a pandemia de COVID-19, a Lei Federal de Preparação Emergencial e Prontidão Pública (PREP Act) estabeleceu ampla imunidade jurídica para produtos médicos - inclusive vacinas - e a evolução da Common Law passa pelas decisões com base nessa lei. Enquanto aguardamos pela imunização, o modelo de compensação dos Estados Unidos serve de espelho comparativo para nossa reflexão sobre vacinas e responsabilidade civil. *Pedro Fortes é professor visitante no programa de pós-graduação em Direito da UFRJ, diretor internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi professor visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e pesquisador visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt. __________ 1 Jeb Barnes and Thomas F. Burke, How Policy Shapes Politics: Rights, Courts, Litigation, and the Struggle over Injury Compensation. Oxford: Oxford University Press (2015), p. 153. 2 Idem, p. 154. 3 Idem, p. 154-155. 4 Idem, p. 155. 5 Idem, p. 156. 6 [182 Cal. App. 2d 605]. 7 Barnes and Burke (n. 1), p. 156. 8 Idem. 9 Idem, p. 157. 10 Idem. 11 498 F.2d 1264 (5th Cir. 1974). 12 Barnes and Burke (n. 1), p. 159. 13 Idem. 14 Idem, p. 158-159. 15 Idem, p. 159. 16 Idem, p. 163. 17 Idem. 18 Idem, p. 165-166. 19 Idem, p. 167. 20 Idem, p. 168. 21 Idem. 22 Idem. 23 Idem. 24 Idem. 25 Idem, p. 169. 26 Idem. 27 Idem, p. 172. 28 Idem, p. 173. 29 Idem. 30 Idem, p. 173-174. 31 Idem, p. 177. 32 562 U.S. 223 (2011). 33 Barnes and Burke (n. 1), p. 179. 34 Idem, p. 182. 35 Idem, p. 183. 36 Idem, p. 184-185. 37 Processo n. 0000317-89.2008.4013803/MG, julgamento da apelação em 23/01/2019, Rel. Des. Daniele Maranhão.
segunda-feira, 21 de setembro de 2020

Doctrine of frustration of contract: uma visão geral

Nesta minha segunda participação na coluna "Direito Privado no Common Law", aproveito para tratar de um tema especialmente relevante na atualidade, por conta da pandemia da Covid-19: a doctrine of frustration of contract, presente no Direito inglês. Noção Após a celebração do contrato, se sobrevierem circunstâncias que impeçam, alterem ou onerem consideravelmente o cumprimento das prestações para uma das partes, no Direito inglês o contratante prejudicado pode invocar a doctrine of frustration. O contrato passa a ser tido como ineficaz. Na prática, ele não poderá mais servir de base para uma pretensão contratual de cumprimento, ou mesmo para uma pretensão indenizatória por breach of contract1. Origens Em um primeiro momento, na Inglaterra, a maioria dos deveres contratuais era tida como absoluta, no sentido de que eventos supervenientes à formação do contrato não isentariam o devedor do seu cumprimento. Em um julgado de 1647 (Paradine v Jane), o locador exigira o pagamento de aluguel e o locatário contestou, alegando que foi desapossado do imóvel por ato de inimigos do rei. O argumento de defesa não foi acolhido, sob o fundamento de que os deveres contratuais devem ser cumpridos independentemente de "qualquer acidente por necessidade inevitável", porque o devedor poderia ter se precavido e previsto isso no próprio contrato. Esta doctrine of absolute contracts é tida, até os dias de hoje, como suficientemente satisfatória e continua sendo aplicada a casos onde a sua aplicação é razoável, levando-se em consideração a natureza do contrato ou as circunstâncias de sua celebração2. Em leading case de 1863 (Taylor v Caldwell), foi formulada regra geral para extinção dos contratos por eventos supervenientes que ficou conhecida como doctrine of frustration. No caso, as partes contrataram a locação de uma sala de espetáculos para apresentação de quatro concertos. Seis dias antes da primeira apresentação, o prédio foi destruído por um incêndio acidental, tornando-se impossível a realização dos espetáculos. Em face do não cumprimento do contrato, os locatários exigiram dos locadores indenização pelos gastos com publicidade do evento e outras despesas. O tribunal concluiu que os locadores não eram responsáveis, porque o contrato havia sido extinto com a destruição do prédio. A base para isso foi a percepção da corte de que o contrato estava sujeito a uma "implied condition that the parties shall be excused in case, before breach, performance becomes impossible from the perishing of the thing without the default of the contractor"3. Vale menção de que, na atualidade, essa regra encontra expressão no Sale of Goods Act 1979, onde prevê-se que, em caso de contratos de compra e venda de coisa certa, se a coisa se perder após a celebração do contrato, o contrato é ineficaz por frustration4. Ampliação Após a sua formulação em 1863, a doctrine of frustration passou por um "período de crescimento". Ela foi aplicada a casos em que a impossibilidade da prestação decorreu de outras formas que não a perda de coisa específica. E também a casos em que a prestação não se tornou propriamente impossível, mas o "objetivo comercial, ou propósito, do contrato foi frustrado." Em um caso julgado em 1903 (Krell v Henry), o réu alugou um apartamento durante os dias programados para a coroação do Rei Eduardo VII. Apesar de não estar previsto expressamente no contrato, o seu objetivo era o de assistir aos cortejos da coroação. O Rei ficou, todavia, doente e as celebrações foram adiadas, frustrando o propósito do contrato. Do ponto de vista material, a prestações não eram impossíveis, pois o locatário poderia ter usado e pagado pelo apartamento nos dias originalmente ajustados. Mas o tribunal concluiu que a frustration não era restrita à impossibilidade física, sendo também aplicável "to cases where the event which renders the contract incapable of performance is the cessation or non-existence of an express condition or state of things, going to the root of contract, and essential to its performance"5.  Restrição da teoria Ao longo da maior parte do século XX, contudo, a doctrine of frustration passou por um estreitamento do seu escopo. Diversos fatores fundamentam essa tendência: a resistência dos tribunais em permitir que uma parte se utilize da teoria apenas como uma forma de escapar de um mau negócio; a dificuldade de traçar uma linha distintiva entre casos de frustration e casos em que a responsabilidade pela quebra do contrato é estrita; a tendência dos comerciantes de preverem as possíveis causas de frustration, redigindo cláusulas expressas no contrato sobre obstáculos à prestação6. Nesse sentido, a Segunda Guerra Mundial deu origem a poucos casos reportados nos quais se reconheceu ter havido frustration por outras razões que não impossibilidade jurídica superveniente. Em 1956, por conta da Crise de Suez, apenas em dois casos a frustration doctrine foi inicialmente aplicada. As decisões foram, todavia, reformadas em segunda instância. Quando o Canal de Suez foi fechado novamente em 1967, pleitos de frustration obtiveram mais sucesso. Mas a "crise energética", resultante de ulteriores hostilidades no oriente médio em 1973, não levou a nenhum caso em que frustration tivesse sido sequer alegada como defesa7. Deve-se levar em conta que, nos casos relativos ao fechamento do Canal de Suez, não houve propriamente impossibilidade da prestação. A prestação meramente tornou-se mais onerosa para a parte alegando frustration. Há, de fato, uma nítida relutância dos tribunais para aplicar a teoria a esta hipótese. Por outro lado, ela foi aplicada a casos em que a prestação foi efetivamente impossibilitada. Isso ocorreu em casos envolvendo contratos de transporte marítimo em que os navios ficaram presos por longos períodos após eclosão de hostilidades entre Irã e Iraque em 19808. Dificuldades práticas Do ponto de vista prático, a doctrine of frustration dá azo a duas dificuldades. Em primeiro lugar, apenas raramente é melhor que o contrato seja totalmente extinto, em vez de permanecer em pleno vigor. Frequentemente, algum meio-termo é a solução mais razoável. Nesse sentido, em alguns casos relativos ao cancelamento da coroação, os contratos previam que, se o cortejo fosse cancelado, o portador do ingresso teria direito a usá-lo no dia que ele viesse a ocorrer. De maneira análoga, após 1956, os contratos de transporte ou venda de mercadorias passaram a prever qual das partes suportaria o custo extra, caso o Canal de Suez viesse a ser fechado novamente. Na falta de tais previsões expressas, esse tipo de solução é vedado aos tribunais ingleses, pois eles não têm o poder de modificar os contratos por conta de eventos supervenientes9. A segunda dificuldade é a de que a alocação de riscos produzida pela doctrine of frustration nem sempre é inteiramente satisfatória. Em um caso como Taylor v Caldwell, pode ser razoável que o locador não seja em nenhuma medida responsável pelos lucros que o locatário esperava obter com a prestação. Por outro lado, não é igualmente evidente que o locatário deva suportar sozinho as perdas decorrentes de ter agido confiando no contrato. Neste caso, o locatário requereu indenização não por lucros cessantes, mas pelos gastos inutilizados em divulgação e preparação para os espetáculos. Sem dúvida os locadores também incorreram em despesas com instalações e outros preparativos para os espetáculos. Pode ser, então, preferível que tais prejuízos fossem distribuídos entre as partes. No common law, contudo, isso seria possível apenas se o contrato contivesse previsão expressa nesse sentido. Se, por exemplo, em um dos casos da coroação, o contrato previsse que, em caso de cancelamento do cortejo, o portador do ingresso teria direito à restituição do seu dinheiro, menos uma porcentagem para cobrir os custos do devedor10. __________ 1 KÖTZ, Hein. Europäisches Vertragsrecht. 2. Aufl. Tübingen: Mohr Siebeck, 2015, p. 416. 2 TREITEL, Guenter; PEEL, Edwin. The law of contract. 12th. ed. London: Sweet & Maxwell, 2007, p. 925. 3 Taylor v Caldwell, 1863, p. 833 apud TREITEL; PEEL, op. cit., p. 925. Segundo observa Reinhard Zimmermann, essa solução tem inspiração no Direito romano. Por outro lado, a construção baseada na "condição tácita" é criticada por apresentar natureza fictícia e sérias inconsistências. Para críticas, ver: ZIMMERMANN, Reinhard. The law of obligations: Roman foundations of the civilian tradition. Oxford: Oxford University Press, 1996, p. 816. 4 Cf. Sale of Goods Act 1979: Art. 7. Goods perishing before sale but after agreement to sell. Where there is an agreement to sell specific goods and subsequently the goods, without any fault on the part of the seller or buyer, perish before the risk passes to the buyer, the agreement is avoided. 5 Krell v Henry, 1903, p. 748 apud TREITEL; PEEL, op. cit., p. 926. 6 TREITEL; PEEL, op. cit., p. 927. 7 TREITEL; PEEL, op. cit., p. 927. 8 TREITEL; PEEL, op. cit., p. 927. 9 TREITEL; PEEL, op. cit., p. 927-928. 10 TREITEL; PEEL, op. cit., p. 928.
A experiência do Direito Comparado - sobretudo do norte-americano - no manuseio dos meios alternativos de resolução de conflitos (alternative dispute resolution - ADR), assim compreendidos os métodos extrajudiciais pelos quais se alvitra a autocomposição ou a heterocomposição privada da disputa, tem muito a nos ensinar a respeito dos atuais desafios e transformações que se colocam para o sistema de justiça nacional a partir da institucionalização da justiça multiportas1. A conciliação, a mediação, a negociação e a arbitragem, dentre outros mecanismos "alternativos" à adjudicação estatal, vêm sendo aplicadas nos Estados Unidos da América com enorme destaque há décadas, fenômeno que não apenas acarretou uma drástica diminuição dos julgamentos pelo Poder Judiciário como, também, implica profundas alterações no próprio inter-relacionamento entre os diversos operadores do sistema de Justiça.   Não apenas para o Brasil, mas também para todos os demais países de civil law, pode parecer absolutamente desconcertante a notícia de que nos Estados Unidos da América a adjudicação pelo Poder Judiciário (tanto na esfera federal como nas estaduais) atualmente ocorre para a resolução da absoluta minoria das ações ajuizadas. Vale dizer, os magistrados norte-americanos proferem sentenças de mérito excepcionalissimamente, diante do extraordinário volume de acordos (settlements) conquistados extrajudicialmente, ou, por vezes, via programas alternativos anexos às Cortes. A solução consensual dos conflitos é inegavelmente a grande meta, o evidente objetivo em torno do qual todo o sistema de justiça dos EUA tem sido idealizado, reformado e funcionado. Nesse cenário, as sentenças judiciais, as decisões das cortes de apelação e das cortes superiores sobre o mérito das disputas (por vezes sequer publicadas justamente para tentar favorecer os acordos) são virtuais "patologias" decorrentes do indesejado insucesso das tentativas de autocomposição.   Muito embora os tribunais norte-americanos possuam competência para revisar ou anular os acordos produzidos mediante as ADR's, estatisticamente isto raramente ocorre. Isto se deve, em grande monta, à existência de uma notória política estatal no sentido da autonomização e do empoderamento de árbitros, mediadores, conciliadores e especialistas neutros, dentre outros atores do universo dos "meios alternativos", onde os protagonistas não são (nem desejam ser) os juízes, mas sim, os advogados. Esta política em prol da resolução extrajudicial dos conflitos pode ser bem aferida a partir da longevidade e da dispersão da aplicação de legislações federais como a Arbitration Act (1924) e a Mediation Act (2001-2003). Da mesma forma, numerosos programas obrigatórios de utilização das ADR's são ordenados em legislações de diversos estados dos EUA, que neles vislumbram modelo mais eficiente e adequado para resolver ou minimizar os problemas gerais que historicamente pressionam todos os sistemas jurisdicionais mundo afora (custos para as partes, tempo de duração dos processos, alocação de recursos e funcionários públicos, dentre outros).  Se parece desconcertante para um jurista brasileiro saber que o sistema de justiça norte-americano não almeja exatamente ouvir "a voz do Estado" (e não apenas nas disputas envolvendo direitos patrimoniais disponíveis), nem se preocupa demasiadamente em criar precedentes obrigatórios (que, aliás, nos EUA são a consequência e não o objetivo da prestação jurisdicional), não menos desconcertante é o exercício de um olhar interior para o sistema de justiça do Brasil, historicamente idealizado e construído para a adjudicação judicial, como se nela se resumisse a garantia de acessibilidade à justiça e a adequada tutela dos direitos.      No modelo adjudicatório, a ausência de incentivos para a realização de acordos e a promessa de uma longa duração dos processos judiciais acabam funcionando como um verdadeiro convite aos habituais geradores de conflitos sociais a apostar na morosidade e na inefetividade da tutela jurisdicional, para a consequente obtenção de evidentes vantagens.  O próprio sentido privado que ao longo da história denotou a expressão negociação parece ter se voltado contra o emprego dos mecanismos consensuais, sob a justificativa de que determinadas pessoas, grupos ou categorias simplesmente não estariam aptas a negociar, dadas suas condições de hipossuficiência econômica, política e social. O temor da "privatização da justiça" seria razão suficiente para sempre se voltar ao Estado e suas instituições, responsáveis pela contenção dos abusos do livre mercado2. Todavia, se não é possível minimizar as razões pelas quais ainda persistem fundadas restrições ou condicionamentos à abertura de referidos mecanismos em matéria trabalhista, nas relações de consumo ou envolvendo o Poder Público, por exemplo, também não se deve desconsiderar que a dinâmica das relações jurídicas parece comportar cada vez menos as estritas qualificações que cunharam a dicotomia público x privado, atualmente significativamente relativizada. Tal relativização implica, também, uma nova configuração dos institutos da mediação, da conciliação, da negociação e da arbitragem que, a depender da necessidade resolutória concreta, devem passar a incorporar algumas características ínsitas ao modelo adjudicatório estatal3. O grande desafio que se coloca para os pensadores e operadores do sistema de justiça brasileiro, portanto, parece muito mais relacionado com a definição de balizas mínimas que possam assegurar a coordenação entre jurisdição e os outros meios de solução ou regulação dos conflitos sociais, sejam eles de qual espécie forem. Neste sentido, certamente há enorme espaço para um franco e despreconceituoso debate sobre os inúmeros aspectos técnicos envolvidos na tentativa de construção de um novo modelo de justiça multiportas, que exige a mais perfeita harmonização possível entre os mecanismos e técnicas até então rotuladas como "públicas" ou "privadas"4. É inegável que a política da jurisdicionalização de todo e qualquer conflito acabou gerando, para o sistema de Justiça brasileiro, uma absoluta centralidade do método adjudicatório e o completo esvaziamento da utilização de outros mecanismos consensuais e extrajudiciais.        Por tal motivo, o movimento que agora se reforça no Brasil, no sentido da institucionalização da mediação, da conciliação, da negociação e da arbitragem, não deixa de revelar uma tentativa de fundar verdadeira revolução cultural relativamente ao modelo de resolução de conflitos, também (mas não apenas) forçada pela falência do sistema exclusivamente judicial5. Mais do que isto, trata-se do reconhecimento de que os princípios da livre iniciativa e da autonomia das vontades tradicionalmente incidentes e primazes no campo do direito privado6, não apenas podem como devem incidir também no campo do direito público, mais precisamente no direito processual, no intuito de instrumentalizar o sistema de justiça. Ressalta-se, no entanto, a necessidade de se analisar a profunda reformulação no modo de ser das relações privadas, na medida em que valores liberais, tais como os da liberdade de contratação e da livre iniciativa, por exemplo, passam a ser pautados ou influenciados também por escopos sociais de funcionalização do Direito  - o que será objeto de nossas próximas colunas.   De todo modo, para que esta integração seja viável, faz-se necessário aprofundar a relativização do ideológico e já anacrônico discurso do "público versus privado", que continua a ser um grande desafio para os juristas do século XXI e que interfere na reformulação do sistema de solução de disputas nacional. As históricas e crescentes dificuldades conceituais a respeito de temas fundamentais, como o interesse público e o interesse privado, torna extremamente delicada a tarefa de se apontar interesses particulares absolutamente desatrelados de qualquer interrelação com o coletivo ou o social7. Nesse cenário, a privatização da justiça por influência das ADR's e da cultura do acordo no sistema de justiça norte-americano podem e devem ser criticadas (e o são fortemente por vasta doutrina)8, na medida em que podem significar o afastamento ou o apequenamento do controle jurisdicional, indispensável para garantir a isonomia de tratamento entre as partes em conflito, a razoabilidade do procedimento (contraditório e ampla defesa) e a justiça das soluções, para além da reafirmação do ordenamento jurídico e o norteamento da atividade parlamentar por via dos precedentes. Mas, se nos desafiarmos a responder a poucas e singelas indagações a respeito de onde nos terá levado a histórica aposta na exclusividade da adjudicação estatal para a solução dos conflitos sociais (aproximadamente 77 milhões de processos pendentes)9, parece certo que muito pouco teremos a opor contra um movimento que busca, tardia, mas finalmente, institucionalizar os meios adequados de resolução de conflitos no Brasil. __________ 1 A relação existente entre os mecanismos resolutórios judiciais e os extrajudiciais não pode mais ser qualificada como de alternatividade, mas sim, de adequação. Neste sentido, Paula Costa e SILVA afirma que "se o exercício de direito de acção através de tribunais arbitrais ou de tribunais judiciais consubstancia na verdadeira relação de alternatividade, o mesmo não sucede se, de um lado, colocarmos mediação e conciliação e, de outro, exercício do direito de acção através de tribunais, sejam estes judiciais ou arbitrais. Neste caso, a única relação que, num Estado de Direito, pode legitimamente existir é uma relação de adequação. A mediação e a conciliação serão modos legítimos de resolução de conflitos se forem os modos adequados de resolução desses conflitos". A nova face da justiça, - Os meios extrajudiciais de resolução de controvérsias. Coimbra Editora. Lisboa, 2009, p. 35.  2 Conforme FISS, "We  turn  to  the  state  because  it is the most public of all our institutions and because  only  it  has  the power we need to resist the pressures of the market and thus to enlarge and  invigorate our politics". Why the State? (1987). Yale Law School. Faculty Scholarship Series. Paper 1208. Disponível aqui. Acesso em 4 de setembro de 2020. 3 Segundo Giovanni COSI, a integração entre os meios alternativos de resolução de conflitos (ADR's) e o processo judicial não se resume à "publicização" daqueles, envolvendo, acima de tudo, a construção de um novo modelo processual que venha ao encontro da proteção dos interesses das partes e do Estado. Invece di Giudicare. Scritii sulla Mediazione. Milano. Giuffre Editore, 2007, p. 40. 4 Com efeito, conforme destaca Richard C. REUBEN, as tradicionais características do modelo das alternative dispute resolution (tais como a confidencialidade e a patrimonialidade) podem e devem sofrer mutações na exata medida em que passem a ser utilizadas para a resolução de litígios que exijam maior transparência e publicidade, no intuito da afirmação do próprio ordenamento processual e material: "As arbitration continues to expand as a fixture on the landscape of civil justice, it becomes more important for participants in the process to be aware of the contours of arbitration's relationship with the law, of the limitations of arbitration as well as its strengths. As with the discovery and admissibility of mediation communications, a rigorous inquiry is a necessary foundation for good legal policy with respect to arbitration communications. Like any alternative dispute resolution process, arbitration does not stand apart from the law, and when the two come into contact, wise policy requires a careful balancing of the needs, interests, and concerns of both institutions". Confidentiality in Arbitration: Beyond the Myth. Kansas Law Review, Vol. 54, p. 1255, 2006; U of Missouri-Columbia School of Law Legal Studies Research Paper No. 2006-23. Available at SSRN: https://ssrn.com/abstract=925281. Acesso em 04 de setembro de 2020. 5 Assim como o movimento contracultural da década de sessenta desafiou o sistema estatal de resolução de conflitos nos Estados Unidos da América, enaltecendo clássicos valores norte-americanos como o individualismo, o populismo, o laissez-faire e o igualitarismo (conforme sustenta Oscar G. CHASE, Direito, cultura e ritual: Sistemas de resolução de conflitos no contexto da cultura comparada. Tradução Sérgio Arenhart, Gustavo Osna. São Paulo: Marcial Pons, 2014, p. 153), parece possível afirmar que, por diversos sejam agora os valores preponderantes na sociedade brasileira, a recente reforma legislativa nacional relativa aos procedimentos resolutórios extrajudiciais e consensuais não deixa de refleti-los e afirmá-los.       6 WEINRIB, Ernest J. The Idea of Private Law. Oxford University Press, 2012. 7 Por tal motivo, conforme Pietro PERLINGIERI, "Técnicas e institutos nascidos no campo do direito privado tradicional são utilizados naquele do direito público e vice-versa, de maneira que a distinção, neste contexto, não é mais qualitativa, mas quantitativa. Existem institutos em que é predominante o interesse dos indivíduos, mas é, também, sempre presente o interesse dito da coletividade e público; e institutos em que, ao contrário, prevalece, em termos quantitativos, o interesse da coletividade, que é sempre funcionalizado, na sua íntima essência, à realização de interesses individuais e existenciais dos cidadãos". Perfis do direito civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 54. 8 EISENBERG, Theodore, LANVERS, Charlotte. What is the Settlement Rate and Why Should We Care? Cornell University Law School. Journal of Empirical Legal Studies, Volume 6, Issue 1, 111-146, March 2009. TRAUM, Lara, FARKAS, Brian. The history and legacy of the Pound Conferences. Cardozo Journal of Conflict Resolution, Vol. 18:677, 677-698, May, 2017. 9 Conselho Nacional de Justiça.  Justiça em números 2020 (ano-base 2019). 16ª edição. Destaca-se, no entanto, que em termos absolutos, o número de casos pendentes de 2019 é próximo ao de 2015. Esse é o segundo ano consecutivo de queda no número de casos pendentes.
"Não tema a morte porque - se houver morte - você não está lá e - e se você estiver lá - não há morte" Epicuro No Direito Civil brasileiro não há previsão legal para o chamado dano-morte. O dano que provoca a morte de uma pessoa é escassamente discutido pela doutrina e sumamente ignorado pela jurisprudência. Contudo, esta não é originalmente uma lacuna brasileira. Há muito, importantes doutrinadores europeus tentam dar uma explicação ao aforismo do filósofo Epicuro. A sua advertência é clara: se a pessoa não mais existe, consequentemente não existe compensação pela privação de sua vida. Qual é o nosso cenário jurídico atual? Inexiste indenização pelo dano-morte, diante da supressão ilícita uma vida. O fundamento para tanto consiste na própria falta da pessoa a quem a perda do bem possa estar ligada e, em cujo espólio, a indenização possa ser consolidada. O paradoxal é que é se torna economicamente muito mais vantajoso matar uma pessoa instantaneamente do que lentamente e, de fato, mais barato matar rapidamente do que feri-la gravemente. Face à impossibilidade jurídica da indenização pelo dano-morte, qual é a alternativa? Dúvidas não existem quanto à compensação do dano moral aos familiares das pessoas falecidas. O Código Civil defere o dano extrapatrimonial in re ipsa ao cônjuge ou qualquer parente, como um direito próprio dos familiares - não adquirido por via sucessória -, com base na lesão a sua esfera existencial (par. único, art.12, c/c art. 943, ambos do CC) pela morte do entre querido. Apesar do rol taxativo dos beneficiários, os tribunais ampliam este direito em favor de companheiros, e mesmo para pessoas que não tenham vínculos de parentesco, desde que na concretude do caso fique provado o real vínculo afetivo com o falecido. Por outro lado, o sofrimento inerente ao luto pode por vezes gerar um comprometimento psíquico duradouro. Embora estudos empíricos comprovem que a morte inesperada e súbita de um ente querido seja a mais frequente experiência traumática e uma importante questão de saúde pública, por razões desconhecidas não existe responsabilidade civil por acometimentos psiquiátricos causados pela perda repentina da pessoa próxima. Os tribunais ressaltam que a conduta ilícita é uma só, e suas consequências não podem variar de acordo com as particularidades de cada vítima que sofre o dano reflexo ou por ricochete. Em reforço a este dado, ao contrário do que ocorre no direito alemão, no Brasil não se concede aos familiares do falecido o chamado "dano de choque nervoso" (schockschaden), que é fruto de uma interpretação elástica dos tribunais sobre o conceito de dano à saúde, contido no §823 do BGB1. Ou seja, por aqui não contamos com uma reparação autônoma em favor de familiares que presenciaram o momento da morte e efetivamente sofreram um abalo psíquico pelo evento em si, fato que transcende a perda pelo falecimento do ente querido, igualmente experimentada pelos demais parentes ou pessoas de sua intima relação. Enfim, em razão do receio quanto à indiscriminada abertura de comportas para múltiplas indenizações por danos consequentes à imediata verificação de um único evento, os tribunais optam por restringir o número de demandantes. Haveria então espaço para a lapidação da indenização autônoma pelo dano-morte no ordenamento brasileiro? A Constituição consagra o princípio da dignidade da pessoa humana como fundamento de proteção dos direitos da personalidade, enquanto o direito à vida se coloca como premissa necessária para que qualquer pessoa desfrute de sua privacidade, honra, imagem e tenha liberdade para o exercício de suas escolhas patrimoniais e existenciais. Portanto, embora natural, a cessação do ciclo vital jamais poderá ser ilicitamente abreviada por terceiros. Justamente por isto, diferentemente do Brasil, o art. 496, 2. do Código Civil de Portugal expressamente prevê o dano-morte como um dano autônomo, de caráter extrapatrimonial. No Código Civil Brasileiro, a norma que merece uma interpretação cuidadosa é a do art. 948. Inicialmente, ao prever o pagamento das despesas com o tratamento da vítima e seu funeral, o preceito se refere à compensação de danos patrimoniais relativos aos cuidados com o falecido no período entre a lesão e o seu enterro. Abrange todos os gastos para mantê-lo vivo e os desembolsos efetuados para as últimas homenagens. Já a expressão "luto da família" corresponde ao mencionado dano moral dos parentes pela morte do ente querido. Em complemento, quando a parte final da norma se refere à "prestação de alimentos", cuida da repercussão do dano experimentado pelo falecido na esfera material de alguém que dele era dependente e receberá uma pensão mensal, como espécie de lucros cessantes, cujo valor será fixado de acordo com as possibilidades econômicas do ofensor e as concretas necessidades dos dependentes do falecido. O paradoxo surge ao analisamos os dispositivos seguintes (arts. 949 e 950, CC). Em ambos os casos, o Código Civil concede indenização pelos danos provocados à integridade física do lesado que não morreu com o fato danoso, incluída uma pensão atribuída a ele em caso de incapacitação para o trabalho. Soa incongruente que uma lesão que ofenda a integridade corporal acarrete uma indenização, sem que nenhuma referência se faça à uma compensação nos casos extremos em que a lesão física tenha levado à morte. Porém, retornando ao caput do art. 948 do Código Civil, frisa-se na parte final: "sem excluir outras reparações". Surge aqui uma abertura para que os tribunais possam admitir a indenizabilidade do dano-morte como um dano autônomo nos casos em que o ilícito ceifou a vida da vítima, tendo como fundamento a ofensa corporal que cessou com a morte, ou seja, o dano pré-morte. É importante lembrar que a morte - sob qualquer circunstância - é um fato jurídico que produz não apenas consequências econômicas - v.g abertura de herança e pagamento do seguro de vida - mas também acarreta projeção existencial "post mortem", com proteção da memória do morto por parte dos que estão vivos, ou seja a tutela da sua imagem, nome e honra. Portanto, e isto é fundamental, o dano não pode ficar com quem o sofre, sendo a morte um fato que deve desencadear uma indenização autônoma, transferindo-se o dano ao patrimônio do ofensor. O dano-morte é um dano a um bem supremo do indivíduo, objeto de um direito absoluto e inviolável garantido primariamente pelo ordenamento jurídico, e, portanto, prescinde da consciência do lesado sobre a sua morte. Ou seja, tanto faz se o fato ilícito acarretou a morte instantaneamente, ou a vítima sobreviveu por tempo suficiente para pressentir a inexorável chegada da morte. Portanto, a indenização pelo dano-morte é claramente distinguível da compensação pelo dano da perda da relação destinado ao cônjuge e parentes, assim como de um dano moral "terminal ou catastrófico", ou seja, o dano que consiste no sofrimento da vítima que testemunha claramente a extinção de sua vida, quando houver prova da existência de um estado de consciência no intervalo entre o evento dano e morte, com a consequente aquisição de um pedido de indenização, transmissível aos herdeiros. Assim, o dano-morte só pode ser admitido dentro da função compensatória da responsabilidade civil como uma espécie de dano abstrato, isto é, uma exceção ao princípio da irreparabilidade do dano-evento e da reparabilidade exclusiva do dano-consequência, pois a morte tem como consequência o fim de tudo.  Nos casos em que a morte ocorre no imediatismo do evento lesivo, se perseverarmos no viés da responsabilidade civil como remédio destinado ao reequilíbrio da posição patrimonial da vítima, realmente não haverá compensação hereditária, pela razão elementar da ausência física de um sujeito com capacidade legal, que é conditio sine qua non para atrair qualquer direito ao seu "patrimônio" (incluindo o direito à compensação pela privação de sua existência). Se falta a pessoa natural, não haverá sequer uma entidade legal capaz de "consolidar" a si mesma e depois transmitir o direito à compensação por uma súbita privação da vida. Portanto, se não quisermos raciocinar em termos de regra/exceção, parece-nos que a indenização pelo dano-morte não deva ser justificada pela função compensatória da responsabilidade civil, que se tornaria incoerente, diante da impossibilidade lógica de uma condenação pecuniária restituir a vítima falecida ao momento anterior ao ilícito. "Thinking outside the box", creio que a lacuna legislativa e a própria oscilação quanto ao tema, convidam a doutrina brasileira a visitar uma diferente função da responsabilidade civil, discutida nas jurisdições da "common law", e mais conhecida pelo rótulo de "vindicatory damages". Ilícitos acionáveis per se desempenham há muito tempo um papel fundamental na proteção de direitos básicos dos indivíduos, seja a liberdade em razão de prisões indevidas, direito de propriedade protegido contra invasão ou direito a própria integridade psicofísica protegida contra agressão. Quando direitos protegidos são infringidos, sem que haja justificativa legal, tal violação será retificada com substantial damages - ou seja, uma indenização substancial e não apenas nominal. Em uma tradução aproximada, a "indenização reivindicatória", não é uma condenação pecuniária que tenha como objetivo compensar danos, dissuadir ilícitos ou punir comportamentos ultrajantes. É algo diferente: trata-se de uma indenização cuja finalidade é a de reivindicar direitos que foram violados, independentemente de suas consequências.  Tal como no direito romano - onde surgiu a figura da "vindicatio" de tutela à propriedade a despeito de qualquer prejuízo sofrido pelo seu titular -, no dano-morte a pretensão exercida contra o réu atua como como um substitutivo para a violação ao direito. Isto é, ao se exigir que o autor do homicídio não apenas pague uma importância X pelos danos infringidos aos parentes do falecido (de natureza compensatória), mas que também seja condenado a uma soma y, por abreviar uma vida, a sentença se afasta do princípio da "restitutio in integro" e passa a exprimir o elemento moral do ordenamento jurídico. Como explica o mais proeminente autor no campo dos vindicatory damages, Jason Varuhas: "Para ilícitos onde a vindicação de direitos é a função primária, a indenização é deferida pelo fato da interferência indevida sobre o interesse protegido de per si. Esta indenização compensa por um dano que é "normativo" por natureza, objetivamente avaliado, e deferido ao demandante independente de seu sofrimento ou qualquer impacto psicológico negativo, ou mesmo efeitos econômicos decorrentes do ilícito"2. Ao contrário de indenizações por perdas materiais (factual loss), a indenização normativa compreende um dano construído abstratamente no mundo jurídico, sem correlação  com os efeitos sentidos no mundo real. Desta maneira, a condenação sinaliza de forma tangível que o comportamento do réu foi um ilícito perante o falecido e que, ao mesmo tempo, o direito à vida não é apenas algo a ser exercido pelo "de cujus", porém um direito fundamental que se afirma abstratamente contra qualquer um em sociedade e, concretamente, contra aquele ofensor que a ceifou por um ato antijurídico. Enfim, surge uma excelente oportunidade de alargar as funções da responsabilidade civil brasileira, pela autonomização da finalidade de vindicação de direitos, perante a tradicional reparação de danos patrimoniais e extrapatrimoniais. Ao invés de corrigirmos as consequências do ilícito, retifica-se o próprio ato ilícito por uma indenização, a despeito do que teria acontecido se o ilícito não fosse produzido. No que tange ao dano-morte, independentemente de qualquer repercussão moral ou econômica na esfera de terceiros, o ilícito de abreviar a vida de alguém é uma violação a integridade psicofísica da própria vítima, por parte de quem intencionalmente ou não, omitiu o dever geral de cuidado, sendo a sua conduta a causa adequada para o abrupto decesso da vítima. Neste contexto a indenização pelo dano-morte transmite a importante mensagem de reforço do dever moral de preservação da vida humana. Podemos traçar um paralelo na função vindicatória da indenização, pela simetria entre o fim e o início da vida. De forma análoga ao dano-morte, na "wrongful conception", também vislumbramos fundamento para uma indenização reivindicatória. Basta pensarmos na condenação de um médico a uma obrigação de indenizar por mala práxis, ou seja, a violação da leges artis por uma conduta negligente em processo de esterilização que acarretou gravidez e nascimento indesejado de filho. A indenização representará o reconhecimento da violação de um direito, a par de qualquer consequência negativa. A final, cogitar a vida de um filho como um dano em si ou uma fonte de danos, é uma ideia ruim e contradiz a própria intangibilidade da dignidade humana. É compreensível e aceitável que os pais sejam indenizados por despesas adicionais que terão pela criação do filho. Para além do mencionado dano patrimonial, é defensável que sejam os pais compensados pelo dano da privação de sua autonomia, como oportunidade perdida de viver sua vida da maneira que se desejou e planejou. Percebam: a "perda da autonomia" não é uma perda no sentido consequencial. O nascimento de uma criança, não obstante uma fracassada tentativa de esterilização de um dos pais, não é idealmente uma consequência adversa. Portanto, uma indenização pela privação da autodeterminação dos pais atua como um substitutivo à violação ao seu direito fundamental ao planejamento familiar. Se um filho vem ao mundo por uma falha em um método anticonceptivo, proporcionando um impacto maravilhoso sobre a vida da família, subsiste o direito dos genitores à uma indenização, posto privados de sua liberdade de escolha. Se compararmos o mundo como ele é agora, com o mundo como deveria estar, ausente o ilícito, posso não estar pior, mas ainda assim posso reivindicar os meus direitos. No julgamento da Suprema Corte da Inglaterra do caso Rees V Darlington Memorial Hospital, a demandante, pessoa com deficiência, submeteu-se à esterilização pois temia dificuldades adicionais em exercer o papel de mãe. Contudo o procedimento falhou e tempos depois ela teve um filho. Na decisão que concedeu a indenização, Lord Bingham descreveu que a sua finalidade não se pretende compensatória, por não se tratar de um produto de um cálculo, porém não seria meramente uma indenização nominal, muito menos um prêmio irrisório. Pelo contrário, ela deve proporcionar alguma medida de reconhecimento pelo ilícito3. Se um dia a indenização pelo dano-morte for respaldada em nossos tribunais, seja na visão consequencialista da compensação de um dano, seja na alternativa de um ilícito indenizável como reação à violação de um direito, necessariamente o próximo passo será a avaliação quanto à extensão desta indenização. No dito popular, quando resolvemos um problema, sempre surge uma família de novos problemas. O debate quanto à quantificação de uma eventual indenização é tão importante quanto o próprio reconhecimento do dano morte, haja vista que se mantido o padrão nacional de condenações por valores irrisórios, na prática qualquer indenização corresponderá a uma não indenização. *Nelson Rosenvald é professor do corpo permanente do doutorado e mestrado do IDP/DF. Procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Associado Fundador do Instituto Avançado de Proteção de Dados (IAPD). __________ 1 Seção 823 - "Responsabilidade por danos (1) A pessoa que, intencionalmente ou por negligência, lesar ilegalmente a vida, o corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade ou outro direito de outra pessoa é responsável por indenizar a outra parte pelos danos daí decorrentes". 2 VARUHAS, Jason. The Concept of 'Vindication' in the Law of Torts: Rights, Interests and Damages. 3 House of Lords, SESSION 2002-03 [2003] UKHL 52. REES V DARLINGTON MEMORIAL HOSPITAL NHS TRUST: HL 16 OCT 2003.
Uma reflexão sobre a convergência entre a Civil Law e a Common Law. 1. O Espelho Comparativo Essa é a minha primeira publicação nessa nossa coluna semanal sobre o Direito Privado na Common Law, compartilhada com os estimados colegas de IBERC, os professores Nelson Rosenvald, Thaís Pascoaloto Venturi e Daniel Dias. Dentro da proposta de compartilhamento de experiências e construção de pontes com a perspectiva anglo-americana proporcionada nesse espaço privilegiado de debates pelo Migalhas, o aspecto reflexivo da perspectiva comparada é essencial. Na travessia entre as tradições das famílias da Civil Law e da Common Law, aprendemos muito não somente sobre o direito anglo-americano, mas principalmente sobre nosso próprio direito. Aprendendo sobre outra jurisdição, também aprendemos sobre o direito da nossa própria jurisdição. Um interessante ponto de partida para a reflexão através do espelho comparativo consiste no livro The Civil Law Tradition: An Introduction to The Legal Systems of Europe and Latin America. Escrita em coautoria por John Henry Merryman e Rogelio Pérez-Perdomo, a terceira edição do livro foi fruto do diálogo entre juristas formados nas duas tradições como colegas na Stanford Law School e traz uma visão sobre a Civil Law a partir das lentes da Common Law. 2. As Fontes do Direito  A leitura do livro revela, por exemplo, que o fascínio exercido pelo debate sobre as fontes do direito não é compartilhado pela Common Law. Merryman e Pérez-Perdomo anotam que não existe uma teoria hierárquica e sistemática a esse respeito, mas que as leis, os costumes e as decisões judiciais são consideradas de maneira assistemática1. Tal diferença é atribuída à rejeição do jus commune no continente europeu após o período revolucionário com predomínio do estatismo, nacionalismo, positivismo e da soberania2. Na Inglaterra, ao contrário, o direito comum - ou seja, common law - foi uma força positiva na emergência do Estado-Nação e foi abraçado como símbolo de identidade nacional, não sendo considerada necessária a elaboração de novo sistema jurídico codificado3. 3. Os Códigos e a Codificação A explicação para o caráter racionalista e sistemático do Código Napoleônico, contudo, teria partido do desejo de que o sistema jurídico fosse simples, direto e não-técnico - evitando-se a necessidade de advogados e de complicações técnicas atribuídas aos profissionais do direito4. Alguns revolucionários franceses também nutriam o desejo de que fosse negado aos juízes o poder de interpretar as leis, por conta da sua experiência anterior com as cortes reais pré-revolucionárias5. Novamente, as diferenças são marcantes com relação à tradição da Common Law, em que existem códigos, mas sem a ideologia revolucionária de ruptura com o passado, sem a pretensão de completude em termos de proporcionar soluções para todas as questões e sem a mesma realidade cultural de definir a base jurídica para qualquer caso no interior do código6. 4. Os juízes Como consequência dessas diferenças, do desenvolvimento do direito moldado pelos juízes, dos amplos poderes interpretativos e da tradição de controle judicial da atividade administrativa, os magistrados se tornaram figuras de destaque e até mesmo heróis culturais nos países da Common Law7. Logo, para eles, existe mais uma diferença significativa com relação à Civil Law, em que os magistrados são funcionários públicos de carreira formados através da experiência de progressão funcional na magistratura pelo desempenho preciso das funções judiciais como operadores de uma máquina judiciária desenhada e construída pelos legisladores8. Nesse contexto, Merryman e Pérez-Perdomo salientavam que os juízes não seriam heróis culturais na Civil Law, na medida em que o serviço judicial seria burocrático e sua função seria limitada, mecânica e não-criativa9. 5. A Certeza do Direito O olhar comparativo de Merryman e Pérez-Perdomo ressalta a grande ênfase que a literatura da Civil Law dá para a importância da certeza do direito como espécie de valor supremo, dogma inquestionável e objetivo fundamental10. Na visão dos professores da Stanford Law School, a ideia de que a certeza do direito seja tão proeminente é reflexo da desconfiança com relação aos juízes, tornando o processo de interpretação e aplicação do direito tão automático quanto possível e proibindo que os juízes também façam o direito11. Por outro lado, na Common Law, o ideal de certeza do direito é um dentre um número de valores jurídicos, que eventualmente entram em conflito recíproco, existindo a possibilidade de maior flexibilidade e de juízo de equidade12. 6. A Ciência do Direito A ideia de que o direito é uma ciência sistemática também é típica da Civil Law, que considera a ciência do direito formada por um corpo integrado de princípios descobertos, que devem ser coerentes com a unidade do sistema jurídico para serem acomodados e que a preservação dos valores sistemáticos deve ser um fator de consideração relevante para a crítica e a reforma do direito13. Merryman e Pérez-Perdomo explicam que para o jurista anglo-americano, é surpreendente que o alto grau de abstração descarte o contexto histórico e factual, que os princípios percam sua concretude e que o cientista jurídico esteja mais preocupado com o desenvolvimento de uma estrutura teórica científica do que com a solução de problemas concretos14. Aliás, o cientista do direito é normalmente um acadêmico, que ocupa na Civil Law o papel de protagonista que o magistrado possui na Common Law15. 7. A Convergência entre Civil Law e Common Law A esta altura, o leitor certamente se questiona sobre essas diferenças. É que existe no direito brasileiro tendência crescente de valorização dos precedentes judiciais, inclusive usados com maior frequência para uniformização das decisões judiciais. Certos casos são decididos a partir de normas jurídicas extraídas de uma construção interpretativa que transcendeu os limites da codificação. Atualmente, o público conhece o nome de Ministros do Supremo Tribunal Federal e de outros magistrados que se tornaram figuras proeminentes. Também se percebe cada vez mais o caráter mitológico da ideia de certeza do direito - problematizada pela complexidade da sociedade, pelas mutações do direito e pela possibilidade de juízos baseados na ideia de justiça ou de eficiência. A perspectiva dogmática da ciência do direito convive com a visão pragmática do direito como experiência, técnica para solução de conflitos e o realismo jurídico. De fato, existe uma tendência de profundas transformações e de convergência entre a Civil Law e a Common Law por conta de influências recíprocas. No final do livro, Merryman e Pérez-Perdomo se referem à transformação simbolizada pelo declínio da codificação e pelo fortalecimento das constituições16. Em termos de decodificação, tem proliferado o surgimento de leis especiais, de regimes jurídicos especializados e de microssistemas jurídicos cujo conteúdo difere ideologicamente das provisões do Código Civil e pode mesmo parecer incompatível com ele17. Tal declínio do papel do Poder Legislativo coincide com o crescimento da atividade regulatória, normativa e decisória da administração pública, tendo o direito administrativo se tornado um ramo do direito distanciado da sua fonte legislativa e cujos efeitos atingem direta e profundamente a vida dos cidadãos18. Além disso, o panorama do direito na Civil Law foi transformado profundamente pelo tratamento dado às constituições como fonte normativa superior do direito e o aumento de oportunidades para se questionar a constitucionalidade de atos legislativos e outros atos oficiais19. Com relação a esse ponto, Merryman e Pérez-Perdomo se referem ao fato de que o fortalecimento das constituições pode ser analisado como uma forma adicional de decodificação, eis que os Códigos Civis não exercem mais a função de lei primordial e constitutiva das relações jurídicas na sociedade e que tal função teria saído da mais privada de todas as fontes de direito privado - o Código Civil - para a mais pública de todas as fontes de direito público - a Constituição20. No caso brasileiro, a fragmentação do Código Civil se sobressai com a proliferação de regimes jurídicos próprios em matéria trabalhista, agrária, urbanista, consumerista, de propriedade intelectual, além de inúmeras legislações especiais. Além disso, não somente com o advento das agências regulares, mas também com o crescimento da atividade administrativa estatal, verificou-se uma ampliação da abrangência e do alcance do direito administrativo sobre a vida do cidadão. Finalmente, com o advento da Constituição de 1988 e as transformações no âmbito do Direito Civil Constitucional desde então, verifica-se também o predomínio da constituição como a lei primordial e constitutiva das relações jurídicas na sociedade brasileira. Tais fenômenos não ocorreram de maneira isolada no direito brasileiro, mas como parte de um processo histórico que promoveu transformações análogas em outros países da Civil Law. 8. Considerações Finais A observação do espelho comparativo pode ser bastante rica, não somente para o nosso aprendizado sobre a Common Law, mas também sobre a Civil Law. É que o estudo comparado tem como ponto de partida a compreensão de si próprio e de seu próprio sistema jurídico. Por outro lado, vivemos um momento de intensa interação e trocas de experiência entre acadêmicos. Assim, características apresentadas como de uma das famílias podem se tornar simplificações conceituais e não corresponder à complexa realidade das influências recíprocas entre Civil Law e Common Law. Nesse sentido, The Civil Law Tradition: An Introduction to The Legal Systems of Europe and Latin America fornece um bom ponto de partida para a reflexão sobre a tendência de convergência atual e sobre a importância do aprofundamento do estudo comparado. A compreensão do direito como experiência permite uma reflexão sobre seus rumos, discussões sobre reformas, inovações e mutações do direito. Esse espelho comparativo certamente será ocupado com uma série de novas colunas com imagens e reflexões relevantes para o nosso direito a partir da comparação com a experiência anglo-americana. *Pedro Fortes é professor visitante no programa de pós-graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e promotor de Justiça no MP/RJ. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi professor visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt. __________ 1 John Merryman e Rogelio Perez-Perdomo, The Civil Law Tradition: An Introduction to the Legal Systems of Europe and Latin America. Stanford University Press, 3ª edição (2006), p. 26.  2 Idem, p. 23.  3 Idem.  4 Idem, p. 29.  5 Idem, p. 30.  6 Idem, p. 33.  7 Idem, p. 34.  8 Idem, p. 36.  9 Idem, p. 38.  10 Idem, p. 48.  11 Idem, p. 48.  12 Idem, p. 49-50.  13 Idem, p. 63.  14 Idem, p. 65.  15 Idem, p. 66.  16 Idem, p. 152.  17 Idem.  18 Idem, p. 156.  19 Idem, p. 157. 20 Idem, p. 158.
Texto de Autoria de Daniel Dias 1. Introdução Este é o meu texto de estreia na coluna Direito Privado no Common Law, publicada semanalmente no Portal Migalhas, sob coordenação dos colegas Nelson Rosenvald, Pedro Fortes, Thais Pascoaloto e minha. É uma alegria dispor deste novo espaço para poder analisar e divulgar questões jurídicas dos países de common law e suas interfaces com o Direito brasileiro. Aproveito essa estreia para tratar de tema que me é especialmente caro: a mitigação de danos. O estudo e aplicação deste instituto no Direito brasileiro é marcado por forte influência da mitigation of damages, instituto presente em países de common law. Alguns autores brasileiros defendem, inclusive, que a mitigação de danos seria fruto da recepção da mitigation of damages no Direito brasileiro. Além disso, é bastante comum a referência, entre nós, em doutrina e jurisprudência, à mitigação de danos por meio da expressão em inglês duty to mitigate the loss. Por conta disso, nessa coluna analiso os institutos da mitigation of damages e da mitigação de danos, apresentando semelhanças e sobretudo diferenças entre eles. A análise tem por focos a noção, os pressupostos e o âmbito de aplicação dos institutos. 2. Noção Em países do sistema de common law entende-se que o instituto da mitigation of damages é composto de três regras. A primeira delas é conhecida como "regra das consequências evitáveis" (rule of avoidable consequences). A segunda prevê que o lesado pode exigir reembolso por custos razoáveis incorridos ao tentar mitigar danos, independentemente do sucesso de tal tentativa. A terceira regra, também conhecida como "regra das consequências evitadas" (rule of avoided consequences), afirma que o lesante não é responsável por perdas que o lesado conseguiu evitar ou mitigar, independentemente de as circunstâncias do caso indicarem ou não que esse tinha de fazê-lo.1 No Direito brasileiro, o instituto da mitigação de danos não é composto por tantas regras. Diferentemente, o seu conteúdo corresponde essencialmente à primeira das três componentes da mitigation of damages. Entre nós, o conteúdo da mitigação de danos aproxima-se apenas da rule of avoidable consequences - embora não haja identidade, como fica claro pelas diferenças apresentadas abaixo. No Brasil, a segunda regra do instituto do sistema anglo-americano não goza de autonomia. O lesante responde pelos custos razoáveis despendidos pelo lesado para mitigar danos, porque esse dispêndio não representa dano que a vítima culposamente deixou de evitar. E a terceira regra (rule of avoided consequences) não encontra plena aplicação no Direito brasileiro. Os casos em que o lesado evita o dano resultante de evento danoso, mesmo sem caber a ele fazê-lo, podem levar a duas soluções. Via de regra, o lesado realmente não terá direito a indenização, por não haver dano. Mas pode acontecer de ele ter sim esse direito, como no caso de ofensa à saúde pela qual o ofendido não consegue mais exercer o seu trabalho habitual, mas, mediante esforço excessivo, consegue desenvolver outra atividade remunerada. Neste caso, apesar de o dano à sua remuneração ter sido evitado ou mitigado, o lesado, por conta desse esforço excessivo, permanece tendo direito à pensão integral no valor da sua remuneração.2 3. Pressupostos de aplicação Os institutos da mitigation of damages e mitigação de danos apresentam diferenças quanto aos pressupostos de aplicação. A aplicação da mitigação de danos pressupõe a presença conjunta de, entre outros, dois elementos: evento danoso e comportamento imputável do lesado de não evitação do próprio dano.3 Em relação ao primeiro pressuposto, uma primeira diferença entre os institutos pode ser ilustrada por meio do famoso caso americano Rockingham City. v. Luten Bridge Co.: a empresa Luten Bridge Co. foi contratada pelo munícipio de Rockingham para construir uma determinada ponte. Algum tempo depois da celebração do contrato, mas antes que as obras começassem, o município notificou a empresa, declarando a sua vontade de que a ponte não fosse mais construída. Apesar disso, a empresa realizou a obra e ajuizou ação contra o município para exigir o pagamento do valor acordado. O tribunal entendeu que, depois da referida notificação do município, a empresa autora não podia proceder à construção e exigir o preço do contrato, com o seguinte argumento: "É verdade que o município não tinha o direito de resilir unilateralmente o contrato, e a notificação dada ao demandante constituiu inadimplemento da sua parte; mas depois de a autora ter tomado conhecimento do inadimplemento, era seu dever não fazer nada para aumentar os danos que dele decorrem." Aplicando a rule of avoidable consequences, o tribunal concluiu então que a empresa autora teria a sua indenização limitada às perdas e danos decorrentes do inadimplemento à data da notificação, não abrangendo os demais danos decorrentes da construção que ela podia ter evitado.4 No Direito brasileiro, no entanto, um caso como este não seria solucionado pela aplicação da mitigação de danos, exatamente por falta do pressuposto do evento danoso (inadimplemento contratual). Isso porque o nosso Código Civil autoriza que o dono da obra interrompa a construção a qualquer tempo, "desde que pague ao empreiteiro as despesas e lucros relativos aos serviços já feitos, mais indenização razoável, calculada em função do que ele teria ganho, se concluída a obra" (art. 623, CC). No Brasil, uma empresa como a Luten Bridge Co. teria apenas direito a essa indenização e não ao valor integral pela execução da obra. Por falta de inadimplemento, as regras gerais de perdas e danos (arts. 402 a 405 CC) simplesmente não teriam aplicação. O segundo pressuposto é o do comportamento imputável de não evitação do lesado. Sob influência da dogmática desenvolvida no sistema anglo-americano, a doutrina brasileira tem defendido a adoção do critério da razoabilidade.5 Esse é o critério previsto, por exemplo, pela Convenção de Viena sobre Contratos de Compra e Venda Internacionais (CISG), segundo o qual o credor tem de adotar "medidas razoáveis, de acordo com as circunstâncias, para diminuir os prejuízos resultantes do descumprimento" (art. 77). Esse critério é, porém, analiticamente pobre. Nele estão concentrados, sob uma bitola única de "razoabilidade", juízos distintos: o de violação de incumbência (análogo da ilicitude) e o de culpa (previsibilidade e evitabilidade do dano). Além disso, a própria verificação se em um determinado caso o credor tinha ou não a incumbência de agir para evitar o dano, desdobra-se em três critérios: a conduta exigível precisa ser apta, necessária e adequada para evitar o dano.6 No curto espaço dessa coluna é possível apenas ilustrar a complexidade das questões envolvidas na análise desses critérios. Por exemplo, uma medida de evitação do próprio dano é desnecessária quando o bem jurídico do credor já está suficientemente protegido pelo devedor. Nesse caso, a evitação do dano recai exclusivamente em seu campo de responsabilidade. Essa delimitação tem especial relevância prática quando o devedor assumiu contratualmente em face do credor a responsabilidade exclusiva de proteger os bens jurídicos e interesses do credor, ou quando essa responsabilidade resulta da finalidade do contrato.7 4. Âmbito de aplicação Em relação ao âmbito de aplicação, a mitigation of damages é aplicada também a casos sobre os quais a mitigação de danos não incide pelo fato de, apesar de terem sido preenchidos os seus pressupostos, a sua aplicação ser afastada pela incidência de regramento mais específico. Por exemplo, em caso de mora do credor, a aplicação da mitigação de danos é restringida pela incidência do regramento mais específico presente no art. 400 do CC. Um bom exemplo para ilustrar essa questão é um caso real que, no Direito inglês, deu azo à aplicação da rule of avoidable consequences. O autor havia sido contratado para transportar uns cavalos a uma determinada cidade e entregá-los em local a ser designado pelo réu. Na data combinada, o demandante chegou à cidade, mas o réu demorou seis horas para informar o lugar da entrega. Durante esse período, os cavalos permaneceram em pé, ao ar livre, o que elevou a temperatura corpórea dos animais e acabou levando-os à morte pouco tempo depois. O transportador ajuizou ação pedindo indenização, mas o tribunal julgou o pedido improcedente sob o argumento de que havia sido insensatez do autor em deixar os cavalos nas referidas condições.8 O fundamento da decisão foi a mitigation of damages: uma vez que o transportador poderia ter evitado a morte dos cavalos mediante comportamento tido por razoável, ele não teria direito de ser indenizado.9 No Brasil, um caso como esse levaria à mesma conclusão de irresponsabilidade do contratante pela morte do cavalo. A fundamentação, porém, seria diferente, não sendo necessário recorrer à mitigação de danos. Nesse caso, a morte do cavalo é dano decorrente de mora do credor, uma vez que o transportador havia feito tudo o que devia, mas o contratante faltou com a sua parte, impedindo aquele de cumprir sua obrigação e gerando a situação que levaria à morte dos animais. Nesse caso, a irresponsabilidade do contratante teria por base o fato de no Brasil o credor em mora não responder pelos danos a que sua mora dá causa. Não seria, portanto, necessário recorrer ao instituto de mitigação de danos para justificar a conclusão de que o credor em mora não responderia pela morte do cavalo. Um outro exemplo das diferenças de aplicação entre os institutos brasileiro e anglo-americano é o caso Parker vs. Twentieth Century-Fox Film Corporation que nos EUA levantou o debate sobre a incidência da mitigation of damages. No caso, uma atriz famosa foi contratada por um grande estúdio para atuar no papel principal em uma produção musical que seria filmada na Califórnia. O contrato previa ainda que a atriz teria poder de aprovação em relação ao diretor e ao roteirista do filme. Meses após o contrato ter sido assinado, o estúdio comunicou à atriz que o filme não seria mais produzido e ofereceu a ela o papel de atriz principal em outro filme, um drama do "tipo faroeste" que seria filmado na Austrália. Além disso, nesse novo filme, o diretor e roteirista não teriam de ser aprovados pela atriz. Insatisfeita, ela rejeitou essa proposta e ajuizou uma ação em face do estúdio, por meio da qual objetivava obter o valor acordado para atuar no filme que não seria mais produzido. O estúdio alegou em defesa que a autora não fazia jus a nenhuma retribuição, porque ela teria deliberadamente deixado de mitigar o próprio prejuízo ao ter desarrazoadamente recusado a oferta para atuar no papel principal do filme de faroeste.10 Contudo, no Direito brasileiro, a mitigação de danos não seria aplicável a um caso como esse, em virtude das regras específicas da extinção do contrato de prestação de serviço. À luz do nosso Código Civil, em face da recusa da atriz em renegociar os termos do contrato, o estúdio não teria outra saída que não a de despedi-la sem justa causa. E como não havia ainda nenhuma retribuição vencida, uma vez que a execução do contrato ainda não havia se iniciado, de acordo com o art. 603 do CC, a atriz poderia exigir o valor correspondente à metade da retribuição prevista no contrato a título de perdas e danos. Esse é um caso de "prefixação" legal do valor das perdas e danos.11 Ou seja, esta regra corresponde a uma decisão do legislador, fruto da ponderação dos interesses das partes envolvidas: de um lado, o interesse do tomador do serviço em não obter uma prestação que ele não mais quer que seja cumprida e em não pagar o valor integral do contrato, uma vez que não obterá, ao menos não integralmente, a prestação do serviço; de outro lado, o interesse do prestador de serviço de ser indenizado, uma vez que contava que iria prestar o serviço e receber o valor acordado. Ao estabelecer que a indenização é no valor de metade da retribuição não vencida, o legislador fez a acomodação que entendeu mais justa e que contemplaria da melhor maneira os interesses envolvidos. Já se sabia que, mesmo sem prestar o serviço, o prestador de serviço receberia indenização. Mas é exatamente por que ele não presta o serviço que ele recebe apenas metade. Não se deve, portanto, querer afastar a "ponderação" do legislador para reduzir ainda mais o valor da indenização do prestador de serviço, sob o argumento de que ele poderia ter celebrado contrato com terceiro, ou mesmo aceitado proposta diversa do contratante, e assim evitado o próprio dano. 5. Conclusão Os institutos da mitigation of damages e mitigação de danos aproximam-se pelo fato de ambos preverem a irressarcibilidade do dano evitável pelo lesado. Contudo, para além dessa proximidade mais geral, as diferenças são muitas. Em primeiro lugar, a mitigação de danos assemelha-se apenas à primeira das três regras componentes da mitigation of damages, que é a rule of avoidable consequences. Além disso, diversos casos que são solucionados nos países de common law por meio da aplicação da mitigation of damages não o seriam no Brasil pela mitigação de danos. As diferenças, detalhadas acima, são em geral de duas ordens: relativas aos pressupostos de incidência e ao âmbito de aplicação. __________ 1- Para essa "taxonomia tríplice", ver, entre outros: Adar, Comparative negligence and mitigation of damages, p. 792; Michael Bridge. Mitigation of damages in contract and the meaning of avoidable loss. Law Quarterly Review. vol. 105. London: Stevens & Sons Limited, 1989, p. 398; Harvey McGregor. Mcgregor on Damages. 19th ed. London: Sweet & Maxwell, 2014, p. 250; H. G. Beale. Chitty on Contracts. 32nd ed. London: Sweet & Maxwell, 2015, p. 1849. Dan Dobbs adota essas três regras, mas acrescenta uma quarta regra de consequências evitáveis (Dan B. Dobbs. Law of Remedies. 2nd ed. Saint Paul: West Publishing Co., 1993, p. 271). 2- Para mais detalhes, ver: Daniel Dias. Mitigação de danos na responsabilidade civil. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020, p. 321 ss. 3- Para mais detalhes, ver: Dias, op. cit., p. 263 ss. 4- Rockingham City. v. Luten Bridge Co., 35 F.2d 301, 302 (4th Cir. 1929). 5- Entre outros, ver: Christian Lopes. Mitigação dos prejuízos no direito contratual. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 202 ss. 6- Em termos mais amplos, ver: Dirk Looschelders, Die Mitverantwortlichkeit des Geschädigten im Privatrecht. Tübingen: Mohr Siebeck, 1999, p. 311. 7- Os seguintes casos julgados na Alemanha são bons exemplos de aplicação desse critério da necessidade: um cliente contratou um advogado para ajuizar ação em seu favor, mas o advogado perdeu o prazo e a pretensão do cliente prescreveu. O cliente processou então o advogado para obter indenização. Em juízo, o advogado alegou que o seu cliente havia concorrido culposamente para o próprio dano por não ter impedido a consumação da prescrição da sua própria pretensão, uma vez que ele era legalmente habilitado para tanto. O BGH (Bundesgerichtshof, correspondente ao nosso Superior Tribunal de Justiça), todavia, não acatou essa alegação, sob o argumento de que o exercício oportuno da pretensão, segundo o propósito do contrato de prestação de serviços advocatícios, recai no exclusivo campo de responsabilidade do advogado. Em outro caso, o BGH decidiu que um hospital que assumiu os cuidados de um paciente psiquicamente doente e com risco de cometer suicídio não poderia se valer da alegação de culpa concorrente do lesado, se o paciente se ferisse em uma tentativa de suicídio. Isso porque a finalidade desse contrato de tratamento é exatamente a de retirar do paciente a preocupação com a não materialização do risco de suicídio. Estes casos são citados por Looschelders, Die Mitverantwortlichkeit, p. 378. Vale esclarecer que, na Alemanha, a situação de não evitação culposa, por parte do lesado, do próprio dano decorrente de evento danoso imputável a terceiro corresponde a caso de culpa concorrente (§ 254, BGB). 8- Vertue vs. Bird, 1677, p. 200. 9- Edward Farnsworth, Contracts, 2004, § 12.12, p. 778-779. 10- Parker v. Twentieth Century-Fox Film Corp., 3 Cal.3d 176 (1970). 11- Nesse sentido, ver: Maurício Sheinmam, in Comentários ao Código Civil brasileiro, vol. VI, 2009, p. 359.
Texto de autoria de Thaís G. Pascoaloto Venturi Os sistemas de justiça dos países de common law e de civil law nunca estiveram tão interrelacionados como na atualidade, em decorrência do processo de globalização que também afeta o Direito. A aparente incompatibilidade entre os referidos sistemas, tradicionalmente fundamentada em supostas e inconciliáveis visões de mundo, cede espaço, senão à miscigenação, à uma gradativa e possível aproximação dos dois mundos. Muito embora subsistam profundas diferenças entre os referidos sistemas, oriundas de diversidades estruturais de ordem sócio-cultural, política, ideológica e econômica dos Estados que as conceberam e desenvolveram, a reciprocidade das influências entre os sistemas de common law e de civil law cresce gradativamente, na exata medida das constantes e nem sempre tranquilas revisões a respeito dos limites a serem observados pelo Estado na regulação das relações sociais e, por consequência, dos papeis a serem desempenhados pelo Parlamento e pelo Poder Judiciário no processo de criação e afirmação do Direito. Como resultado dessas tensões, por um lado, percebe-se uma inevitável tendência de jurisprudencialização dos países regidos pelas codificações de tradição romano-germânica. A partir da (re)visão segundo a qual os magistrados não devem ser apenas la bouche de la loi, resumindo-se à revelação da vontade do legislador, a atividade jurisdicional dos Estados constitucionalizados passa ser compreendida não apenas como de natureza declaratória do Direito, mas, também, verdadeiramente constitutiva ou integrativa das normas jurídicas. Por outro lado, o sistema de common law, forjado fundamentalmente pelos precedentes jurisdicionais vinculantes para casos similares futuros, passou a assimilar a necessidade de se pautar cada vez mais em regras oriundas do Parlamento, na medida do florescimento e da profusão das grandes Democracias do século XX, e no intuito de garantir a segurança jurídica e a estabilidade das relações sociais. De toda forma, como já antecipou o amigo Nelson Rosenvald em sua coluna inaugural desse formidável espaço de debates aberto pelo Migalhas a respeito do Direito Privado no Common Law, as diversidades internas existentes nos sistemas de justiça dos países de tradição anglo-saxônica e romano-germânica sequer autorizam a que se aluda a modelos uniformes de common law e de civil law. Tanto do ponto de vista substancial como processual, é possível destacar inúmeras diferenças entre os sistemas de justiça inglês e norte-americano, ou entre os sistemas de justiça brasileiro, italiano, alemão e francês. Por isso, talvez a melhor (senão única) forma de aproximação entre o common law e o civil law na atualidade envolva uma análise a respeito da tradição e da experiência dos diversos países neles inspirados, que lhes permitiu a construção de modelos próprios cuja lógica, razoabilidade e funcionalidade devem despertar os atentos olhares da academia no intuito do constante redimensionamento dos sistemas de justiça. É precisamente nesse sentido que pensamos em abordar nessa coluna a temática proposta: a tradição e a experiência dos países de common law na edificação dos fundamentais institutos do Direito Privado e suas possíveis implicações ou aplicações nos países de civil law - em especial, no sistema de justiça brasileiro. Trata-se de desafio que em muito transcende a repetição de estereótipos que parecem, a um primeiro e precipitado olhar, inviabilizar ou desaconselhar possíveis aproximações entre referidos sistemas no campo das relações privadas. O fenômeno da globalização e a realidade sócio-política da contemporaneidade nos revela, a cada dia, não ser possível contrapor diametralmente os valores historicamente a eles atribuídos, como se inconciliáveis fossem. Bom exemplo dessa estereotipia pode ser simbolizado pela relutância dos países de civil law em fazer uso de ferramentas hermenêuticas derivadas do common law, como a Análise Econômica do Direito, ainda reputada por muitos como avessa aos primados da justiça e da adequada tutela dos direitos, prometidas pelos Estados Sociais.1 Como nas próximas colunas procuraremos demonstrar, não se trata de colocar em questão a correção ou a propriedade dos postulados da Análise Econômica do Direito formulados pela neoclássica "Escola de Chicago", fundada nas doutrinas de George Stigler,2 Milton Friedman3 e Richard Posner4, dentre outros. Trata-se de investigar, na verdade, sua possível prestabilidade para, afastados os exageros utilitaristas5, também informar critérios para a (re)estruturação dos sistemas jurídicos dos países de tradição civilista. Nesse sentido, há inúmeras pautas ainda a serem exploradas pelo civil law a partir da análise econômica do Direito. Dentre elas, como destaca o professor lusitano Fernando Borges Araújo, estão: a teria econômica da propriedade, a teoria econômica do contrato, a teoria econômica da responsabilidade civil, a teoria econômica da família, a teoria econômica do trabalho, a teoria econômica da empresa e a teoria econômica dos mercados financeiros.6 O legislador brasileiro vem demonstrando não apenas simpatia, mas uma surpreendente sintonia com o movimento da Law & Economics. Ao menos é o que deflui da ainda recente alteração da Lei de Introdução das Normas do Direito Brasileiro (Lei nº 13.665/2018), bem como da edição da Lei de Liberdade Econômica (Lei nº 13.874/2019), cujas disposições traduzem a internalização de alguns dos mais básicos referenciais teóricos preconizados por referido movimento, tais como os da racionalidade, da economicidade e da eficiência. Ainda no campo legislativo, a institucionalização dos mecanismos de solução extrajudicial dos conflitos por via das alternative dispute resolution abriu caminho para uma tardia, mas necessária consagração de um novo modelo de justiça multiportas no país. A conciliação, a mediação, a negociação e a arbitragem, ferramentas há muito operadas nos países de common law (especialmente nos Estados Unidos da América) e que nasceram e se desenvolveram sob o signo do direito privado, passaram a constituir temas fundamentais para o sistema de justiça nacional, a partir do novo código de processo civil (Lei nº 13.105/2015), da Lei de Mediação (Lei nº 13.140/2015) e da reforma da Lei de Arbitragem (Lei nº 13.129/2015). O movimento da justiça multiportas objetiva não apenas um pragmático desafogamento do sistema jurisdicional - que pode ser considerado muito mais seu efeito do que sua causa propriamente dita. Muito mais do que isso, a desjudicialização traz consigo uma clara concepção de empoderamento da sociedade civil e de gradativa diminuição da intervenção do Estado para a resolução dos conflitos sociais. Ainda que o incentivo à utilização das ADR's constitua política controversa mesmo nos Estados Unidos da América7, a profusão dos mecanismos privados de resolução de disputas já constitui uma realidade em diversos países de civil law. A edição da Diretiva nº 52/2008, pelo Parlamento Europeu, implementou a mediação transfronteiriça em matéria civil e comercial, implicando, subsequentemente, processos legislativos de internalização de mecanismos de solução consensual de disputas pelos diversos países membros da União Europeia. Muito embora no Brasil a cultura dos acordos ainda seja notavelmente tímida (segundo os últimos dados fornecidos pelo relatório Justiça em Números, publicado pelo Conselho Nacional de Justiça, a média geral dos acordos realizados pelo Poder Judiciário no ano de 2018 alcançou modestos 11,5% de todos os feitos pendentes)8, tudo indica que, a médio prazo, a predileção pelas soluções consensuais dos conflitos implicará profundas alterações no sistema de justiça nacional, em especial, na própria forma de atuação dos seus operadores (Ministério Público, Defensoria Pública, Advocacia Pública e Privada, Magistratura). Por outro lado, a análise comparada entre os sistemas de justiça que pretendemos levar adiante nesse espaço do Migalhas é, de certa forma, incentivada pelo tratamento que a doutrina e a jurisprudência nacional já vêm dando a temas tradicionais do common law - por vezes, sequer ainda respaldados por lei expressa em nosso ordenamento jurídico. É o caso, por exemplo, dos restitutionary e dos punitive ou exemplary damages, que já vêm sendo debatidos no Brasil, em alguma medida, por via da funcionalização restitutiva (disgorgement) e punitivo-pedagógica da responsabilidade civil, respectivamente. De se ressaltar, ainda, os incessantes e difíceis debates a respeito das limitações às garantias da livre iniciativa e da autonomia privada, que permitiram às grandes Democracias Constitucionais do século XX a imposição de processos de funcionalização social de clássicos institutos do direito privado, tais como a posse, a propriedade, os contratos e a empresa. A análise histórica a respeito da edificação de referidas garantias como alicerces inatacáveis e inatingíveis do sistema do common law não se presta apenas a fornecer lenha para as fogueiras de cansativos e improdutivos debates ideológicos aos quais estamos todos expostos, a todo tempo e em todo lugar. Muito além e acima disso, trata-se de investigação que autoriza sérias e profundas reflexões a respeito do presente e do futuro tratamento que os sistemas de justiça podem ou devem dispensar ao Direito das obrigações, aos contratos, a responsabilidade civil, às relações de trabalho, às relações consumeristas, ao Direito das famílias, ao planejamento do fim da vida e das sucessões, dentre outros temas tão caros à tradição do Direito privado. _____________ 1 Explicando a inaplicabilidade da análise econômica do direito preconizada por Richard Posner no Brasil, em função de o modelo constitucional voltar-se a outros escopos que não simplesmente a busca da eficiência alocativa, FORGIONI, Paula A. Análise Econômica do Direito: paranoia ou mistificação. Revista de Direito Mercantil Industrial, Econômico e Financeiro, v. 139, p. 242-256, 2005.2 STIGLER, George J. The Theory of Price. 3ª ed., New York: Macmillan, 1966.3 FIREDMAN, MILTON. Capitalism and freedom. Chicago: University of Chicago Press, 1982.4 POSNER, Richard A. The Economics of Justice. Cambridge: Harvard University Press, 1983. 5 "El padre del utilitarismo, sin perjuicio de la existência de precursores próximos - alguns moralistas britânicos - y remotos - los epicúreos -, fue Bentham (1748- 1832). Fue él quien hizo famoso principio 'dela mayor felicidad', principio 'de utilidad'. (...) El utilitarismo es supremamente paragmático acerca del valor de todas las cosas particulares que la gente hace, busca y evita - belleza, reconocimiento, comida, amistad, ayuda mutua, decir la verdad, mentir, revancha, castigo, muerte-porque todas estas cosas son buenas o malas solo y em la medida en que ellas conduzcan o no al único bien soberano: placer o felicidad. La única dimensión moralmente significativa de las acciones es su utilidad". ITURRASPE, Jorge Mosset. Cómo contratar en una economía de mercado. Buenos Aires: Rubinzal-Culzoni, 2005, p. 68. 6 Araújo, Fernando. Análise económica do direito: programa e guia de estudo. Coimbra: Edições Almedina, 2008, p. 50-58. 7 Sobre os riscos ao efetivo acesso à justiça, possivelmente acarretados pela massificação do uso das alternative dispute resolution nos Estados Unidos da América, obrigatória a leitura do icônico artigo de Owen Fiss: Against Settlement. 93 Yale Law Journal, 1984.8 Relatório Justiça em Números publicado em 2019, referentemente a dados coletados em 2018, disponível no site clique aqui.9 A respeito da viabilidade da aplicação da teoria do disgorgement no Brasil, vide a excelente obra de Nelson Rosenvald, A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo. Salvador: Editora Juspodium, 2019. A função punitivo-pedagógica da responsabilidade civil será objeto de futura análise nessa coluna.
segunda-feira, 10 de agosto de 2020

O Direito Privado na Common Law

Texto de autoria de Nelson Rosenvald The liberty, the unalienable, indefeasible rights of men, the honor and dignity of human nature, the grandeur and glory of the public, and the universal happiness of individuals, were never so skillfully and successfully consulted as in that most excellent monument of human art, the common law of England (John Adams). Esta é a primeira publicação de nossa coluna semanal: O Direito Privado na Common Law. A coordenação compartilhada com os amigos Daniel Dias, Pedro Fortes e Thaís Pascoaloto Venturi não é aleatória. Em graus variados, compartilhamos vivências de doutorado, pós-doutoramento ou como professores visitantes em instituições de ponta na Inglaterra e Estados Unidos. Assim, internalizamos um modo plural de compreensão do Direito Privado que se reflete naquilo que escrevemos e ensinamos aos nossos alunos, e que aqui se concretizará pela publicação de um texto semanal por cada coordenador. Afinal, várias vozes permitem um debate refinado, que jamais seria possível se esta coluna se reduzisse a um monólogo. Agradecemos ao Migalhas pela concessão deste espaço privilegiado de diálogo com o leitor para que possamos construir pontes com a doutrina e cortes estadunidenses, britânicas e das demais jurisdições da common law. Pretendemos explorar convergências e divergências tanto no âmbito do direito civil - contratos, responsabilidade civil, propriedade, família - como no direito do consumidor, societário, empresarial e, igualmente, naqueles modelos há muito trilhados na tradição anglo-americana (como o Law and Economics), porém timidamente discutidos no Brasil. Praticamente 1/3 de todas as pessoas vivem em locais aonde a lei é fortemente marcada pela "Common Law". Esse é o legado da Grã-Bretanha do período em que foi a maior potência colonial do mundo. A célebre expressão "Common Law" recolhe três significados: a) um direito comum para todos os ingleses, que no medievo substituiu o sistema de esparsas normas locais; b) um sistema fundamentalmente baseado em decisões judiciais ao invés da lei e dos costumes; c) o conjunto de países que seguem não apenas a lei inglesa substantiva e processual, mas também o seu sistema judicial, a estrutura das profissões jurídicas e o estilo de pensamento jurídico. Destaca-se o fato de que as decisões dos outros países eram em última instância sujeitas à confirmação em Londres, o que acabou gerando uma uniformidade de longo alcance do direito, através da "commonwealth". Em um mundo globalizado ainda cabe a dicotomia "common law" x "civil law"? Talvez, o mais apropriado para os tempos atuais é substituir a clássica dualidade pelo sutil contraste entre o direito Inglês e as várias jurisdições da Europa continental, por 2 razões: a) a expressão genérica "civil law" se refere a um número de diferentes tradições jurídicas, situadas nas famílias "romanística", "germânica" e "nórdica". Em alguns aspectos, as divergências entre as três famílias são mais significativas do que a própria polarização "civil law" x "common law"; b) as próprias jurisdições da "common law" são bastante heterogêneas. Notadamente, há uma profunda distinção estrutural entre o direito inglês e o direito norte-americano. Essa diferença é tão pronunciada, que se por um lado faz sentido cogitar de uma tradição anglo-americana no sentido histórico, qualquer insinuação sobre um direito anglo-americano é equivocada. Ilustrativamente, em sede de responsabilidade civil, nos EUA a maior parte das reparações é fruto de decisões do júri, sendo os "punitive damages" comumente aplicados. Já na Inglaterra, as indenizações são determinadas por juízes e tribunais, sendo os "exemplary damages" (nomenclatura inglesa para os "punitive damages") aplicados em hipóteses restritas, definidas em precedentes. Especificamente com relação ao direito inglês, alguns fatores determinam até hoje o seu peculiar estilo legal. Primeiramente, instituições especialmente características como o "trust", deveres fiduciários, e a doutrina da "consideration". O princípio da liberdade contratual é venerado, havendo um forte ceticismo contra o viés funcionalista do Estado social ou mesmo da "law and economics". O coração do sistema jurídico reside na "legal certainty", que deve ser promovida mesmo que em detrimento da justiça substancial em um caso individual. A ideia da codificação nunca teve muitos adeptos, pelo ceticismo diante do método de submeter inteiras áreas do direito ao império de regras abstratas. Uma exceção foi Jeremy Bentham, que via os códigos como perfeito remédio para combater a tradição inglesa que ele reputava como arcaica, assistemática e inacessível ao cidadão. Evidentemente, destaca-se o direito inglês como sendo um "judge-made law", pois por séculos a função de criação da lei era deixada aos tribunais. A ideia do direito como um sistema harmônico nunca teve prestígio na Inglaterra, pois lá o raciocínio jurídico sempre se baseou em um procedimento indutivo ao invés de uma dedução com base em amplos princípios. Esta forma de pensar principia nos bancos da faculdade, com apelo ao método socrático: as aulas são na maior parte um locus de discussão, e não de monólogo expositivo, com análise crítica de casos e contraste com casos análogos. Quando a prática legal e o ensino do direito são puramente empíricos, o raciocínio jurídico se move do "particular para o particular" e nunca a partir do caso particular para princípios gerais de onde a decisão daquele caso será solucionada. Um bom exemplo é a ausência de um princípio geral da boa-fé, como guia para a solução de casos individuais. Diferentemente, no direito inglês esse papel é exercido por um conjunto de doutrinas legais específicas, funcionalmente equivalentes a várias características da versão continental do princípio ("estoppel", "duty to mitigate"). Max Weber pontuou a enorme influência exercida pelos mais prestigiados advogados sobre o estilo legal de toda uma sociedade. Na cena inglesa, os mais notáveis causídicos nunca foram professores ou funcionários públicos, mas exclusivamente praticantes da advocacia, que não apenas desempenham atividades diárias nos tribunais, como também exercem o monopólio da educação jurídica dos jovens profissionais. Tradicionalmente, os advogados deixam de lado a teorização e se dedicam à produção de listas de contratos e ações que sejam uteis para atender as necessidades particulares dos litigantes. Os livros sobre Direito Contratual são substancialmente compostos de excertos de casos já decididos, esmiuçados os seus fatos principais, argumentos das partes e a lógica subjacente à decisão. Em reforço, a perspectiva remedial de formatação do direito material e o apelo ao "private enforcement" demonstram a fé inabalável no protagonismo do indivíduo para materializar o conceito de "efetividade" e solucionar suas questões jurídicas. Com base na experiência angariada ao longo dos últimos séculos, o que impressiona o observador estrangeiro não é apenas a cuidadosa análise dos fatos e dos casos individuais, mas a clara deferência jurisprudencial às necessidades do comércio. Os tribunais da Inglaterra e Estados Unidos estão prontos para compreender as demandas dos contratos internacionais e o modus operandi dos homens de negócio. A confiança em princípios e cláusulas gerais pode negligenciar o fato de ser o contrato a lei adotada pelas partes e, portanto, direitos devam ser analisados tendo como ponto de partida as cláusulas nele consubstanciadas, seja conforme a expressa gestão de riscos antecipada pelos contratantes ou, em sua falta, pelo preenchimento das lacunas conforme os standards desenvolvidos por homens com reputação comercial para contratos da mesma natureza, na extensão necessária para que se descubra a alocação de riscos típica de contratos semelhantes. Fato particularmente relevante neste período de pandemia é o de que, partindo da premissa de que "contract is for the parties, not for the courts", a tradição da common law não comunga com juízes que intervêm no contrato para adequá-lo à alteração das circunstâncias que rompem a sua base objetiva, ou magistrados que impõem às partes uma fase de renegociação contratual. Todos os sistemas jurídicos modernos enfatizam que de certa forma um contrato é um "agrément", e esta é a regra nas jurisdições da common law. A peculiaridade é a de que cada contratante é uma espécie de garante de sua promessa e será responsabilizado por uma indenização por seu eventual descumprimento - "breach of contract". Para sistemas nos quais inexiste um principio geral de agir conforme a boa fé, a renegociação ou a revisão são aspectos comerciais que concernem exclusivamente aos contratantes. Não por outra razão, a London Court of International Arbitration (LCIA), é amplamente reconhecida como o principal centro de arbitragem internacional do mundo. Atualmente há uma clara convergência entre a "common law" e a "civil law". Os aprimoramentos jurídicos do último quartel do século XX alteraram tanto o direito inglês como o direito europeu continental, de forma a criar uma grande convergência. O nascimento de uma doutrina jurídica, tornou o direito inglês mais acadêmico, em um ambiente em que o legislador intervém para trazer maior racionalidade as decisões dos juízes (ilustrativamente, no direito ambiental há uma proliferação de regras legislativas). Por outro lado, a influência doutrinária na Europa continental é declinante e a influência do judiciário cresce enormemente, havendo maior espaço para o método indutivo e um saudável pragmatismo para o enfrentamento de problemas reais. Assim, não é mais possível relacionar a civil law ao direito codificado e a common law com a jurisprudência: eles gradualmente se aproximam, mesmo em suas técnicas e métodos legais. A realidade das fontes legais é muito mais complexa em ambos os lados. Basta mencionar o ingresso da teoria dos precedentes Judiciais no ordenamento jurídico brasileiro como método obrigatório para fundamentação da decisão e garantia de estabilidade, coerência e integridade do sistema normativo. É claro que subsistem diferenças significativas com a logicidade da common law, mas o antigo ideal das diferenças irreconciliáveis em termos de mentalidades jurídicas se torna cada vez mais insustentável. A coluna já é uma realidade. Espero que semanalmente possamos apresentar temas instigantes e atuais, propiciando uma rica interlocução do direito privado brasileiro com o universo da common law.