Segundo a conhecida state action doctrine, a estatuição constitucional de direitos fundamentais objetiva a proteção dos cidadãos contra ações ou omissões do Poder Público (state actions), não se aplicando, a princípio, às relações entre particulares1.
Trata-se de premissa absolutamente indispensável para se compreender com maior nitidez o sistema de justiça dos Estados Unidos da América, na medida em que parametriza as decisões de todas as Cortes nas disputas envolvendo lesões ou ameaças de lesões a direitos fundamentais no âmbito das relações privadas.
Por força da doutrina da state action, a não ser que se trate de delegação do exercício a alguma entidade privada (entanglement exception), ou que a algum dos partícipes da relação se possa atribuir o exercício de função tipicamente pública (public function exception), a Suprema Corte norte-americana historicamente não reconhece a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais sobre as relações privadas2.
Isto se dá a partir da interpretação de uma Constituição que simplesmente não se preocupou em proteger os direitos fundamentais contra indevidas interferências de corporações privadas ou de indivíduos, por intuir que o common law já o fazia suficientemente, com base no direito natural de todo indivíduo à vida, à liberdade e à felicidade - valores já expressamente contidos na Declaração de Independência3.
Em que pese referida doutrina ser considerada como verdadeiro sustentáculo dos valores liberais intrinsecamente ligados à história e à cultura dos Estados Unidos da América, não deixa de implicar, todavia, virtual anulação ou apequenamento de direitos e garantias constitucionais fundamentais relacionadas à igualdade, à liberdade de expressão à não-discriminação e ao devido processo.
Exemplificativamente, já em 1879, a Suprema Corte apressou-se em afirmar que a cláusula de igual proteção (equal protection), proveniente da ratificação da 14ª Emenda à Constituição dos EUA4, não teria aplicação a qualquer ato praticado por indivíduos ou entidades privadas, mas exclusivamente aos state actions5. Tal interpretação, como parece evidente, acabou por disseminar uma inexplicável tolerância com práticas discriminatórias oriundas do setor privado e baseadas em critérios de raça, sexo e gênero, dentre outros6.
Ainda interpretando a garantia da equal protection, em 1883, ao julgar Civil Rights Cases, a Suprema Corte definiu que a vedação à discriminação por características individuais aplicava-se exclusivamente ao Estado, reafirmando sua inaplicabilidade aos particulares7.
Sintetizando a state action doctrine, a U. S. Supreme Court por diversas vezes reiterou que a Constituição americana não oferece qualquer escudo protetor contra condutas privadas - ainda que discriminatórias e lesivas. Assim, a menos que haja leis específicas proibindo a discriminação por entidades privadas, ou que se trate de ação governamental, as Cortes norte-americanas não têm admitido o processamento de demandas fundadas em discriminações de toda sorte (sexo, idade, religião, raça, gênero) provenientes do setor privado, tal como empregadores, restaurantes e prestadores de serviços em geral8. Hospitais privados têm sido autorizados a negarem a realização de abortos ou esterilizações constitucionalmente admitidas. Empregadores são autorizados a demitirem funcionários por manifestações ou atividades políticas.
Em síntese, segundo CHEMERINSKY, as Cortes americanas têm tolerado, pela adoção dessa doutrina, a violação de virtualmente todos os valores constitucionais9.
Não é difícil perceber as razões pelas quais a state action sempre foi e ainda é tão essencial à preservação dos valores liberais no sistema de justiça norte-americano10. Contudo, parecem cada vez menos precisas as balizas definidoras dessa possível incidência, a começar pela dificuldade - já reconhecida pela Suprema Corte - em se estabelecer um critério consistente para determinar quando a conduta de um particular pode ser considerada uma state action11.
Para além disso, a ênfase na apuração dos destinatários das regras protetivas de direitos fundamentais (exclusivamente o Estado, ou também os particulares), sempre foi severamente criticada por expressiva parcela dos juristas norte-americanos, que frequentemente clamam pela revisão da state action doctrine, a partir da indagação a respeito dos motivos que levam a Suprema Corte a tolerar graves violações dos mais básicos valores como os da liberdade de expressão, intimidade e igualdade, apenas porque partem de uma entidade privada e não de uma entidade governamental12.
Assim, independentemente da origem da violação dos direitos fundamentais, a doutrina da state action não poderia obscurecer a necessidade e a admissibilidade de um controle de constitucionalidade incidente sobre as próprias relações privadas, no intuito de se prestigiar, antes de tudo, os valores humanistas e democráticos contidos na Constituição13.
É o que preconiza SUSTEIN, para quem as discussões a respeito da state action doctrine e da eficácia horizontal das normas constitucionais nas relações privadas estariam sendo distorcidas. Em sua visão, em qualquer disputa envolvendo a alegação de violação de direitos fundamentais como liberdade, igualdade e propriedade, sempre haveria uma state action, pelo simples motivo de que referidos direitos não subsistem sem a proteção do Estado. Dessa forma, a real questão a ser apreciada em tais disputas não seria a respeito da preliminar averiguação da presença ou ausência de ato de governo, mas sim, uma questão de mérito, relativa à própria constitucionalidade do ato praticado14.
Seja como for, o condicionamento requerido pela Suprema Corte norte-americana (state action requirement) para a incidência da proteção constitucional dos direitos fundamentais, certamente pode ser considerada absurda por um jurista de civil law, sobretudo em países nos quais se reconhece a incidência tanto vertical (relações entre o Poder Público e os particulares) como também horizontal (relações entre particulares) dos direitos fundamentais15.
Como parece evidente, tratam-se de orientações políticas que acabam acarretando profundos impactos nos sistemas de justiça e, em especial, na regulação das relações privadas. Por esse motivo, a aceitação da existência de um pressuposto compromisso do setor privado com a efetivação dos direitos fundamentais passou a conduzir o processo de constitucionalização do Direito privado em países como Alemanha, Itália, Espanha, Portugal e Brasil.
Nesse sentido, o texto constitucional brasileiro de 1988, para além de estatuir a aplicabilidade imediata das normas definidoras dos direitos e das garantias fundamentais (§2º, do art. 5º da CF), jamais afirma que tais normas seriam exclusivamente destinadas ao Poder Público16.
Ademais, referida eficácia horizontal, de incidência direta e imediata, derivaria da necessidade de efetiva proteção de valores basilares do Estado Social, atinentes ao mínimo existencial e à dignidade da pessoa humana, cada vez mais ameaçados e frequentemente lesados não apenas por ações ou omissões do Poder Público, mas da própria sociedade de massa17. A coordenação das eficácias vertical e horizontal, assim, presidiria a incidência da teoria dos direitos fundamentais sobre as relações privadas18.
A jurisprudência dos tribunais brasileiros vem se consolidando, gradativamente, no sentido da afirmação de tal coordenação, ao preconizar a existência de deveres de proteção dos direitos e garantias fundamentais - impostos tanto ao Estado como aos particulares -, que devem tomar em conta referidos deveres nas relações privadas.
Em julgamento paradigmático sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal decidiu que os direitos e as garantias constitucionais fundamentais - tal como as derivadas da cláusula do due process of law - são vinculantes não apenas ao Estado (no âmbito das relações públicas), mas também aos particulares (no âmbito das relações privadas)19. No caso examinado, discutia-se a exclusão de sócio de entidade privada, sem a oportunização do exercício da ampla defesa e do contraditório, o que representou, para o STF, violação do devido processo legal a ser observado nas relações entre os particulares.
Posteriormente, ao analisar a razoabilidade de pedido de direito de resposta como forma de desagravo contra publicação abusiva veiculada pela imprensa, o STF reiterou a tese da eficácia direta e imediata dos direitos fundamentais sobre as relações privadas ao afirmar que "a oponibilidade do direito de resposta a particulares sugere reflexão em torno da inteira submissão das relações privadas aos direitos fundamentais, o que permite estender, com força vinculante, ao plano das relações de direito privado, a cláusula de proteção das liberdades e garantias constitucionais, pondo em destaque o tema da eficácia horizontal dos direitos básicos e essenciais assegurados pela Constituição da República"20.
A adoção dessa orientação - também responsável pela consagração da constitucionalização do direito privado -, implica relevantes consequências não apenas para a sua interpretação e aplicação por parte dos tribunais. Ela afeta a própria atividade parlamentar do Estado brasileiro, na medida em que a orienta no sentido de que os valores relativos à liberdade de contratação, à livre iniciativa e ao direito de propriedade, passem a ser pautados, sempre que necessário, pelo critério da funcionalização do Direito.
A partir dessa despretensiosa análise comparada a respeito da incidência dos direitos fundamentais nas relações privadas no common law e no civil law, parece claro tratar-se de tema em constante e necessária revisão, a partir da dinamicidade da vida social, econômica e política que influencia incessantemente o funcionamento dos sistemas de justiça21.
De fato, a incidência (horizontal) das normas constitucionais garantidoras dos direitos fundamentais sobre as relações privadas encerra intrigantes questões que, ao fim e ao cabo, guardam respeito à preservação da autonomia e da liberdade privada, de um lado, e da efetiva proteção dos direitos essenciais, de outro.
Por um lado, a relativização da dicotomia público versus privado, decorrente das dificuldades conceituais históricas do que pudesse vir a ser designado como interesse público ou interesse privado, torna extremamente delicada a tarefa de se apontar interesses particulares absolutamente desatrelados do coletivo ou do social22. Por outro lado, os valores liberais constituem marcos civilizatórios que merecem ser continuamente garantidos para a afirmação da liberdade contra todo o tipo de opressão do Estado, bem como para a prosperidade da iniciativa privada - sem a qual se inviabilizam quaisquer políticas públicas de interesse social.
Em síntese, o grande desafio suscitado pela aparente contraposição entre a doutrina da state action norte-americana e a doutrina da eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas é a delimitação de um possível ponto de equilíbrio que assegure, a um só tempo, a preservação da liberdade e da autonomia privada e a efetiva proteção dos direitos fundamentais individuais e sociais. Valores esses, aliás, todos expressamente garantidos pela Constituição Federal de 1988.
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1 Conforme CHEMERINSKY, Erwin. Rethinking state action. Northwestern University Law Review, vol. 80, n. 03, 1985, p. 507, a doutrina implica o reconhecimento de que "the behaviour of private citizens and corporations in not controlled by the Constitution".
2 Sobre a evolução da Action State Doctrine, SUMRALL Allen C. Epiphenomenal or Constructive?: The State Action Doctrine(s) and the Discursive Properties of Institutions. Texas Law Review, Volume 98, Issue 06, 2019-2020, p. 1139-1164.
3 CHEMERINSKY, Erwin, op. cit., p. 511.
4 "Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos e sujeitas a sua jurisdição são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado onde tiver residência. Nenhum Estado poderá fazer ou executar leis restringindo os privilégios ou as imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos, nem poderá privar qualquer pessoa de sua vida, liberdade ou bens sem o devido processo legal, ou negar a qualquer pessoa sob sua jurisdição igual proteção das leis".
5 Virginia v Rives, 100 U.S. 313, 318 (1879).
6 SAIDEL-GOLEY, Isaac & SINGER, Joseph William. Things Invisible to See: State Action & Private Property, 5 Tex. A&M L. Rev. 439, 2018.
7 109 U.S 3, 11 (1883). "Individual invasion of individual rights is not the subject-matter of the amendment".
8 CHEMERINSKY, Erwin. Op. cit., p. 509.
9 Ibid., p. 510.
10 SARMENTO, Daniel. A vinculação dos particulares aos direitos fundamentais no direito comparado e no Brasil. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Luís Roberto Barroso. Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 197.
11 Edmonson v. Leesville Concrete Co., 500 U.S. 614, 632, 1991, ("Unfortunately, our cases deciding when private action might be deemed that of the state have not been a model of consistency").
12 CHEMERINSKY, Erwin. Op. cit., p. 505.
13 Nesse sentido, como aponta SUMRALL (op. cit., p. 1162) para muitos críticos a State Action Doctrine não passa de uma "total confusão" elaborada pela Suprema Corte que, para além de se revelar falha na determinação do que consistem exatamente os "atos de Estado", não se presta a assegurar a efetiva implementação dos direitos constitucionais.
14 SUNSTEIN, Cass R. "State Action is Always Present," Chicago Journal of International Law: Vol. 3: No. 2, Article 15 (2002). Disponível aqui. Acesso em 2 de outubro de 2020.
15 GARDBAUM, Stephen. The "Horizontal Effect" of Constitutional Rights, 102 Mich. L. Rev. 387, 2003.
16 Conforme GEDIEL, José Antônio Peres. A irrenunciabilidade a direitos da personalidade pelo trabalhador. Constituição, direitos fundamentais e direito privado (org. SARLET, Ingo Wolfgang Sarlet). Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p. 157.
17 Conforme CASTRO, Carlos Roberto Siqueira. Extensão dos direitos e deveres fundamentais às relações privadas. Direitos humanos: desafios humanitários contemporâneos: 10 anos do Estatuto dos Refugiados (lei 9.474 de 22 de julho de 1997). João Carlos de Carvalho Rocha, Tarcísio Humberto Parreiras Henriques Filho, Ubiratan Cazetta (coords.). Belo Horizonte: Del Rey, 2008, p. 143.
18 Nesse sentido, SARLET, Ingo Wolfgang. Direitos fundamentais sociais, "mínimo existencial" e direito privado: breves notas sobre alguns aspectos da possível eficácia dos direitos sociais nas relações entre particulares. Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao professor Ricardo Lobo Torres, Daniel Sarmento, Flávio Galdino (orgs.). Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 579; SARMENTO, Daniel. A nova interpretação constitucional: ponderação, direitos fundamentais e relações privadas. Luís Roberto Barroso (org.). Rio de Janeiro: Renovar, 2003, p. 255.
19 "SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. UNIÃO BRASILEIRA DE COMPOSITORES. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DA AMPLA DEFESA E DO CONTRADITÓRIO. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. RECURSO DESPROVIDO. I. EFICÁCIA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS NAS RELAÇÕES PRIVADAS. II. OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS COMO LIMITES À AUTONOMIA PRIVADA DAS ASSOCIAÇÕES. III. SOCIEDADE CIVIL SEM FINS LUCRATIVOS. ENTIDADE QUE INTEGRA ESPAÇO PÚBLICO, AINDA QUE NÃO-ESTATAL. ATIVIDADE DE CARÁTER PÚBLICO. EXCLUSÃO DE SÓCIO SEM GARANTIA DO DEVIDO PROCESSO LEGAL. APLICAÇÃO DIRETA DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS À AMPLA DEFESA E AO CONTRADITÓRIO (...)". STF, Recurso Extraordinário n.º 201819, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie (Rel. p/o acórdão Min. Gilmar Mendes, j. 11/10/2005, DJ 27/10/2006, p. 064.
20 STF, AC 2695 MC, Rel. Min. Celso de Mello, j. 25/11/2010, DJe-231, div. 30/11/2010, pub. 1/12/2010.
21 Sobre a possibilidade de sujeição das plataformas digitais de mídias sociais como veiculadoras à state action doctrine, HOOKER, Matthew P., Censorship, Free Speech & Facebook: Applying the First Amendment to Social Media Platforms via the Public Function Exception, 15 Wash J. L. Tech. & Arts, 36, 2019. Disponível aqui. Acesso em 5 de outubro de 2020.
22 Por tal motivo, conforme PERLINGIERI, Pietro: "Técnicas e institutos nascidos no campo do direito privado tradicional são utilizados naquele do direito público e vice-versa, de maneira que a distinção, neste contexto, não é mais qualitativa, mas quantitativa. Existem institutos em que é predominante o interesse dos indivíduos, mas é, também, sempre presente o interesse dito da coletividade e público; e institutos em que, ao contrário, prevalece, em termos quantitativos, o interesse da coletividade, que é sempre funcionalizado, na sua íntima essência, à realização de interesses individuais e existenciais dos cidadãos". Perfis do direito civil: introdução ao Direito Civil Constitucional. 3ª ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002, p. 54.