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Direito Privado no Common Law

Discutir as novidades legislativas, jurisprudenciais e doutrinárias do Direito Privado na Inglaterra, USA, Canadá e Austrália, dialogando com as alternativas atuais no Direito Civil brasileiro.

Nelson Rosenvald, Daniel Dias, Pedro Fortes e Thaís G. Pascoaloto Venturi
Na década 1970, o economista Phillip Nelson, professor emérito da Universidade de Binghamton (EUA), identificou a categoria dos bens de pesquisa ou busca (search goods), contrastando-a com os bens de experiência (experience goods)1. Atualmente, economistas e profissionais de marketing utilizam-se largamente da "SEC classification of goods and services". SEC é o acrônimo dos termos em inglês search, experience e credence. Em tradução livre, podemos falar em "classificação PEC de produtos ou serviços", sendo PEC relativo a pesquisa, experiência e credibilidade. Além de economistas e profissionais de marketing, a classificação vem sendo crescentemente utilizada por juristas, sobretudo em estudos de análise econômica do direito (AED)2. A classificação é interessante e merece divulgação. Nesta breve coluna, vamos sucintamente apresentá-la e também algumas das suas aplicações no Direito, sobretudo na área do Direito do consumidor. Bens de pesquisa A SEC classification baseia-se na facilidade ou dificuldade com que as pessoas - em geral, consumidores - podem avaliar ou obter informações sobre os bens que pretendem adquirir. Em primeiro lugar, bens de pesquisa ou busca (search goods) são produtos ou serviços com características facilmente avaliáveis antes da contratação. Esses bens apresentam baixos custos de detecção de qualidade previamente à compra. Por isso, o adquirente busca informações a seu respeito por meio da pesquisa, inspeção direta e comparando os atributos dos bens antes de adquiri-los3. A maioria dos produtos se enquadra nessa categoria de bens de pesquisa. Os principais exemplos são roupas, calçados, utensílios para escritório e móveis para casa4. Os bens de pesquisa estão mais sujeitos à substituição e à concorrência de preços, pois os consumidores podem verificar facilmente o preço do produto e outras opções em diferentes lojas, certificando-se de que os produtos são mesmo semelhantes. A marca e as especificações detalhadas do produto influem para transformar um produto de bem de experiência em bem de pesquisa. Bens de experiência Bens de experiência (experience goods) são produtos ou serviços cujas características, como qualidade ou preço, são difíceis de observar antes da sua aquisição e experimentação. Trata-se de bens que podem ser avaliados com precisão somente após terem sido contratados e experimentados5. De maneira análoga, pode-se dizer que os custos pré-contratação de avaliação e percepção de qualidade são altos e o custos pós-contratação são baixos. Por isso, os consumidores acabam conhecendo os atributos dos bens somente após adquiri-los e experimentá-los. Essas informações podem ser naturalmente utilizadas para contratações posteriores dos bens6. Muitos serviços pessoais se enquadram nessa categoria, como restaurantes, salões de beleza, parques temáticos, viagens e férias. Outros exemplos são empregos, hotéis, jornais, músicas e filmes, vinho e comida.7 Phillip Nelson, o precursor dessa categorização, explica que "o procedimento mais óbvio de que o consumidor dispõe para obter informações sobre preço ou qualidade é a pesquisa." No entanto, "haverá bens para os quais esse procedimento de pesquisa é inadequado", bens que vale a pena para o consumidor avaliar pela aquisição e experimentação em vez de pela pesquisa. "Se o preço de compra for baixo o suficiente, qualquer procedimento de pesquisa, mesmo moderadamente caro, será descartado." Nelson ilustra essa ideia com a hipótese de aquisição de atum em lata: "para avaliar marcas de atum enlatado, por exemplo, o consumidor quase certamente compraria marcas de atum para consumo. Ele poderia, então, determinar a partir de várias compras qual marca ele prefere. Chamaremos esse processo de informação de 'experiência'."8 Em se tratando de bens de experiência, é difícil para os consumidores fazerem com precisão escolhas de consumo. Em áreas de prestação de serviço, como a de saúde, essa modalidade de bens recompensa a reputação e gera inércia. Bens de experiência normalmente têm elasticidade de preço menor do que os de pesquisa, pois os consumidores têm receio de que preços mais baixos possam ser devido a problemas ocultos ou questões de qualidade. Bens de credibilidade Por fim, bens de credibilidade (credence goods) apresentam altos custos pré e pós-contratação de detecção de qualidade. Trata-se de bens cujo impacto na utilidade é difícil, ou mesmo impossível, de ser determinado com exatidão pelo consumidor mesmo após o consumo9. Segundo Stefan Haupt, os bens de credibilidade são aqueles cujos efeitos de uso ou consumo são conhecidos apenas após anos, se é que o são algum dia, após a contratação ou que só podem ser avaliados com auxílio altamente técnico10. Muitos serviços profissionais enquadram-se nessa categoria, como os de contador, de assessoria jurídica, de saúde, de creche, além de orientação religiosa e espiritual. Entre os produtos, os suplementos vitamínicos podem ser inseridos nessa modalidade11. As dificuldades de avaliação podem decorrer do fato de que o consumidor não tem conhecimento ou competência técnica para avaliar efetivamente o bem ou, alternativamente, porque o custo de aquisição da informação pode ultrapassar o valor da informação almejada. Por outro lado, o vendedor do bem conhece o impacto de utilidade do bem, criando assim uma situação de assimetria informacional. Implicações jurídicas A SEC classification of goods and services vem sendo, como já referido, utilizada por juristas como útil elemento de análise, sobretudo em estudos de AED na área de direito do consumidor. Uma primeira aplicação para essa classificação está ligada à alocação de deveres de informação das partes em uma relação de consumo. A classificação pode auxiliar na decisão sobre se, em um determinado caso, recai ou não sobre o fornecedor o dever de informação. Segundo a AED, os deveres de informação devem ser alocados de forma eficiente, o que implica que o fornecedor tenha o dever de divulgar as informações apenas se ele for o produtor de informação mais barato e o "evitador de custos mais barato" (cheapest-cost-avoider), aquele "que pode produzir ou fornecer o conhecimento pelo menor custo e sabe melhor o valor do conhecimento." De acordo com Stefan Haupt, esse pode ser o caso se o exame da qualidade do produto ou serviço for muito caro para os consumidores, como acontece, entre outras hipóteses, em relação a "coisas cuja qualidade não pode ser avaliada com precisão, mesmo após um uso mais longo", isto é, os bens de credibilidade12. A classificação tem sido também utilizada para avaliar o direito de arrependimento ou prazo de reflexão, ferramenta amplamente difundida para proteção dos consumidores. Trata-se de direito do consumidor a, dentro de um certo período após a celebração do contrato, desistir da aquisição do produto ou da contratação do serviço. À luz da AED, os períodos de reflexão só se justificam se forem necessários para remediar ineficiências13. Uma tal situação de ineficiência pode surgir, entre outros motivos, devido a assimetrias de informação. Essas assimetrias são especialmente prováveis de ocorrer com bens de experiência e de credibilidade, uma vez que, em relação a eles, a qualidade pode ser avaliada somente após a contratação e o consumo, ou mesmo nem assim. Essas assimetrias de informação podem levar, por conta de seleção adversa, a falhas de mercado, as quais podem justificar a medida de prazo de reflexão, porque assim os consumidores obtêm mais tempo para adquirir as informações relevantes sobre os produtos e serviços adquiridos. Esses efeitos são menos prováveis com bens de pesquisa, em relação aos quais o consumidor pode reconhecer a qualidade na inspeção antes da contratação. As assimetrias informacionais são típicas de transações à distância, nas quais o consumidor e o fornecedor estão fisicamente separados, de modo que o consumidor é, pela natureza do contrato, informado de forma inadequada, mesmo em se tratando de bens de pesquisa, visto que a inspeção prévia é impossível14. Em caso de contratação de bens ocorrer fora do estabelecimento comercial, o CDC prevê, como sabido, a possibilidade de desistência do contrato no prazo de 7 dias (art. 49). O prazo de sete dias é geral, valendo para todos os tipos de produtos e serviços. Nos casos envolvendo bens de pesquisa, esse período parece ser longo demais, uma vez que o consumidor pode inspecioná-los assim que os tiver em mãos. Em outras situações, todavia, o prazo de 7 dias pode ser muito curto para uma avaliação adequada. Esse pode ser o caso envolvendo bens de experiência, que só podem ser devidamente avaliados depois que o produto foi adquirido e efetivamente experimentado, ou mesmo bens de credibilidade, que são difíceis de ser avaliados mesmo depois disso. Nessas últimas modalidades de bens, o período de reflexão não poderia então ser justificado como uma medida eficiente para sanar assimetrias informacionais15. A SEC classification pode ser útil também na implementação da responsabilidade pelo vício do produto e do serviço. Nos casos de bens de pesquisa, é mais fácil para o consumidor verificar e demonstrar em juízo um vício de qualidade que os torne, por exemplo, impróprios ao consumo (arts. 18 e 20 do CDC). Mas nos casos de bens de experiência e, sobretudo, de credibilidade, pode ser difícil ou mesmo impossível para o consumidor perceber e, ainda pior, demonstrar em juízo que o produto ou serviço apresenta vício de qualidade. Diante de insatisfação do consumidor para com o bem adquirido e em se tratando de bens de experiência ou de credibilidade, deve ser então facilitada ao consumidor a defesa de seus direitos, sendo-lhe concedida a inversão do ônus da prova por conta da sua hipossuficiência, devendo o fornecedor provar que o produto ou o serviço é livre de qualquer vício (art. 6.º, VIII, CDC). Conclusão Por essas e potenciais outras aplicações, a SEC classification of goods and services mostra-se um interessante instrumento de análise jurídica e de auxílio na aplicação de normas legais. Fica aqui, então, a sua notícia e divulgação para que venha a ser mais conhecida e utilizada pelos juristas brasileiros. __________ 1 NELSON, Phillip. Information and Consumer Behavior. Journal of Political Economy, v. 78, n. 2, 1970, p. 311-312. Disponível aqui. Acesso em: 4 ago. 2021. 2 V., p. ex., HAUPT, Stefan. An economic analysis of consumer protection in contract law. German Law Journal, vol. 4, n. 11, 2003, p. 1150 e p. 1153. 3 BENZ, Men-Andri. Experience and Credence Goods: An Introduction. In: Strategies in Markets for Experience and Credence Goods. 2007, p. 2. 4 BENZ, op. cit., p. 2. 5 BENZ, op. cit., p. 2. 6 BENZ, op. cit., p. 2. 7 BENZ, op. cit., p. 2. 8 NELSON, op. cit., p. 312. 9 BENZ, op. cit., p. 2. 10 HAUPT, op. cit., p 1148. 11 BENZ, op. cit., p. 2. 12 HAUPT, op. cit., p. 1144. 13 HAUPT, op. cit., p. 1147. 14 HAUPT, op. cit., p. 1148. 15 HAUPT, op. cit., p. 1150.
Introdução Em coluna anterior ("A doutrina dos punitive damages e a fixação dos danos morais no sistema brasileiro"), já tivemos oportunidade de abordar como a doutrina e os tribunais nacionais foram influenciados pelo referido instituto e como passaram a sustentar, ao seu modo, a sua aplicação no âmbito da responsabilidade civil.1 Ainda sobre o tema, o professor Nelson Rosenvald - com o brilhantismo que lhe é inerente - escreveu sobre as contradições dos punitive damages na jurisprudência da Suprema Corte norte americana e sobre a sua aplicação no Direito Inglês.2  A presente coluna retorna ao tema, agora sob uma perspectiva diversa. Pretende-se, por via do estudo de casos, analisar os critérios de proporcionalidade utilizados pela Suprema Corte norte-americana para dimensionar as quantias fixadas a título de compensatory damages e a título de punitive damages, sob as luzes da Due Process Clause of the Fourteenth Amendment.3 Se, por um lado, referido Tribunal já consagrou a constitucionalidade da função punitivo-pedagógica da responsabilidade civil - quando aplicada para sancionar condutas dolosas ou inescusáveis geradoras de danos graves -, por outro lado, a medida da proporcionalidade entre os valores das condenações fixadas a título de indenização e de punição é tema ainda extremamente polêmico e insuficientemente tratado pela jurisprudência da Suprema Corte. O estudo desse assunto é de grande valia para o sistema brasileiro, na medida em que a função punitivo-pedagógica encontra (ao seu modo) ressonância nos Tribunais nacionais, sobretudo, quando se trata do fortalecimento das compensações dos danos morais em sentido amplo. Todavia, tanto aqui como lá, à adequada justificação do "agravamento da responsabilidade civil" deve-se associar também a razoabilidade da proporção entre as quantias compensatórias e punitivas.    BMW da América do Norte, Inc. v. Gore (1996)  O precedente mais antigo (e um dos mais citados) a respeito da correlação entre compensatory damages e punitive damages é o já clássico BMW da América do Norte, Inc. v. Gore. Ira Gore ingressou com ação contra a BMW após ter comprado um carro novo da marca no Alabama, em 1995, tendo descoberto posteriormente que o veículo havia sido repintado pela empresa antes da sua entrega ao consumidor, por avarias sofridas no transporte, o que configuraria crime pela lei estadual da época. A BMW revelou que adotava uma política nacional de vender carros levemente danificados como se fossem novos, conquanto o dano pudesse ser reparado por um valor de até 3% do valor de venda. O caso foi submetido a Júri Popular no Alabama, tendo sido a BMW condenada a pagar US$ 4.000 mil em danos materiais (equivalentes à desvalorização do carro) e outros US$ 4 milhões a título de punitive damages. A proporção entre os danos compensatórios e punitivos foi de 1:1000, ou seja, a condenação punitiva foi mil vezes maior que a compensatória. A Suprema Corte do Alabama manteve a indenização compensatória, mas reduziu a condenação a título punitivo para US$ 2 milhões (proporção de 1:500), sob o fundamento de que, ao calcular o valor da condenação, o júri havia multiplicado indevidamente os danos compensatórios de Gore pelo número de vendas fraudulentas semelhantes em todos os estados norte-americanos, e não apenas no Estado do Alabama.4 A BMW impugnou referida decisão por via de Writ of Certiorari5 admitido pela Suprema Corte dos Estados Unidos, que se debruçou sobre a seguinte questão: danos punitivos excessivamente elevados violam a cláusula constitucional do devido processo? A Suprema Corte entendeu que sim, anulou a decisão e remeteu o caso a rejulgamento pela Corte de origem. Inicialmente, porque qualquer condenação a título punitivo realizado por Tribunais dos Estados deve tomar em consideração apenas seu próprio interesse na defesa de sua economia e de seus consumidores, e não de todo o país. Ainda, porque todos os réus de ações indenizatórias têm o direito de serem adequadamente informados não só a respeito da gravidade da conduta imputada, mas também sobre a gravidade das penas cabíveis no caso concreto. O relator do Writ of Certiorari, Justice John Paul Stevens, asseverou que a indenização punitiva não pode ser "grosseiramente excessiva", sob pena de violação do devido processo legal substantivo. A interpretação do que seja "grosseiramente excessivo", contudo, ainda não restou devidamente esclarecido por via desse precedente.6 Apesar disso, a Suprema Corte instruiu os demais Tribunais a adotarem três diretrizes para a fixação dos punitive damages, quais sejam: a) o grau de reprovabilidade da conduta do réu; b) a disparidade entre o dano sofrido pelo demandante e a condenação punitiva; e c) a diferença entre a condenação punitiva fixada pelo júri e as sanções civis autorizadas ou impostas em casos análogos.7 A referidos standards, um critério numérico foi adicionado em precedente subsequente, firmado no caso State Farm v. Campbell, para adequar a proporcionalidade entre os compensatory e os punitive damages.  State Farm Mutual Automobile Insurance Company v. Campbell (2003) Curtis Campbell foi julgado pelo Júri Civil no Estado de Utah, em virtude de ter causado um acidente automobilístico que resultou na morte de um motorista e na incapacidade permanente de outro, sendo condenado a pagar o valor de US$ 185 mil. Campbell era segurado pela State Farm Insurance Company que, no início do processo, havia recusado uma oferta de acordo, alegando que o valor proposto era superior ao da apólice contratada (US$ 50 mil). Sustentando má-fé, fraude e imposição proposital de sofrimento emocional por parte da seguradora, Campbell ajuizou, em 1996, ação civil contra a State Farm, postulando a diferença (US$ 135 mil) entre a condenação sofrida e o valor da apólice. Ao ser julgada pelo Júri Civil, a State Farm foi condenada ao pagamento de US$ 2,6 milhões em danos compensatórios e de US$ 145 milhões em punição. Apreciando o caso em grau recursal, a Suprema Corte de Utah, fixou os compensatory damages em US$1 milhão, mantendo os US$ 145 milhões de condenação punitiva.  Foi contra essa decisão da Suprema Corte de Utah que a State Farm ingressou com o Writ of Certiorari, objetivando que o caso fosse reavaliado pela Suprema Corte dos Estados Unidos, sobretudo no que tange à proporção entre os compensatory e os punitive damages. Acolhendo o Writ, no ano de 2003 a Suprema Corte decidiu que, apesar de a fixação das punições competir discricionariamente aos Estados (e não à União), o grau de reprovabilidade da conduta da State Farm no caso, apesar de grave, deveria ser sancionada com moderação suficiente o bastante para satisfazer os legítimos interesses do Estado a título de punitive damages. Assim, adotando as mesmas diretrizes anteriormente fixadas no caso BMW v. Gore, a Suprema Corte entendeu que a Corte de Utah violou o devido processo legal ao fixar o valor de US$ 145 milhões a título de punitive damages, dentre outros motivos, por terem sido fixados com fundamento em hipotéticos julgamentos de procedência de todas as demais ações possivelmente cabíveis de outros lesados contra a Seguradora ao redor do país inteiro. A Suprema Corte foi taxativa ao declarar que a Corte de Utah deveria ter fixado o valor de punitive damages proporcionalmente ao comportamento da State Farm apenas dentro do Estado, sem extrapolar sua jurisdição, sob pena de violação do due process. Quanto à segunda diretriz (disparidade entre o dano sofrido pelo demandante e a condenação punitiva), mesmo reconhecendo sua relutância em identificar limites constitucionais concretos para a proporção (ratio) adequada entre as condenações por compensatory damages e punitive damages, a Suprema Corte asseverou que "poucas indenizações (awards) que excedam a proporção de um dígito entre punitive e compensatory damages" irão satisfazer a garantia do devido processo. Acrescentou que, quando os danos compensatórios são substanciais, uma razão de 1:1 pode ser o limite máximo.8 O Tribunal ainda relembrou que "existe uma antiga história legislativa, datada de aproximadamente 700 anos até os dias atuais, determinando o dobro, o triplo ou o quádruplo do valor da indenização para inibir e punir. Apesar dessas proporções não serem obrigatórias, elas são instrutivas. Elas demonstram o que deveria ser óbvio: um único dígito multiplicador adequa-se mais ao devido processo legal, na medida em que satisfaz os objetivos públicos de inibição e de retribuição".  A partir desse precedente, a minoração de substanciais condenações em punitive damages têm sido sustentadas junto aos Tribunais estaduais e à própria Suprema Corte, mas nem sempre com sucesso. Gail L. Ingham et al. v. Johnson & Johnson e JJCI (2021)  A Johnson & Johnson, empresa americana fundada em 1886 em Nova Jersey, atua na produção de farmacêuticos, utensílios médico-hospitalares e, por meio de sua subsidiária de cosméticos e produtos de higiene pessoal9, comercializa há várias décadas um talco para bebê - nos EUA vendido com o rótulo de Johnson's Baby Powder10. A comercialização de referido produto tem gerado milhares de ações judiciais nos EUA, relacionadas ao possível desenvolvimento de câncer ovariano pelo consumo do talco. A J&J alega que nunca se obteve comprovação científica a respeito dessa correlação, já pesquisada pela Food and Drug Administration (FDA), pelo National Cancer Institute, e pela American Cancer Society. Os primeiros estudos que sugeriram a possibilidade de que algumas amostras de talcos cosméticos pudessem estar contaminadas por partículas de amianto datam de meados dos anos 1970, a partir da pesquisa conduzida pelos Drs. Arthur M. Langer e Arthur N. ROHL11. A contaminação poderia resultar sobretudo da proximidade de depósitos naturais de amianto com a rocha de onde se extrai o pó para o talco cosmético. O amianto, também conhecido como asbesto, é uma fibra mineral e tem propriedades comprovadamente tóxicas12. Ele está relacionado ao desenvolvimento de alguns tipos de câncer e doenças pulmonares crônicas, atingindo principalmente pessoas que inalam as partículas fibrosas do minério por longos períodos, como trabalhadores que atuam diretamente na exploração do minério. Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), não há níveis seguros para a exposição ao amianto13 e, até julho de 2019, um total de 67 países (incluindo a União Europeia) haviam banido completamente o seu uso14. Os Estados Unidos nunca proibiram integralmente o uso e a exploração do amianto15, apesar de ter havido restrições legislativas entre os anos de 1972 e 198916. Na esfera judiciária americana, as ações cíveis e trabalhistas relacionadas à substância envolveram, até 2017, mais de 700 mil requerentes e cerca de oito mil réus17. Um relatório da seguradora Lloyd's, em parceria com a Universidade Oxford, estima que o custo total dos litígios relacionados ao amianto, somente nos EUA, pode ultrapassar a marca de US$ 275 bilhões18. Nesse cenário se inclui uma demanda ajuizada por mulheres diagnosticadas com câncer no ovário, alegando terem adoecido pelo uso do talco cosmético da Johnson & Johnson, ainda que em idades, momentos e intensidades diferentes. A ação reparatória (Gail L. Ingham et al. v. Johnson & Johnson e JJCI) foi proposta na cidade de Saint Louis (Missouri), por um litisconsórcio de 22 mulheres (algumas delas conjuntamente com seus maridos e outras representadas pelo espólio), oriundas de 12 Estados diferentes. O julgamento das 22 imputações de responsabilidade civil foi agrupado numa única sessão de Júri Popular civil, que ocorreu ao longo de seis semanas, apesar dos protestos da empresa ré de que as circunstâncias alegadas variavam substancialmente, indo de casos de remissão completa do câncer até o falecimento em decorrência do agravamento do quadro clínico. Além disso, 17 requerentes sequer residiam no Missouri, não sofreram o dano alegado dentro dos limites do Estado, nem compraram ou usaram o produto da empresa ré na referida jurisdição estadual. A J&J também apontou a subversão do devido processo legal na medida em que os jurados levaram mais de cinco horas para serem instruídos sobre as leis aplicáveis em cada um dos 12 diferentes Estados de domicílio das autoras.  Ainda assim, o Júri levou uma média de 20 minutos para deliberar sobre cada uma das 22 imputações, estipulando exatamente o mesmo valor para cada autora (US$ 25 milhões em compensatory damages, totalizando US$ 550 milhões) e arbitrando o montante de US$ 990 milhões como punitive damages. Esse valor foi subsequentemente majorado para US$ 1,6 bilhões pelo Tribunal de Apelações do Missouri. Vale dizer, por esse julgamento, a cada dólar fixado a título de indenização, somaram-se outros 2,4 dólares a título de punição. Recentemente, no início de julho de 2021, a Suprema Corte dos Estados Unidos inadmitiu Writ of Certiorari19  apresentado pela Johnson & Johnson e por sua subsidiária (JJCI), para que se pronunciasse a respeito de uma possível violação da garantia do devido processo legal pela excessiva desproporção entre as condenações compensatória e punitiva. Dentre os quesitos suscitados perante a Suprema Corte por via do referido Writ, indagou-se: O valor de uma condenação por punitive damages, quando ultrapassa substancialmente o valor de uma condenação por compensatory damages, viola o princípio do devido processo legal?20 Como a aceitação dos Writs é discricionária e se dá por meio de simples votação dos ministros da Corte21, os motivos que ensejaram a recusa de revisão do caso pela Suprema Corte podem ser deduzidos a partir dos precedentes antes ressaltados - sobretudo no que diz respeito à obediência da instrução jurisprudencial da manutenção da proporção máxima (na casa de um dígito) entre os compensatory e os punitive damages. A função moderadora exercida pela Suprema Corte na quantificação dos punitive damages Como se depreende da análise dos precedentes citados, a Suprema Corte norte-americana tem mantido seu papel moderador quanto à revisão da proporcionalidade entre as condenações indenizatórias e punitivas fixadas pelos demais Tribunais, especificamente quando se alega uma extrapolação inadequada fundada em critérios que destoam daqueles por ela orientados. Contudo, boa parte dos juristas norte-americanos critica a forma como a Corte exerce essa função moderadora, sobretudo pela ausência de diretrizes mais objetivas que proporcionassem uma maior segurança jurídica e isonomia quanto à distribuição dos punitive damages ao largo do sistema de justiça dos EUA.    De acordo com Cass R. Sustein, "Courts are puzzled about how to respond to these challenges, (.) leaves many questions open. Decisions of lower courts are in disarray, despite a Supreme Court decision calling for careful appellate review of constitutional challenges to punitive awards".22 Sherman Joyce, presidente da American Tort Reform Association, instituição que endossou o Writ of Certiorari da J&J como amicus curiæ23, declarou em entrevista ao portal Bloomberg Law que a Suprema Corte carece de um posicionamento mais claro a respeito dos quesitos apresentados24. Para Rick Hasen, professor da Universidade da Califórnia (Irvine), os dois precedentes relacionados ao tema - BMW v. Gore (1996) e State Farm v. Campbell (2003) - têm sido aplicados de forma diversa pelos tribunais federais e estaduais, alguns encontrando maneiras de contorná-los, outros os interpretando mais estritamente25. Contudo, para o advogado Evan M. Tager, do escritório Mayer Brown, a decisão do dia 1º de junho sugere que a Suprema Corte deseja manter seu papel revisor das punitive damages sem detrimento de relegar alto grau de discricionariedade para as Cortes inferiores, apesar do risco da aplicação contraditória ou desigual do instituto26. De todo modo, essa metodologia de atuação da Suprema Corte na reavaliação da concretização da função punitiva da responsabilidade civil revela um importante componente político-constitucional, no sentido da afirmação e aprofundamento do federalismo norte-americano, fortemente na autonomia democrática das entidades federadas. Embora sempre sujeita a críticas27, a moderação exercida pela Suprema Corte, a um só tempo, preserva sua competência na fiscalização da observância da garantia constitucional do devido processo legal e fortalece a competência das diversas jurisdições (federais e estaduais), às quais, ao fim e ao cabo, incumbe a efetiva definição da adequada proporção entre as compensatory e as punitive damages no caso concreto, observadas as instruções geradas pelos precedentes da Corte Suprema. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 "Amendment XIV (ratified July 9, 1868), Section 1. All persons born or naturalized in the United States and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State whrein they reside. No State shall make os enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws". 4 SUNSTEIN, Cass R., HASTIE, Reid, PAYNE, John W., Schakade, David A., VISCUSI, Kip W. Punitive Damages. How Juries Decide. Chicago & London: The University of Chicago Press. 2002, p. 02. 5 O Writ of Certiorari é um instrumento processual pelo qual se requerer à Suprema Corte que aceite revisar um julgamento de uma Corte inferior, manifestando-se sobre quesitos apresentados pelo requerente, conforme a Regra nº 10 das Rules of the Supreme Court of the United States. Disponível aqui. Acesso em jul.de 2021. 6 Disponível aqui. Acesso em jul.de 2021. 7 The U.S. Supreme Court has held that defendants are protected against excessively high punitive damage awards by the Due Process Clause of the U.S. Constitution. To determine whether a punitive damages award satisfies due process, judges must evaluate the award in terms of three factors: '(1) the degree of reprehensibility of the defendant's misconduct; (2) the disparity between the actual or potential harm suff ered by the plaintiff and the punitive damages award; and (3) the diff erence between the punitive damages awarded by the jury and the civil penalties authorized or imposed in comparable cases. (...) The Court has held 'that, in practice, few awards exceeding a single-digit ratio between punitive and compensatory damages, to a signifi cant degree, will satisfy due process." GEISTFELD, Mark A., Due process and the deterrence rationale for punitive damages" (2011). New York University Public Law and Legal Theory Working Papers. Paper 311. Disponível aqui, p. 112-113. Acesso em jul.de 2021. 8 No original da Opinion: "Our jurisprudence and the principles have now established demonstrate, however, that in practice, few awards exceeding a single-digit ratio between punitive and compensatory damages will satisfy due process, and compensatory damages are substantial moreover than a lesser ratio perhaps only equal to compensatory damages can reach the outermost limit of the due process guarantee". 9 Trata-se da "Divisão de Consumidores", representada pela subsidiária Johnson & Johnson Consumer Inc. (JJCI), criada em 1979. 10 No Brasil, o mesmo produto é vendido como Talco Johnson's Baby. 11 Nesse sentido, ver ROHL, Arthur N. LANGER, Arthur M. Identification and Quantification of Asbestos in Talc. Environmental Health Prospectives. Vol. 9, 1974, pp. 95-109. Disponível aqui. Acesso em jul.de 2021. 12 No Brasil, o amianto foi muito utilizado na fabricação de telhas e caixas d'água. Em 2017, o Supremo Tribunal Federal julgou as Ações Diretas de Inconstitucionalidade n. 3460, n. 3470, n. 3356 e n. 3357 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental n. 109. No mérito, o STF considerou que a Lei Federal 9.055/95, que permitia uma utilização em nível supostamente seguro do amianto, foi esvaziada de conteúdo em função da evolução científica e de seguidos estudos clínicos atinentes ao potencial cancerígeno da substância. Tanto por isso, as leis estaduais e municipais que proibiam a produção e comercialização do amianto tiveram as respectivas declarações de constitucionalidade. 13 Cf. Instituto Nacional do Câncer. INCA (online). Disponível aqui. Acesso em jul.2021. 14 Cf. dados do International Ban Asbestos Secretariat, disponível aqui. 15 KWUN, Aileen. "Under Trump's EPA, asbestos might be making a comeback". Fast Company (online). Disponível aqui. Acesso em julho de 2021. 16 Idem. 17 LLOYD'S. Stranded Assets: the transition to a low carbon economy. Overview for the insurance industry. Emerging Risk Report 2017: Innovation Series. Society and Security. Disponível aqui. Acesso em 7 jul. 2021. 18 Cf. Copland, J. R. 2004. Asbestos. Point of Law [online]. Disponível aqui. Acesso em jul.2021. 19 A íntegra da petição pode ser lida aqui. 20 Do original: "Whether a punitive-damages award violates due process when it far exceeds a substantial compensatory-damages award". 21 De acordo com o Regimento Interno da Suprema Corte em sua Regra ("Rule") n. 10, a aceitação de um Writ of Certiorari é matéria discricionária por parte dos Justices. O deferimento do Writ será dado quando houver "razões convincentes" (compelling reasons) e a votação se dá de forma minoritária, ou seja, pelo menos quatro dos nove membros da Corte devem votar para ouvir a arguição do caso. Se o mínimo não é atingido, publica-se apenas a decisão denegatória, sem qualquer fundamentação. Estima-se que, dos 10 mil recursos interpostos anualmente perante a Suprema Corte, um pouco menos de 100 deles são aceitos para serem arguidos. 22 SUNSTEIN, Cass R., HASTIE, Reid, PAYNE, John W., Schakade, David A., VISCUSI, Kip W. Punitive Damages. How Juries Decide. Chicago & London: The University of Chicago Press. 2002, p. 244. 23 A íntegra da petição pode ser lida aqui. 24 ROBINSON, Kimberly Strawbridge. "Justices Sticking to Punitive Damage Limits After J&J Case" (2). Bloomberg Law (online). Disponível aqui. Acesso em jul. 2021. 25 Idem. 26 Idem. 27 SUNSTEIN, Cass R., HASTIE, Reid, PAYNE, John W., Schakade, David A., VISCUSI, Kip W. Punitive Damages. How Juries Decide. Chicago & London: The University of Chicago Press. 2002, p. 242-245.
"A stiff apology is a second insult.. The injured party does not want to be compensated because he has been wronged; he wants to be healed because he has been hurt."G. K. Chesterton Em recente publicação no Migalhas de Proteção de dados, tive a oportunidade de tratar da polissemia da responsabilidade civil no common law. Há um termo que classicamente se ajusta perfeitamente ao sentido legal da responsabilidade. Trata-se da "liability", ou seja, a eficácia condenatória de uma sentença como resultado da apuração de um nexo causal entre uma conduta e um dano, acrescida por outros elementos conforme o nexo de imputação concreto, tendo em consideração as peculiaridades de cada jurisdição. A liability é a parte visível do iceberg, manifestando-se ex post - após a eclosão do dano -, irradiando o princípio da reparação integral (full compensation). Porém, este é apenas um dos sentidos da responsabilidade. Ao lado dela, colocam-se três outros vocábulos: "responsibility", "accountability" e "answerability". Os três podem ser traduzidos em nossa língua de maneira direta com o significado de responsabilidade, mas na verdade diferem do sentido monopolístico que as jurisdições da civil law conferem a liability. Em comum, os três vocábulos transcendem a função judicial de desfazimento de prejuízos, conferindo novas camadas à responsabilidade, capazes de responder à complexidade e velocidade dos arranjos sociais. Cremos ser importante enfatizar o sentido de cada um dos termos utilizados na língua inglesa para ampliarmos o sentido de responsabilidade. Palavras muitas vezes servem como redomas de compreensão do sentido, sendo que a polissemia da responsabilidade nos auxilia a escapar do monopólio da função compensatória da responsabilidade civil (liability), como se ela se resumisse ao pagamento de uma quantia em dinheiro apta a repor o ofendido na situação pré-danosa. A liability não é o epicentro da responsabilidade civil, mas apenas a sua epiderme. Em verdade, trata-se apenas de um last resort para aquilo que se pretende da responsabilidade civil no século XXI, destacadamente na tutela dos dados pessoais. Particularmente, interessa-nos a acepção de "responsibility", trata-se do sentido moral de responsabilidade, voluntariamente aceito e jamais legalmente imposto. É um conceito prospectivo de responsabilidade, no qual ela se converte em instrumento para autogoverno e modelação da vida. Não existem regras oficiais para a responsibility e nenhuma autoridade capaz de decidir se uma conduta é ou não responsável, trata-se de uma decisão diária posta a cada pessoa em seu dever de não interferir indevidamente na esfera alheia. A responsibility assume um viés preventivo que atua em caráter ex ante ao princípio do neminem laedere. Enquanto a liability se situa no passado - sempre atrelada a uma função compensatória de danos - a responsibility é perene, transitando entre o passado, o presente e o futuro. Sempre seremos responsáveis, não apenas perante um certo demandante, mas por toda a humanidade e pelas gerações futuras.1 Se, em princípio, Liability e responsibility se apartam, pertencendo a sistemas normativos distintos, naturalmente não podem ser completamente separados pois todo sistema jurídico é fundado em princípios éticos, havendo uma recíproca influência entre eles. Ilustrativamente, mesmo diante de um dano consumado, ao invés da resposta estatal oficial da obrigação de indenizar pode o autor do ilícito buscar alguma forma de restauração que mais se aproxime de uma restituição em espécie, notadamente diante de danos extrapatrimoniais que não são verdadeiramente remediados por dinheiro. Ou seja, a responsibility pode também atuar ex post, informando como o ofensor deve se comportar após a ocorrência do dano. E aqui se coloca a nossa questão central: a noção moral de um pedido de desculpas é capaz de servir ao legislador como uma diretriz de como a legislação de responsabilidade civil pode ser eticamente modelada e estruturada? A função das desculpas perante a responsabilidade civil ainda não é clara. O ponto de partida é a aposta dos legisladores quanto ao fato de que apologies são capazes de reduzir litígios, com base em um pretenso senso comum de que é isso é o que as vítimas realmente anseiam, reforçando a ideia de responsabilidade pessoal, porque as desculpas são uma forma de o transgressor assumir a responsabilidade por suas ações. Ou seja, para além da responsibility, utiliza-se a expressão "taking responsibility" quando o agente atua no sentido de restaurar a vítima ao estado em que se encontraria se o evento não houvesse ocorrido.2 A relação entre as ideias jurídicas e morais de responsabilidade sempre foi objeto de discussão. Um positivista estrito aduziria que não há nenhuma relação necessária. Em sentido oposto, outros argumentam que há uma forte congruência entre eles.3 No meio termo, encontram-se os que admitem que embora possa não haver uma correlação estrita entre as noções legais e morais de responsabilidade, se não houver nenhuma correlação, a lei provavelmente perderá sua legitimidade dentro de uma certa comunidade. Nesta linha, tratamos do pedido de desculpas no campo das relações privadas,4 parte integrante da vida social comum e que, a despeito da pluralidade de significados, nos mais diferentes grupos sociais de alguma forma invariavelmente interage com a lei.5 A melhor forma de inserir as desculpas no interno da responsabilidade civil é pela via da justiça corretiva Aristotélica,6 pois é da sua essência a conexão entre a lei e a moralidade, pois na natureza transacional entre o agente e a vítima, surge uma específica obrigação do causador do dano de corrigi-lo ou repará-lo de certa forma. Aliás, esse é o núcleo do direito privado, fundamentado na estrutura bipolar de suas relações e nas ideias de justiça corretiva, tão propaladas nas jurisdições do common law pelo jusfilósofo Ernest Weinrib, com claro sentido epistêmico.7 A culpa ocupa um papel relevante por sua conexão com a responsabilidade pessoal e o seu reconhecimento por meio da apology releva no aspecto do equilíbrio relacional que idealmente é incapaz de ser recuperado por meio de dinheiro, mas através de dignidade. Vale dizer, um pedido de desculpas pode servir como mecanismo de mitigação de danos para a fração não econômica da sentença, a final danos extrapatrimoniais, podem ser melhor reparados por apologies do que por uma premiação em dinheiro. Assim, a justiça corretiva parte do pressuposto de que as pessoas possuem bens patrimoniais e existenciais dignos de inviolabilidade por ato de outrem, sendo que qualquer rompimento desse equilíbrio gera injustiça, a partir da implantação de uma desigualdade ilegítima e injustificável. O valor da justiça corretiva será realizado na medida em que o equilíbrio e igualdade anteriormente existentes se reestabeleça, seja por ato voluntário das partes (como um pedido de desculpas), seja por decisão judicial, momento em que se nota que o direito violado da vítima corresponde a um dever violado pelo ofensor, dever esse que corresponde ao direito da vítima, motivo pelo qual a justiça corretiva está diante de uma injustiça que tem duas faces no cerne de uma relação bilateral e relacional.8 Para estabelecermos premissas adequadas, a qual "desculpas" referimo-nos como objeto da responsabilidade civil? Sob o ponto de vista moral, um verdadeiro pedido de desculpas necessariamente incluirá um reconhecimento de culpa. Não há pedido de desculpas a menos que a pessoa expresse arrependimento e também assuma a responsabilidade por um ilícito que cometeu. Esta é a responsibility. Ademais, a pessoa se desculpa por um comportamento antijurídico, e não por um dano, pois se este é um problema para a vítima, a questão moral à qual o pedido de desculpas responde é se houve um ilícito. Portanto, trata-se de um "full apology" e não uma mera expressão de arrependimento (partial apology), o famoso "sinto muito". No contexto da responsabilidade civil, desculpas "parciais" também são chamadas de desculpas "seguras" (safe apologies) por se tratar de um pedido de desculpas sem reconhecimento de culpa, que não gera o risco de responsabilidade civil.9 Quando se trata de um total pedido de desculpas, instala-se um verdadeiro processo que se inicia pelo fato (event), há uma chamada à comunicação (call) no qual as desculpas (apologies) são seguidas de um perdão (forgiveness) e de uma reconciliação (reconciliation).10 O pedido de desculpas insincero pode desencadear mais agressões, a final, a credibilidade de um pedido de desculpas é considerada em termos do "custo" para quem pede desculpas e, se este não for suficiente, o pedido de desculpas será rejeitado. O perdão não será dado em troca e não haverá reconciliação. Por conseguinte, as desculpas são importantes instrumentos morais - "atos moralmente ricos" - que operam para reforçar as normas em uma comunidade e para restabelecer o equilíbrio entre as duas partes. As desculpas são capazes de reparar a humilhação da vítima, suprimir a vergonha do agressor, auxiliando a curar as feridas emocionais associadas a um ilícito. Os infratores precisam se reposicionar como seres morais na comunidade e com a vítima, assim, o pedido de desculpas opera como uma transformação moral do ofensor.11 Porém, supondo que o pedido de desculpas foi seguido do perdão da vítima, qual seria a sua evidência no contexto de responsabilidade civil? O perdão significa que a vítima assume todo o fardo do ilícito a ponto de abrir mão da possibilidade de compensação ao decidir não litigar? A questão não é tão simples. De fato, há um forte argumento de que um dos principais motivadores para as pessoas processarem é o desejo de ter certeza de que a pessoa que errou sabe que fez o errado e está assumindo a responsabilidade por isso, para que não o faça novamente. Em princípio, o pedido de desculpas pode ser preponderante para uma decisão de não processar. Todavia, há uma gama de fatores que afetam esta decisão, incluindo custos e benefícios e probabilidade de compensação, aliados a uma atitude cultural de culpabilidade. Aliás, por puro pragmatismo a vítima pode optar por alcançar um acordo com o ofensor, evitando custos judiciais e a morosidade inerente ao processo, ou, mesmo após a aceitação das desculpas, avançar com a pretensão indenizatória. Ou seja, é possível que mesmo uma pessoa que se sinta muito bem em relação a um ofensor, sinta-se obrigada a processá-lo por uma necessidade econômica.12 Empiricamente, um conjunto de estudos experimentais considerou que os entrevistados estavam muito mais inclinados a aceitar uma oferta de acordo quando um pedido de desculpas completo fosse oferecido (full apology), em grau menor para desculpas parciais e muito menos quando nenhum pedido de desculpas fosse oferecido. O relatório também observou que os entrevistados consideraram o ofensor o indivíduo mais moral, mais perdoável e mais provável de ser cuidadoso no futuro, quando restauram a confiança oferecendo desculpas completas, ao invés de parciais. O pedido de desculpas parcial pareceu criar incerteza nos participantes quanto a aceitar a oferta. Também houve evidências de que, quando uma lesão era grave, um pedido de desculpas parcial pode ser mesmo prejudicial.13 Estudos no contexto médico tendem a apoiar essas conclusões. A relação privada entre o médico e o paciente continua sendo um elemento significativo da forma como as desculpas são utilizadas. Neste setor - permeado por normas médicas baseadas na tradição profissional de autorregulação e na assimetria da relação entre médico e paciente - a cultura da negação é exacerbada pelo aconselhamento jurídico tradicional de não pedir desculpas, como se fosse uma "admissão" de responsabilidade (inclusive pelo temor da resolução do contrato de seguro pela violação de cláusula proibitiva de admissão de responsabilidade). Outro obstáculo para o pedido de desculpas é a divulgação da conduta culposa e seus reflexos no prestígio e clientela do profissional. Entretanto, evidências sugerem que pode haver uma redução significativa na propensão da vítima a processar e um acréscimo na disposição de resolver precocemente a questão quando há uma divulgação aberta de um pedido de desculpas juntamente com a admissão de culpa. Apologies se manifestam por palavras claras com o reconhecimento de que algo errado aconteceu e que medidas serão tomadas para prevenir eventos futuros, e uma expressão de sincero pesar.14 Atualmente existem regras sobre desculpas em algumas jurisdições do common law, podendo ser destacada a Apology Act 2006, da Columbia Britânica.15 As duas funções principais das normas especiais são as de proteger as desculpas (independentemente de como definidas) de serem consideradas admissões de responsabilidade ou de serem admitidas como evidências de uma admissão de responsabilidade. Quando o legislador decide que normas morais assumam o status de normas legais criando um novo conjunto de regras, de alguma forma acaba "confinando" a norma moral. Daí surge a questão de como regramentos sobre desculpas podem impactar no sistema moral de onde elas se originam.  No aspecto teórico, de um lado se colocam as teorias autopoéticas de Luhmann16 e Teubner e, de outro, Habermas, que percebe os sistemas como interpenetrativos, preocupando-se com a extensão em que a lei "coloniza" outras partes do 'mundo da vida'.17 Para Luhmann, o sistema jurídico é fechado porque trabalha com o binômio "legal" ou "ilegal". Todavia, o sistema jurídico é "cognitivamente aberto"; permitindo que uma noção moral se torna legal, por vezes mantendo o seu significado (como no caso das desculpas). Em sua Teoria da Ação Comunicativa, Habermas frisa que a colonização do mundo da vida depende exatamente de como a juridificação opera. Para ele, as questões próximas a moralidade são 'instituições jurídicas', sendo possível converter contextos socialmente integrados ao meio do direito, o que provoca distúrbios funcionais, pois a juridificação perturba a lógica interna da questão do mundo da vida - e aqui ingressa a visão da comunidade moral sobre as desculpas. O ponto fulcral consiste em saber se trazer o pedido de desculpas para o domínio legal, tutelando-a, confere as apologies um significado distinto ao que era quando apenas parte do subsistema moral de uma comunidade, onde exerce a função precípua de manter a sua civilidade. A final, o conselho jurídico comum para que o autor do ilícito não se desculpe, deriva do entendimento de que o pedido de desculpas possui um significado jurídico - o de uma admissão de responsabilidade - que provavelmente nunca teve. Cumpre investigar se a interação entre as normas morais e as normas legais é capaz de propiciar um espaço cultural no qual negociar uma disputa possa ser melhor para todas as partes ou se a interação entre elas cria algo que altera o mundo jurídico de uma forma perigosa. A nosso sentir, a visão de Habermas de que a lei juridifica o mundo da vida, ou pode colonizá-lo, parece absolutamente justificada no câmbio do pedido de desculpas para se adequar aos requisitos legais. Se o pedido de desculpas for alterado em seu efeito substantivo ao ser normativamente internalizado, ele não atuará da forma conhecida no mundo da vida. Uma pessoa que pede desculpas, assim age independentemente de seus efeitos jurídicos, mesmo sabendo que isso pode não influenciar na disposição do ofendido para obter a totalidade de uma indenização por danos. No pedido de desculpas categórico, completo e moral o indivíduo take responsibility, mesmo sabendo que a liability eventualmente permanecerá. Todavia, quando desculpas completas são protegidas pela lei e suas consequências regradas, a par da legítima tentativa de importação da influência civilizadora e moral do processo de desculpas e reconciliação para o processo legal, é possível que parte da força do impacto moral deste pedido de desculpas possa ser desvirtuado, notadamente pelo fato de que muitos tentarão simplesmente corromper o sentido moral das desculpas, servindo-se processualmente da chamada "desculpa estratégica".18 E o que temos hoje para o direito brasileiro? Como bem anotou Cicero Dantas Bisneto em texto publicado no migalhas de responsabilidade civil,19. Constata-se que a jurisprudência nacional tende a encarar as formas não monetárias de reparação do dano moral de maneira casuística, a depender de específicas previsões legislativas, não situando a reparação natural como regra geral do sistema de responsabilidade civil. Parte-se, assim, da falsa premissa de que os modos específicos de reparação, que não se identifiquem com a solução monetária, sujeitar-se-iam à necessidade de explícito acolhimento normativo, sem o qual não seria possível o emprego de expedientes não pecuniários de recomposição de bens jurídicos existenciais. Apostamos nossas fichas no otimismo. A despeito de considerarmos um pedido de desculpas como algo "legal" ou "moral", acreditamos que os sistemas jurídicos que induzem comportamentos virtuosos como uma full apology, serão realmente eficazes na redução dos danos. Como bem evidenciou Maria Cândida do Amaral Kroetz em obra coletiva publicada pelo IBERC,20  comparado a outros métodos de resolução de disputas, para o direito brasileiro a mediação provou ser um fórum ideal para a formulação do pedido de desculpas, porque os princípios de confidencialidade e autodeterminação que governam o processo permitem que ocorra o perdão e a reconciliação, restaurando o equilíbrio de poder entre vítima e ofensor. __________ 1 WINIGER, Bénédict. Responsibility, Restoration and fault. Cambridge, Intersentia, 2018, p. 139: "In general, on might say thar rules of responsibility are applicable to every human action: prior to acting in order to decide what someone may and should do, during the action in relation to how and in which manner something is to be done, and after the action in relation to how behave towards the victim". 2 "If restoration is not complete, it would be more appropriate to say he did not take his responsibility or did so only in part. If he attempted in vain to accomplish full indemnification, one could say, for example, that he took his responsibility 'as far as possible'". WINIGER, Bénédict. Responsibility, Restoration and fault. Cambridge, Intersentia, 2018, p. 77. 3 Peter Cane, visualiza a responsabilidade civil como "a set of rules and principles of personal responsibility" que opera no sentido de estabilizar comportamentos aceitáveis. The Anatomy of Tort Law, Hart Publishing, Oxford, 1997, p 15. 4 Uma vez que a responsabilidade civil em regra não trata do elemento intencional do autor do ilícito (art. 944, CC), no sentido de que o agente só tem que deixar de cumprir o padrão de cuidado da pessoa razoável, tratar de desculpas no direito civil não é tão óbvio quanto no direito penal, que pressupõe que o ofensor agiu de forma legalmente e moralmente ilícito, o que atrai a área da justiça restaurativa, onde o pedido de desculpas pode ser muito significativo. 5 LEVINAS, Emanuel considera as desculpas como uma parte essencial da responsabilidade ética e "o ato arquetípico da liberdade humana, incluindo a liberdade de alterar a própria identidade ao longo do tempo". In Totalidade e Infinito, Edições70, São Paulo, 2016. 6 Enquanto a justiça corretiva se prende a uma específica relação entre duas pessoas formalmente iguais - os gregos chamavam esse liame de synallagma -, a justiça distributiva utiliza uma proporção diversa, aplicando-se às relações entre uma pessoa e a sociedade distribuída como um todo.  De forma mais incisiva, a justiça corretiva requer que em uma relação entre partes iguais (relações correlativas), naquilo que Aristóteles denomina "transações involuntárias", o dano seja objeto de compensação pelo magistrado, havendo uma anulação dos ganhos do autor do ilícito ou das perdas da vítima, corrigindo-se assim uma prévia injustiça. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco, p. 105. 7 WEINRIB, Ernest J. The idea of private law. Como um purista radical Weinrib concede à justiça corretiva o monopólio da fundamentação normativa da responsabilidade civil, mediante a exclusão de elementos distributivos. 8 BONNA, Alexandre. Indenização punitiva e responsabilidade objetiva no Brasil - Teoria de Jules Coleman, p. 98. 9 VINES, Prue. The power of apology: Mercy, Forgiveness or corrective justice in the civil liability arena? 10 TAVUCHIS, Nicholas. Mea Culpa: a sociology of apology and reconciliation, Stanford University Press, Stanford, 1991, p 39. 11 SMITH, Nick, 'The Categorical Apology' (2005) 36(4) Journal of Social Philosophy 473 at 473. 12 VINES, Prue. The power of apology: Mercy, Forgiveness or corrective justice in the civil liability arena? 13 ROBBENOLT, J K, 'Apologies and Legal Settlement: an empirical examination' (2003) 102 Michigan Law Review 460. 14 WEY Marilynn 'Doctors, Apologies, and the Law: an Analysis and Critique of Apology Laws (2007) Journal of Health Law, disponibilizado em SSRN. 15 (1) an apology made by or on behalf of a person in connection with any matter (a) does not constitute an express or implied admission of fault or liability by the person in connection with that matter, (b) does not constitute a confirmation of a cause of action in relation to that matter for the purposes of section 5 of the Limitation Act, (c) does not, despite any wording to the contrary in any contract of insurance and despite any other enactment, void, impair or otherwise affect any insurance coverage that is available, or that would, but for the apology, be available to the person in connection with that matter, and (d) must not be taken into account in any determination of fault or liability in connection with that matter. 16 Luhmann encara isso em termos de ambos os domínios (moral e legal) mantendo sua própria integridade, retrabalhando tudo o que "irritante" aparece neles. Assim, para que um pedido de desculpas seja um pedido de desculpas protegido, ele deve se enquadrar na definição legislativa de pedido de desculpas, sendo que todas as outras desculpas se tornam irrelevantes. As desculpas terão uma função jurídica diferente de sua função moral. Ele se aproximará dessa função moral, mas o próprio sistema jurídico o transforma em uma criatura própria, como sugere Luhmann. O fato de que isso pareça distorcer o regime moral das desculpas, em última análise, não importa para o sistema jurídico, que está interessado apenas em seu próprio universo. "Todo esto conduce a Luhmann a concluir que la legitimación de las actuaciones de un sistema habrá de ser producto del propio sistema y no venir dada desde fuera. No podrá ser el consenso o la conformidad con valores morales lo que legitime una decisión jurídica o política, una teoría científica, etc. Será el funcionamiento normal de los mecanismos internos de cada uno de estos sistemas el que acarree para sus actuaciones el reconocimiento social necesario" ANTONIO, García Amado Juan. La filosofía del derecho de Habernas y Luhmann. Universidad Externado. 17 HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia - entre facticidade e validade. Vol. I. Rio de Janeiro, Edições tempo brasileiro, 1997, p. 145. O autor demonstra o equívoco em entender os aspectos da legalidade como limitações da moral, optando pela relação de complementaridade. A constituição da norma jurídica se faz necessária para compensar o déficit da ética tradicional que só se responsabiliza por juízos equitativos. Uma moral dependente de estruturas de personalidade seria limitada em sua eficácia se não pudesse ser institucionalizada por um sistema jurídico que complementa a moral da razão, concedendo eficácia para a ação. 18 TAFT, Lee. Apology Subverted: the commodification of apology' (2000) 109 Yale Law Journal 1135 at 1156. Com efeito, considerar o pedido de desculpas insincero ou estratégico pode ser esclarecedor. O que acontece quando alguém pede desculpas simplesmente porque pensa que o pedido de desculpas irá impedir que seja processado ou pelo menos mitigar a indenização? Mesmo desculpas forçadas são consideradas de algum valor moral. 19 DANTAS BISNETO, Cicero. Reparação não pecuniária de danos extrapatrimoniais e covid-19. Publicado em 9.7.2020, no Migalhas. 20 AMARAL KROETZ, Maria Cândida do. Adianta pedir desculpas? Reflexões sobre a reparação dos danos morais. In, RUZYK, Carlos Eduardo Pianovski; ROSENVALD, Nelson (coord). Novas fronteiras da responsabilidade civil/ Indaitauba, Foco, 2020, p. 104.
Introdução Ao longo desse semestre, a maioria das minhas colunas sobre o Direito Privado na Common Law discutiu o modelo de tutela coletiva de direitos a partir de uma perspectiva comparada e empírica.1 O caso do Dieselgate foi usado como referência para a reflexão sobre a proteção dos direitos dos consumidores nos Estados Unidos, na União Europeia e no Brasil.2 Nesse contexto, discutiu-se ainda a figura do 'Special Master', isto é, de um administrador judicial para a responsabilização coletiva e espécie de síndico da massa devida.3 O caso Dieselgate também possui uma dimensão de proteção coletiva ao meio ambiente e é necessário discutir a relevância dos fundos especiais para a tutela de direitos difusos. Aliás, os leitores da coluna já foram brindados com lições excelentes sobre o tema nas duas últimas colunas elaboradas pela professora Thais Venturi, que trataram com enorme detalhamento sobre os fundos reparatórios nos Estados Unidos para danos decorrentes da poluição ambiental a partir do Comprehensive Environmental Response, Compensation and Liability Act (CERCLA), da experiência estadunidense com o World Trade Center Victim Fund (WTCVF) e do Gust Coast Claim Facility (GCCF) e dos critérios para o desenho institucional dos fundos reparatórios.4 A eminente professora discorreu ainda sobre a existência do Fundo de Defesa de Direitos Difusos a partir da Lei da Ação Civil Pública (Lei n. 7.347/85), referindo-se à experiência brasileira com fundos reparatórios a partir das transgressões socioambientais de Mariana e Brumadinho e do acidente aéreo do Voo TAM-3054 e refletindo sobre os desafios para a implementação desses fundos no Brasil.5 O presente artigo também discute desafios brasileiros. Primeiro, com o caso do Dieselgate, reflete-se sobre a experiência dos Estados Unidos com fundos especiais desenhados para composição dos danos difusos sofridos pela coletividade. Segundo, com o compromisso por um plano antirracista celebrado no Rio Grande do Sul, valoriza-se a implementação dos fundos especiais como instrumento relevante para a tutela de direitos difusos e para a adoção de medidas de caráter estruturante em nosso país. Os fundos especiais e a possibilidade de recomposição ambiental Além da possibilidade de fundos reparatórios de interesses individuais homogêneos de vítimas lesadas, a experiência estadunidense revela a importância de implementação de fundos especiais para a recomposição do meio ambiente e dos interesses difusos violados pela poluição ambiental. Exemplo pródigo foi o caso do Dieselgate nos Estados Unidos, em que a empresa responsável pela fabricação dos veículos com emissão excessiva de gases poluentes se comprometeu a disponibilizar 4,7 bilhões de dólares para serem aplicados em dois fundos especiais de recomposição do meio ambiente degradado. Um fundo de 2,7 bilhões de dólares foi criado para um programa de redução da emissão de óxido de nitrogênio na atmosfera com o financiamento da troca de ônibus escolares velhos por novos veículos elétricos, da adoção de maquinário na construção mais sustentável do ponto de vista energético e de outros projetos para liderar a redução da poluição.6 Além disso, outro fundo especial de dois bilhões de dólares foi desenhado especialmente para a promoção de veículos energizados a bateria, incluindo pesquisa e desenvolvimento e instalação de estações públicas de recarga de baterias de automóveis elétricos.7 O resultado do acordo homologado pelo Poder Judiciário foi a criação da Electrify America LLC, responsável por uma rede pública de carregamento elétrico de automóveis que já conta com cerca de 500 estações para promoção da adoção de veículos com emissão zero de ('Zero-Emission Vehicles'), bem como com o compromisso de educar e conscientizar o público a respeito dos benefícios dos veículos não-poluidores.8 O compromisso por um plano de recomposição ambiental celebrado na Califórnia deu origem a três ciclos de investimentos divididos em trinta meses para desenvolvimento da infraestrutura de acesso e para programas de educação nos Estados Unidos. Logo, além dos fundos de reparação de interesses individuais homogêneos lesados, a reparação integral dos danos difusos e coletivos necessita eventualmente de planos, programas e medidas concretas definidas sob medida para enfrentamento das lesões decorrentes da transgressão coletiva. Em contraste com o exemplo dos Estados Unidos, contudo, o caso Dieselgate não resultou dentre nós em compromisso de recomposição ambiental dos danos causados pela poluição atmosférica devido ao excesso de emissão de oxido de nitrogênio. Além da multa de cinquenta milhões de reais aplicada pelo IBAMA em 2015,9 não existe notícia de nenhuma medida estruturante no âmbito da tutela coletiva do meio ambiente para responsabilização da empresa através da promoção de veículos com emissão zero ou da educação do público para os benefícios decorrentes dos carros elétricos.10 É importante salientar que a aplicação dos institutos varia conforme o Estado, o direito positivo e o contexto. No caso brasileiro, o Estado se caracteriza como um Estado Socioambiental de Direito, com a missão de promoção do desenvolvimento sustentável e de reparação integral do meio ambiente lesado, bem como de superar a desigualdade, pobreza e discriminação.11 Além disso, nosso direito positivo prevê expressamente fundos de recomposição de danos difusos, termos de compromisso de conduta, dever de reparação integral e obrigações de fazer e de não fazer no âmbito da tutela coletiva de direitos.12 Logo, em tese, seria possível exigir da empresa o compromisso de eletrificar o Brasil, o que, contudo, não aconteceu. Por outro lado, foram estabelecidos fundos especiais com possibilidade de transformação social no compromisso por um plano antirracista celebrado recentemente no Rio Grande do Sul. Os fundos especiais e a possibilidade de transformação social Na última semana, o Ministério Público Federal, o Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, o Ministério Público do Trabalho, a Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, a Defensoria Pública da União, Educafro e Centro Santo Dias de Direitos Humanos celebraram um termo de compromisso de ajustamento de conduta com o Carrefour com o objetivo de estabelecimento de medidas para evitar a ocorrência de atos de racismo e discriminação racial em âmbito nacional.13 O Carrefour se compromete a estabelecer um plano antirracista com reforço e ampliação de sua política de enfrentamento ao racismo, à discriminação e à violência, bem como de promoção dos direitos humanos em todos os seus estabelecimentos no território nacional. Importante, o plano também pretende promover a diversidade.14 Foi definido um protocolo de segurança com novo modelo de atuação para sua equipe interna de prevenção e fiscalização. Além de ter aplicação interna, o plano possui impacto na cadeia de produção da rede de supermercados, na medida em que as empresas terceirizadas também devem treinar seus trabalhadores para prevenção de práticas discriminatórias. Além disso, devem ser disponibilizados canais de denúncias, cabendo ao Carrefour fiscalizar, notificar e advertir eventuais infratores. Eventual contenção física pelas equipes de segurança deve ser proporcional e moderada. Ademais, a rede de supermercados se compromete a não contratar empresas de segurança que contem com policiais da ativa, nem tenham envolvimento com organizações criminosas ou com atividades de milícia. O Código de Ética e Conduta do Carrefour Brasil será alterado de modo objetivo para reforçar a proibição de práticas discriminatórias, maus tratos, constrangimentos e riscos de violência física e moral nos estabelecimentos, devendo os trabalhadores e trabalhadoras se submeter a treinamentos sobre os novos padrões e sobre práticas antirracistas em geral.15 Os canais de denúncias devem estar abertos para notícias de agressão, preconceito e discriminação por raça, orientação sexual ou identidade de gênero, deficiência ou qualquer forma de intolerância, atendendo clientes, colaboradores e fornecedores. Além das medidas adotadas no âmbito das relações internas de trabalho, também foi assumido um compromisso amplo de medidas no eixo da sociedade brasileira em geral. Será estabelecido um protocolo de treinamento específico para seus dirigentes e trabalhadores com relação ao racismo estrutural,16 com carga mínima de duas horas e esclarecimento sobre as bases do racismo no Brasil, os conceitos de racismo, preconceito, discriminação, segregação, racismo estrutural e institucional, bem como incentivo de atitudes antirracistas, cumprimento da política de diversidade e dos compromissos sociais assumidos.17 Nesse contexto, existe a previsão de ações concretas de impacto social nas áreas de educação, empregabilidade e empreendedorismo, através da concessão de bolsas de estudo e permanência para pessoas negras em nível de graduação e pós-graduação no valor total de sessenta e oito milhões de reais. Também serão concedidas bolsas de estudo para pessoas negras em idiomas, inovação e tecnologia para a formação de jovens profissionais para o mercado de trabalho no valor de seis milhões de reais. Por sua vez, empreendedores negros poderão receber contribuições para investimentos em projetos de inclusão social em redes aceleradoras no valor total de oito milhões. Haverá ainda investimentos de dois milhões de reais em projetos de memória ou reflexão sobre o processo de escravidão e tráfico de escravos na região do Cais do Valongo no Rio de Janeiro. Serão disponibilizados ainda quatorze milhões de reais para campanhas educativas de combate ao racismo e projetos sociais com foco no combate ao racismo. Além disso, serão lançados programas específicos de estágio e de trainee para pessoas negras para fomentar quadros de liderança na empresa, com investimentos de quatro milhões de reais. Também será feito um programa de desenvolvimento e de capacitação de 300 empregados negros como alavanca de carreira para facilitar o acesso a posições de liderança na empresa com investimentos da ordem de cinco milhões de reais. Além do compromisso de estabelecimento de uma cadeia de fornecimento sustentável, existe o compromisso de fomento de inclusão de comunidades tradicionais, especialmente de quilombolas, através de parcerias com cooperativas vinculadas a elas e investimentos de dois milhões de reais. Também serão contratadas empresas de consultoria para a fiscalização do cumprimento das medidas previstas no compromisso. O investimento total decorrente do compromisso é de cento e quinze milhões de reais.18 Além disso, o Ministério Público do Rio Grande do Sul também tinha expedido uma recomendação para que o Estado elabore um projeto de lei que assegure uma melhor fiscalização de empresas de segurança privada.19 Aliás, o homicídio de João Alberto Silveira de Freitas no interior do supermercado em Porto Alegre após abordagem violenta e sufocamento em 19 de novembro de 2020 nos remete ao homicídio de George Floyd no dia 25 de maio de 2020.20 Nos Estados Unidos, já houve condenação de policial pelo homicídio,21 mas o Projeto de Lei para reforma policial e proteção de direitos civis dos investigados intitulado George Floyd Justice in Policing Act não teve apoio suficiente no senado para ser aprovado em 202022 e está enfrenta resistências para se tornar lei federal nos Estados Unidos.23 Contudo, tanto nos Estados Unidos, quanto no Brasil, os movimentos sociais estão mobilizados para o enfrentamento do racismo estrutural. O potencial transformador das medidas estruturantes Em breve síntese, o fundo especial é instrumento com enorme potencial para a tutela de direitos difusos, para a recomposição do meio ambiente lesado e para a transformação social. Não procedem críticas de que o fundo especial não possuiria previsão legal, violaria a separação dos poderes ou seria intervenção indevida do Poder Público na esfera da atividade privada.24 Além de ser um instituto aplicado na maior economia capitalista do mundo, existe a previsão legal dos fundos genéricos de defesa de direitos difusos e de uma série de institutos que possibilitam o estabelecimento dos fundos especiais para a efetiva tutela coletiva de direitos no Brasil. Por outro lado, cabe ao Poder Judiciário o controle jurisdicional dos compromissos assumidos, inclusive para assegurar a adequação das medidas estruturantes para a reparação dos bens jurídicos lesados pela transgressão coletiva e a proteção dos interesses da coletividade. Nesse sentido, aliás, o compromisso assumido pelo plano antirracista celebrado no Rio Grande do Sul deve servir de paradigma pela sua qualidade técnica e potencial impacto estruturante.25 Considerações finais O fenômeno jurídico varia conforme o direito positivo, mas também o contexto de sua aplicação, a interação dinâmica dos atores relevantes e a perspectiva intersubjetiva que legitima suas práticas, institutos e instrumentos. No caso dos fundos especiais, sua adoção como instrumento da tutela coletiva de direitos foi viabilizada no compromisso pelo plano antirracista por uma coalizão ampla de atores institucionais - Ministério Público Federal, Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul, Ministério Público do Trabalho, Defensoria Pública da União, Defensoria Pública do Estado do Rio Grande do Sul, Educafro e Centro Santo Dias de Direitos Humanos.26 Já no caso do Dieselgate, não ocorreu atuação semelhante aos Estados Unidos, nem foram mobilizados fundos especiais para a recomposição do meio ambiente no Brasil. Espera-se que o compromisso celebrado no Rio Grande do Sul sirva de paradigma para a efetiva tutela coletiva de direitos através da adoção de fundos especiais de defesa dos direitos difusos no Brasil. *Pedro Fortes é professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Ewing, Jack. Faster, Higher, Farther: The Inside Story of the Volkswagen Scandal. London: Bantam Press (2017), p. 236. 7 Idem, p. 236. 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 Existe literatura relevante sobre os processos estruturais no direito brasileiro bem representada pela seguinte coleção de textos: ARENHART, Sérgio Cruz; JOBIM, Marco Félix (Ed.). Processos estruturais. JusPodivm, 2017. 11 SARLET, Ingo Wolfgang. Estado socioambiental e direitos fundamentais. Livraria do Advogado Editora, 2010. 12 Aliás, conforme demonstrado por Edilson Vitorelli e Matheus Rodrigues Oliveira, a União Federal não aplicou os recursos do Fundo de Direitos Difusos (FDD) para a recomposição dos danos difusos. Veja: VITORELLI, Edilson; OLIVEIRA, Matheus Rodrigues. O Fundo Federal de Defesa dos Direitos Difusos e o desvio de finalidade na aplicação de seus recursos. Revista de Direito Administrativo, v. 278, n. 3, p. 221-250, 2019. 13 Disponível aqui. 14 Todas as informações apresentadas nesse artigo foram extraídos da cópia do documento disponibilizada no sítio do Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. 15 Para uma introdução ao tema, veja RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antiracista. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. 16 Sobre o racismo estrutural, veja ALMEIDA, Silvio. Racismo Estrutural. São Paulo: Jandaíra, 2019. 17 Sobre outro conceito importante, de racismo recreativo, veja Moreira, Adilson. Racismo Recreativo. São Paulo: Jandaíra, 2019. 18 Disponível aqui. 19 Disponível aqui. 20 Disponível aqui. 21 Disponível aqui. 22 Disponível aqui. 23 Disponível aqui. 24 Tais críticas apareceram em formas variadas nos comentários dos leitores à seguinte reportagem do uol. 25 Essa também é a opinião de Ana Cristina Rosa, que considerou o acordo como histórico e espera que sirva de paradigma para a promoção da diversidade e o combate ao racismo e à discriminação no Brasil. 26 Disponível aqui.
Introdução Na última coluna iniciei a discussão sobre se a "corresponsabilidade" do lesado seria aplicável ou não em âmbito contratual. Como foi explicado, nos EUA a doutrina tem refletido sobre esta questão. O instituto da corresponsabilidade (comparative negligence) se popularizou no campo da responsabilidade civil extracontratual (tort law), mas a mesma mudança tem demorado a ocorrer no Direito Contratual. Foi apresentado artigo de Ariel Porat, no qual este autor analisa as dificuldades e benefícios de reconhecimento da figura no direito contratual americano1. Na presente coluna vamos enfrentar a questão à luz do direito brasileiro. Como sabido, a corresponsabilidade do lesado é instituto consagrado em âmbito extracontratual, previsto expressamente no art. 945, do Código Civil. A questão a analisar é se, em âmbito contratual, é possível reconhecer como juridicamente relevantes situações em que devedor e credor concorrem culposamente para o evento danoso, de modo a haver uma corresponsabilidade entre as partes e consequente redução do valor da indenização do lesado. Nesta empreitada, vamos primeiramente verificar se já há manifestações da corresponsabilidade do lesado no direito brasileiro e, em seguida, analisar possíveis obstáculos ao reconhecimento do instituto. Expressões da corresponsabilidade do lesado no direito contratual Feita uma varredura nas principais leis e na jurisprudência do STJ, verificou-se que já existem manifestações reconhecidas de corresponsabilidade do lesado no direito brasileiro. De um lado, na Consolidação das Leis do Trabalho encontra-se previsão legal acerca de situação, no contrato do trabalho, em que empregador e empregado concorrem culposamente para a rescisão do contrato: "Art. 484. Havendo culpa recíproca no ato que determinou a rescisão do contrato de trabalho, o tribunal de trabalho reduzirá a indenização à que seria devida em caso de culpa exclusiva do empregador, por metade." Além disso, encontram-se pelo menos duas decisões do STJ em que há referência expressa à aplicação da corresponsabilidade do lesado ("culpa concorrente") ao campo contratual: REsp 1615977/DF, Rel. ministro Marco Aurélio Bellizze, Terceira Turma, julgado em 27/09/2016, DJe 07/10/2016 e REsp 1581075/PA, Rel. Ministro Moura Ribeiro, Terceira Turma, julgado em 19/03/2019, DJe 22/03/2019. Possíveis obstáculos; superação Há dois possíveis obstáculos para o reconhecimento da corresponsabilidade do credor. O primeiro é a concepção tradicional segundo a qual o credor não responde pelos danos que a sua mora causar ao devedor. Por todos, podemos ilustrar essa posição pela pena de Clóvis Beviláqua: "o Codigo Civil brasileiro, seguindo a doutrina do alemão, obriga-o, somente, a pagar as despesas de conservação, porque não associa á móra accipiendi a culpa. Se ocorrer algum damno ao devedor, depois da mora do credor, este não responderá por ele, se lhe não tiver dado causa por acto seu."2 Este obstáculo encontra-se superado, todavia. A percepção sobre a situação jurídica do credor alterou-se ao longo do século XX. Se no início do século passado imperava entre a noção de que o credor era inteiramente livre em relação ao pagamento do devedor, atualmente vigora na doutrina3 e na jurisprudência4 percepção distinta: a de que, com base na boa-fé (art. 422, CC), o credor tem o dever de cooperar com o devedor no pagamento. Há ainda a posição daqueles que veem o credor como titular da incumbência ou ônus jurídico de cooperar, sob pena recaírem sobre si certas desvantagens jurídicas5. Concordamos que o credor tem sim o dever de cooperar no adimplemento. O art. 422, do CC, impõe a ambas as partes contratantes o dever de guardar a boa-fé. E esta previsão é incompatível com o agravamento da posição do devedor, ou com a criação de complicações para o seu adimplemento. O segundo possível obstáculo é a percepção binária e mutuamente excludente a que o direito contratual está acostumado a trabalhar: se a inexecução foi culposa, o devedor responde integralmente por perdas e danos. Por outro lado, se o credor tiver dado causa ao inadimplemento, não terá havido inexecução culposa e, portanto, o devedor está inteiramente livre de qualquer responsabilização. Esta percepção pode ser exemplificada com a percepção tradicional de que não é possível haver simultaneamente mora do devedor e do credor6. De fato, a princípio, essa pode parecer a conclusão correta. Segundo o art. 394, do CC, considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não recebê-lo no tempo estabelecido, entre outras situações. Com efeito, em um primeiro momento, é até intuitivo pensar que só é possível haver a configuração de uma ou de outra situação - ou o devedor ou credor que dá causa à não efetuação do pagamento -, mas nunca os dois conjuntamente. Aprofundando a análise, verifica-se, contudo, que, na realidade, é sim possível haver situações em que tanto o devedor quanto o credor concorrem culposamente para um mesmo evento danoso, como, por exemplo, o inadimplemento do devedor. Na coluna anterior apresentei três casos trabalhados por Ariel Porat. Por conta de limitações de espaço, vamos retomar e analisar aqui apenas um deles, mas as conclusões são generalizáveis. O caso é o seguinte: X é um subempreiteiro e Y é um empreiteiro. Eles celebram contrato para que X realize as obras e para que Y pague parcelas em diferentes fases da construção. Em determinado momento, X argumenta que atingiu uma dessas etapas de pagamento e, portanto, tem direito a uma parcela. Na verdade, X não tem este direito, uma vez que não cumpriu um requisito adicional estipulado no contrato. X não está ciente dessa exigência suplementar por causa de um descuido de sua parte. Y recusa-se a pagar, afirmando que, nos termos do contrato, não é obrigado a fazê-lo e não fornece qualquer outra explicação. X, então, interrompe a execução da obra, causando prejuízo a Y. Somente depois de um mês, durante o qual Y obstinadamente se recusou a se encontrar com X, Y explica a X por que ele não tinha direito ao pagamento7. Sob uma perspectiva atual, não há razões para não conceber que tanto a conduta de X quanto a de Y concorrem culposamente para o evento danoso (inadimplemento de X) e os danos daí decorrentes. Há inadimplemento culposo de X, na medida em que foi ele quem interrompeu indevidamente a obra. Mas há também inexecução culposa de Y, uma vez que este estava ciente do desconhecimento da outra parte sobre seus direitos e deveres e podia facilmente esclarecê-la. Segundo o art. 422, do CC, ambas as partes devem agir conforme a boa-fé. Dentre outros deveres, a boa-fé objetiva impõe deveres de informação, os quais, segundo bem leciona Menezes Cordeiro, "obrigam as partes a trocar todas as informações necessárias, de modo a que [...] se verifique, no cumprimento, a necessária colaboração entre as partes e, pelo que tange ao devedor: o cumprimento opere em termos satisfatórios, de acordo com o programa obrigacional em execução." Cordeiro complementa que "os deveres de informação recaem sobre a parte que detenha o conhecimento da matéria. Naturalmente, eles poderão ser mais intensos, perante uma parte débil. Não dependem, porém, de explícitas perguntas: nem isso faria sentido pois, em regra, só pergunta quem sabe."8 No caso concreto, como visto, o credor Y tinha conhecimento da ignorância de X e podia facilmente orientá-lo. Por conta da boa-fé, conclui-se que ele deve fazê-lo. Y não pode omitir-se e assim tirar deliberadamente vantagem do descuido da outra parte. Por outro lado, a inexecução de Y não desnatura a de X, na medida em que foi este quem interrompeu indevidamente a obra. Para esta conclusão, não se pode perder de vista que era de X a responsabilidade a aferição, interpretação e cumprimento de suas obrigações nos termos do contrato. Este seria, portanto, um caso ilustrativo de corresponsabilidade do credor lesado, em que ambas as partes concorreram culposamente para o evento danoso e, consequentemente para os danos daí decorrentes. E como fica, neste caso, a fixação da indenização? A melhor solução é aplicar, por analogia, o art. 945, do CC, que prevê o critério do confronto da gravidade da culpa de ambas as partes. Conclusão A figura da corresponsabilidade do lesado é aplicável no direito contratual brasileiro. Deve-se notar, em primeiro lugar, que este reconhecimento não é de todo inovador, pois a figura já vem sendo aplicada pelo STJ e encontra expressão específica no art. 484, da CLT. Além disso, os possíveis obstáculos ao reconhecimento do instituto revelaram-se suplantáveis. De um lado, não vigora mais a ideia tradicional de que o credor seria titular apenas de direitos, e não também de deveres. Com base no art. 422, do CC, hoje é predominante o entendimento de que o credor tem o dever acessório, fundado na boa-fé, de cooperar no pagamento com o devedor. De outro, é também superável a percepção binária de que ou há responsabilidade integral do devedor ou, havendo concurso do credor, estaria excluída a culpa daquele, com a sua consequente irresponsabilidade. Como se verificou, é sim possível que a conduta culposa de ambas as partes concorra para o evento danoso. E, em uma situação como essa, deve-se reconhecer a corresponsabilidade de ambos pelos danos decorrentes. Como consequência, a indenização do credor lesado deve ser reduzida, com fundamento na aplicação, por analogia, do art. 945, do CC, devendo ser fixada com base no confronto da gravidade da culpa do devedor e do credor. __________ 1 V. DIAS, Daniel. A "corresponsabilidade" do credor no Direito Contratual - Parte I Disponível aqui. Acesso em: 10 jun. 2021. 2 BEVILÁQUA, Clóvis. Código civil dos Estados Unidos do Brasil comentado, v. 4. 6. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1943, p. 113. 3 MARTINS-COSTA, Judith. Comentários ao novo Código civil, volume V, tomo II: do inadimplemento das obrigações. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 425. 4 REsp 1494386/PA, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 04/02/2020, DJe 19/05/2020. 5 FERREIRA DA SILVA, Jorge Cesa. Inadimplemento das obrigações. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2007, p. 118-119, comentando a regra do art. 400 do CC/2002, observa que "esse "dever" de cooperação constitui, na realidade, um ônus jurídico, cuja conseqüência prática é um regime jurídico peculiar para a mora creditoris, sendo desnecessária, até mesmo, a culpa do credor para a sua caracterização." 6 Sobre esta questão, ver: TEPEDINO, Gustavo; SCHREIBER, Anderson. Fundamentos do direito civil: obrigações. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021. p. 328, referindo-se a "mora recíproca". 7 V. DIAS, op. cit., 2021. 8 MENEZES CORDEIRO, António. Tratado de direito civil, vol. VI. 3. ed. Coimbra: Almedina, 2019, p. 515-516.
Na coluna anterior (parte I), analisamos alguns modelos de fundos reparatórios já utilizados pelo sistema de justiça norte-americano, revelando sua instrumentalidade para a concretização da multifuncionalidade da responsabilidade civil em casos de danos graves que afetam vítimas em massa. Por via de tais mecanismos - que se qualificam como verdadeiras claim resolution facilities, simplificam-se ou se otimizam os processos de definição das vítimas elegíveis à indenização, os critérios para a liquidação dos danos causados e a distribuição das compensações devidas, a imposição de medidas para se evitar a reincidência das condutas lesivas e para punir os responsáveis. Nesta segunda parte, analisaremos o modelo brasileiro de fundos reparatórios, assim como outros mecanismos que, superando a concepção da mera criação de fundos para distribuição equitativa de compensações, também se prestam à operacionalização do sistema de responsabilidade civil nas hipóteses de danos causados a direitos difusos, coletivos e individuais homogêneos. Os fundos reparatórios No sistema de tutela coletiva brasileira, em havendo condenação pecuniária no âmbito de ações coletivas propostas objetivando a reparação dos danos produzidos a quaisquer direitos de natureza transindividual, as indenizações devem ser destinadas para Fundos Administrativos, previstos originalmente pela lei 7.347/85 (Lei da ação civil pública).1 Em âmbito federal, o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos é administrado por um Conselho Gestor, ao qual compete anualmente definir, mediante seleção de projetos de investimento que lhe são encaminhados por pessoas jurídicas de direito público ou por entidades não governamentais sem fins lucrativos, a aplicação dos recursos destinados à recomposição social das lesões difusas.2 Ainda, referidos Fundos são também os destinatários legais da chamada fluid recovery prevista pelo artigo 100, do Código de Defesa do Consumidor.3 Na medida em que muitas vítimas de um mesmo evento lesivo acabem não sendo localizadas, ou não compareçam judicialmente para executar o responsável pelos danos individuais homogêneos, há a possibilidade de se apurar o montante pecuniário não buscado pelas mesmas, a fim de se integralizar o respectivo Fundo Reparatório.    Como se percebe, trata-se de um sistema que busca a melhor forma de compensação possível dos danos transindividuais (a critério dos conselhos gestores dos fundos), ao mesmo tempo em que pretende não deixar impunes os responsáveis pelos danos provocados, como acontece frequentemente por força dos obstáculos de acessibilidade à justiça das vítimas pela via das ações individuais. Em tese, ao menos, o modelo dos Fundos Reparatórios criado pela Lei da Ação Civil Pública promete não apenas a adequada compensação de danos, mas também a inibição eficaz, capaz de dissuadir a reiteração ou a continuidade da violação aos direitos essenciais, individuais ou transindividuais. Para além disso, a compreensão desses fundos de natureza administrativa parece afastar qualquer alegação a respeito de eventual locupletamento ilícito das vítimas, derivado de eventual agravamento das indenizações, por via da fixação de danos morais coletivos, por exemplo, nos casos de dolo ou culpa grave do responsável. De fato, a condenação fundamentada na produção de danos morais coletivos, já consagrada no sistema de justiça nacional de tutela coletiva, gera recursos que também são destinados aos referidos Fundos públicos. Como já tivemos a oportunidade de analisar, a jurisprudência nacional, apesar de inicialmente desabonar a concepção do dano moral coletivo,4 gradativamente vem se consolidando no sentido não apenas da consagração de tal teoria como, também, da necessidade da plena compensação coletiva dos danos morais, mediante os tradicionais critérios já estabelecidos pelos Tribunais Superiores, concernentes à ponderação entre a multifuncionalidade das funções da responsabilidade civil, sem desbordar para o enriquecimento sem causa das vítimas. Contudo, o modelo dos Fundos Reparatórios não se presta a operacionalizar toda e qualquer pretensão de reparação de danos de natureza difusa, coletiva ou individual homogênea. Como parece evidente, para cada tipo de conflito social devem ser utilizadas técnicas e procedimentos apropriados, seguindo-se a lógica não apenas da efetividade da tutela jurisdicional e da adequada proteção dos direitos, mas também da necessidade de sua eficiente instrumentalização.  É precisamente a partir dessas premissas que começam a ser utilizados e projetados, no Brasil, outros mecanismos judiciais e extrajudiciais objetivando a plena e eficaz implementação das funções da responsabilidade civil. Trata-se da incorporação de institutos típicos do common law, tal como as claim resolution facilities, já tratadas pela doutrina nacional como entidades de infraestrutura específica.5 Tais estruturas já vêm sendo utilizadas no Brasil, integrando desenhos resolutórios de conflitos coletivos em diversas áreas, tais como a sócio-ambiental. A análise de alguns casos concretos envolvendo a aplicação desses mecanismos pode auxiliar na sua melhor compreensão. O caso Mariana Na tarde de 5 de novembro de 2015, uma barragem de rejeitos de mineração controlada pela Samarco S.A. - uma joint-venture da Vale com a anglo-australiana BHP Billiton Brasil - se rompeu nas proximidades do município de Mariana/MG. Esse desastre acarretou o despejo de um volume de aproximadamente 62 milhões de metros cúbicos de detritos, numa enxurrada que atingiu 41 cidades ao longo a bacia do Rio Doce e chegou ao oceano atlântico após percorrer um trajeto superior a 600 quilômetros entre os Estados de Minas Gerais e Espírito Santo.6 Trata-se do maior desastre ambiental já registrado no Brasil e do maior acidente com barragem de rejeitos de mineração de que se tem conhecimento em nível mundial7. Os danos causados pelo rompimento da Barragem do Fundão em Mariana não foram apenas ambientais. No rastro de destruição causado pela lama tóxica, 19 pessoas perderam a vida, outras 600 ficaram desalojadas e milhares de usuários tiveram o abastecimento de água prejudicado devido à contaminação dos reservatórios ao longo da bacia do rio Doce. Até o momento, a Samarco assinou ao todo 24 acordos pelos quais assumiu publicamente a obrigação de reparar os danos indenizáveis decorrentes do rompimento da barragem. Merece destaque, dentre todos esses acordos, o Termo de Transação e Ajuste de Conduta (TTAC),8 celebrado em 2 de março de 2016 entre a Samarco, Vale, BHP Brasil, a União e os Estados de Minas Gerais e do Espírito Santo9. Esse TTAC define projetos socioeconômicos destinados ao público impactado direta10 e indiretamente11 pelo rompimento da barragem de Mariana. Por via desse TTAC, houve a constituição da Fundação Renova12 e do Programa de Indenização Mediada (PIM), custeado pela Samarco e responsável pelo desenvolvimento e implementação de 42 programas de reparação e compensação socioeconômicos e socioambientais.13 A Fundação Renova pode ser considerada um modelo de entidade de infraestrutura específica para a reparação de danos. Por seu intermédio, criou-se o chamado Sistema Indenizatório Simplificado, o qual, até abril de 2021, atingiu a marca de R$ 1 bilhão em pagamentos de indenizações a algumas categorias de vítimas que apresentam grandes dificuldades na comprovação dos danos sofridos em decorrência do rompimento da barragem, tais como lavadeiras, artesãos, areeiros, carroceiros, extratores minerais, pescadores de subsistência e informais, entre outros14. O Sistema Indenizatório Simplificado destina valores com quitação única e definitiva, que variam de R$ 17 mil a R$ 567 mil, de acordo com a categoria do dano15. A adesão é facultativa e deve ser feita por representação legal dentro do próprio site da Fundação. Para a formação do patrimônio da Fundação Renova e para a execução dos programas socioeconômicos e socioambientais, o TTAC estipulou aportes anuais destinados a duas categorias: recursos compensatórios e recursos reparatórios16. Os recursos compensatórios tiveram valor determinado em R$ 4,1 bilhões, sendo R$ 500 milhões destinados ao Programa de Coleta e Tratamento de Esgoto e de Destinação de Resíduos Sólidos entre 2016 e 2018 nos municípios situados ao longo do rio Doce, e os restantes R$ 3,6 bilhões distribuídos em parcelas anuais de R$ 240 milhões, durante 15 anos17, em recuperação de áreas de preservação permanentes, recuperação de nascentes e ações compensatórias em geral18. Os recursos reparatórios, cujo objetivo é mitigar, remediar e reparar os impactos socioambientais e socioeconômicos decorrentes do acidente, não tiveram um limite máximo de valor fixado. Isso quer dizer que, para as ações reparatórias que se fizerem necessárias, não haverá restrição com relação aos aportes anuais fixados preliminarmente pelo TTAC19. Até abril de 2021, R$ 13,1 bilhões foram destinados às ações de reparação e compensação, R$ 4,09 bilhões foram pagos em indenizações e auxílios financeiros emergenciais e outro R$ 1,08 bilhão pago em indenizações pelo Sistema Indenizatório Simplificado ao público atingido pelo rompimento com dificuldade de comprovação dos danos sofridos20. Apesar desses valores bilionários pagos em reparações por via dessa claim resolution facility, em fevereiro de 2021 o Ministério Público de Minas Gerais ajuizou Ação Civil Pública (autos nº 5023635-78.2021.8.13.0024, em trâmite perante a 5ª Vara Cível da Comarca de Belo Horizonte), pedindo a extinção da Fundação Renova. Conforme argumenta o MPMG, a Fundação "(...) vem atuando muito mais como um instrumento de limitação da responsabilidade das empresas mantenedoras (Vale e BHP Billiton) do que como agente de efetiva reparação humana, social e ambiental".21 Ademais, diante do alegado desvio de finalidade e ineficiência, a prestação de contas da entidade foi rejeitada por quatro vezes, o que ensejou o pedido do MPMG para que seja determinada liminarmente a intervenção judicial no seu conselho curador. Como se percebe, a utilização de um mecanismo estrutural especialmente construído para viabilizar, extrajudicialmente, a justa, adequada e eficiente reparação de todos os múltiplos danos causados pelo rompimento da barragem em Mariana, nem sempre se revela suficiente ou satisfatório. Quase seis anos após o rompimento da barragem em Mariana, é possível afirmar que nenhum dos programas reparatórios idealizados pelo referido TTAC foi integralmente concluído. De acordo com Procuradores da República integrantes da Força-Tarefa Rio Doce, do Ministério Público Federal (MPF), apenas 10.885 famílias (de um total de 31.755 famílias cadastradas) receberam algum tipo de indenização até agosto de 2020. Isso equivale a 34% do público total a ser indenizado22. Diante da insatisfatoriedade de uma resposta compensatória efetiva, várias ações judiciais foram propostas pelas vítimas, inclusive no Reino Unido, discutindo a responsabilidade da empresa BHP Billiton pelo desastre de Mariana.  O caso Brumadinho Em 25 de janeiro de 2019, pouco mais de 38 meses após o desastre ambiental de Mariana, a barragem B1 da Mina Córrego do Feijão, controlada pela Vale S.A. e localizada na região de Brumadinho/MG, rompeu-se e criou um tsunami de rejeitos que varreu construções industriais, casas, florestas e córregos, deixando um rastro de destruição e morte por onde passou. Até maio de 2021, o número oficial de vítimas fatais era de 270, muitas das quais soterradas pela lama sem que qualquer sirene pudesse alertá-las a tempo. Dez pessoas continuam desaparecidas desde então.23       Estima-se que 12 milhões de metros cúbicos24 de rejeitos transpuseram a barragem naquele dia, escoando a lama tóxica até o Rio Paraopeba, afluente do São Francisco, que corta o estado de Minas Gerais rumo a estados do Nordeste25. Dados geoespaciais do IBGE apontaram que o mar de lama se estendeu ao longo de 17 municípios às margens do Paraopeba, bem como para os reservatórios das usinas hidrelétricas de Três Marias e Retiro Baixo26, afetando em larga medida a qualidade da água na região e o abastecimento. Nos primeiros meses após a tragédia, o Ministério Público de Minas Gerais ajuizou duas Ações Civis Públicas atinentes às áreas socioambiental27 e socioeconômica.28 Foram firmados com a VALE, ainda, 27 Termos de Ajustamento de Conduta (contando as retificações feitas ao TAC original), visando estabelecer medidas emergenciais e formas de compensação relativas à tragédia em Brumadinho, bem como a realização de obras em outras regiões e o aprimoramento dos mecanismos de avaliação de segurança dos locais de mineração por meio de auditoria externa. Em janeiro de 2020, o MPMG ofereceu denúncias criminais por 270 homicídios dolosos duplamente qualificados contra 16 pessoas, entre engenheiros e dirigentes da Vale e da empresa alemã TüvSüd, responsável pelos laudos de segurança do local do acidente.29 Na esfera trabalhista, no bojo da Ação Civil Pública nº 0010261-67.2019.5.03.0028, que ainda tramita na 5ª Vara do Trabalho de Betim/MG, o Ministério Público do Trabalho firmou um acordo30 com a Vale, por meio do qual a empresa destinará aos familiares de empregados e terceirizados falecidos ou desaparecidos na tragédia valores a título de danos morais e materiais, segundo critérios próprios e mediante adesão dos familiares ao acordo. Pelos termos firmados, irmãos de trabalhadores falecidos receberão individualmente R$ 150 mil a título de dano moral. Cônjuges ou companheiros, pais e filhos (incluindo os menores) receberão individualmente R$ 500 mil pelos danos morais e, adicionalmente, o valor de R$ 200 mil referente ao seguro adicional por acidente de trabalho. Os critérios para a aferição dos danos materiais consideraram como base de cálculo o salário mensal, a gratificação natalina, as férias acrescidas de um terço, a Participação nos Lucros e Resultados (PLR) de 3,5 salários e cartão-alimentação ou ticket de R$ 745,00 por mês, até a data em que a vítima (empregados próprios e terceirizados) completaria 75 anos. Para além dessas reparações acordadas, a Vale pagou, ainda, indenização por danos morais coletivos de R$ 400 milhões em 6 de agosto de 2019, valor este que foi depositado em juízo e cuja destinação será definida por comitê composto pela Justiça do Trabalho, MPT e Defensoria Pública da União. Em fevereiro de 2021, a Vale firmou um acordo31 com o Estado de Minas Gerais, a Defensoria Pública mineira e os Ministérios Públicos Federal e Estadual para reparação integral dos danos ambientais e sociais decorrentes da tragédia. O acordo foi mediado no âmbito do Centro Judiciário de Solução de Conflitos e Cidadania (CEJUSC) e homologado pelo presidente do Tribunal de Justiça de Minas Gerais.32 O acordo, no valor de R$ 37,6 bilhões, abrange apenas os projetos de reparação socioeconômica e socioambiental de danos difusos e coletivos decorrentes da tragédia. Os danos transindividuais supervenientes, assim como os danos de natureza individual, não foram inseridos nesse acordo. Segundo dados fornecidos pelo Observatório Nacional Sobre Questões Ambientais, Econômicas e Sociais de Alta Complexidade e Grande Impacto e Repercussão, do Conselho Nacional de Justiça, e pelo Conselho Nacional do Ministério Público, até agosto de 2020 havia 3.799 processos individuais tramitando na Justiça Estadual, 1.442 na Justiça do Trabalho e 5 na Justiça Federal.33 Do valor global do acordo, foram destinados R$ 4,4 bilhões para a criação do Programa de Transferência de Renda à população atingida, programa esse que será estruturado, implementado e gerenciado pelo Poder Judiciário. Até então, a Vale vinha adotando critérios próprios para o pagamento de verba emergencial aos atingidos. Além disso, o acordo prevê a realização de obras para melhorar a qualidade de vida dos atingidos, investimentos na recuperação de municípios da Bacia do rio Paraopeba e destinação de recursos para áreas de saúde, saneamento e infraestrutura dessa região. O caso do acidente aéreo do voo TAM-3054 O acidente do voo TAM 3054, ocorrido em 17 de julho de 2007 em São Paulo, foi considerado o maior acidente aéreo no Brasil. A aeronave, que provinha de Porto Alegre, ao tentar pousar no Aeroporto de Congonhas/SP não conseguiu parar, ultrapassando os limites da pista e atingindo um posto de gasolina e um prédio comercial da própria companhia aérea TAM. Ao todo foram 199 vítimas fatais, incluindo 187 passageiros e tripulantes e mais 13 pessoas em terra. Três meses após o acidente, foi constituída a Associação de Familiares e Amigos das Vítimas do Voo Tam 3054 - AFAVITAM, cuja atuação ficou marcada pela coordenação dos processos de tomada de decisões a respeito das indenizações devidas, para o que atuaram diversos advogados cíveis e criminais, inclusive no âmbito de uma Câmara de Mediação especialmente criada para viabilizar acordos entre os envolvidos.  A criação da Câmara de Mediação foi aventada inicialmente pela Secretaria de Direito Econômico do Ministério da Justiça, tendo sido apresentada ao Ministério Público, à Defensoria Pública e ao Procon do Estado de São Paulo.34 A partir da sua constituição, começaram as negociações entre os membros componentes da AFAVITAM e as empresas responsáveis pela compensação dos danos causados, tendo sido firmado um Termo de Ajustamento de Conduta.35 No âmbito da Câmara de Indenização TAM 3054 (como ficou conhecida), foram intermediados 55 acordos, dos 59 casos que lhe foram submetidos. Foram indenizados 207 familiares de 45 vítimas. As indenizações foram pagas pela TAM e por sua seguradora no momento da assinatura dos acordos ou após a homologação judicial (nos casos envolvendo menores de 18 anos). Os valores pagos não foram divulgados em virtude de cláusula de sigilo nos acordos. A Câmara de Mediação encerrou as suas atividades em julho de 2009, com 92% dos casos solucionados.36 Para além dos acordos mediados pela referida Câmara, foi ainda concebido o desenho reparatório da negociação direta com a companhia aérea (com ou sem advogados), sem detrimento do ajuizamento de ações próprias contra o transportador, no Brasil e nos Estados Unidos.37  O desafio da adequada formatação dos designs de resolução de conflitos A partir das experiências extraídas dos casos relatados, percebe-se que a adequada reparação de danos causados a múltiplas vítimas, em decorrência de graves eventos (naturais ou humanos), não pode depender da aposta em um único meio de resolução de disputas. A integração da tutela jurisdicional e dos meios extrajudiciais resolutórios (conciliação, mediação, negociação e arbitragem, dentre outros) passa a ser indispensável, na exata medida da diversidade dos danos, da fragmentação dos interesses em disputa, da quantidade das vítimas, da dificuldade de serem elas adequadamente representadas e dos interesses dos responsáveis pela reparação em se submeter a um modelo resolutório específico. Ainda assim, muitas vezes a conjugação de mecanismos judiciais e extrajudiciais não é suficiente. Tal como nos revelaram as disputas ocorridas nos casos de Mariana, de Brumadinho e do acidente aéreo do voo TAM 3054, outras técnicas, procedimentos e estruturas podem se revelar necessárias para atender às especificidades das pretensões reparatórias transindividuais e individuais. É nesse contexto que os Fundos Reparatórios, os programas indenizatórios administrativos e as entidades de infraestrutura específica passam a constituir importantes opções para a implementação de designs adequados para a resolução de conflitos. De acordo com FALECK, "sistemas de indenização bem executados são arranjos capazes de trazer benefícios a todas as partes envolvidas: beneficiários são indenizados em um meio seguro, confiável e supervisionado, de acordo com critérios objetivos legítimos, com tratamento digno e um ambiente que proporciona justiça procedimental, sem custos, riscos ou a demora de uma ação judicial".38 Certamente ainda há um longo caminho a ser percorrido com vistas à prospecção e formatação de diversos designs que permitam instrumentalizar a prevenção ou a adequada e justa compensação de danos de qualquer natureza, dentro de um prazo razoável e pelos menores custos possíveis. Todavia, parece claro que o sistema de justiça brasileiro, gradativamente, vem se abrindo para essa nova forma de compreender a resolução dos conflitos e da concretização do direito da responsabilidade civil. __________ 1 Consoante o art. 13 da Lei da ação civil pública, "Havendo condenação em dinheiro, a indenização pelo dano causado reverterá a um fundo gerido por um Conselho Federal ou por Conselhos Estaduais de que participarão necessariamente o Ministério Público e representantes da comunidade, sendo seus recursos destinados à reconstituição dos bens lesados." 2 Conforme estabelece o art. 1º, § 1º da lei 9.008/95, o Fundo de Defesa dos Direitos Difusos "tem por finalidade a reparação dos danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico, paisagístico, por infração à ordem econômica e a outros interesses difusos e coletivos", constituindo seus recursos, segundo o § 2º do referido dispositivo, "o produto da arrecadação: I - das condenações judiciais de que tratam os arts. 11 e 13 da lei 7.347, de 1985; II - das multas e indenizações decorrentes da aplicação da lei 7.853, de 24 de outubro de 1989, desde que não destinadas à reparação de danos a interesses individuais; III - dos valores destinados à União em virtude da aplicação da multa prevista no art. 57 e seu parágrafo único e do produto da indenização prevista no art. 100, parágrafo único, da Lei n.º 8.078, de 11 de setembro de 1990; IV - das condenações judiciais de que trata o § 2º do art. 2º da lei 7.913, de 7 de dezembro de 1989; V - das multas referidas no art. 84 da lei 8.884, de 11 de junho de 1994; VI - dos rendimentos auferidos com a aplicação dos recursos do Fundo; VII - de outras receitas que vierem a ser destinadas ao Fundo; VIII - de doações de pessoas físicas ou jurídicas, nacionais ou estrangeiras. § 3º Os recursos arrecadados pelo FDD serão aplicados na recuperação de bens, na promoção de eventos educativos, científicos e na edição de material informativo especificamente relacionados com a natureza da infração ou do dano causado, bem como na modernização administrativa dos órgãos públicos responsáveis pela execução das políticas relativas às áreas mencionadas no § 1º deste artigo." 3 Art. 100. Decorrido o prazo de um ano sem habilitação de interessados em número compatível com a gravidade do dano, poderão os legitimados do art. 82 promover a liquidação e execução da indenazação devida. Parágrafo único. O produto da indenização devida reverterá para o fundo criado pela lei 7.347, de 24 de julho de 1985. 4 VENTURI, Elton, VENTURI, Thaís G. Pascoaloto. O dano moral em suas dimensões coletiva e acidentalmente coletiva. Dano Moral Coletivo. Organizado por Nelson Rosenvald e Felipe Teixeira Neto. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2018.  5 Sobre o tema, CABRAL, Antonio; ZANETI JR., Hermes. Entidades de infraestrutura específica para a resolução de conflitos coletivos: as claims resolution facilities e sua aplicabilidade no Brasil.  Revista de Processo. São Paulo: RT, 2019, vol. 287. 6 SCHREIBER, Mariana. "Desastre em Mariana foi acidente ou crime? 'É precipitado avaliar', diz ministro". BBC Brasil (on-line). Publicado em 11 nov. 2015. Disponível aqui. Acesso em 27 mai. 2021. 7 AZEVEDO, Ana Lucia. "Acidente em Mariana é o maior da História com barragens de rejeitos". O Globo (on-line). Publicado em 17 nov. 2015. Disponível aqui. Acesso em 27 mai. 2021. 8 Íntegra do documento disponível aqui. 9 Este e os demais acordos foram celebrados no bojo das ações civis públicas n. 69758.61.2015.4.01.3400 e n. 23863-07.2016.01.3800, em curso perante o juízo da 12ª Vara Federal de Minas Gerais, movidas pela União Federal, Estados de Minas Gerais e Espírito Santo e Ministério Público Federal. 10 De acordo com o inciso II da Cláusula 01 do TTAC, os impactados diretamente pelo rompimento da barragem são as pessoas físicas e jurídicas que se enquadram num dos quadros listados nas alíneas "a" a "j", quais sejam: a) perda de cônjuge, companheiro, familiares até o segundo grau, por óbito ou desaparecimento; b) perda, por óbito ou por desaparecimento, de familiares com graus de parentesco diversos ou de pessoas com as quais coabitavam e/ou mantinham relação de dependência econômica; c) perda comprovada pelo proprietário de bens móveis ou imóveis ou perda da posse de bem imóvel; d) perda da capacidade produtiva ou da viabilidade de uso de bem imóvel ou de parcela dele; e) perda comprovada de áreas de exercício da atividade pesqueira e dos recursos pesqueiros e extrativos, inviabilizando a atividade extrativa ou produtiva; f) perda de fontes de renda, de trabalho ou de autossubsistência das quais dependam economicamente, em virtude de ruptura do vínculo com áreas atingidas; g) prejuízos comprovados às atividades produtivas locais, com inviabilização de estabelecimento ou das atividades econômicas; h) inviabilização do acesso ou de atividade de manejo dos recursos naturais e pesqueiros, incluindo as terras de domínio público e uso coletivo, afetando a renda e a subsistência e o modo de vida de populações; i) danos à saúde ou mental; e j) destruição ou interferência em modos de vida comunitários ou nas condições de reprodução dos processos socioculturais e cosmológicos de populações ribeirinhas, estuarinas, tradicionais e povos indígenas. 11 De acordo com o inciso III da Cláusula 01 do TTAC, os impactados indiretamente pelo rompimento da barragem são as pessoas físicas e jurídicas que não se enquadram nos casos listados anteriormente, e que "(...) residam ou venham a residir na área de abrangência e que sofram limitação no exercício de seus direitos fundamentais em decorrência das consequências ambientais ou econômicas, diretas ou indiretas, presentes ou futuras, do [rompimento da barragem], que serão contemplados com acesso à informação e a participação nas discussões comunitárias, bem como poderão ter acesso aos equipamentos públicos resultantes dos programas". 12 Website oficial. 13 "Fui nomeado como Coordenador da Mediação do PIM, liderando uma equipe independente de 68 mediadores alocados nos diversos municípios do trecho, com o objetivo de conduzir, de maneira neutra e imparcial, as mediações entre os impactados e a Fundação Renova, lastreadas nos critérios de indenização construídos democraticamente. Nosso papel inclui também mediar a construção dos próprios critérios e políticas de indenização envolvendo a Fundação Renova e algumas das comunidades impactadas". FALECK, Diego. Manual de Design de Sistemas de Disputas: criação de estratégias e processos eficazes para tratar conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p.47. 14 Disponível aqui. 15 Tabela oficial disponível aqui. 16 FUNDAÇÃO RENOVA. Relatório de Administração 2017. Fundação Renova (website institucional). Disponível aqui. Acesso em 28 mai. 2021. 17 Começando em 2016, com reajuste anual pelo IPCA. 18 FUNDAÇÃO RENOVA. Relatório de Administração 2017. Fundação Renova (website institucional). Disponível aqui. Acesso em 28 mai. 2021. 19 Idem. 20 Dados extraídos do website oficial da Fundação Renova, disponível aqui. Acesso em mai. 2021. 21 "MPMG pede na Justiça extinção da Fundação Renova". MPMG (Website Oficial). Disponível aqui. Acesso em 27 mai. 2021. 22 TOKARNIA, Mariana. "Tragédia de Mariana faz 5 anos e população ainda aguarda reparações". Agência Brasil (on-line). Disponível aqui. Acesso em 27 mai. 2021. 23 PIMENTEL, Thais. FIÚZA, Patrícia. "Brumadinho: mais uma vítima da tragédia da Vale é identificada". G1 (online). Publicado em 27 mai. 2021. Disponível aqui. Acesso em 28 mai. 2021. 24 Volume equivalente a 2.800 piscinas olímpicas. 25 ALVES, Pedro. "Rejeitos de Brumadinho chegaram ao Rio São Francisco, diz Fundação Joaquim Nabuco". G1 (online). Publicado em 29 mar. 2019. Disponível aqui. Acesso em 01 jun. 2021. 26 PARADELLA, Rodrigo. "Novos dados geoespaciais mostram área atingida pelo rompimento da barragem". Publicado em 15 fev. 2019. Agência IBGE Notícias (online). Disponível aqui. Acesso em 01 jun. 2021. 27 Trata-se da ACP nº 5000056-68.2019.8.13.0090, distribuída à 1ª Vara Cível, Criminal e da Infância e da Juventude da Comarca de Brumadinho/MG. 28 Trata-se da ACP nº 5000053-16.2019.8.13.0090, distribuída à 1ª Vara Cível, Criminal e da Infância e da Juventude da Comarca de Brumadinho/MG. 29 MPMG. "Brumadinho 2 anos: MPMG não abre mão das compensações devidas pela Vale". Publicado em 25 jan. 2021. MPMG (online). Disponível aqui. Acesso em 01 jun. 2021. 30 Disponível na íntegra. 31 Acordo Judicial para Reparação Integral Relativa ao rompimento das barragens B-I, B-IV E B-IVA / CÓRREGO DO FEIJÃO. Processo de Mediação SEI n. 0122201-59.2020.8.13.0000. TJMG / CEJUSC 2º GRAU.  32 TJMG. "Presidente do TJMG homologa acordo histórico entre a Vale e instituições públicas". Tribunal de Justiça de Minas Gerais (website oficial). Publicado em 04 fev. 2021. Disponível aqui. Acesso em 01 jun. 2021. 33 CANOFRE, Fernanda. "Famílias de Vítimas em Brumadinho Enfrentam Recursos da Vale para Indenizações". Folha de S.Paulo (online). Publicado em 13 ago. 2020. Disponível aqui. Acesso em 01 jun. 2021. 34 FALECK, Diego. Introdução ao Design de Sistemas de Disputas: Câmara de Indenização 3054. Revista Brasileira de Arbitragem. Porto Alegre e Curitiba, ano V, n. 23, p. 7-32, jun.-ago.set. 2009. 35 Disponível aqui. Acesso em 30 de mai.2021. 36 Disponível aqui. Acesso em 30 de mai.2021. 37 OLIVEIRA, Josmeyr Alves de. SEIDL, Ruben M. Indenização em acidentes aéreos: lições aprendidas de casos reais. Acidente aéreo: o que todo familiar de vítima pode e deve saber. ASSALI, Sandra (coordenadora), 1 ed. São Paulo: ASA, 2021, p. 223-224. 38 FALECK, Diego. Manual de Design de Sistemas de Disputas: criação de estratégias e processos eficazes para tratar conflitos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p.168.
Em minha coluna anterior escrevi sobre o estado da arte dos Punitive damages nos EUA. Tivemos oportunidade de apreciar que na práxis norte-americana a maior parte das reparações é fruto de decisões do júri, sendo os punitive damages comumente aplicados. Todavia, na Inglaterra, as indenizações são determinadas por juízes e tribunais, sendo os exemplary damages (nomenclatura inglesa para os punitive damages) aplicados em hipóteses restritas, definidas em precedentes. Com efeito, ao contrário do que acontece nos Estados Unidos e em outras jurisdições do common law, na Inglaterra os punitive damages são vistos pelos tribunais com desconfiança, como uma espécie de remédio anômalo no direito privado, na medida em que a punição não se insere neste setor do ordenamento jurídico. Este entendimento é tão enraizado, que sequer é desafiado no setor doutrinário. Para um civilista brasileiro ou de outra jurisdição da civil law tal assertiva soa surpreendente, na medida em que encaramos o common law como uma unidade quando, na verdade, são gritantes as especificidades de cada jurisdição. Progressivamente, desde 1760, a Lei Inglesa permite que em situações excepcionais, em adição à indenização compensatória, a decisão estabeleça uma condenação por punitive damages, pela necessidade de sancionar um comportamento ultrajante, no qual o ofensor demonstre profundo desprezo pela vítima. Ao contrário dos compensatory damages, nos punitive damages não se quer conter danos, porém condutas demeritórias. Desde 1964 o poder de aplicar punitive damages (ou exemplary damages), vem sendo restringido na Inglaterra. Como observou Lord Bingham em Watkins v Secretary of State for the Home Department, a política é a de simplesmente desencorajar os juízes a sua aplicação.1 Uma limitação geral foi estabelecida nos designados "categories test", estabelecidos na House of Lords no célebre Rookes v Barnard.2 Neste julgamento, Lord Devlin descreveu os punitive damages como "an anomaly in the law of England"3 em razão de sua agenda retributiva, o que motivou a decisão de confinar os punitive damages a três categorias, de modo a demarcar os limites entre um remédio excepcional, essencialmente distinto das demais espécies indenizatórias, na medida em que exemplary damages "confuse the civil and criminal functions of the law".4                  A caracterização dos punitive damages como uma aberração tem sido corroborada desde a decisão em Rookes. Allan Beever observou que há quase um sentido universal em se considerar que os punitive damages "are anomalous".5 Embora esse mantra tenha sido refutado ocasionalmente6, o fato é que ainda não houve uma contestação incisiva a essa posição ortodoxa sobre a ojeriza aos punitive damages, não obstante o fato de que pareça evidente que este remédio não ostente o monopólio das penas civis na responsabilidade civil. Pelo contrário, a entronização da noção dos exemplary damages como uma espécie de intruso no direito privado, culmina por reconduzi-los a outras espécies indenizatórias, quase que como uma tentativa de sua total eliminação.7 Como disciplinou a Law Commission: "the modern boundaries of the remedy of exemplary damages have been fashioned by the courts on the assumption that they are an anomalous civil remedy"8. Este estado de coisas prossegue até o presente.  Em uma recente decisão em Axa Insurance UK Plc v Financial Claims Solutions Ltd Flaux LJ, observou-se mais uma vez que punitive damages "are anomalous . it would . be inappropriate to extend the circumstances in which they can be awarded ."9. Com efeito, em relação à aplicabilidade dos punitive damages na Inglaterra, o precedente Rookes10 é decisivo. O teste impede a sua incidência, exceto se a demanda couber em uma destas três categorias: (1) envolvendo conduta opressiva, arbitrária ou inconstitucional cometida por funcionário do governo agindo como tal; (2) quando o réu calculou que poderia lucrar com o seu ilícito após o pagamento de uma indenização compensatória; e (3) quando algum estatuto estipular que punitive damages sejam concedidos. A menos que o caso concreto se subsume a uma das três realçadas fattispecies, punitive damages não serão fixados, independentemente da gravidade do comportamento do demandado. Existem vários condicionamentos à primeira categoria. Uma limitação é a exigência de que o réu seja um destinatário do poder público. Assim, o simples fato de o servidor ter agido de forma opressora, não trará um caso dentro da primeira categoria. Contudo, o caso não cairá na primeira categoria simplesmente porque o réu foi investido com o poder público. Fundamental é que tenha exercido o poder público ao cometer o ilícito. Por exemplo, um servidor que conduza operações comerciais ao invés de desempenhar funções governamentais não pode incorrer na responsabilidade de pagar punitive damages na primeira categoria.11 Passando para a segunda categoria, ela apenas captura casos envolvendo um "cálculo cínico de vantagem mercenária" por parte do réu. Portanto, é insuficiente que o erro tenha sido cometido apenas em um contexto empresarial12. A terceira categoria quase não estende o poder de conceder punitive damages, uma vez que a legislação inglesa raramente autoriza os tribunais a assim agir. Punitive damages podem ser concedidos sob a lei em apenas um punhado de circunstâncias ecléticas, incluindo por violação de certas convenções ambientais,13 para a conversão de bens de militares14 e por certos ilícitos cometidos por demandados por meio da imprensa.15 Em adendo às três referidas categorias, os demandantes16  devem ultrapassar não menos do que seis obstáculos para o alcance de uma indenização punitiva. Aliás, ainda que superados os obstáculos, a pena civil não se torna impositiva ao juiz, mas apenas uma questão de discricionariedade. Primeiro, deve ser demonstrado que a conduta do demandado foi suficientemente repreensível para merecer uma condenação punitiva. Nada obstante, inexiste um teste preciso para satisfazer esse requisito. A jurisprudência fornece um "whole gamut of dyslogistic judicial epithets"17 que sugerem indicações sobre o tipo de condita excepcional sujeita a uma resposta punitive. Esses epítetos oscilam entre 'high-handed', 'outrageous', 'egregious', 'exceptional', 'insulting', 'cynical', 'flagrant', 'appalling' e 'contumelious'. Segundo, o demandante deve satisfazer o 'if but only if' test, permitindo a aplicação de punitive damages somente quando, por si só, compensatory damages sejam insuficientes para punição e desestímulo.18 Esta restrição é  estampada na anotação de Lord Nicholls's em Kuddus v Chief Constable of Leicestershire Constabulary,  pela qual punitive damages atuam como um 'remedy of last resort'.19 Trata-se de uma significativa limitação no poder de aplicação dos punitive damages que é frequentemente enfatizada nas cortes inglesas. No recente caso Mohidin v Commissioner of Police of the Metropolis,20  o magistrado Gilbart J recusou a aplicação de punitive damages por agressão e prisão injustificada, mesmo havendo evidência de um comportamento opressivo (1. Categoria de Rookes) pois a condenação por compensatory damages já seria uma punição adequada para o demandado. Terceiro, existem restrições que se aplicam quando o ilícito envolve múltiplas vítimas. Mesmo quando uma das vítimas tenha uma clara "cause of action" contra o demandado, a não ser que todas as demais vítimas estejam perante o juiz, a indenização será rejeitada pois em tais circunstâncias não será possível determinar a justificativa para uma punição generalizada.21 Quarto, simetricamente, outras limitações surgem quando existem vários réus. Quando o demandante litiga contra múltiplos demandados, solidariamente responsáveis pelo mesmo ilícito, punitive damages só se aplicam se houver necessidade de punição em relação a todos eles e esta necessidade não houver sido aplacada pela condenação por compensatory damages.22 Quinto, o fato de que o demandado tenha sido sancionado administrativamente ou criminalmente pelo mesmo ilícito impedirá a aplicação de punitive damages23. Trata-se de uma vedação semelhante ao double jeopardy do direito norte-americano.24 Sexto, deve se verificar ainda se a demanda se adequa a uma "cause of action" na qual punitive damages são viáveis. Essa restrição antecede ao leading case Rookes, tendo sido conhecida como 'pre-1964 test' ou 'cause of action test', impedindo a concessão de punitive damages em demandas como fraude, abuso de poder por autoridades e perturbação da ordem pública. Mesmo que no não menos importante caso Kuddus,25 a House of Lords tenha mitigado tais restrições, os punitive damages ainda se sujeitam a uma série de limitações. Assim, não podem ser aplicados em causas relacionadas a breach of contract,26 com relação a equitable wrongs ou com base no Human Rights Act 199827, bem como no Consumer Protection Act 1987. Existe séria divergência quanto ao fato de que punitive damages possam ser aplicados pelo ilícito de "negligence", talvez pela percepção de que uma conduta meramente negligente é insuficiente para merecer uma resposta punitiva.28 As restrições relatadas até agora dizem respeito às circunstâncias em que punitive damages são deferidos. Contudo, as limitações não incidem tão somente sobre a disponibilidade do remédio, mas também sobre a sua extensão. Em Rookes, Lord Devlin instou que condenações por punitive damages devem ser moderadas, ameaçando impor um teto indenizatório se a exortação se mostrasse insuficiente, que não se oficializou pois os tribunais seguiram o principio da moderação, ou seja, a condenação deve ser fixada no mínimo necessário para satisfazer os propósitos públicos subjacentes a esse remédio, nomeadamente, punição e desestimulo. Conforme uma análise empírica em todas as partes da UK - entre 2000 e 2015 - de todos os casos acessíveis eletronicamente nos quais punitive damages foram reivindicados (exceto da Escócia, que não reconhece o remédio), o valor médio das condenações por punitive damages é de £18,181.29 Tal número é relativamente modesto, quando comparado aos de outras jurisdições do common law.30 Portanto, a verificação sobre o poder de se aplicar  punitive damages ocorre duas vezes: primeiro, em conexão com a decisão de concedê-los e, novamente, em relação a sua quantificação. Em adendo ao princípio da moderação, ao menos três regras adicionais limitam o quantum dos punitive damages. Primeiro, quando a corte determina que vários réus devam indenizar, o valor deve refletir a punição reservada ao menos culpado entre eles, sendo irrelevante que um ou mais dentre eles tenham agido de forma bem mais repreensível.31 Esta regra expressa uma preferência em favor de uma inadequada punição ao invés de uma excessiva punição. Segundo, em casos envolvendo mau comportamento policial, as condenações são confinadas entre limites predeterminados.32 Terceiro, ao avaliar punitive damages, o juiz pode considerar a incitação pelo demandante como uma consideração mitigadora do quantum.33 De tudo que foi dito, observa-se um nítido contraste entre o regime dos punitive damages na Inglaterra e demais jurisdições do Common law. Três constatações demonstram que o sistema inglês é bem mais parcimonioso no manejo desse remédio do que em outros quadrantes do commonwealth (o que exclui os EUA desta verificação). Primeiramente, o chamado "categories test" foi repudiado nas demais jurisdições da Commonwealth, o quê é significante, pois esta é a mais rigorosa constrição ao poder judicial e concessão de punitive damages. A eliminação de tal restrição possui importante repercussão prática, permitindo a aplicação do remédio em um sem número de condutas repreensíveis que jamais poderiam ser sancionadas na Inglaterra.34 Segundo, em outras jurisdições não se aplicam as restrições em termos de "cause-of-action". Enquanto na Inglaterra punitive damages apenas se aplicam no contexto da responsabilidade aquiliana (torts), no Canadá eles incidem também no âmbito dos equitable wrongs e em certas circunstâncias por breach of contract.35 Terceiro, a quantificação dos punitive damages em outras nações é mais ampla que na Inglaterra. A maior condenação verificada na UK se deu em Rees v Commissioner of Police for the Metropolis36 no valor de £150,000. A posição na Austrália é radicalmente diferente. Uma recente investigação sobre a quantificação de punitive damages naquele país encontrou condenações médias em torno de A$105,059,37 (quase o triplo da média inglesa), sendo que a maior indenização alcançou o montante de A$4,167,202,38 valor várias vezes superior aquele estipulado no citado caso Rees. Tamanhas distinções denotam que as próprias jurisdições da common law são bastante heterogêneas. Notadamente, há uma profunda distinção estrutural entre o direito inglês e o direito norte-americano. Essa diferença é tão pronunciada, que se por um lado faz sentido cogitar de uma tradição anglo-americana no sentido histórico, qualquer insinuação sobre um direito anglo-americano é equivocada. *Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Fellow of the European Law Institute (ELI). Member of the Society of Legal Scholars (UK). Membro do Grupo Iberoamericano de Responsabilidade Civil. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. __________ 1 [2006] UKHL 17, [2006] 2 AC 395 [26]. 2 [1964] AC 1129. 3 ibid, 1221. Lord Devlin também se referiu no 1227 a "anomaly inherent in exemplary damages". 4 ibid, 1221. 5 A. Beever, 'The Structure of Aggravated and Exemplary Damages' (2003) 23 OJLS 87, 109 n 91. 6 N. J. McBride, 'Punitive Damages' in P. Birks (ed), Wrongs and Remedies in the Twenty-First Century (Oxford: Clarendon Press, 1996) 194-195 (rejeitando a proposição que os punitive damages sejam anômalos com base em se tratar de uma 'conclusion masquerading as an argument'); P. Cane, The Anatomy of Tort Law (Oxford: Hart Publishing, 1997) 116-119 (arguindo que várias espécies de indenização se relacionam com uma finalidades retributiva). 7 Ilustrativamente, E. Weinrib, The Idea of Private Law (Oxford: OUP, 2012) 135 n 25 (aludindo que as vezes punitive damages são disfarçados como restitutionary damages) e R. Stevens, Torts and Rights (Oxford: OUP, 2007) 87 (buscando caracterizar os punitive damages como 'substitutive damages'). 8 Law Commission, Aggravated, Exemplary and Restitutionary Damages Law Com No 247 (1997) 1. 9 [2018] EWCA Civ 1330, [2019] RTR 1 at [25]. 10 Em A v Bottrill [2002] UKPC 44, [2003] 1 AC 449 at [41] Lord Nicholls se referiu ao direito inglês quanto aos punitive damages como 'toiling in the chains of Rookes v Barnard .'. 11 AB v South West Water Services Ltd [1993] QB 507. 12 '[T]he mere fact that a tort . is committed in the course of a business carried on for profit is not sufficient to bring a case within the second category': Broome v Cassell & Co Ltd n 8 above, 1079 per Lord Hailsham LC. 13 High Speed Rail (London - West Midlands) Act 2017, s 51(10). 14 Reserve and Auxiliary Forces (Protection of Civil Interests) Act 1951, s 13(2). 15 Crime and Courts Act 2013, s 34. 16 Os demandantes devem estar vivos. Punitive damages não podem ser demandados em nome do espólio ou da vítima falecida: Law Reform (Miscellaneous Provisions) Act 1934, s 1(2)(a). 17 Broome v Cassell & Co Ltd n 8 above, 1129 per Lord Diplock. 18 Rookes v Barnard, per Lord Devlin. 19 n 1 above at [63]. 20 [2015] EWHC 2740 (QB). 21 R (Lumba) v Secretary of State for the Home Department [2011] UKSC 12, [2012] 1 AC 245 at [167]. 22 Broome v Cassell & Co Ltd. Tal como colocou Lord Reid "[i]f any one of the defendants does not deserve punishment or if the compensatory damages are in themselves sufficient punishment for any one of the defendants, then they must not make any addition to the compensatory damages". 23 Em uma importante discussão sobre a punição anterior, McBride, 188-191. 24 A Double Jeopardy Clause se encontra na 5. Emenda da Constituição do USA, proibindo qualquer pessoa de ser processada duas vezes pelo mesmo crime: "No person shall . . . be subject for the same offense to be twice put in jeopardy of life or limb". Em suma, um mesmo fato não pode gerar a aplicação de sanções desproporcionais em procedimentos diversos: penal, administrativo e cível. 25 Kuddus v Chief Constable of Leicestershire Constabulary. Lord Slynn observou que isto 'encourage[d] a tedious trawl through the ancient authority' in order to determine if punitive damages were available in a given case thus 'committ[ing] the law to an irrational position in which the result depend[ed] not on principle but upon the accidents of litigation (or even law reporting) before 1964 .'. 26 Addis v Gramophone Co Ltd [1909] AC 488. 27 Anufrijeva v Southwark LBC [2003]. 28 Neste sentido, James Edelman defende que '[i]t would not usually be expected that actions in negligence would lead to exemplary damages . since the necessary mental element is not present; and it is thought that this would be true even of gross negligence': J. Edelman, McGregor on Damages (London: Sweet & Maxwell, 20th ed, 2017). 29 J. Goudkamp and E. Katsampouka, 'An Empirical Study of Punitive Damages' (2018) 38 OJLS 90, 104 n 91. 30 Thompson v Commissioner of Police of the Metropolis é um julgado que ilustra a adesão dos tribunais ao princípio da moderacão. A Corte de apelação substituiu a condenação de £200,000 por punitive damages para um valor de £15,000.  Lord Woolf MR aduziu que punitive damages 'should be no more than is required' para o seu propósito de 'marking . disapproval' da conduta do demandado.  Esta é uma clara repercussão do 'if but only if' test que limita a viabilidade da aplicação de punitive damages. 31 Broome v Cassell & Co Ltd. 32 Em Thompson, Lord Woolf MR afirmou que: '[i]n this class of action, the conduct must be particularly deserving of condemnation for an award of as much as £25,000 to be justified and the figure of £50,000 should be regarded as the absolute maximum, involving directly officers of at least the rank of superintendent'. 33 Ilustrativamente, Bishop v Metropolitan Police Commissioner [1990] 1 LS Gaz R 30. 34 Vanessa Wilcox observa que: "If exemplary damages are to remain, if they are to continue to further punishment, deterrence and reprobation, if logic is to prevail, then the scope of the categories test should be clarified". Punitive Damages in England, p.7, In Punitive Damages: common law and civil law perspectives. H.Koziol, V.Wilcox (eds). SpringerWien/New York (2009). 35 Whiten v Pilot Insurance Co 2002 SCC 18, [2002] 1 SCR 595. Também ilustramos com o caso Royal Bank of Canada v Got Associates Eletric, no qual exemplary damages foram mantidos pela Suprema Corte do Canadá em situação na qual uma seguradora contestou de má-fé uma reivindicação de seguro contra incêndio, alegando que a família havia incendiado sua própria casa, embora o chefe dos bombeiros local, o próprio perito investigador da seguradora e seu perito inicial tivessem dito que não havia nenhuma evidência de incêndio criminoso. (1999) Supreme Court Reports (S.C.R) 408. 36 [2019] EWHC 2339 (QB). 37 F. Maher, An Empirical Study of Exemplary Damages in Australia (2019) 43 MULR 694, 711. 38 Deckers Outdoor Corporation Inc v Farley (No 5) [2009] FCA 1298, (2009) 262 ALR 53.
Introdução O presente artigo apresenta ao público da nossa coluna Direito Privado na Common Law uma contribuição da Suprema Corte dos Estados Unidos para o tema da responsabilidade civil por difamação de agentes públicos. Trata-se do julgamento do caso New York Times v. Sullivan, que se tornou um marco para a jurisprudência constitucional estadunidense quanto ao alcance da proteção à liberdade de expressão e de imprensa assegurada pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos.1 O caso é relevante para a proteção jurídica do direito à crítica da autoridade pública e preservação de um espaço protegido de debate político-democrático que assegure a pluralidade de opiniões e de pontos de vista. Logo, não se trata somente de um tema de responsabilidade civil, mas também de proteção de direitos fundamentais e preservação da democracia, que enquadraria New York Times v Sullivan na classificação doutrinária brasileira como um caso de direito civil constitucional. O Movimento de direitos civis e a crítica ao comissário de polícia O ponto de partida para o caso foi um anúncio de uma página inteira no jornal The New York Times, de 29 de março de 1960, assinado por quatro integrantes do movimento dos direitos civis que se intitulavam como sendo o 'Comitê para a Defesa de Martin Luther King e sua Luta pela Liberdade no Sul'. O texto descrevia o engajamento de milhares de estudantes negros em protestos pacíficos e a resposta violenta conduzida como uma onda de terror para impedir que eles tivessem seus direitos e sua dignidade humana protegidos. Dois parágrafos do texto continham imprecisões fáticas na descrição de que policiais armados teriam invadido o campus da Universidade do Estado de Alabama e que policiais já tinham prendido Martin Luther King sete vezes, quando na verdade teria sido quatro o número de prisões. Apesar de não ter sido identificado nominalmente no texto do artigo, o Comissário de Polícia de Montgomery, Sr. Sullivan, alegou que, por ser o responsável pela supervisão de toda a atuação policial, estava sendo injustamente acusado de ter determinado a invasão do campus universitário, uma suposta perseguição policial ao líder do Movimento de Direitos Civis e de ter sido responsável pelo ataque à bomba na residência de Martin Luther King. Assim é que ele ajuizou uma ação de responsabilidade civil e de indenização pelos danos à sua honra e à sua reputação em face dos quatro signatários do anúncio e do jornal The New York Times. No curso do processo judicial, o Comissário de Polícia demonstrou que jamais houve a referida invasão ao campus, que somente ocorreu uma única prisão de Martin Luther King durante o seu período a frente do Comissariado de Polícia e que não havia nenhuma prova de envolvimento da polícia nos atentados à bomba, que teriam sido investigados com enorme esforço. O gerente de publicidade do jornal foi ouvido como testemunha e afirmou que não havia qualquer razão para duvidar do conteúdo do anúncio, que tinha sido apresentado por pessoas idôneas e que não foi feita uma checagem da veracidade dos fatos.  Posteriormente, contudo, a pedido do Governador do Alabama, John Patterson, o New York Times publicou uma retratação do anúncio, esclarecendo que tinha aprendido mais sobre os fatos e que não queria responsabilizar a autoridade máxima do Estado de Alabama naqueles termos. Por outro lado, o Comissário de Polícia também solicitou que fosse publicada uma retratação em seu nome, mas o jornal somente enviou uma correspondência, explicando que não entendia os motivos pelos quais o Sr. Sullivan se considerava difamado pelo anúncio que sequer mencionava seu nome.  No julgamento pelo júri, o juiz de instrução alertou que o conteúdo do texto possuía caráter difamatório por si só e que caberia ao júri deliberar se aquelas declarações foram feitas e diziam respeito ao autor da ação. Além disso, o direito não exigiria demonstração de malícia ou da falsidade, nem dos danos que seriam presumidos. O júri também estava autorizado a aplicar danos punitivos e, ao final, a condenação foi feita para o pagamento de uma indenização de quinhentos mil dólares.  A Suprema Corte do Estado de Alabama manteve a condenação, salientando que a difamação seria presumida a partir do conteúdo do texto e que a malícia poderia ser inferida a partir da irresponsabilidade do New York Times em publicar um anúncio cujo conteúdo poderia ser desmentido pela mera leitura de artigos previamente publicados pelo próprio jornal. Além disso, o jornal tinha publicado uma retratação em favor do Governador, mas não do Comissário de Polícia, que era a autoridade responsável pelo comando e supervisão das forças policiais. Finalmente, para o Tribunal Estadual não havia dúvidas de que críticas para a atuação da polícia implicavam em difamação da autoridade responsável por liderar aquele órgão. A decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos em New York Times v. Sullivan No julgamento pela Suprema Corte dos Estados Unidos, Justice Brennan, o relator do caso, colocou a questão sob julgamento nos seguintes termos: se a regra de responsabilidade, tal como aplicada em uma ação ajuizada por um agente público contra críticos de sua conduta oficial, viola a liberdade de expressão e de imprensa assegurada pelas emendas à Constituição dos Estados Unidos. De início, é rechaçada a tese adotada pelas cortes do Alabama de que a Constituição não protegeria a expressão difamatória, com o alerta de que o ponto de partida para o julgamento é o compromisso nacional profundo com o princípio de que debates públicos devem ser desinibidos, robustos e abertos, podendo incluir ataques veementes, cáusticos e desagradáveis ao governo e aos agentes públicos. Com base na própria jurisprudência constitucional, Brennan afirma que jamais foi exigido um teste de demonstração da verdade da expressão como um pressuposto para a expressão do indivíduo e que afirmações errôneas são inevitáveis no debate livre e devem ser protegidas pela cláusula da liberdade de expressão como espécie de espaço para a respiração necessário para a sua sobrevivência. Particularmente no caso de magistrados, os precedentes judiciais demonstram que a preocupação com a dignidade e a reputação do Poder Judiciário não justifica uma punição por crítica ao juiz e à sua decisão, mesmo se a manifestação contém uma 'meia-verdade' ou desinformação. Em termos do impacto da responsabilização civil, Brennan afirma que o medo causado pelo efeito do pagamento de uma indenização vultosa pode ter um efeito muito maior do que o receio de ser processado criminalmente, o que causaria uma grande inibição ao discurso causado pelas preocupações impostas naqueles que dão voz à crítica pública em uma atmosfera em que a liberdade de expressão não sobreviveria. Neste contexto, é essencial proteção para os argumentos errôneos feitos com honestidade. A conclusão é de que a Constituição proíbe um agente público de buscar a reparação de uma indenização por uma falsidade difamatória atribuída à sua conduta oficial a não ser que ele prove que a declaração foi feita com uma 'malícia real', isto é, conhecimento de que era falsa ou imprudente desconsideração sobre se era ou não falsa a manifestação. A conclusão da Suprema Corte foi de que a Constituição limita o poder do Estado de conceder indenizações aos agentes públicos por difamação relativa à crítica à sua conduta oficial, sendo exigido o ônus da prova de uma malícia real para uma condenação. Além de estabelecer uma tese genérica a ser aplicada para casos futuros, a Suprema Corte também decidiu que naquele caso concreto não havia qualquer prova de malícia real que justificasse um novo julgamento, já que a prova colhida nos depoimentos dos funcionários do jornal demonstraram sua boa-fé, a credibilidade de quem os contratou para o anúncio por doações em benefício de Martin Luther King e sua iniciativa em publicar uma retratação a pedido do Governador do Alabama tão logo souberam da descrição errônea dos fatos naquele anúncio. Brennan alertou para a existência de uma alquimia jurídica que transmuta um ataque impessoal ao governo e suas operações em uma difamação ao agente público responsável, que penalizaria uma crítica feita de boa-fé. O julgamento foi unânime. Uma reflexão necessária para a experiência brasileira O precedente New York Times v. Sullivan não se tornou muito influente em outras jurisdições, não sendo acolhido como um paradigma em países como o Canadá e a Austrália, por exemplo, em que alguns julgados consideram que existe proteção demais para a liberdade de expressão nos Estados Unidos e que a reputação do agente público fica desprotegida.2 Por outro lado, na própria academia estadunidense, existem críticos que consideram que a Suprema Corte deveria ter ido além e simplesmente proibido que agentes públicos processassem seus críticos por difamação em qualquer circunstância, de modo a permitir a plena liberdade de expressão.3 A decisão da Suprema Corte traz uma reflexão necessária para a experiência brasileira, eis que devemos considerar o desenho institucional atual do regime de liberdade de expressão e avaliar se está equilibrado ou se provoca um 'efeito congelante' ('chilling effect') nas críticas às autoridades públicas e aos agentes públicos. Tal debate é necessário para a democracia brasileira e o ponto de partida pode ser o julgamento de New York Times v. Sullivan e as críticas de que a decisão foi desequilibrada ou insuficiente. Considerações finais No âmbito da responsabilidade civil brasileira, a expressão "você sabe com quem você está falando?" poderia muito bem ser substituída pela expressão "você sabe quem você está criticando?". Não raro, uma crítica é recebida com a resposta de que o autor da crítica será processado por difamação e será obrigado a se defender nos nossos Tribunais. O objetivo do presente artigo é provocar a nossa reflexão sobre se as autoridades públicas não deveriam ter uma maior capacidade de receber e de absorver a crítica, aproveitando a manifestação da expressão como um feedback para a própria aprendizagem institucional de seu órgão, ao invés de transformar a expressão em uma difamação e pela alquimia jurídica dar início a uma ação de indenização por danos morais a sua reputação. Também deveríamos refletir sobre o papel do Poder Judiciário no julgamento dessas ações. Trata-se, portanto, de um convite à reflexão sobre a responsabilidade civil por difamação de agentes públicos e a necessidade de proteção jurídica à liberdade de expressão e de imprensa na democracia brasileira. *Pedro Fortes é professor visitante no programa de pós-graduação em Direito da UFRJ, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e promotor de Justiça no MP/RJ. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt. __________ 1 New York Times Co v. Sullivan, 376 U.S. 254 (1964). 2 TUSHNET, Mark. New York Times v. Sullivan around the world. Ala. L. Rev., v. 66, p. 337, 2014. 3 EPSTEIN, Richard A. Was New York Times v. Sullivan Wrong. U. CHI. l. rev., v. 53, p. 782, 1986.
Introdução Participei recentemente de um webinário sobre "a influência da culpa na quantificação de danos: aspectos contratuais". Por conta da minha pesquisa sobre o instituto da mitigação de danos, tema do meu doutoramento, tive de estudar a figura da corresponsabilidade do lesado ou da vítima - comumente chamada de "culpa concorrente da vítima", ou apenas "culpa concorrente" - no âmbito da responsabilidade civil extracontratual. Abro um parêntese: a figura tradicionalmente chamada de "culpa concorrente" é melhor denominada de "corresponsabilidade" do lesado. A expressão "culpa concorrente" é descritiva do suporte fático. Ocorre que a essência do instituto reside em o dano ser imputável tanto ao lesante quanto ao lesado, ambos sendo por ele corresponsáveis. E isso pode ocorrer mesmo que o lesante não tenha agido com culpa, como no caso de ele responder, por exemplo, pelo risco da atividade (art. 927, parágrafo único, CC). Por outro lado, ambas as partes podem ter concorrido culposamente para o dano e o caso não ser de corresponsabilidade, mas sim de sua imputação exclusiva do dano ao lesado, como é o caso da mitigação de danos1. Voltando: o evento do webinário fez-me refletir a respeito da aplicabilidade da figura no campo do direito contratual. Como sabido, a figura da corresponsabilidade do lesado é de aplicação incontroversa no campo da responsabilidade civil aquiliana, contando inclusive com dispositivo expresso no Código Civil (art. 945). Até onde pude verificar, a questão da sua aplicabilidade ao direito contratual não é abordada pela doutrina brasileira. Mas será que a doutrina omite-se por lapso, ou, na realidade, a suposta omissão corresponde ao fato de as questões subjacentes serem solucionadas de outra forma? De todo o modo, por que abordar este tema em uma coluna que se dedica a análises comparativas dos sistemas jurídico de common law e brasileiro? Porque o "estado de coisas" sobre o tema nos EUA oferece um bom referencial para uma reflexão que se pretende exploratória. Nos EUA, o instituto da corresponsabilidade (comparative negligence) se popularizou no campo da responsabilidade civil extracontratual (tort law). No entanto, a mesma mudança tem demorado a ocorrer no direito contratual. Em interessante estudo, Ariel Porat apresenta e analisa as dificuldades e benefícios de reconhecimento da figura no direito contratual americano2. Pela brevidade típica de um texto de coluna, a minha análise vai se dar em mais de uma parte. Na presente, introduzo resumidamente a discussão existente nos EUA. E, na próxima coluna, finalizarei a análise em âmbito americano e examinarei o tema à luz do direito contratual brasileiro. Noção de corresponsabilidade no direito contratual No direito dos contratos, segundo Ariel Porat, a corresponsabilidade (comparative negligence) deve ser aplicada aos casos em que, de um lado, há inexecução do contrato por parte do devedor e, de outro, o credor culposamente concorre para o seu próprio prejuízo. O credor deve ser considerado como tendo concorrido "culposamente" quando ele deixa de cumprir um ônus legal para reduzir suas perdas potenciais, por exemplo, cooperando com o devedor3. Ariel Porat apresenta alguns grupos de casos de não cooperação do credor em que este deve ser tido como em culpa e a corresponsabilidade aplicada. Porat afirma que, nestes casos, a eficiência exige que o credor tome medidas para reduzir a probabilidade de violação do contrato pelo devedor, ou de outra forma reduzir suas perdas potenciais. Na sua visão, o direito contratual americano vigente, ao não reconhecer a corresponsabilidade, geralmente falha em fornecer ao credor os incentivos adequados para que coopere4. Casos de não cooperação do credor Nos casos que podem ser classificados como de não cooperação, o credor deixa de tomar medidas para prevenir ou reduzir a probabilidade de quebra do contrato durante a sua execução. Caso 1: falha em esclarecer mal-entendidos. X é um subempreiteiro e Y é um empreiteiro. Eles celebram contrato para que X realize as obras e para que Y pague parcelas em diferentes fases da construção. Em determinado momento, X argumenta que atingiu uma dessas etapas de pagamento e, portanto, tem direito a uma parcela. Na verdade, X não tem este direito, uma vez que não cumpriu um requisito adicional estipulado no contrato. X não está ciente dessa exigência suplementar por causa de um descuido de sua parte. Y recusa-se a pagar, afirmando que, nos termos do contrato, não é obrigado a fazê-lo e não fornece qualquer outra explicação. X, então, interrompe a execução da obra, causando prejuízo a Y. Somente depois de um mês, durante o qual Y obstinadamente se recusou a se encontrar com X, Y explica a X por que ele não tinha direito ao pagamento5. O direito contratual americano tradicional imporia responsabilidade exclusivamente a X, na medida em que foi ele quem interrompeu indevidamente a obra. Considera-se irrelevante o fato de que Y poderia facilmente ter esclarecido o mal-entendido e evitado a referida interrupção. Y não é, afinal de contas, consultor jurídico de X, e é deste a responsabilidade de cumprir suas obrigações nos termos do contrato6. A jurisprudência, todavia, fornece apoio para uma outra abordagem: quando uma parte está ciente do desconhecimento da outra sobre seus direitos e deveres e pode facilmente esclarecê-la, aquela tem o dever de fazê-lo. Ela não pode omitir-se e assim tirar vantagem deliberada do descuido da outra parte7. A corresponsabilidade é, enfim, uma terceira opção: tornaria, em tais casos, ambas as partes responsáveis pelas perdas8. Caso 2: falha em avisar sobre um prejuízo de alto potencial X compromete-se a transportar um eixo de manivela da fábrica de Y para reparo e trazê-lo de volta em uma semana. Em vez disso, X traz o eixo de volta após 2 semanas e isso resulta em graves prejuízos para Y, que não conseguiu encontrar um eixo substituto para suprir temporariamente a ausência do original. No momento da contratação, as partes estavam cientes de um pequeno risco de que um eixo substituto não estivesse disponível no mercado. Mas uma semana depois disso, ficou claro para Y, mas não para X, que esse risco havia se materializado. Se Y tivesse informado X a respeito no prazo para cumprimento, X teria tomado precauções dispendiosas para garantir que devolveria o eixo a tempo e teria evitado a quebra do contrato9. De acordo com o precedente Hadley v. Baxendale, X seria responsável pelas perdas de Y, uma vez que a indisponibilidade de um eixo substituto era previsível no momento da contratação. No entanto, se Y tivesse informado a X de seus prejuízos potencialmente altos quando percebeu a efetiva indisponibilidade de um tal eixo substituto, a quebra ineficiente teria sido evitada. Uma maneira de fornecer incentivos aos credores para transmitir tais informações seria privar Y de seu direito a indenização. Uma outra opção menos extremada seria reconhecer a corresponsabilidade de ambas as partes10. Caso 3: criando apreensões X contrata Y para construção de um prédio. Em determinado momento, Y traz equipamentos pesados para o canteiro de obras e os coloca em um piso que havia sido concretado apenas alguns dias antes. A pedido de X, o equipamento é removido para evitar danos ao piso. Apesar disso, X suspeita que o piso já está danificado e exige sua substituição, mas Y recusa-se a fazê-lo. X proíbe, então, Y de continuar a construção e ambos sofrem prejuízos. Posteriormente, verifica-se que o piso de concreto não foi danificado e que a colocação do equipamento pesado sobre o piso foi apenas uma pequena violação contratual por parte de Y, que não justificou a suspensão da obra por parte de X. Por outro lado, verifica-se também que Y poderia ter garantido a X que o piso não estava danificado ou, alternativamente, que seria reparado se necessário. Se Y tivesse fornecido tais garantias, X não teria suspendido a obra11. Segundo o direito contratual tradicional, X deve ser responsabilizado por quebra de contrato, na medida em que suas suspeitas de danos são "problema dele" e não afetam os direitos e deveres de Y nos termos do contrato. Por outro lado, a abordagem moderna, conforme refletida no Restatement Second of Contracts12, "permite que uma parte, que tem motivos razoáveis para suspeitar que a outra parte não cumprirá suas obrigações contratuais, exija a garantia adequada do devido cumprimento". E se a parte deixar de fornecer garantias, a parte solicitante pode tratar o contrato como tendo sido objeto de quebra antecipada (repudiated). O referido Restatement não discute explicitamente os casos em que a parte apreensiva responde violando o contrato, como no exemplo proposto. "No entanto, existe uma suposição implícita de que essa parte seria considerada em quebra contratual e responsável pelas consequências daí resultantes". Porém, uma solução melhor para este caso seria a repartição dos danos à luz da corresponsabilidade13. Argumentos contrários Argumentos têm sido levantados contra o reconhecimento da corresponsabilidade como um instituto geral no direito contratual. O mais significativo é o de que a corresponsabilidade prejudicaria a confiança do credor e suas "habilidades de planejamento". Argumenta-se neste sentido que, se a corresponsabilidade fosse aplicável, o credor não poderia mais ter certeza de uma indenização integral por uma obrigação contratual inadimplida. Ele não poderia mais "sentar e esperar" até que o devedor cumprisse sua parte da avença, mas teria que "ajudar, supervisionar e tomar medidas de precaução com relação à prestação da outra parte ou às suas próprias perdas potenciais".14  Conclusão da primeira parte Apesar dos argumentos contrários, Ariel Porat propõe que, quando a cooperação é de baixo custo, a cooperação deve ser a regra. Assim sendo, a maioria das partes contratuais se beneficiaria ex ante da disponibilidade de uma corresponsabilidade, tornando-o uma regra padrão eficiente para o direito contratual15. Na coluna que vem, vou aprofundar essa argumentação de Ariel Porat e enfrentar a questão de se a figura da corresponsabilidade é ou não aplicável ao direito contratual brasileiro. __________ 1 Para mais detalhes, ver: DIAS, Daniel. Mitigação de danos na responsabilidade civil. São Paulo: RT, 2020, p. 212. 2 PORAT, Ariel. A comparative fault defense in contract law. Michigan Law Review, vol. 107, p. 1397-1412, 2009. Disponível aqui. 3 PORAT, op. cit., p. 1397. Porat trabalha também situações que chama de overreliance. Pela exiguidade do espaço, restringiremos nossa análise ao campo da cooperação pelo credor. 4 PORAT, op. cit., p. 1399. 5 PORAT, op. cit., p. 1399. 6 PORAT, op. cit., p. 1399. 7 PORAT, op. cit., p. 1399. 8 PORAT, op. cit., p. 1399. 9 PORAT, op. cit., p. 1400. 10 PORAT, op. cit., p. 1400-1401. 11 PORAT, op. cit., p. 1401. 12 "Restatement Second of Contracts § 251. When a Failure to Give Assurance May Be Treated as a Repudiation. Where reasonable grounds arise to believe that the obligor will commit a breach by non-performance that would of itself give the obligee a claim for damages for total breach under [R2C § 243], the obligee may demand adequate assurance of due performance and may, if reasonable, suspend any performance for which he has not already received the agreed exchange until he receives such assurance.The obligee may treat as a repudiation the obligor's failure to provide within a reasonable time such assurance of due performance as is adequate in the circumstances of the particular case." 13 PORAT, op. cit., p. 1401. 14 PORAT, op. cit., p. 1403.   15 PORAT, op. cit., p. 1403.  
Acidentes aéreos, desastres ambientais, atentados terroristas, ataques indiscriminados a tiros contra grupos e difamações pelas redes sociais são apenas alguns exemplos de causas potencialmente geradoras de danos em massa, que desafiam a multifuncionalidade da responsabilidade civil. Por um lado, a surpresa, a gravidade e a extensão dos danos provocados por esses eventos acarretam frequentemente a ineficiência ou a insuficiência das reações das vítimas e das autoridades públicas, sobretudo diante da urgência da adoção de medidas para a contenção ou mitigação dos prejuízos causados às vítimas e a bens jurídicos de natureza transindividual e indivisível.    Por outro lado, a numerosidade, a dispersão e a ausência de coordenação dos interesses das vítimas dificultam não apenas a fixação da obrigação de indenizar, mas sobretudo a quantificação da reparação devida a título de danos patrimoniais e extrapatrimoniais, de natureza individual ou coletiva.    A promessa da tutela jurisdicional adequada em tais casos, invariavelmente, não passa de ficção. Para além da letargia da prestação jurisdicional, a generalização e ordinarização dos procedimentos envolvidos, a obsolescência das técnicas empregadas, o grande número de recursos e impugnações admissíveis e o comportamento não colaborativo dos demandados (sobretudo na execução das decisões judiciais), acabam por frustrar ainda mais as já escassas esperanças das vítimas na obtenção de respostas apropriadas.    É nesse cenário que os fundos reparatórios se apresentam como mecanismos potencialmente estratégicos para, com maior eficiência e a menor custo, concretizar as mais diversas tarefas atreladas à funcionalização da responsabilidade civil, tais como a definição das vítimas elegíveis à indenização, os critérios para a liquidação dos danos causados e distribuição das compensações devidas, a imposição de medidas para se evitar a reincidência das condutas lesivas e para punir os responsáveis. Nesse sentido, referidos fundos se caracterizam como verdadeiras claims resolution facilities, isto é, "infraestruturas criadas para processar, resolver ou executar medidas para satisfazer situações jurídicas coletivas que afetam um ou mais grupos de pessoas, que judicialmente seriam tratadas como milhares de casos individuais, casos repetitivos e ações coletivas."1 Nesta primeira parte, analisaremos a concepção dos fundos reparatórios a partir da experiência do sistema de justiça norte-americano na sua modelagem, administração e fiscalização. Trata-se de investigação de grande valia para o sistema de justiça brasileiro, que já conhece um sistema (bastante restrito) de reparação coletiva por via dos fundos autorizados pela Lei da Ação Civil Pública. É possível destacar uma ampla diversidade de modelos de fundos reparatórios, a depender, dentre outros fatores: i) do agente financiador (o Estado, entidades privadas, organizações filantrópicas etc); ii) da forma de sua instituição (legal, judicial, consensual ou pela iniciativa do próprio gerador dos danos); iii) do momento de instituição (antes ou depois da ocorrência do dano); iv) das espécies de danos (individuais ou coletivos); e v) da possibilidade ou não de identificação das vítimas. As razões da instituição desses fundos têm em comum a busca de maior adequação, agilidade e eficiência no processamento das reclamações, bem como os baixos custos de transação envolvidos na adesão aos programas reparatórios por eles regulado (tanto para as vítimas como para os responsáveis pela indenização).2 A análise de alguns modelos de fundos compensatórios existentes nos Estados Unidos da América se presta à melhor compreensão da dinâmica desse mecanismo.  Superfund A crescente preocupação com a prevenção e a compensação dos danos causados pela poluição ambiental decorrente do manejo de resíduos tóxicos e perigosos levou o Congresso Norte-Americano a editar, em 1980, o CERCLA (Comprehensive Environmental Response, Compensation and Liability Act), com o objetivo de identificar contaminações ambientais e assegurar sua limpeza, pelo próprio governo federal ou pelos responsáveis pela poluição. A edição do CERCLA e a consequente criação do chamado Superfund se deu logo após episódio de repercussão nacional, ocorrido na Comunidade de Love Canal (Estado de Nova Iorque). No ano de 1978, os moradores da região começaram a perceber o surgimento de resíduos tóxicos por meio de infiltrações do solo de suas residências e de outros locais públicos. Essas infiltrações causaram pânico generalizado na população, em razão dos riscos à saúde e da premente necessidade de evacuação dos habitantes, gerando subsequente desvalorização dos imóveis. Na época, o então presidente Jimmy Carter declarou o local como uma área de desastre nacional, tendo sido realocadas mais de 900 famílias.3 Conforme apurações subsequentes, descobriu-se que na década de 1940, a empresa Hooker Electro Chemical Corporation adquiriu a propriedade da área e passou a utilizá-la como depósito dos resíduos químicos gerados por suas atividades. A capacidade do aterro se esgotou na década de 1950, tendo sido o terreno recoberto com uma camada de argila e permanecido sem uso por anos, até que o Conselho de Educação da comunidade se interessou pela área, planejando lá construir uma escola. Apesar de a empresa ter se negado a dar andamento às negociações, informando que o terreno continha resíduos químicos e tóxicos, diante da pressão do governo local a propriedade acabou sendo vendida pelo valor simbólico de 1 dólar. O governo municipal prosseguiu com o seu projeto de loteamento da área, construindo residências populares, uma escola e rede de esgoto para servi-las.4 A empresa Hooker/Occidental Petroleum foi condenada a pagar uma indenização no valor de mais de US$ 129 milhões de dólares. A crise ambiental e social gerada pelo caso teve repercussão nacional, contexto no qual se deu a edição do CERCLA e a criação de um trust fund, denominado Superfund. Para viabilizar a execução das medidas preventivas e compensatórias de danos ambientais decorrentes de resíduos tóxicos, o CERCLA adotou dois mecanismos de financiamento do Superfund: a tributação do setor empresarial cujas atividades impliquem risco de poluição e a implementação de um regime de responsabilidade bastante rigoroso contra os poluidores. Os recursos constituidores do Superfund são administrados pela EPA (Environmental Protection Agency) - agência de proteção ambiental americana responsável pela regulação da geração, gestão e liberação de resíduos tóxicos, assim como pela responsabilização por danos eventualmente gerados. Por via desse modelo, se propicia à EPA autonomia para gerenciar os recursos arrecadados, que devem ser empregados na realização de programas emergenciais de recuperação e de limpeza das áreas afetadas. Estima-se que os custos anuais do Superfund variem entre 2 a 5 bilhões de dólares.5 A responsabilidade do Superfund alcança, inicialmente, os proprietários, os operadores do local, aqueles que despejam e os transportadores que escolheram o local para o despejo dos detritos tóxicos. Todavia, para além dos poluidores, também são imputáveis todos os que se beneficiaram dos locais limpos (como os donos e operadores atuais), mesmo que não tenham nenhum envolvimento na contaminação original do local. Por tal motivo, as partes submetidas à responsabilidade do Superfund, mais do que poluidores, passaram a ser conhecidas como partes potencialmente responsáveis (potencially responsible parties (PRPs).6 Quando é possível localizar o poluidor, esse fica responsável pela limpeza por conta própria (work agreement), ou mediante o reembolso à EPA pelos custos gerados (cost recovery).  No caso Love Canal, em razão da responsabilidade retroativa, a empresa Hooker/Occidental Petroleum foi considerada responsável pela limpeza dos resíduos - embora tivesse atendido a todas as exigências legais previstas pelas autoridades ao efetuar o descarte na época dos fatos. Como se percebe, o regime de responsabilização previsto pelo Superfund, de caráter retroativo, solidário e objetivo, é alvo de inúmeras críticas pelo rigor imposto aos poluidores diretos e indiretos. Trata-se do regime do "poluter pays", conhecido do direito brasileiro ambiental pelo princípio do poluidor-pagador. Apesar de toda a controvérsia gerada, o sistema de responsabilidade imposto pelo CERCLA se presta a estimular a realização de acordos negociados diretamente com a agência reguladora EPA, além de incentivar a prevenção da poluição e a manutenção da limpeza ambiental. World Trade Center Victim Fund (WTCVF) O fundo de compensação às vítimas dos atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque (World Trade Center Victim Fund)7, foi criado pelo Congresso norte-americano em 22 de setembro de 2001, sendo constituído por recursos públicos do tesouro no importe de mais de US$ 7 bilhões, destinados aos familiares das vítimas e aos sobreviventes.8 A rápida criação do fundo (em menos de duas semanas após os ataques), dentre outros fatores, deveu-se à imposição política de uma pronta resposta social aos atentados, assim como à necessidade de proteção do setor da aviação civil e o oferecimento de compensações justas às vítimas. Isso porque os limites do seguro das companhias aéreas implicaria a redução das indenizações às vítimas, o que forçou o governo a oferecer um recurso alternativo. Os parâmetros estabelecidos legislativamente previram uma compensação financeira para os familiares daqueles que morreram nos ataques, assim como dos que sofreram ferimentos físicos. Para administrar o fundo, foi nomeado um Special Master (Kenneth Feinberg), a quem coube determinar, para cada interessado elegível: (i) a extensão do dano ao reclamante, incluindo quaisquer perdas econômicas e não econômicas; e (ii) o valor da compensação a que o reclamante teria direito com base no dano demonstrado, com base nas suas circunstâncias individuais.9 De acordo com Kenneth Feinberg10, cada uma das famílias das vítimas fatais dos atentados recebeu mais de US$ 2 milhões. Os 2.300 sobreviventes que sofreram lesões físicas ou que passaram a ter problemas respiratórios decorrentes das operações de limpeza nas Torres Gêmeas receberam, em média, US$ 400 mil.11 A administração de Feinberg foi muito criticada, seja em razão dos critérios utilizados para o cálculo do prêmio das vítimas, seja porque se exigia dos postulantes às indenizações uma renúncia antecipada ao ajuizamento de ações, mesmo antes de serem cientificados previamente a respeito dos valores que lhes seriam pagos pelo fundo. De acordo com ACKERMAN, o Fundo de Compensação às vítimas do 11 de setembro deve ser considerado sui generis, por resultar de uma combinação única de eventos: "O Fundo, como qualquer mecanismo de resolução de disputas, deve ser avaliado em termos de seus objetivos limitados e expectativas realistas. O Fundo cumpriu seus objetivos limitados: forneceu uma compensação rápida e justa aos feridos em 11 de setembro e às famílias daqueles que morreram naquele dia; evitou uma avalanche de processos contra as companhias aéreas e a cidade de Nova York; e forneceu uma resposta compassiva e coletiva a um ato bárbaro."12 Recentemente (em agosto de 2019), foi editado o VCF Permanent Authorization Act, pelo qual foi estendido o prazo de vigência do referido Fundo até o ano de 2092. O objetivo é compensar todos aqueles (bombeiros, policiais, equipes de emergência médica, equipes de limpeza pública e demais civis) que apresentaram sequelas decorrentes da exposição à poluição causada pelos atentados, tais como problemas respiratórios, digestivos e vários tipos de câncer.  Gulf Coast Claim Facility - GCCF                O mais grave acidente ambiental já registrado nos Estados Unidos  envolvendo derramamento de óleo13 ocorreu em 20 de abril de 2010, quando a Deepwater Horizon - uma sonda petrolífera de águas profundas que estava arrendada à British Petroleum (BP Oil) e posicionada no subsolo marinho do Golfo do México -, sofreu uma forte explosão, vindo a afundar dois dias depois. O desastre provocou a morte de 11 trabalhadores e deixou outros 22 feridos, produzindo um rastro de poluição ambiental pelo vazamento de cerca de 4,9 milhões de barris de óleo no mar, lesando milhares de pessoas.  Na esfera criminal, o Departamento de Justiça dos Estados Unidos e a BP Oil celebraram um acordo14 (em novembro de 2012), pelo qual a empresa assumiu a responsabilidade pelas 11 imputações de homicídio culposo, além da acusação de obstrução à investigação feita pelo Congresso e por contravenções ambientais. Dentre os termos do acordo, a BP Oil se comprometeu a permitir o monitoramento governamental, dentro do período de quatro anos, das práticas de segurança e das condutas éticas da empresa15. Em todos os estados americanos com litoral no Golfo do México (Texas, Louisiana, Mississipi, Alabama e Flórida), milhares de requerentes buscaram compensações por danos decorrentes da contaminação resultante do vazamento de óleo da Deepwater Horizon. A fim de evitar a adjudicação de milhares de demandas judiciais por meio do sistema de indenização por delito civil, a British Petroleum criou um fundo indenizatório próprio - o Gulf Coast Claim Facility  (GCCF) - para atender ao número crescente de pedidos de indenizações. A criação do GCCF, anunciada em 16 de junho de 2010, decorreu também da pressão política exercida sobre a empresa, diretamente pelo presidente norte-americano Barack Obama. O valor inicial de constituição do fundo foi de US$ 20 bilhões,16 destinados à recuperação dos danos causados à flora e à fauna da região costeira e ao oceano, à restituição dos gastos despendidos pelas autoridades públicas locais e estaduais nos trabalhos de contenção e mitigação da poluição, e para atender às demandas individuais17. A BP Oil contratou o advogado Kenneth Feinberg para administrar o GCCF, que começou a aceitar os primeiros pedidos de indenização em 23 de agosto de 201018. Feinberg, que já havia atuado no fundo de reparação às vítimas do 11 de setembro e contava com larga experiência na área, processou mais de um milhão de pedidos de indenização apresentados por requerentes individuais e empresariais, distribuindo mais de US$ 6,2 bilhões dos recursos do referido fundo19. Todavia, em função de um acordo firmado em class action, em 8 de março de 2012,20 o pagamento de indenizações por meio do GCCF foi substituído por um programa de pagamentos judiciais21, batizado de DeepWater Horizon Claims Center,22 cuja administração coube a Patrick Juneau, a partir de junho de 2012, por designação judicial. Em recente decisão (22 de janeiro de 2021), o juiz distrital Carl J. Barbier reconheceu que o programa de indenização supervisionado pela Corte a partir de 2012, em substituição ao GCCF, foi um dos maiores acordos já firmados em class actions. Foram pagos mais US$ 12 bilhões para atender a 178 mil pedidos de indenização23, para além do pagamento de multas, taxas e de projetos de recuperação e restauração do meio ambiente. Ante a informação do administrador judicial Patrick Juneau de que os procedimentos compensatórios estavam concluídos, o juiz Barbier decretou o encerramento do programa de reparação supervisionado pela Corte, devendo a BP Oil providenciar os levantamentos necessários para que, quase 11 anos depois do acidente, o fundo de reparação seja concluído (talvez) em tempo recorde.24 Critérios para a construção de um adequado design para os fundos reparatórios As lições deixadas pelas diversas experiências dos fundos reparatórios vêm despertando a atenção da academia e de analistas de políticas públicas, que nelas se inspiram para projetar futuros designs que sejam, ao mesmo tempo, justos, adequados e eficientes.25 De acordo com Deborah HENSLER26, refletindo sobre a experiência de fundos de liquidação de ações coletivas de responsabilidade civil, os designs de programas de fundos reparatórios precisam estabelecer: (1) os critérios para se obter a compensação; (2) as provas necessárias para se determinar a elegibilidade dos postulantes; (3) a metodologia para avaliação dos pedidos; (4) as provas para apoiar a avaliação dos pedidos; (5) o escopo ou a extensão da elegibilidade e da compensação individualizada; (6) os procedimentos para a apresentação dos pedidos; (7) os mecanismos e oportunidades para a impugnação das decisões sobre os pedidos; (8) os mecanismos e oportunidades para sair do programa e migrar para o sistema de contencioso (opt-out); (9) a provisão para a adequada representação do reclamante; (10) a duração da instalação do programa; (11) a determinação a respeito da limitação da integralização do fundo; e (12) a determinação sobre as formas e a distribuição do financiamento do fundo, quando mais de uma entidade for responsável pela sua integralização. O modelo proposto por Francis MCGOVERN27, por sua vez, se baseia em uma ampla flexibilidade do design dos fundos reparatórios, destacando algumas etapas a serem observadas no desenvolvimento dos respectivos programas, dentre as quais: (1) a compreensão de todos os fatores relevantes que impulsionam o sucesso das regras aceitas, que deverão ser alterados no novo design para se ajustar aos novos fatos; (2) o levantamento de hipóteses sobre as incertezas que emergem das regras aceitas; (3) a identificação e desagregação de variáveis que serão o foco do novo design; (4) a identificação dos atores e de suas preferências quanto à possível reação ao design; (5) a seleção de objetivos de médio e longo prazo a serem alcançados; (6) a elaboração de um plano completo, incluindo as etapas de encerramento (endgame); (7) a antecipação de possíveis resistências; e (8) a revisão do plano com a inclusão de avaliações de desempenho (feedbacks) contínuos. A partir da reflexão sobre os pontos fortes e fracos do programa reparatório criado pelo World Trade Center Victim Fund, Janet Cooper ALEXANDER28 suscitou uma série indagações a respeito do modelo utilizado, com vistas à futura construção de um design mais apropriado: (1) a estruturação do fundo deve ser autorizada legislativamente e supervisionada por um special master29?; (2) a jurisdição do programa deve ser vinculada ao Departamento de Justiça, às Cortes federais ou às Cortes estaduais?); (3) quem deve conduzir o programa?; (4) quem deve indicar o diretor do programa?; (5) como serão escolhidos os oficiais subordinados ao programa?; (6) como deverá ser iniciado o programa?; (7) como o programa estará concatenado com a litigância?; (8) como o programa será coordenado com outros pagamentos?; (9) quais procedimentos deverão existir para a determinação dos prêmios?; (10) quais provisões deverão ser feitas para acomodar impugnações e a revisão judicial?; (11) quais serão os critérios de elegibilidade dos requerimentos?; e (12) quais serão as provisões para se reduzir os custos e os atrasos? Como se percebe, a fartura e a gradativa sofisticação dos critérios sugeridos para a construção de novos modelos de fundos reparatórios indicam que há ainda um longo caminho a se percorrer para a formatação de um design que permita instrumentalizar a prevenção ou a adequada e justa compensação de danos, dentro de um prazo razoável e pelos menores custos possíveis. A criação e a execução dos fundos devem levar em consideração a necessidade da apropriada coordenação entre a regulação administrativa e o controle jurisdicional, entre os meios judiciais e extrajudiciais de resolução de conflitos e entre a autonomia das vontades e a intervenção estatal para a proteção das vulnerabilidades e do interesse público. Entretanto, os programas reparatórios dos fundos não podem representar uma simples reprodução do modelo judicial de resolução de conflitos, assim como não são aconselháveis para aparelhar toda e qualquer pretensão compensatória de danos, na medida em que as soluções por eles propostas podem ser fundamentadas ora em critérios de justiça corretiva, ora em critérios de justiça distributiva.30 A maior virtude desses programas reside na flexibilidade pela qual procedimentos e técnicas podem ser ajustados de acordo com as inerências do caso concreto e para o cumprimento de objetivos muito bem delineados. Por essa perspectiva, um adequado desenho dos fundos pode assegurar maior eficiência para a concretização das multifuncionalidades da responsabilidade civil. Na próxima coluna, investigaremos como os fundos reparatórios têm sido utilizados no sistema de justiça brasileiro e quais as perspectivas para o seu aprimoramento. __________ 1 CABRAL, Antonio; ZANETI JR., Hermes. Entidades de infraestrutura específica para a resolução de conflitos coletivos: as claims resolution facilities e sua aplicabilidade no Brasil.  Revista de Processo. São Paulo: RT, 2019, vol. 287, p. 449. 2 DAMACENA, Fernanda Dalla Libera. Fundo de compensação e eventos extremos: aspectos introdutórios. Revista eletrônica do Curso de Direito da Universidade Federal de Santa Maria. V. 14, n.3 0 2019, p. 06. 3 HIRD, John A. Superfund: The Political Economy of Environmental Risk. Baltimore: The Johns Hopkins University Press, 1994. KONAR-STEENBERG. Mehmet K. A Superfund Solution for an Economic Love Canal. Pace Law Review, vol. 30, p. 310-336, 2009. 4 Disponível aqui. Acessado em 28 de abril de 2021. 5 REVESZ, Richard L. STEWART, Richard B. The Superfund Debate. In: Analyzing Superfund: Economics, Science and Law. Washinton: Resources for the Future, 1995, p. 3. 6 JUDY, Martha L. PROBST, Katherine N. Superfund at 30. Vermont Journal of Environmental Law, vol. 11, p. 191-247, 2009., p. 214. 7 ACKERMAN, R. The September 11th Victim Compensation Fund: An Effective Administrative Response to National Tragedy. Harvard Negotiation Law Review, v. 10, p.135-230, 2005. 8 Fundo criado para liquidar as reclamações decorrentes de doenças e lesões adquiridas após contaminação de fumaça tóxica durante o desastre da queda das torres gêmeas em 11 de setembro. Disponível aqui. Acessado em 29 abril de 2021. 9  ACKERMAN, R. The September 11th Victim Compensation Fund: An Effective Administrative Response to National Tragedy. Harvard Negotiation Law Review, v. 10, p.135-230, 2005, p. 145. 10 FEINBERG, K. Unconventional Responses to Unique Catastrophes: Tailoring the Law to Meet the Challenges. Journal of International Law, v. 46, n. 3, 525-544, 2014. 11 HRESKO, Tracy. Restoration and Relief: Procedural Justice and the September 11th Victim Compensation Fund. Gonzaga Law Review, v. 42, n. 1, 2006. 12  ACKERMAN, R. The September 11th Victim Compensation Fund: An Effective Administrative Response to National Tragedy. Harvard Negotiation Law Review, v. 10, p.135-230, 2005, p. 140. 13 Pela estimativa do governo federal dos EUA, o volume de óleo que foi derramado na Costa do Golfo foi de aproximadamente 4,9 milhões de barris, ou 210 milhões de galões americanos, ou ainda 780.000 m3. Fonte: "On Scene Coordinator Report on Deepwater Horizon Oil Spill", Disponível aqui. Acessado em 28 de abril de 2021. A título de comparação, esse volume corresponde a 312 piscinas olímpicas cheias de óleo bruto sendo despejadas no mar. 14 Íntegra do acordo homologado. Acessado em 29 de abril de 2021. 15 MUSKAL, Michael. BP pleads guilty to manslaughter in 2010 gulf oil spill. Los Angeles Times (online). Disponível aqui. Acessado em 04 maio de 2021. 16 Íntegra dos termos do GCCF disponível aqui.  Acessado em 03 de maio de 2021. 17 MELO, Patrícia Campos. "Obama quer usar vazamento para aprovar lei". O Estado de S. Paulo. Edição de 16 de junho de 2010. Disponível aqui. Acessado em 04 maio 2021. 18 PARTLETT, David F. WEAVER, Russell L. BP Oil Spill: Compensation, Agency Costs, and Restitution. Washington & Lee Law Review. Vol. 68, 2001. p. 1343. 19 BDO CONSULTING. Independent Evaluation of the Gulf Coast Claims Facility: Executive Summary. BDO USA, LLP (online). Disponível aqui. Acessado em 04 maio 2021. 20 LONGSTRETH, Andrew. STEMPEL, Jonathan. BP spill claims process set up, Feinberg relieved. Reuters (online). Disponível aqui. Acessado em 04 maio 2021. 21 Íntegra disponível aqui. Acessado em 03 de maio de 2021. 22 Website oficial disponível aqui. 23 Íntegra da decisão disponível aqui. 24 THOMAS, TA. Symposium: remedies for big disaster: The BP Gulf Oil Spill and the quest for complete justice. Akron Law Review. v. 45, n. 3, 567-573, 2012. 25 MULLENIX, Linda S. Designing Compensatory Funds: In Search of First Principles. Stanford Journal of Complex Litigation, v. 3, n. 567, p.1-31, 2015. Disponível aqui. Acessado em 23 de abril de 2021. 26 HENSLER, Deborah R. Alternative Courts? Litigation-Induced Claims Resolution Facilities. Stanford Law Review, vol. 57, 2005. pp. 1432-1433. 27 MCGOVERN, Francis E. The What and the Why of Claims Resolution Facilities. Stanford Law Review, vol. 57, 2005. pp. 1375-1379. 28 ALEXANDER, Janet Cooper. Procedural Design and Terror Victim Compensation. De Paul Law Review. Vol. 53, 2008. pp. 661-688. 29 O special master é uma espécie de administrador judicial, cuja figura e funções foram exploradas pelo colega Pedro Fortes na coluna de 26 de abril de 2021 neste Portal. Link para o artigo. 30 MULLENIX, Linda S. Designing Compensatory Funds: In Search of First Principles. Stanford Journal of Complex Litigation, v. 3, n. 567, p. 1, 2015. Disponível aqui. Acessado em 23 de abril de 2021.
Não é a primeira vez que se escreve sobre punitive damages neste espaço. Como bem colocou a professora Thais Pascoaloto Venturi, este instituto foi gradativamente incorporado pelo direito norte-americano, tendo sido consagrado por decisões da Suprema Corte já em 1851, sendo disseminado por quase todos os Estados, sempre com o objetivo de punir (punishment) e desestimular ou prevenir (deterrence) condutas que se revelassem especialmente maliciosas, opressivas ou cruéis. As teorias norte-americanas sobre punitive damages se dividem em três análises quanto à sua função: punir o autor do ilícito, compensar a vítima ou um híbrido de ambos. A própria Suprema corte dos EUA discutiu o objetivo dos punitive damages em algumas ocasiões, alcançando diferentes conclusões.1 Aliás, em sua conhecida trilogia referente aos limites da cláusula do devido processo, a SCOTUS simultaneamente afirmou, por um lado, que o objetivo dos punitive damages seriam os de "punir condutas ilícitas e deter a sua reiteração" e, lado outro, que a compensação de danos depende e está intimamente conectada com a condenação punitiva.2 Enfim, a Suprema Corte parece inapta a decidir se os punitive damages são voltados ao agente ou as vítimas. A expressão punitive damages é a chave para compreendermos as duas mais proeminentes explicações sobre a finalidade deste remédio nos EUA: punição (punishment) e indenização (damages). Se eles forem "punitive", o objetivo será o de punir os ofensores, enfatizando a dissuasão e funções retributiva, porém se forem "damages", a finalidade será a de compensar as vítimas por um ilícito privado, providenciando-lhes uma reparação. Se os punitive damages forem ambas as coisas, como decidiu a Suprema Corte em 2020,3 o problema será o de conciliar as suas funções em cada caso. A maioria dos estudiosos acredita que o objetivo dos punitive damages consiste em punir os autores de ilícitos, desestimular indesejáveis comportamentos (deterrence) e forjar o merecimento (desert) - "desert" no sentido de o demandado merecer uma punição.4 Existem nuances nesses vocábulos, mas há algo de desconfortável em considerar que as justificativas mais influentes para os punitive damages não se fundamentem em remédios, mas em punições criminais.5 De fato, tradicionalmente os punitive damages são deferidos com duas finalidades: retributiva (punishment) e desestímulo (deterrence). A retribuição reclama que a conduta revele extrema reprovação social - uma malícia, evidenciada pelo dolo ou grave negligência do agente -, cumulada ao desestímulo, no sentido de direcionar a pena a afligir o transgressor, induzindo-o a não reiterar comportamentos antissociais e ultrajantes análogos. Enquanto as cortes estadunidenses e canadenses adotam a expressão punitive damages, outras jurisdições - como a britânica e australiana - optam por exemplary damages. Não se pode afirmar que sejam termos de significado idêntico, pois a adoção de uma por outra produz reflexos sobre o perfil sistemático. O termo "punitive" enfatiza a preferência por um objetivo de punição; diversamente, a adoção da locução "exemplary" indica que o fim primário é de constituir um desestímulo que afaste o espectro da reiteração da mesma conduta. Dentre os mais conhecidos teóricos da função dissuasória dos punitive damages, Mitchell Polinsky e Steven Shavell, argumentam que a sanção punitiva só deve ser imposta aos réus na medida em que eles consigam se evadir da responsabilidade por toda a extensão dos danos que causaram, a fim de dissuadir adequadamente estes réus e outros que pensem em cometer conduta ilícita semelhante no futuro.6 Ilustrativamente, em um caso bem conhecido decidido pelo juiz Richard Posner, um motel que alugou quartos repetidamente para os inquilinos sabendo que as habitações estavam infestadas por percevejos (sistematicamente mentindo e movendo estrategicamente seus hóspedes de um quarto infestado para o próximo) foram corretamente sancionados com punitive damages, pois os compensatory damages que qualquer demandante poderia recuperar seriam incapazes de "limitar a capacidade do réu de lucrar com sua fraude escapando da prossecução privada".7 Nessa toada, Polinsky e Shavell alegam que que a repreensibilidade moral da conduta do réu é "irrelevante" para a adequação dos punitive damages: "o foco na determinação dos punitive damages consiste na chance de o ofensor escapar da responsabilidade."8 Contudo, uma abordagem dissuasiva para punitive damages tem sido contida na prática por várias limitações em doutrinas constitucionais que frequentemente restringem o quantum dos punitive damages para níveis de dissuasão abaixo do ideal.9 E há outros problemas práticos com a abordagem unicamente dissuasória dos punitive damages. De fato, vários estados incorporam fundamentos baseados em "deterrence" em seus regimes de punitive damages, apesar de que nenhum deles tenha adotado a dissuasão exclusivamente.  O fato é que vários estudos empíricos mostram que a otimização da dissuasão não é a principal razão pela qual juízes e júris concedem punitive damages.10 A tendência é a de que punitive damages sejam estipulados em proporção aos compensatory damages, tendo como razão principal a condenação moral do comportamento do réu e não considerações dissuasivas. Assevera Anthony Sebok, que a incompatibilidade entre os punitive damages da teoria do desestímulo e punitive damages na prática, demonstra que o seu padrão é mais consistente com a visão tradicional que acentua o componente retributivo do que o viés da law and economics, que acentua o desestímulo eficiente.11 A outra justificativa punitiva convencional para punitive damages concerne ao merecimento do agente (desert)- uma versão sob medida para a responsabilidade civil da função retributiva da punição no direito penal.12 Muitas vezes, o merecimento é simplesmente assumido para operar efeitos, mas os contornos precisos do retributivismo em questão - sua natureza, quais os direitos estão sendo reivindicados, a natureza do interesse social em jogo - não é bem explicado. Um dos relatos retributivistas mais cuidadosos é o de Dan Markel, que argumentou que o retributivismo no direito penal consiste em "comunicar ao ofensor que o estamos respeitando ao considerá-lo responsável como um agente moral capaz de escolher agir de maneira ilícita e, portanto, censurável".13 Vários compromissos igualitários, como "equal liberty under law" e "democratic self-defense" contribuem para a visão de Markel de retributivismo como um ato comunicativo do regime liberal democrático ao agente culpado. Porém os atores principais na teoria são o infrator e o estado, não a vítima. Markel aplica essa explicação ao contexto de punitive damages: indenizações que podem ser buscadas por qualquer pessoa no governo (não apenas a vítima) para reivindicar interesses públicos, sendo que o estado (não a vítima) recebe a maior parte da indenização por punitive damages. A abordagem de Markel tem a virtude de recorrer ao direito penal para compreender a natureza do ilícito que dá vazão aos punitive damages. Mas a justificativa do "merecimento" conduz a uma concepção controversa e altamente parcial de justiça retributiva no direito penal, aplicada indiscriminadamente à responsabilidade civil. Mesmo se formos persuadidos pela alegação de que uma comunicação direta e potente da comunidade ao causador do ilícito seja uma função apropriada para o direito privado,14 o demandante é quase invisível nesta descrição teórica dos punitive damages. Por conseguinte, um dos problemas mais sérios para ambos os modelos punitivos da função dos punitive damages é que eles não os consideram como uma indenização. Ambos são excessivamente dependentes de justificativas criminológicas e voltadas para a coletividade. Markel, por exemplo, permitiria que pessoas que não fossem vítimas de ilícitos apresentassem demandas independentes de punitive damages, algo provavelmente proibido pela Suprema Corte no processo Philip Morris v. Williams.15 E a maior parte da indenização se destinaria ao governo, sugerindo que punitive damages não é uma indenização propriamente, servindo a alguma outra função socialmente benéfica.16 O que parece faltar nessas teorias de punitive damages- sejam motivadas em dissuasão ou em merecimento- é uma abordagem capaz de explicar a sua natureza e função como indenizações resultantes de um "senso de ultraje", que é a razão real e preponderante para sua concessão.17 Punitive damages dependem, para a sua própria existência, da constatação de um dano, sendo diretamente proporcional à quantia de uma prévia indenização por compensatory damages. Todavia, as teorias punitivistas não consideram os punitive damages como indenizatórios e desvinculados da compensação por responsabilidade civil. O que é necessário, portanto, é uma explicação do significado do "sentido de ofensa" que motiva a aplicação dos punitive damages nos casos concretos, ao invés de quaisquer justificativas teóricas, bem como a conexão dos punitive damages à compensação a vítima. Adiante, outra narrativa quanto à função dos punitive damages sustenta que eles fornecem uma reparação para vítimas que sofreram um ilícito particularmente grave. A responsabilidade civil atua como sistema de reparação privada para ilícitos privados e os punitive damages se encaixam como um recurso civil para ilícitos particularmente graves. A teoria do "civil recourse" situa os punitive damages dentro de uma visão mais ampla de responsabilidade civil, oferecendo protagonismo à reparação pelo ilícito, concedendo importância a ideia de uma justa compensação ao invés de uma compensação integral como remédio primário no modelo da responsabilidade civil.18 Este modelo reserva um lugar para os punitive damages como um gênero de compensação para uma específica categoria de ilicitude. Ilustrativamente, John Goldberg aduz que punitive damages se tornam "bastante inteligíveis se compreendidos como um tipo de pagamento por danos reservados às vítimas de um particular tipo de ilícito gravoso, que, a seu turno, defere a elas o direito à uma particular espécie de resposta".19 O quê está em jogo nos punitive damages, enfatiza Goldberg em outra passagem, não se trata do interesse do estado em obter uma retribuição em nome dos cidadãos ou em desestimular práticas astutas no mercado, porém o interesse dos demandantes em reivindicar os seus direitos de não serem maltratados da forma pela qual foram.20 Igualmente, Thomas Colby enfatiza uma histórica função dos punitive damages, concernente à reparação de  um insulto à honra ou dignidade da vítima21, que depende em parte do status suportado pelo demandante. Benjamin Zipursky enfatiza que os punitive damages possuem um "civil aspect", refletindo o direito do demandante a punir, uma permissão que existe em razão da maneira pela qual foi injustiçado- deliberadamente ou maliciosamente.  O chamado "right to be punitive" é o privilégio de buscar satisfação por um tipo distinto de ilicitude privada.22 De fato, ao funcionalizar os punitive damages como um particular tipo de agravamento à uma lesão preexistente que resulte na necessidade de uma distinta compensação, a teoria do "civil recourse" empresta sentido à necessidade de uma prévia condenação de natureza compensatória e a proporcionalização entre compensatory damages e punitive damages. A teoria do recurso civil é superior a outras abordagens de punitive damages, pois os insere no sistema de responsabilidade civil. Contudo, tal como as teorias punitivistas, o "civil recourse" não fornece pistas sobre o que deve ser considerado como um ilícito grave, de modo que o fundamento dos punitive damages permanece obscuro. A teoria do recurso civil poderia resolver esse problema com uma explicação normativa abrangente da ilicitude, que lide com o objeto dos punitive damages. Michael Moreland e Jeffrey Pojanowski explicam que o "civil recourse" hesita em oferecer critérios normativos para o que seria considerado como um ilícito.23 Muitas vezes, o seu relato sobre ilicitude parece motivado por intuições comuns sobre ilicitude: algo "amplamente compartilhado", embora não especificado. Na área específica dos punitive damages, enquanto a teoria do recurso civil sustenta que os demandantes têm direito a reparação por "ilícitos flagrantes", ou "maus tratos", os teóricos evitam descrever a natureza do "maltrato", ou "insulto", e outros comportamentos que justificam uma indenização por punitive damages. Na verdade, existem tantas variáveis terminológicas (ill will, outrage, wantonness, fraud, abuse of power, willfulness, evil motive) que não está totalmente claro para que servem os punitive damages. As razões para a aplicação dos punitive damages não foram confrontadas, mesmo que seus objetivos tenham sido amplamente teorizados. Isso é negativo, pois uma maior atenção à natureza dos ilícitos que dão margem aos punitive damages esclareceria sua função, seja na estrutura do "civil recourse" ou em outras teorias. Em nossa próxima coluna traremos as singularidades dos punitive damages na Inglaterra. A um primeiro olhar, para um civilista brasileiro ou de outra jurisdição da civil law tal assertiva soa surpreendente, na medida em que encaramos o common law como uma unidade quando, na verdade, são gritantes as especificidades de cada jurisdição. *Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Fellow of the European Law Institute (ELI). Member of the Society of Legal Scholars (UK). Membro do Grupo Iberoamericano de Responsabilidade Civil. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. __________ 1 Basta comparar os três casos: Opati v. Republic of Sudan 590 U.S. (2020) (punitive damages como híbrido de punição/compensação) com Cooper Industries, Inc. v. Leatherman Tool, Inc., 532 U.S. 424, 432 (2001) (descrevendo punitive damages como "private fines" aplicadas por júris) e ainda com Exxon Shipping Co. v. Baker, 554 U.S. 471, 492 (2008) (entendendo que punitive damages não objetivam compensação, mas principalmente retribuição para deter condutas nocivas). 2 BMW of North America v. Gore, 517 U.S. 559, 568, 575 (1996); State Farm Auto. Ins. Co. v. Campbell, 538 U.S. 408, 417-19 (2003); Philip Morris, USA v. Williams, 549 U.S. 346, 352-53 (2007). 3 Opati v. Republic of Sudan, 140 S. Ct. 1601, 1609 (2020). Como enfatizou Justice Gorusch:"It's true that punitive damages aren't merely a form a compensation but a form of punishment, and we don't doubt that applying new punishments to completed conduct can raise serious constitutional questions"). Opati foi um caso envolvendo o Foreign Sovereign Immunities Act com a emenda de 2008, cujo objeto foi saber se demandantes em ações contra estados estrangeiros poderiam buscar punitive damages retroativamente por pretensões anteriores a 2008, sendo que o caso específico lidou com vítimas e suas famílias de atentado terrorista no Sudão em 2008. Em maio de 2020 a Suprema Corte decidiu por unanimidade que punitive damages poderiam ser reivindicados contra nações estrangeiras antes da sanção da emenda. 4 Cass Sunstein aduz que "the explicit goals of punitive damages are to deter and punish", e nomeia esses objetivos como "a mixture of civil and criminal law traditions." In Punitive Damages: How Juries Decide. Por Cass R. Sunstein, Reid Hastie, John W. Payne,See, 78 (2002). 5 Martin H. Redish & Andrew L. Mathews, Why Punitive Damages are Unconstitutional, 53 EMORY L.J. 1, 3-4 (2004) (os autores descrevem os punitive damages como "anomalous" and "uncivilized"). 6 Polinsky & Shavell: punitive damages. An economic analysis. Harvard Law review. V. 111, n. 4, February 1998.  7 Mathias v. Accor Economy Lodging, Inc, 347 F.3d 672 (7th Cir. 2003). 8 Polinsky & Shavell: punitive damages. An economic analysis. Harvard Law review. V. 111, n. 4, February 1998.  9 State Farm Mut. Auto. Ins. Co. v. Campbell, 538 U.S. 408, 425 (2003) (sustentando que a Due Process Clause da 14. Emenda proíbe na maior parte dos casos uma proporcionalidade entre punitive damages e compensatory damages de 4:1 ou maior). 10 "People appear to reject the view, widespread in economic analysis, that punishment should be increased beyond compensation where the probability of detection is low, and that compensation is adequate where the probability of detection is 100%". In Punitive Damages: How Juries Decide. Cass R. Sunstein, Reid Hastie, John W. Payne,See, 78 (2002). 11 Sebok, Anthony J., Punitive Damages: From Myth to Theory. Iowa Law Review, Vol. 92, 2007, Brooklyn Law School, Legal Studies Paper No. 59, Princeton Law and Public Affairs Working Paper No. 06-015, Available at SSRN. 12 Geistfeld, Mark, Punitive Damages, Retribution, and Due Process (October 2007). Southern California Law Review, Vol. 81, No. 2, pp. 263-309, 2008, NYU Law and Economics Research Paper No. 07-39, NYU Law School, Public Law Research Paper No. 07-18, Available at SSRN. 13 Dan Markel, Retributive Damages: A Theory of Punitive Damages as Intermediate Sanction, 94 Cornell L. Rev. 239 (2009). Available at. 14 David G. Owen, In response to Dan Markel, How Should Punitive Damages Work? 157 U. PA. L. REV. 1383 (2009).Response, Aggravating Punitive Damages, 158 U. PA. L. REV. PENNUMBRA 167 (2010). 15 549 U.S. 346 (2007), 556 U.S. 178 (2009). Decisão da SCOTUS considerando que a due process clause da 14. Emenda limita os limita os punitive damages. A decisão proibiu o uso de punitive damages contra o demandado para reivindicar direitos de terceiros. 16 Para uma elegante narrativa sobre punitive damages como uma indenização social, recomenda-se o texto de Catherine M. Sharkey, Punitive Damages Transformed Into Societal Damages. 113 Yale L.J. (2003). Available at. 17 O Restatement of the law situa os punitive damages como indenizações (damages), e não como uma categoria de condenação moentária externa diversa. Restatement (Second) of Torts § 908 (1), 1979: "Punitive damages are damages, other than compensatory or nominal damages, awarded against a defendant to punish him or her for outrageous conduct and to deter the defendant or others similarly situated from engaging in such conduct in the future". 18 Por tudo e por todos, recomenda-se a obra mais recente de John Goldberg & Benjamin Zipursky, Recognizing Wrongs, Belknap Press of Harvard University, Cambridge/London 2020. explain the distinctive and important role that tort law plays in our legal system: it defines injurious wrongs and provides victims with the power to respond to those wrongs civilly. A ideia central do "civil recourse" consiste em compreender que a responsabilidade civil responde a uma ideia central: Uma pessoa que foi maltratada por outra de modo injustificado pela lei, tem o direito a um recurso civil contra o ofensor. 19 John C. Goldberg, The Constitutional Status of Tort Law: Due Process and the Right to a Law for the Redress of Wrongs, 115 Yale L.J. (2005). Available at. 20 Goldberg, John C. P., Tort Law for Federalists (and the Rest of Us): Private Law in Disguise. Available at SSRN. 21 Colby, Thomas, Beyond the Multiple Punishment Problem: Punitive Damages as Punishment for Individual, Private Wrongs. Minnesota Law Review, Vol. 87, p. 583, 2003, GWU Legal Studies Research Paper No. 244, GWU Law School Public Law Research Paper No. 244, Available at SSRN. 22 "Punitive damages have a double aspect, corresponding to two senses of 'punitive'. Insofar as they pertain to the state's goal of imposing a punishment upon a defendant who merits deterrence or retribution, they have a criminal aspect. Insofar as they pertain to the plaintiff's 'right to be punitive' they have a civil aspect" Benjamin C. Zipursky, Theory of Punitive Damages, 84 Tex. L. Rev. 105 (2005).   23 Moreland, Michael P. and Pojanowski, Jeffrey A., The Moral of Torts (June 3, 2020). The Moral of Torts, in Christianity and Private Law, eds. Robert F. Cochran, Jr. and Michael P. Moreland, Routledge, Forthcoming, Available at SSRN.
Introdução Ao longo das últimas colunas, discutimos os modelos de tutelas coletivas de direitos e o caso Dieselgate nos Estados Unidos, União Europeia e no Brasil, merecendo reflexão específica na coluna de hoje o tema da atuação do special master na class action dos Estados Unidos. Explica-se: conforme a regra 53 das Federal Rules of Civil Procedure, as cortes podem nomear um mestre especial para a performance de deveres consentidos pelas partes e para a condução de procedimentos e conhecimento de fatos nas hipóteses de condições excepcionais, necessidade de atuação contábil ou de solucionar uma computação difícil de danos de enfrentar questões pré-processuais ou pós-processuais que não podem ser realizadas efetivamente e tempestivamente pelo magistrado em atuação na comarca.1 O objetivo do presente artigo é apresentar o special master na class action dos Estados Unidos como uma figura análoga ao administrador judicial, refletindo sobre a importância do seu papel e como poderia servir de inspiração para ampliar a efetividade da execução coletiva no Brasil com a nomeação de uma espécie de síndico da massa devida. A necessidade de administração judicial para a efetiva responsabilização coletiva Uma característica marcante da Class Action é seu efeito prático imediato de satisfação da pretensão indenizatória pela determinação de envio de um cheque pelo correio como compensação ou do depósito de um crédito diretamente em sua conta corrente.2 Na experiência da tutela coletiva brasileira, por outro lado, após período inicial de maior impacto regulatório - de definição das regras do jogo - do que ressarcitório, tem sido obtidos resultados mais concretos de responsabilização em massa por uma transgressão coletiva (a chamada 'mass torts litigation').3 O mecanismo de compensação coletiva da massa de consumidores pode ser estruturado como instrumento autoexecutável de pagamento da indenização. Exemplo pródigo foi a assinatura recente de Termo de Ajustamento de Conduta entre Ministério Público, Defensoria e a Companhia Estadual de Águas e Esgotos do Rio de Janeiro (CEDAE), com compromisso de desconto de 25% na conta de água de centenas de milhares de consumidores como compensação por prejuízos decorrentes da falta de abastecimento de água.4 Contudo, não raro, o Poder Judiciário brasileiro insiste na exigência de que cada consumidor lesado contrate um advogado para representá-lo em juízo e se apresente formalmente através de um pedido de habilitação de crédito. Em um caso concreto, o Ministério Público pediu que a 7ª Vara Empresarial obrigasse uma universidade privada a efetuar o pagamento de crédito de cerca de mil reais para cada um de seus 20.000 estudantes decorrentes de uma cobrança abusiva e demonstrasse documentalmente o cumprimento da execução coletiva. Apesar de a Universidade já ter sido condenada em definitivo, o Magistrado considerou em 2010, ainda antes da vigência do Código Fux (CPC/2015), que seria inadmissível "uma execução forçada a favor de quem sequer se habilitou como parte".5 Tal insistência na habilitação formal dos lesados na ação coletiva cria obstáculos para a efetiva proteção de direitos e o regular exercício da prestação jurisdicional. Nesse caso, após o indeferimento judicial da execução coletiva, o Ministério Público comunicou o Grêmio Estudantil sobre a necessidade de que cada consumidor se habilitasse individualmente para receber o crédito a que teria direito da Universidade. Ao longo dos anos seguintes, cerca de 200 habilitações formais foram apresentadas em juízo, dando origem a aproximadamente dez mil atos processuais e mil atos judiciais, que poderiam ser evitados caso tivesse sido realizada a execução coletiva. Por outro lado, essa movimentação intensa da máquina judicial somente atendeu a cerca de 1% do universo dos lesados, formado predominantemente pelos ex-estudantes de direito que, formados como advogados, não precisaram contratar um profissional para se habilitar no processo coletivo. Os custos de transação - contratação de advogado, pagamento de honorários e custas processuais e desvio produtivo de tempo para fins de habilitação - explicam a apatia racional de 99% dos consumidores lesados que não se habilitaram na ação coletiva.6 Em síntese, a efetiva responsabilização coletiva exige do Poder Judiciário a capacidade administrativa de viabilizar o pagamento do crédito devido à massa de lesados, o que pode ser facilitado com a presença de um profissional especializado. A figura do Special Master na Class Action dos Estados Unidos  No caso do Poder Judiciário dos Estados Unidos, o papel do Special Master consiste justamente em proporcionar gerenciamento eficiente aos tribunais e partes em um processo.7 Apesar de não terem sua atuação limitada aos processos coletivos, o próprio site da Academia dos Mestres Nomeados pelos Tribunais salienta que eles desempenham múltiplos papéis nos processos coletivos, como monitores, mediadores, facilitadores e árbitros de questões complexas no âmbito das class actions.8 Nos Estados Unidos, esses profissionais têm sido extremamente úteis no acompanhamento da instrução probatória, na negociação de acordos coletivos e na definição de uma estratégia para gerenciamento e solução de múltiplos conflitos de interesse repetitivos, tal como, por exemplo, verificado no julgamento de 9.000 processos de vítimas do amianto em um período de dois anos a partir do trabalho de apoio dado por dois special masters para o Poder Judiciário.9 O mais proeminente dos mestres especiais é o ex-Promotor de Justiça e advogado, Kenneth Feinberg, que atuou pioneiramente no acompanhamento de ações de indenização das vítimas do amianto e nos processos de responsabilidade decorrente de contaminação pelos efeitos tóxicos do produto agente laranja.10 Logo após o ataque terrorista de 11 de setembro de 2001, o Congresso dos Estados Unidos estabeleceu um fundo de compensação para as vítimas e Kenneth Feinberg foi nomeado pelo então Procurador-Geral da República, John Ashcroft, o encarregado de promoção do plano para a resolução de um caso de responsabilização coletiva de lesados em caráter extrajudicial.11 Nessa função, ao longo de três anos, ele estabeleceu parâmetros para a compensação de cada categoria de vítimas do ato terrorista com base no valor proporcional das perdas, inclusive da estimativa de futuros rendimentos a serem recebidos.12 Também estabeleceu uma fórmula de compensação para evitar que a maior parte dos recursos do fundo fosse concentrada no pagamento de indenização para um percentual mínimo das vítimas mais ricas, reduzindo as disparidades entre os montantes mais altos e mais baixos de indenizações pagas para as vítimas.13 Além desses casos, ele atuou profissionalmente no episódio do vazamento de óleo no Golfe do México decorrente da explosão da plataforma de exploração de petróleo Deepwater Horizon de responsabilidade da empresa British Petroleum.14 Finalmente, no caso do Dieselgate nos Estados Unidos, a empresa Volkswagen também contratou Kenneth Feinberg para administrar o programa de compensação para os consumidores lesados pela compra dos veículos a diesel equipados com o artifício fraudulento.15  A figura do Mestre Especial como espécie de síndico da massa devida  A experiência dos Estados Unidos inspira a reflexão sobre a figura do mestre especial ou um administrador judicial como uma espécie de síndico da massa devida nos processos coletivos brasileiros. Tradicionalmente, os juízes das Varas Empresariais nomeiam profissionais para administração judicial de créditos falimentares a serem pagos por empresas em situação de falência ou recuperação judicial. Contudo, tradicionalmente não é nomeado um profissional para identificação da massa de créditos devidos em decorrência de uma transgressão coletiva típica de uma responsabilização em massa (mass torts litigation), que poderia adotar uma postura proativa para assegurar a efetividade da execução coletiva e do ressarcimento de todos os indivíduos lesados. Por exemplo, no processo brasileiro do dieselgate, após a sentença condenatória proferida pelo Juízo da 1ª Vara Empresarial da Capital, em 2018, o Magistrado concedeu efeito suspensivo ao recurso de apelação devido às dificuldades causadas pelo processamento de dezenas de habilitações de consumidores de todo o país: "Apesar de não ser a praxe deste juízo a concessão de tal benefício, o fato é que a mera notícia da sentença condenatória está causando um tumulto processual sem precedentes, uma vez que consumidores das mais diversas partes do País estão ingressando nos autos pretendendo receber suas indenizações."16 A condenação foi mantida pelo TJRJ e, apesar do caso estar pendente de recursos junto ao STJ e ao STF, a tendência deve ser a manutenção da condenação diante da comprovada fraude global. Contudo, a dificuldade com a habilitação de somente algumas dezenas de beneficiários da sentença evidencia a necessidade de reestruturar a execução coletiva no Brasil. Nesse contexto, a atuação de um colaborador do juízo, custeado pela empresa-ré, poderia ser especialmente positiva, já que serão dezenas de milhares de proprietários de veículos e o valor dos danos materiais deverá ser fixado caso a caso e não mais pelo valor médio pré-fixado pela sentença de primeiro grau. A nomeação de administrador judicial para realizar o papel de síndico da massa devida, a exemplo da figura do special master nas Class Actions estadunidenses, poderia ser uma solução não somente para o processo brasileiro do dieselgate, mas também para ampliar a efetividade da execução coletiva em geral.  Considerações finais  O direito brasileiro tradicionalmente trabalha com a figura de um administrador judicial (ou um síndico) nos casos de recuperação judicial e de falência, mas não como um colaborador do Poder Judiciário para facilitar a execução coletiva e a responsabilização em massa (mass torts litigations). A experiência do special master nas class actions dos Estados Unidos poderia servir de inspiração para a nomeação de administradores judiciais (ou síndicos da massa devida) no Brasil. Tal prática poderia servir de alternativa ao modelo atual em que juízes esperam a habilitação individual da massa de consumidores, que acaba limitada a uma pequena fração do universo de lesados com grande ineficiência tanto para os lesados quanto para o Poder Judiciário. O Poder Judiciário poderia se valer de um colaborador profissional para viabilizar o pagamento de indenizações a grande número de consumidores lesados e ampliar a proteção dos direitos coletivos.  Pedro Fortes é Professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt. __________ 1 Disponível aqui. 2 CALABRESI, Guido; SCHWARTZ, Kevin S. The costs of class actions: allocation and collective redress in the US experience. European journal of law and economics, v. 32, n. 2, p. 169-183, 2011. 3 FORTES, Pedro Rubim Borges. O Fenômeno da Ilicitude Lucrativa. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 5, n. 1, p. 104-132, 2019. 4 Processo n. 0076803-21.2020.8.19.0001 5 Processo n. 0047319-20.2004.8.19.0001 6 VAN DEN BERGH, Roger; VISSCHER, Louis. The Preventive Function of Collective Actions for Damages in Consumer Law. Erasmus L. Rev., v. 1, p. 5, 2007. 7 BRAZIL, Wayne D. Special masters in complex cases: Extending the judiciary or reshaping adjudication. U. Chi. L. Rev., v. 53, p. 394, 1986; SCHEINDLIN, Shira. We Need Help: The Increasing Use of Special Masters in Federal Court. DePaul L. Rev., v. 58, p. 479, 2008. 8 Disponível aqui. 9 In re Ohio Asbestos Litig. 83-03 (N. D. Ohio, July 14, 1983). 10 FEINBERG, Kenneth R. Response to Deborah Hensler, A Glass Half Full, a Glass Half Empty: The Use of Alternative Dispute Resolution in Mass Personal Injury Litigation. Tex. L. Rev., v. 73, p. 1647, 1994; FEINBERG, Kenneth R. The Toxic Tort Litigation Crisis: Conceptual Problems and Proposed Solutions. Hous. L. Rev., v. 24, p. 155, 1987. 11 FEINBERG, Kenneth R. Speech: Negotiating the September 11 Victim Compensation Fund of 2001: Mass Tort Resolution Without Litigation. Wash. UJL & Pol'y, v. 19, p. 21, 2005. 12 FEINBERG, Kenneth R. What Is Life Worth?: The unprecedented effort to compensate the victims of 9/11. New York: Public Affairs, 2005; 13 Idem. 14 FEINBERG, Kenneth R. Unconventional Responses to Unique Catastrophies. Akron L. Rev., v. 45, p. 575, 2011; PARTLETT, David F.; WEAVER, Russell L. BP oil spill: Compensation, agency costs, and restitution. Wash. & Lee L. Rev., v. 68, p. 1341, 2011. 15 Disponível aqui. 16 Processo n. 0412318-20.2015.8.19.0001.
Na pacata cidade de Peachtree, no Estado da Geórgia (EUA), o dono de uma oficina mecânica, insatisfeito com o pedido de demissão de seu empregado, decidiu pagar o seu último salário, no valor de U$ 915,00, em moedas de 1 centavo. As 91.500 moedas, que pesavam aproximadamente 227 kg, foram deixadas à noite na entrada da casa do ex-funcionário. As moedas estavam cobertas por um óleo pegajoso e fétido, provavelmente fluido de direção hidráulica. Por cima da pilha de moedas havia ainda o contracheque com a mensagem "fuck you" escrita à mão. Este caso foi recentemente noticiado pelo tradicional jornal The New York Times1. A matéria apresenta uma foto da pilha de moedas: O caso ganhou notoriedade quando a namorada do ex-empregado postou dois vídeos sobre o incidente no Instagram. Desde então "o casal atraiu a simpatia de milhares de pessoas, que também mantêm relações tensas com seus empregadores em meio à pandemia." O casal conta que passou algumas horas transportando as moedas para a garagem em um carrinho de mão, subindo a encosta íngreme da entrada da casa para a garagem. No processo, as rodas do carro foram danificadas pelo peso das moedas. Eles precisaram ainda limpar os centavos para poder jogá-los em uma máquina de contar moedas. Espalharam-nas em um tanque grande com detergente, vinagre e água. Mas não deu certo. Eles então descobriram que, para remover a solução gordurosa, precisavam limpar cada centavo individualmente. O casal levou cerca de duas horas para limpar US$ 5 em moedas de um centavo. O ex-empregador foi procurado por uma emissora americana e disse que não conseguia se lembrar se tinha deixado as moedas na entrada da casa de seu ex-funcionário, mas complementou: "Não importa - ele foi pago, isso é tudo que importa". O ex-funcionário pensou em ajuizar uma ação contra o ex-empregador, mas não o fez por entender que o que acontecera podia não ser ilegal do ponto de vista técnico. Eric R. Lucero, um porta-voz do Ministério do Trabalho dos EUA, foi questionado por e-mail se empregadores podem pagar a empregados em moedas de 1 centavo sujas com óleo e ele respondeu que "não há nada nos regulamentos que dite em que moeda o funcionário deve ser pago." Diante dessa resposta, o jornal The NY Times noticiou o caso, dizendo que este tipo de pagamento "não é tecnicamente ilegal, de acordo com o Ministério do Trabalho", mas que isso "não significa que seja OK, de acordo com os novos fãs do Instagram do ex-funcionário." O caso e a resposta da autoridade americana convidam à reflexão sobre a licitude da conduta do ex-empregador. Afinal, é mesmo lícito pagar dívida de quase mil dólares com moedas de 1 centavo sujas de óleo? Vamos responder a essa pergunta à luz do direito americano e brasileiro. Partindo do direito brasileiro, constata-se que também aqui não há regra expressa que exclua expressamente a possibilidade de pagamento com moedas de 1 centavo sujas de óleo. O Código Civil prevê apenas que "as dívidas em dinheiro deverão ser pagas no vencimento, em moeda corrente e pelo valor nominal" (art. 315). E a CLT dispõe que "a prestação, em espécie, do salário será paga em moeda corrente do país." (art. 463). Seria então lícito este tipo de pagamento por falta de regra expressa que clara e diretamente o proíba? A resposta é negativa. Não se pode esquecer do fundamental princípio da boa-fé, positivado, entre outros dispositivos, no art. 422 do Código Civil: "Os contratantes são obrigados a guardar, assim na conclusão do contrato, como em sua execução, os princípios de probidade e boa-fé." Desse princípio extrai-se, dentre outros, os deveres de lealdade, que vedam que uma das partes contratantes agrave ou onere desnecessariamente a posição da outra. E foi precisamente isso o que ocorreu no caso: ao pagar a dívida com quase mil moedas de 1 centavo sujas de óleo, o devedor colocou o credor em uma situação desnecessariamente mais onerosa. Basta pensar em todo o esforço do ex-funcionário necessário para poder fazer uso do dinheiro pago, como transportar as moedas, armazená-las, limpá-las, contá-las e trocá-las por cédulas maiores ou depositá-las em conta bancária. De acordo com o Direito brasileiro, este pagamento é, portanto, flagrantemente ilícito, por violar a boa-fé. E nos EUA? Na ausência de norma expressa que vede o pagamento em moedas de 1 centavo, especialmente se sujas de óleo, o princípio da boa-fé seria aplicável também lá, tornando o pagamento ilícito? A resposta parece-nos positiva. Apesar de tradicionalmente ter havido maior resistência da comunidade jurídica americana, sobretudo quando comparado com o desenvolvimento nos países do civil law, a noção de good faith (and fair dealing) é atualmente reconhecida e relevante para o direito contratual norte americano. Foi primeiramente incorporada ao Uniform Commercial Code: "Section 1-304. Obligation of Good Faith: Every contract or duty within this act imposes an obligation of good faith in its performance and enforcement." E também codificada pelo American Law Institute nos Restatement (Second) of Contracts: "§ 205. Duty of Good Faith and Fair Dealing: Every contract imposes upon each party a duty of good faith and fair dealing in its performance and its enforcement." Retomando, então, a provocação presente no título da presente coluna, pode-se concluir que a conduta do ex-empregador de pagar ao ex-empregado com quase mil moedas de 1 centavo sujas de óleo é ilícita, tanto pelo Direito brasileiro quanto pelo americano. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em 14 abr. 2021.
segunda-feira, 12 de abril de 2021

O Legal Design Thinking

A arte inspirando a vida: a ideia inicial do Design Thinking Etimologicamente, a palavra design, de origem latina, contém em si o termo signum (signo ou desenho). A noção de de-signar, portanto, está relacionada à ressignificação de um objeto.1 Segundo FLUSSER, o design ocupa na contemporaneidade um meio-termo entre o mundo das artes e o mundo da técnica e das máquinas. Esses dois mundos - intrinsicamente conexos -, foram separados artificialmente a partir da ascensão da cultura moderna e burguesa: "design significa aproximadamente aquele lugar em que arte e técnica (e, consequentemente, pensamentos, valorativo e científico) caminham juntas, com pesos equivalentes, tornando possível uma nova forma de cultura".2 Entre os mundos da arte e da técnica, o design ganhou notável profissionalização e especialização no último século, se tornando comuns as referências à design gráfico, design visual, design de produtos, design de moda, design de interiores, e assim por diante. Todavia, há um ponto em comum que subsiste entre todas essas áreas e em todas as definições possíveis que se dê ao termo: a ideia de design envolve, acima de tudo, uma forma de se pensar e enxergar o mundo. E é nesse sentido que nasce a noção de Design Thinking, enquanto ferramenta de inovação centrada na facilitação da vida das pessoas, para a mais adequada solução de suas necessidades, problemas e conflitos. O Design Thinking seria uma espécie de atividade onipresente, "inerente à cognição humana e uma parte fundamental do que nos torna humanos,"3 podendo ser imaginada como um estilo cognitivo, como teoria geral do design e como um recurso para as organizações.4 Apesar de existir já há algum tempo, a ideia do Design Thinking ganhou notoriedade a partir do artigo "Design Thinking: Thinking like a designer can transform the way you develop products, services, processes - and even strategy", publicado na Harvard Business Review, em 2008, por Tim BROWN. Nessa obra, a partir de um ethos centrado no ser humano, BROWN defendeu o uso da sensibilidade e dos métodos do designer para combinar as necessidades das pessoas com o que é tecnologicamente viável, e no que uma estratégia de negócios viável pode se converter em valor do cliente e oportunidade de mercado.5 Como se percebe, trata-se de uma metodologia que, a partir de uma abordagem multidisciplinar fundada na empatia, colaboração e experimentação, busca aplicar os princípios do design em prol do desenvolvimento de inovadoras técnicas, procedimentos, estratégias e produtos para atender às necessidades, resolver problemas ou dirimir conflitos entre as pessoas. Muito embora o modelo do Design Thinking tenha sido inicialmente imaginado para aplicação no mundo corporativo, as suas premissas rapidamente se disseminaram para outros setores, inclusive para o setor público, na medida em que podem ajudar os agentes públicos a uma melhor compreensão dos problemas contemporâneos como também a inovar no desenvolvimento de efetivas soluções. O Legal Design Thinking A legitimação da Lei e do Estado de Direito como ferramentas de organização social essenciais para os seres humanos depende fortemente do adequado funcionamento do sistema de justiça. Para tanto, parece clara a necessidade de constante inovação dos instrumentos de pacificação social e de afirmação dos direitos. "Precisamos encontrar novas maneiras de pensar sobre o Direito como um sistema de organização social projetado e deliberado pelo homem, a fim de inovar".6 O Legal Design Thinking surge como uma ferramenta de reinvenção dos modelos de atuação dos operadores do sistema de justiça, no intuito da prevenção ou resolução de conflitos a partir de métodos de design centrados no ser humano, criando soluções inovadoras para problemas complexos, e tornando os serviços jurídicos mais acessíveis e envolventes.7 Nesse intuito, em 2013, a partir da união de um grupo de designers, advogados e especialistas em tecnologia na Universidade Stanford, foi criado o Legal Design Lab (ou apenas "The Lab"), a partir do Center on Legal Profession e do Institute of Design, com o objetivo de desenvolver soluções inovadoras para tratar de obstáculos de acesso à justiça. A abordagem do laboratório foi, desde o início, multidisciplinar e colaborativa, transitando entre o legal design e as novas tecnologias.8 A título de exemplo, uma das iniciativas do Legal Design Lab foi  conceitualizar e criar produtos e serviços jurídicos centrados na experiência dos usuários (user-centric), permitindo que eles pudessem se engajar e se equipar com mais recursos para uma tomada de decisão informada sobre os produtos e serviços desenvolvidos pelo Lab. Um dos primeiros desafios foi a facilitação da navegação dos usuários nos processos judiciais eletrônicos, o que, para muitos deles, parecia uma tarefa intimidadora. Para tanto, o Lab desenvolveu o Wise Messenger - plataforma que envia textos automáticos com lembretes e intimações judiciais diretamente da Corte ou da organização legal para os usuários cadastrados. Para aferir os resultados da inovação, os usuários foram divididos em um estudo randomizado com grupos de controle. Além disso, o Lab conduziu uma pesquisa paralela, realizada com litigantes, para avaliar se as intimações processuais por mensagem de texto poderiam colaborar para o aumento da taxa de presença em audiências e outros compromissos processuais.9 Diversas outras iniciativas inovadoras do Lab também merecem destaque. A Plataforma de Perguntas Frequentes (FAQ), criada em 2020, objetiva o aconselhamento jurídico sobre conflitos de despejo. Com abrangência para os 50 estados americanos, essa plataforma dissemina informações sobre os direitos dos inquilinos e as demais proteções legais no contexto da pandemia de Sars-CoV-2, fornecendo informações legais simples e acessíveis para aqueles que podem ser alvo de ações de despejo.10 Por via da ferramenta Schema.org, o Lab criou uma linguagem de programação objetivando que pessoas físicas e empresas possam facilmente criar uma linguagem de marcação (markups). Tal linguagem, uma vez colada no código de back-end (responsável por facilitar a localização e indexação dos sites pelos mecanismos de busca), melhora a posição dos sites de empresas e prestadores de serviços dentro dos diversos buscadores, aumentando a visibilidade comercial dos anunciantes.11 Para facilitar a compreensão das pessoas sobre como se defender em casos de multas de trânsito (nos EUA, há Cortes específicas para solucionar esse tipo de infração), o Lab criou ainda designs em código aberto e gratuito, com guias visuais para a melhor compreensão dos processos judiciais. Como se percebe, a partir da experiência do Lab de Stanford, uma das premissas fundantes do Legal Desing Thinking é construir novas metodologias, desenvolver agilmente diferentes habilidades, atendendo às necessidades mais elementares das pessoas, projetando soluções eficientes para os serviços jurídicos e para os procedimentos resolutórios de conflitos.12 O Legal Design Thinking constitui método com múltiplas aplicações em diversos cenários, trazendo perspectivas inovadoras que envolvem desde a acessibilidade ao sistema de justiça, passando pela formatação de novos procedimentos consensuais ou litigiosos de resolução de conflitos, e chegando até mesmo a aperfeiçoar e otimizar o ensino jurídico. A aplicação do Legal Design Thinking pode se revelar revolucionária também para os escritórios de advocacia, ainda que grande parte deles revele certa relutância a se abrir para a inovação. Nesse sentido, segundo SZABO, "(...) em uma sala cheia de advogados, qualquer ideia, não importa o quão brilhante seja, será imediatamente atacada" (...). "Noutras empresas, o pensamento e a ação inovadora são considerados requisitos primordiais para o sucesso. (...) Os advogados geralmente são diferentes. Diante de uma nova ideia de negócio, a primeira coisa que perguntam é: 'Quais outros escritórios de advocacia estão fazendo isso?".13 No entanto, gradativamente percebe-se uma mudança nesse cenário. Como exemplo disso, "autores norte-americanos criaram a definição de lawyer-statesman ou problem-solving-lawyer, que tem o enfoque não apenas em 'ganhar' os seus casos, mas em satisfazer as necessidades da diversidade de partes e terceiros afetados pela disputa e em procurar novas soluções. Tais respostas requerem a organização de recursos materiais, criação de instituições, edições de novas regulações, e implementação e execução de novos planos".14 A concepção de Lawyer-Statesman foi inclusive o mote do Manifesto de Harvard, inspirado pelo livro de Ben W. Heineman Jr (The Inside Counsel Revolution: Resolving the Partner-Guardian Tension). Sua premissa é a da responsabilidade social dos profissionais como cidadãos, parametrizando o trabalho dos advogados a partir de uma atuação com integridade. Isso sugere um modelo comportamental que se reflete em uma série de características e ações, tais como: a mitigação responsável de riscos de efeitos nocivos para o cliente ou negócio; a negociação honesta e a prevenção da corrupção; e o suporte para políticas públicas que regulam externalidades prejudiciais e fornecem bens públicos - como infraestrutura, educação e saúde.15 Nesse sentido, destaca-se a experiência do escritório Baker & McKenzie - o maior dos EUA em número de advogados (mais de 6 mil ao redor do mundo) e receita (US$ 2.92 bi em 2019) - com o lançamento da plataforma Whitespace Legal Collab. Trata-se de ferramenta cujo objetivo é o de facilitar e encorajar a colaboração multidisciplinar voltada para a solução criativa de problemas complexos. Essa iniciativa reuniu acadêmicos, designers, executivos, especialistas em tecnologia da informação e advogados, objetivando criar soluções-protótipo nas áreas de estratégia, Direito e tecnologia. A plataforma Whitespace Legal Collab "redefines what collaboration means in the legal profession. The Collab provides ideal conditions for creative problem solving. It helps business leaders and in-house counsel to bring multidisciplinary thinkers and doers to complex problems such as climate risk, data governance, smart cities and sustainable finance. Leading academics, designers, executives, it experts and lawyers form the basis of our collaborative network and support the development of valuable legal solutions".16 Outro campo extremamente fértil para a aplicação do Legal Design Thinking é o da resolução de conflitos. A abertura dos sistemas de justiça à concepção de "justiça multiportas", para além de consagrar a aplicação dos meios extrajudiciais para a resolução de disputas (mediação, conciliação, arbitragem e dispute board, dentre outros), exige sejam eles inovados e repensados, com vistas à sua plena adaptabilidade às mais diversas espécies de conflitos. Definir parâmetros mínimos que possam assegurar a coordenação entre jurisdição e os outros meios de solução ou regulação dos conflitos sociais, sejam eles de qual espécie forem, tornou-se um grande desafio. Conforme já tivemos a oportunidade de afirmar em coluna anterior (A institucionalização do sistema de justiça multiportas no Brasil), "há enorme espaço para um franco e despreconceituoso debate sobre os inúmeros aspectos técnicos envolvidos na tentativa de construção de um novo modelo de justiça colaborativa, que exige a mais perfeita harmonização possível entre os mecanismos e técnicas até então rotuladas como públicas ou privadas".17 Na referencial obra Getting Disputes Resolved: Designing Systems to Cut the Costs of Conflict, William Ury, Jeanne Brett e Stephen Goldberg apresentam estratégias e técnicas que podem ser aplicadas conjuntamente, sequencialmente ou singularmente, no intuito de oferecer soluções eficazes a partir de princípios essenciais - corolários do design de cada projeto de um sistema de disputa.18 Abordando o tema (Design de Sistemas de Disputas - DSD), FALECK afirma que se torna imprescindível uma "visão sistêmica que busca maximizar a adequação do sistema ou arranjo procedimental por meio da obediência a um rigoroso processo de concepção, construção e implementação do procedimento (...) As soluções procedimentais consensuais que um designer de sistema deve construir não constituem nada mais do que um novo canal para a resolução de disputas. (...) Cada canal, com seus respectivos mecanismos de resolução de disputas, implica variáveis que proporcionam diferentes níveis de incentivos, custos, dispêndio de tempo, justiça procedimental e valor esperado - ou seja - o resultado tangível que potencialmente será obtido."19 A inovação das técnicas e dos procedimentos judiciais e extrajudiciais da conciliação, da mediação e da negociação constitui campo profícuo para a possível aplicação dos princípios do Legal Design Thinking. Isso exige dos advogados, dos magistrados, dos membros do Ministério Público, dos operadores do Direito, em geral, criatividade e sensibilidade para uma contínua reformulação do sistema de justiça, a fim de torná-lo não apenas mais eficiente, mas sobretudo acessível e compreensível por seus destinatários. __________ 1 FLUSSER, Vilém. O Mundo Codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Ubu, 2018 (edição Kindle), p. 159-161. 2 FLUSSER, Vilém. O Mundo Codificado: por uma filosofia do design e da comunicação. São Paulo: Ubu, 2018 (edição Kindle), p. 159-161. 3 CROSS, Nigel. Design Thinking. London: Bloomsbury Academic, 2011. 4 KIMBELL, Lucy. Rethinking Design Thinking: Part 1. Design and Culture, v.3:3, 2011 p. 285. 5 A missão do Design Thinking, para BROWN, seria "traduzir as observações em percepções e percepções em produtos e serviços que irão melhorar vidas". BROWN, Tim. Design Thinking. Harvard Business Review, June, 2008.  Disponível aqui, acessado em 23 de março de 2021. 6 URSEL, Susan. Building Better Law: how design thinking can help us be better lawyers, meet new challenges, and create the future of law. Windsor Yearbook of Access to Justice. vol. 34. p. 29-30. 7 STANFORD LAW SCHOOL. Disponível aqui. Acessado em 26 de março de 2021. 8 A Universidade de Staford foi uma as pioneiras na criação do Legal Design Lab, baseado em design thinking. STANFORD LAW SCHOOL'S DESIGN LAB. Disponível aqui.  Acessado em 25 de março de 2021. 9 STANFORD LAW SCHOOL'S LEGAL DESIGN LAB. Disponível aqui. Acessado em 25 de março de 2021. 10 STANFORD LAW SCHOOL'S LEGAL DESIGN LAB. Disponível aqui. Acessado em 31 de março de 2021. 11 STANFORD LAW SCHOOL'S LEGAL DESIGN LAB. Disponível aqui. Acessado em 02 de abril de 2021. 12  Disponível aqui. Acessado em 25 de março de 2021. 13 SZABO, Mark. Design Thinking in Legal Practice Management. Design Management Review, 2010, Vol. 21:3, p. 44. 14 FALECK, Diego. Manual de Design de Sistemas de Disputas: criação de estratégias e processos eficazes para tratar conflitos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2018, p. 40. 15 GORDON, Robert W. The Return of the Lawyer-Statesman? Stanford Law Review, v. 69, June, 2017, p. 1733. 16 Whitespace Legal Collab by Baker McKenzie. Disponível aqui, acessado em 30 de março de 2021. 17 VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. A institucionalização do sistema de justiça multiportas no Brasil. Direito Privado no Common Law. Disponível aqui. Acessado em 30 de março de 2021. 18 URY, William L; BRETT, Jeanne M; GOLDBERG, Stephen B. Getting Disputes Resolved: Designing Systems to Cut the Costs of Conflict. Cambridge: PON Books, 1993. 19 FALECK, Diego. Manual de Design de Sistemas de Disputas: criação de estratégias e processos eficazes para tratar conflitos. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2018, p. 23.
Ao tratamos de responsabilidade civil no common law temos que desafiar convicções arraigadas no civil law. O termo alemão "schadensersatzrecht" (Lei da compensação) facilita a compreensão. A responsabilidade civil que herdamos no Brasil somente se aplica aos fatos jurídicos danosos que resultam em indenização de natureza compensatória (art. 944, CC). Já na "law of torts", as indenizações são dos mais variados tipos, nem sempre direcionadas à compensação de danos. A responsabilidade civil de berço inglês é flexível, compreendendo uma gama heterogênea de condenações pecuniárias que se presta a outras finalidades, tais como os punitive damages, restitutionary damages e, para aquilo que nos interessa neste texto, a categoria dos nominal damages. Recentíssima decisão da Suprema Corte dos Estados Unidos no caso Uzuegbunam v. Preczewski (19-968, Mar 8, 2021), trouxe à tona a funcionalidade contemporânea dos nominal damages na experiência das jurisdições do common law.  O caso é particularmente interessante: O Sr. Uzuegbunam (eu também não consigo pronunciar!) é um cristão evangélico que estudava em uma escola pública do Estado da Geórgia - Georgia Gwinnett College - e desejava conversar sobre a sua fé com outros alunos. Contudo, toda vez que tentava falar publicamente sobre religião, era impedido pelos funcionários da faculdade. Conforme a "policy" da instituição de ensino, conversar com outras pessoas sobre a fé evangélica poderia incitar o "hate speech". Assim, permitiu-se ao Sr. Uzuegbunam que apenas exercesse seu direito comunicativo em uma "zona de liberdade de expressão", disponibilizada por cerca de 10% do tempo semanal de aulas, em uma zona restrita a um pátio e uma calçada (0,0015% do campus). Os alunos interessados no debate deveriam se inscrever para obter uma autorização com pelo menos 4 dias úteis de antecedência, fornecendo cópias de todos os materiais que pretendiam distribuir. Os funcionários do campus tinham discricionariedade para conceder ou negar a licença. O Sr. Uzuegbunam processou a faculdade por nominal damages e requereu uma tutela inibitória contra a aplicação das regras que restringiam a sua livre expressão. Ele não alegou qualquer dano de natureza patrimonial ou moral. No momento em que a "injunction" chegou a Suprema Corte, objetivando abolir as restrições como violação do direito da Primeira Emenda ao livre exercício do credo, o demandado simplesmente abandonou sua política, adotando regras bem menos restritivas. Assim, quando o Sr. Uzuegbunam se formou, a Georgia College alegou que não havia base legal para um remédio indenizatório, já que o autor não era mais afetado por qualquer restrição. Contudo, o então ex-aluno insistiu em um pedido de indenização por nominal damages, com base na violação anterior de seus direitos. Por um placar de 8 x 1, a SCOTUS decidiu que mesmo que a violação não mais estivesse em curso, houve uma lesão a direitos fundamentais do demandante, condenando a instituição de ensino pelo montante de US$ 1,00 por nominal damages. O acórdão do julgamento explora precedentes do mundo do common law (particularmente Ashby v. White, 2 Raym. Ld. 938 K. B. 1703),1 demonstrando que este remédio objetiva indenizar uma violação constitucional e que o demandante poderá sempre postular uma indenização mesmo que "não tenha perdido sequer um penny em razão da violação". Em síntese, ao colocar a sua política de lado, a faculdade objetivou neutralizar o litígio, para novamente ativá-la no momento em que o caso fosse encerrado. Com o esvaziamento da tutela inibitória pelo abandono da "policy" e a ausência de danos, o autor seria despojado de qualquer remédio. Assim, para o demandante a pretensão de nominal damages é uma forma possível de manter o caso vivo.2 Basicamente o que seriam nominal damages? Trata-se de um remédio específico do common law que assegura ao litigante a resolução judicial de uma reclamação sobre a violação de um direito, mesmo em circunstâncias em que o autor sequer buscou, ou não foi capaz de estabelecer qualquer pretensão compensatória por danos. A sentença indenizatória reconhece a invasão de um direito em circunstâncias em que o autor não conseguiu provar os danos ou simplesmente optou por renunciar a eles. Sendo a demanda acolhida, a decisão é vinculativa (stare decisis) e possui efeito preclusivo, obrigando-se o réu ainda a pagar as custas do litígio. Por sua ênfase em garantir a reivindicação de um direito sem conteúdo econômico imediato, pode-se encontrar similitudes entre nominal damages e a ação declaratória. Contudo, a sentença declaratória (assim como a tutela inibitória) é solução prospectiva para certificar e modelar uma futura relação entre as partes, enquanto a indenização nominal é retroativa, vindicando um ilícito passado. Não há razão para questionar a confiança nos nominal damages como veículo para a reivindicação de direitos constitucionais. A sua origem remonta ao século XIV e o legado do common law inglês rapidamente deixou a sua marca na prática jurídica do início da república americana. A Suprema Corte antebellum (denominação dos primeiros 100 anos da SCOTUS), viabilizou nominal damages, incluindo reivindicações para impor responsabilidade a funcionários do governo federal. Com o surgimento de litígios de responsabilidade civil constitucional no século XX, o Tribunal confirmou nominal damages nos casos em que a vítima demonstra uma violação aos seus direitos, mas não pode ou não quer estabelecer danos consequentes. Vale dizer, nominal damages consiste em opção atraente para os demandantes que desejam obter um teste judicial para as suas demandas. Ao declarar expressamente na inicial que não pretendem compensatory damages ou punitive damages - limitando-se apenas à indenização nominal, sem valor real para efeito de comércio, os demandantes renunciam ao aspecto econômico da responsabilidade civil e focam na questão constitucional. Atualmente, não mais se questiona o poder das cortes federais norte-americanas de declarar os direitos constitucionais das partes em um determinado litígio. O aspecto do "teste judicial" é determinante na ponderação de bens no caso concreto e no refinamento constitucional. Em termos de restrição ao livre discurso, o governo tem um fardo muito pesado nos EUA. Há o ônus de comprovar que as restrições são projetadas para promover um "interesse governamental convincente" e que os meios adotados são "estritamente adaptados" para atingir esse interesse. Ao contrário de outros países do common law, restringir a expressão nos Estados Unidos é algo muito custoso. Impedir alguém de "causar ofensa" ou prevenir "discurso de ódio" (seja lá o que isso signifique) simplesmente não são razões suficientes para o governo limitar os direitos da Primeira Emenda. Evidentemente, na medida em que o exercício de nossos direitos é restringido pelo direito alheio, não há direito de decapitar outra pessoa com base no fato de que isso seria um exercício livre de sua religião. Contudo, em diferentes momentos a jurisprudência dos Estados Unidos modelou os limites ao livre exercício de posições jurídicas. Particularmente em Uzuegbunam, as regras extremamente restritivas da instituição de ensino sobre quando uma religião poderia ser debatida com outras pessoas extrapolaram os limites toleráveis. Foi negado ao demandante o direito de falar educadamente com outras pessoas sobre a sua religião, uma violação de um direito constitucional de que gozava. Assim, como já não havia margem para uma medida liminar, uma ordem de indenização nominal se fez apropriada para uma privação passada de um direito, não obstante a ausência de outras formas de reparação. Ao sugerir que uma ação de responsabilidade civil constitucional pode prosseguir apenas como uma ação por uma indenização simbólica, contemplamos uma decisão inicial do autor de renunciar a outras formas de reparação monetária ou qualquer responsabilidade financeira pessoal do demandado. Como resultado, o magistrado pode tratar o processo da mesma forma que uma tutela de urgência contra uma violação constitucional em curso. O ponto fulcral do litígio consistirá em aclarar a norma constitucional em um estado de incerteza. Portanto, quando as pessoas optam por uma indenização nominal, buscam simplesmente o reconhecimento judicial de que seus direitos foram violados. O valor concedido não é o ponto. Os demandantes simplesmente anseiam que os maus-tratos recebidos se tornem públicos, ou tentam estabelecer fundamentos para outras pretensões, tal como uma futura demanda por punitive damages em um conjunto de casos cuja repetição denota um comportamento demeritório do demandado por um desprezo pela sorte de um conjunto de vítimas. O noticiado julgamento de 2021 se filia a um leading case do último quartel do século XX, Carey v. Piphus (435 US 247, 1978), no qual a SCOTUS se baseou explicitamente nos remédios da responsabilidade civil do common law para decidir a medida indenizatória adequada para uma violação dos direitos constitucionais dos demandantes. Embora tenham eles demonstrado que foram suspensos do ensino médio sem uma audiência, em flagrante violação ao due process of law, a Corte Suprema recusou o estabelecimento de uma presunção de danos de natureza compensatórios. Nada obstante, declarou expressamente que uma indenização nominal era disponibilizada para reivindicar o direito constitucional em questão. Ao tornar a privação de direitos acionável por nominal damages por montante não superior a 1 dólar - mesmo sem prova de dano real - o ordenamento reconhece a importância para a sociedade que esses direitos sejam escrupulosamente observados. Em termos de enforcement, não se trata apenas de acesso ao judiciário, mas da ampliação da esfera de autonomia do demandante, direcionando o procedimento como entenda conveniente a seus propósitos. Uma sentença com indenização nominal altera a relação jurídica entre as partes de três maneiras: primeiro, a condenação fornece ao demandante direitos substantivos em virtude de ser a parte vencedora; em segundo lugar, o réu pagará ao autor, conduta que espontaneamente não faria, independente do valor; terceiro, o demandado incorre em responsabilidades legais por meio de um julgamento que induz a uma alteração comportamental. Lado outro, o sistema de responsabilidade civil se mantém fiel ao princípio de que indenizações substanciais devem ser concedidas exclusivamente para compensar danos reais ou, no caso de punitive damages, para punir escandalosas violações de direitos. A partir do caso Carey, os tribunais federais estenderam a disponibilidade de nominal damages para uma ampla gama de ações de responsabilidade civil constitucional. Entre outros, os tribunais aprovaram tal indenização para violações a 1. Emenda em termos de liberdade religiosa e liberdades comunicativas e uma série de outras lesões a direitos fundamentais. Ou seja, esse tipo de raciocínio conecta-se com a visão do common law de que indenização pode eventualmente assumir uma função reivindicatória de um direito que foi violado. O curioso e, de certa forma contraditório, é que a par da evolução funcional do nominal damages nos EUA, vocacionado à tutela de "constitutional torts", a tradição inglesa remete a sua aplicação aos casos em que o tribunal ordena que alguém pague uma quantia mínima a outra pessoa que ela prejudicou, mas não de uma forma que o tribunal considere séria, ou se o ilícito se fez presente, porém inexiste prova do dano e, por fim, nos casos em que o dano não pode ser calculado e de qualquer forma o ilícito mereça a desaprovação judicial. Exemplifique-se aqui com um demandante lesado que prova que as ações do réu causaram lesão física, mas não apresenta registros médicos para mostrar a sua extensão. O valor concedido é uma quantia simbólica, embora em algumas jurisdições possa ser igual aos custos da demanda judicial.3 Inegavelmente, o caso mais célebre de nominal damages em que não se considerou a demanda "suficientemente séria" para uma indenização compensatória, ocorreu quando a imprensa relatou que o então primeiro ministro Winston Churchill estaria bêbado durante um jantar na Casa Branca em 1942. Ele ajuizou uma ação de difamação contra o jornalista Louis Adamic em razão da publicação da estória inverídica. O Júri entendeu que não haveria espaço para compensação de danos, pois a elevada reputação de Churchill não fora afetada. Entretanto, o jornalista foi condenado a pagar a quantia de um shilling (cerca de 25 centavos) como uma forma suficiente da vindicação do direito do demandante de zelar por sua reputação.4  E nas jurisdições do civil law, haveria um equivalente funcional à figura dos nominal damages? Em nossa cultura compensatória, tipicamente as pessoas não demandam em caso de danos mínimos. O custo e o tumulto de uma litigância excedem a reparação esperada.  Todavia, algumas pessoas demandarão independentemente da magnitude do dano, tornando claro que buscam vindicar os seus direitos ao invés de perseguir uma compensação econômica. Em casos de violações à direitos da personalidade uma vítima poderá se contentar com uma indenização semelhante ao nominal damages, normalmente associado à uma retratação pública ou pedido de desculpas. No Código Civil brasileiro, tal como no código francês, inexiste um "de minimis rule". Lá e aqui a regra da reparação integral preside a responsabilidade civil extracontratual, aplicando-se extensivamente às pequenas indenizações, que podem mesmo conduzir a uma condenação meramente nominal quando um direito fundamental for infringido, tal como o "franc symbolique" - hoje substituído pelo Euro simbólico - indenização em que não se leva em consideração o valor monetário, mas a representatividade da decisão judicial, valorizando-se o aspecto qualitativo da indenização em detrimento do quantitativo, em reconhecimento a uma violação de um direito. Talvez possamos nos valer da regra da proporcionalidade e da multifuncionalidade da responsabilidade civil para compreendermos que uma função reivindicatória de direitos pode ser uma alternativa à tradicional função compensatória não apenas em retratações públicas. Vale a pena reconhecer a validação simbólica que a indenização nominal oferece para muitos litigantes. O benefício de solicitar reparação por ilícitos não deriva do valor final concedido, mas do fato de que existe uma via sancionada pelo Estado para não autorizar a menor violação aos nossos direitos, convertendo ilícitos em sentenças, a final, "rights without a remedy really do not exist". Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Fellow of the European Law Institute (ELI). Member of the Society of Legal Scholars (UK). Membro do Grupo Iberoamericano de Responsabilidade Civil. Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF. __________ 1 Precedente fundacional no direito constitucional inglês. Concerne ao direito de voto e desobediência a um servidor público. Lord Holt estabeleceu o importante princípio de que pode haver prejuízo na ausência de uma perda econômica (iniuria sine damno), pois o direito presume o dano, sendo suficiente a demonstração de que um direito foi infringido. 2 Questão semelhante foi debatida em 2020 na Suprema Corte da Austrália em Lewis v Australian Capital Territory [2020] HCA 26 (5 August 2020) na qual o tribunal reconheceu que uma violação de direitos pode ser reivindicada pela via de nominal damages. Citando o precedente Ashby v White, Gordon J afirmou que "This appeal is concerned with the tort of false imprisonment, a form of trespass to the person. It is actionable per se, regardless of whether the victim suffers any harm. It does not require proof of special damage. That is unsurprising. The tort protects and, where necessary, vindicates a person's right to freedom from interference with personal liberty as a fundamental legal right.. A right to nominal damages, as one remedy, follows from that finding of liability. That award of nominal damages marks the fact that "there [was] an infraction of a legal right". There is then a question as to whether any other relief should be awarded to a particular plaintiff, in their own unique situation". 3 Com idênticos fundamentos, nominal damages também se aplicam em matéria contratual. A hipótese é rara, pois a maior parte das demandas por "breach of contract" envolvem alguma forma de perda econômica do demandante. Ilustrativamente, como hipótese de nominal damages na seara do inadimplemento, podemos citar com a Empresa A, que firma contrato com a Empresa B para fabricar 10.000 bonecos, em razão de sua notória especialização. Porém, naquele momento a Empresa A não tem a capacidade de fabricar bonecos e não revela o fato a empresa B. Ao invés disso contrata a empresa C para fabricar os bonecos a 1/3 do custo normal, obtendo grande lucro. Todavia, a Empresa B constata que já tinha 10.000 bonecos armazenados. Ao comunicar o fato à Empresa A, descobre que ela sequer manufaturava os bonecos. Embora a Empresa B não tenha sofrido uma perda financeira, a Empresa A claramente a enganou. A Empresa B pode ter a intenção de quebrar o contrato, mas isso não retira o fato de que a Empresa A formou o contrato com base em fraude. Nesse caso, mesmo com fundamento em uma relação contratual, a Empresa B poderia receber uma indenização nominal pela violação de sua confiança. 4 Churchill visitou Roosevelt em dezembro de 1941 e permaneceu em Washington até janeiro de 1942. No último dia da visita histórica de Churchill, 13 de janeiro, Roosevelt preparou uma surpresa para Churchill: ele convidou Louis Adamic e sua esposa Stella para jantar, antes de Roosevelt dar o livro "Two-Way Passage" para Churchill de autoria de Adamic com a recomendação de ler pelo menos a última parte. Na última parte do livro Two-Way Passage, Adamic ceticamente, discute as diferenças entre os britânicos e a visão americana potencial da ordem pós-guerra da Europa. Adamic apela aos EUA para que entrem na guerra mundial, mas não para ajudar a Grã-Bretanha, mas vice-versa, para que os Estados Unidos salvem a Europa do domínio britânico.
Introdução Na última coluna, apresentei 'Os Três Modelos de Tutela Coletiva de Direitos: Ação de Classe Estadunidense, Reparação Coletiva Europeia e Ação Civil Pública Ibero-Americana', salientando que a iniciativa da Comissão Europeia de lançar 'A New Deal for Consumers', foi com o objetivo de fortalecimento dos direitos do consumidor e da sua aplicação na esteira do escândalo do dieselgate.1 A Comissão Europeia reconheceu que o dieselgate demonstrou a inexistência de mecanismos de reparação coletiva do direito comunitário da União Europeia, o que levou ao fortalecimento do modelo de collective redress e à recém aprovada Diretiva 1028/2020 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020.2 O objetivo do presente artigo é apresentar o caso, explicando os seus resultados conforme os modelos de tutela coletiva de direitos, a partir dos exemplos dos Estados Unidos, da União Europeia e do Brasil. O caso Dieselgate nos Estados Unidos O escândalo do diesel se tornou público com o anúncio da notificação feita pela Agência de Proteção Ambiental dos Estados Unidos ("Environmental Protection Agency") do grupo Volkswagen pelo fato de a fabricante de veículos ter intencionalmente programado a injeção direta turbo ("Turbocharged Direct Injection" - TDI) dos motores a diesel para ativar certos sistemas de controle de emissão somente durante os testes laboratoriais dos veículos.3 Tal artifício fraudulento ("defeat device") foi programado não apenas em 480.000 veículos nos Estados Unidos, mas também em oito milhões de veículos na Europa e um total de onze milhões de automóveis ao redor do globo.4 A origem do artifício fraudulento foram os problemas enfrentados pela Volkswagen no desenho e produção do seu novo motor a diesel em 2007: EA 189.5 O próprio Grupo Volkswagen admitiu em documentos apresentados no processo nos Estados Unidos que, diante da dificuldade em conciliar seus objetivos conflitantes de economia de combustível e emissão de partículas, adotou um plano ruim..6 Apesar de existirem alternativas para a empresa, como uma garantia especial para a troca gratuita do filtro de partículas após o seu esgotamento ou mesmo o desenvolvimento de uma tecnologia melhor para o controle de emissão de partículas finas cancerígenas,7 tais alternativas envolveriam um aumento de custos e uma perda de espaço no porta-malas dos veículos.8 Assim, os engenheiros desenvolveram no software dos motores a programação de uma função de ruído ("noise function") ou uma função acústica ("acoustic function").9 Esta função permitia que o automóvel reconhecesse quando estivesse sendo testado em um laboratório em uma esteira.10 Quando o computador no veículo identificasse que estaria sendo submetido a um teste, a performance do motor seria automaticamente ajustada para um comportamento que resultaria em resultados ótimos nos exames realizados.11 Tal software configura um artifício fraudulento e, por si só, é ilegal nos Estados Unidos, na União Europeia e vários países do mundo, inclusive o Brasil.12 Segundo documentos que foram tornado públicos posteriormente por conta do processo nos Estados Unidos, os engenheiros acreditavam que havia uma chance reduzida de serem descobertos, já que não existia tecnologia disponível para a medição de emissão de partículas de um automóvel na estrada, que poderia expor a grande discrepância entre a poluição no teste de laboratório e em condições reais de condução do veículo.13 A fraude empresarial foi descoberta somente por conta de um projeto do laboratório de emissões da Universidade de Virgínia do Oeste ("West Virginia University - WVU"). Em 2013, uma associação independente chamada Conselho Internacional para o Transporte Limpo ("International Council for Clean Transportation - ICCT") contratou o Centro para Combustíveis Alternativos, Motores e Emissões da Universidade da Virgínia do Oeste para elaborar exames de estrada, com condições reais de rodagem, em três automóveis de passeio movidos a combustível a diesel.14 A universidade resolveu realizar os testes em parceria com a agência estadual de proteção ao meio ambiente da Califórnia, chamada de Conselho de Recursos Aéreos da Califórnia ("California Air Resources Board - CARB').15 Após testes iniciais normais no laboratório da CARB, os dois veículos da Volkswagen emitiam óxidos de nitrogênio em níveis muito superiores aos permitidos por lei e atribuídos pela própria Volkswagen aos seus veículos - o veículo Volkswagen Jetta teve emissões de 35 vezes acima do limite legal e o veículo Passat teve emissões ao menos 20 vezes acima dos limites.16 Apesar de a CARB cobrar explicações polidamente, os executivos da Volkswagen deram respostas evasivas, alegando que os testes estavam errados e que os resultados teriam sido distorcidos pela pressão atmosférica e pelas rotas adotadas.17 No início de 2015, a empresa se valeu de um recall para reprogramar e reajustar o artifício fraudulento ("defeat device"), que foi mantido em todos os veículos de maneira aprimorada para que poluísse um pouco menos e fosse um instrumento mais efetivo nos testes de estradas.18 Em um novo teste, os resultados ainda ficaram cerca de dez vezes acima do limite legal e, insatisfeita com as respostas da Volkswagen, os reguladores decidiram realizar novos testes com maior rigor.19 Em setembro de 2015, finalmente, os executivos da Volkswagen admitiram formalmente que seus veículos tinham duas calibragens diferentes - uma para testes e uma para operações normais - sendo que o carro consumia o composto de uréia e reduzia as emissões de óxido de nitrogênio apenas quando era testado.20 Imediatamente, os executivos da empresa iniciaram a negociação de um acordo com os reguladores que minimizasse as consequências de seus atos nos Estados Unidos.21 Apenas após o anúncio formal da fraude pelos reguladores em setembro de 2015, é que a Volkswagen pediu desculpas publicamente para a sociedade estadunidense.22 Nos Estados Unidos, além de se desculpar para a sociedade, o CEO da Volkswagen fez questão de se desculpar pessoalmente para o Presidente dos Estados Unidos, Barack Obama, em um jantar especialmente organizado pela Chanceler Angela Merkel em Hanover em abril de 2016.23 Além disso, apenas na primeira ação coletiva ("class action") ajuizada na Califórnia, o Grupo Volkswagen concordou com o pagamento de indenizações no valor global de quinze bilhões de dólares para os consumidores estadunidenses, incluindo cerca de cinco bilhões de dólares para fundos especiais de recomposição dos bem coletivos lesados.24 O valor desta primeira indenização aos consumidores na Califórnia foi de cerca de vinte mil dólares por carro,25 devendo ser salientado que este valor médio é relativamente modesto para os padrões dos Estados Unidos em um caso tão evidenciado de publicidade enganosa.26 O caso Dieselgate na União Europeia O emprego do artifício fraudulento ("defeat device") é também ilegal na União Europeia, obrigando a empresa Volkswagen a indenizar os consumidores em inúmeras outras jurisdições. A presença de artifício fraudulento ("defeat device") é proibida pela legislação europeia, a saber, pela Regulação n. 715/2007 da Comissão Europeia, sendo certo que se trata de um software de manipulação automática de performance, cuja existência é suficiente para caracterização da grave fraude aos consumidores. Na Itália, por exemplo, o emprego do artifício fraudulento (defeat device) também viola os direitos dos consumidores, notadamente pela publicidade enganosa, em razão do emprego de informações capazes de induzir o consumidor a erro em sua experiência de compra a partir de afirmações falsas sobre as características do veículo no processo de homologação do veículo, na campanha de publicidade e nos folhetos de publicidade distribuídos por lojas próprias e pelos revendedores autônomos.27 No âmbito administrativo, a Autoridade Italiana de Mercado e Competição identificou que o problema abrangia também os veículos movidos à gasolina.28 Ao final de sua investigação ampla de práticas comerciais ilegais, abusivas e enganosas contra o mercado consumidor, a Autoridade Italiana de Mercado e Competição aplicou a multa administrativa máxima como sanção para o Grupo Volkswagen Mundial e para a empresa Volkswagen Italiana no valor de cinco milhões de euros, isto é, cerca de vinte e quatro milhões de reais.29 A condenação administrativa foi considerada importante para o sucesso da Azione Collettiva Risarcitoria ajuizada pela Associação Civil Altroconsumo em face da empresa Volkswagen.30 A demanda coletiva foi aceita pelas tribunais italianos31 e o processo ainda se encontra em tramitação.32 Contudo, a postura da empresa tem sido a de se recusar a admitir sua responsabilidade perante as autoridades públicas italianas.33 Na Alemanha, o dieselgate pode ser caracterizado de múltiplas maneiras. Pela legislação de mercado de capitais, existe um problema relativo à sonegação de informações para os acionistas da empresa Alemã, caracterizando uma situação de fraude e manipulação de mercado para uma potencial ação coletiva (Verbandsklagen) com base na Lei do Processo Coletivo Modelo para Investidores no Mercado de Capitais (KapMuG - Kapitalanleger Musterverfahrens Gesetz).34 Sob a ótica dos atos ilícitos civis, a prática do dieselgate constitui erro, representação falsa de produto, responsabilidade por quebra de contrato, responsabilidade por defeitos, responsabilidade por fraude e responsabilidade por dano intencional contrário à política pública.35 Outro aspecto importante é a responsabilidade decorrente de potencial acidente de consumo, notadamente por conta de danos causados à vida e à saúde dos consumidores dos veículos fraudados.36 Existem ainda as graves lesões à regularidade do mercado e os graves danos ao meio ambiente.37 Finalmente, existem investigações e processos criminais em curso na Comarca de Braunschweig, responsável pela sede global da Volkswagen na cidade de Wolfsburg.38 A conduta delitiva configura, em tese, crime de fraude e crime de manipulação de mercado.39 Na França, o dieselgate configura crime de estelionato agravado, falsidade ideológica, prática comercial desleal, fraude organizada, publicidade enganosa e eventualmente perigo para a vida alheia.40 No plano do direito civil francês, a fraude importaria no cancelamento do contrato, sendo óbvio que uma parte não teria contratado se tivesse conhecimento do esquema fraudulento oculto pela outra parte.41 No caso concreto, a vítima da fraude faria jus à compensação, tanto na hipótese de requerer o imediato cancelamento do contrato, quanto na hipótese de decidir manter o contrato e a posse do bem.42 Além disso, a comercialização de bens deve corresponder não apenas aos termos do contrato, mas também à regulação jurídica e administrativa.43 Ora, no caso do dieselgate, os veículos foram comercializados em condições muito diferentes daquelas fornecidas pela Volkswagen no processo de licenciamento e aprovação administrativa dos veículos para comercialização.44 As especificações fornecidas pela empresa não correspondiam aos termos reais de performance do veículo, sendo certo que os automóveis eram muito mais poluidores do que indicado pelos dados transmitidos ao Estado durante o licenciamento. Além disso, na França, a Volkswagen está suscetível à responsabilidade civil45, à responsabilidade ambiental46 e às ações coletivas ajuizadas por associações de vítimas para a tutela coletiva de seus interesses convergentes.47 Contudo, na União Europeia, a empresa somente fechou um acordo coletivo na Alemanha,48 optando em não negociar acordos para evitar o processo coletivo nas demais jurisdições. Como a estrutura dos processos coletivos previa a necessidade de uma opção expressa pelo ingresso nas ações coletivas ('opt in'), o escopo dos mecanismos de reparação coletiva é menos abrangente do que o da Class Action estadunidense em que é necessário escolher expressamente sair ('opt out'). Além disso, como a probabilidade de condenação ao pagamento de danos exemplares ou punitivos é remotíssima na União Europeia, não existe o mesmo regime de incentivos para a celebração de um acordo. Na Alemanha, por exemplo, o acordo coletivo abrange somente 400.000 consumidores e prevê indenizações entre 1.350 e 6.257 euros - números inferiores aos dos Estados Unidos.49 Aliás, como o modelo europeu de reparação coletiva padece de fragilidades quanto à viabilidade econômica das ações e existem inúmeras incertezas sobre o financiamento da tutela coletiva de direitos, nem todas as jurisdições possuem uma ação com a pretensão de reparação coletiva dos consumidores lesados. Existem registros de processos coletivos em curso na Portugal50, Espanha,51 Bélgica52 e Itália.53 O Caso Dieselgate no Brasil Além dos exemplos dos Estados Unidos e de jurisdições europeias, existe uma ação judicial em tramitação no Brasil, tendo sido ajuizada pela Associação Brasileira de Defesa do Consumidor e do Trabalhador na 1ª Vara Empresarial da Capital no Rio de Janeiro (Processo n. 0412318-20.2015.8.19.0001). No caso brasileiro, foram comercializados cerca de 84.000 veículos Amarok a diesel com o referido software, mas o processo abrangeu somente 17.057 unidades equipadas com o motor EA 189 produzidas em 2011 e 2012. Apesar de a empresa alegar que o dispositivo fraudulento estaria desativado nos automóveis brasileiros, a prova pericial realizada pela CETESB no âmbito do procedimento administrativo realizado pelo IBAMA demonstrou a existência de emissão de gases em níveis superiores, o que ensejou a aplicação de uma multa de cinquenta milhões de reais.54 A empresa também foi multada pelo PROCON-SP em 8,3 milhões de reais55 e pelo Departamento de Proteção e Defesa do Consumidor do Ministério da Justiça em 7,2 milhões de reais.56 Apesar de a empresa pretender a realização de perícia judicial nos automóveis brasileiros, a farta evidência da fraude respaldada conduziu ao julgamento antecipado do processo em 2017 e à condenação da empresa ao pagamento total de 1 bilhão de reais.57 Além de ser condenada a prestação de informações claras, precisas e completas sobre os veículos Amarok, a empresa foi condenada ao pagamento de indenização individual aos consumidores de R$ 54.000,00 por danos materiais, R$ 10.000,00 por danos morais e a danos morais coletivos no valor de um milhão de reais. Atuando como fiscal da lei (custos legis), o Ministério Público interpôs recurso de apelação para que os valores de danos morais coletivos, de caráter punitivo, fossem majorados para R$ 10.507.112.000,00 (cerca de 10,5 bilhões de reais), conforme o padrão adotado pelo Poder Judiciário dos Estados Unidos na negociação do acordo, mas o recurso foi desprovido ao argumento de que de o valor de um milhão de reais seria adequado para o "padrão-Brasil".58 Por outro lado, a empresa ignorou a sugestão da Associação-Autora para negociar um acordo e recorreu de toda a sentença, tendo sido bem sucedida em obter uma reforma parcial para derrubar a fixação prévia dos danos materiais individuais em R$ 54.000,00. A 9ª Câmara Cível do TJRJ determinou que a sentença condenatória seja genérica quanto à condenação por dano material e que cada consumidor deverá passar por uma habilitação individual e pela apuração individualizada do quantum debeatur na fase da liquidação coletiva. A empresa interpôs recurso extraordinário e recurso especial e conseguiu o efeito suspensivo junto à 3ª Vice-Presidência do TJRJ em 18 de dezembro de 2020 para adiar o pagamento da condenação até o julgamento final dos recursos. Considerações finais O presente artigo apresentou o dieselgate como um conjunto de atos jurídicos complexos que importaram na violação do direito dos consumidores, do direito penal, do direito civil e do direito ambiental.59 No caso dos Estados Unidos, a própria empresa buscou com celeridade um acordo rápido e abrangente, comprometendo-se ao pagamento de indenizações individuais e coletivas em valores altos e pedindo desculpas públicas para a sociedade e o governo dos Estados Unidos. No caso da União europeia, a maioria dos oito milhões de proprietários de veículos não optou pelo ingresso em ações de reparação coletiva. Somente houve acordo no caso da Alemanha e em valores bem inferiores aos Estados Unidos. Em inúmeras jurisdições, sequer foram ajuizadas ações coletivas. Por ora, somente houve sentença condenatória na Espanha, já tendo a empresa apelado da decisão e adiado o pagamento da indenização.60 No caso do processo coletivo brasileiro, existe uma situação intermediária em relação à Class Action estadunidense e ao Collective Redress europeu. Por um lado, a empresa continua a se recusar a celebrar o acordo, a se desculpar publicamente e a reparar os danos materiais e morais, individuais e coletivos. Em termos de danos morais coletivos, o Poder Judiciário reconhecidamente aplicou uma condenação de valores proporcionalmente reduzidos com relação à gravidade da transgressão coletiva. Além disso, a reforma da sentença quanto ao valor pré-fixado de indenização irá tornar a execução coletiva muito mais difícil para o consumidor lesado e para o próprio juízo, ampliando custos, incertezas e obstáculos para o acesso à justiça dos lesados que já poderiam se beneficiar dos valores pré-fixados, a exemplo dos Estados Unidos. Por outro lado, a situação não parece ser como a "luta entre Davi e Golias", como Peter Kolba se refere à possibilidade reduzida de sucesso dos consumidores nas ações de reparação coletiva europeias.61 Assim como a Professora de Tutela Coletiva de Direitos da Faculdade de Stanford, Deborah Hensler, se referia aos meios alternativos de resolução de disputas ('ADR') como um "copo meio cheio, copo meio vazio",62 o caso brasileiro foi a primeira sentença condenatória em ação coletiva no mundo, condenou a empresa ao pagamento de indenizações por danos materiais e morais, individuais e coletivos, e a sentença já foi confirmada em grau de recurso de apelação pelo TJRJ. Nosso modelo de tutela coletiva de direitos certamente pode ser aperfeiçoado, mas o caso dieselgate revela também suas virtudes e possibilidades. *Pedro Fortes é professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt. __________ 1 Clique aqui. 2 Idem. 3 Marco Frigessi di Rattalma, Introduction, in Marco Frigessi di Rattalma (editor), "The Dieselgate: A Legal Perspective", Cham: Springer (2017), ix. 4 Idem, ix. 5 John Thomas Ewing Jr, Faster, Higher, Farther: The Inside Story of the Volkswagen Scandal, London: Bantam Press (2017), 113. 6 Idem, 119. 7 Idem, 119. 8 Idem, 119-120. 9 Idem, 120. 10 Idem, 120. 11 Idem, 120. 12 Idem, 121. 13 Idem, 121-122. 14 Idem, 166 15 Idem, 168-169. 16 Idem, 170-173. 17 Idem, 181-182. 18 Idem, 183. 19 Idem, 184. 20 Idem, 199. 21 Idem, 199. 22 Idem, 212. 23 Idem, 242. 24 Idem, 236-237. 25 Idem, 244. 26 Idem, 255. 27 Giovanni Posio, Italy, in Marco Frigessi di Rattalma (editor), The Dieselgate: A Legal Perspective, Cham: Springer (2017), 50. 28 Idem, 50. 29 Idem, 50. 30 Clique aqui. 31 Clique aqui. 32 Clique aqui. 33 Clique aqui. 34 Idem, 44. 35 Idem, 34-42. 36 Idem, 42. 37 Idem, 43-44. 38 Idem, 28. 39 Idem, 29-31. 40 Laurent Prosocco, France, in Marco Frigessi di Rattalma (editor), The Dieselgate: A Legal Perspective, Cham: Springer (2017), 13-19. 41 Idem, 19. 42 Idem, 20. 43 Idem, 20. 44 Idem, 21. 45 Idem, 21-22. 46 Idem, 22-24. 47 Idem, 24. 48 Clique aqui. 49 Idem. 50 Clique aqui. 51 Clique aqui. 52 Clique aqui. 53 Clique aqui. 54 Clique aqui. 55 Clique aqui. 56 Clique aqui. 57 Clique aqui. 58 FORTES, Pedro Rubim Borges; OLIVEIRA, Pedro Farias. A insustentável leveza do ser? A quantificação do dano moral coletivo sob a perspectiva do fenômeno da ilicitude lucrativa e o 'caso Dieselgate'. Revista IBERC, v. 2, n. 3, 2019; FORTES, Pedro Rubim Borges. O Fenômeno da Ilicitude Lucrativa. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 5, n. 1, p. 104-132, 2019. 59 John Thomas Ewing Jr, Faster, Higher, Farther: The Inside Story of the Volkswagen Scandal, London: Bantam Press (2017), 107-108. 60 Clique aqui. 61 Peter Kolba, Davids gegen Goliath: Der VW-Skandal und die Möglichkeit von Sammelklagen, Wien: Mandelbaum (2017), 62 HENSLER, Deborah R. Glass Half Full, a Glass Half Empty: The Use of Alternative Dispute Resolution in Mass Personal Injury Litigation. Tex. L. Rev., v. 73, p. 1587, 1994.
Em relação ao desenvolvimento e à evolução do direito de proteção de dados, os países de common law e de civil law parecem estar adotando abordagens diferentes. Estes últimos têm desenvolvido um tort (ato ilícito ou delito) de base legal - v., por exemplo, os arts. 82 e ss. do RGPD europeu e os art. 42 e ss. da LGPD brasileira. Os países do common law, por sua vez, têm deixado para o judiciário decidir sobre esta questão.1 Os tribunais do Reino Unido e do Canadá desenvolveram recentemente um tort por violação da privacidade de dados pessoais. As cortes desses Estados começaram a "estabelecer alguns princípios-chave que embasam um tort por violação da privacidade, fornecendo orientação sobre a avaliação dos danos consequentes." Esse tort também está sendo desenvolvido nos Estados Unidos.2 Na presente coluna, com foco especial no Reino Unido, examino os avanços relativos a um tort de quebra de confiança (tort of breach of confidence) e, mais recentemente, de quebra de privacidade (tort of breach of privacy). Segundo Leon Trakman, Robert Walters e Bruno Zeller, o desenvolvimento, pelos tribunais do Reino Unido, de um tort de privacidade relativo a informações pessoais "pode ser descrito como duro e desafiador." Em Wainwright v Home Office, a autora foi obrigada a tirar todas as suas roupas antes de ser autorizada a entrar na prisão para visitar seu filho. A Câmara dos Lordes não reconheceu um tort de invasão de privacidade. O caso foi levado ao Tribunal Europeu de Direitos Humanos, o qual considerou que o art. 8.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH) foi violado. Este dispositivo prevê que "toda pessoa tem direito ao respeito pela sua vida privada e familiar, pelo seu lar e pela sua correspondência". O Tribunal Europeu considerou que o fato de autora ter sido obrigada a se despir para poder visitar seu filho no cárcere constituiu uma violação de seus direitos previstos no art. 8 da CDEH e determinou que o Estado pagasse uma indenização no total de 20.500 euros.3 Em HRH Prince of Wales v Associated Newspapers Ltd, o jornal inglês The Mail on Sunday publicou trechos de um relato que o príncipe Charles escreveu e entregou a amigos, descrevendo a cerimônia de transferência da soberania de Hong Kong para a China como uma performance "horrível ao estilo soviético", "ridícula lenga-lenga" e as autoridades chinesas como "terríveis peças de cera antigas". A publicação desses extratos era pessoalmente embaraçosa para o príncipe, que acabou conseguindo em juízo que o jornal não publicasse outros trechos do relato. O tribunal destacou, em especial, a preocupação de desenvolver um direito de privacidade que forneça proteção para o direito à "vida privada e familiar, seu domicílio e sua correspondência", nos termos do art. 8.º da CEDH. O tribunal foi além e ampliou o direito de confidencialidade para proteger os direitos previstos no art. 8.º, mas em circunstâncias que não envolvam a violação de uma relação confidencial.4 Em meados dos anos 2000 começou a se formar um tort direcionado mais concretamente ao uso indevido de informações pessoais. Em Campbell v MGN Ltd, a Câmara dos Lordes considerou se a publicação de fotos dos participantes de uma reunião dos Narcóticos Anônimos violava seu direito à vida privada e familiar, conforme o art. 8.º da CEDH. O tribunal deliberou se o direito da autora de proteger sua identidade, como previsto no art. 8.º, era intrínseco a uma causa de pedir por quebra de confiança (breach of confidence) e ao uso indevido de suas informações privadas, de acordo com a Lei de Proteção de Dados de 1998 (Data Protection Act - DPA).5 Em Lloyd v Google, o Tribunal Superior decidiu caso no qual o Google teria, durante alguns meses entre 2011 e 2012, agido ilicitamente, "rastreando secretamente a atividade de usuários do iPhone da Apple na internet, coletando e usando as informações obtidas, e depois vendendo os dados acumulados." O tribunal indeferiu o pedido de indenização por violação de dados pessoais, argumentando que dos fatos narrados não se extraía "dano", nos termos da Seção 13 do DPA. O tribunal reconheceu que, de fato, esta seção prevê indenização quando alguém sofre danos em decorrência de violação, por parte de um controlador de dados, de alguma das previsões da DPA. Entre outras objeções, salientou, no entanto, que a dificuldade em determinar se um determinado indivíduo realmente se enquadra na classe afetada foi um fator adicional para decidir se o demandante sofreu danos nos termos da Seção 13.6 Uma questão relevante é se as informações pessoais são "privadas" para fins de uma ação de responsabilidade civil (tort action). No já referido caso Campbell v MGN Ltd, em que a informação pessoal do autor sobre sua participação em uma reunião dos Narcóticos Anônimos fora divulgada, a Câmara dos Lordes analisou se o autor "tinha uma expectativa razoável de privacidade". O tribunal também considerou se "essa expectativa razoável de privacidade proporcionava a um demandante um nível mais elevado de proteção por divulgação de dados pessoais sensíveis, como registros médicos sob a DPA." E considerou ainda as "questões causativas de se a sua 'ansiedade consequente em continuar a frequentar as reuniões dos Narcóticos Anônimos' foi o resultado demonstrado da utilização indevida (divulgação) dos seus dados pessoais."7 Este caso foi importante para estabelecer a verossimilhança de a divulgação ilícita de dados pessoais causarem sofrimento, angústia ou aflição (distress) no titular dos dados. O que permaneceu em aberto é como tal angústia e prejuízo deveriam ser medidos de maneira razoável.8 Mais de uma década depois de Campbell, ocorreu um marco judicial na construção judicial de violações da DPA. Em 2015, no caso Vidal-Hall and others v Google Inc, houve a efetiva superação da Seção 13 (2) da DPA, o que facilitou o ajuizamento de ações com pedidos de indenização por sofrimento, aflição ou angústia (distress). O caso envolvia demandantes que usaram aparelhos da Apple para acessar a internet e que também se utilizaram de vários serviços do réu (Google). A alegação dos autores foi baseada na aflição ou angústia sofrida ao saber que suas características pessoais formavam a base para os anúncios direcionados do réu, ou por terem descoberto que tais assuntos podiam ter chegado ao conhecimento de terceiros que usaram ou viram seus dispositivos. Os pedidos dos autores foram exclusivamente pelo sofrimento, angústia e ansiedade, e não por danos patrimoniais.9 Nesse caso, o Tribunal de Apelação considerou que não havia nenhuma exigência na Seção 13 para que houvesse primeiramente prejuízo patrimonial, antes que uma indenização pudesse ser concedida por sofrimento, angústia ou aflição (distress). O tribunal reconheceu que "as ações por quebra de confiança e as ações por uso indevido de informações privadas assentam em distintos fundamentos jurídicos e protegem diferentes interesses jurídicos". As primeiras tutelam informações secretas ou confidenciais e as últimas privacidade. Nada obstante, "após pesquisar as classificações judiciais usadas em casos anteriores, concluiu que não havia nada na natureza da demanda em si que sugerisse que era errado tratá-la como um tort".10 Em trecho relevante da decisão, que merece transcrição, o tribunal concluiu: Against the background described, and in the absence of any sound reasons of policy or principle to suggest otherwise, we have concluded in agreement with the judge that misuse of private information should now be recognised as a tort for the purposes of service out of the jurisdiction. This does not create any new cause of action. In our view, it simply gives the correct legal label to one that already exists. We are conscious of the fact that there may be broader implications from our conclusions, for example as to remedies, limitation and vicarious liability, but these were not the subject of submissions, and such points will need to be considered as and when they arise.11 Segundo Leon Trakman, Robert Walters e Bruno Zeller, este caso representa "o claro reconhecimento de que agora existe um tort de common law para o uso indevido de informações pessoais que se enquadra na lei de proteção de dados no Reino Unido."12 Ainda de acordo com os referidos autores, "outras jurisdições de common law, notadamente a Austrália, deveriam considerar seguir o mesmo caminho, estabelecendo um tort de privacidade na internet." E explicam, conclusivamente, que um "tal tort na proteção de dados irá proporcionar um nível mais elevado de controle aos titulares dos dados sobre seus dados pessoais e dissuadir as entidades de fazer uso indevido desses dados."13 Por fim, importa mencionar que, em 23 de maio de 2018, foi aprovada uma nova Lei de Proteção de Dados no Reino Unido (Data Protection Act 2018). Trata-se da implementação no Reino Unido do RGPD da União Europeia, codificando seus requisitos no direito britânico. A DPA 2018 contém duas seções sobre responsabilidade civil, uma primeira sobre obrigação de indenizar por violação da RGPD (Seção 168) e uma segunda por violação de outras leis (Seção 169). __________ 1 TRAKMAN, Leon; WALTERS, Robert; ZELLER, Bruno. Tort and Data Protection Law: Are There Any Lessons to Be Learnt? EDPR Review, 5(4), p. 6, 2019. Disponível em SSRN ou aqui. 2 TRAKMAN; WALTERS; ZELLER, op. cit., p. 1. 3 TRAKMAN; WALTERS; ZELLER, op. cit., p. 7. 4 TRAKMAN; WALTERS; ZELLER, op. cit., p. 7. 5 TRAKMAN; WALTERS; ZELLER, op. cit., p. 8. 6 TRAKMAN; WALTERS; ZELLER, op. cit., p. 8. 7 TRAKMAN; WALTERS; ZELLER, op. cit., p. 9. 8 TRAKMAN; WALTERS; ZELLER, op. cit., p. 9. 9 Fonte. Acesso em: 19 mar 2021. 10 TRAKMAN; WALTERS; ZELLER, op. cit., p. 9. 11 Vidal-Hall and others v Google Inc, in EWCA Civ, 2015, p. 51 apud TRAKMAN; WALTERS; ZELLER, op. cit., p. 9-10. 12 TRAKMAN; WALTERS; ZELLER, op. cit., p. 9. 13 TRAKMAN; WALTERS; ZELLER, op. cit., p. 9.
segunda-feira, 15 de março de 2021

Redes Sociais: Platforms ou Publishers? - Parte II

Em nossa coluna anterior (parte I), levantamos o problema da imputação de responsabilidade civil às empresas de tecnologia pelo conteúdo das postagens dos usuários das redes sociais, a partir da investigação a respeito da natureza jurídica dos serviços por elas prestados, com base no franco debate já inaugurado a respeito no sistema de justiça norte-americano. Nesta segunda parte, analisaremos o tema no contexto de nosso sistema de justiça. Seguindo as diretrizes da Section 230 do Communications Decency Act (CDA) do U.S Code - segundo as quais as companhias de tecnologia são, em regra, isentas de responsabilidade referentes ao conteúdo publicado por usuários -, a lei 12.965/2014, conhecida no Brasil como Marco Civil da Internet, também isenta, em regra, a responsabilidade dos provedores de conexão à internet por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros.1 A partir da entrada em vigor da referida legislação, a controvérsia passou a girar em torno da constitucionalidade do seu artigo 192, que condiciona e restringe a incidência da responsabilidade civil dos provedores de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais, ao desatendimento de ordem judicial específica, que determine a exclusão do conteúdo ilícito e lesivo postado. Ou seja, a responsabilização se daria tão somente pelo controle da retirada da publicação, mas não pelo seu conteúdo. Como não é difícil perceber, trata-se de alteração do regime até então vigente, que vai na contramão da proteção das vítimas. Os ônus da necessária judicialização e a demora da correspondente prestação jurisdicional acarretam-lhes não só maior tempo de exposição aos danos, como também o seu agravamento.   Conforme explica MARTINS, "quanto mais se limita a responsabilidade do provedor, na proporção inversa se aumenta a responsabilidade do usuário, cuja posição resta fortemente enfraquecida, diante disso as consequências do dano terminam repousando sobre os ombros da própria vítima".3 É interessante notar que a orientação jurisprudencial de nossos tribunais, construída anteriormente ao Marco Civil da Internet, revelava-se menos hostil às vítimas, na medida em que lhes permitia notificar direta e extrajudicialmente os provedores, instando-os a retirar as informações difamantes a terceiros manifestadas por seus usuários.4 Na verdade, essa anterior orientação reconhecia aos provedores de internet o status não de platforms, mas sim de publishers, na medida em que lhes imputava a obrigação de exercer efetivo juízo de valor sobre o conteúdo das publicações de seus usuários, para o fim de excluí-las ou não - ainda que somente apenas uma notificação extrajudicial que lhes desse formal conhecimento sobre as mesmas. De forma diversa, a redação conferida aos artigos 18 e 19 da lei 12.965/2014, sutil e silenciosamente, implicou uma total reconfiguração da natureza jurídica dos provedores, requalificando seu status. Com efeito, na medida em que se condiciona a imputação de sua responsabilidade civil à uma prévia ordem judicial, o legislador brasileiro simplesmente desonerou as empresas provedoras de qualquer obrigação de valorar o conteúdo veiculado na internet por seus usuários. Isso implica, na realidade, que os provedores passaram a ser considerados meras neutral platforms.    Trata-se de uma profunda alteração do regime jurídico das empresas de tecnologia que, para além dos já referidos efeitos nocivos à adequada proteção das vítimas, imuniza as operadoras, garantindo-lhes, na prática, um regime de plena irresponsabilidade civil sobre todo e qualquer conteúdo ilícito e lesivo postado por seus usuários. Por tudo isso, e apesar desse novo regime jurídico que os artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet concede às operadoras, é preciso ponderar se o ordenamento jurídico nacional viabiliza outras soluções que, quando menos, compatibilizem e estabilizem os diversos interesses em jogo.   No sistema norte-americano, os provedores, tomando conhecimento do conteúdo considerado ofensivo, estão autorizados a removê-lo diretamente pelo sistema do notice and take down. Apesar desse sistema não ser compreendido como instituidor de um dever geral de vigilância a priori aos provedores, ao menos deixa claro que, diante da comunicação do conteúdo abusivo por parte da vítima, passam a ser responsáveis quando se omitem na avaliação do conteúdo, não o excluindo. É evidente que, às empresas provedoras, é extremamente conveniente sustentar que não possuem qualquer poder (nem dever) de supervisão das informações inseridas pelos usuários. Daí a insistência dessas corporações em se qualificar como meras platforms, cuja atuação se circunscreveria à intermediação da transmissão de dados e não ao controle de seu conteúdo, até mesmo como forma de assegurar e proteger o sagrado direito à informação e à liberdade de expressão.  A assunção dessa tese, na verdade, representa uma completa inversão e banalização de valores essenciais da pessoa, na medida em que a mera utilização do argumento da proteção à liberdade de expressão não pode se prestar, em última instância, à garantia da irresponsabilidade dos provedores.5 De acordo com BALKIN, "o objetivo da liberdade de expressão é proteger e fomentar uma cultura democrática. Uma cultura democrática é uma cultura em que os indivíduos têm uma oportunidade justa de participar nas formas de criação de significado e de influência mútua que os constituem como indivíduos. (...) A tecnologia de comunicação disponível para as pessoas e a maneira como essas pessoas usam efetivamente essa tecnologia de comunicação molda os limites e os problemas da liberdade de expressão independentemente da época."6 É preciso salientar, por outro lado, que as empresas de tecnologia não são proibidas de, diante de conteúdos reputados ofensivos inseridos em suas plataformas, excluí-los unilateralmente. Essa possibilidade gera ainda mais controvérsias acerca do papel moderador desenvolvido pelas plataformas, até mesmo em função das expressas condições estabelecidas pelas empresas de tecnologia nos contratos firmados com seus usuários. De fato, nos contratos de adesão dos usuários às redes sociais, invariavelmente são reguladas as políticas de uso e de acesso aos serviços, assim como a previsão de limitação quanto aos tipos de conteúdo e comportamentos permitidos na plataforma. Dessa forma, se há efetivamente um modelo de triagem prévia a respeito do conteúdo e alguma forma de ingerência do seu fluxo, pelos quais as plataformas podem selecionar o conteúdo postado por seus usuários, parece evidente que se está a admitir o exercício de um poder moderador cujos critérios de funcionamento, apesar de ainda bastante obscuros, escancaram não apenas a possibilidade técnica do exercício do controle de conteúdos como, também, a viabilidade de sua responsabilização.7 Como afirmam FRAZÃO e MEDEIROS, "Tal raciocínio é ainda mais pertinente quando se trata de agentes econômicos que criam o risco respectivo e dele ontem grande proveito econômico. Daí por que, diante do poder e dos benefícios de que usufruem, é necessário que também suportem os danos da atividade".8 Para MARTINS, "a partir do momento em que o provedor intervém na comunicação, dando-lhe origem, escolhendo ou modificando o conteúdo ou selecionando o destinatário, passa a ser considerado responsável, pois a inserção de conteúdos ofensivos constitui fortuito interno, ou seja, risco conhecido e inerente ao seu empreendimento. Conclui-se, dessa forma, ser objetiva, com fundamento no artigo 14 do Código de Defesa do Consumidor, a responsabilidade pelo fato do serviço do detentor do site."9 Apesar disso, tal como passou a ocorrer no Brasil por via da interpretação da literalidade dos artigos 18 e 19 do Marco Civil da Internet, parece fácil às empresas de tecnologia furtar-se ao ônus de controle dos conteúdos inseridos por seus usuários sob a alegação de que não deteriam competência para efetuar qualquer tipo de juízo de valor sobre os mesmos - atribuição essa que competiria prévia e prioritariamente ao Poder Judiciário.  Por tal motivo, é de suma importância aguardar a definição, por parte do Supremo Tribunal Federal, do regime de responsabilidade civil dos provedores, no âmbito do julgamento de dois temas de repercussão geral já fixados. Sobre esses temas, foi designada audiência pública objetivando aprofundar as discussões para o enfrentamento da constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet, através do sopesamento dos direitos fundamentais envolvidos.10 Todavia, é necessário dar um passo atrás. A imputação da responsabilidade civil dos provedores de internet não deve se prestar apenas à ordem para retirada dos conteúdos lesivos, mas sim, à readequação da natureza jurídica dessas empresas e dos serviços por elas prestados, tornando-se imprescindível a discussão de modelos de atuação, aos quais se exige a edificação de novos procedimentos e novas metodologias de operação. Para além disso, o que está em jogo transcende os interesses das vítimas em obter justa indenização pelos danos sofridos. Como já levantamos na primeira parte da presente coluna, as Big Techs passaram a dominar a infraestrutura de comunicação, exercendo o controle e a difusão de seu conteúdo de forma unilateral. Na prática, elas substituíram o Estado na regulação da comunicação entre as pessoas, passando a desempenhar um papel de inegável interesse público, na medida em que se tornaram fonte de informação primária para bilhões de usuários. Portanto, em um contexto mais publicista do que privado, é necessário discutir uma nova arquitetura de operação dessas empresas, fundada na premissa de que sua atuação impacta profundamente o interesse público. Nas palavras de KLONICK, as "plataformas devem ser pensadas como operadoras dos Novos Governantes do discurso online. Esses Novos Governantes são parte de um novo modelo tripartite de discurso que se situa entre o estado e os usuários-editores. Elas são entidades privadas e autorreguladas que são motivadas econômica e normativamente para refletir a cultura democrática e as expectativas de discurso livre de seus usuários. (...) A maior ameaça que um sistema privado de governança impõe para a cultura democrática é a perda da oportunidade equânime de participar da plataforma, o que é agravado pela falta de accountability direta do sistema para com seus usuários. A primeira solução para esse problema não deveria vir de mudanças na Seção 230 ou novas interpretações da Primeira Emenda, mas mudanças simples nos sistemas de arquitetura e governança postos em prática por essas plataformas. Se essas mudanças não funcionarem e se houver necessidade de alguma regulação, seria prudente haver um balanço entre a preservação das forças democratizantes da internet e a preservação do poder gerador dos Novos Governantes, com um entendimento amplo e acurado de como e por que essas plataformas operam".11 Somente a definição de um novo modelo de arquitetura e de governança para as empresas de tecnologia possibilitará seu adequado enquadramento em um regime de responsabilidade, comprometido com os valores sociais da atualidade. Não se trata meramente de uma regulação de relações privadas entre usuários e provedores. Nesse contexto, a necessária mudança do design das plataformas digitais deve passar pela implementação de medidas de accountability para com seus usuários, conforme propõe KLONICK. A primeira proposta seria a de se estabelecer a regulação por meio de um modelo de controle acionista. Todavia, esse modelo poderia ser comprometido em virtude da natural pretensão dos acionistas na maximização dos lucros da empresa - o que talvez não corresponda às preocupações dos usuários sobre a igualdade de acesso e o regime de responsabilidade democrática. A segunda proposta seria o registro das empresas de tecnologia como de utilidade pública (Public Benefit Corporations), o que permitiria que o benefício público fosse um propósito da empresa, para além da meta tradicional de maximização de lucro.   A terceira proposta seria a adoção voluntária de um compromisso com a noção de um "devido processo tecnológico."12 Trata-se de um modelo inovador, voltado às melhores práticas no uso de tecnologia pela agência, pautado na compreensão dos custos-oportunidade (trade-offs) de automação e de discrição humana, assegurando, ao mesmo tempo, os direitos dos indivíduos de notificação, conferindo transparência à regulamentação e à adjudicação.13 Ainda no intuito de fornecer parâmetros de accountability das empresas operadoras de internet, para CITRON, a adoção de "Um padrão de cuidado que inclui o anonimato rastreável permitiria à sociedade desfrutar da liberdade de expressão que o anonimato facilita, sem eliminar os meios de combater o lado negro do anonimato - a tendência de agir destrutivamente quando acreditamos que não podemos ser pegos."14 Observando-se a preocupação mundial com a regulação do design das empresas de tecnologia, parece certo que elas mesmas não podem mais se prestar ao papel de negar sua própria essência e suas responsabilidades, passadas e futuras. __________ 1 Seção III - Da Responsabilidade por Danos Decorrentes de Conteúdo Gerado por Terceiros Art. 18. O provedor de conexão à internet não será responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros. 2 Art. 19. Com o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura, o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário. § 1º A ordem judicial de que trata o caput deverá conter, sob pena de nulidade, identificação clara e específica do conteúdo apontado como infringente, que permita a localização inequívoca do material. § 2º A aplicação do disposto neste artigo para infrações a direitos de autor ou a direitos conexos depende de previsão legal específica, que deverá respeitar a liberdade de expressão e demais garantias previstas no art. 5º da Constituição Federal. § 3º As causas que versem sobre ressarcimento por danos decorrentes de conteúdos disponibilizados na internet relacionados à honra, à reputação ou a direitos de personalidade, bem como sobre a indisponibilização desses conteúdos por provedores de aplicações de internet, poderão ser apresentadas perante os juizados especiais. § 4º O juiz, inclusive no procedimento previsto no § 3º, poderá antecipar, total ou parcialmente, os efeitos da tutela pretendida no pedido inicial, existindo prova inequívoca do fato e considerado o interesse da coletividade na disponibilização do conteúdo na internet, desde que presentes os requisitos de verossimilhança da alegação do autor e de fundado receio de dano irreparável ou de difícil reparação. Art. 20. Sempre que tiver informações de contato do usuário diretamente responsável pelo conteúdo a que se refere o art. 19, caberá ao provedor de aplicações de internet comunicar-lhe os motivos e informações relativos à indisponibilização de conteúdo, com informações que permitam o contraditório e a ampla defesa em juízo, salvo expressa previsão legal ou expressa determinação judicial fundamentada em contrário. Parágrafo único. Quando solicitado pelo usuário que disponibilizou o conteúdo tornado indisponível, o provedor de aplicações de internet que exerce essa atividade de forma organizada, profissionalmente e com fins econômicos substituirá o conteúdo tornado indisponível pela motivação ou pela ordem judicial que deu fundamento à indisponibilização. 3 MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na internet. 3 ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 416. 4 REsp 1175675/RS, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 09/08/2011. 5 "A liberdade de expressão no debate democrático distingue-se, indubitavelmente, da veiculação dolosa de conteúdos voltados a simplesmente alterar a verdade factual e, assim, alcançar finalidade criminosa de natureza difamatória, caluniosa ou injuriosa. Quando, a pretexto de se expressar o pensamento, invadem-se os direitos da personalidade, com lesão à dignidade de outrem, revela-se o exercício de um direito em desconformidade com o ordenamento jurídico, o que legitima a responsabilização cível e criminal pelo conteúdo difundido, além do direito de resposta" ((REsp 1897338/DF, Rel. Ministro Luis Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 24/11/2020, DJe 05/02/2021). 6 Balkin, Jack M. Free Speech in the algorithmic society: big data, private governance, and new school speech regulation". University of California at Davis Law Review, Vol.51: 1149-1210, 2018. 7 Nesse contexto, afirmou o Ministro Luiz Felipe Salomão que "a alegada incapacidade técnica de varredura das mensagens incontroversamente difamantes é algo de venire contra factum proprium, inoponível em favor do provedor de internet (REsp n. 1.306.157/ SP, Rel. Ministro Luiz Felipe Salomão, Quarta Turma, julgado em 17/12/2013, Dje 24/03/2014). 8 Aludem as autoras que "não é necessário o apoio nos pressupostos da responsabilidade objetiva. Afinal, o próprio art. 187 do Código Civil deixa claro que abusa do seu direito todo aquele que o exerce de forma a exceder manifestamente os limites impostos pelas finalidades sociais e econômicas do direito e pela boa-fé". FRAZÃO, ANA e MEDEIROS, Ana Rafaela. Responsabilidade civil dos provedores de internet: a liberdade de expressão e o art. 19 do Marco Civil. Migalhas de Responsabilidade Civil. Disponível aqui. Acesso em 01 de março de 2021. 9 MARTINS, Guilherme Magalhães. Responsabilidade civil por acidente de consumo na internet. 3 ed., revista, atualizada e ampliada. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2020, p. 434. 10 "Tema 987 - Discussão sobre a constitucionalidade do artigo 19 da lei 12.965/2014 que determina a necessidade de prévia e específica ordem judicial de exclusão de conteúdo para a responsabilização civil do provedor de internet, websites e gestores de aplicativos de redes sociais por danos decorrentes de atos ilícitos praticados por terceiros. (RE 1.037.396-SP, Ministro Relator Toffoli). E o Tema 533 - Dever de empresa hospedeira de sítio na internet fiscalizar o conteúdo publicado e de retirá-lo do ar quando considerado ofensivo, sem intervenção do Judiciário. (RE 1.057.258-MG, Relator Ministro Luiz Fux)." 11 KLONICK, Kate. The New Governors: The People, Rules, and Processes Governing Online Speech. Harvard Law Review. Vol. 131, pp. 1598-1670, 2018, p. 1603. 12 CITRON, Danielle Keats. Technological Due Process. Washington University Law Review. Vol. 85, Ed. 6. 2008. 13 KLONICK, Kate. The New Governors: The People, Rules, and Processes Governing Online Speech. Harvard Law Review. Vol. 131, pp. 1598-1670, 2018, p.1666-1667. 14 "A standard of care that includes traceable anonymity would allow society to enjoy the free expression that anonymity facilitates without eliminating means to combat anonymity's dark side - the tendency to act destructively when we believe we cannot get caught." CITRON, Danielle Keats. Cyber Civil Rights. Boston University Law Review. Vol.89, pp.61-125, 2009. U of Maryland Legal Studies Research Paper n. 2008-41, Available at SSRN.
Quando refletimos sobre os indivíduos mais atingidos pela pandemia de coronavírus, imediatamente lembramos de pessoas com problemas de saúde preexistentes e idosos. Contudo, os "trabalhadores essenciais" suportaram uma parte desproporcional desse fardo. Refiro-me àqueles que trabalham em serviços de emergência, saúde, agricultura, alimentação, serviços públicos, energia, transporte, dentre outros. Esses funcionários são geralmente mal pagos, impossibilitados de optar por home-office, inadequadamente protegidos contra riscos do local de trabalho, estando entre os mais devastados pela pandemia. A natureza altamente transmissível do SARS-CoV-2, incluindo a infecciosidade de indivíduos assintomáticos e pré-sintomáticos, significa que os familiares de trabalhadores infectados também estão em risco. De acordo com uma estimativa nos EUA, entre 7% e 9% das primeiras 200.000 mortes de Covid-19 ocorreram quando um indivíduo foi infectado no trabalho e transmitiu o vírus a um membro da família.  Os funcionários que adoecem devido a exposições ocupacionais geralmente têm direito a uma compensação trabalhista variável conforme cada lei estadual norte-americana. Se a doença for uma "doença comum da vida" o funcionário deve provar que foi causada por exposição no local de trabalho, incluindo-se patologias derivadas de uma exposição relativamente súbita e inesperada a germes. Para aliviar o ônus da prova, para funcionários adoecidos no trabalho pela Covid-19, em geral as leis estaduais estabelecem uma presunção relativa de que a infecção da Covid-19 por um trabalhador de saúde ou socorrista é o resultado de exposição ocupacional. Portanto, trabalhadores que se infectam no decorrer do seu trabalho são elegíveis para benefícios previdenciários se puderem estabelecer a fonte de sua doença baseada no emprego. Ocorre que membros da família infectados posteriormente pelos trabalhadores não são elegíveis porque não sofreram lesões no curso do emprego. Todavia, poderiam eles pretender responsabilidade civil na justiça comum? Nos Estados Unidos forjou-se a teoria do "take home liability". Os processos movidos por membros da família que adoecem depois que seu parente é exposto no trabalho são conhecidos como casos de "Responsabilidade civil levada para casa". Trata-se de uma nova teoria para fornecer um remédio para indivíduos que de outra forma não poderiam obter compensação por sua doença. A sua aplicação paradigmática se deu na responsabilidade pela exposição ao amianto (asbestos cases). Funcionários que trabalharam com amianto na fabricação, construção naval, automotiva e outras indústrias levaram suas roupas contaminadas com amianto para casa onde seus cônjuges, filhos e outros membros da família foram expostos durante a lavagem de roupas ou de outras maneiras, como vestindo as roupas contaminadas enquanto brincavam com seus filhos. A "take home liability" foi exitosamente desenvolvida para fornecer um remédio para as mortes e doenças graves causadas por esta exposição secundária ao amianto no local de trabalho. O fato é que asbestose e mesotelioma são graves doenças respiratórias causadas apenas pela exposição ao amianto, facilitando a prova da causa, sendo que desde 1972 havia normativa reconhecendo o risco de exposição ao amianto, exigindo que os empregadores forneçam roupas de proteção e vestiários para evitar que os funcionários utilizem em casa ou lavem suas roupas contaminadas com amianto. Nos 50 Estados norte-americanos há uma oscilação legislativa quanto à permissão para o ajuizamento da "take home liability". Até 2020, 16 Estados afirmam que existe um dever dos empregadores perante os familiares das vítimas - autorizando uma demanda por negligência. Em contraste, 13 Estados afirmam que não existe dever porque o dano não é previsível ou não há relação significativa entre o membro da família exposto e o empregador. Dois estados promulgaram legislação que proíbe expressamente a "take home liability", e os 19 Estados restantes ainda não abordaram o problema. Ao contrário da exposição ao amianto, nos EUA a responsabilidade objetiva pelo produto não é uma teoria jurídica viável para a exposição ao SARS-CoV-2 pelos familiares pois o coronavírus não é um "produto". No entanto, ações de responsabilidade civil com amparo em negligência pelo empregador são em tese viáveis para a "take home liability" no cenário da pandemia do coronavírus. A responsabilidade objetiva aplica-se apenas a atividades anormalmente perigosas, envolvendo um risco previsível e altamente significativo de danos, mesmo quando o cuidado razoável é exercido e a atividade não é de uso comum. É improvável que os tribunais norte-americanos apliquem responsabilidade objetiva à Covid-19, embora seja uma doença mortal e altamente contagiosa. Em um leading case, Doe v. Johnson, a demandante alegou que o réu lhe transmitiu o HIV indevidamente por meio de relações sexuais consensuais. O juiz considerou que não havia precedente para estender a responsabilidade objetiva a este caso. Os riscos de uma infecção sexualmente transmissível poderiam ser reduzidos pelo exercício de cuidados razoáveis e a atividade sexual não é uma atividade inerentemente perigosa. Raciocínio semelhante provavelmente se aplica em um caso de Covid-19. Portanto, em uma demanda de responsabilidade civil no contexto da exposição domiciliar à Covid-19 com base na negligência do empregador, os familiares do empregado devem provar que o demandado violou um dever de cuidado perante eles. Devem ser avaliados os quatro elementos tradicionais da responsabilidade civil nas diversas jurisdições da common law: dever (duty), violação (breach), nexo causal (causation) e dano (damage). a) Dever (duty) - A essência de uma indenização com base em negligência é a de que o réu violou um dever para com o autor ao deixar de exercer o cuidado razoável em todas as circunstâncias. Em casos de "take home liability", o empregador é acusado de violar um dever perante o familiar do empregado - pessoa física sem vínculo empregatício com o empregador, em ambiente fora do local de trabalho, envolvendo pessoa cuja identidade ou mesmo existência não fosse conhecida do demandando. Assim, a questão fulcral é se um membro da família de um funcionário é um "demandante previsível", para quem o empregador assuma um dever legal. No precedente Kesner v. Superior Court, o tio de Johnny Blaine Kesner, Jr., George Kesner, um funcionário da Pneumo Abex, LLC, foi exposto a altos níveis de amianto no decorrer de seu trabalho. Johnny Kesner ficou na casa de seu tio cerca de três dias por semana durante seis anos e alegou que ele foi exposto ao amianto através da poeira nas roupas de seu tio, e que essa exposição o levou a contrair mesotelioma peritoneal, do qual morreu. A Suprema Corte da Califórnia, afirmou que os empregadores têm o dever de prevenir a exposição secundária ao amianto dos membros da família de seus funcionários, e a exposição para levar para casa através dos corpos e roupas dos funcionários era previsível. No contexto da Covid-19, o demandante teria que provar que proteções inadequadas no local de trabalho e a transmissibilidade do SARS-CoV-2 tornariam previsível que os funcionários expostos no trabalho infectassem um ou mais de seus familiares. Como o SARS-CoV-2 poderia se espalhar para vários outros demandantes em potencial, além de membros da família, os réus provavelmente levantariam a possibilidade de uma responsabilidade ilimitada como motivo para rejeitar a demanda da "take home liability". No aludido caso Kesner, o tribunal abordou especificamente esta questão ao considerar que o dever de um empregador se estende apenas aos membros da família de um trabalhador, limitando os demandantes em potencial a uma categoria identificável de pessoas que, como uma classe, têm maior probabilidade de ter sofrido um dano legítimo e compensável. b) Violação (breach) - a próxima etapa é determinar se o réu violou o padrão de conduta aplicável (standard of care). Nos Estados Unidos a regulação da OSHA (Occupational Safety and Health Administration) é utilizada como prova da conformidade dos empregadores aos padrões de atendimento, mantendo o local de trabalho livre de riscos graves reconhecidos, inclusive fornecendo os equipamentos de proteção individual necessários. Os padrões OSHA são admissíveis mesmo quando o demandante não era um empregado - como alguém visitando o local de trabalho ou um inspetor de segurança. Todavia, como inexistem normas federais da OSHA promulgadas para Covid-19, a admissibilidade de um padrão em litígios indenizatórios depende da lei estadual aplicável aos casos de negligência. Ilustrativamente, em 33 estados, a falha de um empregador em cumprir um padrão OSHA aplicável constitui "alguma evidência" de negligência, com efeito probatório variando entre uma dedução de negligência, uma negligência prima facie ou criando uma presunção juris tantum de negligência. O efeito da negligência per se é a de estabelecer a violação de um dever relevante, porém o demandante ainda é obrigado a provar o nexo causal e os danos, então o demandado terá espaço pra produzir outras defesas. c) Nexo causal (causation) - Para que a responsabilidade seja imposta, a conduta negligente do réu deve ser a causa factual do dano sofrido pelo autor. Nos casos de exposição por "take home liability" há duas partes para o nexo causal. Primeiramente, a negligência do empregador deve ser a causa da infecção do funcionário. Como o SARS-CoV-2 é tão prevalente na comunidade, pode-se afirmar que o funcionário pode ter sido infectado de outras maneiras, como em locais públicos, no transporte público ou em reuniões públicas ou privadas. Em segundo lugar, a infecção do membro da família deve ter sido causada pela exposição ao funcionário infectado. Aqui, novamente, o membro da família também pode ter sido infectado por exposição a outros indivíduos. O fato é que a causalidade é mais problemática para a Covid-19 do que para a exposição ao amianto, porque a exposição ao coronavírus é mais comum e se dá em mais ambientes do que a exposição ao amianto. O primeiro processo de "take home liability", movido em agosto/2020 pela filha de Esperanza Ugalde, de Illinois, resultou da alegação de que Ugalde morreu de Covid-19 que seu pai contraiu na fábrica de processamento de carne da Aurora Packing Co. Uma segunda demanda, também em Illinois, tem como autora Miriam Alvarez Reynoso, que contraiu COVID-19 de seu marido, um montador de peças, e teve lesões graves em múltiplos órgãos enquanto cuidava de seu marido. O proprietário da empresa afirmou que, mesmo antes da pandemia de Covid-19, os funcionários utilizavam rotineiramente máscaras por causa da poeira e também luvas, e que o empregado adoeceu antes de qualquer outra pessoa. Discussões como estas demonstram que a cadeia causal será o maior entrave às indenizações. Assim, indaga-se: demandantes terão que mostrar que as empresas não implementaram medidas de segurança - o que levou o trabalhador a adoecer e infectar um familiar - e que o trabalhador tomou precauções para não adoecer por meio de outras fontes? A experiência do common law indica que não se exigirá que o demandante prove a sequência exata das exposições quando a negligência do réu consistir na violação de algum regulamento de segurança. Em tais circunstâncias, o tribunal dificilmente poderá ignorar o fato de que o dano poderia ter sido evitado se houvesse o devido cuidado por parte do réu. Também entram em cena questões de políticas públicas, incluindo responsabilidade moral, prevenção de danos futuros e disponibilidade de um seguro. d) Dano (damage) - O demandante deve provar que a negligência do réu resultou em um dano legalmente reconhecido. Em casos de "take home liability" por amianto, os tribunais têm aplicado os princípios tradicionais da responsabilidade civil, embora muitos dos casos de apelação tenham sido decididos com base no reconhecimento de que se tratam de interesses merecedores de tutela pelo sistema. Porém, no contexto da Covid-19 os casos quase certamente seriam instaurados por familiares de funcionários que adoeceram gravemente ou por seus herdeiros em caso de morte. Os demandantes bem-sucedidos poderão inserir dentre os danos compensáveis a perda de renda, despesas médicas e indenização por dor e sofrimento (pain and suffering). Punitive damages são extraordinariamente admissíveis se a conduta do empregador foi intencional, arbitrária ou evidenciou um claro desprezo pelos direitos dos funcionários ou de seus familiares.  O fato é que trabalhadores essenciais inadequadamente protegidos e mal pagos e suas famílias sofrem excessivamente com a pandemia. Sua luta para sobreviver clínica e financeiramente muitas vezes é negligenciada em razão do protagonismo político do debate sobre a necessidade de medidas de saúde pública em confronto com a defesa das liberdades econômica e pessoais. Fundamental, nada obstante, é o efeito dissuasório da potencial responsabilidade civil sobre empregadores em suas obrigações para com seus trabalhadores. Se a preocupação sobre a possibilidade de indenização por danos para os familiares falecidos ou doentes de seus trabalhadores motivar alguns empregadores recalcitrantes a melhorar as condições de trabalho, ações de responsabilidade civil por "take home liability" serão responsáveis por salvar vidas. *Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do Ministério Público de Minas Gerais. Pós-Doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-Doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK-2016/17). Professor Visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e Mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Professor do corpo permanente do Doutorado e Mestrado do IDP/DF.
Introdução Um tema extremamente importante para a responsabilidade civil diz respeito aos modelos de tutela coletiva de direitos a partir da análise dos instrumentos paradigmáticos de responsabilização coletiva através de uma visão comparada e empírica.1 É importante ressaltar que existe diferença significativa no tratamento da questão nos Estados Unidos e no Reino Unido. Apesar de a origem das ações coletivas terem sido os litígios coletivos na Inglaterra medieval,2 atualmente a tutela coletiva de direitos estadunidense é baseada no paradigma da Class Action,3 ao passo que o Reino Unido tem seguido o modelo europeu de Collective Redress.4 O presente artigo discute esses dois modelos de tutela coletiva de direitos e os distingue do paradigma da ação civil pública adotado no Brasil e que serviu de base para o modelo Ibero-Americano de tutela coletiva de direitos. Assim, são delineados os três modelos de tutela coletiva de direitos: Ação de Classe Estadunidense, Reparação Coletiva Europeia e Ação Civil Pública Ibero-Americana. A Class Action Estadunidense O modelo de tutela coletiva de direitos dos Estados Unidos está baseado na Class Action, cuja estrutura está definida pela regra 23 das Regras Federais de Processo Civil. Seus pré-requisitos são os seguintes: (a) numerosidade - a classe é tão numerosa que o litisconsórcio é impraticável; (b) comunalidade - existem questões de direito e de fato comuns para a classe; (c) tipicidade - as causas de pedir ou as defesas dos representantes das partes são típicos das causas de pedir ou das defesas da classe; (d) representatividade adequada - as partes irão justamente e adequadamente representar os interesses da classe.5 Existem tipos de situação em que a ação coletiva é justificada, tais como: para evitar variações de julgamento ou inconsistências que poderiam estabelecer padrões de comportamento incompatíveis;6 para evitar a dispersão de julgamentos que poderia dificultar a habilidade dos indivíduos de proteger seus interesses;7 quando a parte ré se recusa a atuar de uma maneira que se aplicaria genericamente a toda a classe, de modo que será apropriado proferir uma decisão final em benefício da classe como um todo;8 quando a predominância de questões de fato ou de direito torna a ação coletiva superior aos demais métodos para a solução eficiente e justa do conflito de interesses.9  Importante, originalmente se trata de uma ação individual ajuizada por apenas um interessado, cabendo ao Poder Judiciário certificar uma ação como sendo uma ação de toda a classe de interessados ('Class Action'), definindo a classe, causas de pedir, defesas, questões controvertidas e indicar o advogado que irá patrocinar os interesses da classe na ação coletiva.10 Uma vez certificada a ação coletiva, deve ser feito um esforço de notificação coletiva dos interessados com a informação sobre a natureza da ação, possibilidade de acompanhamento efetivo através de advogado e ainda de pedido de exclusão daquela demanda coletiva, que deve ser formulado de modo apropriado e tempestivamente, sob pena de o julgamento produzir efeitos sobre a parte que não pedir sua exclusão.11 Deborah Hensler, Professora de Tutela Coletiva de Direitos na Stanford Law School, tem elogiado o modelo de agregação de interesses da Class Action justamente pela possibilidade de empoderamento dos indivíduos lesados que podem unir suas forças e buscar a compensação devida através de um instrumento que reequilibra a assimetria de poder entre poderosos e vulneráveis.12 Ao permitir que poucos indivíduos litiguem em nome de pessoas que podem sequer não saber que possuem causas jurídicas viáveis, esse tipo de procedimento de ação coletiva tem o potencial de ampliar a frequência das ações coletivas.13 Ao possibilitar que o representante da classe postule condenação de danos econômicos em nome de todas as pessoas que se enquadram na definição da classe de lesados - salvo com relação aos que se apresentem e declinem de participar, isto é, que optem por sair ('opt out') -, esse tipo de procedimento de ação coletiva amplia substancialmente o escopo da tutela coletiva de direitos também.14 Em síntese, existe potencial enorme para a prevenção de transgressões coletivas cometidas por empresas e pelo poder público e para restabelecer o equilíbrio nas relações de poder entre cidadãos e governo, empregados e empregadores, consumidores e empresas produtoras de bens e prestadoras de serviços.15 É importante salientar que o processo civil coletivo nos Estados Unidos também possui outros instrumentos processuais, tais como as ações coletivas ajuizadas pelas associações, as ações coletivas ajuizadas pelos entes públicos e os mecanismos de reunião de demandas repetitivas através das ordens de gerenciamento de casos ('Case Management Orders').16 Contudo, a Class Action é a grande protagonista do sistema de tutela coletiva de direitos por conta justamente das dimensões dessas ações coletivas e das enormes vantagens proporcionadas pelos ganhos de escala para a proteção efetiva dos direitos dos interesses lesados.17 Aliás, por conta justamente dos incentivos econômicos, tais ações coletivas quase sempre se encerram através de um acordo coletivo com a definição da quantia em dinheiro a ser paga aos lesados a título de compensação e com a definição de uma fórmula para cálculo de indenização individual ou de um procedimento para determinações dos pagamentos a serem feitos caso-a-caso (ou uma combinação de fórmula e procedimento).18 O objetivo desses acordos globais é solucionar integralmente todas as questões litigiosas decorrentes das circunstâncias fáticas geradoras da responsabilização coletiva do réu, pondo término ao conflito coletivo.19 Guido Calabresi, Professor da Faculdade de Direito de Yale e Magistrado nos Estados Unidos, elogia justamente a capacidade do sistema de tutela coletiva de proporcionar reparação através do envio de um crédito automático para cada lesado pelo envio de um cheque através do correio com o pagamento da indenização pelos danos sofridos, sem que tenha sido necessário ingressar diretamente na ação coletiva para se beneficiar do provimento jurisdicional ou do acordo coletivo.20 O Collective Redress europeu Em contraste com o paradigma estadunidense da Class Action, a União Europeia tem desenvolvido no século XXI um modelo alternativo de tutela coletiva de direitos: o Collective Redress europeu. Em abril de 2018, na esteira do escândalo do dieselgate,21 a Comissão Europeia lançou uma nova proposta para os consumidores - 'A New Deal for Consumers', cujo objetivo principal era justamente o fortalecimento dos direitos do consumidor e da sua aplicação.22 Além de mais transparência para consumidores nas plataformas digitais e no comércio eletrônico, tal iniciativa pretendia afirmar a necessidade de desenvolvimento de novos mecanismos para que os consumidores possam proteger seus direitos e obter compensação através de uma ação representativa com características europeias23. Ao reconhecer que o cenário do escândalo do dieselgate demonstrou a inexistência de mecanismos de reparação coletiva do direito comunitário da União Europeia, a Comissão Europeia anunciou, contudo, que o modelo emergente deve ter garantias fortes, que o tornará diferente das class actions: "ações representativas não serão permitidas aos escritórios de advocacia, mas somente para associações de consumidores que não buscam o lucro e que devem estar sujeitas a um critério estrito de admissibilidade, monitoradas pelo poder público".24 O novo sistema deveria assegurar que os consumidores tenham seus direitos protegidos e recebam suas indenizações, sem que haja o risco de litígios abusivos ou desprovidos de méritos.25 Até o presente momento, contudo, o modelo europeu de reparação coletiva padece de fragilidades quanto à viabilidade econômica das ações e existem inúmeras incertezas sobre o financiamento da tutela coletiva de direitos: quem financia, quanto custa e como o mecanismo de agregação de interesses adotado pela legislação proporciona incentivos necessários para os relevantes atores jurídicos ingressarem com suas demandas coletivas.26 No Reino Unido, por exemplo, houve um caso de transgressão coletiva aos torcedores de futebol por conta de manipulação de preços de camisas de times de futebol em 2001, em que a associação de defesa dos consumidores Which? estimou que cerca de dois milhões de consumidores foram lesados em cerca de 20 libras esterlinas em média, o que justificava, em tese, o ajuizamento de uma ação coletiva do ponto de vista econômico e da abrangência da lesão coletiva.27 Contudo, na prática, como o modelo britânico exigia que os consumidores expressamente manifestassem seu interesse em ser incluídos na tutela coletiva de direitos, a ação judicial teve efeitos somente com relação a 130 consumidores que efetivamente subscreveram um termo de interesse e optaram por entrar ('opt in').28 No final, um total de cerca de 600 pessoas procuraram a associação de consumidores e um acordo coletivo foi celebrado para fins de ressarcimento, tendo o pagamento total sido estimado em 18.000 libras.29 Tais dificuldades não se limitam ao Reino Unido, sendo observadas em outras jurisdições europeias, como a Alemanha, França, Bélgica e na Escandinávia, por exemplo.30 Esses problemas não foram alterados pela recém aprovada Diretiva 1028/2020 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de novembro de 2020, que prevê ações coletivas por entidades qualificadas previamente aprovadas pelos Estados-Membros (Artigo 4º), financiadas com recursos públicos (Artigo 20, n. 2) e a manifestação do consentimento expresso ou tácito dos consumidores individuais (Artigo 9º, n. 2), sendo admissível a cobrança de taxas de adesão para participar da ação coletiva (Artigo 20, n. 3).31 Por um lado, o modelo europeu de Collective Redress expressa uma preocupação com os custos e a litigiosidade atribuída à Class Action estadunidense.32 Por outro lado, os instrumentos de reparação coletiva europeus enfrentam dificuldades em termos do mecanismo para agregação de interesses e dos problemas para financiamento das demandas de massa, em especial nos casos de pequeno valor médio do interesse individual lesado.33  Não por acaso, Rachel Mulheron defende a necessidade de adoção do regime de agregação de interesses opt out ao invés de opt in,34 tendo celebrado uma reforma legislativa de 2015 no Reino Unido nesse sentido.35 A ação civil pública ibero-americana Além dos modelos da Class Action e de Collective Redress, existe um modelo ibero-americano de tutela coletiva de direitos, cujo paradigma é a ação civil pública brasileira. Historicamente originado pela ação popular em 1934,36 o processo coletivo brasileiro se aperfeiçoou com o advento da Lei da Ação Civil Pública37 e do Código de Defesa do Consumidor.38 Tal modelo serviu de inspiração para o advento do processo coletivo em Portugal, na Espanha e na América Latina em geral.39 Foi criado, inclusive, um Código Modelo de Processos Coletivos, que, como bem salientado por Elton Venturi, supriu uma lacuna nos países ibero-americanos, tendo sido uma iniciativa extremamente feliz para o fomento e desenvolvimento do processo civil coletivo nessas jurisdições.40  As características particulares do nosso modelo são distintas da Class Action estadunidense e do Collective Redress europeu.41 Considerações finais O presente artigo delineou os três modelos de tutela coletiva de direitos a partir da tradição da Class Action, do Collective Redress e da ação civil pública. O paradigma da ação de classe inspirou o desenvolvimento da tutela coletiva de direitos em outros países da common law, tal como Canadá42 e Austrália, por exemplo.43 No Reino Unido, por outro lado, o modelo de tutela coletiva de direitos seguia as diretrizes europeias do Collective Redress, sendo certo que a proteção dos direitos coletivos dos consumidores têm sido insuficiente, tal como evidenciado por inúmeros exemplos de transgressões coletivas sem a devida reparação.44 Existe, aliás, a sugestão doutrinária de que o modelo brasileiro e ibero-americano poderiam servir de paradigma para os países da Civil Law.45 Nesse contexto, aliás, e diante da frustração com a efetividade do modelo europeu, Miguel Sousa Ferro, Professor na Universidade de Lisboa, se pergunta, inclusive, se Portugal irá mostrar o caminho para a Europa com relação aos desafios e possibilidades da responsabilização coletiva.46 __________ 1 A respeito do tema, aliás, confira-se FORTES, Pedro Rubim Borges. Collective action in comparative and empirical perspective: towards a socio-legal theory. 2016. Tese de Doutorado. University of Oxford.  2 YEAZELL, Stephen C. et al. From medieval group litigation to the modern class action. Yale university press, 1987.  3 HENSLER, Deborah R. et al. Class action dilemmas: Pursuing public goals for private gain. Rand Corporation, 2000.  4 HODGES, Christopher. The reform of class and representative actions in European legal systems: A new framework for collective redress in Europe. Bloomsbury Publishing, 2008.  5 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, a.  6 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, b, 1, a.  7 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, b, 1, b.  8 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, b, 2.  9 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, b, 3.  10 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, c, 1.  11 Federal Rules of Civil Procedure, Rule 23, c, 2.  12 HENSLER, Deborah, The Globalization of Class Actions: An Overview. in HENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Magdalena TULIBACKA (editors), The Globalization of Class Actions. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, volume 622, March (2009), p. 8.  13 Idem, 8-9.  14 Idem, 9.  15 Idem.  16 PACE, Nicholas M., Group and Aggregate Litigation in the United States. in HENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Magdalena TULIBACKA (editors), The Globalization of Class Actions. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, volume 622, March (2009), 33-36.  17 HENSLER, Deborah R. et al. Class action dilemmas: Pursuing public goals for private gain. Rand Corporation, 2000.  18 HENSLER, Deborah, The Globalization of Class Actions: An Overview. in HENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Magdalena TULIBACKA (editors), The Globalization of Class Actions. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, volume 622, March (2009), p. 20.  19 Idem.  20 CALABRESI, Guido, Class Action in the U.S. experience: The Legal Perspective, BACKHAUS Jürgen, Alberto CASSONE, and Giovane RAMELLO (editors), The Law and Economics of Class Actions in Europe: Lessons From America. Cheltenham, Edward Elgar (2012), p. 10-11.  21 FORTES, Pedro Rubim Borges; OLIVEIRA, Pedro Farias. A insustentável leveza do ser? A quantificação do dano moral coletivo sob a perspectiva do fenômeno da ilicitude lucrativa e o'caso Dieselgate'. Revista IBERC, v. 2, n. 3, 2019.  22 Disponível aqui.  23 Idem.  24 Idem.  25 Idem.  26 CAMERON, Camille, Jasminka KALAJDZIC, and Alon KLEMENT, Economic Enablers, inHENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Ianika, TZANKOVA, Class Actions in Context: How Culture, Economics, and Politics Shape Collective Litigation. Cheltenham: Edward Elgar (2016), p. 137.  27 HODGES, Christopher. The Reform of Class and Representative Actions in European Legal Systems: A New Framework for Collective Redress in Europe. Oxford: Hart (2008), p. 24-25.  28 Idem, p. 25.  29 Idem, p. 25-26.  30 LEIN, Eva et al. Collective Redress in Europe: Why and How?. British Institute of international and comparative law, 2015.  31 Directive (EU) 2020/1828 of the European Parliament and of the Council of 25 November 2020 on representative actions for the protection of the collective interests of consumers and repealing Directive 2009/22/EC.  32 HODGES, Christopher, European Union Legislation, in HENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Magdalena TULIBACKA (editors), The Globalization of Class Actions. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, volume 622, March (2009), p. 81.  33 Idem, p. 82.  34 MULHERON, Rachael. Justice Enhanced: Framing an Opt-Out Class Action for England. The modern law review, v. 70, n. 4, p. 550-580, 2007.  35 MULHERON, Rachael. The United Kingdom's New Opt-Out Class Action. Oxford Journal of Legal Studies, v. 37, n. 4, p. 814-843, 2017.  36 MEIRELLES, Hely Lopes; WALD, Arnoldo; DA FONSECA, Rodrigo Garcia. Mandado de segurança, ação popular, ação civil pública, mandado de injunção," habeas data". Revista dos Tribunais, 1989.  37 MAZZILLI, Hugo Nigro. A defesa dos interesses difusos em juízo. São Paulo, 1995.  38 GRINOVER, Ada Pellegrini et al. Código brasileiro de defesa do consumidor. Forense Universitária, 2007.  39 GRINOVER, Ada Pellegrini; WATANABE, Kazou; MULLENIX, Linda. Os processos coletivos nos países de civil law e common law: uma análise de direito comparado. 2011.  40 VENTURI, Elton, Introdução. GIDI, Antonio; MAC-GREGOR, Eduardo Ferrer. Comentários ao código modelo de processos coletivos: um diálogo ibero-americano. Juspodivm, 2009. p. 21.  41 GRINOVER, Ada Pellegrini, Brazil. in HENSLER, Deborah, Christopher HODGES, and Magdalena TULIBACKA (editors), The Globalization of Class Actions. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, volume 622, March (2009), p. 63-67.  42 KALAJDZIC, Jasminka. Class actions in Canada: The promise and reality of access to justice. UBC Press, 2018.  43 MULHERON, Rachael. The class action in common law legal systems: a comparative perspective. Bloomsbury Publishing, 2004.  44 HODGES, Christopher. The reform of class and representative actions in European legal systems: A new framework for collective redress in Europe. Bloomsbury Publishing, 2008.  45 GIDI, Antonio. Class actions in Brazil-a model for civil law countries. The American Journal of Comparative Law, v. 51, n. 2, p. 311-408, 2003; GIDI, Antonio. The class action code: a model for civil law countries. In: BACKHAUS Jürgen, Alberto CASSONE, and Giovane RAMELLO (editors), The Law and Economics of Class Actions in Europe: Lessons From America. Cheltenham, Edward Elgar (2012), 2012. 46 FERRO, Miguel Sousa. Collective redress: will Portugal show the way. Journal of European competition law & practice, v. 6, n. 5, p. 299-300, 2015.
As regras contratuais são geralmente classificadas dicotomicamente como, de um lado, cogentes ou impositivas (mandatory) e, de outro, supletivas (default), sendo as primeiras inalteráveis e as últimas alteráveis pela vontade das partes. Ian Ayres, professor da Faculdade de Direito de Yale, propõe uma categoria intermediária: a "sticky default" rule, aqui traduzida como regra supletiva aderente ou "regra-padrão aderente"1. No texto desta coluna, apresento resumidamente essa interessante e alternativa figura de regulação contratual. O fundamento usual para restrições impositivas à liberdade contratual é a proteção das pessoas dentro (paternalismo) ou fora (externalidades) do contrato. Ayres defende então que, quando as preocupações relativas às externalidades e ao paternalismo não são suficientes para justificar regras cogentes, os legisladores poderiam, por vezes, administrar e amenizar essas preocupações criando padrões aderentes, usando o que ele chama de regras "impeditivas" de alteração ("impeding" altering rules), as quais seletivamente obstam a modificação das regras supletivas, aumentando artificialmente sua dificuldade.2 Propriamente concebidas, as regras supletivas aderentes representam uma categoria intermediária entre as regras supletivas e as regras imperativas tradicionais. As primeiras tentam maximizar a autonomia privada. Os padrões aderentes, em oposição, tentam impedir algumas partes que, se não fossem pelas regras "impeditivas" de alteração, teriam optado por afastar a regra supletiva. Utilizando-se das regras supletivas aderentes, os legisladores querem impedir que algumas partes privadas alcancem resultados contratuais específicos. E, finalmente, as regras impositivas ou cogentes visam impedir todas as partes de alcançarem certos desfechos contratuais.3 Os padrões aderentes são, como afirma Ayres, metaforicamente uma espécie de "estação intermediária" no caminho para as normas cogentes. São regras quase impositivas que tentam produzir um obrigatório equilíbrio de separação, por meio do qual apenas um número reduzido de contratantes opta por consequências legais que os legisladores desfavorecem. Em comparação com as regras impositivas, os padrões aderentes, com suas regras impeditivas de alteração, garantem às partes contratantes maior liberdade. Mas, em comparação com as regras supletivas tradicionais, os padrões aderentes restringem a liberdade negocial das partes.4 É razoável, afirma Ian Ayres, questionar por que o legislador preferiria padrões aderentes a regras impositivas. Afinal, se o legislador está preocupado com externalidades negativas ou com a capacidade das partes contratantes de se protegerem de certos tipos de regulação que se afastem do regramento padrão, por que não simplesmente proibir de todo a contratação desses resultados tidos por desvantajosos? A resposta é, segundo Ayres, a heterogeneidade. As partes contratantes podem obter benefícios individuais diferentes com as contratações, podem produzir montantes distintos de externalidades, ou podem ainda gerar preocupações paternalistas heterogêneas. Afirma, então, que "heterogeneidade desses tipos pode produzir contextos nos quais é eficiente erguer barreiras impeditivas que desproporcionalmente permitem o afastamento da regra padrão onde há maiores benefícios privados, menores externalidades negativas, ou menores preocupações paternalistas." O objetivo das regras impeditivas de alteração é, portanto, bloquear desproporcionalmente o afastamento das regras supletivas mais socialmente problemáticas, ao mesmo tempo em que não impede as alterações socialmente menos problemáticas.5 Após apresentar um exemplo numérico para demonstrar a superior eficiência das regras supletivas aderentes em comparação com as normas supletivas e imperativas tradicionais6, Ian Ayres analisa as possíveis aplicações da estratégia desses padrões. Entre outros exemplos, afirma que "uma maneira direta de os formuladores de políticas induzirem o tipo de equilíbrio de separação buscado é impor diferentes regras de alteração a diferentes tipos de contratantes." Assim, "ao impor formalidades mais pesadas como pré-requisito para a contratação, a lei pode tornar mais difícil para os jovens ou os menos sofisticados alcançarem certos fins contratuais." Regras de alteração personalizadas que tratam diferentes contratados de maneira distinta podem tornar os padrões mais aderentes para subconjuntos de preocupação.7 No Brasil, a doutrina praticamente ainda não atentou para a figura das regras supletivas aderentes e o seu potencial para a regulação contratual.8 Nada obstante, apesar da falta de um maior reconhecimento e tratamento teórico, é possível identificar na legislação brasileira manifestações desse tipo de regra. Um exemplo, constante na Lei de Arbitragem, é a garantia do acesso ao poder judiciário. Por relevantes razões, o legislador quer manter o judiciário acessível a todos os jurisdicionados. E isso leva a que nutra uma certa reserva em relação às cláusulas compromissórias, por elas terem o efeito de "fechar" em parte para o contratante a "porta" de acesso ao judiciário. Nos contratos de consumo, em relação aos quais preocupações paternalistas são mais fortes, o legislador foi bem rigoroso e, por meio de regra cogente tradicional, simplesmente vedou a previsão de "utilização compulsória de arbitragem" (art. 51, VII, CDC). Contudo, em relação a contratos de adesão que não sejam de consumo, em relação aos quais as preocupações paternalistas existem mas são mais brandas, o legislador previu apenas a seguinte regra "impeditiva" de alteração: "Nos contratos de adesão, a cláusula compromissória só terá eficácia se o aderente tomar a iniciativa de instituir a arbitragem ou concordar, expressamente, com a sua instituição, desde que por escrito em documento anexo ou em negrito, com a assinatura ou visto especialmente para essa cláusula." (art. 4.º, § 2.º, Lei de Arbitragem). À luz dessa previsão, a possibilidade de acesso ao judiciário figura como um padrão aderente, cujo afastamento é possível, mas o legislador dificultou ao exigir dos contratantes a observância de formalidades adicionais. A regra supletiva aderente merece maior estudo e divulgação em nosso meio. Caso bem apreendida e aplicada, tem o potencial de ser uma via para melhor conciliação de relevantes princípios tradicionalmente em tensão, como a liberdade negocial, de um lado, e a tutela da parte vulnerável, de outro. *Daniel Dias é professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico. __________ 1 Bruno Bodart traduz "sticky default rules" como "regras-padra~o aderentes" (BODART, Bruno. Uma análise econômica do direito do consumidor: como leis consumeristas prejudicam os mais pobres sem consumidores. Economic Analysis of Law Review, v. 8, n. 1, p. 125, jan.-jun., 2017). 2 AYRES, Ian. Regulating Opt-Out: An Economic Theory of Altering Rules. The Yale Law Journal, vol. 121, p. 2084, 2012. 3 AYRES, op. cit., p. 2087. 4 AYRES, op. cit., p. 2087-2088. 5 AYRES, op. cit., p. 2088. 6 AYRES, op. cit., p. 2088 e ss. 7 AYRES, op. cit., p. 2093. 8 BODART, op. cit., p. 125.
segunda-feira, 8 de fevereiro de 2021

Redes Sociais: Platforms ou Publishers? - Parte I

Os recentes acontecimentos envolvendo a suspensão e subsequente banimento das contas do ex-presidente norte-americano Donald Trump das redes sociais Facebook e Twitter, reacenderam o debate a respeito da natureza dos serviços por elas prestados. Essa discussão possui enormes repercussões jurídicas, em especial, no âmbito da responsabilidade civil. A grande questão que surge relaciona-se com a possibilidade de imputação de responsabilidade civil às empresas de tecnologia pelo conteúdo e pela origem das postagens dos usuários das redes sociais por elas viabilizadas. O tema é altamente polêmico e encerra uma multiplicidade de fatores dos quais depende o tratamento jurídico a ser aplicado. Nessa primeira parte do texto que reservamos à coluna, pontuaremos alguns desses fatores segundo a ótica do sistema de justiça norte-americano. Na segunda parte, analisaremos o tema sob o ponto de vista do sistema de justiça brasileiro. O debate aberto nos EUA iniciou-se pela caracterização das empresas de tecnologia, em um primeiro momento, como Platforms - instituições neutras que tão somente permitem a comunicação e a distribuição de informações entre seus usuários, não tendo qualquer ingerência sobre o seu conteúdo ou procedência. Gradativamente, contudo, na exata medida da crescente repercussão da publicação de conteúdos considerados abusivos, e do alcance de seus efeitos nocivos que instauraram um panorama de caos, tanto o Parlamento quanto o Poder Judiciário vêm colocando em xeque o entendimento até então consolidado. Essa alteração está se dando a partir da caracterização das redes sociais como verdadeiras "Publishers" - instituições que não apenas veiculam, mas editam e controlam conteúdos e fontes das informações postadas pelos usuários. Para demonstrar essa tendência, façamos uma breve retrospectiva da orientação jurisprudencial das Cortes norte-americanas a respeito da natureza jurídica das empresas de tecnologia que hospedam redes sociais. A preocupação com a publicação de conteúdos abusivos em ambiente online foi discutida originalmente no caso Cubby Inc. V CompuServe, Inc., em 1991 (Tribunal do Distrito Sul de Nova Iorque). Nesse caso, estabeleceu-se importante precedente ao se aplicar, de forma bastante restritiva, a Lei de Difamação aos provedores de serviço de internet. Até então, referida legislação era aplicada a casos de cópias impressas de trabalhos escritos. O caso em questão versou sobre a alegação de difamação feita pela empresa Cubby contra a CompuServe, um provedor de serviços de Internet que hospedava conteúdo supostamente difamatório em um de seus fóruns. O Tribunal Nova-Iorquino considerou que, embora a CompuServe efetivamente hospedasse conteúdo difamatório, ela seria meramente uma distribuidora do conteúdo, não se caracterizando como editora. Assim, como simples distribuidora, a CompuServe só poderia ser responsabilizada por difamação se soubesse, ou tivesse razão para saber, da natureza difamatória do conteúdo distribuído.1 Outro precedente que merece destaque envolveu o caso Stratton Oakmont, Inc. v Prodigy Services Co., no ano de 1995 (Suprema Corte do Estado de Nova York). Nesse julgamento, considerou-se que os provedores de serviços online poderiam ser responsabilizados pelas postagens de seus usuários, desde que exercessem efetivo controle editorial sobre as mesmas. A Stratton Oakmont, uma empresa de investimento de valores mobiliários, acusou de difamação a Prodigy Services CO. e um usuário anônimo do fórum Money Talk (hospedado pela Prodigy), por um post que imputava à Stratton o cometimento de atos criminosos e fraudulentos durante a oferta pública inicial de ações da empresa Solomon-Page Ltd. Em que pese a Prodigy ter utilizado em sua linha de defesa a decisão do caso Cubby Inc. V CompuServe, Inc. de1991, a Suprema Corte do Estado de Nova York firmou o entendimento de que a Prodigy era responsável pela veiculação da difamação, na medida em que exercia controle editorial sobre as postagens do Money Talk de três formas: 1) postando diretrizes de conteúdo para os usuários; 2) aplicando essas diretrizes como "líder do Conselho" e 3) utilizando um software de triagem projetado para remover linguagem ofensiva.2 Como se percebe, a disparidade de entendimento entre as Cortes nos dois casos resultou da diferença na interpretação a respeito da natureza jurídica da prestação do serviço dos provedores online, ora atuando como platforms (caso de 1991), ora atuando como publishers (caso de 1995). No ano de 1996, uma importante inovação legislativa buscou definir as empresas provedoras de "serviços interativos de computador" como neutral platforms. Tratou-se da Section 230, incluída no Communications Decency Act (CDA) do U.S Code, por via da qual as companhias foram isentadas de responsabilidade no tocante ao conteúdo publicado por usuários: 47 U.S.C. § 230, (c)(1): "No provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider".3 Nada obstante a caracterização legislativa das empresas de tecnologia como platforms - meras hospedeiras do material inserido pelos usuários -, foi-lhes assegurada autonomia para moderar amplamente o conteúdo das postagens. Por tal motivo, para a utilização dos serviços das plataformas online, os usuários devem concordar com os "termos de serviço, política de privacidade e regras". A partir do "acordo de usuário do serviço" criam-se direitos e obrigações para provedores e usuários. Até os dias atuais, nos "termos de uso, serviços e políticas de conteúdo" divulgados por empresas de tecnologia como o Facebook e o Twitter, é comum a descrição de que elas atuariam como neutral platforms, sendo os seus usuários cientificados acerca da sua exclusiva responsabilidade sobre os conteúdos postados - sobretudo por se tratarem de mensagens pelos mesmos elaboradas, e que não representam a opinião das operadoras. Contudo, os provedores se reservam o direito de prever limitações quanto ao conteúdo e comportamentos permitidos na plataforma, sob pena de suspensão ou a cessação da conta, residindo justamente nessa espécie de poder moderador uma das maiores controvérsias a respeito da natureza dos serviços prestados pelas empresas. O paradoxo é evidente quando se imagina uma plataforma pretensamente neutra, mas que se confere o direito de analisar o conteúdo nela inserido para fins de suprimi-lo, ou até mesmo de suspender ou banir o usuário responsável pela postagem. "Se o conceito de plataforma soa confuso, tal confusão decorre sobretudo do poder da metáfora".4 Como se percebe, a autoidentificação dos provedores de redes sociais como plataformas é estratégica, como aponta Tarleton Gillespie, professor assistente da Cornell University e pesquisador na área de Comunicações da Microsoft: "No contexto dessas demandas financeiras, culturais e regulatórias, essas empresas estão trabalhando não apenas politicamente, mas também discursivamente para enquadrar seus serviços e tecnologias. Elas fazem isso estrategicamente, para se posicionar, para buscar lucros atuais e futuros, para encontrar um ponto ideal regulatório entre as proteções legislativas que as beneficiam e as obrigações que não as beneficiam, bem como para estabelecer um imaginário cultural dentro do qual seus serviços façam sentido".5 Por tais razões, ganha força no debate a respeito da natureza jurídica dos provedores de redes sociais o conceito de publisher. Enquanto editoras, as empresas passam a ser responsáveis pelo conteúdo publicado em suas páginas virtuais, muitas vezes controlado por um trabalho de editoração que envolve a verificação da credibilidade das fontes e a checagem dos fatos, dentre outras prerrogativas.6 A aplicação da Section 230 do U.S.Code vem gerando inúmeros debates, já a partir do contexto em que foi criada. Não existia, à época (1996), nenhuma das famosas redes sociais tais como o Facebook e o Twitter, dentre outras. A intenção legislativa foi a de encorajar as empresas de tecnologia a, pelo menos, tentar moderar o conteúdo de seus sites, isentando-as, todavia, de qualquer responsabilidade civil pelo que os usuários postavam online.7 Vale dizer, a Section 230 originalmente serviu como escudo de responsabilidade para Provedores de Serviços de Internet (ISPs), em uma época em que o acesso à internet era viabilizado pela contratação (assinaturas) de empresas como a AOL e a CompuServe. A rede mundial de computadores acabava de ser inventada. Nessa conjuntura ainda rudimentar da internet, a regulação protetiva das plataformas online teve sua razão de ser, na medida em que ainda não se tinha ideia a respeito da projeção que a comunicação online viria a tomar. Nesse ambiente, o exercício do poder moderador a respeito do conteúdo postado pelos usuários das operadoras era visto como eventual e excepcional. Todavia, na medida da globalização e da facilitação das comunicações online, bem como do surgimento do fenômeno revolucionário das redes sociais, tanto a natureza jurídica dos serviços prestados pelas operadoras de internet quanto a necessidade e os limites do controle que elas podem ou devem exercer sobre o conteúdo das postagens de seus usuários, tornam-se temas hipercomplexos.  Quando o Facebook e o Twitter passaram a triar as postagens do ex- presidente Donald Trump, mediante checagem dos fatos e da origem das informações inseridas, as empresas foram acusadas de prática de censura, tendo sido articuladas algumas tentativas infrutíferas de revogação da legislação antes referida.8 Nesse sentido, Donald Trump chegou a editar uma Ordem Executiva (n.º 13925, publicada em junho de 2020), estabelecendo algumas diretrizes para a mudança da Section 230, com vistas ao combate e à prevenção da censura nas redes sociais. Segundo referida Ordem Executiva, "Twitter, Facebook, Instagram, and Youtube wield immense, if not unprecedented, power to shape the interpretation of public events; to censor, delete, or disappear information: and to control what people see or do not see".9 No mesmo contexto, ainda que por razões diversas, analisando a necessidade de mudança da Section 230, o Partido Democrata defende atualmente a necessidade de uma moderação mais efetiva por parte dos provedores online, sobretudo quando se trata de conteúdo prejudicial. Em entrevista recente, o presidente norte-americano Joe Biden manifestou-se no sentido de que a Section 230 deveria ser revogada em razão de a desinformação online ocorrer de forma desenfreada. Ao se referir especificamente ao Facebook, concluiu: "There is no editorial impact at all on Facebook. None. None whatsoever. It's irresponsible. It's totally irresponsible".10 Como se percebe, a discussão sobre a atual aplicação da Section 230 vem despertando o interesse tanto de Democratas como de Republicanos, havendo aparente consenso de que não é mais possível tolerar no sistema de justiça dos EUA uma completa ausência de responsabilidade por parte das Big Techs por quaisquer conteúdos postados nas redes sociais que não apenas hospedam, mas também passam a controlar. A necessidade de responsabilização das plataformas de redes sociais pelo conteúdo que veiculam foi inclusive aventada por Mark Zuckerberg, ao afirmar que o debate acerca da Section 230 mostra que as pessoas estão insatisfeitas: "People want to know that companies are taking responsability for combating harmful contente - especially ilegal activity - on their platforms".11 A grande questão atualmente posta, assim, diz respeito aos rumos que devem ser observados para uma nova regulação do assunto, sobretudo no que concerne aos tênues e obscuros limites entre a moderação dos conteúdos postados nas redes sociais pelas próprias empresas provedoras e a censura.  Por um lado, a possibilidade de as redes sociais controlarem os conteúdos postados pelos seus usuários aparentemente não encontra obstáculo na garantia constitucional de liberdade de expressão. É que a garantia do free speech - prevista na Primeira Emenda à Constituição e basilar à democracia americana -, não teria incidência imediata e direta nas relações entre particulares. Pela doutrina da state action - amplamente respaldada pela jurisprudência da Suprema Corte os direitos e garantias fundamentais previstos constitucionalmente aplicam-se, como regra, apenas no âmbito das relações envolvendo o Poder Público, não se estendendo às relações entre os particulares.12 Por outro lado, ao se perceber o papel que as redes sociais passaram a desempenhar, em contexto mundial, parece claro que não se trata tão somente de uma regulação de relações privadas envolvendo provedores e usuários das redes sociais. Na medida em que as redes sociais passam a constituir fonte de informação primária para bilhões de usuários, e são utilizadas como instrumento preponderante (senão único) de divulgação de informações oficiais de governos, há muito mais em jogo do que lesões à honra e à dignidade individual por injúrias e difamações postadas abusivamente na internet.  Trata-se de ponderar, antes de tudo, a respeito de como direitos e garantias fundamentais, individuais e sociais, podem e devem ser protegidos contra o uso indiscriminado das redes sociais como instrumento de vilipêndio de valores inatos à humanidade, como a saúde, a vida, a democracia e a verdade. Nesse sentido, parece evidente que o "poder moderador", há muito atribuído nos Estados Unidos da América às operadoras de internet, não apenas se revela insuficiente, como altamente questionável, na medida em que referidas companhias passaram a dominar praticamente toda a infraestrutura de comunicação, desempenhando um papel de inegável interesse público.13 A questão fundamental que se coloca diz respeito aos enormes perigos representados pelo controle privado do conteúdo das informações e das comunicações online, por parte de poucos e empoderados grupos corporativos, que passam, assim, a praticamente substituir o Estado na regulação da comunicação entre as pessoas.    *Thaís G. Pascoaloto Venturi tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná - UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil - IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia. __________ 1 Cubby, Inc. v. CompuServe, Inc. U.S. District Court for the Southern District of New York - 776 F. Supp. 135 (S.D.N.Y. 1991) October 29, 1991. Disponível aqui. Acesso em 22 de janeiro de 2021. 2 Stratton Oakmont, Inc. v. Prodigy Services Co. Supreme Court, Nassau County, New York, Trial IAS Part 34. May 24, 1995. Disponível aqui. Acesso em 22 de janeiro de 2021. 3 Tradução livre: United States Code, Capítulo 47, Seção 230, item "c", subitem 1: "Nenhum provedor ou usuário de um serviço de computador interativo deve ser tratado como editor ou locutor de qualquer informação fornecida por outro provedor de conteúdo de informação". 4 MADRIGAL, Alexis C. "The 'Platform' Excuse is Dying". The Atlantic (online). Publicado em jun. 2019. Disponível aqui. Acesso em 26 janeiro de 2021. 5 GILLESPIE, Tarleton. "The Politics of 'Platforms'". New Media & Society. Vol. 12, n. 3 (2010). Disponível aqui. Acesso em 26 janeiro de 2021. 6 Como explicam RABAÇA, Carlos Alberto e BARBOSA, Gustavo Guimarães (Dicionário de comunicação. Rio de janeiro, Editora Elsevier, 2ª ed. 2002), os diversos modelos de mídias envolvem o trabalho de criadores de conteúdo, tais como jornalistas, escritores, colunistas e especialistas. Todavia, dentro deste mesmo mercado existem os chamados publishers, segundo a nomenclatura do jornalismo anglo-saxão e norte-americano. No Brasil, o publisher é conhecido pelo trabalho de editoração. Entender as diferentes funções de publishers e criadores de conteúdo é fundamental para saber, dentro das publicações de hoje, o que é inteiramente original e o que é trabalhado para publicação. Muitos veículos de comunicação são especialistas em conteúdo, enquanto outros preferem trabalhar melhor a informação para o público final. A escolha depende dos editores e dos chefes de cada um dos meios de comunicação, assim como das práticas de seus subordinados. 7 LERMAN, Rachel. Social media liability law is likely to be reviewed under Biden. Section 230 has become a favorite target of President Trump. Democrats have their own gripes about it. The Whashington Post, Jan. 18, 2021. 8  "Em dezembro, a demanda de Trump aos legisladores para revogar a Seção 230 veio como uma ameaça: ele vetaria um projeto de lei anual de gastos com defesa de US$741 bilhões se o Congresso se recusasse a revogá-la. A seção 230, que é um presente de proteção de responsabilidade dos Estados Unidos para Big Tech, é uma séria ameaça à nossa Segurança Nacional e Integridade Eleitoral, Trump tuitou tempos atrás (tradução livre)." LERMAN, Rachel. Social media liability law is likely to be reviewed under Biden. Section 230 has become a favorite target of President Trump. Democrats have their own gripes about it. The Whashington Post, Jan. 18, 2021. 9 Federal Register, Vol.85, N. 106, Tuesday, June 2, 2020. Presidential Documents. Executive Order 13925 - Preventing Online Censorship. 10 "Should be Revoked because of misinformation running rampant online, but has since steere clear of the topic". Joe Biden Says age is just a number. The New York Times. January - 2021. 11 LERMAN, Rachel. Social media liability law is likely to be reviewed under Biden. Section 230 has become a favorite target of President Trump. Democrats have their own gripes about it. The Whashington Post, Jan. 18, 2021. 12 Sobre o tema, vide nossa coluna anteriormente publicada aqui no Migalhas: "A state action doctrine norte-americana e a eficácia horizontal dos direitos fundamentais nas relações privadas no Brasil". 13 "It was a remarkable demonstration of private power over the public sphere and represents its own threat to democracy: top-down, private control of speech in the modern public square". TEACHOUT, Zephyr. We're better off without Trump on Twitter. And worse off with Twitter in charge. When companies dominate our communications infrastructure, their decisions are no longer "private". The Washington Post, jan. 14, 2021.
"The single biggest problem with communication is the illusion that it has taken place"(George Bernard Shaw) Dezenas de milhares de pequenas empresas receberão pagamentos de seguro cobrindo perdas com o primeiro lockdown nacional, após decisão da Suprema Corte da Inglaterra favorável a pequenas empresas que recebam pagamentos decorrentes de apólices de seguro por interrupção de negócios. Trata-se do caso Financial Conduct Authority & Ors v Arch Insurance (UK) Ltd & Ors [2021] UKSC 1 (15 January 2021). O veredicto consumou uma vitória histórica, alcançando cerca de 60 seguradoras que venderam produtos semelhantes, sendo que todos os sinistros válidos serão liquidados o mais rápido possível. Para algumas empresas, pode ser uma tábua de salvação, permitindo que sobrevivam à crise do coronavírus. A decisão pode custar ao setor de seguros centenas de milhões de libras. Do que se trata a decisão? O caso foi claramente uma espécie de "opinião consultiva" fornecida pela Suprema Corte a pedido de um regulador governamental (Financial Conduct Authority) e uma série de seguradoras relacionadas às questões sobre se as apólices de seguro de "business interruption" se aplicam aos custos incorridos pela suspensão/ encerramento de atividades de empresas devido as exigências do lockdown imposto pelo governo do Reino Unido. No lockdown da última primavera, um enorme conjunto de pequenas empresas fizeram reivindicações por meio de apólices de seguro contra interrupção de negócios por perda de rendimentos quando tiveram que fechar. Não obstante a comprovação do pagamento do prêmio anual, muitas seguradoras se recusaram a pagar, argumentando que apenas algumas apólices mais detalhadas possuíam cobertura para eventos sem precedentes, como a Covid-19. Assim, foi acordado que uma seleção de expressões incluídas em apólices deveria ser testada em tribunal, estabelecendo-se os parâmetros para o que seria considerado uma reivindicação válida. A complexa decisão cobriu questões como cláusulas de doenças - "disease clauses" - se as empresas tiveram acesso negado às suas propriedades e o momento em que se verificou a perda dos ganhos econômicos. A decisão da Suprema Corte fornece orientação confiável para as apólices que estavam em discussão e, potencialmente, para outras semelhantes que não fizeram parte do litígio, alcançando um conjunto mais amplo de 700 apólices, potencialmente afetando 370.000 pequenas empresas, cobrindo os seus principais custos, sobremaneira os alugueis, e os prejuízos de pequenas empresas forçadas a fechar enquanto aguardavam a decisão. Transcendendo o resultado econômico da decisão, não podemos ignorar a relevante discussão sobre o nexo causal. A maioria dos juízes considerou que, para fins de seguro, a abordagem aceita é perguntar se há "causa imediata" entre o evento e a apólice. A resposta para o contrato de seguro não será a mesma do que a obtida em questões de responsabilidade civil. O conceito de ser "uma causa" é distinto de outra questão, a saber, quais ligações causa-consequência são relevantes no contexto jurídico específico. No ilícito de negligência (o tort mais comum do common law), essa questão é rotulada como "remoteness of damage" (UK) ou "scope of responsibility/liability" (USA). Já na interpretação das apólices de seguro, esta questão separada recebeu o rótulo de: "proximate cause". Assim como nós, os ingleses também sofrem com o tema do nexo causal, existindo uma infindável contenda sobre o que delimita os termos "cause", "contribution" e "responsibility".  A apólice em jogo diz o seguinte: "Devemos indenizá-lo em relação à interrupção ou interferência com o negócio durante o período de indenização seguinte: III. qualquer ocorrência de Doença notificável em um raio de 25 milhas das Instalações; Período de Indenização significa o período durante o qual os resultados do negócio serão afetados em consequência da ocorrência " A questão interpretativa crucial posta perante a UKSC era sobre o que "em consequência" significa neste contexto. Deve haver algum tipo de relação entre a doença e a interrupção do negócio. É necessária a interpretação para chegar a algum lugar, não apenas uma identificação do significado comum de "causa" ou "consequência", ou qualquer outra coisa. Assim como no direito brasileiro, a causalidade é um pressuposto básico de responsabilidade civil no common law, seja quando o demandado pessoalmente causou o dano - impondo-se uma conexão causal entre a sua conduta e o dano - como também quando existe coautoria "joint tortfeasors", ou nas hipóteses de "vicarious liability", nas quais surge a responsabilidade indireta de algumas pessoas por conduta de outras que estão sob a sua subordinação legal ou contratual. Em qualquer caso, na Inglaterra, a causalidade factual demanda o "but-for test", uma pesquisa hipotética daquilo que aconteceria se o demandado não tivesse praticado um dado comportamento. Conforme o "but-for test" uma conduta é a causa de um dano quando, se não fosse por tal conduta, o dano não teria se verificado. Se a resposta ao teste for negativa, então a ação causou o dano.   Porém, a SCUK mostrou que nem sempre o "but-for test" é decisivo. Se o teste fosse seguido à risca, a cláusula de interrupção de negócios em relação à "doença", seria interpretada como tendo o significado de que a seguradora somente indenizaria pelos efeitos dos casos da Covid-19 que ocorrem dentro do raio especificado dentro das instalações seguradas - em torno de 25 milhas. Contudo, a reclamação dos segurados foi sobre as regras governamentais de fechamento de negócios, que obviamente afetaram toda a Inglaterra. Quer dizer, ao considerar qualquer caso singular de Covid-19, pode-se dizer que esse caso foi a causa das regras de lockdown? Em outras palavras, nenhum exemplo individual da doença pode ser considerado uma causa ("but-for") das regras de fechamento do governo. Se, como as seguradoras afirmam, o teste relevante ao considerar as medidas do governo tomadas em março de 2020 consiste em perguntar se o governo teria agido da mesma forma na suposição de que não houve casos de Covid-19 no raio de 25 milhas das instalações do segurado, mas todos os outros casos em outras partes do país ocorreram como de fato ocorreram, a resposta deve, em relação a qualquer apólice em particular, ser que provavelmente teria agido da mesma maneira. Portanto, o ponto fulcral era se os casos específicos abrangidos pela cláusula "causavam" o dano. Tendo em mente que esta era uma questão de seguro e não de responsabilidade civil, a maioria dos julgadores abordou o caso através das lentes da teoria da "over-determined causation" - cujo exemplo clássico é o do caçador atingido por duas balas ao mesmo tempo, sendo que cada uma delas o teria matado. Um caso hipotético que foi discutido em argumentação oral, remete a 20 indivíduos que se combinam para empurrar um ônibus de um penhasco. Suponha que seja mostrado que apenas, 14 pessoas teriam sido necessárias para produzir esse resultado. Não se poderia dizer então que a participação de um determinado indivíduo era necessária ou suficiente para causar a destruição do ônibus. No entanto, parece apropriado descrever o envolvimento de cada pessoa como a causa da perda. Se considerarmos o teste "but for" como um limite mínimo que sempre deve ser ultrapassado se X for considerado uma causa de Y, alcançaríamos à conclusão absurda de que nenhuma das 14 ações causaram a destruição do ônibus. O raciocínio é útil pois foi discutido - e aceito - que toda a Grã-Bretanha poderia ser coberta por cerca de 20 círculos de raio de 25 milhas. Suponhamos que a empresa X se encontra no círculo Y e que o governo não teria introduzido o lockdown se apenas um círculo tivesse Covid-19, mas o faria se, digamos, 13 círculos apresentassem o vírus. Então, sob esta abordagem, para mostrar que o COVID no círculo Y foi a causa do lockdown, tudo o que se precisa fazer é mostrar que o círculo Y é um elemento necessário de um conjunto suficiente (12 outros círculos e o círculo Y) que levou ao lockdown. Nenhum caso de Covid-19 foi necessário para a ação do governo que levou à interrupção dos negócios, mas cada caso gerou uma contribuição real para a prevalência da doença que desencadeou essa ação, mesmo se essa prevalência fosse excessiva (ou seja, havia mais casos do que aconteceria foram necessários para acionar essa ação, de modo que nenhum caso fosse necessário sozinho). A Suprema Corte foi persuadida pelo argumento de que, para uma boa construção das apólices de seguro, expressamente desencadeadas por doenças notificáveis (um pequeno conjunto das doenças humanas mais perigosas ou infecciosas, incluindo a SARS), a cláusula indenizatória deveria ter contemplado doenças que saiam do raio em questão e que a principal via de interrupção de negócios seria por meio da intervenção da autoridade pública em resposta à doença. Sendo esse o caso, a causa próxima que as partes pretendiam que fosse satisfeita, foi atendida pela ligação entre as ocorrências locais e a resposta nacional aos casos em todo país, mesmo que o teste "but-for" não tenha sido satisfeito. Ou seja, as partes não teriam pretendido que o teste fosse aplicado às ocorrências locais, mas apenas ao conjunto maior do qual elas fazem parte.  Então, a apólice deve contemplar que o risco segurado (doença dentro do raio ou, em outras cláusulas, resposta da autoridade pública à doença) não concorre com outras consequências da fortuito subjacente (a própria Covid-19), o que significa que devem ser tratados como um único conjunto. As cláusulas de 25 milhas dão cobertura porque a sua natureza é para doenças que estarão dentro e fora da área e afetarão os negócios por meio de ação de autoridade pública ao reagir à doença generalizada. Um outro aspecto que impacta no processo interpretativo dessas cláusulas envolve um questionamento das seguradoras sobre o exame dos contratos de "forma padronizada", sem que se levem em conta a matriz factual particular entre as partes. Ilustrativamente, tenhamos em conta um restaurante que pleiteie a cobertura segurada diante da pandemia. E quanto a outras contribuições para o fechamento ou prejuízo do restaurante? Pensemos em um restaurante que de qualquer maneira teria fechado (ou teria sua receita reduzida), porque seu "chef estrelado" estava prestes a sair, e assim o faz. Por que o evento da saída do chef estrela (não coberto pelo seguro) seria diferente do evento de todos os casos de Covid-19 fora do raio de 25 milhas (igualmente não coberto pelo seguro)? Ou então, se um restaurante não teria nenhuma receita de qualquer maneira, mesmo sem as restrições, porque é um péssimo restaurante. Aqui, claramente, não haveria prejuízo. Tratando-se de uma indenização contra a interrupção dos negócios, o contrafactual é o como estaria o restaurante se não tivesse havido interrupção. Consequentemente, se o estabelecimento fosse de péssima qualidade ou o chefe de cozinha tivesse ido embora de qualquer maneira, a indenização é menor do que se ele tivesse gerado uma alta receita e lucro. A indagação é se a indenização refletirá a situação do restaurante que estivesse operando no mundo real, sem o impedimento de acesso, mas com o resto dos efeitos do Covid-19, ou sem o impedimento de acesso e sem os efeitos do Covid-19? A Suprema Corte interpretou as apólices com base na segunda alternativa.  Portanto, é uma abordagem sutil de como as partes devem ter pretendido que a causalidade se aplicasse. Suprime-se o contrafactual da causa original (doença) e tudo que dela decorre, não apenas o "risco segurado" em sua acepção estrita. Quanto ao conceito de causa, a Suprema Corte considerou que o risco segurado (por exemplo, um caso COVID dentro do raio geográfico relevante) foi uma causa da ação governamental. Ou seja, reconheceu-se que o conceito de ser 'uma causa' no direito privado é mais amplo do que ser um fator necessário (como no "but for test"), independentemente do contexto. Um fator é a causa de uma lesão se, sem ele a lesão não existiria ou uma contribuição real para um elemento dos requisitos positivos para a ocorrência da lesão não existiria. A SCUK considerou que o risco segurado era uma causa de ação governamental e que não era intenção das partes que o vínculo de causa próxima entre esta causa e a ação governamental também fosse necessária. As partes devem ter contemplado doenças fora da área relevante; e isso indicou que o teste de causa próxima que as partes pretendiam exigir foi satisfeito pela ligação entre as ocorrências locais e a reação nacional, mesmo que o "but for test" não fosse satisfeito porque parece contrário à intenção negocial da cláusula, tratar de casos não segurados de doença notificável que ocorra fora do âmbito territorial da cobertura, privando o segurado de uma indenização por interrupção também causada por casos de doença que a apólice pretende cobrir. Vê-se que tanto sob o viés teórico como o prático o nexo causal é um tema espinhoso em qualquer quadrante.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2020

As políticas da responsabilidade civil no common law

Em seu mais recente ensaio - "Key Ideas in Tort Law" (Hart Publishing, 2017), Peter Cane aborda nove ideias fundamentais na responsabilidade civil da Inglaterra. O emérito professor de Cambridge inicia o opúsculo frisando que todos os seus "insights" podem ser resumidos em uma verdadeira grande ideia: a responsabilidade civil é um fenômeno que tanto pode ser compreendido em seu interior - como fonte de orientação quanto a comportamentos desejáveis - como em seu exterior, tomando em consideração o seu caráter normativo e o ambiente político e social em que opera. Por essa perspectiva externa, a doutrina é apenas um aspecto da natureza social da "tort law", sendo a autoridade legal que faculta à responsabilidade civil desempenhar as funções sociais pretendidas. Compreender a doutrina é importante, mas o principal é apreciar o meio e contextos em que a doutrina se incorpora e ganha vida fora do papel. A compreensão do direito em toda a sua riqueza social e doutrinal nos ensina algo sobre a condição humana, sobre o que significa ser humano. Para o leitor brasileiro, mesmo aquele acostumado ao estudo da responsabilidade civil, o melhor das 136 páginas da obra pode ser encontrado naquilo que é inusitado em nosso contexto: Peter Cane dedica o derradeiro capítulo ao exame dos fundamentos políticos da responsabilidade civil. "The Political Foundations of Tort Law". Em um primeiro olhar a associação entre direito e política é alvo de críticas, não apenas entre nós, que consideramos a responsabilidade civil uma temática restrita a direitos e deveres de indivíduos em suas relações jurídicas - relegando-se a atividade política ao âmbito da sociedade e grupos -, mas também entre respeitados jusfilósofos da Common Law, como Ernest Weinrib, para quem a "Tort law" concerne exclusivamente à justiça corretiva, enquanto a justiça distributiva é o campo da política por excelência.  A principal missão da política é a distribuição entre os membros da sociedade dos benefícios e pesos da vida em comum. Nesse sentido, explica Peter Cane, a política da responsabilidade civil não se relaciona com a forma pela qual as lides individuais serão resolvidas, porém sobre os princípios e regras gerais que determinam como as demandas serão julgadas e quem serão os vencedores e perdedores. Uma boa ilustração brasileira se extraí da vigência do CDC. Antes de sua vigência, consumidores de produtos defeituosos eram "losers", porém, convertem-se em "winners" com a introdução da imputação objetiva pelo fato do produto e do serviço. Em uma síntese, pode-se afirmar que a responsabilidade civil realiza "justiça conforme a lei", se considerarmos o termo "justiça" como a correção do dano em casos individuais, enquanto o vocábulo "lei" se refere as regras que determinam como o custo de correção dos danos será distribuído. No instigante debate sobre como idealmente devem ser desenhadas as regras e princípios da responsabilidade civil que serão aplicados aos casos individuais, surgem cinco políticas que pretendem, cada qual a seu modo, justificá-la como um mecanismo de (re)distribuição de riqueza fundada na base do risco. A política da regulação consiste no uso de normas e instituições de modo instrumental, a fim de influenciar o nosso comportamento como potenciais agressores, minimizando a incidência de danos causados por tais condutas. Tal política gozou de muito prestígio nos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70 basicamente com a introdução da "minimização dos custos sociais de acidentes", ideia explorada por Guido Calabresi, como forma de trasladação da distribuição do custo do acidente. Ao invés de necessariamente recair sobre o aquele que culposamente causou dano, a lei deveria trasladar o custo para a parte que pudesse evitá-lo ao menor preço. Trata-se de um argumento político, cujo objetivo consiste em produzir uma desejável distribuição de custos e benefícios da vida social associados aos acidentes de tráfico.  Contudo, a aplicação prática de tal teoria resultaria na abolição da responsabilidade civil, partindo-se da premissa de que o "cheapest cost avoider" possa ser a própria vítima. A abordagem regulatória ainda é influente nos Estados Unidos, sendo bastante nos lembrarmos de filmes como A Civil Action (1998) ou Erin Brockovich (2000), cujas estórias exibem a responsabilidade civil sendo adotada como alternativa regulatória para a aplicação de regras de segurança de trabalho e standards de qualidade ambiental, pela via da substituição de ações individuais por um sistema de penalidades e ações coletivas. Nada obstante, "The politics of regulation" recebe pouco suporte em outras jurisdições: parte pelo fato de que estudos empíricos demonstram pouca evidência da capacidade da responsabilidade civil contribuir para a minimização de custos de acidentes e parte pela natural impossibilidade de conciliação entre a responsabilidade civil com um princípio de natureza econômica que suplante o tradicional princípio da culpa. A segunda vertente consiste na política da compensação. Em contraste a Calabresi, o Professor Terence Ison assume que a compensação das vítimas - e não a minimização dos custos de acidentes - seria a primeira função da lei de delitos. Contudo, a implicação prática dessa abordagem é tão radical quanto a de Calabresi, pois na prática o académico canadense propõe a substituição da responsabilidade civil por um sistema universal de compensação "no-fault", baseado na provisão de um seguro social para doenças e lesões que causem deficiências e morte, independente de relutado ser atribuível a uma conduta danosa de outrem. Em 1974 foi introduzido na Nova Zelândia um sistema universal análogo ao proposto por Ison, cobrindo a maior parte das lesões acidentais (enquanto em outros países, como o Brasil, limitou-se ao setor de acidentes de trânsito). Pode-se dizer que no século XXI essa espécie de solução securitária para lidar com injúrias pessoais tem sido rejeitada, pois enquanto na década de 70 os debates políticos focavam em como substituir a tort law, o cerne da discussão atual consiste em como conviver com ela, resolvendo os seus mais significativos problemas. Adiante, surge a política da responsabilidade. De acordo com ela, a responsabilidade civil somente (re)distribuirá recursos equitativamente, se os riscos também o forem. Tal e qual a política regulatória, a política de responsabilidade se atém a distribuição de riscos. Lado outro, tal e qual a política de compensação, a política de responsabilidade mira na distribuição de recursos. Porém, ela se distingue de ambas, pois enquanto as anteriores são unilaterais, a política da responsabilidade tende a ser duplamente distributiva: distribui riscos e recursos. A sua trajetória nos últimos 50 anos é ilustrada pelo trabalho do acadêmico inglês Patrick Atiyah. No livro "Accidents, compensation and the law" (1970), ele se posiciona pela abolição da responsabilidade civil para lesões pessoais, por considerá-la uma ferramenta regulatória ineficiente além de mecanismo compensatório extremamente oneroso e igualmente injusto, por distribuir recursos de forma aleatória entre grupos distintos de vítimas, naquilo que em obra posterior denominou Damages Lottery (1997). Para Atiyah o maior problema da responsabilidade civil seria a sua inclinação em favor de vítimas as expensas de ofensores, consequentemente distribuindo de forma injusta os riscos de danos e recursos entre os dois grupos. Criou-se uma "cultura de culpa" pela qual a primeira reação das pessoas a qualquer adversidade é a de culpar outrem - ao invés de se assumir responsável por sua própria saúde e segurança - convertendo a responsabilidade civil e a seguridade social em sistemas de dependência. Nesse espirito, o professor da Universidade de Oxford propôs a substituição do seguro de responsabilidade civil por um novo regime, pelo qual potenciais vítimas tomariam para si o encargo de se segurar contra danos (first-party insurance) causados por terceiros ao invés de se beneficiar de um seguro de responsabilidade civil contra terceiros (third-party insurance). Basicamente, Calabresi, Ison e Atiyah são abolicionistas. Eles comungam a ideia de que a responsabilidade civil é um mecanismo deficiente para lidar com os problemas sociais derivados da proliferação de danos individuais e, para tanto, buscam substitui-la por regimes que alcançariam de forma mais satisfatória aqueles objetivos que cada qual considera como prioritários, sejam eles, a prevenção de acidentes, a compensação universal e a autorresponsabilização. Como alternativa à radical proposta de abolição da "tort law", surgem os reformistas. Ilustrativamente, para alcançar o objetivo regulatório, os reformistas sugerem a ampliação do uso dos punitive damages, com a finalidade de enviar a potenciais ofensores uma sinalização mais forte do que aquela normalmente emitida pela simples compensação de danos, ou facilitando o acesso coletivo a ações em que diversos consumidores podem responsabilizar um fornecedor de produto defeituoso ou um poluidor, reduzindo custos e gerando publicidade. Já os reformistas que acreditam na finalidade compensatória, tendem a persuadir os legisladores à criação de novas categorias de indenização (tal como se deu no Brasil com a afirmação do dano existencial na reforma trabalhista) ou então a aumentar a quantificação das indenizações. Uma resposta neoliberal consiste na defesa de tetos e pisos indenizatórios, particularmente para desencorajar demandas de baixo valor, desproporcionalmente custosas para serem levadas adiante, bem como encorajar as pessoas a encontrar alternativas às demandas indenizatórias para protegê-las contra o risco de acidentes pessoais. Essas reflexões nos remetem ao quarto aspecto das políticas da responsabilidade civil: A política da legislação. Para Peter Cane, o termo "politics" não envolve apenas a distribuição de riscos e danos, mas também a distribuição de poder, sobretudo o poder de legislar, que deve ser balanceado entre o congresso e os juízes. Nem o parlamento e tampouco o judiciário possuem isoladamente os recursos para criar as normas necessárias a satisfazer a "insaciável" demanda social. Esse delicado equilíbrio foi redefinido na Inglaterra nos últimos 50 (cinquenta) anos, pois se o common law é um típico processo criativo a partir da decisão de casos individuais, paulatinamente o legislador intervém por meio de estatutos para trazer maior racionalidade as decisões dos juízes, o quê demonstra a crescente influência dos políticos nas grandes atualizações legais, em detrimento do tradicional papel exercido pelos juízes. Em geral os abolicionistas são tolerantes com as intervenções parlamentares, enquanto os reformistas defendem que legisladores somente podem interferir quando juízes por si só forem incapazes de aperfeiçoar o sistema. Um notável exemplo dessa batalha por espaços é o debate legislativo sobre projetos de lei que objetivam dificultar a obtenção de indenização por vítimas de acidentes pessoais (alegando que o pêndulo entre potenciais ofendidos e ofensores oscilou nos últimos tempos demasiadamente em favor daqueles), com base na revisão de pressupostos da responsabilidade civil como o ilícito, nexo causal e as excludentes utilizáveis por potenciais causadores de danos. Um dos argumentos utilizados pelos que se contrapõem às reformas legais é o de que os próprios magistrados podem alcançar resultados semelhantes, sem a intervenção do legislador. Em contraposição, a influência do judiciário cresceu enormemente na Europa e no Brasil. Assim, não é mais possível relacionar a civil law ao direito codificado e o common law com a jurisprudência: a realidade das fontes legais é muito mais complexa em ambos os lados. É claro que subsistem diferenças significativas, mas o antigo ideal das diferenças irreconciliáveis em termos de mentalidades jurídicas, torna-se cada vez mais insustentável. Na Inglaterra nenhuma das quatro políticas mencionadas vem recebendo destaque nos últimos vinte anos. Ao invés da preocupação com os objetivos, conteúdo, ou a própria discussão sobre a existência da responsabilidade civil, o foco tem sido a política do litígio e o "acesso à justiça".  Demandas de responsabilidade civil são custosas, consumindo tempo. Ao contrário do pagamento de indenizações pelos demandados aos demandantes, as demandas em si consumem recursos de serviços profissionais e do sistema judiciário. Na Inglaterra dos anos oitenta, a regra básica era a de que as despesas legais do litigante vencedor seriam suportadas pelo derrotado, que na prática transferia ao seu segurador não apenas a indenização pelos danos pessoais, como também as despesas processuais. Porém, uma significativa proporção de demandantes tinha direito a uma "legal aid", uma espécie de pagamento da seguridade social para a cobertura de custos legais, fundamental para o funcionamento do sistema de responsabilidade civil. Se obtivesse êxito, o demandante teria que restituir uma parcela da indenização ao fundo de assistência jurídica; caso derrotado, normalmente nada pagaria. Contudo, a partir dos anos noventa e até hoje, duas tendências se afirmaram em termos de acesso à justiça: a revisão das regras processuais para a redução dos custos dos litígios e acomodação de acordos extrajudiciais e a gradual redução da assistência jurídica para ações derivadas de acidentes pessoais. Em substituição, aplica-se a "conditional-fee arrangement", pela qual advogados fornecem serviços a demandantes cuja remuneração é condicionada apenas à vitória, eliminando o peso dos custos iniciais do processo e o pagamento de custas se a demanda fracassar. Essa fundamental alteração criou uma nova indústria legal, as chamadas "claim management companies" que fornecem à parte uma série de serviços essenciais - advogados, médicos, experts em seguros - para a resolução de litígios, seguindo a premissa do "no-win, no fee-basis". A disponibilidade e o custos dos serviços legais são questões políticas que envolvem a distribuição de ônus e bônus da vida em sociedade, formando parte inseparável da história da responsabilidade civil pois sem os serviços jurídicos provavelmente haveriam poucas demandas indenizatórias no setor extracontratual. A resolução de disputas não é certamente uma importante doutrina de responsabilidade civil, mas provavelmente é a mais visível. *Nelson Rosenvald é procurador de Justiça do MP/MG. Pós-doutor em Direito Civil na Università Roma Tre (IT-2011). Pós-doutor em Direito Societário na Universidade de Coimbra (PO-2017). Visiting Academic na Oxford University (UK-2016/17). Professor visitante na Universidade Carlos III (ES-2018). Doutor e mestre em Direito Civil pela PUC/SP. Presidente do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC). Fellow of the European Law Institute (ELI). Member of the Society of Legal Scholars (UK). Professor do corpo permanente do doutorado e mestrado do IDP/DF.
Introdução O movimento Critical Legal Studies (CLS) emergiu na década de setenta nos Estados Unidos como uma escola teoria de pensamento jurídico crítico, no contexto da emancipação política de minorias étnico-raciais, de gênero e de orientação sexual, dentre outras. O CLS atingiu sua maturidade na década de oitenta, tendo sido celebrado em um livro especializado no tema do professor de Stanford, Mark Kelman,1 e também em um artigo seminal do professor Roberto Mangabeira Unger sobre o movimento.2 Os temas da análise do poder no direito na Common Law tem recorrentes por força da influência da CLS.3 Tal temática também possui relevância para o debate jurídico brasileiro, na medida em que o direito é influenciado por assimetrias de poder, hierarquias sociais e dinâmicas culturais relativas à identidade dos sujeitos de poder. O presente artigo apresenta ao leitor brasileiro temas relevantes da CLS a partir do livro Sexy Dressing, do professor Duncan Kennedy, da Harvard Law School.4 Identidade de Grupo Um tema central do livro consiste no estudo das identidades culturais de grupos de pessoas. A partir de uma perspectiva pós-colonialista sobre a identidade nacional estadunidense e de uma discussão sobre a obra do pensador italiano, Antonio Gramsci, analisa-se a interação de forças hegemônicas e contra-hegemônicas.5 Por um lado, os Estados Unidos se apresenta como sendo uma nação formada por uma heterogeneidade gerenciada, a partir de grupos diversos de imigrantes com origem étnico-racial distinta.6 Por outro lado, a política da organização dos locais de trabalho e do escritório é definida por uma rede complexa de relacionamentos de longo prazo, formada por uma série de alianças e oposições, dependências e confrontações.7 Na visão crítica de Duncan Kennedy, a sociedade é formalmente liberal, mas realmente repressiva, de maneira que é necessária uma ação mais enérgica e radical de defesa dos trabalhadores e das minorias oprimidas nos Estados Unidos do que a tradição liberal.8 Nesse contexto, é exaltado o movimento social das mulheres nos Estados Unidos como uma força política emergente de crítica cultural no contexto da política de gênero.9 A transformação racial decorrente do movimento dos direitos civis também configura um desafio da política social, mas a discriminação continua a operar de inúmeras maneiras, provocando injustiças individuais invisíveis e continuando com o racismo institucional.10 Uma defesa cultural pluralista da ação afirmativa Com relação ao combate à opressão das minorias, surge uma proposta ambiciosa de ação afirmativa de larga escala para ampliar a participação democrática dos grupos tradicionalmente oprimidos e desenvolver a consciência coletiva a partir da identidade de grupo.11 O ponto de partida para sua argumentação crítica é a desconstrução de um fenômeno classificado como um "fundamentalismo meritocrático cego à cor", isto é, um sistema de ideias sobre raça, mérito e a organização adequada das instituições acadêmicas.12 Tal sistema seria caracterizado pela atitude de que o mérito é uma questão de valor individual, de modo que pessoas sofrem discriminação quando o seu mérito é avaliado com base nesse fator discriminatório e não de acordo com o valor de suas características individuais.13 Tal discriminação racial é irracional e injusta porque nega ao indivíduo aquilo que lhe é devido conforme os padrões socialmente estabelecidos de merecimento.14 Segundo esse entendimento, as instituições acadêmicas deveriam maximizar a produção de conhecimento através da recompensa e empoderamento do mérito individual, distribuindo oportunidades e honrarias com base em critérios cegos quanto à raça, gênero, classe e quaisquer outros fatores que não estejam relacionados com o valor do trabalho produzido.15 Duncan Kennedy polemiza com esse entendimento, ao defender um aprofundamento dos programas de ação afirmativa, inclusive através da transformação deliberada das estruturas institucionais que possibilite que comunidades e classes sociais compartilhem da riqueza e do poder, ressaltando que as regras da meritocracia em uma economia de mercado não são suficientes.16 Sua defesa cultural pluralista da ação afirmativa significa que a competição de comunidades étnico-raciais e de classes sociais nos mercados, burocracias e no sistema político deve ser estruturada, de modo a que nenhuma comunidade ou classe seja sistematicamente subordinada.17 Do ponto de vista prático, as minorias deveriam ser significativamente representadas nas faculdades de direito, na medida em que as comunidades minoritárias não podem competir efetivamente por riqueza e poder sem que intelectuais que produzam certos tipos de conhecimento possam ajuda-los a obter aquilo que eles querem.18 O foco específico do processo de contratação para professores das faculdades de direito decorre do fato de que tais posições não se limitam a distribuir riqueza e poder ao ocupante daquela posição, mas também possuem papel decisivo na produção da ideologia.19 Tal iniciativa resultaria no crescimento de uma cultura jurídica de defesa das minorias e numa mudança de debates, posições e estilos que já foi inclusive indicada pela emergência da Teoria Racial Crítica (Critical Race Theory).20 Para Duncan Kennedy, atualmente existe uma comunidade culturalmente dominante em contato assimétrico com os demais grupos sociais que estão em uma posição de subordinação, de modo que as próprias regras do jogo privilegiam pessoas das comunidades dominantes independente dos recursos que possam trazer como indivíduos para a competição.21 O Vestido Sexy: Abuso Sexual e a Erotização da Dominação O ensaio intitulado Sexual Abuse, Sexy Dressing, and the Eroticization of Domination também foi responsável pela referência do título do livro sobre o vestido sexy como sendo um símbolo para o poder e a política da identidade cultural.22 Por um lado, a visão convencional defende que o vestido sexy estaria ligado ao abuso sexual porque seria eventualmente sua causa.23 Por outro lado, o discurso feminista argumenta que o abuso sexual é um fator constitutivo do regime patriarcal que é reproduzido pela moda, de modo que é o abuso sexual que causa o vestido sexy e não o contrário.24 Duncan Kennedy se apresenta nesse debate como um homem branco de classe média - não pela perspectiva da vítima, mas de um potencial perpetrador com a esperança de mudança.25 Sua estratégica semiótica de análise do significado da conduta através do código proporcionado por roteiros passa pela interpretação das convenções sociais com relação às ações de cada ator em suas passagens dos roteiros.26 A análise de roteiros possibilita o foco em padrões particulares de conduta com importante significado social e em seus efeitos, a discussão de respostas típicas de mulheres ao abuso, a reflexão sobre medidas preventivas e o desenho de potenciais roteiros para escolha feminina na interação com o perpetrador do abuso.27 Do ponto de vista da análise jurídica, por sua vez, a análise de roteiros permite compreender se os regimes jurídicos relativos aos abusos sexuais proporcionam respostas para apenas uma série limitada de padrões de interação entre o perpetrador e a vítima.28 Em sua análise dos Estados Unidos, Duncan Kennedy considerou que a combinação dos limites do direito formal e as operações do sistema judicial resultavam na possibilidade de que homens perpetrassem abuso sexual de mulheres sem sanção oficial.29 O ensaio explora com profundidade as consequências desse direito que condena o abuso sexual em abstrato ao mesmo tempo em que muitos casos de prática abusiva são tolerados. Nesse sentido, o vestido sexy aparece como parte de um dress code que regula virtualmente todo o espaço social, definindo o grau de sexualidade permitido em cada local, mas sem suprimir a sexualidade feminina ou impor uma moralidade puritana.30 De acordo com o discurso convencional, a usuária do vestido sexy violaria esse código, modificando sua vestimenta, acrescentando uma carga sexual à sua roupa e provocando reações masculinas.31 De acordo com o discurso feminista, foram os próprios homens que construíram socialmente suas reações de excitação e coagem as mulheres para atender seus desejos e fetiches.32 O estudo de caso do vestido sexy proporciona uma análise original sobre o poder no direito. A Análise do Poder no Direito Além dos ensaios sobre ação afirmativa e sobre o abuso sexual, o livro Sexy Dressing contém um capítulo teórico sobre a análise do poder no direito.33 Inspirado pelo realismo jurídico de Robert Hale, Duncan Kennedy revisita a tese de que as regras de propriedade, contrato e responsabilidade civil são as 'regras do jogo da disputa econômica' e empoderam de maneira diferenciada e assimétrica o poder de barganha dos grupos sociais sobre os frutos da cooperação para a produção.34 Importante, além de resolver disputas de maneira que as pessoas consideram mais ou menos justa, as regras jurídicas possuem uma função distributiva, além de outros usos e efeitos (como legitimação, racionalização e apologia, dentre outros).35 Embora sejam aplicadas genericamente a todos os atores, as regras podem ser analisadas pelo seu impacto sobre as possibilidades dos jogadores.36 Uma transformação em um grande número de regras básicas em favor de uma das partes modificaria a relação de equilíbrio parcial e o resultado marginal decorrente do poder de barganha das partes.37 Em sua análise do poder no direito, Duncan Kennedy destaca o importante papel para a vida econômica das permissões para causar prejuízos a terceiros, salientando que toda competição é uma produção legalizada de danos, tal como a greve de trabalhadores e o boicote de consumidores.38 Conforme sua lição, "a invisibilidade das regras jurídicas básicas advém do fato de que quando os legisladores não fazem nada, parecem não ter nada a ver com o resultado".39 Contudo, como uma série de danos é proibida juridicamente, a inércia também possui um caráter de política pública e o direito é sempre responsável pelo resultado, ao menos no sentido abstrato de que poderia ter sido diferente.40 Sempre que existir um sistema jurídico, a escolha de qualquer conjunto de regras jurídicas básicas é também uma escolha de um conjunto de resultados distributivos, seja com muitas ou poucas regras.41 Além de estarem sujeitas a um equilíbrio instável, as regras jurídicas são influenciadas pelos fatores constantes de mudança provenientes do contexto e da evolução do conjunto existente de materiais jurídicos na medida em que novas situações aparecem.42 O sistema jurídico define as fronteiras do comportamento em milhares de situações em que não existem normas sociais internalizadas sobre o que é certo ou errado, funcionando como um mecanismo institucional legitimador que exerce força normativa sobre o cidadão e simultaneamente cria e reflete consenso.43 Na prática, cabe ao poder judiciário a responsabilidade pela definição das regras básicas e, no fundo, tal tarefa consiste em um processo decisório distributivo.44 Em síntese, o direito é decisivo na constituição do poder de barganha das pessoas através do domínio da vida privada e pública.45 Considerações finais A análise do poder no direito foi colocada no centro do debate da academia estadunidense pelo movimento CLS, tendo pautado a agenda de pesquisadores em outros países da Common Law. Ao longo de suas cinco décadas, mesmo sem a pretensão de se tornar mainstream, o pensamento jurídico crítico teve impacto profundo sobre o direito. Particularmente no caso do direito privado, o papel do sistema jurídico no reequilíbrio de assimetrias de poder influenciou o surgimento de novos ramos do direito destinados a proteção de minorias. Além da teoria antidiscriminação, da ação afirmativa horizontal e do combate ao abuso sexual, surgiram inúmeras regras jurídicas protetivas. Contudo, roteiros de conduta de empresas e indivíduos nem sempre incorporam a boa fé, o dever de cuidado e a razoabilidade esperada para a proteção dos direitos dos vulneráveis. Cabe à academia o papel de fomentar o debate sobre o papel do poder no direito e aos seus operadores a missão de interpretar as regras jurídicas básicas de modo a desconstruir as assimetrias de poder injustas e opressoras. Até quando a lógica convencional do vestido sexy será reproduzida no discurso jurídico e vítimas serão injustamente apontadas como culpadas pelos danos sofridos para que os responsáveis não tenham que cumprir com suas obrigações? Até quando serão reproduzidas tais injustiças? __________ 1 KELMAN, Mark. A guide to critical legal studies. Harvard University Press, 1987. 2 UNGER, Roberto Mangabeira. The critical legal studies movement. Harvard law review, p. 561-675, 1983. 3 KENNEDY, Duncan. Legal education and the reproduction of hierarchy: a polemic against the system. NYU Press, 2007. 4 KENNEDY, Duncan. Sexy dressing etc: Essays on the Power and Politics of Cultural Identity. Harvard University Press, 1995. 5 KENNEDY, Duncan. Radical Intellectuals in American Culture and Politics, or My Talk at the Gramsci Institute. Sexy dressing etc: Essays on the Power and Politics of Cultural Identity. Harvard University Press, 1995. 6 Idem, página 14-15. 7 Idem. 8 Idem, p. 29. 9 Idem, p. 30-32. 10 Idem, p. 32-33. 11 KENNEDY, Duncan. A cultural pluralist case for affirmative action in legal academia. Sexy dressing etc: Essays on the Power and Politics of Cultural Identity. Harvard University Press, 1995. 12 Idem, p. 34-35. 13 Idem, p. 38. 14 Idem. 15 Idem, p. 38-39. 16 Idem, p. 40-41. 17 Idem, p. 41. 18 Idem, p. 41. 19 Idem, p. 41-42. 20 Idem, p. 43. 21 Idem, p. 51. 22 Além de ser publicado como um capítulo do livro, o texto foi publicado anteriormente como um artigo acadêmico também: KENNEDY, Duncan; ABUSE, Sexual. Sexy Dressing and the Eroticization of Domination'(1992). New England Law Review, v. 26, p. 1309. 23 KENNEDY, Duncan; ABUSE, Sexual. Sexy Dressing and the Eroticization of Domination. Sexy dressing etc: Essays on the Power and Politics of Cultural Identity. Harvard University Press, 1995. 24 Idem, p. 126. 25 Idem, p. 128-129. 26 Idem, p. 133. 27 Idem. 28 Idem. 29 Idem, p. 136-137. 30 Idem, p. 162. 31 Idem, p. 165-166. 32 Idem, p. 167. 33 Além de ser publicado como um capítulo do livro, o texto foi publicado anteriormente como um artigo acadêmico também: KENNEDY, Duncan. The stakes of law, or Hale and Foucault. Legal Stud. F., v. 15, p. 327, 1991. 34 KENNEDY, Duncan. The stakes of law, or Hale and Foucault. Sexy dressing etc: Essays on the Power and Politics of Cultural Identity. Harvard University Press, 1995.  35 Idem, p. 84. 36 Idem, p. 85. 37 Idem, p. 89. 38 Idem, p. 91. 39 Idem. 40 Idem. 41 Idem, p. 92. 42 Idem, p. 93. 43 Idem, p. 107. 44 Idem. 45 Idem, p. 124.
Introdução "Por que os fornecedores elaboram contratos provendo benefícios de curto prazo e impondo custos de longo prazo? Por que preços iniciais baixos são tão comuns? Por que os telefones celulares são dados de graça, desde que o consumidor assine um contrato de serviço de dois anos? Por que os próprios contratos são tão complexos? Qual é a lógica por trás da formulação de contratos de cartão de crédito e de hipoteca com inúmeras taxas e taxas de juros calculadas por meio de fórmulas complexas?"1 Essas e outras questões são apresentadas e enfrentadas por Oren Bar-Gill, professor de Direito dos Contratos e de análise econômico-comportamental do Direito da Universidade de Harvard, em seu livro Seduction by Contract: Law, Economics, and Psychology in Consumer Contracts. Nesta obra, o autor apresenta as razões que levam os fornecedores a formularem ofertas como as referidas acima, as suas consequências para o mercado de consumo e como o Direito pode intervir para combater essas práticas. Apesar de formuladas com base no mercado americano, as questões referidas também poderiam ser levantadas em relação ao mercado brasileiro. Por isso, nesta coluna, apresentarei resumidamente algumas das ideias centrais trabalhadas por Bar-Gill em seu livro. Forças do mercado e psicologia do consumidor Segundo Oren Bar-Gill, o design dos contratos de consumo pode ser explicado como o "resultado da interação entre forças de mercado e psicologia do consumidor". Os consumidores são dotados de racionalidade imperfeita: suas decisões e escolhas são influenciadas por vieses e por percepções equivocadas. E mais: os erros que cometem são sistemáticos e previsíveis.2 Os fornecedores, por sua vez, reagem a esses erros. Eles desenvolvem produtos e serviços, formulam cláusulas contratuais e esquemas de precificação para maximizar não o verdadeiro benefício do seu produto ou serviço, mas "o benefício como percebido pelo consumidor de racionalidade imperfeita." O design contratual acaba induzindo os consumidores a adquirirem produtos e serviços que parecem mais atrativos do que eles de fato são. E, então, conclui Bar-Gill que "essa sedução pelo contrato resulta em uma falha comportamental de mercado."3 De acordo com o professor de Harvard, a competição entre fornecedores, por si só, não é capaz de solucionar este problema. Pelo contrário, ela pode até agravá-lo. Isto porque, em mercados competitivos, os vendedores acabam sendo forçados a alinhar o design contratual com a psicologia dos consumidores. Um vendedor mais bem intencionado que ofereça o que ele sabe ser a melhor oferta irá fatalmente perder espaço para um vendedor não tão bem intencionado que ofereça aquilo que o consumidor equivocadamente pensa ser a melhor oferta. Bar-Gill arremata então que a "competição força vendedores a explorar os vieses e percepções erradas dos seus consumidores."4 Muitos dos recursos ou características de design comuns em contratos de consumo podem ser explicados pela interação entre forças do mercado e psicologia do consumidor. A ordem temporal dos custos e benefícios - com benefícios antecipados e custos postergados - está ligada à miopia e otimismo do consumidor. E a complexidade está ligada à "racionalidade limitada, ao desafio de lembrar e agregar múltiplas dimensões de custos e benefícios." Esses dois recursos - postergação de custos e complexidade - servem ao propósito último de maximizar o proveito do produto ou serviço como percebido pelo consumidor de racionalidade imperfeita.5 Custos sociais da falha comportamental de mercado Oren Bar-Gill revela que a referida falha comportamental de mercado ameaça, em vários níveis, o bem-estar social. Com o crescimento da referida complexidade contratual, eleva-se para o consumidor o custo de pesquisa e comparação das ofertas, o que resulta em entraves ou embaraços à competição.6 Por exemplo, os contratos de telefonia celular são muitas vezes formulados de maneira complexa. Os fornecedores se utilizam de precificações complicadas baseadas em tarifas de três partes - uma taxa mensal fixa, um número de minutos inclusos e uma taxa excedente para minutos usados além do limite do plano. Além disso, eles por vezes complicam ainda mais ao distinguir entre minutos de pico, noturnos e minutos de fim de semana, minutos usados para ligar para uma lista predefinida de "amigos" e minutos usados para ligar para todas as outras pessoas.7 Imagine-se então, propõe Oren Bar-Gill, um consumidor com racionalidade imperfeita tentando escolher entre tais complexos e multidimensionais contratos. "A tarefa é assustadora", a qual "muitos consumidores irão simplesmente evitar", afirma o autor. Mercados não funcionam bem quando os consumidores não vão em busca das melhores ofertas. Na falta de efetiva comparação, os preços elevam-se, o que prejudica os consumidores. Além disso, estes podem não findar pareados com os fornecedores que melhor se adequam às suas necessidades. O resultado é a redução da eficiência de mercado.8 A interação entre forças de mercado e psicologia do consumidor criam, portanto, uma falha de mercado, a qual impõe custos ao bem-estar social. A questão que se coloca, então, segundo Bar-Gill, é se a regulação jurídica poderia ajudar. Como resposta, o autor enfoca a técnica regulatória dos deveres de informação (disclosure mandates).9 Por deveres de informação mais eficazes Em relação aos deveres de informação, Oren Bar-Gill chama atenção para o fato de que os já existentes e reconhecidos focam sobremaneira em informações relativas às características do produto ou do serviço: o que eles são e o que fazem. Ele, por sua vez, propõe que seja dada maior atenção à divulgação de informações relativas ao uso do produto ou serviço: como eles serão utilizados pelo consumidor.10 Em um contexto de escolha racional, a divulgação de informações relativas ao uso do produto ou serviço pode ser tido como dispensável. Afinal, pode-se esperar que consumidores racionais prevejam os seus futuros padrões de uso de maneira razoavelmente precisa ou, ao menos, que conheçam os seus padrões de uso melhor do que os fornecedores.11 A conclusão não é a mesma, todavia, quando se trabalha com uma perspectiva mais prática e realista, em que os consumidores são detentores de racionalidade imperfeita. Estes consumidores têm frequentemente uma percepção rasa e equívoca dos seus próprios padrões de uso futuro. Ilustrativamente, Bar-Gill formula as seguintes perguntas: "você sabe o quanto você fala no seu celular? Quantas mensagens você manda e recebe? Quantos megabytes de dados você usa? Você [sabe] quanto você vai pegar emprestado no seu cartão de crédito? Quão rápido você quitará o seu saldo devedor? Se você irá algum dia requisitar um adiantamento de dinheiro? Quão provavelmente você irá faltar com um pagamento e incorrer em taxa de atraso?"12 Em face disso, conclui o autor que "o consumidor de racionalidade imperfeita pode se beneficiar substancialmente da divulgação de informação relativa ao uso do produto - informação que vendedores, como as empresas de telefonia celular e emissores de cartão de crédito, fazem questão de saber."13 Além disso e por fim, como indica a racionalidade imperfeita dos consumidores, para ser efetiva, a regulação de deveres de informação deve seguir uma de duas estratégias: de um lado, informações simples que têm os próprios consumidores como destinatários. O objetivo aqui é desenvolver informações agregadas e unidimensionais que facilitem a comparação entre produtos ou serviços concorrentes. Por exemplo, as empresas de telefonia móvel seriam obrigadas a divulgar o custo anual total de uso de um celular. E a divulgação combinaria tanto informações relativas a características do serviço em si quanto informações ligadas ao seu uso. O custo anual do serviço de telefonia combinaria então informações ligadas às taxas do serviço com informações ligadas ao padrão de uso do consumidor. Divulgações simples e agregadas como essa auxiliariam consumidores de racionalidade imperfeita a fazerem escolhas melhores.14 Por outro lado, as divulgações poderiam ter como destinatários não os consumidores, mas sim intermediários mais sofisticados. Dessa maneira, as informações poderiam ser mais amplas e complexas. Imagine-se, por exemplo, um consumidor interessado em trocar de empresa de telefonia móvel e um intermediário que possa ajudá-lo a encontrar o melhor plano para as suas necessidades. O intermediário já dispõe das informações sobre os planos oferecidos pelas empresas presentes no mercado. Mas, como o plano ideal depende dos usos e necessidades de cada usuário, falta ao intermediário as informações sobre os padrões de uso do consumidor em questão. A empresa atual deste consumidor, por sua vez, tem estas informações. A solução, portanto, seria impor a essa empresa a obrigação de divulgar eletronicamente essa informação para que o consumidor possa encaminhá-la para o intermediário. Com esses dados, este estaria enfim em condições ideais para poder oferecer ao consumidor a melhor orientação possível.15 *Daniel Dias é professor da FGV Direito Rio. Doutor em Direito Civil pela USP (2013-2016), com períodos de pesquisa na Ludwig-Maximilians-Universität München (LMU) e no Instituto Max-Planck de Direito Comparado e Internacional Privado, na Alemanha (2014-2015). Estágio pós-doutoral na Harvard Law School, nos EUA (2016-2017). Advogado e consultor jurídico. __________ 1 BAR-GILL, Oren. Seduction by Contract: Law, Economics, and Psychology in Consumer Contracts. Oxford: Oxford University Press, 2012, p. 1. 2 BAR-GILL, op. cit., p. 2. 3 BAR-GILL, op. cit., p. 2. 4 BAR-GILL, op. cit., p. 2. 5 BAR-GILL, op. cit., p. 2. 6 BAR-GILL, op. cit., p. 3. 7 BAR-GILL, op. cit., p. 1. 8 BAR-GILL, op. cit., p. 3. 9 BAR-GILL, op. cit., p. 4. 10 BAR-GILL, op. cit., p. 4. 11 BAR-GILL, op. cit., p. 4. 12 BAR-GILL, op. cit., p. 4. 13 BAR-GILL, op. cit., p. 4. 14 BAR-GILL, op. cit., p. 4-5. 15 BAR-GILL, op. cit., p. 5.
1. A incorporação da função punitiva pelos tribunais nacionais A expectativa criada com a aplicação, em alguma medida, da lógica do instituto dos punitive damages no sistema de justiça brasileiro foi a de funcionalizar o direito da responsabilidade civil, para além da compensação das vítimas, também para a punição e para o desestímulo à reiteração da conduta lesiva por parte do agressor.   A função punitivo-pedagógica, assim, passou a ser abertamente sustentada por boa parte da doutrina e da jurisprudência nacional, com especial campo de incidência na compensação por danos morais - do que decorreria um suposto fortalecimento nas quantias fixadas a tal título. Nesse sentido, inúmeras discussões foram geradas a respeito de seu cabimento e de seus limites. Atualmente, em que pesem todas as críticas formuladas contra a funcionalização punitiva da responsabilidade civil, não há mais como subestimar ou simplesmente desprezar o papel desempenhado pelo agravamento das condenações pecuniárias por danos morais. Trata-se de valioso instrumento de repreensão e de dissuasão de graves e inescusáveis comportamentos ilícitos e antissociais, sendo inegável seu potencial para revitalizar funcionalmente o instituto da responsabilidade, inclusive no âmbito da proteção dos direitos extrapatrimoniais de dimensões transindividuais (o que ensejou a consagração da figura dos danos morais coletivos1). Mediante uma breve análise da jurisprudência nacional, pode-se afirmar que os tribunais nacionais, ao seu modo, incorporaram a aplicação da doutrina dos punitive ou exemplary damages do sistema anglo-saxão, por vezes expressamente, a título de punição exemplar e de dissuasão contra a reincidência de ações ou omissões gravemente culposas ou dolosas, agravando o valor das compensações por danos extrapatrimoniais. 2. Os punitive damages A função punitivo-pedagógica passou a ser comumente empregada em nosso sistema jurisdicional sob locuções das mais diversas, tais como: indenização punitiva, danos punitivos, pena privada ou sanção civil. Todas essas expressões reportam-se, direta ou indiretamente, à figura dos punitive damages (condenações punitivas), originária do direito anglo-saxão2, mas que ganhou notoriedade pelos famosos e emblemáticos casos reportados no âmbito do sistema de justiça norte-americano.3 Por via de referida função, a responsabilidade civil passa a desempenhar duplo papel: o de punir o agente causador do dano e, ainda, a de constituir instrumento de dissuasão de comportamentos antissociais, possuindo um caráter de exemplaridade e, consequentemente, preventivo.4 O instituto dos punitive damages foi gradativamente incorporado pelo direito norte americano, tendo sido consagrado por decisões da Suprema Corte já em 1851, sendo disseminado por quase todos os Estados, sempre com o objetivo de punir (punishment) e desestimular ou prevenir (deterrence) condutas  que se revelassem especialmente maliciosas, opressivas ou cruéis. Importante ressaltar que, tanto no sistema de justiça inglês como no norte-americano, as condenações a título de punitive damages foram concebidas originariamente com o escopo de compensar danos morais sofridos pelas vítimas, misturando-se, num primeiro momento, as funções de compensação e de punição. Tal confusão, contudo, acabou sendo gradativamente superada a partir de um tratamento diversificado que acabou por enquadrá-las em categorias diferentes.5 Nesse sentido, os compensatory damages têm por escopo compensar tudo o que o lesado sofreu, tendo como figura central o indivíduo e seus valores existenciais. Já os punitive damages pretendem a punição da conduta do agente, na sua dupla vertente retributiva e preventiva, voltada à ideia de desestímulo. A disseminação da aplicação do instituto no sistema norte-americano foi seguida pela expansão de seu cabimento, no intuito de punir e dissuadir a provocação de danos graves, tanto de natureza patrimonial como extrapatrimonial, com essencial fundamento na conduta do agente. Assim foi que a jurisprudência dos tribunais americanos, já a partir do século XIX, passou a aplicar os punitive damages não apenas para os casos de condutas especialmente dolosas dos agentes infratores, mas também a casos nos quais se demonstrava a ocorrência da chamada "negligência grosseira". Dentre as hipóteses de relevante incidência da função punitiva civil no sistema norte-americano destacam-se as lesões graves e inescusáveis a consumidores, na medida em que se demonstre que o demandado tinha específico conhecimento sobre os defeitos do produto e de seus potenciais lesivos, o que geralmente é inferido pelos testes empreendidos antes da comercialização dos produtos, por via de relatórios de pós-venda e pelas reclamações de consumidores.6 Diante da grande autonomia que os Estados que integram a federação norte-americana possuem, incumbe-lhes determinar tanto o cabimento (ou não), como os limites de aplicação dos punitive damages - o que, no mais das vezes, acaba sendo deliberado por júris populares cíveis. O papel desempenhado pelos júris cíveis é alvo de constantes críticas, na medida em que os valores arbitrados para atender à função de desestímulo muitas vezes acabam por inviabilizar a atividade empresarialmente desenvolvida, além da falta de aptidão técnico-jurídica do conselho de jurados para a fixação de uma quantificação razoável e adequada às finalidades do instituto. Em razão dos excessos na aplicação da função punitiva da responsabilidade civil, a Suprema Corte dos Estados Unidos da América vem constantemente se debruçando sobre a doutrina dos punitive damages, tendo já sedimentado algumas conclusões, tanto em relação aos pressupostos para a sua aplicação, como à sua quantificação.7 Fundamentalmente, a preocupação externada pela Suprema Corte diz respeito à preservação da Due Process Clause of the Fourteenth Amendment8, sobretudo para aquelas hipóteses em que a indenização fixada pelo corpo de jurados é considerada abusiva. Desse modo, segundo critérios fixados pela Corte, devem-se considerar três diretivas: I. o grau de reprovabilidade da conduta do réu; II. a disparidade entre o dano efetivo ou potencial sofrido pelo autor e os punitive damages; III. a diferença entre os punitive damages concedidos pelo júri e as multas civis autorizadas ou impostas em casos semelhantes. 2.    A necessidade de implementação de um devido processo legal para a funcionalização da responsabilidade civil Muito embora a internalização da função punitiva no âmbito da responsabilidade civil venha sendo largamente sustentada e aplicada pelos tribunais brasileiros - especificamente no campo da fixação de compensação por danos morais -, resta saber se o devido processo legal vem sendo observado e se a pedagogia objetivada por via dessa funcionalização tem se revelado eficaz. Nesse sentido, duas conclusões nos parecem claras: i) a eventual insuficiência do agravamento das condenações fixadas a título de punição por danos morais torna a funcionalização pretendida virtualmente esvaziada; ii) a ausência de destaque, nas decisões judiciais, a respeito do quantum fixado para atender a cada uma das multifuncionalidades da responsabilidade civil no caso concreto, para além de comprometer a eficácia das funções, gera insegurança jurídica e viola o devido processo legal. A princípio, o controle da aplicação da função punitiva ficaria a cargo do Superior Tribunal de Justiça, que chamou para si uma espécie de "função moderadora" relativamente às condenações por danos morais concluídas pelos diversos tribunais estaduais e federais, por via da verificação da razoabilidade e da proporcionalidade do agravamento das compensações pecuniárias por danos morais. Muito embora o exercício dessa função moderadora devesse envolver a reavaliação de diversas questões de fato, avessas ao próprio cabimento do recurso especial, a jurisprudência da Corte já sedimentou sua competência para tal objetivo.9 Segundo o STJ, "Admite-se a revisão do valor fixado a título de condenação por danos morais em recurso especial quando ínfimo ou exagerado, ofendendo os princípios da proporcionalidade e da razoabilidade. A indenização por danos morais possui tríplice função, a compensatória, para mitigar os danos sofridos pela vítima; a punitiva, para condenar o autor da prática do ato ilícito lesivo, e a preventiva, para dissuadir o cometimento de novos atos ilícitos. Ainda, o valor da indenização deverá ser fixado de forma compatível com a gravidade e a lesividade do ato ilícito e as circunstâncias pessoais dos envolvidos".10 Apesar dessa correta fundamentação, todavia, as diversas funções da responsabilidade civil (dentre as quais, a compensatória, a punitivo-pedagógica e a preventiva, expressamente destacadas pela decisão citada) acabam sendo concretizadas por via da condenação ao pagamento de um montante único, sem qualquer estratificação dos valores devidos a título de compensação, de punição ou de restituição. Vale dizer, não importa a que título seja justificado o agravamento da condenação do réu por danos morais, ao final acaba sendo incorporado ou absorvido pela tradicional função compensatória. Essa confusão acarreta, em última análise, a invisibilidade das diferentes funções da responsabilidade civil e a violação do devido processo legal. Não é difícil perceber como a ausência de referida definição acarreta violação do devido processo legal (por força de fundamentação inadequada, restrição à ampla defesa e ao contraditório). Como exemplo, tomemos novamente o julgado supracitado, lavrado pelo STJ. Após a deliberação do colegiado a respeito da necessidade da aplicação das funções compensatória, punitiva e preventiva, acabou-se concluindo:   "Indenização no valor de R$ 250.000,00 (duzentos e cinquenta mil reais), a cargo de cada recorrido, que, no caso, mostra-se adequada para mitigar os danos morais sofridos, cumprindo também com a função punitiva e a preventiva, sem ensejar a configuração de enriquecimento ilícito".11 Parece claro que, sem uma apropriada definição de quais valores são devidos a título de compensação, punição e prevenção, resta totalmente inviabilizado o adequado e justificado exercício da função moderadora a que se atribui o Tribunal.   Pragmaticamente, a grande discricionariedade à qual o STJ se confere para reavaliar a insuficiência ou o exagero na quantificação dos danos morais (e, por consequência, da própria função punitiva nela eventualmente inserida) fia-se no descabimento recursal contra sua deliberação a esse respeito, na medida da remansosa jurisprudência do STF a respeito da inadmissibilidade de recurso extraordinário com fundamento em "ofensas reflexas" ao devido processo legal.12 Ainda assim, quando menos, deveria o próprio STJ exercer o adequado controle das decisões dos tribunais nacionais a respeito da especificação dos montantes pecuniários fixados a título de reparação, punição, prevenção, restituição e qualquer outra funcionalização da responsabilidade civil que se faça necessária nos casos de condenação por danos morais.   Por outro lado, a ausência de discriminação dos valores atribuídos na condenação por danos morais pode implicar, no final das contas, uma funcionalização meramente simbólica. Dessa forma, a retórica fundamentação externada pela decisão judicial, no sentido da incidência das diversas funções antes citadas, acaba se esvaziando na limitada ou nenhuma eficácia que pode decorrer da insuficiência dos valores arbitrados para o pretenso agravamento da condenação do réu.    Assim, muito mais do que se defender a necessidade de multifuncionalização da responsabilidade civil, o grande desafio que se põe ao sistema de justiça nacional também é a forma pela qual o Poder Judiciário deve levar isso a efeito. O devido processo legal para a aplicação de referida funcionalização, ao que parece, sequer carece de regulamentação legislativa - nada obstante talvez fosse esse o caminho mais apropriado. Os tribunais superiores - em especial o STJ - podem perfeitamente delinear todos os aspectos substanciais e procedimentais envolvidos, delimitando com maior precisão, para além das hipóteses em que realmente seja necessário um meio sancionatório extraordinário, também os seus limites, a discriminação específica dos respectivos valores nas decisões judiciais e a sua destinação, no intuito de se buscar o reequilíbrio das relações jurídicas especialmente atingidas pelos danos morais graves e inescusáveis.   A devida sistematização e procedimentalização da função punitiva da responsabilidade civil no Brasil não é tarefa a ser executada por via de raciocínios simplistas ou de meras tentativas de importação de institutos alienígenas como o dos punitive damages. Trata-se de tema demasiadamente complexo e relevante para o sistema de justiça nacional, exigindo interpretação que propicie um equilíbrio entre as diversas tensões substanciais e processuais envolvidas na sua aplicação.  ___________ 1 A respeito das diversas dimensões e funções dos danos morais coletivos vide VENTURI, Elton e VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto. O dano moral em suas dimensões coletiva e acidentalmente coletiva. In: Dano moral coletivo. São Paulo: Editora Foco, 2018. Em recente julgamento, consagrou o STJ a função punitivo-pedagógica dos danos morais coletivos: "(...) os danos morais coletivos têm como função a repressão e a prevenção à prática de condutas lesivas à sociedade, além de representarem uma forma de reverter a vantagem econômica obtida individualmente pelo causador do dano em benefício de toda a coletividade" (REsp 1655731/SC, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 14/05/2019, DJe 16/05/2019). 2 Os casos paradigmáticos foram representados pelos processos Huckle v. Money e Wilkes v. Wood, datados de 1763, cujas decisões, pela primeira vez no sistema judiciário inglês, aplicaram uma espécie de pena privada (trezentas libras a título de exemplaire condamnation), fundamentada não em quaisquer danos sofridos pela vítima, mas sim na ilegalidade e abusividade representados por arrombamentos e buscas procedidas pela guarda real na casa de John Wilkes (um conhecido opositor ao regime de George III), sem a expedição de mandados de busca judiciais, motivados por interesses políticos. Gradativamente, os exemplary damages começaram a ser aplicados não só contra abusos de autoridades públicas, mas também contra particulares, como ocorrido no caso Forde v. Skinner (quando um empregador cortou abusivamente os cabelos de uma empregada), estabelecendo-se como importante instrumento de proteção da liberdade individual e da vida privada. Nada obstante tal uso precursor dos exemplary damages no direito inglês, a função punitiva da responsabilidade civil foi drasticamente restringida na Inglaterra a partir da decisão proferida pela Câmara dos Lordes no caso Rookes v. Barnard, em 1964, segundo a qual somente seria admissível a condenação exemplar quando expressamente prevista em lei; nas hipóteses em que o agente calculou que os lucros que viria a obter com a sua conduta excediam o valor da indenização que teria de pagar pelos danos causados; e ainda, quando, a critério do juiz, estivesse em julgamento uma conduta opressiva, arbitrária ou inconstitucional de um funcionário do governo (abusos de poder de autoridade). Destaca-se ainda, que a expressão exemplary damages é a mais adotada, enfatizando originariamente a ideia de desestímulo. CARVAL, Suzanne. La responsabilité civile dans sa fonction de peine privée. Paris: L.G.D.J, 1995. 3 Apesar de os Estados Unidos terem adotado os punitive damages por meio da colonização britânica, não seguiram as mesmas diretrizes firmadas no caso Rooks v. Barnard, no sentido de se restringir a aplicação do instituto para as três hipóteses mencionadas. Ao contrário assistiu-se a uma verdadeira ampliação de seu campo de atuação. 4 "Punitive damages, sometimes called exemplary or vindictive damages, or "smart money", consists of an additional sum, over and above the compensation of the plaintiff for the harm that he has suffered, which are awarded to him for the purpose of punishing the defendant, of admonishing him not to do again, and of deterring others from following his example." W. PROSSER, J. Wade & V. SCHWARTZ, Torts. Cases and Materials. 7ª ed. New York: Foundation Press, 1982, p. 560. 5 "No caso Cole v. Tucker, o tribunal texano estabeleceu a diferença entre os danos compensatórios (compensatory damages), que assumiam uma função compensatória, e os danos punitivos (punitive damages), cumulando-se estes àqueles sempre que o lesado tivesse sido alvo de uma conduta particularmente censurável, visando a punição do agente e reprimindo a repetição da conduta pelo infractor ou terceiros." 6 GEISTFELD, Mark A., Due process and the deterrence rationale for punitive damages" (2011). New York University Public Law and Legal Theory Working Papers. Paper 311. https://lsr.nellco.org/nyu_plltwp/311, p. 111, acesso em novembro de 2020. 7 The U.S. Supreme Court has held that defendants are protected against excessively high punitive damage awards by the Due Process Clause of the U.S. Constitution. To determine whether a punitive damages award satisfies due process, judges must evaluate the award in terms of three factors: '(1) the degree of reprehensibility of the defendant's misconduct; (2) the disparity between the actual or potential harm suff ered by the plaintiff and the punitive damages award; and (3) the diff erence between the punitive damages awarded by the jury and the civil penalties authorized or imposed in comparable cases. (...) The Court has held 'that, in practice, few awards exceeding a single-digit ratio between punitive and compensatory damages, to a signifi cant degree, will satisfy due process." GEISTFELD, Mark A., Due process and the deterrence rationale for punitive damages" (2011). New York University Public Law and Legal Theory Working Papers. Paper 311. Disponível em https://lsr.nellco.org/nyu_plltwp/311, p. 112-113. Acesso em novembro de 2020. 8 "Amendment XIV (ratified July 9, 1868), Section 1. All persons born or naturalized in the United States and subject to the jurisdiction thereof, are citizens of the United States and of the State whrein they reside. No State shall make os enforce any law which shall abridge the privileges or immunities of citizens of the United States; nor shall any State deprive any person of life, liberty or property, without due process of law; nor deny to any person within its jurisdiction the equal protection of the laws". 9 A respeito do tema vide VENTURI, Thaís Goveia Pascoaloto e KROETZ, Maria Cândida do Amaral. O papel do Superior Tribunal de Justiça na revisão das indenizações por danos extrapatrimoniais, In: Apontamentos críticos para o direito civil brasileiro contemporâneo. Curitiba: Editora Juruá, 2007.  10 STJ, REsp 1440721/GO, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 11/10/2016, DJe 11/11/2016. 11 STJ, REsp 1440721/GO, Rel. Ministra MARIA ISABEL GALLOTTI, QUARTA TURMA, julgado em 11/10/2016, DJe 11/11/2016.   12 Conforme já assentou o STF, "A violação reflexa e oblíqua da Constituição Federal decorrente da necessidade de análise de malferimento de dispositivos infraconstitucionais torna inadmissível o recurso extraordinário. Precedentes: RE 596.682, Rel. Min. Carlos Britto, Dje de 21/10/10, e o AI 808.361, Rel. Min. Marco Aurélio, Dje de 08/09/10. 2. Os princípios da legalidade, do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório, da motivação das decisões judiciais, bem como os limites da coisa julgada, quando a verificação de sua ofensa dependa do reexame prévio de normas infraconstitucionais, revelam ofensa indireta ou reflexa à Constituição Federal, o que, por si só, não desafia a abertura da instância extraordinária. Precedentes: AI 804.854-AgR, 1ª Turma, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJe de 24/11/2010 e AI 756.336-AgR, 2ª Turma, Rel. Min. Ellen Gracie, DJe de 22/10/2010." ___________ *Thaís G. Pascoaloto Venturi tem estágio de pós-doutoramento na Fordham University - New York (2015). Doutora pela UFPR (2012), com estágio de doutoramento - pesquisadora Capes - na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa/Portugal (2009). Mestre pela UFPR (2006). Professora de Direito Civil da Universidade Tuiuti do Paraná - UTP e de cursos de pós-graduação. Associada fundadora do Instituto Brasileiro de Responsabilidade Civil - IBERC. Mediadora extrajudicial certificada pela Universidade da Califórnia - Berkeley. Mediadora judicial certificada pelo CNJ. Advogada e sócia fundadora do escritório Pascoaloto Venturi Advocacia.
Podemos alcançar uma ampla visão da cláusula penal no direito privado em um viés comparatista, contrapondo três horizontes: Europa continental, Inglaterra e Brasil. Em França, Itália, Espanha e Portugal, convivem harmoniosamente dois modelos de cláusula penal: A compensatória e a punitiva. Como se extraí da nomenclatura, através da primeira as partes prefixam os danos decorrentes de eventual quebra do contrato. A cláusula penal compensatória antecipa um montante em face da mora ou inadimplemento, evitando que o contratante inocente tenha que dispender tempo, dinheiro e energia com a demonstração em juízo do prejuízo decorrente do descumprimento da prestação. Em contrapartida, a cláusula penal propriamente dita é um acordo em que os contraentes estipulam uma pena civil como sanção punitiva para o descumprimento do negócio. A sua função não é compensatória, porém dissuasória, no sentido de inibir e desencorajar o desrespeito à palavra dada. Para que essa finalidade seja alcançada, evidentemente o valor da pena será superior ao do bem ou o do serviço negociado. Exemplificativamente, se A e B negociam a aquisição de um equipamento para a realização de exames oncológicos, a cláusula penal será de R$ 200.000,00 se esse montante corresponder aos danos emergentes e lucros cessantes da parte frustrada, mas poderá alcançar R$ 400.000,00, se o objetivo de A e B foi o de constituir uma pena que desestimule um ou outro a desistir do contrato, independentemente da concreta aferição de qualquer prejuízo. De um modo geral, no direito Europeu, a imposição de uma pena contratual é considerada legítima à medida em que preserve a proporcionalidade, conforme as circunstâncias do caso. Porém, o seu valor será submetido a uma redução judicial, caso ultrapasse o "quantum" razoável para produzir o efeito de desencorajamento e resvale em abuso do direito. E como a cláusula penal é formulada nas diversas jurisdições da common law? Com pequenas oscilações, nestes países também é realizada a diferenciação entre a cláusula de índole compulsória - penalty clause - e a cláusula de prévia indenização - liquidated damages clause.1 A primeira é um mecanismo de coerção ao cumprimento; já a segunda consiste em simples convenção de pré-estimação de danos na qual as partes possam se prevenir de eventuais prejuízos e evitar os custos de um processo judiciário, além da perda de seu bem mais precioso: o tempo. Na Inglaterra a abordagem é tradicionalmente diversa da Europa continental, pois as cortes inglesas construíram o sistema contratual com base nas práticas comerciais, enquanto o sistema do civil law prezou mais pelas relações interindividuais. As raízes da penalty doctrine datam do século XVI, originando-se da preocupação dos tribunais em evitar a exploração de uma parte a outra em uma época em que o crédito era escasso e os mutuários particularmente vulneráveis. O vocábulo "penalty" significa o pagamento de uma quantia estipulada contratualmente, mas que não é passível de execução quando se revele exorbitante como alternativa aos danos que seriam apurados em juízo. Vale dizer, em respeito a um arraigado apreço pelo iluminismo liberal, juízes e tribunais consideram meritório que as partes quisessem evitar conflitos posteriores, constituindo liquidated damages, como verdadeira estimativa de compensação de danos com base no provável prejuízo dos contratantes. Essa cláusula é perfeitamente executável. Todavia, não se admitiram as penalty clauses, pelas quais qualquer dos contratantes fosse punido monetariamente por falhar em sua performance, pois ninguém é obrigado a "se amarrar" a um contrato. Daí a tolerância inglesa com a autonomia da parte em se retirar de contratos, optando por se aventurar em outras relações econômicas que lhe pareçam mais lucrativas, sem que por esse comportamento seja condenado a pagar nada a mais do que uma estimativa dos danos causados à parte ofendida. Diferentemente do contexto da Europa continental, o inadimplemento não é reputado como um fato ilícito, mas um ato de liberdade, por isto, na tradição inglesa a penalty clause sequer é reduzida a um montante razoável, sendo simplesmente invalidada, restando ao credor a opção de provar em juízo o seu prejuízo real.2 Enquanto no direito alemão as cláusulas de Vertragsstrafe e Schadenpauschale convivem pacificamente, cada qual em seu território, no common law a penalty clause foi historicamente excluída do ordenamento e tida como nula - e não redutível -, caso incluída em uma convenção. Na experiência inglesa a nulidade da cláusula penal não é limitada aos casos de abuso manifesto; trata-se de uma solução generalizada, seja entre profissionais e não profissionais. Há muito prevalece o argumento de que as partes não podem criar formas de coerção privada que permitam ao credor "aterrorizar" o devedor, compelindo-o ao cumprimento. Em contrapartida, as cláusulas de liquidação de danos são válidas e intangíveis aos magistrados.3 A chamada penalty doctrine reflete uma resistência do common law às cláusulas penais que ostentem a natureza de pena. Ao contrário do que ocorre na responsabilidade extracontratual, as suas distintas jurisdições tendem a evitar a introdução de qualquer forma de punitive damages pela quebra de um contrato porque, supostamente, a mera disponibilidade de uma pena privada comprometeria seriamente a estabilidade e previsibilidade das transações comerciais, dado vital para o eficiente funcionamento da economia moderna. Se por um lado, a liquidated damages clause é bem-vinda por antecipar perdas e danos e evitar um litígio, as penalty clauses não são consistentes com a visão arejada da common law sobre a liberdade de romper contratos, pela qual as partes não podem ficar perenemente amarradas a uma obrigação e consequentemente punidas pelo descumprimento.4 Subjacente a esse argumento reside uma histórica resistência do direito anglo-americano à possibilidade de o credor buscar a execução específica das obrigações de dar, fazer ou não fazer. A chamada specific performance só poderá ser levada a efeito se o tribunal considerar que a ação indenizatória não serve como remédio adequado no caso concreto. Ora, se a tutela inibitória é relegada a segundo plano, justamente por pressionar o devedor ao cumprimento, em linha de coerência o sistema da common law não poderia consentir na validação de uma cláusula penal cujo fito fosse justamente o de constranger o devedor a cumprir, in terrorem. Avulta perceber que a distinção entre a penalty clause e a liquidated damages clause será realizada à luz das particularidades do caso concreto, em face do teor das cláusulas, notadamente da relação entre o valor fixado pelos contratantes e a estimativa aproximada de danos em caso de eventual inadimplemento. Assim, se o tribunal perceber que a quantia fixada é extremamente elevada em comparação à previsão de danos, mesmo que as partes tenham dado à cláusula a nomenclatura de liquidated damages clause, será ela presumida como penalty clause e, consequentemente, invalidada. Lado outro, há mais de 50 anos o Sistema norte-americano sofreu uma inovação na matéria. O Uniform Commercial Code de 1967, no art. 2-718, substituiu o critério subjetivo da intencionalidade das partes pelo critério objetivo da razoabilidade, no qual deverá ser aferida se a soma convencionada como cláusula penal se mostrou razoável ao dano efetivo e atual do devedor. A referida legislação - influenciada pelo Restatement 2d Contracts - formulou duas condições para que o montante estipulado não se enquadre na definição de uma proibida penalty clause: (i) o valor estipulado deve ser razoável (isto é, não desproporcional) à luz dos danos previstos pelas partes; (ii) devido a avaliação subjetiva, incerteza, dificuldade de produzir prova de dano ou qualquer outro problema de medição, seja difícil ou impossível medir - e assim provar - a perda presumível. Portanto, hoje os tribunais nos Estados Unidos aplicam um único teste de razoabilidade com dois elementos, a saber: a desproporção da soma acordada e a dificuldade da prova do prejuízo, a fim de determinar se uma cláusula de indenização na verdade não é um disfarce para uma penalty clause.5 Todavia, a grande virada da cláusula penal aconteceu na Inglaterra, em 2015. Em dois relevantes julgamentos, a Suprema Corte da Inglaterra alterou o seu histórico posicionamento sobre a proibição das penalty clauses. A SCOTUK rejeitou o tradicional teste que avalia se a cláusula penal é uma "genuína estimativa de danos" de natureza compensatória (validade das liquidated damages), ou uma cláusula penal que visa desestimular a quebra de contrato (invalidade das penalty clauses). Ficou estabelecido que as penalty clauses poderão ser executadas eficazmente mesmo que o montante supere a estimativa dos prejuízos - ou mesmo que sequer eles existam -, desde que satisfeito o binômio da proporcionalidade entre o valor predeterminado e o legítimo interesse da parte inocente em obter o adimplemento das obrigações contratuais. Prevaleceu o conceito de que as partes - e não os juízes - são as pessoas mais indicadas para definir de que forma os seus interesses serão representados no contrato. Evidentemente, essa maior flexibilidade se aplicará conforme as circunstâncias da relação jurídica, sempre sob a premissa de que as partes estejam em posição de relativa igualdade de forças e poder de barganha. Assim, o sistema britânico se "europeizou" ao considerar que o importante não é o rótulo da cláusula penal, mas a concreta aferição se ela é o não "grosseiramente excessiva".6 Podemos extrair que a mitigação da penalty doctrine significa um passo adiante com relação aos sistemas que ainda não conseguem autonomizar a cláusula penal em sentido estrito da cláusula indenizatória. Com efeito, Fernando Araújo pondera que a análise econômica do direito rejeita com veemência o rigor da penalty doctrine, dando-a como expressão de um paternalismo, que desrespeita a autonomia contratual. Afinal, as partes podem determinar soberanamente a distribuição do risco contratual, de acordo com as disposições de cada uma para suportar esse risco. A consagração do regime punitivo é uma forma de fomentação das trocas contratuais, que torna as relações mais transparentes e privilegia a superioridade da autodisciplina sobre a heterodisciplina, com expansão da área de consenso entre as partes, permitindo a afirmação de fatores de equilíbrio, que por qualquer razão não possam ser assegurados pelo simples mecanismo de preços de mercado.7 De tudo, fica a advertência ao direito privado brasileiro. Nossa doutrina e jurisprudência não podem fugir ao debate que ocorre em outras jurisdições do civil law e common law. Em nosso país, nos últimos dois séculos a cláusula penal foi forjada com um padrão unitário. Um modelo jurídico híbrido, simultaneamente dotado de fins compensatórios e punitivos, capaz de antecipar a liquidação de danos e compelir o devedor a adimplir. Esse modus operandi da cláusula penal é empobrecedor e asfixiante, pois sua bitola unitária e bifuncional comprime as várias possibilidades que a autonomia negocial poderia lhe imprimir, haja vista que um único modelo jurídico não pode concomitantemente atuar como pena e ressarcimento de danos. Valorada a função que as partes desejam imprimir à cláusula penal podemos delinear as suas diversas eficácias em dois modelos jurídicos distintos, conforme seja ela uma cláusula penal em sentido estrito - que não objetiva compensar um prejuízo, mas atribuir uma pena ao causador do dano - ou uma cláusula de fixação antecipada de perdas e danos, de caráter puramente compensatório, especialmente eficaz para os casos em que a determinação judicial do montante seja difícil, custosa e demorada. A pena foca na repulsa ao ofensor, enquanto a compensação mira na reparação em prol da vítima. Justamente por isto, a pena não se relaciona com o conceito de equivalência entre o dano causado e a sua reparação, pois seu desiderato é pressionar o devedor ao adimplemento, por meio da ameaça de outra prestação cujo valor se situa acima da indenização ordinária. A renovação da cláusula penal não demanda reforma legislativa. As diversas eficácias de ambas as cláusulas penais já estão referenciadas nos artigos 408 a 416 do Código Civil. Com o recente reforço do art. 421-A,II,CC- e da LLE de um modo geral - a gestão de riscos convencional materializa a liberdade contratual para que no interesse do credor haja a alternativa de configuração de cláusula de perdas e danos ou então de uma cláusula penal em sentido estrito, ambas submetidas ao controle de legitimidade pelo art. 413 do Código Civil, conforme as suas especificidades. _________ 1- Em matéria de liquidated damages clause, Harriet Zitscher ensina que nas jurisdições do common law não se distingue entre não cumprimento, mau cumprimento ou mora. O contrato entende-se como promessa de garantia quanto ao cumprimento da obrigação. Portanto, tudo que não é aquele cumprimento estipulado é considerado como uma quebra da promessa de garantia feita - breach of contract. ZITSCHER, Harriet Christiane. Introdução ao direito civil alemão e inglês, p. 152 2- No início do século XX, o julgamento no caso Dunlop Pneumatic Tire Co. contra New Garage & Motor Co. Ltd [1915] AC 847 (Dunlop) reafirmou a regra da penalidade, fornecendo quatro testes que foram projetados como "útil ou conclusivo" para determinar se uma cláusula era ou não uma penalidade aplicável. O julgamento da Dunlop fez uma distinção entre penalty clauses (que não eram aplicáveis) e liquidated damages que seriam aplicáveis desde que a quantia especificada fosse uma pré-estimativa genuína de perdas - essa dicotomia terminológica se popularizou nos contratos comerciais ingleses nos últimos 100 anos. 3- Resumindo as críticas ao sistema inglês, Anne Sinay-Cytermann explica que a interdição generalizada de qualquer cláusula penal, em todos os domínios, torna-se exagerada. Somente as verdadeiras cláusulas abusivas deveriam ser objeto de invalidação. É excessivo condenar a função cominatória da cláusula penal em vez de reprimir o abuso. (Clauses pénales et clauses abusives: vers un rapprochement. :GHESTIN, Jacques. Les clauses abusives dans les contrats types en France et en Europe, p. 209.) 4- CARTWRIGHT, John. "In many civil law systems there is a judicial control of penalty clauses: the courts are given the power to reduce manifestly excessive or disproportionate penalties. This is not, however, the approach adopted in English law. Proportionality is now included within the test to determine whether the clause is a penalty, but if the stipulated sum is excessive or disproportionate and is held to be a penalty, it is not reduced (to, for example, a 'reasonable penalty), but is simply struck out and the claimant is left to prove his actual loss by way of damages". In An introduction to the English law of contract for the civil lawyer., Third Edition, p. 224. 5- VITKUS, Simas. Penalty clauses within different legal systems. Social Transformations in Contemporary Society', 2013, p. 4. 6- Cavendish Square Holding BV v Talal El Makdessi (El Makdessi) and ParkingEye Ltd v Beavis [2015] UKSC 67 (ParkingEye). Dos dois julgamentos que serviram de base ao renovado entendimento da Suprema Corte da Inglaterra, o segundo parece evidentemente problemático, por ultrapassar limites de uma diretiva europeia de proteção ao consumidor. Um estacionamento privado cobrou £85 de um proprietário, que manteve o veículo no local por um período superior ao de 2 horas adicionais de tolerância. Evidentemente, não se tratava de uma cláusula de liquidação de danos, pois o estacionamento não sofreu qualquer prejuízo. Apesar do evidente objetivo de inibir motoristas a permanecer no estacionamento além do período permitido -, o montante não foi considerado extravagante ou exorbitante, posto justificado tanto do ponto de vista comercial - que requer a obtenção de lucros pelo empreendedor -, como pela necessidade de um eficiente uso do local, permitindo que vagas escassas estivessem à disposição de um maior número de pessoas. 7- ARAÚJO, Fernando. Teoria econômica do contrato, p. 932. Dessa forma, conclui o Professor da Universidade de Lisboa: "Não admira, pois, que muitos cultores da abordagem económica olhem com indisfarçada simpatia para a tradição romanística e para as soluções dominantes no universo do 'civil law', no qual se encontra consagrada, com toda naturalidade, a possibilidade de recurso às cláusulas penais lato sensu, quer elas estabeleçam máximos quer mínimos, quer quantias fixas a balizarem ou a substituírem o apuramento empírico dos danos".
1.  Introdução Na última coluna apresentada nesse espaço no dia 26/10/20 pelo nosso colega Daniel Dias, foi tratado o instigante tema do "Seguro Obrigatório de Responsabilidade Civil e Inteligência Artificial na Common Law". Coincidentemente, tinha acabado de lançar um artigo intitulado Paths to Digital Justice: Judicial Robots, Algorithmic Decision-Making, and Due Process no periódico Asian Journal of Law and Society (AJLS) publicado pela Cambridge University Press.1 Considerando a afinidade entre os dois temas, resolvi aproveitar essa coluna para explorar o tema dos robôs judiciais e do direito algorítmico com a discussão de algumas reflexões a partir da experiência da Common Law. 2. O ponto de partida: Como algoritmos podem apoiar decisões jurídicas?  Em primeiro lugar, é importante registrar que o artigo foi escrito a partir de uma apresentação feita na Conferência do Research Committee of Sociology of Law em Oñati em 2019, a partir de um convite formulado pelos Professores Hakan Hydén e Ji Weidong, que também fizeram o convite para submeter o artigo para publicação em uma edição especial temática do AJLS. O ponto de partida para a nossa reflexão é a questão sobre como algoritmos podem apoiar decisões jurídicas e, eventualmente, se decisões algorítmicas podem substituir decisões judiciais.2 Em última instância, o artigo discute a possibilidade de que existam robôs judiciais como substitutos dos magistrados humanos.3 Se até bem pouco tempo atrás o tema seria considerado como material para roteiros de filmes e seriados de ficção científica como Perdidos no Espaço e Star Trek por exemplo,4 o fato é que atualmente os Tribunais Superiores no Brasil já contam com o apoio de ferramentas avançadas de tecnologia da informação para realizar a triagem dos novos processos distribuídos, elaborando a classificação dos casos através de processamento de linguagem natural e identificando se se tratam de demandas repetitivas que eventualmente podem ser submetidas a tratamento uniforme no âmbito do STF5 e do STJ6. Além dessas ferramentas de processamento natural de linguagem (natural language processing), existem também projetos de tecnologia da informação de produção customizada em linha de montagem (Document Assembly Line) de documentos jurídicos, inclusive de atos processuais. Recentemente, o CNJ fomentou inclusive o uso de robôs como ferramenta de apoio para ampliar a automatização e a celeridade dos processos judiciais de execução fiscal, a partir da experiência bem sucedida de projetos-piloto no TJ/RN e no TJ/PE.7 No caso de Pernambuco, o uso de inteligência artificial foi capaz de substituir o trabalho de classificação de processos feitos por uma equipe de 11 servidores e o robô Elis conseguiu concluir o trabalho que levaria um ano e meio em quinze dias com grau de acerto de 96%.8 Não resta dúvidas de que a tecnologia de informação possui um potencial enorme de otimizar a atuação do Poder Judiciário como uma ferramenta de apoio ao processamento e como um substituto mais eficiente de tarefas repetitivas, o que já evidenciado por esses exemplos concretos. Por outro lado, atualmente, não contamos no Poder Judiciário brasileiro com ferramentas que podem substituir o julgador humano pela inteligência artificial na própria tomada da decisão de mérito em um processo judicial.9 Nesse sentido, uma nova questão deve ser enfrentada: poderiam os robôs judiciais vir a substituir os magistrados humanos? 3. Questão complexa: podem robôs judiciais substituir juízes humanos? A questão complexa sobre se robôs judiciais podem substituir os juízes humanos deve ser enfrentada a partir do estudo de caso do Correctional Offender Management Profiling for Alternative Sanctions (COMPAS) amplamente adotado pelo Poder Judiciário nos Estados Unidos como uma ferramenta de análise de risco e de apoio para decisões judiciais em um grande volume de casos concretos.10 O algoritmo foi desenvolvido para avaliar a potencial reincidência e servir de instrumento de apoio na tomada de decisão judicial sobre a prisão ou a liberdade de um acusado no processo penal com base na tecnologia de informação.11 Como um exemplo prodigioso da chamada "virada matemática no direito" (mathematical turn in law)12, o COMPAS consiste em um indicador jurídico de probabilidade de reincidência medido através de uma escala de risco e como parte de um modelo de regressão matemática treinado para prever novas ofensas criminais a partir de uma amostra de casos concretos.13 Ao final de uma análise feita a partir de oito fatores criminológicos preditivos de crime, o algoritmo calcula um número que serve como o score decimal para cálculo do risco de reincidência.14 O uso do COMPAS foi criticado em um artigo elaborado pela ProPublica e intitulado Machine Bias, em que os autores apresentaram evidências de que o COMPAS discriminava acusados da raça negra e que gerava uma série de disparidades raciais, sendo muito pouco confiável como uma ferramenta de previsão de comportamento criminoso futuro.15 Segundo os autores, acusados da raça negra eram erroneamente considerados potenciais criminosos quase duas vezes mais do que os acusados da raça branca, ao passo que réus brancos eram equivocadamente classificados como de baixo risco mais frequentemente do que os réus negros.16 Além disso, a ProPublica criticou o fato de que a companhia responsável pelo Software não tornava aberta a fórmula matemática e os cálculos adotados para a avaliação do risco, o que impedia que o grande  público e os advogados pudessem entender as razões para tais disparidades.17 Em sua defesa, os desenvolvedores do software argumentaram que o COMPAS não é discriminatório, mas que as disparidades raciais seriam decorrentes do fato de que o algoritmo é treinado a partir de uma amostra real de casos concretos e que o problema reside na realidade que seria preconceituosa.18 Além disso, o software era uma mera ferramenta de apoio a decisões judiciais e não deveria ser analisado como se fosse capaz de fazer previsões absolutas, tal qual os oráculos mágicos do filme Minority Report.19 Segundo eles, o critério para análise do software, deveria ser sua superioridade concreta diante da alternativa do julgamento humano sem o apoio da ferramenta de análise de risco, levando-se em conta a consistência do padrão de respostas da tecnologia de informação e a eficiência no processamento de dados em grande volume e de forma mais célere.20 O caso do COMPAS é relevante para a nossa reflexão por uma série de pontos relevantes sobre os dilemas, limites e possibilidades de se considerar que robôs judiciais podem vir a substituir juízes humanos. A principal dificuldade é que talvez seja inviável para os programadores de software em reproduzir a característica da prudência, que é típica da atuação dos magistrados. Não é, aliás, por acaso que a expressão jurisprudence é sinônimo de filosofia do direito na common law e que a palavra jurisprudência se refira ao conjunto de decisões judiciais na civil law. Se robôs e inteligência artificial parecem ser excelentes em termos de celeridade e de processamento de grande volume de dados em curto espaço de tempo, por outro lado, existe uma dificuldade imensa em se treinar os robôs para terem a necessária inteligência emocional que se espera de magistrados. Além disso, existem as dificuldades relativas ao caráter secreto do algoritmo e à necessidade de justificação das decisões judiciais que exigem dos arquitetos da inteligência artificial um esforço maior no desenvolvimento de tecnologias explicatórias para que decisões algorítmicas não tenham o caráter absolutamente opaco de uma caixa preta.21 Nesse sentido, existe a necessidade de que sejam desenvolvidas auditorias de algoritmos para a prevenção de tratamentos discriminatórios e de outras lesões aos direitos coletivos.22 Também é importante o desenvolvimento de uma ação afirmativa algorítmica, isto é, de se desenvolver uma perspectiva de treinamento dos profissionais de tecnologia da informação para que sejam sempre pautados pela ética e pela confiabilidade para que seja enfrentando de maneira consistente o risco da discriminação tecnológica. Finalmente, deve ser valorizado o aspecto humano da tomada de decisão, notadamente o caráter inovador da inteligência humana que possibilita a adoção de decisões transformadoras e diferentes dos paradigmas anteriores. Noutras palavras, por serem máquinas identificadoras de parâmetros adotados repetitivamente, os robôs judiciais podem ter uma tendência conservadora e não progressista, o que dificultaria a inovação e a originalidade nos julgamentos do poder judiciário, caso robôs substituíssem magistrados humanos. 4.    Considerações finais O presente artigo explorou o tema da possibilidade de algoritmos apoiarem decisões jurídicas e de robôs judiciais virem a substituir magistrados humanos. Não resta dúvida de que o Poder Judiciário tem muito a ganhar através do emprego de robôs judiciais como ferramentas de apoio para dar celeridade e qualidade ao processamento de grande quantidade de dados. Por outro lado, é necessário cautela quanto à substituição de magistrados humanos por robôs judiciais. A tecnologia de informação atual não permitiria o exercício da inteligência geral típica do conhecimento humano, mas apenas da inteligência artificial específica, que é capaz de desenvolver eficientemente tarefas repetitivas com ganhos de celeridade e volume. É possível, porém, vislumbrar a possibilidade de uso experimental de tecnologia da informação para pequenas causas que poderiam estar sujeitas a arbitramento eletrônico de decisões de pequeno valor e cujo teor seriam vinculantes apenas para a empresa que tenha proposto tal meio de solução de conflitos e não para o consumidor final. O emprego de tecnologia da informação para a solução online de conflitos (Online Dispute Resolution) nesses moldes possui potencial para eventuais testes com inteligência artificial no papel dos tomadores de decisão. Contudo, é necessário que os árbitros eletrônicos passem no teste de prudência exigida dos julgadores, além de possuírem características típicas dos magistrados como a imparcialidade e a capacidade de justificação racional de suas próprias decisões.  ____________ 1 FORTES, Pedro RUBIM BORGES. "Paths to Digital Justice: Judicial Robots, Algorithmic Decision-Making, and Due Process." Asian Journal of Law and Society: 1-17. 2 Idem. 3 Idem. 4 Tais exemplos foram dados pelo Eminente Desembargador Federal, Dr. André Fontes, por ocasião de um seminário de discussão do artigo e sou imensamente grato a ele pelos comentários e pelo generoso feedback dado ao texto naquela ocasião. 5 Clique aqui 6 Automatização é saída para STJ não julgar mesma tese mil vezes, diz Noronha. 7 Clique aqui 8 Clique aqui 9 O ponto foi salientado pelo Eminente Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva por ocasião de um seminário de discussão do artigo e sou imensamente grato por esse ponto e por todos os comentários feitos por ele como o debatedor do artigo naquele evento. 10 FORTES, Pedro RUBIM BORGES. "Paths to Digital Justice: Judicial Robots, Algorithmic Decision-Making, and Due Process." Asian Journal of Law and Society: 1-17. 11 Idem. 12 RESTREPO AMARILES, David. Legal indicators, global law and legal pluralism: an introduction. 2015; FORTES, Pedro Rubim Borges. How legal indicators influence a justice system and judicial behavior: the Brazilian National Council of Justice and 'justice in numbers'. The Journal of Legal Pluralism and Unofficial Law, v. 47, n. 1, p. 39-55, 2015. 13 FORTES, Pedro RUBIM BORGES. "Paths to Digital Justice: Judicial Robots, Algorithmic Decision-Making, and Due Process." Asian Journal of Law and Society: 1-17. 14 Idem. 15 ANGWIN, Julia et al. Machine bias. ProPublica. See https://www. propublica. org/article/machine-bias-risk-assessments-in-criminal-sentencing, 2016. 16 Idem. 17 Idem. 18 DIETERICH, William; MENDOZA, Christina; BRENNAN, Tim. COMPAS risk scales: Demonstrating accuracy equity and predictive parity. Northpointe Inc, 2016. 19 FORTES, Pedro RUBIM BORGES. "Paths to Digital Justice: Judicial Robots, Algorithmic Decision-Making, and Due Process." Asian Journal of Law and Society: 1-17. 20 Idem. 21 PASQUALE, Frank. The black box society. Harvard University Press, 2015. 22 Confira-se FORTES, Pedro RUBIM BORGES, Responsabilidade Algorítmica do Estado. ROSENVALD Nelson e Guilherme Magalhães MARTINS. Responsabilidade Civil e Novas Tecnologias. Foco (2020).
Com o crescente desenvolvimento e propagação de tecnologias que se utilizam de inteligência artificial (IA), tem crescido também o estudo e o interesse por oferecer uma resposta adequada por os casos de danos decorrentes dessas tecnologias. O Parlamento Europeu, em resolução de 16/2/2017, que contém recomendações à Comissão sobre disposições de Direito Civil sobre Robótica (2015/2103-INL), entre outros pontos, sugeriu "que uma possível solução para a complexidade de atribuir responsabilidade pelos danos causados pelos robôs cada vez mais autónomos pode ser um regime de seguros obrigatórios, conforme acontece já, por exemplo, com os carros". Além disso, considerou "que, à semelhança do que acontece com os veículos motorizados, esse regime de seguros poderia ser complementado por um fundo de garantia da reparação de danos nos casos não abrangidos por qualquer seguro". E instou também "o setor dos seguros a criar novos produtos e novos tipos de ofertas que estejam em linha com os avanços na robótica"1. Essa questão tem despertado a atenção de diversos autores do common law, os quais têm apresentado diferentes propostas de implementação de seguro obrigatório no contexto de inteligência artificial, como o autor inglês David Levy e os juristas norte-americanos Carrie Scholl2 e Jin Yoshikawa3. Nesta coluna, pelos limites naturais de espaço que detém, enfocarei apenas a recente e interessante proposta do autor britânico. David Levy, especialista em IA, propõe um "sistema de seguro inteligente para robôs". O ponto de partida dessa proposta, segundo ele próprio declara, é o artigo publicado em 2010 por Anniina Huttunen e colegas finlandeses e alemães. Segundo Levy, esse estudo foi o primeiro a propor e expor a conveniência de se segurar contra acidentes causados por robôs4. No referido estudo de 2010, Anniina Huttunen et. al. resumem essa necessidade ou conveniência, afirmando que, "na estrutura do seguro, uma máquina pode se tornar uma máquina definitiva emancipando-se de seu fabricante/proprietário/operador. Isso pode ser alcançado através da criação de uma estrutura legal em torno dessa máquina definitiva, que nela mesmo tem valor econômico. O primeiro passo na criação de uma estrutura legal em torno da máquina é tornar obrigatória a solicitação do seguro"5. Em 2012, David Levy deu um passo a mais, defendendo "um processo de monitoramento acionado eletronicamente por agências de aplicação da lei, por meio do qual elas podem verificar se um robô está adequadamente segurado". Se for detectado que determinado robô não está devidamente segurado, ele será temporariamente desativado. A desativação se dará por meio de mensagem eletrônica transmitida remota e automaticamente, pelas autoridades, à caixa preta do robô, para que ele não funcione. Além disso, ela irá anunciar ao usuário que sua cobertura de seguro é inadequada ou expirou. O sistema de monitoramento não deve apenas desativar os robôs não segurados, mas também deve informar as autoridades a respeito de qualquer tentativa de contornar a tecnologia de monitoramento6. Segundo propõe Levy, quando um robô é vendido pelo seu fabricante, deveria ser cobrado um prêmio de seguro pelo primeiro ano de operação. Esse prêmio já deve estar incluído no preço de venda do produto e, até que seja pago, ele não funcionará. Em torno de um mês antes do vencimento do prêmio pago, o proprietário do robô receberia uma mensagem da seguradora, avisando que seu seguro precisa ser renovado. Quando o pagamento da renovação é realizado, uma mensagem eletrônica é enviada para a caixa preta do robô, instruindo-a a permitir a continuidade da operação da máquina. Mas se, até a data de vencimento, o proprietário não conseguir renovar o seguro, o robô deixará de funcionar e passará a anunciar: "Por favor, renove meu seguro antes de tentar me usar novamente"7. Mais recentemente, em 2020, David Levy complementou essa ideia. Segundo afirma, fundamental para sua nova proposta estendida de seguro obrigatório é a necessidade de um sistema de classificação de robôs de acordo com seu potencial de risco, bem como de um sistema de registro. Essa classificação fornecerá às seguradoras um dos fatores a serem levados em consideração na estimativa de riscos e na definição de prêmios. O registro de um robô garantiria a existência de um elo entre o número de registro exclusivo do robô e sua apólice de seguro e fundo de compensação de reserva8. A esse respeito, Ryan Calo faz observação complementar, que liga o tipo de robô a um nível adequado de pagamento do seguro: "o nível de seguro deveria depender da natureza do robô que está sendo segurado". Muitos robôs não precisariam de seguro, ou precisariam apenas ser segurados minimamente. Esses seriam os casos, por exemplo, de pequenos robôs usados principalmente para entretenimento. Por outro lado, "robôs maiores com funcionamento mais autônomo - por exemplo, robôs de segurança que patrulham um estacionamento - exigiriam maior cobertura"9. Segundo o próprio David Levy, a lógica por detrás dessa proposta de 2012 é a seguinte: o emprego de um conjunto de dados relativos ao histórico de acidentes com robôs como um guia para definir prêmios de seguro tem uma consequência benéfica: se seus produtos forem mais propensos a acidentes do que a média, os desenvolvedores e fabricantes de robôs sentirão os efeitos em seus resultados corporativos. O sistema de seguro de robôs que Levy concebe será autorregulado para a indústria de robôs, pois marcas e modelos propensos a acidentes atrairão rapidamente prêmios de seguro mais altos, aumentando assim seus custos de varejo e incentivando os consumidores a comprar produtos com melhores registros de segurança. De maneira semelhante, os proprietários de robôs terão um incentivo financeiro para cuidar de como usam seus robôs, pois podem sofrer prêmios mais altos com a perda de seus bônus de não reivindicação10. Para fazer valer a exigência de seguro obrigatório para robôs, será necessário, como adverte David Levy, aplicar sanções legais pesadas contra proprietários e/ou operadores de robôs que não estejam adequadamente segurados ou que não tenham seguro, mas que de alguma forma conseguiram superar a tecnologia desativadora do robô presente na sua caixa preta. Se um especialista em computador conseguir invadir o programa de renovação de seguros do robô e permitir que um robô não segurado seja usado, ele estará cometendo uma ofensa criminal. Enquanto monitora o status da apólice de seguro do proprietário, a caixa preta do robô pode transmitir uma mensagem de alerta às autoridades reguladoras competentes, informando sobre o uso de um robô não segurado, ou sobre uma modificação irregular de um robô já segurado, juntamente com o nome do proprietário e detalhes de contato11. Nem todos os robôs precisariam de seguro. Para justificar a exclusão de alguns deles do universo dos seguráveis, David Levy utiliza-se, como referencial, do que acontece com o seguro de veículos a motor: em muitos países, existem alguns tipos de veículo que não são considerados veículos a motor para fins de seguro. No Reino Unido, exemplifica o autor, isso inclui cortadores de grama e algumas bicicletas elétricas. Essas exclusões, segundo Levy, fornecem um modelo que pode ser facilmente estendido ao seguro de robô. Alguns robôs de brinquedo projetados para crianças, ilustra ele, não precisam ser segurados, porque o risco de ferimentos graves ou morte causados por um brinquedo é muito pequeno e etiquetas de aviso podem ser facilmente afixadas no brinquedo para cobrir reais possibilidades de dano, como a de a criança engolir peças removíveis12. Um desafio para um sistema como o que David Levy propõe, segundo reconhece o seu próprio idealizador, é apresentado por consumidores que, após a compra inicial, adquirem posteriormente complementos de hardware ou software que influenciam os riscos apresentados pelo robô. Para atender a esses possíveis perigos, Levy propõe que o software de um robô poderia ser programado para detectar esses complementos e enviar uma mensagem eletrônica ao "atuário" da seguradora, que calcularia o impacto da alteração sobre o valor do prêmio e o proprietário seria informado da correspondente mudança. Ainda mais perigoso poderiam ser entusiastas de robôs que possuem o conhecimento técnico para modificar seus robôs, gerando novamente a possibilidade de um risco agravado, transformando um robô inócuo em um perigoso. Nesses casos, a caixa preta do robô imporia ao proprietário a necessidade autenticar o robô alterado, preenchendo um formulário eletrônico com detalhes da modificação, para que um correspondente aumento no prêmio do seguro pudesse ser calculado. O proprietário que forneça informações falsas sobre sua modificação deverá poder ser processado13. No contexto da inteligência artificial, para situações que exponham terceiros a um risco aumentado de dano, o seguro de responsabilidade compulsória pode dar às vítimas um melhor acesso à compensação e proteger possíveis infratores contra o risco de responsabilidade. Neste âmbito que se insere a interessante proposta de sistema de seguro inteligente para robôs, defendida por David Levy, o qual oferece um processo de monitoramento acionado eletronicamente a partir do qual é possível verificar se um robô está adequadamente segurado. __________ 1 Sobre essa resolução, ver: PIRES, Thatiane Cristina Fontão; SILVA, Rafael Peteffi da. A responsabilidade civil pelos atos autônomos da inteligência artificial: notas iniciais sobre a resolução do parlamento europeu. Revista brasileira de políticas públicas, vol. 7, n. 3, p. 239-255, dez.-2017. 2 SCHROLL, Carrie. Splitting the bill: Creating a national car insurance fund to pay for accidents in autonomous vehicles. Northwestern University Law Review, vol. 109, n. 3, p. 814 ss., 2015. 3 YOSHIKAWA, Jin. Sharing the Costs of Artificial Intelligence: Universal No-Fault Social Insurance for Personal Injuries. Vanderbilt Journal of Entertainment & Technology Law, vol. 21, p. 1178, 2019. 4 LEVY, David. Intelligent no-fault insurance for robots. Journal of Future Robot Life, vol. 1, p. 50, 2020. 5 HUTTUNEN, Anniina; KULOVESI, J.; BRACE, W.; LECHNER, L.G., Silvennoinen, K. & Kantola, V. Liberating intelligent machines with financial instruments. Nordic Journal of Commercial Law, vol. 2, p. 13-14, 2010. 6 LEVY, David. When robots do wrong. In: Conference on Advances in Computing and Entertainment (ACE), Kathmandu, 2012 apud LEVY, op. cit., p. 51. 7 LEVY, David. When robots do wrong. In: Conference on Advances in Computing and Entertainment (ACE), Kathmandu, 2012 apud LEVY, op. cit., p. 51. 8 LEVY, David. When robots do wrong. In: Conference on Advances in Computing and Entertainment (ACE), Kathmandu, 2012 apud LEVY, op. cit., p. 51. 9 CALO, M. Ryan. Open robotics. Maryland Law Review, vol. 70, p. 138-139, 2011. 10 LEVY, David. When robots do wrong. In: Conference on Advances in Computing and Entertainment (ACE), Kathmandu, 2012 apud LEVY, op. cit., p. 51-52. 11 LEVY, David. When robots do wrong. In: Conference on Advances in Computing and Entertainment (ACE), Kathmandu, 2012 apud LEVY, op. cit., p. 52. 12 LEVY, David. When robots do wrong. In: Conference on Advances in Computing and Entertainment (ACE), Kathmandu, 2012 apud LEVY, op. cit., p. 52. 13 LEVY, David. When robots do wrong. In: Conference on Advances in Computing and Entertainment (ACE), Kathmandu, 2012 apud LEVY, op. cit., p. 52.