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Direito Privado no Common Law

Discutir as novidades legislativas, jurisprudenciais e doutrinárias do Direito Privado na Inglaterra, USA, Canadá e Austrália, dialogando com as alternativas atuais no Direito Civil brasileiro.

Nelson Rosenvald, Daniel Dias, Pedro Fortes e Thaís G. Pascoaloto Venturi
Há um movimento palpável nos tribunais dos EUA para ampliar as indenizações em casos de dor e angústia emocional, nas hipóteses de homicídio culposo. O Tribunal de Apelações de Nova York, no caso Greene v. Esplanade,1 proferiu uma decisão em fevereiro de 2021 para expandir o direito à indenização a um avô sob o pálio da doutrina da "zona de perigo" (zone-of-danger rule).2 O caso envolvia a morte trágica de uma criança de 2 anos resultante de pedaços da fachada de um prédio que se partiram e caíram sobre ela. No momento do acidente, a avó estava ao lado da neta quando os destroços caíram repentinamente do prédio, e a própria avó - demandante - foi atingida por destroços. Ela incialmente havia exercida sua pretensão com base em duas causas de ação ("causes of action"): negligência e homicídio culposo ("wrongful death"). Posteriormente, a demandante acresceu uma terceira causa de pedir, fundada na negligente imposição de sofrimento emocional de acordo com a doutrina da zona de perigo. A doutrina da zona de perigo prevê um remédio indenizatório consequente a um sofrimento emocional quando alguém é ameaçado de um dano corpóreo como consequência de negligência do réu, decorrendo exclusivamente do fato de se presenciar o momento da morte ou grave lesão física de um membro da família imediata daquele que testemunho a tragédia." A expressão "família imediata" estava no cerne do debate no caso Greene. A demandante argumentou que ela deveria ser incluída em tal conceito com base na "natureza única e especial" da relação entre um avô e um neto. A Corte de Kings County concedeu a ela o acesso à doutrina da zona de perigo, inclusive observando o reconhecimento específico de direitos de guarda dos avós em relação aos netos. Os réus apelaram argumentando que os avós estão excluídos da designação de "família imediata". A segunda instância reverteu a decisão primeva, sustentando que a avó não era parte da "família imediata", com base na tradição da doutrina da zona de perigo. Para tanto, baseou-se no caso Bovsun v. Sanperi3 de 1984, que restringia a "família imediata" apenas ao cônjuge e filhos. Com efeito, Em Trombetta v. Conkling,4 o Tribunal considerou que uma sobrinha não poderia obter indenização por inflição negligente de sofrimento emocional ao testemunhar a morte de sua tia, mesmo se considerando que a mãe da demandante havia falecido quando esta tinha 11 anos de idade e a tia era a sua única figura materna. Além disso, em Jun Chi Guan v. Tuscan Dairy Farms,5 o tribunal rejeitou o argumento de uma avó, em lamentável circunstância na qual seu neto foi morto em um carrinho que ela empurrava, mesmo sendo ela que passava a maior parte do tempo com o bebê em suas horas de vigília. Voltando ao caso Greene, o voto divergente forneceu uma abrangente visão histórica dos danos emocionais, examinando os resultados aparentemente injustos que se seguiram da aplicação da expressão "família imediata" nos referidos precedentes judiciais. O voto de dissenso frisa que o estado atual da lei não reflete as estruturas familiares contemporâneas e as normas sociais atuais. Além disso, a dissidência fez referência ao conceito do common law como um mecanismo vivo - que sempre responde de forma a se adaptar à realidade das condições alteradas. Portanto, quando uma regra produz resultados arbitrários, é dever do tribunal investigar a sua viabilidade e, se for o caso, reformulá-la ou aboli-la completamente. Não é de surpreender que a definição de "família imediata" aplicada pelos tribunais nos últimos anos tenha suscitado controvérsias, pois enquanto muitas famílias ainda se enquadram na estrutura tradicional de dois cônjuges e filhos, outras famílias se enquadram em modelos não tradicionais que incluem crianças sendo criadas por avós, tios, irmãos, padrastos e outros arranjos não convencionais. A questão foi objeto de um terceiro julgamento, desta feita pelo Tribunal de Apelações, cuja decisão foi no sentido de que a avó deveria ser classificada como um membro da "família imediata" do neto falecido, baseando sua decisão no crescente reconhecimento legal do status especial dos avós, na mudança das normas sociais e no bom senso. Todavia, a maioria dos julgadores enfatizou fortemente que a decisão não estabelece "limites externos" à definição de "família imediata", tendo tão somente determinado que no caso particular a avó se amoldava a classificação como membro da "família imediata". Interessante, que os magistrados do bloco minoritário concordaram com a decisão da maioria, contudo repreenderam a decisão afirmando que o "Tribunal perdeu o momento", pois a Corte poderia ter descartado completamente a exigência de "família imediata", baseada em definições antiquadas, modeladas estritamente na instituição do matrimônio e graus de consanguinidade. O significado da decisão é que ficou evidente que o tribunal está disposto a revisar a classificação de tipos adicionais de membros da família do requerente elegíveis para danos emocionais. Vários demandantes tentarão testar os "limites externos" da definição de "família imediata". Notadamente, vários estados como Califórnia, Oregon, Texas e Nova Jersey já abandonaram a regra da "família imediata" ou expandiram para regras mais permissivas sobre quem pode obter indenização em tais circunstâncias. Ao considerar as nuances do que constitui afeição familiar e laços que compõem a família, é compreensível que os tribunais aceitem um teste mais permissivo e inclusivo para considerar a natureza do relacionamento de um espectador com uma vítima. Mas por qual razão o Tribunal de Apelações de Nova York tem sido relutante em estabelecer os "limites externos" da expressão "família imediata"? Alguns argumentariam que ao descartar completamente a regra o Tribunal permitiria uma "abertura de que comportas" para todos os tipos de demandantes, com afeições ou sentimentos potencialmente tênues para com a vítima.  Outros consideram que a natureza diferenciada dos laços e relacionamentos familiares são de árdua definição, sendo preferível uma interpretação casuística aberta como a melhor solução para avaliar o relacionamento espectador-vítima, ao invés de uma mudança radical de abordagem. No entanto, é provável que haja um componente histórico na relutância da Corte em descartar ou estabelecer "limites externos" da regra da "família imediata". Embora a doutrina da zona de perigo seja inerente às jurisdições do common law, ainda é fruto de uma época em que os tribunais e o Legislativo consideravam como contrário à ordem pública a reparação de danos puramente de psíquicos ou a angústia na ausência de danos físicos. Em 1961, o tribunal reconheceu pela primeira vez que um demandante poderia obter indenização em virtude de um sofrimento mental, independentemente de dano corporal. No entanto, tal reconhecimento se referia apenas à vítima direta. Indenizações derivadas de espectadores, independentemente de sua conexão familiar, não foram abrangidas, não obstante o sofrimento como resultado de testemunhar grave lesão ou a morte de outrem. O precedente Bovsun v. Sanperi em 1984 abriu uma brecha para a negativa geral de indenização derivada de sofrimento emocional ou angústia nas circunstâncias em que o espectador ("bystander") era um membro da "família imediata" e foi confrontado com o ferimento ou a morte de um ente querido. O componente do perigo físico viabiliza a pretensão. Já no caso Greene, os juízes concordantes instaram o tribunal a usar seu poder para mudar tanto as suas antigas regras quanto as desatualizadas regras do common law, citaram o caso Woods v. Lancent, que estabeleceu: "enquanto os corpos legislativos têm o poder de alterar antigas regras de direito, no entanto, quando eles deixam de agir, é dever do tribunal adaptar a lei aos padrões atuais de justiça, ao invés de dar guarida às regras antiquada do passado". No entanto, a hesitação da maioria nos casos Greene, Bovson e Trombetta em redefinir os "limites externos" da "família imediata", ou em rejeitar tal limitação por completo, pode estar enraizada na circunstância histórica de que o cenário jurídico no que diz respeito às áreas de angústia mental e sofrimento emocional, é amplamente baseada em uma estrutura de limitação àqueles que podem obter indenização e também a o que pode ser objeto de indenização. A título de comparação, no direito alemão se concede aos familiares do falecido o chamado "dano de choque nervoso" ("schockschaden"), que é fruto de uma interpretação elástica dos tribunais sobre o conceito de dano à saúde, contido no §823 do BGB.6  Ao contrário do que ocorre nas jurisdições do Common Law, na qual se exige  a  proximidade temporal  e  espacial  e que  a  vítima  do  choque  tenha  observado  diretamente o  acidente (Aftermath Doctrine), como bem explicam Guilherme Reinig e Rafael Peteffi7  no  direito  alemão  não é  necessário  que a  pessoa  afetada  pelo choque  tenha  presenciado  o  acidente. Há, portanto, uma maior flexibilidade nesse ponto, com responsabilização mesmo na hipótese de choque nervoso sofrido por ocasião do recebimento da notícia do acidente. A razão para isso seria a circunstância de o § 823 I do BGB não estabelecer nenhuma exigência especial quanto à maneira pela qual o choque foi provocado. Todavia, no Brasil não contamos com uma reparação autônoma em favor de familiares que presenciaram o momento da morte e efetivamente sofreram um abalo psíquico pelo evento em si, fato que transcende a perda pelo falecimento do ente querido, igualmente experimentada pelos demais parentes ou pessoas de sua intima relação. Enfim, em razão do receio quanto à indiscriminada abertura de comportas para múltiplas indenizações por danos consequentes à imediata verificação de um único evento, até o momento os tribunais optam por restringir o número de demandantes.8 __________ 1 Disponível aqui. 2 "The zone-of-danger rule, which allows one who is himself or herself threatened with bodily harm in consequence of the defendant's negligence to recover for emotional distress resulting from viewing the death or serious physical injury of a member of his or her immediate family, is said to have become the majority rule in this country. It is premised on the traditional negligence concept that by unreasonably endangering the plaintiff's physical safety, the defendant has breached a duty owed to him or her for which he or she should recover all damages sustained including those occasioned by witnessing the suffering of an immediate family member who is also injured by the defendant's conduct". 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Seção 823 - Responsabilidade por danos (1) A pessoa que, intencionalmente ou por negligência, lesar ilegalmente a vida, o corpo, a saúde, a liberdade, a propriedade ou outro direito de outra pessoa é responsável por indenizar a outra parte pelos danos daí decorrentes. 7 REINIG, G. H. L.; SILVA, R. P. DA. Dano reflexo ou por ricochete e lesão à saúde psíquica: os casos de "choque nervoso" (Schockschaden) no direito civil alemão. civilistica.com, v. 6, n. 2, p. 1-34, 30 dez. 2017. 8 "É certo que a solução de simplesmente multiplicar o valor que se concebe como razoável pelo número de autores tem a aptidão de tornar a obrigação do causador do dano demasiado extensa e distante de padrões baseados na proporcionalidade e razoabilidade. Por um lado, a solução que pura e simplesmente atribui esse mesmo valor ao grupo, independentemente do número de integrantes, também pode acarretar injustiças. Isso porque, se no primeiro caso o valor global pode se mostrar exorbitante, no segundo o valor individual pode se revelar diluído e se tornar ínfimo, hipóteses opostas que ocorrerão no caso de famílias numerosas. 6. Portanto, em caso de dano moral decorrente de morte de parentes próximos, a indenização deve ser arbitrada de forma global para a família da vítima, não devendo, de regra, ultrapassar o equivalente a quinhentos salários mínimos, podendo, porém, ser acrescido do que bastar para que os quinhões individualmente considerados não sejam diluídos e nem se tornem irrisórios, elevando-se o montante até o dobro daquele valor" ( REsp 1127913/RS Relator p/ Acórdão Min. Luis Felipe Salomão 4.T DJe 30/10/2012).
O papel da análise econômica da propriedade e da posse na literatura acadêmica. Introdução Nas últimas colunas sobre o direito privado na common law, discutimos o direito comportamental com uma perspectiva propedêutica e com uma perspectiva empírica a partir de textos publicados no The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law. A presente coluna revisa e sumariza o texto elaborado pela Professora Daphna Lewinsohn-Zamir, que se trata de uma análise aplicada do behavioral law and economics para à área dos direitos reais.1 Trata-se do capítulo do manual de Oxford sobre direito e economia comportamental com a discussão específica de aplicação a uma área jurídica em particular. No âmbito do direito privado, existem estudos relativos à propriedade, responsabilidade civil, contratos, seguros, relação de consumo e direito empresarial. O texto apresenta uma revisão da literatura sobre o direito à propriedade, diferenciando dois períodos específicos. Em primeiro lugar, existiam estudos que não conduziram pesquisa experimental independente, mas que aplicavam resultados genéricos da literatura psicológica mais ampla. Em uma segunda fase, foram realizadas pesquisas empíricas explicitamente elaboradas para fins de investigação de temas jurídicos particulares. Os trabalhos de pesquisa sobre o tema da economia comportamental aplicado aos direitos reais evidenciam a existência de variações decorrentes do contexto, exceções e refinamentos teóricos estabelecidos com base em estudos psicológicos empíricos e experimentais. Concepções de propriedade, fungibilidade, posse, regime e redistribuição Na primeira etapa de estudos sobre o direito à propriedade com base na análise comportamental, foram identificados fenômenos como o viés de omissão e de evitar arrependimento ('omission and regret-avoidance'), a falta de disposição de propriedade ao longo da vida apesar da rejeição aos impostos sobre herança, a liberdade do proprietário de destruição de sua propriedade como justificativa para a intervenção legal limitada e o excesso de otimismo como elemento para incentivo financeiro para a proteção de direito autoral.2 Por sua vez, na segunda etapa, foram desenvolvidas pesquisas específicas para avaliar aspectos jurídicos como o nível esperado de proteção jurídica para espécies de propriedade, o reconhecimento e circunstâncias do "efeito de doação" ("endowment effect") e a percepção sobre a distinção entre propriedade e posse nos mais variados contextos.3 Uma questão essencial na literatura estadunidense diz respeito à concepção da propriedade como uma única "coisa" ou como um "conjunto de elementos", tendo surgido a partir de uma discussão sobre o direito à moradia nas favelas pelo Professor de Yale, Bruce Ackerman, de que as pessoas leigas veem a propriedade como uma coisa e os profissionais da área jurídica a identificam como sendo um conjunto de direitos.4 Posteriormente, Frank Michelman, Professor da Universidade de Harvard, se valeu da mesma concepção de que a propriedade poderia ser analisada a partir de seus múltiplos elementos para analisar o instituto das expropriações de propriedade.5 Por um lado, a concepção de que a propriedade seria uma coisa indica uma identificação com o bem físico, que se torna mais manifesto quando é desapropriada ou esvaziada por uma regulação. Por outro lado, a concepção de propriedade como um conjunto de elementos jurídicos enfraquece a percepção do domínio do dono e a resistência à regulação de parcelas decompostas do direito através de zoneamento urbano e regras ambientais, por exemplo. Uma outra concepção teórica relevante decorre da teoria de Margaret Radin da teoria da propriedade com base na personalidade, inspirada na filosofia hegeliana e sua justificação da propriedade privada como necessária para o desenvolvimento da personalidade.6 A partir desse insight filosófico, a teoria traça uma distinção entre a propriedade fungível e não-fungível, considerando que a propriedade seria pessoal e infungível se sua perda não pode ser recomposta através de uma compra no mercado, em contraste com o bem fungível que pode ser facilmente substituído pela aquisição de um objeto similar. Críticos questionam a proteção excessiva defendida pelos adeptos da teoria da personalidade para tais bens, já que protegeria pessoas com propriedade de bens caros e de luxo, de modo elitista e com consequências regressivas, quando a legislação deveria providenciar a garantia suficiente de uma proteção de um teto razoável para as pessoas.7 Além disso, estudos experimentais demonstram que o valor psicológico de uma residência familiar estaria associado ao período em que determinado imóvel está incorporado ao patrimônio daquela família, de modo a que quanto maior o tempo, maior é a percepção do valor do bem imóvel. Por outro lado, estudos evidenciam que o apego psicológico ao lar seria menor do que a crença comum, demonstrando que pessoas relocadas eventualmente se aclimatam para seu novo ambiente e não sofrem prejuízo psicológico.8 Apesar de serem lares, residências familiares também são commodities sujeitas a venda e locação frequente. Contudo, existem estudos que revelam que as pessoas podem considerar que seus bens constituem uma parte de sua identidade, uma ideia estendida também até os bens fungíveis e inclusive ao dinheiro, sendo que a perda involuntária desses bens poderia causar trauma e perda pessoal.9 De um jeito ou de outro, pessoas leigas e executivos profissionais preferem fortemente que direitos e remédios sejam assegurados de modo concreto com a tutela específica do bem de sua propriedade do que o recebimento de uma compensação em dinheiro. Aliás, quanto mais experientes os executivos, mais resistentes são eles em se contentar com uma compensação monetária. Também é importante para a avaliação de uma determinada situação uma série de fatores, tais como o modo de recebimento do resultado, a identidade das partes envolvidas, a voluntariedade ou não-voluntariedade da conduta e a intencionalidade ou não-intencionalidade dos atos que afetam o patrimônio. Um fator decisivo parece ser se um bem foi transferido de modo voluntário, já que a transferência involuntária costuma ser identificada como sendo uma perda de propriedade avaliada negativamente por aquela pessoa que não dispôs de seus bens. Quanto aos conceitos de propriedade e de posse, considerados como as pedras de toque dos direitos reais, a análise comportamental pode investigar como o contexto pode justificar o tratamento jurídico dado a um locador ou a um locatário. Existe um interessante estudo de caso de situações de posse de longo prazo em Israel, em que locatários de imóveis podem ficar por décadas na locação de apartamentos residenciais públicos de baixo custo, ao ponto de se considerarem como se fossem proprietários dos bens, de modo a que o próprio poder público pode eventualmente renovar a locação sem qualquer custo ou mesmo doar os apartamentos para os antigos locatários com a transferência de propriedade do bem. Pesquisas experimentais específicas deveriam analisar o chamado "efeito de doação", em que medida se trata de um "efeito de propriedade" ou de um "efeito de posse" e o que pode ocorrer se posse e propriedade se contrapõem em conflito em um caso concreto. Um fator crucial para a sensação psicológica das pessoas é a dimensão, isto é, a magnitude do ganho ou da perda, sendo que se o proprietário perde uma residência que comprou pelo valor de mercado no passado e é privado da sua propriedade com tal valor, tal perda costuma ser sentida justamente pela sua dimensão. Uma outra distinção importante na literatura diz respeito ao regime adotado para os remédios em caso da ocorrência de um ato ilícito em violação a direitos. Em artigo clássico da análise econômica do direito tradicional, Guido Calabresi e Douglas Melamed examinaram o regime de regras de propriedade e o regime de regras de responsabilidade, concluindo que o fato decisivo para a escolha entre os regimes deve ser os custos de transação: regras de propriedade deveriam ser adotadas quando os custos de transação são baixos e as partes podem barganhar para obter os resultados desejados; regras de responsabilidade devem ser usadas quando os custos de transação são altos, tais como os episódios relativos a partes numerosas.10 Críticos apontam situações em que o regime de propriedade pode não funcionar mesmo com custos de transação baixos, como monopólios bilaterais com assimetria de informação, por exemplo, já que o regime de responsabilidade teria a vantagem de remover o poder do proprietário e assegurar a execução de transferências de bens eficientes.11 Por outro lado, existem estudos sobre o "efeito de doação" que sugerem que tal efeito é mais fraco no regime de propriedade do que no regime de responsabilidade, sendo que o proprietário irá vender seu bem somente ao atingir um ponto em que deseje vende-lo. Já no regime de responsabilidade, existe a possibilidade de coerção da transferência diante da obrigação do proprietário de compensar as perdas decorrentes da violação de direitos. Finalmente, um tema importante do debate contemporâneo da análise comportamental do direito real é a redistribuição de bem-estar para promoção de igualdade social como um dos objetivos do Estado. A literatura tradicionalmente considera melhor que tal redistribuição seja feita através de um regime de taxação-e-transferência ("tax-and-transfer") ao invés de uma calibração das regras jurídicas de direito material em que o efeito redistributivo esteja embutido na norma jurídica e na relação jurídica, já que existe o risco de distorção do próprio comportamento que as regras jurídicas buscam regular.12 No campo dos contratos, o mercado costuma responder de modo a evitar parcialmente ou totalmente os efeitos redistributivos eventualmente pretendidos pela regulação estatal, inclusive através da negativa de oferta de produtos e serviços. A literatura sugere que uma regra redistributiva de responsabilidade civil pode distorcer incentivos profissionais, mas existem estudos que consideram que a tributação poderia gerar distorções ainda maiores também.13 Por um lado, o argumento econômico se concentra na quantidade de recursos que uma pessoa pode receber como uma medida de sucesso da redistribuição, mas as pessoas também se importam com o procedimento e podem considerar que certas formas de redistribuição seriam humilhantes e espécie de "doação de caridade", como no exemplo do pagamento de alimentos e de pensões, eventualmente associados à falhas, necessidade, saúde, reabilitação e incapacidades, sendo o recebimento de bens como parte do esforço e decorrente de seu direito mais fortemente associado com sucesso.14 Considerações finais Em seu texto para o Manual de Oxford sobre o Direito Real e a Economia Comportamental, a Professora Daphna Lewinsohn-Zamir elabora uma análise aplicada do behavioral law and economics para à área dos direitos reais. A revisão de literatura indica uma série de trabalhos com base em estudos de psicologia experimental cujos resultados foram extrapolados para a área do direito, seguidos de uma série de pesquisas realizadas com base em experimentos desenhados sob medida para o tratamento de problemas jurídicos. O texto revisita uma série de temas importantes para a análise do direito de propriedade, desde a concepção desenvolvida por constitucionalistas renomados de propriedade como um conjunto de direitos ao invés de uma coisa protegida juridicamente, passando pela teoria da personalidade, pela distinção entre propriedade e posse e pela visão da catedral clássica da law and economics sobre os custos de transação como fator decisivo para os regimes aplicáveis às violações de direitos decorrente de atos ilícitos, até se chegar à complexa análise dos efeitos redistributivos do direito de propriedade. __________ 1 Lewinsohn-Zamir, Daphna, Behavioral Law and Economics of Property Law: Achievements and Challenges, The Oxford Handbook of Behavioral Economics and Law, p. 377. 2 Idem. 3 Idem, p. 379. 4 ACKERMAN, Bruce. Regulating slum housing markets on behalf of the poor: of housing codes, housing subsidies and income redistribution policy. The Yale Law Journal, v. 80, n. 6, p. 1093-1197, 1971. 5 MICHELMAN, Frank. Takings, 1987. Columbia Law Review, v. 88, n. 8, p. 1600-1629, 1988. 6 RADIN, Margaret Jane. Property and personhood. Stanford Law Review, p. 957-1015, 1982. 7 SCHNABLY, Stephen J. Property and Pragmatism: A Critique of Radin's Theory of Property and Personhood. Stan. L. Rev., v. 45, p. 347, 1992. 8 STERN, Stephanie M. Residential Protectionism and the Legal Myth of Home. MICH. L. REV., v. 107, p. 1094, 1100-01, 2009. 9 BELK, Russell W. Possessions and the extended self. Journal of consumer research, v. 15, n. 2, p. 139-168, 1988. 10 CALABRESI, Guido; MELAMED, A. Douglas. Property rules, liability rules, and inalienability: one view of the cathedral. Harvard law review, p. 1089-1128, 1972. 11 KAPLOW, Louis; SHAVELL, Steven. Property rules versus liability rules: An economic analysis. Harv. L. Rev., v. 109, p. 713, 1995. 12 COOTER, Robert et al. Law and economics. 2012, 6th ed, Boston: Pearson Addison Wesley Publishing. 13 JOLLS, Christine. Behavioral economics analysis of redistributive legal rules. Vand. L. Rev., v. 51, p. 1653, 1998. 14 LEWINSOHN-ZAMIR, Daphna. In defense of redistribution through private law. Minn. L. Rev., v. 91, p. 326, 2006.
Esta é a segunda parte de um texto que iniciei na coluna do mês passado. Como lá dito, neste ano o STF deverá finalmente decidir sobre a constitucionalidade ou não do art. 19 do Marco Civil da Internet (MCI). Desde a coluna passada, propus-me a apresentar, com base nas experiências americana e alemã, algumas questões relevantes para o debate atual sobre a (in)constitucionalidade do art. 19 do MCI. Na primeira parte tratei dos temas da transformação da responsabilidade dos intermediários na internet e do efeito resfriador (chilling effect). No texto atual, abordarei as questões das restrições graves a direitos da personalidade e aplicação privada do direito. Restrições graves a direitos da personalidade Um ponto central para a presente discussão é o de que o art. 19 do MCI implica restrição gravíssima aos direitos da personalidade das vítimas de postagens com conteúdo ilícito. Essa questão pode ser esmiuçada em diversos argumentos. Em primeiro lugar, a exigência de uma ordem judicial como pressuposto da responsabilidade dos provedores é, por si só, um ônus gravíssimo para a vítima. Ingressar com uma ação judicial não é tarefa simples, isenta de esforço ou desgaste. Pelo contrário, pode envolver um considerável dispêndio de tempo, dinheiro e energia, que envolvem por exemplo contratação de advogado, pagamento de custas, comparecimento em audiência etc. Mesmo que a vítima requeira concessão de gratuidade da justiça ou recorra aos Juizados Especiais, ela não estará isenta de todos os referidos encargos. Além disso, grande parte da população, sobretudo a mais pobre, tem dificuldades agravadas por desconhecer os meandros da burocracia do Poder Judiciário. Sem levar nada disso em conta, o art. 19 do MCI inverte totalmente a lógica habitual das coisas. O ingresso no judiciário, que normalmente é o último recurso para tutela do direito do lesado, à luz do art. 19 passa a ser requisito básico para a responsabilização das plataformas digitais. Nesse sentido, afirma Anderson Schreiber: na dicção literal do art. 19, o descumprimento de ordem judicial passa a ser condição necessária para a responsabilização dos provedores. Nesse contexto, a propositura de ação judicial deixa de ser mero instrumento de proteção dos direitos da vítima e de obtenção da reparação para se tornar uma condição sine qua non da responsabilidade civil. A vítima, que antes propunha ação judicial como seu último recurso, para obter a responsabilização do réu, agora precisa propor a ação judicial e pleitear a emissão e uma ordem judicial específica, para que, só então e apenas em caso de descumprimento da referida ordem judicial, a proprietária do site ou rede social possa ser considerada responsável.1 Vale ressaltar que essa centralização da regra do Marco Civil no Poder Judiciário está em total descompasso com as tendências atuais de "desjudicialização" dos litígios, em face de um judiciário tradicionalmente sobrecarregado, mal equipado e excessivamente lento. No caso, a celeridade e dinamismo do ambiente digital fazem com que seja ainda mais ineficiente e criticável a necessidade de recurso ao judiciário.2 Por fim, é importante ter em conta o fato de que o ambiente das redes sociais é um ambiente mais propenso às violações de direitos fundamentais, o que gera uma necessidade de maior, e não de menor, tutela. Em relação a esse ponto, leciona o jurista alemão Martin Eifert: A comunicação em redes sociais trouxe consigo, acima de tudo, uma nova e particular dinâmica. A discussão mundial sobre massivas manifestações misantrópicas e racistas (hate speech) nos meios sociais suporta a impressão amplamente difundida de que as fronteiras do discurso público se deslocaram e a diminuição dos custos de interação, a desconstrução de mecanismos de gatekeeping, bem como a evasão de controles sociais pelo anonimato tenham retirado o tabu de preconceitos e incendiaram sua difusão. Essa dinâmica própria e particular fortalece a necessidade de proteção de direitos de personalidade.3 Nessa linha, conclui Eifert que "tratar-se-ia de uma perspectiva unilateral e limitada", caso se optasse "por fixar a força relativa da liberdade de expressão em relação aos direitos de personalidade" tal como tradicionalmente se desenvolveu "no âmbito dos meios de comunicação em massa e da comunicação off-line"4. Aplicação privada do direito Um último argumento central, utilizado por aqueles que defendem a constitucionalidade do art. 19, é o de que não caberia às redes sociais decidir sobre a licitude ou não das manifestações dos seus usuários e, consequentemente, sobre a supressão ou não das suas postagens. Essas decisões seriam de competência privativa do poder judiciário5. Aqui, em especial, convém atentar para a experiência na Alemanha. Como a Lei Alemã para Aplicação da Lei nas Redes Sociais prevê que as redes sociais devem decidir sobre a retirada de postagens ofensivas de seus usuários, uma das acusações centrais recebidas pela lei foi a de que ela "violaria os fundamentos do Estado de Direito, pois privatizaria as competências privativas do Estado de aplicar o direito."6 Tanto lá quanto aqui essa acusação não se sustenta. Como explica Martin Eifert, não é patológico defender que o provedor da rede social deva "decidir em primeiro lugar sobre um apagamento ou bloqueio de conteúdos ilícitos." Trata-se, de maneira oposta, "de uma consequência jurídica normal" decorrente da teia de relações "das redes sociais" que têm "caráter de direito privado". Se a decisão parte de um dever jurídico que recai sobre a plataforma para que apague conteúdos ilícitos - ou seja, de uma responsabilidade indireta de monitoramento reconhecida -, deve-se, em primeiro lugar, considerar como normal quando as pessoas que se sentem violadas em seus direitos se voltem contra aqueles (potencialmente) responsáveis para demandar soluções. Isso não é diferente no campo da "difusão dos meios clássicos de comunicação". Além disso, "o caminho jurídico para os tribunais estatais não fica bloqueado, mas sim pode ser subsequentemente trilhado de forma normal e sem problemas."7 De acordo com Martin Eifert, a responsabilização indireta por monitoramento em caso de publicação de conteúdo ilícito é legitimada normativamente e indispensável do ponto de vista fático. Em relação à legitimação normativa, Eifert afirma que a referida responsabilização "corresponde, do ponto de vista normativo, às circunstâncias do compartilhamento, por parte do usuário, de postagens que abrangem quase todos os conteúdos - algo que é possibilitado pela técnica e avançado pelo modelo de comércio - e que, além de suas funções sociais altamente produtivas, podem, correspondentemente, ser utilizados para a difusão de conteúdos ilícitos e danosos para a sociedade." Em seguida, Eifert conclui: "a obrigação para apagamento de conteúdos ilícitos corresponde à anterior facilitação de sua difusão. O fato de que as decisões sobre a ilicitude resultam em difíceis ponderações não pode se desvincular da responsabilidade de tomá-las, ainda que isso seja desde sempre uma carga da difusão de informação."8 Em relação à imprescindibilidade fática, Martin Eifert explica que "os acessos e regulações jurídicas aos intermediários é também indispensável do ponto de vista fático. Considerados como ao mesmo tempo difusores e observadores de conteúdos, eles têm um acesso direto e, em última instância, também os recursos para processar a enorme quantidade de casos trazidos ao seu conhecimento."9 Conclusão Em seu conjunto, as questões apresentadas na coluna atual e na anterior pesam a favor da conclusão de inconstitucionalidade do art. 19 do MCI, ou melhor, da necessidade de uma interpretação do dispositivo conforme a Constituição Federal. Essa é a conclusão que nos parece mais adequada para o julgamento no STF. __________ 1 Anderson Schreiber. Marco civil da internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade civil por dano derivado do conteúdo gerado por terceiro. In: Newton De Lucca et. al. Direito & Internet III, t. II. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 290-291. 2 Schreiber, Marco civil da internet, cit., p. 290-291 ("Em uma realidade cada vez mais consciente do abarrotamento do Poder Judiciário, a Lei 12.965 toma a contramão de todas as tendências e transforma a judicialização de conflito em medida necessária à tutela dos direitos da vítima no ambiente virtual, ambiente no qual, pela sua própria celeridade e dinamismo, os remédios judiciais tendem a ser menos eficientes e, portanto, mais criticadas.") 3 Martin Eifert. A lei alemã para a melhoria da aplicação da lei nas redes sociais. In: Abboud, Georges; Nery Jr., Nelson; Campos, Ricardo. Fake news e regulação. 2. ed. São Paulo: RT, 2020, p. 180. O autor complementa que essa foi o gatilho, o elemento desencadeador para a promulgação da NetzDG. 4 Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação da lei nas redes sociais, cit., p. 180. 5 Antônio Jeová Santos. Dano moral na internet. São Paulo: Método, 2001, p. 146 ("não é bom, nem útil, deixar à discrição ou arbítrio do provedor verificar qual página é lícita ou ofensiva, pois seria dar azo ao surgimento da censura se a qualquer provedor fosse dado o direito de tirar de seu serviço a página de alguém por entender que ela é ofensiva e maltrata os bons costumes. Nem sempre o funcionário do provedor que terá de verificar o conteúdo da página estará habilitado para saber se aquele conteúdo é nobre ou ofensivo a uma determinada classe de profissionais, por exemplo".); LAUX, Francisco de Mesquita. Supremo debate o artigo 19 do Marco Civil da Internet (parte 3). ("a intenção do art. 19 é a de evitar que discussões relativas à existência, ou não, de conteúdo difamatório, tivessem que ser, na prática, 'decididas' pelo gestor da rede social e que, nesse contexto, um erro na avaliação do material ensejasse a responsabilização civil do provedor. É daí que vem o intuito de 'assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura' transcrito pela norma."). Nesse sentido, há manifestações do STJ: REsp 1316921/RJ, Rel. Ministra Nancy Andrighi, Terceira Turma, julgado em 26/06/2012, DJe 29/06/2012, p. 7 do relatório e voto ("há de se considerar a inviabilidade de se definirem critérios que autorizariam o veto ou o descarte de determinada página. Ante à subjetividade que cerca o dano psicológico e/ou à imagem, seria impossível delimitar parâmetros de que pudessem se valer os provedores para definir se um conteúdo é potencialmente ofensivo. Por outro lado, seria temerário delegar esse juízo de discricionariedade aos provedores."). 6 Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação, cit., p. 186. 7 Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação, cit., p. 186. 8 Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação, cit., p. 187. 9 Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação, cit., p. 187.
Introdução As soluções consensuais de todas e quaisquer espécies de conflitos vêm sendo o objetivo em torno do qual o sistema de justiça dos EUA tem sido idealizado e funcionado nas últimas décadas. Já tivemos a oportunidade de destacar a afluência e o desenvolvimento dos chamados "meios alternativos de resolução de conflitos" (alternative dispute resolution - ADR), assim definidos os métodos ou mecanismos pelos quais se alvitra a solução extrajudicial ou consensual das disputas. Dentre as modalidades mais conhecidas e praticadas de ADR's no sistema dos EUA, destacam-se a mediação, a negociação, a avaliação neutra de terceiro e a arbitragem, muito embora outras espécies venham sendo adotadas há muito tempo.1 Nesse cenário, a Arbitration Act (1924) e a Mediation Act (2001-2003) podem ser apontados como os diplomas legais que melhor retratam a longevidade da resolução extrajudicial dos conflitos, fundamentando numerosos programas de ADR's, ao lado da legislação de diversos estados norte-americanos, que apostam na eficiência e na adequado de referido modelo para a prevenção ou a resolução dos conflitos.   A cultura do acordo no sistema norte-americano é uma realidade há muito tempo estabelecida, derivada de fatores pluridimensionais (culturais, sociais, políticos, econômicos e estruturais). Diante da centralidade que a autocomposição dos conflitos ocupa no sistema de justiça dos EUA, no mais das vezes, a atuação do Poder Judiciário acaba se mostrando residual, seja para a fiscalização do devido processo dos acordos, seja para a eventual adjudicação das disputas nas hipóteses de fracasso de um settlement. A resolução consensual dos conflitos, contudo, apresenta inúmeros desafios e divide a opinião de juristas quanto a constituir a melhor opção para o sistema de justiça. Isso porque os acordos podem representar, muitas vezes, o afastamento do controle jurisdicional da adjudicação de litígios de interesse público ou de interesses socialmente relevantes.2 De toda forma, impressiona a diversidade de modelos de ADR's que são desenhados pelos interessados na solução de uma disputa, revelando a ampla flexibilidade na construção de procedimentos que se revelem mais adequados a partir da verificação das especificidades de caso concreto. A partir do estudo de alguns desses modelos - que por vezes coordenam mecanismos judiciais e extrajudiciais, consensuais e adjudicatórios -, é possível parametrizar o cabimento e os limites das convenções processuais. A disputa entre a Starbucks e a Kraft No intuito de demonstrar algumas das possibilidades abertas pelo design de resolução de disputas - ao menos no sistema norte-americano -, o modelo adotado para a solução do conflito envolvendo duas gigantes do mercado internacional de alimentos (Starbucks e Kraft) merece destaque.3 Tudo começou no ano de 1998, quando a Kraft e a Starbucks celebraram um contrato (R&G Agreement) pelo qual a Kraft foi encarregada de gerenciar, embalar e vender no varejo as cápsulas de café produzidas pela Starbucks. Após mais de uma década de vigência de referido contrato, em 2010 a Starbucks comunicou seu interesse em encerrar a parceria com a Kraft, objetivando a venda direta das cápsulas de seu café, para além de uma máquina de café compatível com aquela comercializada até então pelo Grupo Kraft.4 Um dos pontos de maior controvérsia foi o relacionado à estratégia de vendas dos produtos da Starbucks, visto que a Kraft Foods somente vendia cápsulas de café compatíveis com as máquinas de café montadas pela própria empresa (máquina Tassimo). Referida situação retirou da Starbucks o valor agregado de seu produto (café), uma vez que a possibilidade de vender cápsulas compatíveis com outras máquinas permitiria uma expansão da marca no mercado. Pelo contrato de 1998, a Kraft possuía a exclusividade na venda de cápsulas de café durante a vigência contratual, prevista pelo prazo de dez anos com renovação automática e sucessiva para mais dez anos.5 Destaca-se que o contrato entre a Kraft e a Starbucks não era mero contrato de distribuição, na medida em que a Kraft não figurava somente como intermediária no negócio. Na verdade, a Kraft gerenciava o modelo de negócios de cápsula de café da Starbucks, operando toda organização, logística e distribuição para a venda do produto.6 Dentre os deveres contratuais estabelecidos, previu-se que ambas as empresas deveriam evitar a competição entre si. Ademais, estava vedada à Kraft a venda de outros cafés no formato "consumer packaged goods (CPG's)"7. Dessa forma, ambas as empresas se abstiveram de procurar outras oportunidades no então recente e promissor mercado de cápsulas de café. Condições para rescisão do contrato No intuito de encerrar a relação contratual com a Kraft, a Starbucks passou a focar nas condições resolutórias previstas no R&G Agreement. Como primeira opção, a Starbucks poderia comprar os direitos da Kraft, observada a cláusula de "disposição de compra". A rescisão seria permitida desde que houvesse a antecedência mínima de 180 dias e mediante o pagamento de "fair market value" para a Kraft, com adicional bônus de 35% (trinta e cinco por cento) no pagamento da aquisição. Referida disposição visava proteger a parte dos riscos do negócio - destacadamente a Kraft, que tinha proteção diante dos seus investimentos no mercado, know-how, construção e gerenciamento na parceria com a Starbucks8. Por outro lado, a Starbucks poderia rescindir a relação contratual diante de eventual quebra de contrato por parte da Kraft que constituísse uma "material breach", isto é, implicasse prejuízo quanto aos valores e benefícios percebidos pela Starbucks sob a vigência do contrato. Por fim, a rescisão seria possível na hipótese de a Kraft causar danos financeiros ou danos à marca ou similares em face da Starbucks. Por tal previsão, a Starbucks só conseguiria proceder a rescisão do contrato diante de uma notória demonstração de que lhe seria sonegado um benefício essencial previamente negociado no R&G Agreement.9 A Starbucks opta por rescindir unilateralmente o contrato alegando quebra material No início do ano de 2010, a Starbucks decidiu investir no mercado de bens de consumo embalados (consumer packaged goods, CPG), alterando seu planejamento estratégico nos EUA. Para tanto, deslocou seus investimentos para as lojas de varejo - modelo tradicional da Starbucks. Nesse intuito, o R&G Agreement então vigente entre a Starbucks e a Kraft constituía grave emprecilho, inviabilizando à Starbucks iniciar seu plano de expansão e troca de mercado. Como a Starbucks não possuía fundamento para alegar qualquer quebra material do contrato por parte da Kraft, o único meio de rescindi-lo era através do exercício do direito de compra dessa empresa. No entanto, isso implicava que a Starbucks deveria pagar pelo "fair market value", acrescido de uma bonificação de 35% pelos investimentos realizados pela Kraft. Diante da recusa pela Kraft dos valores ofertados pela Starbucks, na tentativa de negociação de compra e dissolução do R&G Agreement, a Starbucks alegou que estaria insatisfeita com a gestão da Kraft no modelo "CPG Business" pactuado. A reclamação foi no sentido que a gestão não atingira os resultados esperados e a performance ficara abaixo do esperado e convencionado no R&G Agreement.10 Nitidamente, tratou-se de uma estratégia de negociação da Starbucks na tentativa de uma reestruturação contratual. Houve nova tentativa de aquisição da Kraft pela Starbucks, então já beirando os 750 milhões de dólares (a proposta visava a compra do modelo de negócio CPG da Kraft), mais uma vez rejeitada. As sucessivas negativas de venda pela Kraft fez com que a Starbucks passasse a lhe dirigir várias reclamações questionando a gestão do negócio, assim como uma acusação de quebra material do contrato11. Caso a Kraft não corrigisse as alegadas violações contratuais em 30 dias, a Starbucks lhe comunicou que estaria rescindindo o contrato. Diante de tal ameaça, a Kraft acionou a intervenção do Comitê de Revisão (previsto no parágrafo 15º do contrato), na tentativa de uma solução consensual para o conflito. A Kraft requereu ao referido Comitê que considerasse a insurgência da empresa de café sobre as quebras materiais do contrato como ilegítimas e de má-fé. A Starbucks, por sua vez, negou-se a seguir o procedimento de resolução de disputas tal como definido no R&G Agreement12. Método de resolução do litígio - design envolvendo a coordenação entre mecanismos de autocomposição extrajudicial, arbitragem e jurisdição No R&G Agreement foi inserida uma previsão (parágrafo 15º) segundo a qual a resolução de eventuais conflitos entre as empresas contratantes seria intentada por meio de procedimentos de negociação, mediante boa-fé e cooperação mútuas. Na hipótese de o conflito ainda perdurar, previu-se o acionamento de um Comitê de Supervisão, que teria a função de mediar a solução consensual da disputa. Foi prevista, ainda, a possibilidade de que após a primeira reunião com o Comitê, ou após 30 dias da solicitação por escrito de uma parte para outra para eventual reclamação ou esclarecimento, qualquer uma das partes poderia exigir, mediante notificação por escrito, o início da resolução do litígio mediante procedimento arbitral obrigatório perante a instituição arbitral "JAMS Chicago mediation, arbitration and ADR Services".13 Uma vez observada a omissão da Starbucks face aos questionamentos que lhe foram dirigidos pelo Comitê de Supervisão a respeito das alegações de quebra material do contrato, e diante do fracasso das tentativas de autocomposição, a Kraft decidiu por instaurar o procedimento arbitral. Em síntese, os pedidos14 da Kraft perante a instância arbitral foram os seguintes: (i) declaração de que a rescisão da Starbucks do R&G Agreement e do Tassimo Agreements era inválida; (ii) determinação à Starbucks para que continuasse honrando com suas obrigações contratuais; (ii-a) determinação à Starbucks para que observasse os requisitos contratualmente previstos para o fim de rescisão contratual. Na medida em que a Starbucks não respondeu inicialmente à solicitação da instauração do processo arbitral, e diante da comercialização de seus produtos de forma autônoma no mercado (obtendo lucro de aproximadamente 1,4 bilhão de dólares), a Kraft ajuizou demanda perante o Tribunal Distrital dos Estados Unidos (Distrito Sul de Nova York), no intuito da obtenção de eventual medida de urgência. Em síntese, por via da medida judicial, a Kraft requereu e obteve tutela jurisdicional inibitória (preliminary injunction), ordenando-se à Starbucks que, até final deliberação do processo arbitral, preservasse suas relações com a Kraft nos termos avençados pelo R&G Agreement. Subsequentemente, no procedimento arbitral foi proferida decisão de condenação da Starbucks ao pagamento de 2,76 bilhões de dólares pelo descumprimento contratual e pela rescisão unilateral injustificada.15 De acordo com o Programa de Negociação da Harvard Law School, "a disputa comercial ilustra como as tendências de mercado podem ser fluidas, o que pode fazer com que os acordos comerciais negociados se tornem indesejáveis ??ao longo do tempo. Em seu acordo original, a Kraft e a Starbucks teriam sido sensatas ao concordarem com prazos definidos para a renegociação, durante os quais teriam liberdade para revisar os termos do acordo existente em face das mudanças nas condições econômicas e do setor. Eles também poderiam ter negociado condições para rescindir o contrato antecipadamente, como multas de cancelamento e outras formas de compensação."16 Como se percebe do caso narrado, a elaboração de uma alternative dispute resolution tal como a desenhada pelas empresas Starbucks e Kraft, envolvendo a adoção de mecanismos para tentativa de autocomposição (auto-negociação e mediação por via de um Comitê de Supervisão) e subsequente afetação do conflito remanescente à resolução arbitral, não foi suficiente, por si só, para a solução da disputa. Por melhor e mais sofisticado seja o procedimento de ADR entabulado pelas partes, ainda assim é imprescindível uma adequada intervenção jurisdicional que lhe garanta a execução específica e o controle a respeito de sua licitude. A necessidade da mais perfeita coordenação possível entre os mecanismos extrajudiciais de ADR's e o controle jurisdicional é lição há muito aprendida pelo sistema de justiça norte-americano, e, por enquanto, uma forte advertência para o sistema brasileiro, que apenas começa a estruturar um genuíno sistema de justiça multiportas.  __________ 1 A institucionalização do sistema de Justiça multiportas no Brasil. Disponível aqui. Acesso em 10 de abril de 2022. 2 A centralização da resolução dos conflitos por via das ADR's é, historicamente, objeto de inúmeras críticas em razão de um suposto cerceamento de acesso ao sistema judiciário. Sobre o tema, consulte-se clássico texto de FISS, Owen M. Against Settlement. The Yale Law Journal. V. 93, N. 06, May, 1984. Disponível aqui. Acesso em 10 de abril de 2022. 3 Harvard Law School. Program on negotiation - business negotiations. Negotiation in Business: Starbucks and Kraft's Coffee Conflict. 13/01/2022. Publicado originalmente em 10/12/2013. Disponível aqui. Acesso em 12 de abril de 2022. 4 Sobre o acordo Kraft e Tassimo que impactou a relação contratual com a Starbucks: "Kraft's exclusive rights under the Tassimo Agreements give the Tassimo system an important competitive advantage over competing single-cup systems. For consumers who favor Starbucks coffee and want to buy a single-cup brewer in Kraft's CPG channels, Tassimo is their only option. Moreover, because consumer preferences heavily influence retailer buying decisions, the Starbucks exclusivity arrangement has been, and will continue to be, an important determinant of the success of the Tassimo business. As a result, Kraft's exclusivity rights are and will continue to be an important factor in Kraft's ability to increase its share of the singlecup market. Kraft has, therefore, heavily promoted Tassimo in the U.S. as the only single-cup system that offers Starbucks' products and the results have been very positive". United States District Court. Southern District of New York. Case n. 10 CV 09085. Memorandum of points in support of preliminary injunction. Plaintiff Kraft Foods G. Inc. v. Defendant Starbucks Corporation, p.10. Disponível aqui. Acesso em 11 de abril de 2022. 5 "The Agreement vests in Kraft exclusive ownership of the right to sell Starbucks CPG Products so long as the Agreement remains in effect [...] its initial ten-year term (which runs until 2014) will renew automatically and repeatedly for successive ten-year terms". United States District Court. Southern District of New York. Case n. 10 CV 09085. Memorandum of points in support of preliminary injunction. Plaintiff Kraft Foods G. Inc. v. Defendant Starbucks Corporation, p.6. Disponível aqui. Acesso em 11 de abril de 2022. 6 The R&G Agreement is not simply a distributorship agreement. Kraft does not render services to Starbucks nor does it act as an agent or 'middleman' between Starbucks and the retailers that sell Starbucks CPG products to consumers. Those retailers buy Starbucks CPG products from Kraft, not Starbucks. Kraft, moreover, manages the Starbucks CPG Business and is, in essence, the proprietor of that business".United States District Court. Southern District of New York. Case n. 10 CV 09085. Memorandum of points in support of preliminary injunction. Plaintiff Kraft Foods G. Inc. v. Defendant Starbucks Corporation, p.6. Disponível aqui. Acessso em 12 de abril de 2022. 7 Definição de Consumer packaged goods (CPG): "Consumer packaged goods (CPGs) is an industry term for merchandise that customers use up and replace on a frequent basis. Examples of consumer packaged goods include food, beverages, cosmetics, and cleaning products". Disponível aqui. Acesso em 07 de abril de 2022. 8 "Paragraph 5(B)(ii) of the R&G Agreement gives Starbucks the right to buy out Kraft's rights under the Agreement (the "Buyout Provision"). Specifically, it allows Starbucks to terminate the Agreement on at least 180 days advance notice provided that it pays Kraft the "Fair Market Value" of the Agreement (as defined in Paragraph 5(D) of the Agreement) plus a premium of up to 35% (the "Buyout Payment"). The purpose of the requirement that Starbucks compensate Kraft in an amount tied to the fair market value of the business upon termination is to protect Kraft from the risk that Starbucks would sever the parties' relationship in a manner that would deny Kraft the fruits of its investment in, and its successful development of, the Kraft/Starbucks CPG Business. The Buyout Provision is, in this respect, akin to an option to purchase the business that Kraft built and which has enduring value to Kraft".  United States District Court. Southern District of New York. Case n. 10 CV 09085. Memorandum of points in support of preliminary injunction. Plaintiff Kraft Foods G. Inc. v. Defendant Starbucks Corporation, p.7. Disponível aqui. Acesso em 12 de abril de 2022. 9 Paragraph 5(B) (iii) of the Agreement allows Starbucks to terminate if Kraft breaches the Agreement - but only if that breach constitutes a "Material Breach" as defined in the Agreement. A "Material Breach" is one that "significantly impairs the value of [Starbucks'] bargained-for benefits" under the R&G Agreement or "causes or threatens to cause [Starbucks] significant financial, brand equity and/or other injury." In this way, the parties set a very high bar for termination pursuant to Paragraph 5(B)(iii). Even if Kraft were to breach, Starbucks would not have the right to terminate unless the breach was so egregious as to deny Starbucks a fundamental benefit for which it had bargained". United States District Court. Southern District of New York. Case n. 10 CV 09085. Memorandum of points in support of preliminary injunction. Plaintiff Kraft Foods G. Inc. v. Defendant Starbucks Corporation, p.7-8. Disponível aqui. Acesso em 13 de abril de 2022. 10 United States District Court. Southern District of New York. Case n. 10 CV 09085. Memorandum of points in support of preliminary injunction. Plaintiff Kraft Foods G. Inc. v. Defendant Starbucks Corporation, p.14. Disponível aqui. Acesso em 13 de abril de 2022. 11 Nota da Starbucks sobre a quebra material do contrato. A nota foi posterior à condenação no procedimento arbitral. Commitments and Contingencies. Disponível aqui. Acesso em 11 de abril de 2022. 12 United States District Court. Southern District of New York. Case n. 10 CV 09085. Memorandum of points in support of preliminary injunction. Plaintiff Kraft Foods G. Inc. v. Defendant Starbucks Corporation, p. 17. Disponível aqui. Acesso em 13 de abril de 2022. 13 "The parties hereto will attempt to settle any claim or controversy arising out of or relating to this Agreement through consultation and negotiation in good faith and a spirit of mutual cooperation, but submitting such claim or controversy to the oversight Committee. However, at any time following the first to occur of (i) the first meeting of the Oversight Committee concerning such claim or controversy, or (ii) expiration of the thirty (30)-day period following a party's written request to the other party to submit such claim or controversy to the Oversight Committee if the Oversight Committee has not met to consider such claim or controversy within such thirty (30)-day period, either party may by written notice to the other demand that the dispute be submitted to arbitration. Such binding arbitration shall be conducted within the City of Chicago at JAMS or its successor, pursuant to its Comprehensive Arbitration Rules and Procedures, except as modified by the Agreement of the parties". United States District Court. Southern District of New York. Case n. 10 CV 09085. Memorandum of points in support of preliminary injunction. Plaintiff Kraft Foods G. Inc. v. Defendant Starbucks Corporation, p.8. Disponível aqui. Acesso em 12 de abril de 2022. 14 "Kraft seeks in the arbitration, among other things, a declaration that Starbucks' purported termination of the R&G Agreement and the Tassimo Agreements is invalid, as well as an order requiring Starbucks to continue honoring its obligations under those agreements unless and until it establishes that it has met the requirements for terminating them".  United States District Court. Southern District of New York. Case n. 10 CV 09085. Memorandum of points in support of preliminary injunction. Plaintiff Kraft Foods G. Inc. v. Defendant Starbucks Corporation, p.17. Disponível aqui. Acesso em 12 de abril de 2022. 15 Starbucks says $2.76 billion Kraft split was necessary. Reuters. 13/11/2013. Disponível aqui. Acesso em 11 de abril de 2022. 16 Harvard Law School. Program on negotiation - business negotiations. Negotiation in Business: Starbucks and Kraft's Coffee Conflict. 13/01/2022. Publicado originalmente em 10/12/2013. Disponível aqui.
segunda-feira, 18 de abril de 2022

A Natureza dos preventive damages

1. Introdução Desde há algum tempo que os estudiosos do direito civil questionam se nos confins da responsabilidade extracontratual há espaço para uma indenização apartada da função compensatória de danos, nas hipóteses em que não se manifesta um prejuízo propriamente dito, porém alguém realiza despesas com o objetivo de impedir que um dano alcance um interesse digno de tutela. Neste contexto, a doutrina necessita encontrar uma justificativa para a ampliação do conceito de dano ou, alternativamente, promover uma via metodologicamente sustentável, apta a fundamentar uma indenização que abarque gastos preventivos de danos consequentes à prática de um ato ilícito. Em trabalho dedicado ao tema sob o viés da English Private Law, intitulado "Preventive damages" - indenização preventiva - Donal Nolan utiliza um exemplo para explorar o instigante assunto. O autor se socorre do caso do "incêndio na floresta de pinhos": B negligentemente permite que o fogo que se iniciou em sua propriedade, alastre-se e fuja ao controle, ameaçando alcançar a propriedade vizinha de A e destruir a sua valiosa floresta de pinhos. Alertado do perigo, A contrata uma esquadra especializada de bombeiros que enfrentam as chamas no limite das duas propriedades e, com êxito, impedem que o fogo entre em sua propriedade e cause prejuízos. Pelo fato de que o fogo jamais entrou na terra de A, B não cometeu um ilícito convencional - como o de negligence ou nuisance. Todavia, as despesas incorridas por A podem ser recuperadas em face de B?1 Ou melhor, uma regra que permite a recuperação de despesas preventivas pode ser conciliada com as regras gerais da responsabilidade civil? E caso as despesas preventivas possam ser recuperadas, isto se dará a que título? Talvez, o caminho seja desviar o foco da compensação pelos prejuízos causados pelo demandado e mirarmos para o ilícito sofrido pelo demandante, vislumbrando uma ampliação dos espaços da responsabilidade extracontratual na qual a indenização não servirá primordialmente para conter danos, porém para prevenir comportamentos antijurídicos, remover lucros ilícitos ou restituir despesas decorrentes de um fato contrário ao direito. 2. Primeira opção: A função preventiva da responsabilidade civil O exemplo do incêndio na floresta não se relaciona a uma omissão ilícita pura e simples, mas um ilícito comissivo por omissão. Vale dizer, a própria omissão provocou o processo causal e o proprietário do solo de onde o fogo se alastra se abstém de adotar medidas necessárias para que a sua atividade não cause danos contribuindo para a situação de perigo. Neste evento, a causa adequada do resultado é justamente a omissão em si. A omissão não é apenas uma concausa para os danos. Via de consequência, as despesas preventivas se voltam face àquele que se absteve de adotar precauções necessárias para que a sua atividade não causasse danos. Há uma natural tendência de se justificar a indenização ao proprietário do terreno contíguo com base na função preventiva da responsabilidade civil. Este é o caminhado adotado pelas jurisdições da common law, onde ilícitos convencionais demandam dano para que se convertam em torts e permitam a atuação da função compensatória da responsabilidade civil. A recíproca é admissível: alguns ilícitos como trespass to land ou private nuisance - ambas interferências desproporcionais sobre a fruição da propriedade alheia - dispensam a constatação do dano, pois a violação a esfera do demandante acarreta o ilícito de per se. Ocorre que no exemplo da floresta de pinhos não houve o ilícito de violação da propriedade e as despesas que razoavelmente foram antecipadas para evitar a iminência da intromissão ao direito alheio correspondem a uma espécie de extensão de uma injunction.2 Não por outra razão, o §919 do Second Restatement of Torts do American Law Institute dispõe que: "ao determinar se as despesas incorridas para evitar danos foram razoáveis, há de se observar a gravidade do dano iminente, o grau de probabilidade que ocorra e a provável despesa assumida pela pessoa ameaçada são elementos que devem ser considerados". O mérito deste raciocínio consiste em uma admissão da funcionalização da responsabilidade civil: de modelo exclusivamente direcionado à contenção de danos para um mecanismo de contenção de comportamentos antijurídicos, desestimulando o agente à prática de ilícitos e, simultaneamente, reconhecendo o mérito da conduta daquele que mitiga o próprio dano mediante a antecipação de despesas. A compensação não é o único objetivo da tort law, o que aconselha um dinâmico balanceamento entre aquela e a função de desestímulo, cada vez mais considerada em uma noção mais ampla do impacto instrumental da responsabilidade civil. Em acréscimo, o recurso ao preventive damages seria menos oneroso do que à preventive injunction, enquanto aquelas estão disponíveis antes do dano ocorrer e demandam certo comportamento, a indenização preventiva é apenas concedida quando o autor se engaja em uma conduta que causa danos e tal como as injunções são concebidas para evitar futuras incursões em direitos protegidos.3 Não teríamos dificuldade de lidar com esta ideia em uma acepção ampla da tutela preventiva, como um efeito colateral de qualquer indenização, haja vista que a ideia de desestimulo especial (ao autor do ilícito) e desestimulo geral (em face de potenciais agentes) perpassa qualquer condenação, mesmo aquelas puramente compensatórias, despidas de um acréscimo por punitive/exemplary damages. Nada obstante, no sentido estrito da função preventiva, materializado pela tutela inibitória e de remoção do ilícito, a proteção se dirige, respectivamente, contra a probabilidade de ilícito e o ilícito praticado, pois a probabilidade de dano e o dano se encontram fora de seu nexo de imputação. O dano é requisito da tutela ressarcitória, seja na forma específica, seja pelo equivalente ao valor do dano.4 O desiderato de A no exemplo referido não foi o de impedir a prática ou a reiteração do ilícito de B, porém o de evitar o fato danoso temido, questão que não compõe o mérito de uma tutela genuinamente preventiva. Na realidade brasileira, enuncia o parágrafo único do art. 497 do CPC: "Para a concessão da tutela específica destinada a inibir a prática, a reiteração ou a continuação de um ilícito, ou a sua remoção, é irrelevante a demonstração da ocorrência de dano ou da existência de culpa ou dolo". Se este é o mérito da tutela genuinamente preventiva, não há espaço para a discussão respeitante às despesas realizadas pelo demandante para evitar ou mitigar o dano temido. Se a nossa opção consiste em recusar a natureza compensatória ou puramente inibitória do remédio da "indenização preventiva", urge identificar uma resposta alternativa. A nosso viso, o modelo jurídico dos "preventive damages" se amolda a uma espécie de remédio restitutório. Não se trata de uma pretensão voltada à compensação de um dano, porém de uma pretensão hábil a reintegrar o patrimônio do demandante ao estado pré-ilícito, em função de critérios objetivos que afiram a razoabilidade das despesas realizadas pela violação de um direito diante da probabilidade de um dano, independentemente de sua constatação. Assumimos aqui um conceito ampliado do princípio da reparação integral, que não se resume à transferência dos danos do patrimônio do ofensor ao do ofendido, mas sim o de reequilíbrio patrimonial entre as partes - em um âmbito de justiça corretiva - que também se dará pela via da restituição de ganhos obtidos pelo demandado com a prática do ilícito ou, ainda, com a restituição de despesas não por ele assumidas quando da intromissão em um direito alheio, incluindo-se aí os gastos que o demandante razoavelmente antecipou para evitar a referida intromissão. A nosso viso a indenização das despesas preventivas pelo incêndio na floresta é uma condenação pecuniária que atua como tutela restitutória do ilícito. O modelo da common law dos preventive damages abrange um conjunto de casos em que o escopo do demandante é o de recuperar despesas por ele realizadas para evitar que um ilícito convencional seja praticado pelo demandado. Caso B seja condenado a restituir as despesas enfrentadas pelo proprietário A, como podemos definir o fundamento da referida indenização? Não se trata de um dano no conceito estrito da função compensatória, haja vista que a propriedade de A não foi consumida pelo fogo, sequer parcialmente. Todavia, houve uma lesão a um interesse patrimonial merecedor de tutela do demandante que lhe defere uma pretensão em face de B. Consequentemente, cabe invocar um remédio que transcenda à epiderme do dano e possa ser aplicado nos limites da responsabilidade civil. Ainda no que diz respeito às interferências no direito de propriedade, especificamente no capítulo do direito de vizinhança o CC/02, dispõe o art. 1283 que "As raízes e os ramos de árvore, que ultrapassarem a estrema do prédio, poderão ser cortados, até o plano vertical divisório, pelo proprietário do terreno invadido". Assim, se as raízes da árvore de um vizinho ameaçam causar dano estrutural ao prédio vizinho, há a previsão de autotutela, independentemente de prejuízo ou nocividade para o vizinho, autorizando-se o proprietário invadido a atuar fundado no princípio da liberdade.5 Contudo, nada menciona o dispositivo sobre uma eventual pretensão a ser exercitada judicialmente, na qual o vizinho afetado pela intromissão postulará a restituição pelas despesas preventivas. Na discussão sobre as despesas preventivas, para além das referências às opções adotadas pelas jurisdições da common law, cabe acrescentar o ingrediente brasileiro da excepcional "autotutela das obrigações de fazer". De acordo com o art. 249 do CC/02 de 2002: "Se o fato puder ser executado por terceiro, será livre ao credor mandá-lo executar à custa do devedor, havendo recusa ou mora deste, sem prejuízo da indenização cabível. Parágrafo único. Em caso de urgência, pode o credor, independentemente de autorização judicial, executar ou mandar executar o fato, sendo depois ressarcido". Em princípio, vislumbra-se imediata incidência do dispositivo na tutela preventiva do inadimplemento de obrigações com fonte contratual. Ilustramos a sua incidência, com a hipótese da contratação de uma firma para demolição de prédio em risco iminente de desabamento, que se abstém injustificadamente do cumprimento da obrigação de fazer. Poderá o próprio credor (proprietário do prédio) determinar que outra empresa pratique a conduta omitida, sem que, para tanto, seja necessária a obtenção da autorização judicial, como originariamente exigir-se-ia nessas hipóteses. Apenas a posteriori o credor demandará o ressarcimento pelos danos decorrentes do descumprimento e dos valores pagos para a execução do fato, convertendo-se a originária obrigação de fazer em obrigação de restituir o valor correspondente. Para além do termo "credor" a hermenêutica do parágrafo único admite extensão ao campo do ilícito extracontratual, repercutindo nas situações de provável risco de dano para terceiros.  Prosseguindo no mesmo exemplo, o vizinho ao prédio que ameaça cair também ostenta legitimidade para efetuar despesas preventivas diante da inação do proprietário vizinho em espontaneamente realizar as obras de contenção estruturais. O CC/02 presume a premência da realização de despesas preventivas perante a inação daquele sobre o qual deveriam recair tais gastos. Bem explica Paulo Lôbo que o devedor poderá provar em juízo que não houve a urgência e, portanto, descabe a obrigação de reembolsar as despesas preventivas.6 De qualquer forma o equívoco da redação consiste no uso da palavra "ressarcido" ao invés de "restituído", pois não se trata de tutela contra o dano, mas de indenização restitutória de despesas. 3. Nosso posicionamento: A indenização preventiva como remédio restitutório na responsabilidade civil A nossa posição quanto às despesas preventivas assumidas pelo demandante tem como premissa a noção de que a justiça corretiva transcende a tarefa de compensar danos, exigindo por vezes um trabalho mais amplo, consistente na reintegração do patrimônio da vítima ao estado pré-ilícito. Isto ocorre quando danos não são identificados, mas o comportamento antijurídico acarreta lucros indevidos ao infrator, ou ele se beneficia de uma economia de despesas, ou mesmo, a necessidade de se repelir um dano iminente impõe a realização de despesas preventivas por parte daquele exposto a uma lesão econômica e/ou a sua integridade psicofísica. O importante é que exista um critério objetivo que afirme a razoabilidade das despesas realizadas, solução esta alcançada pelo Código Civil da Eslováquia no § 419: "Qualquer pessoa que tenha custeado o dano iminente terá direito ao reembolso dos custos incorridos razoavelmente e a os danos que tenha sofrido, inclusive contra a pessoa em cujo interesse tenha atuado, em particular e na medida em que se evitou o dano". O dispositivo corretamente aparta a função restitutória da responsabilidade civil (reembolso dos custos) da cumulação com a compensação dos eventuais danos sofridos, deixando claro que a restituição independe do sucesso das medidas profiláticas. É certo que não podemos generalizar, a ponto de afirmar que todo o custo de prevenir interferências danosas em face da pessoa ou propriedade do demandante se conecta a um remédio restitutório. Excluímos, prima facie, aqueles casos em que as despesas enfrentadas pelo demandante concernem à mitigação de danos posteriores à ocorrência do fato lesivo, a fim de evitar que as lesões iniciais se agravem (v.g. gastos com procedimento cirúrgico para atenuar as consequências de uma agressão física). Aquilo que se nomeia como mitigation damages7não nos interessa, haja vista que opera em um contexto posterior à violação de um interesse patrimonial ou existencial do demandado no qual o ofensor terá que arcar não apenas com as perdas, mas também com os custos de mitigação. Reconhecemos a importância de regras redigidas de forma a apartar os remédios restitutório e compensatório no setor da responsabilidade civil. Nada obstante, cremos que a melhor alternativa é sistêmica. Com efeito, para instalarmos a indenização preventiva como remédio autônomo na responsabilidade civil não basta apartamos esse modelo jurídico das alternativas das respostas compensatória (pelo recurso ao dano abstrato) ou preventiva (como uma variação da tutela inibitória). É necessário encontrar um apoio legislativo e isto somente será possível mediante uma ressignificação do princípio da reparação integral. Requer-se uma funcionalização do conceito de indenização, no sentido de que possa atender da melhor forma a dimensão relacional que inspira o princípio da reparação integral. O objetivo de "reconstituição" hipotética das partes ao estado anterior ao ilícito demanda uma análise bilateral, que, para além do ofensor, compreenda a posição do agente.8 Na medida em que o ofensor obteve um lucro ilícito, economizou despesas com a violação de uma certa posição jurídica, ou então o demandante incorreu em despesas que não assumiria se não houvesse o ilícito, naturalmente a "melhor indenização" terá que incluir dentre os seus critérios alternativos a restituição de gastos ou o resgate de benefícios econômicos, sob pena de violentarmos a justiça corretiva que anima a restitutio in integro. Seja o foco nas perdas como nas despesas preventivas, a restauração da situação existente encontra acolhimento na dimensão relacional da obrigação de indenizar, restrita à bilateralidade das razões correlatas às partes. A essência da filosofia Aristotélica se traduz na necessidade de restauração do equilíbrio em uma relação comprometida uma ação injusta. As duas partes, em suas perdas e ganhos são conectadas pelo conceito de synallagma, e ofensor e ofendido formam uma relação jurídica decorrente do ilícito, da qual todos os demais membros da sociedade estão excluídos, pois em razão de uma injustiça, apenas o ofendido tem um vínculo com os lucros do infrator. Todavia, até os tempos atuais mantemos uma perspectiva unilateral do problema, pois a justiça corretiva foi examinada por uma perspectiva Tomística, centrada na neutralização de perdas em detrimento da abordagem Aristotélica. A vertente instrumentalista da responsabilidade civil se enriquece se virarmos o foco do dano para o ilícito e o associarmos aos remédios. Os remédios da responsabilidade civil são o resultado de um balanceamento de interesses em ambos os lados e não apenas uma resposta reflexa a um negativo rumo dos acontecimentos. Destarte, ampliando a acepção das ações indenizatórias, agora como condenações pecuniárias a obrigações extracontratuais que perfaçam a finalidade de recomposição do sinalagma entre demandante e demandado, poderemos enfrentar o fenômeno da ilicitude por três vias: a) restituição do demandante a situação anterior ao dano injusto pelo remédio compensatório; b) restituição de ambas as partes à situação anterior ao ilícito por meio do remédio da fixação de um preço razoável ou pela restituição das despesas assumidos pelo demandante diante da intervenção inconsentida em sua esfera patrimonial ou existencial; c) restituição do demandado à situação anterior ao ganho ilícito por meio da remoção dos lucros decorrentes da violação de interesses protegidos do demandante. _____ 1 NOLAN, Donal. Preventive damages, p. 132. Law Quarterly Review 68-95. Exemplo extraído do caso New Zealand Forest Products v O'Sullivan, [1974] 2 N.Z.L.R. 80. 2 OLIPHANT, Ken. Basic questions of tort law from the perspective of England and the commonwealth, in KOZIOL, Helmut (ed), basic questions of tort law, p. 373. 3 GREEN, Michael; CARDI, W. Jonathan. Basic questions of tort law from the perspective of USA, in KOZIOL, Helmut (ed), basic questions of tort law, p. 448. 4 MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz e MITIDIERO, Daniel. Novo Código de Processo Civil Comentado, p. 504. São Paulo, 2017, Revista dos Tribunais. 5 GOMES, Orlando. Direitos reais, 20 ed, p. 213. São Paulo, Editora Saraiva, 2018. 6 LÔBO, Paulo Luiz Netto. Teoria geral das obrigações, Saraiva, São Paulo, p. 117. 7 Tort damages. Louis Visscher, Rotterdam Institute of Law and Economics (RILE) Working Paper Series No. 2008/02, p. 18. 8 Neste sentido, o art. 562 do Código Civil de Portugal: "Quem estiver obrigado a reparar um dano deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação".
1. Introdução Em minha última coluna sobre o direito privado na common law, apresentei uma introdução ao direito comportamental com base no texto de Thomas Ulen, publicado no The Oxford Handbook of Behavioral Economics and the Law. O referido manual traz uma série de textos interessantes sobre o direito e a economia comportamental, inclusive uma análise sobre a importância do uso de métodos empíricos para desenvolvimento dessa disciplina. A presente coluna revisa e sumariza o texto elaborado pelo Professor Christoph Engel, cuja premissa básica é que todo direito é comportamental e pode ser uma ferramenta de governança.1 Um dos motivos para que a dimensão comportamental seja mais proeminente é o fato de que o direito não se contenta com a mera causalidade e requer dolo ou culpa. Christoph Engel destaca que existe uma grande tradição da perspectiva comportamental em duas áreas do direito, a saber, o direito e psicologia com seus estudos sobre a dinâmica das salas de audiência e o esforço dos criminologistas para compreender por que existe crime e como pode ser mitigado pelo direito penal.2 A questão-problema básica é explicar as ações dos indivíduos a partir da sua reação à estrutura de oportunidade delineada pelo modelo de regras jurídicas. A análise do direito e economia comportamental desvia da análise econômica do direito (law and economics) tradicional devido às premissas relativas às forças motoras da ação individual. Ao contrário do modelo-padrão em que os indivíduos possuem preferências bem definidas, existe margem para uma função de utilidade mais ampla e para preferências sociais em particular. Os atores não são mais presumidamente voltados apenas e tão somente para o seu próprio bem-estar e existe uma abertura para os efeitos cognitivos e como as instituições jurídicas refletem ou mitigam tais efeitos. Diante da grande imprevisibilidade do comportamento humano, a intervenção institucional pode dar maior previsibilidade à conduta humana e tornar as interações sociais mais significativas.3 O objetivo dessa coluna será elencar as metodologias empíricas que vêm sendo utilizadas para pesquisas sobre o direito e a economia comportamental, apresentando para o nosso leitor alguns dos debates atuais a esse respeito. 2. Metodologias Empíricas: Pesquisa de Campo, Entrevistas, Vinhetas e Experimentos Laboratoriais Tradicionalmente, a responsabilidade civil é identificada como uma área do direito voltada para a indenização, em que a vítima processa o causador de um prejuízo em busca da reparação do dano e uma decisão judicial pretende torná-la indene. A objeção dos acadêmicos de law and economics é que tal construção negligencia que potenciais ofensores antecipam a intervenção jurídica e ajustam sua conduta, de modo que a responsabilidade civil possui um efeito dissuasório e previne condutas indesejadas socialmente, tal como uma sanção criminal e uma intervenção de uma autoridade pública. Contudo, existe na academia um certo ceticismo sobre se o efeito dissuasório da responsabilidade civil é, de fato, poderoso e tem sido realizadas múltiplas tentativas empíricas de se medir o efeito da responsabilidade civil. Christoph Engel se refere a três estudos empíricos diferentes para mostrar o quão variados são os resultados dessas pesquisas. Com base na ideia de que um regime de responsabilidade civil mais severo iria induzir um comportamento mais cuidadoso de potenciais ofensores, o resultado deveria ser de uma redução genérica do nível de prejuízo. Assim é que um estudo mediu tais efeitos a partir de uma perspectiva indireta, investigando a hipótese de que em Estados com regimes mais rigorosos de responsabilidade por erro médico, a saúde dos bebês recém-nascidos deveria ser melhor, mas sem encontrar qualquer associação significativa entre esses dois fatores na prática.4 Noutro estudo empírico, alunos do primeiro ano do curso de direito foram expostos a uma série de hipóteses que envolviam alguma forma de comportamento ilegal e o regime jurídico era alterado para que os estudantes informassem se iriam se envolver em alguma atividade ilegal, conforme o regime jurídico em questão. A responsabilidade civil teve efeitos diminutos e a tendência de se engajar em atividades ilegais não foi significativa nas hipóteses em que não haveria a violação de nenhuma regra jurídica.5 O terceiro estudo empírico foi um experimento laboratorial em que os participantes foram expostos a um dilema, em que se o participante atuasse egoisticamente, iria sofrer um prejuízo, sendo que a certeza da restituição do prejuízo, uma severidade suficiente e uma ameaça de compensação teriam um valor esperado suficientemente alto, de modo a conter os efeitos do dilema ao longo do tempo. Assim é que o experimento laboratorial identificou a existência de um efeito dissuasório da responsabilidade civil.6 Por outro lado, pesquisadores comportamentais não devem buscar a identificação de leis naturais, devendo se satisfazer com a identificação de padrões típicos e em delinear as condições sob as quais um efeito estará normalmente presente.7 Mesmo no caso de busca de previsão de padrões decisórios de uma corte como a Suprema Corte dos Estados Unidos, por exemplo, ainda que a composição da corte permaneça estável ao longo do tempo, é necessária extrapolação do passado para o futuro e o nível de confiança na reprodução do padrão característico deve ser alto. Mesmo assim, a resposta para uma questão-problema de cunho normativo é problemática, já que os juristas querem entender se existe motivo para uma intervenção jurídica e se uma determinada regra jurídica iria aprimorar a situação e querem avaliar a qualidade do processo para geração de regras ou aplicação de regras, o que torna necessária a separação de causa e efeito.8 Christoph Engel salienta a importância da seleção adequada da metodologia coerente conforme a questão-problema. A pesquisa de campo pode servir para a identificação da motivação e da cognição, como no caso de estudos sobre a dinâmica do processo decisório. Uma pesquisa com o uso de filmagem de jurados no processo deliberativo no Estado do Arizona buscava testar se os jurados são influenciados por informação que não tinha sido oficialmente introduzida no processo judicial, como sinais de que uma testemunha seria rica e não foi identificado impacto significativo dessas informações extra-oficiais sobre as posteriores deliberações do júri sobre a culpa dos réus.9 Outra pesquisa de campo sobre o impacto da etnia dos acusados no processo deliberativo dos magistrados demonstrou que, em Israel, magistrados judeus teriam uma maior probabilidade de não manter presos preventivamente os réus de sua própria etnia em comparação com os réus etnicamente árabes e vice-versa.10 Uma outra pesquisa indicou, nos Estados Unidos, que a existência de planos de saúde com cobertura obrigatória para tratamento de diabetes em alguns estados poderia resultar em uma situação de relaxamento de vigilância dos consumidores quando a ordem jurídica cuida da questão, de modo que os problemas dos diabéticos tendiam a aumentar em decorrência de um aumento do consumo de alimentos inadequados pelos consumidores.11 Dependendo da pesquisa, entrevistas podem ser mais intrusivas, dando a oportunidade aos participantes de compartilhar seu conhecimento, compreensão, atitude, julgamento ou escolhas, sendo que a pessoa normalmente tem que responder uma bateria de questões sobre um tema e, em geral, os questionários são distribuídos para membros da mesma população cujo comportamento se pretende entender. Christoph Engel se refere, por exemplo, a pesquisas empíricas com foco em ofensores com problemas mentais.12 Outra metodologia empírica que merece registro é a vinheta, em que os participantes são apresentados com um cenário hipotético e são perguntados sobre como eles se comportariam se estivessem em uma determinada situação ou como eles reagiriam se eles aprendessem sobre tal comportamento. Os estudos de vinheta são experimentos em que o pesquisador altera os cenários e os participantes são alocados para diferentes versões ou veem diferentes versões, sendo comum que estudantes de direito sejam convocados para participar desse método de pesquisa.13 Dentre os exemplos de efeitos identificados nesse tipo de pesquisa, existe a percepção de que o parâmetro de prova no processo civil deve ser superior à preponderância da prova com exigência de maior probabilidade para uma condenação e, igualmente, a ideia de um viés de omissão, isto é, uma crença de que juízes prefeririam evitar sua responsabilidade mediante a rejeição de um caso ao invés de sentenciar em favor do autor.14 Por sua vez, o experimento laboratorial é uma metodologia típica dos economistas comportamentais, que se distingue da vinheta devido a uma série de características próprias. Em regra, as escolhas testadas são incentivadas e a pesquisa possui o desenho típico de um jogo, em que os participantes não são estudados de forma isolada, mas sim interativa. O jogo pode ser repetido em múltiplas etapas, com o estudo de como os efeitos evolvem ao longo do tempo. Tais estudos são baseados em modelos econômicos formalizados, que costumam ser realizados através de computador e com a garantia de anonimato do participante, existindo uma cultura de se evitar truques ou artifícios fraudulentos contra o participante.15 Uma questão importante relativa à elaboração dessas pesquisas diz respeito à motivação de contribuir para a literatura de políticas públicas pelo isolamento de um efeito que se torna suscetível à observação em um contexto com uma estrutura de incentivo que permite a análise de sua força motora.16 3. Considerações finais Em seu texto para o Manual de Oxford sobre Economia Comportamental e o Direito, Christoph Engel apresenta uma série de metodologias para a condução de pesquisas empíricas, mas alerta para a necessidade de combinar mais de um método conforme a questão-problema.17 Essa estratégia de 'triangulação' de métodos de pesquisa é necessária para dar maior respaldo e credibilidade aos resultados das pesquisas empíricas, de modo que o pesquisador deve sempre buscar a adoção de mais de uma metodologia. Igualmente, pesquisadores deveriam ser cautelosos em derivar conclusões de caráter normativo de um único estudo empírico.18 Além disso, a resposta a certas questões pode exigir o teste completo de instituições e não somente de efeitos isolados. Como instituições são raramente desenhadas a partir do nada, a situação típica é de promoção de uma reforma institucional, em que o legislador intervém e a questão crítica é saber como os destinatários da reforma irão reagir à indução de mudança de comportamento. Em um experimento, esse desafio pode ser enfrentado através de um desenho sequencial que foca na comparação da diferença entre o período anterior e o período posterior à introdução da instituição jurídica testada.19 A pesquisa empírica comportamental sobre questões jurídicas ainda é uma área relativamente nova e com grande potencial de desenvolvimento. Por se tratar de uma área diferenciada e que toma emprestado múltiplos métodos de disciplinas afins, os pesquisadores deveriam aprender com os parâmetros metodológicos desenvolvidos com maior profundidade nesses campos vizinhos do conhecimento.20 _____ 1 Engel, Christoph, Behavioral Law and Economics: Empirical Methods, The Oxford Handbook of Behavioral Economics and Law, p. 125. 2 Idem. 3 Idem, p. 125-126. 4 Yang et al, Does Tort Law Improve the Health of Newborns, or Miscarry? A Longitudinal Analysis of the Effect of Liability Pressure on Birth Outcomes. Journal of Empirical Legal Studies, volume 9, n. 2, 217, 2012. 5 Cardi et al, Does Tort Law Deter Individuals? A Behavioral Science Study. Journal of Empirical Legal Studies, volume 9, 567, 2012. 6 Eisenberg, Theodore, and Engel, Christoph, Assuring Civil Damages Adequately Deter: A Public Good Experiment. Journal of Empirical Legal Studies, v. 11, n. 2, p. 301, 2014. 7 Engel, Christoph, Behavioral Law and Economics: Empirical Methods, The Oxford Handbook of Behavioral Economics and Law, p. 129. 8 Idem, 131. 9 Rose et al, Goffman on the Jury, Law and Human Behavior, volume 34, 310, 2010. 10 Gazal-Ayal, Oren and Sulitzeanu-Kenan, Raanan, Let My People Go: Ethnic In-Group Bias in Judicial Decisions. Evidence from a randomized natural experiment, Journal of Empirical Legal Studies, volume 7, 403, 2010. 11 Klick, Jonathan and Stratmann, Thomas, Diabetes Treatment and Moral Hazard, Journal of Law and Economics, volume 50, 519, 2007. 12 Engel, Christoph, Behavioral Law and Economics: Empirical Methods, The Oxford Handbook of Behavioral Economics and Law, p. 133-134. 13 Idem, p. 134. 14 Idem. 15 Idem, p. 135. 16 Idem. 17 Idem, p. 138. 18 Idem. 19 Idem, p. 139. 20 Idem, p. 140.
Este ano o STF deverá finalmente decidir sobre a constitucionalidade ou não do art. 19 do Marco Civil da Internet (MCI), segundo o qual "o provedor de aplicações de internet somente poderá ser responsabilizado civilmente por danos decorrentes de conteúdo gerado por terceiros se, após ordem judicial específica, não tomar as providências para, no âmbito e nos limites técnicos do seu serviço e dentro do prazo assinalado, tornar indisponível o conteúdo apontado como infringente, ressalvadas as disposições legais em contrário." A regra, como o próprio trecho inicial do dispositivo prevê, teria "o intuito de assegurar a liberdade de expressão e impedir a censura". Nesta e na próxima colunas, com base nas experiências americana e alemã, apresento algumas questões que me parecem relevantes para o debate atual sobre a (in)constitucionalidade do art. 19 do MCI. Transformação da responsabilidade dos intermediários na internet Em primeiro lugar, está a transformação da responsabilidade dos intermediários na internet. Na década de noventa e início dos anos 2000, em diversos países, as leis aprovadas previam regimes abrandados de responsabilidade aos provedores com o fim de incentivar a tecnologia. Nesse contexto, pode-se referir, nos EUA, a Section 230 do Communications Decency Act (CDA), de 1996, segundo a qual "no provider or user of an interactive computer service shall be treated as the publisher or speaker of any information provided by another information content provider". Essa regra consolidou a percepção dos provedores como plataformas neutras, que não fariam moderação de conteúdo e que, portanto, não deveriam ser responsabilizadas pelos danos decorrentes de postagens feitas pelos seus usuários1. Na Alemanha, entre outras leis, pode-se citar os §§ 8-11 da Lei dos Serviços à Distância - Teleserviços (Teledienstegesetz) - de 1997. Segundo Martin Eifert, professor catedrático da Humboldt-Universität zu Berlin, "o objetivo - nas palavras da justificativa e fundamentação da lei - era primeiramente alcançar 'a superação de obstáculos para o livre desenvolvimento das forças do mercado no âmbito dos novos serviços de informação e comunicação e a garantia de condições conjunturais econômicas uniformes para a oferta e para o uso destes serviços'."2. Mas essa realidade, já há alguns anos, tem mudado. Hoje, em âmbito internacional, vive-se uma tendência de atribuição de maior responsabilidade das plataformas digitais, imposição de deveres, sobretudo das grandes plataformas. Nos EUA, a referida Section 230 tem sido objeto de muitas controvérsias. Por exemplo, durante o seu governo, o presidente Donald Trump teve as suas contas do Twitter e Facebook suspensas e chegou a ser banido dessas redes sociais por decisão das próprias plataformas, sob alegação de que publicações do ex-presidente tinham violado as suas "condições de uso, serviços e políticas de conteúdo". Na época, Trump chegou a editar uma medida ou ordem executiva (executive order) para limitar a proteção jurídica oferecida pela Section 230. A ideia subjacente era a de que, se as plataformas são mesmo neutras, elas não deveriam moderar conteúdo, de modo que a supressão de postagens e a suspensão ou banimento de contas seria censura. Há também um movimento dos democratas para alterar a Section 230, mas por outros motivos: entende-se que essa moderação já acontece e que ela deveria ser ainda maior. Apenas para se ter uma ideia da extensão do debate e da controvérsia, hoje, há nada menos do que 19 projetos (bills) que visam a alterar a Section 230. Dentre eles, há desde projetos mais radicais que visam à sua completa supressão, a outros menos radicais que propõem apenas a sua alteração3. Na Alemanha, Martin Eifert refere-se à "tendência fundamental de que se imponham de forma crescente obrigações aos intermediários. A fase dos incentivos à tecnologia foi claramente substituída por uma nova fase. Os intermediários são identificados como estrangulamentos ou afunilamentos com uma função estruturadora e sofrem uma maior e reforçada incidência de responsabilidade." Por exemplo, a Lei Alemã para a Melhoria da Aplicação da Lei nas Redes Sociais (NetzDG) "desenha a obrigação de retirada de conteúdos por meio da responsabilidade indireta de monitoramento (Störerhaftung) e contém requerimentos para o procedimento de sua admissibilidade."4 O MCI, por sua vez, é de abril de 2014. O art. 19, portanto, pode ser enquadrado como um fruto tardio da referida "regulação dos intermediários por imunidade surgida nos Estados Unidos na década de noventa sob o manto de incentivo à inovação."5 Nesse sentido, segundo Ricardo Campos, docente assistente na Goethe Universität Frankfurt am Main: De fato, o art. 19 do Marco Civil é um produto reproduzido de um determinado e particular momento de promoção à inovação, e por isso de certa forma seria uma lei que já nasceu anacrônica, na medida que emerge de um abismo temporal de 18 anos da legislação americana. De fato, o momento atual é completamente diferente da década de noventa. O que antes era promoção à inovação hoje virou um mercado de monopólio pelas "big five". Jeff Kosseff assinala, num balanço dos 20 anos da criação da nova responsabilidade por imunidade [no contexto americano], que a consequência dessa forma de responsabilidade foi que os intermediários propriamente ditos passaram a bloquear e excluir voluntariamente conteúdos seguindo exigências do mercado nos termos de condições de uso. A exclusão das contas do "revoltados online" (na época maior plataforma da direita) e MBL nos últimos anos se deram nesse contexto de autoregulação que possui um viés intransparente, na medida em que a exclusão apresenta-se de certa forma como uma censura fática.6 Se, então, no Brasil, o modelo de isenção de responsabilidade das plataformas digitais já nasceu desatualizado, insistir em uma interpretação e aplicação textual rigorosa do art. 19 do MCI pode manter o país por mais tempo em descompasso com as melhores tendências internacionais. Efeito resfriador (chilling effect) Um outro ponto central é o seguinte: uma das teses centrais de defesa da constitucionalidade do art. 19 do MCI é a de que, sem esta regra, prevaleceria uma tendência por parte das plataformas a bloqueio excessivo e, portanto, uma violação à liberdade de expressão. Trata-se do tão propalado efeito resfriador ou chilling effect. Afirma-se que o receio da responsabilização por descumprimento de notificação extrajudicial faria com que os provedores adotassem postura favorável à supressão das postagens objeto de queixa de algum usuário e que isso seria incompatível com a liberdade de expressão. Algumas vozes já têm questionado a robustez esse raciocínio7. No Brasil, Anderson Schreiber apresenta ceticismo em relação à abrangência desse argumento do chilling effect, afirmando que um tal efeito ocorre comumente apenas nas notificações baseadas na violação de direitos autorais, mas não naquelas que tem por base a lesão a direitos da personalidade como a honra, privacidade e imagem. Nas palavras do autor: Em sua pátria de origem, o notice and take down é alvo de críticas por conta de uma espécie de "efeito resfriador" (chilling effect) que o seu uso abusivo pode provocar no exercício da liberdade de expressão. Tais críticas, todavia, atrelam-se normalmente às notificações fundadas na proteção de direitos autorais, que, por sua própria natureza, acabam exercendo um papel defensivo da indústria do entretenimento, minando formas de expressão artísticas típicas do ambiente virtual, como os melánges, sampleamentos e colagens. Em matéria de tutela dos direitos fundamentais à honra, à privacidade e à imagem da pessoa humana, o argumento do "efeito resfriador" da liberdade de expressão não apenas menos usual, mas também menos convincente, ao menos na maior parte dos casos concretos, que envolvem divulgação não autorizada de imagens íntimas, mensagens discriminatórias, incitação ao ódio, xingamentos grosseiros e outras situações em que o exercício da liberdade de expressão revela-se nitidamente abusivo.8 Embora de maneira mais ampla, Ricardo Campos também questiona a força deste suposto efeito resfriador para violar a liberdade de expressão dos usuários de mídias sociais. Nesse sentido, ele critica uma postura de "sacralidade" em relação ao art. 19 do MCI, como se a sua alteração levasse inevitavelmente a uma violação da liberdade de expressão: O grande desafio em enfrentar a temática decorre primeiramente de fugir do maniqueísmo que domina o debate brasileiro em torno do tema. Maniqueísmo esse que se expressa no tom quase catastrófico de uma certa "sacralidade" do art. 19, como se a mera aproximação e mudança de forma regulatória levaria inexoravelmente a uma situação de restrição extrema da liberdade de expressão. Ao menos não foi isso que ocorreu em outros países que não optaram pela simplória defesa de interesses das plataformas digitais sem balancear com as deformações causadas nos pilares da constituição democrática, ou seja, o interesse público9. Além desses, há outros pontos a serem levados em consideração na discussão, os quais serão abordados na coluna do próximo mês. A título de conclusão, deixo aqui desde já a seguinte questão: uma forma de fugir do referido maniqueísmo e de dar uma resposta mais adequada ao problema não seria por meio de uma interpretação do art. 19 do MCI conforme à Constituição Federal que equilibrasse melhor os direitos fundamentais em jogo? Mas qual intepretação seria essa? A refletir e conferir na próxima coluna. __________ 1 Ver, entre outros, a palestra da minha colega de coluna "direito privado no common law", Thais Pascoaloto, em Seminário do IBERC sobre responsabilidade civil das plataformas digitais. Disponível em: https://youtu.be/twnvwmoiaau. Acesso em: 2 abr. 2022. 2 "Tal conceito, também adotado pelas regulamentações europeias da Diretiva E-Commerce no ano 2000 e subsequentemente levado adiante nacionalmente de acordo com os §§ 7-10 da TMG (Telemediengesetz - Lei Alemã de Telemedios), é um conceito que dá preferência aos privilégios de responsabilidade e que seguiu, com isso, basicamente um modelo de pensamento voltado para o incentivo à tecnologia." "Os acess-providers foram amplamente liberados de responsabilidade (§ 8f. TMG), pois eles não tinham juridicamente (e naquele tempo tampouco tecnicamente) qualquer acesso qualificado de monitoramento dos conteúdos. Os Host-Providers (§ 10 TMG) - e aqui se trata também de destinatários da NetzDG - já tinham de fato desde sempre um acesso técnico aos conteúdos. O seu desenvolvimento, contudo, não deveria ser obstaculizado por obrigações de grande alcance. Nesse sentido, foram excluídas pelo § 10 da TMG e pelo art. 14 da Diretiva E-Commerce aquelas obrigações de monitoramento de conteúdos que eram particularmente proativas, sendo que a responsabilidade foi vinculada necessariamente ao conhecimento positivo de atividades ilícitas ou a circunstâncias evidentes que indicavam claras ilicitudes." 3 Cf. Thais Pascoaloto, em Seminário do IBERC sobre responsabilidade civil das plataformas digitais. Disponível aqui. Acesso em: 2 abr. 2022 4 Martin Eifert. A lei alemã para a melhoria da aplicação da lei nas redes sociais. In: Abboud, Georges; Nery Jr., Nelson; Campos, Ricardo. Fake news e regulação. São Paulo: RT, 2020, p. 166. 5 Ricardo Campos. A transformação da responsabilidade dos intermediários da internet. In: Democracia, justiça e cidadania: Desafios e Perspectivas Homenagem ao Ministro Luís Roberto Barroso, 2020, p. 387. 6 Campos, A transformação da responsabilidade dos intermediários da internet, cit., p. 391. 7 Na Alemanha, vale conferir as ponderações de Martin Eifert no seguinte tópico: "II. Overblocking como questão dos standards materiais e a estrutura de incentivos" (Eifert, A lei alemã para a melhoria da aplicação da lei nas redes sociais, cit., versão kindle). 8 Anderson Schreiber. Marco civil da internet: avanço ou retrocesso? A responsabilidade civil por dano derivado do conteúdo gerado por terceiro. In: Newton De Lucca et. al. Direito & Internet III, t. II. São Paulo: Quartier Latin, 2015, p. 288. 9 Campos, A transformação da responsabilidade dos intermediários da internet, cit., p. 392.
Em nossa coluna anterior (parte I), abordamos diversos efeitos jurídicos correlacionados à natureza dos serviços prestados por plataformas digitais que se enquadram no modelo das Gig Economy Companies. Analisamos, em especial, algumas das controvérsias geradas pelo uso das plataformas digitais nas relações trabalhistas. A questão central, certamente, diz respeito à natureza dos serviços prestados pela Uber e o possível enquadramento das relações mantidas entre a empresa e os motoristas que aderem ao aplicativo como mera prestação de serviços autônomos ou como geradora de vínculo empregatício. Conforme já esclarecemos, atualmente os diversos sistemas de justiça vêm adotando soluções distintas para a resolução dos conflitos gerados pela utilização da referida plataforma. Nesta segunda parte da coluna analisaremos algumas decisões dos tribunais do Reino Unido e do Brasil a respeito do tema. Reino Unido - Caso Uber BV and others (Appellants) v Aslam and otherts (Respondents)1. Em recente e paradigmática decisão, depois de uma longa batalha judicial na qual em que a Uber perdeu em três instâncias inferiores, a Suprema Corte do Reino Unido reconheceu que o vínculo existente entre o motorista parceiro e a Uber é efetivamente de trabalho (motoristas qualificados como "workers"). O julgamento se prestou a definir se os motoristas da Uber teriam direito a receber salário-mínimo, férias e aposentadoria2. Ao analisar o caso concreto, o Tribunal fundamentou sua decisão tendo por base a autonomia dos motoristas da Uber. A partir disso, passou a deliberar a respeito das seguintes questões: i) a quem incumbiria determinar o preço cobrado dos passageiros; ii) quem seria responsável pela definição da prestação dos serviços aos usuários, e iii) qual seria o grau de autonomia admitida aos motoristas para oferecer seus serviços ou comercializar seu negócio particular de forma independente.3 A conclusão da Suprema Corte foi pela existência de dependência, de subordinação e de vínculo do motorista com a Uber. Assim, segundo o Tribunal britânico, as disposições do contrato pactuado entre motoristas e a Uber que visem obstar a reivindicação de direitos trabalhistas são nulas, diante do disposto pela seção 49 (1) da legislação trabalhista aplicável.4 Por tal motivo, os contratos de prestação de serviços da Uber devem observar as disposições da lei que garante o pagamento de um salário-mínimo nacional (National Minimum Wage Act 1998). Dessa forma, reconheceu-se que a designação do motorista da Uber como autônomo não deve prevalecer frente à legislação britânica para fins de pagamento de salário-mínimo, na medida em que referida lei foi aprovada com a finalidade de proteger aqueles que dele efetivamente precisam e não aqueles aos quais a empresa ache necessário pagar5. Os fundamentos da configuração do vínculo trabalhista entre o motorista parceiro e a Uber, segundo a Corte, são diretamente ligados ao controle do aplicativo exercido pela empresa, uma vez que o motorista não possui nenhuma autonomia quanto ao controle das atividades profissionais. Foram elencados cinco motivos essenciais que demonstram a dependência e, portanto, o vínculo de trabalho entre a Uber e os seus motoristas, quais sejam: i) a remuneração paga ao motorista é fixada pela Uber sem margem para negociação, a única escolha é quanto e quando trabalhar6; ii) os termos contratuais são definidos previamente pela Uber, cabendo ao motorista somente aderir às disposições do contrato previamente redigido pela empresa7; iii) as escolhas do motorista são limitadas (por exemplo, ele não pode recusar/cancelar mais que determinado número de corridas8; iv) a Uber exerce um controle da prestação de serviço do motorista de forma significativa, deliberando sobre o modelo do carro usado, não sendo a tecnologia empregada no aplicativo transparente com o motorista9, e v) o contato entre motorista e passageiro é mínimo, de modo que não há como estabelecer qualquer vínculo entre ambos além da viagem individual10. A respeito do período de trabalho exercido pelos motoristas para a Uber, a Suprema Corte concordou com a decisão da Court of Appeal, a qual houvera definido que o início da contagem se daria a partir da realização da primeira corrida, devendo o motorista ser remunerado inclusive enquanto aguarda pela chamada do próximo passageiro, desde que o aplicativo esteja conectado e o motorista esteja trabalhando exclusivamente para a Uber em Londres, sem utilizar outro aplicativo de transporte.11 Brasil - Precedentes do STJ e do TST Como se sabe, o debate a respeito de serem os motoristas parceiros considerados trabalhadores ou profissionais autônomos vem ocorrendo em vários países do mundo, e tem gerado à Uber diversos processos judiciais - inclusive no Brasil. Em nosso sistema de justiça, apesar de toda a controvérsia gerada pelo tema, até o momento pode-se afirmar prevalecer uma tendência pelo reconhecimento da inexistência de vínculo empregatício entre motoristas parceiros e a Uber.  Isso pode ser apurado pela verificação de recentes decisões do STJ e do TST. O STJ foi inicialmente provocado a se manifestar, por via de dois conflitos de competência, a respeito da definição da Justiça competente para julgar ações de motoristas em face da Uber. Indagava-se se tais feitos deveriam ser processados na Justiça Comum ou na Justiça Trabalhista. Em ambos os julgamentos, ocorridos entre os anos de 2019 e 2021, o STJ definiu que a Justiça Comum é a competente para julgar as ações propostas pelos motoristas e a empresa. No primeiro caso em 2019 (CC 164.544/MG12), o STJ definiu o conflito de competência tomando por premissa a não preenchimento dos pressupostos legais e jurisprudenciais necessários à caracterização da relação de emprego, tais como: i) a pessoalidade; ii) a habitualidade; iii) a subordinação e iv) a onerosidade. Como os serviços são prestados de forma eventual, sem horários pré-estabelecidos e sem o recebimento de salário fixo, estaria descaracterizado o vínculo empregatício. Para além disso, entendeu o STJ que as demandas judiciais propostas pelos motoristas da Uber são baseadas nos contratos firmados com a empresa de aplicativo de celular, contratos esses, segundo o Tribunal, "de cunho eminentemente civil".13 Como se percebe, o entendimento jurisprudencial inicial sobre o tema no Brasil é no sentido de que inexiste relação empregatícia, na medida em que o contrato entre a Uber e os motoristas seria de natureza cível. Segundo o STJ, "o sistema de transporte privado individual, a partir de provedores de rede de compartilhamento, detém natureza de cunho civil"14. No julgamento do segundo conflito de competência, no ano de 2021 (CC 181.622/RJ15), por decisão monocrática, considerou-se que a demanda judicial fora fundamentada na responsabilidade por inadimplemento contratual. Por tal razão, o precedente anteriormente gerado pelo julgamento do CC 164.544/MG se prestou a, novamente, afastar a competência da justiça especializada trabalhista. Por sua vez, o TST teve a oportunidade de se manifestar pela primeira vez sobre o tema no ano de 2020, por via do julgamento de um recurso de revista (autos 1000123-89.2017.5.02.003816). Na ocasião, a 5ª turma do TST afastou a existência de vínculo empregatício entre motoristas e a Uber sob o pretexto de que a autonomia do motorista no desempenho das atividades descaracteriza a subordinação. Além disso, a revolução tecnológica e a utilização das plataformas digitais não permitiriam o enquadramento do vínculo trabalhista tal como classicamente compreendido.17 Ainda no âmbito do TST, no julgamento do agravo interno em RR - 10575-88.2019.5.03.000318 - 2020, a 4ª turma do Tribunal entendeu que o uso da plataforma tecnológica não caracteriza o vínculo, pois serviria, apenas, como meio de gestão e oferta de motoristas-usuários para clientes-usuários. Assim, estaria ausente a subordinação direta entre o motorista e a Uber, de modo que o trabalho por aquele desenvolvido seria autônomo diante da falta de requisito para configuração do vínculo. Corroborando com referidos precedentes, no ano de 2021, a 4ª turma do TST (RR 10555-54.2019.5.03.017919) decidiu que "causaria estranheza concluir que a forma de trabalho, elegida exclusivamente pelo motorista, definiria o tipo de relação contratual firmada entre as partes. Além disso, a habitualidade não é um atributo exclusivo da relação de emprego, estando presente em contratos de trato sucessivo, não sendo, portanto, o fator determinante para se reconhecer a relação de emprego na presente hipótese".20 Ademais, segundo o acórdão, o motorista de aplicativo possui ampla autonomia na medida em que escolhe os períodos de trabalho (dias, horários e formas de labor), o que também não permite a configuração do vínculo. Ainda no ano de 2021, a 5ª turma do TST (AIRR - 1001821-40.2019.5.02.040121) voltou a negar o reconhecimento de vínculo empregatício  com base no entendimento da absoluta autonomia do motorista na prestação de serviços. Segundo o colegiado, "as relações de trabalho têm sofrido intensas modificações com a revolução tecnológica, de modo que incumbe a esta Justiça Especializada permanecer atenta à preservação dos princípios que norteiam a relação de emprego, desde que presentes todos os seus elementos".22 Em contraposição aos julgados anteriores, em dezembro de 2021, a 3ª turma do TST (RR - 100353-02.2017.5.01.0066) formou maioria de votos (julgamento ainda não concluído), pela primeira vez, no sentido de que os requisitos para configuração do vínculo empregatício estariam preenchidos. O julgamento foi suspenso diante do pedido de vista do ministro Alexandre de Souza Agra Belmonte, mas foi formada maioria no julgamento com o voto do ministro relator Mauricio Godinho Delgado e do ministro Alberto Bresciani.23 Diante do pedido de vista, não houve ainda publicação do voto do Ministro relator. Como se percebe, até o momento, as decisões do STJ e a maioria das decisões proferidas pelo TST caminham no sentido do não reconhecimento do vínculo trabalhista e da natureza cível do contrato entre motoristas autônomos e a Uber. Ou seja, exatamente no sentido inverso do recente precedente gerado pela Suprema Corte Inglesa, pelo qual se entendeu que as disposições contratuais elaboradas pela Uber violam diretamente a legislação trabalhista vigente. BRASIL - Edição da lei 14.297/2224 Recentemente foi editada a lei Federal 14.297/22, que dispõe sobre as "medidas de proteção ao entregador que presta serviço para empresa de aplicativo de entrega durante a pandemia da covid-19"25. Trata-se de novidade que pode repercutir na compreensão a respeito da natureza jurídica da relação existente entre os motoristas dos aplicativos e as empresas de tecnologia. Isso porque referido texto legislativo utiliza a expressão "intermédio" para caracterizar o serviço prestado pelo entregador. O art. 2° da lei define os conceitos de "empresa de aplicativo de entrega" e "entregador". Segundo o texto legal, a empresa realiza a intermediação entre o fornecedor do produto e sua entrega, e o meio utilizado é a plataforma eletrônica. O entregador é o "trabalhador" que presta serviço de retirada e entrega de produtos contratados por meio da plataforma de aplicativo de entrega.26 Como se percebe, a nova legislação não trata do entregador como  autônomo, mas como efetivo trabalhador da empresa. Além disso, o art. 3° obriga a empresa de aplicativo a contratar seguro contra acidentes em benefício do entregador cadastrado na plataforma durante a retirada ou entrega de produtos.27 Por fim, há expressa previsão de um auxílio financeiro ao entregador no caso de infecção por covid-19 (art. 4°), que será calculada pela média de pagamento auferido nos últimos três meses com entregas realizadas para a empresa de aplicativo.28 Como já afirmamos, o alcance e a profundidade dos efeitos jurídicos e econômicos derivados do reconhecimento do status de empregados ou de autônomos aos motoristas das plataformas de transporte ainda são desconhecidos. Por um lado, as empresas de tecnologia sempre apostaram na desregulamentação de diversos dos setores em que passaram a atuar. Por outro lado, os impactos da utilização de novas tecnologias demoram a ser regulados pelos Estados e absorvidos pela própria sociedade. O que parece certo, de toda a controvérsia envolvendo os múltiplos e complexos conflitos gerados pelo novo modelo das Gig Economy Companies, é a necessidade de uma atuação estatal efetiva, seja pelo Poder Judiciário, seja pelo Poder Público, apta a garantir a segurança jurídica, a um só tempo incentivando a economia e resguardando os direitos fundamentais em risco. _____ 1 UNITED KINGDOM. SUPREME COURT Uber BV and others (Appellants) v Aslam and others (Respondents). 2021. Inteiro teor do julgamento disponível aqui.  2 BRASIL. Uber com salário-mínimo, férias e aposentadoria: a decisão que pode influenciar milhões de trabalhadores pelo mundo. BBC. Disponível aqui. 3 UNITED KINGDOM. SUPREME COURT Uber BV and others (Appellants) v Aslam and others (Respondents). 2021, p.28. Disponível aqui.  4 UNITED KINGDOM. SUPREME COURT Uber BV and others (Appellants) v Aslam and others (Respondents). 2021, p.25. Disponível aqui.  5 "The efficacy of such protection would be seriously undermined if the putative employer could by the way in which the relationship is characterized in the written contract determine, even prima facie, whether or not the other party is to be classified as a worker. Laws such as the National Minimum Wage Act were manifestly enacted to protect those whom Parliament considers to be in need of protection and not just those who are designated by their employer as qualifying for it". UNITED KINGDOM. SUPREME COURT Uber BV and others (Appellants) v Aslam and others (Respondents). 2021, p.23. Disponível aqui.  6 UNITED KINGDOM. SUPREME COURT Uber BV and others (Appellants) v Aslam and others (Respondents). 2021, p.29. Disponível aqui.  7 Idem. 8 Idem. 9 UNITED KINGDOM. SUPREME COURT Uber BV and others (Appellants) v Aslam and others (Respondents). 2021, p.30. Disponível em: https://www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2019-0029-judgment.pdf.  10 UNITED KINGDOM. SUPREME COURT Uber BV and others (Appellants) v Aslam and others (Respondents). 2021, p.31. Disponível em: https://www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2019-0029-judgment.pdf.  11 UNITED KINGDOM. SUPREME COURT Uber BV and others (Appellants) v Aslam and others (Respondents). 2021, p.41. Disponível em: https://www.supremecourt.uk/cases/docs/uksc-2019-0029-judgment.pdf. 12 BRASIL. STJ. Rel. Min. Moura Ribeiro. Conflito de Competência 164.544/MG. Segunda Seção. Juízo da 1ª vara do Trabalho de Poços de Caldas/MG (Suscitante) v. Juízo de Direito do Juizado Esp. Cível de Poços de Caldas-MG (Suscitado). Julg.: 28/08/2019, Dje.: 04/09/2019. Disponível aqui. 13 BRASIL. STJ. Rel. Min. Moura Ribeiro. Conflito de Competência 164.544/MG. Segunda Seção. Juízo da 1ª vara do Trabalho de Poços de Caldas/MG (Suscitante) v. Juízo de Direito do Juizado Esp. Cível de Poços de Caldas-MG (Suscitado). Julg.: 28/08/2019, Dje.: 04/09/2019 (inteiro teor, p. 5).  14 BRASIL. STJ. Rel. Min. Moura Ribeiro. Conflito de Competência 164.544/MG. Segunda Seção. Juízo da 1ª vara do Trabalho de Poços de Caldas/MG (Suscitante) v. Juízo de Direito do Juizado Esp. Cível de Poços de Caldas-MG (Suscitado). Julg.: 28/08/2019, Dje.: 04/09/2019 (inteiro teor, p. 6).  15 BRASIL. STJ. Rel. Min. Antonio Carlos Ferreira. Conflito de Competência 181.622/RJ. Segunda Seção. Juízo da 1ª Vara do Trabalho de Magé-RJ (Suscitante) v. Juízo de Direito da 1ª Vara Cível de Magé-RJ (Suscitado). Julg.: 30/08/2021, Dje.: 01/09/2021. Disponível aqui. 16 BRASIL. TST. Min. Rel. Alexandre Luiz Ramos. RR 1000123-89.2017.5.02.0038. 5ª Turma. Marcio Vieira Jacob (Recorrente) v. Uber do Brasil Tecnologia Ltda. e outros (Recorridos). Julg.: 05/02/2020, Dje 07/02/2020. Disponível aqui.  17 Disponível aqui. 18 BRASIL. TST. Min. Rel. Alexandre Luiz Ramos. AIRR - 10575-88.2019.5.03.0003. 4ª turma. Ricardo Sa (Recorrente) v. Uber do Brasil Tecnologia Ltda. (Recorrido). Julg.: 9/9/20, Dje: 11/9/20. Disponível aqui. Acesso em 11 de março de 2022. 19 BRASIL. TST. Rel. Min. Ives Gandra da Silva Martins Filho. RR 10555-54.2019.5.03.0179. 4ª Turma. Neder Henrique Gomes Correa (Recorrente) v. Uber do Brasil Tecnologia Ltda. (Recorrido). Julg.: 2/3/21, Dje: 5/3/21. Disponível aqui. 20 BRASIL. TST. Rel. Min. Ives Gandra da Silva Martins Filho. RR 10555-54.2019.5.03.0179. 4ª Turma. Neder Henrique Gomes Correa (Recorrente) v. Uber do Brasil Tecnologia Ltda. (Recorrido). Julg.: 2/3/21, Dje: 5/3/21. (Inteiro teor, p.8). Disponível aqui.  21 BRASIL. TST. Rel. Min. Breno Medeiros. AIRR 1001821-40.2019.5.02.0401. 5ª Turma. Clayton Valenciano (Recorrente) v. Uber do Brasil Tecnologia Ltda. (Recorrido). Julg.: 28/4/21, Dje: 5/5/21. Disponível aqui.  22 BRASIL. TST. Rel. Min. Breno Medeiros. AIRR 1001821-40.2019.5.02.0401. 5ª Turma. Clayton Valenciano (Recorrente) v. Uber do Brasil Tecnologia Ltda. (Recorrido). Julg.: 28/4/21, Dje: 5/5/21. (Inteiro teor, p.16). Disponível aqui. 23 BRASIL, TST. Rel. Min. Maurício Godinho Delgado. RR - 100353-02.2017.5.01.0066. 3ª Turma. Elias do Nascimento Santos (Recorrente) v. Uber do Brasil Tecnologia Ltda. (Recorrido). Julg.: , Dje: . E, ainda, TST: Maioria da 3ª turma vê vínculo entre motorista e aplicativo. Disponível aqui. 24 Disponível aqui. 25 Disponível aqui. 26 Art. 2º Para os fins desta Lei, considera-se: I - empresa de aplicativo de entrega: empresa que possui como principal atividade a intermediação, por meio de plataforma eletrônica, entre o fornecedor de produtos e serviços de entrega e o seu consumidor; II - entregador: trabalhador que presta serviço de retirada e entrega de produtos e serviços contratados por meio da plataforma eletrônica de aplicativo de entrega 27 Art. 3º A empresa de aplicativo de entrega deve contratar seguro contra acidentes, sem franquia, em benefício do entregador nela cadastrado, exclusivamente para acidentes ocorridos durante o período de retirada e entrega de produtos e serviços, devendo cobrir, obrigatoriamente, acidentes pessoais, invalidez permanente ou temporária e morte. 28 Art. 4º A empresa de aplicativo de entrega deve assegurar ao entregador afastado em razão de infecção pelo coronavírus responsável pela covid-19 assistência financeira pelo período de 15 (quinze) dias, o qual pode ser prorrogado por mais 2 (dois) períodos de 15 (quinze) dias, mediante apresentação do comprovante ou do laudo médico a que se refere o § 2º deste artigo.
"Em um nível, a responsabilidade civil concerne aos ilícitos e reparação de danos. Esse é o seu lado privado. E é isso que os tribunais fazem na maior parte do tempo. Em outro nível, a responsabilidade civil trata da prevenção de danos, conforme as necessidades regulatórias da sociedade. Esse é o lado público da responsabilidade civil. É o que os tribunais fazem eventualmente, e o que o legislativo e autoridades administrativas fazem frequentemente. Se você se fixa apenas em um lado ou no outro, acaba deixando de apreciar a responsabilidade civil como um todo" Esta é a ideia central do recém-publicado texto do jurista Ítalo-Americano Guido Calabresi - em coautoria com Spencer Smith - intitulado "On Tort Law's Dualisms".1 O objetivo declarado do escrito foi o de servir com uma "ponte" harmonizadora no embate doutrinário entre, de um lado, John Goldberg e Benjamin Zipurski e, de outro, Catherine Sharkey. A prestigiosa dupla - a qual Calabresi trata no texto pelas iniciais dos sobrenomes "GZ" - há muito se tornou influente na filosofia norte-americana da responsabilidade civil com a sua teoria do "civil recourse", enfatizando principalmente o direito à reparação do demandante e o papel do Estado em conceder a ele pretensões indenizatórias em face daqueles que violaram o seu direito. Mais recentemente, GZ atualizou a teoria para o nome "wrong and redress" (ilícito e reparação)2. Todavia, em sua resenha sobre o livro de GZ, Sharkey considera que ainda há uma lacuna na referida teoria, ou seja, ainda falta uma explanação convincente sobre o que seja um ilícito civil. Em seu entendimento, a teoria de Calabresi do "cheapest cost avoider"3 seria fundamental para preencher este espaço, tal como outras teorias instrumentalistas da responsabilidade civil. Daí, do alto de seus 90 anos de idade o Professor Emérito da Yale Law School se sentiu convidado ao debate. Segundo Calabresi, os argumentos opostos de GZ e Sharkey podem se conciliar com base em duas premissas: primeiramente, a responsabilidade civil opera em níveis duplos. Existe o nível do caso e o nível estrutural. Em segundo lugar, a responsabilidade civil opera em duas direções. O que constitui um ilícito civil na maioria das vezes deriva das necessidades regulatórias da sociedade e, portanto, muitas vezes do desejo de responsabilizar o "cheapest cost avoider". Porém, o que é "barato" e o que é "custo" em si são informações que derivam dos valores da sociedade, influenciados pelo atual conjunto de ilícitos civis. Este link reverso - que por vezes se perde - pode representar o futuro da responsabilidade civil. E isso ocorre precisamente porque a responsabilidade civil precisa responder às necessidades regulatórias da sociedade. a) O nível do caso e o nível estrutural A Professora Emérita da NYU, Catherine Sharkey inicia sua resenha4 do livro de GZ discutindo a decisão da Suprema Corte dos EUA de 2019, no caso Air & Liquid Systems Corp. v. DeVries,5 no qual tanto os votos majoritários, quanto as opiniões divergentes abraçaram o raciocínio baseado na dissuasão econômica do "cheapest cost avoider". Mesmo alcançando respostas diferentes, os juízes da SCOTUS partiram do mesmo questionamento: Quem se encontra na melhor posição para reduzir o risco do dano? Para os votos preponderantes, o fabricante do produto "bare-metal" (em tradução aproximada, metal-cru) tem o dever de avisar ao público quando o produto requer a incorporação de peças de amianto porque "estará em uma posição melhor do que o fabricante de peças para alertar sobre o perigo do produto integrado". Já para os votos minoritários, a norma jurídica que "faz mais sentido hoje" é aquela que impõe o dever de alertar à parte "em melhor posição para compreender e alertar os usuários sobre os riscos do produto", que seria o fabricante de peças de amianto. Em seu contra-argumento GZ assinala que o caso DeVries não apenas refuta a posição de Sharkey, como apoia a deles, na medida em que, tanto a maioria quanto as opiniões divergentes no julgamento implementam análise do "cheapest cost avoider" com base na análise econômica do direito, porém de uma maneira que não explica ou justifique o resultado, pois alcançam conclusões opostas, demonstrando que o conceito carece de substância e determinação. Em suma, a decisão da Suprema Corte reforça o ponto nevrálgico de que os tribunais não são competentes para se envolver em raciocínios de law and economics. Conforme pondera Calabresi, o fato de alguns juízes discordarem sobre como implementar o princípio pelo qual a responsabilidade civil deva minimizar os custos de acidentes  não significa que o conceito careça de substância ou determinação ( aliás, o mesmo é verdade para qualquer outra abordagem do direito civil, incluindo aquelas baseadas na responsabilidade moral.) Todavia, o ponto fundamental é que é um erro pensar que a busca pelo "cheapest cost avoider" converte todo e qualquer julgamento em uma análise de custo-benefício. Se assim fosse, realmente teríamos que nos preocupar com a viabilidade e os custos de tal sistema. O esquema não valeria a pena. GZ está certo de que a teoria do "civil recourse" é o que os tribunais fazem na maior parte dos casos, com base em uma abordagem prática, levando a responsabilidade civil ao pé da letra em sua perspectiva relacional demandante/demandado (embora, com o crescimento dos seguros sociais, muitas vezes seja menos relacional do que GZ insiste). Esse é o lado privado da responsabilidade civil. Contudo, existem também os "grandes" casos que fazem a lei, assim como os casos mais comuns em que os tribunais, em diálogo com outros tribunais, legislaturas e administradores, moldam para onde vai a lei. O fato é que o direito trabalha com categorias. Em comum a esses casos, por razões instrumentais, delibera-se para onde encaminhamos as categorias. Este é o lado público da responsabilidade civil. Isso é o que Calabresi compreende como o duplo nível da responsabilidade civil. Existe o micronível - isto é, o nível do caso - que muitas vezes, embora nem sempre, é "privado" em algum sentido, e que muitas vezes - embora nem sempre - é explicado pela associação ilícito/reparação. Mas há ainda o macronível - isto é, o nível estrutural - que muitas vezes é "público" em algum sentido, pois frequentemente explicado por várias considerações instrumentalistas, como a distribuição de riscos ou de perdas. Ocasionalmente, os magistrados procuram construir etapas entre os níveis. Eles empurram o julgamento em direção ao lado público da responsabilidade civil enquanto decidem um caso com base no aspecto privado, ou seja, da aferição da reparação com base no delito. Pode-se exemplificar com o caso Palsgraf v. Long Island Railroad Co, de 1928. Em resumo, um homem saltou para o espaço aberto no final de um vagão quando o trem estava saindo da estação da ferrovia. Dois funcionários da ferrovia tentaram estabilizá-lo, puxando-o para dentro do trem, acidentalmente desalojando um pacote embrulhado em um jornal que o passageiro segurava debaixo do braço. Os condutores não sabiam que o pacote continha fogos de artifício, que caíram nos trilhos, explodindo com o impacto e causando reverberações ao redor da estação. Como resultado, uma grande balança de metal, localizada na plataforma a cerca de dez metros de distância de onde o pacote caiu, tombou sobre a Sra. Palsgraf, uma cliente que estava esperando outro trem. Ela processou a ferrovia por negligência. GZ argumenta que a lição do caso Palsgraf diz respeito ao requisito relacional de "legitimidade substantiva" da responsabilidade civil, atribuindo a autora da ação poder para perseguir uma reparação em face da ferrovia. Nada obstante, Sharkey aduz que o renomado juiz Benjamin Cardozo, não pareceu neste caso o mesmo Cardozo que em 1916 escreveu a opinião majoritária em MacPherson v. Buick Motor Co.,6oportunidade em que foi expressamente instrumentalista, assinalando que: "O princípio de que o perigo deve ser iminente não muda, mas as coisas sujeitas ao princípio mudam. Eles são o que as necessidades da vida em uma civilização em desenvolvimento exigem que eles sejam." Além disso, em MacPherson, Cardozo raciocinou em termos de "cheapest cost avoider". Porém, no caso Palsgraf, Cardozo aplicou o princípio "the loss should lie where it falls", considerando por bem deixar o dano ficar onde ele caiu - na pessoa da Sra. Palsgraf, que definitivamente não era a parte que poderia ter evitado o acidente pelo menor custo. Como explica Calabresi, Palsgraf é um exemplo maravilhoso da dinâmica de direito público/privado da responsabilidade civil. Há quase 100 anos, o Juiz Cardozo vivia em um mundo em que a e a imputação de danos por negligência, e não a responsabilidade objetiva, era a lógica dominante. É óbvio que no caso Palsgraf, a Long Island Railroad Company não foi negligente. Não havia nada negligente em empurrar o portador de fogos de artifício para dentro do trem já em movimento. Cardozo, assume a questão da negligência, para remeter o caso para o aspecto público da responsabilidade civil, sem violar nenhum princípio de direito privado. A infeliz Sra. Palsgraf não tinha o direito de ser indenizada pela Companhia Ferroviária sob quaisquer princípios de responsabilidade civil então vigentes porque a Companhia não foi negligente. Estes são exemplos de um juiz empurrando a lei na direção do aspecto público da responsabilidade civil, preservando o resultado privado estabelecido. Trata-se de uma consciente construção de etapas que concilia necessidades privadas e públicas da lei. Em algum momento, outro juiz se encontrará no topo de uma escada "construída" por um predecessor, conduzindo-o ao nível macro - e com a oportunidade de remodelar a lei. Então, ele estará de volta ao micronível. Nada tão distante da "chain novel" de Dworkin. b) "elo reverso" da responsabilidade civil. Como pontua Calabresi, se em princípio o ilícito civil deriva das necessidades regulatórias da sociedade, a responsabilidade civil acaba por operar em duas direções. Os juízes que pouco a pouco modelaram a responsabilidade civil iniciaram com uma pequena coleção de ilícitos básicos. De tempos em tempos, refinaram e revisaram a coleção, que apresenta tanto os "clássicos" quanto novas importantes obras. Pode-se imaginá-los, como obras de arte de gêneros semelhantes, agrupados em salas organizadas tematicamente. Ocasionalmente, novos quartos são adicionados para abrigar novos ilícitos. A responsabilidade civil é assim: uma galeria construída com uma curadoria de ilícitos.  Entretanto, assim como um curador seleciona obras com base nos valores da sociedade, ao selecionar obras o curador culmina por moldar os valores da sociedade. A "galeria" de ilícitos civis é, portanto, um reflexo - e um fundamento - de nossos valores coletivos. Consideremos, por exemplo, os punitive damages. Eles refletem um desejo de multiplicar as indenizações de tal forma que a sanção esperada para conduta ilícita seja igual ao seu custo social. Em certos contextos, tais indenizações também podem refletir um desejo de normalizar a transferência de direitos, de modo a privilegiar a "property rule" em detrimento da "liability rule". Com o passar do tempo, a aplicação dos punitive damages em certas condutas ilícitas, estimulam as pessoas a acreditar e considerar a conduta antijurídica mais custosa e, portanto, mais valiosa para evitar. Ou seja, como resultado de seu tratamento em casos de responsabilidade e da expectativa de reparação das pessoas, determinado comportamento passará a ser visto como mais caro. E isso, por sua vez, afetará os "cheapest avoiders", que evitam esses custos. Uma história semelhante pode ser contada sobre a indenização por danos emocionais, sobre os quais a responsabilidade civil impõe limitações substanciais. Tais danos frequentemente não são compensados. Por que? Será que a vítima de tais danos seria a parte considerada mais barata para evitar tais danos? Se assim for, quanto mais uma sociedade compensar as pessoas por danos puramente emocionais, mais pessoas se sentirão emocionalmente prejudicadas e, em certo sentido, experimentarão mais danos e pleitearão mais indenizações. Calabresi não pretende sugerir que danos puramente emocionais não sejam reais. Eles são reais e devem ser reconhecidos de alguma forma. Mas ao decidir se - e como - reconhecer legalmente os ilícitos emocionais, uma sociedade pode estar considerando também os seus efeitos. Alguns, como a angústia que se sente ao ver um ente querido morto, a sociedade aceitará com tranquilidade. Outros, como o sentimento de angústia que todos temos quando vemos um trágico acidente de trânsito, a sociedade pode preferir reduzir, negando qualquer possibilidade de reparação, pois a indenização afeta os custos que, por sua vez, afetam o direito de reparação. Conclui Calabresi que é justamente por essas idas e vindas entre o privado - meu direito de buscar reparação por um ilícito - e o público - um ilícito é o que a sociedade decide que deve ser reparado e como - que a responsabilidade civil se torna o campo fascinante que é. Longe de "palpitar" em um embate dos pesos-pesados do tort law norte-americano, tenho apenas a acrescentar, em uma perspectiva brasileira, que em nosso país o aspecto privado da responsabilidade civil tem sido corretamente desenvolvido, com centralidade no princípio da reparação integral. Cabe agora, em uma necessária ponderação, trazer os holofotes para o seu aspecto público, de forma a desenvolvermos a máxima latina "casum sentit dominus", ou como preferem os ingleses "let the loss lies where it falls". Só assim conciliaremos o direito fundamental à indenização e a proteção dos bens jurídicos do lesado com a tutela de liberdade de atuação do lesante, com base em critérios de utilidade social que presidam o regime de imputação de danos ex delicto. A final, como proclama Oliver Wendell Holmes[7] "é boa politica, deixar as perdas ficarem onde se registram, exceto quando se demonstre haver uma razão especial para interferir". _______________ 1 CALABRESI Guido & SMITH, Spencer. On tort law's dualisms. Disponível aqui. 2 GOLDBERG, John C.P; ZIPURSKY, Benjamin C. "recognizing wrongs", Harvard University Press, 2020. 3 Teoria desenvolvida na obra de 1970, "the cost of accidents": "The search for the cheapest avoider of accident costs is the search for that activity which has most readily available a substitute activity that is substantially safer. It is a search for that degree of alteration or reduction in activities which will bring about primary accident cost reduction most cheaply". Quando o acidente pode ser evitado por qualquer uma das duas partes, parece óbvio colocar a responsabilidade na parte que poderia ter evitado o acidente pelo menor custo. 4 SHARKEY, Catherine M. Modern Tort Law: Preventing Harms, Not Recognizing Wrongs. Disponível aqui. 5 De acordo com a responsabilidade civil marítima, um fabricante de produto tem o dever de avisar se seu produto exige a incorporação de uma parte produzida por terceiros, o produto totalmente incorporado resultante provavelmente será perigoso para os usos pretendidos, e o fabricante não tem motivos para acreditar que os usuários do produto estariam cientes desse perigo. Em um parecer de 6-3 de autoria do juiz Brett Kavanaugh, o Tribunal considerou que a Air and Liquid Systems tinha o dever de alertar os demandantes sobre o perigo dos componentes do navio, embora a Marinha, e não o fabricante, tenha adicionado as peças com amianto. Três abordagens surgiram do dever de ter cuidado razoável ao alertar os usuários em potencial sobre um produto que requer a incorporação posterior de uma parte perigosa para que o produto integrado funcione como pretendido. Desses três, o Tribunal escolheu a abordagem que não impõe a responsabilidade mais estreita nem mais ampla aos fabricantes, achando-a mais apropriada para o contexto marítimo, que reconhece "uma solicitude especial pelo bem-estar dos marinheiros". Juiz Neil Gorsuch escreveu uma opinião dissidente, na qual os juízes Clarence Thomas e Samuel Alito se juntaram. Os dissidentes adotariam a abordagem de defesa bare-metal, consistente com o direito consuetudinário tradicional de responsabilidade civil. 6 Em MacPherson v. Buick Motor Co. o demandante, o pedreiro Donald C. MacPherson, ficou ferido quando uma das rodas de madeira de seu "Buick Runabout" 1909 desmoronou. O réu, Buick Motor Company, havia fabricado o veículo, mas não a roda, que havia sido fabricada por outra parte, mas instalada pelo réu. Admitiu-se que a roda defeituosa poderia ter sido descoberta após a inspeção. O réu negou a responsabilidade porque o autor havia comprado o automóvel de um revendedor, e não diretamente dele. Para o Juiz Benjamim Cardozo, "se a natureza de uma coisa é tal que é razoavelmente certo colocar a vida e a integridade física em perigo quando feita negligentemente, então é uma coisa perigosa. Sua natureza alerta para a consequência a ser esperada. Se ao elemento de perigo se somar o conhecimento de que a coisa será usada por outras pessoas que não o comprador, e usada sem novos testes, então, independentemente do contrato, o fabricante dessa coisa de perigo tem o dever de fazê-lo cuidadosamente. Se ele for negligente, onde o perigo deve ser previsto, uma responsabilidade se seguirá". 7 HOLMES, Oliver Wendell. The common law, American Bar Association, 2009, p. 42.
segunda-feira, 14 de março de 2022

O Direito Comportamental: Uma introdução

Os direitos influenciados pela norma dispositiva inicial, pelo enquadramento psicológico e pela previsão afetiva. Introdução No final de 2005, após uma visita de professores da USP à rede globo para assistir à produção do Jornal Nacional, ocorreu uma polêmica entre o jornalista Laurindo Lalo Leal Filho e o jornalista Willian Bonner devido ao padrão adotado para a elaboração daquele programa jornalístico. Lalo Leal criticou as escolhas jornalísticas da programação pela sua superficialidade, referindo-se ao fato de que a referência de telespectador médio brasileiro seria a personagem de desenho animado Homer Simpson, um preguiçoso comedor de rosquinhas.1 Em nota, William Bonner defendeu a necessidade de ser rigorosamente claro e didático para o público brasileiro de todos os níveis sociais e todos os graus de escolaridade, atingindo também os pais de família, trabalhadores, sem curso superior, e que assistem à televisão depois da jornada de trabalho para se informar sobre os fatos mais relevantes do dia de maneira clara e objetiva, a exemplo de Homer Simpson ou da personagem Lineu de "A Grande Família".2 Essa polêmica sobre como o comportamento humano afeta as dinâmicas de comunicação também poderia servir de ponto de partida para uma reflexão sobre como o direito poder ser influenciado pela necessidade de ser aplicado ao ser humano médio, que possui limites temporais, cognitivos e sociais, mas está sujeito a um regime jurídico de normas e de sanções para influenciar sua conduta na sociedade contemporânea. Como o direito também pode ser visto como um sistema comportamental por sua pretensão de influenciar o comportamento humano, a academia tem buscado compreender o direito comportamental e como o comportamento humano pode ser influenciado por mecanismos como incentivos econômicos, efeitos psicológicos e normas sociais. O estudo do direito comportamental tem como ponto de partida a consciência de que a teoria clássica explicativa do comportamento humano - a teoria da escolha racional - possui limitações significativas, especialmente diante de uma vasta literatura acadêmica que evidencia que o processo de decisão humana não segue o modelo típico de maximização de resultados preconizado pela teoria da escolha racional.3 O objetivo dessa coluna será fazer uma introdução do tema da importância do direito comportamental, preparando o terreno para o aprofundamento de alguns debates sobre o direito e a economia comportamental no futuro. Apesar de ter se popularizado a partir do conceito de Nudge, desenvolvido por Richard Thaler e Cass Sunstein,4 existe uma gama variada de debates na academia anglo-americana que merece ser apresentada ao nosso leitor. Descobertas Comportamentais: Norma Dispositiva Inicial ('Default Rule'), Enquadramento Psicológico ('Framing') e Previsão Afetiva ('Affective Forecasting'). Refletindo sobre a importância do direito comportamental, Thomas Ulen considera que as habilidades mais importantes são de identificar, avaliar e criticar o alinhamento entre os métodos e os objetivos. Em sua tipologia dos diferentes modos de uso dos estudos comportamentais no direito, destacam-se a capacidade de informar modelos preditivos e descritivos, a persuasão de pessoas para alterar o seu comportamento, a avaliação da qualidade do processo decisório e a prescrição de alterações na política pública que irão levar a mudanças de comportamento.5 Ulen apresenta pontos centrais sobre as características do direito comportamental, salientando que se trata de um fenômeno empírico e não estritamente teórico, já que são experimentos que evidenciam como as pessoas realmente se comportam e não uma mera hipótese sobre como seres humanos poderiam tomar certas decisões sob certas condições.6 Além disso, deve ser esclarecido que a literatura comportamental proporciona uma série de exemplos pródigos de que os resultados desses experimentos empíricos falham em confirmar as previsões traçadas pela teoria da escolha racional. Isso não significa que o comportamento humano seja imprevisível ou caótico, já que os experimentos comportamentais indicam uma certa previsibilidade, sendo que a maioria dos seres humanos atua de modo semelhante sob circunstâncias semelhantes - somente não se trata dos padrões hipotéticos formulados pela teoria da escolha racional.7 Por outro lado, se é possível dizer que as pessoas cometem "erros" em suas escolhas, tal vez seja exagerado se referir a "irracionalidades" quando as pessoas tipicamente adotam decisões que não aumenta seu bem estar como seria possível. Dentre as descobertas comportamentais importantes, merece destaque o exemplo relativo aos efeitos da Norma Dispositiva Inicial ('Default Rule'), que diz respeito à regra inicial que estará em efeito, salvo se a parte ou as partes sob sua influência resolverem mudar a regra. Se os custos de transação são os mesmos e não existem obstáculos econômicos para a mudança de uma regra inicial, a Teoria da Escolha Racional indicaria que os agentes racionais deveriam alterar as regras até que se obtivesse um regime jurídico mais favorável e que maximizasse seus resultados, independentemente do ponto de partida original. Contudo, na prática, não é isso o que acontece, existindo uma série de estudos de caso empíricos que demonstram o poder de influência da inércia da situação de status quo da posição original de uma Norma Dispositiva Inicial ('Default Rule'). Possivelmente o exemplo mais notório seja o estudo de caso da doação de órgãos, em que a escolha da Norma Dispositiva Inicial ('Default Rule') possui um enorme impacto no número de órgãos doados. Nos Estados Unidos, por exemplo, apesar de 85% das pessoas aprovarem a doação de órgãos e expressar uma intenção de doar os seus órgãos, menos da metade acaba tomando uma decisão concreta nesse sentido e, ao final, somente cerca de 28% acaba assinando um cartão de doador ou formalizando por qualquer outro meio de um modo explícito a sua intenção de ser doador de órgãos.8 A rigor, a melhor arquitetura normativa em termos de preservação da liberdade individual e maximização do bem-estar social consiste em uma política pública de presunção de consentimento com a possibilidade de se optar pela exclusão ('opt out'), na medida em que existe respeito pelas preferências individuais e se assegura um volume maior de órgãos a serem doados, que é socialmente desejável. Evidências empíricas demonstram o baixo índice de doação de órgãos nos países sem o regime de consentimento presumido, em que é necessária a expressa opção de adesão ('opt in') ao programa, atingindo 27,5% na Holanda, 17,17% no Reino Unido, 12% na Alemanha e 4,25% na Dinamarca. Já em países com consentimento presumido e possibilidade de optar pela exclusão ('opt out'), como Áustria, Bélgica, França, Hungria, Portugal, Polônia e Suécia, os percentuais de doação são muito mais altos, variando de 85,9% a cerca de 99%.9 O fato é que a Norma Dispositiva Inicial ('Default Rule') é decisiva para o processo de escolha e a maioria das pessoas segue esse padrão original em um determinado processo de escolha. Já a influência do efeito de Enquadramento Psicológico ('framing') pode ser verificado através da estratégia de consulta e de formulação de questões ao público-alvo. Em um experimento em que se buscava compreender a percepção dos entrevistados sobre um determinado programa aplicável a um grupo de 600 pacientes, que teria uma eficácia de sucesso de 33,33% e de fracasso de 66,67% sobre o universo de pessoas tratadas, são decisivos os termos de formulação do debate. Embora o conteúdo lógico-racional seja idêntico, os entrevistados dão apoio ao programa diante da afirmação de que irá salvar 200 vidas, mas não dão apoio ao programa diante da informação de que irá resultar na morte de 400 pessoas. Esses experimentos de Enquadramento Psicológico ('framing') desconstroem a premissa da Teoria da Escolha Racional de que as escolhas dos decisores não variam conforme a maneira em que a informação lhes é apresentada. Conforme as lições empíricas da economia comportamental aplicáveis ao direito, as escolhas podem depender de modo decisivo do modo como a informação é enquadrada, sendo que alguns enquadramentos podem ser arquitetados para a vantagem de uma das partes que irão estruturar o processo de escolha para facilitar a obtenção de um resultado que lhes seja favorável, enquanto irão dar ao decisor a ilusão de que chegaram à escolha livremente.10 Uma outra descoberta comportamental relevante diz respeito à Previsão Afetiva ('Affective Forecasting'), isto é, a habilidade humana de prever os futuros estados emocionais, que consistem justamente no prazer ou na dor que algum evento ou bem ainda não experimentado irá nos dar. Um exemplo pesquisado empiricamente diz respeito à redução da capacidade da visão que pode importar em uma redução de bem-estar inicial, mas o nível subjetivo de sensação de bem-estar deverá retornar ao padrão prévio após o decurso de cerca de um ano desde a ocorrência da perda.11 Existem consequências importantes para a política pública e para o direito a partir de nossas dificuldades para prever o prazer e a dor decorrente dos futuros eventos. Assim é que se forem deixados à sua própria sorte, muitas pessoas irão elaborar planos de vida, realizar ações e consumir bens que não irão torná-los melhores no longo prazo. Por outro lado, eles poderiam incorrer em despesas para evitar perdas que eles considerariam catastróficas para o seu bem-estar, mas que não seriam empiricamente tão devastadoras como imaginado. Tais descobertas comportamentais são extremamente importantes para a arquitetura normativa e para o desenho institucional de regimes de seguro e de previdência, políticas públicas de educação e de saúde, bem como na definição de subsídios e de tributos. No plano da responsabilidade civil, a Previsão Afetiva ('Affective Forecasting') está relacionada com a possibilidade de que o decisor possa se perguntar sobre como ele se sentiria em termos de dor, sofrimento e prejuízos sofridos, caso tivesse sido a vítima de um determinado ato ilícito e tivesse direito à indenização pelos danos sofridos. No caso dos Estados Unidos, por exemplo, em que o julgamento da responsabilidade civil é realizado por um júri composto por jurados leigos, a literatura indica para o risco de que a justiça corretiva compense a vítima sem levar em conta a capacidade humana de readaptação, vindo a fixar a indenização em valores superiores aos necessários para a real composição do dano psicológico sofrido, o que poderia justificar algumas regras mais rígidas de limites judiciais para os valores de indenização fixados.12 Considerações Finais A economia comportamental apresenta uma série importante de descobertas empíricas sobre a realidade do direito na sociedade contemporânea e sobre como o processo decisório e as escolhas humanas são realizadas conforme limites temporais, cognitivos e sociais que influenciam a conduta das pessoas. Visto como um sistema comportamental com a pretensão de influenciar o comportamento humano, o direito define mecanismos de incentivos econômicos, de efeitos psicológicos e de normas sociais. Nesse contexto, como a arquitetura normativa e o desenho institucional devem ser poder ser formados para serem aplicados ao ser humano médio, sujeito a um regime jurídico de normas e de sanções para influenciar sua conduta na sociedade contemporânea. Como fenômeno social aplicável a pessoas de todos os níveis sociais, graus de escolaridade, gêneros, raças, orientação sexual e origem, atingindo também trabalhadores sem curso superior como Homer Simpson e Lineu de "A Grande Família", o direito comportamental deve ser informado empiricamente sobre os fatos mais relevantes do cotidiano de maneira clara e objetiva, incorporando ao seu repertório os conceitos de Norma Dispositiva Inicial ('Default Rule'), Enquadramento Psicológico ('Framing') e Previsão Afetiva ('Affective Forecasting'), dentre outros conceitos relevantes para a compreensão da realidade do comportamento humano e que não correspondem às hipóteses formuladas pela perspectiva clássica da Teoria da Escolha Racional. *Pedro Fortes é professor Visitante no Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Diretor Internacional do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC) e Promotor de Justiça no Ministério Público do Rio de Janeiro. Graduado em Direito pela UFRJ e em Administração pela PUC-Rio, é DPHIL pela Universidade de Oxford, JSM pela Universidade de Stanford, LLM pela Universidade de Harvard e MBE pela COPPE-UFRJ. É coordenador do CRN Law and Development na LSA, do WG Law and Development no RCSL e do Exploring Legal Borderlands na SLSA. Foi Professor Visitante na National University of Juridical Sciences de Calcutá, Visiting Scholar na Universidade de Frankfurt e Pesquisador Visitante no Instituto Max Planck de Hamburgo e de Frankfurt. __________ 1 https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1112200505.htm 2 https://www1.folha.uol.com.br/folha/ilustrada/ult90u55781.shtml 3 Thomas Ulen, The Importance of Behavioral Law, The Oxford Handbook of Behavioral Economics and Law, p. 93. 4 THALER, Richard H.; SUNSTEIN, Cass R. Nudge: Improving decisions about health, wealth, and happiness. Penguim, 2009. 5 Thomas Ulen, The Importance of Behavioral Law, The Oxford Handbook of Behavioral Economics and Law, p. 94-95. 6 Idem. 7 Idem. 8 Idem, p. 97-99. 9 Idem, p. 99-100. 10 Idem, p. 96-97. 11 Idem, p. 101-102. 12 Idem, p. 107-108.
Com a terrível guerra entre Rússia e Ucrânia, uma das questões que povoam a mente de especialistas em Direito privado são os efeitos deste conflito sobre os contratos. Pouco antes do início da guerra, um grande escritório de advocacia inglês, o Stephenson Harwood, preparou relatório com interessante análise sobre possíveis efeitos da guerra entre Rússia e Ucrânia para comerciantes, sobretudo para aqueles sediados na região do Mar Negro ou para aqueles fazendo negócios com russos ou ucranianos1. Esse conteúdo é de interesse geral, inclusive de juristas brasileiros, pois os efeitos da guerra são globais e, de uma forma ou de outra, impactarão também as relações comerciais no Brasil. Sanções Os EUA e a União Europeia têm anunciado sanções ao governo russo. Entre as medidas efetivas e potenciais estão sanções direcionadas a pessoas e instituições russas específicas, bloqueio de acesso do setor financeiro a sistemas de pagamentos internacionais, restrições em portos específicos e fechamento do espaço aéreo a aviões russos. Para atingir a indústria do gás da Rússia, podem ocorrer "proibições de exportação a curto prazo ou restrições a financiamento e a transferências de tecnologia para novos desenvolvimentos." As sanções estão sendo impostas com pouco ou nenhum aviso prévio. As partes que agora negociam na região devem, portanto, avaliar a melhor forma de mitigar os riscos da contratação. De um modo geral, elas devem se questionar qual é a sua exposição, por exemplo, ao risco de vir a "não poderem mais negociar em dólares americanos, ou de os vendedores serem proibidos de exportar os bens que contrataram entregar." Lugar de entrega Compradores e vendedores de mercadorias também precisam avaliar a base sobre a qual eles negociam, incluindo as regras sobre lugar de entrega de mercadorias. Na modalidade FOB - free on board, por exemplo, as mercadorias são entregues no local designado para carregamento, como um porto, momento em que os riscos passam para o comprador. Por outro lado, na modalidade DAP - delivered at place, é o vendedor que assume a responsabilidade até a entrega da mercadoria no destino final. O combate da guerra e a interrupção do fluxo operacional daí resultante, portanto, "pressionará diferentes partes da cadeia de suprimentos, dependendo de seus acordos contratuais." O local em que ocorrer uma tal disrupção afetará de maneira distinta o fluxo de diferentes mercadorias. Por exemplo, o porto de Yuzhny, localizado no Sudoeste da Ucrânia, é o principal porto de exportação geral do Mar Negro para commodities a granel. Ele "está longe das linhas de frente, mas está ao alcance da Crimeia, controlada pela Rússia." O porto de Mariupol é o principal porto do mar de Azov, "que recebe um quarto do total das exportações da Ucrânia em termos de valor na forma de ferro-gusa e aço". Este porto "seria afetado se embarcações fossem impedidas de transitar pelo estreito de Kerch, e também está a apenas 30 km da Rússia (a 10 km da região separatista de Donbas)." Informações mais recentes indicam, todavia, que todos os portos da Ucrânia permanecerão fechados durante a invasão russa2. Pagamento e financiamento Em um contexto de guerra, os comerciantes devem pensar nos termos de pagamento. Se o contrato de compra e venda prevê o pagamento por meio de carta de crédito, por exemplo, uma interrupção no tráfego aéreo pode impedir os documentos necessários de chegarem ao banco do vendedor. Bancos podem estar procurando antecipar o recebimento de empréstimos concedidos a empresas ucranianas ou proteger seus ativos baseados na Ucrânia por meio de execução de garantias, o que pode levar a um aumento nas falências das empresas devedoras. A escalada militar e a imposição retaliatória de sanções podem também desencadear eventos extintivos previstos em vários contratos de financiamento. Àqueles que dependem de financiamentos e que podem estar vulneráveis, sugere-se o "envolvimento ativo com os credores", a fim de entender o grau de flexibilidade destes e eventual propositura de renegociações. Por exemplo, as cláusulas MAC  - Material Adverse Change, que autorizam o credor a resolver o contrato e a exigir desde logo os valores devidos, "são muitas vezes subjetivas e prospectivas, permitindo que o credor declare um evento MAC quando, em sua opinião, a capacidade de pagamento do mutuário é afetada ou simplesmente pode ser afetada. Se possível, os mutuários devem buscar confirmação por escrito do credor de que as cláusulas afetadas não foram violadas" ou que renunciam a posições ativas decorrentes de violações. Contrato de transporte marítimo Os comerciantes que celebraram ou pretendem celebrar contrato para transporte marítimo de mercadorias para atender a seus contratos de compra venda podem querer revisitar ou revisar as cláusulas relativas a sanções, a risco de guerra e a segurança do porto. As cláusulas de risco de guerra (war risk clauses) "estabelecem as circunstâncias em que os proprietários dos navios podem se recusar a navegar por áreas em 'guerra', bem como atribuir a responsabilidade por custos adicionais (por exemplo, prêmios de seguro de risco de guerra)". As cláusulas de porto seguro (safe port clauses) "permitem que os proprietários dos navios se recusem a ir ao porto indicado pelos contratantes se for considerado 'inseguro'", circunstância que pode decorrer de agitação política e da eclosão de guerra. Na atualidade, em especial, os comerciantes devem verificar quais áreas de comércio são permitidas sob o contrato de transporte e/ou se portos específicos são mencionados. Uma guerra gera restrições ao mercado de transporte marítimo, na medida em que os proprietários de navios retiram ou restringem embarcações de navegar, por exemplo, pela região do Mar Negro ou de transportar cargas específicas objeto de sanção. Isso quase certamente levará a um aumento nos custos de transporte, contribuindo para aumentos de preços das commodities e, como resultado, mais inadimplementos dos contratos de compra e venda e de transporte marítimo. Force majeure O contexto de guerra frequentemente leva os comerciantes a se questionarem se eles podem suspender, e em última análise, extinguir seus contratos com base na figura da force majeure. A resposta para essa questão quase nunca é simples e direta. Em primeiro lugar, a resposta a esta questão depende da legislação aplicável. No direito inglês, por exemplo, não há propriamente uma teoria geral de force majeure. Além disso, como mencionei em coluna anterior (conferir aqui), ao longo da maior parte do século XX, a doctrine of frustration of contract passou por um estreitamento do seu escopo, sendo aplicada de maneiro muito restrita pelos tribunais ingleses. Caso haja no contrato cláusula de force majeure, a sua redação precisará ser interpretada no contexto dos fatos concretos. A parte que invoca a cláusula terá de demonstrar a relação de causalidade entre o evento desencadeante (no caso, a guerra) e o impedimento ao cumprimento do contrato, o que, normalmente, envolve mostrar que outros métodos de adimplemento não são possíveis. Por exemplo, um vendedor que alega não poder transportar seu suprimento para o porto em que este deveria ser carregado em navios terá de demonstrar não só que foi física ou juridicamente impossível levar a mercadoria ao porto - devido, por exemplo, a interrupção da infraestrutura de transporte ou bloqueios decorrente da guerra -, mas também que não havia outras fontes de abastecimento - por exemplo, estoques portuários ou navios já carregados. No direito brasileiro, diga-se de passagem, de acordo com o previsto no Código Civil, as adversidades decorrentes de um contexto de guerra teriam de passar pelo crivo da figura da impossibilidade superveniente (arts. 234 e 248, entre outros, do CC/02)3 ou da onerosidade excessiva (art. 478 ss. do CC/02). Conclusão Enfim, em face do atual contexto de guerra, àqueles com contratos em curso - ou que procuram fazer novos negócios - na região do Mar Negro e com contrapartes russas e/ou ucranianas, recomenda-se que realizem de imediato avaliações de risco, sobretudo para o caso de serem necessárias reações rápidas. A capacidade das partes de antecipação a problemas e de renegociação dos contratos são, em especial, relevantes no atual contexto. _____ 1 The edge of war: legal implications of the escalating Russia-Ukraine crisis for traders. Disponível aqui.  2 Fonte: CNN Brasil. Disponível aqui. . 3 Sobre o tema da impossibilidade no direito brasileiro, ver: DE BIAZI, João Pedro. A impossibilidade superveniente da prestação não imputável ao devedor. 2021.
Um dos temas mais complexos da atualidade, que suscita intensos debates e uma multiplicidade de repercussões jurídicas (em especial nos âmbitos tributário, administrativo, civil, consumerista e trabalhista), diz respeito à natureza dos serviços prestados por plataformas digitais, tais como Uber, Ifood, Rappi. Trata-se de assunto que adquiriu repercussão mundial, desafiando a doutrina e a jurisprudência dos tribunais a compreender, antes de tudo, de que forma(s) as consequências geradas pelo emprego de novas tecnologias devem ser interpretadas e eventualmente reguladas, incentivadas ou sancionadas pelo Estado. Sob o ponto de vista dos consumidores, a procura pelos serviços oferecidos pelas plataformas digitais já crescia expressivamente, mundo afora, nos últimos anos. Com o cenário pandêmico, houve um incremento vertiginoso na demanda por tais serviços e, consequentemente, a geração de conflitos quantitativa e qualitativamente nunca antes vivenciados. Sob o ponto de vista da geração de postos de trabalho, a disseminação das plataformas digitais representou oportunidade de trabalho para milhões de pessoas afetadas diretamente e indiretamente pela crise econômica mundial. Seja na qualidade de empregados, seja ostentando status de prestadores de serviços autônomos, uma multidão encontrou nas plataformas digitais uma maneira de garantir sua fonte de renda. É nesse cenário que o modelo Gig Economy1 se desenvolve, referindo-se ao trabalho humano realizado por meio de plataformas digitais que utilizam a tecnologia da comunicação e da informação. Tal modelo de trabalho - que pode ser praticado de forma digital (crowdwork) ou presencial (on-demand),2 aproxima a demanda da oferta, ou seja, aproxima o consumidor do serviço final, reduzindo os custos de transação. Na verdade, "esse modelo não é novo, mas se transformou e ganhou destaque nos últimos anos em função das plataformas digitais peer-to-peer (P2P), que permitem a conexão entre trabalhador e demanda. Existem plataformas de gig economy para contratação de trabalhadores de diferentes setores: design; tecnologia de informação e desenvolvimento de software; mídia e comunicações; construção civil e serviços gerais; transporte e entregas etc."3 Para a devida compreensão do modelo das Gig Economy Companies é necessário compreender as transformações conjunturais ocorridas no mundo econômico, social, político e cultural.4 Esse modelo se notabiliza pelo desempenho de atividades temporárias e reduzidas a tarefas, como complemento de renda ou em substituição completa de um trabalho fixo.5 De acordo com Stefano, ao invés de considerar essa modalidade de emprego como nova, única e homogênea, é necessário compreender que o mercado de trabalho contemporâneo e industrializado promove as formas não padronizadas e a precarização do trabalho. A precarização é diretamente conectada ao trabalho sob demanda, uma vez que permite às empresas contratarem trabalhadores somente para exercerem funções sob demanda, ou seja, conforme os pedidos dos clientes. Nesse novo modelo, o trabalhador somente é solicitado nos momentos que a demanda exige, inexistindo, portanto, qualquer garantia de trabalho futuro ou de quaisquer direitos.6 Nesse cenário de profundas mudanças envolvendo as plataformas digitais e o mercado de trabalho, grande controvérsia mundial surge a respeito da natureza dos serviços prestados pela Uber, assim como o enquadramento das relações mantidas entre a empresa e os motoristas que aderem ao aplicativo. Como demonstraremos, os diversos sistemas de justiça vêm adotando soluções distintas para a resolução dos conflitos gerados pela utilização da referida plataforma. Nesta primeira parte da coluna analisaremos alguns precedentes das Cortes norte-americanas relacionados à Uber. Na segunda parte, serão analisadas decisões dos tribunais do Reino Unido e do Brasil. Uber: plataforma digital ou companhia de transporte? A Uber se apresenta no mercado como uma empresa de tecnologia que intermedia a prestação de serviços de transporte, disponibilizando sua plataforma digital aos "motoristas parceiros" para que encontrem passageiros, mediante o pagamento de uma taxa. A exploração da chamada economia de compartilhamento - especificamente da on-demand economy (economia sob demanda) - é operacionalizada mediante o cadastramento na plataforma digital de um grande número de consumidores usuários (demanda) e de "prestadores de serviço independente" (oferta). Segundo sustenta a Uber, suas atividades se caracterizam essencialmente como uma mera prestação de serviços de tecnologia, funcionando como uma information society service or business, uma atividade tecnológica conectando clientes a motoristas. No entanto, o foco da discussão se relaciona à possível caracterização da atividade desenvolvida pela empresa como de efetivo contrato de transporte, na medida em que o seu lucro não advém do aluguel pela utilização da plataforma, mas especificamente dos serviços de transporte de passageiros. Uma das principais decorrências dessa discussão impacta diretamente na natureza do vínculo existente entre os motoristas parceiros e a Uber: tratar-se-ia de prestação de serviços autônomos ou de uma relação geradora de vínculo empregatício?7 Estados Unidos - Caso: O'Connor x Uber Como se percebe, a narrativa das empresas que fornecem plataformas (aplicativos) para unir motoristas e passageiros é a de que a natureza de seus serviços é meramente tecnológica, e não um contrato de transportes. Dessa forma, sustentam que os motoristas "parceiros" trabalham na condição de gig workers, ou seja, executam suas funções temporariamente no setor de serviços como freelancers. Sendo assim, esses trabalhadores temporários têm a liberdade de definir suas horas, trabalhar em casa e ser seus próprios chefes, de acordo com o que normalmente se entende como modelo clássico de contratado independente. Um dos primeiros casos judiciais relevantes surgidos nos EUA, que suscitou o reconhecimento de direitos trabalhistas de motoristas de aplicativos frente às companhias de tecnologia, se deu pela propositura de uma class action, no Estado da Califórnia. O caso O'Connor v. Uber começou quando dois motoristas da Uber se apresentaram como representantes de um grupo, propondo ação coletiva contra a empresa, alegando ausência de transparência quanto aos repasses de gorjetas realizadas pelos usuários em favor dos motoristas e a retenção ilegal, de uma porcentagem das gorjetas - o que violaria o California Labor Code §351(Tips Claim). Tais fatos os levaram também a sustentar a existência de vínculo laboral com a Uber, não obstante a empresa os considerasse contratantes autônomos. Na Califórnia os motoristas eram contratados sob um regime independente, pelo qual a Uber não seria responsável pelas despesas comerciais dos seus motoristas (v.g.: veículos, manutenção, combustível), fato que também é considerado uma violação ao California Labor Code §2.802 (Expense Reimbursement Claim).8 Um acordo foi inicialmente negociado entre as partes em 2016, envolvendo pagamentos de cerca de 100 milhões de dólares aos motoristas aderentes que demonstrassem ter trabalhado com a Uber desde o ano de 2009. Todavia, referido acordo acabou sendo rejeitado por entender a Corte estadual ser um valor insuficiente para todos os motoristas envolvidos. Em 2019, após a Suprema Corte dos EUA ter reconhecido a validade de cláusulas arbitrais existentes nos contratos entre a Uber e seus motoristas, outro acordo foi negociado no caso O'Connor v. Uber, dessa vez em sede de juízo arbitral, no valor de 20 milhões de dólares, na medida em que a classe representada caiu de aproximadamente 385 mil motoristas para menos de 14 mil. Em que pese o referido caso não tenha gerado precedente jurisdicional a respeito da existência de vínculo laboral entre os aplicativos de transporte e os motoristas, induvidosamente fomentou um debate nacional a respeito do tema, que veio a produzir o ajuizamento de diversas outras ações no sistema de justiça norte-americano. Caso: The People of The State of California v. Uber Technologies, Inc., et al. Assim foi que, em outra ação coletiva proposta pelo Estado da Califórnia, julgada em 22/10/20, a Court of Appeal estadual reconheceu que os motoristas da UBER e da LYFT não são parceiros autônomos, mas sim seus trabalhadores, diante da atividade substancial desempenhada pelas empresas. Segundo assentado pela decisão judicial, o núcleo da atividade empresarial realizada pela Uber é o transporte de passageiros, sendo a tecnologia empregada essencialmente para implementar as suas atividades como empresas de transporte. Assim, a atividade nuclear é efetivamente a prestação de serviços de transportes, apenas auxiliada pela tecnologia, que operacionaliza o contrato de transporte entre o passageiro e o motorista.9 Ademais, afirmou a Corte de apelação da Califórnia que o faturamento da Uber e da LYFT provém exclusivamente derivado do transporte de passageiros.10 Diante desse cenário contrário às empresas de tecnologia, foi proposta uma relevante alteração da legislação do Estado da Califórnia (Assemble Bly 5 - AB5), no intuito de se definir se o status dos seus trabalhadores seria o de empregados ou de autônomos, por meio de parâmetros preestabelecidos (teste ABC).11 12 Assim, a partir das referidas mudanças, a Suprema Corte da Califórnia proferiu decisão para que as empresas de aplicativo passassem a observar a legislação (AB5) e os parâmetros que permitem diferenciar o trabalhador autônomo do empregado.13 A fundamentação utilizada foi baseada em precedente que reconheceu a necessidade de aplicação do teste ABC para verificar em qual categoria o trabalhador deverá ser enquadrado, independentemente de a empresa alegar prestar meros serviços de tecnologia.14 15 California Proposition 22 Após referido julgamento, em 3/11/20 outra proposta de alteração legislativa provocou nova controvérsia sobre a natureza dos serviços por aplicativo de transporte e delivery. Foi designada a realização de um plebiscito destinado a aprovar a alteração da legislação (AB5), para definir que os trabalhadores de aplicativos de transporte e delivery deveriam ser considerados autônomos. O plebiscito contou com a participação de 16.986.245 de pessoas, tendo sido aprovada a proposta de reforma legislativa por um porcentual 58,63% (9.958.725 votos).16 Tal resultado se deveu, em grande escala, às ameaças que as companhias divulgaram em forte campanha publicitária, pela qual alertaram o público que, se os motoristas fossem considerados seus funcionários, elas empregariam menos motoristas, passariam a definir os seus horários de trabalho e os submeteria a tarifas mais altas e a tempos de espera mais longos entre cada transporte. É evidente o efeito backlash em relação ao precedente da Suprema Corte da Califórnia, pois os motoristas dos aplicativos, ameaçados pelas empresas, foram contrários ao reconhecimento judicial de serem eles empregados. Sendo assim, a manifestação da maioria dos motoristas e entregadores foi pelo reconhecimento do trabalho autônomo.17 A aprovação da Proposition 22 foi muito criticada devido ao Lobby das empresas de aplicativos de transporte, que investiram o montante de USD 205.370.000,00 (duzentos e cinco milhões e trezentos e setenta mil dólares) na campanha para promover e influenciar a aprovação do plebiscito. A Uber, sozinha, contribuiu com USD 59.500.000,00 (cinquenta e nove milhões e quinhentos mil dólares).18 Todavia, em agosto de 2021, a Superior Court of the State of California decidiu que a alteração na seção 7451 realizada pela Proposition 22 fora inconstitucional19, na medida em que violou regras de competência do Poder Legislativo para efetivar alterações na legislação trabalhista. A alteração da legislação somente seria possível mediante a aprovação de 7/8 do quórum dos congressistas da Califórnia, o que inocorreu no caso concreto. Para além disso, a Corte Superior da Califórnia argumentou a falta de isonomia da alteração aprovada, na medida em que o plebiscito suscitado favorecia desproporcionalmente as empresas de aplicativos de transporte ao definir que os motoristas por aplicativo são autônomos.20 A partir dessa decisão de inconstitucionalidade, a Suprema Corte da Califórnia vem rejeitando pedidos de revisão apresentados pelas empresas de tecnologia no sentido da aplicação da proposição 22, mantendo diversas ordens judiciais que determinam à Uber e à Lyft que passem a reclassificar seus motoristas como funcionários.21 Possíveis implicações do reconhecimento da existência de vínculo empregatício entre as empresas de aplicativos de transporte e os motoristas O alcance e a profundidade dos efeitos jurídicos, sociais e econômicos derivados do reconhecimento do status de empregados aos motoristas das plataformas de transporte ainda são desconhecidos, gerando grande preocupação mundo afora. Uma tal orientação, adotada pelos diversos sistemas de justiça, afetará gravemente as operações das companhias de tecnologia? Reduzirá (ao invés de aumentar) a renda dos trabalhadores, na medida em que passariam então, na condição de empregados, a gozar de benefícios trabalhistas, tais como horas extras, planos de saúde e prêmios pelos lucros das empresas? Os consumidores serão afetados com o expressivo encarecimento dos custos do transporte?22 O que parece certo, enfim, é que as empresas de tecnologia sempre apostaram na desregulamentação de diversos dos setores em que passaram a atuar, por formas e mecanismos jamais imaginados. Os impactos da utilização de novas tecnologias, como é natural, demoram a ser compreendidos, absorvidos e finalmente regulados pelos Estados e pela própria sociedade. Resta saber até que ponto os sistemas políticos e jurisdicionais - inclusive o brasileiro - terão condições de adequadamente lidar com o desafio de regular e dirimir os múltiplos e complexos conflitos gerados pela realidade do modelo das Gig Economy Companies. (continua na próxima coluna...) _____ 1 "Utiliza-se a expressão "gig economy" como sinônima de economia sob demanda, consistente no macroambiente de negócios caracterizado pelo predomínio de contratos de curta duração dirigidos a trabalhadores independentes conectados às plataformas digitais. Definição de atividades em gig economy - "trabalho sob demanda", "gig economy", "sharing economy", "economia compartilhada" ou similares, com menção específica desse conceito, definição ou características". Projetos de lei de 2020 sobre Gig Economy: Caderno Expandido do Briefing Temático01. Disponível aqui. 2 STEFANO, Valerio de. Labour is not a technology - reasserting the declaration of Philadelphia in times of platform-work and gig-economy. In: IUSLabor. vol.2, 2017, p.8. Disponível aqui. 3 Projetos de lei de 2020 sobre Gig Economy: Caderno Expandido do Briefing Temático 01 Disponível aqui.  4 GARCIA-PARPET, Marie France; BEVILAQUA, Camila. As novas economias digitais: impacto sobre o trabalho e gig economy: resenha bibliográfica e questões a respeito no Brasil. In: Estudos e Prospectivas para o Futuro da Indústria, v. 1, n. 1, set. 2020, p. 8. Disponível aqui.  5 Ibid., p. 126. 6 STEFANO, Valerio de. Labour is not a technology - reasserting the declaration of Philadelphia in times of platform-work and gig-economy. In: IUSLabor. vol.2, 2017, p.08. Disponível aqui. 7 Conforme STEFANO, "o fato de a Uber e seu principal concorrente nos Estados Unidos, a Lyft, prestarem serviços de transporte e não poderem ser considerados mero negócio tecnológico pelo simples fato de utilizarem ferramentas digitais para adequar a demanda e a oferta de caronas também foi estabelecido em alguns das primeiras decisões judiciais relacionadas com a situação laboral dos motoristas de plataformas de car-hailing." Idem. 8 UNITED STATES COURT OF APPEALS FOR NINTH CIRCUIT. CALIFORNIA. O'Connor, et al, Plaintiffs-Appellees v. UBER Technologies, Inc., Defendant Appellant. 2018, p.10. Disponível aqui.  9 UNITED STATES COURT OF APPEAL OF THE STATE OF CALIFORNIA. CALIFORNIA. The People v. Uber Technologies, Inc., et al. 2020, p.32-33. Disponível aqui. Acesso em 14.01.2022. 10 Ibid., p.36. 11 UNITED STATES. California Legislative Information. Assembly Bill No. 5. O objeto da alteração legislativa: "An act to amend Section 3351 of, and to add Section 2750.3 to, the Labor Code, and to amend Sections 606.5 and 621 of the Unemployment Insurance Code, relating to employment, and making an appropriation therefor". O inteiro teor da alteração está disponível aqui.  12 O teste ABC consiste na verificação de três etapas para definir se o trabalhador é autônomo. Tais etapas consistem em analisar se: (a) o trabalhador autônomo não é sujeito à direção ou ao controle do contratante tanto formal como material; (b) o trabalhador não exerce atividade conexa ao negócio principal da empresa contratante; e (c) o trabalhador autônomo deve realizar as atividades objeto de sua contratação de forma habitual e independente da empresa contratante. 13 "[...] misclassification issues AB 5 sought to address are prevalent not just in traditional "brick and mortar" businesses, but in modern technology-driven companies as well". UNITED STATES COURT OF APPEAL OF THE STATE OF CALIFORNIA. CALIFORNIA. The People v. Uber Technologies, Inc., et al. 2020, p.39. Disponível aqui. 14 Disponível aqui.  15 "But some of the features of the delivery-driver model at issue in Dynamex are present here as well.  Strip away the use of the internet as a mode of communication with drivers, and this case bears many similarities to that one.  The dispositive issue there was not whether the defendant and its drivers followed what might be viewed as a traditional employment model, who may be said to receive the drivers' services, or how payment was structured, but whether the mode in which the drivers were utilized met the elements of the ABC test.  So too in this case.  There is considerable evidence that the ride-share drivers involved here meet this test, despite the changes in the traditional workplace enabled by modern technology". UNITED STATES COURT OF APPEAL OF THE STATE OF CALIFORNIA. CALIFORNIA. The People v. Uber Technologies, Inc., et al. 2020, p.34. Disponível aqui. 16 "A "yes" vote supported this ballot initiative to define app-based transportation (rideshare) and delivery drivers as independent contractors and adopt labor and wage policies specific to app-based drivers and companies. A "no" vote opposed this ballot initiative, meaning California Assembly Bill 5 (2019) could be used to decide whether app-based drivers are employees or independent contractors." Disponível aqui.  17 Disponível aqui. 18 "Yes on Proposition 22 received $205.37 million, which was the most funds that an initiative campaign had ever received in California (not adjusted for inflation). Uber contributed $59.5 million, DoorDash contributed $52.1 million, Lyft provided $49.0 million, InstaCart provided $31.6 million, and Postmates provided $13.3 million". Disponível aqui. 19 Service Employees International Union, et al v. State of California and Katie Hagen (Director of the California Dep. Industrial Relations). Disponível em: A decisão encontra-se disponível aqui.  20 Idem. 21 Disponível aqui.  22 Essas e outras indagações são atuais nos EUA, conforme aponta a mídia norte-americana. Disponível aqui. 
segunda-feira, 14 de fevereiro de 2022

A psicologia das indenizações

Por mais que a função de desestímulo da responsabilidade civil anseie por evitar condutas contrárias ao direito, do ponto de vista psicológico, o fato de presenciarmos "milhares" de comportamentos ilícitos diariamente, não nos parece nada estranho ou amedrontador. Isto soa como um paradoxo, a final, para prevenir a conduta ilícita de forma eficaz, a norma por si deveria ser suficiente. Os destinatários da lei deveriam estar cientes das regras, dispostos a segui-las e capazes de conformar sua conduta aos requisitos legais, à medida que tomam decisões sobre as atividades nas quais devem agir e se envolver, bem como as precauções a serem tomadas. Infelizmente, como tomadores de decisão, nem sempre estamos cientes das regras aplicáveis. Além disso, os incentivos fornecidos pelo sistema de responsabilidade civil não são simples na prática. Some-se a isso que muitos casos de ilícitos danosos não são trazidos ao judiciário, silenciando o sinal de dissuasão entre comportamento e o delito. Ademais, o tempo significativo que leva para um processo de responsabilidade civil ser concluído, e o escudo do seguro de responsabilidade enfraquecem ainda mais esse vínculo. Por fim, não se trata apenas de as pessoas serem motivadas por incentivos fornecidos pelo sistema de responsabilidade civil. O comportamento relacionado ao fato danoso também é influenciado por normas sociais, incentivos fornecidos pelo mercado e, sobretudo, pela própria moralidade do ofensor. Vale dizer, a psicologia cumpre o duro fardo de introduzir toda a sorte de complicações para a equívoca suposição de que os tomadores de decisão se encaixam na análise de custo-benefício definida pelos modelos da law and economics. Com efeito, nossa capacidade de prestar atenção é limitada, usamos atalhos mentais para tomar decisões, confiamos em hábitos ou outras formas de comportamento automático e, nem sempre pensamos em riscos ou custos e benefícios da forma prevista pelos padrões econômicos. Mesmo as pessoas que racionalmente aspiram a agir de acordo com tais modelos de tomada de decisão podem encontrar dificuldades na prática. Por conseguinte, ao buscar atingir seus objetivos, o sistema de responsabilidade civil deve se preocupar não apenas com a forma como as normas influenciam o comportamento, mas também como a psicologia dos tomadores de decisão interage com as regras legais e como os juízes avaliam tanto o comportamento das vítimas quanto o dos réus. O que motiva as pessoas a buscar reivindicações indenizatórias? Como as pessoas determinam se uma determinada conduta é acidental ou intencional, razoável ou irracional? Como as pessoas pensam sobre quais fatores causaram quais danos? Como as pessoas decidem a compensação do ilícito? Em suma, a responsabilidade civil envolve muitos dos mesmos fenômenos que os psicólogos cognitivos e sociais estudam em outros campos da experiência humana.1 Em sua essência, a psicologia é uma disciplina empírica - uma ciência central que se concentra principalmente na compreensão de como as pessoas percebem, pensam, sentem ou tomam decisões. Em vez de confiar na intuição, tentativa e erro, ou apelos à autoridade, a ciência da psicologia depende da observação atenta, da testagem de suposições e da ênfase na medição sistemática. A psicologia cognitiva é alvo recente de conexão com a responsabilidade civil. De acordo com a teoria da escolha racional do comportamento humano - teoria predominante na economia, com influência em outras disciplinas, incluindo o direito -, as pessoas lutam para aprimorar o seu bem-estar. Dentre as opções disponíveis, elas racionalmente escolhem aquela que maximizará a utilidade esperada, determinada em termos absolutos. Conforme o teorema de Von Neumann-Morgenstern, que ainda serve de base para a teoria da escolha racional, as escolhas e preferências pessoais dependem não apenas do valor esperado para diferentes resultados, mas também pela especial aversão ao risco, oscilando conforme os ativos de cada pessoa. Contudo, a irracionalidade humana e nossas debilidades cognitivas afloram pelo modo como estimamos probabilidades a partir de histórias disponíveis, projetamos estereótipos nos indivíduos, buscamos provas que confirmem nossas intuições e ignoramos as que não as confirmem, receamos danos e raciocinamos a partir de semelhanças mágicas, ao invés da clássica causa e efeito mecânicos. Isto é, deveríamos ser racionais, porém somos vulneráveis a ilusões e falácias. Falseamento, acobertamento da verdade, teoria da conspiração, ilusões populares extraordinárias são tão antigas quanto nossa espécie. Contudo, se há uma coisa que a psicologia conhece sobre cognição, é que as pessoas possuem um excesso de confiança arrogante em sua intuição e que critérios quantitativos de comparação crítica são superiores ao juízo de juízes e especialistas.2 Talvez o tipo de análise de custo-benefício exigido pelos padronizados modelos econômicos de dissuasão seja muito sofisticado para a maioria das pessoas, ou talvez essa análise, baseada em comportamentos de agentes racionais, não reflita as preocupações fundamentais da sociedade em geral. Recentes pesquisas psicológicas sobre responsabilidade civil mostram que as pessoas têm dificuldade em se pautar por modelos. Não pensamos espontaneamente em termos de dissuasão ideal quando somos questionados sobre a punição apropriada. Estudos estabelecem que as pessoas comuns atribuem punições com base na indignação que é gerada quando alguém intencionalmente prejudica outro; isto é, as pessoas punem porque acreditam apenas em merecimentos ou, em outras palavras, as pessoas são "retributivistas" intuitivas.3 Em 1979, Daniel Kahneman e Amos Tversky4 ofereceram instigante teoria, descrevendo as preferências e escolhas pessoais em situação de risco, conhecida como PT - Prospect Theory. Essa teoria difere da teoria da escolha racional em vários pontos. Em primeiro lugar, a teoria estatui que as pessoas geralmente não percebem resultados como estados últimos de riqueza e bem-estar, porém como ganhos e perdas, que são definidos por uma base ou ponto de referência. A função de valor é normalmente mais acentuada para perdas do que ganhos, indicando aversão à perda. Nesta toada, em 1980, Richard Thaler utilizou a "PT" para explicar o fenômeno pelo qual as pessoas conferem grande valor às coisas que elas já possuem, comparativamente àquelas que ainda têm que adquirir (que ele nomeou como "the endowment effect").5 O status quo ante (as posições das partes antes de infligir a perda ou conceder o benefício) é o ponto de referência natural para enquadrar as mudanças como perdas ou ganhos. Tversky e Kahneman estimaram que as perdas monetárias são percebidas como maiores do que os ganhos por um fator de 2,25.16. Enfim, as pessoas enxergam as perdas e os ganhos diferentemente e possuem aversão aos prejuízos. Isto explica por que "losers" provavelmente demandam mais do que os "no-gainers". Ademais, se uma perda é duas, três ou quatro vezes mais dolorosa do que um ganho não obtido, deve-se esperar que, se "losers" tipicamente ajuízam demandas por perdas superiores $10,000 - e perdas são três vezes mais dolorosas do que ganhos não obtidos -, então espera-se que demandantes promovam remédios restitutórios só quando os ganhos excedem o montante de $30,000. Ilustrativamente, consideremos o enigma que contrapõe a responsabilidade civil ao enriquecimento injustificado. O comportamento de uma pessoa frequentemente cria efeitos externos negativos e positivos para terceiros, sem o seu consentimento. Em uma perspectiva econômica, o agente deve internalizar ambas as externalidades para induzir um comportamento eficiente. Todavia, em praticamente todos os sistemas legais, a responsabilidade civil, que demanda que os ofensores paguem por suas externalidades negativas, é bastante mais desenvolvida e efetiva do que o marginal setor do enriquecimento injustificado, que autoriza o demandante a recuperar os benefícios conferidos a outros. As interações sociais em que uma pessoa sofre perdas ou lesões em razão da conduta de outra, sem que esta obtenha qualquer benefício, geram o acesso a um rol de remédios bem mais amplo do que nas interações em que uma pessoa recebe um benefício considerável às expensas de outrem, sem que essa sofra um prejuízo significativo. Outrossim, quando a mesma interação resulta em lesão a uma parte e benefício para outra, a tutela remedial do demandante é usualmente baseada nas suas perdas, ao invés dos ganhos do demandado.6 Este enigma pode ao menos ser parcialmente explicado pelas noções de pontos de referência e aversão a perdas. Já que as perdas são maiores que os ganhos, os sistemas jurídicos são mais efetivos para remediar perdas injustificadas do que ajudar as pessoas a recuperar os ganhos que elas falharam em obter, na medida em que as pessoas consideram as perdas mais dolorosas que ganhos não obtidos. Além disso, alguns demandantes não conseguem basear suas pretensões nos ganhos dos demandados porque não consideram esses ganhos como algo a que tenham direito. Em acréscimo, outra explicação é baseada na mentalidade dos legisladores e juízes. O pensamento jurídico segue a moralidade do senso comum ("commonsense morality"), que é deontológica. As pessoas acreditam que perseguir bons resultados é desejável, mas também afirmam que o alcance dessa meta se sujeita a restrições morais que incluem proibições contra a mentira, contra quebra de promessas e, principalmente, contra intencionalmente prejudicar outras pessoas. Como tais comportamentos são intrinsecamente errados, eles são inadmissíveis como meio de promoção do bem comum. A deontologia não julga a moralidade de uma ação de acordo com seus resultados, mas se concentra na moralidade da ação em si. A moralidade deontológica distingue entre prejudicar uma pessoa e não a beneficiar. Embora a distinção entre "evitar a dor" ou "promover a felicidade" possa ser endossada por consequencialistas, ela é primordialmente incorporada na deontologia e na moralidade do senso comum.7 Assim sendo, o direito distingue entre prejudicar as pessoas e não as auxiliar, o que por sua vez pressupõe a existência de uma linha de base. Se demandantes com aversão às perdas se preocupam muito mais com perdas do que com ganhos não obtidos, o sistema jurídico consequentemente produzirá um conjunto de regras refletindo essa percepção comum. Uma vez que as intuições morais prevalecentes incorporam linhas de base, a proibição contra prejudicar outras pessoas é percebida de uma forma muito mais aguda do que um dever de beneficiar outros. Do ponto de vista de um árbitro imparcial - como um juiz ou um legislador - compensar a pessoa lesada por sua perda é uma tarefa vista como muito mais urgente do que deferir a recuperação do benefício indevido ao demandante. Daí a assimetria entre responsabilidade civil e enriquecimento injustificado. Essa explicação remete a uma importante correspondência entre psicologia, moralidade e direito. Em uma demanda por disgorgement, muitas vezes o demandante não experimenta qualquer efeito adverso, ou, se experimenta, é insignificante. E mesmo que alguma insatisfação seja experimentada por ganhos não obtidos, é pouco provável que seja grande o suficiente para induzir o demandante a pedir uma reparação. Assim, o ato de demandar implica custos consideráveis: monetário, reputacional, emocional e assim por diante. Uma vez que a restituição dos ganhos não obtidos é menos propensa a produzir perdas grandes o suficiente para justificar o início de um litígio, são consideravelmente reduzidas as disputas que giram em torno de ganhos não obtidos. Esta análise gera implicações normativas importantes. Primeiramente, se, devido à aversão por perdas, a redução do bem-estar das pessoas quando não obtém algo de outros é significativamente menor do que quando algo é retirado delas, a lei deve favorecer normas destinadas à reparação de danos ao invés de conceder às pessoas o direito de recuperar ganhos indevidos. O reconhecimento de que a lei não apenas espelha os pontos de referência da sociedade, mas também os modela, pode desencadear conclusões normativas ainda mais radicais. A aversão à perda por parte dos legisladores é, portanto, motivo de preocupação.8 Em contrapartida, no caso de externalidades negativas, se um agente tiver que obter o consentimento de cada pessoa potencialmente lesada antes de se envolver em uma determinada atividade, então cada indivíduo poderá negar tal consentimento, frustrando, assim, atividades socialmente desejáveis, como dirigir um veículo. Ao proteger os direitos das pessoas por intermédio de regras de responsabilidade civil, ao mesmo tempo o legislador evita esse resultado ineficiente e obriga os agressores a internalizar o custo de seu comportamento. Em contrapartida, no caso de externalidades positivas, a recusa de qualquer beneficiário em pagar pelo benefício recebido também pode impedir atividades eficientes cujos custos sejam superiores aos seus benefícios para o agente. No entanto, muitas vezes tais atividades serão realizadas, apesar da recusa de um ou mais beneficiários em pagar pelo benefício, pois são produzidos benefícios suficientes para aqueles que arcaram com os custos. O comportamento "free rider" por parte daquele que usufrui de um benefício proveniente de um bem - sem que tenha havido uma contribuição para a sua obtenção - não exerce poder de veto sobre a atividade benéfica. Isso, sem contar as grandes dificuldades que o demandante terá para provar os ganhos do demandado, em contraposição ao que a vítima do dano terá para provar os seus prejuízos. Assim, a consagração legislativa de um dever geral de restituição de benefícios não solicitados é consideravelmente menos crucial que um direito à indenização por prejuízos.9 A proposta correspondência entre psicologia, moralidade e lei está de acordo com as recentes teorias da psicologia evolutiva, que postulam que a moralidade humana é em grande parte inata - o resultado de um longo processo de adaptação evolucionária. Na medida em que a aversão à perda é uma característica universal da psicologia humana, consequentemente integra a generalidade dos sistemas jurídicos. Também pode haver uma explicação evolucionária para o fato de a distinção psicológica entre perdas e ganhos - as perdas parecerem maiores do que ganhos - traduzir-se em uma distinção moral e legal mais nítida entre prejudicar pessoas e não as ajudar. A psicologia humana é relevante para a construção de uma teoria normativa. Elementos básicos de qualquer teoria normativa, incluindo a subjacente teoria do bem-estar humano, baseiam-se em suposições sobre a psicologia humana. Ademais, no contexto atual, uma vez formulada uma teoria normativa, os formuladores de políticas públicas que visam a um determinado objetivo, como a promoção da igualdade econômica ou a dissuasão do comportamento antissocial, enfrentam escolhas pragmáticas entre diferentes meios para alcançar esse objetivo. _____ 1 ROBBENNOLT, Jennifer K; HANS, Valerie. The Psychology of Tort Law (Psychology and the Law Book 2) (English Edition). "Pesquisas sobre as maneiras pelas quais as pessoas fazem a atribuição de responsabilidade por danos causados podem esclarecer questões sobre como e por que as reivindicações são feitas e defendidas ou não, como as pessoas pensam sobre a intenção, como as pessoas fazem julgamentos sobre a causa e como a responsabilidade é distribuída entre as partes. A pesquisa sobre heurística de julgamento pode nos ajudar a entender como as pessoas tomam decisões sobre risco, julgam, a razoabilidade do comportamento e concedem indenizações. A pesquisa sobre o modelo de história de tomada de decisão pode explicar como os juízes usam as informações apresentadas a eles. E pesquisas sobre interação social, normas e pistas nos informam como as pessoas abordam as decisões sobre buscar ou resolver ações de responsabilidade civil". 2 PINKER, Steven. Op.cit, p. 415/8. 3 ALLES, Mari'a Guadalupe Marti'nez. Moral Outrage and Betrayal Aversion: The Psychology of Punitive Damages. J. Tort Law 2018; 11(2): 245-303, disponível aqui, Published online September 25, 2018. 4 KAHNEMAN, Daniel; TVERSKY, Amos. Prospect Theory: An Analysis of Decision Under Risk, Econometrica 263 (1979). Em 2002, Daniel Kahneman ganhou o prêmio Nobel de economia, primariamente por sua contribuição junto com Amos Tversky (que faleceu em 1996), pela formulação da Prospect Theory. 5 THALER, Richard H. Toward a Positive Theory of Consumer Choice, 1 J. Econ. Behav. & Org. 39, 43-47 (1980). O autor introduz o "endowment effect" (efeito da doação), pelo qual as pessoas tendem a valorizar as coisas que elas já possuem, em detrimento daqueles que não têm. 6 Segundo Giuseppe Dari-Mattiacci a noção de "responsabilidade negativa" pode ser bem introduzida em comparação com o conceito tradicional de responsabilidade extracontratual. Conforme Calabresi, a responsabilidade civil é tida como uma forma de internalizar negativas externalidades em situações em que altos custos de transação impedem as partes de encontrar soluções contratuais. Em uma perspectiva econômica, o problema de internalizar externalidades negativas é perfeitamente simétrico ao essencial problema de internalizar externalidades positivas. Ambas as espécies de externalidades suportam o bem-estar social e conduzem a simétricas partidas de uso ótimo de recursos: se não internalizados, as externalidades negativas resultam em excesso de oferta de atividades perigosas, enquanto as externalidades positivas resultam em insuficiência de atividades benéficas. In: Negative liability, Journal of legal studies, George Mason University Law and Economics Research Paper Series, p. 14. 7 ZAMIR, Eyal. Loss Aversion and the Law, Vanderbilt Law Review, Vol. 65:3:829. 8 PORAT, Ariel. Private production of public goods. Liability for unrequested benefits, Michigan Law Review, Vol. 108:189. 9 PORAT, Ariel. "Como é sabido, não se exige de ofensores, que obtenham o consentimento de vítimas antes da criação do risco, mas se o dano ocorre, posteriormente são demandados a compensá-los. Assim, se um ofensor obtém um benefício de 10 de sua atividade, mas expõe sua vítima a um dano por negligência esperado de 5, frequentemente terá o direito de continuar sua atividade". Private production of public goods. Liability for unrequested benefits, Michigan Law Review, Vol. 108:198. 
1. Introdução: a importância da clareza conceitual da filosofia analítica. Nas minhas últimas duas colunas, apresentei o paradigma pedagógico da Harvard Law School a partir de uma discussão do método socrático1 e o paradigma pedagógico da Stanford Law School a partir de uma discussão do método científico da pesquisa empírica interdisciplinar.2 Na ocasião da publicação do primeiro artigo, informei na introdução do texto que meus professores em Stanford seriam científicos e Oxford teria um perfil analítico. Após o encorajamento do nosso Presidente do IBERC e colega de coluna, o eminente Professor Nelson Rosenvald, decidimos que seria escrita uma trilogia com uma série de colunas a partir das minhas experiências no curso de LLM - Master of Laws em Harvard, de JSM - Master of the Science of Law em Stanford e no DPhil - Doctor of Philosophy em Oxford. Nas colunas anteriores, os textos também serviram como tributo aos meus professores e aos pesquisadores pela contribuição para o desenvolvimento da ciência jurídica. É importante esclarecer ao leitor que esses textos são confessionais, no sentido de que foram escritos a partir da minha experiência pessoal e que certamente outros autores ressaltariam outros temas ou aspectos distintos ao leitor. Aproveitando o sabor confessional desta trilogia de artigos, gostaria também de homenagear meu pai, Zeca Borges, falecido em 03 de dezembro de 2021 e que, mesmo sem ter cursado mestrado e doutorado, foi para mim um grande professor.3 Foi ele quem me levou pela primeira vez a visitar a cidade de Cambridge, em Massachussetts, para conhecer o campus de Harvard e do MIT quando eu ainda era adolescente, plantando sementes que iriam cultivar a minha formação acadêmica. Por ocasião da conclusão do meu curso de LL.M. em Harvard, ele fez questão de comparecer na cerimônia de formatura, quando Oscar Tan, meu colega de LL.M., fez uma menção especial ao meu pai no discurso de formatura. O entusiasmo dele pelo ensino e pesquisa levou seu instituto a celebrar convênios e parcerias com instituições de ponta, tal como, por exemplo, a Universidade de Stanford. Quando estivemos juntos logo antes de minha viagem para cursar meu doutorado na Universidade de Oxford em 2012, meu pai confidenciou um temor de que sua saúde falhasse durante esse meu período de estudos e pesquisas. Ainda aproveitamos cerca de dez anos até sua morte recente. Seu legado, as lições de vida e sua contribuição institucional irão nos acompanhar.            2. O DPHIL - Doctor of Philosophy e a filosofia analítica do Direito. Assim como me perguntam sobre a nota distintiva entre Harvard e Stanford, as pessoas também possuem curiosidade sobre as características do ensino jurídico na Universidade de Oxford. Na área do direito em particular, a influência da filosofia analítica é enorme, merecendo destaque a importância que tem na Faculdade de Direito de Oxford o estudo de jurisprudence ou juris - como os tutores e professores não raro chamam pelo apelido abreviado de quem tem intimidade com o tema. A figura marcante para o posicionamento da disciplina em Oxford foi o notável jurista Herbert Hart,4 que estabeleceu os principais debates da filosofia analítica do direito a partir da produção da sua obra-prima sobre o conceito do direito5  e das discussões fundacionais com professores expoentes do jusnaturalismo como Lon Fuller6 7 ou do interpretativismo como Ronald Dworkin.8 9 No período de meu doutorado entre 2012 e 2017, a influência do legado de Herbert Hart e sua filosofia analítica do direito continuava enorme na faculdade de Direito da Universidade de Oxford. Mesmo na área de pesquisas interdisciplinares de caráter sócio-jurídico, a importância de Herbert Hart era enorme, especialmente devido à influência reconhecida do trabalho de Max Weber em sua obra, do seu posicionamento sobre o conceito do direito como um trabalho também de caráter sociológico e no desenvolvimento de teses com influência da ideia de intersubjetividade como seu conceito da 'regra de reconhecimento' ('rule of recognition') para caracterização do direito positivo em uma determinada comunidade.10 Nesse sentido, a teoria sócio-jurídica em Oxford possui uma inspiração clara na filosofia analítica, o que é evidenciado pelos debates de inspiração Hartiana formulados, por exemplo, nos trabalhos de sociologia do direito do Professor Denis Galligan11  e de antropologia do direito da Professora Fernanda Pirie.12 Além disso, a influência da filosofia analítica está presente no ensino jurídico em geral, especialmente pela exigência de clareza conceitual. Nos debates em Oxford, é comum que se faça a pergunta 'what do you mean by that?', isto é, 'o que você quer dizer com isso?', de um modo em que se exige enorme rigor intelectual na seleção dos termos do debate, no desenvolvimento dos conceitos e na explicação do raciocínio lógico adotado. É importante lembrar que a formação acadêmica básica dos estudantes em Oxford se desenvolve no interior de dezenas Colleges, sendo que cada estudante possui sessões semanais de estudo com seus tutores através de um método tradicional de ensino. O ponto de partida para as sessões tutoriais é a leitura de uma grande quantidade de textos sobre um tema específico, sendo que cada aluno possui a obrigação de preparar um ensaio longo com base nos textos, propondo a discussão de um dos temas da leitura. Os ensaios são enviados para os tutores com antecedência e servem de matéria-prima para as sessões, sendo que a pergunta 'what do you mean by that?' é recorrente, cabendo às estudantes a apresentação de esclarecimentos, a defesa de seus argumentos e o desenvolvimento de habilidades e competências para se tornar um debatedor qualificado. Apesar de os doutorandos não serem submetidos às sessões tutoriais, nós fomos treinados para nos tornar tutores, caso surgisse uma oportunidade. Como parte do meu aprendizado, tive a oportunidade de acompanhar em absoluto silêncio como observador sessões tutoriais de Jurisprudence ministradas pelo caríssimo amigo Andrea Dolcetti, então também doutorando em Oxford.13  A partir do segundo ano de doutorado, tive a oportunidade de me tornar responsável por uma série de cursos de ensino de alunos da Universidade de Stanford que cursavam o intercâmbio na Stanford House in Oxford, tendo lecionado 'direito constitucional comparado', 'direito e desenvolvimento' e 'filosofia do direito' como tutor. O tutor prepara um acompanhamento personalizado de seus alunos e, não por acaso, acabei escrevendo posteriormente cartas de recomendação para que meus ex-alunos fossem cursar seus cursos de direito (Juris Doctor) em Universidades como Yale e Stanford. Uma outra experiência extremamente única foi me tornar um coordenador de um grupo de discussão ('discussion group'). A tradição da importância desses grupos de discussão na Universidade de Oxford tem sua origem histórica nos famosos debates promovidos pela tradicionalíssima Oxford Union Society, a famosa sociedade de debates.14 Além dos grandes debates sobre temas mais amplos no âmbito da Universidade, na Faculdade de Direito existem grupos de discussão temáticos que são coordenados por alunos, sob a orientação de professores, e que tem a missão de recrutar palestrantes para apresentar trabalhos interessantes e inovadores sobre temas atuais. Após realizar uma apresentação no Law and Public Affairs Discussion Group no meu primeiro ano de doutorado, fui convidado pelo seu então coordenador, o então doutorando Francisco Urbina, para ser um dos coordenadores do Grupo de Discussão. Ao longo de três anos, convidamos uma série de doutorandos e professores para discutir os mais variados temas, incluindo uma série de renomados acadêmicos brasileiros como os Professores Marcelo Neves, Flávio Luiz Yarshell, Mariana Prado, Eduardo Jordão e Cléber Francisco Alves, dentre outros. A estrutura dos grupos de discussão era inspirada novamente pela tradição da filosofia analítica do direito e nossa referência era o renomado Jurisprudence Discussion Group, grupo de debates formado em 1997 por Timothy Endicott, que posteriormente viria a se tornar o diretor da Faculdade de Direito de Oxford.15 As apresentações dos trabalhos originais são relativamente curtas, seguidas por longas discussões conceituais com a busca pela clareza conceitual, coerência teórica, integridade argumentativa e rigor analítico. Ao longo dos meus quatro anos como doutorando, tive a oportunidade de acompanhar inúmeros debates de altíssimo nível. Também tive a oportunidade de aprender muito sobre a filosofia analítica em sala de aula nos cursos que acompanhei durante o período de doutorado. Ao contrário dos artigos sobre minha experiência em Harvard e Stanford, limitações de espaço me impedem de transmitir ao leitor uma visão enciclopédica e detalhada de todos os cursos de que participei em Oxford. Porém, a Faculdade de Direito de Oxford possui um currículo com enorme variedade de cursos e professores de Jurisprudence e tem orgulho em se apresentar como a primeiro do ranking dos países de língua inglesa nessa disciplina.16 Apesar do recente artigo crítico de Brian Leiter no sentido de que a era de domínio de Oxford em Jurisprudence teria se encerrado em 2021 com a aposentadoria de Leslie Green, a alteração da agenda de pesquisa de Timothy Endicott para direito administrativo e a prematura morte de John Gardner,17 a influência da filosofia analítica do direito está na tradição, no currículo, na cultura e na estrutura da Faculdade de Direito de Oxford. Seu impacto é tão forte que influencia também os professores de direito positivo e de outras disciplinas. Por exemplo, o Professor Stefan Vogenauer, atualmente Diretor do Instituto Max Planck de Frankfurt, foi meu Professor de Direito Comparado em Oxford e iniciava seu curso com a discussão Hartiana sobre a proibição de veículos no parque, a partir da perspectiva comparativa. No caso da disciplina de responsabilidade civil, a influência Hartiana também era muito forte devido às incursões no tema, notadamente no magistral livro sobre causalidade escrito em co-autoria com Toni Honoré.18 A influência da filosofia da linguagem, a exigência por clareza conceitual e uma busca pelo conhecimento típico do senso comum da experiência prática do direito na sociedade contemporânea são marcas registradas do ensino jurídico de Oxford e de seus professores analíticos.                             3. Considerações finais: um convite à análise e à lembrança. A experiência acadêmica no curso DPHIL - Doctor of Philosophy na University of Oxford também contribuiu para a minha formação acadêmica, pela exigência de contínua reflexão sobre o uso da linguagem e a pretensão da escrita clara, simples e em linha reta. Ao contrário de escolas de pensamento herméticas, obscuras e sintéticas, a Faculdade de Direito de Oxford convida à análise em busca de descrições precisas, explicações esclarecedoras e análises significativas. Essas lições contribuíram muito para meu posicionamento na academia internacional a partir de redes de pesquisa na SLSA - Socio-Legal Studies Association, na LSA - Law and Society Association e no RCSL - Research Committe of Sociology of Law, bem como no início da produção de artigos em periódicos internacionais. Um doutorado costuma ser o ponto decisivo na formação acadêmica de um professor e a influência da filosofia analítica do direito também marcou a minha formação como acadêmico, debatedor e autor de livros e artigos. Se alguma vez eu vier a pergunta-lo 'what do you mean by that?' em algum debate acadêmico, tenha certeza que não é nada pessoal, mas resultado dessa experiência com o paradigma pedagógico de ensino jurídico de Oxford e seus professores analíticos. Finalmente, não posso concluir esse texto sem fazer uma referência especial ao meu pai, que mesmo autodidata, foi a primeira pessoa a me apresentar à filosofia analítica de Oxford a partir da leitura de um de seus autores favoritos, Isaiah Berlin, que integrava o círculo de amigos do próprio Herbert Hart. Agradeço também a ele por sempre exigir clareza conceitual e que eu não me refugiasse na ambiguidade ou na obscuridade. Para mim, além de pai e mesmo sem ter cursado formalmente um mestrado ou um doutorado, foi um grande mestre e faz enorme falta. Mas quero acreditar nas palavras que um professor grego me escreveu por ocasião da morte do Zeca: as pessoas vivem enquanto nós mantemos acesas as lembranças delas... _____ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 LACEY, Nicola. A life of HLA Hart: the nightmare and the noble dream. OUP, Oxford, 2004. 5 HART, Herbert. The concept of law. oxford university press, 2012. 6 FULLER, Lon L. Positivism and fidelity to law--A reply to Professor Hart. Harv. L. Rev., v. 71, p. 630, 1957. 7 CANE, Peter (Ed.). The Hart-Fuller debate in the twenty-first century. Bloomsbury Publishing, 2010. 8 DWORKIN, Ronald. Hard cases. Harv. L. Rev., v. 88, p. 1057, 1974. 9 RONALD, Dworkin. Taking rights seriously. Harvard University Press, 1977. 10 HART, Herbert. The concept of law. OUP, Oxford, 2012. 11 GALLIGAN, Denis. Law in modern society. OUP, Oxford, 2006. 12 PIRIE, Fernanda. The anthropology of law. OUP, Oxford, 2013. 13 Disponível aqui. 14 Disponível aqui. 15 Disponível aqui. 16 Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 HART, Herbert Lionel Adolphus; HONORÉ, Tony. Causation in the Law. OUP, Oxford, 1985.
Na manhã de quinta-feira passada, em um evento no Parlamento neozelandês, a ministra da Saúde, Dra. Ayesha Verrall, lançou o "Auahi Kore Aotearoa Mahere Rautaki 2025", "The Smokefree 2025 Action Plan", ou "Plano de Ação Antitabagista 2025" em tradução livre.1 O plano envolve a implementação de novas e ousadas medidas para alcançar uma Nova Zelândia - Aotearoa, em Maori - livre do cigarro. A mais drástica e controversa de todas é a proibição da venda de cigarros para as gerações futuras. O governo planeja apresentar o projeto de lei ao Parlamento em 2022 como parte de uma campanha para reduzir a incidência do tabagismo na população para menos de 5% até 2025. De acordo com dados do governo, 13,4% da população adulta da Nova Zelândia é classificada como fumante. Isso representa uma considerável queda comparado com índice de 18,2% de 2011-12. Segundo a proposta, os fumantes atuais continuariam livres para comprar cigarros. Mas haveria gradativo aumento da idade para fumar, ano a ano, até abranger toda a população. A partir de 2023, qualquer pessoa com menos de 15 anos seria proibida para sempre de comprar cigarros. Assim, por exemplo, em 2050, as pessoas com 42 anos ou mais ainda poderiam comprar produtos de tabaco - mas os mais jovens não. Em 2011, a Nova Zelândia anunciou pela primeira vez a meta de reduzir o tabagismo para abaixo de 5% da população até 2025. Desde então, tem aumentado constantemente o preço dos cigarros para um dos mais altos do mundo. Um pacote na Nova Zelândia custa cerca de 30 dólares neozelandeses, ou um pouco mais de 20 dólares americanos - algo em torno de 112 reais pelo câmbio atual -, perdendo apenas para a vizinha Austrália, onde os salários são consideravelmente mais altos.2 O governo não considera elevar ainda mais os preços do cigarro. Segundo a ministra, "já vimos todo o impacto do aumento do imposto especial de consumo. O governo reconhece que ir mais longe não vai ajudar as pessoas a deixarem de fumar, apenas vai punir ainda mais os fumantes que estão lutando para largar o vício. Por isso, nosso plano, divulgado hoje, contém novas medidas para nos ajudar a chegar ao nosso objetivo."3 Apesar dos claros benefícios para a saúde pública, a proibição da venda de tabaco é normalmente vista como medida fadada ao fracasso. Os argumentos contrários são geralmente centrados nas liberdades civis e no medo do aumento do contrabando.4 Por exemplo, em 2010, o Butão, nação do Himalaia, proibiu a venda de produtos de tabaco. No ano passado, todavia, voltou atrás e suspendeu as restrições, em meio a temores de que os traficantes de cigarros trouxessem o coronavírus para o país.5 Ao revelar a sua proposta, o governo neozelandês reconheceu os possíveis efeitos sobre o mercado paralelo, que atualmente representa pelo menos 10% das vendas de tabaco no país. Afirmou que o contrabando de produtos de tabaco para a Nova Zelândia, especialmente por grupos do crime organizado, tem aumentado. "As mudanças propostas neste documento podem contribuir para esse problema", reconhece o projeto do governo.6 Mas o Dr. Robert Beaglehole, professor emérito de medicina da Universidade de Auckland, ouvido pelo jornal The New York Times, diz que existem soluções potenciais: "podemos lidar com isso, se apenas escaneássemos todos os contêineres que entram no país, o que não fazemos". Segundo ele, "a tecnologia está aí."7 Há ainda muitas dúvidas em relação à proposta. Esta não diz, por exemplo, exatamente como a proibição de vendas seria aplicada. Mas uma coisa é certa: o governo da Nova Zelândia tem maioria absoluta no Parlamento, portanto não precisa do apoio de nenhum parceiro da coalizão para transformar as propostas em lei. É ainda cedo demais para sequer especular se a medida será um sucesso ou não. Mas, de qualquer maneira, com os acertos e desacertos inerentes a qualquer medida inovadora, a experiência, caso venha a ser efetivamente implementada, servirá de precedente extremamente valioso para os demais países. A Nova Zelândia despontará, mais uma vez, como paradigma para os demais países analisarem, aprenderem e programarem as suas próprias políticas públicas. Neste caso, as relativas ao combate ao tabagismo. ______ 1 Fonte: Site oficial do Governo da Nova Zelândia. Disponível aqui.  2 Fonte: The New York Times. Disponível aqui.  3 Fonte: Site oficial do Governo da Nova Zelândia. Disponível aqui.  4 Fonte: The New York Times. Disponível aqui.  5 Fonte: The New York Times. Disponível aqui.  6 Fonte: The New York Times. Disponível aqui. 7 Fonte: The New York Times. Disponível aqui. 
Guido Calabresi foi um dos maiores responsáveis pelo prestígio que a análise econômica do direito adquiriu a partir da década de 1960. Ao analisar a responsabilidade civil sob a ótica dos "custos dos acidentes", o jurista ítalo-americano sustentou a aplicação de uma racionalidade econômica preventiva, voltada à averiguação de quem poderia evitar os danos a um menor custo. A célebre obra The Costs of Accidents: A Legal and Economic Analysis continua sendo um referencial teórico para a compreensão da responsabilidade civil no direito civil contemporâneo. Nascido na Itália e naturalizado norte-americano, Calabresi começou a lecionar em 1959, logo após obter diversas graduações. Bacharelou-se summa cum laude no Yale College (1953), graduou-se com distinção de primeira classe pelo Magdalen College, Oxford University (1955), obteve um LL.B. grau, magna cum laude, pela Yale Law School (1958) e um MA em política, filosofia e economia pela Oxford University (1959). Guido Calabresi foi indicado ao cargo de juiz da Corte de apelação dos Estados Unidos da América (Segundo Circuito - 1994), tendo recebido mais de cinquenta títulos honorários de universidades norte-americanas e do exterior, possuindo extensa e densa produção científica (é autor de sete livros e mais de cem artigos científicos).1 Dentre os principais contributos legados por Calabresi, destaca-se a forte crítica direcionada ao sistema de responsabilidade fundado na culpa, sustentando a necessidade da adoção de regras mais simples e diretas, concebidas a partir da ideia de menor custo de prevenção (princípio do cheapest cost avoider). Para o jurista ítalo-americano, a imputação de responsabilidade civil deve recair sobre o sujeito que poderia ter evitado o acidente a custos menores, mas não o fez. Considerando que as normas de responsabilidade civil atuam como sistema de incentivos à adoção de condutas preventivas pelas partes envolvidas em situação de risco, a doutrina empenhada por Calabresi aponta a existência de ao menos cinco fundamentos para validar o emprego de meios de prevenção em um sistema de responsabilidade civil, concernentes: i) à ignorância dos particulares a respeito do que mais lhes convém; ii) aos custos de acidentes não reduzíveis a dinheiro; iii) aos juízos morais envolvidos; iv) às limitações intrínsecas à teoria da repartição dos recursos e v) à necessidade de a prevenção influenciar, eficazmente, sobre certas atividades e atos.2 Pela perspectiva da análise econômica do direito, a grande vantagem social da responsabilidade civil é a de prevenir danos e preservar vidas humanas, na medida em que "A teoria econômica pode sugerir um método de adotar decisões: o mercado, por exemplo. Não obstante, as alternativas nas quais se enfrentam vidas humanas e razões monetárias ou de conveniência nunca podem reduzir-se a termos pecuniários, e por isso nunca usamos o mercado como método único."3 Em célebre artigo escrito juntamente com Douglas Melamed, publicado na Harvard Law Review, Calabresi sustenta que o direito seria protegido por três tipos de regras: de propriedade4, de responsabilidade5 e de inalienabilidade6. O problema essencial inerente ao cumprimento de tais regras seria concernente à sua titularidade e legitimidade, pois cada vez que o Estado-juiz enfrenta um conflito de interesses, deve decidir qual das partes favorecer7. Assim, a discussão em torno da proteção dos direitos por meio de regras de propriedade ou de responsabilidade envolve, fundamentalmente, a análise da legitimidade e da titularidade dos direitos subjetivos. Um dos maiores problemas referentes aos altos custos de transação advém precisamente da ausência de legitimidade ou titularidade dos direitos (o que é de todos não é de ninguém), na medida em que se não houver uma titularidade suficientemente forte para as pessoas reivindicarem as perdas e os ganhos como seus, perdem-se os incentivos para resolverem os problemas diretamente. Como explicam Calabresi e Melamed, com exceção das regras de inalienabilidade (o mercado não pode ser admitido como critério de proteção dos direitos inalienáveis, uma vez que não podem ser compreendidos em termos de eficiência e de distribuição), o direito é protegido por regras de propriedade e de responsabilidade. Conforme as regras de propriedade, uma vez definida a titularidade original, o direito confia a proteção dos interesses sociais relevantes às próprias partes envolvidas, por via da autoproteção - o que suscita uma mínima intervenção estatal. Somente quando as pessoas não conseguem tutelar os seus próprios interesses, em razão dos altos custos de transação, incidem então as regras de responsabilidade.8 É justamente na fixação das regras de responsabilidade que os autores sustentam a necessidade de uma maior intervenção estatal, na medida em que, ao violar um direito, o agressor deve pagar um valor objetivamente determinado. Nesse sentido, a reparação funcionaria como a reconstituição de um acordo hipotético, por motivos de eficiência econômica e promovendo fins distributivos. No entanto, sempre que seja possível determinar a titularidade dos direitos, a prevenção pode ser negociada pelos próprios particulares, com baixos custos de transação, buscando evitar a ocorrência do dano.9 É dessa forma que, por via de um sistema de incentivos para a prática ou omissão de comportamentos, a responsabilidade civil, ao lado da regulação estatal, induz a adoção de cautelas quando do exercício de atividades que gerem riscos. Se o paradigma tradicional da responsabilidade civil diz respeito à compensação de danos, a análise econômica adota o paradigma da eficiência social, vale dizer, verifica a prestabilidade do respectivo sistema para induzir adequados incentivos, tanto para o agressor como para a vítima, no objetivo de evitar danos, ou, acaso ocorridos, internalizá-los da maneira mais eficiente do ponto de vista econômico e social.10 A funcionalização do direito da responsabilidade civil, possivelmente operacionalizada pela internalização da prevenção, não leva em consideração tão somente padrões econômicos ligados à eficiência. A imprescindibilidade da preservação de certos direitos considerados fundamentais, "custe o que custar", por exemplo, afastaria de imediato qualquer ponderação a respeito de custos-benefícios existentes entre a economia da prevenção versus a economia da compensação. Nesse sentido, comumente se afirma a imprestabilidade da análise econômica do direito no campo dos direitos fundamentais, de natureza extrapatrimonial, tal como os relativos à personalidade, ao meio ambiente e à saúde. A missão do Estado social em protegê-los não se compatibilizaria com uma visão estritamente econômica. Todavia, mesmo nesses temas, as críticas voltadas contra a viabilidade da aplicação da análise econômica merecem ser melhor ponderadas, na exata medida da necessidade de verificação das possibilidades e dos limites de integração entre as próprias ciências sociais. Se a análise econômica do direito parece não definir adequadamente formas para a compensação de danos corporais ou aos direitos de personalidade (até porque se trata de danos irreparáveis sob o ponto de vista filosófico), ela auxilia precisamente no campo da prevenção dos danos. Como observa Polinsky, ainda que a análise econômica do direito não seja hábil para lidar com situações envolvendo danos à vida ou danos corporais (até porque nesse campo qualquer procedimento utilizado para valorá-los revela-se naturalmente arbitrário), não há motivo para que a referida doutrina não seja empregada para a evolução das regras pertinentes aos riscos dos acidentes pessoais, a partir de indagações a respeito do quanto as pessoas estariam dispostas a gastar para evitar os riscos de acidentes ou de quanto as pessoas estariam dispostas a receber pelo agravamento dos riscos do sofrimento de danos corporais.11 Nunca se pode olvidar, contudo, que a eficiência econômica, em que pese constituir objetivo racional e pragmático irrecusável a qualquer sistema de justiça, deve ser considerada como apenas mais um dentre os diversos objetivos buscados pela regulação implementada pelo direito, como ressalta Alpa, criticando Posner: "Elevada a uma verdadeira e própria teoria, a análise econômica do direito que Posner elabora, parte de premissas ou, mais corretamente, de postulados que não parecem ser aceitáveis. A realização da "eficiência econômica" pode, se muito, constituir um dos escopos perseguidos na elaboração de programas de normatização dos interesses privados, mas certamente não o único objetivo que o jurista se deve por, nem, tampouco, pode ser a única diretriz (emergente das relações de mercado) que se deva seguir na revisão ou na refundamentação da regra jurídica".12 A lógica da predileção da prevenção inspira e justifica o estudo da responsabilidade civil por parte do movimento da análise econômica do direito. Como observa Geneviève Viney, "a ideia de prevenção sempre esteve presente no direito da responsabilidade civil. Todavia, um novo impulso lhe foi dado após o fim dos anos 90 por força do grande sucesso da doutrina da análise econômica do direito e por aquela do princípio da precaução. Com efeito, os teóricos da análise econômica do direito atribuem à prevenção um lugar eminente dentre as finalidades da responsabilidade civil. «A impulsão primeira do sistema de responsabilidade civil», escreveu um autor se reportando à essa tendência, «reside em sua constante busca de uma minimização de danos causados a outrem, quer dizer, de uma prevenção de fatos lesivos. É assim em função da aptidão do direito positivo ao favorecimento da prevenção que se julga, segundo essa doutrina, a qualidade desse direito. Todas as reformas ou modificações propostas são apreciadas sob o ângulo de suas aptidões para realizar «o caráter ótimo da prevenção".13 Como se percebe, a leitura econômica muito tem a auxiliar na compreensão e no aprimoramento dos institutos jurídicos, prestando-se, sobretudo, a demonstrar de que formas a responsabilidade civil pode e deve ser analisada sob uma perspectiva notoriamente preventiva.14 Todavia, isso não quer dizer que o objetivo de prevenção, dentro da perspectiva do direito da responsabilidade civil, se esgote ou se resuma à viabilização da melhor ou maior eficiência econômica, correlacionando-se tão somente com os custos/benefícios inferidos a partir de uma análise objetiva e calculista a respeito dos deveres de cuidado e dos eventuais danos experimentados no seio social. Conforme sustenta Rosenvald, "A política da regulação consiste no uso de normas e instituições de modo instrumental, a fim de influenciar o nosso comportamento como potenciais agressores, minimizando a incidência de danos causados por tais condutas. Tal política gozou de muito prestígio nos Estados Unidos nas décadas de 60 e 70 basicamente com a introdução da "minimização dos custos sociais de acidentes", ideia explorada por Guido Calabresi, como forma de trasladação da distribuição do custo do acidente. Ao invés de necessariamente recair sobre o aquele que culposamente causou dano, a lei deveria trasladar o custo para a parte que pudesse evitá-lo ao menor preço. Trata-se de um argumento político, cujo objetivo consiste em produzir uma desejável distribuição de custos e benefícios da vida social associados aos acidentes de tráfico. Contudo, a aplicação prática de tal teoria resultaria na abolição da responsabilidade civil, partindo-se da premissa de que o "cheapest cost avoider" possa ser a própria vítima."15 De toda sorte, a refundamentação preventiva da responsabilidade civil assenta-se em valores éticos e morais que extrapolam, necessariamente, qualquer racionalidade utilitarista a respeito das possíveis justificativas para se evitar a violação dos direitos e a consequente provocação dos danos. _________ 1 "Guido Calabresi - Yale Law School". Disponível em: https://law.yale.edu/guido-Calabresi. Acesso em 26 de novembro de 2021. "" 2 Calabresi, Guido. El coste de los accidentes: Análisis económic y jurídico de la responsabilidad civil. Barcelona: Editorial Ariel, 1984, pp. 107-118. 3 Ibid., p. 36. 4 Calabresi, Guido and Melamed, Douglas A. Property Rules, Liability Rules and Inalienability: one view of the cathedral. Harvard Law Review. V. 85, n.º 6, 1972, p. 1092. 5 Idem. 6"An entitlement is inalienable to the extent that its transfer is not permitted between a willing buyer and a willing seller. Tha state intervenes not only to determine who is initially entitled and to determine the compensation that must be paid if the entitlement is taken or destroyed, but also to forbid its sale under some or all circurnstances. Inalienability rules are thus quite different from property and liability rules. Unlike those rules, rules of inalienability not only 'protect' the entitlement; they may also be viewed as limiting or regulating the grant of the entitlement itself." Calabresi, Guido and Melamed, Douglas A. Property Rules, Liability Rules and Inalienability: one view of the cathedral. Harvard Law Review. v. 85, n.º 6, 1972, p. 1092-1093. 7 Ibid., p. 1090. 8 Ibid., p. 1110. 9 Ibid., p. 1109-1110. 10 MATHIS, Klaus. Efficiency instead of justice? Searching for the Philosophical Foundations of the Economic Analysis of Law. Law and Philosophy Library, vol. 84. New York: Springer, 2009, p. 78. 11 Polinsky, A. Mitchell. An introduction to law and economics, 3ª Ed. New York, Aspen, 2003, p. 165-166. 12 Alpa, Guido. Colpa e responsabilità nell'analisi economica del diritto. Analisi economica del direito privato. Milano: Giuffrè Editore, 1998, p. 241. 13 Viney, Geneviéve. Traité de Droit Civil: Introduction à la responsabilité. 3ª ed. Paris: L.G.D.J., 2007, p. 155. 14 No mesmo sentido, indaga oportunamente BATTESINI: "sob a égide do Novo Código Civil, a responsabilidade civil desempenha função social? E, em desempenhando, se a função social da responsabilidade civil está conectada à prevenção e à minimização dos custos dos acidentes? Ao que tudo indica, as respostas são positivas, conforme será evidenciado na subsequente análise econômica de algumas das inovações normativas do Código Civil de 2002, que se caracterizam por criar incentivos à prevenção de acidentes, tais como: o princípio da gravidade da culpa concorrente da vítima, cristalizado no art. 945; a cláusula geral de responsabilidade objetiva pelo risco da atividade, prevista no parágrafo único do art. 927; e a cláusula geral da responsabilidade objetiva pelos danos causados pelos produtos postos em circulação, prevista no art. 931", BATTESINI, Eugênio. direito e economia: novos horizontes no estudo da responsabilidade civil no Brasil. São Paulo: LTr, 2011, p. 108-109.  15 Rosenvald, Nelson. As políticas da responsabilidade civil no common law. Disponível em https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/337782/as-politicas-da-responsabilidade-civil-no-common-law. Acesso em 19 de novembro de 2021.
Empresas de vários setores enganaram o público ao esconder os riscos de seus produtos. Fabricantes de açúcar camuflaram os perigos do xarope de milho com alto teor de frutose e desviaram a atenção do público para a gordura, causando uma epidemia de diabetes, obesidade e doenças cardíacas. Empresas de combustíveis fósseis manipularam o público sobre as causas, certezas e efeitos do aquecimento global, resultando em emissões massivas de CO2 não regulamentadas e causando uma das maiores ameaças à humanidade. Por sua vez, os fabricantes de opióides camuflaram os perigos e a dependência dos analgésicos, levando à crise dos opióides. Segundo o Professor Wes Henricksen, todos esses esquemas pertencem a uma categoria de ilícitos denominada "Esquemas de fraude pública para ocultar os perigos do produto". Estes esquemas não se enquadram em nenhuma estrutura tradicional de delitos e aqueles que são prejudicados não têm como buscar reparação contra os transgressores. Ilustrativamente, se um vendedor de carros usados não divulgar que um carro à venda sofreu um acidente ou errar a quilometragem em seu hodômetro, essa conduta enganosa é rotulada de "fraude" e punida de acordo com a lei. A pessoa prejudicada pela fraude pode pedir indenização ao vendedor ou à concessionária de automóveis. No entanto, quando um fabricante de opióides afirma que seus analgésicos são totalmente seguros e não causam dependência, e ainda oculta estudos que demonstram a falsidade de ambas as afirmações, a conduta enganosa não é chamada de fraude. Pelo contrário, é permitida. A declaração falsa do vendedor de carros usados tem um pequeno efeito sobre um indivíduo, o comprador. Se acreditar em suas mentiras, o comprador perde dinheiro. A declaração falsa do fabricante do opióide possuí um efeito muito maior, em um número massivo de pessoas. Vício, sofrimento e morte não só podiam resultar dessa mentira, mas também resultavam dela e continuam a acontecer todos os dias.1 Os problemas de saúde pública têm uma economia política enraizada que refletem a distribuição de poder na sociedade e moldam suas respostas políticas. Conforme ensinam os Professores de Stanford, Cuéllar & Humphreys,2 a resposta política à explosão do uso, dependência e overdose de opióides nos EUA - desencadeada pela quadruplicação da sua prescrição a partir de meados da década de 1990 - requer uma compreensão dos incentivos e pressões institucionais associadas à distribuição e uso de drogas legais aditivas e particularmente como essas pressões podem diluir a eficácia da governança regulatória. As empresas farmacêuticas e médicos encontraram uma combinação de brechas regulatórias bem como frouxos padrões de fiscalização estadual e federal. As clínicas de dor e as "fábricas de remédios" de prescrição proliferaram. Para as empresas farmacêuticas, a capacidade de comercializar drogas aditivas por meio de relacionamentos íntimos com médicos foi facilitada por uma variedade de estratégias legais que permitiram a "cegueira intencional" por parte dos médicos, o que limitava seu risco de responsabilidade administrativa e criminal. A responsabilidade civil lança uma sombra sobre alguns aspectos da epidemia de opióides, pois o seu alcance neste contexto depende das restrições que afetam o litígio e acesso aos tribunais (incluindo limites para ações coletivas e remédios jurídicos). Em 9/11/21, a Suprema Corte de Oklahoma anulou um veredicto de US$ 465 milhões contra a Johnson & Johnson, acusada de criar um public nuisance por meio de uma campanha de marketing enganosa que promovia o uso de opióides. Para a Suprema Corte Estadual a campanha de marketing de opióides da fabricante não pode ser equiparada a um ilícito porque dizia respeito à venda de um produto legal. A decisão de 1. Grau havia declarado a responsabilidade da demandada, por entender que este ilícito não exige demonstração de interferência na propriedade alheia, sendo suficiente a interferência com os direitos da comunidade em geral. Inclusive dois outros réus no caso - as fabricantes Purdue Pharma e Teva Pharmaceuticals - haviam aceitado um acordo antes do julgamento. A Suprema Corte Estadual considerou que aplicar as leis de public nuisance em face de produtos legais, criaria uma responsabilidade ilimitada para aqueles que fabricam, comercializam e vendem produtos legais. O ilícito de interferência no direito à saúde envolveria animais doentes, água potável poluída ou despejo de esgoto em uma propriedade, fatos que não geram qualquer benefício à comunidade. Todavia, os opióides prescritos têm um uso benéfico no tratamento da dor. Em complemento, a Corte admitiu que a Johnson & Johnson estava ou deveria estar ciente dos perigos associados ao abuso e dependência de opióides e, portanto, poderia ter alertado o público. Contudo, a falha na publicidade remete à responsabilidade pelo produto (product liability), um delito que é distinto de um public nuisance. O tribunal citou o Restatement (Third) of Torts, que embasou decisões nas quais a maioria dos tribunais rejeitou as teorias de public nuisance em casos envolvendo produtos que causaram danos. Outro argumento para afastar a obrigação de indenizar é que os fabricantes de opióides não têm controle sobre o uso indevido de seus produtos após a venda. O tribunal fez um paralelo com casos que rejeitam responsabilidade dos fabricantes de armas, sob o fundamento de que teriam o dever de mitigar o risco de tráfico ilegal e também considerou que tratar o caso como aplicação da teoria do public nuisance seria uma forma de contornar regras sobre prazos prescricionais, tornando os demandados continuamente responsável por seus produtos", em uma espécie de responsabilidade infinita (endless liability). Um fato importante é que esta decisão é a segunda que, no intervalo de um mês, neste mês em que um tribunal lida com a alegação de public nuisance contra fabricantes de opióides. Em uma demanda que evidencia a epidemia de opióides - que custou a vida de mais de 700.000 americanos - a um custo de mais de 500 bilhões de dólares para a economia nos últimos vinte anos - em média 130 pessoas morrem todos os dias de uma overdose de opióides (com agravamento durante a pandemia), surpreendentemente quatro fabricantes de opióides conquistaram a primeira grande vitória legal da indústria farmacêutica. Um juiz do Tribunal Superior Estadual do Condado de Orange, (Califórnia), decidiu que os demandantes não conseguiram mostrar quantas receitas clinicamente desnecessárias foram prescritas como resultado de alegado marketing enganoso por parte dos fabricantes de opióides. Mesmo que fosse possível inferir que o marketing enganoso causou um aumento nas prescrições inadequadas, não havia evidências que demonstrassem o quanto o volume de tais prescrições contribuiu para um incômodo público. Vale dizer, os demandantes não conseguiam distinguir o aumento nas prescrições legítimas de analgésicos aprovados pelo governo federal daquelas prescrições ilegítimas ou de outra forma ilícitas. Mesmo que as empresas tenham perpetrado marketing falso ou enganoso - relatou o juiz - "quaisquer consequências adversas subsequentes decorrentes de prescrições medicamentem adequadas não ofereceram evidências para mostrar que, sem especulação generalizada, o volume dessas prescrições ajudou a criar o incômodo público e, em caso afirmativo, em que medida". Ambas as decisões ressaltam o que os experts jurídicos afirmaram desde o início sobre o litígio de opióides: que a tentativa de repartição da responsabilidade (apportioning responsibility) seria muito difícil, porque os opióides passam por uma série de entidades - incluindo fabricantes, distribuidores de suprimentos médicos, médicos e farmácias, incluindo grandes varejistas - até alcançarem o paciente. Com efeito, já existem demandas contra redes de farmácias e distribuidores. Em termos de estratégia nacional para as várias ações coletivas propostas contra fabricantes de opióides, os precedentes de Oklahoma e Califórnia podem influenciar os demandantes a aceitar uma proposta de acordo nacional de US$ 5 bilhões feita pela Johnson & Johnson (no caso a sua divisão farmacêutica, Janssen, que fabricava seus opióides) na medida em que se os próximos casos forem litigados ao invés de acordados, haja oportunidades para os réus obtenham novas vitórias. Nessa linha, outra fabricante - Teva - afirmou que uma vitória clara para os muitos pacientes nos EUA que sofrem de dependência de opióides só virá quando forem finalizados acordos abrangentes e os recursos forem disponibilizados para todos os que deles precisam. É difícil prever se as decisões são atípicas, pois se tratam dos primeiros casos decididos entre milhares que empregam estratégias de defesa semelhantes. De qualquer forma, na avaliação dos experts, o jogo apenas começou, não apenas em Oklahoma e Califórnia, como em vários outros Estados norte-americanos. Ou seja, outros juízes poderão divergir dos precedentes e reputar a abordagem macro dos demandantes persuasiva. Especificamente na Califórnia, o Estado irá recorrer. Segundo os advogados: "O povo da Califórnia terá a oportunidade de buscar justiça em apelação e garantir que nenhum fabricante de opióides possa se envolver em práticas corporativas imprudentes que comprometam a saúde pública no estado para seu próprio lucro". Inegavelmente, dois dados objetivos ameaçam o êxito destas demandas. Primeiramente, o fato da medicação ser aprovada pelo governo federal. Ademais, é um grande desafio estabelecer o nexo causal entre as corporações e o tráfico ilegal de opióides. As empresas demandadas estabeleceram a necessidade de os demandantes precisarem exatamente qual seria o seu comportamento de marketing ilegal que causou a epidemia de opióides ou se a crise teria surgido de qualquer maneira. Em um contexto mais amplo, a utilização do public nuisance também não funcionou para aqueles prejudicados por outros esquemas, seja um fumante que desenvolveu câncer de pulmão causado pela fumaça do tabaco, seja por demandantes que tenham processado empresas de combustíveis fósseis e emissores de gases de efeito estufa, com base no aquecimento global. O problema é que a tese do public nuisance não aborda a fraude proposital dos esquemas corporativos. Embora envolvam claramente um comportamento enganoso que intencionalmente engana o público em busca de vantagens econômicas, os esquemas passam imunes pois não há responsabilidade civil baseada em fraude que ofereça aos reclamantes prejudicados uma alternativa viável para buscar indenizações contra os infratores. Consequentemente, os demandados lucram imensamente, enquanto as vítimas continuam a sofrer danos econômicos e físicos e, em muitos casos, morte, como resultado dos esquemas enganosos. À primeira vista, a responsabilidade objetiva pelo produto distribuído ou fabricado com defeito, que entra no fluxo do comércio e causa danos aos consumidores (product liability), seria o ilícito que forneceria um caminho viável para que os reclamantes prejudicados buscassem reparação contra os infratores. Por mais que essa demanda exima o demandante da prova de previsibilidade, ela ignora a natureza ilícita da conduta. Assim, o dano reparado não teria sido causado pela conduta aqui em causa, que é a fraude do demandado. Além disso, os demandantes enfrentariam enormes obstáculos para provar que o produto em questão era "excessivamente perigoso", uma exigência fundamental. Independentemente de qual teste será aplicado - expectativa do consumidor ou risco-utilidade - o réu é capaz de fazer uso de "ciência comprada e paga" gerada por cientistas financiados pela indústria para argumentar que o produto não era excessivamente perigoso. Outra via possível em tese seria o ajuizamento de demandas fundamentadas na negligência. O ilícito de negligence é o principal tort das jurisdições do common law, consistindo na falha em exercer o padrão de cuidado que uma pessoa razoavelmente prudente teria exercido em uma situação semelhante. Seus elementos incluem: (1) um dever do demandado de protegê-lo de danos; (2) o não cumprimento desse dever; e (3) danos ao demandante que são reais e proximamente causados pela falha do réu em exercer o dever de cuidado. Reclamações de negligência são inadequadas para o esquema dos opióides, condutas intencionais e ilícitas. Eles não são o resultado de um acidente ou descuido. Além disso, as questões de causalidade que afetam as reivindicações contra os infratores também estão presentes nas ações de negligência. As causas reais e imediatas são potencialmente problemáticas devido à natureza atenuada e de desenvolvimento lento dos danos - como o câncer, aquecimento global e danos ambientais. A negligência, assim como as leis de proteção ao consumidor, falhou em proibir os esquemas, punir aqueles que os executam ou fornecer reparação adequada aos prejudicados por eles. Para piorar, a fragilidade no arcabouço jurídico norte-americano também inclui a esfera criminal. O problema da prescrição excessiva de opióides persiste porque a lei atual que criminaliza essa conduta não é clara e carece de uniformidade nacional. Portanto, a criação de um novo estatuto federal voltado especificamente para os médicos é a resposta adequada à epidemia de opióides. A promulgação de uma nova lei criminal federal, incorporada ao Código Penal Federal, que visa especificamente cenários que definiram a crise de opióides, é uma estratégia significativamente eficaz, seja para amparar profissionais de saúde engajados em práticas legítimas de controle da dor para continuar utilizando esses medicamentos para aliviar o sofrimento de seus pacientes, mas também como punição apropriada e um impedimento eficaz para médicos cujas práticas de prescrição causam a morte de seus pacientes.3 Diante da insuficiência da tutela atual, a proposta doutrinal é a de colmatar a lacuna legislativa, de forma a promover vários objetivos da política de responsabilidade civil. Como sugere a Professora da Loyola Law School, Rebecca Delfino, a aprovação de uma lei de responsabilidade para protagonistas de esquema de fraudes permitiria transferir as perdas para os responsáveis por causá-la, expandindo o escopo da responsabilidade para aqueles que cometem conduta ilícita intencional. Os demandantes prejudicados pelo consumo de açúcar, produtos do tabaco e analgésicos opióides, bem como aqueles prejudicados pela elevação do nível do mar e outros efeitos causados pelo aquecimento global, são membros do público que não lucrou com o produto perigoso. Pelo contrário, são as empresas que comercializam e vendem os produtos tóxicos, cuja fraude permitiu que os produtos fossem utilizados que causam o dano.4 Voltando à responsabilidade civil, defende-se a aplicação nos EUA daquilo que dispõe o Restatement (Third) of torts: Intentional torts to person (§110) "Se a culpa reside em sua intenção e em seu ato, e não na identificação de uma vítima em particular, então a responsabilidade pela intenção e o ato parece perfeitamente apropriado, mesmo se a vítima em particular não fosse a pretendida .... Além disso, pode-se dizer que um agressor intencional deve assumir o risco de que sua agressão resulte em lesão não intencional ou que o agressor deve ser submetido a incentivos apropriados para deter a agressão". Vale dizer, assim como a tese da "intenção transferida" foi aplicada a atos ilícitos intencionais, determinando que os infratores não escapem da responsabilidade perante aqueles que foram prejudicados, também os prejudicados pelos esquemas fraudulentos merecem permissão para buscar indenização contra as empresas cujos esquemas fizessem com que seus produtos tóxicos entrassem no fluxo do comércio e causassem danos. __________ 1 Henricksen, Wes, Deceive, Profit, Repeat: Public Deception Schemes to Conceal Product Dangers (2020). Cardozo Law Review, Forthcoming, Available at SSRN. 2 Cuéllar, Mariano-Florentino and Humphreys, Keith N., The Political Economy of the Opioid Epidemic (December 12, 2019). Yale Law & Policy Review, Vol. 38, No. 1, 2019, Available at SSRN. 3 Delfino, Rebecca, The Prescription Abuse Prevention Act: A New Federal Statute to Criminalize Overprescribing Opioids (February 10, 2020). Loyola Law School, Los Angeles Legal Studies Research Paper No. 2020-03, Forthcoming, to be published in Yale Law & Policy Review Vol. 39 pp. XX (2021), Available at SSRN or here. 4 Henricksen, Wes, Deceive, Profit, Repeat: Public Deception Schemes to Conceal Product Dangers (2020). Cardozo Law Review, Forthcoming, Available at SSRN.
Introdução: A importância da pesquisa científica Na minha última coluna, publicada por ocasião da comemoração do Dia dos professores, apresentei o paradigma pedagógico da Harvard Law School a partir de uma discussão do método socrático, desenvolvido naquela instituição no século XIX e que se tornou representativo de seu paradigma pedagógico.1 Naquela ocasião, na introdução ao texto, mencionei que meus professores em Stanford seriam científicos e Oxford teria um perfil analítico. Ainda não tinha certeza iria escrever novas colunas sobre as experiências no curso de Master of the Science of Law (JSM) em Stanford e no Doctor of Philosophy (DPhil) em Oxford nas colunas seguintes, mas nosso colega Nelson Rosenvald não somente me encorajou a fazê-lo, como também se referiu àquele artigo como o início da trilogia sobre paradigmas do ensino jurídico. Portanto, após o encorajamento para compartilhar minha experiência, resolvi escrever essa coluna sobre o paradigma de ciência adotado no Stanford Program in International Legal Studies (SPILS), programa de mestrado acadêmico liderado pelo Professor Lawrence Friedman.2 Assim como na coluna anterior, o presente texto também serve como tributo aos meus professores e aos pesquisadores pela contribuição para o desenvolvimento da ciência jurídica. Parabéns! O Master of the Science of Law (JSM) e a Metodologia de Pesquisa Empírica no Direito.  Assim como as pessoas costumam perguntar sobre a diferença entre Harvard e Stanford, também perguntam a diferença entre o Master of Laws (LL.M.) e o Master of the Science of Law (JSM). Essa questão é mais fácil e pode ser respondida a partir da estrutura diferenciada do programa. No caso do mestrado regular, o aluno cursa disciplinas variadas que não precisam estar relacionadas ao tema da dissertação. No caso do mestrado acadêmico de direito da Universidade de Stanford, disciplinas obrigatórias preparam o desenvolvimento do conhecimento de metodologia de pesquisa empírica em direito. Dentre tais disciplinas, há o Seminário do SPILS de Direito e Sociedade (SPILS Law and Society Seminar), o curso Desenho de Pesquisa para Estudos Jurídicos Empíricos (Research Design for Empirical Legal Studies) e o Workshop de Metodologia de Pesquisa SPILS (SPILS Research Methods Workshop). No meu tempo, o Seminário do SPILS de Direito e Sociedade era um curso obrigatório para todos os doze alunos do Master of the Science of Law (JSM), lecionado pelo Coordenador do Programa, Professor Lawrence Friedman, em conjunto com o Professor Rogelio Perez-Perdomo, colaborador de longa data do programa. No primeiro dia de aula, os professores explicaram que o curso pretendia cobrir a literatura principal relativa ao movimento Law and Society,3 de modo que os alunos pudessem aprender mais sobre a pesquisa interdisciplinar em direito produzida nos Estados Unidos e no mundo. O Professor Lawrence Friedman é um dos principais expoentes desse movimento, tendo produzido pesquisa interdisciplinar de alto nível como um dos principais líderes na Law and Society Association (LSA) e no Research Committee of Sociology of Law (RCSL), sendo amplamente reconhecido pela sua produção e pelo seu papel de fomento científico.4 O primeiro dia de aula reserva uma surpresa para os alunos, quando os professores explicam que existe uma tradição de que as aulas sejam realizadas na sala de estar na própria residência do Professor Lawrence Friedman, no campus da Universidade de Stanford. O convite vem acompanhado da ressalva de que se alguém recusá-lo as aulas deverão ocorrer na sala de aula, mas também nos foi esclarecido que ninguém jamais havia recusado aquele convite e todos aceitaram a hospitalidade do nosso anfitrião naquele ano acadêmico de 2007-2008. A preparação para a aula exigia uma enorme carga de leitura e a produção semanal de um texto escrito intitulado de 'trabalho de reflexão' ('reflection paper'), cujo objetivo era demonstrar não somente que tínhamos lido os textos programados, mas também que tínhamos produzido uma reflexão crítica a partir da leitura da literatura especializada em direito e sociedade. Como os próprios professores eram referências na disciplina, nós tivemos o privilégio de discutir algumas das ideias principais de seus livros e artigos, o que foi uma experiência formadora muito importante para aqueles de nós interessados na pesquisa interdisciplinar.5 Além disso, tive o prazer da leitura e da discussão de um texto produzido pelo Joaquim Falcão, meu Professor na Faculdade Nacional de Direito, e que constituía parte do material que os professores consideravam a literatura internacional relevante sobre o direito na sociedade.6 O professor Rogelio Perez-Perdomo rapidamente se interessou pela minha pesquisa, demonstrou conhecimento da realidade brasileira e resolvi então cursar sua disciplina 'Latin American Law', que me permitia refletir sobre o direito do nosso continente a partir de sua origem ibérica, da relação entre os colonizadores e os colonizados e das transformações histórico-sociais a partir das revoluções de independência do Brasil e seus vizinhos. O curso também foi baseado na produção acadêmica e nas pesquisas científicas do próprio docente, que inspiravam uma reflexão sobre o direito desenvolvido especificamente nas sociedades latino-americanas.7 Uma característica interessante do programa SPILS é uma recomendação de que os alunos sempre priorizem trabalhos escritos com uma estrutura de artigo acadêmico ao invés da realização de um teste ou de um exame, de modo a se preparar para publicar seu trabalho. No curso de 'Direito Latino-Americano' ('Latin American Law'), por exemplo, aproveitei para refletir sobre a legislação incriminadora da prática de capoeira no Brasil a partir de uma perspectiva crítica com base na obra de Michel Foucault e do exercício da resistência como uma estratégia de emancipação. Apesar de nunca ter publicado o texto, foi mais um interessante exercício de minha formação intelectual e preparação para a vida acadêmica. Outra disciplina obrigatória do curso era o Workshop de Metodologia de Pesquisa SPILS, conduzido pela Professora Deborah Hensler, uma renomada cientista política formada pelo MIT com uma enorme experiência em análise de política pública e pesquisas empíricas em resoluções de disputas, litígios complexos, tutela coletiva de direitos e demandas de massa.8 Como Diretora do Instituto RAND de Justiça Civil, a Professora Deborah Hensler tinha sido responsável pela produção de inúmeros artigos seminais sobre a Class Action e também tinha produzido um brilhante livro sobre os dilemas da tutela coletiva de direitos estadunidense.9 Seu curso nos forneceu um conhecimento precioso sobre como realizar pesquisas empíricas interdisciplinares em direito, desde a definição da questão-problema, da seleção da metodologia adequada, do arco argumentativo necessário para a construção de uma dissertação e limites e possibilidades do uso de técnicas de coleta de dados empíricos e do recurso à triangulação de fontes de pesquisa. Não se deve imaginar que todos os professores da Stanford Law School são científicos, mas o programa do SPILS e o Mestrado de Ciência do Direito certamente buscavam transmitir uma metodologia empírica das ciências sociais como uma ferramenta relevante para a pesquisa científica e interdisciplinar. O aprendizado das técnicas da metodologia empírica foi decisivo para a produção de trabalhos bem-sucedidos e, no meu caso, para a posterior publicação de artigos com base na pesquisa realizada.10  A influência da Professora Deborah Hensler também foi decisiva para a seleção da tutela coletiva de direitos como o objeto principal da minha produção acadêmica a partir de 2008, quando inaugurei a disciplina na FGV Direito Rio e iniciei trajetória profissional de condução de inquéritos civis e ações civis públicas. As pesquisas empíricas sobre a tutela coletiva de direitos no Brasil foram inspiradas pelas suas aulas e produção acadêmica.11 Aliás, durante minha estadia em Stanford, ocorria o projeto de intercâmbio acadêmico sobre a globalização das ações coletivas liderado pelas Universidades de Stanford e de Oxford, de que participava a Professora Ada Pellegrini Grinover como a intérprete da tutela coletiva de direitos no Brasil a partir da perspectiva comparada.12 A ressalva feita pela eminente Professora da Universidade de São Paulo (USP) de que não existiam pesquisas empíricas abrangentes no Brasil serviu de motivação para minha busca de suprir lacunas, especialmente na tutela coletiva do consumidor. Em Stanford, tive o privilégio de ser orientado pelo brilhante, atencioso e minucioso Professor George Fischer, que é um modelo de orientador. Além do acompanhamento regular de todo o processo de elaboração da dissertação, o orientador esteve atento à questão-problema, ao escopo da pesquisa, ao rigor metodológico e ao desenvolvimento da argumentação, tendo colaborado com uma supervisão essencial para o sucesso da dissertação de mestrado. Além do meu orientador, tínhamos uma aula específica para o acompanhamento gradual da nossa pesquisa, conduzida por Moria Paz, que sucedia a Manuel Gomez no apoio e supervisão dos mestrandos. Manuel Gomez se tornaria Professor na Florida International University (FIU) e um colaborador de projetos acadêmicos em pesquisas interdisciplinares, inclusive vindo a me convidar para o simpósio que resultaria na publicação do meu artigo sobre o direito encontrado na Praia de Ipanema.13 Por sua vez, teria o prazer de editar o volume em que Manuel Gomez publicaria seu ensaio sobre a normatividade representada na série 'Breaking Bad'.14 Além desses cursos, resolvi selecionar disciplinas interdisciplinares para aperfeiçoar a minha formação como pesquisador. Tive a oportunidade de cursar o curso de Análise Econômica do Direito ('Economic Analysis of Law') com uma das principais referências nessa disciplina, o Professor A. Mitchell Polinsky. Ele levava tão a sério a questão do regime de incentivos e questões, que eventualmente atirava doces aos alunos que respondiam corretamente as questões formuladas. Era um curso conjunto com o departamento de economia e colegas estavam cursando o doutorado de economia, o que tornava mais interessante o debate interdisciplinar. Outra experiência rica foi ter cursado a disciplina 'Direito e Desenvolvimento na Índia' ('Law and Development in India'), ministrada pelos Professores Thomas Heller e Erik Jensen, com uma reflexão teórica sobre os dilemas desenvolvimentistas indianos e uma série de apresentações de professores indianos que, não raro, eram convidados a voar da Índia até a Califórnia para apresentar suas pesquisas. Discutir com a turma sobre infraestrutura, regulação, desigualdade, direitos sociais, etcetera. Thomas Heller soube que seu Painel Intergovernamental em Mudança Climática da ONU tinha sido agraciado com um Prêmio Nobel naquele ano acadêmico.15 O aprendizado da disciplina viria me inspirar a ser Professor Visitante na WB National University of Juridical Sciences (NUJS) em Calcutá, Índia, e a constituir e liderar a rede colaborativa de pesquisa em direito e desenvolvimento na LSA e no RCSL. Outra disciplina interdisciplinar importante foi o curso de Sociologia do Direito ('Sociology of Law') com a Professora Michelle Landis Dauber, cuja discussão complementou o aprendizado do seminário coorganizado por Lawrence Friedman e Rogelio Perez-Perdomo, mas era matéria mais concentrada na literatura sociológica estadunidense. Finalmente, a Stanford Law School também possuía outros professores brilhantes, cuja pesquisa científica era primorosa e inspiradora. Naquele ano acadêmico, por exemplo, tive a oportunidade de assistir ao então Diretor da Stanford Law School, Larry Kramer, fazer uma apresentação especial do seu brilhante livro de história constitucional.16 Também assisti ao Professor Lawrence Lessig anunciar sua mudança de agenda de pesquisa, substituindo a reflexão sobre o direito e tecnologia pela busca de superação da corrupção da república nos Estados Unidos.17 Refletindo hoje sobre o SPILS, a experiência foi de aprendiz de cientista na pesquisa interdisciplinar e empírica em direito. Aliás, cursar um mestrado de ciência do direito nos torna cientistas jurídicos? Considerações Finais: Um Convite à Pesquisa Empírica e Interdisciplinar. A experiência acadêmica no curso Master of the Science of Law (J.S.M.) na Stanford Law School também contribuiu para a minha formação acadêmica, especialmente pelo aprendizado de produção da pesquisa empírica e interdisciplinar. Desde então, tenho mantido contato com meus professores e tive a oportunidade de estabelecer redes internacionais de colaboração de pesquisa no âmbito da LSA e do RCSL. O período de estudos e de pesquisas no SPILS também foi decisivo para a definição de minha agenda de pesquisa, que foi inspirada pela produção científica dos professores da Universidade de Stanford, mas sem repeti-la por mímica ou imitação. Posteriormente, no meu retorno ao Brasil e na experiência como Professor da FGV Direito Rio, tive a oportunidade de conduzir pesquisas empíricas, inclusive sendo selecionado para o International Junior Faculty Forum (IJFF) em 2011,18 quando o evento ainda era organizado pela Harvard Law School e pela Stanford Law School.19 Por outro lado, ao longo dos últimos três anos no PPGD da UFRJ, tenho participado de bancas de defesas de projetos que são eminentemente lógico-dedutivos e que evitam o emprego de metodologias empíricas e interdisciplinares, restringindo-se a referências empíricas a exemplos de casos concretos ou de experiências práticas. Nesse sentido, na minha opinião, devemos buscar ampliar os esforços de difusão de metodologias empíricas e de estabelecimento das redes de pesquisa empírica em direito. Espero que minha experiência no Mestrado de Ciência do Direito da Universidade de Stanford possa servir para instigar pesquisadores brasileiros e eventualmente de convite para à pesquisa empírica e interdisciplinar. Pesquisar é preciso. _____________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-privado-no-common-law/353240/paradigmas-pedagogicos-do-ensino-juridico 2 FORTES, Pedro. O Expositor da Cultura Jurídica e da História do Direito: Pioneirismo e Impacto de Lawrence Friedman. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, v. 11, n. 1, p. 24-40, 2019. 3 FRIEDMAN, Lawrence M. The law and society movement. Stanford Law Review, p. 763-780, 1986. 4 https://law.stanford.edu/directory/lawrence-m-friedman/ 5 Naquele ano, li e discuti com o Professor algumas passagens dos seguintes livros e artigos dele: FRIEDMAN, Lawrence M. The legal system: A social science perspective. Russell Sage Foundation, 1975; FRIEDMAN, Lawrence M. Total justice. Russell Sage Foundation, 1985; FRIEDMAN, Lawrence Meir. The republic of choice: Law, authority, and culture. Harvard University Press, 1990; FRIEDMAN, Lawrence M. The horizontal society. Yale University Press, 2008; FRIEDMAN, Lawrence M. Legal culture and social development. Law and society review, p. 29-44, 1969; FRIEDMAN, Lawrence M.; LADINSKY, Jack. Social change and the law of industrial accidents. Columbia Law Review, v. 67, n. 1, p. 50-82, 1967; FRIEDMAN, Lawrence M. Law, lawyers, and popular culture. Yale LJ, v. 98, p. 1579, 1988. Além disso, viria a traduzir para o português para uso em sala de aula o artigo FRIEDMAN, Lawrence M. Is there a modern legal culture?. Ratio Juris, v. 7, n. 2, p. 117-131, 1994, cuja tradução seria publicada como FRIEDMAN, Lawrence M. Existe uma cultura jurídica moderna?. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, v. 11, n. 1, p. 4-23, 2019. 6 FALCÃO, Joaquim Arruda. Lawyers in Brazil: Ideals and praxis. International Journal of the Sociology of Law, v. 7, n. 4, p. 355-375, 1979. 7 PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Latin American lawyers: A historical introduction. Stanford University Press, 2006; FRIEDMAN, Lawrence; PEREZ-PERDOMO, Rogelio (Ed.). Legal culture in the age of globalization: Latin America and Latin Europe. Stanford University Press, 2003; PÉREZ-PERDOMO, Rogelio. Rule of law and lawyers in Latin America. The Annals of the American Academy of Political and Social Science, v. 603, n. 1, p. 179-191, 2006. 8 https://law.stanford.edu/directory/deborah-hensler/ 9 HENSLER, Deborah R. et al. Class action dilemmas: Pursuing public goals for private gain. Rand Corporation, 2000; HENSLER, Deborah R. Revisiting the monster: new myths and realities of class action and other large scale litigation. Duke J. Comp. & Int'l L., v. 11, p. 179, 2001. HENSLER, Deborah R.; PETERSON, Mark A. Understanding mass personal injury litigation: A socio-legal analysis. Brook. L. Rev., v. 59, p. 961, 1993; HENSLER, Deborah R. Resolving mass toxic torts: Myths and realities. U. Ill. L. Rev., p. 89, 1989. 10 FORTES, Pedro Rubim Borges. Direito e Restos Humanos: uma hipótese para o enfrentamento jurídico-penal da tortura no Brasil. Revista de Estudos Empíricos em Direito, v. 1, n. 1, 2014. 11 FORTES, Pedro Rubim Borges. O Fenômeno da Ilicitude Lucrativa. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 5, n. 1, p. 104-132, 2019; FORTES, Pedro Rubim Borges; OLIVEIRA, Pedro Farias. A insustentável leveza do ser? A quantificação do dano moral coletivo sob a perspectiva do fenômeno da ilicitude lucrativa e o 'caso Dieselgate'. Revista IBERC, v. 2, n. 3, 2019; BORGES FORTES, Pedro Rubim; MARTINS, Guilherme Magalhaes; OLIVEIRA, Pedro Farias. Digital Geodiscrimination: How Algorithms May Discriminate Based on Consumers' Geographical Location. Droit et Societe, v. 107, p. 145, 2021. 12 HENSLER, Deborah R. The globalization of class actions: An overview. The annals of the american academy of political and social science, v. 622, n. 1, p. 7-29, 2009. 13 FORTES, Pedro R. How Socio-Legal Norms Emerge Within Complex Networks: Law and (In) formality at Ipanema Beach. FIU L. Rev., v. 10, p. 183, 2014. 14 GOMEZ, Manuel A. Outside but Within: The Normative Dimension of the Underworld in the television series "Breaking Bad" and "Better Call Saul". JOxCSLS, 2017. 15 https://law.stanford.edu/stanford-lawyer/articles/tom-heller-a-nobel-effort-for-the-environment/ 16 KRAMER, Larry. The people themselves: popular constitutionalism and judicial review. Oxford University Press, USA, 2004. 17 O livro somente seria publicado posteriormente: LESSIG, Lawrence. Republic, lost: How money corrupts Congress--and a plan to stop it. Twelve, 2011. 18 https://today.law.harvard.edu/hls-and-stanford-law-host-fourth-annual-international-junior-faculty-forum/ 19 https://portal.fgv.br/noticias/professor-direito-rio-e-selecionado-forum-harvard-e-stanford
Ouvi a frase título dessa coluna do meu antigo professor de direito civil, Pablo Stolze, quando ainda cursava a graduação em direito na UFBA - chamada carinhosamente por alunos, ex-alunos, professores e funcionários de "egrégia". Trata-se de ditado popular que significa que "quem tem de cuidar de pessoa já adulta, barbada, é a própria pessoa, não outrem."1 Pablo utilizava esse dizer como uma forma de introduzir a crítica à regra, existente no direito brasileiro, de que "metade dos bens da herança pertence aos herdeiros necessários", como os filhos, conforme prevê o art. 1.846, do Código Civil. Trata-se, como sabido, da figura da legítima. Nunca me esqueci da frase e aproveito a oportunidade para agradecer ao meu querido professor pelos ensinamentos, que despertaram em mim o gosto pelo direito civil. Não é novidade a existência de debate no Brasil em torno da supressão da controversa legítima2. Recentes declarações de super-ricos americanos, país onde não existe uma tal imposição jurídica, atiçam essa controvérsia e agitam discussões ainda mais amplas, sobre meritocracia e mesmo sobre grandes fortunas como "maldição" para os herdeiros. Em uma entrevista a um podcast (Earn you leisure) que ocorreu em julho, o ex-jogador da NBA Shaquille O'Neal, cuja fortuna é estimada em U$ 400 milhões (R$ 2.2 bilhões), declarou que seus seis filhos não herdarão esse patrimônio. "Meus filhos estão mais velhos agora. Eles ficam meio chateados comigo. Não realmente chateados, mas eles não entendem", afirma O'Neal. "Eu digo a eles o tempo todo. Nós não somos ricos. Eu sou rico." ("We ain't rich. I'm rich.")3 O'Neal diz que deseja que seus filhos sigam seu próprio caminho, assim como ele fez. Como pai, afirma só ter uma regra para com os filhos: a educação. "Vocês têm que ter bacharelado ou mestrado e então se vocês quiserem que eu invista em uma de suas empresas, vocês vão ter que me apresentar" o projeto, disse ele. O'Neal deixa claro aos filhos que eles têm de merecer, pois não vai dar a eles nada de mão beijada. Em setembro, em entrevista também a um podcast (Morning Meeting), Anderson Cooper, apresentador da emissora CNN cujo patrimônio é estimado em cerca de US$ 200 milhões (R$ 1,1 bilhão), revelou como o dinheiro destruiu a sua família dinástica e por que não vai deixar nenhum "pote de ouro" para o filho: "Não acredito em passar adiante grandes quantidades de dinheiro. [...] Não estou tão interessado em dinheiro, mas não pretendo passar adiante algum tipo de pote de ouro para meu filho. Vou fazer o que meus pais me disseram: 'sua faculdade será paga, e em seguida você precisa seguir [por conta própria]'."4 Anderson Cooper é descendente dos Vanderbilts, que foram, em sua época, uma rica dinastia americana, "que começou a definhar antes de o apresentador nascer - e sobre a qual ele escreveu um livro."5 O apresentador disse que "cresceu vendo dinheiro ser perdido" pelos Vanderbilts e sempre evitou ser associado à família. Segundo ele, a fortuna do magnata Cornerlius Vanderbilt, erguida ainda no século 19, "foi uma patologia que infectou as gerações seguintes": o dinheiro "não os levou a grandes atos de generosidade ou à criação de fundações duradouras que ajudassem outras pessoas, mas sim ao anseio de entrar para a alta sociedade."6 No Brasil, declarações como essas não poderiam ser convertidas em ações concretas, pois, como sabido, por aqui os filhos, como herdeiros necessários, têm direito à metade dos bens da herança dos pais. Por isso, entre nós, as declarações de O'Neal e Cooper têm apenas o poder de atiçar o debate contra a manutenção da legítima. Mas as declarações dos dois inserem-se em um debate maior a respeito da destinação das riquezas dos super-ricos, questão que envolve aspectos ligados a responsabilidade social e tributações sobre grandes fortunas. Isso em um período de grande desigualdade social e concentração de renda em todo o planeta7. Assim, se por um lado, é necessário perceber que quem tem filho barbudo é mesmo gato, essa percepção parece ser apenas um primeiro passo para uma discussão mais ampla e complexa que é como os humanos, detentores de grandes fortunas, podem agir para contribuir para superação da desigualdade e concentração de renda no mundo. ___________ 1 Disponível em: http://folclorevertentes.blogspot.com/2015/10/ditados-parte-5.html. 2 Para um resumo das críticas apresentadas por Pablo e por Rodolfo Pamplona Filho, ver: STOLZE, Pablo; PAMPLONA FILHO. Rodolfo. Novo curso de direito civil: direito das sucessões. São Paulo: Saraiva, 2021, v. 7, p. 187 ss. 3 Disponível em: https://www.blackenterprise.com/financial-lessons-shaquille-oneal-wants-his-children-to-realize-we-aint-rich-im-rich/. 4 Disponível em: https://www.independent.co.uk/arts-entertainment/tv/news/anderson-cooper-inheritance-son-wyatt-b1927859.html. 5 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58728861. 6 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58728861. 7 Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/internacional-58728861.
Dentre as alternative dispute resolution, os modelos utilizados para a mediação de conflitos tradicionalmente destacam-se pelo seu viés facilitador, transformador ou avaliativo, com o objetivo de viabilizar a solução consensual da disputa por via de um acordo entre as próprias partes envolvidas. Implica a mediação, assim, um verdadeiro modelo de autocomposição de conflitos. Já o modelo arbitral é bastante conhecido em todo o mundo, instituído mediante a eleição de um árbitro ou de uma entidade arbitral competente para processar e adjudicar a causa mediante sentença. A arbitragem, portanto, revela um verdadeiro sistema de heterocomposição de conflitos. Há muitos anos, no entanto, vem se destacando cada vez mais no sistema norte-americano um modelo híbrido de resolução de disputas denominado Binding Mediation, também conhecido como Mediação-Arbitragem (Med-Arb). A referida modalidade se inicia por uma abordagem de mediação tradicional que, diante da não obtenção do acordo, gera ao mediador a responsabilidade pela decisão da disputa. O mediador, que até então atuava como terceiro facilitador da solução consensual, passa a adjudicar o conflito. Como facilmente se percebe, referido modelo causa perplexidade e estranheza ao ser analisado à luz da legislação brasileira. Relembre-se que a Lei de Mediação prevê expressamente que "o mediador não poderá atuar como árbitro nem funcionar como testemunha em processos judiciais ou arbitrais pertinentes a conflito em que tenha atuado como mediador" (artigo 7º). Para melhor compreender as premissas e justificativas desse especial e ambíguo modelo resolutório - que envolve a conjugação de regras e técnicas de mediação e de arbitragem sem as adotar integralmente - analisamos inicialmente os modelos de mediação comumente aplicados.               Mediação Facilitadora (Facilitative Mediator Style)  Um dos principais papeis desenvolvidos pelo mediador é o de facilitar o diálogo e eventuais negociações entre as partes em conflito que, por inúmeras razões, não conseguiriam chegar a uma solução amistosa sem a assistência de uma pessoa neutra e alheia à relação controvertida.1 Comumente, o mediador intervém em uma negociação até então não concluída pelas partes, incumbindo-lhe uma inicial avaliação geral do caso, uma espécie de diagnóstico pelo qual apura as principais dificuldades envolvidas. O conhecimento do mediador acerca de todas as questões intrínsecas e extrínsecas à negociação é vital para o estabelecimento de estratégias a serem adotadas durante o procedimento mediatório.2 No modelo de mediação facilitadora enfatizam-se os interesses das partes. O mediador facilitador é tido como um terceiro que encoraja as partes a resolverem os seus próprios problemas com criatividade, facilitando a comunicação entre elas3, elaborando, quando necessário, questões direcionadas para ajudá-las a avaliarem o que elas precisam4 e a partir daí quais soluções enfatizar. É possível, ainda, que o mediador encorage os participantes a debaterem possíveis soluções. O objetivo do mediador facilitador é fazer as partes se concentrar no seu próprio poder de autodeterminação e de empoderamento, sem se desviar das suas essenciais características de neutralidade e de imparcialidade. O mediador, como é óbvio, não exige que os participantes aceitem as suas sugestões rumo à solução consensual.5 De todo modo, a mediação será baseada em entendimento, com vistas a resolver o conflito através de uma compreensão mais profunda das próprias partes e das perspectivas uns dos outros, enfatizando a responsabilidade pelas suas próprias decisões.6 Mediação Transformativa (Transformative Mediator Style) O modelo de mediação transformativa volta-se a um processo de verdadeira transformação das partes, como uma oportunidade de redimensionarem o conflito, trabalhando a partir das suas perspectivas para reavaliar os seus interesses, sempre conjugados com o reconhecimento das necessidades da outra parte.7 O foco central desse modelo de mediação implica entender que o conflito sempre estará presente na vida em sociedade, mas a forma de como lidar com ele constitui a chave para conseguir transformar as pessoas. O conteúdo emocional é determinante para a valorização dos indivíduos, a partir do conhecimento da visão do outro.8 Na mediação transformativa o processo em si é mais enfatizado do que propriamente a solução da controvérsia por meio de um acordo, que não seria o único resultado possível.9   Muitas são as críticas e desconfianças quanto a esse modelo transformativo de mediação, tais como: i) a mediação transformativa é baseada na crença de que as partes em disputa estão habilitadas para decidirem se e como vão resolver a sua disputa, ("empowerment and recognition are emphazied"); ii) em que pese as partes sejam encorajadas a se expressarem por elas mesmas, não se sabe se efetivamente conseguirão reconhecer as razões para as ações dos outros; iii) indaga-se até que ponto seria possível  enfatizar as condutas positivas e não as negativas, propiciando a cada parte uma transformação individual, na medida em que se tornam mais confiantes e menos conflitantes com a postura e o problema do outro.10 Por um tal modelo, acredita-se que o conflito induz a oportunidade para que os indivíduos mudem (transformem) sua interação com relação aos outros. As partes em disputa podem tomar as suas próprias decisões definindo como e o que discutir. O papel do mediador, assim, é o de apoiar esse processo transformativo, esclarecendo questões e pontuando as discussões, a fim de promover a confiança na tomada de decisões. Para o sucesso da mediação a interação das partes é essencial, pois resulta em uma compreensão da situação e perspectiva do outro.11 Mediação Avaliativa (Evaluative or directive12 Mediator style) O modelo de mediação avaliativa se baseia na intervenção direta do mediador, forte na concepção de que não é suficiente apenas facilitar o diálogo entre as partes para que, por meio de seu próprio poder de autodeterminação, cheguem sozinhas a uma decisão. Segundo esse método, o papel do mediador vai bem além.13 Sustenta-se a possibilidade de que o mediador dê a sua própria opinião acerca de questões específicas, na medida em que o mediador poderá, em muitos casos, possuir expertises nos assuntos enfrentados no procedimento mediatório. Dessa forma, o mediador é autorizado e incentivado a dar conselhos legais às partes, demonstrando, por exemplo, como os tribunais vêm decidindo casos semelhantes e, a partir disso, sugerindo caminhos para a resolução da disputa.14 Uma das principais críticas a esse modelo, todavia, é a de que o mediador pode influenciar os participantes a adotarem a sua opinião, direcionando o resultado das negociações e comprometendo, assim, a sua neutralidade e imparcialidade. No entanto, parece inegável que a mediação avaliativa se apresenta extremamente pragmática. Na medida em que o mediador não se afaste dos seus deveres e responsabilidades, é possível auxiliar as partes a chegar a soluções bastante razoáveis e eficientes, fornecendo, dentro do procedimento mediatório, conhecimentos e habilidades extremamente relevantes e decisivas para a obtenção do melhor resultado possível, dando às partes uma avaliação realística da situação. Para isso, todavia, é essencial que a atuação do mediador seja efetivamente neutra, estabelecendo uma relação de respeito e confiança com as partes. Não se perde de vista que o essencial papel do mediador é o de promover a comunicação entre as partes e assessorá-las para a resolução do conflito, sem obviamente impor a sua solução. Entretanto, estando as partes devidamente informadas a respeito de como funcionará o procedimento de mediação avaliativa, bem como das suas possíveis implicações, afastar-se-ia o risco de um suposto comprometimento do mediador em razão do aconselhamento efetivado no intuito da resolução da disputa através daquilo que foi mutuamente combinado. Mediação Vinculativa (Binding Mediation) Também conhecida como Med-Arb, ou mediação vinculativa, esse método de resolução de disputas envolve um processo pelo qual as partes concordam em submeter a disputa inicialmente a uma mediação que, acaso frustrada, imediatamente se converte em procedimento adjudicatório, atribuindo-se a responsabilidade para a decisão da disputa ao próprio mediador.15 A ideia central é a de se combinar elementos da mediação e da arbitragem para auxiliar os interessados a resolverem as suas disputas de forma efetiva, senão consensualmente, por via de uma decisão. Assim, o referido procedimento de resolução de disputas garante às partes extrema resolutividade, na medida em que, diante da não obtenção de acordo por via da mediação, a disputa será então arbitrada. Um dos aspectos mais importantes da mediação vinculativa é a especificidade da convenção que a estabelece, pela qual as partes avençam a sua vinculação à eventual decisão do mediador-árbitro, caso não obtenham um acordo na mediação. Por tal razão, é imprescindível que as partes aceitem voluntária e conscientemente em submeter a disputa a um tal modelo de Med-Arb.   Nesse modelo, repare-se, o processo de resolução de disputas envolve a mediação e a arbitragem como dois instrumentos autônomos, mas interdependentes. Métodos e técnicas negociais são subsequenciadas pela probabilidade da decisão arbitrada. Uma das etapas mais importantes desse procedimento consiste na mudança da figura do mediador para árbitro. Sendo essa a hipótese, as partes apresentarão novamente seu caso perante o árbitro (o antigo mediador), porém, desta feita, no intuito de convencê-lo de que suas posições são as corretas. O árbitro ouvirá as apresentações das partes e poderá fazer perguntas de esclarecimento. Após, no mesmo dia ou posteriormente, proferirá a decisão sobre a disputa, vinculante às partes. Repare-se que esse sistema não se confunde com a pura atribuição da resolução do conflito à arbitragem. A grande diferença - a depender das específicas disposições da convenção desenhada pelas partes -, pode ser a circunscrição da cognição do mediador, para fins de decisão, aos elementos e tratativas já trazidas ao seu conhecimento pelas partes, não se abrindo espaço para produção de novas provas. Para os defensores da Med-Arb, as maiores vantagens a serem destacadas nesse modelo de ADR seriam: i) maior probabilidade de o acordo ser negociado (increased likelihood of negotiated settlement); ii) economia de tempo (time-saving); iii) custos mais baixos (cheaper); iv) procedimento mais flexível (flexible).16 Por outro lado, as críticas voltadas contra a Med-Arb se fundamentam, em síntese: i) no desequilíbrio de poder (power imbalances) - na medida em que tal fator pode interferir diretamente na livre escolha das partes; ii) na maior pressão imposta às partes (pressure); iii) na renúncia ao modelo de adjudicação tradicional. Por conta da imprecisão de convenções que estipulam o meio resolutório de conflito, a conjugação dos métodos da mediação e da arbitragem por via da Med-Arb nem sempre é clara, gerando inúmeras controvérsias a respeito da validade, eficácia e vinculatividade da decisão ou acordo gerados. O grande risco que se corre pelo não esclarecimento preciso do significado de um tal modelo conjugado de mediação e arbitragem é o da impugnação de seu resultado, com base nos tradicionais pressupostos autônomos de cabimento e validade de cada um desses métodos de alternative dispute resolution, interpretados com exclusividade. Exemplificativamente, no caso Miller v. Miller (2016), o Tribunal Superior da Pensilvânia invalidou uma decisão tomada em uma pseudo Med-Arb, entendendo que a resolução da disputa não obedecera genuinamente a um modelo de binding mediation, senão de uma autêntica arbitragem. Isso porque, segundo referido Tribunal, na convenção instituidora do procedimento resolutório, as partes utilizaram a expressão "vinculante" no sentido de concordarem com um procedimento verdadeiramente arbitral, apesar do uso da expressão "mediação" inserida na convenção.17 Por outro lado, no caso Tirreno v. The Hartford, (2015), processado no Estado de Connecticut, as partes inicialmente acordaram, por via oral, resolver sua disputa por meio de uma mediação vinculativa. Diante da frustração da solução consensual do conflito por meio da mediação, o mediador passou a atuar como árbitro e emitiu uma decisão condenatória de uma das partes, inclusive mediante o cálculo da indenização devida.18 Em que pese ter concordado com o referido modelo, a parte condenada na bindig mediation recusou-se a aceitar a decisão proferida, judicializando a disputa sob a justificativa de que o procedimento utilizado foi verdadeiramente uma arbitragem e não uma mediação vinculativa. Sendo assim, a arbitragem deveria ser considerada inválida na medida em que, de acordo com as regras de arbitragem de Connecticut, qualquer estipulação de procedimentos arbitrais deve ser realizada por escrito. O Tribunal de primeira instância concedeu a moção pelo cumprimento da decisão, avalizando o modelo da Med-Arb.19 O Tribunal de Apelação de Connecticut, por sua vez, manteve a decisão condenatória, concluindo que no caso concreto não houve manifestação clara e direta das partes a respeito de instauração de uma verdadeira arbitragem. A Corte entendeu que se tratou de autêntica mediação vinculativa, que não se confunde com a arbitragem. Assim sendo, o procedimento entabulado pelas partes não estava sujeito ao Estatuto de Arbitragem daquele Estado, confirmando-se a decisão do Tribunal de primeira instância no sentido de se fazer cumprir a decisão do mediador-árbitro.20 Nesse sentido, é interessante perceber que, no referido caso, a decisão tomada pelo mediador foi considerada vinculativa na medida em que se baseou nos elementos de convicção e tentativas de negociação entabuladas pelas partes, mas não como uma decisão proferida por um autêntico árbitro.21 Quando a convenção da ADR confere a um mediador a autoridade para resolver quaisquer disputas não resolvidas pela mediação, a decisão resultante pode ser considerada como natural decorrência do modelo conjugado de Med-Arb, inconfundível com uma pura mediação ou uma pura arbitragem. Em conclusão, parece evidente a viabilidade da livre conjugação dos diversos sistemas de alternative dispute resolution para a resolução de disputas. Isso se revela altamente relevante para a adequação do procedimento resolutório às inerências próprias de cada conflito de interesses. Entretanto, para que os resultados obtidos pelos modelos resolutórios avençados pelas partes possam oferecer a segurança e estabilidade que deles se espera, é crucial que as respectivas convenções que os criam sejam claras e precisas a respeito dos procedimentos, das competências, das eficácias e das vinculações desejadas. ___________ 1 De acordo com o Programa de Negociação de Harvard Law School, "In facilitative mediation or traditional mediation, a professional mediator attempts to facilitate negotiation between the parties in conflict. Rather than making recommendations or imposing a decision, the mediator encourages disputants to reach their own voluntary solution by exploring each other's deeper interests. In facilitative mediation, mediators tend to keep their own views regarding the conflict hidden. Disponível em https://www.pon.harvard.edu/daily/mediation/types-mediation-choose-type-best-suited-conflict/. Acesso em 13 de outubro de 2021. 2 "A facilitative mediator assists parties with their communications and negotiations. The mediator's strategies are designed to help parties identify the issues in dispute, understand their real needs nd interests, and formulate options for settlement.". NOLAN-HALEY, Jacqueline M. Alternative Dispute Resolution. In a Nutshell. 4 ed., S.Paul, MN: West Group, 2013, p.96. 3 Dentre as técnicas empregadas no modelo da medição facilitadora é a mediação narrativa focada na cultura e no compartilhamento de histórias, as partes são encorajadas a resolverem os problemas através de uma compreensão profunda das suas narrativas e culturas. "Narrative Mediation: focuses on culture and shared stories as the forces which shape partie's interests and positions; parties are encouraged to resolve problems through a deep understanding of their shared narratives and culture." NOLAN-HALEY, Jacqueline M. Alternative Dispute Resolution. In a Nutshell. p. 96. 4 Outra técnica utilizada no modelo de mediação facilitadora é baseada no "entendimento" que visa resolver o conflito através de uma compreensão profunda das partes da sua própria perspectiva e da dos outros, isto é, enfatiza a responsabilidade das partes pelas suas próprias decisões. "Understanding-based Mediation aims to resolve conflict through deeper understanding by the parties of their own and each other's perspectives. It emphasizes the parties' responsability for their own decisions." NOLAN-HALEY, Jacqueline M. Alternative Dispute Resolution. In a Nutshell. p. 96. 5 "The facilitative mediator's goal is to avoid a directive approach while concentrating on party empowerment and self-determination. A facilitative mediator may act in a directive capacity to the extent the mediator decides which questions to pose, which solutions to emphasize, and how she engages the participants. Nevertheless, the facilitative mediator should be capable of maintaining neutrality and impartiality as long as she does not require participants to accept her suggestions". EXON, Susan Nauss. Advanced Guide for Mediators. San Francisco: Lexis Nexis, 2014, p. 15-16. 6 EXON, Susan Nauss. Advanced Guide for Mediators, p. 15. 7 Os pioneiros da concepção da mediação transformativa foram os Professores Robert A. Baruch Bush e Joseph P. Folger. The promise of mediation. The transformative approach to conflict.   8 De acordo com o Programa de Negociação de Harvard Law Schol: "In transformative mediation, mediators focus on empowering disputants to resolve their conflict and encouraging them to recognize each other's needs and interests. First described by Robert A. Baruch Bush and Joseph P. Folger in their 1994 book The Promise of Mediation, transformative mediation is rooted in the tradition of facilitative mediation. At its most ambitious, the process aims to transform the parties and their relationship through the process of acquiring the skills they need to make constructive change." Disponível em https://www.pon.harvard.edu/daily/mediation/types-mediation-choose-type-best-suited-conflict/. Acesso em 13 de outubro de 2021. 9 "Nos EUA, em 1994, diante de uma situação de elevada litigiosidade, os Correios, um dos maiores empregadores dos EUA, adotaram um programa de mediação transformativa para os conflitos entre seus funcionários no ambiente de trabalho, e os resultados foram reveladores, não apenas com base nos acordos obtidos (settlement rate), mas também na adesão e participação das partes (participation rate). Trata-se do U.S. Postal Service REDRESS (Resolve Employment Disputes Reach Equitable Solutions Swiftly) Mediation Program, um programa inovador no ambiente corporativo. A maior parte dos litígios nos Correios estava ligada à discriminação de empregados, e o volume de reclamações informais chegava a 30.000 por ano, muitas delas gerando longas e caras batalhas judiciais. Com o programa, os empregados que apresentassem reclamações de discriminação poderiam optar pela mediação antes de começar o processo formal de investigação interna. A presença na mediação tornou-se obrigatória para os gerentes que tivessem sido nomeados, muito embora eles fossem livres para fazer concessões ou não durante a participação do processo. Após ser testado em algumas cidades, em 1997 o programa adquiriu status nacional, sendo as mediações realizadas por terceiros neutros. Nos primeiros 22 meses de operação, os resultados foram impressionantes: de setembro de 1998 a junho de 2000, 17.645 disputas informais foram mediadas pelo programa REDRESS e, destas, 80% foram resolvidas. O programa também inspirou outras Agências Federais a usarem a mediação transformativa em seu ambiente de trabalho, dentre elas a Transportation Security Administration". GABBAY, Daniela Monteiro. Mediação & Judiciário no Brasil e nos EUA. Condições, desafios e limites para a institucionalização da Mediação no Judiciário. Ada Pellegrini Grinover, Kazuo Watanabe (coords.). Brasília: Gazeta Jurídica, 2013, p. 58-59. E, ainda, "REDRESS mediation provides a fast, fair, neutral, and informal alternative to traditional EEO counseling. The disputing parties meet with a non-postal, impartial third-party mediator who assists them in discussing and resolving their disputes. The REDRESS program uses the transformative model of mediation which strives to change the on-going interaction between the parties toward a positive direction. REDRESS mediations operate differently than most court directed mediations as the parties are strongly encouraged to play a more active role than the mediator or the parties' representatives." Disponível em https://about.usps.com/who/legal/redress/.  Acesso em 09 de outubro de 2021. 10 "The shift is away from a problem-solving outcome and toward a more open communication style; parties achieve moral growth by emphasizing individual empowerment and recogniyion. In other words, the emphasis is on shifts in parties interaction, shifts from relative weakness to greater strength (the empowermment dimension) and movement from self-absorption to openness (the recognition dimension). Recognition applies to a person's ability to empathize and begin to understand the other party's perspectives and points of view, not receiving recognition from another". EXON, Susan Nauss. Advanced Guide for Mediators. p. 16. 11 NOLAN-HALEY, Jacqueline M. Alternative Dispute Resolution. In a Nutshell. p. 96. 12 O professor Leonard L. Riskin propõe uma mudança terminológica nos termos evaluative para directive e facilitative para elective. 13 De acordo com o Programa de Negociação de Harvard Law School: "Standing in direct contrast to facilitative mediation is evaluative mediation, a type of mediation in which mediators are more likely to make recommendations and suggestions and to express opinions. Instead of focusing primarily on the underlying interests of the parties involved, evaluative mediators may be more likely to help parties assess the legal merits of their arguments and make fairness determinations. Evaluative mediation is most often used in court-mandated mediation, and evaluative mediators are often attorneys who have legal expertise in the area of the dispute." Disponível em https://www.pon.harvard.edu/daily/mediation/types-mediation-choose-type-best-suited-conflict/. Acesso em 13 de outubro de 2021. 14 "The approach of an evaluative mediator goes beyond facilitation and usually involves some type of assessment. This may consist of an opinion or prediction as to a specific court outcome or legal advice on a specific issue. The subject of mediator evaluation is a topic of considerable debate. In general, the argument in favor of evaluation argues for flexibility in the mediator's role while the opposing argument holds that evaluation compromises the mediator's neutrality." NOLAN-HALEY, Jacqueline M. Alternative Dispute Resolution. In a Nutshell, p. 97. 15 De acordo com o Programa de Negociação de Harvard Law School: "In med-arb, a mediation-arbitration hybrid, parties first reach agreement on the terms of the process itself. Unlike in most mediations, they typically agree in writing that the outcome of the process will be binding. Next, they attempt to negotiate a resolution to their dispute with the help of a mediator. If the mediation ends in an impasse, or if issues remain unresolved, the process isn't over. At this point, parties can move on to arbitration. The mediator can assume the role of arbitrator (if he or she is qualified to do so) and render a binding decision quickly based on her judgments, either on the case as a whole or on the unresolved issues. Alternatively, an arbitrator can take over the case after consulting with the mediator." Disponível em https://www.pon.harvard.edu/daily/mediation/types-mediation-choose-type-best-suited-conflict/. Acesso em 13 de outubro de 2021. 16 ADR Times. Binding Mediation (Med.-Arb.): affordable dispute resolution. Disponível em https://www.adrtimes.com/binding-mediation/, acesso em 07 de outubro de 2021. 17 Miller v. Miller, 2016 WL 6301602 (Pa.Super. 2016). Disponível em: https://law.justia.com/  Acesso em 15 de outubro de 21 18 Disponível em: https://cases.justia.com/connecticut/court-of-appeals/2015-ac36879.pdf?ts=1449590744. Acesso em 17 de outubro de 2021. 19 Disponível em: https://cases.justia.com/connecticut/court-of-appeals/2015-ac36879.pdf?ts=1449590744. Acesso em 17 de outubro de 2021. 20 "We conclude that trial court did not err when it refused to categorize the parties' chosen method of adjudication of their dispute as an arbitration proceeding an subsequently granted the motion enforce the settlement agreement. There was not a clear and direct manifestation, among their words, writings, or actions that indicated that the parties intended to adjudicate their dispute through arbitration." Disponível em: https://cases.justia.com/connecticut/court-of-appeals/2015-ac36879.pdf?ts=1449590744.  Acesso em 17 de outubro de 2021. 21 ORLOFSKY, Jonah. Binding mediation is not the same as arbitration. Disponível em: https://www.americanbar.org/groups/litigation/committees/alternative-dispute-resolution/practice/2015/binding-mediation-is-not-same-as-arbitration/. Acesso em 15 de outubro de 2021.
Em 2011, um jovem casal que esperava o nascimento de seu primeiro filho mudou-se para um apartamento no Brooklyn. O filho nasceu saudável, mas um ano depois um exame médico de rotina detectou chumbo em seu sangue. Descobriu-se que a poeira da tinta com chumbo no apartamento estava envenenando silenciosamente seu bebê. Nos anos seguintes, ele sofreu atrasos cognitivos significativos, bem como graves deficiências sociais e emocionais. A mãe da criança ajuizou ação indenizatória contra o proprietário, que foi considerado negligente. No cálculo dos danos, uma questão crítica para o júri era quanto essa criança teria ganhado ao longo de sua vida se não tivesse sido contaminada. Como de costume, os experts levaram em consideração o fato de o bebê ser hispânico. Como resultado, suas estimativas de danos foram significativamente menores do que teria sido o caso se o bebê fosse branco. O único detalhe incomum neste caso foi que o juiz federal, Jack B. Weinstein, do Distrito Leste de Nova York, se recusou a permitir tal iniquidade, colocando-se contra toda uma jurisprudência consolidada nos últimos 100 anos.1 Em 2020 a Califórnia proibiu o cálculo de lucros cessantes com base em raça, gênero e etnia. A lei, que é a primeira do tipo - até a presente data não foi replicada em nível federal pela administração Biden - proíbe expressamente reduções de danos por perda de ganhos futuros em casos de lesões corporais e morte por negligência quando essas delimitações forem baseadas em raça, gênero ou etnia. A prática de reduzir indenizações civis para os afro-americanos e outras minorias raciais e étnicas remonta ao início do século 20, quando os juízes o faziam com referência explícita a estereótipos ofensivos. Por exemplo, em Blackburn v. Louisiana Ry. & Nav. Co., a Suprema Corte da Louisiana de 1911 reduziu a indenização por danos a um afro-americano em quase 70%, citando "a conhecida imprevidência da raça negra e a vida irregular que esses travões de cor levam".2 A jurisprudência consolidada també exige que as mulheres justifiquem ambições profissionais para fazer jus a indenizações maiores. Um tribunal rejeitou as evidências de aspirações de uma vida de uma jovem vítima de acidente de se tornar uma veterinária como "puramente especulativa" e "sem base probatória" devido à dificuldade de ingressar na única escola de veterinária da região.3 O mesmo ceticismo não foi demonstrado em casos em que os homens aspiravam a carreiras profissionais semelhantes. Apesar dessa discriminação generalizada em indenizações por danos, as legislaturas estaduais falharam em aceitar qualquer ação significativa para corrigir esse erro. A Califórnia é há muito uma líder na área de responsabilidade civil. No caso de 1963 de Greenman v. Yuba Power Products, o estado abriu novos caminhos ao impor responsabilidade objetiva aos fabricantes por produtos defeituosos, uma abordagem que foi rapidamente adotada no segundo restatement of torts. Em 1968, o estado novamente abriu o caminho. Em Dillon v. Legg, a Suprema Corte da Califórnia estendeu a viabilidade da indenização em prol do bystander por sofrimento emocional. Esta lista de precedentes não acaba por aqui: inclui ainda Summers v. Tice (1948)4, que estabeleceu responsabilidade alternativa, permitindo que a vítima transfira o ônus da prova da causa de sua lesão para vários réus, mesmo que apenas um deles possa ter sido o responsável. Lembre-se ainda Tarasoff v. Regents of California (1976), que impôs um "dever de avisar" sobre terapeutas para informar terceiros ou autoridades se um cliente representar uma ameaça para si ou para outro indivíduo identificável. Por fim, Sindell v. Abbott Laboratories (1980), estabeleceu a Market share liability5 - doutrina que permite à vítima estabelecer um caso contra um grupo de fabricantes por um dano causado por um produto, mesmo quando o autor não sabe de que réu ele se originou - em razão dedano transgeracional6 rastreável ao DES, um medicamento comercializado para mulheres grávidas, aparentemente para prevenir aborto.7 Atualmente a Califórnia está mais uma vez no pioneirismo das reformas de responsabilidade civil com a conversão da Senate Bill n. 41 em lei,8 proibindo expressamente reduções de danos por perda de ganhos futuros em casos de lesões corporais e morte por negligência quando essas mitigações são baseadas em raça, gênero ou etnia. No sistema de responsabilidade civil de qualquer jurisdição, lucros cessantes pesam bastante na afirmação do dano patrimonial. Quando a vítima fica gravemente ferida a ponto de prejudicar sua capacidade de trabalhar, o provável rendimento perdido deve ser calculado. Naturalmente, advogados, juízes e júris (nos EUA) estimam os ganhos futuros perdidos do demandante, com base no que razoavelmente teria auferido se não tivesse sofrido a lesão. Para auxiliar nessas avaliações, os especialistas muitas vezes contam com tabelas de expectativa de vida e salário - e nos EUA essas tabelas geralmente incluem números diferentes, com base na raça e gênero do demandante. Normalmente, os experts adotam o Bureau of Labor Statistics Current Population Survey, que é atualizado trimestralmente, para determinar os ganhos perdidos projetados. A perda de potencial de ganho é um componente significativo dos danos e pode "fazer a diferença entre um prêmio modesto e considerável". As tabelas baseadas em raça e gênero são comuns: uma pesquisa de 2009 conduzida pela National Association of Forensic Economics descobriu que 44% dos entrevistados afirmaram que contabilizam raça e 92% que contabilizam gênero ao projetar os salários futuros de uma criança lesada por um ilícito. Evidentemente, o uso de tais tabelas pode resultar em prêmios significativamente mais baixos para mulheres e pessoas de cor. Uma análise de 2016 do Washington Post9 descobriu, por exemplo, que o uso dessas tabelas significaria que, em demandas idênticas envolvendo lesões idênticas, uma demandante afro-americana de 20 anos obteria apenas US$ 1,24 milhão em salários futuros perdidos, enquanto sua contraparte masculina branca auferiria US$ 2,28 milhões - quase o dobro - mesmo mantido constante o nível de escolaridade dos dois demandantes. Essas tabelas baseadas em raça e gênero são cada vez mais controversas. Os seus defensores argumentam que quaisquer disparidades nos ganhos futuros projetados são um sintoma de problemas sociais persistentes - não a causa. Eles também afirmam que os ganhos futuros perdidos devem ser estimados com a maior precisão possível. Cálculos precisos, em sua opinião, exigem a consideração de uma gama de características, incluindo raça e gênero. Nada obstante, esta prática é particularmente problemática no cálculo de indenizações para crianças vítimas que ainda não trabalharam ou não alcançaram um determinado nível de escolaridade, na medida em que especialistas são mais propensos a levar em consideração gênero e raça, em detrimento de fatores individualizados, como capacidade acadêmica, ética de trabalho, aspirações profissionais ou realização educacional.  Os críticos das tabelas respondem que tais disparidades são discriminatórias, arbitrárias e podem violar a Quinta e a Décima Quarta Emendas10. O uso de estatísticas baseadas em raça para calcular a compensação viola o devido processo legal e o direito de propriedade porque não é cientificamente aceitável em uma população heterogênea categorizar pessoas com base na raça, uma construção social fictícia e mutável. Em vez disso, as disparidades entre "raças" estão associadas a diferenças socioeconômicas e tendem a diminuir significativamente quando os fatores socioeconômicos são controlados. Consequentemente, estatísticas baseadas em raça são inerentemente não confiáveis e seu uso em um tribunal para privar alguém de seu direito à indenização constitui ação estatal arbitrária e irracional e, portanto, uma negação do devido processo. Neste sentido, uma análise desenvolvida pela Professora Martha Chamallas - uma das mais prolíficas estudiosas do tema - demonstra que a persistência da confiança judicial em tabelas baseadas em raça, etnia e gênero demanda ação estatal para fins de proteção igual, porque "é impossível separar o uso das estatísticas do padrão legal subjacente no caso, na medida em que nenhum princípio do direito constitucional está mais firmemente arraigado do que o princípio antidiscriminação conforme aplicado a classificações raciais explícitas. O uso de dados baseados em raça falha no nível rigoroso de escrutínio estrito exigido para passar na avaliação constitucional".11 Em reforço, as tabelas reforçam rígidas barreiras raciais e étnicas, pois não levam em consideração o progresso futuro que poderia ser feito durante a vida do demandante, perpetuando estereótipos negativos que diminuem o valor do indivíduo e deixam de levar em conta o potencial humano. A erradicação das tabelas significaria a interrupção da perpetuação da discriminação do passado e o afrouxamento de seu controle sobre o futuro das vítimas. Exemplifique-se com uma menina negra de 3 anos gravemente ferida em um acidente de carro. Mesmo que esta criança não tenha sofrido discriminação no local de trabalho, e mesmo que a discriminação diminua ao longo de sua vida, as projeções sobre seus ganhos futuros irão incorporar os níveis de discriminação racial e sexual sofridos por mulheres negras que vieram de gerações anteriores. O resultado é que a compensação da menina será manchada não apenas pela discriminação, mas também por um nível de discriminação racial e sexual que ela provavelmente não enfrentaria. Os críticos também observam que ao esvaziar as indenizações por danos contra mulheres e minorias, as tabelas prejudicam o acesso desses demandantes ao advogado no início do litígio. A final, advogados aceitam os casos com base em honorários de contingência (contingency fee basis). Dada essa forma de financiamento, os advogados só aceitarão casos se a provável indenização por danos for grande o suficiente para fazer o litígio valer a pena; quanto maiores os danos prováveis ??de um cliente em potencial, mais "vale a pena" seu caso. Some-se a tudo isto o perverso cálculo de custo-benefício. A prática fornece justificativa econômica para a desvalorização dessas comunidades, o que resulta na adoção de comportamentos mais imprudentes por parte dos infratores, pois os "custos" percebidos dessa conduta são menores. Em termos pragmáticos, o uso de dados de raça e etnia em cálculos de indenização incentiva as empresas a colocar suas fábricas e operações em comunidades de baixa renda, ou de cor, onde eventuais compensações por danos patrimoniais e processos por homicídio culposo serão menos custosos do que se os danos ocorressem em locais onde a comunidade fosse predominantemente branca.12 Embora esse incentivo financeiro raramente seja explícito, a estatística demonstra uma desproporcional concentração de depósitos de resíduos perigosos em comunidades minoritárias. Embora a constitucionalidade de tais tabelas seja objeto de debates há muito tempo, a controvérsia tomou vulto nos anos recentes. Em 2018, o Comitê de Advogados para Direitos Civis publicou um relatório pedindo reformas legislativas para evitar o uso de tais tabelas.13 Em 2019, dezesseis das organizações de direitos civis mais proeminentes do país - incluindo a ACLU e a NAACP - publicaram uma carta14 solicitando à National Association of Forensic Economists que congelem o uso de tabelas baseadas em raça e gênero, que se baseiam na "premissa flagrantemente falha de que as vidas das pessoas de cor e das mulheres valem menos do que as dos homens brancos". Curiosamente, um dos raros casos de esforços de reforma federal bem-sucedidos em proibir o uso de raça ou gênero nos cálculos de danos se deu justamente no notório caso do Fundo de Compensação de Vítimas de 11 de setembro, projetado para fornecer uma alternativa compensatória sem discussão de culpa para litígios de responsabilidade civil em prol de familiares de mortos e feridos. O special master Kenneth R. Feinberg adotou tabelas neutras quanto à raça e gênero "para evitar qualquer preconceito em supostos padrões de vida profissional no futuro e para garantir consistência".15 A expectativa é que a Suprema Corte finalmente se pronuncie sobre o tema, ou que, paulatinamente, as legislações estaduais se inspirem na iniciativa da Califórnia. Claramente uma concretização da função promocional da responsabilidade civil. __________ 1 G.M.M. v. Kimpson United States District Court, E.D. New York. Jul 29, 2015 116 F. Supp. 3d 126 (E.D.N.Y. 2015). O juiz Weinstein Enfatiza a importância da "miríade de fatores que afetam a capacidade de um indivíduo de realizar seu potencial". Descreve ainda os danos causados a crianças pequenas pelo chumbo e a exposição desproporcional de famílias de baixa renda e minorias. 2 30 54 So. 865, 869 (La. 1911). 3 Gilborges v. Wallace, 379 A.2d 269, 276-278 (N.J. Super. Ct. App. Div. 1977), sustentando que, embora a falecida, uma menina de dezesseis anos, havia expressado interesse ao longo da vida em se tornar uma veterinária, não havia nenhuma prova de que ela provavelmente teria se tornado uma estudante de veterinária ou graduada, porque não havia nenhuma escola de veterinária no estado de Nova Jersey e apenas uma no estado da Pensilvânia, com a consequente séria dificuldade de um aluno de New Jersey obter admissão em tal escola. 4 Dois réus atiraram por negligência na direção do autor e apenas uma das balas causou o prejuízo à vítima. No interesse da justiça, o caso da queixosa inocente não é derrotado porque ela não pode provar qual das partes foi a causa real (but-for cause) de seu dano. 5 A doutrina é exclusiva dos Estados Unidos e distribui a responsabilidade entre os fabricantes de acordo com sua participação no mercado para o produto que deu origem ao dano ao reclamante. 6 Fenômeno pelo qual o dano é transmitido de ascendentes a descendentes com consequências traumáticas para estes. 7 O dietilestilbestrol (DES) é uma forma sintética do hormônio feminino estrogênio. Foi prescrito para mulheres grávidas entre 1940 e 1971 para prevenir aborto, parto prematuro e complicações relacionadas à gravidez.  Em 1971, pesquisadores associaram a exposição pré-natal (durante o útero) ao DES a um tipo de câncer do colo do útero e da vagina chamado adenocarcinoma de células claras em um pequeno grupo de mulheres. Logo em seguida, a Food and Drug Administration (FDA) notificou médicos de todo o país que o DES não deveria ser prescrito para gestantes. O medicamento continuou a ser prescrito para mulheres grávidas na Europa até 1978. O DES agora é conhecido por ser um desregulador endócrino, uma das várias substâncias que interferem no sistema endócrino e causam câncer, defeitos de nascença e outras anormalidades do desenvolvimento. 8 Disponível aqui. A lei entrou em vigor em 1/1/2020. A votação final para o projeto no plenário da assembleia foi 78-0, demonstrando a força do argumento. 9 Disponível aqui. 10 5. Emenda: "Nenhuma pessoa poderá responder por um crime capital, ou outro crime infame, a menos que em uma apresentação ou acusação de um Grande Júri, exceto em casos surgidos nas forças terrestres ou navais, ou na milícia, quando em serviço real a tempo de Guerra ou perigo público; nem qualquer pessoa estará sujeita à mesma ofensa e por duas vezes com risco de vida ou integridade física; nem será obrigado em qualquer processo criminal a ser testemunha contra si mesmo, nem ser privado da vida, da liberdade ou dos bens, sem o devido processo legal; nem a propriedade privada será levada ao uso público, sem justa compensação". 14. Emenda: "Todas as pessoas nascidas ou naturalizadas nos Estados Unidos, e sujeitas à sua jurisdição, são cidadãos dos Estados Unidos e do Estado em que residem. Nenhum Estado fará ou fará cumprir qualquer lei que restrinja os privilégios ou imunidades dos cidadãos dos Estados Unidos; nem qualquer Estado privará qualquer pessoa da vida, liberdade ou propriedade, sem o devido processo legal; nem negar a qualquer pessoa dentro de sua jurisdição a igual proteção das leis". 11 Martha Chamallas, Questioning the Use of Race-Specific and Gender-Specific Economic Data in Tort Litigation: A Constitutional Argument, 63 Fordham l. rev. 73, 105 (1994); see also id. "When the court allows an expert to testify as to the plaintiff's future earning capacity, it makes a determination of relevancy and an implicit judgment about the substance of the common law of damages." 12 Embora a presença de uma empresa em uma comunidade de minoria racial possa aumentar as oportunidades de emprego e um melhor desenvolvimento econômico, esses benefícios são neutralizados se a empresa não cumprir os regulamentos de segurança ambiental e a comunidade sofrer com problemas de saúde onerosos e caros. Martha Chamallas, Civil Rights in Ordinary Tort Cases: Race, Gender, and the Calculation of Economic Loss, 38 loy. I.a. eu. rev. 1435, 1441 (2005). 13 Disponível aqui. 14 Disponível aqui.   15 O Relatório Final não menciona "raça". No entanto, o Mestre Especial usou as tabelas combinadas "Todos os Homens Ativos" para calcular os ganhos futuros de todos os requerentes. Disponível aqui.
Introdução: Um tributo aos professores A presente coluna é publicada na segunda-feira dia 18 de outubro de 2021, mas seu texto é sempre fechado na sexta-feira anterior, ou seja, no caso do presente texto, no dia 15 de outubro de 2021, em que se comemora no Brasil o dia dos professores. Nesse contexto, o texto é um tributo aos professores que tive ao longo de minha formação na academia anglo-americana. Além da homenagem, existe também uma reflexão sobre os paradigmas pedagógicos do ensino jurídico. A pergunta que sempre me fazem é a seguinte: qual é a melhor faculdade de direito? Harvard ou Stanford? Depois de eu ter concluído o doutorado em Oxford em 2017, perguntam se é melhor estudar nos Estados Unidos ou na Inglaterra e se Oxford é melhor do que Harvard e Stanford? A única resposta possível é que não existe melhor ou pior quando se trata de Harvard, Stanford e Oxford. São instituições de alto nível e que fazem sentido conforme os objetivos educacionais, os aprendizados pretendidos e os projetos acadêmicos de cada pessoa. Contudo, existem paradigmas adotados e modelos de professores que fizeram parte da minha experiência em Harvard, Stanford e Oxford: os professores socráticos, científicos e analíticos. O presente artigo se refere ao paradigma dos professores socráticos a partir da minha experiência no Master of Laws (LL.M) na Harvard Law School. Aproveito para homenagear meus professores e todos os professores de direito pela sua contribuição para a excelência do ensino jurídico dentre nós. Parabéns! O Paradigma da Harvard Law School: Os orofessores socráticos A tradição de ensino da Harvard Law School é identificada com o método de estudo de caso desde o final do século XIX, quando o Diretor da Faculdade de Direito, Professor Christopher Columbus Langdell, fez uma ampla reforma curricular e pedagógica, estabelecendo as disciplinas de 'Contratos', 'Propriedade', 'Responsabilidade Civil', 'Direito Processual' e 'Direito Penal' como parte obrigatória do currículo do primeiro ano do curso de direito e substituindo o estilo antigo de aulas-conferência pelo novo método pedagógico que exigia um nível maior de engajamento e de interação entre os professores e os estudantes.1 Como Professor de Contratos, o Professor Langdell editou em 1871 o primeiro livro de casos de contratos,2 sendo que abria o seu curso com uma breve exposição sobre a natureza do contrato e, em seguida, convocava um dos seus estudantes para apresentar o caso Payne v. Cave - o primeiro de uma ampla coleção de casos especialmente selecionados para lecionar a matéria.3 Tal método de casos se tornou um paradigma para o ensino jurídico nos Estados Unidos ao longo do século XX e a postura socrática dos professores se caracterizava como uma atitude de questionamento dos estudantes sobre os aspectos fáticos dos casos e as questões jurídicas que poderiam ser extraídas e discutidas de modo sistemático. No ano de 2006, quando minha classe ingressou no curso de Master of Laws (LL.M.), dizia-se que o método socrático estaria em declínio na Harvard Law School.4 Na semana de ambientação, foi programada uma sessão com a nossa turma para assistir ao filme 'Legalmente Loira' ('Legally Blonde'), uma comédia em que uma jovem estudante ingressa na Faculdade de Direito e é exposta ao ambiente extremamente competitivo da Harvard Law School. Em seu primeiro dia de aula, a personagem Elle Woods, vivida por Reese Whiterspoon, é chamada para explicar o caso Gordon v. Steele, como ponto de partida para a aula sobre responsabilidade civil e se sente humilhada pela dificuldade em liderar a discussão sobre o precedente relativo ao erro médico logo no início do seu curso de direito.5 Fomos informados que a equipe do filme tinha feito pesquisas para a composição das personagens no campus da Faculdade de Direito e que a Professora Elizabeth Warren teria servido de inspiração para a construção da personagem Professora Stromwell, vivida pela grande atriz Holland Taylor, e que serve de inspiração para que a estudante Elle Woods supere seus desafios e se torne uma advogada bem sucedida. Também na semana de ambientação, a então Professora e atual Senadora Elizabeth Warren nos deu uma aula de demonstração sobre o método socrático, sendo que tínhamos recebido um material com casos pré-selecionados e deveríamos nos apresentar para a aula preparados para a apresentação dos fatos do caso e para a discussão jurídica. A aula socrática foi extremamente interessante e rica como um exercício de análise indutiva e de discutir as variáveis de um caso concreto, a partir das regras aplicáveis e dos princípios jurídicos, bem como de expectativas sobre o comportamento que poderiam ter sido adotados pelas partes na controvérsia. Por outro lado, fomos informados que talvez não teríamos aulas semelhantes, na medida em que os cursos do primeiro ano é que mantém a estrutura mais tradicional do método de casos e em que os professores mantém uma postura socrática mais clássica. Aliás, os desafios do primeiro ano da Faculdade de Direito de Harvard também são descritos pelo escritor Scott Turow em seu livro One L: The Turbulent True Story of a First Year at Harvard Law School.6 De fato, como não tive aulas do currículo de primeiro ano, não tive a experiência do método socrático clássico, de ser chamado friamente para apresentar um caso com todas as suas peculiaridades e de extrair indutivamente a análise jurídica em diálogo com o professor. Contudo, embora seja mitigado nos demais cursos e na metodologia dos demais professores, o espírito do método socrático permeia a experiência acadêmica da Harvard Law School. No curso de 'American Constitutional Law', com o Professor Laurence Tribe, por exemplo, a matéria é trabalhada a partir dos casos e existem recomendações de leitura prévia de precedentes judiciais, artigos acadêmicos e do Casebook. No curso de 'Comparative Constitutional Law', a seu turno, embora o enfoque do Professor Frank Michelman fosse na jurisprudência sul-africana, a estrutura do curso também era pautada por uma coleção de casos e de textos acadêmicos com a disposição antecipada de conteúdo para fins de debate. Embora as aulas tivessem uma estrutura mais tradicional de conferência, existia oportunidade para debate e para a discussão crítica, com questionamentos, comentários e análises pelos estudantes dos materiais previamente compartilhados. Mesmo nos cursos que não eram estruturados em torno de casos - Legal Theory com Roberto Mangabeira Unger, International Human Rights com James Cavallaro, International Law Workshop com William Alford e Ryan Goodman, e Talking About Taboo Subjects com Allan Dershowitz - eram caracterizados por alta competitividade entre os estudantes e por um debate de alta intensidade, em que críticas internas ao argumento apresentado eram esperadas e mesmo estimuladas. Um amigo professor também formado pela Harvard Law School chega a comparar a experiência com uma luta de Ultimate Fight Championship (UFC), evocando a figura do octógono para se referir às salas de aula e a possibilidade de que o seu argumento seja desconstruído por várias disciplinas com a analogia de que o bom debatedor precisa dominar as várias artes argumentativas, assim como o bom lutador precisa enfrentar as várias artes marciais. De fato, os termos do debate na Harvard Law School podem combinar direito, ciência política, economia, sociologia, análise de política pública, teoria crítica, filosofia, dentre outras possibilidades argumentativas que tornam o debate rico, interessante e desafiador. Nesse contexto, os professores são brilhantes por terem competência para estabelecer pontos de contato entre os inúmeros argumentos, traduzindo perspectivas interdisciplinares e transdisciplinares e contrapondo diversas perspectivas na condução dos debates. Aprendi enormemente com os meus professores. Laurence Tribe fez um tour de force pelo universo do direito constitucional e da Suprema Corte, com a autoridade de autor do tratado mais importante sobre a disciplina,7 de autor de uma série de artigos seminais8 e de advogado bem sucedido na defesa de argumentos orais perante a própria Suprema Corte.9 Frank Michelman compartilhou a experiência de arquiteto do desenho constitucional sul-africano e de teórico consagrado de defesa do republicanismo,10 dos direitos econômicos-sociais11 e do papel potencial do direito na transformação social e redução da pobreza e da desigualdade.12 Roberto Mangabeira Unger apresentou suas reflexões teóricas e críticas com uma discussão profunda da literatura da filosofia do direito anglo-americana e a apresentação de sua proposta alternativa.13 William Alford e Ryan Goodman conduziram um seminário com convidados de altíssimo nível e debates interessantíssimos. Alan Dershowitz abriu novos horizontes de reflexão com sua provocativa discussão sobre os tabus jurídicos e sua experiência como advogado criminalista renomado e estórias sobre o julgamento de O.J. Simpson e Mike Tyson, por exemplo. Finalmente, James Cavallaro proporcionou um aprendizado enorme sobre o tema dos direitos humanos internacional, não somente por nos preparar para as críticas desconstrutivas a partir dos exemplos pródigos de David Kennedy14 e de Makau Mutua15 discutidos em sala de aula, mas também pelo amplo conhecimento teórico e prático sobre advocacia em direitos humanos, pela possibilidade de participar de uma pesquisa empírica relevante na Clínica de Direitos Humanos16 e pela orientação da minha dissertação. Obviamente, também aprendi enormemente com outros professores da Harvard Law School. Por exemplo, exceto pelo Professor Roberto Mangabeira Unger, não cursei disciplinas com os demais expoentes do movimento Critical Legal Studies (CLS), mas tive a oportunidade de assistir palestras e de aprender inúmeros temas e conceitos, como já evidenciado em algumas colunas anteriores.17-18-19 O corpo docente é enorme, composto por centenas de professores com uma formação diversificada e agenda de pesquisa variada. Aliás, no discurso de abertura do ano acadêmico de 2006-2007, a então Diretora da Faculdade de Direito e hoje Justice Elena Kagan se referiu à Harvard Law School como sendo a Nova York das Escolas de Direito, no sentido se ser enorme, diversificada, cosmopolita, intensa e ininterrupta. Aliás, a Professora Elena Kagan se tornou conhecida pela iniciativa de servir café gratuito para os estudantes20 e eu tenho lembranças não somente do café gratuito pela manhã, mas também da fila de estudantes de madrugada no quarto andar da Biblioteca para tomar café expresso gratuito e continuar a preparação para os exames e a conclusão de seus trabalhos, dissertações e teses pela madrugada afora. No ambiente extremamente competitivo de Harvard, as avaliações eram tradicionalmente em curva decrescente, sendo que as notas A eram reservadas para os melhores 10%, as notas A- para os subsequentes 20% e os demais alunos recebiam B+, B e B-. Somente provas excepcionalmente boas recebiam a nota A+ e provas excepcionalmente ruins poderiam receber as notas C e D.21 Esse sistema foi alterado em 2009 para um sistema com três conceitos - "Com Honras" ('Honors'); "Aprovado" ('Pass'); "Aprovado Abaixo" ('Low Pass') - e a avaliação não é mais tão rigorosa como era até então.22 Apesar de o sistema de avaliação ter sido atenuado, o estimulado à discussão crítica e profunda e ao debate aberto e intenso não se alterou e ainda persiste como uma característica marcante da Harvard Law School e da sua pedagogia socrática. Considerações finais: Nossos professores compõem o professor que nos tornamos A experiência acadêmica no curso Master of Laws (LL.M.) na Harvard Law School foi um divisor de águas na minha formação, pelo fato de ter rompido com uma série de paradigmas da minha formação anterior. Apesar de ter tido uma exposição anterior ao método de casos nas aulas de Direito Constitucional do Professor Joaquim Falcão na Faculdade Nacional de Direito da UFRJ, de sempre ter considerado essencial a perspectiva interdisciplinar e as lições do direito comparado, o estilo argumentativo da academia brasileira e da prática da profissão jurídica evita o questionamento aberto e direto, a crítica interna e frontal ao argumento e estimula uma certa cordialidade ao invés da competitividade.23 Posteriormente, no meu retorno ao Brasil e na minha experiência como Professor da FGV Direito Rio, tive a oportunidade de aplicar algumas ideias, estratégias e posturas pedagógicas aprendidas a partir da minha experiência internacional, sempre com o cuidado de não fazer uma mera importação de ideias fora do lugar, mas de procurar adaptar e traduzir para o contexto brasileiro.24-25 Nesse sentido, o espírito socrático pautado pela necessidade de uma enorme preparação para conhecimento, discussão e análise de inúmeras dimensões de um caso se tornaram parte do professor que me tornei. Não por acaso, atualmente como Professor Visitante no PPGD da UFRJ, o programa da disciplina "Teoria das Instituições e Aspectos Filosóficos dos Desenhos Institucionais" é centrado no estudo de nove livros com o diálogo e o debate entre os Professores Adrian Vermeule e Cass Sunstein, ambos da Harvard Law School.26 Uma das características mais importantes da postura socrática é a atitude de crítica constante, de modo que os textos são adotados como ponto de partida para a reflexão, análise crítica e problematização, não devendo ser canonizados e nem devendo o professor adotar uma postura de pontificar sobre o material a ser trabalhado. Problematizar é preciso. __________ 1 SCHOFIELD, William. Christopher Columbus Langdell. The American Law Register (1898-1907), v. 55, n. 5, p. 273-296, 1907. 2 LANGDELL, Christopher Columbus (Ed.). A selection of cases on the law of contracts: With references and citations. The Lawbook Exchange, Ltd., 1999. 3 SCHOFIELD, William. Christopher Columbus Langdell. The American Law Register (1898-1907), v. 55, n. 5, p. 273-296, 1907. 4 KERR, Orin S. The decline of the Socratic method at Harvard. Neb. L. Rev., v. 78, p. 113, 1999. 5 Disponível aqui. 6 TUROW, Scott. One L: The turbulent true story of a first year at Harvard Law School. Farrar, Straus and Giroux, 2010. 7 TRIBE, Laurence H. American constitutional law. 1978. 8 Veja, por exemplo, TRIBE, Laurence H. The curvature of constitutional space: What lawyers can learn from modern physics. Harvard Law Review, p. 1-39, 1989; TRIBE, Laurence H. Taking text and structure seriously: Reflections on free-form method in constitutional interpretation. Harv. L. Rev, v. 108, p. 1221, 1994; TRIBE, Laurence H. Lawrence v. Texas: The Fundamental Right That Dare Not Speak Its Name. Harv. L. Rev., v. 117, p. 1893, 2003. 9 Disponível aqui. 10 MICHELMAN, Frank I. Law's republic. Yale Lj, v. 97, p. 1493, 1987. 11 MICHELMAN, Frank I. In Pursuit of Constitutional Welfare Rights: One View of Rawls' Theory of Justice. U. Pa. l. rev., v. 121, p. 962, 1972; MICHELMAN, Frank I. Welfare rights in a constitutional democracy. Wash. ULQ, p. 659, 1979. 12 MICHELMAN, Frank I. Foreword: On protecting the poor through the fourteenth amendment. Harv. L. Rev., v. 83, p. 7, 1969. 13 UNGER, Roberto Mangabeira. What should legal analysis become?. Verso, 1996, UNGER, Roberto Mangabeira. Legal analysis as institutional imagination. The Modern Law Review, v. 59, n. 1, p. 1-23, 1996. 14 KENNEDY, David. International human rights movement: part of the problem?. Harv. Hum. Rts. J., v. 15, p. 101, 2002. 15 MUTUA, Makau. Savages, victims, and saviors: The metaphor of human rights. Harv. Int'l LJ, v. 42, p. 201, 2001. 16 Disponível aqui. 17 Disponível aqui. 18 Disponível aqui. 19 Disponível aqui. 20 Disponível aqui. 21 Disponível aqui. 22 Disponível aqui. 23 DE HOLANDA, Sérgio Buarque; CÂNDIDO, Antônio; DE MELLO, Evaldo Cabral. Raízes do brasil. J. Olympio, 1936. 24 Sobre a FGV Direito Rio, veja FORTES, Pedro. A INSTITUCIONALIZAÇÃO DA EDUCAÇÃO E DA PESQUISA JURÍDICA: DECODIFICANDO O DNA DA FGV DIREITO RIO. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 5, n. 1, 2019; FALCÃO, Joaquim; DELFINO, Pedro. Experimentalismo e Análise Institucional no Curso FGV Direito Rio: Um Projeto em Construção. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 5, n. 1, p. 1-19, 2019; GUERRA, Sergio. REFLETINDO SOBRE O ENSINO JURÍDICO NO MESTRADO EM DIREITO DA REGULAÇÃO. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 5, n. 1, p. 20-33, 2019; LACERDA, Gabriel; FALCÃO, Joaquim; RANGEL, Tânia Abrão. Aventura e legado no ensino jurídico. FGV Direito Rio, 2012; TRUBEK, David M. Reforming legal education in Brazil: from the Ceped experiment to the law schools at the Getulio Vargas Foundation. Univ. of Wisconsin Legal Studies Research Paper, n. 1180, 2011. 25 Com relação à metodologia pedagógica da FGV Direito Rio, também recomendo a leitura da série Cadernos FGV Direito Rio, que tive a oportunidade de editar dentre 2013 e 2017. 26 VERMEULE, Adrian. Judging Under Uncertainty: An Institutional Theory of Legal Interpretation. Cambridge, MA: Harvard University Press, 2006; VERMEULE, Adrian. Mechanisms of Democracy: Institutional Design Writ Small. New York, NY: Oxford University Press, 2007; SUNSTEIN, Cass. #Republic: Divided Democracy in the Age of Social Media. Princeton: Princeton University Press, 2017; VERMEULE, Adrian. The System of the Constitution. New York, NY: Oxford University Press, 2011; VERMEULE, Adrian. The Constitution of Risk. New York, NY: Cambridge University Press, 2014; POSNER, Eric; VERMEULE, Adrian. The Executive Unbound: after the Madisonian republic. New York, NY: Oxford University Press, 2010; SUNSTEIN, Cass R.; VERMEULE, Adrian. Law and Leviathan. Harvard University Press, 2020; THALER, Richard H., SUNSTEIN, Cass R., Nudge: Improving decisions about health, wealth, and happiness. 2009; VERMEULE, Adrian. Law's Abnegation. Harvard University Press, 2016.
O Jornal The New York Times noticiou recentemente um fenômeno interessante acontecendo nos EUA: amigos que estão levando suas amizades a um outro patamar: o do casamento.1 Não, não se trata de amigos que, no curso da amizade, apaixonam-se e decidem se casar. Nisso não há nada de novo ou peculiar. O fenômeno envolve pessoas que são muito amigas, normalmente melhores amigas, e que, por conta disso, decidem subir juntas ao altar. Ou seja, elas decidem casar-se pela amizade e como amigas. Após o casamento, a relação segue sem envolver, por exemplo, paixão, sexo ou romance. Por outro lado, não se trata de um arranjo desambicioso, de dois grandes amigos que decidem viver juntos apenas a experiência da cerimônia de casamento. Ou de duas amigas que querem morar juntas para dividir as contas da casa. Muito menos de um impulso de dois amigos que, após uma noitada de curtição, casam-se irrefletidamente, como volta e meia é noticiado a respeito de casais em Las Vegas. Os casamentos platônicos em questão envolvem amigos que sobem ao altar e que sinceramente juram nunca abandonar uma ao outro, seja "na saúde ou na doença". A reportagem cita, entre outros, o caso de Jay Guercio e Krystle Purificato. Em novembro de 2020, elas usaram vestidos de noiva, caminharam pelo corredor, trocaram alianças e compartilharam seu primeiro e único beijo. E Krystle mudou inclusive seu sobrenome para Guercio. As amigas se conheceram em 2011 e decidiram se casar em setembro de 2020. Elas são gays e estão abertas a sair com outras pessoas, mas não entre si. Elas dormem na mesma cama, mas seu relacionamento não envolve contato sexual. Elas se casaram porque queriam ser jurídica e socialmente reconhecidas como uma família. "Queríamos que o mundo soubesse que somos a parceira de vida da outra no mundo e que pudéssemos lidar com as questões jurídicas de maneira apropriada", disse Jay. "Somos um casal, uma unidade e parceiras para a vida toda." Jay afirma ainda que o casamento delas é estável, duradouro e não tem condicionantes. Não há ainda dados estatísticos sobre casamentos platônicos entre amigos. Não se sabe ao certo quantas pessoas vivem em relacionamentos desse tipo, inclusive porque muitas pessoas que estão neles não se manifestam publicamente a respeito. Mas surgiram recentemente diversos fóruns de discussão, no Reddit e em comunidades menores de pessoas assexuais e aromânticas, o que sugere que esse arranjo pode envolver uma porção maior da população de casados do se poderia inicialmente pensar. Especialistas consultados pela reportagem trazem ponderações interessantes. Segundo Nick Bognar, terapeuta de casamento e família, é preciso "reconhecer que realmente normalizamos relacionamentos românticos monogâmicos heterossexuais a ponto de estigmatizar outros tipos de relacionamentos". Para Nick, esse tipo de casamento deve provavelmente ocorrer com frequência, "mas as pessoas não falam muito sobre isso, porque seus relacionamentos são invalidados por outras pessoas quando são vistos como não sendo parte da norma social." Analisando historicamente, nota-se que o casamento mudou bastante ao longo do tempo. Antigamente era um arranjo econômico. Na atualidade, transformou-se em um relacionamento que abrange praticamente todos os aspectos da vida, disse Indigo Stray Conger, terapeuta sexual e de relacionamento. Nesse contexto, os casamentos hoje em dia envolvem uma dose enorme de expectativa dos cônjuges, pois eles esperam um do outro que satisfaçam todas as suas necessidades, sejam sociais, psicológicas e econômicas. Os casamentos platônicos acabam levantando "uma questão interessante relacionada a quais elementos são mais importantes em um casamento e o que os parceiros teoricamente devem atender para que os casamentos sejam bem-sucedidos", disse Jess Carbino, especialista em relacionamentos que trabalhou para os aplicativos de namoro Tinder e Bumble. Não se tem notícia de fenômeno análogo no Brasil, mas pode-se presumir que há um número considerável de casais por aqui nessa situação. Mas, pelo Direito brasileiro, um casamento como esse teria pleno valor jurídico? À luz das regras legais, pode-se questionar, por exemplo, se esses amigos quando casam estariam estabelecendo uma "comunhão plena de vida", como prevê o Código Civil (art. 1.511). Além disso, se no curso da relação estariam sendo respeitados os deveres de ambos os cônjuges, como "I - fidelidade recíproca; II - vida em comum, no domicílio conjugal; III - mútua assistência; IV - sustento, guarda e educação dos filhos; V - respeito e consideração mútuos" (art. 1.566). Já em uma primeira análise, esse tipo de casamento parece ter plena eficácia jurídica no Brasil. Em comparação com os casamentos tradicionais, falta, ao que parece, principalmente os elementos romântico, sexual e monogâmico. Ocorre que esses elementos não são indispensáveis para constituição de "comunhão plena de vida". Ou melhor, os relacionamentos hetero-monogâmicos, que envolvem relação sexual entre um homem e uma mulher, não são a única forma de "comunhão plena de vida". Hoje em dia reconhece-se uma ampla liberdade dos cônjuges para construir o seu próprio modelo de família: "Ao prever que 'o casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres dos cônjuges' [art. 1.511], estabelece-se que os próprios nubentes podem compor os termos da essência da relação familiar [...]. Assim, fica a critério dos nubentes a possibilidade de eles mesmos construírem o próprio modelo familiar, dentro dos parâmetros de realização que lhes são próprios, já que o art. 1.513 do Código Civil prevê a proibição a 'qualquer pessoa, de direito público ou privado, interferir na comunhão de vida instituída pela família'. Dentro desse espaço de liberdade garantido pelo legislador, a comunhão de vida 'deve ser construída pelos nubentes de forma íntima e privada, sem a intervenção do Estado, ao eleger certos efeitos ou impor determinados direitos e deveres aos nubentes, à revelia de seus projetos pessoais'."2 Assim, defende-se que os cônjuges teriam a liberdade para afastar, por exemplo, os deveres previstos de fidelidade recíproca e de coabitação. Por outro lado, ainda são reconhecidos alguns limites à liberdade de estipulação dos nubentes. Persistem como imperativas as regras do casamento baseadas no princípio da solidariedade familiar, como o dever de mútua assistência. Esse elemento, contudo, não está sendo colocado em xeque pelos casamentos entre amigos. Os casamentos platônicos entre amigos parecem se inserir em um movimento mais amplo do ser humano em busca de uma maior liberdade de expressão da sua individualidade e em prol de uma maior pluralidade e diversidade nas formas de se relacionar. Respondendo à pergunta do subtítulo deste texto, os casamentos platônicos entre amigos podem até não ser uma forma nova, mas certamente constituem uma forma de expressão de família. __________ 1 From Best Friends to Platonic Spouses. Disponível aqui. Acesso em: 1 out. 2021.   2 Gustavo Tepedino; Ana Carolina Brochado Teixeira. Fundamentos do direito civil, vol. 6: direito de família. 2. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2021, cap. 2.
Na coluna anterior (parte I),  analisamos o nascimento e o desenvolvimento do júri civil na jurisdição federal e nas jurisdições dos estados norte-americanos, bem como os fundamentos que alicerçam uma das mais cultuadas e controversas instituições dos Estados Unidos. Nesta segunda parte, continuaremos a explorar o tema sob a perspectiva de seu funcionamento, analisando o procedimento do júri civil a partir dos seus critérios de seleção, justiça das decisões e os impactos gerados no âmbito da responsabilidade civil, tendo por base a obra referencial Punitive Damages: how juries decide.1 Em estudo intitulado The State-of-the-States Survey of Jury Improvement Efforts, foram levantados dados qualiquantitativos a respeito do funcionamento dos júris no sistema de justiça norte-americano, obtidos a partir de questionários respondidos por juízes, advogados, promotores e funcionários dos tribunais federais e estaduais de todos os estados americanos no período de 2002 a 20062. Referido estudo nos ajuda a melhor compreender a operacionalização desse instituto. A função de jurado é obrigatória e a forma de convocação varia de estado para estado. As listas amplas de jurados (master jury list) podem vir do cadastro eleitoral, do registro de motoristas ou de ambas as listas. Dos 50 estados dos EUA, em 21 deles se permite a inclusão de listas adicionais, vindas do rol de contribuintes, de proprietários de imóveis ou de desempregados3. De acordo com os "Princípios para Jurados e Julgamento por Júri", publicado pela American Bar Association, o critério para a seleção de jurados é negativo. Só há vedação à função de jurado aos menores de 18 anos, aos que não sejam cidadãos americanos, aos que não residam na jurisdição em que foram convocados, aos que não compreendam o idioma inglês, aos que tenham sido condenados na esfera penal ou estejam cumprindo prisão domiciliar ou sob supervisão de algum programa do tribunal4. Há um afunilamento da lista ampla por meio de questionários enviados por correio a todos os jurados em potencial. Uma vez respondidos e devolvidos, os nomes considerados aptos e disponíveis para exercer a função formarão o jury yield, isto é, o corpo de jurados prontos para serem convocados5. A última etapa da seleção de jurados se dá por meio de um procedimento chamado Voir Dire (do francês: Ver - Dizer), que acontece na etapa preliminar do julgamento, cujo objetivo principal é identificar, por meio de perguntas diretas, jurados que não estejam em condições de exercer sua função de forma justa e imparcial, dessa forma retirando-os do grupo final de jurados que julgará a causa6. Referida prática varia de estado para estado quanto a quem pode fazer essas perguntas aos jurados durante o Voir Dire. Dos dados empíricos coletados entre 2002 e 2006, identificou-se que é mais comum os advogados fazerem mais perguntas do que os juízes nos tribunais estaduais, ao passo em que a situação se inverte na competência federal, com juízes fazendo mais perguntas do que os advogados.7 No geral, as perguntas são feitas publicamente, isto é, dirigidas a todos os jurados convocados para o dia do julgamento, os quais respondem levantando a mão em caso afirmativo. Juízes e advogados revelaram que em alguns casos foi dado aos jurados a oportunidade de responder às perguntas individualmente, ante a preocupações quanto à sua privacidade8. Segundo Priest, no julgamento de ações que envolvam punitive damages, os jurados podem ser "testados" com perguntas do tipo: "Você acha que poderia condenar substancialmente o réu se a acusação conseguir demonstrar que ele... [cita um ato ilícito]?".9 Devido à celeuma que envolve os punitive damages, muitos tribunais permitem que o Voir Dire inclua perguntas abertas sobre políticas públicas e generalidades, tais como: "Você apoia a reforma em matéria de delitos civis?"; "Você acha que há muita litigância na sociedade"; "Você é favorável a uma limitação nos punitive damages?"10 A função principal dessas perguntas, ainda segundo Priest, é investigar algum comportamento contraditório ao caso ou às partes envolvidas, que justifique uma eventual dispensa do jurado11. Outro dado que a pesquisa revelou foi a mudança da postura dos jurados. Se antes eram considerados como receptáculos passivos de provas e argumentos que só ao final do procedimento se manifestariam, agora pode-se falar num papel mais reativo.12 Nos tribunais federais e estaduais, a prática mais usual é permitir aos jurados tomar notas durante o julgamento e receber ao menos uma cópia das instruções para o julgamento.13 Percebe-se que a referida mudança de postura dos jurados acompanhou, de certa forma, as alterações no julgamento de casos envolvendo punitive damages nas últimas décadas. E, por mais que se tente criar barreiras a possíveis vieses por parte dos jurados por meio do Voir Dire, ainda assim pode haver distorções na avaliação de provas e no veredito. As decisões proferidas pelo júri impactam diretamente nos efeitos que circundam a responsabilidade civil14. Conforme já referimos em colunas anteriores, no sistema norte-americano os estados possuem autonomia para determinar o cabimento e os limites dos punitive damages. Normalmente, a análise do cabimento e da determinação do quantum dos punitive damages é afetada a um júri popular. Dando continuidade ao procedimento de instauração do júri, após as declarações de abertura, passa-se à instrução do processo, pela qual se busca determinar a responsabilidade (liability) do réu, isto é, se ele deve ser legalmente responsabilizado pelo dano sofrido pelo autor. Se o júri entender que o réu é responsável (liable), então, num segundo momento, os jurados deverão determinar a extensão dos compensatory damages necessários para compensar adequadamente o autor. É importante observar que os jurados só passarão à avaliação dos punitive damages se houver a atribuição de algum valor a título de compensatory damages15. Dessa forma, a primeira prova (geralmente material) a ser apresentada pelo autor deve ser necessariamente aquela destinada a comprovar a liability do réu relacionada ao evento danoso. Após a apresentação dessa prova, o autor presta testemunho na frente do juiz e dos jurados, descrevendo de forma pormenorizada as perdas e os danos que sofreu, com a finalidade de se fixar a necessidade de condenação por compensatory damages, concebidos para reparar o dano em sua exata e integral medida16. Assim sendo, o autor prestará contas de eventuais despesas que teve (como recibos de hospital, comprovantes de pagamento etc) resultantes do dano sofrido. É possível também apresentar outros elementos que componham os compensatory damages, cuja base não é tão certa e que requererá dos jurados uma ponderação maior. É o que acontece quando o autor, por exemplo, arrola um médico perito para abordar os custos que terá futuramente para concluir o tratamento. Nesse caso, trata-se sobretudo de estimar um valor aproximado. Nos casos em que os danos sofridos são de natureza grave, é permitido que o autor requeira os pain-and-suffering damages (danos por dor e sofrimento, em tradução livre)17. O próximo passo é a defesa do réu, que em geral versa sobre a exoneração completa da responsabilização legal, tendo em vista a existência de outras causas ou fatores que tenham contribuído para o dano, ou ainda a inexistência de alternativas práticas que possibilitariam ao réu prevenir o acontecimento18. É importante destacar que antes de os jurados concederem quaisquer awards, eles têm que tomar uma decisão inicial no sentido de determinar se os punitive damages seriam apropriados ao caso concreto. Os punitive damages não podem ser concedidos simplesmente porque o réu foi negligente, isto é, por falhar em seguir os padrões adequados de cuidado. O autor da ação deverá demonstrar, dentre outros requisitos: i) a existência do dano em si; ii) que o réu prejudicou intencionalmente o autor da ação; e iii) prejudicou imprudentemente o reclamante, ao se envolver em ações com o conhecimento de que o dano ocorreria, ou com um desvio grosseiro dos padrões comuns de cuidado.19 Em que pesem todas as ressalvas acerca da aplicação dos punitive damages nas últimas décadas, os Estados Unidos experimentaram um aumento substancial na incidência e na magnitude dessas condenações por júris civis. Dentre as mais conhecidas condenações por punitive damages, destacam-se: Engle v. RJ Reynolds Tobacco Co. et al20 (condenação de US$ 144.8 bilhões na class action movida contra várias empresas de tabaco); Anderson v. General Motors Corp.21 (condenação de US$ 4.8 bilhões), e Carlisle v. Whirlpool Financial National Bank et al.22 (condenação de US$ 580 milhões). Conforme afirma Sustein et. al., referidos vereditos são notáveis por uma série de razões. A título de exemplo, no caso de responsabilização da indústria tabagista pelos danos causados a consumidores, o valor da condenação (US$ 144.8 bilhões) equivale a 2,4 vezes o investimento federal em educação, 52% dos gastos em defesa nacional e 80% do que o governo arrecada anualmente em imposto de renda de pessoas jurídicas. Até duas décadas atrás era inusual vereditos de júris civis fixarem os punitive damages em valores superiores a US$ 1 milhão23. Como é óbvio, a magnitude das indenizações por punitive damages varia substancialmente a depender dos jurados. Avaliar o quantum de punição pecuniária atribuída é tarefa difícil, pois nem sempre os julgamentos são realizados por via de critérios objetivos. Ainda assim, é possível identificar uma variação nos julgamentos envolvendo casos muito similares. As ações envolvendo a empresa automotiva BMW são bastante ilustrativos a esse respeito. Em 1996, ao julgarem a BMW por práticas lesivas aos consumidores pela comercialização de carros avariados na pintura como se fossem novos (BMW of North America v. Gore24), os jurados condenaram a empresa no valor de US$ 4 milhões a título de punitive damages, valor esse posteriormente reduzido para US$ 2 milhões pela Suprema Corte do Alabama e anulado na apelação dirigida à Suprema Corte dos Estados Unidos. Um outro caso idêntico ao BMW v. Gore foi proposto na mesma comarca, no mesmo Estado, tendo presidido o júri popular o mesmo juiz. Contudo, os jurados desse caso entenderam de maneira diversa, condenando a BMW a ressarcir o demandante apenas a título de compensatory damages e inocentando a empresa quanto aos punitive damages. Há muitos outros casos análogos25. De acordo com Priest, a questão não versa sobre o fato de que diferentes jurados obviamente possam chegar a conclusões diferentes a respeito de casos similares. O problema é que punições discrepantes para o mesmo ato (ou punição em alguns e nenhuma punição em outros) ou punições desproporcionais à ilicitude do ato, são práticas inconsistentes com o compromisso da sociedade em usar o Estado com razão e consistência (reason and consistency) para julgar delitos civis26. As instruções apresentadas aos jurados para a determinação dos punitive damages são, em geral, vagas e aplicam termos que são em larga medida indefinidos. Como consequência da vagueza e da indefinição das instruções, observa-se que os jurados aplicam métricas distintas para fixar as condenações. É interessante notar que desde meados do século passado, a reforma do sistema de justiça criminal americano tem tentado fixar as condenações de forma cada vez mais previsível e racional, no sentido de definir um quantum de punição para os diversos crimes, com base na gravidade relativa ou hediondez do crime27. A introdução de diretrizes para fixar a condenação nos tribunais federais é o esforço mais proeminente nesse sentido, reduzindo ao mínimo a gama de discricionariedade judicial disponível com relação à punição. O regime de indenização por punitive damages, por outro lado, permanece comprometido em permitir ao júri uma discricionariedade ilimitada para atribuir qualquer valor, sujeito apenas à revisão judicial subsequente28. De uma maneira geral, o papel desempenhado pelo júri civil no sistema norte-americano tem sido alvo de inúmeras críticas, dentre as quais: i) os valores arbitrados para atender a função de desestímulo muitas vezes acabam por inviabilizar a atividade empresarialmente desenvolvida; ii) falta aptidão técnico-jurídica para os jurados exercerem o papel de arbitramento das punitive damages; iii) os jurados são suscetíveis à manipulação; iv) diferentes jurados geralmente chegam a conclusões diferentes, fixando valores aleatoriamente. Por essas e outras razões, os jurados não são sempre capazes de operar como "gestores dos riscos sociais" (managers of social risks) ou pacificadores dos conflitos sociais.29 Conforme Solomon, a ideia de que o júri estaria apto para definir os padrões gerais de comportamento ideal e, a partir disso, identificar e aplicar as normas sociais, fundamenta-se em algumas premissas, dentre as quais: (1) que os jurados são bons em identificar normas sociais em geral e, particularmente, em julgar o tipo de "razoabilidade" que estaria em questão a depender do ato ilícito; (2) que uma abordagem da "totalidade das circunstâncias" tem mais probabilidade de obter o resultado correto na maioria dos casos, em comparação com uma abordagem mais semelhante a uma regra que olha apenas para certos fatores; (3) o fato de que os jurados apreciam apenas um caso concreto os torna juízes particularmente desejáveis; e (4) que os membros do júri se combinam para criar a "sabedoria das multidões", proferindo julgamentos colegiados mais aperfeiçoados.30 Nesse panorama, de acordo com Sunstein et. al, os jurados enfrentam muitos problemas ao tentar gerar um sistema sensato de punitive damages. Não porque as pessoas sejam irracionais, desatentas ou estúpidas, mas porque as tarefas envolvidas são extremamente complexas. Mesmo o mais sensato e informado dos jurados provavelmente terá problemas, simplesmente por causa das características previsíveis da cognição humana. Uma consequência importante é que muitos awards acabam sendo arbitrários e outros, por sua vez, são excessivamente baixos.31 Para equalizar essas tensões, propõem referidos autores algumas possíveis soluções. Em primeiro lugar, os magistrados deveriam ter um papel mais firme na supervisão dos awards determinados pelos jurados, mensurando a decisão do júri em relação a outros awards em casos semelhantes, de modo a garantir uma decisão à prova de jurados "fora da curva" - a fonte mais séria de inconsistência e aleatoriedade, com vistas a trazer racionalidade ao sistema e diminuir o nível geral de imprevisibilidade.32 Em segundo lugar, dever-se-ia considerar seriamente o afastamento do júri em direção a um sistema de multas civis, talvez por meio de uma tabela de danos do tipo que tem sido usado em muitas áreas do direito, incluindo indenizações trabalhistas e violações ambientais.33 É fato que o caso BMW v. Gore ajudou a estimular uma série de atividades nas legislaturas federal e estadual, com vistas a debater os contornos da atuação do júri. Vários estados deram passos significativos nessa direção, criando limites para as sentenças, separando a sentença de responsabilidade da sentença punitiva e fortalecendo a revisão judicial das práticas do júri.34 Ademais, "the Supreme Court has been sympathetic to this concern about jury power, granting certiorari and then issuing decisions questioning the jury's normative power and authority".35 No entanto, em que pesem todas as críticas formuladas ao papel desenvolvido pelo júri popular nas ações indenizatórias, nunca é o bastante relembrar que a responsabilidade civil envolve um dever "de todo o mundo a todo o mundo", incentivando um padrão geral de cuidado razoável. Nesse sentido, o júri civil ainda se apresenta como poderoso e instigante instrumento para decidir, livre das visões normativas que o sistema judicial tradicional deve observar quanto aos padrões de conduta apropriados, continuando a exercer um poderoso papel de guarantor of fairness, a bulwark against tyranny, and a source os civic values.36 __________ 1 SUNSTEIN, Cass R.; HASTIE Reid, PAYNE, W. John, SCHKADE, David A. e VICUSI, W. Kip. Punitive Damages: how juries decide. With an Introduction by George L. Priest. Chicago: The University of Chicago Press, 2002. 2 MIZE, Gregory E. HANNAFORD-AGOR, Paula J.D. WATERS, Nicole L. The State-of-the-States Survey of Jury Improvement Efforts: executive summary. National Center for State Courts; State Justice Institute (online). April 2007. Disponível aqui. Acesso em 13 ago. 2021. 3 Ibidem, pp. 4-5. 4 American Bar Association. Principles for Juries and Jury Trials (revised 2016). Disponível aqui. Acesso em 13 ago. 2021. 5 MIZE, Gregory E. HANNAFORD-AGOR, Paula J.D. WATERS, Nicole L. The State-of-the-States Survey of Jury Improvement Efforts: executive summary. National Center for State Courts; State Justice Institute (online). April 2007. Disponível aqui. Acesso em 13 ago. 2021, p. 5. 6 Ibidem, p. 6. 7 A pesquisa revelou outros cenários possíveis, mas menos prevalentes: a) apenas o juiz faz as perguntas; b) juiz e advogados perguntam igualmente; c) apenas os advogados perguntam. 8 Idem. 9 SUNSTEIN, Cass et al., Punitive Damages: how juries decide. With an Introduction by George L. Priest. Chicago: The University of Chicago Press, 2002, p. 7. 10 Idem. 11 Idem. 12 Como visto anteriormente, o número original de 12 jurados não é mais obrigatório para se instaurar uma sessão de júri civil, tendo a Suprema Corte reconhecido a constitucionalidade dos conselhos de sentença com 6 integrantes desde o precedente Colgrove v. Battin (1973). Disponível aqui. Acesso em 17 ago. 2021. Quanto ao veredito, nos júris civis federais deverá haver unanimidade, por disposição expressa da Rule 48(b) das Federal Rules of Civil Procedure; na esfera estadual, o quórum para o veredito oscila entre a votação unânime ou a maioria de três quartos, como na Califórnia. Cf. art. I, § 16, da Constituição da Califórnia. Disponível aqui. Acesso em 18 set. 2021. 13 MIZE, Gregory E. HANNAFORD-AGOR, Paula J.D. WATERS, Nicole L. The State-of-the-States Survey of Jury Improvement Efforts: executive summary. National Center for State Courts; State Justice Institute (online). April 2007. p. 7 Disponível aqui. Acesso em 18 ago. 2021. 14 Como afirma Michael D. Green, "the jury, surely the most controversial procedural device in American law, has deeply influenced our tort law". The impact of the civil jury on American Tort Law. Pepperdine Law Review, v.38, 2010, p.106.  15 SUNSTEIN, CASS R., et al., Punitive Damages: how juries decide. With an introduction by George L. Priest. Chicago: The University of Chicago Press, 2002, p. 9. 16 Idem. 17 Idem. 18 Idem. 19 Ibid., p. 75. 20 Engle v. RJ Reynolds Tobacco Co., 122 F. Supp. 2d 1355 (S.D. Fla. 2000). Disponível aqui. 21 Anderson v. General Motors Corp. BC-116926 (Sup. Ct., Los Angeles, California, 1999). Disponível em: https://caselaw.findlaw.com/ca-court-of-appeal/1842647.html. Nas entrevistas posteriores realizadas com os jurados da Califórnia que condenaram a General Motors no valor de US$ 4,8 bi pelo defeito no projeto do tanque de combustível do veículo GM Malibu, ficou implícito que os jurados, para fixar esse montante, usaram como parâmetro o valor do orçamento anual de publicidade da empresa. 22 Carlisle, et al. v. Whirlpool Financial National Bank, et al. Disponível aqui. 23 SUNSTEIN, CASS R., et. al., Punitive Damages: how juries decide. With an introduction by George L. Priest. Chicago: The University of Chicago Press, 2002, p. 1. 24 BMW of North America, Inc. v. Gore, 517 U.S. 559 (1996). Disponível aqui. 25 SUNSTEIN et al. Op. cit. pp. 2-3. 26 Ibidem p. 3. 27 Ibidem, p. 4 28 Idem. 29 SUNSTEIN, CASS R., et al. Punitive Damages: how juries decide. With an introduction by George L. Priest. Chicago: The University of Chicago Press, 2002, p. vii-xi. 30 SOLOMON, Jason M. Juries. Social Norms, and civil justice. Alabama Law Review, Vol. 65:5:1125, 2014, p. 1129. 31 SUNSTEIN, CASS R., et al. Punitive Damages: how juries decide. With an introduction by George L. Priest. Chicago: The University of Chicago Press, 2002, p. 242. 32 Idem. 33 Idem. 34 Ibidem p. 244. 35 SOLOMON, Jason M. Juries. Social Norms, and civil justice. Alabama Law Review, Vol. 65:5:1125, 2014, p. 1128. 36 GREEN, Michael D. The Impact of the Civil Jury on American Tort Law, Pepperdine Law Review, Vol. 38, 2010, p.21.
Em minha última participação nesta prestigiosa publicação, em artigo intitulado "Responsabilidade Civil Empresarial por Violações de Direitos Humanos nas Cadeias Globais de Suprimentos" escrevi sobre a recente evolução jurisprudencial na Suprema Corte da Inglaterra, que inovou positivamente no campo das demandas de responsabilidade civil contra as "holdings" em relação às atividades de suas subsidiárias no exterior. A questão principal concerne sobre quando caberá uma lide diretamente contra a empresa controladora por violações de direitos humanos no exterior. Na coluna de hoje centramos a atenção na recentíssima abordagem norte-americana da temática, cujas origens se encontram no Alien Tort Statute, também conhecida como Alien Tort Claims Act (ATCA), seção do Código dos Estados Unidos que concede jurisdição aos tribunais federais sobre pretensões movidas por estrangeiros por atos ilícitos cometidos em violação do direito internacional. Foi introduzida em 1789, sendo uma das leis federais mais antigas ainda em vigor nos EUA. O ATS foi raramente citado por quase dois séculos após sua promulgação. Contudo, desde 1980, os tribunais interpretam o ATS de modo a permitir que estrangeiros busquem remédios nos tribunais dos EUA para violações de direitos humanos cometidas por corporações outras nações, desde que haja uma conexão suficiente com os Estados Unidos. Em 17 de junho de 2021, no caso Nestlé USA, Inc. v. Doe, 593 U. S., a Suprema Corte dos Estados Unidos estabeleceu as bases sobre as quais os demandantes podem buscar reparação nos tribunais dos Estados Unidos por abusos de direitos humanos ocorridos no exterior. Por uma votação de 8-1, o Tribunal considerou que para a aplicação nos EUA do Alien Tort Statute - 28 U.S.C. § 1350 -, os reclamantes devem demonstrar uma conduta doméstica e não apenas uma atividade corporativa geral. A luz da redação do Alien Tort Statute (ATS) "os tribunais distritais terão jurisdição original para qualquer ação civil movida por um estrangeiro apenas por ato ilícito, cometido em violação da lei das nações ou de um tratado dos Estados Unidos" (25 de junho de 1948, cap. 646, 62 Estat. 934.). O caso foi apresentado em 2010 no U.S. District Court, Central District of California, por seis indivíduos do Mali que alegam que quando crianças foram sequestrados e traficados para a Costa do Marfim como escravos para a produção de cacau. As empresas americanas Nestlé USA, Inc. e Cargill, Inc, não possuem ou operam fazendas de cacau na Costa do Marfim, mas adquirem cacau de fazendas locais e fornecem a essas fazendas recursos técnicos e financeiros. Os demandantes alegaram que esse arranjo auxiliou e incentivou a escravidão infantil, na medida em que os demandados "sabiam ou deveriam saber" que as fazendas exploravam crianças escravizadas, porém continuavam a fornecer-lhes recursos.  Ou sejam detinham influência econômica sobre as fazendas, mas não a exerceram para eliminar a escravidão infantil. Embora a distribuição de recursos e as lesões tenham ocorrido fora dos Estados Unidos, os demandantes postularam em um tribunal federal norte-americano, tendo em vista que os demandados supostamente tomaram todas as decisões operacionais importantes dentro dos Estados Unidos. Todavia, considerando que as lesões sofridas pelos demandantes ocorreram no exterior e a única conduta doméstica alegada pelos entrevistados foi a atividade corporativa geral, o Tribunal Distrital rejeitou a pretensão como uma aplicação extraterritorial inadmissível do ATS sob o precedente da SCOTUS, Kiobel v. Royal Dutch Petroleum Co., 569 U.S. 108 (2013), oportunidade em que se deliberou que "a mera presença corporativa" nos Estados Unidos não se afigura conduta doméstica suficiente.1 Nada obstante, na apelação, o Nono Circuito reverteu a decisão do Tribunal Distrital, concluindo que tinha jurisdição para revisar o caso na medida em que a conduta dos demandados era relevante para o foco do ATS, sendo que outras cortes federais já haviam admitido processos de ATS contra corporações dos EUA. Em razão de um "writ of certiorari" o processo chegou a Suprema Corte para verificação de dois aspectos: se houve alegação suficiente de fatos de conduta interna para apoiar o recurso ao ATS e, se de forma geral, as corporações dos Estados Unidos poderiam ser responsabilizadas civilmente de acordo com o ATS. O SCOTUS reafirmou a decisão de que o ATS não se aplica extraterritorialmente, presunção que não será superada mesmo quando uma empresa dos EUA foi acusada de ter supervisionado suas operações estrangeiras de sua sede, se os atos ilícitos foram cometidos no exterior. "Decisões de financiamento" tomadas nos Estados Unidos em relação à estabelecimentos no exterior são insuficientes para converter o cenário em uma demanda interna. Escrevendo pela maioria, o juiz Clarence Thomas explicou que os estatutos dos EUA só se aplicam à extraterritorialidade onde houver uma indicação clara e afirmativa de que a conduta relevante para a adoção do Alien Tort Statute ocorreu nos Estados Unidos. Ademais, A ATS concede aos tribunais federais jurisdição para ouvir reclamações apresentadas por um estrangeiro apenas por um ilícito civil cometido em violação da lei das nações ou de um tratado dos Estados Unidos.  Quer dizer, em princípio, retomou-se o caso Sosa v. Alvarez-Machain, 542 US 692 (2004), no qual o Tribunal considerou que o ATS era um estatuto jurisdicional que não criava nenhuma nova causa de ação além das reivindicações envolvendo três delitos principais que eram comumente aceitos como violações do direito internacional quando o ATS foi decretado no século XVIII: (1) ofensas contra embaixadores; (2) violação de condutas seguras e (3) pirataria. Os tribunais só poderiam exercer discrição judicial para reconhecer uma nova causa de ação, que não seja para essas três originárias, em circunstâncias restritas. Segundo Thomas, consoante a estrutura de duas etapas (two-step framework) da Suprema Corte para analisar questões de extraterritorialidade, primeiramente presume-se que uma lei se aplica apenas internamente e indaga-se se o caso oferece uma indicação clara e afirmativa que refuta a presunção. Tanto em Nestlé como no precedente Kiobel, o ATS não refuta a presunção de aplicação interna. Não se admite a criação de uma "cause of action" pelo judiciário, sob pena de invasão de atribuição do parlamento. Adentrando na segunda etapa, quando a lei não se aplica extraterritorialmente, os demandantes devem estabelecer que a conduta relevante para o enfoque do estatuto tenha ocorrido nos Estados Unidos, mesmo que outra conduta tenha se verificado no exterior.  Vale dizer, reiterando-se o que havia sido decidido em RJR Nabisco, Inc. v. European Cmty., 136 S. Ct. 2090, 2101 (2016), considerou-se que o ATS só se aplica nos Estados Unidos quando "the claims touch and concern the territory of the United States with sufficient force to displace the presumption". Todavia, quase todas as condutas que os demandantes afirmam ter auxiliado e estimulado o trabalho forçado - fornecendo treinamento, fertilizantes, ferramentas e dinheiro para fazendas no exterior - ocorreram na Costa do Marfim. Malgrado tenham alegado os demandantes que decisões operacionais importantes foram tomadas nos Estados Unidos, o Tribunal as considerou como alegações de atividade corporativa geral - atividade comum à maioria das empresas - sem uma conexão suficiente ao ilícito alegado. Como o Tribunal colocou: "The presumption against extraterritorial application would be a craven watchdog indeed if it retreated to its kennel whenever some domestic activity is involved in the case". ("A presunção contra a aplicação extraterritorial seria de fato um cão de guarda covarde se recuasse para seu canil sempre que alguma atividade doméstica estivesse envolvida no caso"). Assim, a SCOTUS culminou por reverter a decisão do Nono Circuito, no sentido que os demandantes haviam suficientemente defendido uma causa de ação. Uma observação: A Suprema Corte não definiu o significado dos conceitos indeterminados "mera presença corporativa" ou "atividade corporativa geral". O Tribunal não se aprofundou nos meandros da relação matriz-subsidiária (incluindo como eles são considerados nas áreas sobrepostas de direito em outras jurisdições), e o que o escopo de tais "decisões operacionais" poderia significar para diferenciar entre uma atividade corporativa geral em oposição a um limite superior de atividade. O Tribunal também não discutiu o que é a "devida diligência" ou o dever legal de cuidado da controladora corporativa em relação à subsidiária quanto a tornar a conduta comissiva ou omissiva da subsidiária diretamente imputável à controladora ou, pelo menos, torna-la negligente por não cumprir suas próprias responsabilidades legais independentes sob sua devida diligência para com a subsidiária e suas partes interessadas. O Tribunal também focou exclusivamente sua lente interpretativa para reivindicações de ATS nos tribunais dos Estados Unidos, sem considerar a trajetória mais ampla da interpretação das responsabilidades de devida diligência da empresa-mãe sobre subsidiárias em jurisdições estrangeiras, como o Reino Unido em casos históricos de Vedanta v. Lungowe e como Okpabi v. Royal Dutch Shell decidido pela Suprema Corte do Reino Unido, em litígios de direitos humanos. Contudo, e tão importante quanto: a Suprema Corte não resolveu a segunda questão que lhe foi posta, qual seja, se a ATS isenta as corporações de pretensões judiciais de ATS. Neste particular, 5 dos 8 ministros que conduziram o ponto de vista majoritário consideraram que, a priori, as corporações não são imunes a processos nos termos da ATS. O juiz Gorsuch pontuou que o ATS nunca fez distinção entre demandados pessoas naturais e jurídicas e que as ações por atos ilícitos contra corporações dos EUA e outras entidades legais, como navios, há muito são reconhecidas nos Estados Unidos. Da mesma forma, a juíza Sotomayor afirmou que não há razão para isolar as corporações nacionais da responsabilidade por violações da lei simplesmente porque são pessoas jurídicas e não naturais. Se, por um lado, o caso Nestlé, indica que a Suprema Corte estreitou o âmbito jurisdicional do ATS e, que em princípio, a América corporativa pode se tranquilizar quanto à impossibilidade de indiscriminada sujeição à responsabilidade por danos puramente extraterritoriais, não se pode negar que permanece aberta a via para que empresas americanas sejam eventualmente responsabilizadas civilmente nos EUA por reivindicações de ATS com fundamento mais substancial. Embora as opiniões desses cinco juízes não sejam vinculativas, acabam por revelar a disposição da Corte sobre a questão dois. O texto e o propósito do ATS, bem como a longa e consistente história de responsabilidade corporativa em atos ilícitos, demonstram que, no mínimo, a SCOTUS não encerrou categoricamente ações judiciais de ATS contra corporações dos Estados Unidos e que pretensões de responsabilidade civil por violações extraterritoriais ainda podem ser apresentadas contra empresas.2 Apresar desta "brecha jurídica", o mais preocupante no caso Nestlé é que uma corporação dos EUA pode evitar a responsabilidade de ATS, mesmo se tiver conhecimento real de que seus vínculos offshore violam o direito internacional. Contanto que a conduta doméstica da empresa norte-americana em relação à violação consista em não mais do que atividade corporativa geral, a empresa norte-americana provavelmente estará imunizada de demandas de ATS. Este padrão "pós-Nestlé" é temerário, porque reduz incentivos de mitigação de danos por parte das corporações dos EUA cujas atividades internacionais violam direitos humanos, envolvendo abusos trabalhistas (no limite da escravidão), danos ambientais3 e crimes de guerra. Doravante, essas empresas podem reconhecer abertamente essas violações, nada fazer para impedi-las e ainda evitar a responsabilidade ATS sob a nebulosa alegação de que a conduta corporativa nos Estados Unidos não se deu fora do "curso normal dos negócios", definição que permanece aberta a futuras interpretações judiciais.4 __________ 1 No artigo intitulado, The Supreme Court and the Alien Tort Statute: Kiobel v. Royal Dutch Petroleum Co, Ingrid Wuerth critica a decisão de Kiobel: "The ATS in general and Kiobel in particular have engendered much hand-wringing, some of it shrill. Those who favor the decision lament the lower court opinions and law professors who ignored the presumption against extraterritoriality for so long, thereby permitting this unique and pernicious form of American exceptionalism. Those opposed to the decision lament the corporate and individual human rights abuses that may now go entirely unaddressed. And then there is the seemingly-unending lack of certainty about the statute, which now focuses on detailed parsing of the opinions in Kiobel, especially those of Justice Kennedy and the majority". In, Vanderbilt University Law School Public Law and Legal TheoryWorking Paper Number 13-26. 2 Bem percebe John H. Knox no artigo: The Ruggie Rules: Applying Human Rights Law to Corporations que: "At a minimum, these duties require states to avoid interfering with human rights themselves. However, that is not all that human rights law requires. It has long been clear that human rights may be abused by non-state actors. Slavery, terrorism, and violence against women are among the countless historical and modern examples. International law does not ignore the threats that private actors pose to the enjoyment of human rights but, with very few exceptions, it does not directly impose duties on them to refrain from such abuses. Instead, it requires each state not only to respect human rights itself, but also to take steps to protect rights from interference by non-state actors. States are required not just to refrain from slavery, for instance, but also to bring about its "complete abolition" "throughout their jurisdiction". The UN Guiding Principles on Business and Human Rights (Radu Mares ed., 2012), Wake Forest Univ. Legal Studies Paper No. 1916664, Available at SSRN. Disponível aqui. 3 Eric Posner defende a sua extensão à grave questão climática em Climate Change and International Human Rights Litigation: A Critical Appraisal: "ATS litigation has been distinctive because it has produced awards and even payment of damages (in settlements); so today it is the most prominent and effective means for litigating international human rights. If a plausible claim can be made that the emission of greenhouse gases violates human rights, and that these human rights are embodied in treaty or customary international law, then American courts may award damages to victims". In Chicago, John M. Olin Law & Economics Working paper n. 329. 4 Tal como conclui Doori C. Song em U.S. Corporate Liability Under the Alien Tort Statute After Jesner v. Arab Bank, PLC "Furthermore, domestic corporate liability under the ATS would incentivize U.S. corporations to undertake better due diligence efforts to prevent the occurrence of human rights violations. To avoid liability, corporations would identify risks in their supply chains and work closer with suppliers to minimize adverse human rights impacts.To promote transparency and good faith, corporations would also be encouraged to conduct compliance audits and disclose their findings.270 Furthermore, domestic corporations subject to ATS suits would have an incentive to withdraw from host states and business relationships that cause, create, or are directly linked to adverse human rights impacts.271 Holding U.S. corporations accountable under the ATS would result in greater overall due diligence efforts". Disponível aqui.
Introdução: A Memória do Programa de Yale em Direito e Modernização Parte relevante do debate sobre a formação do Direito Privado na Common Law abrange as discussões sobre a educação jurídica e o desenvolvimento de certas escolas de pensamento na academia jurídica estadunidense e britânica. Nesse contexto, os professores eméritos David Trubek (Universidade de Wisconsin) e Richard Abel (Universidade da Califórnia em Los Angeles) tiveram a iniciativa de promover uma mesa redonda na Conferência da Law and Society Association (LSA) no dia 29 de maio de 2021, em que se reuniram com os professores Duncan Kennedy (Universidade de Harvard), Boaventura de Sousa Santos (Universidade de Coimbra), Bryant Garth (Universidade da Califórnia em Irvine) e Afroditi Giovanopoulou (Doutora em Direito pela Universidade de Harvard e Doutoranda em História pela Universidade de Columbia). O tema da mesa redonda era a memória e reflexão sobre o Programa de Yale em Direito e Modernização, iniciado em 1969, justamente sob a liderança de David Trubek e Richard Abel, e que contou com a participação de Duncan Kennedy e Boaventura de Sousa Santos então como estudantes, sendo que Bryant Garth e Afroditi Giovanopoulou fizeram o papel de observadores externos. Os trabalhos apresentados na conferência LSA foram publicados no final do mês passado pela Revista Estudos Institucionais e são uma fonte valiosa de memória sobre a formação de algumas escolas importantes para o pensamento jurídico contemporâneo, como o 'Direito e Desenvolvimento' (Law and Development) e os 'Estudos Jurídicos Críticos' (Critical Legal Studies). Além do registro histórico, tal programa teve importante influência para o direito brasileiro. Revisitando o Programa de Yale em Direito e Modernização: O panorama geral Em seu texto de abertura para o simpósio intitulado 'The Yale Program in Law and Modernization: From the Cold War to Comparative Legal Sociology and Critical Legal Studies', David Trubek e Richard Abel relembram da obtenção de um financiamento de um milhão de dólares em 1969 para que Yale proporcionasse assistência jurídica, treinamento, pesquisas e que disseminasse conhecimento jurídico em apoio a projetos de modernização.1 Tais recursos obtidos junto à Agência Estadunidense de Desenvolvimento Internacional (USAID) foram o ponto de partida para desenvolvimento do programa como parte da estratégia dos Estados Unidos no âmbito da guerra fria.2 David Trubek tinha trabalhado como consultor jurídico da USAID no Brasil e tinha desenvolvido em 1966 um projeto-piloto experimental para modernizar a educação jurídica, a profissão jurídica e as instituições jurídicas.3 O Centro de Estudos e Pesquisas no Ensino do Direito (CEPED) foi uma iniciativa pioneira de treinamento de advogados brasileiros através de um programa de pós-graduação montado na Fundação Getúlio Vargas (FGV), que foi responsável pela formação profissional de centenas de profissionais brasileiros e teve efeito multiplicador, na medida em que inúmeros ex-alunos assumiram posições de relevo e reproduziram como juristas, professores e noutras atividades a perspectiva desenvolvida durante o CEPED.4 Importante, a decisão de chamar o programa de 'Direito e Modernização' ao invés de 'Direito e Desenvolvimento' foi consciente, na medida em que seus líderes consideravam que o escopo de 'desenvolvimento' seria naquela época mais limitado ao desenvolvimento econômico e a terminologia 'modernização' possuía um caráter mais abrangente, incluindo o desenvolvimento político, econômico e social.5 Com um enorme volume de recursos - equivalente a cerca de oito milhões de dólares em valores atuais - o Programa acrescentou uma série de cursos inovadores ao currículo acadêmico de Yale e permitiu que um número de professores com formação interdisciplinar fosse convidado para lecionar aos estudantes. O curso básico do programa era inicialmente denominado de 'Introdução às Teorias do Direito na Sociedade' e viria a ser totalmente remodelado como sendo um curso de 'Sociologia Jurídica Comparada'. Tal remodelagem do curso foi parte de um esforço de reconceituação da própria área e do próprio programa, no sentido de se estabelecer a distinção entre o direito moderno e o direito tradicional, bem como as relações entre instituições jurídicas e mudanças sociais, econômicas e políticas no terceiro mundo.6 Em termos de produção acadêmica decorrente do programa, sobressaem-se três trabalhos publicados naquele período e que se tornaram artigos acadêmicos de enorme impacto, tendo sido citados múltiplas vezes, a saber: Scholars in Self-Estrangement, de David Trubek e Marc Galanter;7 Why the Haves Come Out Ahead, de Marc Galanter;8 The Law of the Oppressed, de Boaventura de Sousa Santos.9 Com o recrudescimento dos protestos contra a Guerra do Vietnã e a radicalização do movimento estudantil, o próprio programa também serviu como um espaço privilegiado para a emergência da tradição crítica estadunidense, na medida em que eram discutidos temas de teoria social e existia a abertura para a discussão de teoria crítica nos Seminários de Direito e Modernização.10 O Programa de Yale em Direito e Modernização se tornaria central para o desenvolvimento posterior do movimento de 'Estudos Jurídicos Críticos' (Critical Legal Studies) e, não por acaso, a maioria dos organizadores da primeira conferência CLS em 1977 tinha estado envolvida com esse programa.11 Por outro lado, a Direção de Yale e os Professores mais sêniores viam com restrições a aproximação entre os jovens professores com os estudantes mais radicais, como Duncan Kennedy e Mark Tushnet, de modo que não foram feitas ofertas de posições permanentes a David Trubek e a Richard Abel que logo deixariam Yale.12 Em 1977, após oito anos, o Programa de Yale em Direito e Modernização seria descontinuado.13 Diários de Bordo: Memórias das Jornadas de Direito e Modernização O simpósio publicado pela Revista Estudos Institucionais (REI) traz uma série de relatos históricos com as memórias dos participantes da mesa redonda sobre o Programa de Yale em Direito e Modernização, que podem ser considerados como diários de bordo e memórias de suas jornadas individuais. Nesse sentido, por exemplo, Richard Abel revela que se considera sortudo de ter estado em Yale como jovem professor justamente no início do Programa e, apesar de não ter sido aprovado para uma posição permanente, afirma que aqueles cinco anos e meio foram fundacionais na sua vida profissional, quando desenvolveu sua perspectiva sociológica de pesquisa e de educação jurídica.14 Além de ser um especialista no direito africano, Richard Abel lecionava 'responsabilidade civil' (torts), tendo sido aluno de Guido Calabresi (quando esse era Professor Visitante em Columbia) e o Professor de Hilary Clinton dessa disciplina, vindo a desenvolver posteriormente uma abordagem sociológica sobre a responsabilidade civil.15 Após sua mudança para a UCLA em 1974, Richard Abel viria a incorporar a profissão jurídica em sua agenda de pesquisa, tornando-se um dos maiores especialistas no mundo sobre o estudo do tema.16 David Trubek inicia sua memória pelo período como missionário jurídico do projeto da modernização do direito, quando, a partir de 1962, trabalhou como um consultor jurídico do USAID no Brasil, tendo colaborado com a redação de contratos de empréstimo do governo dos Estados Unidos para a ditadura militar, com o projeto de reforma legislativa de estabelecimento do mercado de capitais em 1965 e com a reforma da educação jurídica através do CEPED.17 Após seu ingresso no corpo docente da Faculdade de Direito de Yale em 1967, David Trubek buscou uma forma de desenvolver um programa voltado para a modernização do direito e trabalhou com William Felstiner - que também tinha sido consultor jurídico da USAID, mas na Turquia e na Índia - para obter financiamento para o Programa de Yale em Direito e Modernização.18 Em seu curso sobre 'Direito e Modernização', David Trubek iria sempre manter um interesse no Brasil como estudo de caso, mas seus materiais foram se transformando e os textos contemporâneos seriam substituídos por clássicos da teoria social - Max Weber, Emile Durkheim e Karl Marx - e por textos de teoria crítica.19 A mudança teria sido provocada pela presença do seu ex-aluno de 'direitos reais' (property), Duncan Kennedy, que promoveu uma crítica contundente das teorias da modernização do direito e uma série de contra-narrativas que iriam resultar na crise existencial sumarizada no artigo Scholars in Self-Strangement, bem como na reflexão sobre a necessidade de buscar trabalhar o potencial emancipador do direito e desenvolvimento.20 Por sua vez, os diários de bordo dos demais participantes também estão repletos de detalhes extremamente interessantes para a sua formação. No caso de Duncan Kennedy, por exemplo, a coincidência de ter passado 1961 em Paris quando acompanhou a independência de inúmeras colônias africanas e seu período de trabalho na CIA entre 1965 e 1967 foram marcantes para a sua posterior radicalização.21 Já Boaventura de Sousa Santos esclarece como pretendia fugir da aridez do positivismo jurídico em Yale e na busca pelo aprofundamento em sociologia do direito no Programa de Direito e Modernização viria a abraçar a teoria social dentro de uma perspectiva crítica.22 Como observador externo, a seu turno, Bryant Garth classifica como revolucionários os participantes do programa em Yale, recordando-se como teve contato com as marcantes ideias ali desenvolvidas e como elas influenciaram sua própria agenda de pesquisa, registrando, aliás, passagem de sua trajetória acadêmica e os trabalhos clássicos escritos em co-autoria com Mauro Cappelletti e, posteriormente, com Yves Dezalay.23 Finalmente, Afroditi Giovanopoulou posiciona o programa no contexto político da década de 1970 entre o gerencialismo típico das pretensões modernistas de engenharia social e a contracultura que serviria de berço para o pensamento jurídico crítico estadunidense.24 Considerações Finais: A Influência do Direito e Modernização no Brasil A memória sobre o Programa de Yale em Direito e Modernização é particularmente relevante para o público brasileiro, porque nossa experiência jurídica é marcada por transplantes de institutos jurídicos dos Estados Unidos e da Europa com o objetivo de modernização do nosso direito e das nossas instituições jurídicas. Aliás, o próprio Brasil foi um dos principais estudos de caso desse programa, tendo sido objeto de pesquisas tanto do Professor David Trubek, quanto do estudante Boaventura de Sousa Santos, que fez sua pesquisa de campo sobre o direito existente na Favela do Jacarezinho, a que poeticamente se referiu como 'Passárgada'. Através do CEPED foram treinados centenas de profissionais jurídicos, sendo que alguns deles também viriam a cursar mestrados (LL.M.s) em Faculdades de Direito dos Estados Unidos e reproduziriam o seu conhecimento jurídico através de sua prática profissional ou como professores de direito nas Faculdades brasileira. Aliás, ex-alunos do CEPED viriam inclusive posteriormente fundar as Escolas de Direito da FGV Direito Rio e da FGV Direito SP com uma abordagem de solução pragmática de problemas concretos e metodologia de ensino participativo, que tem influenciado mudanças na academia jurídica brasileira.25 Além disso, por ocasião da fundação do movimento Critical Legal Studies, o Professor brasileiro Roberto Mangabeira Unger também teve participação extremamente relevante, tendo se tornado um dos principais expoentes e líderes intelectuais do pensamento jurídico crítico.26 Portanto, a influência do Programa de Yale em Direito e Modernização no Brasil deve servir de estímulo para que os leitores brasileiros se interessem sobre o tema e eventualmente se aprofundem através da leitura dos artigos originais e inéditos publicados no mês passado pela Revista Estudos Institucionais nesse simpósio internacional especial. __________ 1 ABEL, Richard; TRUBEK, David. THE SHORT HAPPY LIFE OF THE YALE PROGRAM IN LAW AND MODERNIZATION FROM THE COLD WAR TO COMPARATIVE LEGAL SOCIOLOGY AND CRITICAL LEGAL STUDIES. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, 2021. 2 Idem. 3 Idem. 4 TRUBEK, David M. From Legal Missionary to Critical Scholar: My Law and Modernization Journey. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 793-813, 2021. 5 ABEL, Richard; TRUBEK, David. THE SHORT HAPPY LIFE OF THE YALE PROGRAM IN LAW AND MODERNIZATION FROM THE COLD WAR TO COMPARATIVE LEGAL SOCIOLOGY AND CRITICAL LEGAL STUDIES. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, 2021. 6 Idem. 7 TRUBEK, David M.; GALANTER, Marc. Scholars in self-estrangement: some reflections on the crisis in law and development studies in the United States. Wis. L. Rev., p. 1062, 1974. 8 GALANTER, Marc. Why the haves come out ahead: Speculations on the limits of legal change. Law & Soc'y Rev., v. 9, p. 95, 1974. 9 DE SOUSA SANTOS, Boaventura. The law of the oppressed: the construction and reproduction of legality in Pasargada. Law and society review, p. 5-126, 1977. 10 ABEL, Richard; TRUBEK, David. THE SHORT HAPPY LIFE OF THE YALE PROGRAM IN LAW AND MODERNIZATION FROM THE COLD WAR TO COMPARATIVE LEGAL SOCIOLOGY AND CRITICAL LEGAL STUDIES. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, 2021. 11 Idem. 12 Idem. 13 Idem. 14 ABEL, Richard. Law and Tradition. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 729-752, 2021. 15 Idem. 16 ABEL, Richard L.; LEWIS, Philip Simon Coleman (Ed.). Lawyers in society: the civil law world. Beard Books, 1988. 17 TRUBEK, David M. From Legal Missionary to Critical Scholar: My Law and Modernization Journey. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 793-813, 2021. 18 Idem. 19 Idem. 20 Idem. 21 KENNEDY, Duncan. MY PATH TO LAW AND MODERNIZATION AT YALE, 1968-70: A MEMOIR OF RADICALIZATION. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 753-767, 2021. 22 DE SOUZA SANTOS, Boaventura. MY LAW AND MODERNIZATION JOURNEY. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 768-792, 2021. 23 GARTH, Bryant G. LEGAL REVOLUTIONARIES AT YALE IN A TIME OF POLITICAL AND SOCIAL CHANGE. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 814-828, 2021. 24 GIOVANOPOULOU, Afroditi. BETWEEN MANAGERIALISM AND THE LEGAL COUNTERCULTURE: THE YALE PROGRAM IN LAW AND MODERNIZATION IN THE HISTORY OF THE GLOBAL 1970S. REI-REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, v. 7, n. 2, p. 829-848, 2021. 25 LACERDA, Gabriel; FALCÃO, Joaquim; RANGEL, Tânia Abrão. Aventura e legado no ensino jurídico. FGV Direito Rio, 2012. 26 UNGER, Roberto Mangabeira. The critical legal studies movement. Harvard law review, p. 561-675, 1983.
Tem crescido nos EUA, e também no Brasil, o interesse pelo modelo de pagamento chamado buy now, pay later (BNPL), que, em tradução literal, quer dizer "compre agora, pague depois". O sistema é também referido simplesmente por "crediário digital". Expansão nos EUA O modelo funciona por meio de plataformas que permitem que os seus clientes parcelem o pagamento do preço de produtos ou serviços. Nos EUA, elas têm atraído, sobretudo, os americanos mais jovens e com salários mais baixos, que buscam novas maneiras de comprar itens caros, como computadores e roupas de grife. Esse modelo de negócio já existe nos EUA há anos, mas a demanda e o interesse dos investidores nas plataformas estão começando a aumentar. Segundo o canal CNBC (Consumer News and Business Channel), especializado em notícias de negócios e cobertura do mercado financeiro, em agosto passado, a empresa de pagamentos digitais Square anunciou que compraria a Afterpay em um negócio de US$ 29 bilhões. Em 30 de junho, a Afterpay atendia a mais de 16 milhões de clientes e cerca de 100.000 comerciantes.1 A Apple também parece estar interessada no modelo de negócio. De acordo com a agência de notícias Bloomberg, a gigante americana estaria se unindo à PayBright da Affirm Holdings Inc. para lançar um programa de parcelamento para dispositivos Apple comprados no Canadá.2 A demanda por esse modelo vem, como referido, especialmente das gerações mais jovens, que estão se voltando para as várias plataformas BNPL em vez dos cartões de crédito tradicionais com altas taxas de juros. O canal CNBC entrevistou sete jovens usuários de plataformas BNPL e a maioria disse que foi atraída pela conveniência. Ao menos seis foram influenciados por amigos ou redes sociais e a maioria começou no ano passado.3 Como funciona? As plataformas permitem que os usuários façam compras mais vultosas, como a de um novo MacBook, sem ter que desembolsar todo o valor à vista. Elas normalmente permitem que os usuários paguem em quatro prestações ao longo de um período de seis semanas. A maioria também oferece um aplicativo complementar ou plug-in de navegador da web para parear o pagamento com o site do comerciante. As contas dos usuários das plataformas são normalmente vinculadas a um cartão de débito ou conta bancária, de onde os pagamentos são retirados automaticamente. Elas também mandam lembretes quando a data de um pagamento está chegando. À medida que um usuário faz mais compras dentro do prazo com a plataforma, seu limite de gastos aumenta. Muitas plataformas não cobram juros dos clientes, lucrando principalmente com taxas dos varejistas e dos usuários por pagamentos atrasados. Expansão no Brasil O modelo BNPL também vem ganhando espaço no Brasil4. A pandemia trouxe milhões de novos consumidores ao comércio eletrônico e boa parte deles pode se beneficiar de novas formas de crédito para consumo, porque não tem, por exemplo, cartão de crédito ou tem com limite muito baixo. O comércio online tem crescido e o modelo BNPL pode resolver um problema frequente das lojas virtuais: o alto volume de compras fechadas que são canceladas porque o consumidor desiste de pagar o boleto à vista. Estima-se que esse índice chega a cerca de 50% dos consumidores. Há duas formas de proceder. O cliente pode enviar para a empresa BNPL o boleto de uma compra que quer fazer. Com isso, a plataforma analisa a compra e faz uma proposta de parcelamento. Daí, caso o consumidor aceite, a startup paga diretamente à loja e depois recebe do cliente o pagamento com juros. Outra opção é o cliente navegar nas lojas virtuais em que a startup faz parcelamentos a partir do aplicativo. Na hora do fechamento da compra, o sistema identifica a ação e oferece o parcelamento da startup ao consumidor. Os empresários reconhecem dois desafios para digitalização do crediário. De um lado, permitir que a compra seja rápida e fácil, para que o consumidor não desista. De outro, realizar uma avaliação adequada do risco de inadimplência do consumidor. Caso a concessão de crédito seja muito permissiva, depois de alguns anos a empresa pode acabar tendo de arcar com uma taxa de inadimplência muito alta. Para auxiliar com isso, o modelo se utiliza de inteligência artificial para avaliação do risco de crédito. Perspectivas no Brasil Em comparação com os EUA, há no mercado brasileiro uma diferença marcante que pode levar a distinções relevantes do modelo de negócio nos dois países: por aqui reina o parcelamento "sem juros" no cartão de crédito. No Brasil, quando alguém faz uma compra com cartão de crédito, normalmente já há a opção de parcelar o valor, parcelamento esse supostamente "sem juros".5 Essa nossa tradição do parcelado "sem juros" no cartão de crédito poderia, então, levar à impressão de que o modelo BNPL seria pouco relevante para o mercado brasileiro. Não é, contudo, o que tem ocorrido, uma vez que o segmento tem se expandido. Por outro lado, é possível indagar se o modelo BNPL concorrerá com o nosso tradicional parcelado sem juros no cartão, competindo com as credenciadoras de cartões pelo mesmo nicho de clientes. Mais uma vez, não é o que tem ocorrido, uma vez que a adesão da clientela tem crescido sobretudo entre os consumidores "sem cartão de crédito ou com pouco limite para compras", exatamente aqueles que podem se beneficiar de outras formas de empréstimo para consumo.6 Como apontam os empresários do segmento BNPL no Brasil, "um perfil comum na empresa é o de pessoas que parcelavam compras no crediário de lojas físicas e, na pandemia, tiveram dificuldade de fazer compras."7 As startups do modelo BNPL parecem mais propensas, portanto, a concorrer com os varejistas que forneciam as suas próprias linhas de créditos aos consumidores. No cenário atual, ainda de pandemia, é difícil prever qual será o impacto a longo prazo do segmento BNPL no mercado brasileiro. Após a pandemia, com o retorno à (nova) normalidade das interações presenciais, o cenário pode mudar. Contudo, sem dúvida o modelo já merece a atenção de consumidores e empresários. E na área jurídica, devem ficar atentos sobretudo os consumeristas e os reguladores do mercado de pagamentos. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 2 set. 2021. 2 Disponível aqui. Acesso em: 2 set. 2021. 3 Disponível aqui. Acesso em: 2 set. 2021. 4 Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2021. 5 Sobre o parcelamento sem juros no cartão de crédito, ver a excelente obra "Repercussões jurídicas e econômicas do mercado de cartões de crédito", no prelo, de autoria de João Manoel de Lima Jr. et. al. 6 Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2021. 7 Disponível aqui. Acesso em: 3 set. 2021.
segunda-feira, 30 de agosto de 2021

O júri civil no Direito norte-americano - Parte 1

Ao longo do desenvolvimento das colunas anteriores, um tema que sempre esteve presente, diretamente ou indiretamente, foi o papel desenvolvido pelo júri civil no sistema norte-americano. É possível afirmar que se trata de "uma das mais veneradas instituições americanas"1. Diferentemente do que vivenciamos em nosso sistema da civil law - em que a figura do júri se aplica com exclusividade às causas penais -, a figura do júri civil no direito norte-americano vem permeada de nuances que bem retratam a reconhecida excepcionalidade2 do referido sistema. Nesta primeira parte, abordaremos o nascimento e o desenvolvimento do júri civil na jurisdição federal e nas jurisdições dos estados norte-americanos, analisando os fundamentos e princípios que alicerçam uma das mais cultuadas e controversas instituições dos Estados Unidos. Percurso histórico do júri civil nos EUA A previsão do direito ao julgamento pelo júri civil no direito norte-americano decorre diretamente da Sétima Emenda à Constituição, introduzida a partir do Bill of Rights3, ratificado em 1791. Pelo texto da Sétima Emenda, em tradução livre, "em concordância com a common law, onde o valor da causa deverá ser superior a vinte dólares, o direito de julgamento por um júri deverá ser preservado, e nenhum fato julgado por um júri deverá ser reexaminado em nenhuma corte dos Estados Unidos, também de acordo com as regras da common law"4. O júri civil americano se desenvolveu a partir de sua raiz anglo-saxônica, cuja origem, por sua vez, remonta à Idade Média. O instituto do júri civil precede o próprio júri em matéria penal5. No reino da Inglaterra, parte dos julgamentos de casos civis eram realizados exclusivamente por juízes (sem jurados). Nesse modelo, destacava-se a figura do Chancery que atuava perante o sistema do Equity Courts6. O Chanceler, elemento da Coroa e não do Judiciário, era responsável por aceitar e encaminhar apelos feitos ao Rei para que interviesse no litígio, suprindo ou complementando lacunas existentes no sistema da Common Law inglesa com base no princípio da equidade, derivado do direito romano e canônico7. O júri civil, por sua vez, encontrava espaço nas chamadas Common Law Courts, que se valiam de jurados para decidir certos casos civis. Gradativamente, todavia, o Reino Unido - berço do júri civil -, praticamente abandonou o procedimento, o qual restou limitado a poucas exceções. Essa tendência foi seguida pela maioria dos países com sistemas jurídicos baseados na common law britânica.8 No século XVIII, o júri civil ao molde inglês aplicado nas colônias americanas ganhou maior relevância, na medida em que os jurados (colonos locais) - ainda que não tivessem representação política naquele momento -, experimentaram pela primeira vez algum grau de independência ao participarem diretamente dos julgamentos. À medida em que as tensões com a Inglaterra aumentaram, os júris passaram a rechaçar em seus vereditos a aplicação de alguns decretos reais, em especial aqueles envolvendo matéria tributária9. A manutenção do direito a julgamento pelo júri na esfera civil após a independência da coroa britânica pode ser explicada em larga medida por esse contexto. Conforme destaca Oscar CHASE, foi no período da revolução americana que o júri se tornou "tão profundamente enraizado no ethos democrático americano"10. Na época em que a Convenção Constitucional se reuniu na Filadélfia (1787), as opiniões sobre a manutenção do júri civil não eram unânimes. Como os júris civis das colônias eram simpáticos aos devedores locais em detrimento dos credores britânicos, a ala Anti-Federalista da Convenção temia a criação de um precedente perigoso de possíveis violações aos direitos e garantias contratuais nos estados, ao alvedrio dos jurados, o que poderia levar a uma indesejada insegurança jurídica11. A ala Federalista, por sua vez, defendia a manutenção do júri civil porque entendia que, caso não fosse expressamente prevista no texto constitucional, as gerações futuras poderiam ser levadas a crer que a instituição havia sido derrogada e ficado adstrita ao tempo das 13 colônias12. Foi por isso que a Sétima Emenda, inserta no contexto do Bill of Rights, manteve o direito ao júri civil, mas não foi aplicada automaticamente aos estados13, ficando atrelada tão-somente aos tribunais federais14. Isso não impediu, todavia, que os próprios estados adotassem voluntária e gradativamente a previsão do julgamento pelo rito do júri civil. Atualmente, 47 estados americanos preveem expressamente em suas constituições o direito ao julgamento por júri em casos civis15. A Constituição de Indiana, por exemplo, exige que "em todos os casos civis, o direito de julgamento por júri permanecerá inviolado"16. Nova Iorque, cuja constituição data de 1777, estatuiu que o direito ao júri civil deverá permanecer inviolável "para todo o sempre"17. A Constituição de Utah prevê indiretamente esse direito, tornando-se inviolável nos casos de pena capital e dispensável, via de regra, nos casos civis, salvo se demandado diretamente18. Apesar de os estados do Colorado, de Wyoming e da Louisiana serem os únicos que não asseguraram expressamente o direito ao júri civil em seus respectivos textos constitucionais, não se pode dizer que esse rito não aconteça nessas jurisdições. Isso porque, no caso das constituições do Colorado e do Wyoming, apesar de não haver previsão expressa, há regulação quanto ao número de jurados em casos civis, o que na prática convalida a existência do júri civil. A legislação infraconstitucional desses estados (Statutes) restringe o julgamento pelo júri a algumas matérias civis19. A Louisiana segue nessa mesma direção, mas a limitação decorre da tradição de common law desse estado. O art. 1.732 do Louisiana Code of Civil Procedure exclui o julgamento pelo rito do júri nos casos civis em que: a) o valor da causa exceda cinquenta mil dólares para cada demandante, excluindo-se juros e custas; b) a ação judicial verse sobre obrigação incondicional de pagar uma determinada quantia em dinheiro, a menos que a defesa contra ela seja fraude, erro ou dolo; c) ações sumárias, liminares, executivas, de sucessão, partilha, mandado de segurança, habeas corpus, quo warranto20, indenização trabalhista, emancipação, tutoria, interdição, curadoria, filiação, anulação de casamento ou divórcio; d) procedimentos para fixar custódia, visitação e alimentos devidos a cônjuge ou aos filhos; e) ações de revisão de ato praticado por órgão administrativo ou municipal; f) casos em que haja vedação expressa em lei21. Como se percebe, é possível afirmar que o direito ao julgamento pelo júri civil existe nos 50 estados americanos e no Distrito de Columbia, sendo previsto pela Sétima Emenda e em 47 constituições estaduais, e que a regulamentação procedimental decorre de legislação processual estadual própria, ou da Rule 38 da Federal Rules of Civil Procedure.22  Os princípios da preservação e da vedação do reexame dos julgamentos A Sétima Emenda à Constituição norte-americana consagra, fundamentalmente, dois grandes princípios relacionados ao júri civil: o princípio da preservação (preservation clause) e o princípio da vedação do reexame (reexamination clause)23. Pelo princípio da preservação, "em concordância com a common law, onde o valor da causa deverá ser superior a vinte dólares, o direito de julgamento por um júri deverá ser preservado".24 Ressalta-se que a referência ao valor mínimo de vinte dólares para a admissibilidade do júri civil nunca foi alterada ou atualizada, desde a ratificação da Sétima Emenda, em 1791. Referido princípio tem como corolário a ideia de que a submissão ao júri civil abrangerá, de forma geral, os casos que versem sobre o sistema da common law, sobre seus precedentes e costumes. Essa orientação foi corroborada pela Suprema Corte a partir do caso United States v. Wonson (1812)25. No julgamento do caso Baltimore & Carolina Line, Inc. v. Redman (1935), a Suprema Corte afirmou que a Sétima Emenda intende preservar a "substância" do direito, e não apenas "meros temas de forma ou procedimento"26. Quanto ao princípio da vedação do reexame, entende-se que "nenhum fato julgado por um júri deverá ser reexaminado em nenhuma outra corte dos Estados Unidos, também de acordo com as regras da common law". Trata-se de enunciado que objetiva proteger o veredito contra possíveis reversões por parte do juiz que preside o rito ou pelas instâncias superiores. Conforme explica Oscar CHASE,27 "(...) conquanto seja verdade que o juiz presidente do julgamento pode rejeitar o veredicto do júri e proferir decisão 'como de lei' contra a parte favorecida pelo júri, esse poder é limitado. Só pode ser exercido se "não houver base probatória suficiente para que um júri razoável decida a favor de tal parte"28. Com a promulgação da Décima Primeira Emenda,29 em 1794, os tribunais passaram a afastar a adoção do júri civil nos casos em que indivíduos buscassem processar diretamente o governo federal (de acordo com a chamada teoria da public rights exception), quando a ação versasse sobre direito marítimo ou violação de patentes (ambas de competência federal), ou, ainda, nas hipóteses em que o autor da ação, em vez do pedido de indenização, postulasse alguma medida liminar com base na Equity30. Visto que a interpretação da Sétima Emenda buscou preservar a "substância" do júri civil, e não apenas "meros temas de forma ou procedimento"31, pode-se afirmar que a instituição do júri civil sofreu poucas alterações no decurso do tempo, sendo a mais recente, a redução do número original de jurados (de 12 para 6), cuja constitucionalidade foi reconhecida pela Suprema Corte no caso Colgrove v. Battin (1973)32. Características e utilização do procedimento do júri civil nos EUA  O excepcionalismo do júri civil no sistema de justiça norte-americano, segundo CHASE, pode ser compreendido ainda a partir da sua feição igualitária, populista e antiestatal. O júri civil seria igualitário por designar não juízes e profissionais versados em letras jurídicas, mas cidadãos comuns e leigos a decidirem o caso, um poder que pode ser entendido inclusive como superior ao do próprio juiz togado, cuja margem de atuação e possibilidade de rejeitar o veredito dos jurados fica restrita a casos raros e pontuais33. Cada jurado tem direito a um voto e, para se atingir a maioria, é permitido (e aconselhado) que haja comunicação e cooperação entre eles, independentemente de educação, classe social, raça ou etnia34. A faceta populista do júri civil, apesar de o termo ser ideologicamente carregado, versa sobre o governo direto, exercido pelo povo. Destaca-se a possibilidade de os jurados atuarem como "minilegisladores" em alguns casos, e de se expressarem a partir de uma condenação de larga monta para "enviar um recado" ao réu e à indústria, comércio ou serviço a que ele pertença. Nesse sentido, pode-se também afirmar que a noção de coletividade exigida para se dar o veredito empresta ao júri civil uma conotação anti-individualista35. Geralmente, essa intenção de se enviar uma mensagem à sociedade pode levar a distorções e desproporções que transcendem o caso em exame. No que atine à matiz antiestatal do júri civil, ainda que a instituição seja evidentemente albergada pela estrutura do Estado, suas decisões não coincidem necessariamente com o desejo das demais instituições de governo. Essa característica reforça não só o tom igualitário e populista do júri, mas também a sua independência em relação às demais instituições36. Apesar de o júri civil ser uma das mais veneradas instituições americanas, estando profundamente enraizado no ethos democrático desse país e gozando de amplo apoio entre advogados, juízes e do público em geral37, alguns dados apontam para uma tendência de queda no número absoluto de processos submetidos ao rito do júri civil nas últimas décadas38. Isso se deve, sobretudo, ao surgimento de soluções alternativas das disputas, tais como os acordos judiciais e extrajudiciais, para além dos julgamentos sumários. Nada obstante, o interesse pela instituição do júri civil tem aumentado por parte da academia e do público em geral39. O estudo mais abrangente sobre o júri civil foi publicado em abril de 2007, sendo conduzido pelo National Center for State Courts, em parceria com o State Justice Institute40. Sob o título The State-of-the-States Survey of Jury Improvement Efforts, foram compilados, entre 2002 e 2006, dados empíricos sobre os tribunais do júri penal e civil nas esferas federal e estadual em todos os 50 estados americanos, bem como no Distrito de Columbia e no território de Porto Rico41. Os dados revelaram uma média anual de 48.300 júris civis no período de 2002 a 2006, sendo 46.200 de competência estadual e 2.100 de competência federal. Pode parecer, num primeiro olhar, tratar-se de uma média alta. Todavia, se comparados à média global de todos os júris realizados em jurisdição americana nesse período, vê-se que os júris civis estaduais e federais, somados, representam pouco menos de um terço (31%) do total. O rito do júri, portanto, pertence eminentemente à esfera penal42. A maior média estadual ficou com a Califórnia, que no escopo da pesquisa sediou aproximadamente 16 mil júris civis por ano43. Na maioria dos estados americanos, a proporção entre os júris penais e civis é de 3 para 2, isto é, a cada 3 júris em matéria penal, realizam-se 2 em matéria civil. Essa proporção, contudo, é invertida em estados como Nova Iorque, onde o número de júris civis equivale ao quíntuplo dos júris penais, e em Connecticut, cuja razão é de 5 julgamentos civis para 2 em matéria criminal. Illinois e a Carolina do Sul também conduzem mais júris civis do que aqueles em matéria criminal44. Na segunda parte da coluna analisaremos as vantagens e desvantagens da adoção do procedimento do júri civil em termos de custos, tempo de duração do processo e justiça das decisões, bem como os impactos gerados no âmbito da responsabilidade civil. __________ 1 SCHWARZER, Willian W. e HIRSCH, Allan. The modern American jury: reflections on veneration and distrust. Verdict (Robert E. Litan ed., 1993), p. 399, apud CHASE, Oscar G., A "Excepcionalidade" Americana e o Direito Processual Comparado. Trad. José Carlos Barbosa Moreira. Revista de Processo. Vol. 110/2003, Abr.-Jun. 2003, p. 17. 2 Conforme anota Oscar CHASE, quatro aspectos podem ser destacados a respeito da peculiaridade do processo civil norte-americano, sendo eles: o júri civil, a instrução pré-julgamento dominada pelas partes, o juiz passivo e os peritos escolhidos pelas partes. Oscar G. CHASE, A "Excepcionalidade" Americana e o Direito Processual Comparado. Trad. José Carlos Barbosa Moreira. Revista de Processo. Vol. 110/2003, Abr.-Jun. 2003, p. 2. 3 A Carta dos Direitos ou Bill of Rights introduziu as 10 primeiras Emendas à Constituição americana. Foi apresentada por James Madison no Primeiro Congresso dos EUA em 1789 e entrou em vigor em 15 de dezembro de 1791. 4 No original: "In Suits at common law, where the value in controversy shall exceed twenty dollars, the right of trial by jury shall be preserved, and no fact tried by a jury, shall be otherwise re-examined in any Court of the United States, than according to the rules of the common law". 5 LERNER, Renée Letow; THOMAS, Suja A. The Seventh Amendment. National Constitution Center (online). Disponível aqui. Acesso em 09 ago. 2021. 6 Nelson ROSENVALD esclarece que "Nas jurisdições que seguem a English common law, "equity" é o conjunto de princípios que suplementam a estrita aplicação das regras de direito comum, nos casos em que a sua aplicação rigorosa resultará em alguma forma de injustiça aos litigantes". E, continua, "mesmo que muitas linhas divisórias entre a common law e a equidade tenham surgido por acidente histórico, existem de fato diferenças conceituais profundas entre os conceitos que cada um deles desenvolveu". A responsabilidade civil pelo ilícito lucrativo: o disgorgement e a indenização restitutória. Salvador: Editora JuspPodivm, 2019, p. 80. 7 FONSECA, Luciana Carvalho. A marca da Equidade no sistema anglo-americano: specific performance. Migalaw English. Migalhas (online). Disponível aqui. Acesso em 09 ago. 2021. Ainda sobre o tema, GARAPON e PAPADOPOULOS observam que a flexibilidade e a efetividade na prestação jurisdicional que se observa na common law atual não estava presentes na formação e no desenvolvimento desse sistema, que nasceu com um caráter altamente formalista: "Quem quisesse introduzir um processo diante de uma corte de common law devia previamente obter um writ (uma ordem introdutória de instância) emitido pela chancelaria para poder acionar a corte. Ora, cada writ - cuja lista era limitada - abria necessariamente uma ação de tipo específico (form of action) cuja escolha determinava não apenas os procedimentos, como o fundo do direito aplicável à espécie: O célebre adágio 'remedies precede rights' ('os remédios precedem os direitos') significava que o autor da petição devia imperativamente apresentar a sua causa sob uma forma de ação específica, com suas próprias regras estereotipadas de petição e de prova. Até a metade do século XIX, a regra geral na Inglaterra era a de que para cada litígio correspondesse uma única form of action". Não tardou a aparecerem casos em que o direito almejado não encontrava guarida numa das rígidas form of action da common law. Os súditos do reino passaram a progressivamente se dirigir à fonte de toda a justiça - i.e. ao próprio rei - e posteriormente ao Chanceler (Lord Chancellor), considerado o "guardião da consciência do rei". Já no século XV, houve a formalização e institucionalização desta prática com a criação dos tribunais de equidade (Courts of Chancery ou Equity Courts)[vii]. Esse sistema de chancery, que no início era mais casuístico, tornou-se paulatinamente mais jurisdicional, submetido a um corpo de regras próprio e mais coerentes e previsíveis, de forma que os dois tipos de jurisdição foram unificados no século XIX. GARAPON, Antoine; PAPADOPOULOS, Ioannis. Julgar nos Estados Unidos e na França: cultura jurídica francesa e common law em uma perspectiva comparada. Trad. Regina Vasconcelos. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2008, p. 186. 8 CHASE, Oscar G., op. cit., p. 7. 9 LERNER, Renée Letow; THOMAS, Suja A., op. cit. 10 CHASE, Oscar G., op. cit., p. 8. 11 Cf. LERNER, Renée Letow; THOMAS, Suja A., op. cit. 12 MOSES, Margaret L. What the Jury Must Hear: the Supreme Court's Evolving Seventh Amendment Jurisprudence. 68 GEO. Washington Law Review, 183 (2000), p. 185. Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021. 13 Nesse sentido: "A Bill of Rights originalmente apenas restringia os poderes do governo federal. Como resultado, nenhum direito garantido pela Bill of Rights vincula os estados individuais. No entanto, após a Guerra Civil e a promulgação da 14ª Emenda, e particularmente na década de 1960, a Suprema Corte 'incorporou' as proteções individuais da Declaração de Direitos e as vincula aos estados. Ao longo do último século, quase todos os direitos contidos na Declaração de Direitos foram considerados pela Suprema Corte como aplicáveis aos estados".  ATKINSON, Tyler. "The Jury System: A Brief Comparison Between Federal and California Practices". Disponível aqui. MacManis Faulkner (blog). Acesso em 13 ago. 2021. 14 A Suprema Corte declarou em Walker v. Sauvinet (1875), Minneapolis & St. Louis Railroad v. Bombolis (1916) e Hardware Dealers 'Mut. Fire Ins. Co. of Wisconsin v. Glidden Co. (1931) que os estados americanos não eram obrigados a fornecer julgamentos por júri em casos civis. Cf. LERNER, Renée Letow; THOMAS, Suja A., op. cit. 15 HAMILTON, Eric J. Federalism and the State Civil Jury Rights. Stanford Law Review, Vol. 65:851, April 2013, p. 854. Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021. 16 Cf. art. I, § 20, da Constituição de Indiana. Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021. 17 Cf. art. I, § 2, da Constituição de Nova York. Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021. 18 Cf. art. I, Section 10, da Constituição de Utah. 19 HAMILTON, Eric J. Federalism and the State Civil Jury Rights. Stanford Law Review, Vol. 65:851, April 2013, p. 855-856. Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021. Cf. art. I, § 20, da Constituição de Indiana. Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021. 20 Ação Judicial cabível quando se deseja cassar uma concessão, licença, alvará ou para a demissão de um servidor público a bem do serviço. MELLO, Maria Chaves. Dicionário Jurídico / Law Dictionary. 8ª ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Método, 2006, p. 870. 21 Cf. art. 1.732 do Código de Processo Civil da Louisiana. Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021. 22 No original disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021. Rule 38 - Right to a Jury Trial; Demand (a) Right Preserved. The right of trial by jury as declared by the Seventh Amendment to the Constitution-or as provided by a federal statute-is preserved to the parties inviolate. (b) Demand. On any issue triable of right by a jury, a party may demand a jury trial by: (1) serving the other parties with a written demand-which may be included in a pleading-no later than 14 days after the last pleading directed to the issue is served; and (2) filing the demand in accordance with Rule 5(d). (c) Specifying Issues. In its demand, a party may specify the issues that it wishes to have tried by a jury; otherwise, it is considered to have demanded a jury trial on all the issues so triable. If the party has demanded a jury trial on only some issues, any other party may-within 14 days after being served with the demand or within a shorter time ordered by the court-serve a demand for a jury trial on any other or all factual issues triable by jury. (d) Waiver; Withdrawal. A party waives a jury trial unless its demand is properly served and filed. A proper demand may be withdrawn only if the parties consent. (e) Admiralty and Maritime Claims. These rules do not create a right to a jury trial on issues in a claim that is an admiralty or maritime claim under Rule 9(h). 23 Cf. LERNER, Renée Letow; THOMAS, Suja A., op. cit. 24 Cf. VILE, John R. A Companion to the United States Constitution and Its Amendments. 5 ed. Nova York: Rowman & Littlefield Publishers, 2011, p. 154. 25 No caso United States v. Wonson (1812), o magistrado Joseph Story se referiu à common law da Sétima Emenda nos seguintes termos: "Beyond all question, the common law here alluded to is not the common law of any individual state, (for it probably differs in all), but it is the common law of England, the grand reservoir of all our jurisprudence. It cannot be necessary for me to expound the grounds of this opinion, because they must be obvious to every person acquainted with the history of the law". WOLFRAM, Charles W. "The Constitutional History of the Seventh Amendment" (1973), 57 Minnesota Law Review 639, 670-71. Disponível aqui. Acesso em 09 ago. 2021. 26 Nesse sentido: "The aim of the Amendment is to preserve the substance of the common law right of trial by jury, as distinguished from mere matters of form or procedure, and particularly to retain the common law distinction between the province of the court and that of the jury, whereby, in the absence of express or implied consent to the contrary, issues of law are to be resolved by the court, and issues of fact are to be determined by the jury under appropriate instructions by the court". Baltimore & Carolina Line, Inc. v. Redman, 295 U.S. 654 (1935). Disponível aqui. Acesso em 11 ago. 2021. 27 CHASE, Oscar G., op. cit., p. 7. 28 De acordo com a Rule 50(a) das Federal Rules of Civil Procedure, o juiz pode rejeitar o veredito num outro cenário, quando divisar que o julgamento se deu de forma contrária ao "peso das provas" (against the weight of the evidence), sendo nesse caso designado a realização de outro júri. Cf. CHASE, Oscar, op. cit. p. 18, nota 73. 29 Em tradução livre: "O poder judiciário dos Estados Unidos não será considerado como extensivo a qualquer demanda baseada na lei ou na equidade, iniciada ou processada contra um dos Estados por cidadãos de outro Estado, ou por cidadãos ou súditos de qualquer potência estrangeira". No original: "The Judicial power of the United States shall not be construed to extend to any suit in law or equity, commenced or prosecuted against one of the United States by Citizens of another State, or by Citizens or Subjects of any Foreign State". 30 Cf. VILE, John R. A Companion to the United States Constitution and Its Amendments. 5 ed. Nova York: Rowman & Littlefield Publishers, 2011, p. 154. 31 Cf. precedente já citado e assentado no caso Baltimore & Carolina Line, Inc. v. Redman, 295 U.S. 654 (1935). Disponível aqui. Acesso em 12 ago. 2021. 32 Colgrove v. Battin, 413 U.S. 149 (1973). Disponível aqui. Acesso em 12 ago. 2021. 33 Como o próprio autor afirma, a reversão do veredito pode acontecer apenas se não houver "base probatória suficiente" para alicerçar a decisão dos jurados. CHASE, Oscar G., op. cit., p. 7. 34 Idem. 35 Ibidem, p. 8. 36 Idem. 37 Ibidem, p. 9. 38 Nesse sentido, ver GALANTER, Marc. The Vanishing Trial: An Examination of Trials and Related Matters in Federal and State Courts, 1 J. EMPIRICAL LEG. STUD. 459 (2004). 39 NATIONAL CENTER FOR STATE COURTS (NCSC). Highlighting Aspects of the National Center for State Courts Civil - Justice Reform Initiative. NCSC (online). Vol. 6, N. 1, Summer 2007. Disponível aqui. Acesso em 05 ago. 2021. 40 MIZE, Gregory E. HANNAFORD-AGOR, Paula J.D. WATERS, Nicole L. The State-of-the-States Survey of Jury Improvement Efforts: a compendium report. National Center for State Courts; State Justice Institute (online). April 2007. Disponível aqui. Acesso em 05 ago. 2021. 41 Idem. 42 NATIONAL CENTER FOR STATE COURTS (NCSC), op. cit. 43 MIZE, Gregory E. HANNAFORD-AGOR, Paula J.D. WATERS, Nicole L., op. cit. 44 NATIONAL CENTER FOR STATE COURTS (NCSC), op. cit.
O capitalismo das cadeias de suprimento consiste em cadeias de commodities baseadas em subcontratação, terceirização e arranjos contratuais nos quais a autonomia das empresas componentes é legalmente estabelecida, mesmo quando as empresas são disciplinadas dentro da cadeia como um todo. Essas cadeias de suprimentos vinculam empreendedores aparentemente independentes, possibilitando que os processos de commodities se espalhem por todo o mundo. Trabalho, natureza e capital são mobilizados em nichos econômicos fragmentados, mas interligados; assim, o capitalismo da cadeia de suprimentos concentra nossa atenção nas questões de diversidade dentro das estruturas de poder.1 Pode-se argumentar que ainda não existe uma "lei da cadeia de abastecimento global". Enquanto isso, os conceitos jurídicos relativos à responsabilidade civil, deveres contratuais - tanto internamente quanto em relação a terceiros - bem como os graus de responsabilidade dos diretores da empresa devem ser atualizados neste contexto. Os limites entre uma demanda cuidadosamente elaborada em relação ao que uma empresa poderosa sabia ou poderia e deveria saber sobre o andamento das instalações de produção de suas subsidiárias ou fornecedores contratuais é o novo campo de batalha para a lei da cadeia de abastecimento global para a proteção dos direitos dos trabalhadores em um ambiente amplamente fragmentado e descentralizado de uma economia global.2 A Suprema Corte da Inglaterra inovou positivamente no campo das demandas de responsabilidade civil contra as "holdings" em relação às atividades de suas subsidiárias no exterior. A questão principal concerne sobre quando caberá uma lide diretamente contra a empresa controladora. No julgamento de 2019,3 resultante de reclamação apresentada por 1.826 aldeões zambianos contra a Vedanta resources Ltd - sediada no Reino Unido - e sua subsidiária KCM, discutiu-se sobre a poluição derivada de emissões tóxicas em uma mina de cobre da Zâmbia, de propriedade da empresa-filha.4 Os demandantes alegaram que os resíduos descartados da mina de cobre de Nchanga - pertencente e operada pela KCM - poluiu os cursos d'água locais, causando lesões aos residentes locais, bem como danos à propriedade e perda de renda. O Juiz Briggs considerou que o envolvimento da Vedanta nas atividades da KCM, fizeram surgir um dever de cuidado perante todas as pessoas que foram afetadas por aquela atividade. A novidade está em que o "duty of care" surge de um suficiente nível de supervisão e controle das atividades realizadas na mina, com suficiente conhecimento da propensão destas atividades causarem escapamento de substâncias tóxicas nos cursos de água circundantes. De acordo com as Regras de Processo Civil do Reino Unido, se houvesse uma questão julgável, a Vedanta poderia ser tratada como um "réu âncora" e a KCM poderia ser incluída como uma parte necessária ou adequada.  Decisivo para "Lord Briggs" foi o fato de que havia materiais publicitários nos quais a Holding Vedanta afirmava assumir sua própria responsabilidade pela manutenção de padrões apropriados de controle ambiental sobre as atividades de suas subsidiárias e, em particular, as operações na mina, tendo implementado esses padrões por treinamento, monitoramento e execução. Isso demonstra um nível suficiente de intervenção da Empresa Vedanta na condução das operações. Em síntese, a supervisão de todas as subsidiárias da 'Vedanta' dependia da orientação da própria Holding. Aliás, mesmo que de fato não tenha a controladora realizado essas atividades fiscalizatórias, a sua própria omissão constitui uma abdicação da responsabilidade que publicamente havia assumido. Por conseguinte, não há limite para os modelos de gestão e controle que podem ser colocados em vigor dentro de um grupo multinacional de empresas. Assim, em um extremo, a controladora pode ser apenas um investidor passivo em negócios separados conduzidos por suas várias subsidiárias diretas e indiretas. Em outro extremo, a empresa-mãe pode proceder em termos de gestão como se o grupo fosse uma única empresa, sendo irrelevantes os limites da personalidade jurídica dentro do grupo.  A Suprema Corte da Inglaterra entendeu que caberia aos demandantes optar por processar ambas as empresas na Zâmbia, ou então, a Vedanta na Inglaterra e a KCM na Zâmbia. Tal conclusão, teve como suporte o artigo 8º do Regulamento Reformulado de Bruxelas, que dá aos requerentes em litígios intra-UE a escolha (mas não a obrigação) de consolidar os processos a fim de evitar o risco de decisões inconciliáveis/contraditórias, concluindo-se que o mesmo princípio deve ser aplicado quando os requerentes estão domiciliados fora da UE (como neste caso).5 Outrossim, tendo em vista o princípio do acesso à justiça - substantial justice - os requerentes viviam na pobreza e não podiam obter assistência jurídica, sendo proibidos de celebrar acordos de honorários condicionais ao abrigo da lei zambiana, bem como seriam incapazes de obter os serviços de uma equipe jurídica na Zâmbia com experiência suficiente para gerenciar com eficácia litígios dessa escala e complexidade. É notável o quão próximo deste julgamento é o caso "Chandler v Cape plc [2012] EWCA Civ 525". Em Chandler prevaleceu o seguinte raciocínio: uma empresa-mãe que controla uma subsidiária pode ser responsável por seus ilícitos. Haveria uma "conexão de responsabilidade" (mais do que uma suposição) por lei se a controladora interfere nos assuntos de uma subsidiária. Isso parece muito com a ideia de ser um "fiduciário de filho". Se a empresa mãe interfere nos assuntos de uma subsidiária em uma questão (por exemplo, nas finanças), mas algo acontece de errado em outro lugar (por exemplo, no setor de segurança), ainda subsiste essa conexão de responsabilidade. Em resumo, a controladora assume a administração, na sequência emite conselhos sobre como lidar com os riscos e cria políticas de todo o grupo para supervisionar subsidiárias (v.g. sobre segurança ou danos ambientais), todavia omite o cumprimento das referidas instruções. O que se pode esperar desse comportamento contraditório?  Penso que o surpreendente do caso "Chandler" é o de que a Corte Suprema da Inglaterra considera que a própria "Holding" cometeu um ilícito, assumindo a responsabilidade em aspectos relevantes em relação aos funcionários da subsidiária, violando o seu próprio dever por não agir com cuidado em relação a eles. Ou seja, não se trata mais de perfurar o véu corporativo pela desconsideração da personalidade jurídica da sociedade afilhada. Isso doravante é despiciendo, na medida em que a empresa materna possui um dever de cuidado perante os funcionários da subsidiária e será responsabilizada por seu próprio comportamento antijurídico, não pelo ato ilícito da subsidiária. O caso "Vedanta" de 2019 é absolutamente consistente com esse "leading case".  Em livro escrito em coautoria com Fabrício de Souza Oliveira,6 mencionamos que na contemporaneidade do "direito de danos", marcado pela externalização dos riscos das "sociedades" agrupadas para a sociedade em geral, "O credor involuntário trava o primeiro contato com o causador do ilícito ao momento em que sofre o dano patrimonial ou à sua integridade psicofísica, individual ou metaindividual, de origem ambiental, consumerista ou outra ofensa a bens coletivos. O credor "vítima" litigará contra uma subsidiária sem ter tido a aptidão de previamente estimar a sua capacidade financeira ou saber que ela recorreu à responsabilidade limitada para exteriorizar prejuízos por danos, sendo apenas uma entre várias pequenas sociedades que escudam a inexpugnável holding, para tanto dotada de capitalização mínima e estrutura financeira abertamente escolhida para minimizar responsabilidade. Por isso, ao invés do recurso à responsabilidade societária que rege as relações entre as sociedades e seus credores contratuais, é legítimo que credores involuntários possam se valer da responsabilidade extracontratual, para que de forma direta e ilimitada façam valer as suas pretensões reparatórias". O meu ponto de vista, provavelmente compartilhado por uma maioria de estudiosos de direitos humanos e societário, é que esse é um dos casos mais importantes da história moderna, a saber, se as multinacionais podem ser responsabilizadas por seus próprios ilícitos, sobremaneira pelo impacto do novo raciocínio jurídico sobre tribunais por todo o mundo. O recado é claro: o binômio conhecimento/influência acarreta responsabilidade perante vítimas de comportamentos de "holdings" em matéria de direitos fundamentais. Em "Vedanta", a Suprema Corte sugere que a jurisprudência anterior se esqueceu de aplicar as regras ordinárias de responsabilidade civil aos problemas de direitos humanos das corporações multinacionais. Por essa nova e correta interpretação, não prosperariam vários casos em que uma controladora em Londres não fosse responsabilizada por ferimentos causados por amianto de um funcionário de uma subsidiária insolvente, pelo fato de os magistrados não entenderem que a controladora estivesse "presente" no local do ilícito por meio de suas subsidiárias.  Com efeito, não se trata de uma espécie de responsabilidade indireta ("vicarious liability"). É mais do que isso. Uma sistemática violação por parte das controladoras de deveres de monitoramento do comportamento das subsidiárias, bem como de oferecer segurança e informação é algo diverso. Se a empresa-mãe obtém os benefícios das atividades de suas subsidiárias, por que elas não devem suportar os encargos? Se as empresas controladoras criam o risco de uma empresa, por que elas não deveriam ser responsáveis por tudo no escopo dos riscos que elas criam? A decisão do UKSC Vedanta é a primeira decisão unânime de um tribunal superior da Commonwealth a considerar diretamente a possibilidade de responsabilidade direta da empresa-mãe perante terceiros afetados pelas atividades de uma subsidiária operacional estrangeira. Aliás, esta é uma oportunidade para enfatizar a função regulatória e educacional das empresas transnacionais, reafirmando o "enforcement", simplificando a lei e impedindo que ditas empresas externalizem os custos sociais, enquanto internalizam os ganhos. Foco nas pessoas e não no "board" da controladora, trata-se de um enorme passo à frente! Embora a decisão da Vedanta não seja vinculativa em outras jurisdições do common law, os precedentes da Suprema Corte do Reino Unido continuam a ser bem recebidos e respeitados. Neste diapasão, em 2020 a Suprema Corte do Canadá, no caso Nevsun Resources Ltd. v. Araya,7 decidiu que uma mineradora canadense que é proprietária majoritária de uma mina na Eritreia pode ser processada por abusos ocorridos naquele país por violações do direito internacional, e que a state doctrine - que impede os tribunais nacionais de avaliar os atos soberanos de um governo estrangeiro - não é obstáculo à demanda. Ou seja, o precedente canadense demonstra que o direito internacional do common law - customary international law ou jus cogens - atraí para o cenário doméstico graves violações cometidas por atores não-estatais em outros países. Daí que poder haver uma private cause of action em face de uma empresa que viola direitos humanos. Na linguagem brasileira, uma eficácia horizontal dos direitos fundamentais aplicada em ilícitos transnacionais, viabilizando uma obrigação de indenizar às vítimas injustamente tratadas por corporações. Em fevereiro de 2021, em Okpabi and others v Royal Dutch Shell Plc and Shell Petroleum Development Company of Nigeria Ltd a SCUK reafirmou a sua decisão no leading case Vedanta, confirmando que uma empresa-mãe no Reino Unido tem o dever direto de cuidar de terceiros afetados pelas operações de uma subsidiária no exterior. Todavia, a Suprema corte se recusa a estabelecer uma lista exaustiva de fatores e circunstâncias em que possa surgir o dever de cuidado, enfatizando se tratar de uma questão de fato, sindicável em cada caso específico. A recente decisão da Okpabi mantém a pressão sobre as multinacionais para gerenciar os riscos de forma eficaz em seus grupos corporativos e cadeias de suprimentos.8 Uma "grande lição" das recentes decisões do Canadá e Reino Unido é que as Supremas Cortes demonstram uma real disposição de levar a sério os direitos humanos. Recente legislação vem a reboque.9 Embora isso seja novo para a interface do direito societário e da responsabilidade civil, em verdade é o que já aconteceu no direito da concorrência e direito tributário: todos dependem crucialmente do reconhecimento da responsabilidade do grupo corporativo. No mesmo sentido, a legislação trabalhista em muitos países (por exemplo, garantindo que os trabalhadores tenham o direito de votar para o conselho de administração da empresa-mãe ou que possibilitem ajuizamento de demandas em solidariedade). Enfim, como já percebem os shareholders e stakeholders, agir diligentemente já não mais se trata de uma questão de altruísmo por parte das "holdings", porém de sobrevivência em mercados cujos consumidores não mais estão dispostos a apostar em empresas não comprometidas com interesses transindividuais e onde a credibilidade deixa de ser apenas parte do patrimônio imaterial de uma corporação, tornando-se a sua própria "ratio essendi". Uma das melhores soluções para evitar a responsabilidade da holding é garantir que os riscos sejam efetivamente mitigados por meio de devidas diligências e mecanismos de reclamação no nível da empresa-mãe. A falha em mitigar esses riscos pode criar responsabilidade para as empresas controladoras multinacionais, resultar em litígios e causar danos significativos à reputação e à marca de todo o grupo corporativo. Isso é de particular importância, no atual cenário em que as políticas e padrões ESG são definidos, implementados e administrados de cima para baixo em todo o grupo. __________ 1 Anna Tsing, Supply Chains and the Human Condition, 21:2 Rethinking Marxism: A Journal of Economics, Culture & Society 148-176 (2009), 148-9. 2 Benedikt Reinke & Peer C. Zumbansen Transnational Liability Regimes in Contract, Tort and Corporate Law: Comparative Observations on 'Global Supply Chain Liability', King's College London Dickson Poon School of Law Legal Studies Research Paper Series: Paper No. 2019-18. 3 Vedanta Resources Plc and Konkola Copper Mines Plc (Appellants) v Lungowe and Ors. (Respondents) [2019] UKSC 20. 4 A participação da Nchanga é mantida por meio da subsidiária operacional da Vedanta, Konkola Copper Mines plc ("KCM"). A KCM não é uma subsidiária 100% da Vedanta. O governo da Zâmbia tem uma participação minoritária significativa nele. Não obstante, a Vedanta publicou documentos afirmando efetivamente que o controle final da Vedanta sobre a KCM era completo. 5 REGULAMENTO (UE) N. 1215/2012 DO PARLAMENTO EUROPEU E DO CONSELHO de 12 de dezembro de 2012 relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial. Artigo 8º "Uma pessoa com domicilio no território de um Estado-Membro pode também ser demandada: 1) Se houver vários requeridos, perante o tribunal do domicílio de qualquer um deles, desde que os pedidos estejam ligados entre si por um nexo tão estreito que haja interesse em que sejam instruídos e julgados simultaneamente para evitar decisões que poderiam ser inconciliáveis se as causas fossem julgadas separadamente". 6 Nelson Rosenvald e Fabrício de Souza Oliveira, "O ilícito na Governança dos Grupos de Sociedades". Salvador, Juspodivm, 2019, p. 175. 7 Nevsun Resources Ltd. v. Araya, Supreme Court Judgments,  2020-02-28, 2020 SCC 5, Case number 37919. Três refugiados eritreus moveram uma ação contra a Nevsun Resources Ltd., uma empresa de capital aberto da Colúmbia Britânica. Eles alegaram que, por meio de uma cadeia de subsidiárias, a Nevsun entrou em um empreendimento comercial com a Eritreia para o desenvolvimento de uma mina de ouro, cobre e zinco, e que foram recrutados para trabalhar na mina no âmbito do Programa de Serviço Nacional da Eritreia. Os trabalhadores alegam que foram obrigados a trabalhar na mina de Bisha, na qual a Nevsun tem participação majoritária, 12 horas por dia, seis dias por semana, em temperaturas próximas a 50 graus Celsius e sem cobertura. Eles buscaram indenização de Nevsun por trabalho forçado, escravidão, tratamento cruel, desumano ou degradante e crimes contra a humanidade. 8 No caso Okpabi, as comunidades de Ogale e Bille reivindicaram indenizações por derramamentos de óleo de oleodutos operados pela SPDC. Os demandantes argumentaram que a RDS tinha para com os demandantes um dever de cuidado decorrente do controle que supostamente exercia sobre as operações da SPDC, de modo que a RDS era parte necessária e adequada das demandas. A Suprema Corte externou que "[i]n considering that question, control is just a starting point. The issue is the extent to which the parent did take over or share with the subsidiary the management of the relevant activity... That may or may not be demonstrated by the parent controlling the subsidiary. In a sense, all parents control their subsidiaries. That control gives the parent the opportunity to get involved in management. But control of a company and de facto management of part of its activities are two different things. A subsidiary may maintain de jure control of its activities, but nonetheless delegate de facto management of part of them to emissaries of its parent." 9 A Califórnia, Reino Unido, Austrália e países europeus como França, Holanda e Noruega já aprovaram legislações específicas exigindo que as empresas confirmem que não encontraram trabalho forçado, trabalho infantil ou tráfico de pessoas em suas cadeias globais de fornecimento.
Introdução: A Gênese do Conceito de Interseccionalidade no Direito Estadunidense Nossa coluna sobre o Direito Privado na Common Law tem colaborado com discussões sobre a origem de certos conceitos que têm influenciado os debates sobre o fenômeno jurídico no Brasil. É importante compreender o cenário da origem de determinados institutos e o contexto histórico em que foram formados, reconhecidos e aplicados originalmente. Ideias não surgem em um vácuo social, mas emergem no contexto de trajetória de disputas, conflitos e buscas por emancipação e reconhecimento. Nesse sentido é que o pensamento jurídico crítico se desenvolveu como parte de um processo de análise do discurso liberal típico do direito tradicional como sendo insuficiente para desconstruir assimetrias de poder, reproduções das hierarquias sociais e práticas institucionais injustas. Noutra coluna anterior intitulada 'O Vestido Sexy e a Análise do Poder no Direito: alguns temas do Critical Legal Studies', foram apresentados ao leitor alguns temas do pensamento jurídico crítico, notadamente relativos à política de identidade do grupo, uma defesa cultural pluralista da ação afirmativa e a análise do poder no direito a partir do ensaio sobre o vestido sexy, o abuso sexual e a erotização da dominação.1 A presente coluna revisita o tema do Critical Legal Studies a partir do documentário recém lançado da Professora Jeannie Suk Gersen, apresentando a formação do conceito de interseccionalidade como parte do debate promovido pelo pensamento jurídico crítico estadunidense. Revisitando o Pensamento Jurídico Crítico: O Documentário 'The Crits' Recentemente, a Professora Jeannie Suk Gersen da Harvard Law School lançou seu documentário de 25 minutos sobre o Pensamento Jurídico Crítico Estadunidense intitulado 'The Crits'.2 Uma especialista em direito de família e na área de direito e arte, ela teve como seus professores na própria Harvard Law School no início do século XXI alguns dos expoentes do chamado Critical Legal Studies (CLS), como Duncan Kennedy e Janet Halley. Porém, já tinha sido proclamada a morte daquele movimento, inclusive duramente criticado pelo ex-Presidente Ronald Reagan em 1988, quando se referiu ao CLS como um 'monstro de radicalismo pré-histórico'. Por outro lado, a Professora considera a influência do pensamento jurídico crítico sobre a legitimidade do direito como atual e pervasiva, tendo a crítica radical de esquerda contra o legalismo liberal se tornado parte do discurso acadêmico. Importante, o pensamento jurídico crítico teve desdobramentos setoriais, que deram origem ao pensamento jurídico crítico feminista - conhecido como 'Critical Feminist Theory' ou 'Fem Crit' - e ao pensamento jurídico crítico racial - conhecido como 'Critical Race Theory' ou 'Race Crit' - que também estão representados no documentário. O ponto de partida do documentário é uma série de entrevistas com expoentes do movimento, tal como Mark Tushnet, Peter Gabel, Richard Parker, Robert Gordon, David Trubek e o próprio Duncan Kennedy. Além de uma apresentação geral sobre as fundações sociais e políticas do movimento a partir da contestação ao racismo, ao patriarcalismo, ao capitalismo e ao colonialismo, o documentário relembra o primeiro encontro dos Crits em Madison em 1977, liderado por Richard Abel, Tom Heller, Morton Horowitz, Duncan Kennedy, Stewart Macaulay, Rand Rosenblatt e Mark Tushnet, tendo como secretário do Comitê Executivo o brasileiro Roberto Mangabeira Unger.3 David Trubek considera que o primeiro encontro já estabeleceu uma distinção com os membros do movimento 'Law and Society', que estariam mais integrados nas metodologias empíricas de pesquisa sociojurídica e não estariam abertos ao radicalismo da agenda dos pensadores 'Crits', o que os levaria a se desligar desse grupo.4 Apesar de terem também uma agenda progressiva e com ênfase na transformação social, a agenda de pesquisa do movimento 'Law and Society' estaria mais inserida na sociologia do direito e na história do direito, ao invés da investigação sobre os temas da teoria do conflito a partir de uma perspectiva moderna-pós moderna.5 Quanto à organização do movimento, Duncan Kennedy se recorda da dificuldade relativa à reprodução das hierarquias no âmbito da educação jurídica estadunidense e de como isso era sempre problematizado pelos participantes do próprio grupo, o que fica evidenciado pela fala dos demais entrevistados para o documentário.6 Os líderes do movimento eram bastante performáticos, atuando de modo bastante contestador contra o sistema político-jurídico então vigente. Em seu depoimento, David Trubek sumariza os quatro principais pontos teóricos dos autores críticos como sendo a Ilegitimidade das hierarquias, indeterminação das doutrinas jurídicas, a orientação do direito em certas direções com efeitos redistributivos e a política do cotidiano em contraste com a 'grande política'. Duncan Kennedy afirma que tinha consciência do impacto agressivo de suas ideias e que esperava o contra-ataque do sistema. Não somente houve uma forte reação da mídia, mas a direção das faculdades de direito passou a rejeitar o recrutamento de acadêmicos ligados ao movimento dos Crits, tal como, por exemplo, ocorreu com Claire Dalton na Harvard Law School. Uma das pioneiras do 'Fem Crit', Claire Dalton, descreveu a importância do movimento de reconhecimento de direitos das mulheres para o desenvolvimento do feminismo jurídico crítico feminista. Além disso, esclareceu que foi montado um grupo de leituras feministas para discutir a ampla dominação patriarcal sobre a sociedade e sobre o direito de uma maneira geral. Para ela, tanto o movimento 'Fem Crit' e o 'Critical Race Theory' surgiram como desdobramentos do movimento em geral. Dentre os acadêmicos entrevistados, merece destaque a Professora Kimberle Crenshaw, que lembra da importância de ter sido aluna de Duncan Kennedy no curso sobre responsabilidade civil e do espaço privilegiado para discussão aberta de temas relevantes nos eventos do pensamento jurídico crítico. Em uma conferência, por exemplo, convidada a promover uma discussão crítica a partir da perspectiva do gênero e da raça, Kimberle Crenshaw propôs que a reflexão de todos os presentes fosse pautada por apenas uma questão-problema: qual era a brancura do movimento Critical Legal Studies que afastava as pessoas de cor? Noutras palavras, ela criticava o próprio movimento como sendo pautado justamente pela perspectiva mainstream que pretendia desconstruir. O resultado foi explosivo, mesmo em um ambiente progressivo e crítico na academia estadunidense. O Conceito da Interseccionalidade: As Interseções da Discriminação Exatamente nesse contexto da necessidade de incorporar os temas raciais e feministas é que Kimberle Crenshaw escreveu e publicou seus artigos seminais sobre interseccionalidade. No texto intitulado 'Desmarginalizando a Intersecção da raça e sexo: Uma Crítica Feminista Negra da Doutrina Antidiscriminatória, Teoria Feminista e Política Antirracista'.7 O ponto de partida é a questão da discriminação no mercado de trabalho das mulheres negras, a partir do julgamento de casos como DeGraffenreid v. General Motors,8 em que as autoras alegaram que a empresa não tinha contratado mulheres negras até 1964 e durante a recessão na década de 1970 todas as mulheres negras foram demitidas. A corte consolidou o caso como sendo somente de discriminação racial, se recusando a combinar dois fatores de discriminação porque isso iria abrir uma caixa de pandora e contrariar a doutrina estabelecida de direito anti-discriminação. A alegação de que a combinação de raça e gênero seria necessária para o reconhecimento da discriminação - já que a empresa contratava tanto homens negros, quanto mulheres brancas - não foi devidamente considerada pelo Poder Judiciário. No texto intitulado 'Mapeando as Margens: Interseccionalidade, Política de Identidade e Violência contra Mulheres de Cor'.9 O artigo inicia com a afirmação de que um dos problemas da política da identidade consiste no fato de que ignora diferenças intragrupais, de modo que o artigo busca localizar as dimensões de raça e de gênero na violência contra mulheres de cor.10 Conforme afirma a autora, o discurso feminista e antiracista tinha falhado em identificar dimensões interseccionais, como no caso das mulheres de cor.11 Nesse artigo, o objetivo era evidenciar como as experiências de mulheres de cor tendem a não ser devidamente representadas pelo discurso tradicional dos movimentos feministas e antiracistas, em que o foco costuma ser em violência contra mulheres brancas e contra homens negros.12 No campo, a Professora realizou pesquisa empírica em abrigos para mulheres em Los Angeles com casos de mulheres negras e de mulheres asiáticas, discutindo interseccionalidade estrutural, política e representacional. A conclusão é de que o construcionismo vulgar distorce as possibilidades para uma política identitária pela confusão de duas manifestações de poder separadas, mas relacionadas entre si. Interseccionalidade proporciona uma base para reconceitualizar raça como uma coalizão entre homens e mulheres de cor. Reconhecer que a política de identidade ocorre no local da intersecção entre as categorias parece mais promissor do que desafiar a possibilidade de existência de categorias. O primeiro artigo foi citado mais de 21.000 vezes e o segundo artigo recebeu mais de 26.000 citações. Além disso, tais trabalhos foram o pontapé inicial para uma ampla produção acadêmica sobre a interseccionalidade. Por exemplo, recentemente foi publicado no Brasil o livro Interseccionalidade, de Patricia Hill-Collins e Sirma Bridge, que discorre sobre o assunto com profundidade, tratando de inúmeras fontes de discriminação - raça, classe, gênero, sexualidade, idade, capacidade e etnia - com a abordagem de temas complexos como os direitos humanos, neoliberalismo, imigração, protestos sociais e mídias digitais, dentre outros.13 Considerações Finais: Poder, Resistência e Transformação No documentário de Jeannie Suk Gersen, Kimberle Crenshaw se refere ao papel da Teoria Crítica de Raça como a perspectiva de observação do papel que o direito consistentemente e dinamicamente produz o que se considera como sendo 'raça', especialmente como raça recebe seu significado na sociedade e como se torna associada com quem mora onde, quem faz qual tipo de trabalho, quem é admitido na Universidade ou quem tem maior probabilidade de ser encarcerado. Nesse sentido, o direito contribui de modo decisivo em como a raça é vivida na sociedade. O conceito de interseccionalidade tem sido essencial para a discussão contemporânea sobre o racismo e o feminismo também no Brasil através da série Feminismos Plurais, especialmente do livro intitulado justamente Interseccionalidade.14 Trata-se de um conceito sobre o domínio causado pelo poder relacional em situação de conflito, da necessidade de resistência das minorias vulneráveis com duplo fator de discriminação e da possibilidade de transformação diante da consciência da injustiça sofrida nas interseções da discriminação social. O ponto de partida foi justamente a precarização profissional e a discriminação no local de trabalho de mulheres de cor. Não por acaso, a autora do documentário, a Professora Jeannie Suk Gersen, é uma mulher de origem asiática. Já a Professora Kimberle Crenshaw é uma mulher negra. Ainda assim, nos Estados Unidos, mulheres de cor são sub-representadas na academia e o Professor Derrick Bell abandonou sua cátedra na Harvard Law School em protesto pela falta de professoras negras. No Brasil, também deveríamos superar o sério problema de sub-representação de minorias no corpo docente das Faculdades de Direito. O debate sobre interseccionalidade serve justamente para aumentar nossa consciência sobre a discriminação e nossa capacidade de poder de resistência para promover transformação. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Apesar de não aparecer no documentário, Roberto Mangabeira Unger foi um expoente do movimento e elaborou um artigo seminal com a síntese das suas principais ideias. Confira-se: UNGER, Roberto Mangabeira. The critical legal studies movement. Harvard law review, p. 561-675, 1983. 4 Sobre o movimento Law and Society, confira-se: FRIEDMAN, Lawrence M. The law and society movement. Stanford Law Review, p. 763-780, 1986. 5 Veja, por exemplo, a contribuição de um dos expoentes do movimento Law and Society: FORTES, Pedro. O Expositor da Cultura Jurídica e da História do Direito: Pioneirismo e Impacto de Lawrence Friedman. Passagens. Revista Internacional de História Política e Cultura Jurídica, v. 11, n. 1, p. 24-40, 2019. 6 O Professor Duncan Kennedy lançaria um artigo clássico sobre esse tema. Confira: KENNEDY, Duncan. Legal education and the reproduction of hierarchy. Journal of Legal Education, v. 32, n. 4, p. 591-615, 1982. 7 CRENSHAW, Kimberlé. Demarginalizing the intersection of race and sex: A black feminist critique of antidiscrimination doctrine, feminist theory and antiracist politics. u. Chi. Legal f., p. 139, 1989. 8 413 F Supp 142 (E D Mo 1976). 9 CRENSHAW, Kimberle. Mapping the margins: Intersectionality, identity politics, and violence against women of color. Stan. L. Rev., v. 43, p. 1241, 1990. 10 Idem, 1242. 11 Idem, 1242-1243. 12 Idem, 1243-1244. 13 COLLINS, Patricia Hill; BILGE, Sirma. Interseccionalidade. Boitempo Editorial, 2021. 14 AKOTIRENE, Carla. Interseccionalidade. Pólen Produção Editorial LTDA, 2019.