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Direito e Sexualidade

Discussões da sexualidade como parâmetro relevante para o Direito.

Leandro Reinaldo da Cunha
Situações fáticas que nem mesmo passavam pela mente do legislador mais visionário são cotidianas atualmente, e necessitam do estabelecimento de diretrizes básicas para resolver os impasses que surgem vinculados a elas. Contudo, para além da dinamicidade das relações sociais não ser acompanhada pela legislação, que sempre se mostra um passo atrás1, há também as várias circunstâncias em que pode-se atribuir a uma demora de atuação do Poder Legislativo a grande carência de parâmetros para equacionar as questões que recaem sobre certos eventos. Quando o Código Civil de 1916 foi pensado, lá nos idos do início do século passado, algumas conjunturas que perpassam a vida das pessoas estavam totalmente fora do horizonte, podendo-se dizer o mesmo com relação ao que se deu com o Código Civil de 2002, elaborado no início dos anos 1970. No entanto, quando ele entrou em vigor no início de 2003, algumas das "novidades" que fazem parte do nosso dia-a-dia já tinham um mínimo de consolidação, mas permaneceram ignoradas, causando uma miríade de hipóteses lacunosas a serem analisadas. Dentre as várias situações que deveriam ter sido inseridas no texto legal mas que o legislador não se deu ao trabalho de positivar está toda a gama de questões atinentes às técnicas de reprodução humana assistida, tendo ele meramente se limitado a trazer três míseros incisos sobre a inseminação homóloga e a heteróloga no artigo destinado a estabelecer os critérios de presunção de paternidade dos filhos de uma mulher casada (art. 1.597 do Código Civil). Contudo a defasagem do Código Civil, e da legislação como um todo, com relação às várias possibilidade de se atingir o desejo de obtenção de uma prole fora dos limites tradicionais de um casamento, que antigamente era o instituto autorizador para que as pessoas pudessem começar a se dedicar à prática sexual e à busca pela constituição de uma família com filhos, é notória e até mesmo vergonhosa. Basta se considerar que o primeiro caso de "bebê de proveta" do mundo ocorreu em julho de 1978 em Bristol, na Inglaterra, com o nascimento de Louise Joy Brown, sendo que, no Brasil, foi em outubro de 1984, com o nascimento no Paraná de Anna Paula Caldeira. Ante a um cálculo bastante singelo pode-se afirmar que, quando do início da vigência do atual Código Civil, já era um fato que datava quase 20 anos a inseminação artificial em solo pátrio. As discussões sobre o tema ganharam tamanha relevância na sociedade que entre 1990 e 1991 foi transmitida, pela Rede Globo de Televisão, uma novela chamada "Barriga de Aluguel", com enorme audiência, movimentando a população em geral a pensar na trama em que uma jovem aceitava gestar o filho de um casal que não conseguia engravidar.  Tais considerações servem apenas para demonstrar que o Código Civil de 2002 deveria ter trazido considerações sobre um tema já presente na sociedade. E mesmo já passado mais de 20 anos de sua vigência, o legislador ainda não teve o devido cuidado de, ao menos, ter criado uma legislação específica visando estabelecer um regramento elementar para direcionar a solução dos problemas relacionados à realidade de quem busca ter um filho valendo-se das diversas tecnologias ou ante a uma contratualização de algum dos passos que levam a uma gestação. Impossível se apreciar as técnicas de reprodução humana sem que o recorte da sexualidade se faça presente, para além da discussão ordinária acerca da gravidez ter decorrido ou não de uma relação sexual, pois é relevante se ter em mente qual a origem do material genético que será utilizado para esse fim. Vivíamos uma realidade em que a definição da relação entre ascendente e descendente era lastreada por uma solução bastante ordinária na qual a mãe era a mulher que tinha dado à luz àquela criança (Mater semper certa est) e o pai seria o seu marido, em decorrência da presunção de paternidade já mencionada.    Posteriormente, por razões óbvias, já que a manutenção de relações sexuais não ocorria apenas dentro da estrutura de um casamento, se passou a ter a necessidade de criar mecanismos para resolver aquelas hipóteses em que a criança nascia de uma mulher que não estava casada, conferindo-se ao pai a atribuição de manifestar-se, de maneira formal, afirmando ser o genitor daquela criança, por meio do reconhecimento da paternidade. Contudo atualmente é possível que venhamos a nos deparar com uma realidade capaz de trazer uma multiplicidade de complexidades que podem deixar em grande dificuldade aquele que tenha que equacionar as celeumas que surgem. Muito disso decorre da já tradicional leniência legislativa2 que marca o nosso Estado Esquizofrênico3, a qual, nesse caso concreto, ainda abre espaço para a teratológica atuação do CFM - Conselho Federal de Medicina tratando de questões que estão totalmente fora do seu escopo de atuação4 e que, ainda mais aberrante, acaba levando o próprio Poder Judiciário a acolher tais normativas como fonte do direito5. Basta considerar que para além de todas as características de inovação surgidas na medicina, temos topado de forma recorrente com discussões que versam sobre a figura da inseminação caseira e da contratualização de relações sexuais com o intento único de geração de filhos. São situações ordinárias onde alguém coleta o esperma de um doador e inocula-o no corpo da mulher com uma seringa (simulando o que ocorre em uma relação sexual) ou em que firmam um acordo em que aquela mulher apenas deseja engravidar, sem que a pessoa com quem ela manteve a relação sexual tenha qualquer vínculo com aquela criança que nascerá, como já trazido anteriormente nessa coluna6. Se o Poder Público não se dignou a cuidar de hipóteses prosaicas como essas, que não envolvem a aplicação de um elevado grau de tecnologia, é de se imaginar que aquelas mais intricadas passam totalmente ao largo do que é possível se encontrar em nosso ordenamento jurídico. Nesse sentido trago uma proposição para provocar a análise de todo aquele que queira se debruçar sobre a complexa arte de compreender o direito e aplicá-lo: Se um casal formado por pessoas de gênero distintos não tiver condições de ter filhos e contratar que um homem e uma mulher lhe ofereçam seu material genético para que se fecunde um embrião que será implantado em uma outra pessoa que o gestará, quem serão os pais dessa criança?7 Sob a perspectiva contratual é de se compreender que aqueles que contrataram sejam os pais, contudo muito tem se discutido acerca desse contrato de gestação em substituição e seu valor jurídico. Ainda que não exista legislação expressa sobre o tema, o CNJ prevê a possibilidade de que se faça o registro da criança no nome dos contratantes, afastando a presunção da maternidade e reconhecendo a valia da manifestação de vontade das partes envolvidas (art. 513, § 1º do Código Nacional de Normas - Foro Extrajudicial)8. Importante se constatar que a previsão indicada apenas acolhe a quem formalizou por meio de contrato escrito a gestação em substituição, haja vista que o registro de nascimento em nome da contratante, e não da parturiente, apenas se autoriza ante a apresentação de "termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação". Considerando que o Código Civil prevê que a regra dos negócios jurídicos seja a forma livre, exigindo-se forma especial apenas quando for expressamente determinado em lei (art. 107 do Código Civil), temos aqui o CNJ inovando e legislando sobre algo que não lhe incumbe. De outra sorte, caso o entendimento for refratário à validade do contrato, entendendo-se pela inadmissibilidade da avença formulada entre aqueles que desejam ser pais e a pessoa que gesta uma criança em seu favor, é possível se concluir pela filiação vinculando a criança e quem a gestou, lastreado ainda no preceito do mater semper certa est que norteia o art. 1.597 do Código Civil. Tanto é assim que a própria previsão do CNJ tem por escopo afastar a obrigatoriedade de inserção no assento de nascimento da criança a informação que consta da DNV - Declaração de Nascido Vivo no campo destinado à mãe, atualmente parturiente9. Não se pode, por fim, ignorar que se o parâmetro utilizado for o da origem genética daquela criança, os pais não serão nem os contratantes e nem a parturiente, havendo de se estabelecer a vinculação entre aquele que nasceu com quem se constatar serem as pessoas das quais seu DNA se origina. Por mais absurda que possa ser essa afirmação, é premente que não se perca de vista que atualmente quando um homem não se manifesta reconhecendo ser o pai de uma criança é o exame de DNA que tem o condão de fixar a filiação. Trazidas essas ponderações, nos cabe decidir se o que haverá de prevalecer é o acordo de vontade entre as partes, a previsão legal de que a mãe é quem deu à luz à criança ou a sua ascendência genética. Obviamente que na ausência de conflito entre todas as partes que integram essa situação a solução se faz trivial, contudo o problema se estabelece caso haja uma pluralidade de interessados pugnando pela prevalência da vinculação paterno/materno-filial com aquela criança. Estabelecido um conflito em decorrência da eventualidade da gestante afirmar que não mais deseja cumprir o contrato e que quer ficar com aquela criança para si, estamos diante de uma situação que já vem sendo objeto de atenção da doutrina e que, particularmente, considero que a prevalência da avença firmada sobre a nova vontade expressada pela gestante é inafastável. Muito pode ser trazido no que concerne às alterações hormonais sofridas por essa gestante, pelo afeto que possa vir a ter nutrido por aquele feto que está a gestar ou sobre a perspectiva do direito ao seu próprio corpo e uma eventual vulnerabilidade que a levou a aceitar fazer parte daquela gestação em substituição. São variadas as vertentes que podem conduzir os questionamentos porvindouros, contudo o objetivo da presente coluna não se aterá a tais perspectivas. O aspecto que me motiva aqui não se direciona a resolver o embate entre vários indivíduos desejosos por assumir essa filiação, mas sim quando por qualquer razão os contratantes exaram o seu intuito de rescindir o contrato, negam-se a receber a criança depois que ela tenha nascido ou tenham falecido antes do seu nascimento. Nessas circunstâncias, a quem se impõe da filiação dessa criança? Por entender ser contrato de gestação em substituição indiscutivelmente válido, e sem a possibilidade, a princípio, de qualquer sorte de rescisão, sustento como inevitável o dever dos contratantes de assumirem a paternidade da criança gestada. Poderíamos lançar como situação limítrofe, que ensejaria um maior aprofundamento técnico, a discussão quando a gestante toma atitudes durante a gravidez que podem colocar em risco a perfeita saúde do bebê que está gestando, o que, de per si, abre espaço para se debater quais os limites que podem ser impostos contratualmente para essa gestante. Seja como for, de início, entendo que, com o nascimento da criança gestada, não há que se falar de qualquer discricionaridade em favor dos contratantes, os quais podem ser compelidos, até mesmo judicialmente, a registrar o bebê, fazendo valer a avença firmada pelas partes. Arrependimento, dissolução do relacionamento dos contratantes, cessação do interesse de ser pai/mãe, uma eventual gravidez da contratante, ou qualquer outra razão não são bastantes para eximir os que procuraram a gestação em substituição do dever de assumir a paternidade. Nesse diapasão tenho como plausível a possibilidade da propositura da ação de investigação de paternidade com o fim de que seja judicialmente determinado que os contratantes assumam a paternidade daquela criança nascida em decorrência da gestação em substituição, lastreada no contrato firmado entre as partes. Conjuntura que pode se revestir de contornos um tanto mais delicados é aquela em que os contratantes venham a falecer antes do nascimento da criança que está sendo gestada. Entendendo-se que o contrato segue inalterado com a morte dos contratantes, quando do nascimento dessa criança é possível se determinar que seja realizado o reconhecimento de sua paternidade/maternidade post mortem, com os contratantes figurando como pais, fixando-se que competirá a um tutor a responsabilidade de cuidar daquela criança, a quem será garantido todos os direitos sucessórios. Caso se entenda, noutro sentido, que se trata de um contrato que gera uma obrigação personalíssima, corre-se o risco de se concluir que a estipulação firmada estará rescindida ante a morte dos contratantes. E nesse exato ponto é que surge a grande preocupação que pauta o presente texto: será a gestante obrigada a ficar com a criança, impondo-se a ela o dever de ser mãe mesmo que esse nunca tenha sido o seu desejo, já que sua gravidez é decorrente exclusivamente de um negócio jurídico? Poderia se argumentar que essa situação seria algo equivalente a um "risco do negócio" que sobre ela recairia? Esse desenho apresentado está plenamente permeado de um recorte de sexo enquanto pilar da sexualidade, vez que como apenas mulheres, em sua acepção estrita biológica, por terem útero, podem gestar, o ônus do não cumprimento do contrato tem um claro marcador sexual. Evidente que poderíamos discorrer sobre a natureza do contrato, a necessidade da presença de certas cláusulas para mitigar tais riscos ou ainda as variáveis admissíveis caso o contrato para a gestação em substituição tenha sido escrito ou não, se é possível a cessão desse contrato ou a assunção da posição contratual pelo falecimento de um dos contratantes, questões que serão objeto de artigo científico posterior. No presente momento a finalidade desejada é fazer com que aqueles que tem se dedicado a estudar esse tema tenham sua atenção voltada para esse recorte. Negar a validade do contrato como uma premissa, de maneira genérica, especialmente após a gestação em substituição ter se consubstanciado de fato, pode gerar uma consequência extremamente prejudicial a uma mulher, cabendo até mesmo se aventar a possibilidade que o julgamento com perspectiva de gênero venha a ser levado em consideração em tais circunstâncias. Antes de uma visão romantizada ou revestida de uma tecnicidade parcial é indispensável que se coloque em primeiro plano a autonomia que lastreou a convenção firmada entre as partes, não se fazendo escolhas ao sabor dos ventos e dos interesses que se busca atender em cada momento, prezando por uma linearidade de raciocínio lógico-jurídico. Como a legislação, nesse caso, sequer foi elaborada, é primordial que as discussões que venham a pautar o tema não se esqueçam de ponderar que, uma solução que não sopese todos os eventuais riscos, pode acabar por culminar em uma nova modalidade de mãe-solo, ainda mais cruel do que as que já assolam nossa sociedade. Que a proteção da mulher não seja mais uma vez ignorada pelos nossos tribunais. Que o Poder Legislativo não relegue a mulher, mais uma vez, a uma condição de arrimo familiar, especialmente considerando que a gestação se originou de um contrato. Que, ao menos dessa vez, a mulher receba a proteção de que é merecedora. ______ 1 Orlando Gomes. Direito e desenvolvimento. 2 ed., rev. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 4-5. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Acesso à reprodução humana assistida por homoafetivos e transgêneros. In: MASCARENHAS, Igor; DADALTO, Luciana (coords.). Direitos reprodutivos e planejamento familiar. Indaiatuba, SP: Editora Foco, 2023. p. 220 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 77. 6 Clique aqui 7 Parte das questões aqui analisadas foi objeto de discussão com os alunos da UFBA que integram o LABFAMS (Laboratório de Investigação de Direito da Família e Sucessões), grupo de estudo sob minha coordenação. 8 § 1.º Na hipótese de gestação por substituição, não constará do registro o nome da parturiente, informado na declaração de nascido vivo, devendo ser apresentado termo de compromisso firmado pela doadora temporária do útero, esclarecendo a questão da filiação. 9 Clique aqui
Em outubro de 2024 entrou em vigor no Brasil a lei 14.994/24, também nomeada de pacote antifeminicídio em razão de seu escopo direcionado à proteção contra a violência de gênero, tendo como ponto mais aclamado o fato de ter tornado o feminicídio um crime autônomo (art. 121-A do Código Penal). O delito deixa de ser apenas uma qualificadora no crime de homicídio (antigo inciso IV do art. 121, agora revogado), passando a ter existência em si mesmo enquanto conduta típica. A lei 14.994/24 mostra-se como um instrumento normativo de envergadura, não tendo se restringido apenas a estabelecer o novo tipo penal do feminicídio, mas também fixando uma pena mais grave para o crime de homicídio quando praticado contra mulher (reclusão de 20 a 40 anos), além de trazer outras considerações em inúmeras circunstâncias em que a vítima é atacada em razão de sua condição de gênero. Face à toda misoginia que permeia o cotidiano brasileiro e que coloca as mulheres e toda a gama do feminino em uma situação de extrema vulnerabilidade é de suma importância que o Estado confira especial atenção a tal realidade. Nesse aspecto, a apresentação do pacote antifeminicídio é merecedora de toda a felicitação possível. Contudo há uma perspectiva técnica que envolve o tema e que é elemento nuclear de tudo o que recorrentemente compartilho nesse espaço, e critério basilar dos meus escritos: de que pilar da sexualidade estamos falando? A legislação visa resguardar uma questão atrelada ao sexo, ao gênero, à orientação sexual ou à identidade de gênero? A dúvida se coloca exatamente ante a contínua confusão existente entre sexo e gênero1 que é apresentada não só pela sociedade como um todo mas também pelo Poder Público2, e que impacta de maneira preocupante na efetiva proteção de quem precisa de especial atenção do Estado. Em que pese entender que todo o espectro do feminino (enquanto gênero) esteja abarcado pela defesa preconizada pelo pacote antifeminicídio, a forma como a questão é descrita no corpo da lei 14.994/24 pode trazer fortes questionamentos quando se analisa o tema para além da sua superfície. Durante todo o texto da lei, iniciando na própria ementa, se tem a utilização da expressão "crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino", fixando o parâmetro a ser utilizado para a incidência da lei. Seguindo o nosso marco teórico de que a sexualidade se sustenta em quatro pilares sob o viés jurídico3, é essencial se entender de qual dos alicerces estamos tratando. Com base nessa perspectiva temos que sexo há de ser entendido, em seu sentido estrito, como reflexo da "conformação física ou morfológica genital constatada no instante do nascimento da pessoa"4, enquanto o gênero repousa na "expressão social que se espera de quem seja homem/macho (masculino) ou mulher/fêmea (feminino)"5. Ao valer-se da expressão "crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino" o texto faz uma enorme miscelânea conceitual, mas, claramente, ainda que de forma pouco escorreita, conduz a uma proteção tanto da mulher (sexo) quanto do feminino (gênero). Dessa maneira, a lei 14.994/24 alberga a quem tem elementos biológicos associados à mulher, como também a quem expressa socialmente o feminino. A atecnia demonstrada apenas revela uma vez mais a clara deficiência de letramento do Poder Público acerca das questões atinentes à sexualidade, que reiteradamente trata sexo e gênero como uma única coisa. Qualquer interpretação que aparte da proteção especial, trazida pela lei 14.994/24, quem quer que seja que possa ser considerado sob o espectro da mulher (sexo) ou do feminino (gênero) se mostra equivocada e, muito provavelmente, eivada de preconceito. Proteger apenas a mulher por ter nascido com uma vagina ou por portar dois cromossomos X exigiria que o agressor, obrigatoriamente, tivesse ciência da conformação física ou acesso a uma análise genética da vítima. Na prática os crimes contra a mulher estão, em larga escala, muito mais vinculados a uma presunção de que aquela pessoa seja uma mulher exatamente pelos caracteres por ela ostentados socialmente. Objetivamente se infere qual é o sexo de uma pessoa (na perspectiva biológica) pelo fato de estar ela expressando aspectos associados ordinariamente àquele sexo, e não pela constatação do sexo em si. Se conclui por qual é a configuração física e genotípica da pessoa em razão dos caracteres de gênero que ela demonstra. Inquestionável que o aspecto biológico atrelado ao sexo é pertinente para a análise do tema, objetivando a proteção especial de alguém que experiencia uma maior vulnerabilidade em razão do seu corpo expressar aspectos vinculados ao feminino. Contudo o ódio que norteia as condutas criminosas contra tais pessoas se assenta nas características exteriorizadas dessa condição de mulher (critério biológico), ou seja, no gênero. No universo jurídico, podemos atribuir boa parte da responsabilidade pela dificuldade de se compreender com clareza a distinção entre sexo e gênero ao equivoco técnico já relatado nessa coluna com relação à informação consignada na DNV - Declaração de Nascido Vivo, e consequentemente no RCN - Registro Civil de Nascimento e na certidão de nascimento, no campo destinado ao sexo. No espaço destinado a indicar o sexo (homem/macho, mulher/fêmea ou intersexo) o modelo elaborado pela Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde no anexo II da portaria 116/09 indica dois termos concernentes ao gênero (feminino ou masculino, na perspectiva binária, além de um "ignorado" que seria direcionado aos casos de pessoas intersexo)6. Entre os inúmeros desdobramentos desse equívoco podemos constatar que transgêneros e pessoas não-binárias, em razão do impacto social da presença desnecessária de tal informação nos documentos, tem pleiteado a alteração da informação constante desse campo nos documentos7. Retomando a apreciação específica do texto da lei 14.994/24, é de se assinalar que ao "definir" o nome a ser dado ao novo tipo penal de "Matar mulher por razões da condição do sexo feminino" valeu-se daquele que já vinha sendo utilizado para tal conduta, qual seja, feminicídio. Tal escolha, preferindo feminicídio a "mulhericídio", não é inconsciente, revelando que o crime se ancora na primazia da perspectiva do gênero, já que a motivação está baseada no que é expressado pela mulher, seguindo os moldes estabelecidos na origem do termo fimicide, cunhado por Diana Russell e Jill Radford8. Restando inequívoco que as condutas tipificadas pelo pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) têm na misoginia ou menosprezo face a condição feminina seu lastro, é premente se entender que o fator aglutinador dos comportamentos previstos nessa lei está na premissa de que o agente do ilícito atua segundo uma percepção de que ele possui uma superioridade em face dessa vítima. No cerne da motivação do agente está a concepção de poder, nesse caso direcionado ao controle dos corpos alheios e à regulação da sexualidade9, como é recorrente em sede de crimes sexuais. Conclui-se, portanto, que é inteligência inafastável que toda vez que a lei 14.994/24 replica a expressão "crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino" em verdade está referindo-se a crimes que sejam motivados pelo fato de a vítima possuir um elemento ligado ao feminino, não apenas vinculando-se ao fato de ter ela nascido com uma vagina, ovário, útero, trompas, etc, ou por ter o cromossomo sexual XX. Disso decorre uma considerável gama de consequências técnicas que não podem ser ignoradas, como a de que estão acolhidos sob os preceitos estabelecidos pelo pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) toda pessoa que expresse o feminino, o que inclui mulheres (cromossomo XX) e pessoas do gênero feminino (cisgênero ou transgênero)10. Necessariamente também se aplica aos homens transgênero (pessoas a quem se atribuiu o sexo mulher/fêmea ao nascer mas que não se reconhecem como do gênero feminino), quando a motivação do crime esteja na premissa de que aquela pessoa possui ou possuiu aspectos sexuais externos associados ao feminino, como nos casos de pânico trans11. Como exposto no manual dos Direitos Transgênero que acabo de publicar, ainda antes da transformação do feminicídio em crime autônomo, "a proteção da lei visa atender toda a amplitude do conceito atrelado ao feminino, seja quanto a sua manifestação física/genital (sexo), seja na sua acepção sociocultural (gênero), autorizando a imposição da qualificadora quando o homicídio tenha como vítima tanto quem possui genitália tradicionalmente associada à mulher (mulheres cisgênero e homens transgênero) como também a quem performe o gênero feminino (mulheres cisgênero e mulheres transgênero)12. Em uma hermenêutica que pode gerar arrepio a muitos chego até mesmo a ponderar que se o bem jurídico protegido é o feminino seria admissível se pensar na aplicação de todos os parâmetros estatuídos no pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) em favor de um homem vitimado por violência doméstica que vive um relacionamento com alguém do mesmo sexo/gênero e que exerce o papel do feminino nessa relação. Finda a análise da vítima que o pacote antifeminicídio busca resguardar é premente se fazer uma crítica acerca de um aspecto que já nos motivou anteriormente na presente coluna, que é a proteção das mulheres de forma geral, como uma coletividade e não apenas de maneira individualizada. O pacote antifeminicídio (lei 14.994/24) perdeu uma enorme chance de tipificar as condutas misóginas praticadas contra as mulheres e o feminino de forma geral, persistindo a inexistência de cominação legal específica com relação a atos dirigidos contra a coletividade feminina. Ao traçar novas linhas com relação aos "crimes praticados contra a mulher por razões da condição do sexo feminino" trata dos crimes contra a honra, prevendo a majoração da pena, por exemplo, no caso de injúria cometida com tal motivação, cominando a aplicação da pena em dobro (art. 141, § 3º do Código Penal). Persiste a lacuna em relação à misoginia contra a coletividade das mulheres e ao feminino como um todo, já que o texto da lei 14.994/24 restringe-se a tratar apenas de tais condutas direcionadas a uma pessoa individualizada. A omissão que sustenta a ADO 26, que, a partir da concepção social de raça, aplica o crime de racismo para os casos de homofobia e transfobia13, permite que se conclua também pela verificação do mesmo tipo penal para a misoginia direcionada a todas as mulheres, como sustentei na coluna na qual discorri sobre o empresário que disse "Deus me livre de CEO mulher"14.  A concepção de sexismo enquanto um elemento passível de ser compreendido como raça em sua dimensão social não é uma novidade em si, tendo sido abordada em estudos antropológicos, nos quais até mesmo se sustenta que a conexão sexismo/racismo se justificaria "na medida em que o sexismo também se apoia em uma definição física e biológica da mulher"15. Evidente que a subsunção de tais condutas ao crime de racismo não é a solução mais adequada, contudo os elementos componentes do tipo penal, ao firmar a raça (que juridicamente não é o mesmo que cor)16 como um dos parâmetros para a sua aplicação, ao lado de outros como etnia, religião ou procedência nacional, deveria nos conduzir mais a uma discussão acerca do nome dado ao crime. Se o tipo penal descrito no art. 20 da lei Caó (lei 7.716/89) fosse meramente denominado de "discriminação" ou qualquer outra expressão que socialmente não fosse atrelada ao que tradicionalmente se vincula às lutas raciais no Brasil a situação seria menos conturbada. Indubitável que as conquistas da população negra pautaram a elaboração da legislação e é plenamente compreensível a busca pela manutenção de toda a simbologia que está associada ao crime de racismo para pretos e pardos, contudo esse aspecto não pode ser suficiente para se impedir que outras pessoas venham a se beneficiar da proteção descrita na lei Caó (lei 7.716/89). Tentar restringir que quem não é negro venha a valer-se do que está ali descrito constitui uma manifesta afronta aos preceitos constitucionais mais basilares, além de representar uma exclusão indevida de cidadãos da proteção legal, em afronta à vedação de proteção insuficiente, o que reveste-se de contornos ainda mais preocupantes em se tratando de um grupo tão vulnerabilizado quanto o das mulheres e daquelas que expressam o feminino. Mesmo ciente da árdua luta que pessoas negras seguem travando em nossa sociedade, a perspectiva que conduz a presente análise não tem qualquer intenção de trazer apagamento ou minoração da relevância de sua batalha. O intuito é apenas garantir a efetiva proteção às mulheres e ao feminino como um todo, ainda mais quando em muitos momentos essas guerras travadas contra as maiorias subjugadoras são convergentes. A proteção de uma não minora a proteção da outra. Negar acesso à plenitude das garantias legalmente existentes sob a alegação de que foi um dado grupo que laborou para o surgimento da legislação, deixando à deriva quem precisa de proteção, jamais pode ser uma diretriz a nortear quem sente todas as mazelas da opressão, subjugação e discriminação. Pugno, por fim, que pessoas negras, mulheres, homossexuais, transgêneros, aliados, e leitores de todos os espectros absorvam o que apresento aqui com a mente aberta, pautados meramente pelas linhas elementares dos Direitos Humanos e de nosso Estado Democrático de Direito. Se quiserem traçar objeções, que elas seja jurídicas e não ideológicas, sob pena de que ao defender seu ponto de vista você estará perpetuando uma realidade de discriminação contra outro grupo. Ninguém com um mínimo de consciência social nega que a misoginia é um dos grandes problemas a assolar nosso país. Então qual a sustentação para uma vedação de aplicação da lei a uma situação fática que está nos seus limites de atuação? Preocupante que a busca pela proteção mais ampla possível à mulher nas bases aqui propostas encontre objeção de mulheres e negros. Mas sigo provocando: se o "nome" dado ao tipo não fosse racismo ou injúria racial, a refração à ideia aqui expressada seria a mesma? Se ao lado de "raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional", que constam do art. 20 da lei Caó (lei 7.716/89), estivessem presentes expressões como "sexo", "gênero" ou "sexualidade" haveria alguma dúvida quanto a sua aplicação em casos de misoginia? Apenas para aplacar a ira que o presente texto certamente fará nascer nos penalistas, já ressalto que não se está aqui tratando de analogia ou mesmo interpretação extensiva, mas tão somente de hermenêutica lastreada na compreensão dos termos apostos na legislação, bem como seus objetivos. Então, desafio a quem chegou até aqui à reflexão: Se o próprio STF já reconheceu que a expressão raça constante da lei comporta a sua dimensão social (ADO26), que abarca dados grupos vulnerabilizados e subjugados em razão de elementos da sexualidade, por que é tão difícil garantir essa proteção às mulheres e ao feminino? É premente se aceitar que é necessário se usar todas as ferramentas disponíveis em nosso ordenamento jurídico em favor da proteção dos grupos que sofrem preconceito e discriminação em razão de quem são. O Poder Público expressa claramente, com o pacote antifeminicídio (lei 14.994/24), que a mulher e o feminino necessitam de uma atenção especial, não podendo a leniência legislativa17 expressada por nosso Estado Esquizofrênico18, mais uma vez patente, permitir que a misoginia, que abre fissuras em nosso tecido social, siga incólume. A proteção da mulher e do feminino há de ser exercida de forma ferrenha e plena, com todas os instrumentos possíveis, ainda que possam desagradar outras pautas ou gerar incomodo. O foco há de ser sempre a proteção das minorias e de quem padece de uma realidade de vulnerabilidade em nossa sociedade. A luta há de ser sempre pela ampliação dos instrumentos protetivos dos que mais precisam, nunca a sua redução. ________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 3. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Refúgio/asilo político para pessoas LGBTI+. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.2, p.189-204, 2022, p. 191. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 309-310. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da; SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; FREITAS, Dionne do Carmo Araújo. Intersexolidade e intersexualidade da pessoa intersexo: confusão e invisibilidade. Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 4, n. 2, p. 147-165, 2023 7 Disponível aqui. 8 RUSSELL, Diana E. H.; RADFORD, Jill. Femicide: The Politics of Woman Killing. New York: Twayne Publishers, 1992. 9 Michel Foucault. História da sexualidade 1: A vontade de saber, Rio de Janeiro: Graal, 1999. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 242. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 245. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 245. 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 230. 14 Disponível aqui. https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/415941/racismo-e-o-deus-me-livre-de-mulher-ceo 15 WIEVIORKA, Michel. El espacio del racismo. Barcelona, Paidós, 1991. p. 27. 16 Disponível aqui. 17 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 18 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.
Não são poucos os casos em que se pode constatar restrições de acesso aos direitos fundamentais para as minorias sexuais lastrados em parâmetros desprovidos de fundamentação plausível, com manifesta ofensa a premissas fundantes do nosso Estado democrático de direito. O preconceito por vezes parece consolidar-se como um valor metajurídico que tem o poder de afastar a concessão dos direitos mais nucleares garantidos a todas as pessoas quando destinados a proteger certos grupos1, vulnerabilizando de maneira inadmissível aqueles que necessitam de especial atenção do Estado. Diversamente do que muitos propagam as minorias gozam de um status nos Estados democráticos de direito que as coloca em condição de grupos merecedores de atuação diferenciada visando propiciar a manutenção da sua existência segundo os preceitos norteadores da cidadania plena, não podendo prosperar uma visão de mundo que segrega e que muitas tenta exterminar todo aquele que não se enquadra no padrão posto2. Não bastasse essa realidade social que por si só já coloca em risco a presença das minorias sexuais na sociedade ainda somos obrigados a experienciar uma situação bizarra em que até mesmo modelos e formulários têm se sobreposto a lei, especialmente em detrimento dos direitos desse grupo já tão vulnerabilizado. A alegação de que os formulários configuram-se como parâmetro para decisões pode ser visto, nos últimos tempo, no caso da CNI - Carteira Nacional de Identidade, o chamado novo RG. Questionada a necessidade da aposição do sexo no corpo do documento, como também a concomitância da presença de um campo destinado ao nome e outro ao nome social, o TRF da 1ª região entendeu que a emissão do documento com tais informações seria mantida, pois do contrário poderia ocorrer "uma série de embaraços e transtornos" para a Administração Pública "como um todo e em todas as esferas estatais", o que ensejaria numa "completa paralisação do serviço de emissão da carteira nacional de identidade" (1022184-25.2024.4.01.0000). No referido caso é relevante se notar que o próprio Governo Federal manifestou-se inicialmente no sentido de que não prevaleceriam as informações referentes ao sexo e ao nome social na CNI, contudo nem mesmo esse reconhecimento bastou para que o executivo e o Judiciário efetivassem a proteção das minorias sexuais3. Nessa nossa "pátria do formulário", na qual o padrão constituído se sobrepõe à realidade dos fatos, recebemos como uma grande notícia toda vez que o Poder Judiciário reconhece algum dos absurdos praticados lastreados nesse equívoco crasso de valorizar um modelo construído em detrimento de todo o arcabouço jurídico existente com o fulcro de proteger a pessoa humana. O mais recente caso em que pudemos ver o afastamento de uma premissa equivocada constante de modelos e formulários se deu com a decisão proferida pelo STF no julgamento da ADPF 787, que teve o min. Gilmar Mendes como relator e que, por unanimidade, em julgamento ocorrido em 17 de outubro de 2024, reconheceu a "Omissão da União em assegurar acesso adequado à saúde para pessoas transexuais e travestis", impondo ao Poder Público o dever de garantir o apropriado atendimento médico às pessoas independentemente da informação quanto ao sexo constante de seus documentos. Partindo-se do pressuposto de que a identidade de gênero (e o seu reconhecimento para fins legais) independe da realização de qualquer intervenção cirúrgica ou tratamento hormonal prévio (ADI 4275), é evidente que não pode prevalecer qualquer critério que vede o acesso à saúde a quem tenha realizado a alteração de seus documentos em consonância com a sua identidade de gênero4. Tal afirmação é relevante a partir do momento em que se compreende que há a possibilidade de que homens transgênero venham a engravidar e a dar à luz a uma criança, já que podem manter-se com a capacidade reprodutiva integra mesmo após a sua transição, o que torna necessário o atendimento médico especializado, como com um ginecologista, ainda que apresente em seus documentos a informação de se tratar de alguém do gênero masculino. Da mesma forma que é possível que uma mulher transgênero tenha a necessidade de atendimento por um urologista. Trata-se de uma constatação lógica baseada simplesmente na constituição física daquela pessoa, algo que vai além de qualquer discussão que tenha a sexualidade como fundo. Não importar se aquela pessoa apresenta documentos que indicam esse ou aquele sexo, ou ostente um determinado gênero, já que o fato que a leva a precisar de um atendimento médico específico há de ser determinado simplesmente pela condição clínica que apresenta5. Além de especificamente impor que o efetivo acesso ao direito à saúde seja garantido a todas as pessoas independentemente de sua identidade de gênero, o STF, na ADPF 787, manifestou-se quanto aos elementos componentes da DNV - Declaração de Nascido Vivo, vez que o modelo institucionalizado desse documento traz informações em seus campos que podem gerar limitação ao pleno exercício dos direitos pelas pessoas transgênero. Já teci nessa coluna algumas considerações sobre os problemas da DNV6, sendo certo que há muito o que se questionar sobre a qualidade e adequação do modelo atualmente vigente. Na ADPF 787 o STF debruçou-se a analisar a informação que compõe o campo destinado a indicar os aspectos atinentes ao nascimento, mais especificamente à relação existente entre aquele que nasceu e a pessoa que deu a luz, bem como aos que figurarão como seus genitores. Antes mesmo de discorrer com maior vagar sobre o conteúdo da decisão proferida na ADPF 787 pelo STF é primordial se destacar como a compreensão dos elementos que compõem a sexualidade segue sendo um dos maiores problemas quando da discussão de questões vinculadas ao tema, sendo recorrente que tribunais se equivoquem ao defini-los. Isso também ocorre na presente ADPF que, ressalte-se, tem por fundamento específico analisar aspectos vinculados à sexualidade, o que faria se pressupor que a decisão estaria alicerçada nos mais escorreitos e técnicos conceitos acerca do que encerra a ideia de sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. Todavia não é isso o que se pode constatar na prática.  Acessando-se a decisão se verifica que, ao mencionar "transexuais e travestis" como pessoas que devem ter a si garantido o acesso à saúde, o STF os define como "pessoas que não se identificam com o sexo com o qual nasceram". Uma das minhas cruzadas em meus escritos e como pode ser constatado em vários dos textos constantes dessa Coluna, sexo e gênero são aspectos distintos e que precisam ser devidamente separados para que não se incorra em equívocos técnicos7. Da mesma sorte, reiteradamente expresso qual há de ser a correta compreensão do que venha a ser a transgeneridade, condição que alberga tanto transexuais quanto travestis, e que há de ser entendida como a condição experienciada por aquela pessoa que "não se entende como pertencente ao gênero que era esperado em decorrência do sexo que lhe foi atribuído quando do nascimento"8. Chega a ser desolador constatar a maneira como a transgeneridade é tratada pelos nossos tribunais, a ponto de o descuido ser tamanho que o comunicado oficial do STF, destinado à "informação à sociedade", chega a grafar de forma equivocada a palavra transexual (transsexual). É uma falha que não se pode admitir, ainda mais quando consignada em um documento elaborado pela mais alta casa do Judiciário nacional, e destinada a dar ciência à população como um todo de sua atuação naquele caso concreto. Retomando a análise do conteúdo da decisão proferida na ADPF 787, com relação ao que consta da DNV, entendeu-se que o "princípio da igualdade impõe que o poder público respeite as identidades de todas as pessoas (arts. 3º, IV, e 5º, caput, da CF/88). Assim, as declarações de nascido vivo (DNVs) devem usar os termos 'parturiente/mãe' e 'responsável legal/pai', que contemplam todas as identidades de gênero, incluindo pessoas transexuais e travestis". Mais uma vez é preocupante constatar que uma questão que se manifesta como óbvia precise chegar ao STF para ser reconhecida apenas por versar sobre temas atinentes à sexualidade9, em uma clara demonstração de como a dominação cisheteronormativa vigente tenta (e consegue) impor à sociedade preceitos equivocados, exigindo que as minorias sexuais tenham que muito laborar para conseguir fazer valer o que é inconteste para as demais pessoas. A obscuridade que toma conta desses olhares conservadores é tamanha que faz com que a ciência mais elementar e consolidada seja ignorada e questionada, ressuscitando dúvidas já de muito superadas, conferindo a elas uma nova roupagem capaz de ludibriar os incautos e aqueles que desejam que suas perspectivas discriminatórias sejam confirmadas. A questão posta é, essencialmente, a de adequação de um modelo usado de forma nacional e que se mostra inadequado. Chamar a pessoa que deu a luz à criança de parturiente e não de mãe se mostra coerente não apenas sob a perspectiva das pessoas transgênero mas também atende a um outro parâmetro que permeia nossa sociedade, que são as hipóteses de reprodução humana assistida, especialmente quando se pensa na figura da gestação em substituição. Pela própria essência do que constitui a figura da gestação em substituição10 é evidente que aquela pessoa que pariu a criança não é a mãe daquele bebê, não sendo nem mesmo necessário se embrenhar em discussões referentes a sentimento ou afeto. Tal modalidade de gestação tem uma natureza contratualizada, de sorte que a expressão "mãe" não guarda conexão com a relação existente entre a parturiente e aquela criança. É indispensável que se consolide a ideia norteadora de que não podem os formulários elaborados e utilizados de forma geral pelo Poder Público fomentar a discriminação, haja vista que uma DNV na qual conste "mãe" no campo que haveria de ser destinado à parturiente pode encerrar em si uma série de dificuldades, promovendo uma segregação e institucionalizando uma discriminação atentatória as diretrizes basilares do nosso Estado Democrático de Direito. Importante se consignar também que o modelo da certidão de nascimento estabelecido pelo provimento 63 do CNJ já não traz em seu corpo as expressões "mãe" ou "pai", mas sim filiação, que de forma mais includente possibilita que no campo sejam inseridos os nomes dos ascendentes daquela pessoa independentemente de qualquer consideração de gênero. Não é possível se admitir que o Poder Público continue fechando os olhos para as ofensas perpetradas contra as minorias sexuais, sendo ainda mais degradante se constatar que muitas das condutas segregatórias que atingem esse grupo tão vulnerabilizado emanam do Estado que haveria de protege-las e garantir-lhes o real acesso aos seus direitos fundamentais. Mas ver formulários e modelos pautando discussões que envolvem o efetivo respeito à dignidade da pessoa humana desse grupo extrapola todos limites. Parece anedótico, mas é, em verdade, algo que coloca em risco a existência de quem já enfrenta tanta segregação, estigma e discriminação. Pode ser fatal. ________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, 1, p. I - IV, 2022. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 96. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 65-66. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 65. 6 Disponível aqui.  7 Disponível aqui.  8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025, p. 7. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A união homossexual ou homoafetiva e o atual posicionamento do STF sobre o tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito da Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo: Metodista, v. 8, 2010. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Gestação em substituição: partes, restrições indevidas e responsabilidade civil. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 4, 1, p. 117-147, 2024.
quinta-feira, 24 de outubro de 2024

O impacto de gênero das bets

O fenômeno das apostas tomou conta do Brasil de uma maneira assustadora, atingindo um enorme número de pessoas e famílias. Nos últimos tempos fomos inundados com reportagens relatando os perigos do "jogo do tigrinho" e a forma como os influenciadores digitais participam desse fenômeno.  O Banco Central estima que em agosto de 2023 cerca de 24 milhões de brasileiros realizaram ao menos uma transferência de PIX para empresas de jogos de azar e apostas1. Acredita-se que seja um mercado que alcançará cifras de mais de 150 bilhões de dólares em 2030, com um crescimento de 11% ao ano a partir de 20232. A enorme quantidade de dinheiro envolvida nesse mercado faz com que a publicidade das empresas de apostas, as chamadas "bets", seja uma constante no cotidiano de todas as pessoas, estejam ou não elas interessadas nesse tipo de jogo. Basta considerar que o campeonato brasileiro de futebol profissional masculino é patrocinado por uma empresa de apostas, e quase todas as equipes que disputam esse certame tem patrocínios dessas empresas. Ainda que os jogos de azar sejam proibidos no Brasil, a lei 13.756/18, autorizou a prática de apostas de quotas fixas (modalidade que permite ao apostador que saiba, já no momento em que realiza sua aposta, quanto poderá ganhar caso acerte o resultado).  Recentemente, a lei 14.790/23, estabeleceu as diretrizes para o funcionamento das apostas esportivas de cota fixa, com a definição dos lucros das empresas (retenção de até 88% do faturamento bruto, 2% destinados à Seguridade Social, e os 10% restantes distribuídos entre áreas como saúde, educação e segurança pública), além da alíquota de 15% de Imposto de Renda sobre os ganhos.  Uma apreciação mais superficial do tema poderia conduzir à equivocada conclusão de que a onda das "bets" atinge de forma indiscriminada a todas as pessoas, independentemente dos seus marcadores, sendo uma crise que recai sobre a população de forma abrangente. Todos estaríamos sujeitos aos reflexos das apostas esportivas da mesma forma o que, de fato, não é uma verdade. As apostas podem culminar no "transtorno do jogo", condição de saúde mental na qual a pessoa expressa um comportamento de jogo compulsivo e incontrolável, com impactos negativos significativos em sua vida (pessoal, social e profissional). Ele se manifesta como uma incapacidade de resistir ao impulso de jogar, mesmo tendo plena ciência de toda a gama de consequências negativas que podem decorrer de tal conduta, que gera problemas financeiros, danos aos relacionamentos e sofrimento psicológico. Esse transtorno, catalogado no DSM-5 - Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais como um transtorno do controle de impulso, possui características similares aos da dependência química, trazendo consigo uma ânsia por apostar, com valores cada vez mais elevados, em busca de ganhos maiores, conduzindo o jogador a um comportamento altamente pernicioso, capaz de interferir gravemente em suas atividades diárias e causar sofrimento clínico, impondo até mesmo a necessidade de intervenção terapêutica (CID 6C50 - transtorno de jogo). Estudos revelam que a prevalência global do transtorno do jogo é de 1,9%, atingindo 1,3% da população na Europa e 5,3% na América do Norte, com homens sendo considerados 3,4 vezes mais propensos do que as mulheres a se envolverem em jogos de azar problemáticos3. O NCPG - National Council on Problem Gambling afirma a prevalência de homens nos jogos problemáticos (entre 70% a 75%), segundo dados do NPGH - National Problem Gambling Helpline.4 A Universidade de Liverpool constatou que 78,4% das contas ativas de apostas esportivas são de homens5, enquanto a Universidade de Lethbridge revelou que 82,4% dos jogadores online canadenses são homens, em contraposição a apenas 17,6% de mulheres, podendo-se verificar que cerca de 25% dos homens apostam em comparação com 17% das mulheres6, como indicado no Relatório de Estatística de Gênero em Jogos de Azar.7 Porém, apesar de uma maior incidência entre os homens, é possível se aferir que quando mulheres desenvolvem o transtorno do jogo essa patologia as atinge mais tarde na vida, sendo acompanhada de um potencial de rápida progressão para uma situação realmente preocupante. A isso há de se acrescer o fato de que, com uma saturação do mercado masculino, a tendência é que as casas de apostas passem a focar cada vez mais nas mulheres visando sua expansão no mercado.8 Segundo uma perspectiva direta é certo se afirmar que a incidência de problemas com as apostas recai mais sobre os homens, contudo a maneira como as mulheres são impactadas se mostra bem mais preocupante. Elas são duplamente oneradas pelos gastos com as apostas: pagam pelo seu próprio vício e ainda são atingidas pela derrocada econômica que acomete os homens, pois o dinheiro por eles destinado às apostas muitas vezes é retirado do montante que a elas seria destinado, por exemplo, a título de pensão alimentícia (seja para elas ou para seus filhos). O vício em apostas, que tem se revelado como uma das causas que mais crescem entre os motivos que tem levado as pessoas a se divorciarem9, também impacta na relação com os filhos, pois crianças e adolescentes podem se sentir ainda mais atraídas por esse mundo ao verem seus pais mergulhados nesse universo. Ainda nessa seara das consequências das apostas para as famílias seria possível se considerar a possibilidade que tal tipo de conduta possa, em razão da natureza da realização de apostas, ensejar na configuração de prática de ato contrário à moral e aos bons costumes, que, nos termos do art. 1.638, III do CC, poderia ser causa a dar azo à perda do poder familiar. Caso isso venha a ocorrer, considerando a maior incidência de casos de transtorno de jogo entre os homens, a perda do poder familiar acarretará uma sobrecarga ainda maior sobre aquela mãe. A fim de tornar a questão ainda mais clara basta considerar que 3 bilhões de reais foram gastos com apostas no mês de agosto de 2024 por beneficiários de Bolsa Família, segundo Banco Central, revelando que famílias de baixa renda são "as mais prejudicadas pela atividade das apostas esportivas". O levantamento realizado constatou que 17% dos que receberam o benefício no mês de dezembro de 2023 realizaram apostas.10 Os dados coletados mostram que "a média gasta pelos beneficiários do programa social com as apostas no período foi de R$ 100", e que do montante total dos apostadores, "4 milhões (70%) são chefes de família (quem de fato recebe o benefício)", que enviaram, via PIX, R$ 2 bilhões para as bets. O mais inquietante é se constatar que tal levantamento englobou apenas 36 empresas e não considerou pagamentos realizados com cartão de crédito e débito11. Atualmente mais de 200 casas de apostas estão autorizadas a funcionar no Brasil12, o que nos leva a acreditar que essa realidade como um todo seja bastante pior do que a relatada. Considerando que o Bolsa Família oferta um valor baixo para os beneficiários (mínimo de R$ 600, ao qual se acresce R$ 150 a cada filho de até seis anos), é patente que o montante recebido por meio programa de transferência de renda do governo Federal não deve e nem pode ser utilizado para apostas. Salvo exceções, que certamente não se enquadram no caso daqueles que recebem o Bolsa Família, o montante destinado às apostas é valor que anteriormente seria direcionado a outros fins necessários à mantença daquela pessoa e seus filhos, e que, agora, encontra uma outra finalidade, colocando em risco a própria subsistência daquela pessoa. O vício em jogos até mesmo tem causado a retomada da discussão de temas que se julgava de baixa incidência prática até então, como a análise da condição do pródigo (art. 4º, IV do CC), e a consequente interdição pela qual pode vir a passar. Com a constituição patriarcal da nossa sociedade que confere às mulheres os deveres de cuidado em contraposição da responsabilidade (nem sempre assumida) dos homens de prover o sustento do lar, o fato das apostas estarem sendo realizadas em um maior número por homens enseja na exposição daquela mulher a uma vulnerabilidade ainda maior.  Como de costume, toda a análise realizada para a liberação das casas de apostas no Brasil não teve a participação efetiva de mulheres (apenas uma integra a chamada "bancada das bets"), tampouco aqueles que ali estavam consideraram os desdobramentos ou reflexos da autorização do funcionamento das bets para além da simples utilização do dinheiro e da arrecadação que isso poderia ensejar. É mais uma situação em que se constata como a estrutura consolidada de nosso Estado age de forma ofensiva sem nem ao menos ponderar os impactos de certas atitudes sobre as mulheres. A concepção do padrão passa ao largo dos interesses e necessidades daqueles que são tidos como socialmente minoritários. Enquanto elas se veem compelidas a cuidar dos filhos, privar-se de uma vida similar àquela franqueada aos pais dessas crianças, já que a elas não se confere a discricionariedade de simplesmente abandonar os filhos como fazem os homens, são obrigadas a, de qualquer maneira, prover o sustento de sua prole. Aos pais, o inadimplemento dos deveres alimentares no máximo pode culminar com uma pena de prisão de 3 meses. A elas, o não cumprimento dos deveres financeiros dos pais para com seus filhos impõe que venham a tomar as medidas necessárias em busca do dinheiro para que eles tenham as condições mínimas para sua subsistência. São elas que acabam se vendo levadas a buscar acesso a empréstimos, pelas vias formais e por vezes até mesmo pelas mãos de agentes que atuam fora do mercado, colocando em risco não só o pouco patrimônio que possuem mas também sua integridade. Também são elas que muitas vezes se encontram sem outra alternativa que não seja prestar serviços sexuais mediante pagamento para que consigam garantir o mínimo para a subsistência dos filhos.  Não sei se alguém conhece algum caso, mas eu, particularmente, nunca ouvi falar de um homem que teve que se prostituir para garantir o sustento dos filhos.  Para afastar de pronto qualquer tipo de tecnicidade que pode vir de algum sujeito descolado da realidade, não me venha falar em buscar outros meios para o sustento, que poderiam promover ação de alimentos ou a execução desses, até mesmo com a possibilidade de prisão do devedor. O fato é que o mundo da teoria em que alguns vivem tem uma dinâmica distinta daquele em que estão as pessoas de verdade que veem seus filhos passando necessidades ante ao não adimplemento dos deveres oriundos do poder familiar de pais que não cumprem com o que lhes cabe. E agora ainda temos que lidar com mais um obstáculo: o vício em apostas, que ganha mais espaço em nossa sociedade ante a liberação do Poder Público. Talvez não seja possível afirmar nesse momento, ante a ausência de dados estatísticos, que o Estado está fomentado inadimplemento dos deveres alimentares, mas certamente está proporcionando meios para que isso ocorra.  Essa escolha pela liberação das apostas que ignora os interesses e a especial proteção que deve ser destinada a crianças e adolescentes, prevista na CF/88, não pode restar incólume. Mais uma vez vemos os efeitos do Estado esquizofrênico13 atingindo de forma mais impactante aqueles mais vulnerabilizados, numa manifesta expressão de uma estrutura estatal que institucionaliza a escolha por majorar os riscos enfrentados por aqueles que mais precisam de proteção. A sobreposição de vulnerabilidades atingida abarca não só as mulheres, mas se estende às crianças/adolescentes, além de ter um impacto ainda mais nefasto sobre os mais pobres. Mas os interesses econômicos e a possibilidade dos ganhos na arrecadação se sobrepõem à saúde e à higidez daqueles mais vulnerabilizados, como ordinariamente acontece.  __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 DELOSSA, Georgia; BROWNE, Matthew. The influence of age on gambling problems worldwide: A systematic review and meta-analysis of risk among younger, middle-aged, and older adults. Journal of Behavioral Addictions. V. 13, N. 3, 2024. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui. 12 Disponível aqui. 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17.
quinta-feira, 10 de outubro de 2024

O herdeiro ilegal

Uma afirmação constante em meus estudos, escritos e palestras é que é impossível se pensar em qualquer questão que envolva a vida de um ser humano em que um elemento vinculado à sexualidade não esteja, direta ou indiretamente, associado, podendo se fazer presente até mesmo antes do nascimento, com a definição de enxoval e nome do bebê1. A sexualidade, "compreendida como uma ideia ampla e abrangente que se refere a toda sorte de manifestação vinculada ao sexo, em concepção que se espraia desde as características física do indivíduo até a percepção quanto ao seu gênero e destinação de atração sexual"2, está presente em um amplo espectro de direitos, impondo a necessidade de que todos venham a se apoderar dos conceitos que a circundam. Contudo, por ser algo que faz parte da vida de todas as pessoas, muitas vezes acaba recebendo menos atenção do que seria necessário, inserindo-se em um perigoso campo no qual muitos sentem que não precisam de qualquer conhecimento específico, bastando aquilo que assimilou durante toda a sua história. Esse menosprezo por algo que pode ter desdobramentos tecnicamente tão relevantes, acaba fazendo com que algumas situações sejam manifestamente ignoradas, permitindo que se estabeleça uma insegurança jurídica que se origina de uma falta de atenção a aspectos científicos consolidados. É parte integrante da tradição jurídica, seja na doutrina ou na elaboração de normas, uma repetição de conceitos sem muito senso crítico, ignorando muitas vezes questões plenamente conhecidas já de muito tempo, o que deságua em situações teratológicas3. No presente texto trarei um fato inusitado que tem relação com a sexualidade de uma forma muito mais primal do que os parâmetros que normalmente norteiam essa coluna. E a mera leitura atenta da legislação vigente bastaria para se perceber a perigosa lacuna existente. Desde meados do século passado existe uma compreensão cientifica sólida de que há um lapso temporal entre a prática do ato sexual e a concepção do ser humano, de sorte que hoje há um entendimento firmado de que pode se passar ao menos 5 dias entre uma relação sexual e uma gravidez dela decorrente. Sob uma perspectiva jurídica essa informação mostra-se relevante segundo o preceito de que quando se dá a nidação é que se tem a figura do nascituro, ou seja, no momento em que ocorrer a implantação do óvulo fecundado na parede do útero é que se entenderá que existe uma "pessoa em potencial". Nos termos dispostos no art. 2º do CC, a partir do momento em que essa pessoa for considerada concebida será a ela garantidos direitos, desde que venha a nascer com vida. A compreensão da condição de nascituro é uma das primeiras informações apresentadas aos estudantes de direito na faculdade, de forma que são introduzidos no complexo universo das relações biojurídicas tão logo começam a aprender Direito Civil e quase nunca se dão conta disso. No entanto, após esse contato precoce com essa questão que impõe a análise de elementos das ciências biológicas associados a aspectos jurídicos, o tema apenas retorna para a esfera de atenção dos estudantes no final do curso, quando passam a estudar Direito das sucessões, salvo as raras hipóteses em que tem contato com a figura da doação em favor de nascituro (art. 542 do CC). Em sede de sucessão, retoma-se a compreensão do que venha a ser o nascituro para se afirmar, com base no art. 1.798 do CC, que "Legitimam-se a suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão". Dessa forma, a conclusão que se apresenta é que se o nascituro estiver na linha sucessória do falecido ele haverá de ser entendido como herdeiro, desde que venha a nascer com vida. O exemplo para fechar com chave de ouro a explicação do dispositivo legal é: "Se a mulher estiver grávida e o pai da criança vier a falecer, o bebê tem direito à herança caso venha nascer com vida". Hermenêutica básica. Contudo existe uma questão científica elementar que pode gerar um enorme problema prático: não existem meios técnicos a afirmar com precisão o exato momento em que se deu a tal nidação, de sorte que não se sabe exatamente em que momento se deixa de ser um óvulo fecundado e passa-se a um nascituro. E a distinção entre uma coisa e outra é o que define se há ou não direitos sucessórios. Acredito que a construção do texto já tenha levado o leitor à questão que pretendo trabalhar. Mas para não correr qualquer risco, é melhor expô-la expressamente: Se o sujeito vier a falecer logo após a relação sexual não haveria nidação, ato contínuo, não teria nascituro e, portanto, aquela pessoa não teria vocação hereditária. Por mais que possa parecer uma situação de difícil caracterização prática, basta se considerar que um estudo alemão que analisou 32 mil mortes súbitas, num período de 33 anos, constatou que 0,2% dos casos se deu durante a atividade sexual, vitimando, em sua absoluta maioria, homens (92,6% dos casos)4. Contudo sequer há a necessidade de que tenha acontecido algo tão específico, bastando que esse sujeito tenha falecido na janela temporal entre a prática do ato sexual e a nidação que, como exposto, pode ser consideravelmente ampla. Basta que se esteja no âmbito do possível para que seja necessário se ponderar a sua ocorrência. Note que aqui não se está tecendo qualquer tipo de discussão acerca da filiação, a qual pode ser presumida caso o falecido seja casado com a mulher que deu a luz à criança (art. 1.597 do CC). E mesmo que não incida as previsões legais de presunção, um simples exame de DNA seria o suficiente para estabelecer a relação de parentesco entre o falecido e seu filho. Contudo estamos diante de uma situação delicada e que pode trazer consequências jurídicas bastante sérias. Mesmo que seja, inquestionavelmente, filho do falecido não possui vocação hereditária, já que não estava concebido quando da abertura da sucessão. Afirmar que o filho do falecido não teria direito à herança ofende a compreensão ordinária que orienta o direito das sucessões, especialmente em se considerando que não há aqui qualquer menção a hipóteses de exclusão do herdeiro (indignidade ou deserdação). Tal tema ganhou muita atenção a partir das técnicas de reprodução humana assistida que geram a possibilidade de uma inseminação artificial post mortem5, exigindo uma atenção daqueles que lidam com essa área do direito. Desde a CF/88 é possível se encontrar uma solução para tal conflito, ante a premissa existente no art. 227, § 6º, que veda a existência de distinção entre filhos. Com isso pode-se asseverar que, ainda que o CC tenha deixado uma lacuna em que um filho não teria direito à herança do pai, a CF/88 afasta o risco de que isso venha a ocorrer, ante a uma interpretação sistemática, lastreada na necessidade de que a legislação infraconstitucional com ela não conflite. Porém a solução baseada na CF/88 não consegue resolver outras situações idênticas em que não se esteja a discutir sobre a herança do pai daquele sujeito, como no caso em que o autor da herança seja um outro parente. Para elucidar, considere que uma determinada pessoa venha a falecer sem deixar descendentes, ascendentes ou cônjuge/companheiro, o que faria com que sua herança fosse destinada a seus colaterais. Imagine que, nessa circunstância, o sujeito tivesse como único parente um irmão (parentesco de 2º grau) que faleceu um dia antes do seu passamento, cuja esposa venha a descobrir que está grávida, decorrente de uma relação havida com seu cônjuge na noite anterior à sua morte. Evidentemente que será possível se demonstrar que essa criança é filha do irmão do autor da herança (sobrinha do morto, portanto), contudo sendo demonstrado que a relação sexual que culminou na gravidez ocorreu anteriormente à morte, constata-se que esse sobrinho não era um nascituro quando da abertura da sucessão de seu tio, o que retiraria dele a vocação hereditária. Valendo-me de uma "neurose de clareza" similar àquela que sempre expressa o meu colega de Universidade Federal da Bahia Pablo Stolze Gagliano, coloco a hipótese de forma ilustrativa: Antônio falece um dia depois de seu irmão Benedito; Benedito era casado com Carla; Após o falecimento de Benedito, Carla descobre que engravidou da relação sexual que teve com Benedito ocorrida na noite anterior à morte dele. Carla dá a luz a Denise, sua filha com Benedito. Denise é a única parente viva que Antônio possui No exemplo aqui apresentado Denise não teria direito à herança e todo o patrimônio de Antônio seria direcionado ao Poder Público, pois configuraria uma hipótese de herança jacente que, após a vacância, passaria a incorporar o Erário. Importante se considerar que no caso da sobrinha do falecido não é possível valer-se da previsão constitucional do art. 227, § 6º para que ela venha suceder o de cujus, impondo-se a simples aplicação do disposto no art. 1.789 do CC que estabelece a vocação hereditária. No entanto, na prática, desconheço a existência de um processo em que se tenha discutido a falta de vocação hereditária desse sobrinho. Provavelmente a ele será destinada a herança do falecido. Pode-se pensar em inúmeras outras circunstâncias similares nas quais é bem plausível que sua condição de herdeiro não seria questionada, como, por exemplo, quando estivesse concorrendo com outros sobrinhos do falecido ou como detentor de direito precedente sobre outros parentes colaterais de 3º (tios) ou 4º graus (primo, tio-avô ou sobrinho-neto). Coerente que o legislador ao elaborar o CC de 1916 não tivesse como considerar tal hipótese em razão do estado da arte relativo às questões atinentes à reprodução humana naquela época, contudo já não se pode dizer o mesmo com relação ao texto atualmente vigente, ainda que seja um projeto dos anos 1970, mas cuja vigência se inicia nesse século. Preocupante constatar que nem mesmo o atual projeto de reforma do CC em trâmite se atentou ao tema, conferindo ao art. 1.798 redação que apenas se atém às hipóteses de inseminação artificial post mortem, ainda que se possa tentar resolver o problema aqui exposto ante a uma interpretação ampliativa do disposto no § 1º proposto, que determina que "Aos filhos gerados após a abertura da sucessão, se nascidos no prazo de até cinco anos a contar dessa data, é reconhecido direito sucessório". Contudo a expressão "gerados" que consta do referido parágrafo está associada a "gerados por técnica de reprodução humana assistida post mortem" que consta do caput, revelando que o lapso temporal entre a relação sexual e a nidação não estava no foco do ajuste proposto pela reforma. A inquietação que procuro compartilhar no presente texto é que é possível que um parente do falecido possa ser tido como um herdeiro sem ser, configurando-se como um "herdeiro ilegal" que apesar de ser um parente do autor da herança não possui direitos sucessórios por questão de horas ou dias, por não poder ser considerado como nascituro quando da abertura da sucessão, mas que provavelmente acabará recebendo a herança por não se ter a devida atenção aos preceitos legais previstos. Se esse sobrinho nascer dentro de um período em que se tenha por "plausível" que sua mãe já estivesse grávida quando do falecimento do tio, dificilmente se aventará quanto a sua vocação hereditária, mormente por se tratar de um colateral do falecido que consta do conjunto de herdeiros previstos no art. 1.829 do CC. De outra sorte, se ele nascer 1 ano após a morte do tio, ninguém cogitará a possibilidade de que ele seja seu herdeiro. Assim o que questiono é: na primeira hipótese não se discutirá a vocação hereditária desse indivíduo por entender que ele tem efetivamente direitos sucessórios ou por não ter ciência da vedação que o apartaria da herança? Se a compreensão é a de que ele teria direito à herança, qual seria o fundamento legal? Ainda que essa seja uma situação hipotética extrema, na qual é necessária a concomitância de dois falecimentos próximos (a), a ausência de herdeiros necessários (b), a existência de um parente que por pouco tempo não poderia ser considerado um nascituro quando da abertura da sucessão (c), ela apresenta um fundo técnico bastante relevante e que pode mudar todo o curso de uma sucessão. E tudo isso por uma questão de caráter científico que aparentemente segue passando ao largo da apreciação do legislador. Mas o cerne de tudo está, como bastante recorrente, na falta de conhecimento de uma premissa científica atrelada a elementos associados à reprodução humana que, obviamente, tem lastro na sexualidade. Aqui a leniência legislativa6 expõe mais uma das suas facetas, com uma legislação que não é atualizada considerando o conhecimento cientifico existente, conferindo uma insegurança jurídica que nasce do simples fato de não se atentar àquilo que já está demonstrado cientificamente, e que permite que qualquer um questione se há "justiça" em ser herdeiro o filho não concebido de seu pai, mas o sobrinho não o ser de seu tio, em uma situação fática idêntica. E, como é sempre trazido nessa coluna, o cerne desse problema identificado está em um elemento que pode ser associado à sexualidade em seu sentido amplo. É plausível que a legislação ignore conceitos básicos sobre a reprodução humana e com isso possa ensejar a possibilidade de que se estabeleça situação que ofenda a preceitos jurídicos básicos? _____ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 3. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 308 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito civil pensado. a importância de não se repetir velhos dogmas de forma indiscriminada. Revista Conversas Civilísticas. v.1, n.2 p. I - IV, 2021. 4 Parzeller, M., Bux, R., Raschka, C. et al. Sudden cardiovascular death associated with sexual activity. Forens Sci Med Pathol 2, 109-114 (2006). https://doi.org/10.1385/FSMP:2:2:109 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da; ASSIS MACEDO, Andrea. Dos direitos sucessórios dos filhos havidos por reprodução humana assistida post mortem. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 2, n. 2, p. 1-18, 2023. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015.
quinta-feira, 26 de setembro de 2024

Racismo e o "Deus me livre de mulher CEO"

Já no final dos anos 60 do século passado Simone de Beauvoir afirmava ser a mulher vítima de uma opressão paternalista, "porque vê o homem de baixo para cima, como o lacaio vê o patrão"1. Trata-se de uma afirmação bastante forte e que seria de se esperar que atualmente, após tantos anos e com tanta evolução social, já se mostrasse superada. Contudo apesar de alguns avanços ainda vivemos em uma sociedade na qual as mulheres e a expressão do feminino seguem experienciando uma realidade de submissão imposta pelos homens e pelo masculino como um todo.  Nesse contexto teve considerável repercussão uma postagem no Instagram do empresário Tallis Gomes, fundador da Easy Taxi e presidente (até então) da G4 Educação. Questionado em um stories por um seguidor "se sua mulher fosse CEO de uma grande companhia, vocês estariam noivos?", respondeu: "Deus me livre de mulher CEO", rechaçando, de maneira veemente, que uma mulher viesse a ocupar o cargo mais elevado (CEO - Chief Executive Officer) de uma empresa. Complementa sua resposta da seguinte forma: "Salvo raras exceções (eu particularmente só conheço 2); essa mulher vai passar por um processo de masculinização que invariavelmente vai colocar meu lar em quarto plano, eu em terceiro plano e os meus filhos em segundo plano." "Vocês não fazem ideia da quantidade de stress e pressão envolvida em uma cadeira como a minha. Fisicamente você fica abalado, psicologicamente você precisa ser MUITO, mas MUITO cascudo para suportar."  "Na média, esse não é o melhor uso da energia feminina. A mulher tem o monopólio do poder de construir um lar e ser base de uma família - um homem jamais seria capaz de fazer isso. Pra quê fazer a vida dessa mulher pior dessa forma?" "O mundo começou a desabar exatamente quando o movimento feminista começou a obrigar a mulher a fazer o papel de homem. Hoje, vejo um bando de marmanjo encostado trabalhando pouco e dividindo conta com mulher. Eu entendo que temporariamente pode acontecer, eu mesmo já passei por isso no passado - mas tem que ser algo transitório". "Homem que tem condições de bancar sua mulher e não o faz, está perdendo o maior benefício de uma mulher, que é o uso da energia feminina nos lugares certos, lar e família". Posteriormente, após ampla repercussão negativa, se retratou afirmando: "Errei feio num texto aqui no Instagram. E quero reconhecer o erro e pedir desculpas. Muitas mulheres se sentiram machucadas pelas minhas palavras, e eu estou profundamente chateado por ter magoado essas pessoas". "Minhas mais sinceras desculpas por causar esse desconforto a todas vocês. O lugar das mulheres é onde elas quiserem estar. Seja na vida pessoal, seja no mercado de trabalho". Apesar de ter pedido desculpas, acabou perdendo o posto que possuía no conselho consultivo da Hope (marca de lingerie), afastado do cargo de CEO da G4 Educação e foi considerado "o cancelado da semana". O dinamismo das relações do mundo conectado fará com que a questão em breve esteja esquecida. Feito o relato, quem acessa essa coluna deve estar se questionando: o que esse caso tem a ver com racismo?  Sustento que, ao discriminar todas as mulheres em sua postagem, estaria configurada a conduta tipificada como racismo. Tenho plena consciência que essa concepção não agrada a todas as mulheres, tampouco aos diversos feminismos ou mesmo aos defensores tradicionais da pauta racial. Entendo que uma grande parcela da população taxará essa coluna como "lacração", "mimimi", mais um dos reflexos do "politicamente correto" ou da "cultura woke". Esse é um preço que meu compromisso com a técnica me impõe. Fique livre para discordar, ignorar ou refutar a tese, contudo o faça de forma fundamentada e respaldada juridicamente. Que as ponderações que trago sejam um convite à reflexão. Se a afirmação publicada na rede social fosse "Deus me livre de preto CEO" parece cristalino que estaria configurada a hipótese de racismo, nos termos do art. 20 da lei 7.716/89. Porém a assertiva do empresário não tem qualquer vinculação com a cor da pele de quem quer que seja, o que, para a ampla maioria das pessoas, bastaria para que se afastasse plenamente qualquer tipo de conexão com tal tipo penal. Contudo por mais que se possa estranhar a vinculação do termo racismo com uma afirmação misógina é importante que se tenha em mente que, como já exposto anteriormente nessa coluna2, a concepção de racismo, sob a perspectiva jurídica, não se restringe a discriminações praticadas em razão da cor da pele das pessoas. Ainda que muitos sigam aferrados a ideias sombrias do século passado há que se ressaltar que já se encontra perfeitamente consolidado o entendimento de que os seres humanos pertencem todos a uma mesma raça, sendo incabível se afirmar, cientificamente, que prevaleça uma classificação racial segundo a cor da pele ou características fenotípicas das pessoas, já que todos os seres humanos compartilham a maior parte do seu código genético, de sorte que o racismo atualmente existente reside na sua concepção social. O racismo social baseia-se na crença de um determinado grupo de que possui superioridade ante a outro, que entende como inferior e que pode ser subjugado3, menosprezado, a ponto de ter direitos reduzidos ou mesmo extirpados por não integrarem o grupo dominante4. O parâmetro de sua pretensa supremacia pode surgir dos mais variados motivos (físicos, morais, intelectuais, culturais, étnicos, religiosos, geográficos, entre outros) mas é o bastante para lhe conferir força suficiente para oprimir os demais das mais diversas formas, até mesmo privando-os do acesso a direitos ordinariamente franqueados a todos. Entendido em sua dimensão social o racismo revela-se como expressão de poder, não se restringindo a aspectos meramente biológicos ou fenotípicos, estando lastreado em bases tanto históricas quanto culturais e que tem por fim respaldar desigualdades consolidadas, destinando-se "ao controle ideológico, à dominação política, à subjugação social e à negação da alteridade, da dignidade e da humanidade" dos que são tidos como "estranhos e diferentes, degradados à condição de marginais do ordenamento jurídico, expostos, em consequência de odiosa inferiorização e de perversa estigmatização, a uma injusta e lesiva situação de exclusão do sistema geral de proteção do direito" simplesmente por pertencerem a um grupo vulnerabilizado e por não gozarem do status de integrantes do grupamento social da posição hegemônica5.  A compreensão da dimensão social de raça e de racismo não é recente6, e já se mostra solidamente acolhida no STF desde o início dos anos 2000, quando do HC 82.424-2/RS (Caso Ellwanger), que tinha como questão de fundo a caracterização do crime de racismo em decorrência da divulgação material antissemita. Dessa forma, se a postagem fosse "Deus me livre de judeu CEO", estaria configurado o tipo penal do racismo, nos termos do art. 20 da lei 7.716/89. Como consta das discussões entabuladas quando do HC 82.424-2/RS (Caso Ellwanger), nos debates da Assembleia Constituinte "nunca se pretendeu [...] restringir [o racismo] ao negro7", ao que há de se acrescer que verba cum effectu sunt accipienda (não há palavra inútil ou supérflua no texto da lei), o que torna imprescindível que se entenda que quando o art. 5º da CF/88 veda a discriminação de raça e de cor está a tratar de elementos distintos.  Em meados de 2019, calcado na mesma premissa de concepção de raça em sua dimensão social, mas causando uma grita considerável (graças a todo o preconceito que ordinariamente acompanha discussões que envolvem a busca da garantia de direitos às minorias sexuais), o STF, no julgamento da ADO 26, considerou passível de apenação os atos discriminatórios praticados contra homossexuais e pessoas transgênero como crime de racismo. Consta expressamente da ementa que "ninguém pode ser privado de direitos nem sofrer quaisquer restrições de ordem jurídica por motivo de sua orientação sexual ou em razão de sua identidade de gênero"8. Para evitar deturpações clássicas é de se ressaltar que a ADO 26 simplesmente aplicou a dimensão social do conceito de raça, nos exatos termos do precedente do próprio STF9, respaldada "pela lógica do princípio da proporcionalidade na acepção de proibição de proteção insuficiente e os consequentes deveres de proteção e ação do estado relativamente à população LGBTI"10, em decisão que em nada se vincula com elementos como analogia ou interpretação ampliativa. Justo, assim, afirmar que, caso a referida postagem fosse "Deus me livre de gay CEO", "Deus me livre de lésbica CEO" ou "Deus me livre de trans CEO", tipificado estaria o crime de racismo, nos termos do art. 20 da lei 7.716/89, conforme entendimento da ADO 26. Apresentado o estado da arte das discussões sobre a configuração da perspectiva social de raça e do tipo penal do racismo com base no posicionamento do STF, é chegada a hora de estabelecer a sua conexão com o evento que motiva a presente coluna. Como já sustentado anteriormente é inafastável que o entendimento que norteou a configuração do racismo e da injúria racial contra alguns dos integrantes das minorias sexuais seja estendida a toda a gama de grupos minoritários em razão de aspectos vinculados à sexualidade11.  Tendo por lastro a construção da sexualidade segundo 4 pilares básicos (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero) é patente que em todos os seus critérios é possível se vislumbrar a presença de um grupo que se tem como majoritário e detentor do poder, de sorte que se pensarmos segundo as bases do sexo e do gênero é evidente a condição de vulnerabilidade enfrentada pela mulher/fêmea e pelo feminino12. Ainda que presente em estudos estrangeiros a constatação de que a mulher/fêmea e aquela que expressa feminino padecem de um status racializado de inferioridade13, uma mera análise de sua condição social nos dias de hoje basta para perceber que elas seguem sendo vistas como seres humanos de uma classe inferior.  Uma enorme parcela delas ainda se vê inserida em um mundo no qual não tem o poder de ser dona de seu destino, pois, mesmo ciente de que não é inferior ao homem acaba "aceitando a ideia de sua inferioridade" socialmente imposta14. Salários inferiores, trabalho não remunerado, obrigação quanto aos deveres de cuidado, falta de acesso a cargos de chefia/liderança, violência são alguns dos fatores que revelam de forma incontestável a submissão que lhes é infligida e contra a qual lutam de forma árdua. Assim é indiscutível que por serem mulheres ou por expressarem o feminino acabam sofrendo injusta e lesiva exclusão do "sistema geral de proteção do direito", em patente manifestação de poder que busca perpetuar controle ideológico, a dominação política, a subjugação social e a negação da alteridade, da dignidade e da humanidade que marca o racismo social, sofrendo das consequências abjetas da inferiorização e de estigmatização, nos moldes que traz a ADO 26. Assim, a conclusão é que tanto mulheres/fêmeas quanto quem expressa o feminino podem, independentemente de qualquer outro marcador, ser entendidas como vítimas de racismo, em sua dimensão social, pelo simples fato de serem mulheres/fêmeas ou por expressarem o feminino. Caso o texto da publicação do empresário nas suas redes sociais fosse "Deus me livre de preto CEO", "Deus me livre de judeu CEO", "Deus me livre de gay CEO", "Deus me livre de lésbica CEO" ou "Deus me livre de trans CEO" pouca discussão haveria quanto a prática do crime de racismo, nos termos do art. 20 da lei 7.716/89, a ser punido com pena de reclusão de 2 a 5 anos por ter sido praticado por intermédio de publicação em redes sociais (§ 2º). Por qual motivo haveria de ser diferente quando a afirmação fosse "Deus me livre de mulher CEO"? Se sustentamos que mulher é vitima de racismo (art. 20) ou injúria racial (art. 2º-A) quando discriminada em razão da sua condição de mulher/fêmea ou por expressar o feminino15, impõe-se que a conduta do empresário seja enquadrada nos termos da lei 7.716/89.  Se ele se desculpou, perdeu seu cargo na empresa, foi cancelado no mundo virtual, não seria exagerado se afirmar que ele cometeu um crime? Haveria motivos para fazer tanto alarde com isso? Não seria um exagero? Infelizmente essa forma de pensar é muito mais recorrente do que imaginamos. Bastante comum que surjam, logo após a exposição de casos como esse, as lamúrias dos homens de que estariam sendo atacados, culpando "o feminismo" pela "derrocada" da sociedade e da família tradicional, já que, segundo esse ideário, o movimento feminista teria até mesmo obrigado a mulher a "fazer o papel de homem".  Por vezes tentam se escusar em um paternalismo tacanho de que seria uma declaração que teria por fim expressar uma ideia de proteção da mulher ou de que apenas se buscaria o melhor para ela. Contudo, ainda que de forma escamoteada, o que se constata é a presença de manifestações que buscam perpetuar uma eterna submissão das mulheres. Nota-se que das palavras do empresário se pode extrair ideias que vão da existência de um "lugar" adequado para a mulher, de imposição de um dever de cuidado do lar, filhos e marido, como também de uma propriedade que recairia sobre ela que conferiria ao marido o poder de decidir onde melhor alocar a energia daquela mulher. Realmente parece que estamos lendo alguma versão anacrônica do Manual da Boa Esposa (The Good Wife's Guide) elaborado nos anos 50. Essa ideia que ainda hoje dá lastro ao que muitos sustentam ser a "tradicional família brasileira" nada mais é do que um discurso misógino e discriminatório que tem por fim garantir a manutenção desse status quo no qual a mulher há de ser mantida em uma condição de inferioridade em relação ao homem. É apenas mais um dos desdobramentos de uma estrutura patriarcal que produz pérolas como: "lugar de mulher é na cozinha", "a legítima defesa da honra" do homem traído, ou "gay/trans panic" como argumento de defesa16. Não há como ler todas essas sandices e não vislumbrar a manifesta presença da masculinidade hegemônica17 ou masculinidade frágil, um pavor de que a igualdade entre homens e mulheres seja efetivamente implementada e que esses "senhores" venham a ser finalmente privados do poder que acreditam possuir sobre as mulheres. Importante, ainda, se afastar qualquer tentativa de escusa pueril de que essas declarações seriam meras opiniões ou estariam albergadas pelo exercício de liberdade de expressão, já que elas encontram limitação legal na prática de crimes. Tampouco caberia se admitir o arrependimento ou uma mera retratação como ato bastante para afastar a punibilidade do crime cometido. Ressalto que as ponderações aqui apresentadas não se circunscrevem ao evento específico do "Deus me livre de mulher CEO", mas devem ser consideradas todas as vezes em que forem praticadas condutas desse jaez. Evidente que a melhor solução para que tais atos discriminatórios cessem não está no encarceramento mas sim em uma ampla conscientização dos impactos decorrentes da discriminação das mulheres e do feminino, contudo, no presente momento, não se pode ignorar que há lei que criminaliza as discriminações fundadas na raça, e que essa há de ser entendida segundo sua dimensão social. Aceitar as premissas e conclusões aqui apostas passa muito mais por superar o entendimento tradicional do que seja raça do que por uma construção hermenêutica de elevada complexidade. Contudo esse tema é permeado por uma série de aspectos sociais, históricos e culturais que tornam extremamente conflituosa a sua compreensão. Seja como for, sigo pautado pelos parâmetros mais basilares dos Direitos Humanos e dos direitos fundamentais, peleando pela efetivação da proteção daqueles que são vulnerabilizados em razão de aspectos vinculados à sexualidade. A questionar, de outra sorte, como o Poder Público agirá. Continuará sendo o Estado Esquizofrênico18 que cria normas para proteger os vulnerabilizados e não as cumpre ou fará valer os preceitos nucleares de um Estado Democrático de Direito? E a sociedade brasileira, continuará normalizando e minorando a discriminação contra as mulheres e quem expressa o feminino enquanto vivemos num país em que a cada seis horas uma mulher é vítima de feminicídio19? Ou tomará uma atitude e se colocará contra tais condutas, exigindo a aplicação da lei? E você? De que lado se coloca? ___________ 1 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. v. 2. p. 381. 2 JORDE, L. B.; WOODING, S. P.. Genetic variation, classification and 'race'. Nature Genetics, 36(11 Suppl), 2004. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Transgêneros: conquistas e perspectivas. Direito na Sociedade da Informação V, São Paulo: Almedina, 2020, 170. 4 Pode haver racismo contra quem não é negro? Os contornos de raça atribuídos pelo STF para a sexualidade. Disponível aqui.  5 ADO 26, Supremo Tribunal Federal, julgado em 13.06.2019. 6 MONTOYA, María de los Ángeles. Las claves del racismo contemporáneo. Madrid, Libertarias/Prodhufi. 1994. 7 HC 82.424-2/RS, Supremo Tribunal Federal, julgado em 17.09.2003. 8 ADO 26, Supremo Tribunal Federal, julgado em 13.06.2019. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 233. 10 VECCHIATTI, Paulo Roberto Iotti. O STF, a homotransfobia e o seu reconhecimento como crime de racismo. Bauru, SP: Spessotto, 2020. p. 23. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 3. 12 Reitera-se aqui a relevância da distinção entre sexo e gênero, nos exatos temos expostos em coluna anterior. Disponível aqui. 13 MONTOYA, María de los Ángeles. Las claves del racismo contemporáneo. Madrid, Libertarias/Prodhufi. 1994. SOLANA, José Luis. Sobre el racismo como ideología política. El discurso anti inmigración de la nueva derecha. Gazeta de Antropología, Nº 25 /2, 2009. p. 11-12 14 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Tradução de Sérgio Milliet. 2. ed. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1967. v. 2. p. 73. 15 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 245. 16 CONNELL, R. W.; MESSERSCHMIDT, J. W.. Masculinidade hegemônica: repensando o conceito. Revista Estudos Feministas, 21(1), 241-282, 2013. 17 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 55. 18 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 19 Disponível aqui.
É bastante comum no Direito Civil que os alunos dos cursos de graduação nada (ou quase nada) estudem sobre questões vinculadas a elementos de gênero ou quanto a sexualidade como um todo, segundo uma premissa de que haveria a prevalência de uma perspectiva de igualdade segundo a qual, para efeito de aplicação da lei, não existiria qualquer distinção entre alguém do gênero masculino ou feminino. Um dos raros momentos em que o estudo do Direito Civil menciona aspectos da sexualidade é no Direito de Família, muito em decorrência da concepção clássica de que a família, base da sociedade, seria constituída pelo casamento o qual, por natureza, seria entabulado entre um homem e uma mulher1. Hoje encontra-se consolidada, até mesmo constitucionalmente, a perspectiva de que a família pode ser estruturada não apenas por meio do matrimônio, mas também pela união estável ou pelas entidades monoparentais, persistindo a arrogância do Direito de querer definir o que é uma situação de fato como a família2. Reconhecido também o pleno afastamento da necessidade de diversidade sexual para a constituição de entidades familiares, nos termos reconhecidos pelo Supremo Tribunal Federal na ADI 42773. A indissolubilidade do matrimônio existente outrora também foi soterrada, com a prevalência do entendimento atual de que a possibilidade de por termo ao casamento revela-se como um direito potestativo4, o qual pode ser exercido por qualquer dos cônjuges a qualquer tempo e independentemente de comprovação de um dado motivo especificado no texto da lei. Ainda que todos esses assuntos estejam permeados por elementos eminentemente sociais, com um forte recorte de gênero, essa perspectiva é pouco abordada na prática, com uma quantidade tímida de trabalhos versando sobre como homens e mulheres são impactados de formas diferentes pela aplicação da lei. Quando tais distinções são apresentadas o mais recorrente é que o sejam para meramente indicar quem mais acorre ao Poder Judiciário em busca da aplicação deste ou daquele preceito jurídico, sem que se teça considerações mais aprofundadas sobre as consequências para as pessoas segundo seu gênero. A questão do divórcio é um dos pontos em que a perspectiva de gênero tem maior incidência, tendo ela já sido objeto de apreciação até mesmo nessa coluna, quando tratei da figura do divórcio tardio (gray divorce) e como ele atinge de forma mais severa as mulheres5. E é, mais uma vez, esse meio de dissolução do casamento que será analisado sob lentes de gênero, mas agora considerando uma modalidade que vem ganhando atenção nos últimos tempos, e sobre a qual já tenho me manifestado há mais de 5 anos. Muito se publicou nos últimos tempos em redes sociais, especialmente em perfis de profissionais da área jurídica e voltados para o público do direito, sobre a figura do divórcio post mortem, notadamente com as discussões entabuladas com relação à reforma do Código Civil e à decisão do Superior Tribunal de Justiça que a aplicou6. Nos termos do que apresento em trabalho publicado pela Revista dos Tribunais intitulado de "Divórcio Post Mortem", desenvolvido em parceria com Vivian Assis, em 20197, bem como em live realizada com o estimado amigo e colega de Universidade Federal da Bahia, Rodolfo Pamplona Filho8, em 2020, a ideia básica é que a morte de um dos cônjuges, após iniciado o processo de divórcio, não pode ensejar em extinção do processo sem julgamento de mérito por perda do objeto (art. 485, IX do CPC). A relevância do tema também foi reconhecida na proposta de reforma do Código Civil atualmente em trâmite. E acredito que com alguma influência do referido artigo científico citado e da sugestão que apresentei (ainda que não tenha sido expressamente comunicado de que tenha ela sido efetivamente aceita)9, já que consta a inclusão do divórcio post mortem no texto do que seria o novo § 4º do art. 1.571, com redação bastante próxima daquela que propus10. Ainda que a morte de um dos cônjuges encerre em si uma forma de dissolução do casamento, o que poderia conduzir à ideia de que o pleito de divórcio não mais teria relevância, não se pode ignorar que existem diferenças consideráveis entre ser casado e divorciado do falecido, especialmente quanto aos aspectos sucessórios. Em uma análise bastante célere é de se afirmar que aquele que se encontra divorciado do falecido não possui direitos sucessórios, de forma que se o processo de divórcio for julgado procedente, mesmo após a morte de um dos cônjuges, com seus efeitos retroagindo à data do óbito ou do término do convívio do casal, haveria o afastamento do ex-cônjuge da herança. Para fins práticos é de se entender que o divórcio post mortem acaba sendo uma situação que importará em um manifesto benefício dos demais herdeiros em detrimento do cônjuge separado (judicialmente ou de fato) cuja sentença de divórcio ainda não fora prolatada. Em suma, havendo a extinção do processo de divórcio ante à eventual perda do objeto, o cônjuge continuaria sendo cônjuge, viraria viúvo em decorrência da morte e seria, a princípio, herdeiro do falecido. Com a configuração do divórcio post mortem esse cônjuge perderia o status de casado, em decisão que retroagiria e faria com que ele deixasse de gozar da condição de sucessor do de cujus. Isso se dá vez que o Código Civil, ao discorrer sobre a ordem de vocação hereditária (art. 1.829), prevê a presença do cônjuge como herdeiro, atendidos alguns requisitos, em concorrência com os descendentes. Estabelece também que na ausência desses, concorre com os ascendentes (até mesmo com cota mínima garantida) e precede aos colaterais se o falecido não tiver deixado parentes em linha reta. Contudo para que possa ser herdeiro esse cônjuge, nos termos do art. 1.830 do Código Civil, não pode estar separado judicialmente, nem mesmo de fato (há mais de 2 anos, salvo se for inocente pela ruptura). Como a premissa para que tenha direitos sucessórios é que seja cônjuge, se for divorciado não estará entre os que tem vocação hereditária legítima. Considerando os impactos econômicos distintos que recaem sobre homens e mulheres, especialmente quando o divórcio se dá em uma idade mais avançada11, faz-se necessário ponderar como o afastamento do cônjuge do gênero feminino da sucessão, em decorrência do divórcio post mortem, trará efeitos mais profundos para as mulheres do que para os homens. Para além de vir a perder quem eventualmente ainda lhe conferia suporte econômico, decorrente de dever de alimentos, o afastamento da condição de herdeiro vai privar esse cônjuge não só do acesso aos bens do falecido, mas também do direito real de habitação ao qual poderia, em dados casos, fazer jus (art. 1.831 do Código Civil). A razão óbvia para se pensar nas mulheres como as que mais sentirão os efeitos do divórcio post mortem repousa no fato de que sua expectativa de vida (79 anos) é superior que aquela apresentada pelos homens (72 anos)12, de sorte que há uma maior probabilidade prática de que, nos relacionamentos entre pessoas de gêneros distintos, o cônjuge supérstite seja aquele do gênero feminino. Por certo que não se está aqui afirmando que existe qualquer tipo de conduta que tenha o intuito de prejudicar ainda mais as pessoas do gênero feminino ao se pugnar pela aplicação do divórcio post mortem. Trata-se apenas de uma constatação fática de que a aplicação da lei com acuidade técnica tende a impor um maior gravame a um grupo que é socialmente mais vulnerabilizado. Mas esse fato não pode ser ignorado, tampouco ser tido como um mero efeito colateral que acaba por vitimar mais uma vez aquela que normalmente já padece de uma série de perdas em decorrência da fria aplicação do texto legal. É preponderante que a condição de vulnerabilidade da mulher seja parte dessa equação para que não venha a ter contra si a imposição de um ônus que apenas reforçaria todas as iniquidades pelas quais passa. Compreender o contexto e considerar todo o entorno que envolve a situação há de ser um fator crucial para a justa aplicação dos efeitos decorrentes do reconhecimento do divórcio post mortem. Imagine que uma mulher, vítima de violência doméstica, proponha ação de divórcio e, na primeira hipótese, o cônjuge que a agrediu, de forma maliciosa, tente protelar ao máximo a prolação da sentença com o intuito de manter a condição de herdeiro no caso da morte iminente da vítima. A imposição dos efeitos do divórcio post mortem impediriam que esse agressor viesse a se beneficiar de sua própria torpeza. Porém, nesse mesmo contexto, se o agressor vier a falecer, essa vítima estaria afastada dos direitos sucessórios, podendo o patrimônio, em certas circunstâncias, até mesmo ser encaminhado para o Estado ante a uma caracterização de jacência e vacância. É premente que se tenha o cuidado para que a efetiva implementação do divórcio post mortem não venha a gerar uma maior vulnerabilização das mulheres, impondo-se que a incidência dos seus efeitos esteja vinculada aos parâmetros fixados pelo Conselho Nacional de Justiça no Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero13. Seguindo a diretriz que orienta magistrados(as) a considerarem desigualdades e vulnerabilidades de gênero em seus julgamentos caberia a aferição das circunstâncias vividas por aquele cônjuge supérstite para se determinar se caberia ou não a incidência dos efeitos do divórcio post mortem e se, ato contínuo, ele haveria de ser afastado da condição de herdeiro. Exatamente para tentar mitigar o risco de uma ampliação dos gravames enfrentados por aquele que é a vítima das violências nos relacionamentos a proposta que apresentei para a reforma do Código Civil previa apenas a incidência do divórcio post mortem quando do falecimento do autor do pleito de dissolução do casamento. Talvez essa não fosse a formulação perfeita mas aparentemente reduziria a possibilidade de que a vítima fosse prejudicada pela morte do agente das condutas ofensivas. O aspecto delicado a ser ponderado nesse contexto de afastamento dos efeitos do divórcio post mortem é que muitas vezes os maiores beneficiados com a exclusão do cônjuge da sucessão poderiam ser outros grupos vulnerabilizados, como descendentes na condição de crianças/adolescentes ou mesmo de ascendentes idosos. Trata-se, portanto, de questão extremamente intricada e que merece um olhar bastante acurado da doutrina, bem como uma aplicação consciente do Poder Judiciário, a fim de que aqueles que merecem proteção especial não sejam ainda mais vulnerabilizados. Não há como se pensar em uma incidência cega dos efeitos concebidos para o divórcio post mortem pois isso poderá acarretar em manifesta injustiça, afrontando claramente os preceitos norteadores do Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero ou a princípios constitucionais caros a um Estado Democrático de Direito.  Entender e aplicar as leis tendo a Justiça como norte exige do operador do direito muito mais do que o mero conhecimento da técnica. Impõe também, entre outras coisas, uma compreensão elementar dos alicerces da sexualidade, como tenho indicado de forma contínua nessa coluna.  O manejo dos institutos jurídicos vai além da letra fria da legislação. E nossa doutrina e Judiciário ainda não se mostram plenamente capacitados para tanto já que é recorrente uma completa marginalização dos elementos vinculados à sexualidade que são indispensáveis para a efetivação da Justiça. __________ 1 PONTES DE MIRANDA. Tratado de direito privado. Tomo VII, São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 296. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, n. 1, p.III - VII, 2022. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A União Homossexual ou Homoafetiva e o Atual Posicionamento do STF sobre o Tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito (São Bernardo do Campo. Online), v.8, p.280 - 294, 2011. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Manual dos direitos transgênero - a perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva Jur, 2025. p. 130. 5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da; ASSIS, Vivian S. Divórcio post mortem. Revista dos Tribunais. São Paulo. Impresso, v.1004, p.51 - 60, 2019. 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 Texto proposto: "O falecimento do cônjuge que formulou o pedido de divórcio não extingue o processo, devendo o pedido ser julgado, com seus efeitos retroagindo à data da morte, em caso de procedência" Texto aprovado: "O falecimento de um dos cônjuges ou de um dos conviventes, depois da propositura da ação de divórcio ou de dissolução da união estável, não enseja a extinção do processo, podendo os herdeiros prosseguir com a demanda, retroagindo os efeitos da sentença à data estabelecida na sentença como aquela do final do convívio" Apesar do texto da proposta indicar que os efeitos da sentença retroagiriam à data do "final do convívio", o relatório final traz que "o falecimento de um dos cônjuges depois da propositura da ação de divórcio não ensejaria a extinção do processo, podendo os herdeiros prosseguir com a demanda, retroagindo os efeitos da sentença à data do óbito." 11 I-Fen Lin; Susan L Brown. The Economic Consequences of Gray Divorce for Women and Men, Innovation in Aging. V. 6, n. suplem. 2022, p. 295. 12 Disponível aqui. 13 Disponível aqui.
quinta-feira, 29 de agosto de 2024

Sexualidade virtual

O atual estado da arte no que se refere à inserção das pessoas no chamado mundo virtual tomou tamanha grandeza que já se pode afirmar, tranquilamente, que muitas pessoas têm uma existência nesse universo que se mostra desvinculada daquela que marca a sua realidade enquanto pessoa natural que compartilha fisicamente os espaços públicos com os demais seres humanos. Nesse plano existencial paralelo já há quem experiencie algumas perspectivas próximas àquelas concebidas apenas em contos fantasiosos e na ficção científica. Circunstâncias similares às trazidas em filmes como "Substitutos" (2009), ou "Jogador nº 1" (2018), ou ainda em séries como "Periféricos", da Amazon Prime já não parecem tão distantes, especialmente para aqueles que acessam metaversos como Decentraland, Fortnite, Horizon Worlds, Second Life, entre outros. Esses mundos virtuais são concebidos de forma bastante peculiar, possuindo normas de conduta a serem seguida e até mesmo moeda própria. Aqueles que fazem parte desses universos contam com a possibilidade de estabelecerem as características que os representarão enquanto inseridos naquele contexto virtual, sendo permitido que construam os caracteres que identificarão sua existência online. E nesse ponto se confere a esse sujeito a liberdade de construir a sua persona virtual sem que as amarras da realidade física o limitem, inexistindo qualquer obrigatoriedade de que haja uma compatibilidade com o que essa pessoa expressa na vida real, de sorte que já se trabalha com a perspectiva da existência de um corpo eletrônico distinto daquele. A concepção de um corpo eletrônico já é objeto de inúmeros estudos, em diversas áreas do conhecimento, sendo de se ressaltar, no âmbito jurídico, a atenção destinada ao tema por Stefano Rodotá1, tratando dos dados existentes de cada pessoa no mundo virtual. Contudo aqui estamos pensando em algo mais "materializado", na existência de uma personalidade específica daquela pessoa naquele universo, separada da realidade da vida off-line. Essa persona presente no mundo virtual possui um anonimato2 que afasta a possibilidade imediata de se questionar se ela traz um correlato exato com o que caracteriza o usuário no mundo físico. A ausência da obrigatoriedade de identidade entre a representação virtual e a física atribui a cada pessoa uma autonomia de poder construir-se nesse novo ambiente segundo suas vontades e percepções, sem a existência de uma patrulha social a cercear a sua liberdade. Ao estabelecer sua representação virtual pode expressar desejos e anseios existentes no mundo físico, de forma que alguém pode apresentar-se como uma pessoa de 1,94m de altura quando na verdade tem apenas 1,60m, sem que isso seja um problema. Assim pode construir seu avatar com elementos distintos daqueles do mundo físico, contemplando vontades muitas vezes reprimidas ou impossíveis de serem satisfeitas. Ao montar o seu "eu virtual" é usual que se confira a possibilidade de que o usuário estabeleça suas características vinculadas à sexualidade, momento em que está livre para indicar aspectos associados ao sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero que o definirão enquanto estiver naquele universo, estabelecendo-se uma "sexualidade virtual" atrelada ao seu avatar. Essa sexualidade virtual, distinta daquela expressada no mundo físico, é tema que já recebe atenção em alguns países, com estudos desenvolvidos em diversas áreas do conhecimento, mas que se mostra ainda bastante incipiente no Brasil. A vertente jurídica desse viés da sexualidade é praticamente ignorada, o que fez com que me sentisse compelido à análise do tema em um capítulo específico do meu Manual dos Direitos Transgênero3. A concepção da existência de uma sexualidade virtual, apartada daquela expressada no mundo físico, ganhou certa notoriedade quando se veiculou na mídia a ocorrência de um estupro coletivo na plataforma Horizon Venues, um metaverso vinculado à Meta, que teve como vítima a britânica Nina Jane Patel, em novembro de 20214. Tal fato pode ser visto como mais um dos elementos a atestar a conexão entre mundo físico e virtual, corroborando a preocupação demonstrada já de longa data de que aquele mundo não estaria livre das piores características do "mundo real"5. De toda sorte é inafastável que a sexualidade virtual seja um fato e que o anonimato caracterizador da constituição do avatar do usuário possibilita a expressão de caracteres sexuais distintos dos manifestados no mundo físico. A escolha de indicativos de sexualidade virtual dissociados dos ostentados no mundo físico ou mesmo a opção por personagens que não representem fielmente aquela pessoa pode não significar qualquer tipo de elemento vinculado à sexualidade daquele indivíduo. O "gender-swapping" (troca de gênero) na representação virtual não tem necessariamente uma vinculação com a identidade de gênero daquela pessoa6, de sorte que um garoto que jogou Street Fighter com a Chun-Li, ou mesmo uma garota que optava por lutar como o Ryu não poderiam ser compreendidos como pessoas transgênero apenas por isso. Ali ela não se vê necessariamente representada pelo personagem que está controlando, sendo certo que sua escolha muito possivelmente está baseada nas habilidades demonstradas por esses personagens na dinâmica do jogo ou nos benefícios que pode ter enquanto está inserido naquele universo, sendo uma escolha meramente uma estratégica7. Contudo o estímulo para a escolha pode ser exatamente o desejo de se ver representado, ainda que no mundo virtual, de forma que não "pode" se expressar no mundo físico, conferindo-lhe a realização, ainda que efêmera, de ser quem entende que é no que concerne à sexualidade. Não são poucos os relatos de pessoas integrantes de minorias sexuais, especialmente homossexuais e transgêneros, que puderam expressar pela primeira vez socialmente sua sexualidade no universo online, sem os perigos que essa revelação ordinariamente traz no mundo offline. Por vezes a situação pode se colocar em um lugar extremamente conflituoso e delicado para a compreensão da sexualidade, como retratado no episódio "Striking Vipers" de Black Mirror (5ª temporada), onde dois rapazes heterossexuais na vida real têm seus avatares (um masculino e o outro feminino) se envolvendo amorosamente no universo de um jogo virtual. Quem está nutrindo um sentimento é a pessoa no mundo físico ou a sua persona no metaverso? Há como apartar as duas nesse momento? Importante deixar bastante claro que não estou aqui tratando da conduta deliberada de apresentar-se como alguém de outro gênero com o objetivo de ludibriar ou obter de benefícios econômicos, o que se costuma denominar de "catfish", o que afasta a discussão acerca do tipo penal do estelionato. O intuito é trazer para discussão a compreensão do que denomino de "transgênero virtual", figura que se assentaria na "incongruência entre o gênero da vida física e o da persona/representação/avatar criado em alguma plataforma de realidade virtual ou jogo"8, similar ao conceito de "gender switching" ou "online travestism" utilizados por Lynne D. Roberts e Malcolm R. Parks9. Toda a construção aqui desenvolvida tem por fim desembocar na assertiva de que todo o arcabouço da sexualidade virtual goza das mesmas proteções que ordinariamente se confere àquela apresentada no mundo físico10, de sorte que qualquer tipo de preconceito, segregação ou discriminação praticados em decorrência da constatação de que se trata de uma pessoa "transgênero virtual" ou "trans virtual" haverá de ser tratado com os mesmos rigores existentes com relação aos praticados contra uma pessoas transgênero no mundo físico11. Ainda que estejamos distantes de uma sociedade que efetivamente compreenda os parâmetros mínimos do que é a sexualidade e seus alicerces constitutivos não se pode ignorar que é necessário começar a expor desdobramentos mais complexos do tema. Discutir a sexualidade virtual (ou seria a sexualidade 2.0?) na perspectiva jurídica em uma realidade em que preceitos elementares sobre o tema ainda não são dominados pela população de forma geral é um desafio, mas não posso fugir do encargo de enfrenta-lo. Esse é um mister que me compete. __________ 1 Stefano Rodotà. A antropologia do homo dignus. Trad. Maria Celina Bodin de Moraes. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, jan.-mar./2017. 2 Lynne D. Roberts; Malcolm R. Parks. The social geography of gender-switching in virtual environments on the internet. Information, Communication & Society, London, n. 2, v. 4, 2009, p. 524. 3 Leandro Reinaldo da Cunha. Manual dos direitos transgênero. A perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva, 2024. 4 Disponível aqui. Acesso em: 28 dez. 2022 5 Anita L. Allen. Gender and Privacy in Cyberspace, Stanford Law Review, v. 52, 2000, p. 1179. 6 Haeyeop Song; Jaemin Jung. Antecedents and Consequences of Gender Swapping in Online Games, Journal of Computer-Mediated Communication, Volume 20, Issue 4, 1 July 2015, p. 434-449 7 Rosa Mikeal Martey; Jennifer Stromer-Galley; Jaime Banks; Jingsi Wu; Mia Consalvo. The strategic female: gender-switching and player behavior in online games. Information, Communication & Society, 17:3, p. 286, 2014. Tradução livre do autor. 8 Leandro Reinaldo da Cunha. Manual dos direitos transgênero. A perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva, 2024. 9 Lynne D. Roberts; Malcolm R. Parks. The social geography of gender-switching in virtual environments on the internet. Information, Communication & Society, London, n. 2, v. 4, 2009, p. 521. 10 Juliana Luiza Mazaro. A tutela jurídica e o reconhecimento da 'pessoa virtual' e da 'sexualidade virtual' no ciberespaço. 285 f. Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Mestrado e Doutorado em Ciências Jurídicas da Universidade Cesumar, 2023. 11 Leandro Reinaldo da Cunha. Manual dos direitos transgênero. A perspectiva jurídica da identidade de gênero de transexuais e travestis. São Paulo: Saraiva, 2024, p. 172.
quinta-feira, 15 de agosto de 2024

Jogos olímpicos e sexualidade

Com o fim dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 é possível se fazer algumas pequenas digressões acerca do poder que as competições esportivas dessa grandeza têm de mobilizar a sociedade em torno não só dos esportes, mas também de questões social de elevada relevância. Os Jogos Olímpicos de Paris 2024 nos brindaram com inúmeras celeumas que tangenciaram aspectos da sexualidade, colocando um enorme holofote sobre temas extremamente importantes mas que são ordinariamente ignorados pelas pessoas como um todo. Evidente que o mundo dos esportes representa um campo em que a sexualidade é explícita como elemento distintivo, haja vista que poucas são as modalidades esportivas disputadas de forma não segregada pelo sexo dos participantes1. Ainda que segregada pelo sexo (parâmetro biológico) ordinariamente se costuma nomear as modalidades de masculinas ou femininas, prevalecendo o padrão da binaridade de gênero2. Mas essa questão da divisão dos competidores segundo o sexo visando garantir um equilíbrio esportivo será relevada, nesse primeiro momento, a uma análise mais ampla e social envolvendo a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos, que apresentou uma série de elementos direcionados à inclusão e diversidade que assustaram os mais conservadores. Mas, em verdade, não aconteceu nada demais. Apenas se deu alguma visibilidade às minorias sexuais, fato que nunca acontecera anteriormente. Assim, a cerimônia de abertura não foi uma inovação por revelar algo desconhecido, mas sim por conferir espaço a quem normalmente não tem, fato esse, sim, que pode ser considerado um marco. A chamada Cidade Luz direcionou seu olhar e deu espaço para que não só a belíssima arquitetura parisiense fosse demostrada ao mundo, mas também permitiu que muitos constatassem a existência de um enorme grupo de pessoas que são reiteradamente ignoradas e ocultadas do chamado mainstream. Dessa vez as discussões sobre a sexualidade foram para além da tradicional situação do atleta samoano usando saias. Corpos dissonantes e diversos foram apresentados para milhões de pessoas em um dos eventos mais assistidos do planeta, suscitando questionamentos e dúvidas quanto aquelas pessoas que não se enquadravam no normal e que estavam aparecendo nas telas de cada um. Uma série de afrontas ao padrão binário foram simplesmente colocadas à visão de todos, gritando que aquelas pessoas podem até ser distintas do padrão mas que elas efetivamente se fazem presentes em nossa sociedade. São expressões da sexualidade que se apartam do tradicional mas que nem por isso deixam de existir e de merecer toda a guarida jurídica que há de ser ofertada a toda e qualquer pessoa3. Pessoas com vestes tidas por femininas, cabelos longos e com barba no rosto causaram questionamentos: homem ou mulher? A confusão se instalou em diversas pessoas que não conseguiram inserir aqueles corpos dentro dos dois parâmetros que estão acostumadas. Porém o fato de não conhecerem essa diversidade ou não estarem acostumadas com a sua existência não faz com que essas pessoas não se façam presentes em nossa sociedade. Desconhecer que algo existe não é culpa desse "algo", mas sim uma carência de interesse em buscar saber sobre o que mais há no mundo além dos limites da bolha em que se está. A cerimônia ganhou contornos ainda mais subversivos quando alguns vislumbraram uma ofensa a símbolos religiosos, um ataque ao cristianismo pois teria ocorrido uma reprodução caricata do quadro "A última Ceia" de Leonardo Da Vinci, ao se colocar uma série de pessoas LGBTQIAPN+ dispostas diante de uma mesa, enquanto um personagem azul cantava. No entanto a passagem retratava o Deus grego Dionísio (Baco) em uma grande festa pagã, como manifestou o diretor criativo da cerimônia, ao mesmo tempo em que inúmeras pessoas associaram a imagem com outras obras de arte, como "A festa dos deuses" de Giovanni Bellini ou a de Jan van Bijlert.  Nesse ponto é preponderante se consignar que há uma grande quantidade de variações da obra de Da Vinci que já foram produzidas em tom jocoso, mas como não traziam qualquer elemento de sexualidade, não enfrentaram tamanha ojeriza dos mais religiosos. Há imagens acessíveis na internet em que a mesa da última ceia está composta de personagens da cultura dos anos 80 (com o ET de Steven Spielberg ao centro), cozinheiros famosos, personagens de desenhos animados (Simpsons), entre outros, e nenhuma delas encarou tamanha rejeição dos religiosos. Com uma audiência estimada em 1 bilhão de pessoas no mundo todo a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 trouxe ao chamado grande público, não sem pagar um preço por isso, uma série de expressões da sexualidade que não são ordinariamente apresentadas nos grandes veículos de comunicação, o que pode explicar o motivo de parte das reações refratárias enfrentadas. Já após a abertura surgiram questionamentos relacionados à sexualidade envolvendo os esportistas que lá estavam para disputar os Jogos Olímpicos. Pudemos ver ponderações sobre a guarda da prole de uma competidora de atletismo, a velocista Flávia Maria de Lima, competidora da prova de 800m rasos, que afirma que o pai de sua filha tenta usar a participação dela em competições esportivas para questionar a guarda da filha4. Houve também o relato de Caio Bonfim, que conquistou a medalha de prata na marcha atlética 20km, que revelou ter enfrentado o preconceito com xingamentos desde a primeira vez que foi marchar na rua e foi xingado por "rebolar", em alusão à forma característica que identifica a modalidade por ele praticada5. Ganhou alguma visibilidade também a questão de um dos atletas do vôlei de areia da Holanda que foi constantemente vaiado pela torcida por ter sido condenado em 2016 pelo estupro de uma garota de 12 anos (ele tinha 19 anos na época dos fatos) e que não pode ficar na Vila Olímpica, por decisão do Comitê Olímpico Holandês6. Contudo o assunto olímpico que realmente ganhou notoriedade estava revestido de uma aura de "justiça competitiva" mas que em verdade foi uma clara expressão da ignorância e preconceito que acompanham as minorias sexuais. Trata-se do caso das boxeadoras, Lin Yu-ting (Taiwan) e Imane Khelif (Argélia), que tiveram questionado seu sexo/gênero e, ato contínuo, a regularidade de sua participação nos Jogos. A exposição e os ataques sofridos por Imane Khelif ganharam uma dimensão maior em razão da desistência da atleta italiana Angela Carini logo no início da luta contra ela, tendo afirmado nunca ter sentido um soco tão forte. Daí seguiu-se uma série de questionamentos acerca do sexo, gênero e identidade de gênero da atleta argelina, com alegações de que ela não seria mulher e que não seria justo um "homem" lutar contra mulheres. A situação foi ainda mais agravada quando começaram a apresentar como fundamento o fato de Imane Khelif (e Lin Yu-ting) ter sido desqualificada pela Associação Internacional de Boxe (IBA) do Campeonato Mundial de Boxe de 2023, segundo o argumento de que não atendia os "critérios de elegibilidade" fixados pela entidade. Ocorre ainda que a entidade, que sequer apresentou os resultados dos exames realizados, desde 2019 não é mais reconhecida pelo Comitê Olímpico Internacional, tendo este assumido a organização da modalidade desde os Jogos de Tokio 2020. Consigne-se que tanto Imane Khelif quanto Lin Yu-ting participaram dos Jogos Olímpicos de Tokio 2020 mas a sexualidade das atletas não foi objeto de atenção à época, muito provavelmente por que elas foram derrotadas nas fases iniciais (Imane na 1ª fase e Lin na 2ª) e não chegaram a disputar medalhas7. Evidente que mais do que a vitória ou as conquistas o que chamou a atenção daqueles que se insurgiram contra Imane Khelif está no universo da passabilidade8, na alegação do fato de que ela "parecia homem", havendo até mesmo quem compartilhasse vídeos em redes sociais com "evidências" de que seria possível se constatar um volume sob o calção da boxeadora que seria seu pênis. Aqui percebe-se claramente o impacto da passabilidade como critério crucial quando das análises sobre a sexualidade das minorias sexuais, haja vista que se a atleta expressasse socialmente características tradicionalmente associadas à feminilidade, especialmente nos parâmetros esculpidos pela sociedade eurocentrada, certamente a questão não seria suscitada, sendo tão somente enaltecido o seu elevado potencial atlético. O que se tem de informação efetivamente é que Imane Khelif seria uma pessoa intersexo. Mas a compreensão disso não se mostra nada simples, bastando que se tenha em mente que podem haver 150 hipóteses distintas de tal condição, como revela obra recentemente lançada por Thais Emilia de Campos dos Santos, Céu Ramos Albuquerque e Dionne do Carmo Araújo Freitas9. Em linhas bastante singelas tem-se por intersexo aquelas pessoas que apresentam uma condição vinculada ao sexo que não se insere "perfeitamente nos parâmetros estabelecidos do homem/macho e mulher/fêmea, seja fenotipicamente ou genotipicamente", colocando-a em um espectro distinto do critério cromossômico binário XX/XY ou daquele de correspondência direta do "homem/macho com pênis e bolsa escrotal ou mulher/fêmea com vagina, útero e ovário, revelando um sexo anatômico atípico"10. O desconhecimento acerca do que seja a intersexolidade (condição experienciada por quem é intersexo) é tamanho que o primeiro argumento apresentado por aqueles que atacaram a atleta era de que se tratava de uma pessoa transgênero, com questionamentos acerca do fato de ter ela realizado ou não o processo transgenitalizador. Não foram poucos os arautos do saber adquirido no mundo das redes sociais que asseveraram que "bastava olhar se ela tinha pênis ou não". Imane Khelif não é uma pessoa transgênero, não expressando uma incompatibilidade entre o gênero esperado em razão do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento e aquele ao qual entende pertencer11, contudo até mesmo se fosse essa a sua condição não se admitiria uma ponderação tão pueril quanto a de se olhar a genitália da atleta, como trago no meu Manual dos Direitos Transgênero, com um capítulo todo dedicado à questão dos esportes. A intersexolidade (característica de quem é intersexo, distinta da intersexualidade, aspecto atrelado à identidade de gênero)12 é condição que atinge, segundo dados da Organização das Nações Unidas (ONU), 1,7% da população mundial, contudo tal número é questionado considerando que existe uma larga parcela da população que jamais realizou exames para constatar a composição exata de seu cariótipo. Assim, provoco a quem está acessando a esse material a responder a um questionamento: você tem certeza de que é homem ou mulher? Como sabe que possui um cromossomo XX ou XY? Com a amplitude das condições intersexo e a baixa incidência de exames realizados é bem possível que muitos que estão tecendo suas manifestações contrárias a pessoas intersexo também o sejam e não saibam. Basta considerar, por exemplo, que quem apresenta Síndrome de Insensibilidade Androgênica Completa tem uma genitália externa típica de uma mulher/fêmea ao nascer, além de aparentarem ser "mulheres mais femininas", ainda que seu genótipo seja XY, tradicionalmente atribuído ao homem/macho. Retornando os questionamentos esportivos o que se poderia discutir é se tais pessoas, com tal característica genética, gozariam de algum benefício que atentaria contra o equilíbrio esportivo. E é evidente que as características físicas das pessoas constituem um diferencial que pode impactar em seu desempenho, contudo não se estabelece nenhuma celeuma com relação aos esportistas que se mostram mais altos ou mais fortes que os demais. Porém se há algum elemento que possa ser relacionado com a sexualidade que venha a conferir uma melhora no desempenho o tradicional preconceito com relação a quem não se enquadra no padrão ganha espaço, fazendo com que possamos questionar se o cerne da discussão está no equilíbrio esportivo ou em um preconceito velado13. De toda sorte é de extrema importância se afirmar que tecnicamente é um enorme equívoco chamar os exames e verificações realizados em competições esportivas como "teste de gênero". O que se realiza, em verdade, é um exame para se aferir a quantidade de testosterona presente no sangue daquela pessoa, e, em seguida, se verifica se os valores encontrados estão em consonância com um padrão estabelecido do que seria o "normal" para homens e para mulheres. Não se trata de verificar, portanto, se aquela pessoa é homem ou mulher (seguindo os parâmetros do sexo), tampouco se é do gênero masculino ou feminino (já que o gênero está relacionado com a expressão social da sexualidade daquele indivíduo). O que está em foco é se a produção hormonal constatada é compatível com o que é tido como padrão para aquele sexo, o que nada tem a ver com o gênero. No caso de Imane Khelif é interessante notar que as desculpas para fundamentar o preconceito vão mudando, sempre com o objetivo de conferir alguma fundamentação técnica à discriminação que se está praticando. Primeiro se afirmava que ela não parecia mulher ou feminina o suficiente, depois que seria uma pessoa transgênero, em seguida que ainda que não fosse transgênero parecia ser um homem e, finalmente, que até poderia ser mulher mas os hormônios. Trata-se de uma construção muito próxima daquela apresentada contra a participação de pessoas negras em certas modalidades esportiva. Preponderante que se tenha em mente que em território brasileiro as condutas que tenham como fundo uma ofensa com base na condição de minoria sexual são passíveis de serem englobada no que prevê a ADO 26, e, portanto, configurando racismo ou injúria racial. Assim, falas e publicações em redes sociais realizadas no Brasil podem configurar um tipo penal imprescritível, inafiançável e de ação pública incondicionada, como trouxemos em coluna anterior14. Ainda que muitos tentem blindar suas manifestações e escusar seu preconceito nas redes sociais com a carta da liberdade de expressão, com afirmações do tipo "eu acho" ou "na minha opinião", é premente que, mais uma vez, se consigne que não se trata de tema em que as concepções pessoais devam prevalecer ou gozem de qualquer relevância. Vivemos dias que milhares se manifestaram nas redes sociais como se fossem especialistas em sexualidade, fisiologia, hormônios sem nunca terem estudado sobre tais temas. São questões técnicas que não comportam a expressão de opinião, sendo as "opiniões" expostas apenas a mais pura revelação do tamanho da ignorância e do preconceito. "Não sei, não estudei, não sou especialista mas na minha opinião.". Sua opinião sem fundamento técnico apenas fomenta a desinformação, revela preconceito e pode caracterizar sua homotransfobia. Em suma, podemos considerar que esses Jogos Olímpicos de Paris 2024 tiveram uma dimensão distinta daquela que era de se esperar ao menos no campo da sexualidade, propondo para a população a busca de informações sobre as minorias sexuais. Agora, se a pessoa foi apresentada a tais elementos e preferiu não se inteirar do tema, passando a uma realidade distinta daquela obscura em que vivia, e segue professando sua miríade de ofensas às minorias sexuais, estamos evidentemente diante de alguém que escolheu o preconceito, a segregação, a discriminação e a violência às minorias, em frontal ataque aos princípios mais essenciais de um Estado Democrático de Direito. E isso diz muito sobre essa pessoa. __________ 1 Nos Jogos Olímpicos Paris 2024 apenas as modalidades de hipismo foram disputadas sem distinção de gênero. 2 Disponível aqui. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Ambas se sagraram campeãs olímpicas nessa edição dos Jogos. 8 Disponível aqui. 9 SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; ALBUQUERQUE, Céu Ramos; FREITAS, Dionne do Carmo Araújo. 150 variações intersexo. Paraná: CRV, 2024. 10 Disponível aqui. 11 Disponível aqui. 12 Disponível aqui. 13 Disponível aqui. 14 Disponível aqui.
Em um momento social em que se tem ampliado as discussões sobre as novas modalidades de relacionamentos interpessoais ganha cada vez mais espaço na mídia suas novas modalidades contratualizadas, com uma grande ênfase nos últimos tempos à figura do malfadado contrato de namoro. O interesse de estabelecer regras específicas e feitas sob medida para os desejos de cada "casal", atrelado à falta de uma regulamentação legal que vá além das figuras de constituição de entidades familiares (casamento e união estável), vem fomentando um alargamento dos embates acerca dos limites do que vem sendo chamado de contratualização do Direito de Família. Todavia vemos também que, ainda que não se possa configurar como uma hipótese atrelada ao Direito de Família, outras discussões vêm a reboque, pois tangenciam, em alguma medida, relacionamentos interpessoais que se assentam em convivência mútua, afeto, carinho, desejo, amor e relações sexuais.  Nesse universo amplificado do Direito de Família, com contatos com o Direito Contratual e muita presença de aspectos vinculados com preceitos de moral, surgem os Relacionamentos Sugar.1 Em linhas bastante singelas podemos nomear como tal a avença estabelecida entre uma pessoa que se compromete a remunerar a outra por sua companhia, sendo que tais contrapartidas podem ser ofertadas em espécie ou pelo intermédio da entrega de bens. Por meio dessa avença as partes expressam que, inquestionavelmente, não almejam a constituição de um relacionamento afetivo-amoroso, o estabelecimento de uma entidade familiar ou mesmo qualquer hipótese similar. Manifestam sim o desejo de obtenção de benefícios mútuos, através de uma relação eminentemente contratual, baseada simplesmente na liberdade de contratar. Não fosse pelo fato de tratar-se de um negócio jurídico que tangencia aspectos de natureza afetiva/sexual não atiçaria a sanha dos "auditores da moral e dos bons costumes" existentes em nossa sociedade tão deturpada. Não se trata de uma hipótese de tentativa de constituição de família, o que automaticamente a apartaria de qualquer vínculo com o Direito de Família, mas tudo o que envolve a possibilidade da existência de uma relação de afeto ou sexual acaba recebendo uma atenção diferenciada. Apesar de parecer uma discussão recente a hipótese que permeia o chamado relacionamento sugar, com algumas variáveis, é realidade fática vetusta, que encontra grande similitude com situações bastante conhecidas, como a das "teúdas e manteúdas" e das acompanhantes contratadas por famílias ricas para ocultar a sexualidade dos filhos. Porém o fato de alguém se disponibilizar a ser companhia de outrem mediante pagamento remete à uma concepção de que tal convivência importará em manutenção de relações sexuais, conduzindo a discussões que se vinculam à moral e aos bons costumes, fazendo com que muitos venham a expressar algum tipo de desconforto com relação a tal negócio jurídico. Logo de plano é importante que se consigne que a melhor forma de fazer com que tal desconforto seja apaziguado está na ciência de que é plena a liberdade que se confere a essas pessoas de não firmar tal tipo de contrato. Ante a prevalência da autonomia, se tal negócio não lhe atrai basta que não se vincule a ele, deixando-o apenas para aqueles que por ele se interessarem. Simples como tal. Inexiste no ordenamento jurídico pátrio qualquer tipo de imposição coercitiva que determine que quem quer que seja estabeleça um contrato desses. Se os incomodados simplesmente não entabularem esse contrato certamente seu incomodo há de desaparecer.  Contudo bem sabemos que não basta isso na nossa atual sociedade da informação, que tenho pensado ser mais de manifestação do que de informação. Poucos se informam adequadamente, com robustez científica, mas muitos (ou quase todos) sentem-se plenamente confortáveis para se manifestarem sobre todo e qualquer tema, como se detentores de uma expertise que os permitiria pleitear um título de doutorado. Os "livre docentes" das redes sociais, empertigados com suas concepções baseadas em um senso comum altamente enviesado, avocam para si o direito de expressar seu pensar com tons de uma certeza que apenas os tolos revelam. Sua moral, seus princípios, seus preceitos religiosos são de tal grandeza que devem ser postos como universais e subjugar as demais individualidades, já que supremos detentores de todo o saber. Superada toda a ironia que acompanhou os últimos parágrafos, é primordial se tratar o tema sob lentes técnicas, conferindo todo o aporte jurídico pertinente para tal realidade social. Por meio do contrato que estabelece o relacionamento sugar a parte que contrata a companhia e se compromete a oferecer benesses em decorrência disso é chamada de "sugar daddy", se do gênero masculino, ou "sugar mommy", caso seja do gênero feminino. Trata-se do detentor do poder econômico, que ordinariamente é uma pessoa mais velha, já estabelecida financeiramente, e que está disposta a ofertar parte do seu patrimônio pela experiência de ter a pessoa contratada em sua companhia. De se consignar que não existe uma "regra" insuperável nesse sentido, não encerrando uma hipótese de invalidade do contrato se for alguém mais novo ou sem uma condição econômica exacerbada, sendo esses apenas os traços tradicionais dessa modalidade de avença. No outro polo desse contrato está a pessoa que oferece a sua companhia, que ganha o nome de "sugar baby", e que normalmente é uma pessoa mais nova e dotada de atributos físicos que lhe inserem no conceito tradicionalmente posto de uma pessoa bela e atraente. Novamente não há que se falar em desnaturação do contrato se não se tratar de uma pessoa jovem ou que não se enquadre no padrão de beleza esperado. Relevante se ressaltar que tais características são apenas as usuais e não gozam de obrigatoriedade, mormente por estarmos diante de um tema onde facilmente algum rábula possa emergir em sua proeminente sapiência e asseverar que uma dada pessoa não é nova ou velha o suficiente, rica ou bela o bastante para que os parâmetros de um relacionamento sugar se estabeleçam. Reitera-se: Não há previsão entre os contratos típicos do Código Civil da figura do contrato sugar, portanto não existem requisitos legais específicos para a sua configuração e validade. A natureza da contrapartida oferecida pelo "sugar daddy" ou pela "sugar mommy" é uma questão relevante, pois pode ser convencionada em uma quantia específica em moeda correte, mas pode também fixar que caberá ao contratante o dever de pagar contas da pessoa contratada, como aluguel, contas de consumo (telefonia, energia elétrica, internet, streaming, etc.), bem como a presenteá-la com joias e viagens. Sob uma perspectiva eminentemente técnica, considerando os parâmetros firmados em sede de direito das obrigações, é de boa técnica que ao elaborar o contrato esteja perfeitamente estabelecido os valores e a quem compete escolher os presentes e viagens a serem ofertadas, sob pena de incidir os delicados parâmetros que regem as obrigações de dar coisa incerta (art. 243 e seguintes do Código Civil). A extensão da companhia ofertada pela/o "sugar baby" revela-se como um ponto nevrálgico na análise dos contratos sugar. De forma geral as plataformas que facilitam o contato entre os interessados são veementes em ressaltar que o que compreende a companhia que será oferecida pelo contratado está vinculado à discricionariedade de cada pessoa. Tal ponto é crucial pois da mesma forma que tal companhia pode se dar para que as partes desfrutem os prazeres de um jantar em um restaurante, de uma ida ao cinema, teatro ou museu, pode também acabar em alguma intimidade entre elas, e que pode se consumar em beijos, abraços ou até mesmo na manutenção de relações sexuais. E aqui se tem um ponto delicado para os "censores da sexualidade alheia". Mesmo que já estejamos longe de um tempo em que a Igreja regia oficialmente a estruturação do Estado é evidente que muitos ainda ignoram a mais do que centenária separação, sem falar daqueles que anseiam e lutam, de forma explícita ou escamoteada, pelo estabelecimento de um Estado Teocrático. Nesse mundo paralelo a liberdade sexual, especialmente das mulheres, não tem espaço, resistindo um preceito romantizado de que as relações sexuais apenas podem existir quando lastreadas no amor, especialmente constituído em sede de um casamento, de sorte que relações sexuais baseadas em contrato seriam uma aberração imoral, ainda mais quando vinculadas a algum tipo de contrapartida. Contudo a visão hipócrita não revela qualquer incômodo com os casamentos arranjados, aqueles em que os cônjuges não mais nutrem (se é que um dia tiveram) nenhum tipo de sentimento de afeto/amor pelo outro, ou mesmo naquelas relações tidas como ideais segundo alguns em que a mulher se vê obrigada a manter-se em casa, recebendo o dinheiro que o "varão" provedor lhe oferta, sendo obrigada a manter relações sexuais com ele, ainda que não o deseje. Como pontuava Simone de Beauvoir em alguns casos a linha que separa o casamento da prostituição é absurdamente tênue, pois "'entre as prostitutas e as que se vendem pelo casamento, a única diferença consiste no preço e na duração do contrato'... Para ambas, o ato sexual é um serviço; a segunda é contratada pela vida inteira por um só homem; a primeira tem vários clientes que lhe pagam tanto por vez."2 É exatamente na existência da possibilidade ou na previsão de que deva haver relações sexuais entre contratante e contratado nos relacionamentos sugar que se vê alguns fazerem um alvoroço, pontuando que tal avença é apenas uma prostituição com roupagem nova. E se for. qual seria o problema? A questão problemática não se assenta na relação sexual mediante pagamento. O que há de se discutir é o nível de autonomia da pessoa que oferece seus préstimos sexuais, quão vulnerabilizada está, se não está sendo vítima de alguma agressão física ou psicológica para estar ali. Existem inúmeras outras formas de prestação de serviço em que se oferta o corpo para o empregador que se mostram muito mais ofensivas aos parâmetros mais elementares da dignidade humana que seguem sendo autorizados, a bem da liberdade econômica, de sorte que a única razão para as restrições impostas às profissionais do sexo (com claro recorte de gênero) é o preconceito. Gostaria de estar equivocado e que o objetivo real de quem apresenta objeções ao trabalho oferecido pelas profissionais do sexo fosse efetivamente proteger as pessoas que se veem compelidas a prestar tal tipo de serviço em razão de sua vulnerabilidade. Mas, como já bastante consolidado, minorias e grupos vulnerabilizados por motivos associados à sexualidade têm sua condição reconhecida, na prática, para que sejam vítimas de discriminação, e não para serem destinatárias da especial proteção preconizada por um Estado Democrático de Direito.3 Basta se considerar que ainda hoje as profissionais do sexo seguem não encontrando respaldo legal para cobrar os serviços por elas prestado, pois continua se entendendo que o objeto do negócio jurídico por ela firmado seria atentatório à moral e aos bons costumes, ofendendo ao disposto no art. 104, II do Código Civil, encerrando em invalidade, por nulidade, daquele negócio jurídico (art. 166, II). Essa interpretação vetusta e discriminatória impõe que não se possa simplesmente exigir a satisfação do contrato. A solução "técnica" dada é que se pode superar essa impossibilidade por meio de uma ação de indenização baseada no enriquecimento sem causa experimentado por quem se beneficiou do seu serviço e que não lhe ofertou a contrapartida esperada. Tecnicamente lindo, mas de efetividade questionável, especialmente por considerar que nem sempre a profissional conta com condições econômicas para contratar um advogado ou mesmo terá meios de fazer prova de suas alegações. E essa mesma interpretação teratológica tende a se abater sobre os contratos sugar, o que mais uma vez revela a discriminação que ordinariamente recai sobre tudo o que tangencia a sexualidade.  O crucial aqui é que os contratos firmados a fim de convencionar um relacionamento sugar, sejam eles escritos ou não, vinculam as partes que o firmaram, criando, bilateralmente, direitos e deveres a serem cumpridos, lastreados na discricionariedade das pessoas que a ele se atrelaram, respeitada sua natureza contratual e os limites do pacta sunt servanda. Dotado de uma boa-fé e transparência que muitas vezes é capaz de superar aquela que se constata em casamentos e uniões estáveis, as relações sugar merecem a devida atenção, sem que sejam sobrepujadas por uma visão de terceiros que nenhuma relação possuem com o caso concreto. E, por fim, retomando o pensamento de Simone de Beauvoir, quantos casamentos e uniões estáveis não são, em verdade, relacionamentos sugar com um nome socialmente aceito? O nome atribuído à situação fática não lhe retira ou transmuda a essência... Para questionar a coerência dos aurores dos bons costumes se pergunta: O repúdio aos casamentos de fachada é o mesmo destinado aos relacionamentos sugar? ____________ 1 Atribui-se a origem da nomenclatura ao relacionamento de Adolph Spreckles, um famoso herdeiro da maior fábrica de refinamento de açúcar do mundo nos idos de 1908, que se casou com Alma de Bretteville, uma moça 24 anos mais jovem que ele, em que chamava a atenção os presentes vultosos que ele dava a ela, sendo ele chamado de Sugar Daddy e ela de Sugar Baby. 2 BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: 2. A experiência vivida, 2. ed., São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967, p. 324. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.
A utilização de banheiro é algo tão prosaico que nos faz questionar se somos uma sociedade evoluída a ponto de já termos resolvido todos os problemas centrais existentes que podemos nos permitir discutir acerca de qual o preceito adequado a definir onde cada pessoa deve fazer suas necessidades fisiológicas ou se estamos atrasados de tal maneira que ainda nos preocupamos com o local onde as pessoas urinam e defecam.1 De qualquer sorte ainda que não se tenha legalmente estabelecido se o que define a utilização de banheiros segregados é o sexo (a compleição física da pessoa) ou o gênero (expressão sociocultural de sexualidade), esse é um tema cuja discussão gera muita celeuma. Sequer há uma definição na nomenclatura distintiva a ser utilizada nesses espaços, o que acaba se constituindo em um problema social. Evidente que a questão não reside na utilização em si de um vaso sanitário mas sim da presença de pessoas de sexo/gênero distintos no mesmo local, o que revela em si o nosso fracasso como sociedade já que a mera presença de pessoas distintas no mesmo espaço se configura como um potencial risco. O posicionamento adotado pela maioria das pessoas lastreia-se em meros achismos ou mesmo no terror criado contra a existência das pessoas que não se enquadram no padrão de normalidade posta. Trata-se de uma questão que gera enorme impacto para a existência das pessoas transgênero, causando inúmeros problemas de saúde e sociais.2 Uma situação envolvendo a utilização de banheiro por pessoas transgênero chegou ao STF, no RE 845.779. A decisão recorrida tinha como pano de fundo o pleito de indenização por danos morais decorrente da vedação de que uma mulher transgênero usasse o banheiro vinculado à sua identidade de gênero. O fato ocorrido em um shopping em Florianópolis acabou com a pessoa fazendo suas necessidades fisiológicas na roupa e tendo que retornar para sua casa com as roupas sujas. Em 1ª instância houve a condenação do shopping, contudo o TJ/SC entendeu que o fato teria configurado apenas um "mero dissabor", afastando a incidência de qualquer dano moral. Já no STF, em 2014, reconheceu-se a repercussão geral da matéria (Tema 7783), entendendo se tratar de "Recurso extraordinário em que se discute, à luz dos arts. 1º, III, 5º, V, X, XXXII, LIV e LV, e 93 da Constituição Federal, se a abordagem de transexual para utilizar banheiro do sexo oposto ao qual se dirigiu configura ou não conduta ofensiva à dignidade da pessoa humana e aos direitos da personalidade, indenizável a título de dano moral". Em 2015 o ministro Luis Roberto Barroso, relator do recurso, votou fixando a tese que pessoas transgênero "têm direito a serem tratadas socialmente de acordo com a sua identidade de gênero, inclusive na utilização de banheiros de acesso público", acompanhado em seu voto pelo ministro Edson Fachin. Na sequência o ministro Luiz Fux pediu vista, restando o processo parado até 2024. Na apresentação de seu voto-vista, quase 10 anos depois, o ministro Luiz Fux manifestou-se entendendo que não haveria no caso concreto um elemento constitucional, mas somente uma questão de cunho fático vinculado a danos morais, de forma que teria de negar-se seguimento ao recurso, cancelando-se, ato contínuo, a repercussão geral conhecida. Em seguida os ministros Flávio Dino, Cristiano Zanin, André Mendonça, Nunes Marques, Dias Toffoli e Gilmar Mendes acompanharam o voto-vista, tendo a ministra Cármen Lúcia seguido o voto do relator. Trazidos os elementos fundamentais do tema cumpre destacar que o presente texto não tem por objetivo discutir o mérito em si da decisão proferida pelo STF, nem mesmo discorrer profundamente sobre o seu objeto. O que se questiona é quais os sinais que uma decisão desse jaez passa para a sociedade no atual momento. Não se questiona a existência da possibilidade de que ocorra uma revisão de uma decisão que tenha reconhecido repercussão geral, conforme disposto no art. 323-B do Regimento Interno do STF. Compreende-se também a premissa que pautou o voto-vista do Min. Luiz Fux de que a decisão recorrida, proferida pelo TJ/SC tenha se lastreado na falta de provas de que a abordagem à recorrente tenha se dado de forma "rude ou impulsionada por preconceito ou transfobia". Há também respaldo para a assertiva trazida no voto-vista de que o STF há de estar atento aos limites impostos pela sistemática processual e que a competência recursal seja respeitada. Contudo impõe-se a atenção ao argumento consignado pelo ministro Luis Roberto Barroso de que o reconhecimento da repercussão geral se atem à compreensão de que o fato revela uma natureza constitucional e que o preconceito contra pessoas transgênero é claramente um fato constitucional. Encerrar o julgamento do RE 845.779 sem apreciar o mérito depois de tanto tempo tem um impacto social terrível. Além da óbvia consequência de manter a questão sem uma solução traz uma impressão para a sociedade de que o tema é irrelevante, além de permitir que se deturpe a questão possibilitando que pessoas mal-intencionadas manipulem a informação e induzam os menos versados a acreditar que o STF teria negado o direito às pessoas transgênero. Manter um processo parado por quase 10 anos para depois encerrá-lo por uma questão técnica não configura em si nenhuma ilegalidade mas expressa claramente o tipo de consideração que recorrentemente se destina a temas que se relacionam com os direitos e interesses das minorias sexuais. Inusitado se ponderar que a justificativa apresentada pelo ministro Luiz Fux para o pedido de vista que interrompeu o julgamento em 2015 assentava-se na assertiva de que seria necessário que a sociedade fosse ouvida pois o tema do uso de banheiro por pessoas transgênero encerraria "desacordo moral razoável". O desvio que recai sobre os direitos das minorias sexuais é tamanho que se considera pertinente que a manifestação da opinião pública possa gozar de algum impacto na sua concessão.4 Mais uma vez é possível se vislumbrar o manejo da legislação processual como um meio de perpetuar a exposição das pessoas transgênero, mantendo-a vulnerabilizada e apartada do acesso aos direitos mais fundamentais. Não foi um aspecto processual que fez com que o ministro Luiz Fux pedisse vista. Reter o andamento do processo por quase 10 anos tampouco goza de plausibilidade. Parâmetros processuais puderam ser ignorados enquanto desfavoreciam pessoas transgênero, contudo esses se tornaram intransponíveis para lhes conferir a proteção que a Constituição Federal garante. O alegado risco de vulgarização da jurisdição constitucional não pautou o posicionamento do STF durante todo o período que o recurso ficou parado, permitindo que a condição de genocídio vivenciado pelas pessoas transgênero5 em nosso país persistisse e se aprofundasse. Mais vale não "vulgarizar a jurisdição constitucional" do que garantir a existência de um grupo social? Então pode-se permitir que todas as mazelas sigam recaindo sobre as pessoas transgênero? Pode a instrumentalidade processual sobrepor-se à proteção das pessoas? Não parece ser esse o preceito nuclear de um Estado Democrático de Direito. Entre proteger a aspectos processuais e resguardar os ditames nucleares da Constituição Federal é inquestionável que esse último há de prevalecer. Toda preliminar processual é transponível quando se trata de fazer valer o objeto fundante do texto constitucional. A todas as pessoas a Constituição Federal assegura os direitos fundamentais, contudo se essa pessoa for uma pessoa transgênero haveria algum tipo de análise a ser realizada, lastreada na opinião pública, para que a sua dignidade humana seja respeitada... Como se pudesse ser suscitado algum questionamento acerca de se conferir às pessoas transgênero os direitos mais elementares que são ofertados a toda e qualquer pessoa.6 Contudo não se pode jamais olvidar que toda essa questão tem como lastro a absurda leniência legislativa7 que marca o nosso Estado Esquizofrênico.8 Exigir que o Tribunal Constitucional se manifeste sobre temas tidos por ordinários mas que alçam um "grau de complexidade" extremo apenas por se tratar da busca da proteção de minorias sexuais é uma constante em nossa realidade. Basta considerar que em 2011 do STF teve que se manifestar sobre a adequação de se aplicar analogia em um caso de lacuna da lei, fato que dificilmente chegaria às suas mãos caso não se tratasse de uma questão atrelada à sexualidade e aos direitos das minorias sexuais, como se deu no julgamento da ADI 4.277 que reconheceu a possibilidade da união estável entre pessoas do mesmo sexo.9 Não busco questionar a tecnicidade que envolve a decisão mas é preciso ressaltar que o fim precípuo do STF de defensor da Constituição Federal restou ignorado. Infelizmente faltou sensibilidade ao guardião do Estado Democrático de Direito que negou a uma das parcelas mais vulneráveis da população o reconhecimento de seus direitos fundamentais, aprofundando sua marginalização ao não se posicionar de forma a simplesmente resguardar os direitos mais basilares que existem. Negar a efetivação dos direitos fundamentais a um grupo vulnerabilizado sob o argumento de um eventual risco de vulgarização da jurisdição constitucional parece ser uma escolha muito simples e que foge do cerne da questão. Há de se garantir a vida e a existência daqueles que claramente vivenciam uma situação de estado inconstitucional de coisa. Entre a proteção de uma preliminar processual, como fundamentado no voto vencedor, e as bases da democracia, evidentemente devemos pugnar pela vida das minorias. Enquanto persistir essa realidade de oferta seletiva dos direitos fundamentais estaremos atentando contra as premissas mais básicas de uma democracia, e será primordial que se continue a repetir que pessoas transgênero existem, são cidadãos e merecem ver garantidos a si os mesmos direitos franqueados a todos. _________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. RIOS, Vinícius Custódio. Mercado transgênero e a dignidade da pessoa humana sob a perspectiva do capitalismo humanista, Revista dos Tribunais: RT, São Paulo, v. 105, n. 972, p. 165-184, out. 2016, p. 167. 2 HERMAN, Jody L.. Gendered restrooms and minority stress: The public regulation of gender and its impact on transgender people's lives. Journal of Public Management & Social Policy, 19(1), 65-80. 3 Tema 778: "Possibilidade de uma pessoa, considerados os direitos da personalidade e a dignidade da pessoa humana, ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente" 4 Disponível aqui. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica - Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 - 526, mar. 2022, p. 504. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A vara de família é a competente para apreciar e julgar pedido de reconhecimento e dissolução de união estável homoafetiva. Revista DOS Tribunais (São Paulo. Impresso), v.984, p.305 - 315, 2017.
quinta-feira, 20 de junho de 2024

Crianças trans existem?

SIM. Talvez essa coluna devesse acabar aqui com essa resposta simples. Exatamente por se tratar de uma pergunta que não precisaria de maiores considerações para que fosse respondida. Contudo esse questionamento vincula dois temas sensíveis (crianças e sexualidade), o que impõe a necessidade de um aprofundamento na sua apreciação para que aqueles que não se sentiram satisfeitos com a resposta dada não possam simplesmente transformarem-se em detratores também desse texto baseados exclusivamente em seus "achismos"1. Como tenho manifestado de forma reiterada na presente coluna um dos grandes problemas de nossa sociedade atual é que vivemos uma era em que todas as pessoas se sentem confortáveis para expor sua opinião pessoal sobre temas acerca dos quais não cabe qualquer ponderação fundada no que ela pensa2. Não se trata de uma discussão sobre liberdade de expressão ou direito de se manifestar, mas apenas sobre senso crítico. O acesso à informação e a possibilidade de se expressar potencializados pela era da informação e pela universalização do acesso à internet tem, inegavelmente, o seu lado ruim. Eu sou um jurista e certamente não faz nenhuma diferença as eventuais considerações e opiniões que eu possa ter sobre física quântica, por exemplo. Qual valor deve ser dado para uma assertiva que eu venha a fazer de que "a física quântica não existe~? Certamente não faria qualquer diferença e seria solenemente ignorada pelos cientistas e também pela sociedade já que não possuo qualquer respaldo para tecer considerações sobre esse assunto. Contudo algumas áreas, apesar de apresentarem uma complexidade elevada, aparentam ser mais acessíveis à população como um todo, a ponto de muitos se sentirem autorizados a expressar o seu pensamento coloquial sobre uma questão técnica. E o fazem de forma indiscriminada, sem qualquer compromisso e sem sofrerem quaisquer consequências por desinformarem. Quando questionados pelas sandices que expressam defendem-se com escusas como: "essa é a minha opinião". Nem mesmo se atentam que se trata de uma questão que não comporta opiniões, por ser calcada em fatos científicos. Hoje tem sido cada vez mais recorrente as pessoas parecerem orgulhosas de sua ignorância e desconhecimento, asseverando que não precisam estudar ou se dedicar a aprender, bastando externalizar o seu pensamento construído com o que ela "sabe". Arvoram-se a expor sua opinião sobre o que não dominam, o que é ainda mais preocupante ao se considerar que não se trata de algo que admita uma "opinião". Nesse contexto que se encontram aqueles que negam a existência de crianças transgênero. No âmbito da sexualidade pode-se afirmar que trata-se do equivalente a afirmar que a Terra é plana, como afirmo no meu Manual sobre Direitos das Pessoas Transgênero que será lançado em breve. A razão para uma afirmação tão contundente é bastante corriqueira: em sede ciência médica é consolidado o entendimento de que a transgeneridade se faz presente entre crianças. Para trazer luz aos "céticos" quanto a essa afirmação o primeiro passo é se apoderar da premissa básica, sem a qual mostra-se impossível que se estabeleça qualquer diálogo sobre o tema, especialmente porque a maioria das manifestações contrárias à existência de crianças transgênero partem de pessoas que não têm a mínima ideia do que é identidade de gênero e transgeneridade. Sabendo-se que a identidade de gênero "está atrelada ao conceito de pertencimento de cada um, na sua sensação ou percepção pessoal quanto a qual seja o seu gênero (masculino ou feminino)3, independentemente da sua constituição física ou genética"4, pode-se conceber, com base nesse pilar da sexualidade, que as pessoas são entendidas como sendo cisgênero ou transgênero. Tem-se por cisgênero aquele indivíduo que não revela qualquer dissonância entre o gênero esperado em decorrência do sexo que lhe foi atribuído quando do nascimento e o gênero ao qual entende pertencer5. É quem teve a si atribuído o sexo homem/macho ao nascer e entende-se como alguém do gênero masculino, ou nasceu mulher/fêmea e sente-se do gênero feminino. Os transgêneros, por sua vez, são aqueles que apresentam uma incompatibilidade entre o gênero esperado em razão do sexo que lhe foi indicado ao nascer e o gênero ao qual se entende pertencente6, de forma que esperava-se que fosse do gênero masculino por terem o sexo homem/macho mas sentem-se como alguém do gênero feminino (chamados de mulheres transgênero), ou quem se suponha que haveria ser do gênero feminino mas sente-se como do masculino, apesar de ter-lhe sido atribuído quando do nascimento o sexo mulher/fêmea (homens transgêneros)7. Devidamente definida a condição sobre a qual a discussão se assenta cabe afirmar que sua existência é inquestionável, plenamente reconhecida pela medicina, com sua incidência podendo se manifestar desde os primeiros anos de uma criança. A mera verificação do conteúdo da Classificação Internacional de Doenças (CID-11), documento médico utilizado em todo o mundo para padronizar a indicação das condições clínicas e patológicas existentes, traz expressamente a incongruência de gênero na infância ou na adolescencia como uma doença passível de ser diagnosticada (código HA60 - incongruência de gênero na adolescência ou na idade adulta e código HA61 - incongruência de gênero na infância). Essa tal incongruência de gênero descrita nessa classificação elaborada pela Organização Mundial da Saúde (OMS) com a contribuição dos maiores especialistas em diversas áreas da saúde, é caracterizada pelo sofrimento psicológico que pode ser apresentado por quem revela a incompatibilidade físico/psicológica que caracteriza a transgeneridade, constituindo-se como uma condição que merece acompanhamento médico com o fim de tratar essa angústia. Será que todos esses profissionais que dedicaram sua vida à medicina estão errados em afirmar que existem crianças transgênero? Há também o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-V), elaborado pela Associação Americana de Psiquiatria (American Psychiatric Association - APA), que também prevê a existência de sofrimento em decorrência da transgeneridade em crianças (código 302.6) e em adolescentes (código 302.85). Nesse mesmo documento há a afirmação expressa de que essa sensação de desconforto psicológico normalmente tem início na infância8, o que torna evidente que a transgeneridade se faz presente naquele momento, já que não há como experienciar a consequência antes da causa se instalar. Estariam também esses profissionais equivocados? No âmbito nacional o Conselho Federal de Medicina (CFM) afirma expressamente a existência da chamada incongruência de gênero. A Resolução 2265/19, que dispõe   sobre   o   cuidado   específico   à   pessoa   com incongruência   de   gênero   ou   transgênero, prevê no Anexo III, que versa sobre o acompanhamento psiquiátrico, que a identidade de gênero se configura por volta dos 4 (quatro) anos, cominando que os eventuais efeitos psicológicos daí decorrentes deverão ser verificados ante acompanhamento a ser realizado durante a infância daquela criança9. O Conselho Federal de Medicina (CFM) também não sabe o que está dizendo? Em mapeamento realizado no Município de São Paulo cerca de 70% dos entrevistados afirmaram que deixaram de identificar-se com o gênero a eles imposto em decorrência do sexo que lhes foi designado ao nascer até os 15 anos de idade (26% entre os 6 e 10 anos e 36% entre os 11 e 15 anos)10. Estariam essas pessoas mentindo? Qual seria o seu mote para inventar uma condição que só lhes traz prejuízo e segregação? Importante que fique bastante claro que apesar de constar de documentos médicos a transgeneridade não é uma doença.  E isso precisa ser evidenciado para que não se queira retornar a um período já superado de patologização11. O apagamento enfrentando pelas pessoas transgênero, tão nefasto e que coloca em risco a sua integridade12, se mostra ainda mais forte com as crianças transgênero, pois ao se negar sua existência se está negando que elas tenham acesso aos direitos mais elementares, já que aquele que não existe não precisa de proteção. O preconceito e a ignorância quanto as questões atinentes à sexualidade fazem com que até mesmo um dos preceitos mais nucleares no que tange a crianças e adolescentes seja ignorado, pois tal negativa rechaça a efetivação da determinação constante do art. 227 da Constituição Federal que assevera ser "dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade" seus direitos elementares. Uns negam a existência de crianças transgênero sob a simples alegação que nunca as viu, como se o contato com uma determinada situação fosse o parâmetro científico para que ela viesse a existir.   Crianças trans existem e essa é uma afirmação que não se reveste de nenhuma conotação moral, política ou religiosa. Não posso crer que ainda nos permitimos considerar como dignas de leitura afirmações como a de que crianças trans não existem principalmente quando expressadas por pessoas que não têm o menor conhecimento técnico científico sobre o tema. Essa negativa despropositada fomenta o preconceito e a discriminação, fatores preponderantes para a absurda taxa de suicídios que recai sobre as pessoas transgênero, ainda mais quando se considera que os pensamentos suicidas se manifestam inicialmente antes mesmo dos 18 anos (84% dos casos), como constatado em pesquisa realizada no Chile13. A existência de crianças trans é um fato, e penso que tenha ficado evidente que isso não é uma opinião. Não cabe falar de opinião ou liberdade de expressão, mormente quando se trata de um tema em que a desinformação pode matar. Então não permita que manifestações inconsequentes e falsas continuem sendo propagadas. Compartilhe o conhecimento trazido nessa coluna para que ao menos consigamos afastar o risco de que alguém continue a negar fatos cientificamente comprovados. Porém, se mesmo assim alguém que pode ter contato com esse material o ignorou e segue negando a existência de crianças transgênero estará comprovado que se trata de alguém mal intencionado, criminoso e ignóbil. Queiram ou não aqueles que apresentam um viés religioso extremista ou moralista ignorante, a resposta para o título da presente coluna é elementar: CRIANÇAS TRANS EXISTEM14. __________ 1 Preocupação que tem sido constante nos textos dessa coluna. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Informações jurídicas imprecisas na mídia e redes sociais: o risco de danos para a sociedade. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 1, p. III-VI, 2023. Disponível aqui. Acesso em: 19 jun. 2024. 3 A indicação aqui apresentada está simplificada, considerando a visão binária do gênero, mas não ignoramos toda a gama de expressões de gênero existentes. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16. 6 Disponível aqui. 7 Reitero o posicionamento adotado desde sempre nessa coluna de que o sexo binário há de ser nomeado de homem/macho ou mulher/fêmea, e não masculino ou feminino. 8 Disponível aqui. Acesso em 12 jan.2024. 9 Disponível aqui. Acesso em: 17 jan.2024. 10 CEDEC - CENTRO DE ESTUDOS DE CULTURA CONTEMPORÂNEA. Mapeamento das Pessoas Trans na Cidade de São Paulo: relatório de pesquisa. São Paulo, 2021, p. 25. Disponível aqui. Acesso em 01 mai.2023. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 36. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022. 13 Resumen Ejecutivo Encuesta-T 2017, p. 23-24. 14 Muitas famílias de crianças trans apresentam trabalhos interessante de conscientização, como é o caso da ONG Minha Criança Trans.
Compreender a dinâmica da sociedade contemporânea é imprescindível para que se possa assimilar alguns elementos técnicos que transpõem o entendimento ordinário das pessoas. Sob o holofote dos parâmetros estatuídos em um Estado Democrático de Direito é primordial que achismos e lugares comuns não influenciem discussões técnicas. Dentre esses um dos mais intrincados é a compreensão do conceito de raça e, consequentemente, de racismo. Tradicionalmente se tinha a concepção de que os seres humanos poderiam ser divididos, segundo aspectos biológicos, em raças, o que já se mostrou cientificamente superado após estudos de sequenciamento genético que constataram que todos os seres humanos pertencem a uma mesma e única raça. Brancos, pretos, pardos, amarelos ou qualquer outra designação que tenha existido para distinguir as pessoas a partir da cor de sua pele não tem respaldo nas ciências biológicas. Contudo, mesmo sendo entendimento consolidado, as distinções lastreadas na cor da pele das pessoas seguem pautando nossa sociedade, revelando, indubitavelmente, que a segregação que existe em razão das chamadas "raças" em verdade não está calcada em elementos biológicos mas sim em parâmetros bem diferentes. De sorte que é bastante plausível se questionar: Se não existem raças como é possível que se continue a discutir o racismo e seus desdobramentos? A resposta é simples: O racismo não está lastreado no conceito biológico de raça. A definição mais comum para o termo raça, bem como para racismo, está associada a características físicas (cor de pele, cabelo, constituição facial, etc), sendo as chamadas pautas raciais direcionadas à efetivação, em favor população negra, das garantais constitucionalmente asseguradas a todas as pessoas. Essa construção que vincula raça às pessoas pretas e pardas mostra-se assentada no campo da sociologia e de muitas outras ciências, contudo, para o mundo jurídico, o termo tem uma amplitude diferente. Inicialmente é primordial se pontuar que a Constituição Federal é expressa ao distinguir raça de cor (de pele) já que consta do texto do art. 5º as duas expressões de forma concomitante. Partindo da premissa de que não há palavra inútil ou supérflua no texto da lei (verba cum effectu sunt accipienda) é inquestionável que tais palavras não são sinônimas e encerram em si concepções distintas, de maneira que pode-se afirmar de forma peremptória que para fins constitucionais raça e cor são aspectos distintos e que gozam de proteção, não se admitindo discriminações baseadas nem em uma, nem na outra. O ordenamento jurídico pátrio toma por base a concepção social de raça, que deságua na figura do racismo social, que se estabelece segundo uma crença de superioridade de um grupo face a outro, tido por inferior e, portanto, passível de discriminação e segregação, baseado não apenas em aspectos físicos mas também em critérios morais, intelectuais, culturais, étnicos, religiosos, geográficos, entre outros.1 Essa opção legislativa que criminaliza como racismo condutas ofensivas calcadas não só na cor da pele da pessoa resta evidenciada no texto positivado. A lei caó (lei 7716/89) que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor segue firmando a distinção, asseverando que o crime de racismo configura-se ao "praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional" (art. 20), tipificando ainda "injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional" como injúria racial (art. 2º-A). Estando patente que raça não é o mesmo que cor, e que racismo não se restringe somente a ofensas e discriminações fundadas nos caracteres fenotípicos de uma pessoa de pele negra é premente que se discorra sobre o que efetivamente comporta, para fins jurídicos, tais expressões. Fundado na concepção social de racismo que parte da premissa de um determinado grupo que se considerada superior a outro que não expressa as mesmas características que as suas, e, em razão disso, passa a agir de forma a subjugar, menosprezar, reduzir direitos, e até mesmo extirpar da sociedade sua presença, é evidente que racismo, sob o viés legal, vai além do genocídio do povo negro.2 Sem que se estabeleça qualquer tipo de comparação ou equivalência, que em nada ajuda nessa análise e acaba por criar celeumas que apenas fortalecerão as maiorias, a nossa realidade revela que existem outros grupos sociais que também padecem dessas mesmas mazelas, razão pela qual a legislação que pune as condutas racistas sanciona também atos discriminatórios que se lastreiam em aspectos diversos da cor. Ainda que haja alguma resistência por parte daqueles que se dedicam às pautas raciais (segundo o parâmetro tradicional), temendo que a utilização da expressão para tratar de situações que não se direcionam ao preconceito fundado na cor da pele e características físicas a ela associadas ensejaria no enfraquecimento da sua luta, o fato é que atualmente a legislação pátria abarca no conceito de raça e racismo mais do que o usualmente entendido. Mesmo sensível aos reclames dos que defendem os interesses das pessoas negras não há como se conceber a exclusão de outros grupos vulnerabilizados da proteção oferecida pela legislação destinada à apenação do crime de racismo e injúria racial. Uma luta não invalida a outra, tampouco um grupo deve ficar desprotegido para que as necessidades do outro sejam reconhecidas. Comungo da ideia de que seria salutar a existência de uma legislação específica visando a proteção dos direitos de cada um dos grupos vulnerabilizados, atendendo às idiossincrasias inerentes a cada um deles. Contudo não alcançamos tal estágio de evolução civilizatória, fator que nos conduz a albergar sob a proteção da lei mais abrangente todos aqueles que são vítimas de uma tentativa de redução por parte de um grupo detentor de poder. O STF, consoante ao acima exposto, reconheceu no início dos anos 2000, no julgamento do que ficou conhecido como Caso Ellwanger (HC 82.424-2/RS), que a configuração do crime de racismo não se restringia apenas a práticas discriminatórias baseadas na cor de pele das pessoas, condenando o editor Siegfried Ellwanger por divulgar material antissemita e negar o holocausto através de sua editora. Foi esse também o posicionamento adotado pelo STF quando do julgamento da ADO 26, entendendo pela aplicação das penas previstas para o racismo e para a injúria racial às condutas de homofobia e transfobia. No entanto é de se notar que nesse caso houve uma maior resistência em se admitir a utilização da concepção social de raça. Como de costume, quando as questões tangenciam elementos da sexualidade, especialmente em se tratando das minorias sexuais, há sempre uma objeção à concessão de direitos a tais grupos vulnerabilizados, em clara expressão à fragilidade masculina, cisgênero e heterossexual existente.3 Reconhecer que publicações antissemitas configuravam racismo, como no Caso Ellwanger, não gerou tantas oposições quanto as vistas de certos setores da sociedade e mesmo do mundo jurídico quando da criminalização da homofobia e da transfobia, o que pode ser atribuído ao desconhecimento e ao preconceito. Configura-se a homofobia quando a homossexualidade, enquanto atributo concernente à orientação sexual, é usada como elemento a fundamentar práticas segregatórias e discriminatórias respaldadas na crença de que em razão dessa característica a pessoa possa ser ofendida ou subjugada, ante a compreensão de que não é merecedora dos mesmos direitos garantidos a todas as demais. Caso o fundamento da conduta seja a transgeneridade da vítima, estamos diante da transfobia. O reconhecimento de que homossexuais e pessoas transgênero às quais são direcionadas manifestações discriminatórias, baseadas em sua orientação sexual ou identidade de gênero, são vítimas de racismo ou injúria racial não tem nenhuma relação com interpretação por analogia que, por determinação expressa da lei, não cabe na hermenêutica aplicável à legislação penal. Como pode ser facilmente constatado da decisão proferida na ADO 26 o que se deu foi a delimitação do conceito de raça, reconhecendo também a necessidade de que seja elaborada a legislação específica, mas que, enquanto essa não for apresentada, impõe-se a aplicação dos preceitos atrelados ao crime de racismo às condutas discriminatórias praticadas contra homossexuais e pessoas transgênero. Contudo é relevante se ponderar a situação segundo uma perspectiva que contemple a adequada compreensão dos elementos associados à sexualidade, mormente ao se considerar que entre as minorias sexuais existem outros grupos que não apenas homossexuais e pessoas transgênero. No âmbito da identidade de gênero é de se entender que ao ter utilizado a expressão transgênero a decisão valeu-se do termo guarda-chuva que reúne em si todos aqueles que apresentam uma percepção de gênero distinta daquela esperada em razão do sexo que lhe foi atribuído quando do seu nascimento.4 Contudo ao trabalhar apenas com a ideia de homossexuais quando se deteve a tratar da orientação sexual acabou deixando de fora outros grupos minoritários e vulnerabilizados. De sorte que, por um critério de coerência e primando pela igualdade, é inafastável que bissexuais, assexuais e pansexuais também tenham para si reconhecida a proteção da legislação que tipifica o racismo e a injúria racial. Nesse mesmo contexto da sexualidade e seus elementos componentes é possível se sustentar ainda que o feminino, enquanto aspecto de gênero, há de ser compreendido também como uma condição passível de ser reconhecida como um elemento de raça, segundo a perspectiva social, nos exatos termos reconhecidos pelo STF em favor da orientação sexual e da identidade de gênero. Ao se considerar toda a realidade que perpassa pelo feminino, com salários menores mesmo exercendo as mesmas funções, imposição social de responsabilização pelos deveres de cuidado, elevada taxa de homicídios simplesmente pelo fato de expressarem socialmente o feminino, bem como toda sorte de violência sexual, fica clara a presença de uma situação na qual o homem/masculino age como um grupo majoritário que subjuga e mitiga direitos delas. Mulheres são vítimas de agressões pelo simples fato de expressarem o feminino, podendo-se afirmar que, em alguma medida, padecem dos mesmos riscos enfrentados por pessoas transgênero e homossexuais, ainda que se tenha muito por cristalino que em um estágio de luta mais desenvolvido. Pessoas transgênero e homossexuais estão em um estágio mais embrionário na busca pela garantia dos direitos que lhes são imprescindíveis do que quem expressa o feminino, contudo não há como se negar toda a discriminação que ainda recai sobre elas. Finalmente é necessário que se aprecie o tema segundo o alicerce do sexo, mais especificamente com relação às pessoas intersexo, que são aquelas que, por seus aspectos físicos ou genéticos, não se adequam perfeitamente aos padrões clássicos atribuídos ao homem ou à mulher, nos termos trazidos em colunas anteriores.5 Em razão de sua condição também é bastante comum que pessoas intersexo sejam vitimadas por racismo social, nos exatos termos anteriormente expostos, de forma que a si também há de ser conferida a proteção penal específica. Assim, considerando os preceitos balizadores da concepção jurídica de raça e de racismo, conforme já reconhecido pelo STF, não há hermenêutica admissível que afaste a compreensão de que todo aquele que integra uma minoria sexual pode ser inserido como vítima do tipo penal que busca coibir o racismo. Para que não reste dúvidas o que estou afirmando é que pessoas transgênero, homossexuais, assexuais, bissexuais, pansexuais, mulheres e pessoas intersexo são vítimas de racismo, independentemente de sua cor de pele, apenas e tão somente em razão de sua condição de integrantes de uma minoria sexual. Proteger as minorias sexuais com a tipificação penal serve para revelar de forma patente o nível de vulnerabilidade por elas vivenciado, impondo a necessária reflexão de quais os rumos que nossa sociedade está tomando, já que em algumas searas ainda seguimos vivendo na Idade Média. Muitos tem revelado o medo de que a IA possa colocar em risco a humanidade, mas seguem ignorando que os maiores predadores dos seres humanos continuam sendo os seres humanos... _______ 1 Leandro Reinaldo da Cunha. Transgêneros: conquistas e perspectivas. Direito na Sociedade da Informação V, São Paulo: Almedina, 2020, 170. 2 Abdias do Nascimento. O Genocídio do Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1978. 3 O tema da fragilidade cisgênero é abordado em nosso Manual dos direitos transgênero, da Editora Saraiva. 4 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16. 5 Leandro Reinaldo da Cunha, Thais Emilia de Campos dos Santos e Dionne do Carmo Araújo Freitas. Intersexo, intersexual e a importância da distinção para fins jurídicos. Disponível aqui.
Para além do mundo espetacularizado e de extensa exposição das redes sociais existe um outro no qual a grande maioria da população de verdade vive. E nele é possível se sentir os respingos das manifestações provenientes daquela sociedade paralela constituída por seres que de tudo sabem e sobre tudo opinam. Situações corriqueiras que tangenciam aspectos da sexualidade (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero)1 podem ganhar contornos delicados quando expostas a lentes capazes de distorcer de maneira tão substancial a realidade. Na sociedade da informação em que estamos inseridos, em que a superexposição passou a ser a normalidade para uma grande parcela das pessoas, uma conduta que outrora seria considerada ordinária ou não chegaria ao conhecimento de todos pode passar a ser objeto de escrutínio público. Sob o olhar dos detentores do poder conferido pela ágora dos tempos modernos, norteados pelo viés de confirmação que satisfaz a dopamina que é diretriz dos algoritmos atuais, associado ao comportamento de manada, vivemos uma era de inquisição 2.0, com julgamentos dos mais variados e vereditos fundamentados exclusivamente em ignorância, preconceito, achismos e lugares comuns. Não são poucas as hipóteses em que a validação pública da conduta alheia se faz presente, especialmente quando associada a temas conexos com a sexualidade, como trazido na última coluna ao tratar da intimidade dos desejos expressados na constância de um relacionamento. Contudo nesse momento me aterei a uma das mais espinhosas correlações que se pode estabelecer em sede de sexualidade: A sexualidade de crianças/adolescentes. Dentro desse tema amplo e complexo a presente coluna fará um direcionamento ainda mais pontual, ponderando sobre a incongruência com que certas situações são analisadas, seguindo parâmetros que vão da extrema proteção à criança e ao adolescente ao seu ponto diametralmente oposto de total menosprezo. Alguns preceitos básicos de sustentação dessa matéria precisam ser fixados para ao menos mitigar o risco de que o texto não seja compreendido, em que pese a certeza de que muitos poderão criticá-lo sem nem mesmo chegar a ler essa frase em específico, seguindo a tradição já estabelecida de atacar o todo apenas com a leitura do título. De qualquer sorte é essencial que se tenha patente que a sexualidade é aspecto inerente a todas as pessoas, evidenciando, por óbvio, que ela está presente também nas crianças e nos adolescentes, de maneira muito mais elementar do que podem sugerir pensamentos enviesados. Considerando a sexualidade em sua acepção mais ampla, bem como em seus desdobramentos abrangentes, convido-lhes a ponderar quanto a 3 situações distintas para se aferir a seletividade da indignação das pessoas conforme a natureza do fato apresentado, o que nos conduz a questionar: Por que certas questões são naturalizadas e colocadas em um locus de irrelevância enquanto outras são execradas? 1. Qual a idade em que a criança/adolescente pode começar a ter um relacionamento amoroso? Numa análise lastreada na legislação vigente pode-se afirmar que inexiste previsão expressa. O ordenamento jurídico tipifica as relações sexuais com menores de 14 anos como estupro de vulnerável (art. 217-A do Código Penal), o que leva à conclusão que, de início, quem não for menor de 14 anos pode manter relações sexuais, sem que nos aprofundemos nas discussões havidas relativas à consciência e ausência de vulnerabilidade reconhecida pelos tribunais em certos casos em que a prática sexual ocorre de forma consentida por quem não tenha atingido esse marco etário. Tem-se também a vedação expressa ao casamento de menores de 16 anos (art. 1.520 do Código Civil) que, conforme já defendemos em coluna anterior2, parece referir-se muito mais ao impedimento para a celebração do ato solene denominado casamento do que para a constituição de uma família. Resta, assim, válida a pergunta: Com qual idade pode começar a namorar? Socialmente podemos encontrar as mais variadas respostas, que serão influenciadas por elementos diversos: O respondente é do gênero masculino ou feminino? Tem ou não filhos? Estes são do gênero masculino ou feminino? A pessoa em questão integra a sua prole ou está entre seus parentes? Mas ao mesmo tempo é relevante se questionar com qual idade as crianças começam a ser expostas a perguntas dos adultos quanto aos "namoradinhos(as)". Para evitar maiores digressões, tomemos o início da educação formal como parâmetro. São comuns os casos em que os pais referem-se a um determinado coleguinha de escola como sendo o "namoradinho(a)" de seu filho(a). Por mais inocente que possa parecer tal comentário, mesmo que desprovido de uma real intenção de conferir uma conotação amorosa à frase, acabam por normalizar algo que não pode ser naturalizado. Crianças, na acepção técnica da expressão, não devem namorar, tampouco se pode ter como plausíveis tais perguntas para que essas crianças não tenham como coerente a ideia de que é normal ter um "namoradinho(a)" já naquela idade. Até mesmo os autointitulados defensores da "família e dos bons costumes" são contumazes em manifestações desse jaez, que acabam por inferir uma perspectiva de sexualidade não desejada em crianças. Não pergunto qual a idade ideal para que uma pessoa comece a namorar mas sim qual a juridicamente aceita. E pontuo que a resposta pode desencadear discussões severas entre, por exemplo, pais separados com relação à educação dos filhos, nos moldes do fixado pelo poder familiar (art. 1.634 do Código Civil). A reboque da dúvida primária posso trazer outras que lhe são decorrentes: Com qual idade o(a) pai/mãe pode autorizar que seu filho/filha possa dormir em casa com namorado(a)? Ou qual a idade que pode dormir na casa do(a) namorado(a)? Com quantos anos deve permitir que tenha relações sexuais em sua casa? Havendo negativa do(s) genitor(es) essa criança ou adolescente poderia pleitear judicialmente a autorização para tanto? Em caso de conflito entre o entendimento do pai e da mãe quem o dirimiria? Com que base legal? Não sou partidário de que a legislação estabeleça qual seria a idade correta para se começar a ter um relacionamento amoroso, contudo não posso ignorar o fato de que a ausência de um marco temporal traz reflexos. 2. Com qual idade uma criança/adolescente pode começar a ter preocupações estéticas? Inúmeras são as possibilidades que as pessoas têm para alterar a sua aparência com o objetivo de tornar-se mais bela ou atraente. Algumas dessas condutas são comuns e realizadas desde a mais tenra idade, ainda que possam apresentar uma conotação sexualizada que não se mostra apropriada para uma criança ou adolescente. Com o desejo de ostentar uma imagem tida socialmente como mais bonita ou mesmo adequada a certos padrões as pessoas acabam valendo-se de meios que podem majorar marcadores de gênero, enaltecendo caracteres físicos que podem gerar um maior interesse em razão da atração afetivo/amorosa/sexual que podem expressar. Quando apreciado com relação a crianças ou adolescentes, principalmente do gênero feminino, corre-se o risco de que tais práticas possam encerrar uma sexualização infantil, o que nos impõe considerar qual a faixa etária em que agir de tal forma pode ser considerado juridicamente apropriado. Com qual idade uma menina pode começar a usar maquiagem? Ou a fazer procedimentos visando alterar a estrutura dos seus fios de cabelo? Ou mesmo a se depilar? A maquiagem é para ficar mais bela para ela, para atender a uma "moda" ou para ressaltar característica com o fim de seduzir alguém? Qualquer das respostas pode ser admissível para uma pessoa adulta, todavia a última delas se mostra totalmente vedada caso se esteja diante de uma criança. Mas de uma criança de que idade? Com qual idade passa a ser adequado se permitir que uma menina venha a se maquiar? Ou qual seria a idade que se mostraria admissível se presentear uma menina com um kit de maquiagem? Seria coerente se pensar em "maquiagem infantil"? Me parece que a indústria não se preocupa muito com isso. Talvez até mesmo muitos considerem meus questionamentos excessivos ou alarmantes, contudo reitero o meu convite a que ponderem sobre os aspectos levantados. Alguns desses temas situam-se em uma região em que se poderia sustentar o argumento de que a questão seria de saúde ou higiene, contudo ainda assim é de se considerar a manifesta presença do traço estético, como é o caso da depilação. Novamente trabalhando com um recorte de gênero claro, questiono: com que idade é admissível se pensar em depilação em meninas? A resposta muda se essa depilação for das axilas, pernas, rosto ou se for uma depilação íntima, dos pelos da região genital? Se foi o pai quem levou a menina para a prática de tal ato e não a mãe, a resposta será diferente? Alterações na aparência física de uma pessoa podem advir da mera vontade de mudar, de pressões sociais ou culturais, de influências do meio, de necessidades de saúde. Mas seja qual tenha sido a razão é evidente que elas podem revelar um caráter sexualizador que não se mostra desejável quando se tratar de uma criança. Agora, para aprofundar o nível de complexidade, considere se todos esses atos forem praticados por uma criança com o objetivo de afirmação de seu gênero de pertencimento por se tratar de uma criança transgênero? Acrescente-se que, refutando a ciência consolidada, há até mesmo quem negue a existência de crianças que divirjam a cisgeneridade... A premissa básica que conduz essas considerações está na concepção de sexualização lastreada no entendimento de que condutas que têm o potencial de reforçar ou enaltecer marcadores de gênero tradicionalmente associados ao masculino, mas principalmente ao feminino, têm o condão de gerar uma exposição de um caractere vinculado à sexualidade. A amplificação da visibilidade dada pode ser tomada por quem a constata com uma conotação que evoque a um interesse afetivo/amoroso/sexual, algo totalmente contrário aos preceitos norteadores da proteção de crianças e adolescentes. 3. Qual a idade em que a criança/adolescente pode realizar intervenções cirúrgicas vinculadas à sua sexualidade? De forma geral as pessoas mostram-se contrárias a toda intervenção cirúrgicas desnecessárias em crianças, ainda mais em tenra idade. Caso tal procedimento tenha alguma relação com aspectos da sexualidade surge uma repulsa a qualquer menção ao tema, sem ao menos sequer se suscitar a existência de uma necessidade médica. Os inúmeros especialistas em sexualidade humana forjados nas profícuas academias das redes sociais lançam mão de seus achismos para vaticinarem o que pode ou não pode. E dificilmente estão dispostos a efetivamente estudar sobre o tema, muitas vezes vangloriando-se de sua ignorância ou mesmo fundando seu conhecimento médico com base na Bíblia ou em conceitos religiosos. Esse enorme cabedal de saber qualificado é que nos leva a absurdos como a imposição de que crianças intersexo que apresentem características físicas que não permitem que sejam enquadradas nos parâmetros tradicionalmente estabelecidos para uma genitália associada ao corpo do homem ou da mulher sejam submetidos a intervenções cirúrgicas de cunho estético para que sua compleição física seja padronizada.3 A intervenção se dá por estética e não por uma necessidade de saúde, o que pode gerar sérias consequências para o futuro dessa criança. Também se tem como perfeitamente autorizada a circuncisão de crianças cujos pais tenham suas raízes religiosas no judaísmo sem que isso seja um problema. É pratica socialmente respeitada por representar uma tradição religiosa/cultural, contudo o mesmo proceder não se vê com relação a práticas de mesma natureza e bem menos invasivas quando oriundas de religiões de matriz africana. Uma dada religião professada pelos pais dá sustentação para uma intervenção genital em um recém-nascido, em total desapreço à autonomia dessa criança de poder definir no futuro se quer ou não seguir os preceitos da crença dos pais. Aos pais se confere o poder de mutilar para atender a religião. Até por mera estética se permite que menores de 18 anos alterem seus corpos, como a possibilidade que meninas de 16 anos, mediante autorização dos pais, façam implante de silicone nos seios.4 Mas aos pais não se dá o direito de atender a necessidades dos filhos de alteração corpórea baseadas em sua identidade de gênero. Uma menina transgênero não conseguiria fazer o tal implante, seja pela previsão do CFM - Conselho Federal de Medicina, que fixa que essas intervenções apenas podem acontecer a partir dos 18 anos, ou do ministério da Saúde que estabelece que o SUS apenas subvenciona procedimentos cirúrgicos visando a afirmação de gênero após os 21 anos, em manifesta afronta ao fato de se atingir a maioridade civil aos 18 anos como preconiza o Código Civil de 2002.5 Tornar um corpo feminino mais sexualizado com implantes de silicone não é vedado, mas conferir maior conformidade a um corpo, com fins terapêuticos, em razão da identidade de gênero, não é permitido, mesmo que se tenha consolidado o grande risco de suicídio que acompanha uma pessoa transgênero, com a primeira das tentativas ocorrendo, em sua maioria, até os 18 anos.6 Feitas as breves considerações sobre as perguntas condutoras da discussão proposta é importante que quem se dispuser a pensar sobre o tema tente assumir um comportamento que seja o mais imparcial possível, sem reagir aos questionamentos ao sabor de seus interesses, mantendo uma linearidade lógica. Evidente que as características individuais de quem analisa o presente texto podem ser primordiais para a compreensão de todas as situações aqui trazidas. Muito mais do que nas demais situações às quais somos confrontados, considerando que nem sempre é fácil manter a técnica quando se é exposto a uma hipótese que nos toca pessoalmente. Mas a conveniência não pode nortear o pesquisador.7 Como já é tradicional nessa coluna, trago mais inquietações e dúvidas do que certezas. Mas o faço por entender que são questões que merecem atenção e uma apreciação ampla e técnica, a fim de se chegar a algumas diretrizes que se apartem de individualismos lastreados exclusivamente em interesses e convicções permeadas de preconceitos. Ante a previsão constitucional de que a criança e o adolescente têm seus direitos básicos assegurados com prioridade absoluta (art. 227), associado aos inúmeros conflitos que podem se estabelecer entre os pais, entendo que todas as dúvidas aqui expressadas são relevantes tanto socialmente quanto juridicamente. Assim, cabe a pergunta final: Crianças e adolescentes estão efetivamente resguardados quando o tema é sexualidade? _________ 1 Leandro Reinaldo da Cunha. A sexualidade como elemento juridicamente relevante e a necessidade de compreensão de seus aspectos básicos. Disponível aqui. 2 Leandro Reinaldo da Cunha. O necessário reconhecimento da união estável de menores de 16 anos passando por uma perspectiva de gênero. Disponível aqui. 3 Thais Emilia de Campos dos Santos; Leandro Reinaldo da Cunha; Raul Aragão Martins. O registro de crianças intersexo no Brasil. Revista Contemporânea, v.3 n.9, p.14270 - 14294, 2023. 4 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 115. 5 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 272. 6 Leandro Reinaldo da Cunha. População transgênero, direitos fundamentais e responsabilidade civil. In: Nelson Rosenvald; Carlos Edison do Rêgo Monteiro Filho; Carlos Eduardo Pianovski Ruzyk. (Org.). Responsabilidade civil e a luta pelos direitos fundamentais. 1ed.Indaiatuba: Editora Foco, 2023, v. 1, p. 275-290. 7 Interessante notar que quando coloquei algumas das discussões que se seguirão para meus alunos do Programa de Pós-graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia (UFBA) alguns experienciaram o interessante conflito existente entre manifestar-se como pai/mãe ou como um profissional da área jurídica. Foi realmente um diálogo muito profícuo.
Da mesma forma que um traço social reconhecido dos seres humanos é a busca pela convivência com outras pessoas, estabelecendo vínculos baseados no afeto, a ruptura desses relacionamentos também é uma realidade. Especialmente após uma liberação das amarras morais e religiosas que impunham uma perspectiva de relacionamentos vitalícios a sociedade atual se caracteriza pela existência de vínculos rompidos. A positivação do divórcio como meio jurídico a colocar termo ao casamento e viabilizar a constituição de novas núpcias consolidou não só a possibilidade de que a mesma pessoa tenha experienciado a convivência com várias famílias (a atual e as anteriores) mas também criou uma modalidade de vínculo diferenciada: Os "ex". Numa perspectiva que foi idealizada com base em preceitos religiosos e morais, as pessoas teriam apenas um envolvimento amoroso/afetivo/sexual durante toda a vida. Em verdade, em um recorte claro de gênero, não seriam todas as pessoas, mas sim as mulheres que estariam presas a essa condição, vez que jamais se institucionalizou a possibilidade de "devolução" do homem que já tivesse sido deflorado antes do casamento como ocorria com as mulheres na vigência do Código Civil de 1916. Saímos de um período em que, em teoria, as pessoas só se relacionariam se fosse para casar para uma realidade em que há uma plena liberdade e autonomia para estabelecer vínculos amorosos/afetivos/sexuais mais ou menos duradouros. Nessa nova configuração social surge a possibilidade de que ocorra uma ampliação do número de pessoas que têm acesso a aspectos personalíssimos da vida de outrem, o que tem o manifesto potencial de fazer com que as linhas da privacidade sejam atenuadas, quando não totalmente extintas, entre os que compartilham momentos íntimos. Uma consequência desse compartilhamento é a majoração do risco de que informações resguardadas pelo direito à privacidade e à intimidade passem a estar na posse não apenas do destinatário de tais proteções legais1. E quanto maior foi a quantidade de pessoas com quem esteve maior será o risco exposição. Em termos práticos o grande problema no pós-ruptura de um relacionamento está em como conseguir reestruturar a integridade desse direito à privacidade e à intimidade que fora, no mínimo, mitigado. Tudo o que foi compartilhado e vivenciado enquanto juntos é material potencialmente lesivo caso venha a ser exposto para a sociedade como um todo. A forma pela qual se constitui esses relacionamentos pode impactar nas bases sobre as quais a presente discussão se assenta, considerando que em sede de casamento e união estável existe algum regramento legal, coisa que não se vislumbra quando as pessoas estão envolvidas em um namoro ou em relacionamentos furtivos. Enquanto casamento e união estável estão pautados, nos termos da lei, em um respeito mútuo (art. 1.566, V e 1.724 do Código Civil) não existe a previsão de que tal dever se aplica às demais formas de relacionamentos. No entanto nem isso confere qualquer respaldo a cônjuges e companheiros a partir do instante em que se convertem em "ex", haja vista que a dissolução do casamento ou união estável põe termo em todos os direitos/deveres previstos no art. 1.566 do Código Civil. Assim, ainda que se possa aventar a existência de previsão legal de respeito na constância do casamento ou união estável, tais deveres não se imporiam com a sua dissolução. A situação de fato é que não há previsão legal expressa de manutenção do dever de respeito mútuo para o momento posterior à ruptura do casamento ou união estável, de forma que em toda sorte de relacionamento findo se instala o risco de que venha a ocorrer uma exposição de uma questão que estaria resguardada pelo direito à privacidade ou à intimidade. Hipóteses existem nas quais o conhecimento de elemento pertencente à vida íntima alheia se dá de forma indevida, como pela invasão não autorizada de dispositivo eletrônico de outrem, fato esse até mesmo tipificado (art. 154A do Código Penal). Contudo mesmo que o acesso à informação íntima tenha se dado de forma lícita ou compartilhada a sua exposição é situação extremamente delicada e que merece atenção. Mesmo que inexista uma previsão específica em nosso ordenamento jurídico determinando a manutenção de um dever de respeito mútuo que vedaria a exposição da intimidade do ex-cônjuge, ex-companheiro ou daquele com quem tenha se relacionado, após o fim desse envolvimento há de incidir as regras de fundo genérico que aplicam-se a todas as situações. Especificando ainda mais a perspectiva que rege a presente coluna, uma grande parte dessas questões personalíssimas que fogem da esfera exclusiva de controle da pessoa tem conexões com elementos vinculados à sexualidade. Fatos que envolvam exclusivamente a intimidade do outro (desejos, preferências e fantasias) ou que estejam inseridos contexto comum a ambos (relacionamento aberto, troca de casais, frequentar festas liberais ou casas de swing) seguem sendo resguardados pelo direito à privacidade e à intimidade. Partindo-se do pressuposto de que o direito à privacidade e à intimidade estão inseridos entre os Direitos Humanos, fundamentais e da personalidade, dos quais não se pode ser privado sob pena de ataque direto aos preceitos nucleares da sua essência enquanto pessoa, é inadmissível que se postule que alguém possa expor informação que goza de viés tão personalíssimo pelo simples fato de ter tido contato com ela. O direito à privacidade e à intimidade, ainda que relacionados a fatos compartilhados com outrem, devem imperar, não podendo ser afastados em nenhuma circunstância sob pena de redução da humanidade daquela pessoa, colocando em risco a sua própria existência. A ocorrência de qualquer ameaça ao direito à privacidade ou à intimidade, praticado por quem quer que seja, há de ser rechaçada de maneira exemplar, cabendo a devida indenização quando importar em efetiva violação, principalmente ao se entender os meios pelos quais tais informações personalíssimas foram obtidas. Ainda que entenda ser perfeitamente viável a inclusão de cláusulas impondo o respeito e preservação à intimidade do cônjuge ou companheiro em pacto antenupcial ou em documento similar direcionado à união estável essa previsão apenas teria o poder de se impor para a constância do casamento. No entanto, para o pós-ruptura, é possível que uma previsão dessa natureza seja inserida como cláusula do divórcio ou da dissolução da união estável, contudo é preciso explicitar de forma incontestável que em se tratando de temas afeitos à sexualidade os danos de uma exposição como essa dificilmente serão dimensionado com a amplitude das suas consequências e se o forem, correrão o risco de serem questionados sob a alegação de excesso, considerando as pífias indenizações que ordinariamente são deferidas. Tampouco se olvida a possibilidade de que tais informações sejam utilizadas com o fulcro de tentarem romper os laços que unem tais pessoas a seus filhos, em um contexto de alienação parental,2 situação revestida de enorme potencial lesivo tanto para a pessoa como para sua prole. Ainda que se possa ponderar quanto a possibilidade da perda do poder familiar em decorrência de uma conduta dessas, como preconiza o Código Civil no art. 1.638, III, é sabido que tais violências são recorrentes A existência de um relacionamento prévio com a pessoa cuja intimidade está sendo exposta não confere a ela a prerrogativa de atingir direitos essenciais de quem quer que seja, sendo de se ponderar até mesmo uma majoração no montante da indenização em razão do abuso. A alegação de que se trata de um fato do qual a pessoa causadora do dano participou e que estaria apenas relatando sua realidade não lhe confere uma excludente de ilicitude, apenas permite a constatação de que houve um abuso de direito, fator também ensejador de dano e, ato contínuo, responsabilização civil. Tampouco poderá eximir-se de responsabilização sob a alegação do exercício de liberdade de expressão, mormente ao se entender que tal direito não poderá refutar o direito fundamental de proteção à privacidade e à intimidade, constituindo-se a prática da exposição sob esse argumento em um manifesto caso de abuso de direito. Nem mesmo se sustentaria a tentativa de escusa calcada na afirmação de que o que se está a revelar é a verdade, pois um eventual direito de tornar a verdade pública não se sobrepõe à defesa dos direitos essenciais à existência da pessoa. Considerando o caráter vinculado a questões atreladas à sexualidade não se pode olvidar que tais elementos, em decorrência de todo o preconceito que os permeia, devem ser protegidos de forma real, e não meramente material, impondo que o dever de indenizar atinja a plenitude dos danos sofridos pela vítima. Não se pode naturalizar condutas que exponham a privacidade ou intimidade das pessoas, ainda que socialmente tais atos sejam minimizados e colocados no campo das meras "fofocas". A vida íntima há de ser respeitada, não se admitindo a sua exposição indevida, merecendo especial atenção os aspectos dessa natureza que se mostrem vinculados à sexualidade. Expor a intimidade alheia ou é conduta dolosa que tem o animus de causar dano ou é conduta culposa que não dimensiona o tamanho do prejuízo que tal leviandade pode encerrar. Mas o mais basilar é se entender que se trata de uma falta de respeito que não se prosperar, ainda mais partindo de alguém com quem se compartilhou momentos amorosos, afetivos ou sexuais. O desgosto e as feridas decorrentes do fim de um relacionamento ou de um envolvimento fortuito não são autorizadores para a prática de uma ofensa a um preceito tão caro como o direito à privacidade e à intimidade. __________ 1 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade de gênero, dever de informar e responsabilidade civil. Revista IBERC, v. 2, n. 1, 22 maio 2019. 2 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 237.
É fato que estamos hoje diante de uma sociedade que, ao menos em teoria, se mostra em alguma medida um pouco menos ignorante com relação à existência das minorias sexuais. Até mesmo a extensão da sigla que usamos para indicar essa população (LGBTIANP+), que muito se utiliza para argumentar que torna impossível que se saiba exatamente quem são essas pessoas, conseguiu atribuir um pouco mais de visibilidade à comunidade com um todo. Constantemente vemos nas redes sociais e veículos de comunicação que há uma maior acolhida à diversidade, ainda que estejamos absurdamente distantes de atingir os parâmetros mais elementares de igualdade e dignidade da pessoa humana preconizados em um Estado Democrático de Direito. Não se pode ignorar que pequenos avanços têm acontecido. A enorme dificuldade para se obter essas pequenas vitórias faz com que toda vez que elas acontecem surja uma grande alegria e comoção, que nos confere um sopro de alento, uma crença de que pode haver um futuro melhor para nós como sociedade. Contudo o que é amplamente ignorado é a fragilidade de tais conquistas. Normalmente acompanhadas de uma atitude presunçosa daqueles que são detentores do poder, os parcos direitos que se atribui às minorias sexuais surgem quase que como uma benesse praticada pelos "seres magnânimos" que regem nossa sociedade. Seria a expressão de sua tolerância, permitindo que o "anormal" possa permanecer na sociedade, mas apenas se reconhecer que é inferior e que "deve" a ele essa oportunidade de seguir entre os demais. Uma demonstração dessa natureza revela-se no simples fato de que tais "ofertas" de direitos apenas se dão de forma transversal, nunca ante a positivação legislativa, o que encerra em si o perigo claro de que as concepções que as sustentaram venham a ser atacadas a qualquer momento e elas se esfacelem. Nossa democracia é tão míope que o Poder Legislativo não pauta questões vitais para minorias sexuais por entender que faltaria sustentação popular para tanto, olvidando-se que certamente as minorias dificilmente terão apoio da coletividade, a qual não costuma se mobilizar com o fim de assegurar direitos a quem não seja ela mesma. Evidentemente que não é o simples fato de o Poder Legislativo cumprir seu mister e elaborar a legislação pertinente que fará com que os graves problemas enfrentados pelas minorias sexuais venham a deixar de existir, contudo é claro que a existência de uma base legislativa é premissa elementar para a garantia de direitos. A possibilidade de alteração de nome e sexo/gênero nos documentos de pessoas transgênero, por exemplo, é direito que foi alcançado mediante decisão dos Tribunais Superiores, culminando com a elaboração do Resolução 73 pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), atualmente incorporada pela resolução 149/23 que criou o Código Nacional de Normas da Corregedoria Nacional de Justiça do CNJ - Foro Extrajudicial (CNN/ CN/CNJ-Extra). Nunca é excessivo se ponderar que os regramentos provenientes do CNJ não se revestem de força cogente para toda a população, sendo diretrizes estabelecidas para aqueles que estão subordinado àquele conselho. Contudo face à ausência de legislação muitas vezes acabam se mostrando como o mais próximo que temos a uma lei sobre dados temas. Da mesma forma que a alteração do nome e sexo/gênero de pessoas transgênero pode-se suscitar que questões como a indicação de "intersexo" no campo destinado ao sexo no RCN - Registro Civil de Nascimento, registro de filho com dois genitores do mesmo sexo/gênero, ou direito ao casamento entre pessoas do mesmo sexo/gênero não encontram-se legisladas. Em que pese todas as ponderações que podem ser feitas sobre tais temas é de se consignar que ainda que não estivessem expressamente proibidos na lei acabaram necessitando de uma confirmação do Poder Judiciário para que pudessem ser efetivados na prática, sendo emblemática a decisão na ADI 4.277 em 2011 que, ao fim e ao cabo, simplesmente reconheceu que, em sede de uniões entre pessoas do mesmo sexo/gênero, prevalecem as mesmas regras fixadas para relacionamentos entre pessoas com sexo/gênero distintos, havendo de se aplicar a analogia para suprir a lacuna da lei, questão que jamais chegaria ao STF caso não estivesse atrelada a um elemento vinculado à sexualidade. Ainda que se sustente que conquistas dessa natureza não possam vir a ser suprimidas em decorrência do princípio da vedação do retrocesso é evidente que eventuais ondas que confundem eliminação da diversidade com conservadorismo venham a tentar vedar o acesso a direitos elementares a pessoas "diferentes" apenas por serem elas "os outros" e não estarem inseridas no padrão ao qual a lei "genericamente" costuma referir-se. O grande risco decorrente de se resignar com as conquistas obtidas ante a manifestação do Poder Judiciário vai muito além das absurdas alegações de que estaria havendo um ativismo judicial. Não há que se falar em conduta indevida do Poder Judiciário quando ele cumpre sua incumbência, nos termos exatos previstos na LINDB - Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro, conferindo solução ao caso concreto ao ser instado a se manifestar sobre um tema ainda não especificamente legislado. O real perigo é que face a composição dos diversos planos do Poder Judiciário é possível que em razão da mudança de seus integrantes posicionamentos que resguardam direitos humanos, fundamentais e da personalidade das minorias sexuais venham a ser atingidos pela alteração de viés dos julgadores. Todos somos influenciados pelas circunstâncias que nos tangenciam e dificilmente se tem de fato uma análise fundada em imparcialidade real do julgador, sendo utópica a crença da existência de um "juízo neutro" dos magistrados. De se notar que a leniência legislativa1 que grassa em nosso Estado Esquizofrênico2, especialmente demonstrada com relação a questões que referem-se à efetiva garantia dos direitos fundamentais às minorias sexuais é sintoma consolidado em nosso Estado que recorrentemente institucionaliza atitudes discriminatórias. E não legislar especificamente em favor das minorias sexuais é mostrar toda a fragilidade que acompanha os detentores dos privilégios. Nossa democracia, historicamente recente, recorrentemente sob ameaça, sofre influências das mais variadas, muitas vezes contrárias aos seus alicerces estruturantes e que podem fazer com que se entenda que as minorias não mereçam mais proteção, sendo passiveis de extermínio. Os olhares deturpados dos eternos vencedores são capazes de enxergar na imposição de que a igualdade seja conferida e se atribua às minorias iguais direitos aos detidos pelas maiorias um excesso. Sua fragilidade é tamanha que teme pelo fato de que permitir que os "outros" alcancem as mesmas prerrogativas que já são previstas em favor de todos mas que não conseguiam acessar em razão de todo o preconceitos e discriminação que experienciam possa culminar em uma perda de seus próprios direitos. O medo de não mais gozar dos benefícios que a discriminação lhes confere faz com que sejam contra a garantia dos direitos mais elementares aos mais vulnerabilizados. Absurdo, mas real. Há tantas camadas de preconceito sobrepostas que faz com que certos grupos sociais venham a ser desumanizados, retirando-lhes, aos olhos dos detentores do poder, a própria condição de pessoas, fazendo com que se tenha que manifestar de maneira pungente, visando afastar toda essa opacidade imposta, clamando que ainda que minorias são sim pessoas e, portanto, destinatárias de todas as garantias inerentes a tal condição. A inércia em proteger a todas as pessoas, sem discriminações excludentes, é que impõe que se levantem bandeiras constantemente com o fim de que aqueles que não são considerados pelos tidos por normais como pessoas possam vir a "desfrutar" das benesses dos direitos ordinariamente conferidos a todos. É primordial que tenhamos claro que a defesa dos direitos humanos, fundamentais e da personalidade de todas as pessoas, mas em especial dos grupos vulnerabilizados, depende de uma luta constante. Por não reinarem na condição de "meras pessoas" genéricas, estando sempre acompanhadas de expressões que as qualifica, é importante que o resguardo de seus interesses receba uma atenção diferenciada. Todas as vidas importam, mas quanto as vidas das minorias e grupos vulnerabilizados é sempre relevante se ressaltar que elas também importam, já que nem sempre as pessoas as veem inseridas no conceito universalizante de pessoas. Para além de lutar pela garantia dos direitos em favor das pessoas, é importante que se pontifique que esses direitos devem ser efetivamente franqueados às pessoas que a sociedade vê como sendo "menos pessoas". O reconhecimento como minoritário há de servir para que se ofereça proteção especial, jamais para se fomentar ainda mais a discriminação3. Por tal razão é premente a atenção do Poder Legislativo na garantia dos direitos de pessoas intersexo, mulheres, aquelas que integram a concepção do feminino, transgêneros, homossexuais, bissexuais, assexuais, pansexuais e toda a gama de pessoas divergentes presentes em nossa sociedade. Para elas a existência de direitos para "pessoas" não basta. O que se está a ponderar aqui não é sobre a existência de uma contraposição entre pautas conservadoras ou progressistas, de direita ou de esquerda. Trata-se não de uma questão de governo, mas sim de Estado. E é muito mais amplo do que os meros limites das fronteiras de uma Nação. É tão somente uma questão de humanidade e de preservação de quem somos no universo. Impõe-se a necessidade de que se positive os direitos para aqueles que os tem em teoria mas que, de fato, não os possui. -------------------- 1 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015. 2 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 3 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61.
O desejo de perpetuar sua existência leva as pessoas a buscarem as mais diversas formas de fazer com que sua presença permaneça no mundo mesmo após a sua morte, valendo-se de diversos meios para atingir tal objetivo, sendo uma das maneiras mais ordinárias para tanto a constituição de uma prole, tornando possível que traços daquela pessoa (crenças e valores ou mesmo aspectos genéticos) mantenham-se vivos para a posteridade. Tradicionalmente a prole estava atrelada, ao menos para fins legais, à constituição de uma família, lastreado na premissa de que as pessoas apenas poderiam manter relações sexuais entre si após o casamento. Mesmo com a consolidação da laicidade do Estado tais preceitos de raízes eminentemente religiosas seguem presentes em nosso ordenamento jurídico, que continua replicando de forma anacrônica concepções arraigadas em uma realidade social que já de longa data não mais se verifica1. O Código Civil, mesmo que seu texto vigente tenha sido incorporado ao ordenamento jurídico no início dos anos 2000, está repleto de previsões que se mostram dissociadas da realidade atual, bem como desconhece uma ampla quantidade de situações fáticas já existentes à época e que hoje fazem parte do cotidiano da população. Um dos temas ignorados (quase que plenamente) pelo Código Civil e que ainda não foi contemplado por nenhuma legislação específica, em que pese estar vinculado com a perspectiva de planejamento familiar (art. 227, §7º da Constituição Federal e Lei nº 9.263/1996) é o da reprodução humana assistida (RHA), assim entendida toda a gama de métodos que buscam auxiliar a viabilizar uma gestação e, consequentemente, o nascimento de um filho, quando tal intento não se atinge pelas formas chamadas de naturais. Assim, em linhas bastante panorâmicas, a reprodução humana assistida (RHA) se presta a possibilitar que pessoas que não podem ter filhos segundo os parâmetros usuais consigam alcançar esse objetivo, normalmente ante a utilização de técnicas baseadas em ciência que viabilizem a gravidez e o nascimento da criança. A leniência legislativa2 que faz com que temas extremamente importantes restem não positivado, conduzindo a uma série de discussões exatamente face a ausência de diretrizes normatizadoras, também aqui se faz presente. Como a questão tangencia elementos de cunho médico, como já virou um costume, o Poder Legislativo se acomoda e não desempenha seu mister, fazendo com que, muitas vezes, as previsões deontológicas elaboradas pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) acabem sendo assumidas como se tivessem o poder de regulamentar a questão para toda a população3. Além de uma manifesta impropriedade técnica ainda dá força a manifestações e diretrizes concebidas no âmbito do Conselho Federal de Medicina (CFM) que extrapolam suas atribuições, tocando em pontos que estão além das considerações meramente médicas, imiscuindo-se em temas que estão totalmente fora de seu escopo, como, por exemplo, definir quem pode ser o paciente da reprodução humana assistida (RHA)4 ou quem poderá gestar em uma gestação em substituição, para além de parâmetros eminentemente clínicos. Para as hipóteses em que as técnicas de reprodução humana assistida (RHA) venham a ser realizadas por um profissional da área médica há o regramento elaborado pelo Conselho Federal de Medicina (CFM), estabelecendo os parâmetros médicos atinentes ao tema, aos quais os profissionais vinculados a esse conselho de classe estão sujeitos (Resolução CFM nº 2320/22). Feitas essas ponderações introdutórias passo a efetivamente me debruçar sobre o grande tema acerca do qual tecerei considerações relacionadas à sexualidade. O pano de fundo do presente texto é o que se tem nominado como inseminação caseira, uma resposta imediata5 que acaba restando para quem deseja engravidar e não possui condições arcar com os elevados valores cobrados pelos serviços ofertados por clínicas e profissionais especializados em reprodução humana assistida (RHA). Assim ao lado da reprodução humana assistida (RHA) realizada com base em elementos afeitos à técnicas desenvolvidas por profissionais da área médica há também uma outra vertente, que denomino, genericamente, de técnicas de reprodução humana assistida caseira, que comporta as hipóteses de tentativa de gravidez acompanhadas de um elemento negocial específico direcionado a esse fim. Fugindo do modelo tradicional se está diante de uma avença por meio da qual as partes comprometem-se a atividades que levam a uma gravidez. De forma bastante resumida a reprodução humana assistida caseira baseia-se em um negócio jurídico por meio do qual um indivíduo se compromete a entregar seu esperma para que a mulher venha a engravidar6. Nesse universo que surge a discussão das chamadas formas de inseminação caseira. Nela há o estabelecimento de um acordo de que alguém fornecerá a quem deseja engravidar, as chamadas "tentadoras", o seu esperma para que ela o inocule em seu corpo (com uma seringa) e tente ficar grávida. A ideia de uma gravidez decorrente de se introduzir, de forma "não natural" o esperma na vagina de uma mulher, sem o emprego de técnica médicas, não é uma realidade nova. Basta lembrar o caso que ganhou espaço na mídia brasileira no início dos anos 2000 quando a cantora mexicana Glória Trevi, presa nas dependências da Polícia Federal, sem direito a visitas íntimas, engravidou e se afirmou, à época, que ela teria sido "fecundada com a ajuda de uma caneta Bic"7. Contudo não se pode ignorar que por vezes a reprodução humana assistida caseira se dá de uma maneira ainda mais prosaica. Em busca de uma maior probabilidade de êxito a negociação entabulada prevê simplesmente que as partes manterão uma relação sexual com o mero fim de que a "tentante" venha a engravidar, afastando do contexto qualquer elemento de cunho afetivo ou amoroso que possa envolver uma relação sexual. O ato é praticado com o simples fulcro de engravidar, numa versão atual do que antigamente se costumava chamar de "produção independente". Apenas para manter o tom provocador que marca essa coluna proponho que quem me lê pense: em nossa sociedade, considerando toda a estrutura moral que a rege, como seria vista a hipótese em que a mulher não possa ter filhos e permita que seu cônjuge mantenha relações sexuais com outra para que ela engravide e depois lhe entregue o filho. Tal solução seria bem recebida pela sociedade? Seria uma forma "natural" de gestação em substituição? A inexistência de legislação sobre esses temas cria mitos que são replicados pelas pessoas leigas, pela mídia, e até mesmo por iniciados no mundo jurídico. Mesmo não havendo qualquer previsão expressa na lei quanto ao tema, muitos asseveram que, ante a vedação de cobrança para doações prevista pelo Conselho Federal de Medicina (CFM) haveria a proibição da pagamento pela oferta de esperma. Contudo se não há a participação de profissional da área médica não há a incidência do regramento do Conselho Federal de Medicina (CFM). Mas é importante se questionar: há de fato uma doação? Qual seria o objeto da doação? O que é doado é efetivamente um bem? Isso que teria sido doado poderia ser objeto de doação? A questão encontra restrição na lei de doação de órgãos e tecidos (Lei 9.434/97)? As restrições constantes na Lei de Biossegurança se aplicam nesses casos? Pode haver uma interpretação ampliativa para restringir direitos? Aquele que oferta seu esperma tem deveres e direitos com relação à criança? O caráter altruístico da conduta tem impacto na apreciação da negociação entabulada? Todos esses temas serão tratados de forma aprofundada em trabalhos futuros, cabendo-me, nesse momento, direcionar a análise para os fins aos quais me propus. O objetivo nesse texto não é discutir os riscos para a saúde em razão de tal tipo de prática (transmissão de doenças ou o risco de uma grande quantidade de crianças filhas do mesmo doador, gerando o perigo de um "incesto acidental", por exemplo), tampouco a possibilidade de que se venha a deparar com pessoas inescrupulosas que queiram se aproveitar da vulnerabilidade apresentada por quem quer engravidar (exigindo benefícios indevidos ou forçando a manutenção de relações sexuais). O que se coloca é: se tais situações de reprodução humana assistida caseira existem, como pode se constatar dos inúmeros grupos em redes sociais nos quais é possível encontrar a oferta de esperma para esse fim8, bem como em decisões judiciais, como fica a definição de quem serão os genitores dessa criança? A resposta desse questionamento passa, na prática, por uma análise que incide sobre elementos atrelados à sexualidade, já que as consequências serão distintas dependendo das características expressadas pelas pessoas envolvidas. Se a "tentante" que realizou a reprodução humana assistida caseira não estiver em um relacionamento com quem quer que seja e seu intento seja figurar sozinha como genitora daquela criança a existência prévia de uma inseminação caseira sequer será suscitada. Ao nascer ela poderá, dotada simplesmente da Declaração de Nascido Vivo (DNV), registrar a criança como sua filha sem questionamentos quanto a forma como se deu sua gravidez. No caso da "tentante" ter um relacionamento consolidado, como um casamento, também poderá dirigir-se sozinha ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN) e realizar o registro de nascimento daquela criança indicando como genitores, no campo destinado à filiação, ela e seu cônjuge, face à presunção de paternidade existente no Código Civil (art. 1.597). Ainda que eu questione profundamente os parâmetros que norteiam tal presunção não se pode olvidar que ela existe e goza de aplicabilidade prática. Se, porém, a tentante viver em união estável não haverá a possibilidade de que venha a valer-se da presunção pois o Código Civil não abarca expressamente tal alternativa, podendo até mesmo se questionar judicialmente se esse dispositivo não há de ser garantido a quem vive em união estável, mormente ante a compreensão de que também caracteriza uma entidade familiar igual ao casamento, independentemente de ter sido estabelecida entre pessoas do mesmo sexo/gênero ou de sexo/gênero distintos, como reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADPF 42779. Ainda assim é patente que tal sorte de restrição atingirá de maneira mais forte aqueles que estiverem em uma união estável com alguém do mesmo sexo/gênero, haja vista toda a discriminação que ainda incide sobre as minorias sexuais. Basta se considerar que para aqueles que estiverem em uma relação com alguém de sexo/gênero10 distinto será franqueada de forma inquestionável a possibilidade de que o companheiro da tentante compareça ao Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN) e reconheça a paternidade, o que poderá fazer sem que haja perguntas ou oposições, exatamente por ser uma declaração que se coaduna com os padrões postos de um relacionamento que se insere na cis-heteronormatividade vigente. Contudo se a tentante estiver em um relacionamento com outra pessoa do gênero feminino certamente enfrentará objeções para que a criança seja registrada também em nome de sua companheira. Nem mesmo tenho a convicção de afirmar que se fosse casada com alguém do mesmo sexo/gênero conseguiria tranquilamente valer-se da presunção de que o cônjuge de quem deu à luz à criança seria o outro genitor, seja pela estrutura que norteou o Código Civil, ou pela oposição de restrições de cunho moral ou até mesmo pela influência do Provimento 149/23 do Conselho Nacional de Justiça (art. 512 e ss.), que incorporou o conteúdo do Provimento 63/17. O que se pode concluir é que, mais uma vez, o fato de estar inserido em uma relação que foge do padrão normativo que segue sustentando o nosso ordenamento jurídico fará com que a pessoa se veja impedida de estabelecer uma relação paterno-filial em caso de reprodução humana assistida caseira, fator que não incide quando tal prática se estabelece por uma tentante que se relaciona com alguém do gênero masculino. Independentemente de todo o espectro que se possa suscitar para a compreensão da presente questão é primordial que se analise se tal vedação, que claramente ofende os parâmetros elementares da igualdade, estaria atendendo à premissa de que há de se assegurar, com absoluta prioridade, os direitos de crianças e adolescentes (art. 227 da Constituição Federal). Ao filho de um relacionamento furtivo se garante a possibilidade de que tenha ,em sua Certidão de Nascimento, o nome de quem manteve uma relação sexual com sua mãe Da mesma maneira que se garante que haja o reconhecimento, na prática, de um filho que não é seu (por equívoco ou mesmo intencionalmente). Afastar o estabelecimento de vinculação paterno-filial a quem ofertou o material para a inseminação caseira até pode gerar questionamentos com relação aos eventuais direitos dessa criança. Contudo não é esse o caso aqui, já que o objetivo é conferir a essa criança um "genitor". Obstaculizar que quem é fruto de uma reprodução humana assistida caseira seja registrado atende aos interesses de quem? Só o fazer quando se depara com uma relação entre pessoas que não se inserem no modelo clássico do envolvimento heterossexual entre um homem e uma mulher não configura discriminação? A mim parece que estamos diante da presença de mais uma, entre as inúmeras, situações de discriminação institucionalizada pelo Estado, que pode ensejar em uma conduta criminosa, por exemplo, do Oficial do Cartório de Registro Civil das Pessoas Naturais (CRCPN), inserida no contexto da criminalização da homofobia, conforme reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal (STF) na ADO 26. A reprodução humana assistida (RHA) como um todo é tema que necessita de um regramento, não sendo admissível que o Poder Legislativo sig omitindo-se, haja vista a relevância social que recai sobre o tema. Mas como tudo o que tangencia elementos da sexualidade gera um verdadeiro pavor em certos setores da sociedade, seguimos relegados a laborar com princípios para solucionar questões que impõem um regramento tecnicamente sólido. Mas segue sendo mais cômodo para o Estado quedar-se inerte. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito civil pensado. a importância de não se repetir velhos dogmas de forma indiscriminada. Revista Conversas Civilísticas. v.1, n.2 p. I - IV, 2021. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. In: Nelson Rosenvald; Joyceane Bezerra de Menezes; Luciana Dadalto. (Org.). Responsabilidade Civil e Medicina. 2ed.: Indaiatuba: Editora Foco, 2022, p. 307-321. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. MACEDO, Andreia Assis. Reprodução humana assistida post mortem e direitos sucessórios. Revista Conversas Civilísticas. Salvador, v.2, n.2, 2022, p. 4. 5 ARAÚJO, Ana Thereza Meireles. Projetos parentais por meio de inseminações caseiras: uma análise bioético-jurídica. Revista Brasileira de Direito Civil - RBDCivil, Belo Horizonte, v. 24, p. 101-119, abr./jun. 2020, p. 102. 6 Não ignoro o fato de que quem possui útero pode engravidar, o que permite que, eventualmente, um homem transgênero possa vir ter uma gestação. Apenas para tornar a compreensão do tema menos complexa, seguirei me valendo da hipótese ordinária de sexo/gênero que pode engravidar. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da.  A União Homossexual ou Homoafetiva e o Atual Posicionamento do STF sobre o Tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito (São Bernardo do Campo. Online), v.8, p.280 - 294, 2011 10 Apesar de entender que não deve haver a mistura das figuras de sexo e gênero, como descrito em colunas anteriores, tratarei as duas em conjunto para conferir uma compreensão ampla das hipóteses.
Na primeira parte do presente texto construí as bases do que passarei a analisar na sequência. A premissa criada de que as mulheres são "cuidadoras por natureza", que tem em si um gene que as conduz a exercer as atividades de cuidado, lastreada em uma visão manifestamente machista que permeia toda a nossa sociedade, gera consequências severas. Mais do que crer que os homens são incapazes de cumprir adequadamente com tais atividades de cuidado o que está por detrás dessa visão é exatamente que essas atribuições seriam de menor valor, e, por isso, destinadas às mulheres que, por outro lado, não teriam condições de realizar aquelas incumbências de maior complexidade, as quais apenas os homens teriam as "ferramentas naturais" para desempenhar. É evidente que a estrutura social posta aniquila a discussão efetiva de um equacionamento dessa iniquidade que impõe às mulheres, quase que com exclusividade, o exercício das atividades relacionadas ao cuidado. Ou, como bem traduz Silvia Federici, "o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago"1. Nos termos indicado no final da primeira parte dessa coluna a condição vivenciada ordinariamente pelas mulheres nesse contexto revela-se como uma usurpação que haveria de ser afastada, não podendo seguir prosperando essa situação de enriquecimento indevido de quem se beneficia dessa atividade. Se é evidente que há essa maior oneração das mães em relação aos pais é de se questionar por qual motivo não temos uma mudança dessa situação. Nesse diapasão começam a surgir decisões reconhecendo o dever de ressarcir essa mulher por todo esse trabalho realizado, sendo de se mencionar julgamentos recentes ocorridos na Espanha em que se fixou indenizações em tais casos na monta de 80 mil Euros2 e 200 mil Euros3, bem como decisões aqui no Brasil em que se determinou que esse trabalho invisível exercido pela mulher há de ser considerado quando do arbitramento da pensão alimentícia para os filhos4. Já mencionei anteriormente a imperiosa necessidade de se discutir de forma séria em território nacional a devida compensação dos serviços de cuidado prestados pela mulher quando das ponderações tecidas sobre o uso exclusivo do bem comum do casal após a dissolução de fato do casamento ou da união estável5. Essa visão defasada de que a mulher é a "cuidadora" e o homem o "provedor" dos filhos continua muito presente em nossa sociedade e segue causando graves danos, com reflexos manifestos na atividade legislativa e judicial. No âmbito legislativo a massiva superioridade masculina nas casas legislativas, onde a presença feminina extremamente baixa6 tem evidentes reflexos nos direitos que são franqueados a elas, bem como naqueles que lhes são negados, é fator preponderante. A baixa representatividade é uma mácula indelével de nossa legislação e pode ser facilmente constatada em momentos em que se cria uma igualdade que não se efetiva ou em uma discriminação que a segrega ou fomenta ainda mais sua posição de inferioridade. Em uma legislação que é feita majoritariamente por homens as dores, anseios e expectativas femininas ou são ignoradas ou são imaginadas segundo a perspectiva masculina, gerando um enorme distanciamento entre o que é realmente necessário e o que se garante. Apenas à guisa de argumentação provoco quem acompanha esse texto a ponderar: se estivéssemos diante de um Poder Legislativo composto por uma maioria feminina teríamos tanta dificuldade para aprovar leis que atendem a necessidades eminentemente femininas, como as decorrentes da pobreza menstrual? Como estaria a discussão sobre a possibilidade de aborto, se fossem os homens que engravidassem? Salutar se consignar manifestação do Ministro Luís Roberto Barroso: "Porque se só a mulher engravida, para ela ser verdadeiramente igual ao homem, ela tem que ter o direito de querer ou não querer engravidar. E, se homens engravidassem, esse problema já estaria resolvido há muito tempo"7. Existem outras situações nas quais aparentemente há uma proteção à mulher ou mesmo um respeito às diferenças, mas que acabam por aprofundar ainda mais a crença de que determinadas atividades são "naturais" das mulheres, afastando a responsabilidade dos homens com relação a elas. Nesse aspecto um dos elementos que mais chamam a atenção e que vem sendo objeto de profundas alterações legislativas em alguns países é a figura da licença maternidade. Nos moldes atualmente regulamentados no Brasil esse benefício se revela como um reforço do estereótipo de que apenas a mulher tem obrigações de cuidado com relação aos filhos. Premente que se assevere que a possibilidade de afastamento dos pais do exercício de suas atividades laborais prevista na lei em decorrência do nascimento de filho não se destina apenas à atividade de amamentação, mas especialmente a viabilizar os primeiros cuidados com aquele que acaba de nascer e que, conforme já afirmado nos termos do que determina o Código Civil ao tratar do poder familiar (art. 1.634), é responsabilidade de ambos os pais. Ao se conferir ao homem apenas 3 (três) dias de afastamento do trabalho e à mulher 4 (quatro) meses após o parto passa-se o sinal de que o pai tem alguns dias para celebrar o nascimento e a mãe alguns meses para cuidar, sem que isso seja também uma responsabilidade para ele. A licença em decorrência do nascimento de prole não pode tratar dessa forma distintiva o pai e a mãe, não por ser desejado que o homem tenha dias de descanso pelo nascimento mas sim para que também tenha, como se impõe à mulher, a consciência de que a ele também incumbe cuidar dos filhos. Impor ao homem esse dever de cuidado quando do nascimento do seu filho ante a concessão de um prazo de licença compartilhado ou equivalente com o destinado à mulher além de um enorme caráter pedagógico atenderia aos preceitos insculpidos no Código Civil quando trata dos deveres dos pais como também iria ao encontro do cumprimento da diretriz de se garantir a especial e absoluta proteção à criança e ao adolescente, nos termos trazidos pelo art. 227 da Constituição Federal. Essa desigualdade que parece ser, de início, uma proteção especial à mulher ou mesmo a garantia da igualdade por tratá-la de forma a reconhecer sua diferença natural de ter dado à luz à criança além das raízes machistas de que cabe à mulher cuidar do filho ainda tem efeitos que se protraem no tempo, impactando na manutenção, em toda a sociedade, da ultrapassada visão de que não há qualquer responsabilidade do homem quanto aos cuidados. A ampliação da licença para o homem por si só não resolve. Ele precisa efetivamente cuidar. O problema é que há um lado cultural que precisa ser superado e que a masculinidade frágil não mais lance seus tentáculos fazendo com que se acredite que aquele que exerce atividades "maternas" é menos homem. Isso acaba impondo à mulher que fique em casa e que o homem trabalhe, cerceando sua liberdade e acesso ao trabalho, relegando-a a uma situação extremamente delicada nas hipóteses nada excepcionais em que vem a ser abandonada posteriormente com o filho, sem a real possibilidade de uma inserção no mercado de trabalho nos mesmos moldes que o homem tem. Nem mesmo se pode falar que a legislação garante uma verdadeira proteção a ela nesse caso pois nas situações extraordinárias em que é conferido a ela o direito a alimentos após o casamento esse tem sido deferido de forma que nem sempre se consideram as idiossincrasias do caso concreto, havendo a fixação de um critério temporal para o recebimento do benefício8. Essa estruturação legislativa faz com que empresas prefiram contratar homens a mulheres, já que eles não deixarão o trabalho para cuidar de filhos doentes ou levá-los ao médico, considerando o entendimento geral de que tais deveres competem à mãe. Constata-se um efeito dominó. Infelizmente mesmo com toda a evolução social e o letramento de gênero que se impõe nos dias atuais ainda vivemos na prática em uma sociedade extremamente machista, com toda sua estrutura segregadora, que continua, apesar da igualdade formal e de todas as lutas já travadas, relegando as pessoas do gênero feminino a uma condição de inferioridade, com os mesmos contornos do racismo social que fundamentou a decisão da ADO26 que reconheceu a homotransfobia como conduta inserida no crime de racismo. E por isso provoco: a mulher, independentemente da cor de sua pela, não seria vítima de racismo nos termos fixados pelo STF? Esse é tema que será aprofundado em uma próxima coluna Por fim espero que essa coluna chegue especialmente aos homens, já que são eles que, em sua larga maioria, precisam se libertar de todo o machismo que continuam professando. Mulheres, obviamente, são bem-vindas para a leitura desse texto, mas sinto que para elas boa parte do que aqui foi escrito não passa de uma série de obviedades que elas vivenciam e constatam em seu cotidiano. Pregar para convertidos, como se costuma dizer, não tem o poder de mudar essa realidade. O imprescindível é se atingir aqueles que confortavelmente estão repousando em seu machismo e privilégios para que entendam que a busca da igualdade é uma luta séria e não um "mimimi". Que todos os privilégios que me acompanham permitam que esse texto seja lido por outros privilegiados que compartilhem ao menos um dos marcadores que me torna privilegiado (homem, branco, cisgênero, heterossexual, funcionário público federal, com educação institucional, doutor, professor titular de uma das mais antigas e conceituadas faculdade de direito do Brasil, etc.) e que passem a entender sua condição extremamente favorecida pelo simples fato de não externarem socialmente elementos vinculados ao feminino. Por mais patente que seja, o óbvio deve ser dito: os homens precisam reconhecer sua condição de privilégio, sem que isso seja internalizado como uma ofensa. É um fato e precisamos laborar em busca de uma real igualdade de gênero. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui.  3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui.  5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui.  7 Disponível aqui.  8 Disponível aqui. 
Quem somos é, em larga medida, reflexo do mundo em que vivemos. Nossa sociedade atual é resultado de uma construção baseada em múltiplos elementos que, conjugados, nos trouxeram ao que experienciamos hoje. Contudo isso não pode jamais ser associado a uma visão conservadora ou uma ideia de que devemos nos prender ao que se teve pelos tempos como a expressão do correto ou socialmente adequado. Nossa evolução como sociedade com a efetiva implementação dos preceitos nucleares de um Estado Democrático de Direito passa, necessariamente, pela ruptura com conceitos e certezas até então postas, haja vista que muitas delas mostram-se arraigadas em um terreno repleto de preconceitos, discriminações e segregações que têm impactos indesejados em um Estado com bases humanísticas. A compressão da estruturação da nossa sociedade atual perpassa necessariamente pelo entendimento de que ela foi construída, inquestionavelmente, segundo preceitos e bases oriundos, eminentemente, de homens, brancos, heterossexuais e cisgêneros, o que se reflete claramente nas premissas que constituem os parâmetros de adequação, normalidade e na noção de certo e errado. Com isso é evidente também que certos marcadores sociais e concepções desse grupo majoritário estão presentes e norteiam o nosso ordenamento jurídico, o que se reflete em uma série de normas que reforçam estereótipos e visões construídas por aqueles que foram alçados ao status de dominantes. Contudo não se pode olvidar, como já tenho explicitado em diversas colunas aqui publicadas, bem como em outros escritos, que é imperioso que se tenha um entendimento minimamente adequado do que é uma democracia pois, diversamente do que muitos asseveram, não se trata de um regime em que apenas há a prevalência da vontade da maioria. Uma das características mais marcantes da democracia é exatamente o estabelecimento de um amplo sistema de proteção com a finalidade de proteger a integridade e a existência das minorias e dos vencidos. Democracia jamais pode preconizar ou buscar a aniquilação das minorias, havendo, ainda, nos exatos termos consignados no corpo de nossa Constituição Federal, que se estabelecer toda uma rede de proteção para aqueles que se encontram em uma situação de inferioridade ou vulnerabilidade, a fim de efetivar preceitos como igualdade, equidade e dignidade da pessoa humana. Basta lembrar que entre os objetivos fundamentais da República Democrática do Brasil está a busca de se eliminar toda sorte de desigualdades (art. 3º, III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais;) Um dos grupos que podemos afirmar ser vulnerabilizado é o composto por pessoas que expressam socialmente o feminino. Ou, de forma mais ampla e generalizada, as mulheres. É sabido que atualmente mulheres têm uma baixa presença em cargos de comando no mercado de trabalho em que pese apresentar, em média, uma maior escolaridade que os homens. Nesse mesmo universo, há ainda que se acrescentar o fato de recebem um salário menor que o dos homens exercendo a mesma função e com a mesma qualificação1, além de conviver com toda sorte de assédio e violência no ambiente laboral. Dados revelam ainda que mulheres exercem uma dupla ou tripla jornada, competindo a elas os deveres de cuidados não remunerados que socialmente a si são atribuídos, a ponto de destinarem semanalmente, segundo dados de 2022, 9,6 horas a mais que os homens a tais atividades2. No bojo desse espectro podemos inserir toda a atividade ordinariamente imposta que seja exercida pela mulher em decorrência da maternidade. Mesmo com a legislação civil ponderando que cabe aos pais, em conjunto, o exercício do poder familiar em relação aos filhos, o que, hipoteticamente, poderia sugerir que haveria um compartilhamento do exercício dos deveres inerentes a tal incumbência é fato que em um número extremamente reduzido de situações se encontra uma divisão de tarefas que não se mostre extremamente mais onerosa às mães (mulheres) do que aos pais (homens). A isso pode-se também acrescentar o grande número de mulheres que são obrigadas a desempenhar a plenitude das responsabilidades parentais por encontrarem-se na condição, não querida, de "mães solo", por não contarem com a presença do pai de seus filhos que, de maneira absolutamente irresponsável, abandonou sua prole, por vezes sem nem ao menos ter reconhecido a paternidade e registrado o filho. Na prática é concedido ao homem a escolha se vai ou não ser pai, ao menos em um primeiro momento, pois ele decide se reconhecerá ou não o filho nascido. Essa não é uma prerrogativa que se confere às mulheres, o que traz consigo um enorme ônus. Essa previsão de igualdade que só existe formalmente tem contornos mais deletérios do que a sua não positivação, vez que gera a falsa impressão de que não existe o problema, de que a lei já regulamenta a questão e que, portanto, nada há a ser feito, criando uma falsa aura de que existe proteção legislativa. Como afirmo de forma reiterada o simples fato de haver uma lei, por si só, não basta para que a realidade seja alterada. Não se olvida que grande parte do que as mulheres vivenciam é decorrente de uma sociedade totalmente baseada na prevalência da figura masculina como dominante e que, tradicionalmente sempre relegou as mulheres a uma condição de inferioridade, em um machismo que estrutura toda a nossa sociedade. Esse machismo está tão arraigado que acaba sendo replicado, de forma inconsciente, por muitas mulheres, a ponto de ele ainda se mostrar sólido e reinante em uma sociedade em que a grande maioria dos homens foi criado exatamente por essas mulheres. Vivemos tempos em que um pai que cumpre minimamente com os seus deveres é visto como alguém especial e merecedor de loas. Aquele que realmente desempenha os deveres legalmente determinados e que, portanto, não faz mais do que sua obrigação, é uma exceção tão grande que é notável. Um ser humano minimamente funcional é capaz de, por exemplo, trocar a fralda de uma criança, ainda mais com todas as facilidades da atualidade em que basta limpar o bebê com lenços umedecidos, passar uma pomada para proteger e curar de assaduras e colocar outra fralda, que, em alguns casos, é simplesmente vestida como uma bermuda. Contudo se quem fizer isso for um homem parece que estamos diante de uma enorme façanha. Convido a quem lê essa coluna a fazer um exercício simples: pense em quantas vezes você estava em um lugar onde uma criança precisou ter sua fralda trocada e foi um homem quem assumiu essa tarefa. E em quantas vezes essa troca foi feita por uma mulher? No mesmo exemplo, das vezes em que foi um homem a trocar essa fralda, em quantas delas ele não era o pai da criança? Posso asseverar que o percentual afirmativo dessa resposta é tão baixo que quem se lembrou de uma situação dessa certamente o fez por ter sido algo tão marcante que ficou gravado na memória. Considere a mesma perspectiva e pense quem limpa essa criança após ela ir ao banheiro, quem dá banho nela, quem faz sua comida, quem a alimenta, quem organiza todas as atividades relacionadas a ela. A reposta da grande maioria será a mesma: uma mulher. Longe de querer romantizar a maternidade é premente que se tenha em mente que todas as atividades de cuidado com relação aos filhos são impostas à mulher, não sendo "naturais". Não se nega o prazer e a alegria que envolve o cuidado e a convivência com um filho, contudo não se pode ignorar o tamanho desse encargo, que vai muito além das despesas de caráter econômico saldadas com o adimplemento da prestação alimentícia. Ainda que exista a previsão legal de que, em caso de necessidade de fixação de guarda, a regra seja a de seu estabelecimento na modalidade compartilhada o que é mais comum é que, ainda que definida de tal maneira, na prática o que ocorrerá é o exercício de guarda unilateral pelo genitor do gênero feminino. A discrepância entre a teoria e a prática é abissal e pode ser facilmente constatada com o enorme contingente de mães solo involuntárias ou, em palavras menos douradas, de mulheres que têm que exercer a integralidade ou grande parte do poder familiar sozinhas porque o irresponsável do pai de seu(s) filho(s) não cumpre os deveres legalmente fixados em razão da prole existente. E nesse universo é de se notar que existe um grande contingente que se considera um super pai ou que encontra-se quite com seus deveres pelo simples fato de pagar a pensão alimentícia. Mas olvida que o determinado pela lei vai além de elementos de cunho econômico, como se pode constatar da simples leitura do texto do art. 1.634 do Código Civil que impõe o dever de cuidar e educar. Ao fim e ao cabo, regra geral, o cumprimento de tais deveres são satisfeitos apenas pela mulher. A preocupação imediata de conseguir os meios que permitirão a mantença dos filhos faz com que seja dada uma enorme atenção à fixação das verbas alimentares a serem pagas (normalmente pelo pai), sem que se tenha o mesmo esmero quando da determinação da guarda e regime de convivência com os filhos. Basta se analisar toda a judicialização que acompanha o inadimplemento das verbas alimentares e comparar com a quantidade de vezes que o Poder Judiciário é instado a manifestar-se face ao não cumprimento do regime de convivência, o que antigamente chamávamos de direito de visitas, quando o genitor não comparece para compartilhar seu tempo com sua prole. O fato inescapável é que todo esse trabalho de cuidado exercido pelas mulheres resta não remunerado, em uma manifesta usurpação que gera, se não uma responsabilidade civil, ao menos um enriquecimento sem causa daquele que se beneficia dessa atividade, a qual há de ser, inquestionavelmente, ressarcida. Essas palavras iniciais encerram a primeira parte desse texto que continua na próxima coluna, em que tecerei maiores considerações sobre as razões dessa realidade e possíveis soluções a serem ponderadas. Contudo uma coisa há de ficar registrada: essa é uma das maiores máculas impostas pela histórica segregação da mulher a uma condição de "cuidadora por natureza". É urgente que se discuta tais questões e se encontre soluções. __________ 1 Disponível aqui. 2 Diponível aqui.
Como tem sido recorrente nos tempos atuais em que a sociedade da informação faz com que as pessoas acreditem que sejam obrigadas a ter opinião sobre tudo, vimos pulular nas redes sociais um tsunami de novos especialistas em Direito de Família, plenos de uma falsa erudição1, comentando a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que tratou da imposição do regime da Separação Obrigatória de Bens quando um dos nubentes têm mais de 70 anos. Questão de complexidade imensa acabou sendo tratada por muitos com base em achismos e com carência de profundidade técnica. De outra sorte, também fomos brindados com análises sólidas e consubstanciadas de juristas de escol, engrandecendo a discussão sobre a questão. Contudo das manifestações às quais tive acesso não encontrei a apreciação do tema sob um olhar de gênero, o que impõe que eu traga a minha contribuição. A base em que se alicerça a presente celeuma está no disposto no art. 1.641 do Código Civil, o qual preconiza a imposição do regime de separação de bens em dadas situações, visando a proteção daquele nubente que o texto legal considera como vulnerável. Assim, determina-se o regime da Separação Obrigatória de Bens quando o casamento for contraído com inobservância das causas suspensivas (i); por pessoa maior de 70 (setenta) anos (ii); e por quem depender de suprimento judicial para casar (iii). A restrição da liberdade de escolha do regime de bens para o casamento em razão de um elemento etário, objeto do presente texto, é motivo de discussão já de longa data, tendo mesmo o art. 1.641 do Código Civil sofrido alteração em 2010, pela Lei 12.344, que majorou de 60 (sessenta) para os atuais 70 (setenta) anos. O tema encontrou sua decisão mais recente com a tese fixada para Tema 1.236 da repercussão geral, no julgamento do ARE 1.309.642 que estabelece que "Nos casamentos e uniões estáveis envolvendo pessoa maior de 70 anos, o regime de separação de bens previsto no artigo 1.641, II, do Código Civil, pode ser afastado por expressa manifestação de vontade das partes mediante escritura pública". Em linhas panorâmicas o que se tem é que a imposição do regime da Separação Obrigatória de Bens aos maiores de 70 (setenta) anos foi tida como constitucional, contudo ante a uma intepretação conforme à Constituição Federal, sem redução do texto, garante-se a possibilidade de escolha de outro regime de bens pelas partes. Ou seja, transformou o regime para os maiores de 70 (setenta) anos em "não tão" obrigatório, já que faculta aos nubentes a possibilidade de seu afastamento, ante ao exercício de sua autonomia. Assim, no silêncio das partes, segue prevalecendo o regime da Separação Obrigatória de Bens para pessoas com mais de 70 (setenta) anos, seja no casamento ou na união estável, garantindo-se, porém, a escolha de outro regime de bens ante a elaboração de pacto antenupcial ou contrato de convivência. Essa não foi a primeira vez que o regime da Separação Obrigatória de Bens foi relativizado, como bem se extrai do conteúdo da Súmula 377 do Supremo Tribunal Federal (STF), que inseriu um viés de comunicabilidade patrimonial nessa modalidade de separação de bens. O fato é que com o posicionamento adotado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) tem-se, agora, dois regimes supletivos distintos: um para aqueles que ainda não atingiram os 70 (setenta) anos e outro para aqueles que já superaram essa faixa etária. A regra geral segue sendo o regime da Comunhão Parcial de Bens para quem não tem 70 (setenta) anos, conforme previsto no art. 1.640 do Código Civil, contudo para os septuagenários prevalecerá o regime da Separação Obrigatória de Bens, o qual não mais se faz cogente, podendo ser afastado pela manifestação de vontade dos nubentes. A decisão claramente traz um avanço ao que se tinha até então, contudo ainda está bastante distante dos parâmetros que entendo serem os mais tecnicamente adequados. De início é premente que se tenha bastante patente que o cerne de toda a discussão reside em uma figura de cunho eminentemente econômico, qual seja, o medo de que o maior de 70 (setenta) anos venha a ser ludibriado e envolva-se em um relacionamento em que a outra parte apenas se interessa pelo seu patrimônio, em expressão clara do patrimonialismo e do paternalismo estatal. Importante se consignar de plano que tal sorte de previsão de "proteção" do patrimônio apenas de maiores de 70 (setenta) anos revela um desvio manifesto, pois impõe a todas as pessoas com tal idade um regramento diferenciado, independentemente de ela possuir ou não um patrimônio considerável. À guisa de resguardar o patrimônio de quem a lei supõe, sem qualquer parâmetro, ser mais suscetível de ser enganado, cria uma regra especial a todos. Parte-se de um pressuposto lógico manifestamente equivocado de que nessa idade a pessoa estaria mais propensa a ser ludibriada por alguém que lhe declare amor. Ledo engano. A experiência, sempre exaltada das pessoas mais idosas, faz com que ela esteja mais capacitada para perceber os sinais de que possa estar sendo enganada. Essa pessoa pode ser Presidente da República com mais de 70 anos, regendo a vida de toda a nação, mas não poderia decidir o regime de bens do seu casamento? Não teria discernimento para se precaver em caso de estar sendo vítima de um engodo amoroso? Sustento que um jovem corre mais risco de ser vitimado pelo temido "golpe do baú", por ser mais crível a ele que outra pessoa esteja interessada em quem ele é e não no seu patrimônio. E mais, caso esse idoso queira efetivamente que as pessoas se atraiam por ele em razão de seu patrimônio isso seria de interesse do Estado? Tal previsão de imposição de um regime com menor comunicabilidade patrimonial fere o preceito da mínima intervenção do Estado no Direito de Família. Ao entender pela constitucionalidade do art. 1.641, II do Código Civil a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) no ARE 1.309.642 mantém e reforça a perspectiva de que o amor estaria vinculado a uma equivalência de aparência física que se faria perdida para os mais idosos, por quem uma pessoa jovem jamais poderia se interessar. De se notar que o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF) apenas mitiga levemente a incidência do regime da Separação Obrigatória de Bens já que em sua ampla maioria as pessoas não elaboram pactos antenupciais ou contratos de convivência alterando a regra geral prevista de forma supletiva, de maneira que a tendência é que o paternalismo continue a incidir em larga escala nos casamentos e uniões estáveis de pessoas com mais de 70 (setenta) anos. Contudo existe uma questão de fundo que precisa ser trazida à luz e discutida de forma real e sem hipocrisias: A quem interessa, efetivamente, a proteção do patrimônio do nubente? A comunicabilidade patrimonial apenas é sentida, na prática, quando do término do casamento ou da união estável, não trazendo o regime da Comunhão Parcial de Bens grandes variáveis na constância do relacionamento. A grande preocupação recai sobre o destino que o patrimônio tomará quando findar o casamento ou a união estável, especialmente se esse termo decorrer da morte do septuagenário. Uma das verdades ocultas sobre toda a discussão entabulada é que a preocupação não é a "proteção" da pessoa idosa com mais de 70 (setenta anos), mas sim os interesses sucessórios de seus herdeiros. O cônjuge septuagenário, caso não existisse a regra especial, manteria consigo, ordinariamente, todo o patrimônio que já possuía antes de se casar, pois a comunicabilidade recairia apenas sobre o que viesse a ser auferido na constância do casamento ou união estável. Sob a perspectiva da proteção do septuagenário a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) dá azo à possibilidade de que venha a escolher o regime de Comunhão Universal de Bens, o qual poderia colocar em risco maior seu patrimônio. Se o intuito fosse mesmo a proteção do septuagenário o pensamento enviesado adotado iria preconizar a imposição da vedação da escolha do regime da Comunhão Universal de Bens. E não foi isso que fez o Supremo Tribunal Federal (STF), tão questionado por muitos em razão de decisões que não se atém exatamente aos limites dos pleitos formulados. De se ponderar, ainda, que se o próprio detentor do patrimônio "em risco", que é uma pessoa capaz, não está preocupado com tal questão, qual a necessidade do Estado intervir? Qual o interesse em imiscuir-se? A mim é muito evidente que estamos diante de uma forma velada de se tratar de herança de quem ainda não morreu. Uma ingerência de terceiros sobre a vida patrimonial do nubente. Reitero que caso viesse a casar-se segundo a regra geral a maior "perda patrimonial" que sofreria em decorrência do fim desse casamento seria de metade do que foi adquirido na constância do casamento ou união estável. Que é menos do que o sujeito pode alienar a título de doação a quem ele bem entender. E isso não é objeto de um levante. Se efetivamente houver o interesse de valer-se de sua condição econômica para "atrair" a atenção de uma pessoa mais jovem o risco de dilapidação do patrimônio é muito maior do que o decorrente do casamento com a incidência do regime de bens. Quem haverá de impedir que o septuagenário venha a fazer vultosas doações em favor de sua jovem namorada? O chamado "golpe do baú" sempre é o elemento aduzido quando se trata da previsão do regime da Separação Obrigatória de Bens para o casamento de pessoas maiores de 70 (setenta) anos, que seria previsto como fulcro de "afastar o incentivo patrimonial do casamento de uma pessoa jovem que se consorcia com alguém mais idoso"2. Tal pensar vem sendo combatido pela doutrina, que pontuava pela inconstitucionalidade da previsão por trazer uma "velada forma de interdição parcial do idoso"3, com uma presunção de vulnerabilidade ou incapacidade mental. Tal premissa é inquestionavelmente atentatória à liberdade individual das pessoas, com o Estado impondo ao nubente praticamente uma capitis diminutio4 que lhe privava da liberdade de escolher o regime de bens de seu casamento. E agora com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) a situação encontra-se pacificada e resolvida... Contudo não é assim que vejo. Há aqui um elemento de preconceito embutido, que vai além do etarismo, que precisa ser desvelado. Ao lado da discriminação silenciosa contra as pessoas maiores de 70 (setenta) anos, que persiste mesmo com os avanços civilizatórios e o movimento contramajoritário do Poder Judiciário5, há também uma perspectiva de gênero que não pode ser ignorada. Faço um convite sincero a quem me lê: tal regra de restrição da comunicabilidade patrimonial busca "resguardar" efetivamente os interesses de homens ou de mulheres? Durante sua leitura até o presente ponto quem era a pessoa que figurava em sua cabeça como sendo esse sujeito de 70 (setenta) anos? Era um homem ou uma mulher? Aqui está o preconceito oculto que aduzi anteriormente. É o estigma da mulher jovem aproveitadora. Mesmo que tenha que encarar manifestações no sentido de que a previsão legal não faz distinção de sexo ou gênero, não posso me furtar a asseverar que há sim elementos históricos respaldando essa regra que têm lastros sexistas. Crendo-se que o objetivo da lei é proteger o patrimônio é evidente que o destinatário de tal previsão legal é o homem. Reitero, como usualmente tenho feito, que essa falsa isonomia oriunda de uma igualdade meramente formal é mais nefasta que a desigualdade expressa, já que emula uma ausência de preconceito que não se efetiva na prática6. Uma busca simples sobre as pessoas mais ricas do mundo ou mesmo do Brasil revelam uma imensa maioria de homens em seu topo. Da lista da Revista Forbes dos bilionários do mundo, de um total de 2640 apenas 320 são mulheres7. Ainda que não estejamos aqui falando efetivamente de pessoas tão abastadas como as indicadas pela revista, é fato que a estrutura social segue concentrando patrimônio e renda nas mãos dos homens, que possuem um rendimento médio cerca de 30% superior ao das mulheres8, e detêm 64% do patrimônio declarado à Receita Federal9, ao que pode-se acrescer o fato de que mulheres ordinariamente são as vítimas de violência patrimonial. Uma visão mais acurada nos conduz a afirmar que a regra prevista no art. 1.641, II do Código Civil destina-se, eminentemente, ao homem septuagenário. O preconceito social é tido em tom de pilheria em muitos casos quando a pessoa mais velha no relacionamento é o homem, contudo reveste-se de contornos muito mais ofensivos quando essa pessoa é uma mulher, fazendo com que a pressão social seja tamanha que, no mais das vezes, essas mulheres não consigam fazer com que o relacionamento se consolide em um matrimônio ou união estável. Faz-se importante também ponderar quem seriam, nos dias atuais, as mulheres septuagenárias que "poderiam" se casar. Normalmente são pessoas que já estiveram envolvidas em um matrimônio ou união estável anterior, viúvas ou que passaram por um divórcio tardio (ou grey divorce), que vivem com uma imensa dificuldade de manter-se economicamente, enfrentando uma redução drástica em sua renda, como descrito em coluna anterior10. Não parece ser ela a destinatária da preocupação do legislador. Não se pode olvidar que a criação de tal norma, existente no sistema codificado pátrio desde o Código Civil de 1916, era inegavelmente um preceito protetivo para o homem em sua origem, pois aquela época era raro a mulher que tivesse qualquer patrimônio próprio. O sistema protetivo possuía viés de gênero em sua criação e continua tendo. O fato prático e que passou ao largo das discussões do nosso Supremo Tribunal Federal (STF), composto quase que em sua totalidade por homens, é que tal aspecto protetivo que foi reconhecido como constitucional fomenta um preconceito manifesto contra as mulheres. Pressupõe que as mulheres que se interessam por alguém que tenha mais de 70 (setenta) anos não nutre um sentimento sincero por seu nubente. De forma bastante pragmática há de se consignar que, em que pese a romantização do instituto do casamento, não há na legislação qualquer previsão de que amor ou afeto sejam requisitos para a realização do casamento ou união estável. Contudo quando se trata de uma pessoa com mais de 70 (setenta) anos o tão aclamado princípio da afetividade, ou o reconhecimento do afeto como um valor jurídico relevante é esquecido, relegado e subjugado por uma visão da mulher aproveitadora, que quer se beneficiar do patrimônio do nubente e que este seria incapaz de notar isso. Mas o mais cruel de tudo o que se traz aqui é o estabelecimento de uma presunção de má-fé da mulher que se casa ou estabelece união estável com alguém que tenha mais de 70 (setenta) anos, refutando toda a principiologia legal vigente. O que se tem, ao final, é uma regra que segue referendando um entendimento pretérito e fundado em manifesto preconceito de que os homens com "posses" precisam ser protegidos das "mulheres interesseiras". O Estado segue institucionalizando a presunção de que homens com mais de 70 (setenta) anos não são merecedores de amor genuíno e que mulheres que por eles se interessam em verdade apenas nutrem afeição por seu patrimônio. Mesmo que ele não o tenha. A boa-fé presumida e a inocência caem por terra. O amor, carinho e afeto não podem ser direcionados a tais pessoas. Ter mais de 70 anos torna a pessoa em um ser abjeto a quem apenas por dinheiro se destina alguma atenção. E como a regra é que o patrimônio esteja circunscrito em sua maioria aos homens, as mulheres que se atraem por eles apenas o poderiam fazer em razão da busca de riqueza. O casamento ou união estável de alguém com mais de 70 (setenta) anos seria, assim, composto por um homem passível de interesse apenas em razão de seu patrimônio e uma mulher interesseira. Me nego a acreditar que é isso, apesar do que dispõe a lei e do que decidiu o Supremo Tribunal Federal (STF). __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Informações jurídicas imprecisas na mídia e redes sociais. o risco de danos para a sociedade. Revista Conversas Civilísticas, Salvador, v. 3, n. 1, jan./jun. 2023, p. IV. 2 VENOSA, Silvio de Salvo. Direito Civil: Direito de Família. Vol. VI, 14 ed.. São Paulo: Atlas, 2014, p. 349. 3 GAGLIANO, Pablo Stolze; PAMPLONA FILHO, Rodolfo. Novo Curso de Direito Civil: Direito de Família. v. 6. 11. ed. São Paulo: Saraiva, 2023, p. 317. 4 DINIZ, Maria Helena. Curso de Direito Civil Brasileiro. Direito de Família. Vol. 5. 26 ed. São Pulo: Saraiva, 2011, p. 208. 5 NOVAIS CALMON, Patrícia; ALMEIDA, Vitor. Regime de bens e etarismo presumido velado: breve análise da decisão do Supremo Tribunal Federal no ARE 1.309.642. Disponível aqui. Acesso em 20 fev.2024. 6 Leandro Reinaldo da Cunha. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 83. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui.
O preconceito contra as minorias sexuais segue sendo um traço marcante da sociedade brasileira que imprime seu viés discriminatório em uma enorme gama de situações, ainda que os termos que sustentam o Estado Democrático de Direito constitucionalmente estabelecido preconizem aspectos basilares como a dignidade da pessoa humana, a igualdade e a promoção do bem de todos, sem preconceitos e discriminações. É evidente a discrepância entre as garantias constitucionais e o real estágio civilizatório que experienciamos enquanto sociedade, pois a distância entre a igualdade formal e a material segue presente e gerando suas nefastas consequências, impondo a premência constante de que se tenha que afirmar que os direitos fundamentais resguardados a todos também se destinam às minorias sexuais, exigindo a reiterada lembrança de que não se deixa de ser pessoa por não estar inserido nos marcadores que caracterizam a maioria1. Faz-se mister que se afirme de maneira ostensiva que a condição de minoria não afasta ninguém do direito de ver respeitados os direitos humanos e garantias fundamentais conferidos a todo ser humano. O panorama é tão assustador que impõem que o óbvio seja sempre refirmado: as características individuais e marcadores sociais não podem ser usados como parâmetros com a finalidade de privar essas pessoas dos direitos essenciais. Como tenho repetido em inúmeros escritos e falas nosso Estado Esquizofrênico2 cria uma estrutura legislativa que prima pela proteção dos grupos vulnerabilizados contudo não a implementa em favor das minorias sexuais, permitindo a consolidação de uma realidade em que o reconhecimento da vulnerabilidade não se converte em proteção especial, já que a constatação da condição de grupo minoritário acaba servindo não para estabelecer guarida mas apenas para segregar mais3. Esse preconceito é tamanho e tão arraigado que se manifesta até mesmo em atos institucionais praticados no bojo de processos judiciais, revelando um dos meios mais sorrateiros da discriminação. A garantia de igualdade na lei que não se concretiza na prática, tendo vida apenas no papel em que está impressa4, reveste-se de um grau de periculosidade ainda mais elevado, pois dá a sensação à maioria de que nada mais precisa ser feito já que o direito encontra-se previsto na legislação. Estar positivado, no entanto, não significa que goza de efetividade. Essa equivocada compreensão tem ainda o delicado efeito de fazer com que as maiorias se oponham às conquistas das minorais sexuais que, em verdade, não lhes confere nenhum direito novo mas apenas determina o implemento daqueles que já se encontram consolidados em favor de todas as pessoas.5 Tal sorte situação é o que impõe a necessidade de que se pleiteie, de forma contínua, o estabelecimento de ações afirmativas que, basicamente, têm por fim exigir que "dados direitos gerais que não são conferidos a determinadas minorias"6 sejam efetivados. Exatamente esse cenário repleto de preconceito e discriminação conduziu o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) à necessidade de publicar, em 16 de novembro de 2023, a Resolução 532, que tem por fim, basicamente, impor a magistrados(as) e tribunais que respeitem e apliquem os preceitos contidos no art. 5º da Constituição Federal, afastando toda sorte de discriminação contra homossexuais e transgêneros que buscam a paternidade por meio de processo de adoção. A adoção, que é uma modalidade de fixação de parentesco decorrente de decisão judicial, cria uma filiação entre duas pessoas independentemente da existência de laços consanguíneos, mediante a manifestação de vontade expressa do adotante,7 e é instituto histórico do Direito de Família, com raízes remontando ao Direito Romano. Trata-se de uma medida excepcional e irrevogável, cercada de uma ampla gama de mecanismos visando a proteção daquele que será adotado, especialmente quando se tratar de uma criança ou adolescente, em razão de todas as consequências jurídicas decorrentes de se retirar uma pessoa de sua família natural e inseri-la em uma família substituta. Ainda que o inconsciente popular apenas associe a adoção a adotados que ainda não atingiram a maioridade civil, há a possibilidade de que esse seja alguém com mais de 18 (dezoito) anos, hipótese em que, conforme estabelecido após a lei 12.010/09, se aplica, no que couber, o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em situação inusitada de sua aplicação a assuntos que não envolvem crianças e adolescentes.8 De qualquer sorte é evidente que o elemento motivador da resolução 532/23 é a adoção de crianças e adolescentes às quais se impõe alguns requisitos, como que o adotante tenha mais de 18 anos, diferença mínima de 16 anos entre adotante e adotado (art. 42), estágio de convivência, laudo psicossocial favorável à adoção, estabilidade familiar e decisão judicial. De se notar que em nenhum momento o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) traz qualquer menção acerca da sexualidade dos adotantes como sendo um critério a ser aferido a fim de se apreciar a viabilidade da adoção, todavia a resolução 532/23 mostra que o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) considerou necessário trazer ponderações sobre o tema. Se o fez foi, obviamente, porque na prática tal elemento vinha (e vem) tendo relevância para o deferimento dos pedidos de adoção. E revela isso ao pontuar que, nos temos do que se pode constatar do Fórum da Infância e da Juventude do Conselho Nacional de Justiça (Foninj), há a "necessidade de que sejam realizados ajustes nos procedimentos de habilitação e nos processos de adoção de crianças e adolescentes pelos tribunais e pelos(as) magistrados(as)". Evidencia-se que a concepção de que a inserção de uma criança ou adolescente "no seio de uma família formada por pessoas do mesmo sexo, ou que não se adaptam ao conceito heteronormativo de família concebido"9 ainda gera discussões entre os mais conservadores e aqueles que não buscam informações científicas acerca do tema, lastreando-se apenas em seus achismos. Mesmo sendo bastante sólido o entendimento de que a colocação em uma família substituta de um casal de pessoas do mesmo gênero ou que o adotante seja homossexual ou transgênero não encerra qualquer prejuízo para quem está a ser adotado10 (havendo mesmo estudos que demonstram a perfeita adequação de tal prática, como os constatados pelo Estudo Nacional Longitudinal de Famílias Lésbicas dos EUA - NLLFS)11, a realidade expõe que a sexualidade dos adotantes segue gerando impasses práticos. Logo em seu primeiro considerando a resolução pontua "a necessidade de que o processo de adoção seja conduzido em conformidade com as disposições legais pertinentes, a fim de garantir o direito de crianças e adolescentes à convivência familiar e comunitária, em uma sociedade plural, isenta de discriminação relativa à orientação sexual ou de gênero". Como já asseverado não há qualquer novidade em se determinar que a análise de magistrados(as) e tribunais quando da adoção deva ser isenta de preconceitos, não podendo se consumar em uma atividade discriminatória contra homossexuais e transgêneros, por exemplo. Contudo é inegável que a natureza humana dos que participam e influenciam na decisão final quanto a adoção acaba tendo seu impacto, gerando a restrição da adoção a essas pessoas. Está posto que, em sede de adoção, premissas constitucionais básicas, como o respeito da igualdade e da dignidade da pessoa humana, não são cumpridas, mormente quando os adotantes não se enquadram nos parâmetros cisheteronormativos que regem nossa sociedade e o ordenamento jurídico. Essa "ausência de neutralidade" demonstrada pelo Judiciário impôs ao Conselho Nacional de Justiça (CNJ) a necessidade de afirmar, de forma categórica, que "a sexualidade do adotante, seja pela sua orientação sexual ou sua identidade de gênero, não consta como requisito legal para que se conceda a adoção, razão pela qual qualquer restrição baseada neste aspecto há de ser frontalmente combatida por representar manifesta ofensa ao princípio da igualdade e da dignidade da pessoa humana"12. Não há como se acreditar na crença de total imparcialidade e isenção dos atores que tem papeis centrais no processo de adoção, estando evidente que, seja na elaboração do estudo psicossocial que fundamenta o deferimento da adoção, seja na própria prolação da sentença, elementos que não se vinculam aos requisitos legais para a adoção estão ganhando relevância, fazendo com que o preconceito gere a discriminação que a legislação, em tese, se esmera em proibir. O que se constata é que o que deveria ser uma decisão técnica, baseada somente nos preceitos legais estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), vem sendo maculada pelo preconceito daqueles que estão presentes nas diversas fases da cadeia processual que culmina como deferimento ou não do pleito de adoção. Não se pode admitir de forma alguma que entendimentos, pensamentos e preconceitos contra as minorias sexuais possam incidir nos processos de adoção, especialmente quando se tem em mente que a Constituição Federal garante ser dever da família, Estado e sociedade assegurar, com absoluta prioridade, a proteção dos interesses de crianças e adolescentes (art. 227). Discriminar, conferindo valor a um preconceito, está bastante apartado do dever de especial amparo. Ainda que não fale abertamente que a negativa quanto a viabilidade da adoção seja decorrente da condição sexual dos pretensos adotantes é comum que tal preconceito se consolide em afirmações que sejam vinculadas a uma "não compatibilidade", "ausência de elementos que demonstrem o real benefício em favor do adotado" ou "estrutura familiar que não atende ao melhor interesse da criança". Nota-se também que a resolução 532/23 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) suscita as decisões proferidas pelo Supremo Tribunal Federal nas ADI 4275 e 4277, bem as manifestações da Corte Interamericana de Direitos Humanos, para fundamentar o imperativo de se resguardar tanto a orientação sexual quanto a identidade de gênero como categorias a serem protegidas. A menção à ADI 4277 relaciona-se com a possibilidade de reconhecimento das entidades familiares constituídas por pessoas do mesmo sexo13 especialmente face a tentativa de camuflar o preconceito com assertivas de cunho técnico como era recorrente, valendo-se da alegação de que a adoção por mais de uma pessoa apenas seria possível caso elas fossem casadas ou vivessem em união estável, direitos que seriam vedados a pessoas do mesmo sexo14, fator que manifestamente contraria o nosso Estado Democrático de Direito, como foi devidamente rechaçado pela decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Todavia não se pode ignorar que esse raciocínio ainda povoa as mentes arcaicas de alguns extremistas, em larga medida calcados em uma moralidade retrógrada e em preceitos religiosos decorrentes de uma interpretação enviesada do texto bíblico, como explorado anteriormente nessa coluna15. A resolução 532/23 ressalta a "necessidade de eliminar qualquer forma de discriminação e garantir que o processo de adoção seja conduzido com observância do interesse superior das crianças e dos adolescentes, levando em consideração a idoneidade e a capacidade dos postulantes para exercer a função parental" e que "a adoção realizada de forma inclusiva, igualitária e respeitosa contribui para a proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, das pessoas que pretendem formar suas respectivas famílias, promovendo a construção de uma sociedade mais justa e solidária". Assevera ainda o "compromisso do CNJ quanto à importância de se promover uma cultura de respeito à diversidade e de garantia dos direitos humanos no âmbito do processo de adoção" e a " responsabilidade do Poder Judiciário em combater a discriminação e assegurar a igualdade de direitos a todas as pessoas, independentemente de sua orientação sexual, identidade de gênero ou da composição familiar" Passando à apreciação do conteúdo dos artigos trazidos na resolução se constata uma série de obviedades que, mesmo redundantes, se mostram necessárias para que o preconceito que ainda grassa em sede dos processos de adoção seja refreado. E começa, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), asseverando que cabe aos tribunais e magistrados(as) "zelar pela igualdade de direitos e pelo combate a qualquer forma de discriminação à orientação sexual e à identidade de gênero". A mim parece que se estivéssemos verdadeiramente vivendo uma democracia plena, com respeito a cidadania de todos, seria totalmente supérfluo que uma norma elaborada pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) se iniciasse com a afirmação de que compete aos tribunais e magistrados(as), ou seja, exatamente quem tem por atividade precípua o cumprimento da lei, que venham a fazer valer o disposto naquela que é tida em nosso ordenamento jurídico como a legislação maior. Contudo a realidade é tão preocupante que a resolução 532/23 entendeu por bem relembrar ao nosso Judiciário que ele deve cumprir a lei, o que equivale a determinar que o professor deve ministrar suas aulas e que o cozinheiro deve cozinhar. Na sequência, ainda no art. 1º, há a manifestação expressa de que são vedadas "nos processos de habilitação de pretendentes e nos de adoção de crianças e adolescentes, guarda e tutela, manifestações contrárias aos pedidos pelo fundamento exclusivo de se tratar de casal ou família monoparental, homoafetivo ou transgênero". A baixa compreensão social dos pilares que sustentam a sexualidade16 é replicada, de forma recorrente, por nossos tribunais e magistrados(as) que, em sua larga maioria, desconhecem as distinções entre sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. Tal fato é reconhecido pela Resolução 532/23 ao afirmar que os Tribunais de Justiça devem "elaborar cursos estaduais preparatórios à adoção, com caráter interdisciplinar, que contemple a possibilidade de adoção homoparental, bem como explicite as garantias processuais, particularmente de direito a assistente técnico, de assistência jurídica, de manifestação pelos pretendentes sobre os laudos ou pareceres técnicos antes da decisão judicial e da possibilidade de recurso em caso de indeferimento do pedido". (art. 2º), firmando que "Os Tribunais de Justiça devem prover formação continuada a magistrados(as) e equipes sobre adoção com perspectiva de gênero e particularmente adoção homoparental" (art. 3º) Quando os tribunais já oferecerem tais cursos é dever dos magistrados(as) "pessoalmente e assessorados pelas equipes técnicas do juízo, organizar ao menos um encontro local para solucionarem dúvidas e prestar esclarecimentos sobre peculiaridades locais.". Onde eles forem "ministrados pelas Varas da Infância e da Juventude, os(as) magistrados(as) devem participar de ao menos um encontro com os pretendentes visando esclarecimento de dúvidas, bem como assegurar-se de que a possibilidade de adoção homoparental é apresentada aos pretendentes e que todos sejam informados das garantias processuais no processo de habilitação à adoção" (Art. 3º, § 2º). De se notar que mesmo aqui a resolução se mostra frágil por não indicar a necessidade de que todos sejam devidamente esclarecidos acerca dos elementos que compõem a sexualidade, bem como que tais aspectos não podem configurar objeção ao pleito formulado pelos pretendentes. A resolução 532/23 afirma ainda que "Os tribunais e varas da infância e da juventude podem, sempre que necessário e possível, contar com a colaboração de grupos de apoio à adoção com enfoque na adoção homoparental para tratar de assuntos específicos ao público LGBTQIAPN+" (Art. 3º, § 3º). Na sequência a resolução impõe que "Os(as) magistrados(as) devem analisar nas inspeções aos serviços de acolhimento, institucional e familiar, a efetiva qualificação dos responsáveis para preparar as crianças e adolescentes para adoção em qualquer modalidade de família, inclusive homo ou transafetiva, comunicando ao Conselho Municipal de Direitos da Criança e do Adolescente em caso negativo, nos termos do art. 90, § 3º, II, do Estatuto da Criança e do Adolescente. (Art. 4º). Complementa ainda a Resolução 532/23 que "Os tribunais deverão incluir nas atividades de incentivo à adoção a inclusão de famílias homo e transafetivas, bem como disseminar os canais da ouvidoria para reclamações em caso de situações de discriminação" (Art. 5º). Ao fim ao cabo é bastante peculiar perceber que a presente resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) basicamente tem por fim, como já indicado, determinar que a lei seja cumprida. Nada mais. A resolução 532/23 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) faz com que sejamos obrigados a reconhecer a discriminação existente (e que já haveria de estar superada) e entender que ela persiste em razão da aceitação de que aspectos que não se coadunam com os preceitos instituidores de um Estado Democrático de Direito continuem tendo incidência nas atividades jurisdicionais, seja na elaboração da lei por parte do Poder Legislativo, seja através de sua aplicação pelo Poder Judiciário. Ainda que entenda ser um absurdo ter que reafirmar que a Constituição Federal deve ser cumprida, a nossa realidade tem demonstrado que nunca é demais lembrar que o nosso Estado Democrático de Direito veda práticas discriminatórias contra qualquer pessoa, e, para o espanto de alguns, isso se aplica também em favor de homossexuais e transgêneros. Oxalá cheguemos a um momento em que o óbvio não precise ser dito exatamente por estar-se cumprindo os direitos fundamentais preconizados na Constituição Federal nomeada de cidadã. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da; CAZELATTO, Caio Eduardo Costa. Pluralismo jurídico e movimentos LGBTQIA+: do reconhecimento jurídico da liberdade de expressão sexual minoritária enquanto uma necessidade básica humana. Revista Jurídica - Unicuritiba, [S.l.], v. 1, n. 68, p. 486 - 526, mar. 2022, p. 504. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 17. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61. 4 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. 2 ed., ver. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 36-37. 5 Disponível aqui. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 277. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 252. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. DOMINGOS, Terezinha de Oliveira. A nova perspectiva da adoção nacional e o capitalismo humanista, Revista o Curso de Direito da Universidade Metodista de São Paulo - v. 9, n. 9. São Bernardo do Campo: Metodista. 2012, p. 35. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 254. 10 Roberto Arriada Lorea. Intolerância religiosa e casamento gay, Diversidade sexual e direito homoafetivo, São Paulo: RT, 2011, p. 40. 11 Disponível aqui. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 253. 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A União Homossexual ou Homoafetiva e o Atual Posicionamento do STF sobre o Tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito (São Bernardo do Campo. Online), v.8, p.280 - 294, 2011. 14 Disponível aqui. 15 Disponível aqui. 16 Disponível aqui. 
Existem muitas situações práticas pelas quais passamos em nosso cotidiano que acabam se tornando normais e não nos damos conta de toda a complexidade que as permeia. Principalmente quando tais eventos não nos tocam pessoalmente em nenhuma esfera delicada de nossas vidas. Continuamente nos é exigido que comprovemos quem somos, o que fazemos por meio de informações que são consignadas em uma série de documentos de identificação pessoal que, em sua larga maioria, são obrigatórios. Nossos dados pessoais são coletados muitas vezes sem que tenhamos a plena consciência disso, mas não são raras as vezes em que o fazemos de forma expressa e consentida, como ao preenchermos fichas de atendimento e cadastros no comércio, seja no mundo físico ou virtual.    O fornecimento de tais dados e sua publicização encerra em si a exposição de elementos de identificação revestidos de um caráter eminentemente particular, manifestamente personalíssimo, como é o caso daqueles atrelados à sexualidade. Ainda que persista uma enorme confusão entre o que encerra a ideia de sexo e de gênero, muitas vezes utilizadas como sinônimos, como já explicitamos em coluna anterior1, é importante que se inicie o presente texto com um questionamento bastante singelo: qual a necessidade de informações referentes a aspectos da sexualidade em documentos de identificação pessoal? Por qual razão há a sua inclusão em formulários e fichas cadastrais? Não se olvida aqui que, ao menos no caso dos documentos de identificação pessoal, a origem de tal imposição repousa na Lei de Registros Públicos que, expressamente, no art. 54, 2º, determina que a informação quanto ao sexo constará do assento de nascimento. Tampouco se ignora que tal dado é extraído de outro documento, a Declaração de Nascido Vivo (DNV), onde, conforme determinado no art. 4º, III da lei 12.662/12, haverá de se indicar o sexo do recém-nascido. Como já manifestado alhures2 não há em nenhuma dessas normas a imposição expressa que a indicação do sexo seja realizada entre certas variáveis, em que pese o modelo da Declaração de Nascido Vivo (DNV) trazer, em campo de escolha fechada, as alternativas (M) Masculino, (F) Feminino ou (I) Ignorado, em concepção equivocada que além de usar expressões eminentemente associadas ao gênero traz uma restrição a um binarismo que não encontra respaldo na ciência médica3. Consignar a informação relativa ao sexo do recém-nascido na Declaração de Nascido Vivo (DNV) ou fazê-la constar do assento do Registro Civil de Nascimento não representa, por si só, um problema, pois indica uma característica física daquele indivíduo, que é utilizada por vários motivos, dentre os quais se destaca a necessidade de pormenorização dos dados de identificação da pessoa natural a fim de diferenciá-la de outra em casos de similitude de informações (filhos de mesmo pai, gêmeos, homonímia), bem como na hipótese do prenome do registrado poder ser utilizado para pessoas de ambos os sexos, como Jaci e Ivani, por exemplo, que sem a indicação do sexo pode gerar problema no momento da correta identificação da pessoa. Cumpre salientar, também, que a Declaração de Óbito (DO), instituída pela lei 11.976/09, possui no campo de número 10 a indicação do sexo da pessoa falecida, atendendo ao previsto no art. 80, 3º da Lei de Registros Públicos (LRP). Nota-se, aqui, a repetição do mesmo erro indicado anteriormente quando da análise da Declaração de Nascido Vivo (DNV) vez que traz como alternativas (M) Masculino, (F) Feminino ou (I) Ignorado. De se pontuar que indicar na Declaração de Óbito o sexo do falecido, além das razões já citadas, é relevante para que, na morte de pessoa indigente (sem dados de identificação conhecidos), seja possível, na necessidade de uma verificação futura, ter o máximo de dados do falecido para que se torne viável seu reconhecimento. Contudo não se afigura como adequado que algo tão íntimo e personalíssimo venha a ser exposto de forma indiscriminada a quem quer que seja, por estar descrita em documentos de identificação pessoal ou outros de natureza pública. De se notar que nas certidões de nascimento e óbito, cujos modelos foram estabelecidos nos anexos do Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), há campo específico para a aposição da informação referente ao sexo, contudo a Lei de Registros Públicos (LRP) não impõe que esta seja exposta ou franqueada a quem quer que seja. Basta assinalar que nem todas as informações exigidas pela Lei de Registros Públicos (LRP) no art. 54 ao tratar do assento de nascimento são consignadas na Certidão de Nascimento estabelecida pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ), como, por exemplo, "... a naturalidade, a profissão dos pais, o lugar e cartório onde se casaram, a idade da genitora, do registrando em anos completos, na ocasião do parto, e o domicílio ou a residência do casal" (7º), ou "os nomes e prenomes, a profissão e a residência das duas testemunhas do assento, quando se tratar de parto ocorrido sem assistência médica em residência ou fora de unidade hospitalar ou casa de saúde" (9º). Mediante uma apreciação singela da legislação vigente se verifica que não há a determinação expressa de que a informação quanto ao sexo de quem quer que seja deva ser exposta em documentos públicos. E, no caso em que se vê tal exposição prevista nos modelos dos documentos, não há na lei o correlato que impõe que do modelo conste tal dado. Contudo, em que pese nossa manifesta oposição ao fato de tal informação quanto a sexualidade estar disponível a quem quer que seja que venha a acessar documentos públicos4, o fato é que atualmente é isso que se tem como consolidado em nosso país. E, enquanto esse equívoco técnico não for superado, é necessário lidar com a situação. Porém mesmo o que se tem utilizado como prática não se coaduna com o determinado, vez que experienciamos uma realidade em que grassa uma enorme confusão com relação aos aspectos que se vinculam à sexualidade, como vem sendo divulgado nessa coluna desde o seu texto inaugural5. Baseado na acepção técnica de que o sexo está vinculado, em linhas panorâmicas, à constituição física da genitália da pessoa6, já que a informação que consta da Declaração de Nascido Vivo (DNV) e que será usada como fonte original para revelar o sexo é fundada, em quase todos os casos, na constatação feita pelo médico quando do nascimento, qual a relevância jurídica de que todos que tenham acesso à certidão de nascimento de alguém possam saber se aquela pessoa possui pênis ou vagina? A exposição de tal informação além de desnecessária tem o condão de ferir o direito à intimidade que é tanto uma garantia constitucional como um direito da personalidade. E reitera-se o questionamento acima proposto: a quem assiste interesse jurídico de ter acesso, por meio da certidão de nascimento ou óbito, à genitália da pessoa a qual tais documentos se refere? Mas a normalização de certas condutas acaba por fazer com que algumas pessoas sequer se atentem para o fato de que sua intimidade está sendo violada até que venham a se deparar com alguma situação fática em que se sentem expostas em decorrência da existência de tal dado em seus documentos. Nem mesmo nos aprofundaremos na análise de outros documentos que trazem a indicação do sexo da pessoa, como é o caso do passaporte e também da Carteira Nacional de Identificação, regulamentada pelo decreto 10.977/227, que, em que pese ter tal questão pendente de análise, trazia na versão inicial a previsão de que a indicação do sexo era elemento obrigatório do documento (art. 11, V), reinserindo em nossa sociedade problemas já superados8. Para além dessa construção quanto à necessidade ou não de que tal informação conste nos documentos é de se pontuar que desde a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) fixou-se que dados referentes à sexualidade são considerados dados sensíveis e, portanto, seu tratamento merece uma atenção diferenciada. O art. 5º da Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) ao definir, no inciso II, o dado pessoal sensível, assevera que serão assim considerados os que se refiram à vida sexual e, por óbvio, o sexo da pessoa está inserido em tal contexto. Ato contínuo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) elaborou o Provimento 134/22, destinado aos registradores e notários, que os coloca na condição de controladores dos dados tratados (art. 4º) e responsáveis pela exposição de dados sensíveis9, sendo que a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) fixa que o controlador é o responsável pelos danos que causar no exercício de atividade de tratamento de dados (art. 42)10. Tal raciocínio pode conduzir a uma conclusão de que estamos diante de um conflito aparente de normas ao se considerar que, ao mesmo tempo que a Lei de Registros Públicos (LRP) determina a indicação do sexo nos assentos de nascimento e óbito (mas não nas certidões de nascimento e de óbito), a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD) veda a exposição de dados pessoais sensíveis. A solução lógica parece ser simplesmente seguir a lei e não se inserir a informação sobre o sexo na certidão de nascimento ou óbito, vez que os modelos impostos não estão em perfeita consonância com o ordenamento jurídico, permitindo apenas o acesso a tal elemento pela certidão de inteiro teor, requerida pela própria pessoa ou mediante autorização judicial. Essa imposição de exposição da sexualidade oriunda da existência de um campo destinado ao "sexo" na certidão de nascimento ou de óbito, conforme previsto pelos modelos trazidos no Provimento 63 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), constitui-se em um especial obstáculo no caso das pessoas transgênero. Isso se dá em decorrência de toda a miscelânea que se faz ao apor no campo destinado ao sexo uma característica atrelada ao gênero, como é o caso das expressões masculino e feminino. Ao trazer em documentos acessíveis uma informação que não deveria estar ali e que, também, se mostra  equivocada, o nosso Poder Público dá azo a sérios problemas, como a necessidade de que se altere o documento para atender às premissas atualmente postas, ainda que erradas. Como se associa o que consta dos documentos ao gênero (que é o que está socialmente exposto)11, as pessoas transgênero viram-se na necessidade de solicitar que o seu "sexo" seja consignado em consonância com a sua identidade de gênero em seus documentos, mesmo que não tenham realizado qualquer sorte de processo transgenitalizador. E se trata de um pleito absolutamente lógico dentro do atual estado da arte, mas que, em sua essência, mostra-se inexato pois o que ele pretende efetivamente é o reconhecimento de sua identidade de gênero, e não do seu sexo. E essa questão vem apresentando um novo desdobramento, novamente reflexo do manifesto descompasso de se consignar o "sexo" em documentos públicos e de se confundir o que é sexo e o que é gênero. Como indicado de forma recorrente nessa coluna temos buscado sempre estabelecer de forma bastante ciosa a distinção entre os elementos que sustentamos compor a sexualidade12. Com isso reiteramos que a distinção técnica entre os conceitos de sexo e gênero colocam-se como relevantes, não sendo admissível a confusão entre eles. Tal lembrança é aqui trazida face a existência de uma série de julgados em tempos recentes entendendo pela alteração da informação consignada quanto ao sexo nos documentos para fazer constar a expressão "não binário", como se deu em decisão do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios (TJ/DF). Conforme veiculado, o Corregedor da Justiça do Distrito Federal, após estudo da Coordenadoria de Correição e Inspeção Extrajudicial (Cociex) em parceria com a Associação dos Notários e Registradores do Distrito Federal (Anoreg/DF), decidiu que pessoas "não-binárias" poderiam fazer a alteração do "gênero" diretamente nos cartórios extrajudiciais, aplicando o Provimento 73 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o qual foi incorporado pelo Provimento 149/23. No Estado da Bahia, o Tribunal de Justiça, por meio do Provimento Conjunto 08 CGJ/CCI /2022-GSEC, prevê a possibilidade de que seja feito requerimento para "não binário" quando da "alteração da anotação de gênero" (§ 4º) garantida a "toda pessoa maior de 18 (dezoito) anos completos habilitada à prática de todos os atos da vida civil" que "poderá requerer ao Registro Civil das Pessoas Naturais a alteração e a averbação do prenome e do gênero no registro de nascimento, a fim de adequá-los à identidade autopercebida, independentemente de autorização judicial" (art. 1º). No mesmo sentido surge o Provimento 16/22 da Corregedoria Geral da Justiça do Rio Grande do Sul (CGJ-RS) que "autoriza pessoas não binárias a mudar registros de prenome e gênero diretamente nos cartórios do Estado" determinando a alteração do art. 161 da Consolidação Normativa Notarial e Registral, para que, em seu § 4º, conste a permissão de que "a alteração da anotação de gênero" permita a inclusão da expressão "não binário". A confusão que apontamos existir no decorrer do presente texto está estampada no que estabeleceram os provimentos dos Tribunais de Justiça do Distrito Federal e Territórios, Bahia e Rio Grande do Sul. E emanam exatamente de quem tem a incumbência de julgar os casos que versam sobre sexualidade que chegam ao Poder Judiciário. Embora tenhamos muito claro que quando tratamos de sexo não estamos diante de uma situação binária é de se entender que nesse aspecto aquele que não se insere em uma das condições do binarismo (homem/macho ou mulher/fêmea) há de ser designado como intersexo, que é a nomenclatura utilizada para tais casos13. A expressão "não binário" tem sido utilizada nos estudos vinculados à sexualidade como um elemento de gênero, atribuído a quem não se entende pertencente nem ao masculino, nem ao feminino. Autorizar que se insira a expressão "não binário" nos documentos tem, em nosso sentir, o condão de ampliar a celeuma já estabelecida com relação ao tema. Como já asseveramos outrora essa confusão de se entender pela viabilidade do "não-binário" nos documentos é claramente fruto da falha originária que tem a Declaração de Nascido Vivo (DNV) por fonte, pois é ali que pela primeira vez se designa alguém como masculino e feminino, designativos de gênero, e não como homem/macho ou mulher/fêmea, indicativos de sexo, como alternativas a serem assinaladas. Em respeito à coerência não podemos ignorar que a mesma perspectiva pode ser suscitada quando se trata de alteração da indicação de sexo solicitada pela pessoa transgênero nos termos firmados nas decisões do Superior Tribunal de Justiça (STJ), Supremo Tribunal Federal (STF) e mesmo de Cortes Internacionais. Todavia, novamente, essas se fazem coerentes segundo os parâmetros atualmente postos. Em que pese sermos manifestamente favoráveis a tal alteração pelos motivos aqui amplamente descritos, entendemos que se trata de uma solução paliativa que busca mitigar todo o preconceito e estigma experienciados pelas pessoas transgênero, sendo o mais adequado mesmo a retirada de tal dado dos documentos de identificação pessoal, ainda que mantido nos registros, sem que seja divulgada tal informação em certidões comuns (2as vias). De todo o exposto essa coluna busca essencialmente convidar a quem nos lê à reflexão: por qual motivo meus documentos devem expor o meu sexo? Você já havia se feito essa pergunta? _____________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/388613/a-confusao-entre-sexo-e-genero-e-seus-impactos-juridicos 2 SANTOS, Thais Emilia de Campos dos; CUNHA, Leandro Reinaldo da; MARTINS, Raul Aragão. O registro de crianças intersexo no Brasil. Revista Contemporânea, v.3 n.9, p.14270 - 14294, 2023. 3 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/385836/intersexo-intersexual-e-a-importancia-da-distincao-para-fim-juridico 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 186. 5 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/380547/sexualidade-como-elemento-juridico-relevante-e-seus-aspectos-basicos 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Refúgio/asilo político para pessoas LGBTI+. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.2, p.189-204, 2022, p. 191. 7 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/381882/mudanca-de-nome-e-sexo-nos-documentos-das-pessoas-trans 8 Identidade de gênero, efetividade e responsabilidade civil. Transgêneros e o processo transexualizador. Coluna Direito Civil. Editora Forum, disponível em: https://www.editoraforum.com.br/noticias/coluna-direito-civil/identidade-de-genero-efetividade-e-responsabilidade-civil-transgeneros-e-o-processo-transexualizador/. 9 Art. 4º Os responsáveis pelas delegações dos serviços extrajudiciais de notas e de registro, na qualidade de titulares das serventias, interventores ou interinos, são controladores no exercício da atividade típica registral ou notarial, a quem compete as decisões referentes ao tratamento de dados pessoais. 10 Art. 42. O controlador ou o operador que, em razão do exercício de atividade de tratamento de dados pessoais, causar a outrem dano patrimonial, moral, individual ou coletivo, em violação à legislação de proteção de dados pessoais, é obrigado a repará-lo. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A responsabilidade civil face à objeção ao tratamento do transgênero sob o argumento etário. Responsabilidade Civil e Medicina, 2. ed., Indaiatuba: Editora Foco, p. 307 - 321, 2021, p. 309-310 12 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/380547/sexualidade-como-elemento-juridico-relevante-e-seus-aspectos-basicos 13 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 26-27.
Tendo trazido na parte 1 os aspectos que nortearam o retorno da discussão acerca das uniões matrimoniais entre pessoas do mesmo sexo, bem como o apresentado pela Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, sigo o presente texto com a afirmação que inaugurou o anterior: NÃO HOUVE A APROVAÇÃO DE NENHUM PROJETO DE LEI PROIBINDO O "CASAMENTO HOMOSSEXUAL". Nem nada parecido. Dito isso e tendo feito a exposição dos pontos que nos fizeram voltar a tratar de algo que se julgava superado, faz-se mister que se lance um olhar jurídico sobre qual é o atual estado da arte acerca da questão no Brasil. Inexiste legislação que permita o casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo/gênero, tampouco há alguma que proíba. Cabe, portanto, compreender o ordenamento jurídico pátrio, passando especialmente pelos preceitos e princípios constitucionais vigentes, para uma solução. De plano é imperioso que se afirme que entendo que ao Estado não cabe definir o que é família, sendo esta uma construção social fática, conhecida e reconhecida por todos os que se vinculam a uma, não sendo atribuição da lei defini-la, havendo apenas que conferir a elas, de forma igualitária, os direitos pertinentes, em cumprimento dos parâmetros fixados por nosso Estado Democrático de Direito1. O respeito pleno à dignidade da pessoa humana é valor principal a ser perseguido no que concerne à constituição da família, fundada "na aptidão para responder ao mistério do amor" havendo de ser "aberta e inspirada na liberdade, sendo a regra de ouro atribuir ao Estado a garantia e ao homem a [sua] construção"2. Premente que se tenha em mente que o estabelecimento de relacionamentos conjugais insere-se entre os Direitos Humanos, havendo vasto material tratando do tema. Em sede continental podemos ressaltar a proteção do direito ao casamento e uniões estáveis segundo os ditames firmados pela Convenção Americana sobre Direitos Humanos, também chamada de Pacto de San José da Costa Rica. Quando da comemoração dos 30 anos de adesão do Brasil à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, em novembro de 2022, a ministra Rosa Weber, então presidente do STF, ressaltou a importância da data e asseverou que ante aos inúmeros ataques perpetrados contra a democracia e o Estado Democrático de Direito "mais do que nunca" se fazia necessário repisar a indissociável vinculação do nosso país com a proteção dos Direitos Humanos e com o Pacto de San José da Costa Rica. A vinculação ao pacto, conforme definido pela ministra, é "marco significativo do compromisso assumido pelo Estado brasileiro com o respeito, a proteção e a realização de direitos, bem como sua integração ampla e efetiva no sistema interamericano de direitos humanos"3. A Convenção Americana sobre Direitos Humanos foi incorporada ao ordenamento jurídico pátrio por meio do Decreto 678/92, havendo alguma discussão acerca do seu status de norma constitucional ou supralegal (nos termos do RE 466.343/SP, que discorre sobre a possibilidade da prisão civil do depositário infiel). Há até mesmo uma perspectiva de direito internacional que insere os tratados em posição superior a qualquer sorte de norma interna. Seja como for, o fato é que estando em uma esfera acima da Constituição Federal, em seu nível ou mesmo em uma condição logo abaixo dela, prevalece o entendimento que foi exposto no julgamento pelo Supremo Tribunal Federal (STF) do RE 466.343/SP de que "inaplicável a legislação infraconstitucional" conflitante com o tratado, "seja ela anterior ou posterior ao ato de adesão". Pode-se, então, afirmar que os regramentos e diretrizes consignados na Convenção Americana sobre Direitos Humanos não podem ser afastados por uma norma infraconstitucional. Ante a inserção da Convenção Americana sobre Direitos Humanos em nosso ordenamento se impõe que alguns pontos ali consignados sejam explicitados, bem como qual é a interpretação dada pela Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) acerca deles. O cerne da Convenção Americana sobre Direitos Humanos está consignado logo no art. 1.1 que assevera que "Os Estados Partes nesta Convenção comprometem-se a respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social."  Para que não reste dúvidas de que a Convenção Americana sobre Direitos Humanos há de ser seguida em território nacional o art. 1º do Decreto 678/92 afirma que "A Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), celebrada em São José da Costa Rica, em 22 de novembro de 1969, apensa por cópia ao presente Decreto, deverá ser cumprida tão inteiramente como nela se contém". Não há, portanto, como se conceber a hipótese de se ignorar as determinações ali apostas. Não se trata de uma discricionariedade. Outro ponto base da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, insculpido logo no art. 2º, determina aos Estados signatários o dever de que adotem disposições de direito interno com o fim de efetivar o compromisso de "respeitar os direitos e liberdades nela reconhecidos e a garantir seu livre e pleno exercício a toda pessoa que esteja sujeita à sua jurisdição, sem discriminação alguma", nos termos do art. 1º, sempre que estes não estiverem devidamente garantidos4. Tendo essas informações é de se pontuar que a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH), responsável pela interpretação e proteção do texto da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, já se manifestou expressamente sobre o casamento entre pessoas do mesmo sexo/gênero quando das respostas à solicitação formulada pela Costa Rica na Opinião Consultiva 24/17. Esse mesmo pleito também trazia questões atreladas à identidade de gênero e à condição intersexo, sendo tais aspectos explorados por mim em outros trabalhos já publicados5. Os questionamentos formulados, fundados nos arts. 116 e 247 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos com relação às uniões de pessoas do mesmo sexo e que foram objeto da resposta à Opinião Consultiva 24/17 foram os seguintes8: 3. Com base no exposto, a Costa Rica apresentou à Corte as seguintes perguntas específicas ... 4."Tomando em consideração que a não discriminação por motivos de orientação sexual é uma categoria protegida pelos artigos 1 e 24 da CADH, além do estabelecido no artigo 11.2 da Convenção, essa proteção e a CADH implicam que o Estado deve reconhecer todos os direitos patrimoniais que se derivam de um vínculo entre pessoas do mesmo sexo?", e 5. "Caso a resposta anterior seja afirmativa, é necessária a existência de uma figura jurídica que regulamente os vínculos entre pessoas do mesmo sexo para que o Estado reconheça todos os direitos patrimoniais que se derivam desta relação?"  Na formulação da resposta a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) ponderou que "uma interpretação restritiva do conceito de "família", que exclua da proteção interamericana o vínculo afetivo entre casais do mesmo sexo, frustraria o objeto e a finalidade da Convenção"(§189), concluindo que "a Convenção Americana protege, em virtude do direito à proteção da vida privada e familiar (artigo 11.2) assim como o direito à proteção da família (artigo 17), o vínculo familiar que pode derivar de uma relação de um casal do mesmo sexo", havendo de se resguardar, também, "todos os direitos patrimoniais que derivam do vínculo familiar protegido entre pessoas do mesmo sexo", sendo que "a obrigação internacional dos Estados transcende as questões vinculadas unicamente aos direitos patrimoniais e se projeta em todos os direitos humanos internacionalmente reconhecidos, assim como aos direitos e obrigações reconhecidos no direito interno de cada Estado que surgem dos vínculos familiares de casais heterossexuais" (§190). Em seguida a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) assevera que "os Estados que ainda não garantem às pessoas do mesmo sexo seu direito de acesso ao matrimônio, estão igualmente obrigados a não violar as normas que proíbem a discriminação dessas pessoas, devendo, portanto, garantir-lhes os mesmos direitos derivados do matrimônio, no entendimento de que sempre se trata de uma situação transitória" (§ 227), cabendo ainda a eles o dever de "garantir o acesso a todas as figuras já existentes nos ordenamentos jurídicos internos, para assegurar a proteção de todos os direitos das famílias formadas por casais do mesmo sexo, sem discriminação com respeito às que estão constituídas por casais heterossexuais. Para isso, poderia ser necessário que os Estados modifiquem as figuras existentes por meio de medidas legislativas, judiciais ou administrativas, para ampliá-las aos casais constituídos por pessoas do mesmo sexo. Os Estados que tiverem dificuldades institucionais para adequar as figuras existentes, transitoriamente, e enquanto promovem estas reformas de boa-fé, têm da mesma maneira o dever de garantir aos casais constituídos por pessoas do mesmo sexo, igualdade e paridade de direitos em relação àquelas de sexos diferentes, sem discriminação alguma" (§228). Ao fim, interpretando os arts. 1.1, 2°, 119, 1710, da Convenção Americana sobre Direitos Humanos, a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) entendeu:  por unanimidade, que:  . 6 A Convenção Americana, em virtude do direito à proteção da vida privada e familiar (artigo 11.2), assim como o direito à proteção da família (artigo 17), protege o vínculo familiar que possa derivar de uma relação de um casal do mesmo sexo, nos termos estabelecidos nos pars. 173 a 199.  por unanimidade, que: 7 O Estado deve reconhecer e garantir todos os direitos que se derivam de um vínculo familiar entre pessoas do mesmo sexo, em conformidade com as disposições dos artigos 11.2 e 17.1 da Convenção Americana e nos termos estabelecidos nos pars. 200 a 218.  por seis votos a favor e um contra, que: 8 De acordo com os artigos 1.1, 2°, 11.2, 17 e 24 da Convenção, é necessário que os Estados garantam o acesso a todas as figuras já existentes nos ordenamentos jurídicos internos, incluindo o direito ao matrimônio, para assegurar a proteção de todos os direitos das famílias formadas por casais do mesmo sexo, sem discriminação com respeito às que estão constituídas por casais heterossexuais, nos termos estabelecidos nos pars. 200 a 228. Em outros momentos a Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) aplicou o disposto no art. 1º da Convenção Americana sobre Direitos Humanos pontificando que é dever de todos os Estados respeitar os direitos humanos sem qualquer discriminação, o que inclui a orientação sexual como um dos critérios a serem resguardados, como no leading case Atala Riffo y niñas vs Chile, de 2012, e em Fuentes vs Peru, de 2022. Considerando que a interpretação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos é atribuição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e, se a conclusão que se faz é no sentido de que não pode haver diferenciação entre os direitos atribuídos a entidades familiares compostas por pessoas do mesmo sexo/gênero ou não, é evidente que já está posto que qualquer legislação que venha a vedar o casamentos ou uniões chamadas de "homossexuais" ou "homoafetivas" está fadada a não ser incorporada ao ordenamento jurídico pátrio. E, se por uma teratologia, venha a ser aprovada lei nesse sentido esta haverá de ser prontamente extirpada face à sua inconstitucionalidade manifesta e já constatada. Se o entendimento expresso da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) é que se faz necessária a garantia dos direitos, e até mesmo o reforço dessa diretriz em sede legislativa, surge como uma anomalia qualquer proposta que tenha por fim restringir os direitos de pessoas em razão de sua sexualidade, com o afastamento da dignidade da pessoa humana e da igualdade, apenas por sua entidade familiar estar assentada em uma estrutura em que existam duas pessoas do mesmo sexo/gênero. Mais preocupante ainda quando o intento restritivo de direitos se encontra lastreado em fundamentalismo religioso que não pode jamais prosperar na estrutura de um Estado laico e democrático. Feitas todas as considerações supra é hora de responder o questionamento que intitula a presente coluna: E O BRASIL PODE LEGISLAR CONTRA O CASAMENTO ENTRE PESSOAS DO MESMO SEXO/GÊNERO? A resposta óbvia é que sim. Contudo não da forma simples como alguns afirmam. De pronto há de se entender que na vigência da atual estrutura constitucional uma restrição ao exercício da dignidade humana e da igualdade jamais poderia se dar por meio de uma lei infraconstitucional, já que esta nasceria presumidamente inconstitucional ante a afronta tanto aos direitos fundamentais constantes da Constituição Federal de 1988, como também aos preceitos de Hireitos humanos, especialmente os insculpidos na Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Se qualquer norma visando impedir o reconhecimento do casamento ou união estável de pessoas do mesmo sexo quiser prosperar ela apenas poderia ser estabelecida após uma nova constituição federal que afastasse todos os direitos e garantias fundamentais. Sob a égide da Constituição Federal atual não há qualquer hipótese técnica em que tal obscenidade possa vicejar haja vista que nem mesmo por emenda constitucional a igualdade e a dignidade da pessoa humana poderiam ser afastadas já que assentam-se entre as cláusulas pétreas, nos termos do art. 60, §4º, IV. Com isso é patente que a atual cruzada visando a restrição aos direitos de pessoas do mesmo sexo que buscam estabelecer um casamento ou uma união estável não tem chance de vingar nos termos postos. Contudo o que se questiona é se tal tipo de manobra tem o efetivo intento de atingir o objetivo nele circunscrito ou se é mais uma forma de atuação visando atrair em um futuro pleito eleitoral os votos daqueles que comungam desses valores. De toda sorte devemos nos manter alertas contra todas as formas de tentativas de ataque aos princípios fundantes dos Direitos Humanos e do Estado Democrático de Direito. O tempo das trevas já passou mas não podemos ignorar as forças que seguem laborando para que o nosso futuro seja repleto de passado. ________________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, p.III - VII, 2022 2 MULTEDO, Renata Vilela. Liberdade e família. Limites para a intervenção do Estado nas relações conjugais e parentais. Rio de Janeiro: Editora Processo, 2017, p. 25-26. 3 https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=497600&ori=1 4 Artigo 2.  Dever de adotar disposições de direito interno Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no artigo 1 ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Partes comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. O posicionamento da Corte Interamericana de Direito Humanos quanto à identidade de gênero. São Paulo: Revista dos Tribunais 991, p. 227-246, 2018; CUNHA, Leandro Reinaldo da; COSTA, Diego Carneiro. A Opinião Consultiva 24/17 da Corte Interamericana de Direitos Humanos e seus reflexos no combate à discriminação contra pessoas trans nas relações de trabalho. Revista Interdisciplinar de Direitos Humanos, v.8, p.208 - 227, 2020; CUNHA, Leandro Reinaldo da. O posicionamento da Corte Interamericana de Direitos Humanos sobre a discriminação em razão da orientação sexual e identidade de gênero e seus reflexos nas relações de trabalho. REVISTA DOS TRIBUNAIS (SÃO PAULO. IMPRESSO, v.1018, p.209 - 226, 2020. 6 Artigo 11. Proteção da honra e da dignidade 1. pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas. 7 Artigo 24.  Igualdade perante a lei Todas as pessoas são iguais perante a lei.  Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei. 8 https://www.corteidh.or.cr/docs/opiniones/seriea_24_por.pdf 9 Artigo 11.  Proteção da honra e da dignidade 1. Toda pessoa tem direito ao respeito de sua honra e ao reconhecimento de sua dignidade. 2. Ninguém pode ser objeto de ingerências arbitrárias ou abusivas em sua vida privada, na de sua família, em seu domicílio ou em sua correspondência, nem de ofensas ilegais à sua honra ou reputação. 3. Toda pessoa tem direito à proteção da lei contra tais ingerências ou tais ofensas. 10 Artigo 17.  Proteção da família 1. A família é o elemento natural e fundamental da sociedade e deve ser protegida pela sociedade e pelo Estado. 2. É reconhecido o direito do homem e da mulher de contraírem casamento e de fundarem uma família, se tiverem a idade e as condições para isso exigidas pelas leis internas, na medida em que não afetem estas o princípio da não-discriminação estabelecido nesta Convenção. 3. O casamento não pode ser celebrado sem o livre e pleno consentimento dos contraentes. 4. Os Estados Partes devem tomar medidas apropriadas no sentido de assegurar a igualdade de direitos e a adequada equivalência de responsabilidades dos cônjuges quanto ao casamento, durante o casamento e em caso de dissolução do mesmo.  Em caso de dissolução, serão adotadas disposições que assegurem a proteção necessária aos filhos, com base unicamente no interesse e conveniência dos mesmos. 5. A lei deve reconhecer iguais direitos tanto aos filhos nascidos fora do casamento como aos nascidos dentro do casamento.
Preciso iniciar o texto com uma afirmação peremptória: NÃO HOUVE A APROVAÇÃO DE NENHUM PROJETO DE LEI PROIBINDO O "CASAMENTO HOMOSSEXUAL". Nem a união estável. Nada foi aprovado. Nada está proibido nesse contexto. Feito esse esclarecimento inicial é importante saber por qual motivo entramos nessa máquina do tempo e estamos voltando para 2011 quando essa questão foi objeto de apreciação do Supremo Tribunal Federal (STF) no julgamento da ADI 4277. Qual a razão de se tornar a discutir algo que tínhamos por superado e que se considerava uma conquista civilizatória consolidada em nosso Estado Democrático de Direito? Esse retorno para o passado não foi fruto de um passeio com Marty e Dr. Brown em um De Lorean1. Mas mesmo sem qualquer possibilidade de viagem no tempo parece que visões religiosas conservadoras tomaram de assalto (ou teriam seus defensores se sentido confortáveis para se expor?) alguns postos relevantes de nosso Estado laico e buscam estabelecer, em alguma medida, a imposição de seus valores para a sociedade como um todo. Isso ficou patente com as discussões ocorridas recentemente com relação ao Projeto de Lei 580/07 na Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados que, em 10 de outubro de 2023, por 12 votos a 5, posicionou-se pela proibição do casamento entre pessoas do mesmo sexo, conforme parecer do relator. O entendimento exposto pela referida comissão, contudo, ainda está longe de se tornar uma lei. Basta que se relembre que para tanto ainda é necessário que ocorra a aprovação das outras comissões (de Direitos Humanos, Minorias e Igualdade Racial; e de Constituição e Justiça e de Cidadania) ou do plenário da Câmara, votação favorável no Senado e sanção presidencial. No entanto não se pode ignorar que o fato de ter passado por essa primeira comissão ganhou repercussão. E aparentemente era essa a exata pauta dos que encamparam tal projeto. Uma parte da mídia e das redes sociais, seja por ignorância ou por objetivos sombrios, acabou veiculando a ideia de que teria sido aprovada a lei proibindo o casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo, o que, de fato, como já afirmado, não ocorreu. De início reafirmo o que trouxe em coluna anterior no sentido de sustentar que o mais adequado seria tratar a questão sob a perspectiva de gênero, sendo o mais coerente se falar em casamentos e uniões estáveis entre pessoas do mesmo gênero2. Contudo manterei a nomenclatura "mesmo sexo", que é o que consta do projeto, para uma melhor compreensão. O fio condutor de todo o embate está na ponderação quanto as características individuais das pessoas que desejam estabelecer um relacionamento conjugal. Ignorando parâmetros elementares como afeto, amor e carinho, o ponto fulcral incide sobre a quem se destina o interesse afetivo-sexual daquele sujeito. Diferentemente do pode levar a crer toda a sanha fundada em preceitos religiosos o objeto sob análise não está relacionado a nenhum elemento sacro mas sim ao casamento civil, o qual se encontra desvinculado da igreja já de longa data em território pátrio3. A separação de Estado e Igreja, a consagração do Estado democrático (não teocrático) e a liberdade de crença, de per si, aparentemente não bastam para que se afastasse qualquer menção a restrições de acesso a direitos fundado em religião ou fé. Inquestionavelmente a presente discussão encontra arrimo em uma ingerência que as maiorias sentem deter sobre a vida pessoal das outras pessoas, especialmente das minorias, buscando moldar a existência destes segundo seus preceitos, valores, parâmetros e convicções. E é função inafastável do Estado Democrático de Direito garantir que as minorias possam seguir existindo sem que o Poder Público labore no sentido de inviabilizar a sua existência, fator de suma relevância em sede de Direito de Família, havendo de reinar a premissa de que não há o Estado de intervir em decisões pessoais que não interferem nos direitos alheios, como bem consignava Stefano Rodotà4. Sendo patente, ao menos sob a perspectiva jurídica, que não há espaço para tal sorte de legislação que vise a vedação dos casamentos e uniões de pessoas do mesmo sexo/gênero nos cumpre tecer algumas considerações acerca do que nos conduz a tratar, enquanto sociedade, de absurdos dessa grandeza. Como inexiste previsão expressa em nosso ordenamento jurídico acerca da possibilidade de casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo, nos idos de 2009 foi apresentado o Projeto de Lei 580/07 visando positivar tais entidades familiares. Oposições ao entendimento ali apresentados também foram levadas às casas parlamentares federais, sendo que o Projeto de Lei 5167/09, apensado ao anteriormente mencionado, estabeleceu-se como um contraponto àquele, tendo por fim impedir a constituição de casamentos ou uniões estáveis por pessoas do mesmo sexo. Após tais projetos o tema foi apreciado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) em 2011, fazendo com que as discussões parlamentares sobre a questão restassem adormecidas, com o reconhecimento de que os casamentos e uniões estáveis entre pessoas do mesmo sexo configuravam-se como entidades familiares nos termos previstos na Constituição Federal. Porém ainda valendo-se dos resquícios de fundamentalismo religioso despertados em meados da década passada a Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados deitou-se sobre os referidos projetos e aprovou o entendimento trazido naquele que se mostrava contrário à possibilidade de casamentos e uniões entre pessoas do mesmo sexo. Do ponto de vista jurídico é vital apreciar a justificativa que fundou tanto o projeto de lei quanto o voto a ele favorável. Verificando o conteúdo da fundamentação do projeto encontra-se basicamente uma pregação religiosa, tanto que o texto é dividido em duas partes: a primeira com as considerações jurídicas e; a segunda de fundo religiosos, a qual se inicia com a afirmação de que "Feita a defesa constitucional e legal, passamos a fazer a defesa dos Valores Cristãos, uma vez que os autores representam o segmento católico e evangélico, respectivamente". Seja por uma compreensão bíblica enviesada ou por uma falta de letramento democrático não se pode conceber em um Estado laico que se fundamente a justificativa de uma lei que será aplicável a todas as pessoas em bases religiosas. Os que comungam de um certo credo devem seguir as diretrizes por ele impostas, mas foge a todo o conceito democrático a imposição de seus valores de forma universal, sob pena de ofensa à liberdade religiosa prevista na Constituição Federal (art. 5º, VI). O mesmo direcionamento que lastreou a justificativa do projeto de lei 5167/09 se encontra no relatório apresentado pelo relator do projeto, um pastor que deixa bastante explicito que sua condição foi determinante para a sua manifestação, a qual se constitui como uma ode ao moralismo religioso propalado pelos defensores da "tradicional família cristã", tentando impor uma teocracia e estabelecer um claro retrocesso civilizatório. De se notar que há uma tentativa de conferir contornos jurídicos ao relatório, valendo-se de argumentos rasos como o de que o art. 226 da Constituição Federal assevera que "é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher", e que isso seria um impeditivo para uniões de pessoas do mesmo sexo. Hermenêutica pueril mas que se presta a suscitar afirmações com bases técnicas que podem atingir aos menos preparados. Olvida-se, porém, de forma bastante conveniente o parecer, que quando da promulgação da Constituição Federal de 1988 ainda vigia o Código Civil de 1916 que, por sua vez, teve sua elaboração realizada nas primeiras décadas do século passado, período em que prevalecia o entendimento de que seria supérfluo se consignar de forma expressa no texto da lei a necessidade de que o casamento fosse realizado entre homem e mulher. Pontes de Miranda sustentava, à época, que a diversidade sexual era tão natural e evidente que sequer havia a necessidade de que se declarasse expressamente a sua existência como um requisito indispensável ao casamento, razão pela qual a não atenção a esse "requisito" faria daquela união uma mera materialidade de fato sem significado jurídico5. Com todo o respeito que o aclamado Pontes de Miranda merece é evidente que tal entendimento não se coaduna com a realidade dos tempos atuais. Constata-se que a diversidade sexual segue não constando do texto do Código Civil como um requisito para o casamento, tampouco foi inserida entre as causas que impedem a sua realização, como se vislumbra do art. 1521. Mas os defensores dessa tese argumentam que a vedação viria da inteligência do art. 1.517 que afirma que "O homem e a mulher com dezesseis anos podem casar". Ainda que seja uma interpretação bastante questionável já que inexiste qualquer vedação expressa é premente que se perceba que não há qualquer menção ao fato de todo o anacronismo que permeia o referido artigo, inconteste reflexo do fato de se tratar de um texto elaborado no início dos anos 1970 (Projeto de Lei 634/75). O relatório traz ainda outros argumentos inquestionavelmente discriminatórios sem qualquer constrangimento. Temos clássicos como a vinculação do casamento com a constituição de prole, com considerações como a de que casamentos seriam "uniões entre um homem e uma mulher com vista a procriação e, portanto, formação de uma família". Externando autoritarismo e estampando toda tentativa de aniquilação que caminha ao lado dessa visão afirma que "As relações homossexuais carecem necessariamente, pela sua própria natureza, das dimensões unitivas e procriadoras da sexualidade humana" e que seriam tais dimensões "que fazem da união corporal do homem e da mulher no matrimônio a expressão do amor com que duas pessoas se doam, de tal modo que esta doação mútua se torna o lugar natural de acolhimento de novas vidas pessoais" pressupondo, em sua sapiência sem limites, que não há amor entre pessoas do mesmo sexo. Coroa tal passagem atestando que o "comportamento homossexual é, portanto, contrário ao caráter pessoal do ser humano e, portanto, contrário à lei natural". A impossibilidade de que as relações homossexuais possam dar azo a filhos naturais é um mote recorrentemente utilizado nessa seara mas que resta absolutamente ignorado pelos detratores das uniões entre pessoas do mesmo sexo em relação a outras situações de pessoas que não podem procriar pelos mais variados motivos, como nos diversos casos de esterilidade natural ou cirurgicamente estabelecida. Logo na sequência pode-se encontrar ainda a afirmação de que "a lei deve ser respeitada e atualmente, inexiste qualquer previsão que permita o casamento ou a união estável entre pessoas do mesmo sexo". Contudo essa hermenêutica seletiva propositadamente não afirma que tampouco existe qualquer proibição para essas uniões. Inusitado ainda que, como bastante usual em situações desse jaez, há a utilização da Bíblia como base para a "análise histórica", sendo considerado do Livro Sagrado apenas aquilo que se mostra conveniente para aquele momento. Faz menção a Levíticos, à destruição de Sodoma e Gomorra (Gênesis 13, 14, 18 e 19), a Mateus (5, 17-20), a Romanos (1, 26-27) e a Coríntios (6-9) para imputar às relações entre pessoas do mesmo sexo a conotação de algo indevido ou punível, mas ignora outras passagens como a de que os homens são criados à imagem e semelhança de Deus (Gênesis 1:26-27), o que nos pode levar a crer que todo "posicionamento preconceituoso e discriminatório baseado no texto bíblico [é] um claro contrassenso entre os dogmas estabelecidos e a sua efetivação prática"6. Mesmo não sendo um profundo conhecedor das escrituras religiosas penso ser minimamente curioso se constatar as escolhas de quais palavras da Bíblia devem ou não ser seguidas atualmente, já que não há qualquer cruzada em busca de se fazer valer passagens como as que versam sobre a pena de morte para adúlteros (Levítico 20:10), a possibilidade da venda de uma filha como escrava (Êxodo 21:7-11), e as proibições de que pessoas usem roupas de dois tipos de tecido (Levítico 19:19), de deficientes de se aproximarem do altar de Deus (Levítico 21:16-23), de se comer carne de porco (Levítico 11:7-8) ou frutos do mar (Levítico 11:9-12). Visando conferir-se uma aura de autoridade técnica o relatório passa a considerações "científicas" complemente enviesadas, chegando a usar a expressão "homossexualismo" e a afirmar que a retirada da homossexualidade do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM) na década de 70 teria sido "ideológica" e não científica, colacionando entendimentos já manifestamente superados, em uma patente tentativa de retomar discussões como a patologização, a qual sustenta absurdos com a discussão da "cura gay". Esse estratagema de tentar conferir cientificidade a questões centradas claramente no preconceito e discriminação é conhecido já de longa data e foi amplamente utilizado durante séculos contra pessoas negras sob a perspectiva de que biologicamente haveriam raças. O absurdo chega ao seu ápice com a assertiva de que a maioria dos países da ONU são contrários ao "casamento gay", enaltecendo que em alguns tal questão seria passível de pena de morte. Novamente, de forma bem oportuna aos seus interesses, o relatório não menciona a informação de que em sua esmagadora maioria tais países são Estados que estão totalmente ou fortemente vinculado à religião. O argumento de autoridade fundado na posição da maioria é raso e patético, além de equivocado. Já houve um momento histórico em que a grande maioria dos países esteve favorável à escravização do povo africano, o que se mostrou um estrondoso equívoco... É singular se verificar a fixação demonstrada pelos partidários da vedação das uniões de pessoas do mesmo sexo com relação à impossibilidade de que o intercurso sexual dessas pessoas possa converter-se em prole, como se a família ainda fosse a morada exclusiva das relações sexuais. Será que a próxima pauta a ser sustentada por esse grupo versará sobre proibição de práticas sexuais antes do casamento? Obviamente que esse meu questionamento está repleto de toda a ironia possível. Ainda nessa ânsia de vincular família com intercurso sexual o relatório nos presenteia com pérolas como a assertiva de que "Não importa o quanto dois homossexuais compartilhem uma cama e propriedades ou ganhos, o relacionamento deles não se parece em nada com um casamento em sua essência pois falta a complementaridade corporal dos sexos - e o seu reflexo psicológico - e a consequente abertura à vida e, portanto, falta o específico da eficácia social do casamento como origem da família". Até tenta fazer uma defesa prévia em nota de rodapé afirmando que, por exemplo, pessoas idosas estéreis ainda teriam a tal "complementariedade de corpos", mas não ponderam outros casos, não naturais, como os de uma pessoa amputada. Será que nesse caso deveria haver a proibição do casamento? Outra vez uma pergunta mergulhada em ironia. Há no texto do voto um outro tanto de absurdos e inconsistências que não mais trarei aqui. A leitura desse material já me causou tamanho incômodo que não mais me torturarei construindo ponderações sobre o restante de seu conteúdo. Quem estiver interessado em infligir-se tal modalidade de penitência o texto segue disponível na internet, mas o que já foi aqui exposto é suficiente para compreender as bases que alicerçam o relatório. Afora todo o repertório religioso há também no relatório um outro ponto, totalmente embebido nos brados raivosos propalados contra o Judiciário, e que assevera que "cabe ao Poder Legislativo, e não ao STF, deliberar sobre o tema"7, opondo-se ao fato de ter o Supremo Tribunal Federal (STF) analisado a questão quando do julgamento da ADI 4277 em 20118. Como já afirmado em coluna anterior, o Supremo Tribunal Federal (STF), quando da ADI 4277, apenas cumpriu o seu dever de guardião da Constituição Federal após ser instado a manifestar-se, face à "toda a batalha conservadora para apartar certas uniões da proteção legal", haja vista que até aquele momento o Poder Legislativo quedava-se silente quanto ao cumprimento do seu mister, o que é recorrente quando se trata de questões que visem a proteção das minorias sexuais9. Ao fim o relatório pugna que se determine que "a Justiça interprete o casamento e a união estável de forma estrita, sem 'extensões analógicas'. Ou seja, deixa claro que essas formas de união dizem respeito apenas a homem e mulher"10. Se houve a necessidade de que o Judiciário decidisse sobre tais casamentos e uniões isso decorreu de leniência atribuível exclusivamente ao Poder Legislativo11 que haveria de ter legislado segundo os exatos termos da Constituição Federal. Se não o fez não parece coerente tentar repassar a responsabilidade para o Judiciário. Toda a discussão travada revela o quanto é relevante se entender que a sociedade é dinâmica e que a interpretação da legislação deve realizar-se de forma a assimilar as vivências experienciadas por todas as pessoas, garantindo nos exatos termos do que preconiza o conceito de democracia, os direitos das minorias, para que não venham a ser vítimas de aniquilação por parte dos grupos majoritários dirigentes12. Tecidas todas essas considerações sobre o que foi consignado no parecer apresentado à Comissão de Previdência, Assistência Social, Infância, Adolescência e Família da Câmara dos Deputados, passarei às considerações específicas sobre as perspectivas jurídicas que permeiam o caso. Mas isso só ocorrerá na próxima coluna, na qual analisarei se há a efetiva possibilidade de se legislar, em território pátrio, sobre a vedação do casamento ou união estável entre pessoas do mesmo sexo. __________ 1 Referência ao carro do filme "De volta para o futuro" e constatação de que corro o risco de que alguns dos leitores talvez não conheçam a obra clássica de Robert Zemeckis. 2 Disponível aqui.  3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 207. 4 RODOTÀ, Stefano. A antropologia do homo dignus. Trad. Maria Celina Bodin de Moraes. Civilistica.com. Rio de Janeiro, a. 6, n. 2, jan.-mar./2017, p. 14 5 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Tomo VII, São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 296. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 286. 7 Disponível aqui.  8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A União Homossexual ou Homoafetiva e o Atual Posicionamento do STF sobre o Tema (ADI 4277). Revista do Curso de Direito (São Bernardo do Campo. Online), v.8, p.280 - 294, 2011. 9 Disponível aqui. 10 Disponível aqui. 11 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa. Revista dos Tribunais: RT, São Paulo, n. 962 p. 37-52, 2015. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direito civil pensado. a importância de não se repetir velhos dogmas de forma indiscriminada. Revista Conversas Civilísticas. v.1, p. I - IV, 2021.
Se o título não é expresso o suficiente afirmo de plano: SIM, sou favorável ao reconhecimento das famílias constituídas por menores de 16 anos. E posso afirmar, ao mesmo tempo, de forma bastante sólida, que NÃO sou favorável ao casamento infantil. Nada há de contraditório nisso. Para explicar é importante se compreender a correlação entre o casamento e a união estável. Efetivamente existem diferenças entre ambos, contudo essas restringem-se apenas à sua forma de constituição e à maneira pela qual se comprovam suas existências. Enquanto o casamento se constitui por meio de um ato solene (comprovado pela respectiva certidão de casamento) a união estável é uma situação de fato cuja prova se faz mediante escritura pública ou sentença. Contudo, socialmente, são instituições absolutamente idênticas na prática, sendo impossível, pela observação da dinâmica cotidiana dos casais, se afirmar quando estamos diante de um casamento e quando se trata de uma união estável. Ainda que haja alguma celeuma doutrinária a tendência do Supremo Tribunal Federal (STF), mormente após a decisão que reconheceu a inconstitucionalidade do art. 1790 do Código Civil, parece ser no sentido de que exista uma equiparação entre os direitos garantidos a cônjuges e companheiros. Feita essa apresentação inicial dos institutos que sustentarão a discussão aqui proposta, passo a discorrer sobre o ponto que enseja o questionamento posto na presente coluna. Qual a idade mínima para a configuração da união estável? Inexiste em nosso ordenamento jurídico uma previsão expressa acerca da idade mínima para a constituição de união estável, a qual apenas é fixada em 16 anos para o casamento, sem qualquer exceção, nos termos do art. 1.517 do Código Civil, conforme redação conferida pela lei 13.811/19. Ora, se estou a asseverar que casamento e união estável devem ser entendidos como institutos equiparados quanto aos seus direitos, como seria possível a afirmação de que considero necessário e imperioso o reconhecimento da união estável de menores de 16 anos? A identidade fática pode induzir à ideia da imposição da idade núbil também à união estável, como foi consignado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em julgado de 2008 tratando de violência presumida em caso de estupro (HC 77018/SC) em que se lê: "3. Sendo a vítima menor de 16 anos, não há falar em extinção da punibilidade pela união estável, ante o fato de ser a vítima absolutamente incapaz para tal, já que não atingiu a idade núbil (16 anos), conforme previsto no Código Civil". A necessidade de atenção à idade núbil para a caracterização da união estável também se faz presente em decisões de diversos Tribunais de Justiça, como no do Rio de Janeiro (0007798-18.2013.8.19.0045, 13ª Câmara Cível), do Distrito Federal (Apelação 20091010085990), de Goiás (Apelação 0367964-80.2014.8.09.0175, 4ª Câmara Cível), entre outros. Muitos aplaudem tal visão sob o argumento de que se estaria protegendo a vulnerabilidade daquele que tem menos de 16 anos, não hesitando nem um mísero segundo em bradar pela imposição do requisito da idade núbil à união estável, ainda que recorrentemente professem um entendimento de que casamento e união estável são coisas distintas, revelando uma convicção jurídica que transita conforme a conveniência do que se pretende defender. Contudo se questiona algo simples: admite-se a supressão de tal lacuna com analogia, conforme preconiza a Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB)? Apesar da tentação de se responder afirmativamente e fazer como nas decisões colacionadas anteriormente a resposta correta é negativa, vez que não cabe interpretação por analogia em sede de norma restritiva1. O próprio conteúdo e extensão do disposto do art. 1520 do Código Civil pode ser bastante distinto daquilo que uma visão menos acurada pode levar a crer. A polissemia que acompanha a expressão casamento permite a exegese de que a vedação estabelecida atem-se tão só à realização do ato solene denominado casamento enquanto não atingida a idade núbil. A inteligência que se extrai da norma em nenhum momento permite entender que proíbe-se a constituição de família por tais pessoas. E é importante se afirmar mais uma vez que nada do que aqui foi dito revela-se como partidário do casamento infantil. O que se está pontuando é que não se pode privar de direitos as pessoas menores de 16 anos que estejam envolvidas em uma situação fática de constituição de família. Influenciado pela "neurose de clareza" de Pablo Stolze é salutar afirmar ser inquestionável que crianças e adolescentes devem estar na escola e vivendo as experiências compatíveis com suas idades. Contudo se a realidade fática não for essa não é plausível privá-las de direitos como os oriundos do reconhecimento de uma união estável. Não se trata de uma discussão sociológica ou antropológica acerca do momento correto para que se venha a estabelecer um casamento mas sim de conferir os devidos direitos a quem faz jus a eles. A mais rasa hermenêutica que acompanha a compreensão da determinação legal de vedação irrestrita ao casamento de menores de 16 anos estabelecida no atual texto do Código Civil funda-se na intenção do legislador de proteção da criança ou adolescente (que não atingiu a idade núbil), no mesmo sentido insculpido tanto na Constituição Federal quando no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Qualquer interpretação que venha a restringir os direitos dessa criança ou adolescente se mostra teratológica por ser contrária a todo o sistema jurídico estabelecido visando a proteção desse grupo reconhecidamente vulnerável, revelando-se claramente inconstitucional ao não conferir a especial e prioritária proteção à criança e ao adolescente estabelecidas no art. 227 da Constituição Federal. Jamais haverá de prosperar a interpretação de uma lei que tem por fim resguardar uma pessoa vulnerável contra essa mesma pessoa. A própria Lei de Introdução às Normas de Direito Brasileiro (LINDB) preconiza que na interpretação legislativa haverá de se atender aos fins sociais a que a lei se destina (art. 5º), não restando qualquer respaldo a uma interpretação que venha a desguarnecer a prioritária proteção às crianças e aos adolescentes. À guisa de exemplificação trago uma hipótese bastante comum. Imagine uma garota que, já aos 15 anos de idade, vive como se casada fosse com um rapaz de 18 anos, em um relacionamento que se mostra público, contínuo e duradouro, com o objetivo de constituir família. Havendo a ruptura desse relacionamento, caso não se reconheça a união estável, essa garota faria jus ao direito a alimentos ou mesmo aos efeitos decorrentes do regime de bens e à meação? Se o término fosse oriundo do falecimento do rapaz, sem que ele tenha qualquer parente em linha reta ou colateral, essa garota seria sua herdeira? O não reconhecimento da união estável afastaria dessa menor do direito à herança, de um eventual direito real de habitação (art. 7º, parágrafo único da lei 9.278/96) e da possibilidade de sub-rogar-se nos direitos e obrigações de um contrato de locação residencial realizado pelo falecido (art. 11 da Lei de Locação). Também não seria considerada beneficiária previdenciária, tampouco acessaria a demais direitos decorrentes de seu falecimento. E isso parece justo? Seria essa a intenção do legislador? A legislação teria o objetivo de privar essa pessoa vulnerabilizada de seus direitos sucessórios, deixando-a desamparada? Tal sorte de interpretação traz que benefício real para essa pessoa que supostamente busca proteger? Seria essa a mens legis ou a mens legislatoris? Os relacionamentos interpessoais com objetivo de constituir família envolvendo menores de 16 anos são um fato, atingindo mais de 10% dos casamentos ou uniões estáveis realizadas no Brasil, o que nos coloca, em números absolutos, no 4º lugar do mundo em casamentos infantis2, o que não pode ser ignorado. Porém a solução não está em meramente tentar resolver o tema com uma simples "canetada". Pode o legislador fazer o que entender por bem mas não conseguirá, por imposição legislativa, impedir que aquele relacionamento vivido por essas pessoas seja por elas e pela sociedade que as circunda reconhecido como uma entidade familiar. Aos olhos daquela comunidade em que esse núcleo familiar se estabeleceu não existe qualquer dúvida de que aquilo que se está a presenciar é uma entidade familiar. A imposição legislativa, de per si, jamais vai alterar esse fato. Aos menos atentos pode até parecer que o Estado está efetivamente laborando para garantir a prioritária proteção da criança e do adolescente, contudo não é essa a verdade, sendo tal sorte de medida inserida entre aquelas denominadas "para inglês ver", face a sua pouca ou quase nenhuma efetividade prática. Se a maior incidência de relacionamentos constituidores de família entabulado por menores de 16 anos se dá mediante a sua caracterização de fato (pela união estável) vedar a realização do casamento além de ter pouco impacto não impedirá a constituição da entidade familiar. Tentar impedir que a realidade que se faz presente no cotidiano das pessoas se efetive pela mera imposição de uma noma legal, mormente quando se está a tratar de uma realidade social posta e consolidada, é de uma inocência pueril. Ou, para tentar demonstrar alguma erudição e fugindo das minhas palavras por vezes tão simplórias, valho-me do mestre Orlando Gomes para afirmar que estaríamos apenas a desperdiçar tinta, por meio de normas que tem vida "apenas no papel em que são impressas"3. Configurados os requisitos da união estável não se pode ignorar que aquele relacionamento tem o condão de criar uma família, ainda que não possa vir a ser convertido em um casamento ou mesmo que não se queira permitir que a ele se dê o nome de união estável. Não há a possibilidade que se venha a dizer a uma família que ela não é uma família apenas por ter o legislador entendido que ela não é. Não há lei que refute a afetividade e os laços que foram ali criados4. A união estável se configura como um ato-fato jurídico5, situação de fato em que, carente de uma manifestação de vontade expressa, acaba constituindo uma entidade familiar. Ainda que diante da prática de atos sem uma intencionalidade de se buscar a aquisição de direitos, acaba por configurar-se a união estável, com a consequente atribuição dos consectários que lhe são inerentes. Ante a natureza de ato-fato jurídico não há que se falar em nulidade (art. 166, I, do Código Civil) restando mitigados elementos como capacidade (art. 3º do Código Civil). Sendo a constituição de família em tais casos uma situação existencial fática é perfeitamente aplicável o consignado no Enunciado 138 aprovado na III Jornada de Direito Civil, do Conselho da Justiça Federal, que sustenta como juridicamente relevante a vontade dos absolutamente incapazes que tenham por escopo a concretização de tais hipóteses, desde que se verifique a existência de discernimento bastante para tanto. Por se enquadrar nessa categoria é evidente que, tendo aquele que não completou 16 anos discernimento para a situação existencial em que está inserido, tal ato familiar pode "ser tido como plenamente válido"6. Na sequência, a fim de conferir os contornos de sexualidade que são intrínsecos a essa coluna, me parece que um ponto nevrálgico está alocado no tacanho temor que parcela da sociedade tem de que crianças e adolescentes sejam destinatárias de conhecimento com relação à sua sexualidade. A refração quanto à educação sexual para crianças e adolescentes é oriunda de desconhecimento ou de uma política de desinformação que conduz à bizarra ideia de que lhes seria ensinado a "fazer sexo" na escola. E, obviamente, o objeto do ensino sobre elementos da sexualidade passa longe de orientações e dicas de como manter relações sexuais. Essa perspectiva acaba ensejando outro fator pernicioso que não pode ser olvidado. Uma considerável parcela dessas uniões decorre de gravidezes indesejadas ou não planejadas dessas meninas que começam a ter relações sexuais antes dos 16 anos. Nessas circunstâncias não é possível se afastar a responsabilidade do Poder Público por não promover a plena implantação de aulas visando a educação sexual para crianças e adolescentes, que além das consequências já aduzidas, tem também manifesto impacto na ocorrência de uma série de violências de fundo sexual que sequer são entendidas pelas vítimas face à normalização de condutas absolutamente abjetas. Em meu sentir cabe aqui mais uma vez ponderar quanto a leniência legislativa do Estado7, pois legislar mal e de forma ineficaz equivale a não legislar. Todas essas considerações foram trazidas para, por fim, poder apresentar um recorte que se coloca como um dos mais relevantes mas que tem recebido da doutrina menos atenção do que seria devido em razão de sua natureza. Vedar a concessão dos direitos ordinariamente concedidos às famílias em decorrência de não se reconhecer como união estável ao relacionamento público, contínuo e duradouro, com o objetivo de constituir família em que uma das partes ainda não tenha atingido os 16 anos, além de ser inconstitucional por ofender ao princípio da igualdade e da proteção prioritária à criança e ao adolescente, ainda se mostra sexista, além de social e racialmente discriminatório. Tal afirmação se faz exatamente por saber que normalmente a maior incidência de relacionamentos como o descrito se dá com as mulheres (ou pessoas do gênero feminino), negras e de baixa renda. Ou seja, além de toda essa sobreposição de vulnerabilidades ainda tem que se deparar com uma hermenêutica que interpreta em seu desfavor uma legislação que tem o intuito de lhe proteger. Não basta toda a vulnerabilidade experienciada e ainda tem que lidar com uma tentativa de proteção desse jaez. Para exemplificação basta considerar dados levantados em 2016 que relatam que mais de 10% dos casamentos e uniões realizadas no ano anterior incluíram pessoas com até 19 anos, dos quais se tem 28.379 meninos contra 109.594 meninas8, numa diferença que não pode ser minimizada. As consequências econômicas decorrentes do desconhecimento da união estável de pessoas menores de 16 anos têm maior impacto sobre as mulheres que, em maior número, são as que estão inseridas nessa realidade. Afastá-las dos direitos daí decorrentes apenas aprofunda as mazelas enfrentadas por essas meninas em nossa sociedade. O marcador racial é outo aspecto comum a essas meninas que normalmente são garotas pretas e pardas, atingidas ainda pelo fator de fragilidade econômica e residentes em regiões periféricas. Dificilmente a discussão da carência de elementos para a caracterização da união estável terá como o menor de 16 anos alguém do gênero masculino, branco e abastado economicamente. O remédio não pode matar o "paciente". Se esse for o modo de proteção me parece melhor deixar o menor de 16 anos indefeso pois o mecanismo arquitetado para esse fim está fazendo mais mal do que bem, deixando ainda mais exposto aquele que haveria de resguardar. E quando a isso se associa o viés sexista, social e racialmente discriminatório o quadro mostra-se ainda mais assustador. É evidente que o casamento infantil não é desejado mas vedar o reconhecimento de direitos às situações de fato em que se tem uma entidade familiar com uma pessoa menor de 16 anos em nada vai auxiliar. E em nossa sociedade atual apenas aprofundará a vulnerabilidade de quem se tem a intenção de se proteger. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui.  3 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. 2 ed., ver. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 37. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. A família, sua constituição fática e a (in)existência de proteção ou atribuição de direitos. Revista Conversas Civilísticas. v.2, p.III - VII, 2022. 5 Lôbo, Paulo Luiz Netto. Famílias, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 110. 6 Disponível aqui.  7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de gênero e a responsabilidade civil do Estado pela leniência legislativa, RT 962 p. 37 - 52, 2015, p. 48. 8 Disponível aqui. 
quinta-feira, 14 de setembro de 2023

Direito à intimidade da pessoa transgênero

Um ponto que venho reiterando nas diversas edições da presente coluna está vinculado com a garantia às minorias sexuais dos direitos franqueados a todas as pessoas, vez que inadmissível qualquer sorte de restrição a tais prerrogativas em decorrência da sexualidade. Parece absurdo ter que repisar continuamente que todos são credores dos direitos fundamentais contudo isso se faz necessário exatamente em face da realidade vivenciada por diversos grupos vulnerabilizados que continuamente são privados das proteções mais básicas ofertadas a todo cidadão1. Nessa senda é de se questionar por quais motivos em nossa sociedade se permite e fomenta uma perspectiva de que algumas pessoas poderiam ser tidas como indivíduos de uma segunda classe tão somente pelo fato de não se inserirem nos parâmetros convencionados da "normalidade"2. Além de ser recorrente a vedação, seja expressa ou tácita, ao acesso ao mais nuclear para a efetivação de diretivas basilares consignadas na Constituição Federal é bastante preocupante constatar que muitos consideram que as parcas conquistas obtidas pelas minorias sexuais encerrariam benefícios indevidos ou privilégios3. De se notar que as referidas conquistas não passam da mera concessão dos direitos fundamentais aos quais todas as pessoas fazem jus e que não eram acessados por esses grupos vulnerabilizados, mas alguns consideram que as minorias sexuais nem mesmo são merecedoras do que é o ordinário. E há ainda quem queira criar uma narrativa falaciosa de que as lutas pelo acesso à igualdade e ao respeito aos parâmetros estatuídos pelo princípio da dignidade da pessoa humana configuraria a criação de "super-cidadãos"4. Essa visão deturpada da realidade, certamente lastreada em concepções que ignoram os dados mais elementares, acabam por sustentar situações vis como a experienciada pelas pessoas transgênero, que enfrentam uma sociedade que as marginaliza e objetifica, com estatísticas que nos permitem discutir a ocorrência de um genocídio trans5. Na seara dos direitos fundamentais me aterei na presente coluna a uma breve apreciação do direito à intimidade das pessoas transgênero. O direito à privacidade, que encerra em si também a figura da intimidade, está expressamente consignado na Constituição Federal (art. 5º, X), sendo resguardado também em sede infraconstitucional no Código Civil (art. 21) entre os direitos da personalidade. Em linhas bastante panorâmicas pode-se entender como privacidade tudo aquilo que se relaciona com a vida do sujeito que ocorre fora do âmbito público6 e que, face ao direito à privacidade, é passível de resguardado de toda e qualquer exposição que não seja por si autorizada, já que ninguém está "obrigado a dar publicidade de todos os atos e aspectos da sua vida pessoal para a sociedade"7. Inserida no direito à privacidade encontra-se uma camada mais nuclear, de espectro ainda mais elementar. Trata-se do direito à intimidade, que encerra em si uma posição ainda mais personalíssima da vida do indivíduo, cujo acesso se faz ainda mais restrito, quando não totalmente vedado. Nessa esfera estão "segredos, verdades, anseios ou desejos que são personalíssimos"8 e relativos ao seu próprio "eu", lugar em que se encontram questões que tangenciam quaisquer dos pilares da sexualidade (sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero)9. A intimidade emerge como um valor caro ao nosso estado democrático de direito porém toda essa preocupação se esvai quando o seu detentor não figura entre pertencentes aos grupos majoritário, como é o caso das pessoas transgênero. Aqui a atenção a esse direito fundamental torna-se incipiente e passível de toda sorte de ofensa e degradação. Pensando especificamente no direito à intimidade das pessoas transgênero o primeiro tema me toca está vinculado com a necessidade de que venha a expor socialmente a sua identidade de gênero, ainda mais quando dotado de elevada passabilidade como tratado na coluna anterior. A quem interessa saber de informação tão íntima? A mera curiosidade quanto à vida alheia não pode respaldar tal sorte de intromissão, rompendo garantia constitucionalmente insculpida, ainda mais ao se considerar que o conhecimento desse dado será utilizado para sustentar algum tipo de preconceito. Alguma celeuma já se estabeleceu quanto a eventualidade de se expor tal condição em sede de casamento, com base na existência de um dever de boa-fé que também se faria presente no direito de família. Um dos exemplos mais clássicos nos manuais e doutrina de direito de família ao tratar de invalidade do casamento consistia em asseverar que caracterizaria a figura de erro essencial quanto a pessoa do outro cônjuge, fator passível de invalidade do casamento, o desconhecimento relativo ao sexo do seu consorte (Art. 1.577 do Código Civil). Trazendo de uma forma mais explícita, o desconhecimento de que a pessoa com quem se casou é uma pessoa trans permitiria a dissolução daquele casamento por anulabilidade, a qual haveria de ser pleiteada pelo cônjuge "ludibriado". Não se olvida que, segundo os critérios postos da escada ponteana, sustentou-se durante muito tempo que a união entre duas pessoas do mesmo sexo caracterizaria um casamento inexistente, ante a falta da diversidade sexual que, em que pese não constar do texto legal como elemento integrante do plano da existência, tinha-se como um "requisito natural" do casamento que sequer precisaria constar da lei de tão óbvio que seria10 ou uma "condição de tal modo evidente, que dispensa regulamentação legislativa"11. Imprescindível, porém, se ponderar "se este 'ser natural' está em consonância com a sociedade de hoje pois, outrora, já se considerou natural que o homem fosse superior à mulher, ou que brancos fossem superiores a pretos, posicionamentos hoje totalmente superados, havendo ainda de se pontuar que até mesmo na natureza (biologia) este conceito já sofreu inúmeras mudanças no decorrer dos tempos"12. Parece ser mais uma vez a já conhecida situação de buscar meios para se tentar restringir o acesso a direitos a uma minoria sexual como "subterfúgio para negar, num outro plano, efeitos às associações afetivas"13 daqueles que não se coadunam com os preceitos sociais esperados e postos. Considerando que a atual realidade social se faz bastante distinta daquela que serviu de base para a construção do Código Civil de 1916, o qual foi replicado em larga escala na redação da codificação civil vigente, o padrão não mais é o de que as relações sexuais apenas passariam a existir após o casamento, permitindo que só então se viesse a tomar conhecimento de que o sexo do cônjuge é distinto do gênero por ele performado. Me parece que isso por si só já bastaria para se trazer para o diálogo a coerência da existência de alegação de erro essencial quanto a pessoa do cônjuge que tenha por fundamento uma alegação desse jaez, sob pena de se estar contrariando o direito-vivo, como preconizava Orlando Gomes14. Não se ignora que continuam existindo aqueles que, pelos mais variados motivos, acabam por ter relações sexuais com seus parceiros apenas após o casamento, o que, também, não pode ser entendido como fator a sustentar o argumento do erro essencial em razão da transgeneridade do consorte. Tal assertiva se faz de início pelo simples fato de que não mais prevalece a concepção de que o casamento é o permissivo estatal para as práticas sexuais entre as pessoas. De outro lado é de se ponderar que se a pessoa decidiu se casar com a outra o fez com quem ela é naquele momento e não com base em quem ela foi um dia. O fato de ela ter nascido com caracteres sexuais externos pertencentes a um gênero com qual ela não se reconhece não altera quem ela é, ainda mais quando já realizado todo um processo transexualizador que lhe conferiu tamanha passabilidade15 que nem mesmo aquele que com ela se casou tivesse constatado que ela é uma pessoa transgênero. Não se vislumbra a existência de manifestações quanto a qualquer sorte de erro quando a pessoa apresenta um genótipo distinto do binarismo do XX e XY, ou quando tem características sexuais internas do sexo distinto do seu gênero de pertencimento ou mesmo quando tenha passado por intervenções cirúrgicas que não se relacionem com elementos atrelados à sexualidade. Cirurgias que não visem um processo transexualizador ou que se destinem à afirmação de gênero realizadas por pessoas cisgênero, como um implante de silicone nos seios em mulheres ou a redução de glândulas mamárias em homens ou até mesmo em mulheres em razão de questões estruturais (dores nas costas, por exemplo) não são consideradas como fundamentos para uma eventual alegação de invalidade do casamento. Mas quando realizadas por uma pessoa transgênero haveria tal possibilidade? Ou falta coerência ou sobra preconceito. Evidencia-se, portanto, que a questão de fundo não se escora no fato de que o corpo da pessoa passou por intervenções cirúrgicas mas sim na perspectiva do preconceito que existe face à condição sexual apresentada por aquela pessoa. Será que a descoberta da condição transgênero faz com que o sentimento que fez com que aquelas pessoas viessem a se unir deixe de existir por tomar ciência de que ela fez uma operação para adequar seu corpo? Ou são as pressões sociais e o preconceito que ensejam o argumento?  O tema ganha especial relevância a se considerar a "gravidade" maior quando a "pseudo ocultação" do passado é promovida por uma mulher transgênero, o que traz consigo, além do recorte de gênero, todo o tempero originário da masculinidade frágil16. Antes mesmo que tenha que enfrentar argumentações preconceituosas revestidas de um verniz de tecnicidade é importante que fique cristalino que não ignoro aqui uma eventual discussão sobre o fato de que o desconhecimento da condição transgênero do cônjuge poderia ensejar uma frustração quanto a um desejo de procriar. Contudo, nesse caso, a alegação há de ser referente a esse fato e não à condição transgênero, já que essa impossibilidade também poderia acometer uma pessoa cisgênero. Tampouco é plausível se escamotear os reais motivos discriminatórios ante a uma falsa alegação de impossibilidade de prole própria, fator que atualmente vem sendo cada vez mais mitigado face às diversas modalidades de reprodução humana assistida que a ciência proporciona. É fato que a legislação vigente ao tratar do tema apenas assevera que o pleito de invalidade do casamento depende da indicação por parte de um dos cônjuges de uma situação desconhecida antes do casamento que se fosse sabida faria com que a união não viesse a se estabelecer. O argumento básico é de que se o cônjuge tivesse ciência daquele determinado fato (impossibilidade de ter filhos) não se casaria, algo que é, inegavelmente, dotado de uma grande subjetividade na prática. Contudo tal alegação haverá de se devidamente comprovada em sede processual. E, na ausência de prova cabal, me parece bastante prosaico se assumir que o pedido de invalidade do casamento caracterizaria prova (ou ao menos um forte indício) de preconceito.  No mais, se o pleito expressamente se fundar no fato de ter tomado ciência da transgeneridade do outro, fica patente e manifestamente comprovado o preconceito. E não podemos nos esquecer que, nos termos trazidos pelo Supremo Tribunal Federal (STF) quando do julgamento da ADO 26, a compreensão jurídica da expressão raça abarca também elementos da sexualidade, o que permite tipificar como crime de racismo condutas transfóbicas. Caminhando para a conclusão daquilo que se propõe no presente texto nos preocupa a existência na doutrina de nomes respeitáveis que já chegaram a suscitar que haveria uma obrigação de que a pessoa transgênero viesse a expor tal condição para seu parceiro antes do casamento, sob pena de responsabilidade civil, o que a mim parece uma interpretação teratológica da legislação vigente, e que acaba por privilegiar um capricho de uma pessoa em detrimento do resguardo de um direito fundamental e da personalidade17. Exigir a revelação de algo tão íntimo é de uma violência atroz. Contudo isso parece não ser algo relevante para uma grande parcela da sociedade que assevera que a "verdade" tem que prevalecer, ao tempo que consome fake news com voracidade. Há ainda a cantilena dos que propagam a necessidade da proteção da "família tradicional" ou da "sagrada família católica" e que, convenientemente, ignoram preceitos cristãos básicos.  Ao permitir que se transija com relação aos direitos fundamentais das pessoas por considerá-las menos merecedoras por não estarem inseridas nos grupos majoritários e dominantes faz com que esse grupo tão vulnerabilizado seja obrigado a seguir confrontando seu passado que, além de traumático, não mais reflete a sua existência atual, contrariando e apagando toda a luta pela passabilidade que lhe permite distanciar-se um pouco de toda a discriminação.  Com base em que essa violência se justifica?  Qual seria o respaldo jurídico para afastar o direito fundamental da privacidade e da intimidade? O direito a ser respeitado não se aplica a quem não é maioria? Pode ser mitigada a dignidade em prol de um preconceito?  A resposta é um enorme NÃO. E quem diz o contrário haverá de me convencer que seu posicionamento não é apenas mais uma reminiscência de um passado que não mais pode prosperar ante ao estado democrático de direito posto por nossa Constituição Federal. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16. 2  CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10. 3 Disponível aqui. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 55. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022 6 Luiz Alberto David Araújo; Vidal Serrano Nunes Júnior. Curso de direito constitucional, São Paulo: Saraiva, 2008, p. 151. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 161. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 161. 9 Disponível aqui. 10 Pontes de Miranda. Tratado de direito privado. Tomo VII, São Paulo: Max Limonad, 1947, p. 296. 11 Carlos Roberto Gonçalves. Direito civil brasileiro. Volume 6: Direito de família. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 142-143. 12 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 200. 13 Luiz Edson Fachin. Direito de Família. 2 ed. Rio de janeiro: Renovar, 2003. p. 126. 14 GOMES, Orlando. Direito e desenvolvimento. 2 ed., ver. e atual. por Edvaldo Brito. Rio de Janeiro: GZ, 2022, p. 37. 15 Disponível aqui. 16 Disponível aqui. 17 Leandro Reinaldo da Cunha, Identidade de gênero, dever de informar e responsabilidade civil. Revista IBERC, v. 2, n. 1, 22 maio 2019.
Por mais anacrônico que possa parecer segue prevalecendo em nossa sociedade uma premissa excludente quanto a garantia de acesso aos direitos mais essenciais. Ainda que estes sejam previstos de forma universal na Constituição Federal, nem todos conseguem acessar efetivamente as prerrogativas nucleares garantidas a todos os seres humanos em nosso Estado Democrático de Direito. Embora a todos sejam franqueados os direitos fundamentais é patente que estar distanciado do padrão posto coloca-se como um obstáculo para ter tal resguardo legal, fato que atinge sobremaneira as minorias sexuais1. Aqueles que em alguma medida ostentam características que os apartam do considerado normal2 encaram uma defasagem em relação ao grupo tido como majoritário. E não raras vezes, obviamente quando viável, os que não estão entre os integrantes dos grupos majoritários procuram o seu ajuste aos padrões postos, seja por ser esse o seu desejo, seja por uma imposição social, ou mesmo como uma forma de tentar transpor todos os percalços impostos pela sua condição primária. Ao se atribuir à incompatibilidade com o padrão ordinariamente esperado um caráter segregatório há o impulsionamento de uma busca por enquadramento nos parâmetros normatizados, norteando a conduta de muitos que sentem que a espera pela efetivação legislativa do respeito às diferenças pode encerrar em si a decretação de uma pena de morte tácita. Estar inserido no que é tido e entendido como "correto" por aqueles que são os detentores do poder tem o condão de garantir uma vivência com menos obstáculos, o que, associado com um desejo de identificação, tem grande impacto quando se analisa a sexualidade segundo a identidade de gênero, a qual há de ser entendida como a compreensão de pertencimento da própria pessoa quanto ao seu gênero, independentemente do sexo que lhe foi atribuído quando de seu nascimento, como consignamos no texto inaugural da presente coluna3. Com base nesse pilar da sexualidade as pessoas podem ser indicadas como cisgênero (quando entendem-se pertencentes ao gênero esperado em razão do seu sexo) ou transgênero (aquelas que sentem que não pertencem ao gênero associado ao sexo a si designado quando de seu nascimento), sendo que nessa segunda condição podemos destacar a figura de transexuais, travestis e intersexuais. Apenas com o fulcro de não correr o risco de enfrentar mais incompreensões do que as que já são recorrentes, mesmo que possa parecer repetitivo para quem acompanha essa Coluna, relembramos que ainda que uma parcela da comunidade e da militância muitas vezes considere transexuais e travestis como sinônimos prefiro, para fins acadêmicos, trabalhar com o entendimento que firma a distinção entre as duas condições com base na concepção de que transexuais apresentariam uma certa repulsa ou ojeriza com relação ao seu fenótipo sexual (fator motivador de eventuais intervenções visando a adequação física de sua genitália aos padrões do sexo correlato ao gênero ao que se reconhecem), o que não se verificaria em travestis4. Por cautela também se pontua que aqui insero a figura do intersexual por sustentar que se trata de elemento distinto do intersexo que, enquanto característica vinculada ao sexo, constata-se ante a presença de uma constituição física que não possibilita a inclusão imediata do sujeito nos parâmetros estabelecidos pelo binarismo homem/macho ou mulher/fêmea. O intersexual é a pessoa intersexo a quem se conferiu um sexo quando do nascimento (por vezes até mesmo decorrente de uma intervenção cirúrgica de adequação genital) mas que não se identifica com o gênero a ele associado, sendo, portanto, a intersexualidade componente da identidade de gênero que não se confunde com a intersexolidade, nos termos trazidos anteriormente nessa mesma coluna5. Feitos esses esclarecimentos conceituais é o momento de retornar ao fio que conduz o objetivo do presente texto. Em razão dessa incompatibilidade entre o físico (corpo) e o psicológico (mente) que perpassa a existência das pessoas transgênero mostra-se inafastável que um dos pontos mais sensíveis do tema incide exatamente nas alterações corporais que as pessoas transgênero realizam em seus corpos buscando conferir-lhes predicados que as associem ao seu gênero de pertencimento. Geralmente a primeira conduta de expressão da transgeneridade revela-se ante a utilização, que nem sempre torna-se pública nesse estágio, de elementos externos associados ao gênero de pertencimento, como pela utilização de roupas, adornos e acessórios a ele atribuídos. Nesse âmbito estão exemplos como o de homens que experimentam a utilização de roupas íntimas e outras vestes femininas (como vestidos e saias), maquiagem e acessórios (brincos, colares, pulseiras). Quanto aos homens trans (aqueles que nasceram com aspectos físicos de mulher/fêmea mas se consideram do gênero masculino) além das vestes associadas ao masculino é de se ressaltar a presença do "binder", uma faixa utilizada sob as roupas e que tem por fim disfarçar o volume das mamas, que apesar de não poder ser entendido como uma vestimenta masculina passa a fazer parte do "vestuário" daquela pessoa com o fim de conferir uma aparência mais associada com o gênero com o qual se reconhece. Ocultar esse atributo eminentemente feminino é algo relevante para o homem trans, sendo algo que pode trazer a ele uma sensação de satisfação e de pertencimento enquanto alguém do gênero feminino. Após as experiências associadas a roupas e acessórios ganham espaço as intervenções de cunho médico destinadas a propiciar modificações corporais com o fulcro de adquirir uma aparência compatível com a de seu gênero de pertencimento e que podem apresentar duas naturezas distintas, quais sejam: hormonais e cirúrgicas. Os tratamentos hormonais, que normalmente revelam o primeiro passo das intervenções medicinais experimentadas pelas pessoas transgênero, por sua vez, podem ocorrer com o fim de bloquear a produção de hormônios ou, na chamada hormonioterapia cruzada, para prover o corpo de quantidade de homônimos próprios do gênero de pertencimento capaz de lhes conferir características externas com ele associadas.  A terapia hormonal cruzada nos homens trans visa a eliminação da produção de estrógenos e progestágenos (progesterona), bem como a elevação da testosterona, o que conferirá um maior desenvolvimento muscular, aumento nos pelos faciais e corporais, além de supressão a menstruação. Já entre as mulheres trans (pessoas nascidas com aspectos físicos associados ao homem/macho mas que se reconhecem como alguém do gênero feminino) o objetivo é inibir a produção endógena de testosterona, havendo ainda a administração de hormônios femininos (estrogênio) que trará como consequência uma suavização dos traços faciais, diminuição dos pelos faciais e corporais, crescimento mamário, redução do volume testicular e da massa muscular. No âmbito cirúrgico os homens trans realizam inicialmente a mastectomia (redução das glândulas mamárias), sendo recorrente também a histerectomia (retirada do útero), a ooforectomia (retirada dos óvulos) e a neofaloplastia (construção de um pênis). Para as mulheres trans as intervenções passam por cirurgias plásticas mirando a feminização facial e corporal, redução do "pomo de adão" (cartilagem tireoide), cirurgia para adequação da voz, implante de silicone para aumento mamário e neovulvovaginoplastia (cirurgia para a construção de uma vagina). Evidente que para além da busca de uma congruência física com aspectos vinculados ao gênero que se entende pertencer todas essas intervenções passam também por uma perspectiva de inclusão (ou não exclusão) social, marcador indissociável da passabilidade. A passabilidade, sob a perspectiva trans, é a qualidade de ostentar aparência e caracteres que permitem que a pessoa transgênero seja reconhecida socialmente como alguém do gênero ao qual se entende pertencente, sem que sua condição seja notada ou descoberta, garantindo-lhe a possibilidade de "transitar tranquilamente na multidão"6 sem que a sua condição de transgeneridade seja apontada como fator de exclusão social, discriminação ou preconceito. Com isso se pode afirmar que quanto mais for reconhecida segundo a sua identidade de gênero maior será a sua passabildade e, em sentido contrário, quanto mais fácil for se constatar que se trata de uma pessoa trans, menor será essa passabilidade. Evidencia-se, com isso, que quanto maior a passabilidade menor será o risco de sofrer os impactos das discriminações em decorrência da sexualidade diversa daquela esperada, o que atribui uma maior proteção à integridade daquelas pessoas com passabilidade elevada. Por óbvio, em perspectiva diametralmente oposta, uma baixa passabilidade encerra em si a majoração da vulnerabilidade para quem a externa. Basta se apreciar o conteúdo das notícias veiculadas concernentes a pessoas transgênero com maior ou menor passabilidade. Quando associada a quem tem maior passabilidade são enaltecidas a beleza e as notáveis características que revelam essa associação com o gênero de pertencimento, frequentemente acompanhada de expressões como "nem parece que é trans" ou similares. Já quando há baixa passabilidade, os noticiários estão sempre relatando homicídios, usualmente praticados com requintes de crueldade, relevando toda a aversão e ódio que acompanham a existência daqueles que são reconhecidos como sexualmente divergentes. Uma visão meramente teórica pode conduzir a uma ideia de que a realização do processo transexualizador é universal vez que garantido pelo Ministério da Saúde através do Sistema Único de Saúde (SUS), nos termos da Portaria 2.803 de 19 de novembro de 2013. Contudo, segundo o que consta da própria portaria, existem apenas 4 hospitais no Brasil em condições de atender às necessidades cirúrgicas do processo transexualizador, o que faz com que, segundo levantamento realizado pela Defensoria Pública do Estado de São Paulo, a espera possa ser de até 18 anos7. O Estado que pouco faz em favor das pessoas trans, quando faz não garante a efetivação do que determina, criando "esperanças vazias em boa parte da população que faria jus aos parcos direitos assegurados", o que chega a apresentar contornos de "crueldade e até mesmo de um sadismo mórbido"8. Nota-se, portanto, que a passabilidade também está atrelada a uma questão econômica, vez que quem tem condições pode atingir seu desejo de adequação corporal à identidade de gênero de forma célere e eficaz, sendo que àqueles desprovidos de recursos financeiros restará conviver com uma baixa passabilidade e os perigos de tratamentos clandestinos e automedicação9 enquanto aguarda o acesso ao processo transexualizador garantido pelo Estado, na esperança que não venha a falecer antes desse momento chegar. Não se pode nem mesmo olvidar que durante muito tempo a passabilidade foi tida como requisito para o reconhecimento de direitos a pessoas transgênero, pois o entendimento até pouco tempo atrás, apenas superado ante a decisão do Superior Tribunal de Justiça (STJ) em 2017, com o julgamento do REsp. 1.626.739, era de que intervenções cirúrgicas para a adequação dos caracteres sexuais externos eram imprescindíveis para a alteração de nome e sexo nos documentos de pessoas transgênero. O fato que não se pode ignorar é que a necessidade de inclusão social é um critério que se faz presente entre os elementos considerados por uma pessoa transgênero quando procura a realização de intervenções visando a ampliação de sua passabilidade. O que pode conduzir a questionamentos simples como: Se o preconceito fosse menor haveria tanta procura para a realização de intervenções? Qual o tamanho do impacto da aceitação social no interesse em se operar? A ineficácia do Poder Público em conferir às pessoas transgênero os direitos definidos afeta a passabilidade, privando-as de experienciar uma vida digna, majorando os obstáculos de uma vivência fora dos padrões impostos e aprofunda a vulnerabilidade de um dos grupos sociais mais exposto aos efeitos da segregação. O que enseja o questionamento: até quando essa conduta restará impune? Garantir passabilidade é incluir. Ter passabilidade está associado a um menor risco de entrar nas estatísticas que mortalidade que acompanham as pessoas trans e que corroboram o chamado genocídio trans10. ____________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 16. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p 10. 3 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/380547/sexualidade-como-elemento-juridico-relevante-e-seus-aspectos-basicos 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Do dever de especial proteção dos dados de transgêneros. Revista Direito e Sexualidade. v. 2, n. 2, p. 213-231, jul./dez. 2021, p. 217. 5 https://www.migalhas.com.br/coluna/direito-e-sexualidade/385836/intersexo-intersexual-e-a-importancia-da-distincao-para-fim-juridico 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Além do gênero binário: repensando o direito ao reconhecimento legal de gênero. Tradução de texto original de THEILEN, Jens T.. por Revista Direito e Sexualidade, Salvador, v. 1, n. 1, p. 1-16, jan./jun. 2020, p. 8. 7 https://g1.globo.com/sp/sao-paulo/noticia/2023/04/05/um-ano-apos-decisao-favoravel-na-justica-professora-trans-aguarda-cirurgia-de-redesignacao-sexual.ghtml 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 274. 9 O'DWYER, Brena; HEILBORN, Maria Luiza. Jovens Transexuais: Acesso a serviços médicos, medicina e diagnóstico. Revista Interseções, v. 20, n. 1, p. 196-219, jun. 2018, p. 214. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022.
Num pragmatismo extremo é possível se asseverar que todo relacionamento amoroso acabará, seja em decorrência do término da afeição que fez com que as pessoas viessem a se unir, seja em decorrência do evento morte. Assim, sendo o seu fim inevitável, resta apenas o fardo de lidar com as suas consequências1. No presente texto me aterei a uma consequência do fim do relacionamento em decorrência de um fato inter vivos que, ordinariamente, tem por elemento originário uma ruptura fática, caracterizada pelo afastamento de um dos cônjuges ou companheiros do lar conjugal. Evidente que existem situações em que não há a saída de casa de uma das partes, contudo a hipótese recorrente é que haja a cessação da convivência mútua do casal em domicílio comum. Em tais circunstâncias, mormente quando residem em imóvel próprio, o mais comum é que o cônjuge do gênero masculino deixe o bem, restando a mulher com o exercício exclusivo da posse. Nesse contexto é possível se discutir se esse cônjuge/companheiro haverá de realizar algum tipo de pagamento em favor daquele que é coproprietário do bem mas que não está a exercer a posse direita. A correta interpretação fática exige a ponderação de vários aspectos distintos mas me aterei aos casos em que não há a expressa manifestação de que o outro cônjuge/companheiro está autorizado a exercer a posse exclusiva do bem comum sem o dever de qualquer sorte de compensação econômica, caso em que a avença firmada entre as partes expressamente afasta tal obrigação. Assim, na carência de comodato com relação a utilização da parte ideal pertencente ao consorte (se o bem for integralmente daquele que deixou o imóvel prevalece a mesma concepção agora atinente ao imóvel como um todo) pode-se afirmar que caracterizado está um benefício indevido em favor de quem está exercendo a posse direta, o que dá azo à possibilidade de se questionar o dever de compensar o possuidor indireto. O tema é objeto muita judicialização, sempre laborando sob a perspectiva da responsabilidade civil, considerando elementos como o fim da mancomunhão (REsp. 1375271/SP), ausência de partilha (REsp. 1250362/RS), momento do rompimento fático do vínculo (REsp. 1250362/RS; REsp. 1375271/SP) e possibilidade ou não de abatimento do valor da pensão (REsp. 1250362/RS). E sob esse parâmetro da responsabilidade civil um dos pontos cruciais recai sobre a apreciação da culpa, aspecto que traz complexidade elevada no presente contexto fazendo com que as decisões venham se direcionado para a inexistência do dever de indenizar. Nesse mesmo sentido de inexistência de qualquer dever por parte do cônjuge/companheiro que remanesce no bem pode se verificar o projeto de lei 3498/21, que visa a inclusão de um §4º ao art. 1.320 do Código Civil, com seguinte texto: Art. 1.320. ... ... § 4º O uso exclusivo do imóvel comum por um dos ex-cônjuges, após a separação ou o divórcio e ainda que não tenha sido formalizada a partilha, não autoriza que aquele privado da fruição do bem reivindique, a título de indenização, a parcela proporcional a sua quota-parte sobre a renda de um aluguel presumido, quando aquele residir com filho comum do casal (NR). Importante se consignar que essa proposta não se insere exatamente nos parâmetros trazidos na discussão aqui entabulada já que apresenta características específicas e requisitos determinados. Apenas para que não reste sem a devida apreciação, a inteligência do artigo preconiza que não cabe direito a indenização referente a utilização do bem, após a separação ou divórcio, com base em um aluguel presumido, quando residir com filho comum do casal. De plano manifesto que tenho uma série de objeções ao texto proposto mas não é esse o momento para tecer considerações desse jaez, bastando reiterar que a questão de fundo que estou a considerar consolida-se desde a separação de fato. Apresentado o problema e o todo que o permeia é premente trazer à lume posicionamento diverso daquele que vem sendo utilizado. Entendo que a questão vem sendo enfrentada de forma equivocada por não se tratar de hipótese de responsabilidade civil mas sim de enriquecimento sem causa, o que gera uma severa alteração nos parâmetros a serem considerados para a compreensão do fato posto. Em linhas bastante superficiais a responsabilidade civil questiona a existência de um fato atribuível a alguém e que causou um dano, nos termos do art. 186 do Código Civil, enquanto o enriquecimento sem causa analisa se alguém obteve um benefício que não deveria ter obtido, com base no disposto no art. 884 do Código Civil. De forma absolutamente panorâmicas, enquanto a responsabilidade civil está preocupada em analisar se houve dano, direcionando sua atenção à figura do lesado (quem perdeu), o enriquecimento sem causa deita sua atenção na direção do agente da conduta que obteve um benefício indevido (quem ganhou). Importante se consignar que o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça (STJ) tem se pautado no entendimento de que o uso exclusivo do imóvel comum do casal está inserto na perspectiva de enriquecimento sem causa, previsto no art. 884 do Código Civil, ainda que mantenha-se utilizando de expressões como "obrigação indenizatória" ou "dever de indenizar" o que remete a uma ideia de responsabilidade civil, como se pode constatar do REsp 1888863/SP julgado em 2022, sob a relatoria do Min. Ricardo Villas Bôas Cueva. Venho sustentando já de algum tempo que não está correta a análise sob o viés do dano eventualmente sofrido pelo coproprietário, pois o que há de ser auferido é se aquele que está valendo-se de forma exclusiva do bem comum, sem a autorização expressão para tanto, está obtendo um benefício e favorecendo-se de forma indevida. Apurado que o possuidor direto está a utilizar patrimônio alheio (ainda que parcialmente) sem qualquer ônus, inexistindo autorização expressa para tanto, é inconteste que experimenta benesse imprópria, e, com isso, haverá de "ofertar ao proprietário o equivalente ao que não teve que dispender por tal uso, pagando o aluguel proporcional à parte do outro, desde o momento em que tal posse exclusiva teve início"2. Anteriormente já tive a oportunidade de tratar da questão com profundidade acadêmica em texto publicado na revista do Instituto Brasileiro de Estudos de Responsabilidade Civil (IBERC)3, bem como em palestra proferida no IV Encontro Nacional desse mesmo instituto realizado em Fortaleza em meados de 2023. Contudo, exatamente como exposto na parte final dessa palestra, há uma perspectiva extremamente delicada que tangencia a hipótese aqui trazida e que, confesso, sempre me atormentou. Como conciliar a excelência técnica aqui exposta à necessidade da atenção a uma perspectiva de gênero que é inafastável da presente problemática? Esse é o momento em que posso fazer uma apreciação conciliando meus dois grandes amores jurídicos: o Direito Civil e as relações entre direito e sexualidade. A confluência de dois mundos aparentemente antagônicos impõe a necessidade de acuidade técnica que demanda a conciliação da dureza da dogmática civilística com um olhar humanístico indissociável da proteção das minorias sexuais. Que fique aqui evidente o entendimento do qual comungo de que se pode pensar o gênero feminino entre as minorias sexuais, como grupo sexualmente vulnerabilizado, nos moldes traçados desde o texto inicial da presente coluna que concebe a sexualidade alicerçada nos pilares do sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. A conclusão pelo dever de restituir que compete a quem tem o uso exclusivo do imóvel comum após a separação de fato conduz automaticamente à necessidade de uma ponderação de gênero pois tal entendimento pode converter-se em manifesta injustiça, vindo até mesmo a respaldar um controle sobre quem é socialmente mais vulnerabilizado. É perceptível nos tempos atuais uma maior atenção com relação aos impactos da estrutura jurídica eminentemente masculina. Ainda que não exista uma restrição ou direcionamento expresso certas circunstâncias, embora não mencionem o gênero, têm em seu cerne uma preocupação que perpassa por esse quesito, como se verifica da chamada usucapião familiar (art. 1.240-A do Código Civil). Outras normas são explícitas no sentido de proteção, como se vê do "Programa Casa Verde e Amarela" (MP 996/20), sucessor do "Programa Minha Casa, Minha Vida", que determina que "tanto o contrato quanto o registro do imóvel serão feitos, preferencialmente, em nome da mulher"4. Nesse campo vislumbro como grande marco o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) que traz alguma esperança quanto a um novo pensar, em que pese não fazer menção específica acerca da figura objeto da presente coluna. De seu texto pode-se extrair que a seção destinada ao Direito de Família inicia-se com a afirmação de que nessa seara "a atuação com perspectiva de gênero mostra-se essencial à realização da Justiça, ao se considerar que as relações domésticas são marcadas pela naturalização dos deveres de cuidado não remunerados para as mulheres e pela predominante reserva de ocupação dos espaços de poder - e serviços remunerados -, aos homens"5. Inquestionável que a dissolução do casamento tem o condão de remeter o cônjuge ou companheiro do gênero feminino à situação de vulnerabilidade ainda mais severa pois haverá de inserir-se em uma nova realidade em que não contará com o suporte financeiro do outro, tendo que arcar com responsabilidades normalmente muito superiores às suas condições, vez que seguirá tendo as mesmas atribuições domésticas sem o mesmo respaldo. O protocolo assevera também que "não se pode deixar de afirmar, outrossim, que a construção de estereótipos de gênero relacionados aos papéis e expectativas sociais reservados às mulheres como integrante da família pode levar à violação estrutural dos direitos da mulher que, não raras vezes, deixa a relação (matrimônio ou união estável) com perdas financeiras e sobrecarga de obrigações, mormente porque precisa recomeçar a vida laboral e, convivendo com dificuldades financeiras, deve destinar cuidados mais próximos aos filhos, mesmo no caso de guarda compartilhada"6. Em coluna anterior tratando do divórcio tardio ou divórcio cinza7 trouxe algumas ponderações referentes aos impactos econômicos do fim do casamento e união estável para as mulheres, as quais enfrentam uma redução de 45% (quarenta e cinco por cento) em seu padrão de vida, o que pode ser descrito como financeiramente devastador8. Vários aspectos poderiam ser colacionados para oferecer suporte à necessidade de uma análise diferenciada para o quadro descrito nessa coluna, como o fato de que em apenas 4,1% dos casos de dissolução do casamento a guarda dos filhos é deferida em favor do pai9, o que faz crer que, ordinariamente, ao estar vivendo no imóvel comum do casal com os filhos do casal, por exemplo, o exercício da posse da parte pertencente ao outro cônjuge estaria sendo desfrutada pelo filho. Todavia não se pode olvidar que isso ensejaria a possibilidade de que o genitor a quem compete o dever de alimentar venha a requerer a compensação de tal "oferta" a título de alimentos in natura (REsp. 1699013/DF). Entendo que está mais do que na hora de se discutir o direito à indenização à mulher por todo o "serviço" por ela prestado em favor da família, especialmente quando se tem em mente que este é amplamente superior ao realizado pelos homens, como demonstra levantamento do IBGE que revela que, em média, mulheres destinam 10,4 horas por semana a mais do que os homens aos afazeres domésticos ou ao cuidado de pessoas10. Esse tema é pouco explorado no mundo jurídico além de ser tachado como absurdo pelos tradicionalistas, machistas de plantão e defensores de uma dita "tradicional família brasileira" que não querem ver "a subversão dos valores pelo implemento de ideias feministas". Faz-se imperioso se discutir os impactos patrimoniais que a estrutura machista consolidada (tanto em nossa sociedade como no ordenamento) acabam por impor ao feminino. As débeis ofendículas apostas por aqueles que buscam manter o status quo relegando o feminino a um lugar de submissão e opressão não podem prosperar. Tampouco podem persistir concepções jurídicas que ignoram fatos simplesmente em razão do gênero da pessoa lesada, privando-a de receber aquilo que está determinado de forma cristalina na lei, é francamente defendido pela doutrina e reconhecido pelos tribunais. Caso eu relatasse uma situação de fato em que a lei estabelece deveres compartilhados e uma das partes não desempenhasse seu papel a contento, sendo o outro compelido a suprir tal omissão, me parece suficientemente claro estarmos diante de um enriquecimento ilícito. Mas se a vítima for a alguém do gênero feminino surgem várias ponderações religiosas, morais, culturais e históricas visando obstaculizar qualquer direito a compensação pecuniária, por não ser ela o ente "destinatário originário" dos direitos classicamente estatuídos pelo Direito Civil. Dessa forma, considero que havendo o uso exclusivo do bem comum do casal após a separação de fato, pode-se pugnar, no mínimo, pela compensação entre o devido pelo exercício da posse direta com o crédito oriundo o enriquecimento ilícito experimentado pelo possuidor indireto em razão do desempenho ineficaz dos deveres familiares e domésticos que venha a ser aferido. Não se ignora a dificuldade probatória que pode se estabelecer a fim de demonstrar esse aproveitamento por parte de um dos cônjuges ou companheiros, mas uma vez provado mostra-se perfeitamente cabível a caracterização do dever de restituir os benefícios recebidos, o que, eventualmente, poderia ser compensado com o enriquecimento decorrente do uso exclusivo do bem comum do casal. Preponderante deixar patente que não pode restar ignorada a questão de todo o trabalho destinado pela mulher à família, o qual segue invisibilizado e desvalorizado, corolário de uma sociedade construída e constituída sobre bases formalmente democráticas mas que manifestamente não acolhe os que não se encontram entre os majoritários e detentores das rédeas do poder. Estou consciente de que os posicionamentos aqui adotados serão combatidos por todos os lados, pelos mais variados motivos e fundamentos, mas o intento da presente coluna é, muito mais do que apresentar entendimentos consolidados, propor o pensamento e gerar o desconforto. O privilégio de ser professor titular da cadeira que um dia pertenceu a Orlando Gomes na Universidade Federal da Bahia me impõe esse agir, não podendo me escusar da obrigação de tomar posição e suscitar o enfrentamento de questões espinhosas. Como tenho o costume de pontuar com relação a todas as minhas opiniões e construções jurídicas vistas como apartadas do que é ortodoxamente esperado reitero que não busco estar com a razão (apesar de sempre acreditar que a tenho, caso contrário não me manifestaria da maneira que faço), mas tão somente colocar uma semente de pensamento fora dos parâmetros postos e causar uma fissura no monolito do dogmatismo cego por muitos propalado. A proposta é basicamente trazer subsídios para a busca de uma atuação jurídica que se mostre mais afeita a preceitos constitucionais nucleares, rompendo certezas construídas com base em uma sociedade e direito segregadores, mas ainda assim lastreada nos parâmetros legais. Por fim, penso que, afastados os preconceitos e atendo-se apenas às diretrizes mais essenciais de um estado democrático de direito, a questão é de uma simplicidade extrema, sendo qualquer celeuma muito mais um reflexo de uma visão de mundo que não mais se admite. Faz-se mister afastar a regência de uma falsa ideia de imparcialidade da lei e de sua interpretação até agora vigentes11, impondo a utilização de lentes que equacionem a turbidez que nos conduziu a uma coletividade que até hoje ignora preceitos basilares da democracia e tornam o gênero um marcador social que priva a dita minoria de direitos. Assim, concluo afirmando que ela deve pagar pelo uso exclusivo do bem mas haverá de poder, ao menos, compensar o montante que lhe é devido face à dedicação superior destinada à família que gerou um benefício ao outro. Me parece ser o justo. Concordam? __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Relacionamentos e seu fim inevitável. Revista Conversas Civilísticas, v.1, p.147 - 148, 2021. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Lucro da intervenção e o uso exclusivo do imóvel do casal após a separação de fato. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 52-64, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 4 ago. 2023. 3 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Lucro da intervenção e o uso exclusivo do imóvel do casal após a separação de fato. Revista IBERC, Belo Horizonte, v. 4, n. 1, p. 52-64, 2021. Disponível aqui. Acesso em: 4 ago. 2023. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui.  7 Disponível aqui.  8 I-Fen Lin; Susan L Brown. The Economic Consequences of Gray Divorce for Women and Men, Innovation in Aging. V. 6, n. suplem. 2022, p. 295. 9 Disponível aqui.   10 Disponível aqui.   11 Juliana Paiva Costa Samões. Epistemologias e hermenêuticas jurídicas feministas. Dissertação de mestrado defendida junto ao Programa de Pós-Graduação em Direito da Universidade Federal da Bahia.
Muito do preconceito propalado nos dias atuais é apresentado com um verniz de rigor científico que busca afastar a natureza discriminatória que está na base das discussões entabuladas. Sob um véu de uma aparente tecnicidade se esconde em verdade o ranço do preconceito que, nessas situações, se revela ainda mais pernicioso ao se revestir de contornos de uma cientificidade que, de fato, não existe. Não se ignora que por vezes essa concepção tem até mesmo um viés inconsciente, não revelando uma conduta intencional ou dolosa de agir de forma discriminatória, quando o agente se considera respaldado por certezas que ele mesmo constrói ou que lhe são entregues como verdades consolidadas. Esse panorama aqui indicado se manifesta em inúmeros contextos contudo me aterei na presente coluna a analisar a incidência de tal agir quanto à presença de mulheres transgênero nos esportes. Mulheres transgênero, por terem a si atribuído quando de seu nascimento o sexo masculino, face aos hormônios que suas gônadas produzem, apresentam, ordinariamente, uma maior quantidade de testosterona no corpo caso não venham a passar por um processo de hormonioterapia, nos termos indicados em coluna anterior1. Um dos elementos que me suscitaram a discorrer sobre o tema na presente coluna foi a oportunidade de ter publicado a tradução de um importante estudo realizado pelo Canadian Centre for Ethics in Sports e que encontra-se publicado na mais recente edição da Revista Direito e Sexualidade (V.4, N.1)2. Em "Atletas transgênero e esportes de elite: uma revisão científica" há a apresentação do resultado da compilação de estudos sobre o impacto da participação de mulheres transgênero nos esportes de elite no qual se constatou que inexistem evidências de que elas gozam de vantagens injustas, após o tratamento hormonal, quando competindo com mulheres cisgênero. Ressalta-se não se tratar de um estudo visando aferir clinicamente se existem benefícios para as mulheres transgênero mas que somente analisou os trabalhos já realizados e demonstrou que neles não há a confirmação de vantagens. Em que pese a ausência de elementos comprobatórios de que haveria um benefício quando tal questão é colocada em discussão todas as pessoas tendem a ter uma opinião, independentemente de uma fundamentação técnica. Quando me deparo com essas "certezas" manifestadas por leigos automaticamente me recordo de pessoas que asseveram que vacinas causam autismo e outros negacionismos que afrontam todo o conhecimento científico. Algumas "convicções do senso comum", fundadas na percepção que a pessoa tem da realidade, mesmo quando refutadas pela ausência de demonstração de que aquele entendimento encontra respaldo, segue moldando a sua forma de pensar. É similar à afirmação trazida por Hans Rosling na obra "Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos", que afirma que, diante de uma ilusão de ótica, mesmo tendo havido a medição de duas linhas com a demonstração de que tem exatamente o mesmo comprimento, se segue enxergando uma diferença3. As pessoas são confrontadas com o fato científico de que a informação que elas sustentam não procede, mas seguem agarradas à sua crença de que sua percepção está correta, normalmente seguidas de afirmações como: "é claro que tem benefícios" ou "mesmo com a pesquisa dizendo o contrário você sabe que não é justo", tentando afastar a ciência e os estudos com a afirmação de que o senso comum há de se sobrepor. Por vezes até mesmo pessoas que tem algum conhecimento na área acabam se posicionando sem ter lastro em comprovações científicas fundadas em estudos que atendam a melhor técnica, o que ganha ares bastante preocupantes tentando valer-se de um argumento de autoridade desprovido de sustentação. A participação de pessoas transgênero em competições esportivas não é figura ignorada pelas entidades responsáveis pelos esportes que, já de algum tempo, foram instadas a buscar o estabelecimento de parâmetros visando garantir o equilíbrio competitivo. O Comitê Olímpico Internacional e várias associações esportivas, como a Word Athletics (antiga Associação Internacional de Federações de Atletismo - IAAF) e a Federação Internacional de Voleibol (FIBV) estabelecem critérios técnicos formais, baseado na quantidade de testosterona para determinar se uma mulher transgênero está autorizada a participar das competições. O aspecto do equilíbrio esportivo faz com que o argumento da vontade do ganho competitivo seja trazido como elemento para apreciação do tema, com o questionamento acerca da "mudança de sexo" para competir e ganhar, remontando a existência de um aspecto volitivo na identidade de gênero. A isso é premente se responder que se tal conduta houver não estamos diante de uma pessoa transgênero mas sim de alguém que está tentando valer-se de meios escusos para a obtenção de um benefício, o que há de ser tratado e entendido como uma fraude. É a tentativa de usurpação de uma condição sexual com fins ilícitos sendo de se ressaltar que a transgeneridade não se assenta na vontade ou escolha de quem quer que seja4. É fato que o presente tópico congrega em si aspectos que envolvem os esportes, algo que tem impacto em nossa sociedade, e a sexualidade, um dos grandes catalizadores de preconceito e discriminação. Isso faz com que seja relevante se aproveitar dessa sinergia para colocar em pauta o debate relacionado à identidade de gênero, já que a proteção dos direitos humanos parece não ser o bastante para a maioria da coletividade. Inusitado se constatar que muitas vezes aqueles que se insurgem contra a presença de mulheres transgênero nas competições esportivas são os que tecem as considerações mais misóginas quando diante dos esportes femininos. Nesse exato momento está ocorrendo a Copa do Mundo de Futebol Feminino e, em razão de comentários machistas e preconceituosos, a transmissão pelo YouTube da partida inaugural da competição teve o chat desativado5. Isso nos faz questionar: a oposição à presença de mulheres transgênero nas competições tem por base o interesse no equilíbrio esportivo ou é mero preconceito velado? Se o problema de fato é o equilíbrio esportivo há de se entender, portanto, que enquanto não existirem distinções físicas em razão dos impactos hormonais no corpo não há motivo para se discutir a presença de pessoas transgênero nas competições. Contudo não é o que se vê quando se fala de competições em que meninas transgênero buscam participar, como foi no caso da patinadora brasileira Maria Joaquina Reikdal que foi impedida, aos 11 anos de idade, de competir no campeonato sul-americano de patinação em 20196. Os grandes defensores do equilíbrio esportivo normalmente assumem que a igualdade é parâmetro nuclear das disputas, sendo a meritocracia o diferencial para um melhor desempenho e resultados. Apenas para acender a discussão sobre o tema convido à leitura dos inúmeros trabalhos que discorrem sobre a meritocracia, como a obra de Michael Sandel7. Seja como for, atendo-me ao meu campo do conhecimento, não pretendo discutir se o desenvolvimento de uma compleição física com a presença de testosterona em níveis mais elevados é capaz ou não de conferir uma vantagem competitiva. Deixo isso para os estudos clínicos. Mas não posso me esquivar de um questionamento que parece ser dos mais relevantes em termos sociais, qual seja, o que vale mais: o pseudo equilíbrio ou a inclusão? Se os estudos não são conclusivos com relação à existência de uma vantagem competitiva qual o motivo de tanta objeção e grita quando da participação de mulheres transgênero em competição com outras mulheres? Ante a ausência de elementos a conduta correta é a de segregação e não inclusão como muitos professam? Nos últimos dias vi nas redes sociais a provocação de uma pessoa (que infelizmente não me recordo quem foi para citar devidamente) que afirmava de maneira singela que ou as mulheres transgênero não tem nenhum benefício em face das demais mulheres ou há um enorme equívoco do técnico da seleção de vôlei feminino em não convocar a oposta/ponta Tifanny Abreu, primeira mulher transexual a participar de uma partida oficial da Superliga. Sob a lente jurídica é relevante se considerar que a vedação da participação de mulheres transgênero em competições esportivas com as demais mulheres além de configurar as hipóteses já consolidadas de práticas discriminatórias pode também ter outros desdobramentos. A proibição da mulher transgênero em competições esportivas com as demais mulheres enseja em si uma hipótese manifesta de dano. Possível se vislumbrar, no campo dos danos patrimoniais, a incidência de dano material face aos gastos tidos para a preparação para aquela competição em específico e despesas de locomoção e estadia já realizadas ou mesmo lucros cessantes ante a perda de valores que seriam recebidos a título de patrocínio pela participação numa dada competição, por exemplo. Nesse mesmo âmbito é justo se pensar também em indenização oriunda da perda de uma chance, considerando eventuais premiações que poderiam ser alcançadas pela atleta que se viu privada indevidamente da participação na competição. Em sede de danos extrapatrimoniais não se pode ignorar a configuração de danos morais, os quais haveriam de ser acrescidos de outros que se apartam do espectro patrimonial, como o dano existencial. Feitas essas ponderações me parece ser imperioso que a presença das mulheres transgênero nos esportes seja tratada de maneira séria e sem leviandades, despida de achismos. Mas o que se questiona, em verdade, é: as pessoas querem mesmo apreciar o tema de forma responsável ou apenas ter mais uma área onde o preconceito contra as minorias possa vicejar? __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.  3 Hans Rosling. Factfulness: o hábito libertador de só ter opiniões baseadas em fatos. 9. ed.. Rio de Janeiro: Record, 2023, p. 24. 4 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Direitos dos transgêneros sob a perspectiva europeia. Revista Debater a Europa, N. 19, 2018, p. 49  5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui. 7 Michael Sandel. A tirania do mérito: o que aconteceu com o bem comum. São Paulo: Editora Civilização brasileira, 2020.
quinta-feira, 13 de julho de 2023

Não é tolerância. É respeito

Somos obrigados a nos deparar em nosso cotidiano com uma série de situações inusitadas que acabam tocando de maneira direta, ou ao menos resvalando, em questões relacionadas com a sexualidade e que, por consequência, merecem uma apreciação de natureza jurídica. O que haveria de ser ordinário e um simples desdobramento dos parâmetros mais básicos da convivência em sociedade passa a ser objeto de batalha. A diferença entre os indivíduos, fator que nos trouxe até aqui em termos biológicos, deixou de ser uma característica nuclear da humanidade, gerando tensionamentos e embates sociais que chegam a culminar com a proposta manifesta ou sugerida de extermínio do diferente1.  A ampliação do acesso à internet conjugado com a imersão no mundo virtual aparentemente fez com que algumas distinções entre as pessoas fossem evidenciadas, levando cada grupo social a se colocar como o único dotado dos valores corretos e adequados de condução da vida em sociedade. Em um mundo em que se tem como equivocado ou mesmo inimigo a ser dizimado (quando não possa ser cooptado) aquele que não comungue com os seus preceitos o respeito à diversidade se torna uma utopia. A impressão é que muitos anseiam por um mundo de ausência de posições dissonantes, onde a uniformidade de pensamento se mostra o ideal, desde que essa confluência se dê na direção dos conceitos por eles defendidos. No que concerne à sexualidade se construiu um entendimento social que admitiu denominar de anormal qualquer conduta que se mostrasse desviada das diretrizes mais ordinárias ou recorrentes da heterossexualidade e da cisgeneridade2, fator crucial para a estruturação de uma sociedade que tem a discriminação como uma conduta disseminada e até mesmo positivada no ordenamento jurídico. Para os que professam visões mais extremistas o respeito às diferenças passou a ser visto como uma fraqueza ou uma traição por não buscar a conversão do diferente aos padrões por eles enaltecidos. Outros chegam a ostentar o "respeitar" como uma qualidade, conferindo a si mesmos uma aura diferenciada, um atributo digno de uma divindade que se distingue da horda pelo simples fato de se mostrar capaz de respeitar o outro. A realidade que nos circunda faz com que o tema respeito volte a ser objeto da presente coluna, em conexão com o que foi trazido anteriormente no texto "O respeito como parâmetro elementar para a dignidade da comunidade LGBTIANP+" publicado em 18 de maio de 20233. A insanidade instalada parece ignorar que o respeito às diferenças é pedra angular de uma sociedade que se encontra lastreada em um Estado Democrático de Direito, vez que um dos alicerces mais básicos da consolidação da dignidade humana. A materialização de um Estado Democrático de Direito pressupõe o respeito às diferenças como corolário basilar, não sendo possível se conceber sua estruturação sob bases de aniquilamento de valores, ideias e vontades dos grupos minoritários4. A existência de um entendimento que pressuponha a possibilidade de uma sexualidade tida por anormal, por si, tem o condão de fomentar condutas denominadas recorrentemente de intolerantes, fundada em um inconteste menosprezo a tudo o que emana das minorias5. A imposição de que todos sejam iguais ou que as minorias sejam extirpadas da convivência social (caso não se adequem ao determinado pela maioria) é característica de sistemas que se afastam dos parâmetros essenciais da democracia. Contudo muitos preferem expor uma visão de que quando não é o caso de extermínio, as minorias deveriam ser reduzidas a uma condição de existência subalterna, havendo de se contentar com o que lhe for ofertado, já que são os inferiores e derrotados por não deterem o controle do poder. E esse não é o fundamento de sustentação da democracia. Democracia pressupõe exatamente o respeito e proteção às minorias ante a sua posição perante a maioria. Nesse âmbito as maiorias não necessitam de proteção exatamente por não estarem correndo qualquer risco, fato que não se aplica à minoria que, por seu status e pela distorção de compreensão de alguns, acabam estando continuamente sob os holofotes da segregação, discriminação e destruição6. E nesse cenário que ganha força a figura do integrante da maioria que se vangloria de ser tolerante, pois "permite" com a sua "benevolência" que as minorias sigam existindo. Normalmente tais manifestações de elevação espiritual são acompanhadas de frases como: "esse mundo de hoje tem cada coisa" ou "o certo tá virando errado", ou ainda "não se pode falar mais nada". Compõe o manual básico, logo após a aquelas manifestações, as afirmações de que "não tenho nada contra" ou "tenho até amigos que são" para, a seguir, passar a desfiar uma enormidade de preconceitos e considerações enviesadas. De regra é de se entender que a tolerância pressupõe alguma medida de altruísmo, pois quem é tolerante está a enfrentar algum ônus mas se portará de forma a suportar esse gravame. Contudo, no mais das vezes, quando a "carta" da tolerância é apresentada como uma enorme qualidade a ser enaltecida e valorizada não se vislumbra, de fato, a existência de qualquer ato de tolerância. "Tolerar pressupõe a necessidade de suportar, permitir ou aceitar algo que se mostra contrário aos seus interesses e convicções e que terá reflexos em sua vida"7. Então é de se questionar: em que a existência das minorias sexuais impacta na vida dos demais integrantes da sociedade que os leva a afirmar que estão a tolerar a presença de tais pessoas? A fragilidade demonstrada pelas maiorias é tamanha que há quem proteste contra as conquistas mais singelas e que somente visam conferir o mínimo de proteção às minorais sexuais, chegando mesmo a bradar que estariam querendo a destruição da masculinidade ao se criar políticas públicas e ações afirmativas em favor das minorias. Até o absurdo argumento de um preconceito contra homens, heterossexuais e cisgêneros tem sido suscitado, similar ao racismo reverso que pessoas brancas chegam a afirmar sofrerem, como se as minorias pudessem subjugar e oprimir os grupos majoritários. Os seres humanos que se colocam como tolerantes costumeiramente são levados a um enorme conflito interno quando se deparam com seus ídolos declarando uma sexualidade dissonante ou mesmo quando seus ascendentes ou descendentes revelam-se como integrante da população LGBTIANP+. A mera proposição hipotética de tais situações faz com que, quando instados a se manifestar quanto a sua reação nesses casos, os coloca acuados e acabam demonstrando a real faceta do preconceito que carregam. Ser tolerante traz consigo um espectro de autonomia e discricionariedade que confere ao indivíduo a prerrogativa de determinar se quer ou não expressar tal característica para a sociedade como um todo. Na essência pode-se asseverar que aquele que está suportando alguma sorte de ofensa teria a escolha de contrapor-se a ela ou suportá-la. E não é essa a questão que se vislumbra aqui, pois não cabe a maioria nem suportar, tampouco opor-se à existência daqueles que se mostram diferentes do ordinariamente esperado. Trata-se apenas de respeitar. E nessa seara não se discute discricionariedade. O respeito não é uma escolha mas sim uma imposição. Deve existir e se fazer presente, sob pena de responsabilização. Quem se diz tolerante por ser heterossexual e "aceitar" pessoas homossexuais, bissexuais, pansexuais ou assexuais merece loas? Em que sua vida é atingida pela existência de pessoas com orientação sexual distinta da sua?  O mesmo se questiona com relação à pessoa cisgênero que afirma aceitar os transgêneros. O aceitar reveste-se também de uma prepotência assustadora pois assenta-se em uma perspectiva de tamanha arrogância que faz crer que a existência das diferenças é dependente da sua concordância ou permissão. Inegavelmente o que há de balizar tal compreensão é apenas o respeito por não ser "plausível se pensar que compete à maioria o poder de autorizar, permitir ou concordar com o fato de a minoria não seguir os seus parâmetros"8. O esfacelamento das bases democráticas dá azo a uma sensação, aos grupos majoritários, de que são detentores de poderes de vida e morte em face das minorias. E essa sensação de superioridade fica ainda mais evidente quando nos deparamos com os grupos vulnerabilizados em razão de sua sexualidade face a todo o histórico de estigma que sempre caminhou ao lado dos que não poderiam ser considerados "normais" quanto ao seu sexo, gênero, orientação sexual e identidade de gênero. Salutar que se expresse a distinção entre tolerância e respeito face aos contornos jurídicos daí decorrentes. Não respeitar é diferente de não ser tolerante, em que pese a utilização consolidada em muitos meios da expressão "intolerância" em contextos em que efetivamente há desrespeito. Estamos hoje em uma sociedade fortemente segregadora e discriminatória na qual não ser alguém que se coadune com o que se tem por ordinário faz com que se venha a ser incluído entre os "anormais", os quais podem ser ofendidos e atacados. E muito disso é a expressão das numerosas omissões do Estado ao não desempenhar seu precípuo dever de proteger as minorias, o que é manifesto ao se constatar a eloquente leniência legislativa associada aos temas de interesse das minorias sexuais9. E ainda existem os presunçosos arautos da democracia que asseveram sua grandiosidade como seres humanos ao aduzir que respeitam as diferenças e que não são pessoas intolerantes, como se isso fosse algo que não haveria de se fazer presente na conduta de todas as pessoas10. Fazer o que deve ser feito é algo tão pouco usual nos dias atuais que respeitar virou uma qualidade, um enorme diferencial no mundo de trevas da segregação e discriminação em que vivemos. Segundo um olhar jurídico é relevante se ter em mente que condutas que revelem um desrespeito às diferenças em razão da sexualidade são ensejadoras de consequências tanto na esfera civil (responsabilidade civil) quanto na penal, especialmente após o julgamento da ADO 26 em que as condutas de natureza homotransfóbicas foram reconhecidas como ofensas raciais, passiveis da aplicação das penas cominadas para o racismo e para injúria racial. É primordial que se perceba que, em verdade, não estamos diante de uma realidade que exija das pessoas a tolerância quanto a existência e os direitos das pessoas LGBTIANP+. Viva e deixe viver. E que a diferença floresça num mundo em que o respeito impere. __________ 1 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Genocídio trans: a culpa é de quem?. Revista Direito e Sexualidade. Salvador, v.3, n.1, p. I - IV, 2022. 2 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 10. 3 Disponível aqui. 4 ARAÚJO, Luiz Alberto David. A proteção constitucional do transexual. São Paulo: Saraiva, 2000, p. 6-7. 5 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 13. 6 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 60-61. 7 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de ge^nero e a responsabilidade civil do Estado pela lenie^ncia legislativa. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 962 p. 37-52, 2015, p. 43. 8 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de ge^nero e a responsabilidade civil do Estado pela lenie^ncia legislativa. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 962 p. 37-52, 2015, p. 43. 9 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade de ge^nero e a responsabilidade civil do Estado pela lenie^ncia legislativa. Revista dos Tribunais: RT, Sa~o Paulo, n. 962 p. 37-52, 2015. 10 CUNHA, Leandro Reinaldo da. Identidade e redesignação de gênero: Aspectos da personalidade, da família e da responsabilidade civil. 2 ed. rev. e ampl., Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2018, p. 13.