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Direito e Mulher

Espaço para o debate do efeito do direito na vida e nas oportunidades das mulheres.

Denise de Almeida Andrade e Mônica Sapucaia Machado
quarta-feira, 20 de dezembro de 2023

Patentes e Justiça de gênero

Há pouco mais de cinquenta anos, em 1973, falecia a americana Beulah Louise Henry. Embora seu nome não seja muito conhecido hoje em dia, Beulah ainda detém o título de maior inventora dos Estados Unidos. Ao todo foram 49 patentes e 100 invenções creditadas a ela. Durante sua vida, Beulah se dedicou a desenvolver produtos e invenções para facilitar atividades do dia a dia tais como melhorar o abridor de latas (1956), a máquina de escrever (1941) e sombrinhas (1924). Sua história é realmente fascinante, mas o fato de que nenhuma outra mulher tenha conseguido superar seu feito nos últimos cinquenta anos também é fato notável sobretudo quando se leva em conta que no mundo inteiro são solicitados anualmente cerca de 3.46 milhões de pedidos de patentes. Onde estão as mulheres inventoras e qual é a relação entre a detenção de patentes e a igualdade e justiça de gênero? Quando concedida, a patente dá direito a uma inventora ou titular o uso exclusivo da sua invenção por um período de tempo. Assim se faz a fama e também algumas fortunas como a do Jeff Bezos que possui por volta de 336 patentes no mundo inteiro e o Elon Musk que tem 8 famílias de patentes que focam o design de veículos, veículos autônomos e busca baseada em localização. Mas, a concessão de patente também determina o que é produzido e para quem. Por exemplo, as invenções e patentes de mulheres na área de biomédicas tendem a contribuir para questões de saúde das mulheres e crianças mais do que as patentes e invenções de sua contraparte masculina. Nos Estados Unidos, em 2018, foram processados cerca de 656 mil pedidos de patente entre invenções e design industrial. E, em 2019, cerca de 3.34 milhões de americanos possuíam pelo menos uma patente. Segundo o relatório do Escritório Americano de Patentes e Marcas, nesse mesmo ano, as mulheres representavam apenas 13% do total de pessoas com patentes no país. Ou seja, embora tenha aumentado nas últimas décadas, o percentual de mulheres que detêm ao menos uma patente ainda está bem aquém da sua contraparte masculina. Dados para comparação dessa situação com o Brasil não estão amplamente disponíveis, mas tudo indica que a situação das mulheres seja igual ou pior. Historicamente, o debate sobre patentes no Brasil tem sido guiado pela busca de uma estratégia desenvolvimentista para o país. No entanto, esse debate pode ser ampliado e também incluir fatores que promovam a inclusão de gênero e justiça social. Segundo o argumento econômico tradicional, a garantia do direito de propriedade industrial mediante patentes de invenção, criaria incentivos à oferta de invenções na sociedade e, consequentemente, o desenvolvimento econômico através de um mercado mais diversificado e competitivo. Considerando que as mulheres em termos acadêmicos, medidos por PhDs obtidos, já alcançaram os homens em diversas áreas e considerando também que o estudos econômicos atuais já demonstraram que a inclusão de gênero leva a melhores decisões empresariais e a maiores ganhos, não é justo, viável, nem estratégico deixar tantas mulheres fora da produção de invenções, desenhos industriais, programas de computador, tecnologias e outras atividades protegidas por patente. Para propor um sistema de patentes mais inclusivo é preciso analisar as barreiras de acesso ao depósito de patentes por parte de mulheres. Uma delas é a informação. Tanto para divulgação quanto na forma de estudos e coleta de dados. Nos últimos anos, o INPI (Instituto Nacional da Propriedade Industrial) tem feito um bom trabalho para aumentar o acesso aos seus processos de depósito de pedidos de patentes que hoje podem ser feitos pelo seu website. Divulgar mais a sua missão e trabalho junto a sociedade, inclusive em áreas como escolas técnicas ou tradicionais, associações comunitárias e em regiões rurais seria um bom começo. Celebrar e dar destaque ao trabalho de inventoras também ajuda, assim como coletar dados específicos sobre a questão de gênero no registro de patentes. Claro que nem todos os pedidos de patentes solicitados têm sucesso. Estudos feitos nos EUA avaliam que cerca de 97% dos processos de solicitação de patentes falham, caducam ou nunca são produzidos no mercado. Por quê? É caro obter uma patente. Nos EUA, o custo de uma patente varia entre US$8.000 e $20.000 sem contar as taxas de anuidade. No Brasil, o registro total padrão sem trâmite prioritário junto ao INPI e anuidades de R$2.265 e $22.460, respectivamente, é mais acessível, mas não para todos. O INPI já oferece alguns descontos que podem ser aplicados aos valores e anuidades a serem pagas, mas poderia incluir também alguns incentivos que motivam a contribuição específica de mulheres e outros grupos como comunidades indígenas e tradicionais. Alguns estudos nos Estados Unidos apontam para o peso do viés de gênero entre avaliadores de pedidos de patentes que tendem a prolongar a avaliação e negar com mais frequência os pedidos feitos por mulheres. Esse viés discriminatório se dá sobretudo pela identificação do gênero do solicitante via o seu primeiro nome. Por exemplo, pesquisadores encontraram que mulheres com nomes femininos mais comuns tinham uma chance 8.2% menor de terem seus pedidos aprovados do que mulheres com nomes mais raros onde era difícil inferir o gênero da solicitante. Ou seja, as mulheres inventoras precisam superar um grau muito maior de escrutínio do que os homens. Para minimizar essa situação, sugere-se que o processo de avaliação dos pedidos de patente garanta uma certa anonimidade aos solicitantes. Uma vez aprovada a patente, a invenção ou design ainda precisa ser produzida no mercado ou implementada na indústria. Estudos demonstram que as mulheres têm menos acesso a financiamentos para desenvolver seus projetos e, por isso, não são tão propensas a registrar ou comercializar suas ideias. A falta de recursos e apoios alimenta um ciclo vicioso. Por isso, uma maior conscientização da importância do registro de patente assim como uma colaboração com a iniciativa pública e privada para a produção e comercialização de invenções de mulheres seria fundamental. Afinal, quem se beneficia de inovações depende de quem as inventa.
Dia 31/10 é comemorado o Dia das "Bruxas" na Colômbia e no Brasil, como em muitos outros países do mundo, talvez lembrando os rituais pagãos da Irlanda de alguns séculos atrás, coincidindo com o solstício de outono. E isto levou-me a pensar na violência contra as Mulheres que foram objeto da "caça às bruxas" nos séculos XVI e XVII na Europa e porque tanta perseguição e violência foram desencadeadas contra elas. Para autoras como a professora Silvia Federeci, a origem desta "caça às bruxas" não é outra se não a emergência do mundo capitalista. "A caça às bruxas está na encruzilhada de uma série de processos sociais que abrirão caminho para o advento do mundo capitalista moderno." (Federici, 2018, p.28) Ao punir a "bruxa" também foram punidos o ataque que fizeram à propriedade privada em defesa da propriedade comunitária, a insubordinação social, os desvios da norma sexual e o pensamento mágico que os estados não podiam controlar. Esta ofensiva "civilizadora" é feita para produzir uma nova forma de pensar, uma divisão sexual do trabalho "sobre a qual se apoiará a disciplina do trabalho capitalista" (Federici, 2018, p.56). Mas, para Silvia Federeci, "a caça às bruxas" perdura até hoje, em múltiplos aspectos. Aqui será analisado dentro do mundo do trabalho, onde a violência estrutural contra as Mulheres é mais evidente. Em países como Colômbia e Brasil, se você olhar de perto essas estruturas permaneceram em detrimento das Mulheres, basta olhar para as Mulheres no mercado de trabalho. No momento da sua incorporação no mundo do trabalho, apresentam uma elevada taxa de desemprego, como evidenciado pelas estatísticas; Na Colômbia a taxa de desemprego das Mulheres é de 11,7%, enquanto para os homens chega a 7,7% (DANE, 2023). No Brasil a situação é semelhante, no primeiro trimestre de 2023, as Mulheres tinham uma taxa de desemprego de 10,8% enquanto os homens tinham um índice de 7,2% (IBGE, 2023). Mas, essas estruturas tornam-se ainda mais violentas e até excludentes do mercado de trabalho quando a mulher é negra, indígena ou mestiça, aumentando ainda mais a taxa de desemprego. Na Colômbia, o desemprego das Mulheres chega a 21,5%, enquanto para os homens afrodescendentes é de 10,7%, gerando uma lacuna de 10,8% (DANE, 2023). E se olharmos os indicadores no Brasil, a situação é a mesma, o desemprego para quem se autodeclarou negro foi de 11,3% enquanto foi de 10,1% para quem se declarou pardo e de 6,8% para quem se declarou branco. (IBGE, 2023). Isso comprova a discriminação estrutural que tanto a Colômbia quanto o Brasil mantêm, que deve ser superada para uma inclusão social adequada (ONU, 2023). Outro aspecto estrutural que as Mulheres enfrentam atualmente é a violência econômica gerada pela disparidade salarial entre homens e mulheres, que segundo a OIT representa a nível mundial, que as mulheres receberiam 20% menos salário que os homens até 2022. Disparidade salarial entre homens e Mulheres que se torna ainda mais visível, devido aos estudos da ganhadora do Prêmio Nobel de Economia (2023) a norte-americana Claudia Goldín, que estudou do ponto de vista histórico as razões pelas quais são geradas as disparidades salariais de gênero. Diante dessa lacuna, o Brasil é pioneiro do ponto de vista regulatório com a edição da Lei nº 1.085, de 3 de julho de 2023, que visa garantir a igualdade salarial e remuneratória entre mulheres e homens. Por sua vez, na Colômbia, a implementação regulatória a este respeito é lenta; só este ano foi criado o Ministério da Igualdade e Equidade (Lei 2.281 de 2023), estabelecendo dentro de suas funções a eliminação das barreiras econômicas que as Mulheres enfrentam. Além do acima exposto, a "caça às bruxas" deixou como legado a divisão sexual do trabalho, que se perpetua até hoje. Com esta divisão sexual do trabalho, as Mulheres são colocadas em tarefas de cuidados não remuneradas, o que em muitos casos as impede de aceder a empregos formais. Embora seja verdade, este trabalho tem sido invisível para a sociedade, para os Estados; Sim, tiraram vantagem econômica deste trabalho, uma vez que o trabalho de cuidados representa para a América Latina e as Caraíbas cerca de 1/5 do Produto Interno Bruto, dinheiro que não foi pago em benefícios às Mulheres. Da mesma forma, é necessário analisar a relação que a Mulher mantém com a terra; e podemos dizer que desde que o baldio foi desapropriado nos séculos XVI e XVII, não foi possível adquiri-lo novamente. As mulheres rurais na América Latina e no Caribe representavam 20% da população até 2021 (PNUD,2023, p.8). Estas Mulheres não têm acesso à propriedade da terra ou perdem-na devido a condições violentas, à economia extrativa ou à produção agrícola de multinacionais. Além disso, são as Mulheres rurais que realizam mais trabalhos de cuidados e enfrentam maior pobreza. E serão estas Mulheres que serão afetadas pelas alterações climáticas. E sim, o que a mulher decide é migrar, mudar de residência, seja de forma voluntária ou forçada. Como Mulher deslocada, migrante ou refugiada, as condições serão igualmente adversas. As mulheres representam 48,1% da população migrante em 2020. Mas são elas que ficarão mais vulneráveis ??no trânsito migratório, sendo vítimas de violência sexual ou de tráfico de pessoas. Somado a isso, nos locais de destino, geralmente realizam trabalhos precários de cuidado. Por outro lado, as Mulheres refugiadas e migrantes estão frequentemente ausentes das políticas concebidas para as proteger e ajudar, uma vez que as suas vozes não são ouvidas. (ONUMUJER, 2023) Pensar a "caça às bruxas" no 31 de outubro de 2023, é pensar nas mulheres: pobres, negras, indígenas, mestiças, migrantes, jovens, mulheres idosas, todas as mulheres trabalhadoras, que continuam a ser perseguidas e violentadas em seus direitos e quem será muito difícil para elas ascenderem a um emprego digno. Amigas, irmãs, comadres, continuamos aqui na luta. Referências bibliográficas: Federici, S (2018) Brujas, Caza de Brujas y Mujeres. Traficante de Sueños. DANE (2023). Disponível aqui. PNUD (2023) Las voces de las mujeres rurales en América Latina y el Caribe ante las crisis multidimensionales. Disponível aqui.  ONUMUJERES (2023) Mujeres refugiadas y migrantes. Disponível aqui.  ONUMUJERES (2023) Igualdad de Género. Disponível aqui.  ONU (2023) El racismo, un obstáculo para el desarrollo en América Latina. Disponível aqui.
Como de costume, as constituições anteriores a de 1988 não contaram com a participação de mulheres em suas construções. No período anterior à Constituição Cidadã de 88, nada se falava, de forma expressa, sobre igualdade entre homens e mulheres, em que pese o movimento feminista tenha se mantido forte, travando lutas a todo momento em busca da concretização dos seus direitos. No Direito Civil, com base no Código de 1916, a mulher era considerada incapaz e ao homem era atribuído o papel de chefe da família. No campo dos direitos políticos, em 1928 foi eleita a primeira mulher para um cargo público, Alzira Soriano, que tomou posse em 1929 como prefeita na cidade de Lajes/RN. Foi a primeira prefeita não apenas no Brasil, mas em toda a América do Sul. Ainda no falando em direitos políticos, apenas em 1932, há menos de cem anos, as mulheres passaram a ter a prerrogativa de participar da escolha dos representantes políticos por meio do voto (TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL, 2023)1, mas foi só em 1965 que esse voto se tornou obrigatório, equiparando-se aos dos homens. No Direito Penal, apenas recentemente, em agosto de 2023, o Supremo Tribunal Federal reconheceu a inconstitucionalidade da legítima defesa da honra (SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, 2023)2. Para aqueles que militam em defesa das mulheres, parece até um contrassenso que a Corte Suprema do país tenha que voltar seus olhos a uma discussão como essas atualmente, mas infelizmente até a decisão recente, ou seja, praticamente ontem, a tese ainda era muito utilizada em casos de feminicídio ou agressões contra as mulheres para justificar o injustificável: o comportamento violento do acusado. De fato, "a história da cidadania no Brasil tem como ponto alto a Constituição de 1988, que a reconheceu como fundamento da República, além de inaugurar e sistematizar um vasto conjunto de direitos - não por outra razão, foi chamada Constituição Cidadã." (SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA, 2023). A Constituição Federal de 1988 pode ser elencada como a Constituição mais democrática e avançada da história brasileira, inaugurando, portanto, o Estado Democrático de Direito, consagrado no art. 1º da Constituição Federal de 1988 como um dos fundamentos basilares da República Federativa do Brasil. A dignidade humana e a importância dos direitos e garantias fundamentais, princípios basilares da Carta Magna, vêm para conceder aos cidadãos uma sociedade pautada em respeito e valores éticos, devendo a primeira ser tratada como princípio crucial e indissociável de qualquer relação, seja no âmbito jurídico, político, econômico ou familiar. Uma sociedade regida por um sistema democrático leva em conta valores como a igualdade, liberdade, justiça, solidariedade, tendo como fim tutelar a dignidade da pessoa humana (PAROSKI, 2008, p. 49). A Carta de 1988 foi um marco importante para a transição democrática do Brasil. Proporcionou progresso no reconhecimento dos direitos individuais e sociais femininos, fruto do intenso trabalho de movimentos feministas,  que previamente mobilizou e sensibilizou diversos setores com a campanha "Mulher e Constituinte" levada para diversos estados do País, reunindo mulheres empunhadas com bandeira e os slogans "Constituinte Para Valer tem que ter Direitos da Mulher" e "Constituinte Para Valer tem que ter Palavra da Mulher". Foi confeccionada, então, uma vasta escritura tratando dos direitos reivindicados pela população feminina, sob título de "Carta das Mulheres Brasileiras aos Constituintes", apresentada ao Presidente da Câmara Federal e da Assembleia Constituinte, pelas 25 mulheres que formavam a "Bancada Feminina", também chamada de "Lobby do Batom", responsável por levar diversas demandas da população feminina a debate e conseguir a aprovação da maioria das propostas da Carta. O capítulo sobre os direitos individuais é inaugurado com a disposição de que todos são iguais perante a lei, sem qualquer forma de distinção, reafirmando assim o princípio da igualdade, representando importante marco para os direitos das mulheres e o movimento feminista, visando a busca pela equidade entre os desiguais. Nas palavras de Ela Wiecko Castilho (MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ, 2023), "A Constituição de 1988 resultou de sonhos e lutas por um país fraterno, solidário e justo. Passaram 35 anos. Não é tempo suficiente para desistirmos desses sonhos e deixarmos de honrar a memória dos/as que foram calados/as, torturados/as e mortos/as ou dos povos que foram exterminados. Ouçamos a voz das periferias negras, dos jovens, das mulheres." Algumas das reivindicações presentes nas emendas das parlamentares e nas emendas populares foram incluídas na Constituição de 1988, que equipara mulheres e homens em direitos e obrigações, definindo um novo patamar constitucional, inclusive no âmbito familiar. Além da igualdade ampla de direitos e deveres, merecem destaque também a proibição de diferenças salariais por razão de sexo, idade, cor ou estado civil, a previsão de licença-maternidade e licença-paternidade sem prejuízo salarial ou de emprego, a inclusão de trabalhadores e trabalhadoras rurais na Previdência Social, o planejamento familiar como uma livre decisão do casal, o dever do Estado de coibir a violência no âmbito das relações familiares, o direito das mulheres presidiárias a manter seus filhos junto de si no período de amamentação e a titularidade de domínio e concessão de propriedade para mulheres e homens independentemente do estado civil. No âmbito jurídico-normativo, a Constituição de 1988 ineditamente é marcada pela adoção da proteção dos direitos humanos, considerando a adesão do Brasil aos principais tratados internacionais de proteção dos direitos humanos. E nesse sentido, ainda que no campo factual existam diversas lacunas a serem preenchidas, a Carta das Mulheres à Constituinte foi primordial para o alcance das referidas disposições, considerando que tinha como principais objetivos  "efetivação do princípio de igualdade (...); revogação de todas as disposições legais que impliquem em classificações discriminatórias; acatar, sem reservas, as convenções e tratados internacionais de que o país é signatário, no que diz respeito à eliminação de todas as formas de discriminação (BRASIL, 1987)". Todo o panorama que traçamos até aqui evidencia os grandes avanços conquistados com a promulgação da Constituição de 1988 e nos seus 35 anos de vida. Mas não podemos deixar de questionar sobre tudo que ainda falta e, principalmente, seríamos omissas e ingênuas se acreditássemos que as conquistas atuais são suficientes e que alcançamos um patamar de igualdade. Nadar e morrer na praia nunca foi a pretensão de luta feminista, a intenção é chegar na praia e seguir caminhando. Caminhar e lutar enquanto houver algo a reivindicar.  Referências BRASIL. Conselho Nacional dos Direitos da Mulher. Carta das Mulheres, 1987. Disponível aqui. Acesso em 09 out. 2023. MINISTÉRIO PÚBLICO DO PARANÁ. Nos 35 anos da Constituição, MPPR apresenta manifestações de mulheres da instituição e juristas sobre conquistas da Carta de 88, 2023. Disponível aqui. Acesso 08 out. 2023. PAROSKI, Mauro Vasni. Direitos fundamentais e acesso à Justiça na Constituição. São Paulo: LTr, 2008. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Faces da cidadania: os 35 anos da Constituição e o papel do STJ na concretização de direitos. Disponível aqui, 2023. Acesso em 08 out. 2023. SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL. Tese da legítima defesa da honra é inconstitucional, 2023a. Disponível aqui. Acesso em 08 out. 2023. TRIBUNAL SUPERIOR ELEITORAL. Conquista do voto feminino completa 91 anos nesta sexta-feira (24), 2023. Disponível aqui. Acesso em 08 out 2023. __________ 1 Disponível aqui. Acesso: 08 out. 2023. 2 Disponível aqui. Acesso: 08 out. 2023.
quarta-feira, 27 de setembro de 2023

Mais desembargadoras nos tribunais*

Na penúltima sessão plenária da ministra Rosa Weber no Conselho Nacional de Justiça, realizada na terça-feira, 19, iniciou-se o debate do Ato Normativo n. 0005605-48.2023.2.00.0000, de relatoria da conselheira Salise Sanchotene, que propõe a implementação de ação afirmativa para o alcance da proporcionalidade de gênero nos Tribunais. A fim de promover equidade no acesso à segunda instância, o ato normativo trata de alterações no texto da resolução CNJ n. 106, que, desde o ano de 2010, regulamenta os critérios objetivos para a aferição do merecimento de magistrados e magistradas. Para operacionalizar a ação afirmativa, a relatora sugere a elaboração de duas listas de antiguidade paralelas, uma mista, composta por juízes e juízas, e outra lista exclusiva de juízas, com aplicação alternada da lista mista e da lista exclusiva a cada abertura de vaga no segundo grau destinada à magistratura de carreira. E, como inerente a qualquer ação afirmativa, tal dinâmica deve ser aplicada em caráter temporário, até que a proporcionalidade de gênero seja verificada em cada tribunal, individualmente considerado. Segundo o voto proferido, os poucos tribunais que já contam com proporcionalidade de gênero continuariam aplicando a regra da lista mista, composta por homens e mulheres, como sempre foi feito. A regra incidiria, apenas, às Cortes que, após a apuração do gênero de todos os desembargadores e desembargadoras, ostentassem percentual dissonante do índice de 40 a 60% por gênero. O critério proposto considera os números apurados. De acordo com os dados divulgados pelo CNJ, 38% dos membros do Poder Judiciário são mulheres, porém, no 2º grau, elas correspondem a apenas 25%, e, nos Tribunais Superiores, 18% (CNJ, 2023). Alguns tribunais, mesmo com quantitativo expressivo de juízas, não refletem a presença de desembargadoras na segunda instância. E é exatamente essa barreira, comprovada por meio de dados, que se pretende transpor. A resolução do CNJ  255/2018, que instituiu a Política Nacional de Incentivo à Participação Feminina no Poder Judiciário, completou cinco anos recentemente, transcorridos com amplos estudos e debates, além de aperfeiçoamentos pontuais em normas que tangenciam o tema. Como exemplos, podem ser citados: o diagnóstico da participação feminina no Poder Judiciário (CNJ, 2019); a obrigatoriedade de flexão de gênero para nomear profissão ou demais designações na comunicação social e institucional (resolução 376/2021); o repositório de mulheres juristas (resolução CNJ 418/2021); as condições especiais de trabalho para magistradas e servidoras gestantes e lactantes (Resolução 481/2022); a paridade de gênero em bancas de concurso para magistratura (resolução 496/2023); e os importantíssimos seminários, realizados nos anos de 2022 e 2023, para debater, cientificamente, o aperfeiçoamento da resolução 255/2018. Durante a realização do II encontro de Mulheres na Justiça, em 30 de agosto do corrente ano, a ministra Rosa Weber pontuou a necessidade de a equidade ser debatida, especialmente as formas de superação de estruturas que rechaçam ou dificultam a presença de mulheres nos ambientes decisórios. Na mesma linha, a ministra Cármen Lúcia - que assina a resolução 255/2018 -, reforçou a necessidade de atualização da norma para que ação afirmativa avance ao patamar de ação transformativa.  A necessidade de mais juízas, mais desembargadoras, mais ministras, mais conselheiras do CNJ, e mais mulheres nos espaços de poder em geral já foi devidamente prevista na resolução 255, no ano de 2018. É chegada a hora de a norma avançar com mecanismos concretos para efetivamente transformar a realidade do Poder Judiciário, de modo a afastar os tímidos percentuais identificados na segunda instância, por meio da ascensão de mais juízas aos tribunais.  O julgamento, que retoma hoje, é de inegável caráter histórico. Independentemente do resultado, as luzes lançadas sobre o tema não podem ser apagadas. __________ *Artigo escrito para publicação antes da finalização do julgamento. Na manhã de 26/9/2023, o CNJ concluiu definitivamente a votação do Ato Normativo. Após apresentação de voto-vista pelo Conselheiro Richard Pae Kim, a relatora aderiu, em parte, às propostas apresentadas, no que foi acompanhada pelos demais Conselheiros presentes. Proclamou-se o resultado do julgamento com aplicação da regra da proporcionalidade de gênero no acesso à segunda instância apenas para o critério merecimento, excluída a antiguidade.
"Se acontecer uma prisão, ou uma condenação, mesmo sem prisão, para mim, seria a falência de qualquer bom senso e da Justiça" diz, em um tom de arrogância e petulância inerentes àqueles que têm a certeza da impunidade, o homem denunciado por crimes contra a dignidade sexual, na modalidade continuada, contra três vítimas.  Interessante a narrativa do acusado que diversas vezes afirma ser o responsável pela "judicialização" do caso, enquanto as supostas vítimas queriam, apenas, "vingança", porque ora aponta para o Poder Judiciário como o locus adequado para apurar todos os fatos, os argumentos e as condutas do caso com isenção e imparcialidade, ora afirma, categoricamente, que qualquer coisa que não seja sua total inocência seria uma afronta ao bom senso e à Justiça.  Aliás, durante a entrevista, o humorista comenta, com tom de indignação, o fato de que recentemente foi instaurado um inquérito policial para apurar a prática de violência psicológica e perseguição contra as mesmas mulheres, em razão da campanha difamatória contra elas que ele promoveu em tom jocoso em seu canal no Youtube. Ele afirma que a investigação tem o claro objetivo de silenciar sua defesa. Para Marcius, mais uma vez, só é legítima a ação e a ferramenta, nesse caso, a mídia, se manejada a seu favor.  Bom, é preciso que o acusado siga um caminho claro e coerente acerca da sua compreensão do papel do Poder Judiciário, que, por certo, não pode desempenhar o que está em seu imaginário: o de seu representante legal e protetor.  Voltemos aos fatos que ensejaram o processo. Marcius Melhem, ator e humorista bastante conhecido na televisão brasileira, no dia 4 de setembro de 2023, foi denunciado pelo crime de assédio sexual, contra três vítimas. A denúncia foi analisada e recebida pelo juízo responsável.  Antes da denúncia formal, muitas headlines e notícias sobre o assunto foram veiculadas por meios de comunicação diversos. Poucos dias após a formalização, em denúncia, do caso, o homem falou publicamente sobre o assunto, em entrevista a um jornal de grande circulação, na qual fez uma série de afirmações distorcidas e enviesadas, começando por essa que destacamos no início do texto.  Não temos a intenção de esgotar o assunto e, menos ainda, de emitir parecer sobre a possível condenação ou absolvição do acusado. Afinal, estamos apenas no início do processo judicial. O que nos motiva a essa escrita é a forma como ele se comporta, convicto de que está certo, mesmo quando os indícios apontam na direção oposta, desconsiderando, inclusive, que é exatamente a presença de indicativos, no mínimo, de razoável credibilidade sobre a prática dos crimes, que o conduziram à condição de réu.  Em um determinado momento da entrevista, Marcius afirma sem a mais remota sombra de constrangimento: "[...] a justiça dispensa cinco denúncias e fica com três", dando a impressão, evidentemente equivocada, que entre as oito acusações de violência sexual, o Judiciário teria selecionado arbitrariamente três delas para seguir adiante, como se tivesse havido uma espécie de sorteio ou algo aleatório semelhante.  Logicamente, a informação chama a atenção de qualquer espectador desavisado ou leigo, que poderia questionar o motivo de tal escolha. No entanto, curiosamente, ou melhor, deliberadamente, o ator deixou de mencionar que os outros cinco casos foram arquivados em decorrência da prescrição, ou seja, o transcurso do tempo foi o motivo das denúncias não comporem o processo e não um juízo de mérito que as tenha invalidado.  Em outro momento da entrevista ele afirma ter provado, no caso da atriz Dani Calabresa, que não houve crime e que a mulher teria mentido. De fato, o entendimento do Judiciário foi de que o crime não aconteceu, mas não porque os fatos narrados não ocorreram, mas sim porque na época em que aconteceram, em 2017, o crime de importunação sexual ainda não havia sido tipificado. Mais uma fala enviesada, pouco clara e que induz, parte das pessoas, à uma narrativa incompleta da situação e descredibiliza a suposta vítima, uma vez que passa a falsa impressão de que o fato não ocorreu, ou seja, ela mentiu, o que é completamente diferente de não haver tipificação legal daquela conduta à época de sua prática.  Mantendo toda a incoerência que vem demonstrando desde o início, ao final de sua entrevista, Marcius Melhem diz que a opinião pública já acordou e que se ainda assim "arrumarem" um forma de condená-lo, "lamenta pela Justiça".  Ainda não sabemos qual será a perspectiva adotada pela banca contratada para a defesa do ator, mas a julgar pelos comentários proferidos por ele, tudo nos leva a crer que a adoção de estereótipos sexistas e do viés de responsabilização da mulher pelas violências sofridas serão o fio condutor das teses defensivas. Desejamos e esperamos estarmos erradas.  Lamentável mesmo é, em 2023, assistir um homem declarar, publicamente, enquanto ostenta a condição de réu, que justiça de verdade é aquela que lhe convêm.
No dia 29 de agosto é celebrado o dia da Visibilidade Lésbica, em decorrência do 1º Seminário Nacional de Lésbicas, realizado em 29 de agosto de 1996, pelo Coletivo de Lésbicas do Rio de Janeiro. Desde então, essa data representa um momento para refletir sobre a trajetória dessas mulheres e destacar a importância de reconhecer e respeitar sua orientação sexual, tendo em vista o cenário social e político do Brasil, em que a luta por direitos e visibilidade tem sido uma jornada marcada por desafios, avanços e conquistas significativas. A história das mulheres lésbicas no Brasil é permeada pelo silenciamento e pela invisibilidade, relegando suas vozes aos bastidores e marginalizando suas experiências e identidades. Em uma sociedade patriarcal e heteronormativa, a lesbianeidade é tratada como tabu, perpetuando estereótipos prejudiciais, dificultando o acesso de mulheres lésbicas a direitos básicos e as inserindo em uma realidade de violência, psicológica, política, material, moral e sexual. Como exemplo, há de se referenciar o Levante ao Ferro's Bar, marco histórico da primeira manifestação lésbica brasileira. O referido bar foi um ponto de encontro de mulheres lésbicas entre 1960 e 1990, e foi escolhido, em 1983, pelo Grupo Ação Lésbica Feminista (GALF) para ser palco da divulgação e venda do panfleto Chana com Chana. No entanto, a venda foi arbitrariamente proibida pelo dono do bar, ainda que se vendessem até mesmo drogas ilícitas no estabelecimento sem problemas, demonstrando o claro viés discriminatório. A partir disso, diante de expulsões violentas, militantes ocuparam o local e leram o manifesto contra a repressão e pelos direitos das mulheres lésbicas. E, como resultado, o proprietário realizou um pedido de desculpas e liberou a venda dos panfletos, representando uma vitória para o movimento. Assim, vê-se que a luta lésbica não permeia apenas o "direito de amar", mas também e, sobretudo, o direito de existir enquanto mulher homossexual, expressando livremente a sua identidade. Nesse sentido, a Constituição Federal de 1988 foi um marco fundamental ao prever, em seu art. 3º, inciso IV, que um dos objetivos fundamentais da República é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, e ainda, ao garantir o direito à igualdade, à liberdade e autonomia privada, à intimidade e à vida privada. Posteriormente, em 2011, e ainda de suma importância, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união estável entre pessoas do mesmo sexo, que permitiu que casais homossexuais tivessem seus relacionamentos oficialmente reconhecidos e protegidos, trazendo uma nova camada de legitimidade e visibilidade para as relações. No entanto, há de se considerar que, diferentemente de homens homossexuais, mulheres lésbicas são sujeitas, para além da homofobia, a todo tipo de machismo, sexismo e misoginia. Portanto, entende-se que mulheres lésbicas sofrem, em particular, de lesbofobia, termo que engloba os atravessamentos de orientação sexual e gênero. As mulheres lésbicas enfrentam desafios específicos, como o apagamento da sexualidade, fetichização ou objetificação do relacionamento entre mulheres, a negligência na área da saúde, tanto psicologicamente, quanto sobre pautas sexuais, o que resulta em lacunas no atendimento médico, agressões físicas, psicológicas e até mesmo sexuais, por meio do estupro corretivo, termo que se refere à violência sexual que se propõe a "consertar e a corrigir" a sexualidade da mulher. Além disso, a heterossexualidade compulsória empurra mulheres lésbicas a não se posicionarem nos ambientes acadêmicos, profissionais ou familiares, por medo do preconceito, desdém e discriminação. Mas então, qual o papel do Dia da Visibilidade Lésbica? Bem, a visibilidade lésbica se mostra como uma ferramenta poderosa, colocando as mulheres lésbicas em pauta e destaque, visando a desconstrução de estereótipos e a promoção de uma sociedade mais inclusiva, por meio da mídia, por exemplo, uma vez que esta influencia as percepções públicas, ao inserir casais lésbicos saudáveis em filmes e programas de TV, ajudando a normalizar suas experiências e relacionamentos, contribuindo para a aceitação e compreensão coletiva. Igualmente, a educação desempenha um papel vital na transformação da sociedade e na promoção da igualdade para as mulheres lésbicas. A promoção de conscientização sobre diversidade é capaz de criar ambientes seguros e acolhedores para mulheres lésbicas, sendo fundamental para garantir que elas possam desenvolver todo o seu potencial. Por fim, o Dia da Visibilidade Lésbica se mostra como uma ocasião para celebrar a resiliência das mulheres lésbicas no Brasil, reconhecer suas conquistas e conscientizar sobre os desafios contínuos que enfrentam, sendo um lembrete poderoso da potência do movimento lésbico, demonstrando que a mudança social é possível. Assim, considerando todos os obstáculos e desafios que permeiam a vida das mulheres lésbicas, comemorar e ressoar a importância desta data é imprescindível para a busca da igualdade sexual.
- Alexa (assistente pessoal virtual, criada pela Amazon) qual a temperatura de hoje? - SIRI (assistente da apple) ligue para o escritório - Bia (atendente virtual Bradesco) desbloqueie meu cartão de crédito - Magalu (atendente virtual do Magazine Luiza) me diga quais são as promoções desta semana A nomenclatura feminina atribuída aos assistentes virtuais não é novidade. Desde a introdução da Siri em 2011, essas vozes femininas resolvem questões do dia a dia, reforçando uma tonalidade delicada e submissa. Com o tempo, essas vozes se tornaram personificações do papel histórico atribuído às mulheres, agora, na forma de assistentes virtuais. À medida que a IA avançou, suas funções se expandiram para além da assistência, abrangendo áreas como criação de textos, projetos e automação. Nesses contextos, nomes masculinos ou não humanos, como Jasper, Watson (IBM) e ChatGPT, entram em cena. A questão do viés de gênero na inteligência artificial tem sido debatida no mundo inteiro e engloba uma série de variáveis. A UNESCO publicou, em 2020, um relatório sobre inteligência artificial e igualdade de gênero, em que aponta os perigos dessas ferramentas tecnológicas aprofundarem as desigualdades entre homens e mulheres nos mais diferentes campos da vida em sociedade. No Brasil, a discussão sobre tecnologias disruptivas e IA tem ganhado espaço nos debates governamentais. Atualmente, tramita no Senado Federal o PL  2338/2023, que tem o objetivo de regularizar o uso da Inteligência Artificial - IA no País e responder a preocupação crescente sobre como devemos lidar com essa forma de tecnologia. Apesar de outros projetos de lei existirem, o PL em voga foi elaborado por uma Comissão de Juristas a partir de três outros projetos: o projeto n°5.051/2019, de autoria do Senador VERA e Styvenson Valentim (Podemos-RN), o projeto n°872/2021, apresentado pelo Senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB) e, especialmente, o PL 21/2020, de autoria do Deputado Eduardo Bismarck (PDT-CE), que foi aprovado em 2021 na Câmara dos Deputados. Em maio de  2023, o Presidente do Senado Federal, Senador Rodrigo Pacheco, apresentou oficialmente o projeto e em sua justificativa apontou que o projeto tem um duplo objetivo: proteger os direitos das pessoas impactadas pela Inteligência Artificial e estabelecer uma estrutura de governança para garantir a interpretação clara das regras, proporcionando segurança legal para a inovação tecnológica. Logo no 2° artigo, o projeto enumera os fundamentos do desenvolvimento e da utilização da IA no Brasil e determina a centralidade da pessoa humana e lista, entre outros, a obrigatoriedade do respeito aos direitos humanos, à democracia, à igualdade e à não discriminação. Em todo o texto do Projeto de Lei, a palavra gênero aparece duas vezes: a primeira no art.4°, IV, no qual se define discriminação, e no art.12, I, que define que as pessoas afetadas por decisões, previsões ou recomendações oriundas da utilização de inteligência artificial têm o direito a um tratamento justo e isonômico. Apesar de positivar a ilegalidade da discriminação em toda e qualquer frente, inclusive a discriminação de gênero, o projeto de lei brasileiro não dedica um artigo a exigir compromissos e políticas tanto da iniciativa privada quanto dos órgãos governamentais para que as ferramentas de IA não sejam utilizadas para aprofundar a tão desigual relação de oportunidades entre homens e mulheres, muito menos a exigência de que as ferramentas de IA combatam a desigualdade existente. Diferentemente do silêncio do projeto brasileiro, a abordagem da Comissão Europeia enfatiza a igualdade de gênero na regulação da IA e a proposta de regulação do tema (Artificial Intelligence Act) reafirma a obrigatoriedade de equidade entre homens e mulheres, consagrada na Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia. A Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), por sua vez, em suas recomendações aponta que os envolvidos devem agir proativamente na administração responsável de IA confiável "em busca de resultados benéficos para as pessoas e para o planeta" e essa atitude deve incluir a diminuição de desigualdades econômicas, sociais e de gênero, bem como a preservação de ecossistemas naturais. Em ambos os exemplos, a legislação reconhece a desigualdade de gênero como um perigo na utilização das ferramentas de AI e conclama os Estados a impedir que isso aconteça. O Brasil está mais avançado do que a maioria dos países democráticos na regulação das ferramentas de inteligência artificial, contudo, até o momento, as propostas em voga não abordam a questão estruturante do viés de gênero. A produção legislativa, desenvolvida majoritariamente por homens, continua insensível ao papel fundamental das normativas para a construção de uma cultura social e economicamente igualitária. A aprovação de uma regulação da Inteligência Artificial comprometida com os direitos humanos e com a segurança das pessoas é imprescindível para que o Brasil se destaque na iminente revolução tecnológica, porém para que essa regulação cumpra o seu objetivo é essencial que o Estado brasileiro se comprometa, categoricamente, com a defesa de sistemas inteligentes igualitários, que sejam constantemente reavaliados e estruturalmente desenhados para a igualdade de oportunidades para homens e mulheres.
Há 31 anos, ocorreu o 1º encontro de Mulheres Negras Latino-Americanas e Caribenhas na República Dominicana, um evento reconhecido pela ONU em 1992, que se tornou fundamental para a comemoração e identificação das mulheres negras e quilombolas, impulsionando a visibilidade delas no Brasil e no mundo. O dia 25 de julho, conhecido como o Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, representa um marco importante para essas mulheres, marcando o início de encontros para debater, organizar e qualificar a luta contra as opressões racistas e machistas enfrentadas por elas.   No Brasil, essa data foi oficialmente reconhecida pela lei 12.987, de junho de 2014, durante o governo da então Presidenta Dilma Rousseff, instituindo o Dia Nacional de Tereza de Benguela e das Mulheres Negras. Tereza de Benguela, líder negra quilombola do século XVIII, foi à frente do quilombo Quariterê, no Mato Grosso, e teve papel ativo na economia regional, com destaque para a plantação e comércio de tecidos e armas, junto a pessoas negras e indígenas. Esse reconhecimento da luta de Tereza de Benguela reflete a realidade das diversas mulheres negras e periféricas no Brasil, sendo um ponto de partida para sua organização e visibilidade. A comemoração do dia 25 de julho tem impulsionado diversos movimentos, como a Marcha das Margaridas e a Marcha das Mulheres Negras, e consolidou-se como o "Julho das Pretas", avançando na organização dessas mulheres. Vale lembrar que, desde a década de 1980, as mulheres negras brasileiras já debatiam e questionavam suas opressões de forma organizada. Contudo, embora a lei tenha instituído o dia em questão, ela se limita a formalizar a data, sem mencionar a criação de políticas públicas para reduzir as desigualdades entre mulheres negras e brancas ou propor medidas que enfrentem as opressões sofridas por elas. Considerando que a lei foi estabelecida em 2014, e que o governo federal já tinha conhecimento dos alarmantes dados de violência letal contra as mulheres negras, é inegável que havia espaço para medidas mais efetivas para garantir a segurança e a redução das violações sofridas por esse grupo. Enquanto mais um ano desse marco se aproxima, diversos movimentos sociais, liderados por mulheres negras, organizam-se novamente para pautar as questões sociais e raciais que permeiam a vida desse grupo. A importância dos recortes raciais nas pesquisas ao longo da última década é evidente, servindo de base para a análise de medidas que promovam melhores condições de vida, saúde e bem-estar das mulheres negras, como as cotas raciais para mulheres em setores como o da política. Embora não seja uma data de celebração, é inquestionável a relevância de ter nacionalmente instituído um dia especialmente voltado para o reconhecimento da contribuição das mulheres negras e quilombolas no passado e no presente do Brasil. É necessário continuar a luta por uma sociedade mais igualitária e justa, que valorize e garanta os direitos dessas mulheres que, historicamente, enfrentaram múltiplas opressões. __________ *Thailane da Paixão Pereira faz parte do Grupo de Pesquisa e foi orientada pelas Professoras Monica Sapucaia Machado e Denise de Almeida Andrade na produção desse artigo.  
quarta-feira, 28 de junho de 2023

Não é empatia, é escárnio

Interessante observar como assuntos íntimos e particulares ganham cada vez mais a atenção das pessoas, fazendo com que haja a presença "da vida do outro" na "minha vida", em especial quando se trata das "ditas celebridades".  O que mais espanta é que a desenvoltura utilizada para acompanhar a vida alheia não é a mesma utilizada para lidar com os problemas da vida cotidiana, demonstrando que a pulverização da informação, que se justifica como um instrumento de autonomia dos sujeitos porque se apropriam da realidade, não garante a temperança e o bom senso na tomada de decisão.  Os casos são múltiplos e as variáveis ainda mais numerosas. Há décadas vivemos a comentar break news. Lembramos de uma semana, em 2010, quando pulverizaram nos meios de comunicação as denúncias do desaparecimento de Eliza Samudio: se configurava os primeiros indícios do assassinato (naquela época ainda havia dúvidas) da jovem que teria engravidado de um jogador de futebol para transformar a criança em objeto de negociação. O feminicídio de uma jovem mulher é muito gravoso jurídica, moral e socialmente e aponta para a leviandade presente nas relações e para a vulnerabilidade das mulheres em relações íntimas. Só a possibilidade de se ceifar a vida de um ser humano para evitar o pagamento de uma pensão alimentícia a um filho é demasiadamente tosca para que seja banalizada.  Mais de uma década depois, na semana passada, lemos e ouvimos dois jogadores de futebol protagonizarem falas e comportamentos execráveis (nenhuma novidade até aqui, mas gera espanto, ainda!). Um, com histórico de excessos e gostos extravagantes trai a namorada grávida, às vésperas da festa onde se saberia o sexo do bebê (agora há nome para isso: chá revelação) e a expõe publicamente pedindo desculpas em uma de suas redes sociais: "Vi o quanto você foi exposta, o quanto você sofreu com tudo isso e o quanto quer estar ao meu lado". Não há: "eu a expus sem pudor e irresponsavelmente", há o deslocamento da responsabilidade para o abstrato, para uma espécie de entidade amorfa e infantilizada, típica daquele que muitos teimam em chamar de "menino Neymar". E completa: "Se um assunto privado se tornou público, o pedido de perdão tem que ser público".  O outro, que já superou a barreira dos 40 anos, é protagonista de entrevista veiculada pelo jornal espanhol La Vanguardia, na qual ele afirma ser inocente e diz perdoar a suposta vítima de estupro: "Eu a perdoo. Ainda não sei porque ela (a vítima) fez tudo isso, mas a perdoo". O Ministério Público espanhol requereu a prisão de Daniel Alves, sob a acusação de ter estuprado uma mulher de 23 anos, em uma boate em Barcelona, na noite do dia 30 de dezembro, logo após seu depoimento em 20 de janeiro. O jogador está preso desde então, uma vez que os três pedidos feitos pelos seus advogados para responder ao processo em liberdade foram negados. Peculiar a autorização que o acusado se dá para mencionar a suposta vítima como mentirosa, uma vez que, como dissemos, ele está preso, sem direito à fiança e com três negativas sucessivas, aos seus pedidos para responder ao processo em liberdade. Além disso, não se constrange ao publicizar, mais uma vez, sua traição, porque ele não nega (não mais) a relação sexual, "apenas" que foi forçada. Justifica, ainda, que a esposa merece um pedido de desculpas público, uma vez que o caso é público e que ela foi exposta publicamente.  A frase de ambos os jogadores é quase idêntica ao dizerem que vão a público se desculpar pois a situação se tornou pública, como se a ação deles tivesse ocorrido no privado, sob sigilo e cautela, alheias à deslealdade, à violência e à traição. É claro que a repulsa ao crime de estupro é muito maior (sem minimizar os danos, inclusive psíquicos, que uma traição pode causar) do que uma traição, não estamos numa corrida para saber o que é mais danoso às pessoas.  O que nos instiga a falar sobre esses episódios é a sensação de que reforçamos, a cada oportunidade, uma espécie de "banalização do mal", de diminuição dos que nos torna humanos, que a razão e o livre arbítrio.  Experimentamos a conivência do poder estatal, da opinião pública e dos meios de comunicação com os despautérios cometidos por figuras públicas que têm sempre espaço de destaque nos horários nobres das emissoras e presença na imprensa escrita.  Não fosse assim, a declaração concedida pelo goleiro Bruno, há quase 15 anos, condenado pelo homicídio (hoje feminicídio) de Eliza Samúdio sobre a normalidade de se praticar violência contra mulheres, ao defender um colega de clube que teria agredido fisicamente a noiva, não teria passado incólume aos olhos das autoridades, dos seus patrocinadores e do clube em que trabalhava, tampouco teria lhe rendido novos convites de contratação tão logo saiu do cárcere e talvez, apenas talvez, sem tanta chancela e leniência para o absurdo, o destino de Eliza tivesse sido outro.  A legitimação do vil é tão corrosiva e tóxica quanto os crimes, os abusos e as traições praticados, porque quando distorcemos a realidade, embotamos "a visão" de jovens meninas e meninos, que cada vez mais se lançam de forma irresponsável em relações superficiais e oportunistas. Ainda nos vemos obrigadas a informar e afirmar a humanidade das mulheres, precisando falar o óbvio: mulheres e homens gozam do mesmo direito fundamental a viver uma vida livre de violência física, psíquica e ética.
Na primeira ocasião em que alguém chutou uma bexiga de porco nas terras inglesas, poucos poderiam prever a quantidade de polêmicas que viriam a surgir ao longo de 160 anos de partidas1. O futebol, enquanto conceito, carrega consigo a essência do espaço público e é visto como uma prática social que pertence ao universo masculino. Nesse sentido, a construção social de gênero relegou o papel feminino ao âmbito privado, associando-o ao cuidado, à responsabilidade familiar e ao zelo como aspecto central da identidade da mulher2. À medida em que nos aproximamos do início da Copa do Mundo de Futebol Feminino, promovida pela FIFA (Federação Internacional de Futebol), em 20 de julho de 2023, é importante retomar as reflexões e discussões sobre a incessante busca pela equidade de gênero no esporte, especialmente no esporte mais popular do nosso país: o futebol. Ao longo da história, identificamos três dimensões fundamentais na luta pela igualdade no esporte bretão. A primeira se refere à batalha pelo direito das mulheres em praticar o futebol, considerando a proibição que vigorou até a segunda metade do século XX. A segunda dimensão manifesta-se na organização das instituições e, consequentemente, das competições, pois não basta ter o direito de praticar o esporte se não houver um ambiente propício e oportunidades adequadas para fazê-lo. A terceira dimensão diz respeito à igualdade de remuneração entre mulheres e homens. Deste modo, trazendo uma perspectiva histórica ao nosso ensaio, o futebol brasileiro tem sua organização profissional marcada pela criação das primeiras Federações (Federação Brasileira de Sports e Federação Brasileira de Football) nos anos de 1914 e 1915, e posteriormente unidas para a criação da Confederação Brasileira de Desportos (CBD), entidade privada dedicada à organização da atividade esportiva no Brasil. Os clubes de futebol, à época, dispunham apenas de times de futebol masculino. Em 1941, o decreto-lei 3.199 foi promulgado, estabelecendo o Conselho Nacional de Desportos e os Conselhos Regionais de Desportos, vinculados ao Ministério da Educação e Saúde. Esses órgãos tinham como objetivo principal orientar, fiscalizar e incentivar a prática esportiva em todo o país (BRASIL, 1941). No entanto, infelizmente, o referido Decreto, em seu artigo (art.) 54 estabelecia que as mulheres não poderiam participar de determinadas práticas desportivas por conta de sua condição. A chamada "condição" mencionada traz consigo uma conotação que reflete os papéis sociais impostos a mulheres e homens em sua própria condição de "ser" social. Isso implica na naturalização de um corpo masculino como o único capaz de ser agressivo, contestador, lutador e confrontador diante de um oponente, tanto fisicamente quanto psicologicamente. Por outro lado, o corpo feminino é visto como delicado, necessitando ser preservado ou até mesmo restringido ao espaço privado ou familiar (DAMO, 2006). Apesar de não haver uma proibição expressa da prática do futebol por parte das mulheres e, mesmo sem o apoio das organizações responsáveis pela regulamentação do esporte, a participação das mulheres no futebol teve um crescimento significativo, com visibilidade na mídia, o que gerou uma reação por parte das instituições reguladoras. Internacionalmente, o Comitê de Emergência da FIFA posicionou-se contrariamente à prática do futebol feminino (SILVA, 2015). No Brasil, a proibição expressa ocorreu vinte e quatro anos após a promulgação do Decreto-Lei 3.199 de 1941, por meio da deliberação nº 7 de 2 de outubro de 1965 do Conselho Nacional de Desportos. Essa deliberação afirmava que, embora a prática esportiva fosse permitida para as mulheres, o futebol (de qualquer modalidade), lutas, handebol, entre outros esportes, estavam excluídos. A permissão sobreveio apenas em vinte e um de dezembro de 1979, por meio Deliberação 10/79 do Conselho Nacional de Desportos, em que se revogou expressamente a Deliberação 07/65.   Quatro anos após a autorização para a prática desportiva, em 1983, sessenta e nove anos após a regulamentação da modalidade para homens, a prática profissionalizada pelas mulheres foi finalmente regulamentada pela deliberação Nº 01/1983 do Conselho Nacional de Desportos. No entanto, essa regulamentação impôs restrições expressas em comparação com a modalidade praticada pelos homens, evidenciando uma concepção de "fragilidade" atribuída às mulheres. O regulamento estabelecia que a duração da partida seria de dois tempos de trinta e cinco minutos cada (dez minutos a menos do que a modalidade masculina por tempo), permitindo um maior número de substituições. Além disso, havia a proibição do uso de chuteiras com "travas de metal, travas pontiagudas ou qualquer outro tipo que pudesse representar perigo para as outras jogadoras" (BRASIL, 1983). Essas restrições evidenciam uma visão limitante e estereotipada da capacidade e resistência das mulheres no esporte. É importante ressaltar novamente que tais processos regulatórios não promoviam, e talvez nem tentassem, a igualdade de gênero, uma vez que colocavam as mulheres em condições limitantes para a prática do futebol, sob o discurso de "proteção". Essa produção de violência simbólica (BOURDIEU, 2012) reflete a categorização dos corpos masculinos e femininos dentro do contexto do futebol, reforçando preconceitos e estabelecendo uma hierarquia de gênero como norma (VIEIRA et al., 2012). Ao compreender o contexto histórico das permissões para a prática do futebol feminino no Brasil, é possível observar que não bastava apenas autorizar a prática do esporte; era necessário também a organização de competições pelas entidades competentes. Os primeiros campeonatos estaduais de futebol feminino foram realizados em 1983, após a regulamentação do esporte pelo Conselho Nacional de Desportos. No entanto, em poucos estados houve continuidade das competições nos anos seguintes, destacando-se os torneios realizados no Rio de Janeiro, Goiás e Rio Grande do Sul, que mantiveram a regularidade anual desde a primeira edição. No âmbito internacional, a primeira competição profissional de futebol feminino organizada pela FIFA ocorreu em 1988, denominada Women's Invitational Tournament. Tratou-se de um torneio mundial experimental que contou com a participação de seleções de doze países diferentes (Austrália, Brasil, Canadá, China, Costa do Marfim, Estados Unidos, Holanda, Japão, Suécia, Tchecoslováquia e Tailândia). Na ocasião, conforme relata reportagem matéria do portal Globo Esporte, ficou evidente o descaso no tratamento das jogadoras, que jogaram sem qualquer uniforme idealizado para elas, apenas com 'roupas masculinas reaproveitadas'. (GLOBO, 2019). Em 1991, ocorreu a primeira Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino, sessenta e um anos após a primeira Copa do Mundo FIFA de Futebol Masculino, com a participação de doze seleções. Nos jogos olímpicos, a primeira aparição da competição de futebol feminino se deu em 1996, nas Olimpíadas de Atlanta, sendo continuada nas edições seguintes dos jogos. No que tange à organização da modalidade praticada pelas mulheres a nível nacional, o primeiro campeonato brasileiro de futebol feminino somente foi realizado no ano de 2013, o que demonstra, novamente, grande disparidade em relação à prática pelos homens, que tiveram a primeira competição nacional organizada no ano de 1950. Essa disparidade também continua em uma terceira dimensão de busca por igualdade, representada pelo abismo existente entre os valores destinados a cada uma das modalidades desportivas, demonstrando uma desvalorização decorrente do machismo estrutural enfrentado pelas mulheres. O presidente da FIFA, Gianni Infantino, anunciou durante o 73º Congresso da FIFA em 16 de março de 2023 que o valor das premiações na Copa do Mundo de Futebol Feminino de 2023 terá um aumento de 300% em relação à edição anterior, totalizando US$ 150.000.000,00 (cento e cinquenta milhões de dólares). Embora haja uma evolução em relação à edição anterior, quando comparada à competição masculina equivalente, o valor destinado às mulheres representa apenas cerca de 1/3 do valor pago em premiações na Copa do Mundo de Futebol Masculino de 2022, que alcançou a quantia de US$ 440.000.000,00 (quatrocentos e quarenta milhões de dólares). Além disso, durante seu discurso, o presidente da FIFA expressou seu desejo de embarcar em uma "jornada histórica pelo futebol feminino e pela igualdade" que "nos levará a um caminho em direção à igualdade salarial" (MNGQOSINI, 2023), apontando a preocupação da entidade máxima do futebol mundial na busca da equiparação salarial. É possível observar que ainda no presente século a busca constante por equidade é uma realidade plasmada pelas lutas e conquistas anteriormente realizadas. Esse processo histórico de se tornar mulher é um devir constante. Isso porque Carla Rodrigues (2019), interpretando Judith Butler e Simone de Beauvoir, entende que a tradução da célebre frase 'não se nasce mulher, se torna mulher' foi mal realizada. A ideia do semântico do francês para o português é advinda do verbo 'devir'. Deste modo, a frase seria desta maneira: 'não se nasce mulher, devém-se mulher'. O devir é sempre um devir histórico, uma possibilidade de. De lutas, de conquistas, de confrontos e embates. É uma constante evolução e um constante debate sobre o constructo da mulher no contexto social. No âmbito do desporto, e principalmente o futebol, não seria diferente. O futebol desde a sua instituição, era visto por algumas jogadoras como uma forma de luta, de resistência (SILVIA, 2015). Hoje ainda é visto deste modo, principalmente quando se observa os valores pagos às profissionais femininas em comparação aos profissionais masculinos. Por que é aceitável que se pague para uma profissional, que exerce a mesma atividade, em uma mesma posição, um valor infinitamente menor do que se paga para os homens3? Por que é aceitável os silenciamentos das mulheres em suas atividades profissionais? São perguntas reais que são cabíveis de se fazer em relação às profissionais do futebol, mas que cabem em outras realidades vividas. Pensar em um contexto democrático é realizar a equidade de gênero. Pensar em um país desenvolvido é pensar na equidade de gênero. O espaço destinado às mulheres para a prática do futebol é um local de disputas políticas em que os corpos femininos que nele jogam são atravessados por um conjunto histórico de opressões, silenciamentos, restringindo as mulheres em campo (e fora dele) (KNIJNIK; BARRETO JANUÁRIO, 2022). Essa característica da biopolítica (FOUCAULT, 2014) é intensificada quando se demonstra que tais corpos possuem menor valor seja de mercado, seja de valorização, seja de elevação de direitos. É possível pensar em um caminho que nos possibilite novas estratégias e novos contextos no âmbito da equidade de gênero no futebol. O primeiro dele perpassa por uma mudança estrutural na sociedade e nos conceitos e condições impostas sobre os papeis de gênero. Entendendo que esse caminho, que perpassa pela educação, é um pouco mais difícil e longo, até chegarmos nesse composto social, Domo (2018) nos traz algumas formas, não menos difíceis, que podem auxiliar na busca dessa igualdade, quais sejam: o fortalecimento e investimento do futebol feminino de base; políticas públicas para a prática do esporte; incentivos financeiros aos times e às atletas; melhoria dos patrocínios ao futebol feminino; inserção da mulher nos cargos de gestão e técnica dentro dos clubes, federações, etc., principalmente na tomada de decisão e, por fim, maior divulgação midiática (KNIJNIK; BARRETO JANUÁRIO, 2022). A história das mulheres no futebol é marcada por lutas, marcada por uma disparidade de investimento e reconhecimento. No entanto, mesmo com os avanços conquistados, ainda há muito a ser feito. Isso requer a desconstrução de estereótipos de gênero arraigados na sociedade, a promoção de políticas inclusivas e a valorização do talento e do esforço das mulheres no esporte. Somente através de uma atuação coletiva se torna possível criar um ambiente verdadeiramente equitativo e proporcionar às jogadoras as mesmas oportunidades e reconhecimento desfrutados pelos jogadores masculinos. Cada vitória, cada drible realizado, cada gol marcado demonstram que a luta feminista no campo (e fora dele) é necessária para o nosso crescimento enquanto sociedade. É indiscutível que, desde aquele primeiro chute em uma bola feita com bexiga de porco nas terras inglesas, uma infinidade de disparidades tem permeado o futebol. No entanto, é justamente diante dessas adversidades que a capacidade de luta feminista e de reivindicação tem se manifestado, tanto dentro quanto fora do campo, numa tentativa hercúlea de driblar o patriarcado. Essa resistência e determinação são o verdadeiro gol de placa. É, portanto, um constante 'devir' histórico. Referências: BARRETO JANUÁRIO, Soraia, & KNIJNIK, Jorge. (2022). Futebol das Mulheres no Brasil: Emancipação, Resistências e Equidade. UFPE Editora: Pernambuco, 2022. Disponível aqui. Acesso em 30 mai. 2023. BOURDIEU, Pierre. O poder Simbólico. Editora Bertrand Brasil: Rio de Janeiro, 6ªed., 2012. BRASIL, Conselho Nacional de   Desportos.   Normas   Básicas sobre   Desportos. Deliberações, 1965. Rio de Janeiro, 1983. BRASIL, Conselho Nacional de Desportos. Normas Básicas sobre Desportos. Deliberações, 1979. Rio de Janeiro, 1983. BRASIL, Conselho Nacional de Desportos. Normas Básicas sobre Desportos. Deliberações, 1983. Rio de Janeiro, 1983. BRASIL, Decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941. Disponível aqui. Acesso em: 02 jun. 2023. DAMO, Arlei. Futebóis-da horizontalidade epistemológica à diversidade política. Fulia/Ufmg, v. 3, n. 3, p. 37-66, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 20 mai. 2023. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Leya: São Paulo, 7ª ed., 2014. GLOBO, 2019. Disponível aqui. Acesso em: 25 mai. 2023. Sem autor: A História do futebol feminino no Brasil. RODRIGUES, Carla. Ser e devir: Butler leitora de Beauvoir. Cadernos pagu (56), 2019:e195605. Disponível aqui. Acesso em 20 mar. 2023. MNGQOSINI, Sammy. Prêmio da Copa do Mundo Feminina aumenta em 300% e chega a R$ 792 milhões. CNN, 2023. Disponível aqui. Acesso em 20 mai. 2023. SILVA, Giovana Capucim. Narrativas sobre o futebol feminino na imprensa paulista: entre a proibição e a regulamentação (1941-1983). - São Paulo: [s.n.], 2015. VIEIRA, Talita Machado, et al. Corpo e gênero na experiência inicial de jogadoras de futebol. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, 29(2): e79309 DOI: 10.1590/1806-9584-2021v29n279309. __________ 1 Os primórdios do futebol iniciaram-se na China no século 2 e 3 e, posteriormente, apenas na Inglaterra que se transformou no futebol moderno, com as regras que se entende na atualidade. Tais informações estão disponíveis aqui. 2 A presente autoria esclarece que a utilização dos termos "feminino" e "mulher" é compreendida como um conceito abrangente que engloba mulheres cisgêneras e transgêneras. No entanto, é importante ressaltar que, no contexto deste ensaio em particular, o foco recai sobre a mulher cisgênera, considerando-se o histórico, o aspecto cultural e o contexto social que foram delineados e analisados. Reconhecemos a necessidade de uma nova publicação que aborde especificamente a experiência das mulheres trans no esporte. 3 Em um comparativo simples, observando os proventos do maior salário do futebol feminino (Carli Lloyd) e do futebol masculino (Cristiano Ronaldo), percebe-se que existe uma diferença de 202 vezes menos que a jogadora feminina recebe do masculino. Tal informação está disponível aqui.
As mulheres estão envolvidas com os avanços científicos na mesma proporção que estão com a reprodução humana: respondem por 50% do processo, carregam, muitas vezes, a maioria do fardo e recebem apenas uma fração do reconhecimento. Nos atendo somente a alguns exemplos que ficaram registrados ao longo da história, podemos listar um número sem fim de descobertas científicas que foram lideradas por mulheres.  Partindo de Hypatia, nascida entre 350 e 370 d.c. na Alexandria (Egito), astrônoma, matemática e filósofa, considerada uma das primeiras cientistas da história da sociedade ocidental, passando por Wang Zhenyi, pesquisadora chinesa, nascida no século XVIII, que desenvolveu seus próprios argumentos sobre a gravidade (engula essa Newton!) percebemos que a ciência conta com as habilidades cognitivas das mulheres desde sempre. No século XIX, tivemos Ada Lovelace, mulher visionária, que, apesar de ter vivido apenas 43 anos, desenvolveu o primeiro sistema de computador, o que deveria lhe render, no mínimo, o posto de "mãe da computação". No mesmo século, Marie Curie foi a primeira mulher a finalizar e defender uma tese de doutorado na França e a primeira pessoa a ganhar dois prêmios Nobel, em diferentes áreas (em seus dois campos de pesquisa, Química e Física). Em Terra Brasilis, lembremos de Bertha Lutz, que, no século XX, além de ter liderado o movimento por direitos políticos das mulheres e ter lutado, na ONU, para que a igualdade de gênero estivesse na Carta das Nações Unidas, era bióloga, com destacada produção científica sobre a fauna brasileira, sendo responsável pela descoberta e catalogação de novas espécies de anfíbios.  No século XXI, Jaqueline Goes de Jesus, brasileira, biomédica, doutora em patologia humana, junto com sua equipe, identificou o sequenciamento do genoma do novo coronavírus (SARS-CoV-2), apenas 48 horas depois da confirmação do primeiro caso de Covid-19 no país.  Esses exemplos estão aqui como reforço\lembrete de que a educação científica foi abraçada pelas mulheres assim que os homens permitiram o acesso às salas de aula/aos centros de pesquisa das Universidades. Desde 1989, as mulheres são maioria nos cursos universitários no mundo, e no Brasil, desde 1991. Atualmente, 33% dos pesquisadores do mundo são mulheres, e na América Latina esse percentual chega a 46%, uma quase-paridade.  Todavia, nem tudo são flores (apesar das pesquisas sobre Flora contarem com muitas mulheres) e a despeito de um terço das pesquisadoras serem mulheres, apenas 12% são membros das academias nacionais de ciências. Em relação aos patenteamentos, os homens inscrevem 50% a mais de patentes do que as mulheres, e essa realidade pouco mudou desde 1999. Avançando para a segunda década do século XXI, os efeitos da quarta revolução industrial são aprofundados, e a tecnologia ganha formas de inteligência humana. A Inteligência Artificial (IA) deixa de ser roteiro de filme de ficção para se tornar peça-chave do processo produtivo e da vida das pessoas. Neste campo, as mulheres também estão em desvantagem. Apenas 22% de todos os profissionais da área são mulheres, e entre os CEOs das 10 maiores empresas de tecnologia do mundo, não há nenhuma mulher. Isso é uma demonstração de que o campo das STEMs, sigla em inglês usada para Ciência, Tecnologia, Engenharia e Matemática, se mantém como reduto masculino, o que aponta para o perigo de a IA ser desenvolvida sem a participação significativa das mulheres, o que compromete a igualdade de gênero de forma ainda mais dura, já que não temos sequer noção de seus desdobramentos.   No Brasil, o debate sobre a regulação da Inteligência Artificial está avançado e tem sido considerado um exemplo para o mundo. Na comissão de juristas convidados a subsidiar a elaboração do projeto de Lei, entre os 18 membros, 7 são mulheres, porcentagem de quase 40%. Além disso, a relatoria é de uma mulher: Laura Schertel, considerada uma referência em segurança de dados e tecnologia. Como apontam diversas pesquisas nacionais e internacionais, as empresas e instituições que possuem paridade e diversidade são mais inovadoras e produtivas e os governos que contam com maior igualdade de gênero produzem sociedades mais democráticas e comprometidas com os Direitos Humanos. Nesse novo tempo, de avanços científicos galopantes e disruptivos, lembremos de que não chegamos aqui sem a participação constante e decisiva das mulheres. Se não garantirmos uma virada de chave no modus operandi da produção e do reconhecimento científico teremos um fosso que, no futuro, nenhuma golden bridge resolverá.
A história da mulher sempre foi marcada por uma constante luta, baseada em um contínuo provar, resultado dos vestígios deixados pela sociedade patriarcal, em que as tarefas destinadas para homens e mulheres eram previamente conhecidas e delimitadas. Para esclarecer, por muito tempo as tarefas dos homens tinham como marca a dominação, vez que era seu papel proteger a família, garantir-lhe o alimento, sendo ele conhecido como o provedor. Por outro lado, as mulheres eram destinadas às tarefas domésticas e o cuidado da prole e do próprio marido. Obviamente que com a evolução da sociedade, as mulheres passaram a arcar com outras atividades e, de forma excepcional, passaram a ter os papéis invertidos com o dos homens, sendo possível ver ambos sendo provedores ou, até mesmo a mulher sendo a principal provedora1. Essa mudança se deu principalmente com manifestações femininas (movimentos feministas) ao longo da história, com a exaltação do princípio da igualdade e foco em medidas de antidiscriminação, que foram deixando as marcas do patriarcalismo cada vez mais enfraquecidas, demonstrando que homens e mulheres devem ter os mesmos direitos, mesmas oportunidades no mercado de trabalho e, principalmente, oportunidade de ascensão.  Ocorre que, apesar de estar muito claro todo esse contexto e todas as possibilidades que ele traz, há ainda muitos casos em que a discriminação e a desigualdade podem ser vislumbradas, demonstrando que as iniciativas para esta causa devem ir muito além. A mulher continua não sendo tratada como uma pessoa que tem igual direito a se realizar como ser humano, e isso engloba a escolha de uma carreira e outras possíveis aspirações que envolvam a via na esfera pública. Pode-se considerar que a estratégia do patriarcado é construir o mito de uma família sentimental, cujo anjo da casa seria a mulher, a principal responsável por servir e atender às necessidades dos membros da família, o que corresponde à figura da mãe. A conquista dessa igualdade, na maioria das vezes, ocorre a duras penas, visto que ainda é a realidade de muitas mulheres a chamada dupla jornada de trabalho, vez que, além de ter seu próprio trabalho remunerado, cuidam das tarefas domésticas, dos filhos e, muitas vezes, ainda possuem o encargo de cuidar de um familiar debilitado. Tudo isso, na maioria das vezes, sem poder contar com a participação do companheiro, que costuma ter certo preconceito em dividir e realizar as tarefas domésticas. Evidencia-se que a carga (em todos os sentidos) de todas essas atividades e, o quanto isso compromete o tempo das mulheres, gerando consequências quando o assunto é dedicação ao âmbito profissional. Assim, as dificuldades enfrentadas pelas mães junto ao mercado de trabalho geram diversos transtornos, principalmente em razão da ausência de leis e de políticas públicas que desobriguem as mulheres da exclusividade do cuidado. O que se verifica é que o mercado discrimina as trabalhadoras, mas as avalia como economicamente necessárias, entretanto, quando considerada a sua capacidade reprodutiva, muitos empregadores continuam a preferir a contratação masculina, sob o retrógrado argumento do decréscimo da produtividade feminina quando se tornam mães.  Como exemplo, podemos citar a pesquisa de Patrícia Bertolin, de 2017, intitulada "Mulheres na Advocacia: padrões masculinos de carreira ou teto de vidro", em que se investigou os óbices enfrentados e as estratégias utilizadas pelas mulheres advogadas, para ascenderem profissionalmente em grandes escritórios de advocacia. Dentre os resultados encontrados, Bertolin verificou que a maternidade e o home office eram compreendidos como menor disponibilidade ao escritório. Em complemento, entre 2020 e 2022, com o advento da pandemia de COVID-19, Karen Freire buscou compreender o que passou a ser um problema para a vida das mulheres advogadas, em especial para as mães de crianças, em sua pesquisa "Mulheres na advocacia: home office e trabalho de cuidado durante a pandemia de COVID-19", ocasião em que verificou que o maternar dessas mulheres, nesse período, acarretou sobrecarga e exaustão, de modo que nem mesmo a suspensão dos prazos forenses facilitou o melhor exercício de ambos os trabalhos, sendo um dos motivos principais observados o fato de não ter havido divisão igualitária das tarefas nas casas, o que manteve as advogadas como as principais responsáveis por executar ou delegar o invisível porém imprescindível trabalho de cuidado. No Brasil, a preocupação com relação à busca da igualdade de gênero também é ampla, a começar pela licença maternidade, que está assegurada constitucionalmente para empregadas gestantes pelo período de 120 dias (art. 7º, inciso XVIII da Constituição), período em que inexistem atividades laborativas, mas a empregada continua a receber os salários. No caso de a empresa ter aderido ao programa "Empresa Cidadã", nos moldes do art. 1º da Lei Federal 11.770 de 2008 (alterada pela Lei nº 13.257 de 2016), o período da licença maternidade passa a ser de 180 dias. Há, ainda, a estabilidade das gestantes, que pode ser observada na alínea b, do inciso II, do art. 10 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, em que fica disposta a vedação da dispensa imotivada da trabalhadora grávida, quando da confirmação da gravidez até 5 meses após o parto, sendo a garantia provisória também válida ainda que a gravidez ocorra no curso do prazo de seu aviso prévio, nos termos do art. 391-A, da CLT. É neste contexto que se mostra importante o direito estrangeiro, especialmente se for contar com outros entes que já passaram por essas questões anteriormente. Isso porque, a divisão sexual do trabalho é uma problemática que assola todos os países, sendo alguns já mais avançados para deliberar sobre o assunto. Dentre eles, pode-se destacar as iniciativas portuguesas sobre o assunto, com destaque ao Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho de 2021, que trata de diversos aspectos importantes, mas em que, nesse contexto destaca a importância da conciliação entre a vida profissional e familiar. E, dentre as premissas destacadas, temos a importância de criação de mecanismos mais flexíveis para facilitar essa conciliação, a promoção de uma cultura que favoreçam essa conciliação, a ideia de expandir os incentivos para a partilha entre homens e mulheres do gozo de licenças parentais e a criação de mecanismos de licença a tempo parcial, além da melhoria da regulação relativa aos cuidadores informais, dentre outros2.  Assim, o que se verifica é uma compreensão cada vez maior da realidade das mulheres e, principalmente, dos esforços necessários para garantir que exista uma maior participação masculina em tarefas que antes eram destinadas às mulheres, justamente com o objetivo de assegurar que o país alcance a igualdade de gênero. __________ 1 Segundo dados obtidos na Pesquisa Pnad Contínua de 2018, que o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou em 2019, verificou-se que as mulheres ganhavam 79.5% do total do salário pago aos homens e que tinham uma jornada semanal de trabalho menor em 4,8 horas, sem considerar o tempo dedicado aos afazeres domésticos e cuidados de pessoas, então invisíveis e não remunerados. 2 Disponível aqui.
Cumprem-se hoje os 49 anos da "Revolução dos Cravos", ocorrida a 25 de Abril de 1974, em Portugal. Numa rúbrica dedicada ao Direito e à Mulher, impõe-se relembrar o estatuto jurídico da Mulher portuguesa anterior "à madrugada que eu esperava"1 e as transformações que daí advieram. Em 1910, a monarquia foi substituída por um regime liberal-republicano. Tendo a República sido proclamada a 5 de outubro, logo a 4 de novembro, o Governo Provisório da República Portuguesa veio regulamentar a dissolução do casamento, a qual podia operar por morte ou divórcio.  Entre as causas legítimas para o pedido de divórcio estava o adultério, tanto da mulher, como do marido. Era evidente, do ponto de vista jurídico-formal, um parâmetro de igualdade entre cônjuges, o que, à época, não era despiciendo. Menos de 16 anos depois, a 28 de maio de 1926, um golpe militar derrubou o regime liberal-republicano e instalou uma ditadura militar. António de Oliveira Salazar, assumindo inicialmente funções como Ministro das Finanças e, em 1932, o cargo de Presidente do Conselho de Ministros, solidificou o autoritarismo do regime que viria a ser conhecido como "Estado Novo". Em 1933, entrou em vigor a nova Constituição. Esta Constituição consagrava, a título de Garantia Fundamental, um princípio formal de igualdade correspondente à "igualdade dos cidadãos perante a lei" (artigo 5.º), onde se incluía "a negação de qualquer privilégio de nascimento, nobreza, título nobiliárquico, sexo, ou condição social" (artigo 5.º, § único).  No entanto, logo de seguida, continuava o mesmo artigo: "salvas, quanto à mulher, as diferenças resultantes da sua natureza e do bem da família". A mulher (casada) via, assim, pelo "bem da família", os seus direitos fundamentais particularmente restringidos, situação da qual dificilmente saía, visto que o casamento católico era indissolúvel por divórcio, num país onde a esmagadora maioria dos casamentos era regida,  justamente, pela lei canónica. Na ótica do "Estado Novo", as mulheres casadas deviam estar ocupadas com o seu lar, o que as afastaria, à partida, de um desempenho profissional adequado. Fruto desta convicção, as mulheres que quisessem trabalhar estavam sujeitas a inúmeros impedimentos matrimoniais. Eram várias as normas que diferenciavam, discriminando, a situação da mulher. Na lei civil, o "poder marital" impunha, essencialmente, a submissão da mulher casada ao "chefe de família". Onde hoje a lei refere a "residência da família", indicava à época a "residência da mulher", sendo que esta devia "adotar a residência do marido". O "governo doméstico" era atribuído à mulher e, regra geral, reservava-se ao homem a administração dos bens do casal, aí inclusos os bens próprios da mulher. As idades relevantes para efeitos de impedimentos matrimoniais dirimentes absolutos eram diferentes entre indivíduos do sexo masculino (idade inferior a 16 anos) e do sexo feminino (idade inferior a 14 anos). O desconhecimento da "falta de virgindade da mulher ao tempo do casamento" era qualificado como um erro que viciava a vontade do homem na celebração o casamento, assim se permitindo a anulação do mesmo. Estava prevista a possibilidade de o marido requerer que a mulher lhe fosse judicialmente entregue, como se de uma coisa se tratasse. Quanto aos filhos, o poder paternal na constância do casamento pertencia quase em exclusividade ao pai. Em sede de direitos políticos, o direito de voto era, genericamente, vedado às mulheres casadas, solteiras economicamente dependentes ou às "sem reconhecida idoneidade moral". No campo penal, a mulher surgia como vítima exclusiva nos crimes sexuais, que ao tempo se tinham como atentando não à liberdade sexual da mulher, mas à sua honestidade. Nesta lógica, o violador que casasse com a vítima, assim permanecendo, pelo menos, por cinco anos, não teria de cumprir qualquer pena. Outra previsão de conteúdo fortemente atentatório dos direitos humanos das mulheres era a que cominava uma pena de desterro para fora da comarca durante seis meses para o marido que "acha[sse] a sua mulher em adultério" e, nesse momento, a matasse. A carência económica em que vivia a grande maioria da população portuguesa, a privação das liberdades individuais, a constante ameaça repressiva representada pela polícia política e o persistente envio de jovens para a morte ou estropiamento na guerra colonial iniciada em 1961, entre outros fatores, levaram centenas de milhares de pessoas a emigrar. A heroica luta popular antifascista - empreendida por operários, estudantes e intelectuais, nomeadamente -, durante todo o período da ditadura, fez-se à custa da segurança destas pessoas e da das suas famílias, sendo várias as que estiveram presas, foram torturadas e até mortas. Outras tinham de viver (continuando a resistir) na clandestinidade. O aumento do descontentamento da generalidade da população portuguesa, extremado pela guerra colonial, tornou a revolução inevitável. O Movimento das Forças Armadas, sob o lema "Democratizar, desenvolver e descolonizar", dotou aquela luta da força fundamental para derrubar o regime. E assim, um levantamento militar, com a colaboração de regimentos de todo o país, deu início ao 25 de abril. A população, apesar de alertada no sentido de, para sua segurança, ficar em casa, apresentou-se massivamente nas ruas de todo o país, fazendo do que poderia ter sido um mero golpe militar uma verdadeira revolução popular. Após um período de forte agitação política e social, em 1976, foi adotada a atual Constituição, que consagra, no seu artigo 13.º, um pleno princípio da igualdade. Pese embora a transformação libertadora que tem vindo a ocorrer desde então, e o processo evolutivo das últimas décadas, a paridade lenta, parcial e legalmente consagrada não atingiu ainda a vida prática de todas as mulheres em Portugal. As ideias quanto ao papel social e aos deveres da mulher impostas durante a ditadura continuam presentes na mentalidade nacional e a refletir-se, nomeadamente, em decisões dos tribunais portugueses que apontam o adultério (real ou conjeturado) por parte das mulheres vítimas de maus-tratos como fatores atenuantes da gravidade dos crimes cometidos por homens acusados de violência doméstica. Em termos estatísticos, o crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogo (do qual as mulheres são, ante percentagens irrefutáveis, as principais vítimas) é o que apresenta o maior número de denúncias de entre toda a criminalidade participada em Portugal. Assim, só podemos concluir que, se muito foi feito em prol da consagração dos direitos das mulheres - e da sua garantia quotidiana -, outro tanto há ainda a fazer. Quase meio século passado, as marcas da desigualdade remanescem. Terminamos, por isso, com certeza de que "a luta continua!" e comemorando: 25 de Abril, sempre! __________ 1 Breyner, Sophia de Mello, "25 de Abril", O Nome das Coisas, Porto, Assírio e Alvim, 2015, p. 53.
Entre os anos de 2020 e 2021, houve uma queda de 1,7% nos casos de feminicídios1, mas não podemos nos esquecer que, mesmo assim, foram 2.695 mulheres mortas pela condição de ser mulher (1.354 em 2020 e 1.341 em 2021), é um número bastante elevado. Além disso, no mesmo período, houve um acréscimo de 23 mil novos chamados de emergência para o número 190 solicitando atendimento para casos de violência doméstica, com variação de 4% de um ano para o outro2. Ou seja, ao menos uma pessoa ligou para o 190, por minuto, em 2021, denunciando agressões como essas. No mesmo sentido, os indicadores relativos a outras formas de violência contra mulheres apresentaram crescimento no ano de 2021. Os crimes de assédio sexual e importunação sexual, por exemplo, aumentaram em 6,6% e 17,8%3, respectivamente, ao passo que houve um aumento de 3,3% na taxa de registros de ameaça, e crescimento de 0,6% na taxa de lesões corporais dolosas em contexto de violência doméstica entre 2020 e 2021. Resumindo, o número de feminicídios pode até ter sofrido uma queda, mas outras formas de violência contra mulheres cresceram em 2021. Apesar de a Lei Maria da Penha, a Lei do Feminicídio, entre tantas outras legislações que foram instituídas e adotadas para combater a violência contra a mulher representarem avanços importantes, não há indícios de que as consequências advindas das regulamentações e o "maior rigor penal" tenham efetivamente contribuído para a diminuição da violência contra as mulheres no Brasil. Pensando nisso, propomos uma reflexão sobre a efetividade das punições que sofrem os agressores de mulheres no Brasil. Será que o caminho que adotamos é o mais adequado para alcançarmos alguma mudança significativa no combate à violência? Por exemplo, nos crimes de ameaça ou de perseguição, dois tipos penais comuns em contexto de violência doméstica ou familiar, as penas podem variar de um a seis meses de detenção ou multa4 no primeiro, e de seis meses a dois anos e multa no segundo, podendo ser aumentada de metade se o crime for cometido contra mulher por razões da condição de sexo feminino. Já a violência psicológica contra a mulher, conduta tipificada só em 2021, pode ser punida com reclusão, de seis meses a dois anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave.  Esses são apenas alguns exemplos, mas são suficientes para demostrar que as consequências para os agressores, no âmbito criminal, beiram a insignificância. Muitas vezes sequer há alguma condenação, é comum que os autores de atos violentos sejam absolvidos por insuficiência de provas, até porque muitos dos crimes são difíceis de provar, especialmente aqueles que envolvem violência sexual e, quando são condenados, não raro as penas são fixadas no mínimo penal. Outra possibilidade que a Justiça apresenta para que as violências não fiquem impunes é a indenização pelos danos causados. Soa bastante óbvio que uma vítima de qualquer tipo de violência mereça ser indenizada, mas esse caminho não costuma ser uma escolha tão simples quanto parece no primeiro momento. O recente caso do jogador de futebol Daniel Alves não nos deixa mentir, já que a vítima de violência sexual, no caso que aconteceu na Espanha, recusou veementemente a possibilidade de receber qualquer valor em dinheiro. Não nos surpreende a decisão e podemos dizer com certa propriedade decorrente da nossa prática na advocacia, justamente no atendimento de vítimas de violência, que, quando essas mulheres desejam buscar a reparação financeira por tudo que lhe foi causado, enfrentam algumas barreiras. O dano moral, no caso de uma vítima de violência doméstica no Brasil, é presumido. Ou seja, comprovando-se que aconteceu o ato violento, não é necessário demonstrar que houve o dano, presume-se que ele ocorreu e, portanto, a vítima teria direito à indenização. Mas embora presumido, o dano não é automático, a ofendida precisa solicitar à Justiça que seja aplicada uma indenização. Nos outros casos de violência contra a mulher, que não estão em contexto de violência doméstica, o dano sequer é presumido, a vítima precisa pedir expressamente seu reconhecimento e pode receber uma negativa da Justiça. Na prática, como no caso do jogador de futebol que mencionamos, muitas vítimas renunciam à indenização, a um direito seu de reparação, como uma forma de reforçar as suas alegações. Existe um receio, aliás bastante legítimo, do julgamento da sociedade que, na primeira oportunidade, acusa as mulheres de buscar, com esses processos, fama e dinheiro. Então, com a esperança de não serem desacreditadas, declaram que não querem valor algum e lançam mão de receber algo que poderia de alguma forma compensar, ainda que minimamente, o mal e o prejuízo que tiveram que suportar. Precisamos compreender que desejar receber algum valor em dinheiro para compensar um sofrimento não é falta de caráter, tampouco oportunismo, é simplesmente reparação. Curiosamente, quando não se trata de violência contra a mulher, ações de indenização não são socialmente interpretadas de forma negativa, pelo contrário, consumidores ficam indignados com as baixas indenizações aplicadas pela Justiça aos seus casos e aos dos outros, mas, quando se trata de uma mulher, a sociedade só legitima aquela que renuncia aos seus interesses pessoais e direitos indenizatórios oriundos da violência.  Isso sem contar que, na busca por alguma reparação, a vítima precisa pagar uma boa advogada para cuidar de seus interesses, além de, na maior parte dos casos, ter gastos com médicos, psicólogos e medicamentos para tratar os sintomas dos traumas. A violência tem um custo muito alto para as vítimas. Parece injusto, e é. E mais injusto ainda é o valor das indenizações que são aplicadas, quando, mesmo diante de muito sofrimento, a vítima reúne esforços para enfrentar um processo lento, emocionalmente desgastante e, muitas vezes, recheado de violência institucional, depara-se com um valor de indenização absolutamente irrisório. As indenizações em casos de violência doméstica nos maiores Tribunais de Justiça do Brasil são fixadas em patamares muito baixos, variando entre R$500,00 até R$20.000,00. Valores mais altos são exceções, raridades com aplicação apenas em casos extremos. Ou seja, quase sempre, o valor que a vítima tem direito a receber é inferior ao sugerido como parâmetro mínimo pela tabela da OAB para que uma advogada atue no caso em defesa da vítima. Apenas como exemplo, a tabela de honorários da OAB/SP sugere como mínimos os valores de R$1.823,25 para acompanhamento em delegacia, R$9.188,23 para acompanhamento de um inquérito policial e R$5.511,73 para ingressar com uma ação cível de indenização. E estamos mencionando aqui um escopo de trabalho reduzido, com o valor mais baixo recomendado e incluindo apenas alguns dos principais serviços necessários em um caso de violência, não todos.  Como a vítima vai custear tratamento médico, psicológico, serviços advocatícios para um atendimento eficiente e cuidadoso e ainda ser compensada pelo dano sofrido? O que ela ganha no final é um grande prejuízo financeiro e emocional. A conta da violência contra a mulher é muito alta, mas é a vítima quem paga. Quem rotula as mulheres que buscam a Justiça como "oportunistas" ou "interesseiras", com destaque para os tribunais da internet que costumam ser bem cruéis, precisa urgentemente enxergar que não há qualquer recompensa em acionar o Poder Judiciário, apenas ônus: custos infindáveis, desgaste emocional durante o processo, danos à saúde e ansiedade por uma resposta da Justiça que, com frequência, tarda e falha.  Os agressores, quando condenados, suportam penas brandas, insuficientes para a prevenção, conscientização e consequente redução da violência contra a mulher e são, nos casos em que as mulheres não abrem mão desse direito, condenados a pagar uma indenização sem impacto financeiro significativo e insuficiente para que aquele comportamento não se repita. Educação é a uma das chaves da questão, mas, com certeza, não a única. Claro que não temos a pretensão aqui de encerrar esse debate, até porque, esse é apenas o começo de uma conversa que precisa amadurecer muito. Mas nosso forte palpite é de que uma mudança verdadeira nesse cenário de impunidade passa por enxergar as mulheres. Todas elas. Quando falamos em enxergar, não se trata simplesmente de considerar a existência das mulheres e suas vulnerabilidades, mas de ter um olhar cuidadoso, profundo e sobretudo, interseccional. Algo que só pode partir de quem já percebeu que tudo na nossa história foi desenhado por eles, que sempre ocuparam os espaços de poder, inclusive as leis em prol das mulheres. Sem esquecer de alguns dos avanços importantes, acreditamos que, se as punições não vierem acompanhadas da efetiva implementação de políticas públicas preventivas direcionadas à conscientização para ceifar a cultura machista e desigual do país, evidentemente, as penalidades pelos atos de violências contra as mulheres (sejam elas criminais ou indenizações em dinheiro) assumem um viés simbólico. A sensação que isso nos causa é parecida com aquela da música Falso Amor Sincero, de Nelson Sargento, que diz assim; "O nosso amor é tão bonito/ Ela finge que me ama/E eu finjo que acredito". Pedimos licença poética ao leitor para encerrar a conversa de hoje com uma paródia: "Na teoria é tão bonito, o Estado finge que funciona, e eu finjo que acredito."  __________ 1 Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022, P. 09) 2 Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022, P. 06) 3 Fonte: Anuário Brasileiro de Segurança Pública (2022, P. 07) 4 Há projeto de lei (PL 901/23) que busca aumentar a pena de crime de ameaça cometido contra a mulher, pelo texto, o crime passa a ser punido com reclusão de seis meses a dois anos e multa. Disponível aqui. Acesso em 2 de abril de 2023.
terça-feira, 28 de março de 2023

As águas de março

Março tem sido o mês de maior visibilidade para as questões entendidas como "das mulheres" há bastante tempo. Historicamente, cita-se a marcha das trabalhadoras da indústria têxtil em Nova York, (que alguns dizem ter ocorrido em 1857 e outros em 1908), as manifestações durante a primeira guerra mundial pelo dia mundial das mulheres, e, também, a greve por paz, realizada pelas mulheres russas em 1917. Contudo, foi apenas em 1977, que a Assembleia Geral das Nações Unidas oficializou o 8 de março como o dia das Nações Unidas para os Direitos da Mulher e a Paz Internacional, transformando o terceiro mês do ano em uma referência mundial para os debates sobre a efetivação dos direitos das mulheres pelos Estados e pelas instituições. Mulheres brasileiras, desde o final do século XIX, participam ativamente dos encontros e debates sobre direitos das mulheres. Na década de 1920, mais de 10 anos antes das mulheres terem o direito de votar, Julita Monteira Soares fundou o Partido Liberal Feminino. O Direito brasileiro sempre foi ambíguo em relação a quais direitos as  mulheres teriam. Se, por um lado, ainda no império, D. Pedro I determinou que o Estado oferecesse educação pública a meninos e meninas, se Getúlio Vargas, em 1932 garantiu o direito das mulheres ao voto, e, em 1943, proibiu o pagamento de salários diferentes entre homens e mulheres e licença-maternidade de 90 dias, por outro, até 1962 as mulheres precisavam da autorização dos maridos para trabalhar à noite, para viajar ao exterior e até 1974 não podiam ter cartão de crédito em seu nome. Apenas em 2002, a falta de virgindade deixou de ser crime e até 2009 estupro era considerado um crime contra os costumes. Todavia, foi no processo de redemocratização, durante a assembleia nacional constituinte, que o embate sobre os direitos e deveres das mulheres e as desigualdades jurídicas e fáticas ganharam espaço no ambiente público, e o Estado, algumas vezes mais, algumas vezes menos, se viu obrigado a colocar na pauta a reivindicação das mulheres por igualdade de oportunidade, pelo fim da violência de gênero, por serviços públicos especializados, entre tantas outras desigualdades estruturais que a sociedade brasileira impõe às mulheres. Desde lá, as mulheres brasileiras conquistaram, lentamente, a positivação de direitos e a oficialização de compromissos estatais de políticas públicas por igualdade de gênero. A Lei Maria Penha, que transformou a compreensão do Brasil sobre violência doméstica, é um ícone desses avanços, sendo, inclusive, a lei mais famosa do país, segundo o Data Senado.  Há outros avanços legais também importantes de serem apontados, como a lei de cotas eleitorais, que se propõe a aumentar o número de mulheres nos parlamentos; a lei do feminicídio, que inseriu mais uma qualificadora ao crime de homicídio quando comprovada a conduta de assassinar mulheres por serem mulheres; bem como a tipificação do crime de importunação sexual. Desde a redemocratização, o Brasil assinou, praticamente, todas as convenções internacionais que versam sobre direitos das mulheres, implementou órgãos de governo para tratar da desigualdade de gênero na esfera federal, estadual e municipal, e elegeu, duas vezes, uma mulher presidente da República. Para um extraterrestre, que decodificasse esse artigo até aqui, o pensamento óbvio seria que a situação das mulheres brasileiras, neste mês de março de 2023, é paritária a dos homens e que o Estado e a sociedade garantem os mecanismos para que não sofram por serem mulheres. Entretanto as notícias desse mês mostram o quão errado estaria o alienígena. Iniciamos o mês do Dia Internacional da Mulher estupefadas com o feminicídio da vereadora cearense, Yanny Brena, aos 27 anos. Jovem médica de Juazeiro do Norte, Yanny tinha os direitos das mulheres em suas pautas políticas. O caso lançou luz em tema antigo e que parece ser um desafio para boa parte dos países ocidentais: a violência doméstica contra a mulher, inclusive, em sua expressão fatal, o feminicídio, cuja sanha alcança a todas.O inquérito finalizado no dia 23 de março confirma que Yanny Brena foi assassinada pelo namorado que, em seguida, cometeu suicídio. Ainda sob o guarda chuva da violência, que é multifacetada e assume contornos diferentes a cada caso, acompanhamos a enxurradas de notícias vindas da edição atual de um reality show, Big Brother, em que dois competidores foram expulsos após importunar outra competidora, com toques libidinosos, praticados contra a sua vontade. Espanta a resistência de se compreender determinadas atitudes como ilícitas, sob a justificativa de que são comumente praticadas. Frases como "mas isso acontece a todo momento", "ela deu cabimento e agora está reclamando", "se tivesse se dado ao respeito não estaria passando por isso", "dá corda para o cara e depois se faz de vítima", evidenciam que a inviolabilidade do corpo da mulher, diferente da inviolabilidade do corpo do homem, é premissa ainda não introjetada na sociedade brasileira. Esse caso também traz à tona o debate sobre a culpabilização da vítima. A direção do programa reuniu agredida, agressores e testemunhas do ato em um mesmo ambiente para informar que iria expulsar os agressores, expondo a vítima a mais uma enxurrada de emoções e reforçando a ideia de que os mesmos estavam sendo punidos por culpa dela. Esse modelo alimenta o discurso de que ela estava exagerando, de que não foi bem assim, e coloca milhões de telespectadores para "avaliar a conduta" e se sentirem no direito de publicizar julgamentos sobre o que ocorreu, ratificando uma compreensão de que porque aconteceu ou acontece de maneira corriqueira não está errado. É a normalização, pelo consenso social, de algo patológico, ruim, mau e isso tem até nome próprio: normose.  O programa perdeu a oportunidade de divulgar massivamente um padrão adequado de tratamento para  mulheres vítimas de violência ao mesmo tempo que focou sua atuação apenas na punição dos agressores, com sua expulsão. Sabemos que há métricas específicas em programas dessa espécie, o que lhes garante audiência e lucratividade, porém, quando confrontados com a situação de prática flagrante de um crime não é razoável que não se ocupem de esclarecer pormenorizadamente a situação com os demais participantes, uma vez que as bebidas alcoólicas, as festas, as visitas surpresa seguirão ocorrendo, sem que o episódio tenha servido de reflexão e amadurecimento de todos e fortalecimento das mulheres que continuam confinadas.  As mais variadas manifestações de violência contra as mulheres parecem, de fato, um desafio intransponível para o Estado brasileiro, e a punição (sim, necessária) desconectada de outras medidas, além de nao resolver o problema, porque não auxilia na prevenção de casos semelhantes no futuro, reforça a ideia de que a punição é o mais importante, o que é um grande equívoco. O que se quer e se espera é que os episódios, ainda tão recorrentes, de violência contra as mulheres sejam reduzidos e que em um espaco curto de tempo tenhamos uma redução em todos os índices de violência contra as mulheres. No corrente mês, nos deparamos, também, com o episódio da estudante universitária do curso de Biomedicina de Bauru, interior de São Paulo, de 44 anos, que foi ridicularizada por outras três mulheres, 20 anos mais jovens, por estar estudando. O caso ganhou repercussão nacional e confirmou que para as mulheres até os bancos universitários têm prazo de validade. O etarismo, que impacta a todas as pessoas em alguma medida, é implacável com as mulheres, especialmente, com as que ousam se insurgir contra parâmetros estabelecidos sob a égide da opressão, que se legitimaram ao longo dos últimos 100 anos no consciente coletivo. Reflitamos, ainda, sobre o caso do uso da linguagem neutra por uma professora de um renomado colégio da capital paulista. Em sua aula para alunos e alunas do 6° ano, a docente apresentou um vídeo do canal do Laboratório de Arqueologia e Antropologia Ambiental e Evolutiva, da Universidade de São Paulo - USP, que utiliza linguagem neutra. Alguns pais bombardearam as mídias sociais e os canais de reclamação, a ponto do colégio emitir uma nota de desculpas, alegando que lamentava a escolha da docente, a qual não corresponde ao padrão de linguagem adotado pela instituição, deixando a professora sozinha no esforço de construir discussões sobre diversidade, inclusão e reconhecimento. Como nem só de desesperança pode viver o alienígena, falemos que neste mês de março, entrou em vigor a lei 14.443, de 2022, após uma vacatio legis de 180 dias. A lei reduziu a idade para a realização de laqueadura e retirou a obrigatoriedade de consentimento do cônjuge para a realização do procedimento. A lei prevê agora uma idade mínima de 21 anos, e não mais 25 anos, para realização de esterilização voluntária (laqueadura ou vasectomia). O limite mínimo de idade não é necessário caso a pessoa interessada em realizar o procedimento tenha dois ou mais filhos vivos. Uma terceira mudança trazida pela lei é a possibilidade de realização da laqueadura concomitante ao parto cesáreo, o que era vedado expressamente antes da alteração. É importante dizermos que a reprodução humana deveria ser de interesse de todos os indivíduos, uma vez que passa pela condição de pessoa humana; ocorre que a maternidade e a paternidade (e também a escolha pela não maternidade ou paternidade) são compreendidas e vivenciadas na sociedade de forma desigual, e não diferente como alguns insistem em dizer, atribuindo à mulher quase que responsabilidade exclusiva pelas atividades de cuidado. Eis o motivo de a mudança da legislação sobre o planejamento familiar estar despertando maior interesse entre as mulheres, pois afeta direta e fortemente suas vidas.   É em meio a tantas situações complexas que estamos encerrando mais um mês de março, com a certeza de que precisamos seguir resistindo às tentativas de retrocessos (em respeito, proteção e promoção de direitos) e propondo novos caminhos que busquem a igualdade material entre homens e mulheres. A estrutura do Direito e da sociedade foi construída por, para e com os homens, as mulheres foram conseguindo acessar direitos a partir de uma árdua luta e um constante estica e puxa.  O atual governo Federal reforçou, no último 8 de março, o discurso e o compromisso com a promoção da igualdade de direitos e oportunidades entre homens e mulheres, em um conjunto de ações que vão desde datas comemorativas até o lançamento de editais para fomento de ações de geração de trabalho, renda e participação social das mulheres. Vale destacar, ainda, o envio ao Congresso de um projeto de lei que explicita a urgência de se estabelecer salário igual para homens e mulheres que exercem a mesma função. O que defendemos é usarmos esse marco de convergência para consolidar e impulsionar as ações oficiais, institucionais e particulares capazes de fissurar a estrutura desigual sobre a qual forjamos nossa sociedade, o que nos autorizaria a seguirmos para um segundo momento de mudança social: a certeza de que nascer mulher não nos coloca, no a priori, numa condição de vulnerabilidade. A partir deste mês, quinzenalmente, iremos tratar aqui, nessa coluna,  sobre as mais variadas questões do universo jurídico e como essas questões são vivenciadas pelas mulheres. Desejamos, com um otimismo realista, que em 8 de março de 2024 tenhamos notícias melhores sobre como os direitos das mulheres estão sendo respeitados e garantidos.