COLUNAS

  1. Home >
  2. Colunas

Direito&Administrativo

Discussões relacionadas a temas de Direito Administrativo.

Vládia Pompeu Silva
Inquestionável a vagueza inerente ao princípio da moralidade administrativa em contraponto à relevância na seara da probidade administrativa. De fato, a Constituição Federal de 1988 o inseriu dentre os princípios de observância inafastável pela Administração Pública e por todos que a compõem sem, entretanto, dar-lhe contornos mais específicos. Sua aplicação concreta pressupõe então uma elevada carga de subjetividade, o que, não raro, dá ensejo a interpretações conflitantes mesmo diante de situações fáticas semelhantes. Esse impacto é percebido sobremaneira quando a moralidade administrativa é utilizada de forma autônoma para fundamentar uma imposição sancionatória. É comum que legislações que elencam os deveres, proibições e responsabilidades dos servidores públicos tragam previsões abertas como a obrigação de "manter conduta compatível com a moralidade administrativa"1 ou ameacem aplicação da penalidade de demissão quando praticados atos que importem em "improbidade administrativa"2. Impõem assim resultado prático e penoso, imposição de sanção, sem esmiuçar a infração administrativa, que, nesse caso, encontra-se adstrita à interpretação de princípio jurídico. Talvez, por isso, a LINDB tenha se preocupado em dizer que "não se decidirá com base em valores jurídicos abstratos sem que sejam consideradas as consequências práticas da decisão".3 O professor Carlos Ari Sundfeld4 nos chama a atenção sobre o risco trazido pela utilização de princípios no exercício da atividade administrativa-controladora-sancionadora, especialmente quando aparecem de forma genérica e imprecisa nos textos legais. De fato, é comum que princípios sejam relevantes instrumentos de interpretação no direito administrativo, pois agregam considerações esclarecedoras, auxiliando na visibilização da vontade concreta da Administração Pública. O desafio se apresenta quando o princípio é tido como base única na imposição sancionatória, como acontece com os dispositivos da lei 8112, de 1990, antes citados, ou com o art. 11 da lei 8429, de 1992 (em sua redação anterior à lei 14.230, de 2021). Para o autor, tal comportamento está ligado à dificuldade prática do legislador constituinte em elaborar redações mais precisas quando se refere a temas delicados, em razão da ausência de consenso político para a elaboração de definições mais precisas, segundo Sundfeld5. Foi o que teria acontecido com o texto trazido no caput do art. 11 da lei 8.429/92, segundo ele (2017, p. 214): Esse texto, aparentemente inócuo para inibir comportamentos, por conta da extrema vagueza do que estava se considerando ilícito, acabou servindo, no decorrer dos anos, como fundamento de maior parte das ações de improbidade administrativa propostas pela corporação contra agentes públicos sempre divulgadas amplamente pela imprensa, em busca de apoio da opinião pública. Como forma de aumentar seu poder, a corporação lançou-se em um grande esforço de construção de sentido sobre o texto normativo quase sem conteúdo.  Por essa ou outras razões, a crítica a ela subjacente, e com a qual concordamos, reside na ideia de que o fim maior que se busca com uma política sancionadora (desestimular condutas) não será alcançado quando o texto legal não consegue ser claro o suficiente sobre qual(is) conduta(s) busca-se impedir. E pior, gerará incongruências reais e injustiças em sua aplicação prática. A redação original do citado art. 11, na lei 8.429, de 1992, ao constituir ato de improbidade administrativa qualquer ação ou omissão que atente contra os princípios da administração pública, dentre eles a moralidade administrativa, faleceu no seu intento de estimular condutas probas por parte de seus agentes quando não esclarece, de fato, o que seria essa tal de moralidade. Vale lembre que o objetivo de "estimular condutas probas" foi assumido expressamente pelo legislador na Exposição de Motivos que acompanhou a proposta do que seria a então Lei de Improbidade Administrativa6: Sabendo Vossa Excelência que uma das maiores mazelas que, infelizmente, ainda afligem o País, é a prática desenfreada e impune de atos de corrupção, no trato com os dinheiros públicos, e que a sua repressão, para ser legítima, depende de procedimento legal adequado - o devido processo legal - impõe-se criar meios próprios à consecução daquele objetivo sem, no entanto, suprimir as garantias constitucionais pertinentes, caracterizadoras do estado de Direito. (...) Com relação ao procedimento tendente a apurar os casos de enriquecimento ilícito, está ele disciplinado com a devida minúcia, não apenas para orientar os aplicadores de lei, como também para garantir ao Estado a certeza de sua correta e criteriosa observância, sem margem a desmandos e arbitrariedades.  O mesmo acontece com o antes citado art. 116, inciso IX, da lei 8112, de 1990 e com outras tantas legislações estatutárias que se utilizam da moralidade administrativa para exigir a adoção de condutas e comportamentos que sequer a Administração Pública sabe, com clareza, quais são. Falta objetividade normativa na definição da tipificação sancionadora, algo inaceitável à luz do que define o próprio princípio da legalidade, sob sua perspectiva material. Nos ensina Sandro Dezan (2024, p. 225) que não basta à Administração Pública, para a construção de um ilícito administrativo, definir a conduta prescrita em lei anterior, escrita e específica, se essa lei não for certa. A lei deve descrever de forma analítica, clara e inteligível o que, de fato, o órgão sancionador entende como conduta contrária ao ordenamento. A dúvida para nós é: a mera previsão acerca do dever de observância do princípio da moralidade administrativa é suficiente para justificar uma sanção? Eduardo Bittar (2013, p. 59) nos lembra da vagueza do princípio da moralidade a partir da intimidade do direito com a moral. Segundo ele, a previsão constitucional exposta no art. 37, caput, destaca a relevância do princípio moral para a organização administrativa e credibilidade cívica dos serviços públicos. Ocorre que, na prática, o que tem acontecido é que "O que é moralmente recomendável tornou-se juridicamente exigível do funcionalismo público.", sem, entretanto, sabermos ao certo o que é moralmente aceitável. A abstratividade do conceito retira a clareza da regra. De um modo geral, a utilização dos princípios administrativos para fundamentar as decisões sancionadoras ou até mesmo condenações por ato de improbidade administrativa stricto sensu gera importantes questionamentos. Ao nosso ver, o mais importante dentre eles é o aumento de esforço argumentativo por parte do órgão sancionador. Reflexão trazida por Carlos Ari Sundfeld em relação à aplicação dos princípios no que se refere aos limites de competência dos aplicadores para suprir as lacunas legislativas, demonstra a dificuldade da interpretação de princípios com alto grau de subjetividade.7 Frise-se que não se entende impossível o sancionamento quando da violação a princípio administrativo ou ainda com base em textos genéricos que tragam em seu corpo conceitos indeterminados.  O que se pretende endossar é que a interpretação seja realizada observando parâmetros objetivos, de modo a cumprir as normas constitucionais vigentes. Nada além do que já nos indicava o princípio da segurança jurídica8, agora reforçado também pelo disposto no art. 20 da LINDB. Incorporando posicionamento de Carlos Ari Sundfeld, verifica-se que o legislador, ao criar uma lei muito aberta, com conceitos vagos, transfere ao aplicador o ônus regulatório, já que será responsável pela elaboração das políticas sancionatórias.9 Nessa atividade, impõe-se atenção ao consequencialismo, ou melhor, às consequências práticas que justifiquem a imposição de sanção em razão da aplicação isolada do princípio da moralidade administrativa, por exemplo. É o que nos impõe a LINDB, mas sem ares de grande novidade10. A posição de regulador assumida pelo aplicador nos casos em que a legislação é vaga vem agregada ao ônus de fundamentar suas decisões com mais profundidade, justificando as alternativas possíveis e as escolhidas, de modo a deixar claro os motivos que o fizeram chegar àquela decisão. A motivação é dever da Administração nos termos do art. 2°, da lei 8784, de 1999 e "A não motivação em sede de atos decisórios de procedimentos disciplinares torna nula a manifestação administrativa, não havendo fundamento para sua sustentação" (DEZAN, p. 257). Sob outro olhar, a inexistência de parâmetros objetivos para a caracterização da violação do princípio da moralidade administrativa como fundamento autônomo de decisão sancionatória deve-se também à ausência de conteúdo jurídico do referido princípio. O conteúdo jurídico é determinante para se delimitar a abrangência de um instituto e estabelecer o que é considerado lícito ou ilícito no seu âmbito de aplicação. Traz em sua essência os elementos e características jurídicas que delineiam determinado princípio de modo a conceder sua descrição objetiva. Possibilita que as partes tenham o conhecimento e possam se manifestar de forma efetiva, atendendo os ditames do devido processo legal substancial. Pelas características do princípio da moralidade administrativa constata-se a inexistência de seu conteúdo jurídico já que não se mostra possível descrever seus principais caracteres de forma objetiva sem que seja preciso recorrer a valores.  Igualmente não se verifica em seu bojo elementos jurídicos que permitam criar uma definição própria. Dessa forma, ainda que se concorde com a posição de centralidade ocupada pelo princípio da moralidade administrativa, tal posição por si só não autoriza uma condenação sem que haja uma fundamentação específica e objetiva acerca da violação autônoma do princípio da moralidade administrativa. Meramente afirmar que o ato é imoral não atende aos preceitos trazidos pelo art. 93, X, da Constituição Federal, por exemplo, além de ferir as garantias constitucionais do contraditório e da ampla defesa. De igual modo, o fato de o princípio da moralidade administrativa compreender o alicerce de uma administração pública proba não pode ensejar a aplicação de sanção sem que haja uma constatação real e efetiva da irregularidade perpetrada. É impossível que valores e conceitos vagos e imprecisos, como honestidade e bom administrador, ultrapassam os limites de uma interpretação jurídica. Com isso não se quer dissociar a moralidade da boa administração, mas apenas que os critérios para aferição sejam claros, objetivos e contextualizados com a realidade dos fatos e da conduta no caso concreto. Hely Lopes Meirelles (1998, p. 86), já dizia que a moralidade administrativa constitui pressuposto de validade de todo ato da Administração Pública (CF, art. 37, caput). Não se trata da moral comum, mas sim de uma moral jurídica, entendida como o conjunto de regras de conduta tiradas da disciplina interior da Administração. Desenvolvendo sua doutrina, explica o mesmo autor que o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. A doutrina é magistral, mas não suficiente para fins de justificar a aplicação de sanção in concreto. De fato, não podemos negar que a moralidade administrativa está intimamente ligada ao conceito do 'bom administrador', que, segundo Franco Sobrinho (1974, p.11), "é aquele que, usando de sua competência legal, se determina não só pelos preceitos vigentes, mas também pela moral comum". E explica o mesmo autor: "Quando usamos da expressão nos seus efeitos, é para admitir a lei como regra comum e medida ajustada. Falando, contudo, de boa administração, referimo-nos subjetivamente a critérios morais que, de uma maneira ou de outra, dão valor jurídico à vontade psicológica do administrador". Tais lições magistrais trazem clareza conceitual, mas reforçam que, em observância ao sistema jurídico adotado para aplicação de sanções trazido pela Constituição Federal, faz-se necessária a descrição de uma conduta específica e objetiva exposta legalmente associada à uma sanção. O princípio da moralidade administrativa pode e deve subsidiar a imposição de sanção de forma autônoma, mas para isso a administração sancionadora deve analisar o contexto sob uma perspectiva consequencialista e motivar robustamente sua decisão com praticidade e pragmaticidade a fim de reduzir a subjetividade imposta pelo legislador.  Referências  BITTAR, Eduardo. Curso de E´tica Juri´dica: E´tica geral e profissional. 10. ed.: Saraiva, 2013. DEZAN, Sandro. Fundamentos de Direito Administrativo Disciplinar. 6 º ed. Curitiba: Juruá, 2024. MEIRELLES, Hely Lopes. Direito Administrativo Brasileiro. 23ª ed. São Paulo: RT Editora, 1998. SOBRINHO, Manuel de Oliveira Franco. O Controle da Moralidade Administrativa, São Paulo, 1974. SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2.ed. 2. Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2017. __________ 1 Art. 116, inciso IX, lei 8.112, de 1990. 2 Exemplificativamente a lei 8112, de 1990, em seu art.132, IV. 3 Art. 20, do decreto-lei de 1942. 4 SUNDFELD, Carlos Ari. Direito administrativo para céticos. 2.ed. 2. Tiragem. São Paulo: Malheiros, 2017. 5 "Afinal, para vários assuntos espinhosos a linguagem da Constituição é extra, enquanto o significado do direito à vida nem o legislador conseguir precisar totalmente. E qual a dificuldade? A falta de consenso e de apoio político para textos mais extados com certeza tem algo a ver com isso." (SUNDFELD, 2017, p. 213). 6 Exposição de Motivos nº em. GM/SAA/0388, de 14 de agosto de 1991, do Senhor Ministro de Estado da Justiça. Disponível aqui. Acesso em 19 mai. 2024.  7 "O Judiciário tem, claro, seu papel no controle das falhas e omissões das autoridades legislativas e administrativas, mas ele não é o Legislativo nem a Administração e não pode substitui-los em tudo. Por isto não há solução judicial para todos os problemas jurídicos; o Judiciário não tem como construir todo e qualquer direito, não lhe cabe construir, não é adequado que construa." (SUNDFELD, 2017, p. 217). 8 Segundo Sandro Dezan (2024, p.285), "qualquer norma, ação ou omissão administrativa que crie insegurança as relações entre admiisstração e administrado, administração e servidor público deve ser reavaliada para buscar sua interpretação de forma a repelir inseguranças, instabilidades e dubiedades. 9 "Os parlamentares, sem querer tomar partido claro sobre o que devia, ou não, ser condenado, mas precisando mostrar severidade (para não serem acusados de proteger autoridades malandras), votaram uma lei mandado punir algo indefinido: a violação dos princípios da administração (...) Aos juízes cabia, a partir desses vagos termos, elaborar uma política sobre repressão de infrações funcionais; e, para isso, teriam de resolver por uma dureza maior ou menor na aplicação das sanções. Enfim, teriam que assumir o ônus que o legislador lhes repassou." (SUNDFELD, 2017, p. 226-227). 10 A jurisprudência já se utilizava da percepção consequencial para modular efeitos em discussões de validade de legislação ou como forma de equilibrar os impactos das decisões. A título exemplificativo, o RE 134509, de relatoria do Min. Marco Aurélio, julgado em 29/05/2002 e publicado em 13/09/2002.
A ampliação, quantitativa e qualitativa, dos métodos possíveis de serem utilizados pela Administração Pública para solucionar os conflitos que a envolvem já não é novidade no Brasil. Desde 20151, de maneira expressa, a judicialização das contendas administrativas deixou de ser a "única porta"2 acessível e iniciou-se a estruturação de um verdadeiro sistema de solução de conflitos composto também por formas alternativas de resolução. Segundo Gustavo Schimidt (2021, p. 69), "o sistema de solução de conflitos deixou de ser unidimensional", sobretudo com a entrada em vigor da lei 13.015/15 (Código de Processo Civil). Neste momento, o Estado se torna o agente impulsionador da consensualidade3 e a Administração Pública, nos diversos entes federativos, recebe a incumbência para criação de câmaras de conciliação e mediação com atribuições relacionadas à resolução de conflitos através da busca de consenso em seu âmbito de atuação4. Também em 2015, a Lei de Mediação (lei 13.140/15) dispôs sobre autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública e elencou dentre as competências das referidas câmaras, a prevenção e a resolução de conflitos que envolvessem equilíbrio econômico-financeiro de contratos celebrados pela administração com particulares5. Desde então, já percebíamos a presença clara de suporte legislativo para embasar a utilização dos métodos alternativos de solução de conflitos no âmbito das contratações públicas. Em atendimento à exigência constitucional, o princípio da legalidade administrativa deixa claro que o emprego da extra judicialidade decisória consensual, para além do acordo entre as partes (autonomia da vontade), pressupõe também prévia disposição legal quando envolve entes estatais. Nesse sentido, a lei 14.133/21, veio reforçar a necessária autorização legislativa ao elencar um capítulo inteiro (Capítulo XIII) com objetivo de regular o emprego dos meios alternativos da solução de controvérsias relacionadas às licitações e aos contratos administrativos. Assim, o caput do art. 151 consagra expressamente a faculdade que a administração tem de utilizar-se dos instrumentos alternativos para resolução de controvérsias6. Veja que se trata de mais uma opção, inserida no contexto da discricionariedade administrativa. Cabe ao Estado contratante optar, sob critérios de conveniência e oportunidade, pela judicialização ou extra judicialização do conflito. Uma vez escolhida a via de tratamento extrajudicial, o dispositivo apresenta a conciliação, a mediação, o comitê de resolução de disputas e a arbitragem como meios possíveis. Interessante ressaltar que este não é um rol taxativo, portanto, outros métodos também podem ser utilizados, além dos citados no caput do art. 151. A este respeito, lembremo-nos do disposto no artigo 175 do Código de Processo Civil7, que tem aplicação subsidiaria diante de lacuna. Vimos que a previsão trazida no Capítulo XIII da lei 14.133/21, não é totalmente inovadora. Algumas leis esparsas já trataram do assunto relativamente aos contratos administrativos: lei 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações); lei 9.478/97 (Lei do Petróleo); lei 10.233/01; lei 11.079/04 (Lei das Parcerias Público Privadas); a lei  11.196/05, que incluiu o art. 23-A na lei  8.987/95 (Lei de Concessões); e a lei 12.815/13 (Lei dos Portos), entre outras. O mérito da nova lei de licitações e contratos reside na sistematização específica do tema. De fato, a lei 8.666/93, não tratava do assunto e não mencionava qualquer método extrajudicial de solução de conflitos em seu texto. Sob sua regência, a jurisprudência teve papel relevante, portanto. O STJ manifestou-se pela possibilidade de utilização da arbitragem em contratos celebrados por empresas estatais8. Na mesma linha, o Tribunal de Contas da União destacou a inutilização da arbitragem em contratações de entes públicos9, tendo admitindo-a em contratos celebrados por empresas estatais10. Afirmava que: "o juízo arbitral e' inadmissível em contratos administrativos, por falta de expressa autorização legal e por contrariedade a princípios básicos de direito público". Dentre os métodos elencados pela lei 14.133/21, a arbitragem foi, historicamente, a mais analisada pelas cortes jurisdicionais, sem dúvida, e teve sua constitucionalidade chancelada pelo Supremo Tribunal Federal no processo de homologação de sentença estrangeira - SE 5206, de dezembro de 200111. O que se fez necessário porque a Lei de Arbitragem, em sua redação originária, não previa sua aplicação quando envolvesse entes públicos. A autorização legal somente veio em 2015, com a lei 13.129, admitindo-a em conflitos relativos a direito patrimoniais disponíveis. O parágrafo único do artigo 151 do nova lei de licitações e contratos cuidou de manter previsão expressa nesse sentido. Temos que há consenso doutrinário quanto a eficiência trazida pela utilização da arbitragem nas contratações públicas12. Da mesma forma, há entendimento pacífico quanto a natureza exemplificativa do rol de direitos disponíveis citados pela ei 14.133/2113. Assim, questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações são apenas algumas dentre tantas outras possíveis de serem solucionadas com a utilização de métodos alternativos. Sobre arbitragem, Alexandre Aragão (2017, p. 32) destaca que o conceito de disponibilidade de direitos alcançaria todas as matérias contratualizáveis. Estariam incluídas também as controvérsias afetas ao descumprimento das obrigações contratuais sem imediata expressão econômica, mas que posteriormente, apresentem repercussões econômicas. Dada a dificuldade em especificar a abrangência, Ricardo Yamamoto (2028, p.162-163) sugere que a cláusula arbitral seja a mais detalhada possível em definir as principais hipóteses de controvérsias arbitráveis em cada caso. Nesse sentido, interessante que a administração pública realize um criterioso exame de admissibilidade para utilização dos meios alternativos de solução de conflitos, especialmente para aferir, no caso concreto, a presença de direito patrimonial indisponível. A arbitragem é método heterocompositivo de solução de litígios no qual a controvérsia e' equacionada por um terceiro (árbitro), que deve ser imparcial e especialista na temática. Sua atuação deve ser sempre de direito e respeitará o princípio da publicidade14 quando envolver entes da Administração Pública. O artigo 152 possui previsão semelhante a que já constava na lei de arbitragem (artigo 2°, parágrafo 3°), e, ao se referir sobre a necessidade observância do princípio da publicidade, remonta discussão quanto à confidencialidade inerente aos métodos alternativos. Segundo Cristiane Iwakura (2021, p. 1351) "a confidencialidade é um elemento essencial para a fluidez nos meios de prevenção e resolução tidos como consensuais (mediação, conciliação e arbitragem). De fato, a confidencialidade é uma característica de tais meios (vide previsão do artigo 30 na lei de mediação15), mas sua mitigação nos casos que envolvam a Administração Pública não macula sua utilização, apenas exige uma ponderação entre direitos (intimidade/privada X transparência e publicidade/interesse público). Nesse sentido, Humberto Dalla e Patrícia Nunes (2018, p.24). Sobre arbitragem, Ricardo Yamamoto (2018, p. 66). Seguindo ainda na heterocomposição, o dispute boards (DB) é um comitê, formado por especialistas imparciais, que tem a atribuição de resolver disputas durante todo o desenvolvimento de um projeto16, normalmente de alta complexidade e de longa duração. Nas contratações públicas, sua utilização se encaixa bem em obras de engenharia de grande vulto, pois pressupõe que os membros do DB acompanhem sua execução do início ao fim, reduzindo os custos e aumentando o grau de resolutividade dos problemas contratuais17. Pode ser instituído sob diversos modelos: Dispute review board (DRB), quando não impõe decisões, mas fornece apenas sugestões para a resolução do conflito; o Dispute adjudication board (DAB), com capacidade decisória e o Combined dispute board (CDB), que mescla as possibilidades dos modelos anteriores. Com a rápida evolução, já se admite a utilização do online dispute resolution (ODR)18. Para sua utilização virtual dos meios de solução de conflitos sugere atenção redobrada às disposições da Lei Geral de Proteção de Dados - LGDP19. Na adoção do DB e da arbitragem, a nova lei de licitações e contratos exige que o processo de escolha dos árbitros, dos colegiados arbitrais e dos comitês de resolução de disputas pela Administração Pública observe critérios isonômicos, técnicos e transparentes20. Nada além do que já poderia ser extraído dos princípios constitucionais administração pública expressos no caput do artigo 3721. Por isonomia entenda-se a garantia de uma participação acessível a qualquer interessado que preencha os requisitos exigidos no caso concreto, bem como a busca pela imparcialidade relativamente às partes contratantes, que devem estar em igualdade de condições durante o processo de escolha dos árbitros, mediadores, conciliadores e membros do DB. O critério técnico exige que os selecionados tenham a expertise necessária no tema relacionado à contratação e, em especial, ao assunto objeto de controvérsia. Por fim, o processo de escolha deve ser público, assim como a condução dos trabalhos de composição dos conflitos. Convém lembrar que tais critérios devem ser observados com atenção para a designação dos integrantes das câmaras de prevenção e resolução administrativa de conflitos, no âmbito dos respectivos órgãos da Advocacia Pública da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios22. Na esfera federal, a Câmara de Mediação e de Conciliação da Administração Pública Federal - CCAF, é regida pelo decreto 11.328/23, e regulamentada pela Portaria Normativa AGU nº 24 de 27 de setembro de 2021. Segundo SEITZ e SIRKIN (2018, on line), a atribuição do Dispute Board, na modalidade DRB, seria absorvida pelas Câmaras de Conciliação e Arbitragem ou até mesmo pelos órgãos de assessoramento jurídico, já que nesse caso não há imposição de  decisão, mas apenas sugestões para a resolução do conflito. A este respeito, entretanto, Maximiliano Fernandez (2006, on line) faz contraponto ao destacar que os membros do DB devem ser independentes em relação com contratantes. Nas demais modalidade de DB, Dispute Adjudication Board  (DAB) e Combined Dispute Board (CDB), a Administração Pública deve avaliar com parcimônia a sua utilidade, uma vez que há delegação de atos decisórios ao comitê. Logo, uma vez admitida, o critério de seleção dos integrantes do Comitê deve levar este importante aspecto em consideração. Sobre mediação, conciliação e negociação temos que lembrar que são as formas de autocomposição de conflitos cuja aplicação apresenta-se efetiva para questões pontuais nas contratações públicas, que não pressupõem a manutenção de uma relação das partes a longo prazo23. Nelas, as próprias partes, com ou sem auxílio de terceiros, buscam a melhor solução possível para a controvérsia. Entende-se que o grande ganho à sua aplicação nas contratações refere-se às questões essencialmente patrimoniais, quando se busca uma decisão de ganha-ganha. Na negociação, as próprias partes, mediante diálogo e sem a intervenção de terceiro, buscam diretamente chegar a um termo quanto ao litígio. Na mediação e conciliação, um terceiro (mediador/conciliador), imparcial, deve auxiliar as partes na busca pelo consenso. De acordo com o artigo 153, os contratos em vigar poderão ser aditados para permitir a adoção dos meios alternativos de resolução de conflitos. Essa regra expressa, entretanto, não é totalmente inovadora. Os Enunciados 10 e 18 da I Jornada de Direito Administrativo da Justiça Federal24 já traziam a ideia de que "Em contratos administrativos decorrentes de licitações regidas pela Lei n. 8.666/1993, é facultado à Administração Pública propor aditivo para alterar a cláusula de resolução de conflitos entre as partes, incluindo métodos alternativos ao Poder Judiciário como Mediação, Arbitragem e Dispute Board."25 e "A ausência de previsão editalícia não afasta a possibilidade de celebração de compromisso arbitral em conflitos oriundos de contratos administrativos". Referências ARAGÃO, Alexandre Santos de. A Arbitragem no Direito Administrativo. In: Revista AGU, Brasília-DF, v. 16, n. 03, p.19-58, jul./set. 2017, p. 32. CABRAL, Antonio do Passo; CUNHA, Leonardo Carneiro da. Negociac¸a~o direta ou resoluc¸a~o colaborativa de disputas (collaborative law); "Mediac¸a~o sem mediador". in: ZANETTI JR., Hermes; CABRAL, Tri'cia Navarro Xavier. Justic¸a Multiportas: Mediac¸a~o, conciliac¸a~o, arbitragem e outros meios de soluc¸a~o de conflitos. Salvador: Juspodivm, 2006. FERRAZ, Luciano. Os Dispute boards no Projeto da Nova Lei de Licitações. Disponível aqui. Acesso em 29 mar. 2024. IWAKURA, Christiane Rodrigues. Dos meios alternativos de resolução de controvérsias in: Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos - Lei n°. 14.133/21, comentada por advogados públicos. Org. Leandro Sarai. São Paulo: Editora JusPodivum, 2021, p. 1345-1363. PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; NUNES, Patrícia, Elael. A confidencialidade e suas particularidades no procedimento de mediação envolvendo a Fazenda Pública. In: PINHO, Humberto Dalla Bernardina de; RODRIGUES, Roberto Aragão Ribeiro (orgs.). Mediação e arbitragem na administração pública. Curitiba: CRV, 2018, p. 24. POMPEU, Vládia. Multi-door Courthouse System: e exemplo norte-americano na busca da efetivação do acesso à justiça e a experiência brasileira na utilização do novo sistema in: Publicações da Escola da AGU: 1° Curso de Introdução ao Direito Americano: Fundamental of US Law Course, vol. 1, n. 12 set./out. 2011. Escola da AGU: Brasília, p. 361/383. POMPEU, Vládia; CASTRO, Roberta. Dispute board, Governança e Políticas públicas: uma tríade que pode dar (muito) certo. Disponível aqui. Acesso em 27 mar. 2024. RODRÍGUEZ FERNÁNDEZ, Maximiliano,.Dispute Resolution in International Construction Contracts: The Engineer and Dispute Boards (Resolución De Disputas En El Contrato Internacional De Construcción: La Labor Del Engineer Y De Los Dispute Boards) (2006). Revist@ e-mercatoria, Vol. 5, No. 2, 2006. Disponível aqui. Acesso em 29 mar. 2024. SALES, Lília Maia de Morais. Meios consensuais de solução de conflitos: instrumentos de democracia. In: Revista de informação legislativa, v. 46, n. 182, p. 75-88, abr./jun. 2009. Disponível aqui. Acesso em 27 mar. 2024. SCHIMIDT, Gustavo da Rocha. Os meios alternativos de solução de controvérsias na Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos in: Revista Brasileira de Alternative Dispute Resolution. Belo Horizonte, ano 03, n. 06, p. 69-92, jul./dez.2021. SEITZ, Collins; SIRKIN, S. Michael. The Demand Review Committee: How it Works, and How it Could Work Better (April 17, 2018). Business Lawyer, Volume 73 (Spring 2018), Disponível aqui. Acesso em 29 mar. 2024. SUXBERGER, Antônio; RODRIGUES, Nerosky; RIBEIRO, Ana Cláudia. Arbitragem como meio de solução de conflitos nos contratos da Administração Pública: limites, forma e momento de previsão. REPATS, Brasília, V. 4, n° 2, p. 455, Jul-Dez, 2017. Disponível aqui. Acesso em: 28 mar. 2024. YAMAMOTO, Ricardo. Arbitragem e administração pública: uma análise das clausulas compromissórias em contratos administrativos. Dissertação apresentada no Mestrado Profissional da escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Orientadora Daniela Monteiro Gabbay, 2018.  Disponível aqui. Acesso em 28 mar. 2024. __________ 1 Isso se deu com a reforma da Lei de Arbitragem - lei 9.307, de 23 de setembro de 1996, alterada  pela Lei n°. 13.129, de 26 de maio de 2015, que, dentre outros, tinha o objetivo de "ampliar o âmbito de aplicação da arbitragem" e dispões expressamente sobre a possibilidade da Administração Pública utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos à direitos patrimoniais disponíveis (artigo 1°, parágrafo 1°) 2 Já falávamos sobre o sobre o Sistema Multiportas de solução de conflitos em 2011. Veja POMPEU, Vládia. Multi-door Courthouse System: e exemplo norte-americano na busca da efetivação do acesso à justiça e a experiência brasileira na utilização do novo sistema In Publicações da Escola da AGU: 1° Curso de Introdução ao Direito Americano: Fundamental of US Law Course, vol. 1, n. 12 set./out. 2011. Escola da AGU: Brasília, p. 361/383. 3 Artigo 3°, parágrafo 2°. 4 Artigo 174. 5 Artigo 32, parágrafo 5°. 6 IWAKURA, 2021, p. 1346. 7 Art. 175. As disposições desta Seção não excluem outras formas de conciliação e mediação extrajudiciais vinculadas a órgãos institucionais ou realizadas por intermédio de profissionais independentes, que poderão ser regulamentadas por lei específica. 8 STJ, REsp 612.439/RS, rel. Min. João Otávio de Noronha, Segunda Turma, DJ 14/09/2006, p. 299; STJ, MS 11.308/DF, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Seção, DJe 19/05/2008. 9 TCU, Decisão 286/1993, Plenário, rel. Min. Homero Santos, Dou 04/08/1993; TCU, Acórdão 587/2003, Plenário, rel. Min. Adylson Motta, DOU 10/06/2003; TCU, Acórdão 906/2003, Plenário, rel. Min. Lincoln Magalhães da Rocha, DOU 24/07/2003; TCU, Acórdão 1099/2006, Plenário, rel. Min. Augusto Nardes, DOU 10/07/2006. 10 TCU, Acórdão 2094/2009, rel. Min. José Jorge, DOU 11/09/2009.   11 IWAKURA, 2021, p. 1347. 12 SUXBERGER; RODRIGUES; RIBEIRO, 2017, on line. 13 Artigo 151, parágrafo único. 14 O Artigo 152 traz previsão semelhante à do artigo 2°, parágrafo 3°, da Lei n°. 9.307, de 1996. 15 Art. 30. Toda e qualquer informação relativa ao procedimento de mediação será confidencial em relação a terceiros, não podendo ser revelada sequer em processo arbitral ou judicial salvo se as partes expressamente decidirem de forma diversa ou quando sua divulgação for exigida por lei ou necessária para cumprimento de acordo obtido pela mediação. 16 Alguns exemplos de sua aplicação foi a construção do aeroporto de Hong Kong, a expansão do Canal do Panamá e, no Brasil, podemos citar a construção da Linha 4-Amarela do metrô de São Paulo. 17 FERRAZ, 2021, on line. 18 POMPEU; CASTRO, 2024, on line. 19 Lei 13.709, de 14 de agosto de 2018. 20 Artigo 154. 21 Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte: (...)          22 Artigo 32, da Lei de Mediação. 23 IWAKURA, 2021, p. 1350. 24 Disponível aqui.
A alternatividade na resolução de conflitos pela Administração Pública já não causa estranheza1. Fazendo uma rápida digressão histórica, podemos dizer que o conceito de dispute board (DR) surgiu no ambiente corporativo norte americano, na década de 19702 e se popularizou depois que o Banco Mundial passou a exigir esta previsão para a concessão de financiamentos3. A ideia sustenta-se basicamente na criação de um comitê, formado por especialistas imparciais, que tem a atribuição de resolver disputas, durante todo o desenvolvimento de um projeto4, normalmente de alta complexidade e de longa duração. O dispute board pode ser instituído sob diversos modelos. Dispute review board (DRB), quando não impõe decisões, mas fornece apenas sugestões para a resolução do conflito; o Dispute adjudication board (DAB), com capacidade decisória e o Combined dispute board (CDB), que mescla as possibilidades dos modelos anteriores. Com a rápida evolução, já se admite a utilização do online dispute resolution (ODR). Seguindo a mesma lógica de consensualidade, os ODRs são métodos de resolução de conflitos sob uma formatação digital. Eles surgiram nos anos 1990, em decorrência do crescimento do comércio eletrônico atrelado à popularização da internet, e ainda é um conceito pouco difundido na Administração Pública. Segundo Carolina Moulin (2021), a aplicação de tecnologia à prática jurídica não é novidade no Brasil, o diferencial do contínuo desenvolvimento de técnicas de ODR se baseia no potencial da tecnologia de tornar a resolução de conflitos não apenas mais rápida e menos dispendiosa, mas de introduzir novas configurações capazes de melhorar a qualidade do processo, incrementando a percepção de justiça procedimental pelas partes e ampliando o acesso à justiça. De fato, a solução ou prevenção de conflitos já assumiu seu espaço como instrumento benéfico à Administração Pública, logo a institucionalização de comitê de prevenção e solução de disputa se coloca como mais numa perspectiva que, agora, alia-se à tecnologia para alcançar um novo patamar na entrega de valor público5. Assume, assim, um lugar de destaque como boa prática de governança nas contratações públicas. Quando instituídos em espaços virtuais, os métodos de resolução digital de controvérsias concedem às partes uma variedade de ferramentas para solucionar a disputa (LODDER e ZELEZNIKOW, 2005, p. 300), plataformas baseadas na internet que permitem às partes completarem o processo de tratamento de um conflito (SELA, 2018, p. 93). No cenário brasileiro de contratações públicas, a previsão legal está expressa na lei 14.133/2021. Com o propósito de conceder maior legitimidade ao instituto, segurança jurídica e aplicabilidade entre as partes, o legislador autorizou a viabilidade de se resolver uma disputa de forma consensual e administrativa. Nesse contexto, o DB seria mais um modo de compor de conflitos. Para melhor uniformização procedimental seria interessante uma regulamentação geral sobre o instituto, mas enquanto isso não acontece, a forma de aplicação e funcionamento do DB devem estar previstos minuciosamente no edital do certame e, consequentemente, e reproduzido em cláusula contratual. Ainda não há regulamentação a nível federal sobre o assunto. O que verificamos é que alguns entes federativos partiram na frente e regulamentaram a utilização do Dispute Board. Como exemplo, cita-se: Lei Municipal nº 16.873/2018 (São Paulo); lei municipal 11.241/2020 (Belo Horizonte); lei municipal 12.810/2021 (Porto Alegre); lei 15.812/2022 e decreto estadual 56.423 (Rio Grande do Sul). A estratégia principal que qualifica o instrumento do Dispute Board como uma boa prática de governança refere-se ao formato com o qual ele é desenvolvido. Vejamos: a mera exigência de que as próprias partes contratuais selecionem os seus representantes, dentre especialistas imparciais à demanda, é um aspecto importante. Essa opção mitiga o risco de assimetria de informações e previne a ocorrência de conflitos de interesses no momento da construção da solução consensual entre as partes. Instaura-se uma hipótese de negociação sustentável na medida em que, dessa relação entre os representantes especialistas das partes e o fiscal e/ou gestor do contrato incrementa-se a segurança e a diversidade de ideias na formatação da decisão final, evitando-se, muitas vezes, aumento de despesa pública desnecessária e investimento inadequados. Apesar dos benefícios que a solução consensual, inclusive quando aliada à tecnologia, podem incrementar ao desenvolvimento de políticas públicas6 bem estruturadas, percebemos que alguns gestores ainda não têm utilizado o DB, mesmo quando previsto em edital.  Alega-se a existência de riscos em razão da ausência de regulamentação e a questão da autoexecutoriedade de decisões administrativas. Não verificamos o DB como uma hipótese de inobservância do devido processo em face de sua "autoexecutoriedade decisória" já que previsão legal admite a consensualidade em controvérsias relacionadas a direitos patrimoniais disponíveis, como as questões relacionadas ao restabelecimento do equilíbrio econômico-financeiro do contrato, ao inadimplemento de obrigações contratuais por quaisquer das partes e ao cálculo de indenizações. Concluir que a solução do conflito compactaria uma decisão administrativa sem que a autoridade máxima, ou órgãos internos competentes, decidissem é uma interpretação apressada e até equivocada. Lembremo-nos que a Administração Pública também indica representante que compõe o comitê de resolução de conflitos. Além disso, pressupõe-se que todas as regras que o envolvem estarão previamente descritas em edital público. Pois bem, tendo como propósito assegurar a lisura na execução do objeto contratual, o DB possibilita que conflitos sejam solucionados de forma preventiva e evita a judicialização de demandas. Evita-se, ainda, a morosidade decisória7, diminuindo possíveis custos indiretos, principalmente com a atuação desnecessária de agentes públicos. A ausência da regulamentação a nível federal, nos parece, que em nada prejudica sua utilização, já que uma previsão editalícia adequada supriria a necessidade do detalhamento procedimental que se esperara da normatização infralegal. Referências LODDER, Arno; ZELEZNIKOW, John. Developing an Online Dispute Resolution Environment: dialogue tools and negotiation support systems in a three-step model. Harvard Negotiation Law Review, v. 10, p. 287-337, 2005.  MOULIN, C. S. A. Métodos de resolução digital de controvérsias: estado da arte de suas aplicações e desafios. Revista Direito GV, v. 17, n. 1, p. e2108, 2021.  SELA, Ayelet. Can computers be fair? How automated and human-powered online dispute resolution affect procedural justice in mediation and arbitration. Ohio State Journal on Dispute Resolution, v. 33, n. 1, p. 91-148, 2018.  SILVA, Vládia Pompeu. Políticas públicas, conformação e efetivação de direitos. Editora Foco, 2022. CARVALHO, Thaís Strozzi Coutinho. Comitê de Resolução e Prevenção de Conflitos (Dispute Board) nos Contratos de Concessão de Infraestrutura de Transportes. Monografia de Mestrado - INSTITUTO BRASILIENSE DE DIREITO PÚBLICO - 2022. RIBEIRO, Ana Paula Brandão e RODRIGUES, Isabella Carolina Miranda. Os Dispute Boards no Direito Brasileiro. REVISTA DIREITO MACKENZIE v. 9, n. 2, p. 129-159. __________ 1 A lei 13.140, de 26 de junho de 2015, já vinha dispondo sobre a sobre a mediação e a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública. Bem antes, a lei 9.307, de 26 de setembro de 1996, previa que "A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis", logo em no primeiro artigo. O Código de Processo Civil, em seu art. 3, parágrafo 2, demonstra até uma certa imposição na aplicação, quando nos expõe que " O Estado promoverá, sempre que possível, a solução consensual dos conflitos." 2-3 Nesse sentido, a legislação brasileira para contratos administrativos se apresenta bastante favorável à utilização de mecanismos extrajudiciais de solução de controvérsias, assim genericamente denominados, conforme disposição da norma do §5º do art. 42 da Lei n. 8.666/1993 (BRASIL, 1993), o qual permite sejam adotadas cláusulas contendo meios alternativos à jurisdição estatal desde que exigidos pela instituição responsável pelo financiamento do projeto como condição para sua aprovação (GALVÃO, 2012). Art. 42. Nas concorrências de âmbito internacional, o edital deverá ajustar-se às diretrizes da política monetária e do comércio exterior e atender às exigências dos órgãos competentes. § 5o Para a realização de obras, prestação de serviços ou aquisição de bens com recursos provenientes de financiamento ou doação oriundos de agência oficial de cooperação estrangeira ou organismo financeiro multilateral de que o Brasil seja parte, poderão ser admitidas, na respectiva licitação, as condições decorrentes de acordos, protocolos, convenções ou tratados internacionais aprovados pelo Congresso Nacional, bem como as normas e procedimentos daquelas entidades, inclusive quanto ao critério de seleção da proposta mais vantajosa para a administração, o qual poderá contemplar, além do preço, outros fatores de avaliação, desde que por elas exigidos para a obtenção do financiamento ou da doação, e que também não conflitem com o princípio do julgamento objetivo e sejam objeto de despacho motivado do órgão executor do contrato, despacho esse ratificado pela autoridade imediatamente superior (BRASIL, 1993). (...) O mesmo se diga quanto à Lei n. 8.987/1995 (BRASIL, 1995) que em seu art. 23-A também autorizou a Administração Pública a celebrar contratos de concessão de serviços públicos que prevejam cláusulas de mecanismos privados para resolução de disputas, incluindo-se aqui os dispute boards, e quanto à Lei n. 11.079/2004 (BRASIL, 2004), art. 11, III, para os contratos de parcerias público-privadas: Art. 23-A. O contrato de concessão poderá prever o emprego de mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996. Art. 11. O instrumento convocatório conterá minuta do contrato, indicará expressamente a submissão da licitação às normas desta Lei e observará, no que couber, os §§ 3º e 4º do art. 15, os arts. 18, 19 e 21 da Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995, podendo ainda prever: III - o emprego dos mecanismos privados de resolução de disputas, inclusive a arbitragem, a ser realizada no Brasil e em língua portuguesa, nos termos da Lei n. 9.307, de 23 de setembro de 1996, para dirimir conflitos decorrentes ou relacionados ao contrato (BRASIL, 2004). (Dispute Board no Direito Brasileiro, REVISTA DIREITO MACKENZIE v. 9, n. 2, p. 128-159) Lei 13.140/2015. Dispõe sobre a mediação entre particulares como meio de solução de controvérsias e sobre a autocomposição de conflitos no âmbito da administração pública; altera a Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997, e o Decreto nº 70.235, de 6 de março de 1972; e revoga o § 2º do art. 6º da Lei nº 9.469, de 10 de julho de 1997. 4 Alguns exemplos de sua aplicação foi a construção do aeroporto de Hong Kong, a expansão do Canal do Panamá e, no Brasil, podemos citar a construção da Linha 4-Amarela do metrô de São Paulo. 5 Segundo o decreto 9.203, de 22 de novembro de 2017, entende-se por valor público, "produtos e resultados gerados, preservados ou entregues pelas atividades de uma organização que representem respostas efetivas e úteis às necessidades ou às demandas de interesse público e modifiquem aspectos do conjunto da sociedade ou de alguns grupos específicos reconhecidos como destinatários legítimos de bens e serviços públicos." 6 "Processo que direciona o agir do governo e a atuação da administração pública, estruturada pelo direito e conformada a partir do inter-relacionamento entre Estado e sociedade, com a finalidade de concretizar acesso a dignidade humana a todos os cidadãos" (SILVA, 2022, P. 33) 7 "Igualmente, podemos dizer que existem benefícios intangíveis próprios da mera presença do DB que influenciam em uma atitude de cooperação das partes, em uma atitude proativa na administração dos conflitos; mediante a oportuna intervenção do DB se evita que as controvérsias entre as partes originem conflitos maiores, como poderia ser a paralisação da obra; permite-se agilizar a resolução das controvérsias em contratos de larga execução e complexidade técnica, especialmente em obras de engenharia e de construção; atuam tão logo são solicitados de forma ágil; estão familiarizados com o desenvolvimento da obra, a prova dos fatos está à mão, pelo que tudo isso leva as recomendações ou decisões do DB a serem, na grande maioria dos casos, acatadas e aceitas pelas partes, com o que se evita ir à arbitragem ou à litigação" (VALDÉS, 2012, p. 128, tradução nossa). (Do original:. "Igualmente, podemos decir que existen beneficios intangibles propios de la sola presencia del DB que influyen en una actitud de cooperación de las partes, en una actitud pro-activa en la administración de los conflictos; mediante la oportuna intervención del DB se evita que las controversias de las partes deriven en conflictos de mayor entidad, como podría ser la paralización de la obra; se permite agilizar la resolución de las controversias en contratos de larga ejecución y complejidad técnica, especialmente en obras de ingeniería y de la construcción; actúan tan pronto son requeridos en forma ágil; están interiorizados del desarrollo de la obra, la prueba de los hechos está a la mano, por todo lo cual lleva a que las recomendaciones o decisiones del DB son en la gran mayoría de los casos acatadas o aceptadas por las partes, con lo que se evita ir a arbitraje o a litigación." Disponível aqui.
No Brasil inexistia clareza quanto à configuração de uma política pública1 de Integridade específica2 até a publicação do Decreto n. 10756, de 27 de julho de 2021, que instituiu o Sistema de Integridade Pública do Poder Executivo Federal - SIPEF. De fato, coexistiam (e ainda coexistem) inúmeras iniciativas esparsas, leis e normas infralegais sobre o assunto, bem como a institucionalização autônoma de sistemas e/ou programas de integridade pelas diversas instituições públicas federais sem que se apresentasse a sistematicidade necessária quanto aos objetivos e fundamentos que direcionam o agir do governo e o atuar da administração pública. Igualmente não se identificava uma correlação clara entre medidas de prevenção à prática de irregularidades e o incremento do patamar civilizatório relacionado a raça e gênero no âmbito público. Esse é o ponto que pretendemos abordar: como as políticas de integridade podem (e devem) qualificar a discussão sobre equidade de gênero e raça no setor público federal, promovendo um ambiente mais inclusivo, equânime e igualitário. No primeiro momento, apresentaremos os principais aspectos da política pública de integridade do poder executivo federal, ainda (in)sensível a questões de gênero e raça. Para então a propormos ideias voltadas ao desenvolvimento da agenda e à formulação de uma política pública que possa garantir a inclusão das questões de equidade de gênero e raça na agenda de integridade pública. A busca pelo aperfeiçoamento da integridade nos espaços públicos nasceu como estratégia contra a corrupção, sustentada e definida pela OCDE  como um "dos principais pilares das estruturas políticas, econômicas e sociais" (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE, 2017), mas ganhou amplitude com o passar dos anos. O próprio Conselho da OCDE sobre Integridade Pública defende o deslocamento do foco das políticas de integridade ad hoc para uma abordagem dependente do contexto, comportamental e baseada em risco, com ênfase em cultivar uma cultura de integridade em toda a sociedade. Um sistema de integridade adequado abrangeria assim uma gestão de alto nível, responsabilidades bem definidas, utilização de dados e indicadores para avaliação com base em riscos e clareza na definição e comunicação de regras e valores que devem se refletir nas normas e políticas organizacionais. E, neste contexto, claramente deveríamos encontrar valores e indicadores relacionados à raça e gênero, afinal não há como imaginarmos integridade sem um status social de igualdade entre os seres humanos. De outra via, qualquer conduta discriminatória deve ser qualificada como irregularidade administrativa ou conduta ante ética. Conceituando-se integridade como o "alinhamento consistente e à adesão de valores, princípios e normas éticas comuns para sustentar e priorizar o interesse público sobre os interesses privados no setor público" (Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) 2017),  a OCDE plantou a semente que hoje nos permite discutir a utilização dos instrumentos de integridade para promover uma maior  igualdade de gênero e de raça no âmbito das instituições públicas. Pensar na integridade pública com "foco na mudança de comportamentos pode ser um grande desafio, mas é necessário. Só assim podemos avaliar o que está sendo feito para além do cumprimento dos requisitos mínimos da legislação" (Carlos Mauro. [et al.] 2021). Entretanto, esse caminho ainda está para ser construído, uma vez que atual política pública de integridade do Poder Executivo Federal, consubstanciada no Decreto n. 11.529, de 17 de maio de 2023, que se propõe a "estabelecer padrões para as práticas e as medidas de integridade" sequer menciona a equidade de gênero e raça dentre suas metas e indicadores. Não há sequer previsão da discriminação racial e de gênero como risco à integridade pública. Importante destacar que a integridade era, até o surgimento do SIPEF (política pública anterior), normativamente reconhecida como o princípio da governança pública e uma das condições mínimas a serem exigidas dos líderes públicos pelo Decreto n. 9203, de 22 de novembro de 2017. Esse mesmo normativo determina, ainda, que os órgãos e as entidades da administração direta, autárquica e fundacional devem instituir programa de integridade, com o objetivo de promover a adoção de medidas e ações institucionais destinadas à prevenção, à detecção, à punição e à remediação de fraudes e atos de corrupção, estruturado nos seguintes eixos: comprometimento e apoio da alta administração; existência de unidade responsável pela implementação no órgão ou na entidade; análise, avaliação e gestão dos riscos associados ao tema da integridade; monitoramento contínuo dos atributos do programa de integridade. Vê-se que antes também não havia interrelação entre programas de integridade e o combate à discriminação de gênero e raça, pelo menos, não de forma direta. Inobstante, esse instrumento ter sido conceituado, pela própria legislação, como "conjunto estruturado de medidas institucionais para prevenção, detecção, punição e remediação de práticas de corrupção e fraude, de irregularidades e de outros desvios éticos e de conduta"3 e, em que pese, casos de discriminação e assédio já eram penalizados pela própria Administração Pública Federal. O SIPEF, enquanto uma política pública de integridade do Poder Executivo Federal, foi instituído com o objetivo de coordenar e articular as atividades relativas à integridade e estabelecer padrões para as práticas e medidas a ela relacionadas. Sob a coordenação da Secretaria de Transparência e Prevenção da Corrupção da Controladoria-Geral da União, as unidades responsáveis pela gestão da integridade passaram a implementar a integridade na prática. Atualmente substituído pelo SITAI - Sistema de Integridade, Transparência e Acesso à Informação da Administração Pública Federal, regulamentado pelo Decreto n. 11.529, de 16 de maio de 2013), que avançou ainda mais no que se refere a possibilidade de tratar questões voltadas à promoção de maior equidade racial e de gênero no setor público. A nova política pública de integridade do Poder Executivo Federal amplia o programa de integridade para entendê-lo como o "conjunto de princípios, normas, procedimentos e mecanismos de prevenção, detecção e remediação de práticas de corrupção e fraude, de irregularidades, ilícitos e outros desvios éticos e de conduta, de violação ou desrespeito a direitos, valores e princípios que impactem a confiança, a credibilidade e a reputação institucional"4. Com mais propriedade agora, podemos imaginar a inserção de indicadores e metas relacionados à igualdade de gênero e racial em seu contexto. Porém ainda não vislumbramos, de maneira clara, como isso será estabelecido de maneira prática. Cabe à Controladoria-Geral da União, enquanto órgão central do SITAI5, detalhar essa norma programática e estabelecer uma agenda efetiva que concretize a relação entre a política pública de integridade federal no Brasil e o incremento do patamar civilizatório relacionado a raça e gênero. Aguardamos por isso ansiosamente... Referências Carlos Mauro. [et al.] (2021): Muitos - Como as Ciências Comportamentais podem tornar os programas de Compliance Anticorrupção mais efetivos. 1 ed.: Editora Brasileira de Arte e Cultura. (17/07/2023): D10756. On-line Disponível aqui, Última verificação em 07/10/2023. (17/05/2023): D11529. On-line Disponível aqui, Última verificação em 07/10/2023. Manual de Integridade Pública da OCDE | OECD iLibrary (2023). On-line Disponível aqui, Última atualização em 07/10/2023, Última verificação em 07/10/2023. Organização de Cooperação para o Desenvolvimento Econômico (OCDE) (2017): Recomendação do Conselho da OCDE sobre Integridade Pública. On-line Disponível aqui. Silva, Vládia Pompeu (2022): Políticas públicas. Conformação e efetivação de direitos. Indaiatuba (SP): Foco. __________ 1 Adotamos o conceito de políticas públicas, construído por nós, a partir da teoria de Joaquin Herrera Flores,  como o "processo que direciona o agir do governo e atuação da administração pública, estruturada pelo direito e conformada a partir do inter-relacionamento entre Estado e sociedade, com a finalidade de concretizar a dignidade humana a todos os cidadãos Silva 2022, pág. 33 2 Segundo a OCDE, alguns países optam por uma única estratégia nacional deintegridade ou anticorrupção, embora isso não seja indispensável. Independentemente da forma, uma abordagem estratégica para a integridade pública deve conter todos os seguintes elementos: análise de problemas (identificação, análise e mitigação de riscos) desenho da estratégia (priorização de objetivos, consulta e coordenação políticas); desenvolvimento de indicadores com linhas de base, marcos e metas; elaboração do plano de ação, distribuição de responsabilidades e cálculo dos custos das atividades; implementação, monitoramento, avaliação e comunicação dos resultados do monitoramento e da avaliação, incluindo avaliação prévia à implementação. Manual de Integridade Pública da OCDE | OECD iLibrary 2023, pág. 44 3 Artigo 2°, do Decreto n. 10756, de 27 de julho de 2021. 4 Artigo 3°, inciso, II. 5 Artigo 5°, inciso I, do Decreto n° 11.529, de 2023.
Ao lado do credenciamento, do procedimento de manifestação de interesse, do sistema de registro de preços e do registro cadastral, a pré-qualificação tem previsão expressa na lei 14.133, de 1° de abril de 2021, sendo considerada um dos procedimentos auxiliares que objetivam contribuir com maior eficiência no processo de contratações públicas. O reforço normativo trazido pela nova lei de licitações e contratações corrobora essa intenção, em que pese não se tratar de novidade, já que antes era prevista na lei 8.666, de 19931, embora em reduzido contexto de aplicação. Grosso modo, a ideia por trás da pré-qualificação é a de que licitação posterior seja limitada aos produtos pré-qualificados que serão oferecidos por diversos fornecedores aptos à execução do serviço ou obra. Tem natureza de "um ato administrativo declaratório do preenchimento a requisitos determinados de qualificação técnica por um sujeito (subjetiva) e (ou) do atributo mínimo de qualidade de um objeto (objetiva)" (2012, p. 234). Para nós, representa nada mais que uma verificação antecipada da qualificação relacionada ao sujeito ou ao objeto feita pela Administração Pública que nos induz a crer em ganhos de eficiência com sua utilização. Esse procedimento auxiliar parece concretizar na prática o atingimento do princípio da eficiência, declarado na Constituição Federal da República Federativa do Brasil, com maior amplitude nas contratações públicas. Exigindo, assim como sugere Loureiro (1995, p. 132), que a eficiência seja entendida ora como celeridade ora como economicidade2, tornando o trabalho o mais produtivo possível com menor dispêndio de tempo e custo possível. Distancia-se de um princípio da eficiência administrativa meramente decorativo (2002, p. 86) para refletir a força normativa inerente aos princípios constitucionais (1991, p. 27). Na sua formatação objetiva, a pré-qualificação terá razão de ser nos procedimentos licitatórios que tenham como objeto não só uma aquisição, mas também, uma contratação de serviços e obras que envolvam o fornecimento de bem futuro, limitando-se à análise técnica e de qualidade e não das técnicas empregadas na obra ou serviço. Numa perspectiva subjetiva, pode abarcar alguns ou todos os requisitos de habilitação necessários à ulterior contratação. De todo modo, a pré-qualificação antecipa a análise da qualificação relacionada ao sujeito ou ao objeto, o que torna desnecessária nova apresentação da documentação pertinente ao ponto específico em procedimentos licitatórios ou contratações administrativas futuras. Uma só pré-qualificação, portanto, pode ser utilizada para diversas pretensões contratuais (pré-qualificação permanente). Evita-se repetições procedimentais desnecessárias e burocráticas, gerando redução de custos para a Administração Pública e para os licitantes. Nenhum exemplo, na nova lei de licitações e contratos, traz melhor acepção prática para o termo eficiência administrativa nas contratações do que esse procedimento auxiliar. Nos termos do artigo 80, § 1º, da lei 14.133/21, quando a pré-qualificação for aberta a licitantes esses poderão ser dispensados da apresentação de documentos que já constarem do registro cadastral e, no caso de ser lançada para bens, poderá ser exigida apenas a comprovação de sua qualidade, inclusive com a exigência de apresentação de certificados e amostras de acordo com o caso concreto. Poderá, ainda, a pré-qualificação subjetiva ser realizada em grupos ou segmentos, segundo as especialidades dos fornecedores, o que deverá levar em consideração a complexidade do objeto a ser contratado3. Dessarte, a nova lei de licitações e contratos determina expressamente que o procedimento de pré-qualificação fique permanentemente aberto para a inscrição dos eventuais interessados em seu artigo 80, § 2º devendo ser publicado no Portal Nacional de Contratações Públicas o edital de pré-qualificação (art. 174, § 2º, inciso III). De fato, com a pré-qualificação permanente, a Administração Pública pode produzir uma única aferição de condições de habilitação de potenciais fornecedores ou de exigências técnicas ou de qualidade de objetos pretendidos, o que resultará na possibilidade de sua utilização para vários procedimentos licitatórios, reduzindo-se significativamente a repetição de avaliações de habilitação ou da exigência técnica ou de qualidade dos bens de interesse do contratante. A pré-qualificação poderá ser parcial ou total, contendo alguns ou todos os requisitos técnicos ou de habilitação necessários à ulterior contratação. Em todo caso, a Administração Pública contratante deve atentar-se à igualdade de condições entre os concorrentes4. Quando a opção for pela pré-qualificação parcial, as licitações deverão exigir apenas a complementação dos requisitos de habilitação ou técnicos faltantes, devendo o interessado pré-qualificado juntar a documentação respectiva e não avaliada no procedimento anterior de pré-qualificação. Diferentemente, na pré-qualificação total será desnecessária nova apresentação da documentação já avaliada no procedimento auxiliar realizado anteriormente. Nesses termos, quando a pré-qualificação for total, ou seja, relativa a todos os requisitos que possivelmente serão exigidos nos certames a seguir, possível se torna a realização de licitação restrita aos candidatos pré-qualificados, conforme as condições que forem estabelecidas no edital. Nesse caso, exsurge a necessidade de indicação, já no edital de pré-qualificação, da informação acerca da restrição dos futuros procedimentos licitatórios à participação exclusiva dos pré-qualificados. Outro ponto de destaque diz respeito ao resultado da pré-qualificação. Uma vez identificada a inviabilidade de competição, a Administração Pública pode optar pela contratação direta, ou ainda, pela alteração da modelagem anteriormente eleita com a intenção de não restringir a competitividade. Vê-se que a utilização do procedimento auxiliar de pré-qualificação, da forma como trazida pela lei 14.133, de 2021, para as diversas pretensões contratuais compatíveis, reforça a observância do princípio da eficiência administrativa. Demonstra ganhos tanto para a Administração Pública, que deixará de realizar procedimentos burocráticos dispendiosos, quanto para os licitantes, que não precisarão repetir a comprovação de sua qualidade técnica nos diversos certames que venha a participar. Esse instituto não está diretamente vinculados a uma contratação específica, podendo ser utilizados para uma pluralidade licitações ou pretensões contratuais. Entender esse ponto é fundamental, pois permite que seja utilizado como meio para otimização e facilitação das contratações públicas. _____________ 1 Artigo 114, hipótese em que foi estabelecido procedimento para a modalidade concorrência[1], que funciona como uma antecipação da parte do certame relacionada à aferição técnica dos interessados. 3 Artigo 80, § 6º, da Lei nº 14.133, de 2021. 4 Artigo 80, § 7º, da Lei n. 14.133, de 2021. _____________ GABARDO, Emerson. Princípio constitucional da eficiência administrativa. São Paulo: Dialética, 2002. HESSE. Konrad. A força normativa da Constituição. Tradução de Gilmar Ferreira Mendes. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 1991. LOUREIRO, João Carlos Simões Gonçalves. O Procedimento Administrativo entre a Eficiência e a Garantia dos Particulares: Algumas Considerações. Boletim da Faculdade de Direito de Coimbra, Coimbra, 1995. SARAI, L. (org). Tratado da nova lei de licitações e contratos administrativos: Lei 14.133/21 comentada por advogados públicos. Salvador: Juspodivm, 2021.
Em 1988, quando a Constituição da República Federativa Brasileira foi promulgada, muitos serviços públicos estavam sendo prestados pela iniciativa privada sob a formatação de termo de credenciamento ou ato de permissão, os quais se submeteriam imediatamente à aplicabilidade da obrigação de licitar, tão logo se expirasse o prazo de vigência. Isso porque, naquela ocasião, instaurou-se uma nova normatividade para a execução indireta de serviços públicos e com ela, uma exigência bastante relevante: a realização de licitação prévia. Nessa linha, este ensaio pretende fazer algumas reflexões acerca da situação das permissões de serviços públicos firmadas em época anterior à Constituição Federal de 1988, tendo como pano de fundo a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) 142/2015, de autoria do Deputado Fausto Pinatto, aprovada na Câmara dos Deputados e enviada para apreciação do Senado Federal1, considerando a clássica distinção doutrinária havida entre concessão e permissão e suas implicações. Muito embora o legislador constituinte tenha disciplinado juntamente os institutos da concessão e da permissão por meio do art. 175 da CF/882, antes do advento da Constituição, as distinções fáticas dos institutos instauraram reflexos práticos importantes. De fato, a Carta de 1998 não contemplou a situação dos credenciados e permissionários de serviços públicos que tinham seus instrumentos vigorando por prazo indeterminado à época de sua promulgação, o que deu azo a um ambiente de insegurança jurídica. A inexistência de norma de transição que contemplasse a situação dos permissionários que, em muitos casos, tinham procedido a vultuosos investimentos para o desenvolvimento dos serviços objetos da permissão nos trouxe até aqui. Muito embora o Poder Legislativo tenha conferido tratamento legal especial às concessões públicas nos anos posteriores à promulgação da Carta Constitucional, principalmente por intermédio do diploma regulador das concessões e permissões - Lei 8987, de 1995, tal proceder não se refletiu em segurança jurídica igualmente às permissões, que se viram desprovidas de regras claras de transição, mormente aquelas cujos instrumentos continham prazo indeterminado. Em resposta, a PEC 142/2015, já aprovada em dois turnos na Câmara dos Deputados se encontra atualmente em tramitação no Senado Federal, tem o objetivo de incluir o art. 101 ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) sugerindo que "Os termos de credenciamento ou permissão de serviços públicos disciplinados por lei específica que à época da promulgação da Constituição Federal estavam vigorando por prazo indeterminado poderão ter prazo e condições fixados em contrato, independentemente de licitação, assegurando-se-lhes renovação por igual período, findo o qual o serviço deverá ser licitado". Lembremo-nos que expressamente consideram-se válidas, pelo prazo fixado no contrato, as concessões outorgadas anteriormente à entrada em vigor da lei 8987, de 1995  (art. 42, caput). Logo, há regra legal específica para as concessões, mas não para aas permissões. Na mesma linha, os parágrafos 2º e 3º do art. 42 da Lei 8987, de 1995 determinaram a realização de diversas providências no sentido de proceder ao levantamento de elementos da concessão que possibilitasse aferir a existência ou não de direito de indenização por partes dos concessionários cujos investimentos não tivessem sido amortizados, com o fim de validar as "concessões em carater precário" firmadas antes da entrada em vigor da norma. Tal tratamento, entretanto, não se estendeu às permissões de serviços públicos, ainda que ostentassem na prática características idênticas às concessões "precárias", ante o entendimento sedimentado na doutrina. O argumento afeto à legalidade tem sido utilizado, portanto, para fundamentara a recusa da administração de indenizar permissionários. Se de um lado etores da Administração argumentam que o caráter legal de precariedade de que se revestem as permissões retira-lhes a possibilidade de indenizações, de outro verifica-se a situação de alguns permissionários que detém vínculos mais fortes com o poder público do que o que seria esperado em acordos de permissões dito tradicionais. Neste ponto, cumpre ressaltar o conceito legal de concessão, que, segundo o artigo 2º da lei 8.987, de 1995, já com redação atualizada pela nova lei de licitações e contratos administraivos, é a delegação de sua prestação, feita pelo poder concedente, mediante licitação, na modalidade concorrência ou diálogo competitivo, a pessoa jurídica ou consórcio de empresas que demonstre capacidade para seu desempenho, por sua conta e risco e por prazo determinado. Trata-se, portanto, de vínculo contratual que ostenta estabilidade e determinação, ao passo que a permissão é caracterizada pela revogabilidade, indeterminação e precariedade. Vide a redação do art. 40 da lei 8987, de 19953. Aqui se está a discutir as nuances de casos concretos que se repetem, em que permissões se revestem de características bastante similares às concessões. Contrapõem-se com clareza fato (realidade) e norma (direito). Neste sentido, é curiosa a previsão do art. 42, parágrafo 2°, da Lei de Concessões4, que trata das ditas "concessões precárias", despidas de instrumento formal, sem prazo determinado às quais, obviamente, carregam traços que as faz bastante parecidas com as permissões de serviço público. Entretanto, dita previsão legal não se estendeu às permissões que se revestem de natureza de concessões, embora abundam casos concretos de permissões com prazo alongado ou determinado, que contaram com pesados investimentos por parte do parceiro privado, às quais, podem ser consideradas, de fato, verdadeiras concessões de serviços públicos. Vale mencionar quanto ao ponto em particular o entendimento de Egon Bockmann Moreira para quem determinados traços jurídicos afastam determinados vínculos reconhecidos formalmente como permissões, para reconhecer que se tratam de verdadeiras concessões, dos quais vale mencionar: a execução de obras públicas; investimentos de longa maturação; sejam outorgados sem licitação (a não ser por inexigibilidade ou dispensa); exijam aportes de recursos públicos e instrumentalizados por meio de um ato unilateral. Diversos casos práticos exemplificam o que aqui se está a apresentar como é o caso dos transportes coletivos, em que se verificam situações de elementos do vínculo do permissionário fazem com que tal acordo se amolde a verdadeiras concessões de serviços públicos, notadamente no que se refere à necessidade de investimentos pesados por parte do permissionário. Sobre o tema, o Supremo Tribunal Federal decidiu, por ocasião do julgamento do Recurso em Mandado de Segurança 18.787, que "adquirido o direito à exploração do serviço de transporte coletivo, não pode a Administração revogá-la, unilateralmente, com prejuízo da empresa permissionária". Levou em conta as obrigações e o vulto dos investimentos empregados pela permissionária.  De forma que há que se considerar que se o legislador tratou de acomodar situações informais de concessões anteriores à lei, igualmente haveria que se reconhecer a natureza de situações constituídas sob a modalidade de permissão que ostente, na prática, características  idênticas às das concessões. Nessa linha, acaso a "permissão" detenha as características de concessão, algumas implicações práticas deveriam se fazer presentes, como o direito ao levantamento de valores eventualmente devidos ou o direito ao reequilíbrio econômico-financeiro da avença. Não se pode conceder excessiva valoração da norma em detrimento à realidade dos fatos. Na linha do Poder Legislativo, através da PEC 142/2015, demonstra preocupação com a insegurança jurídica decorrente da situação das permissões já existentes antes do advento da Carta de 1988, entendemos que o nomem juris de determinadas permissões de serviço público não deveriam se sobrepor às características reais de que se revestem as avenças na prática. Se permissões detiverem a natureza idêntica à de concessões precárias deve-se primar pelo privilégio da realidade e não do rótulo jurídico, a fim de se resguardar a segurança jurídica dos acordos firmadas, notadamente no que se refere a indenizações por investimentos não amortizados e eventuais equilíbrios econômico-financeiro.  Referência MOREIRA, Bockmann Egon. Direito das Concessões de Serviços Públicos. Ed. Fórum. 2.ed: 2022. __________ 1 Disponível aqui. 2 Art. 175. Incumbe ao Poder Público, na forma da lei, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, sempre através de licitação, a prestação de serviços públicos. 3 Art. 40. A permissão de serviço público será formalizada mediante contrato de adesão, que observará os termos desta Lei, das demais normas pertinentes e do edital de licitação, inclusive quanto à precariedade e à revogabilidade unilateral do contrato pelo poder concedente. 4 As concessões em caráter precário, as que estiverem com prazo vencido e as que estiverem em vigor por prazo indeterminado, inclusive por força de legislação anterior, permanecerão válidas pelo prazo necessário à realização dos levantamentos e avaliações indispensáveis à organização das licitações que precederão a outorga das concessões que as substituirão, prazo esse que não será inferior a 24 (vinte e quatro) meses.
A intrínseca relação entre responsabilização e liberdade de atuação do advogado público sempre nos exige bastante atenção, especialmente quando a análise se insere no contexto de casos submetidos às instâncias de controle. Para além disso, reflexões mais profundas sobre o papel a ser exercido pelo parecerista jurídico devem necessariamente ser igualmente contempladas O Supremo Tribunal Federal menciona a este respeito no julgamento do HC 158086, em 18.09.2018: Atribuir responsabilidade integral ao parecerista pode acarretar dois reveses ao funcionamento da Administração Pública. Em primeiro lugar, o parecerista estaria menos propenso a trazer teses inovadoras, ainda que razoáveis, das quais poderia advir soluções mais adequadas ao interesse público in concreto. Em vez de viabilizar políticas públicas, o advogado público se tornaria um mero burocrata, atando-se a procedimentos mais longos, difíceis e custosos. Esse engessamento não corresponde a um retorno em moralidade pública, mas em ineficiência. Em segundo lugar, a responsabilização plena dos advogados públicos por suas opiniões jurídicas ocasionaria a assunção, por estes, da função de administradores.  A sensível relação noticiada fica ainda mais latente quando nos deparamos com o Acórdão nº 7289/2022 da Primeira Câmara do Tribunal de Contas da União - TCU no qual houve responsabilização do parecerista jurídico municipal que aprovou minuta de edital de licitação contendo exigências que, na análise daquele Tribunal, teriam restringido indevidamente a competitividade do certame. De fato, a jurisprudência do TCU sedimentou-se ao longo dos anos no sentido de que pareceres jurídicos emitidos com fundamento no art. 38, parágrafo único, da lei 8.666/1993, são obrigatórios e vinculantes já que "As minutas de editais de licitação, bem como as dos contratos, acordos, convênios ou ajustes devem ser previamente examinadas e aprovadas por assessoria jurídica da Administração". Por outro lado, em casos de discordância do gestor com os termos do parecer, ele deve expor os motivos de seu dissenso, garantindo assim sua autonomia decisória-gerencial sem afetar a independência técnico-jurídica do parecerista. Soma-se ao entendimento acima argumentações no sentido de que caso o gestor decida por seguir a opinião manifestada no parecer jurídico a fundamentação contida no parecer agregaria ao seu ato decisório, dessa forma, caberia responsabilização do parecerista jurídico quando configurado erro grave, inescusável ou culpa em sentido amplo, aqui incluído o dolo ou a culpa stricto sensu, na prática do ato considerado irregular. Outras decisões do TCU exemplificam a adoção desta posição como os Acórdãos nº 512/2003, 1.536/2004, 1.898/2010, 1.380/2011, 1.591/2011, 1.857/2011, 689/2013 434/2016 todos do Plenário. Também o Supremo Tribunal Federal já decidiu sobre o tema: MS nº 24.073/DF, MS nº 24.631/DF, MS nº 24.584/DF. No caso específico do Acórdão nº 7289/2022 da Primeira Câmara, a fundamentação sustentou-se numa atuação com erro grave e inescusável do parecerista jurídico ao aprovar minuta de edital contendo exigências que, segundo análise do TCU, restringiram indevidamente a competitividade do certame. Pois bem, ao menos três reflexões são cabíveis em relação ao que foi deliberado. Quanto à primeira delas, deve ser feita a devida separação entre cláusulas estritamente técnicas, as quais o parecerista jurídico não tem como opinar mesmo aprovando minuta de edital de licitação, daquelas cláusulas aos quais incumbe análise de juridicidade por parte do parecerista. A segunda reflexão diz respeito à previsão contida na lei 13.327, de 29 de julho de 2016, art. 38, § 2º, indicando que "No exercício de suas funções, os ocupantes dos cargos de que trata este Capítulo1 não serão responsabilizados, exceto pelos respectivos órgãos correicionais ou disciplinares, ressalvadas as hipóteses de dolo ou de fraude." No que se refere a terceira reflexão necessária, temos que avaliar o caso da emissão de parecer jurídico por procuradores estaduais ou municipais não abrangidos pela lei 13.327, de 2016, bem como definir de quem será a responsabilidade pela aplicação de eventual sanção quando configurado erro grave nessas hipóteses. No tocante ao primeiro ponto, importante decisão foi proferida no MS 35196 Agr pelo Supremo Tribunal Federal nos seguintes termos: A responsabilidade do parecerista deve ser proporcional ao seu efetivo poder de decisão na formação do ato administrativo, porquanto a assessoria jurídica da Administração, em razão do caráter eminentemente técnico-jurídico da função, dispõe das minutas tão somente no formato que lhes são demandadas pelo administrador. A diversidade de interpretações possíveis diante de um mesmo quadro fundamenta a garantia constitucional da inviolabilidade do advogado, que assegura ao parecerista a liberdade de se manifestar com base em outras fontes e argumentos jurídicos, ainda que prevaleça no âmbito do órgão de controle entendimento diverso. Sobre o segundo ponto, o Supremo Tribunal Federal no MS 24.631/DF, julgado em 09/08/2007, decidiu que "É lícito concluir que é abusiva a responsabilização do parecerista à luz de uma alargada relação de causalidade entre seu parecer e o ato administrativo do qual tenha resultado dano ao erário. Salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, submetida às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias, não cabe a responsabilização do advogado público pelo conteúdo de seu parecer de natureza meramente opinativa". Conclui-se, sob pena de redundância, sobre a impossibilidade de responsabilização do advogado público pelo conteúdo de parecer meramente opinativo, como regra geral. Excepcionam-se os casos em que se configure erro grosseiro ou culpa. E, na última situação, deve haver submissão às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias para apuração de eventual responsabilidade. Em contrário, o Tribunal de Contas da União decidiu no Acórdão 615/2020 - Plenário: "Os ocupantes de cargos da Advocacia Pública Federal, nos casos que abarquem a esfera de competência do TCU, podem ser responsabilizados pelo Tribunal, mesmo quando não tenham atuado com dolo ou fraude." Lembremo-nos, então, que: 1) a Lei nº 13.327, de 29 de julho de 2016, em seu art. 38, § 2º dispõe que no exercício de suas funções os ocupantes dos cargos nela previstos, ressalvados os casos de dolo ou de fraude,  serão responsabilizados pelos respectivos órgãos correcionais ou disciplinares; 2) o STF entendeu no mesmo sentido da lei referida, limitando às hipóteses aos pareceres de natureza meramente opinativa; 3) o Tribunal de Contas da União adotou a posição de responsabilização ampla pelo Tribunal mesmo nos casos de culpa e erro grosseiro. Ainda importa destacar que existe uma zona de interpretação nebulosa quanto à configuração do que é o erro grave. O TCU, por meio do Acórdão nº 2860/2018 - Plenário, decidiu: 82. Dito isso, é preciso conceituar o que vem a ser erro grosseiro para o exercício do poder sancionatório desta Corte de Contas. Segundo o art. 138 do Código Civil, o erro, sem nenhum tipo de qualificação quanto à sua gravidade, é aquele "que poderia ser percebido por pessoa de diligência normal, em face das circunstâncias do negócio" (grifos acrescidos). Se ele for substancial, nos termos do art. 139, torna anulável o negócio jurídico. Se não, pode ser convalidado. 83. Tomando como base esse parâmetro, o erro leve é o que somente seria percebido e, portanto, evitado por pessoa de diligência extraordinária, isto é, com grau de atenção acima do normal, consideradas as circunstâncias do negócio. O erro grosseiro, por sua vez, é o que poderia ser percebido por pessoa com diligência abaixo do normal, ou seja, que seria evitado por pessoa com nível de atenção aquém do ordinário, consideradas as circunstâncias do negócio. Dito de outra forma, o erro grosseiro é o que decorreu de uma grave inobservância de um dever de cuidado, isto é, que foi praticado com culpa grave. Sobre o assunto, importante e necessária reflexão trouxe o TCU no Acórdão nº 63/2023 - Primeira Câmara quando pontuou que: 84. Segundo Cristiano Chaves de Farias e Nelson Rosenvald, "culpa grave é caracterizada por uma conduta em que há uma imprudência ou imperícia extraordinária e inescusável, que consiste na omissão de um grau mínimo e elementar de diligência que todos observam" (FARIAS, Cristiano Chaves de. ROSENVALD, Nelson. Curso de Direito Civil. São Paulo: Atlas, p. 169) ." 23. Esse entendimento foi externado e seguido em inúmeras outras deliberações, de minha lavra e de outros Ministros, a exemplo dos Acórdão 2370/2022-TCU-Plenário, 2.326/2022-Plenário, 7.539/2022-1ª Câmara e 3.768/2022-2ª Câmara, dentre várias outras, apenas para citar as mais recentes. 24. Em minha visão e com as devidas vênias às posições eventualmente contrárias, associar culpa grave à conduta desviante da que seria esperada pelo homem médio significa tornar aquela absolutamente idêntica à culpa comum ou ordinária, visto que este sempre foi o parâmetro para se aferir tal modalidade de culpa. Além de inadequada, essa posição parece negar eficácia às mudanças promovidas pela Lei 13.655/2018, que buscou instituir um novo paradigma de avaliação da culpabilidade dos agentes públicos, tornando mais restritos os critérios de responsabilização. À vista disso, se entendermos que o conceito de erro grave já foi suficientemente esclarecido, precisamos agora decidir quais são condutas aceitáveis de "pessoa de diligência normal" ou o que é "inobservância de um dever de cuidado", bem como sobre a eventual diferenciação entre culpa grave, erro grosseiro inescusável e culpa comum e a quem cabe definí-las no caso concreto. Em vista do exposto até este momento e considerando as decisões citadas podemos inferir que deve haver uma distinção sobre a instância que detém a competência para responsabilização de advogados pareceristas quando emitam parecer no exercício de suas funções, seja de caráter obrigatório e vinculante ou na hipótese de manifestação jurídica opinativa. De acordo com o STF, tratando da emissão de parecer meramente opinativo não caberia responsabilização do advogado público, salvo demonstração de culpa ou erro grosseiro, devendo nesse caso haver submissão às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias. Já para o TCU, caberia sua atuação, por meio de atribuição de responsabilidade, nas duas situações, quando presentes casos de dolo ou fraude, incluídos também o erro grave ou grosseiro. Acreditamos que, uma vez verificada atuação inadequada de advogado parecerista, entendida aquela que praticada com dolo, fraude, erro grosseiro ou culpa grave admite-se a sua responsabilização, seja pela emissão de perecer de caráter vinculante ou opinativo. Entretanto, caberá sempre às instâncias administrativo-disciplinares ou jurisdicionais próprias avaliar a configuração in concreto dos elementos subjetivos referidos (dolo, fraude, erro grosseiro e culpa grave), aplicando a penalidade cabível. Assim, não caberia ao TCU fazer essa avaliação quanto aos advogados públicos federais, por expressa previsão legal a respeito (lei 13.327, de 29 de julho de 2016, em seu art. 38, § 2º). __________ 1 I - de Advogado da União; II - de Procurador da Fazenda Nacional; III - de Procurador Federal; IV - de Procurador do Banco Central do Brasil; V - dos quadros suplementares em extinção previstos no art. 46 da Medida Provisória nº 2.229-43, de 6 de setembro de 2001 .
Debates que envolvem a relação entre Direito, gênero e realidade social sempre nos colocam em uma situação bastante delicada, em especial porque o que está previsto em leis, constituições e compromissos internacionais divergem, não raras vezes, em qualidade e quantidade, daquilo que vivenciamos no dia a dia. Avaliar qual a importância da normatização num contexto de transformação é o objeto deste ensaio, que ainda pretende destacar o papel das políticas públicas como elo entre o "dever-ser" proposto pela normatividade inerente ao Direito e concretizado, em geral, pelo Estado e o "ser" relacionado à igualdade de gênero no mundo real. A necessidade prática em se abordar o tema fica evidenciada pela reação que o assunto causa de maneira geral, em nosso país. Intuitivamente percebemos que, no Brasil, algumas pessoas não entendem que dialogar sobre a desigualdade de gênero à luz dos normativos internacionais, dentre eles a Declaração Universal dos Direitos Humanos, e também da legislação interna, cujo expoente principal é a Constituição da República Federativa do Brasil, significa observar com bastante clareza que o que está escrito nas normas não reflete o que se vive na realidade. À luz de uma teórica crítica, "os direitos humanos demandam uma nova perspectiva, contextualizada em práticas sociais emancipatórias", segundo Joaquin Herrera Flores (2008, p. 20). Demonstrando um total repúdio ao universalismo abstrato, o autor destaca ainda que "os direitos humanos afirmam a luta do ser humano para ver cumpridos seus desejos e necessidades nos contextos vitais em que está situado". Nenhum direito é, portanto, garantido apenas por estar previsto em textos legais, pois não nos são dados, mas sim construídos, por meio de lutas e disputas sociais, políticas, culturais e até históricas. Assim também serão as exclusões, as discriminações, as desigualdades, as intolerâncias e as injustiças, todas construídas historicamente (2008, p. 21) e que devem ser urgentemente desconstruídas: "Há que se assumir o risco de romper com a cultura da 'naturalização' da desigualdade e da exclusão social" (2008, p. 21) e, nesse contexto o Estado tem papel relevante, ainda que não como principal protagonista, através da implementação de políticas públicas.  Entretanto, devemos lembrar que "Não é somente a existência de tais direitos, cujas concretizações se dá por meio de prestações positivas do Estado, que fundamenta as políticas públicas" (2022, p. 15). A ciência jurídica vai além. É elemento intrínseco à dinamicidade das políticas públicas. É, igualmente, responsável por inserir racionalidade na relação entre os diversos institutos de uma ação pública. Construir sustentação normativa à concretização prática de direitos, em especial, àqueles fundamentais e sociais. Na Declaração Universal dos Direitos Humanos, adotada e proclamada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 10 de dezembro 1948, já no preâmbulo, surge a expressão "direitos iguais". Em seguida, logo nos primeiros artigos, reforça-se a garantia do direito à igualdade. Um direito que não se mede pelas características, opções ou condições do ser humano, como por exemplo, raça, cor, sexo, língua, religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social, riqueza, nascimento, ou qualquer outra contradição. Na mesma linha, a Constituição da República Federativa do Brasil nos entrega o artigo 5º, inciso I: "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações". Expressa, portanto, um exemplo de normatividade que não se reconhece no cotidiano de diversas mulheres. O que se vê é uma desigualdade de gênero que encontra espaço para se desenvolver dentro de uma sociedade marcada pelo patriarcado, e cujas as manifestações se mostraram ao longo de toda a nossa trajetória. É difícil estabelecer uma data específica para definir quando o patriarcado começou a se enraizar no Brasil. Ao observar o passado, traços dele sempre estiveram presentes e deixaram marcas bastante claras nos comportamentos sociais. Não raro, nos deparamos com alguém que acredita ter a desigualdade de gênero deixado de existir sob o argumento factual do avanço de algumas mulheres em contextos específicos. Um equívoco! De modo exemplificativo, mesmo no novo cenário do século XXI, mulheres são negativamente julgadas por comportamentos que, todavia, se praticados por homens seriam motivo de aplausos e até de comemoração. Nesse cenário, se torna inevitável a seguinte pergunta: Onde está o direito à igualdade mencionado na Constituição? Cenas cotidianas mostram o fosso existente entre o conteúdo normativo e a desigualdade de gênero, é o caso da notícia publicada no site "O Fuxico"1, que evidencia um episódio que concretiza a desigualdade relacionada ao julgamento comportamental das mulheres: "Fátima Bernardes diz que sofre massacre por namorar homem mais novo". Contextualizando: Fátima Bernardes, famosa jornalista brasileira, discorre sobre sua experiência pessoal em namorar um homem mais novo do que ela e expõe: "Todas as relações em que a mulher quebra os padrões, a gente sofre por isso. Se você é uma mulher mais velha que o seu parceiro, até se você é mais alta que o seu parceiro, as pessoas se metem em absolutamente tudo. Porque foge daquilo que elas estabeleceram como o padrão". Para algumas mulheres, justificar constantemente suas escolhas, inclusive na esfera da vida privada, exige habilidade emocional. A liberdade de escolha, em algumas situações, é então deixada em segundo plano. Perde-se a autonomia feminina frente ao receio do julgamento social. Ao fim, podemos reconhecer que as mulheres, muitas vezes, fazem escolhas diferentes das que realmente gostariam de fazer, numa possível privação do direito de liberdade, para além da igualdade. A solução parece ser uma desconstrução de padrões sociais pré-estabelecidos, que nos foram transmitidos de geração em geração, utilizando-se a comunicação e o compartilhamento de experiências pessoais como método para se consolidar o Direito, na prática. O Estado, por sua vez, enquanto agente indutor, pode incentivar a discussão desses aspectos comportamentais práticos relacionados à igualdade, liberdade e autonomia feminina, em escolas, públicas e privadas, desde a mais tenra idade. Políticas públicas educacionais são excelentes ferramentas para a desconstrução comportamental: não célere, porém efetivo. Outro exemplo corriqueiro impregnado pela desigualdade de gênero é o hábito de garçons entregarem a conta de um restaurante ao homem que ocupa a mesa. O que pode ser visto como ato simples, sem maiores reflexos, parece estar, na verdade, inserido num contexto histórico de dependência financeira e laboral feminina. Afinal,  quem, há mais tempo, trabalha e aufere os ganhos? Enxergar a mulher como incapaz financeiramente é um exemplo prático da desigualdade de gênero. Essa visão dispõe de raízes patriarcais e o cotidiano mostra o quão forte essas raízes são, e como prevalecem em detrimento do cenário atual, onde as mulheres desenvolvem suas atividades profissionais e econômicas e cada vez mais tem tomado o lugar de "provedora do lar", como apontam diversas pesquisas2. Contraditoriamente, os primeiros artigos da Declaração dos Direitos Humanos trazem a ideia central de que todos deveríamos ser tratados da mesma maneira, independentemente das nossas diferenças. Assim também a nossa Constituição. A contradição consiste no fato de que enquanto no Direito temos a garantia da igualdade, na vida real às mulheres são derrogadas apenas funções específicas, devendo ocupar um espaço-social padrão e seguir um comportamento definido: o comportamento social aceito apenas reflete esse dogma. Entretanto, esse parece ser uma dos grandes desafios rumo à completa igualdade entre homens e mulheres: a generalização. As definições e padrões estabelecidos pela nossa cultura são tão fortes que já estão no inconsciente de algumas pessoas e conflitam com a normatividade que se pretende ver praticada no mundo. Ainda é comum a sociedade brasileira aceitar passivamente que lavar louça é "papel de mulher" e que as mulheres precisam de homens mais velhos como companheiros. Mas como o Estado e o Direito podem efetivamente mudar essa realidade social, ainda desigual e já, há tempo, ultrapassada?  Garantir a igualdade de gênero na prática, saindo da esfera das obrigações e do Direito passa por considerar aspectos históricos, culturais, sociais, econômicos e até comportamentais, em especial na fase de imaginação, elaboração, aprovação e execução de todas as políticas públicas. Não se trata unicamente de imaginar políticas públicas de gênero, mas incorporar este Direito como indicador, diretriz e standart, na definição de todas as iniciativas e ações levadas a efeito em nome do Estado. Referências bibliográficas: BRASIL. [Constituição (1988)]. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988. Brasília, DF: Presidência da República, [2016]. Disponível aqui. Acesso em: 14 de março de 2023.  HERRERA FLORES, Joaquin. La reinvencion de los derechos humanos. Ed. Atrapasuenos, 2008. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Declaração Universal dos Direitos Humanos, 1948. Disponível aqui. Acesso em: 08/11/2021.  SILVA, Vládia Pompeu. Políticas Públicas, conformação e efetivação de direitos. Indaiatuba, São Paulo. Editora Foco, 2022.  ALMEIDA, Flávia. Fátima Bernardes diz que sofre massacre por namorar homem mais novo. In: Fátima Bernardes diz que sofre massacre por namorar homem mais novo. [S. l.]: Ofuxico, 25 out. 2021. Disponível aqui. Acesso em: 28 de março de 2023.  MATSUE, Carla. Mulheres são principal fonte de renda em 69% dos lares do país: Levantamento da Provu mostra o comportamento financeiro das mulheres e quais são suas prioridades. São Paulo: Valor Investe, 9 mar. 2022. Disponível aqui. Acesso em: 28 mar. 2023. __________ 1 Disponível aqui. Acesso em: 28/03/2023. 2 Disponível aqui. Acesso em: 28/03/2023.
Logo em seu primeiro dia de governo, o Presidente Luís Inácio Lula da Silva -cumprindo uma promessa de sua campanha eleitoral - assinou despacho1 determinando que a Controladoria-Geral da União (CGU) reavaliasse as decisões do ex-presidente Jair Bolsonaro que impuseram sigilo a documentos e informações da Administração Pública. O tema, que ficou informalmente conhecido como os "Sigilo de 100 anos", joga luz sobre alguns aspectos jurídicos relevantes que merecem ser debatidos, especialmente por àqueles que, como nós, preocupam-se com a tênue linha que permeia valores como a transparência, a publicidade e a necessária proteção dos dados, públicos e privados. À partida, lembremo-nos da necessidade de se reafirmar o valor da transparência como base de sustentação essencial do Estado Democrático de Direito. Não podem existir dúvidas de que a transparência deve ser a regra quando estamos tratando da atuação estatal democrática. Trata-se, inclusive, de um dever estatal que decorre do direito fundamental à informação, abarcando o direito de acesso à informação administrativa, cujos titulares são todos os indivíduos. A transparência emerge, pois, como um princípio constitucional implícito, que dá o substrato material ao princípio da publicidade para que este se torne apto a atender às modernas demandas de um Estado Democrático. Por outro lado, existem algumas exceções a essa transparência, trazidas expressamente pelo próprio ordenamento jurídico e plenamente justificáveis por protegerem outros valores, bens ou direitos constitucionalmente reconhecidos. Ou seja, essas excepcionalidades constituem resultado de sopesamento, prévio e abstrato, realizado pelo próprio legislador entre a transparência e aqueles outros valores, bens ou direitos constitucionais que com ela tenham entrado em conflito. A regra prevista no inciso I do § 1º do art. 31, da Lei de Acesso à Informação - LAI (lei 12.527/2011), nos traz um exemplo quando afirma que "O tratamento das informações pessoais deve ser feito de forma transparente e com respeito à intimidade, vida privada, honra e imagem das pessoas, bem como às liberdades e garantias individuais". Dispõe então que tais informações "terão seu acesso restrito, independentemente de classificação de sigilo e pelo prazo máximo de 100 (cem) anos a contar da sua data de produção, a agentes públicos legalmente autorizados e à pessoa a que elas se referirem." Ao que parece, portanto, que a regra estabelecida prevê que o direito à privacidade, à honra e à imagem do indivíduo (e, tem se entendido, também, à proteção de dados pessoais) terão prevalência sobre o dever de transparência estatal e, consequentemente, sobre o direito fundamental de acesso à informação administrativa do qual esse dever decorre. Entendeu o legislador, de forma abstrata e a priori, que as razões que justificam a proteção da privacidade, da honra e da imagem do indivíduo deveriam prevalecer sobre as razões que justificam o direito de acesso à informação administrativa. Dito de outro modo, a proteção dessa camada da personalidade (vida privada, honra e imagem) é tão importante, que tem "peso suficiente" para afastar os fundamentos que garantem a transparência pública. O art. 31, § 1º, inciso I da LAI traz, pois, o resultado do sopesamento realizado pelo legislador entre transparência, publicidade e direito de acesso à informação administrativa, de um lado, e privacidade, honra e imagem do indivíduo, de outro. Mas no caso dos "Sigilos de 100 anos" existem ainda dois pontos jurídicos relevantes que precisam ser levados em consideração. O primeiro deles diz respeito à verificação dos documentos aos quais foi imposto sigilo para entender se eles se subsumem à exceção prevista no inciso I do § 1º do art. 31 da LAI. Ou seja, a análise que parece caber à CGU refere-se exatamente a esta ponderação: as informações protegidas em cada caso analisado efetivamente se enquadram naquelas que justificaram o resultado do sopesamento realizado pelo legislador em prol da proteção da vida privada, honra e imagem da pessoa e em desfavor da transparência e do direito de acesso à informação pública? Essa análise deve ser feita documento a documento, buscando aferir se estão realmente presentes as razões que justificam o acionamento da excepcionalidade. O segundo ponto a ser considerado pela CGU é, entretanto, um pouco mais complexo. O inciso I do § 1º do art. 31 pretende proteger a vida privada, a honra e a intimidade de quaisquer indivíduos cujas informações possam estar vinculadas em documentos de posse do Estado ou que possam ser objeto de pedidos baseados no direito de acesso à informação administrativa. No caso dos "Sigilos de 100 anos", ao que tudo indica, alguns dos indivíduos cuja camada de personalidade (vida privada, honra e imagem) se busca proteger são agentes públicos, especialmente servidores públicos em sentido lato. Os servidores públicos, via de regra, mantém com o Estado um vínculo que se difere muito daquelas relações travadas entre o Estado e o administrado comum. De fato, a relação entre o Estado e servidor é uma relação jurídico-administrativa que se caracteriza pela duradoura e efetiva inserção do indivíduo na esfera organizativa da Administração Pública, e em razão da qual, esse sujeito resta submetido a um regime jurídico peculiar que se traduz em um tratamento especial de sua liberdade e de seus direitos fundamentais, assim como de suas garantias institucionais, de forma adequada aos fins típicos de sua relação institucional2. Daí estarem submetidos a uma relação de sujeição especial (e não em uma relação de sujeição geral, como os demais administrados). Ou seja, a própria dinâmica da relação entre o servidor e o Estado - que envolve tanto a posição de maior proximidade que esse servidor ocupa, por integrar o círculo interno da Administração e fazer parte da própria organização administrativa, quanto a maior intensidade da supremacia da Administração, que responde à necessidade do aumento da operatividade na prestação do serviço público, na organização estatal e no atendimento do interesse público geral - distancia tal relação daquela que é travada entre o Estado e o administrado comum. Ademais, a integração entre o servidor e o Estado costuma ser tão arraigada, que ele próprio consegue nitidamente se perceber dentro daquela organização, seja em razão da necessidade do cumprimento de determinadas pautas de conduta, seja em função da necessidade de respeito a certos poderes (como o hierárquico ou o disciplinar, que acabam por, em alguma medida, embaraçar a independência e a criatividade do sujeito). Ou seja, pelo fato de se imiscuir na organização administrativa de forma efetiva e duradoura, o agente público se submete a uma realidade jurídica que, apesar de não desconhecer ou desconsiderar seus direitos fundamentais e suas liberdades, em certa medida, pode funcionalizar o exercício desses direitos e liberdades de forma a garantir que o fim da organização administrativa se cumpra3, de forma a tornar possível o cuidado dos interesses gerais da comunidade. Nesse sentido é que o conceito das relações especiais de sujeição pode acabar desempenhando uma função argumentativa importante na fundamentação de decisões restritivas de direitos no âmbito de relações funcionais. Partindo-se da premissa de que toda restrição deve atender à exigência de proporcionalidade, a noção de relação de sujeição especial pode funcionar como critério argumentativo racional e constitucionalmente adequado para orientar a ponderação de interesses.4 Ou seja, é possível pensar que existem alguns bens e valores que são protegidos pela Constituição e que fundamentam a existência dessa relação entre o Estado e os servidores (e é exatamente em razão desses bens e valores protegidos constitucionalmente que essa relação tem um status especial): por exemplo, a organização administrativa, de forma geral; a funcionalidade da atuação estatal para atingir sua finalidade primordial de tutela do interesse público; o dever de boa administração; a moralidade; a probidade administrativa e a responsabilidade funcional (estas últimas retiradas especialmente das regras relacionadas ao regime disciplinar aplicado à relação funcional). São esses bens ou valores ligados ao atingimento dos fins estatais (e que também são protegidos constitucionalmente) que podem eventualmente se chocar com os direitos fundamentais dos servidores, no âmbito da sua relação com o Estado.  Parece pacífica, pois, a possibilidade de existirem restrições a direitos fundamentais dos servidores públicos com fundamento na relação funcional, como relação de sujeição especial que é (a partir daqueles bens e valores constitucionais citados). Noutras palavras, é possível se afirmar que o âmbito de proteção definitivo de alguns dos direitos fundamentais dos servidores públicos no âmbito da relação funcional podem contar com âmbito de proteção efetivo menos alargado do que ocorre no âmbito de relações de sujeição geral.5 E esse parece ser o ponto que se aplica à análise dos "Sigilos de 100 anos". Ao que parece, nos casos em que o sigilo tiver sido imposto com o intuito de proteger a vida privada, a honra ou a imagem de indivíduos que mantém com o Estado uma relação especial de sujeição,  o próprio conceito da relação especial de sujeição pode desempenhar uma função argumentativa importante na fundamentação de decisões. Isso quer dizer que, nesses casos, àquele sopesamento realizado pelo legislador em abstrato e a priori, e à identificação se o caso concreto a ele se amolda, parece essencial acrescentar uma análise subsequente: a própria existência da relação entre o Estado e o servidor público. Noutras palavras, parece necessário acrescentar ao processo de ponderação todos aqueles bens e valores citados acima e os deles decorrentes que fundamentam a própria existência da relação entre o Estado e o servidor público (a organização administrativa, de forma geral, a funcionalidade da atuação estatal para atingir sua finalidade primordial de tutela do interesse público, o dever de boa administração, a moralidade, a probidade administrativa e a responsabilidade funcional). Ou seja, esses bens e valores devem passar a ser considerados no processo de ponderação. Daí se afirmar que, no caso concreto, pode ser possível que, no processo de análise e ponderação, verifique-se que o âmbito de proteção efetivo do direito fundamental à proteção da vida privada, da honra ou da imagem desses servidores seja menos alargado do que ocorre no âmbito de relações de sujeição geral. __________ 1 Conforme Despacho do Presidente da República, publicado no Diário Oficial da União de 02.01.2023. Disponível em . Acesso em 19 jan 2023. 2 Tomamos aqui emprestado, em livre tradução, por sua completude e clareza o conceito apresentado pelo administrativista espanhol Mariano López Benítez (Naturaleza y presupuestos constitucionales de las relaciones especiales de sujeción, 1a ed. Córdoba: Madrid: Servicio de Publicaciones de la Universidad de Córdoba; Civitas, 1994, p. 161 e 162). 3 Num exemplo quase anedótico: impedir que um servidor frequente um curso que acontece, todos os dias, todos os dias, durante boa parte do horário do expediente é funcionalizar o exercício do seu direito à educação à necessidade do cumprimento da finalidade da organização administrativa (é necessário que, durante o horário do expediente, o servidor esteja disponível para exercer sua atividade pública). 4 Nesse sentido, veja-se a doutrina de PEREIRA, Jane Reis Gonçalves. As restrições aos direitos fundamentais nas relações especiais de sujeição. In: SARMENTO, Daniel; GALDINO, Flavio (Orgs.). Direitos fundamentais: estudos em homenagem ao Professor Ricardo Lobo Torres. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 603 a 657. No entanto, a autora adverte a necessidade de que a categoria seja empregada com muita prudência para evitar arbitrariedades e restrições odiosas as direitos fundamentais, acima dos limites justificáveis. Destaca que as relações de sujeição especial só podem justificar restrições a direitos fundamentais na medida em que buscam promover bem ou valor constitucionalmente legítimo a elas relacionado - por isso mesmo, as limitações aos direitos fundamentais daí decorrentes não precisam estar previstas de forma expressa na Constituição, devendo ser aferida sua constitucionalidade à luz da teoria geral das restrições aos direitos fundamentais (devendo, pois, serem considerados nas ponderações que envolvem esse processo: a relevância do bem promovido pela instituição na qual se insere a relação de sujeição especial, o peso abstrato do direito fundamental atingido e a gravidade da restrição imposta a ele). A ideia da relação de sujeição especial pode funcionar, pois, como um argumento acessório na apreciação da proporcionalidade das medidas que afetam os direitos fundamentais. 5 Análise mais aprofundada do tema em: GONTIJO, Danielly Cristina Araújo Gontijo, A (re)configuração da privacidade em ambiente laboral público, em especial quanto às medidas de controle interno estatais: uma "reabilitação" democrática das relações especiais de poder?, Tese de doutoramento, Faculdade de Direito - Universidade do Porto, Porto, 2021.
As alterações sofridas pelo Estado ao longo do tempo demonstram que a Administração Pública de antes não pode ser a mesma do presente. Assim, para que as demandas sociais, implementadas por meio das políticas públicas, sejam atendidas e a justiça social seja alcançada necessário se faz o acompanhamento da evolução processada pelo Estado. Essa evolução, multidisciplinar que é, reflete-se também na forma como a Administração procedimentaliza as suas contratações. Nesse sentido, é que "Uma nova lei é uma oportunidade para rever as práticas, os costumes e as concepções. Se, depois de anos fazendo a mesma coisa, os problemas ainda persistem, deve-se pelo menos refletir: Estamos no caminho certo?"1. E a nova Lei de Licitações e Contratos tem nos obrigado a enfrentar essa questão diariamente, sob distintas perspectivas, desde a sua entrada em vigor. A centralização de serviços e compras na Administração Pública passa a ter importância, como expressão do esforço para alcançar uma Administração Pública verdadeiramente gerencial2. Sem descurar, é claro, da obrigatoriedade de observância do princípio da legalidade, mas, dando-se espaço para que a inovação floresça e se fortifique dentro da Administração Pública, o que deve ser fomentado.9 A lei 14.133, de 1º de abril de 2021, dispôs expressamente em seu artigo 19 e 181 que: Art. 19. Os órgãos da Administração com competências regulamentares relativas às atividades de administração de materiais, de obras e serviços e de licitações e contratos deverão: I - instituir instrumentos que permitam, preferencialmente, a centralização dos procedimentos de aquisição e contratação de bens e serviços; (grifei e sublinhei) Art. 181. Os entes federativos instituirão centrais de compras, com o objetivo de realizar compras em grande escala, para atender a diversos órgãos e entidades sob sua competência e atingir as finalidades desta Lei. Parágrafo único. No caso dos Municípios com até 10.000 (dez mil) habitantes, serão preferencialmente constituídos consórcios públicos para a realização das atividades previstas no caput deste artigo, nos termos da Lei nº 11.107, de 6 de abril de 2005. (grifei e sublinhei) Há, portanto, comando normativo para que os órgãos da Administração3, com competências regulamentares relativas às atividades de administração de materiais, de obras e serviços e de licitações e contratos, instituam instrumentos que permitam, preferencialmente, a centralização dos procedimentos de aquisição e contratação de bens e serviços. No artigo 181, a ordem é direta e impositiva: os entes federativos devem instituir Centrais de compras, com o objetivo de realizar compras em grande escala, para atender a diversos órgãos e entidades sob sua competência e atingir as finalidades da lei. A norma ainda possibilitou aos Municípios com até 10.000 (dez mil) habitantes que preferencialmente constituam consórcios públicos para realizar compras em grande escala, também para atender a diversos órgãos e entidades sob sua competência e atingir as finalidades da lei. Apesar do artigo 181 fazer referência expressa à instituição de Centrais de compras entende-se que podem ser criadas Centrais de serviços com possibilidade de previsão em lei específica a ser editada pelo ente respectivo. A ideia de gestão associada de serviços públicos não é, em sua totalidade, grande novidade. A lei 11.107, de 6 de abril de 2005, que "Dispõe sobre normas gerais de contratação de consórcios públicos e dá outras providências." foi publicada para atender previsão constitucional exposta no art. 241 da Constituição Federal, onde já se menciona a gestão associada de serviços públicos: A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos. (grifei e sublinhei) A lei 14.133, de 2021, veio então reforçar a cooperação federativa para descentralizar a gestão pública de maneira eficiente em busca de uma melhor prestação dos serviços públicos. Dessa maneira, os consórcios, enquanto pessoas jurídicas criadas por lei com a finalidade de executar a gestão associada de serviços públicos, são claramente bons instrumentos de gestão centralizada de serviços públicos. Assim, quando um serviço público for considerado de interesse de mais de um ente federado eles poderão se associar para criar consórcio a fim de realizar gestão centralizada, podendo ser instituído como associação pública (autarquias de caráter especial, integrando a administração indireta dos entes consorciados) ou pessoa jurídica de direito privado devendo, nesse caso, atender os requisitos exigidos pela legislação civil. Destaca-se que a União somente participará de consórcios públicos em que também façam parte todos os Estados em cujos territórios estejam situados os Municípios consorciados (art. 36 do decreto 6.017/2007). Antes, chegamos à conclusão de que as compras centralizadas para Estados, Distrito Federal, Municípios ou União podem ser feitas por Centrais de compras ou de serviços. Igualmente poderão ser realizadas de maneira compartilhada, nesse último caso utilizando o Sistema de Registro de Preços, regulamentado, em âmbito federal, pelo decreto 7.892, de 23 de janeiro de 2013, ou mesmo, por meio do credenciamento. A experiência precede a norma, neste ponto. De fato, diante da premência crescente de ações voltadas  para o aumento da eficiência na gestão dos recursos públicos e o anseio da sociedade para que a prestação de serviços públicos seja feita com melhor qualidade resultando em políticas públicas eficientes que atendam à evolução da sociedade, a Administração Pública Federal Brasileira (APF) verificou a necessidade de implementar modelos e procedimentos para o aperfeiçoamento da estratégia de compras por meio da criação da Central de Compras e Contratações do Governo Federal (CENTRAL), através do decreto 8.189, de 21 de janeiro de 2014. A Central de Compras e Contratações do Governo Federal foi criada a partir da constatação da existência replicada de áreas que executam atividades-meio comuns e contínuas nas instituições, o que acaba por resultar em sobrecarga dessas estruturas que passam a direcionar a força de trabalho para as atividades comuns perdendo, portanto, o foco necessário nas atividades finalísticas. Atualmente a CENTRAL integra a estrutura da Secretaria de Gestão (SEGES) do Ministério da Economia (art. 2º do Anexo I do decreto 9.745, de 8 de abril de 2019) e suas atribuições encontram-se dispostas no art. 131 do regulamento mencionado. De forma bastante sucinta, é de sua competência desenvolver, propor e implementar modelos para aquisição, contratação, alienação e gestão centralizadas de bens e serviços de uso comum, no âmbito dos órgãos e entidades da APF. Pode-se dizer, portanto, que a CENTRAL tem como escopo inicial o mapeamento da demanda de toda APF que, num segundo momento, poderá resultar na contratação centralizada de bens e serviços de uso em comum. A finalidade é gerar ganho de escala nas compras e economizar, além de proporcionar a utilização de menor força de trabalho na fase licitatória processual. Além disso, a padronização dos itens demandados viabiliza uma atuação estratégica das aquisições, imprimindo ganhos de qualidade e maior eficiência na gestão dos recursos públicos. Ora, mas qual seria então a grande novidade trazida pela lei 14.133, de 2021? Qual a diferença entre as Centrais de Serviços Compartilhados e as novas Centrais de Compras e Serviços? As Centrais de Compras e Serviços governamentais, elencadas na lei 14.133, de 2021, ampliando a ideia da CENTRAL, reúnem vários órgãos com interesse em comum e seu principal objetivo é superar dificuldades e gerar benefícios aos órgãos envolvidos nos níveis econômico, social e político. Assumiria função comparável a uma distribuidora de bens/serviços comuns com o objetivo de obter dos fornecedores condições de negociação melhores com ganhos de escala. Por sua vez, as Centrais de Serviços Compartilhados são "unidades governamentais" que prestam serviços de apoio a mais de um ministério (incluindo suas agências) ou a mais de um setor do governo (o governo central, as unidades gestoras da seguridade social, os governos territoriais)4. Percebe-se, entretanto, que o modelo escolhido para ser adotado no Brasil foi o da Central de Compras e Serviços, no qual retiram-se as funções de apoio, que são replicadas entre as diversas entidades governamentais, e centraliza-se em uma unidade que vai se dedicar apenas aos procedimentos de aquisição e contratação de bens e serviços. O que, de fato, parece não ter sido alterado é a necessidade perene de se exigir uma atenção quando da criação das Centrais de compras, em especial quanto à adoção de mecanismos adequados para controle e direção com o fim de evitar que os riscos, já tão conhecidos na gestão das aquisições públicas, não sejam por elas também cometidos. Referências MAURÍLIO H. Corrêa Engel. Análise da aplicabilidade das experiências em Centrais de Serviços Compartilhados a um modelo para a APF. Disponível aqui. Acesso em Julho de 2022. PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Da administração pública burocrática à gerencial. Revista do Serviço Público, 47(1) janeiro-abril 1996. Trabalho apresentado ao seminário sobre Reforma do Estado na América Latina organizado pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado e patrocinado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento, Brasília, maio de 1996. Disponível aqui. Acesso em: julho de 2022. Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos / organizador Leandro Sarai - São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. __________ 1 Tratado da nova lei de licitações e contratos administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos/organizador Leandro Sarai - São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. Pág. 3. 2 PEREIRA, Luiz Carlos Bresser. Da administração pública burocrática à gerencial. Revista do Serviço Público, 47(1) janeiro-abril 1996. Trabalho apresentado ao seminário sobre Reforma do Estado na América Latina organizado pelo Ministério da Administração Federal e Reforma do Estado e patrocinado 3 Expressão que nos termos do artigo 6º, inciso IV, da lei nº 14.133/2021, refere-se à órgão ou entidade por meio do qual a Administração Pública atua. p. 4. 4 MAURÍLIO H. Corrêa Engel. Análise da aplicabilidade das experiências em Centrais de Serviços Compartilhados a um modelo para a APF. Disponível aqui. Acesso em Julho de 2022.
Falar (ou escrever) sobre improbidade administrativa e suas consequências sancionatórias é um assunto até comum nos dias atuais. Isso que não quer dizer, entretanto, que todas as questões relacionadas são de fácil solução ou suscitam discussões meramente acadêmicas. Muito pelo contrário. O tema, que tem conexão próxima com a ética, a moral, a integridade, a honestidade, permeia também, de maneira bem pragmática, debates sobre o papel do Estado na modulação comportamental dos seus agentes e o limite efetivamente transformador da legislação nesse sentido. Na década de 1960, a exposição de motivos da Carta Constitucional de 19881 já mencionava a integridade como um valor a ser preservado e justificava o estabelecimento de sanções com vistas a combater a sua falta e a corrupção. Veio a Constituição Cidadã e, nos anos seguintes, a exposição de motivos da lei de improbidade administrativa 8.429/91, apresentava-nos, inclusive para fins didáticos e preventivos, as sanções que seriam impostas àqueles que praticassem atos qualificados como desonestos ou corruptos em face da administração pública2. Entretanto, uma vez publicada, a lei 8.429/92 como ato de improbidade, não apenas a conduta dolosamente constituída, mas também aquela praticada de forma culposa, mediante imprudência, negligência ou imperícia, relativamente aos atos que causassem lesão ao erário. Divergências doutrinárias e jurisprudenciais surgiram então quanto à incidência da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa. Seria mesmo justificável e razoável atribuir-se a mesmíssima penalidade para àqueles que causam prejuízo à administração pública quando agem por descuido, desleixo ou desatenção? O STJ possui julgados em que adota conceito amplo para o ato de improbidade.3 De outro lado, adotando um conceito mais restritivo, o mesmo Tribunal Superior já se manifestara no sentido de que "o conceito jurídico de ato de improbidade administrativa, por ser circulante no ambiente do direito sancionador, não é daqueles que a doutrina chama de elásticos, isto é, daqueles que podem ser ampliados para abranger situações que não tenham sido contempladas no momento da sua definição"4. De maneira semelhante, parte relevante da doutrina de direito administrativo disciplinar5 e também a AGU6. De maneira bem pragmática, temos que até a entrada em vigor da lei 14.230/21, admitia-se a prática de improbidade por meio de conduta praticada com dolo ou culpa (grave, para alguns), a depender a configuração legal aplicável ao caso. Sob outra perspectiva, sabemos que a consequência para o servidor público federal que pratica um ato ímprobo é a aplicação da pena de demissão por força do art. 132, IV, da lei 8.112/90, combinado com um dos artigos da lei 8.429/92 (art. 9º. 10 ou 11)7,  não podendo ele retornar ao serviço público federal mediante concurso público ou por outro meio de provimento (art. 137, parágrafo único)8. Deparávamo-nos então, naquela ocasião, com uma questão prática importante: será que a modalidade culposa da improbidade justifica tamanha imposição sancionatória? É justo restringir o retorno ao serviço daquele penalizado "em casos sem gravidade, sem densidade jurídica relevante e sem demonstração do elemento subjetivo doloso"9. A recente alteração da lei de improbidade administrativa pela lei 14.230/21, entende que não. A norma passou a considerar atos de improbidade administrativa apenas as condutas dolosas tipificadas nos arts. 9º, 10 e 11 da lei, ressalvados os tipos previstos em leis especiais. A vontade livre e consciente do autor passou a ser condição si ne qua non para a configuração do ato de improbidade. Não basta a mera voluntariedade do agente. Para se configurar como ato ímprobo, a ação ou omissão que violar os deveres de honestidade, imparcialidade e legalidade, e que causar lesão ao erário deverá ter sido dolosa. Também deverá ser dolosa, a ação que resultar em enriquecimento ilícito do agente público, assim como o malferimento aos princípios da administração pública. O mero exercício da função ou desempenho de competências públicas sem a comprovação de ato doloso com fim ilícito deverá afastar a responsabilização por ato de improbidade administrativa. Com a substancial alteração da LIA ao decidir pela aplicação da penalidade de demissão pela prática de improbidade administrativa por servidor federal deve a Administração examinar a presença do dolo específico do agente no sentido de alcançar o resultado ilícito previsto nos arts. 9, 10 e 11 da Lei, pois não basta mais a sua voluntariedade, consoante dispõe o novo art. 1º, § 2º, da lei 8.429/92. A LIA exige, ademais, em seu art. 1110, o fim especial de agir para que haja improbidade, inclusive para fins de sua aplicação por outras leis, de modo que se deve comprovar que a conduta funcional do agente público teve o objetivo de obter vantagem para si, para outrem ou para a entidade. Para fins de caracterização da conduta ímproba, não deve ser suficiente o genérico descumprimento da norma. E, apesar de não se confundir dolo com má-fé, esta última é condição necessária para a imputação de responsabilidade aos agentes públicos pela prática de um ato ímprobo ou desonesto, ainda que "a aferição do dolo e mesmo a presença da má-fé dificilmente sejam objeto de prova direta"11. _____ 1 BRASIL. Exposição de motivos do ministro da justiça e negócios interiores. Brasília, 12 dez. 1966. Disponível aqui. 2 BRASIL. Exposição de motivos GM/SAA/0388, de 14/8/91, do sr. ministro de Estado da Justiça. Diário do Congresso Nacional, de 17/8/91. Disponível aqui. 3 Ao tratar do tema no Recurso Especial - REsp 1.177.910/SE, depois de destacar que improbidade é a ilegalidade tipificada e qualificada pelo elemento subjetivo da conduta do agente que necessariamente deve atingir bem ou interesse privado e público ao mesmo tempo, considerou ser indispensável, para a caracterização como improbidade, que a conduta do agente seja dolosa e incida nos tipos previstos nos arts. 9º e 11 da lei 8.429/92, ou pelo menos eivada de culpa grave nas hipóteses do art. 10 (AIA 30-AM, Corte Especial, DJe 28/9/11); apontou, ainda, que a referida mitigação somente poderia ocorrer em casos sem gravidade, sem densidade jurídica relevante e sem demonstração do elemento subjetivo. Mas como justificar, nesse último caso, a expulsão de um servidor público federal de forma definitiva dos quadros da administração pública em razão de um ato sem gravidade? 4 STJ. REsp 1.558.038-PE, relator ministro Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª turma. Julgado em 27/10/15, DJe 9/11/15. 5 COSTA, José Armando. Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa. Brasília: Editora Brasília Jurídica. 1.ed., 2000, p. 22, 33 e 34. 6 Parecer GQ-200, de 19/8/99, no sentido de que o ato ímprobo deve ser necessariamente doloso. 7 STJ. MS 19.881/DF, relator ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, DJe de 1/7/15. 8 Sobre o tema cabe destacar a recente decisão do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL na ADI 2975/DF, Decisão: O Tribunal, por maioria, julgou procedente o pedido formulado na ação direta para declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único do art. 137 da lei 8.112/90 e determinou a comunicação do teor desta decisão ao Congresso Nacional, para que delibere, se assim entender pertinente, sobre o prazo de proibição de retorno ao serviço público nas hipóteses do art. 132, I, IV, VIII, X e XI, da lei 8.112/90, nos termos do voto do relator, vencidos os ministros Edson Fachin e Rosa Weber, que julgavam improcedente a ação direta; parcialmente o ministro Marco Aurélio, apenas quanto à comunicação formalizada ao Legislativo; e os ministros Roberto Barroso e Nunes Marques, que julgavam parcialmente procedente a ação. Plenário, sessão virtual de 27/11/20 a 4/12/20. 9 Idem. RESP 1.177.910/SE (Informativo 577). Precedentes. REsp 1.081.743-MG, 2ª turma, julgado em 24/3/15. REsp 1.177.910-SE, relator ministro Herman Benjamin, julgado em 26/8/15, DJe 17/2/16. 1ª seção. 10 Lei 8.429/92. [...] Art. 11. [...] § 1º Nos termos da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, promulgada pelo decreto 5.687, de 31/1/06, somente haverá improbidade administrativa, na aplicação deste artigo, quando for comprovado na conduta funcional do agente público o fim de obter proveito ou benefício indevido para si ou para outra pessoa ou entidade. § 2º Aplica-se o disposto no § 1º deste art. a quaisquer atos de improbidade administrativa tipificados nesta Lei e em leis especiais e a quaisquer outros tipos especiais de improbidade administrativa instituídos por lei.  11 FERREIRA, Vivian Maria Pereira. O dolo da improbidade administrativa: uma busca racional pelo elemento subjetivo na violação aos princípios da Administração Pública. Revista Direito GV, São Paulo, p. 1-31, set./dez 2019. Disponível aqui.  12 ADVOCACIA - GERAL DA UNIÃO. Parecer GQ-200, de 19 de agosto de 1999. DOU de 19/8/99. Disponível aqui. 13 BRASIL. Lei 8.429/92. Dispõe sobre as sanções aplicáveis em virtude da prática de atos de improbidade administrativa, de que trata o § 4º do art. 37 da Constituição Federal; e dá outras providências (redação dada pela lei 14.230/21). Diário Oficial da União. Brasília, 3/8/92. 14 Exposição de Motivos do Ministro da Justiça e Negócios Interiores. Brasília, 1212/66. Disponível aqui. 15 Exposição de Motivos GM/SAA/0388, de 14/8/91, do Sr. ministro de Estado da Justiça. Diário do Congresso Nacional, de 17/8/91. Disponível aqui.  16 COSTA, José Armando. Contorno Jurídico da Improbidade Administrativa. Brasília: Editora Brasília Jurídica. 1.ed., 2000. 17 FERRAZ, Sérgio; DALLARI, Adilson Abreu. Processo administrativo. 2. ed. São Paulo: Malheiros Editores, 2007. 18 FERREIRA, Vivian Maria Pereira. O dolo da improbidade administrativa: uma busca racional pelo elemento subjetivo na violação aos princípios da Administração Pública. Revista Direito GV, São Paulo, p. 1-31, set./dez 2019. Disponível aqui.  19 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RESP 1.177.910/SE (informativo 577). Precedentes. RESP 1.081.743-MG, 2ª turma, julgado em 24/3/15. REsp 1.177.910-SE, relator ministro Herman Benjamin, julgado em 26/8/15, DJe 17/2/16. 1ª Seção. 20 RESP 1.558.038-PE, Rel. Min. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª turma. Julgado em 27/10/15, DJe 9/11/15. 21 MS 19.881/DF, Rel. Ministro Sérgio Kukina, Primeira Seção, DJe de 1/7/15.
Nos últimos anos, não raro nos depararmos com críticas, algumas bastantes duras, enaltecendo uma suposta deficiência de legitimidade de decisões exaradas por entidades integrantes da Administração Pública das mais diversas esferas. Estaria o Poder Público alcançando espaços que não lhe teriam sido deferidos constitucional e legalmente, concretizando em decisões "irresponsáveis", protegido pelo jugo da discricionariedade administrativa e atuando "perigosamente" diante de seu alcance e poder incontrolável. Para alguns, o princípio da legalidade não conseguiu construir o limite adequado a atuação do que chamam de Estado Administrativo. A Lei falhou em definir parâmetros claros e rígidos de atuação. Agora, nos resta apenas buscar soluções mais eficientes para "colocar as amarras no monstro inconstitucional", sob pena de desconstrução do princípio da separação do poderes e falência do Estado de Direito. A narrativa parece exagerada, mas não é... Infelizmente. De fato, a natureza própria do Direito Administrativo, que permite que as instituições que o concretizem atuem numa "zona cinzenta", ora decidindo em concreto, ora regulamentando em abstrato, exige que proposições relacionadas levem em consideração tal particularidade. Lembremo-nos, ainda que a estes mesmos órgãos incumbe colocar em marcha as políticas públicas necessárias à ordem social. Logo, parece claro que a instituição de limites rígidos ao seu atuar não parece fazer muito sentido. A legalidade, por si, em que pese ser essencial, não trará a resposta final à questão. De outra sorte, espera-se que a autocontenção de gestores e administradores públicos possam se traduzir em ações mais íntegras e alinhadas com os limites (muito genéricos) impostos pela separação dos Poderes. Aqui, a doutrina busca reforço na moralidade como forma de deixar claro um limite digno à prerrogativa conhecida como "discricionariedade administrativa". Sabemos que a Constituição da República Federativa do Brasil consagrou expressamente à condição de princípio norteador das ações da Administração Público a moralidade sem, entrando, esclarecer o seu conteúdo. Mas a moral, antes mesmo da aludida previsão, já não seria elemento ínsito ao Direito? Lon Fuller, professor de Harvard, em sua obra The morality of law, nos apresenta um conceito de moralidade para além do que rotineiramente conhecemos. Subjuga-o a uma perspectiva que intitula de procedimental e interna, segundo a qual exigiria por parte do Poder Público alinhamento estrito aos princípios da generalidade, publicidade, irretroatividade, inteligibilidade, consistência, praticabilidade, estabilidade e congruência. Todos, ao nosso ver, plenamente aplicáveis ao atuar em concreto ou em abstrato. Nessa perspectiva, a moralidade é interna ao Direito. Este, por sua vez, só cumprirá sua função de busca pela ordem social, através a definição de regras gerais de modelagem comportamental, se obedecidos princípios que lhe dão sustentação (1946, p.33). Não há, portanto, como separarmos direito e moral e o desafio está em garantir que ações administrativas sejam alinhadas aos princípios citados, ainda quando a legalidade não nos alcança, na zona cinzenta. Assim, a moralidade interna (FULLER, 1969, p. 4-6 e 42) é inerente às regras postas, mas vai além: impõe normatividade mesmo quando não há regra. E é aqui que reconhecemos uma defesa coerente à legitimidade do Estado Administrativo. "Algo a ser celebrado", segundo Cass R. Sustein e Adran Vermeule (2021, p. 178). Este ente que, como dito, é responsável por realizar julgamento sobre o bem comum, protegendo a liberdade e o bem-estar geral e atuando em contraponto com o mercado (2021, p. 21). Nesse desafio, a existência de regras claras se faz necessária, quase tão importante quanto o espaço decisório discricionário. Nesse sentido, Cass R. Sustein e Adran Vermeule (2021, p. 27-28):  ... o objetivo principal e legitimo do Direito Administrativo é estabelecer um regime comum para regular, civilizar sem eliminar as divergências em curso sobre o escopo, objetivos e poderes do Estado Administrativo, enquanto também promove valores que devem contemplar pessoas com diversos compromissos fundamentais. Então, como afinal podemos legitimar o Estado sem constranger sua atuação discricionária? A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro - LINDB, em especial após a alteração promovida pela lei 13655, de 25 de abril de 2018, que incluiu no decreto-lei 4.657, de 4 de setembro de 1942 (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro), disposições sobre segurança jurídica e eficiência na criação e na aplicação do direito público, parece ter sido uma estratégia para mitigar a questão aqui discutida. Vislumbrando uma busca por aprimoramento da moralidade do Direito Administrativo, a LINDB tenta aproximar a objetividade legal e a construção/fortalecimento embasado numa cultura institucional de moralidade procedimental. Identificamos em diversos dispositivos da LINDB uma possível concretização ou, pelo menos, uma intenção de aplicação direcionada de princípios como a generalidade, publicidade, irretroatividade, inteligibilidade, consistência, praticabilidade, estabilidade e congruência. A LINDB seria, ao nosso ver, instrumento de modulação comportamental no sentido de fortalecer a moralidade interna que, apesar de inerente ao Direito, pode estar adormecida na cultura administrativa brasileira. Em nossa percepção, Direito e moralidade se entrelaçam quando o assunto é a garantia de confiança institucional e fortalecimento da legitimidade das decisões administrativas, sejam dosadas e efetivadas em caso concreto. Processualmente falando, Lon Fuller (1946, p.38-39) apresenta algumas condições para se cumprir as tarefas do Direito na constituição de verdadeiro sistema jurídico, entendido aquele que detém a moralidade inerente. São elas: a) estabelecer regras; b) as regras devem ser transparentes (as partes envolvidas devem ser informadas a seu respeito); c) as regras devem ser prospectivas (as pessoas devem confiar nas normas em vigor e não estar em constante sobressaltos com mudanças inesperadas); d) as regras devem ser compreensíveis; e) as regras não podem exigir que as pessoas façam o que não podem fazer; f) não devem gerar incompatibilidades entre seu preceito e sua aplicação. Cass R. Sustein e Adran Vermeule (2021, p. 62), quando desatendido cada um desses aspectos nos deparamos com uma violação da moralidade mínima do dever. Destaca-se que, alguns desses aspectos identificados à luz da realidade presente no Estado Administrativo norte americano, estão expressamente previstos na LINDB, solução tupiniquim para mitigar ou até mesmo evitar o fortalecimento de um New Coke à brasileira. Afinal, essa visão negativa sobre o atuar da Administração Pública, além da sensação de incômodo e falência social, abre espaço para uma expansão disfuncional do Poder Público e a desvalorização da discricionariedade técnica. Aspectos que impedem o fortalecimento de um real Estado de Direito. Todos perdemos. ________________ FULLER, Lon L. The Morality of Law. Revised edition, New Haven:Yael Universitu Press, 1969. SUNSTEIN, Cass R e VERMEULE, Adrian. Lei e leviatã, resgatando o Estado Administrativo. Trad. Nathália Penha e Cardoso de França. São Paulo: Editora Contracorrente, 2021.
1.1 INTRODUÇÃO Levando em consideração o papel do Estado como guardião do interesse público primário e garantidor dos direitos fundamentais, os quais podem ser realizados através de políticas públicas o caminho a ser buscado no âmbito das contratações públicas deve ser no sentido de realização dos direitos fundamentais. Nessa toada, importante se torna considerar todo o caminho percorrido seja processual, ou procedimental, até que se alcance como resultado a ata de registro de preços para que considerando o custo envolvido, que não é apenas econômico, ponderar sobre a melhor decisão a ser tomada. Dessa forma, em um primeiro momento este trabalho tem a intenção de mostrar para o leitor que o Estado deve sempre ser levar em consideração na aplicação das interpretações a serem processadas no âmbito das contratações públicas o fato de ser o agente garantidor da prestação dos direitos fundamentais envolvidos, que são realizados, em certa medida, pela efetivação de políticas públicas. No segundo momento o estudo procura definir a natureza jurídica da ata de registro de preços, o que é fundamental para a conclusão sobre a possibilidade de aplicação dos institutos do reajuste em sentido estrito e da revisão. Já na terceira parte deste trabalho a intenção foi de por meio da definição dos institutos precitados demonstrar sua possibilidade de incidência na ata de registro de preços. Por fim, alcançada a maturidade suficiente em torno da temática o presente arrazoado buscou por meio da interpretação dos artigos 17 e 19 do Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, validar o entendimento de que o mantra existente em torno da impossibilidade de emprego do reajuste em sentido estrito e da revisão na ata de registro de preços deve ser superado. 1.2 DA MATERIALIZAÇÃO DOS DIREITOS FUNDAMENTAIS POR MEIO DA REALIZAÇÃO DE POLÍTICAS PÚBLICAS Preliminarmente, é relevante que sejam feitas algumas considerações sobre os direitos fundamentais consagrados na Constituição Federal, a qual dispôs o seguinte: Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida , à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: [...] § 1º - As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata. § 2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte. [...] Art. 6º São direitos sociais a educação, a saúde, a alimentação, o trabalho, a moradia, o lazer, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição.  (grifei e sublinhei) Nesse contexto, a conclusão a que se pode chegar é no sentido de que a realização das políticas públicas tem como fim a materialização dos direitos fundamentais previstos constitucionalmente. Para além disso, tem o Estado papel fundamental na concretização dos direitos fundamentais sendo atribuído a ele a tarefa de efetivação desses direitos por meio de ações positivas voltadas para a viabilização de importantes políticas públicas. Maria Paula Dallari Bucci1 dispondo sobre o conceito de política pública conceituou-a da seguinte maneira: Política pública é o programa de ação governamental que resulta de um processo ou conjunto de processos juridicamente regulados - processo eleitoral, processo de planejamento, processo de governo, processo orçamentário, processo legislativo, processo administrativo, processo judicial - visando coordenar os meios à disposição do Estado e as atividades privadas, para a realização de objetivos socialmente relevantes e politicamente determinados. (grifei e sublinhei) Como tipo ideal, a política pública deve visar a realização de objetivos definidos, expressando a seleção de prioridades, a reserva de meios necessários à sua consecução e o intervalo de tempo em que se espera o atingimento dos resultados. Do conceito acima se pode extrair que a política pública requer um planejamento estatal prévio direcionado à escolha do que irá melhor atender ao interesse coletivo. Nota-se, ainda, que não há como não considerar que o planejamento da ação estatal também tem relevância à medida que leva à necessidade de um estudo relacionado ao que é considerado socialmente relevante para aquele momento vivido pelo Estado e quais decisões políticas devem ser buscadas, então, é compreensível que o Estado tendo planejado a política pública, inclusive com a reserva de recursos para tanto queira implementá-la para que o direito fundamental seja atendido e o interesse público assegurado, já que houve um custo para tudo isso, inclusive econômico. Não é demais, por fim, lembrar o que o art. 22 da Lei de Introdução às normas do direito brasileiro prega "Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados" e, ainda, "Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente."  Diante disso, a grande questão que se coloca é se há razoabilidade em ser descartada ata de registro de preços apenas e tão somente por entender que não é possível realizar revisão, ou mesmo, reajuste em sentido estrito dos preços nela registrado? Devendo ser ressaltado que o contrato dela decorrente poderá contemplar os mencionados institutos assim considerados como cláusulas econômicas do contrato. 1.3 DA NATUREZA JURÍDICA DA ATA DE REGISTRO DE PREÇOS Pois bem, antes de aprofundar o debate central proposto importante se torna definir qual é a natureza jurídica da ata de registro de preços. Dessarte, o Sistema de Registro de preços pode ser considerado como "... um procedimento auxiliar utilizado como instrumento para facilitar a atuação da Administração Pública. Não gera compromisso efetivo de aquisição. Inaugurado o certame licitatório e declarado o ganhador ele terá seus preços registrados, desse modo, as necessidades posteriores de contratação deverão, em regra, ser formalizadas com o vencedor, de acordo com o preço que houver sido registrado."[2]  Outrossim, a "A ata de registro de preços pode ser considerada como sendo um documento vinculativo, de natureza obrigacional, isso porque serão nela estabelecidos, de acordo com o estipulado no instrumento convocatório e nas propostas apresentadas, os compromissos relacionados à futura contratação, tais como: as condições a serem praticadas, os preços, os fornecedores e os órgãos participantes."[3]  Em vista disso, levando em consideração, também, as disposições constantes do Decreto nº 7.892, de 23 de janeiro de 2013, pode-se concluir em relação à está primeira intervenção, que a cronologia aplicada à sistemática de utilização do sistema de registro de preços como sendo, em poucas palavras, a seguinte: o órgão licitante faz uso do sistema de registro preços como procedimento auxiliar ao licitatório principal, registra os preços através da ata de registro de preços e, por fim, formaliza o contrato de acordo com as regras relacionadas aos fornecedores que tiveram seus preços registrados. Desse modo, atentando para a definição atribuída para a ata de registro de preços e entendendo o papel por ela desempenhado no procedimento licitatório no qual se faz uso desse instituto, pode-se concluir que a natureza jurídica da ata de registro de preços é de um pré-contrato administrativo, tanto é assim que o art. 14 do Decreto nº 7.892/2013 dispôs expressamente que "A ata de registro de preços implicará compromisso de fornecimento nas condições estabelecidas, após cumpridos os requisitos de publicidade." Nesse diapasão, no âmbito do direito privado o art. 462 do Código Civil determina que "O contrato preliminar, exceto quanto à forma, deve conter todos os requisitos essenciais ao contrato a ser celebrado."4 Nesses termos, sobre a possibilidade de incidência do direito privado nas contratações processadas no âmbito público o art. 54 da Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993, deixa claro que "Os contratos administrativos de que trata esta Lei regulam-se pelas suas cláusulas e pelos preceitos de direito público, aplicando-se-lhes, supletivamente, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado." Dessa forma, não é desarrazoado considerar que a Administração Pública pode utilizar de institutos tipicamente existentes no direito privado, incluídos os negociais, sem que a atividade pública por ela exercida seja descaracterizada, visto que a finalidade de ser preservado o interesse público envolvido será mantida, até mesmo porque é a Administração Pública a guardiã desse tipo de interesse. Sobre o assunto importantes lições foram trazidas pelo professor Paulo Otero5 colacionadas abaixo nas partes que importam ao presente estudo: 1.4.10. Sabendo-se que a Administração Pública não encontra no Direito Administrativo o seu único complexo normativo regulador, podendo essa regulação fazer-se ao abrigo de normas provenientes de outros setores do ordenamento jurídico, uma inevitável dúvida se coloca: dever-se-á falar em Direito Administrativo ou em Direito da Administração Pública?  1.4.11. Sem que se saiba, neste momento, se o Direito Administrativo é exclusivo da Administração Pública ou, pelo contrário, se também poderá regular relações a que a Administração Pública é alheia, pode afirmar-se o seguinte: (i) O Direito Administrativo é um ordenamento regulador da Administração Pública; (ii) A Administração Pública não esgota a sua regulação jurídica no Direito Administrativo; (iii) O Direito Administrativo é o ordenamento jurídico típico, comum e matriz de regulação da Administração Pública ou do exercício da função administrativa. 1.4.12. Uma vez que o Direito Administrativo não tem (nem nunca teve) o exclusivo ou o monopólio de regulação da Administração Pública, torna-se impossível a sua configuração como sendo o único ordenamento regulador da Administração Pública, nem se poderá definir como direito institucional exclusivo da Administração Pública: o Direito Administrativo é o Direito comum da função administrativa, sendo aplicável na ausência de norma habilitando a aplicação de qualquer outro ramo do sistema jurídico. (grifei e sublinhei)  Nada obstante, como ressalvado no parágrafo 16 deste artigo, os princípios da teoria geral dos contratos e as disposições de direito privado devem ser aplicados supletivamente aos contratos administrativos, no sentido de aperfeiçoamento da lei para que seja alcançada a efetividade do instituto, sendo assim, os contornos básicos fundamentais que devem ser observados na ata de registro de preços quando considerada como pré-contrato administrativo devem ser aqueles dispostos no Decreto 7.892/13, inclusive, no que se refere à forma devendo, então, sofrer derrogação nos pontos regulamentados a norma privada utilizada. Relativamente à necessidade de se observar a forma nos contratos administrativos, desse modo, também no pré-contrato, assim considerado como sendo documento vinculativo negocial prévio, deve, então, a publicidade exigida no art. 14 do Decreto 7.892/13, ser observada, Celso Antônio Bandeira de Melo6, leciona sobre a temática em pauta que: 37. Os contratos administrativos e, também, no que couber, os predominantemente regidos pelo Direito Privado (art. 62, § 3º) obedecem, necessariamente, a formalidades para seu travamento (arts. 60 e ss.). Desde logo, têm que ser precedidos de licitação, salvo nos casos de inexigibilidade e dispensa, já referidos no capítulo anterior. Além disto, deles terão de constar obrigatoriamente determinadas cláusulas, como, por exemplo, as concernentes ao seu regime de execução, a reajustamentos, às condições de pagamento e sua atualização, aos prazos de início, execução, conclusão, entrega e recebimento definitivo do objeto, as relativas a seu valor e recursos para atendimento das despesas, às responsabilidades, penalidades, valor das multas, casos de rescisão etc. O art. 55 da lei indica quais serão elas.  Ademais, não há que se falar em equiparação do pré-contrato com o contrato definitivo no sentido de estabelecer direitos, obrigações entre a Administração Pública e o particular envolvido, nem tampouco, com o procedimento de negociação, que antecede os dois instrumentos referidos. Nesses termos, tem-se que as negociações anteriores à formalização da contratação propriamente dita podem resultar no contrato perfeito e acabado quando for possível contratar definitivamente, ou, então, em um pré-contrato, com o encargo de tornar eventualmente obrigatória no futuro a contratação. Nessa toada, a inteligência da definição constante no art. 2º, inciso II, do Decreto nº 7.892/20213, quando expressamente ressaltou que a ata de registro de preços é um "... documento vinculativo, obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação..." reforça o entendimento de que sua natureza jurídica é de pré-contrato, o qual apesar de não estabelecer direitos, obrigações entre a Administração Pública e o particular envolvido, não retira a possibilidade de revisão dos preços registrados na ata, muito pelo contrário, acaba por reforçar, visto que o fornecedor irá formalizar o contrato definitivo com a certeza de que os preços serão os condizentes com o mercado. Em conclusão neste tópico específico, pode-se considerar que a ata de registro de preços, aplicando supletivamente as disposições de direito privado, tem como natureza jurídica o pré-contrato administrativo, observadas as regras estabelecidas no Decreto 7.892/13, dentre elas, a do artigo 16 para o qual "A existência de preços registrados não obriga a administração a contratar, facultando-se a realização de licitação específica para a aquisição pretendida, assegurada preferência ao fornecedor registrado em igualdade de condições.", o que leva a crer que no caso da utilização da ata de registro de preços como pré-contrato administrativo o artigo 16 do Decreto referido deve ser considerado como "cláusula de arrependimento" devendo figurar obrigatoriamente nos instrumentos que serão formalizados. 1.4 DA POSSIBILIDADE DE REVISÃO E DO REAJUSTE DOS PREÇOS REGISTRADOS  Importante ressalvar, preliminarmente, neste ponto em início de análise, que o entendimento vigente da antiga Câmara Permanente de Licitação e Contratos, hoje Câmara Nacional de Licitação e Contratos (Portaria nº 3, de 14 de junho de 2019, da Consultoria-Geral da União), ambas unidades do Departamento de Coordenação e Orientação de Órgãos Jurídicos - DECOR (art. 14, inciso III, do Decreto nº 10.608, de 25 de janeiro de 2021), a quem compete o assessoramento jurídico da Administração Pública Direta, é pela impossibilidade de revisão dos preços registrados em ata de registro de preços (Parecer n. 00001/2016/CPLC/CGU/AGU). No que concerne ao parecer suprarreferido segue abaixo sua ementa com a síntese do entendimento adotado: I - Administrativo. Licitação. Ata de registro de preços. Reajustabilidade. Incidência dos institutos de manutenção do equilíbrio econômico. Impossibilidade. II -  Distinção entre a manutenção do equilíbrio econômico e o procedimento negocial previsto pelos os artigos 17 a 19 do Decreto federal 7.892/13. Distinção de natureza jurídica. Distinção de efeitos. Distinção de competências. III - O procedimento de negociação dos valores registrados na Ata, previsto nos artigos 17 a 19 do Decreto federal 7.892/13, não se confunde com o reconhecimento do direito da parte contratante à alteração do valor contratual, para manutenção do equilíbrio econômico do contrato. IV - O procedimento de negociação dos valores registrados na Ata, previsto nos artigos 17 a 19 do Decreto federal 7.892/13, afeta o preço registrado na Ata e deve ser conduzido, a priori, pelo órgão gerenciador. V - Não cabe reajuste, repactuação ou reequilíbrio econômico (revisão econômica) em relação à Ata de registro de preços, uma vez que esses institutos estão relacionados à contratação (contrato administrativo em sentido amplo). VI - O fato gerador de manutenção do equilíbrio econômico (reajuste, repactuação ou reequilíbrio econômico) deve ser reconhecido no âmbito da relação contratual firmada, pela autoridade competente, sem necessária interferência na Ata de registro de preços. (grifei e sublinhei) Similarmente, a sobredita convicção também a Câmara Permanente de Licitações e Contratos Administrativos da Procuradoria-Geral Federal, a quem é atribuído o assessoramento jurídico da Administração Pública Indireta, por meio do PARECER 00003/2019/CPLC/PGF/AGU abaixo colacionado concluiu que: EMENTA: DIREITO ADMINISTRATIVO. SISTEMA DE REGISTRO DE PREÇOS. NATUREZA JURÍDICA DA ATA. DECLARAÇÃO RECEPTÍCIA DE VONTADE. PROPOSTA. ATUALIZAÇÃO DO VALOR REGISTRADO EM ATA. INAPLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DO REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO DO CONTRATO. I - O Sistema de Registro de Preços consiste em procedimento previsto no inc. II do Art. 15 da Lei nº 8.666/93 e que tem como intuito permitir diversas contratações pela administração pública com uma única licitação. II - Findo o certame, formaliza-se a ata de registro de preços, documento que, a teor do Decreto nº 7.892/2013, é "vinculativo, obrigacional, com característica de compromisso para futura contratação, em que se registram os preços, fornecedores, órgãos participantes e condições a serem praticadas, conforme as disposições contidas no instrumento convocatório e propostas apresentadas (art. 2º, inc. II)". III - Consequência da natureza jurídica do preço registrado em ata como declaração receptícia de vontade e, portanto, ato anterior à formalização do ajuste, é a inaplicabilidade direta dos institutos vocacionados a garantir o equilíbrio econômico-financeiro da contratação (art. 37, XXI, da CF/88). IV - A lei nº 8.666/93 prevê "sistema de controle e atualização dos preços registrados" (Art. 15, §3º, inc. II). Coube, então, ao Decreto prever as hipóteses de atualização do valor. V - Manutenção das conclusões do Parecer nº 14/2014/CPLC/DEPCONSU/PGF/AGU O princípio da manutenção do equilíbrio econômico-financeiro do contrato se encontra insculpido no art. 37, inciso XXI, da Constituição da República7, garantindo aos particulares o direito à manutenção das "condições efetivas da proposta". Posto isso, conclui-se que o direito ao equilíbrio econômico-financeiro do que foi ajustado não pode ser retirado nem por força de regulamento ou de lei8. Segue-se a isso, que o momento de formação da equação econômico-financeira do contrato a ser considerado é o da data da publicação do edital, onde serão estabelecidos os encargos a serem suportados pelo contratado e a data que a proposta é apresentada, com as vantagens previstas e a remuneração a ser paga. Veja, que todos esse momentos antecedem à formalização da ata registro de preços e, de novo, a Constituição Federal garante o direito de ser mantida as "condições efetivas da proposta", a qual não se encontra apenas e tão somente no contrato. Por conseguinte, estabeleceu-se a lógica de se considerar como instrumentos de recomposição da equação econômico-financeira do contrato as cláusulas de reajuste, assim consideradas por antever as circunstâncias normais que resultariam na necessidade reajuste dos preços do contrato e a revisão como decorrência da aplicação da teoria da imprevisão. Dessa maneira, na álea ordinária aplica-se o reajuste em sentido lato (art. 40, XI e 55, inciso III, da Lei nº 8.666/1993) estando nele compreendido o reajuste por índice (estrito sensu), aplicado para a reposição da perda do poder aquisitivo da moeda (remediar efeitos da inflação), com índices prefixados no contrato administrativo e a repactuação (Anexo I da IN SEGES 5/2017, inciso XX).  Em contrapartida, a álea extraordinária pode resultar na necessidade de revisão do contrato (art. 65, inciso II, alínea "d", da lei 8.666/93) tendo como fundamento o desequilíbrio advindo de fato imprevisível ou, se previsível, com consequências incalculáveis, retardadores ou impeditivos da execução do ajustado, que não se confundem, portanto, com os critérios de reajuste ordinários previstos contratualmente.   No que tange à teoria da imprevisão, que irá ocorrer quando um fato externo à vontade das partes, imprevisível quando da celebração do contrato, venha a causar abalo significativo à execução do contrato ocasionando a onerosidade da prestação, o que por certo, irá afetar a execução do contrato e provocar a necessidade de sua revisão, essa não depende de previsão no instrumento convocatório ou no contrato, pois o que conta é a sua imprevisibilidade e para que ela ocorra deve ser comprovada a repercussão sobre o objeto do contrato. Por conseguinte, para os fatos supervenientes, que venham a ser considerados imprevistos (álea extraordinária) aplica-se a teoria da imprevisão, então, os acontecimentos de consequências incalculáveis, como, por exemplo, a desvalorização monetária/inflação, desde que ultrapasse os limites das previsões gerais, também, estariam aí incluídos. Dessa maneira, pode-se considerar como requisitos para a revisão: a) demonstração dos fatos que ensejam a revisão; b) necessidade de termo aditivo; c) existência de recursos orçamentários (art. 16, parágrafo quarto, inciso I, da lei Complementar número 101/2000; d) necessidade de análise pela assessoria jurídica (art. 38, Parágrafo único, da lei 8.666/93); e, e) publicação (art. 61, Parágrafo único, da lei 8.666/93). Em face do exposto, tendo em vista a natureza jurídica de pré-contrato administrativo atribuída a ata de registro de preços é razoável considerar que sobre ela possam incidir os efeitos da álea extraordinária resultantes da aplicação da teoria da imprevisão podendo vir a ser revisada caso os requisitos, para tanto, sejam observados. No contexto da lei 14.133/21 o artigo 84 permitiu a possibilidade de vigência da ata de registro de preços por até 2 anos, confira-se abaixo o texto: Art. 84. O prazo de vigência da ata de registro de preços será de 1 (um) ano e poderá ser prorrogado, por igual período, desde que comprovado o preço vantajoso. Parágrafo único. O contrato decorrente da ata de registro de preços terá sua vigência estabelecida em conformidade com as disposições nela contidas. (grifei e sublinhei) Dessa maneira, o reajuste por índice, estrito sensu, utilizado para recompor a perda do poder aquisitivo da moeda (remediar efeitos da inflação) por meio de índices prefixados no contrato administrativo também passa a ser possível na ata de registro de preços, assim considerada como pré-contrato. Essa lógica também está em consonância com o que determina o artigo segundo e seu parágrafo primeiro da lei 10.192, de 20019. Destaca-se que o parágrafo único do dispositivo suprarreferido dispôs expressamente que "O contrato decorrente da ata de registro de preços terá sua vigência estabelecida em conformidade com as disposições nela contidas." possibilitando, assim, que eventuais reajustes ou revisões aplicados na ata de registro de preços sejam transferidos para o contrato definitivo.                          1.5 DOS ARTIGOS 17 E 19 DO DECRETO 7.892/13 - INTERPRETAÇÃO A SER EMPREGADA A respeito dos dispositivos do Decreto 7.892/13, motivo de debates relacionados à matéria em apreço, suas disposições prescrevem que: Art. 17. Os preços registrados poderão ser revistos em decorrência de eventual redução dos preços praticados no mercado ou de fato que eleve o custo dos serviços ou bens registrados, cabendo ao órgão gerenciador promover as negociações junto aos fornecedores, observadas as disposições contidas na alínea "d" do inciso II do caput do art. 65 da lei 8.666, de 1993. Art. 19. Quando o preço de mercado tornar-se superior aos preços registrados e o fornecedor não puder cumprir o compromisso, o órgão gerenciador poderá: I - liberar o fornecedor do compromisso assumido, caso a comunicação ocorra antes do pedido de fornecimento, e sem aplicação da penalidade se confirmada a veracidade dos motivos e comprovantes apresentados; e II - convocar os demais fornecedores para assegurar igual oportunidade de negociação. Parágrafo único. Não havendo êxito nas negociações, o órgão gerenciador deverá proceder à revogação da ata de registro de preços, adotando as medidas cabíveis para obtenção da contratação mais vantajosa. (grifei e sublinhei) Nessa perspectiva, o comando do art. 17 é para que seja aplicada a teoria da imprevisão para os preços registrados, logo, não há contrato formalizado ainda com o fornecedor e os preços registrados podem ser revisados em decorrência de eventual redução dos preços praticados no mercado OU de fato que eleve o custo dos serviços ou bens registrados, já que é considerado um direito constitucionalmente garantido pelo art. 37, XXI, da CF, o que o artigo impõe é que seja realizada pelo órgão gerenciador negociação junto ao fornecedor para que se alcance o preço vantajoso para as duas partes, daí podendo resultar a necessidade ou não em ser aditivado o pré-contrato administrativo (ata de registro de preços), se for vantajoso tanto para a Administração contratante, quanto para o fornecedor sua manutenção. Nessa lógica, o art. 19 quando dispôs que se o preço de mercado tornar-se superior aos preços registrados e (adtivo) o fornecedor não puder cumprir o compromisso assumido a leitura que deve ser feita é em conjunto com o que disposto, também, em seu parágrafo único no sentido de se buscar a contratação mais vantajosa para as duas partes do pré-contrato podendo, desse modo, ter como resultado para a Administração contratante a manutenção dos preços registrados mesmo que seja necessário ser feita a revisão ou o reajuste em sentido estrito dos preços registrados na ata para maior, mas, para o fornecedor não, por considerar não ser possível honrar com o compromisso assumido tendo em conta o fato de não ser vantajoso para ele ter que suportar a variação do custo com a entrega do bem. Nesse prumo, o órgão gerenciador antes de concluir pela necessidade de revisão dos preços então registrados e formalizar o aditivo ou irá liberar o fornecedor do compromisso assumido, caso ele não possa mais cumprir com a obrigação, que se tornou para ele demasiadamente onerosa e, nesse caso, terá a opção de convocar os demais fornecedores para assegurar igual oportunidade de negociação, caso em que, não havendo êxito nas negociações anteriores, pode resultar na revisão dos preços registrados, se o órgão gerenciador concluir que essa é a medida mais adequada para a obtenção da contratação mais vantajosa. Com isso, a coerência do macrossistema jurídico que deve ser aplicado ao instituto do sistema de registro de preços será mantida. 1.6 CONCLUSÃO O objetivo deste artigo foi apresentar toda a discussão ainda existente no que se refere à possibilidade de aplicação ou não dos institutos do reajuste em sentido estrito e da revisão na ata de registro de preços ao final foi possível concluir pela plausibilidade da aplicação dos institutos referidos, devendo, ainda, serem levados em consideração os princípios da eficiência e da economicidade, visto que inevitavelmente a revisão processada na ata de registro de preços será transferida para o contrato. Conforme exposto, pode ser empregado na ata de registro de preços supletivamente as disposições de direito privado (art. 54 da Lei nº 8.666/1993), podendo ser considerada como pré-contrato administrativo, sendo essa sua natureza jurídica, o que não retira a necessidade de serem observadas as regras estabelecidas no Decreto nº 7.892/2013, as quais irão derrogar algumas normas do direito privado, dentre elas, a do art. 16, que atrai a obrigatoriedade de constar nos instrumentos que serão formalizados como "cláusula de arrependimento". Tendo em vista a natureza jurídica de pré-contrato administrativo atribuída a ata de registro de preços é razoável considerar que sobre ela possam incidir os efeitos da álea extraordinária resultantes da aplicação da teoria da imprevisão podendo vir a ser revisada caso os requisitos, para tanto, sejam observados. A lei 14.133/21 admitindo que a vigência da ata de registro de preços possa ser estendida por até dois anos e prevendo expressamente em seu artigo 84 que "O contrato decorrente da ata de registro de preços terá sua vigência estabelecida em conformidade com as disposições nela contidas." também propiciou que o reajuste em sentido estrito possa incidir. O comando do art. 17 do Decreto 7.892/13 é para que seja aplicada a teoria da imprevisão para os preços registrados (art. 37, XXI, da CF) impondo que seja realizado pelo órgão gerenciador negociação junto ao fornecedor daí podendo resultar a necessidade ou não em ser aditivado o pré-contrato administrativo (ata de registro de preços), se for vantajoso tanto para a Administração contrante, quanto para o fornecedor sua manutenção. Já o art. 19 do Decreto 7.892/13 quando dispôs que se o preço de mercado tornar-se superior aos preços registrados e (adtivo) o fornecedor não puder cumprir o compromisso assumido a leitura que deve ser feita é em conjunto com o que disposto, também, em seu parágrafo único no sentido de se buscar a contratação mais vantajosa (para as duas partes do pré-contrato) podendo, desse modo, ter como resultado para a Administração contratante a manutenção dos preços registrados mesmo que seja necessário ser feita a revisão dos preços registrados na ata para maior, mas, para o fornecedor não, por considerar não ser possível honrar com o compromisso assumido tendo em conta o fato de não ser vantajoso para ele ter que suportar a variação do custo com a entrega do bem. 1.7 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BUCCI, Maria Paula Dallari. Organizadora. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006.   Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos / organizador Leandro Sarai - São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. Página 545. SILVA PEREIRA, Caio Mário da, Instituições de Direito Civil, 10ª ed. , Rio, 1996,v. 3, p. 81. OTERO, Paulo. Manual de Direito Administrativo. Volume I. Editora Almedina. Coimbra. 2013. BANDEIRA DE Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 35. ed. São Paulo. 2021. Malheiros Editores. ____________ 1 BUCCI, Maria Paula Dallari. Organizadora. Políticas públicas: reflexões sobre o conceito jurídico. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 39.  2 Da Silva, Michelle Marry Marques. Comentários ao artigo 82. Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos / organizador Leandro Sarai - São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. Página 545.   3 Da Silva, Michelle Marry Marques. Comentários ao artigo 84. Tratado da Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos: Lei 14133/21 Comentada por Advogados Públicos / organizador Leandro Sarai - São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. Página 551. 4 SILVA PEREIRA, Caio Mário da, Instituições de Direito Civil, 10ª ed. , Rio, 1996,v. 3, p. 81, para quem "contrato preliminar é "aquele por via do qual ambas as partes ou uma delas se comprometem a celebrar mais tarde outro contrato, que será o principal". 5 OTERO, Paulo. Manual de Direito Administrativo. Volume I. Editora Almedina. Coimbra. 2013. páginas 32-33. 6 Bandeira de Mello, Celso Antônio. Curso de Direito Administrativo. 35. ed. São Paulo. 2021. Malheiros Editores. Página 587. 7 XXI - ressalvados os casos especificados na legislação, as obras, serviços, compras e alienações serão contratados mediante processo de licitação pública que assegure igualdade de condições a todos os concorrentes, com cláusulas que estabeleçam obrigações de pagamento, mantidas as condições efetivas da proposta, nos termos da lei, o qual somente permitirá as exigências de qualificação técnica e econômica indispensáveis à garantia do cumprimento das obrigações.   8 ORIENTAÇÃO NORMATIVA DA AGU Nº 22, DE 1º DE ABRIL DE 2009: O REEQUILÍBRIO ECONÔMICO-FINANCEIRO PODE SER CONCEDIDO A QUALQUER TEMPO, INDEPENDENTEMENTE DE PREVISÃO CONTRATUAL, DESDE QUE VERIFICADAS AS CIRCUNSTÂNCIAS ELENCADAS NA LETRA "D" DO INC. II DO ART. 65, DA LEI Nº 8.666, DE 1993. 9 Art. 2º É admitida estipulação de correção monetária ou de reajuste por índices de preços gerais, setoriais ou que reflitam a variação dos custos de produção ou dos insumos utilizados nos contratos de prazo de duração igual ou superior a um ano.   §1º É nula de pleno direito qualquer estipulação de reajuste ou correção monetária de periodicidade inferior a um ano.    
Abandonar um cargo público, por si, não é algo fácil de se admitir num país onde o acesso aos cargos e empregos públicos exige "aprovação prévia em concurso público de provas ou de provas e títulos" por expressa previsão constitucional. Quem, afinal, abandonaria um cargo público depois de ter se submetido a uma rígida disciplina de estudo e dedicação, ultrapassado um extenuante processo seletivo, sido testado quanto às suas habilidades técnicas e também emocionais? Alguns dizem: "Só um louco faria isso!" Será mesmo? A mítica social que envolve o ingresso profissional no serviço público geralmente não considera que a hipótese descrita no art. 132 da lei 8.112, de 1990, uma vez concretizada na vida real, como "ausência intencional ao serviço público por mais de trinta dias consecutivos", qualifica uma infração disciplinar passível de aplicação de penalidade de demissão quando praticada por servidor público federal ocupante de cargo efetivo ou em comissão. Semelhantes disposições podem ser encontradas em normativos estaduais e municipais. A suposta severidade da punição daqueles que, indo "contra a ordem natural das coisas", deixam, sem apresentar uma justificativa plausível, de exercer suas funções públicas, contrasta com a singeleza do procedimento disciplinar aplicável. A Lei federal estabelece como regra geral para esses casos, o rito sumário. Mais célere, pressupondo-se que a indicação da materialidade deverá estar configurada ab initio. A partir daí, fácil seria entender que, uma vez comprovados mais de trinta dias consecutivos de faltas injustificadas, caberia a Administração Pública, sem maiores elucubrações, instaurar o devido procedimento apuratório com o fim de averiguar a ocorrência em concreto da infração sob análise. Ocorre que doutrina e a jurisprudência concordam que há três requisitos a serem considerados para se configurar o abandono de cargo: (a) a ausência ao serviço; (a) que essa falta se dê por, no mínimo, trinta e um dias ininterruptos; e (c) a intencionalidade do servidor em abandonar seu cargo público1-2. As manifestações da Advocacia-Geral da União (Parecer GMF-63) e da Controladoria-Geral da União4 vão no mesmo sentido. Assim, além das faltas aparentemente injustificadas, a intenção do agente voltada ao abandono (dolo direto ou dolo eventual5) deverá ser demonstrada para que a Administração Pública possa exercer o seu poder-dever de apurar o ocorrido por meio da instauração de um processo administrativo disciplinar. No que tange à indicação objetiva das faltas injustificadas, não há maiores dificuldades, especialmente quando há um efetivo controle de jornada dos servidores. O desafio surge quando se trata de examinar a incidência do requisito subjetivo do tipo infracional - a intencionalidade.  Ora, já nos diziam os manuais de Direito Penal que a grande dificuldade está em perquirir a intenção do agente. Nesse sentido, comprovar o querer direcionado a abandonar um cargo público vai de encontro à racionalidade administrativa, como já dissemos. Será, então, que faz sentido a existência de previsão legal de infração passível de aplicação da penalidade demissória, para aqueles que deliberadamente, deixam de exercer seu múnus público perante a Administração? Em que medida, é responsabilidade da Administração perquirir, manejando toda a máquina pública, a razão pela qual um servidor público opta por deixar suas funções? Veja que a resposta a esse questionamento coloca em cheque questões intrínsecas já levantadas aqui: a objetividade da existência de quantidade expressiva de faltas injustificadas pressupõe intencionalidade em abandonar o cargo ou o animus abandonandi é requisito prévio essencial à persecução disciplinar? Na primeira opção, contrariamos, em certa medida, a natural intenção de permanência no serviço público e recrudescemos o brocado "in dubio pro societate". Para a segunda, reforçamos à mítica social ligada à potencial anormalidade identificada na conduta de agente que pretende abandonar um cargo público. O ânimo de abandonar o cargo público (requisito subjetivo) se consubstancia na ausência de motivo de força maior, coação irresistível6, ou outro caso alheio à sua vontade do servidor, e que impeça o ocupante de cargo público de comparecer ao trabalho. Na prática administrativa, o fato de haver trinta e um dias ou mais de faltas aparentemente injustificadas, não demonstra a intenção do servidor de abandonar seu cargo público, tampouco atesta que não há motivo justo para sua ausência. No âmbito do processo, que não necessariamente precisa ser disciplinar, é factível que o servidor comprove que, além da intenção de não abandonar seu cargo público, suas ausências, até então consideradas ilegítimas, podem ser justificadas em situações de força maior, coação irresistível ou outras circunstâncias aptas a isentar sua responsabilidade.7 Deve ser prática de todo chefe buscar conhecer os motivos que levaram o servidor a ele subordinado a faltar consecutiva e frequentemente ao serviço. Ao constatar as primeiras ausências, uma chefia zelosa deverá comunicar o caso ao órgão de gestão de pessoas da instituição para fins de realização das diligências necessárias à apuração do ocorrido.8 É cediço que a ausência prolongada do servidor pode trazer consideráveis prejuízos ao andamento regular dos serviços públicos prestados pela Administração, mas não se deve desconsiderar a realidade da vida e, de forma cega e açodada, apressarmo-nos à instauração de procedimentos destituídos do espírito de razoabilidade e justiça que deve nortear as ações de todo gestor público. Aparentemente em razão desses desafios, o legislador paulista decidiu revogar o tipo infracional de "abandono de cargo" presente na legislação do Estado de São Paulo que trata do regime jurídico de seus servidores públicos (Lei nº. 10.261, de 28 de outubro de 1968, alterada pela lei complementar 942, de 06 de junho de 2003). No âmbito daquele Estado, portanto, não há que se falar nesse tipo disciplinar. Manteve tão somente a hipótese de inassiduidade habitual apontando que a defesa nesse caso somente poderá versar sobre força maior, coação ilegal ou motivo legalmente justificável que impeça o comparecimento ao trabalho (art. 311).  Apesar do tratamento diverso dado ao tipo infracional de abandono de cargo por parte da legislação, tem-se que no âmbito federal, pode-se dizer que ainda é aferível a incidência desse tipo de transgressão. De acordo com a Controladoria - Geral da União - CGU, desde o ano de 2003, foram instaurados 10.607 processos em virtude de ausências ou impontualidades ao serviço por parte de servidores dos órgãos e entidades do Poder Executivo Federal submetidos à sua supervisão, conforme gráficos expostos no Portal de Corregedorias9. Desse total, foram concluídos 9.483 processos e apenados 2.248 servidores por abandono de cargo, inassiduidade habitual ou acúmulo de cargos públicos, o que representou 25% das sanções expulsivas aplicadas a agentes públicos federais.10 A questão que se coloca é a adequabilidade de se encaixar ou manter o abandono de cargo dentre as hipóteses de infrações sujeitas à investigação processualística administrativa disciplinar. São seria o caso de tratarmos tal realidade fática como um desafio de gestão administrativa? Parece-nos que sim. À luz do que dissemos, os requisitos que sustentam a materialidade da conduta têm sido perquiridos ainda na esfera pré disciplinar. Faltas injustificadas objetivamente consideradas e a intencionalidade do agente já são apresentadas ab initio, como nos exige a lei, doutrina e jurisprudência. Com efeito, o abandono de cargo, na prática atual, não se configura unicamente quando forem identificadas ausências por mais de trinta dias, mas trata-se de realidade excepcional que para ser demonstrada, necessita de exame preliminar à instauração de um procedimento disciplinar, de forma a se demonstrar que o servidor de fato, queria abandonar seu cargo público. Percebemos assim que antes da instauração disciplinar, a Administração já possui todos os elementos para desligar o servidor público de seus quadros. Se essa fase preliminar administrativa contar com o devido cuidado à concretização dos princípios do contraditório e ampla defesa, tendo se dado ao agente público oportunidade para apresentar suas razões e os dados e documentos que a fundamentam, soa não razoável, antieconômico e pouco eficiente, a instauração de novo processo administrativo, de índole disciplinar, para se tratar do mesmo tema. Poder-se-ia dizer que a natureza da conduta, enquanto infração a um dever ou descuido com uma proibição legalmente imposta aos agentes públicos justificaria a aplicação de uma reprimenda administrativa. Será mesmo? A aplicação de penalidade demissória como "castigo merecido" pode dar ares de inadequação mesmo quando a intencionalidade da ausência injustificada se encontra fartamente demonstrada nos autos. A intencionalidade, entretanto, não deve ser confundida com dolo ou má-fé: não há estrita similaridade entre os institutos. Ao que parece, em contraponto, é que a prática processual tem sido mantida apenas como cumprimento do princípio da legalidade que fortemente rege as ações e omissões da Administração Pública. Nesse sentido, nossos "carrascos" são os arts. 132, II, e 143, da lei 8112, de 1990, que impelem uma instauração peremptória. De outro ponto, em defesa ao stauos quo, podemos imaginar que a efetividade, qualitativa e quantitativa, dos processos administrativos disciplinares que têm apurado os casos de abandono de cargo seria uma justificativa social para manutenção do procedimento adotado. Vimos, porém, que não é isso que os números mostram: a CGU, desde 2003, apenou apenas agentes públicos em pouco mais de 20% dos PADs instaurados para apurar este tipo de conduta. Parece utópica, portanto, a configuração de uma infração disciplinar de abandono de cargo no contexto atual. De fato, os números mostram que há casos em que existe o interesse do servidor público em não mais permanecer em seu cargo, mas esse interesse não precisa necessariamente ser reconhecido como infração disciplinar para que o vínculo seja desfeito. O servidor pode ser exonerado, e não demitido, para que se internalize sua intenção em deixar o serviço público. Obviamente, valores recebidos indevidamente em face de trabalho não realizado devem retornar aos cofres públicos, assim como outros prejuízos que se concretizem em razão da ausência intencional não justificada. O que não parece mais factível, ainda que dependente de alteração do quadro legislativo em vigor, é a existência de infração disciplinar quando o dolo ou má-fé não esteja intrinsecamente relacionado com a conduta praticada. Precisamos superar a mítica social que envolve o ingresso profissional no serviço público e entender que a intenção em abandonar um cargo público nem sempre reflete má fé por parte do agente publico, ainda que ele tenha se ausentado intencionalmente por mais de trinta e um dias. Ademais, haverá outras capitulações da lei 8112, de 1990, ou até mesmo no Código Penal, que captarão as eventuais práticas de "abandonar o cargo" com intencionalidade acrescida de dolo ou má fé, repercutindo então a necessidade de apuração disciplinar ou criminal em situações mais graves. Esses casos, porém, parecem representar reduzidas quantidades no mundo real. Referências  ADVOCACIA - GERAL DA UNIÃO. Parecer GMF-6, de 25 de julho de 2017. Disponível aqui. Acesso em 05 de abr. 2022. BRASIL. Lei nº. 8.112, de 11 de dezembro de 1990. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis da União, das autarquias e das fundações públicas federais. Diário Oficial da União. Brasília, 19 de abril de 1991. _______. Decreto - Lei nº. 2.848, de 07 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União. Brasília, 31 de dezembro de 1940. _______. Decreto - Lei nº. 3.689, de 03 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Diário Oficial da União. Brasília, 13 de outubro de 1941. _______. Decreto - Lei nº. 220, de 18 de julho de 1975. Dispõe sobre o estatuto e regime jurídico único dos servidores públicos civis do Estado do Rio de Janeiro. Boletim Público Estadual. Rio de Janeiro, 21 de julho de 1975. _______. Lei complementar nº. 10.098, de 03 de fevereiro de 1994. Dispõe sobre o estatuto e regime jurídico único dos servidores públicos civis do Estado do Rio Grande do Sul. Diário Oficial Executivo. Rio Grande do Sul, 04 de fevereiro de 1994. _______. Lei nº. 10.261, de 28 de outubro de 1968. Dispõe sobre o estatuto e regime jurídico único dos servidores públicos civis do Estado de São Paulo. Diário Oficial Executivo. São Paulo, 29 de outubro de 1968. _______. Lei nº. 20.756, de 28 de janeiro de 2020. Dispõe sobre o regime jurídico dos servidores públicos civis do Estado de Goiás, das autarquias e fundações públicas estaduais, e dá outras providências. Diário Oficial Executivo. Goiás, 29 de janeiro de 2020. Controladoria-Geral da União. Manual de Processo Administrativo Disciplinar. Disponível aqui. 2021. Acesso em: 06 abr. 2022. _______. Painel Correição em Dados. Disponível aqui. Acesso em: 05 abr. 2022. COSTA, José Armando da. Direito Administrativo Disciplinar. 1. Ed. Editora: Brasília Jurídica, 2004. DEPARTAMENTO DO SERVIÇO PÚBLICO - DASP. Formulação nº. 51, de 06 de junho de 1968. Disponível aqui. Acesso em: 05 abr. 2022. _______. Formulação 81, de 07 de novembro de 1966. Disponível aqui. Acesso em: 05 abr. 2022. _______. Formulação nº. 116, de 15 de março de 1964. Disponível aqui. Acesso em: 05 abr. 2022. GUIMARÃES, Francisco Xavier da Silva. Regime Disciplinar do Servidor Público Civil da União. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 66. SILVA, Aline Cavalcante dos Reis. Comentários às normas de conduta dos agentes públicos federais: legislação comentada e casos práticos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2020, p. 169-170. SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt nos EDcl no MS 23.935/DF, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, Julgado em 15/03/2022, DJe de 22/03/2022. _______. RMS 57.202/MS, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, DJe 13 de maio de 2021. _______. Mandado de Segurança nº. 6.952 - DF (processo nº 2002/0041936-0), Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 02 de outubro de 2002. _______. RMS 18.017/SP, Rel. Ministro Paulo Medina, Sexta Turma, DJ de 2 de maio de 2006. WARMLING, Glenda Liz de Paula. O processo disciplinar por abandono de cargo. Revista Jurídica Consulex, nº 257, de 30/09/2007. Disponível aqui. Acesso em 05 abr. 2022. __________ 1 SILVA, Aline Cavalcante dos Reis. Comentários às normas de conduta dos agentes públicos federais: legislação comentada e casos práticos. 2. ed. Curitiba: Juruá, 2020, p. 169-170. 2 SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. AgInt nos EDcl no MS 23.935/DF, Rel. Ministro Gurgel de Faria, Primeira Seção, Julgado em 15/03/2022, DJe de 22/03/2022. Precedentes: RMS 57.202/MS, Rel. Ministro Benedito Gonçalves, Primeira Seção, julgado em 10/05/2021, DJe 13/05/2021; Mandado de Segurança nº. 6.952 - DF (processo nº 2002/0041936-0), Rel. Min. Gilson Dipp, DJ de 02 de outubro de 2002. 3 "Caberá ao Estado não apenas constatar (elemento objetivo) a ausência pelo prazo trintenário, mas também, a intenção de se ausentar (elemento subjetivo), a qual pode ocorrer por dolo direto ou eventual, isto é, quando o servidor deseja ausentar-se ou, ou não desejando, assume o risco de produzir o mesmo resultado, conforme firme jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça". 4 Controladoria-Geral da União. Manual de Processo Administrativo Disciplinar. Disponível aqui. 2021, p. 227. Acesso em: 06 abr. 2022. 5 DEPARTAMENTO DO SERVIÇO PÚBLICO - DASP. Formulação 81. Abandono de cargo. O abandono de cargo pode resultar, também, de dolo eventual. 6 DEPARTAMENTO DO SERVIÇO PÚBLICO - DASP. Formulação nº. 51. Abandono de cargo. Se a ausência do serviço resulta de coação irresistível, não ocorre abandono de cargo. 7 Em caso recentemente julgado, o STJ decidiu pela reintegração de servidora demitida do cargo público por suposto abandono de cargo. Ao examinar o pedido da impetrante, a Corte superior verificou que a servidora havia gozado anteriormente de licença para acompanhamento do tratamento de saúde de sua genitora e, munida de novos atestados médicos, solicitou a prorrogação do seu afastamento, a qual não foi acolhida integralmente porque a Administração entendeu que era possível a atuação da referida servidora com a carga horária reduzida. Apesar de ter recorrido da decisão administrativa e efetivado novos pedidos de licença, a servidora não obteve sucesso, o que resultou no período de 50 (cinquenta) dias consecutivos de ausências ao trabalho, as quais foram tidas como injustificadas pelo órgão público. Conforme consta da ementa da decisão, a impetrante valeu-se de todos os recursos que ainda tinha para se manter acompanhando o tratamento da mãe: gozou dos dias de férias remanescentes e das licenças a que fazia jus na ocasião (licença capacitação e licença prêmio) e, em seguida, retornara regularmente ao trabalho. Consignou-se que "os dias de falta foram descontados de seu contracheque e, embora não autorizada formalmente, procurou, por conta própria, compensar a carga horária do período em que esteve ausente. Apontou o órgão julgador, ainda, que se tratou de hipótese em que o afastamento da servidora foi justificado de forma objetiva, pois decorreu de "relevante valor moral (tratar doença grave da genitora), operando-se por motivo de força maior (enfermidade que não podia ser impedida) e para salvaguardar bem mais precioso (saúde da mãe)".Em conclusão, considerou ausente o elemento volitivo necessário para caracterizar o abandono do cargo e ressaltou que o "animus abandonandi" deve ser analisado com cuidado, levando-se consideração tanto a constatação das faltas, mas também as razões que levaram a tal atitude, sendo necessário que haja, quanto ao agente, motivo de força maior ou de receio justificado de perda de um bem mais precioso, para descaracterizar o elemento subjetivo. 8 Essa prática já foi objeto de preocupação pelo Estado do Rio Grande do Sul que regulamentou essa prática em sede de sua lei complementar 10.098, de 03/02/1994 (art. 247). 9 CONTROLADORIA - GERAL DA UNIÃO. Painel Correição em Dados. Disponível aqui. Acesso em 05 abr. 2022. 10 Situação semelhante pôde ser verificada na Corregedoria de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios, conforme apontado em artigo publicado no sítio do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e Territórios. Afirmava-se que, "em apenas cerca de 20% dos processos disciplinares instaurados em razão de suposto abandono de cargo, restou demonstrada a falta de interesse do servidor em manter seu cargo público[10], o que comprova que em média, entre 75 a 80% dos procedimentos instaurados em razão de práticas dessa natureza, não atestaram o abandono de cargo, especialmente em razão da ausência do elemento volitivo do tipo (animus abandonandi).
A relação entre os setores públicos e privado é tão sensível quanto necessária e ganha notável relevo quando inserida na temática afeta às contratações públicas. Todos sabemos. De um lado, a aproximação exige redobrada atenção, em especial quanto a aspectos relacionados à garantia da imparcialidade, impessoalidade e não configuração de eventuais conflitos de interesses1 entre os agentes envolvidos. De outro, a intensa relação social pressupõe que a atuação colaborativa trará ganhos de efetividade e eficiência. Nesse sentido, pode-se dizer que um dos traços marcantes da lei 14.133, de 1º de abril de 2021, foi enfrentar de uma maneira mais pragmática a relação entre os atores públicos e privados, trazendo novas regras que desmistificam a relação num contexto das licitações e contratos administrativos.  A participação privada ainda na fase preparatória da licitação, o instituto do procedimento de manifestação de interesse - PMI, ao lado da contratação integrada2 (art. 14, § 4º da NLLC) e do diálogo competitivo (art. 32 da NLLC), fazem parte de alguns dos instrumentos que chamam atenção para o caminho de colaboração que se pretende reforçar. Importante ressaltar que o PMI não se confunde com o diálogo competitivo. Pode até mesmo ser utilizado como procedimento auxiliar desse último, o qual apesar de também ser considerado como um diálogo público-privado restará configurado posteriormente à fase de seleção do fornecedor, fase externa do procedimento licitatório. Através do qual será aberta a possibilidade para que se tenha o diálogo entre setor público e o privado pretendendo alcançar de maneira conjunta a melhor solução para a contratação de obras, serviços e compras, com o intuito de desenvolver uma ou mais alternativas capazes de atender às suas necessidades. Outrossim, apesar das hipóteses utilizadas no diálogo competitivo também serem restritas, de acordo com o art. 32, incisos I e II da NLLC, elas são distintas das previstas para o PMI, que acontece na fase preparatória do procedimento licitatório. De fato, esse último é um procedimento auxiliar e o primeiro é considerado modalidade licitatória pela NLLC assim como o pregão, a concorrência, o concurso e o leilão (art. 28). Apesar do instituto do PMI não ser novo no macrossistema jurídico das contratações públicas, visto que já era previsto no Decreto 8.428, de 2 de abril de 2015, para processos que envolvam concessão de serviços públicos e destinação de patrimônio da União, estruturação de desestatização de empresa e de contratos de parcerias3 ele pode ser considerado como uma inovação4 trazida pela NLLC ao microssistema jurídico das contratações públicas, que não envolvam os objetos mencionados no regulamento citado. Nesse sentido, quando observadas as previsões até então constantes no art. 9º, incisos I e II, da lei 8.666, de 21 de junho de 1993, nota-se a evolução da temática em comento, a qual possibilita a utilização de verdadeiros diálogos público-privados formais que "... representam as comunicações realizadas entre agentes públicos e agentes econômicos cujas informações encontram-se devidamente registradas em processo administrativo - num cenário de potencial visibilidade."5 Enquanto procedimento auxiliar6, o PMI pela leitura do art. 81 da lei 14.133/2021, autoriza que "a Administração solicite à iniciativa privada, mediante procedimento aberto de manifestação de interesse" que deve estar relacionado com a propositura e a realização de estudos, investigações, levantamentos e projetos de soluções inovadoras que contribuam com questões de relevância pública. Vai além, portanto, do incentivo a uma postura meramente dialógica, mas incita efetiva coparticipação dos atores privados, fundada na busca por inovação. No que diz respeito à delimitação do conceito relacionado a soluções inovadoras entenderam Fabrício Macedo Motta e Bruno Belém7 de maneira bem pertinente que: Numa primeira tentativa de delimitar o espaço de aplicação do procedimento, designadamente quanto à expressão 'soluções inovadoras', pode-se recorrer aos termos da Lei nº 10.973/2004, que dispõe sobre os incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo. Entender o que o direito posto considera inovação poderá ajudar na compreensão do propósito da Lei. O art. 2º da Lei 10.973/2004 considera inovação 'introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho'. [...] O artigo 4º, VIII da Lei nº 14.129/2021 define 'laboratório de inovação' como sendo 'espaço aberto à participação e à colaboração da sociedade para o desenvolvimento de ideias, de ferramentas e de métodos inovadores para a gestão pública, a prestação de serviços públicos e a participação do cidadão para o exercício do controle sobre a administração pública.' Eis uma arena em que provavelmente a Administração Pública recorrerá ao PMI como forma de obter projetos de 'soluções inovadoras' de seu interesse. Acredita-se que o PMI emerge no contexto licitatório como uma janela por onde pode ser vislumbrado um novo horizonte de desenvolvimento e inovação, especialmente tecnológicos. Permite que soluções às necessidades da Administração Pública, para os quais o mercado já possui maior experiência que o Poder Público, sejam apresentadas de maneira lícita e transparente. Sem descurarmos que essa forma de interação, para esse específico fim, ao viabilizar ideias e projetos de maneira procedimentalizada, garante maior segurança para as partes e para o interesse público. Além disso, nota-se que o dispositivo supramencionado condiciona a possibilidade de utilização do PMI à edição de regulamento para que as balizas necessárias que devem ser observadas quando de sua adoção possam garantir higidez ao procedimento e uniformização relativamente ao seu emprego pelos órgãos públicos. Um reforço interessante à lisura procedimental que se busca efetivar. Apesar disso, até que haja o regulamento, admite-se a possibilidade de o agente público sustentar seu uso, desde que utilize motivação robusta, para tanto, incluída, a demonstração da necessidade de abertura do procedimento. Dessa forma, apesar de não editado ainda o regulamento, em relação ao Procedimento de Manifestação de Interesse - PMI, a cronologia que se desenha é direcionada para o seguinte: 1) Fase interna (deve restar configurado o levantamento da necessidade pública, constatação de inexistência no âmbito da Administração de metodologia empregada que atenda ao interesse público satisfatoriamente e vantajosidade, inclusive econômica); 2) Abertura com a publicação de edital de chamamento público; 3) Autorização para que sejam fornecidos os projetos e os estudos; 4) Avaliação (art. 81, § 3º da NLLC); 5) Abertura de processo licitatório para seleção do fornecedor que irá se comprometer com a entrega do objeto do projeto caso selecionado pelo poder público. Em vista disso, é possível concluir que o PMI é um procedimento de mera consulta, apesar de competitivo, confirma a afirmação anterior o fato de a manifestação de interesse, segundo o art. 81, § 2º, II da lei 14.133/2021, não gerar a obrigatoriedade de executar o projeto e nem de abertura da licitação subsequente. Nesse diapasão, conforme art. 78, inciso III, da NLLC, forçoso reconhecer que a escolha da norma foi pela utilização do PMI como procedimento auxiliar, ratifica essa afirmação a ausência de remuneração ou prêmio pelo Poder Público, não implicar, por si só, o direito a ressarcimento de valores envolvidos em sua elaboração e a necessidade de uma licitação subsequente, nos termos do art. 81, § 2º, II da lei 14.133/2021. Esse ponto, em especial, nos exige uma digressão importante no que se refere à identificação do potencial atrativo do PMI para os atoes privados, já que a eles não são investidos direitos8. Frise-se: não há direito de preferência no processo licitatório, nem sequer obrigação do Poder Público em realizar a licitação, além da inexistência de direito a ressarcimento de valores envolvidos em sua elaboração e a possibilidade de remuneração somente pelo vencedor da licitação, sendo vedada qualquer contrapartida pelo ente público. Dessarte, apesar da NLLC não ter previsto expressamente sobre o limite para o reembolso dos custos do particular pode-se depreender da leitura do art. 81, § 1º, que eles ficarão restritos aos custos que a Administração Pública licitante tenha aprovado, o que vai ao encontro do que foi previsto no art. 31, § 5º, da lei 13.303, de 30 de junho de 2016 (Lei das Estatais), assim, tem-se no PMI como incerto o ressarcimento do projeto e mesmo que ressarcido qual valor será, o que certamente aumenta o risco do particular quando a escolha for pela participação nesse tipo de procedimento. O fato é que o PMI reflete, com clareza, o impasse relacional existente na atualidade entre Poder Público e entes privados. Um tempo em que se pretende aproximar os atores e induzi-los a trabalhar numa perspectiva de colaboração, na busca de inovação e desenvolvimento, mas sem desdenhar o receio histórico de que "devemos/podemos nos aproximar, mas não sermos tão próximos". Referências JUSTEN FILHO, Marçal. Comentários à Lei de Licitações e Contratações Administrativas: Lei 14.133/2021. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021. MOTTA, Fabrício Macedo; BELÉM, Bruno. Temas controversos da nova lei de licitações e contratos. Coordenadores Matheus Carvalho, Bruno Belém e Ronny Charles. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos público-privados: da opacidade à visibilidade na administração pública. Dissertação (Doutorado em Direito). 2017. Universidade de São Paulo, São Paulo, p.27, 2016. Disponível aqui. TORRES, Ronny Charles Lopes de. Leis de Licitações Públicas Comentadas. 12 ed. rev., ampl. e atual. São Paulo: Ed. Juspodvim, 2021. __________ 1 Conceito trazido pelo artigo 3º, inciso I, da Lei nº 12.813, de 16 de maio de 2013. 2 Já presente na Lei nº 12.462, de 4 de agosto de 2011 (Institui o Regime Diferenciado de Contratações Públicas - RDC). 3 Decreto 8.428/2015, Art. 1º  Este Decreto estabelece o Procedimento de Manifestação de Interesse - PMI a ser observado na apresentação de projetos, levantamentos, investigações ou estudos, por pessoa física ou jurídica de direito privado, com a finalidade de subsidiar a administração pública na estruturação de desestatização de empresa e de contratos de parcerias, nos termos do disposto no § 2º do art. 1º da Lei nº 13.334, de 13 de setembro de 2016. (Redação dada pelo decreto 10.104, de 2019) 4 Aqui entendida como "Ação ou efeito de inovar. Aquilo que é novo, coisa nova, novidade". 5 SCHIEFLER, Gustavo Henrique Carvalho. Diálogos público-privados: da opacidade à visibilidade na administração pública. Dissertação (Doutorado em Direito). 2017. Universidade de São Paulo, São Paulo, p.27,2016. Disponível aqui. Acesso em 27.03.2022. 6 "Tais procedimentos se caracterizam, então, pela ausência de conteúdo satisfativo próprio e autônomo. A finalidade dos procedimentos em questão consiste em reduzir a complexidade e ampliar a dinamicidade dos procedimentos licitatórios propriamente ditos." (JUSTEN FILHO, 2021, p 1125) 7 MOTTA, Fabrício Macedo; BELÉM, Bruno. Temas controversos da nova lei de licitações e contratos. Coordenadores Matheus Carvalho, Bruno Belém e Ronny Charles. São Paulo: Editora JusPodivm, 2021. p. 126-127. 8 Segundo o Ronny Charles Lopes de Torres (2021, p. 477):  "trazem insegurança para os interessados, que terão que investir no desenvolvimento dos estudos, investigações, levantamentos e projetos vinculados".