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Dinâmica Constitucional

Temas de Direito Constitucional.

Marcelo Schenk Duque
O segundo semestre do ano de 2024 foi marcado por uma forte reação do Congresso Nacional à atuação do STF, considerada, por parte da classe política, exagerada, por supostamente usurpar competências do Poder Legislativo. O tema não é novo. Já a intensidade da reação, sim. O chamado "pacote anti-STF" contêm diversas medidas. Uma, em particular, é objeto de análise nesta coluna: a limitação de decisões monocráticas pelos Ministros do STF, objeto da PEC 08/211. Decisões monocráticas são aquelas proferidas por um único julgador, ao contrário das decisões colegiadas, que envolvem a participação de diferentes magistrados. A PEC 08/2021, já aprovada pelo Senado2, teve seu texto chancelado pela CCJ da Câmara dos Deputados. Aguarda a deliberação pelo plenário da Câmara, em dois turnos votação3. Em linhas gerais, visa a proibir decisões individuais por parte de Ministros do STF, que suspendam a eficácia de leis ou atos dos presidentes dos poderes Executivo e Legislativo. Admite, excepcionalmente, decisões monocráticas proferidas durante o recesso do STF, em casos de grave urgência ou risco de dano irreparável, com prazo de 30 dias para o julgamento colegiado, após o fim do recesso. Ela determina, ainda, prazo de seis meses para o julgamento de ações que questionem a constitucionalidade de leis após a concessão de medida cautelar, garantindo prioridade na pauta do plenário do STF após esse período. A reflexão diz respeito à motivação política que embasa a alteração da CF/88, em juízo de ponderação com sua pertinência e constitucionalidade. Inegavelmente, estamos diante de um quadro de revanchismo. As medidas do chamado pacote anti-STF, inclusive a que limita as decisões monocráticas dos Ministros, situam-se antes em uma relação de disputa de poder, do que no sentimento de aprimoramento da jurisdição constitucional. Isto não significa que esta medida seja necessariamente ruim, mas revela que as intenções que a permeiam podem não ser as melhores. De fato, o Congresso Nacional vem propondo restrições às ações do STF como forma de retaliação política ao necessário freio que o Tribunal vem tentando, sem grande sucesso, diga-se de passagem, impor à nociva sistemática das emendas parlamentares. Em inúmeras ocasiões neste espaço venho apontando que o Legislativo Federal vem se apropriando, de modo desproporcional, de fatias do orçamento público, em completa violação aos princípios constitucionais da Administração, em particular da transparência, rastreabilidade e eficiência4. Infelizmente, o STF não vem obtendo êxito em eliminar a nociva prática das emendas parlamentares do jogo político. É bem verdade que o Ministro Flávio Dino, em correta decisão, restringiu a prática5. Contudo, é provável que o Congresso, por meio de artifícios diversos, volte a contornar as limitações, como vem fazendo nos últimos anos. O Congresso Nacional colocou em pauta propostas de diferentes calibres, algumas razoáveis, como a PEC 08/21, que trata dos limites às decisões monocráticas e outras nada razoáveis ? flagrantemente inconstitucionais ? como a PEC 28/24, que permite ao Congresso suspender decisões do STF6, que não será objeto de análise nesta oportunidade. Está-se diante de um típico jogo de poder: colocam-se diversas propostas no mesmo caldo, para garantir a aprovação da mais razoável e, em troca de evitar a aprovação das propostas inconsequentes, receber do STF maior condescendência em assuntos de interesse direito dos parlamentares, como o tema das emendas parlamentares ao orçamento. Será que o STF irá morder a isca? Cabe a nós, neste debate, apontar o que é razoável aprovar, ainda que dentro de um quadro de revanchismo - o que nunca é o ideal, logicamente - e o que não é razoável aprovar. Um típico juízo de ponderação, entre vantagens e desvantagens. A par do quadro de revanchismo, a PEC que restringe as decisões monocráticas dos ministros do STF tem aspectos positivos, que não ferem a CF/88 e tendem a aprimorar a jurisdição constitucional. Nos últimos anos, o número de decisões monocráticas proferidas no STF aumentou, consideravelmente. Pode-se afirmar que se tornaram rotina no Tribunal. Estatísticas oficiais confirmam esta realidade. Para se ter uma ideia da dimensão do tema, no ano de 2023 o STF proferiu 106.028 decisões, sendo 18.191 colegiadas e 87.837 monocráticas7. No ano de 2024, até o mês de outubro, foram 93.337 decisões, sendo 17.375 colegiadas e 75.962 monocráticas8. Os dados falam por si só: Têm prevalecido, no STF, decisões individuais em detrimento das colegiadas, nos mais diversos temas. A rigor, a riqueza de um Tribunal reside no princípio da colegialidade, marcado pelo debate que contempla diferentes visões sobre determinados temas constitucionais. Considerando que as decisões do STF têm grande relevância para o país, o risco de erro é sempre maior quando se decide isoladamente. Assim, forte na convicção de que a base da autoridade do Tribunal Constitucional vive na força de convencimento (Überzeugunskraft) dos seus argumentos jurídicos, que só podem, em contrapartida, ser derivados da CF/889, tem-se presente que serão tão mais legítimos quanto mais forem construídos por decisões conjuntas entre seus membros e não individualmente. É por esta razão que a maioria dos tribunais constitucionais mundo afora não emprega, como regra, o recurso às decisões monocráticas, ao contrário do que vem fazendo, progressivamente, o STF. Restringir decisões monocráticas, ao contrário do que pensam alguns juristas e políticos, é um mecanismo que fortalece o STF e não o enfraquece, pois o tribunal, por sua natureza, é um órgão colegiado. A eficácia contra todos e o efeito vinculante das suas decisões, como prega a própria CF/88 (art. 102, § 2.º ), provêm do plenário Pode-se afirmar que supremo, na acepção da palavra, é apenas o órgão máximo do tribunal ? o plenário, composto por 11 julgadores. É justamente o princípio da colegialidade que consagra a precedência das decisões coletivas do tribunal, o que se revela como maior fator de legitimação dos julgamentos da própria Corte. Há muito se demanda maior disciplina do STF no emprego das decisões monocráticas que, constantemente, são empregadas de forma abusiva. Não raro, decisões individuais vêm sendo empregadas por diferentes julgadores como meio de bloqueio, para que determinados temas não avancem no tribunal. Um artifício técnico para relativizar, no mínimo, o próprio princípio da colegialidade do órgão julgador. Não se nega que avanços foram obtidos, por iniciativa do próprio tribunal, por ocasião da presidência da ministra Rosa Weber (emenda regimental 58/22), que limita em 90 dias os pedidos de vista e estabelece o mesmo prazo para apreciação pelo plenário, das medidas cautelares (monocráticas)10. Todavia, é inegável que a PEC 08/2021 representa mais um passo no fortalecimento do princípio da colegialidade, tão caro à jurisdição constitucional. De outra banda, três argumentos costumam ser apresentados para combater a PEC 08/21. O primeiro sugere que a PEC seria inconstitucional, por ter um vício de origem, pelo fato de que a CF/88 exigiria que as propostas de alteração das regras do Judiciário devessem ser apresentadas apenas pelo próprio STF (hipótese de iniciativa privativa no processo legislativo), para depois serem debatidas pelo Congresso Nacional. Neste sentido, o suposto vício de origem impediria que mudanças nos ritos de julgamento dos magistrados fossem propostas por parlamentares. A questão diz respeito a procedimentos processuais. Por vários motivos, o argumento não resiste à melhor análise. Primeiro, porque em matéria de emendas constitucionais o tema de vício de origem não costuma se colocar, já que não integra o conjunto das chamadas cláusulas pétreas da CF/88. Matérias de iniciativa do processo legislativo não representam, por si só, risco de abolição da separação dos poderes. A hipótese de o Congresso Nacional impor restrições às decisões monocráticas do STF passa longe, e muito, de qualquer interferência na prerrogativa do Tribunal em reconhecer a inconstitucionalidade de atos do poder público. A própria CF/88, em passagem relevante (art. 97), consagra a regra de reserva de plenário (full bench), oriunda do Direito norte-americano, que exige quórum de maioria absoluta dos tribunais para reconhecer a inconstitucionalidade11. Dito de outro modo, o Congresso Nacional não estaria suprimindo do STF a prerrogativa de dizer se um ato é, ou não, inconstitucional. Apenas está exigindo que o faça por maioria absoluta dos seus membros, como exige o próprio art. 97 da CF/88. Retirar do Congresso Nacional a prerrogativa de definir, em termos processuais, o quórum para que uma decisão jurídica seja tomada, implica incompreensão profunda do que significa, de fato, o fundamental princípio da separação dos poderes. Algo que Montesquieu jamais defenderia. Vale dizer: exigir um quórum de maioria absoluta para suspender atos dos demais poderes não impede o tribunal de fazê-lo, com poder decisório e última palavra. Não há falar, pois, em abolição da separação dos poderes. Há que se lembrar o significado da palavra abolir, que é suprimir, eliminar, remover. Ações que não estão em jogo, por força da eventual restrição à prática de decisões monocráticas pelo STF. Suprimir competência do STF significaria privar-lhe do poder de decidir, o que não é o caso. Nesta linha, como lembra o próprio STF, o sistema constitucional de proteção das cláusulas pétreas não impede que o regime das matérias por elas garantidas venha a ser modificado. Impede, apenas, que venha a ser suprimido, abolido. Portanto, tais cláusulas não impõem a intangibilidade literal da respectiva disciplina na Constituição originária, mas apenas a proteção do núcleo essencial dos princípios e institutos cuja preservação nelas se protege12. O chamado conteúdo essencial da garantia de separação dos poderes. Como se pode sugerir que exigir quórum de maioria absoluta para declarar a inconstitucionalidade de atos do poder público, ainda que de forma provisória, significaria violar o núcleo essencial da separação dos poderes? Não há, portanto, que cogitar abolição da separação dos poderes, razão pela qual o argumento de que haveria vício de origem na iniciativa da PEC 08/21 não se mostra razoável. Entendimento contrário imporia ao STF o ônus de assumir para si a iniciativa para encaminhar ao Congresso Nacional todo e qualquer projeto de lei que modificasse regras processuais, o que se mostra, de todo, irrazoável. Repita-se: A PEC em questão não diz como o STF deve julgar, apenas exige quórum de maioria absoluta para suspender um ato dos demais poderes, no período de funcionamento regular do Tribunal. O segundo argumento aponta que a matéria seria de competência regimental do STF e não do Congresso Nacional. Igualmente, não merece prosperar, até por uma questão elementar: o regimento interno do Tribunal não pode se sobrepor à lei específica, muito menos a uma regra constitucional. Em matéria de regras processuais, não cabe a qualquer Corte ignorar as normas vigentes, ainda mais quando sobre elas não paira juízo de inconstitucionalidade. Neste ponto é bom recordar que já existe lei vigente, que proíbe a prática de decisões monocráticas pelos Ministros do STF, em controle concentrado de constitucionalidade, fora do período de recesso do Tribunal. Com efeito, a lei 9.868/1999, que disciplina o processamento das ações diretas no STF, já prevê, há muito tempo, que salvo no período de recesso, a medida cautelar na ação direta de inconstitucionalidade será concedida por decisão da maioria absoluta dos membros do Tribunal (art. 10). Idêntica previsão ocorre em face do processamento das ações diretas de inconstitucionalidade por omissão (art. 12-F) e das ações declaratórias de constitucionalidade (art. 21)13. Uma lei que vige há cerca de 25 anos, que vêm sendo solenemente ignorada pelo STF, a partir do seu regimento interno, e que jamais despertou qualquer objeção consistente de inconstitucionalidade por vício de iniciativa, quando da sua proposição ao Congresso Nacional (teve origem no Poder Executivo)14. Esta lembrança abre espaço para outra reflexão: por força da vigência da lei 9.868/1999, a PEC das decisões monocráticas não seria, sequer, necessária. Ocorre que, por diversos fatores, vem se desenvolvendo uma indesejável cultura no Brasil, de que se a matéria não está constitucionalizada, ela pode ser ignorada. Trata-se de visão nefasta, que vem contribuindo não apenas para fomentar a insegurança jurídica, como para inchar, ainda mais, uma Constituição que já nasceu analítica e prolixa, com as externalidades negativas daí inerentes. Por fim, rebato o terceiro argumento. Para os críticos da PEC 08/21, a prática corriqueira das decisões monocráticas constitui um imperativo da realidade para o STF ter funcionamento regular, pois seria inviável que todas as decisões fossem tomadas pelo plenário da Corte. Esta afirmação foi feita pelo próprio ministro Barroso, no exercício da presidência do Tribunal, no encerramento do ano judiciário de 202315. Invariavelmente, este é o argumento mais difícil de combater. As estatísticas de julgamento de ações pelo STF confirmam que, dificilmente, outro Tribunal Constitucional no mundo possua carga de trabalho semelhante, com apenas onze julgadores. O problema é que esta constatação ofusca um dos grandes problemas institucionais que o STF enfrenta, por força de uma configuração constitucional que eu considero equivocada: o excesso de matérias abarcadas pela CF/88 e o excesso de competências de julgamento por ela diretamente conferidas ao Tribunal. Neste sentido, penso que ao invés de o STF combater iniciativas parlamentares para restringir o número de decisões monocráticas, deveria atacar as causas do problema e não meramente suas consequências. Há que se provocar um sério e técnico debate em torno de uma reforma constitucional, que possa desafogar o Tribunal. Este sim, é um imperativo de sobrevivência da capacidade funcional do STF, assunto que deve ser objeto de reflexão específica. Caso contrário, encontraremos justificativas para manter uma disfuncionalidade, por força da manutenção das causas que dão azo às disfuncionalidades. Neste diapasão, quando se trata do STF, a afirmação de que não se deve mexer em instituições que estão funcionando e cumprindo bem a sua missão, por interesses políticos e circunstâncias eleitorais, deve ser compreendida e interpretada com as devidas cautelas e ressalvas16. Colaborar para o fortalecimento da jurisdição constitucional e do próprio Estado democrático de direito é missão irrenunciável por parte de qualquer constitucionalista. A crítica, quando bem fundamentada e apresentada, pode ser uma grande aliada do STF e jamais sua inimiga. ________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui.  5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui.  7 Disponível aqui.  8 Disponível aqui.  9 BENDA, Ernst. Das Bundesverfassungsgericht im Spannungsfeld von Recht und Politik. In: Zeitschrift für Rechtspolitik (ZRP), n. 77, Heft 1, 10. Jahrgang, (Hrsg. von Rudolf Gerhardt und Martin Kriele). München: Beck, 1977, p. 5. 10 Disponível aqui.  11 Art. 97 CF. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público.  12 Disponível aqui.  13 Disponível aqui.  14 Disponível aqui.  15 Disponível aqui.  16 Disponível aqui. 
O Direito, para cumprir sua finalidade de organizar a sociedade de forma segura e justa, tenta acompanhar as transformações sociais. O faz, contudo, sempre com alguns passos atrás. É o que justifica a criação de instrumentos jurídicos voltados a evitar ou a amenizar a possibilidade de ocorrência de danos graves e irreversíveis1. Aparecem, desta forma, alguns princípios jurídicos, como o da prevenção, aplicado quando o risco de dano é concreto e real, em face de situações marcadas por vulnerabilidades de diferentes tipos, como no caso do Direito do Consumidor2. A prática disseminada de bets (apostas online), inclusive em jogos eletrônicos de todo o tipo, desafiam o princípio da prevenção e expõem milhões de famílias ao risco de ruína financeira. Trata-se de problema ligado à chamada ludopatia, a dependência patológica às apostas de azar, atribuída ao vício. Pesquisas atuais, com dados estatísticos, demonstram o tamanho da ameaça que o país está enfrentando. A 7ª edição do Raio X do Investidor, pesquisa realizada pela Anbima, no ano de 20233, aponta números alarmantes relativos ao estresse financeiro gerado pelas bets. 14% dos brasileiros com 16 anos ou mais declararam que fizeram pelo menos uma aposta online em 2023, o que representa cerca de 22 milhões de pessoas, índice que, segundo a pesquisa, supera os percentuais de utilização da maioria dos produtos de investimento ofertados por instituições financeiras. Os 14% de apostadores se dividem em: 3%, que afirmaram utilizar frequentemente os aplicativos de bets (5 milhões de pessoas); 5%, de vez em quando (8 milhões); e 6%, raramente (10 milhões). A geração que mais fez apostas online em 2023 foi a Z (16 a 27 anos), com 29%, seguida da geração Y (28 a 42 anos), com 18%. E a que menos usou as bets foi a geração X (43 a 62 anos), com 6%, e os mais idosos (63 anos ou mais), com 4%de representatividade. O público masculino também se destaca entre os apostadores, com aderência de 19%, uma diferença de nove pontos percentuais em relação às mulheres (10%). As pessoas que declararam ter apostado em 2023 indicaram as maiores motivações para o uso das bets: a chance de ganhar dinheiro rápido em momento de necessidade (40%); a possibilidade de ter um retorno alto (39%); por diversão (26%); pela emoção de apostar (25%); ou pela oportunidade de apostar valores pequenos (20%). Duas em cada dez pessoas apostadoras (22%) consideram as bets uma forma de investimento financeiro. Outro dado interessante revelado pela pesquisa foi que tanto as pessoas que não possuem cuidado em controlar as finanças quanto aquelas que compram coisas sem realmente precisar, têm maior probabilidade de fazer apostas online, em relação àqueles que informam ter muito cuidado em controlar as próprias finanças. Isto leva a uma reflexão interessante sobre o tema do autocontrole e do estresse financeiro: as bets enquadram-se facilmente em uma tendência de compulsão. Outra pesquisa relevante, promovida em junho de 2024, pela Sociedade Brasileira de Varejo e Consumo (SBVC), informa que4: Desde 2019, houve um crescimento de 281% no tempo de consumo dos jogos no país. As apostas têm experimentado um crescimento igualmente rápido: em 2022, o Brasil ficou em 10º lugar globalmente, com US$ 1,5 bilhão em receitas brutas de jogos, o que o torna um dos maiores mercados de apostas online do mundo. 63% de quem aposta online no Brasil afirma que teve parte da sua renda comprometida com as apostas online. Quanto aos que deixaram de comprar algo para apostar: 23% deixaram de comprar roupas, 19% deixaram de fazer compras em supermercados, 14% produtos de higiene e beleza, 11% cuidados com saúde e medicações. Mais da metade dos apostadores consultados fazem apostas ao menos uma vez na semana. 49% dos participantes afirmam ter aumentado a quantidade de apostas no ano de 2024 e apenas 35% diz ter diminuído se comparado ao ano anterior. As transações de depósito nas casas de apostas são realizadas, em grande maioria, por meio do Pix. Os dados expostos comprovam que a poderosa indústria das bets não deveria seguir atuando no Brasil, independentemente de uma rígida regulamentação e de políticas públicas capazes de suavizar os graves riscos que a prática disseminada de apostas online impõe às pessoas. A competência legislativa relativa à regulamentação de sistemas de consórcios e sorteios é privativa da União (art. 22, XX CF). Os passos iniciais da regulamentação das bets foram dados pela lei 14.790/235, sendo que a regulamentação, inclusive o detalhamento dos requisitos6 de funcionamento das empresas de apostas online, está prevista na portaria SPA/MF nº 827, de 21/05/20247, com vigência partir de 01/01/2025. Por mais que se verifique um esforço no sentido de regulamentar as bets, o acervo normativo vigente está longe de dar conta dos riscos que o mercado de apostas online impõe aos brasileiros. Vale dizer, as soluções idealizadas pelos poderes públicos, compreendidas como estratégias de regulamentação das bets, são uma espécie de prognose (previsão), pois esperam atingir a finalidade desejada. O problema é que, nitidamente, têm se mostrado, de início, falhas. A falta de uma regulamentação rígida, que faça frente ao grau de ameaça, aponta para um estado de omissão inconstitucional, pois demonstra que o Estado falha em seu dever de proteger, eficazmente, as pessoas contra o superendividamento, colocando em risco o mínimo existencial das famílias, a dignidade humana, bem como pilares da ordem econômica. Um quadro típico de inconstitucionalidade por omissão do poder público, por regulamentação insuficiente. A boa doutrina de Direito Constitucional reconhece a possiblidade de o Poder Judiciário rever prognoses legislativas ou executivas, quando resta evidente que não estão à altura de realizarem os objetivos constitucionais. Parte-se do pressuposto de que a complexidade das relações sociais faz a atividade legiferante ter cada vez mais sua atuação voltada para o futuro.8 Consequentemente, o poder legislativo tende a trabalhar, cada vez mais, com prognoses, sendo que a correspondente apreciação constitucional passa a depender do quão acertadas são tais suposições, no que diz respeito a seu real desenvolvimento futuro, no âmbito da regulamentação normativa.9 À jurisdição constitucional cabe a tarefa contínua de apontar a inconstitucionalidade de toda e qualquer medida que tenha por finalidade enfraquecer demasiadamente essa proteção, com amparo na proibição de insuficiência, e de salientar, em contrapartida, a constitucionalidade das medidas protetivas. Isto é o que se espera do STF, caso o Congresso Nacional e o Poder Executivo não tomem medidas efetivas para frear a chamada farra das bets. A facilidade como as apostas online chegam aos brasileiros é incontestável. Com um celular conectado à internet, qualquer pessoa se torna um apostador. Não há um controle efetivo em relação a quem aposta, o que gera preocupação adicional frente aos hipervulneráveis, como crianças, idosos e pessoas compulsivas com jogos de azar. A tentação para apostar cresce nas veredas do mundo digital, já que o cassino virtual está sempre às mãos, com acesso instantâneo, 24h por dia. Pessoas ansiosas, com problemas emocionais, são presas fáceis neste mundo de apostas online. Causa espanto a forma como esta indústria se legalizou no Brasil. Há décadas, os cassinos tradicionais são proibidos no país, de modo que, no marco da oficialidade, jogos de apostas ficaram restritos às loterias públicas e a algumas exceções que sempre acabavam esbarrando nos limites da legalidade, como bingos e assemelhados. Eis que, na atualidade, nós brasileiros temos, literalmente na palma da mão, um enorme rol de cassinos online, que vão desde apostas esportivas até jogos eletrônicos com aparência - e só aparência ? de inofensividade. A ameaça se potencializa por campanhas agressivas de publicidade, que ao se valerem da paixão pelo futebol e de celebridades, geralmente do mundo esportivo, tentam atrair as presas pela ilusão dos ganhos fáceis. O superendividamento decorrente de apostas é um tema extremamente relevante para o direito do consumidor, que o torna extremamente vulnerável. É sabido que a vulnerabilidade é um conceito multiforme, um estado de fraqueza sem definição precisa, mas com muitos efeitos na prática10. Mesmo do ponto de vista do direito internacional privado o tema adquire destaque, considerando que grande parte das empresas que operam as bets têm sede no exterior, o que dificulta, muito, ações reparatórias de danos. O fato de a regulamentação prever a existência de representantes legais no Brasil pode atenuar o problema, sem a garantia de que seja, de fato, resolvido. Os riscos da ludopatia há muito são conhecidos e o mundo digital os potencializa: ruína financeira, lavagem de dinheiro, abandono do trabalho ou estudos, violência doméstica, aumento do consumo de álcool ou drogas, suicídio, dentre outros. Fala-se, inclusive, em uma indústria de manipulação de resultados de competições desportivas. Isto sem falar nos prejuízos ao varejo, um dos pilares da economia nacional. As pesquisas citadas demonstram que as bets tendem a enfraquecer a economia, retirando da circulação do mercado expressivos ativos, que são drenados pelas apostas online. Os impactos no varejo geram um problema que impactam até mesmo as instituições financeiras, que geram milhares de empregos no país e recolhem tributos decorrentes de suas operações. Relevante é também o papel dos algoritmos, instrumentos de inteligência artificial aptos em monitorar o comportamento de pessoas propensas ao jogo, impulsionando conteúdo digital voltado a estimular as apostas, aumentando a compulsão. É sabido que superendividamento é problema complexo, que arruína as finanças de um considerável número de pessoas, que não conseguem se livrar de dívidas relacionadas às apostas. Uma efetiva ameaça ao mínimo existencial destes apostadores digitais, que passam a se ver privados do acesso aos itens de primeira necessidade. Portanto, a compulsão por jogos também tem que ser analisada sob a perspectiva de um problema de saúde pública, já que a ruína financeira facilmente conduz à depressão. É inegável que o mercado de apostas online atinge números bilionários11, o que demonstra as resistências do setor a regulamentações mais rígidas por meio de um elevado poder de lobby. Como se não bastasse, em que pese a nocividade da atividade de apostas online, o setor acabou sendo visivelmente privilegiado nas regulamentações da reforma tributária, já que lhe foram impostas alíquotas suaves de tributação (12%)12, ao menos em relação a setores bem menos nocivos13. É preciso que regulamentação avance, impondo duras restrições à publicidade das bets, semelhante ao que ocorre, por exemplo, com o tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias, nos termos do art. 220, § 4.º da CF. Da mesma forma, deve-se impor limites razoáveis à quantidade e ao valor das apostas por usuário, medida essencial para combater a dependência. Proibir que smartfones e assemelhados saiam de fábrica com aplicativos de apostas pré-instalados também se mostra medida razoável, bem como a sua disponibilização, em destaque, nas respectivas lojas virtuais de aplicativos. São medidas que, isoladamente consideradas podem ser consideradas insuficientes, mas que, em conjunto, podem contribuir para diminuir a compulsão, até mesmo como alternativa, em um primeiro momento, à proibição total da atividade. Há que se lembrar que a intensidade do risco deve ser proporcional às restrições às liberdades. Da mesma forma, evocando-se o princípio do "poluidor pagador", as políticas públicas de suavização de danos devem ser custeadas pelos seus causadores, o que, em termos de tributação, recomendaria reforço na tributação. Há que se lembrar que no mundo digital dos jogos de azar vale a máxima: a banca nunca perde. Se o apostador tivesse a clareza de que, ao final, o cassino sempre vence, não pisaria em um ou, na versão digital, passaria longe dos apps de apostas. Como esta clareza não se faz presente na maioria dos casos, pelas diferentes vulnerabilidades que possuímos, cabe ao Estado proteger as pessoas por meio de medidas preventivas e repressivas. As bets, com regulamentação frágil, representam uma verdadeira tempestade ou, quem sabe, uma doença cuja vacina ainda é desconhecida. __________ 1 LOPEZ, Tereza Ancona Lopez. Direito do Consumidor - 30 anos. Organização: Bruno Miragem, Claudia Lima Marques, Lucia Ancona Lopez de Magalhães Dias. Rio de Janeiro: Forense, 2021, p. 153. 2 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 306ss. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 207. 9 STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland: Allgemeine Lehren der Grundrechte. München: Beck, 1994, B. III/2, p. 1.711. 10 MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 8.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 324. 11 Disponível aqui. 12 Disponível aqui. 13 Disponível aqui.
De modo recorrente, decisões do STF têm encontrado reações no Congresso Nacional. Um dos episódios mais marcantes destas reações envolve o tema do controle de constitucionalidade das emendas parlamentares. O assunto veio à tona quando o STF, por unanimidade, em correta decisão, referendou a medida cautelar proferida pelo Min. Flávio Dino1, suspendendo o emprego de diversos tipos de emendas parlamentares, até que o Congresso Nacional estabeleça regras que garantam transparência na transferência dos recursos2. A decisão foi considerada, por diferentes lideranças políticas, intromissão indevida do tribunal na atividade política, em capítulo que representou acirramento da tensão entre os poderes3. Para arrefecer os ânimos, os Ministros do STF reuniram-se com os presidentes do Senado e da Câmara, Procurador-Geral da República, dentre outras autoridades. Anunciou-se que neste encontro foram acordados limites para edição das emendas parlamentares, com base em critérios de transparência, rastreabilidade e correção4. Foi divulgada nota conjunta sobre o resultado do encontro5, destacando a obtenção de consensos acerca de pontos específicos, em particular no que tange à necessidade de rastreabilidade e transparência das emendas. A nota sugere que os chefes das Casas Legislativas, vale dizer, políticos, concordam em deixar claro quem indica e para onde vai o dinheiro, além de permitir a fiscalização pelo Tribunal de Contas da União6. Se considerarmos o que vem sendo praticado nos últimos anos em termos de falta de transparência no uso das emendas, inclusive de forma crescente, não há exagero em dizer que a nota beira a ingenuidade. Há um ceticismo, por parte da sociedade, quanto às reais intenções do Congresso para assegurar transparência no trato destas verbas públicas, considerando que, até então, ela não estava em seu radar. A forma como o Congresso Nacional vem, nos últimos tempos, se apropriando de parcela significativa do orçamento público - praticamente a metade7 -, representa distorção inaceitável dentro de um sistema de governo que se diz presidencialista. As emendas parlamentares, em sua sistemática atual, comprometem o fundamento da boa governança. Destinam-se a fortalecer o poder de quem exerce mandato eletivo, criando perniciosa relação de dependência entre benfeitores e favorecidos, em prejuízo do pacto federativo e dos princípios constitucionais da legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência. Do ponto de vista da igualdade de chances no processo eleitoral constituem verdadeira deturpação, pois geram inegáveis distorções na livre competição democrática. O motivo é manifesto: em sua maioria, emendas parlamentares têm por finalidade irrigar currais eleitorais dos parlamentares. Como um candidato que não exerce mandato eletivo concorrerá com aqueles que, pelo poder da caneta, têm a prerrogativa de abastecer seus redutos eleitorais com verbas vultuosas, desprovidas de controle e transparência? Do ponto de vista da eficiência, a sistemática das emendas parlamentares representa atitude avessa ao planejamento. Isso porque o seu direcionamento está muito mais ligado a interesses clientelistas, do que em relação às reais prioridades da coletividade, o que mantém um padrão de investimentos arbitrários, opostos à racionalidade. O argumento de que por meio deste expediente se atingem bons resultados, pelo fato de que os parlamentares conheceriam melhor as necessidades locais, esconde a tendência à inaptidão dos investimentos, já que se consumam por meio de preferências pessoais, em detrimento de estudos técnicos de planejamento e gestão pública. Da mesma forma que o argumento de que o legislativo é o autor da peça orçamentária. Alocar, por meio da lei, uma quantidade de recursos para cada finalidade é bem diferente de definir o emprego das verbas públicas em situações concretas. Sob a ótica da moralidade e da publicidade, o quadro se agrava quando o uso dessas emendas é desprovido de transparência e de rastreabilidade, o que inviabiliza, por completo, a fiscalização pelos órgãos competentes. Elas catalisam a corrupção, violando a legalidade. De fato, o modo como as emendas parlamentares vêm sendo executadas no Brasil constitui mecanismo de verdadeira malversação do orçamento público. São distorções em cima de distorções. Chega-se ao ápice com as chamadas "emendas pix", por meio das quais parlamentares podem transferir quantias diretamente para o caixa de prefeituras e governos estaduais, independentemente de critérios minimamente técnicos, no que tange à pertinência dos investimentos. O bom método do emprego do orçamento envolve, necessariamente, benefícios à coletividade por meio do financiamento de políticas públicas eficazes, rigor fiscal e auditabilidade. Não se pode admitir que o Congresso se aproprie de parcela significativa do orçamento, de modo a drenar a capacidade dos ministérios de, por meio de seu corpo técnico, formularem planos estratégicos de investimentos nas prioridades nacionais. Distorções que, em diferentes graus, reproduzem-se em várias espécies e emendas parlamentares. Delimitado o quadro disfuncional, o ponto da análise centra-se na busca de diálogos institucionais. Há quem diga que o STF não deveria submeter-se a diálogos com lideranças políticas, inclusive no tema em questão. Em verdade, não há nada de errado em dialogar. O diálogo é da essência da democracia. Reuniões institucionais não representam, por si só, violação aos princípios constitucionais. Pelo contrário, podem servir de sustentáculo para a sua observância. O problema não reside na possibilidade de diálogo entre os poderes, mas sim no tipo de concessão que cada poder está disposto a fazer, de acordo com a sua agenda de interesses. É evidente que os interesses políticos são muito mais amplos que os jurídicos. Do lado do STF, o interesse deveria ser um só: o irrestrito cumprimento da Constituição. Tudo que perpassar este limite, corre o risco de ser enquadrado como conduta antirrepublicana e, portanto, inconstitucional. De modo geral, a constitucionalização excessiva do direito leva ao engessamento da política, o que, em casos extremos, acarreta prejuízos à democracia8. Neste sentido, um espaço de tolerância se impõe. A questão é a sua extensão. No tema da intervenção do STF na sistemática das emendas parlamentares não parece ter havido excessos. Esses vêm ocorrendo, como apontado, por parte do Legislativo. Como base jurídica da coletividade, a Constituição exige o cumprimento de princípios diretivos aptos a orientar o exercício das tarefas estatais, em um cenário de unidade9. A teoria dos diálogos institucionais parte do pressuposto de que todos os poderes podem convergir e interagir, reciprocamente, a partir de interpretações distintas sobre o modo de realizar e cumprir a Constituição10. Significa que diálogos entre os poderes podem construir pontes e consensos possíveis sobre o modo de cumprir a Constituição, dentro das peculiaridades de atuação de cada um dos atores envolvidos. O que não se pode admitir é que os diálogos sejam instrumentalizados pela lógica da retaliação, que é o que está acontecendo. O Congresso, visando a retomar o controle do emprego das emendas parlamentares, ameaça, sem constrangimento, desengavetar propostas de alteração da Constituição que restringem poderes do STF11, concordando em recuar caso seus pleitos sejam atendidos pelo tribunal12. Não se pode, igualmente, admitir que o STF ceda à pressão, como forma de manter suas prerrogativas. Por meio dos diálogos institucionais, o Judiciário deve compartilhar com o Legislativo e o Executivo os valores políticos delineados pela Constituição, de modo a resolver os conflitos e proteger a integridade e a própria eficácia do processo político13. Uma espécie de busca de boas respostas para dilemas coletivos14. Entristece admitir que o cumprimento da Constituição pode ser colocado de lado por força do apego ao poder. Entristece, ainda, constatar que más medidas podem ser tomadas pela pura lógica da retaliação, assim como boas medidas, pela lógica da barganha, sejam colocadas de lado para manter privilégios marcados pela disfuncionalidade. Há um longo percurso a ser completado na busca da racionalidade e da depuração das instituições políticas e jurídicas. Fortalecer as instituições por meio de correções pontuais é o principal caminho, dentro dos marcos da Constituição. De resto, rumamos para o caos. Que os bons diálogos institucionais afastem os maus. __________ 1 ADIs 7.688, 7.695 e 7.697 e ADPF 854. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 GRIMM, Dieter. Constitutionalism: past, present & future. Oxford: Oxford University Press, 2016. p. 308. 9 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999. Rnd. 114. 10 FISHER, Louis. Constitutional dialogues: interpretation as political process. Princeton: Princeton University Press, 1988. p. 03. 11 Disponível aqui. 12 Disponível aqui. 13 FISHER, Louis. Constitutional dialogues: interpretation as political process. Princeton: Princeton University Press, 1988. p. 246ss. 14 MENDES, Conrado Hubner. Direitos fundamentais, separação de poderes e deliberação. São Paulo: Saraiva, 2011, p. 31.
Afirma-se, volta e meia, que a democracia, ao menos nos moldes que conhecemos, está ameaçada. O atentado contra o candidato à presidência dos EUA, Donald Trump, traz à tona este debate, que no Brasil já estava em curso por ocasião episódio da facada desferida contra o ex-presidente Bolsonaro, em conjunto com outros episódios lamentáveis, em vários países. É inegável que a violência política tem crescido, inclusive no Brasil. Há que se nutrir esforços para erradicar esta prática. Para tanto, é necessário compreender os motivos pelos quais ela se dissemina. Um dos principais, que me atenho nesta oportunidade, diz respeito ao combate à seletividade. Não há como se conceber a democracia apenas sob a perspectiva dos pontos de vista que consideramos melhores ou mais acertados. Nenhuma democracia vive sem pluralismo de ideias e de concepções. Não se deve pressupor que uma só pessoa ou grupo podem ser qualificados para governar por méritos de sua sabedoria e virtude, superiores aos demais.1 Quando se espalha a ideia de que a democracia só é possível pela ação de um dos grupos políticos que se envolve nos duros debates, abrem-se as portas para um ambiente de discursos de ódio e violência. O problema é que nos últimos tempos gerou-se uma cultura, em grande parte impulsionada pelo fenômeno das redes sociais, em torno de narrativas diversas que visam a desconstituir adversários políticos ou ideologias das quais se discorda. Não precisa muito esforço para uma narrativa qualquer se converter em discurso de ódio. Basta que seja defendida e replicada de forma acrítica, para se tornar um vetor de intolerância. Uma das maiores preocupações que advêm do discurso de ódio, além das violações aos direitos fundamentais e à intangibilidade da dignidade humana, centra-se na necessidade de preservação da dimensão democrática. É aí que surge o problema, que deveria servir de alerta a todos que, de fato, prezam pela democracia: Percebe-se uma grande seletividade no modo como as instituições jurídicas e os partidos políticos tratam estas narrativas. Com isto quero dizer que não existe "ódio do bem". Discurso de ódio é discurso de ódio! Pouco importa o lado do qual se origina. No embate entre pseudogrupos progressistas e conservadores a prática do ódio seletivo é comum. Entre nós é fácil perceber que os dois grupos que demarcam com maior intensidade o antagonismo político - salvo nas posturas clientelistas que beneficiam a ambos, perante as quais a união e o amor florescem -, têm opiniões perigosamente insultuosas, um em relação ao outro. Nesta disputa fratricida pouco importa o que é dito. Se vem do lado que pertenço, está correto ou no máximo constitui excesso de retórica, gafe ou deslize. Mas se for do outro, torna-se digno da mais alta reprovação, inclusive criminal. O banimento se impõe. Diante de muitas barbaridades que se projetam na vida pública e nas ditaduras ao redor do mundo, é fácil perceber o silêncio obsequioso de diferentes grupos, a depender de quem são os aliados de plantão. A justificativa seria a manutenção da causa maior, seja qual for. Esta conduta omissiva prova que, em muitos casos, a causa não vale nada, o que está em jogo é a desconstituição do adversário e o acesso ou a manutenção permanente no poder. Ou seja: O discurso assediador pode vir disfarçado de expressão política, que em nada contribui para o debate democrático.2 A defesa dos direitos fundamentais e do regime democrático tem que ser universal. Todos, sem exceção, têm que respeitar os fundamentos da República, esculpidos no art. 1.º da Constituição Federal, dentre os quais o pluralismo político faz parte. A democracia guarda espaço para um amplo leque de concepções, desde que alinhadas às molduras básicas da ordem constitucional. Dentro destas molduras, vários pontos de vista, ainda que ruins, podem ser defendidos, é do jogo. Cabe ao discurso racional, por meio de argumentos, desconstituir as más soluções. Não se pode excluir do debate uma concepção, apenas porque frontalmente discordamos do seu teor. Não sendo o caso da defesa de posições que, claramente, constituem crimes, impõe-se a tolerância, ainda que isto nos cause desconforto. Esta deve ser a natureza da democracia, pois é dura e barulhenta e nem sempre é capaz de fornecer as melhores soluções. Em uma verdadeira democracia, até mesmo os idiotas têm vez, desde que não sejam autores de crimes e não fomentem práticas anticonstitucionais. Convém lembrar que a definição do que constitui, ou não, crime, também não pode ser seletiva. O problema surge quando ativistas dos bons costumes ou das boas pautas se convertem em guardiões do discurso alheio, espécie de destemidos paladinos do bem ou da moralidade, sem dedicar o mesmo zelo aos seus próprios discursos ou à conduta dos seus correligionários. A técnica é a rotulagem, que leva ao chamado "cancelamento", uma espécie de demonização digital. Comuns são os rótulos de comunista, nazista, fascista, ladrão, esquerdopata, genocida, extremo, ultra e por aí vai. A tolerância seletiva a discursos de ódio que negam o pluralismo é a porta de entrada para a violência política, mediante a corrosão do fórum público. Há que se perceber que o livre mercado de ideias - e isto não mudou a partir da concepção original inspirada em John Stuart Mill, no clássico On Liberty3 - exige um ambiente de segurança, tanto em relação ao que pode ou não ser dito quanto em relação aos meios e critérios disponíveis para contenção dos excessos. O espaço de debate carece de segurança, na forma de um autêntico bem público, que não pode ser corroído pela postura omissiva dos órgãos de controle. Admitir discurso de ódio por parte de determinados grupos, apenas porque se afirmam como solução mais conveniente em relação às que são disponibilizadas na arena política, acaba por minar este espaço público, em particular o de deliberação democrática. O resultado é que cada vez se torna mais difícil e menos natural manter um espaço de tolerância, em um ambiente seguro de debate.4 Um dos princípios que as instituições políticas devem observar para o pleno exercício da democracia é a defesa das fontes de informações diversificadas5, o que no mundo atual não pode prescindir de medidas aptas ao combate à desinformação e ao discurso de ódio. Assegurar um ambiente minimamente hígido de confronto de ideias é condição para que se construa uma cultura de transição entre grupos e decisões políticas, a partir da qual a maioria obtém legitimação democrática.6 Eis a conclusão: Há que se edificar um consenso mínimo no sentido de que o discurso de ódio transcende as paixões políticas, pois pode se manifestar de qualquer lado, mesmo em defesa das melhores causas. Ao defender o indefensável, catalisa-se a violência política, como ondas que reverberam por todos os espaços. Tolerar o ódio é legitimar a violência, que hoje pode atingir apenas quem discordamos ou desprezamos, mas que, mais cedo mais tarde, tende, como a troca de ventos, a se voltar contra nós mesmos. Os clássicos advertiram que sempre deverá existir um método constitucional capaz de dar eficácia aos dispositivos constitucionais.7 Sobretudo em anos eleitorais, às autoridades jurídicas cabe uma postura de absoluta rejeição à seletividade, punindo toda a sorte de manifestações que se enquadrem em discursos de ódio ou prática deliberada de desinformação, sob pena de, ao seu modo, também contribuírem para um ambiente de violência política. A causa jamais poderá se sobrepor à defesa intransigente dos direitos fundamentais, da dignidade humana e do princípio democrático. A violência política é, sim, potencializada pela seletividade no seu combate. Se não estivermos à altura deste desafio de romper a seletividade, a história se encarrega de nos trazer inúmeros exemplos sobre a direção que os rumos acabam tomando. ___________ 1 DAHL, Robert A. A democracia e seus críticos. Trad. de Patrícia de Freitas Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 2012. p. 245. 2 TSESIS, Alexander. Dignity and speech: the regulation of hate speech in a democracy, Wake Forest Law Review, v. 44, 2009, p. 505s 3 MILL, John Stuart. On Liberty. Ontario: Batoche Books, 2001. p. 50ss. 4 WALDRON, Jeremy. The harm in hate speech. Cambridge: Harvard, 2012. p. 4. 5 DAHL, Robert. Sobre a Democracia. Tradução de Beatriz Sidou. Brasília, DF: Editora UnB, 2001. p. 99s. 6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999. Rnd. 143 7 HAMILTON, Alexander. In: MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. The Federalist Papers, n.º LXXX. From the New York Packet, December 4, 1787. Disponível aqui.
No artigo anterior foi realizada uma reflexão sobre a importância do pacto federativo para o sistema de prevenção aos desastres naturais.1 O objetivo foi destacar que uma verdadeira federação investe em arranjos institucionais aptos a garantir, na maior medida possível, a manutenção da unidade entre os entes em igualdade mínima de condições de vida. Um desastre como as enchentes do ano de 2024 no Rio Grande do Sul não deve ser visto apenas como um problema local, já que impacta a economia nacional. As tragédias de grandes proporções apontam para a necessidade de aprimoramento das instituições políticas como um todo. Em um quadro restrito, apontam para fortalecimento do pacto federativo, sob a perspectiva da cooperação. A federação é um dos principais temas da arquitetura de um Estado. É um dos pontos em que, ainda, possuímos muitas deficiências. A Constituição Federal de 1988, a par de acertos, não foi capaz de construir uma federação sólida, pois manteve um erro típico dos ciclos constitucionais pretéritos: A excessiva concentração de poderes nas mãos do ente central, a União. Acerta a doutrina quando demonstra que, no tema da federação, possuímos o nome, mas não a realidade.2 É um quadro de difícil reversão. É como se tivéssemos amarrados a uma cultura - semelhante à do presidencialismo, do sistema eleitoral, dentre outros temas - que não nos permite evoluir para novos paradigmas. O próprio STF mantém jurisprudência ancorada a um modelo orientado ao fortalecimento de competências da União, cedendo, em poucos casos. É bem verdade que durante o período da pandemia a jurisprudência do tribunal deu uma guinada no sentido de fortalecer as decisões estaduais e municipais em matéria de proteção da saúde, o que foi louvável. Em outros temas, todavia, a centralização permanece. A tradição nos ensina que não se pode pensar a federação, sem uma experiência considerável de descentralização territorial do poder político e administrativo, ou seja, sem uma divisão espacial do poder. A modernidade, sem negar a tradição, nos mostra que não convém pensar a federação sem a noção de cooperação. A complexidade que o enfrentamento das emergências climáticas exige nos mostra que sem uma atitude de cooperação profícua e permanente entre os entes federativos, na busca de medidas preventivas e repressivas, não chegaremos a lugar algum. De fato, é inerente ao próprio conceito de federalismo a ideia de colaboração.3 Sendo a federação um dos temas ligados à organização fundamental do Estado, o seu cotejo abre caminho para a seguinte reflexão, de natureza complementar. As tragédias climáticas somente podem ser eficazmente combatidas quando precedidas de inúmeras medidas efetivas, de caráter estrutural e não estrutural. As primeiras, de característica estrutural, compreendem o conjunto de obras projetadas pela engenharia, com base em estudos técnicos, aptas a fazer frente, na maior medida possível, às forças da natureza. Pela lógica do princípio da subsidiariedade, guia maior da federação, há que se construir um plano para coordenar deveres e responsabilidades frente às tarefas colocadas pela Constituição aos entes federados.4 Seu foco é a delimitação das tarefas estatais. Os entes maiores devem agir subsidiariamente, em situações nas quais os menores não tenham condições técnico-financeiras de tomar as melhores decisões. Não se pode exigir que um município tenha condições de arcar com medidas estruturais necessárias à preservação de acidentes naturais, quando o custo de implementação for incompatível com a receita municipal. Por outro lado, há que se combater a inflação municipalista5, de modo a impedir que cidades que não tenham condições de se autossustentar, ao ponto de cumprir suas obrigações constitucionais, permaneçam na condição de entes federados autônomos. Uma equação complexa, mas que deve ser resolvida. É neste difícil equilíbrio que o federalismo de cooperação deve fazer a diferença. As tragédias começam nos municípios e, em grande parte, pela omissão das autoridades, inclusive dos órgãos de controle. A má redação dos planos diretores ou o seu não cumprimento explica grande parte dos infortúnios. Ao ministério Público cabe a crítica de não conseguir realizar uma fiscalização efetiva em diversas situações. O litoral brasileiro que o diga. Milhares de construções que ameaçam o patrimônio natural, que privam a população do acesso às praias, que permitem a construção desenfreada, independentemente de as cidades cumprirem requisitos mínimos adequados de preservação ambiental, tratamento de esgoto, urbanização racional etc. Todo este quadro, em maior ou menor grau, contribui para o cenário de emergência climática. Somente a ação conjunta e coordenada entre os entes federados será capaz de produzir bons resultados em matéria de prevenção, o que demanda canais permanentes de contato entre os entes central e parciais.6 É aí que entram as medidas não estruturais de prevenção, que dizem respeito às ações e políticas públicas, inclusive de caráter normativo, voltadas à prevenção e à redução dos danos. Aqui surge um grande problema e, ao mesmo tempo, um enorme desafio. A erosão da política nacional vem perpetuando, cada vez com mais intensidade, o patrimonialismo e o clientelismo na administração da coisa pública. O resultado imediato é impedir que estes canais, tão essenciais à profícua condução da coisa pública, sejam marcados pela racionalidade. A forma como o orçamento público vem sendo conduzido no país pela via das emendas parlamentares individuais, focadas na perpetuação do poder pelo fortalecimento de currais eleitorais e na busca de uma governabilidade que não é gerada naturalmente pelo sistema de governo presidencialista, confirma esta dura afirmação. Há que se compreender que a organização político-institucional de um país deve passar a ser considerada como uma das medidas não estruturais de prevenção das tragédias climáticas. Isso porque em um cenário de irracionalidade política e de falência das instituições não se poderá sequer pensar em boas soluções para problemas complexos, que demandam investimentos vultuosos. Em suma, o enfrentamento das tragédias climáticas também passa por medidas não estruturais de prevenção, como o próprio aprimoramento do sistema constitucional. Passa, em outros termos, por uma ampla reforma das instituições políticas, como o sistema de governo (presidencialismo, a forma de Estado (federação) e os próprios sistemas partidário e eleitoral. A adoção de instrumentos de colaboração e de coordenação entre os entes federados só pode funcionar a contento em um ambiente marcado pela racionalidade das instituições políticas. A deixa já estava nos famosos artigos federalistas, quando Hamilton advertiu: É possível construir um governo federal capaz de regular as questões comuns e preservar a tranquilidade geral, fundado nos objetivos constitucionais. Sua ação dever ser dirigida aos cidadãos e não aos donos do poder.7 Esta é a linha que deve guiar o aprimoramento das instituições brasileiras. Se apartar deste pensamento é conviver com as tragédias, sem delas se afastar. ___________ *Esta reflexão acadêmica é resultado parcial de pesquisa desenvolvida no âmbito de um projeto de pesquisa institucional intitulado "A promoção de medidas não-estruturais de prevenção das vulnerabilidades dos Municípios da região hidrográfica da bacia do Guaíba com áreas suscetíveis de inundações", financiado pela CAPES, objeto do Edital Emergencial II - n° 28/2022, relacionado ao Programa Emergencial de Prevenção e Enfrentamento de Desastres Relacionados a Emergências Climáticas, Eventos Extremos e Acidentes Ambientais, denominado de "vulnerabilidade social e direitos humanos". 1 Disponível aqui. 2 REVERBEL, Carlos Eduardo Dieder. O Federalismo numa Visão Tridimensional do Direito. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2012, p. 131s. 3 DUQUE, Marcelo Schenk. O Federalismo Cooperativo Alemão: tendências atuais. In: MARQUES, Claudia Lima; BENICKE, Christoph; JAEGER JUNIOR, Augusto (Org.). Diálogo Entre o Direito Brasileiro e o Direito Alemão: fundamentos, métodos e desafios do ensino em tempos de cooperação internacional. Porto Alegre: Orquestra, 2011, p. 326ss. 4 Isensee, Josef. Subsidiaritätsprinzip und Verfassungsrecht. Eine Studie über das Regulativ des Verhältnisses von Staat und Gesellschaft. 2. Auflage. Berlin: Duncker & Humblot, 2001, p. 378. 5 Disponível aqui. 6 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 5 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 426. 7 HAMILTON, Alexander. In: MADISON, James; HAMILTON, Alexander; JAY, John. The Federalist Papers, n.º XVI. From the New York Packet, December 4, 1787. Disponível aqui. 
Não existe Rio Grande do Sul sem o Brasil, assim como não existe Brasil sem o Rio Grande do Sul. Esta é uma forma válida de compreender o federalismo. O Brasil é uma República federativa, marcada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal (art. 1.º CF). Esta união indissolúvel não deve ser marcada apenas pela característica física, frente à impossibilidade do direito de secessão, cláusula pétrea da Constituição. Mais do que isto, implica manutenção da unidade em igualdade mínima de condições de vida, em particular no tema do direito dos desastres, ordem do dia. As enchentes do ano de 2024 que devastaram grande parte do território do Rio Grande do Sul despertam para a necessidade de fortalecimento do pacto federativo, sob a perspectiva da cooperação. Como toda criação humana, a organização federativa visa ao aperfeiçoamento de situações pré-existentes. Não é uma construção estanque, mas um mecanismo em constante aprimoramento. A característica chave de uma federação é a descentralização territorial do poder político e administrativo ou, em outras palavras, a divisão espacial do poder. Esta divisão remete ao que se pode chamar de lição da experiência, tendo demonstrado suas virtudes inicialmente na prática política, antes de ser adotada pelo constitucionalismo, como um meio de limitação do poder.1 Como toda configuração institucional, o federalismo experimentou um longo caminho evolutivo. Seu ápice reside na vertente cooperativa, focada no princípio da subsidiariedade2. O federalismo cooperativo visa a atingir o máximo em eficiência, partindo do pressuposto de que a ação conjunta e coordenada leva a resultados melhores, em relação aos que são obtidos a partir de um cenário de rivalidade e competição entre os entes federados. Parte do pressuposto de que devem existir, na busca da eficiência e racionalidade, permanentes contatos entre os entes central e parciais3. O federalismo cooperativo caracteriza-se pela adoção de diversos instrumentos de colaboração e de coordenação entre os entes federados. Os mais evidentes são os mecanismos de inter-relação competencial, de coordenação, de auxílio e de cooperação. Estes são os mecanismos que devem se fazer presentes em um modelo de prevenção dos desastres naturais e de reconstrução das cidades devastadas. Em comum, todos têm a característica de serem capazes de produzir resultados cooperativos, no sentido de conciliar o exercício dos diversos poderes das partes e de suas ações conjuntas4. A Constituição Federal de 1988, embora não tenha adotado, expressamente, um modelo de federalismo cooperativo, possui traços inequívocos de que abre o caminho para a experiência. Dentre outras passagens, cita-se a que se refere às competências administrativas comuns dos entes federados, quando afirma que "Leis complementares fixarão normas para a cooperação entre a União e os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, tendo em vista o equilíbrio do desenvolvimento e do bem-estar em âmbito nacional" (art. 23, parágrafo único). Em construção semelhante, a Constituição prega que "A União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios disciplinarão por meio de lei os consórcios públicos e os convênios de cooperação entre os entes federados, autorizando a gestão associada de serviços públicos, bem como a transferência total ou parcial de encargos, serviços, pessoal e bens essenciais à continuidade dos serviços transferidos" (art. 241). É neste sentido que se deve interpretar a competência privativa da União para "planejar e promover a defesa permanente contra as calamidades públicas, especialmente as secas e as inundações" (art. 21, XVIII). O dever de auxílio imediato e eficaz da União aos entes atingidos pelas calamidades naturais é inerente à ordem constitucional e ao pacto federativo. Não há como construir um sistema eficaz de prevenção de catástrofes naturais - o que, decerto, faltou ao Estado do RS - se não se verificar uma atuação conjunta dos entes da federação, balizada por critérios técnicos aptos a colocar de lado preferências partidárias e ideológicas. Este é o maior desafio institucional que iremos enfrentar. O cenário de emergência climática que assola o mundo contribui, significativamente, para o agravamento do problema. Preservar o meio ambiente é uma tarefa permanente, que não pode mais ser colocada de lado. Paralelamente, a adoção de medidas eficazes estruturais e não estruturais de proteção é fundamental. As primeiras, de característica estrutural, compreendem o conjunto de obras projetadas pela engenharia, com base em estudos técnicos, aptas a fazer frente, na maior medida possível, às forças da natureza. As segundas, de natureza não estrutural, dizem respeito às ações e políticas públicas, inclusive de caráter normativo, voltadas à prevenção e à redução dos danos. Englobam medidas de planejamento e gerenciamento do uso do solo, formulação de planos diretores, programas de educação ambiental e estratégias de defesa civil. É neste âmbito que o direito e a política assumem papel decisivo, bem como a ação dos órgãos de controle. A partir daí, é fácil perceber que a ação deve começar no próprio município, lugar em que as tragédias, de fato, ocorrem. É justamente nos Municípios que costumam se verificar as maiores omissões e equívocos no planejamento urbano. Estamos a falar sobre a máxima expressão do princípio da subsidiariedade na federação. Muito mais do que uma nomenclatura, representa a ideia de que o gestor que está mais próximo da realidade tem, em princípio, melhores condições - e obrigação - de identificar os problemas e propor as devidas soluções. O sentido do princípio da subsidiariedade informa que a responsabilidade e o poder de decisão recaem, na federação, sobre a menor comunidade social, que deveria estar melhor capacitada para a solução dos problemas que lhe são submetidos. Algo, ainda, bem longe da realidade brasileira. Seu foco é a distribuição e a tomada de deveres e responsabilidades frente às tarefas colocadas pela Constituição aos entes federados5. As decisões legislativas ou administrativas devem ser tomadas no nível político mais baixo possível, ou seja, pelas instâncias que estão mais próximas das decisões que são definidas, efetuadas e executadas6. O princípio da subsidiariedade funciona, portanto, como critério de delimitação das tarefas estatais. Estas considerações já permitem abordar o grande problema que engessa a federação brasileira: a excessiva concentração de recursos financeiros nas mãos do ente central (União), que coloca grande parte dos Municípios na condição de entes subalternos, fragilizados. Não basta o gestor municipal estar ciente das medidas que deva tomar, se não dispõe de recursos financeiros para a sua implementação. Por outro lado, há um problema que não pode mais ser desconsiderado, objeto, inclusive, de reflexão já feita neste espaço: a inflação municipalista7. Não há como negar que existem muitos Municípios no país que não dispõem, a rigor, de condições financeiras de se autossustentar. Refiro-me àqueles que praticamente consomem tudo que arrecadam na manutenção da máquina pública. De nada adianta ser município, ente autônomo da federação, se não for capaz de reunir um conjunto de recursos aptos a cumprir as suas obrigações constitucionais. O tema da incorporação e fusão de Municípios nesta situação tem que voltar ao debate nacional. O mesmo se diga quando nos pequenos Municípios não se faz presente um corpo técnico apto a planejar com eficiência o conjunto das medidas antes referidas. É aí que se insere o tema do federalismo cooperativo em sua essência. O ente maior deve auxiliar o menor, seja pela transferência de recursos de forma ágil, desburocratizada e fiscalizada, seja pela disponibilização de assessoria técnica permanente. Isto vale na relação entre todos os entes da federação: a União auxilia os Estados e Municípios, assim como os Estados auxiliam os seus Municípios. Em uma lógica mais evoluída de federalismo cooperativo, há que se incentivar que até mesmo Estados e Municípios prestem auxílios em favor de outros, ainda que localizados em diferentes regiões do país. Em suma, o princípio da subsidiariedade, que deve guiar a federação, está fortemente ligado à função de integração, como garantia de preservação do próprio Estado federal8. Como conclusão, a única forma de se proteger eficazmente contra as emergências climáticas é por meio da federação, por atitudes preventivas e estratégias de reconstrução. Quando mais a União cruzar os braços e mais um Estado-membro acreditar que o problema não é dele, mais estaremos próximos do fracasso de um projeto de nação. __________ *Esta reflexão ocorre no curso da condução de um projeto de pesquisa institucional, financiado pela CAPES, intitulado "A promoção de medidas não-estruturais de prevenção das vulnerabilidades dos Municípios da região hidrográfica da bacia do Guaíba com áreas suscetíveis de inundações", financiado pelo Edital Emergencial II - n° 28/2022 (CAPES), relacionado ao Programa Emergencial de Prevenção e Enfrentamento de Desastres Relacionados a Emergências Climáticas, Eventos Extremos e Acidentes Ambientais, denominado de "vulnerabilidade social e direitos humanos". 1 FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. Princípios Fundamentais do Direito Constitucional. 2 ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 273. 2 SARCEVIC, Edin. Das Bundesstaatsprinzip. Eine staatsrechtliche Untersuchung zur Dogmatik der Bundesstaatlichkeit des Grundgesetzes. Tübingen: Mohr, 2000, p. 172ss. 3 HORTA, Raul Machado. Direito Constitucional. 5 ed. Belo Horizonte: Del Rey, 2010, p. 426. 4 ROVIRA, Enoch Alberti. Federalismo y Cooperacion en la Republica Federal Alemana. Madrid: Centro de Estudios Constitucionales, 1986, p. 461. 5 Isensee, Josef. Subsidiaritätsprinzip und Verfassungsrecht. Eine Studie über das Regulativ des Verhältnisses von Staat und Gesellschaft. 2. Auflage. Berlin: Duncker & Humblot, 2001, p. 378. 6 BARACHO, José Alfredo de Oliveira. O princípio da subsidiariedade: conceito e evolução. Rio de Janeiro: Forense, 1997, p. 92. 7 Disponível aqui. 8 OETER, Stefan. Integration und Subsidiarität im deutschen Bundesstaatsrecht. Untersuchungen zur Bundesstaatstheorie unter dem Grundgesetz. Tübingen: Mohr, 1998, p. 566ss.
sexta-feira, 7 de junho de 2024

Dimensões da solidariedade

Bertolt Brecht afirmou que "feliz o país que não precisa de heróis". De fato, heróis costumam surgir nas grandes tragédias. Por outro lado, o heroísmo traz esperança, reforça a crença na humanidade. A forma como muitos brasileiros têm prestado assistência às vítimas das enchentes no RS no ano de 2024 é comovente. Pessoas que se arriscam, doam o pouco que têm, entregam seu tempo para ajudar quem não conhecem. Não há contribuição insignificante, cada uma faz a engrenagem da solidariedade girar. Contudo, a solidariedade tem que avançar. É preciso que o povo tenha uma atitude solidária para despertar para as grandes causas destas tragédias, que podem se repetir em outros contextos. Não podemos mais tolerar as omissões dos poderes públicos no quesito prevenção, tampouco admitir a permanência dos fatores que impedem a alocação de recursos para uma vida em segurança. É neste segundo ponto que por ora me detenho. Enquanto os poderes seguirem agindo de forma perdulária, mantendo regalias para quem menos precisa, empregando verbas em atividades que não revertem em serviços públicos de qualidade, de natureza prioritária para a coletividade, seguiremos dependendo de heróis para sobreviver. O Brasil é um país imerso em privilégios para poucos, em detrimento de grande parte da população. O resultado é a precariedade dos serviços e das atividades que mais próximas estão, em termos de demandas, do povo. Basta observar a desproporcionalidade da remuneração e dos auxílios praticados no serviço público. São justamente as carreiras que mais contato têm com os cidadãos que estão menos prestigiadas em termos de vencimentos. A começar pelos Professores, agentes de saúde, segurança pública etc. Não é exagerado afirmar que as causas das tragédias, o que inclui as dificuldades de socorro e de assistência às vítimas, decorrem de um Estado marcado por um elevado grau de disfuncionalidade. Os poderes estatais prestam, em diferentes graus, péssimos exemplos na gestão dos recursos públicos. Convivem, com muita dificuldade, com os imperativos constitucionais da moralidade e da eficiência. Se por um lado as generalizações tendem a distorcer fatos e cometer injustiças, por outro há alguns exemplos que são notórios e incontestáveis no quesito irracionalidade. Algumas características gerais, típicas da cultura pública brasileira. O Poder Executivo é marcado por um inchaço na máquina administrativa, justamente em funções que não se mostram decisivas na qualidade de vida da população. Onde mais necessitam-se de servidores, menos se acham. Já nos chamados quadros de direção, chefia e assessoramento as portas dos cargos em comissão estão generosamente abertas, as vagas costumam ser abundantes. A lógica é o Executivo empregar a distribuição destes cargos na negociação de apoio político junto ao Legislativo. Uma prática disseminada na cultura nacional, que costuma empregar o critério de apadrinhamento acima do de competência. O Poder Legislativo possui, nos diferentes níveis da federação, orçamentos gigantescos. Considerando que é um poder que não tem a responsabilidade de executar políticas públicas, que demandam investimentos vultuosos, o gasto empregado na sua manutenção se mostra exagerado. Para se chegar a esta conclusão nem é necessário avaliar os custos de manutenção das estruturas legislativas de cúpula no país, como é o caso do Congresso Nacional, um exemplo, por si só, de excesso. Basta que se pense o que custam, para os pequenos Municípios, as câmaras de vereadores. Há centenas de Municípios no Brasil que mal arrecadam para custear seus servidores, mas não dispensam bancadas de vereadores remunerados, em número muitas vezes demasiado, quando comparado à estrutura municipal. A democracia representativa é irrenunciável, mas isto não significa que deva custar tanto dinheiro aos contribuintes. Este é o ponto. Além do aspecto financeiro, não há como deixar de lembrar outro, recorrentemente abordado neste espaço: a deturpação da execução do orçamento público pelo Legislativo, por força do mecanismo de emendas parlamentares. Um dos maiores exemplos de malversação de recursos públicos. Um mecanismo cuja finalidade precípua é garantir a reeleição de uma casta de políticos. Empregam-se recursos vultuosos em currais eleitorais de forma a beneficiar politicamente os autores das emendas, independentemente de estudos minimamente condizentes com as prioridades locais. O Judiciário e as carreiras jurídicas públicas também têm que dar a sua contribuição à racionalidade. É inegável a importância do sistema de justiça na vida nacional, bem como a enorme capilaridade que possui nas regiões brasileiras. Todavia, há muito tem se convivido com excessos remuneratórios em benefício da elite dos seus quadros, aspecto que só encontra compreensão por parte dos que deles diretamente se beneficiam. Nas carreiras jurídicas de ponta vale a lógica: os que recebem os maiores auxílios não tributáveis são justamente aqueles que já detêm os maiores vencimentos. Um eficaz programa de transferência de renda. O relatório "Justiça em Números"1, um estudo de grande relevância a cargo do CNJ e merecedor de elogios, revela, com precisão técnica, o custo desproporcional da Justiça Brasileira (sem contar o das carreiras correlatas). O sistema judiciário brasileiro custa cerca de 1,20% do PIB nacional, o que corresponde a 2,38% dos gastos dos entes federativos, sendo que aproximadamente 90% das despesas do Poder Judiciário são com pessoal. O relatório mostra que, no ano de 2023, o Poder Judiciário custou R$ 132,8 bilhões aos cofres públicos. Aponta, ainda, que as despesas representam uma média mensal de R$ 68,1 mil por magistrado no país, um valor significativamente superior ao teto remuneratório do serviço público. Uma pesquisa elaborada pelo Tesouro Nacional, no ano de 2024, apontou que o Brasil lidera o ranking mundial de gastos com tribunais de Justiça, o que sugere que possuímos a justiça mais cara do planeta2. O Poder Judiciário observa que o custo da Justiça é alto, mas o da falta de justiça é bem maior3. O mesmo questionamento feito em relação à democracia representativa pode aqui ser reproduzido. Evidentemente, a essencialidade da Justiça não se discute em um Estado de direito, mas o contraponto pode - e deve - ser feito: a Justiça precisa custar tanto para o país? Os pesados investimentos remuneratórios têm se traduzido na qualidade da prestação jurisdicional? São breves questionamentos que nos fazem pensar quando se busca a racionalização de todos os poderes públicos. Os exemplos, que poderiam ser seguidos de tantos outros, são o retrato de um quadro disfuncional, que torna o Brasil um país que não está preparado para combater as suas tragédias. Há que se lembrar que o Estado foi criado para servir à pessoa e não o contrário. É por isto que os governos não podem deixar grande parte da sociedade à mercê da própria sorte. Há que se empregar os meios democráticos para refundar o pacto social, na busca da abolição de privilégios e do mau emprego do erário. O orçamento dos poderes públicos, voltado às vantagens pessoais dos servidores, não pode desconsiderar as prioridades nacionais, tampouco viver em compasso de enorme desproporcionalidade entre as carreiras. Esta foi, inclusive, uma preocupação do legislador constituinte (art. 37, XII CF), que nunca se tornou realidade4. Gastos exagerados impedem investimentos em setores prioritários para a população. Ser solidário requer, com todas as forças, uma atitude cidadã, que exige um Estado eficaz para todos. Um Estado que invista nas verdadeiras prioridades, no chamado bem comum, aquilo que todos temos que compartilhar em termos de necessidades. Ser solidário requer uma atitude cidadã, que não se deixe manipular no esgoto das narrativas políticas de baixo escalão, cuja finalidade eleitoreira se aproveita da fragilidade das pessoas, em todos os momentos de adversidade. Ser solidário requer, por fim, um compromisso na hora de votar, uma atitude de responsabilidade, que descarte da vida pública aqueles que provaram ser indiferentes às prioridades ou que atuam somente para manter privilégios em detrimento de quem mais necessita. É lutar para que tenhamos um Estado atuante, marcado pela racionalidade e funcionalidade, apto a fazer a diferença na vida das pessoas. Um Estado inclusivo e não excludente, que atua para poucos. Para que justamente esteja operante, quando mais se precisa. É assim que evitaremos e venceremos as adversidades nas tragédias. Nos dias de hoje, ser um verdadeiro cidadão é ser um herói. Um agradecimento do autor, que é do Rio Grande do Sul, a todas as pessoas que, ao seu modo, contribuíram para diminuir a dor dos Gaúchos. Gratidão que o povo gaúcho jamais poderá esquecer. __________ 1 Disponível aqui.  2 Disponível aqui.  3 Disponível aqui. 4 Art. 37, XII CF - os vencimentos dos cargos do Poder Legislativo e do Poder Judiciário não poderão ser superiores aos pagos pelo Poder Executivo.
sexta-feira, 26 de abril de 2024

Configuração institucional e cidadania

Em um cenário de polarização política que beira a irracionalidade, é oportuno questionar: o quão distraídos estamos para as grandes questões? Olhar para o acessório, no lugar do essencial, tem sido uma tendência nos últimos anos. Isto ajuda a explicar grande parte dos nossos infortúnios. Quais são os fatores determinantes para que uma Constituição "pegue", ou seja, para que se imponha como norma suprema do ordenamento jurídico e faça a diferença na profícua condução do país? Uma ideia há muito trabalhada na doutrina, como, por exemplo, a partir dos escritos de Ferdinand Lassalle, sobre a concepção sociológica da Constituição. Defendia Lassalle que de nada servirá o que se escrever em uma folha de papel, se não se justificar pelos fatores reais e efetivos do poder1. A ideia era dizer que os problemas constitucionais são problemas ligados ao poder e não ao Direito. Konrad Hesse, em debate memorável, opondo-se à concepção de Lassalle, afirmou que a Constituição pode desenvolver força normativa, impondo-se aos fatores reais de poder na sociedade, caso se verifique no tecido social um claro sentimento de vontade em favor da Constituição (Wille zur Verfassung)2. Anos mais tarde, Robert Dahl demonstrou que condições políticas e socioeconômicas influenciam, demasiadamente, a efetividade de uma Constituição3. Estas três visões convergem para tese de que o êxito de um Estado não depende, ou ao menos não em primeira linha, da qualidade jurídica das normas constitucionais, mas sim da disposição da população em fazer valer a Constituição. Significa que o fato de a população se identificar com a Constituição, ao ponto de não tolerar violações constitucionais, faz toda a diferença. É o que se denomina de enraizamento da Constituição na sociedade, incluindo as elites políticas e jurídicas do país4. Eu aceito a tese de que o modo como a população de um país reage a desmandos é decisivo. Afinal de contas, trata-se de mensurar o grau de cidadania de um povo, na condição de fundamento de exercício da democracia. Entretanto, não se pode desconsiderar que a qualidade das normas constitucionais, ou seja, o grau de acerto das suas decisões, faz toda a diferença. Vale dizer, a aptidão da arquitetura institucional de um país depende do êxito da configuração constitucional vigente. A tese reflete a figura de um círculo, que pode ser virtuoso ou vicioso. Uma boa configuração institucional encoraja a boa cidadania, ao passo que uma má configuração desperta o contrário. Boas instituições projetam o que há de melhor nas pessoas, enquanto as más despertam e potencializam o que há de pior. Decisões constitucionais equivocadas provocam disfuncionalidades que atingem toda a sociedade. É por esta razão que repensar decisões constitucionais não configura, necessariamente, um atentado à democracia. Pelo contrário, se a reflexão conduz a aperfeiçoamentos, pode levar à salvação da democracia. O grande desafio é que o Direito Constitucional não consegue se desatar da atuação humana, o que coloca a questão até que ponto suas normas motivam e determinam comportamentos. Significa indagar se valem apenas hipoteticamente ou realmente5. Há muito o Brasil enfrenta sérios problemas com a representação política. As eleições livres, embora indispensáveis, não são capazes, por si só, de elegerem os melhores. A boa democracia não vive apenas de eleições. É preciso investir em aprimoramentos profundos nos sistemas de governo, eleitoral e partidário. O problema é que a Constituição Federal de 1988 não apostou nas melhores soluções em nenhum destes três elementos. O presidencialismo de coalizão se tornou uma usina permanente de crises. O sistema eleitoral proporcional não permite ao eleitor ter o controle de quem elege com seu voto, torna as campanhas extremamente caras e gera uma enorme distância entre o eleitor e o representante, o que dificulta o controle. O não emprego de um sistema eleitoral distrital para os órgãos políticos de representação coletiva mostrou-se um enorme equívoco. Mandatos de oito anos para Senador não encontram justificativa em uma democracia moderna e funcional. A possibilidade de ilimitadas reeleições aos cargos do Legislativo potencializa a perpetuação de dinastias políticas, contribuindo para que a atividade se torne um meio de sustento, antes de se afirmar como vocação para a promoção do bem comum. A inexistência de obrigação de desincompatibilização eleitoral para os cargos legislativos incentiva os candidatos a abandonarem os seus mandatos precocemente, para disputarem cargos mais elevados. Consequentemente, os votos recebidos migram para outros políticos, sem qualquer necessidade de consentimento por parte do eleitor, gerando deformidades na representação política. Os partidos, irrigados com verbas públicas cada vez mais vultuosas, refratários à fiscalização efetiva e à democracia intrapartidária, comandados por caciques quase vitalícios, tornaram-se disfuncionais. Os tópicos são exemplificativos e poderiam ser alargados. Certo é que, passados mais de trinta e cinco anos de vigência da Constituição Federal, transcorreu tempo, mais que suficiente, para se certificar de que muitas decisões tomadas não foram capazes de produzir os resultados que delas se esperavam. A cidadania efetiva depende da qualidade da configuração institucional vigente. Aprimorar o sistema, na busca de melhores soluções para o fortalecimento da democracia e para a obtenção dos objetivos fundamentais da República, é uma tarefa permanente. E dela que os verdadeiros estadistas deveriam se ocupar, incessantemente. O quão cidadã é uma Constituição é algo que não pode ser medido apenas por rótulos, nem mesmo pelo grau de cultura política e de cidadania de um povo. A qualidade das normas previstas na Constituição desempenha um papel fundamental na construção de uma nação. É algo que a polarização exacerbada, no mundo das bolhas políticas e dos algoritmos que moldam o pensamento de muitos, é incapaz de perceber. Furar as bolhas e se libertar dos extremismos de qualquer natureza é a única saída. É olhar por trás da coisa, é estar disposto a enxergar o que as aparências escondem. __________ 1 LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6. Ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 37. 2 HESSE, Konrad. Die Normative Kraft der Verfassung. Freiburger Antrittsvorlesung. In: Recht und Staat, Heft 222. Tübingen: Mohr, 1959, p. 12. 3 DAHL, Robert. Poliarchy. New Haven: Yale University Press, 1973, cap. 4ss. 4 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 108. 5 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 41s.
A teoria de que as Forças Armadas recebem da Constituição a função de poder moderador nunca resistiu à melhor análise. Trata-se de construção que não encontra base no Direito Constitucional pátrio. Desconsidera elementos básicos ligados não apenas à ideia de poder moderador, como também ao papel da chefia de Estado e das organizações militares. Em tempos de acirradas polêmicas, dizer o óbvio, por vezes, se faz necessário: a missão institucional das Forças Armadas não acomoda o exercício de poder moderador entre os poderes Executivo, Legislativo e Judiciário. Não há nenhuma passagem da Constituição que permita o emprego das Forças Armadas para indevidas intromissões no funcionamento dos outros Poderes Esta foi a exata conclusão extraída pelo STF1, por unanimidade, no julgamento da ADI 6.4572, que não merece reparos. É evidente que não compete às Forças Armadas o papel de poder moderador. À uma, porque são poder armado. Quando empregado fora de suas estritas missões institucionais, a porta para arbitrariedade permanece aberta. Nas democracias as soluções para impasses institucionais têm que necessariamente brotar da política, do debate e dos diálogos institucionais entre todos os poderes envolvidos. Vale dizer, soluções racionais renunciam às armas. À duas, porque o exercício do poder moderador pressupõe a existência de uma autoridade suprapartidária e supraideológica, apta a se colocar em posição de neutralidade frente aos atores envolvidos nos conflitos, sem recorrer ao plano hierárquico. A partir do instante em que a Constituição reconhece que as Forças Armadas estão organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República (art. 142 CF), some, por completo, qualquer plausibilidade de exercício de função moderadora. A questão é até mesmo elementar. Havendo hierarquia, como um subordinado pode moderar seu chefe? Entre nós, a figura do poder moderador existiu somente sob a vigência da Constituição Imperial de 1824, que, neste ano, completou 200 anos. Estava previsto ao longo de quatro artigos (98 a 101): "O poder moderador é a chave de toda a organização política e é delegado privativamente ao Imperador, como chefe supremo da nação e seu primeiro representante, para que incessantemente vele sobre a manutenção da independência, equilíbrio e harmonia dos mais poderes políticos." A sua chave era a busca do equilíbrio e harmonia entre os poderes, em um cenário de independência. Naquela época, na arquitetura da forma de governo monárquica e de um sistema de governo parlamentarista, a figura do poder moderador estava amarrada à Constituição, com as devidas cautelas. Dentre elas, o fato de estar esvaziado de funções governamentais propriamente ditas e de estar identificado, no maior grau possível, com a figura do Imperador, chefe de Estado3. Embora a República fosse a solução natural com o passar dos tempos, a técnica das constituições brasileiras posteriores, ignorando e expulsando o poder moderador da Constituição, não foi a melhor para garantir o Estado de direito e a democracia. O argumento é de que nos momentos dramáticos das crises que iniciaram com a República Velha, o poder estatal acabou sendo tomado em diferentes ocasiões pelas Forças Armadas, ao sabor de atos revolucionários e das paixões da hora, sem qualquer limitação constitucional4. Sempre que as Forças Armadas exerceram a golpe de força o poder político, o resultado não se mostrou satisfatório e as cicatrizes daí remanescentes permaneceram abertas. Isto só prova que a vocação institucional das Forças Armadas é totalmente estranha à figura do poder moderador. Benjamin Constant, célebre autor da teoria do poder moderador, já pregava: o vício de quase todas as constituições tem sido o de não ter um poder neutro e de ter colocado a autoridade suprema em um dos poderes ativos5. O pensamento de Constant repousa na ideia de que quando uma autoridade suprema é combinada com um dos poderes públicos, há uma tendência à arbitrariedade e à tirania, com os excessos daí decorrentes. É exatamente o que tende a ocorrer quando se entrega a um poder armado qualquer ligação com os poderes estatais. Se poderia perguntar por que muitas pessoas acabam embarcando na tese de que caberia às Forças Armadas uma moderação dos poderes, sobretudo quando o sistema de freios e contrapesos, típico da tripartição, não se mostra eficaz? Várias razões podem aqui ser elencadas, quase todas eles conectadas à falta de noção sobre o que representa a teoria do poder moderador. Uma delas, contudo, se destaca. Nem sempre fica claro para os brasileiros a distinção entre Estado e governo, já que entre nós ambas as funções têm a chefia exercida pelo Presidente da República. O Brasil vem optando, há muito, pelo sistema presidencialista, cuja principal característica é a cumulação, em uma única autoridade, das funções de chefia de Estado e de governo. Já nesse aspecto se revela um equívoco fundamental: como uma única autoridade poderá, simultaneamente, exercer a contento funções tão distintas? O perfil de chefia de Estado exige, necessariamente, postura suprapartidária e supraideológica, pois o Estado é algo que nos une, acima de diferenças de ordem política ou ideológica. Quando se atua contra o Estado, opera-se uma disrupção no desejável consenso em relação aos objetivos permanentes da República, com o efeito de desagregar a sociedade, impedindo, assim, o normal curso da democracia. Na função de chefia de Estado destaca-se um elemento de preservação da unidade estatal. Se é certo que na democracia uma única pessoa não é capaz de garantir essa unidade, uma mediação levada a cabo por uma autoridade que não se identifica fortemente com um partido ou ideologia, na condição de força neutra, pode, em situações de crise, converter-se em um elemento de agregação nacional,6 possibilidade que, por força dos arranjos institucionais existentes, não possuímos. Os objetivos de governo, ao contrário dos de Estado, costumam dividir a sociedade, razão pela qual ir contra o governo significa oposição, que quando exercida nos limites da lealdade à Constituição mostra-se saudável e necessária ao bom andamento da democracia.7 Esta é a razão pela qual a função de chefia de Estado deveria ser separada, a partir da Constituição Federal, das demais forças politicamente atuantes, como a de chefia de governo. Na prática, estamos falando de uma configuração institucional que retira, no sentido de preservar, o Chefe de Estado do processo de condução geral e de configuração política de uma nação.8 A infelicidade é que no sistema de governo vigente, quando se escolhe um Chefe de Estado, ele está automaticamente vinculado a um partido político, representante de uma ideologia, que irá atrair oposição, já que simultaneamente chefia um governo, de aceitação parcial. Neste cenário, dificulta-se o desempenho da neutralidade ínsita à representação de Estado, que deve traduzir unidade. O papel da chefia de Estado adquire relevo a partir do momento em que contribui, com seu distanciamento ideológico e partidário, para a base de um consenso, sem o qual, dentro de uma multiplicidade de opiniões e interesses, a unidade não pode ser alcançada, nem a paz social preservada. Trata-se do posicionamento da própria Constituição no ambiente político.9 O pensamento clássico advertia: daí a falta que faz a figura do poder moderador para agir em tempos de crise, como verdadeira instância magistral, fator de equilíbrio do sistema político, apta a arbitrar conflitos, retificar direções, neutralizar abusos e solucionar impasses complexos entre os poderes10. No atual sistema constitucional brasileiro esta figura não existe. Não está inserida nos poderes constituídos, nem no Judiciário, muito menos nas Forças Armadas. Para nós, a busca do equilíbrio e harmonia entre os poderes deve ser obtida à luz de diálogos institucionais, com as dificuldades de não haver uma moderação capaz de guiar a atuação de todos os envolvidos pela racionalidade. No instante em que optamos por unir as chefias de Estado e de governo em uma mesma autoridade, temos que estar dispostos a pagar o - caro - preço pelas disfuncionalidades daí decorrentes. Apostar no aprimoramento das instituições republicanas é a melhor saída para a crise. É trocar a ameaça de caos pela confiança e estabilidade. E não tentar empurrar às Forças Armadas algo que não lhe cabe. De volta ao início: dizer o óbvio, por vezes, se faz necessário. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.  3 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 65. 4 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 67s. 5 CONSTANT, Benjamin. Curso de Política Constitucional. Tomo I. Madrid: Imprenta de la Compañía, 1820, p. 34s. 6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 535. 7 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 83ss. 8 SCHEUNER, Ulrich. Bereich der Regierung. In:  LISTL, Joseph; RÜFNER, Wolfgang (Hrsg.). Staatstheorie und Staatsrecht: Gesammelte Schriften von Ulrich Scheuner. Berlin: Duncker & Humblot, 1978, p. 481. 9 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 41s. 10 PIMENTA BUENO, José Antônio. Direito Público Brasileiro e Análise da Constituição do Império. Rio de Janeiro: Typ. Imp. e Const. de J. Villeneuve & C, 1857, p. 204s.
As novas tecnologias impactam nossas vidas de diversas maneiras. Na maioria dos casos, os aspectos positivos, que facilitam o dia a dia, se sobressaem. Contudo, não se percebe, com a mesma clareza, as ameaças que costumam vir a reboque. O chamado trabalho por aplicativos, como, por exemplo, Uber, ifood e 99 são exemplos claros desta realidade. Não há dúvida de que os serviços prestados geram inúmeros benefícios à sociedade. A facilitação do transporte, fornecimento de refeições, dentre outros que são proporcionados pela tecnologia, tornam a vida mais fácil. A geração de novas frentes de trabalho e renda também não pode ser desconsiderada, já que contribui para o necessário giro da economia. Por outro lado, não há como se desconsiderar que por trás destes benefícios há uma força humana que se sujeita à uma precarização de condições de trabalho. São justamente os prestadores de serviços, motoristas, motoboys, ciclistas etc., tratados pelas plataformas como "parceiros" no negócio, que mais sofrem com a ausência de uma justa regulamentação do trabalho por meio de aplicativos. Uma realidade que vem chamando a atenção da Justiça do Trabalho e de estudiosos do tema. Uma das repercussões jurídicas de âmbito nacional foi a decisão proferida pelo TST, que reconheceu a existência de vínculo empregatício entre um motorista e a empresa Uber1. Dois argumentos destacaram-se nesta decisão. O primeiro é que a Uber deve ser considerada uma empresa de transporte e não uma plataforma digital. O segundo - mais impactante - é que haveria inegável subordinação entre a empresa e os motoristas. Analisando tecnicamente a questão, a existência de uma subordinação, ainda que em diferentes graus, fica difícil de ser refutada. Os motoristas não possuem nenhum tipo de controle em relação ao preço das corridas, dinâmica das tabelas de remuneração, muito menos sobre o percentual a ser descontado sobre o valor. Até a classificação do veículo utilizado é definida unilateralmente pela empresa, que pode baixar, remunerar, aumentar, parcelar ou não repassar o valor dos deslocamentos. A decisão da mais alta corte trabalhista visualizou que a autonomia dos motoristas, na prática, fica restrita apenas à escolha de horários e das corridas que pretendem realizar. Além disso, o TST ponderou que a empresa estabelece parâmetros para aceitar determinados motoristas e que o seu desligamento, na hipótese de descumprimento de normas internas, é feio de modo unilateral. É na referência ao conceito de "subordinação algorítmica" que a decisão do TST provoca maior reflexão. Um elemento inovador, que cada vez mais impacta nossas vidas, não apenas no contexto dos trabalhos intermediados por aplicativos, mas em diversas situações que passaram a integrar o cotidiano, como o emprego de redes sociais, por exemplo. A decisão levou em conta que a correta interpretação das leis trabalhistas, acompanhando a evolução tecnológica, expande o conceito de subordinação clássica nas relações de trabalho. Toda expansão de conceitos tem repercussões jurídicas inevitáveis. As empresas que desenvolvem plataformas por aplicativos, a fim de alcançar os meios informatizados de comando, controle e supervisão, codificam o comportamento dos motoristas ou colaboradores. Esta codificação se dá por meio da programação dos seus algoritmos, nos quais inserem suas estratégias de gestão, por meio de uma programação cujas diretrizes ficam armazenadas em seu código-fonte, de caráter sigiloso e, portanto, não compartilhado. Sem adentrar se tais características apontam para a existência de vínculo de emprego ou não, o fato é que se fazem presentes na vida diária dos motoristas de aplicativos. Não há como refutá-las. A matéria é tudo, menos simples. Dentro do próprio TST há entendimentos divergentes sobre o tema, ora reconhecendo vínculo de emprego, ora rejeitando2. A questão do reconhecimento de vínculo empregatício entre trabalhadores e empresas que operam aplicativos tem sido tema de duro embate entre o STF e a Justiça do Trabalho. O STF vem reconhecendo a constitucionalidade de outras formas de trabalho diferentes da CLT, opondo-se à jurisprudência de determinadas turmas do TST3. Fica visível o descompasso. A Justiça do Trabalho tende a ser mais conservadora, ao reconhecer a precariedade da situação dos trabalhadores por meio de aplicativos, atraindo o reconhecimento do vínculo de emprego. O STF, por sua vez, tende a ser mais aberto a novos formatos de parcerias de negócios, derrubando sucessivas decisões de vínculos de emprego, em particular em atividades mediadas por tecnologias. Em julgamento que se avizinha, caberá ao STF propor uma solução pacificadora. Destaca-se a análise do Tema 1.291, objeto do RE 1.446.336, que servirá de importante paradigma para a questão4. O principal argumento da Uber, para afastar o estabelecimento de vínculo de emprego entre a empresa e os motoristas, é que a decisão do TST tolhe o direito à livre iniciativa de exercício de atividade econômica, além de colocar em risco o seu modelo de negócios, considerado por ela como um marco revolucionário para a mobilidade urbana5. Por sua vez, a Justiça do Trabalho visualiza que há precarização das relações trabalhistas, em ambiente de inegável subordinação e, consequentemente, o afastamento de inúmeros direitos constitucionalmente assegurados. Deixando de lado, por ora, as divergências entre o STF e o TST, pontua-se que este salutar debate não pode ofuscar um aspecto essencial à controvérsia. O trabalho por meio de aplicativos requer, urgentemente, regulamentação específica, que não deveria ficar a cargo dos tribunais, mas sim do Congresso Nacional, considerando a competência privativa da União para legislar sobre a organização do sistema nacional de emprego e as condições para o exercício das profissões (art. 22, XVI CF). O Governo Federal propôs uma abordagem relacionada à regulamentação, encontrando forte resistência por parte das empresas6. Muito preocupante é a questão previdenciária que envolve os trabalhadores de aplicativos. O fato de muitos motoristas trabalharem, simultaneamente, para diversas empresas, com cargas horárias variáveis e com ganhos cada vez menores, vem inviabilizando sua inclusão no sistema previdenciário. Por ser uma questão ligada às relações trabalhistas, a Justiça do Trabalho deveria, em um modelo ideal, ter a competência para dar a última palavra, cabendo ao STF apenas uma intervenção residual, na hipótese de a justiça especializada violar, flagrantemente, dispositivos constitucionais ou de proceder a uma interpretação da Constituição manifestamente equivocada. É certo que a Constituição Federal não se ocupa - e nem poderia - dos detalhes de relações de trabalho como o transporte ou entregas por meio de aplicativos. Deste modo, há um amplo espaço de conformação legislativa na matéria, que deve ser reconhecido em favor do legislador. É ao Legislativo, pelo princípio da separação dos poderes, que deve ser reconhecido um espaço de avaliação e de prognoses neste tema, cabendo ao Judiciário respeitá-las, salvo nos casos de flagrante violação das disposições constitucionais. A intervenção exagerada do STF em diversas matérias tente a conferir às demais instâncias do Poder Judiciário a pecha de meros pontos de passagem, negando a natureza da justiça especializada, situação que compromete a própria funcionalidade do sistema judicial. É bem verdade que a inação do Congresso Nacional em regulamentar temas importantes contribui para a judicialização excessiva e para o cenário de insegurança jurídica daí decorrente. Diga-se o mesmo frente à dificuldade de o TST pacificar matérias de sua competência. São disfuncionalidades que acabam por atrair a intervenção do STF em diversos assuntos, congestionando a sua pauta, que somadas à tendência de o tribunal avocar para o seu poder de decisão múltiplos temas, levam à atrofia do sistema. Não se pode negar que a inovação proporciona o surgimento de novas categorias, que podem não encontrar compatibilidade com os modelos tradicionais de regulamentação. Aqui a obsolescência ou a inadequação não podem ser desconsiderados. Entretanto, estas novas categorias podem gerar ameaças, cujos princípios constitucionais vigentes, sobretudo os direitos fundamentais, devem combater. É justamente o caso do trabalho por aplicativos, cuja subordinação algorítmica parece irrefutável. Cabe, pois, ao Congresso Nacional assumir as rédeas da regulamentação do trabalho por aplicativos, ouvindo todos os setores envolvidos, com foco nas peculiaridades destes sistemas de trabalho, ciente de que se equivocará, caso se prenda a um dos extremos. O mesmo raciocínio vale para todas as instâncias do Poder Judiciário, sobretudo enquanto pender a regulamentação legislativa. ------------------------------- 1 Disponível em: https://tst.jus.br/web/guest/-/8%C2%AA-turma-mant%C3%A9m-reconhecimento-de-v%C3%ADnculo-de-motorista-de-uber?p_l_back_url=%2Fweb%2Fguest%2Fresultado-de-busca%3Fq%3Duber%26tag%3Duber%26category%3D55841 2 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/388255/tst-manda-para-o-stf-disputa-de-vinculo-entre-motorista-e-uber 3 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/395544/vinculo-de-emprego-jt-reiteradamente-descumpre-jurisprudencia-do-stf 4 Disponível em: Tema 1.291 de repercussão geral - Reconhecimento de vínculo empregatício entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa administradora de plataforma digital. https://portal.stf.jus.br/jurisprudenciaRepercussao/verAndamentoProcesso.asp?incidente=6679823&numeroProcesso=1446336&classeProcesso=RE&numeroTema=1291 5 Disponível em: https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=528592&ori=1 6 Disponível em: https://www.migalhas.com.br/quentes/402727/stf-decide-julgar-vinculo-com-aplicativo-e-lula-assina-pl-sobre-o-tema
Uma das funções mais importantes de uma Constituição é a de proteção. Direitos fundamentais asseguram a defesa das pessoas contra agressões que violam bens jurídicos relevantes, como a dignidade humana, vida, liberdade, igualdade, segurança e a propriedade. A busca de mecanismos jurídicos aptos a garantir a árdua tarefa de proteção é uma meta do constitucionalismo, em suas sucessivas fases e ideais. Além dos consagrados constitucionalismos liberal, social e fraternal, atualmente fala-se de um constitucionalismo digital. A ideia básica é garantir uma jurisdição constitucional apta a proteger direitos fundamentais no curso do mundo digital1. Ela traz implicações significativas no controle de constitucionalidade dos atos do poder público e da iniciativa privada, a partir de uma maximização da eficácia horizontal dos direitos fundamentais2. Embora seja uma denominação que guarda críticas na doutrina3, não se pode desconsiderar que o termo alerta para um dado que não pode ser desconsiderado: a agenda digital tem que ser incorporada pelo constitucionalismo, no sentido de que os direitos fundamentais não podem ser ameaçados pelo uso indevido das novas tecnologias. O avanço digital é imprevisível. Não há como se atrever a fixar limites quanto ao que será possível atingir em termos de recursos em longo prazo, quiçá em médio. Algo já é facilmente perceptível: o atual estágio tecnológico ao mesmo tempo que facilita nossas vidas, gera riscos cada vez mais acentuados. Um dos mais preocupantes deriva da propalada inteligência artificial (IA). Estudos mostram que cerca de um quarto do trabalho realizado nos Estados Unidos e na zona do Euro poderão ser automatizados por meio de sistemas de IA. Significa que muitas frentes de trabalho tendem, em tempo não muito distante, a se tornarem dispensáveis, o que representa inegável abalo na economia global4. Não se sabe até que ponto a mesma tecnologia que elimina postos de trabalho irá fomentar a criação de outros. Também se ignora de que forma é possível compatibilizar objetivos constitucionais permanentes, como a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a erradicação da pobreza, a redução das desigualdades sociais e regionais e a busca do pleno emprego contra algo que não pode ser freado: o desenvolvimento tecnológico que proporciona benefícios individuais e coletivos. A mesma tecnologia que impulsiona vários setores econômicos pode acabar com tantos outros. Qual deverá ser a conta de chegada? A tábua de risco cresce à medida que se fala da IA generativa. É a que cria conteúdos que não podem ser distinguidos da produção humana. Tarefa típica de sistemas como ChatGPT (OpenAI), Gemini (Google), dentre outros. Os sistemas de IA generativa representam ameaças em outra face sensível para a sobrevivência das nações: seu sistema democrático. As campanhas deliberadas de desinformação (fakenews) são incrivelmente potencializadas por recursos de IA. Atualmente, qualquer pessoa, mesmo sem grandes conhecimentos técnicos, pode se valer de programas de fácil acesso, aptos a manipular, com grande eficiência e poder de convencimento, sons e imagens. Refiro-me, em particular, às deepfakes5. Uma tecnologia que permite que nossas vozes e imagens sejam empregadas, sem autorização, para transmitir mensagens que jamais seriam por nós cogitadas. E tudo de forma muito convincente. A detecção da manipulação torna-se cada vez mais difícil. As deepfakes não funcionam como um filtro aplicado em uma fotografia, que torna uma imagem de baixa qualidade em algo deslumbrante, mas com fácil percepção do truque. Elas usam mecanismos mais evoluídos, pensados para agir da forma mais imperceptível possível. Não é preciso ir longe para captar o risco que tais tecnologias impõem à democracia, por meio da manipulação do processo eleitoral. Cada vez mais, no submundo do crime, as chamadas "milícias digitais" venderão seus serviços para destruírem reputações e minarem candidaturas de adversários políticos. A guerra política avança para trincheiras não devidamente exploradas, em um cenário que pode ser disruptivo. Há relatos do uso de deepfakes para manipular as eleições em vários países. Cita-se o ocorrido nos EUA, em 2024. Ligações telefônicas realizadas por robôs em call centers transmitiam a mensagem falsa, de que o Presidente norte-americano Joe Biden estaria solicitando aos seus eleitores que não participassem das eleições primárias do partido6. O uso criminoso deste tipo de tecnologia favorece a desinformação e o rompimento da ordem democrática. Esta realidade ameaçadora aponta que é preciso reagir, tanto de forma preventiva quanto repressiva. A prevenção é o caminho que costuma surtir melhores resultados. Autoridades na área acertam quando afirmam que urge no Brasil a construção de uma estrutura regulatória moderna e eficaz, apta a fixar o compartilhamento de responsabilidades dos atores do mundo digital, visando a minimizar os riscos7. Na vertente repressiva é fundamental que o TSE assuma a responsabilidade em punir, exemplarmente - e de forma não seletiva -, toda e qualquer agremiação política que empregue mecanismos de IA para prejudicar adversários políticos, sem prejuízo de outras sanções penais cabíveis. Esta é uma das mais importantes missões deste novo constitucionalismo. O mundo digital possui relação indissociável com os direitos fundamentais de livre desenvolvimento da personalidade, por meio dos quais a dignidade humana deve se mostrar intangível. Se por um lado as novas tecnologias facilitam o alcance dos objetivos do constitucionalismo liberal, como o controle e a regulação do poder político, elas também passam a exigir novas conformações protetivas de direitos fundamentais, que estão sob ameaça no ambiente digital8. No Direito Constitucional a questão se projeta a partir do mandamento de proibição de insuficiência, que impõe ao legislador um dever de aperfeiçoamento constante, que o impede de ficar inerte ou de propor soluções que não se mostrem à altura dos problemas que visam a evitar9. A prevenção dos riscos impostos pela IA configura um novo padrão para o controle de constitucionalidade dos atos do poder público e de condutas privadas, nos planos da ação e da omissão. A inteligência também pode ser ameaça. A proteção eficaz do gênero humano e da democracia não pode esperar. __________ 1 MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Disponível aqui.   2 DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019. 3 PEREIRA, Jane Reis Gonçalves; KELLER, Clara Iglesias. Constitucionalismo Digital: contradições de um conceito impreciso. Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Vide a posição de Bruno Bioni, Virgilio Almeida e Laura Schertel Mendes. Disponível aqui. 8 MENDES, Gilmar Ferreira; FERNANDES, Victor Oliveira. Constitucionalismo digital e jurisdição constitucional: uma agenda de pesquisa para o caso brasileiro. Disponível aqui.   9 CANARIS, Claus-Wilhelm. Grundrechte und Privatrecht. Eine Zwischenbilanz. Berlin: De Gruyter, 1999, p. 20.
Por que foi que cegamos, Não sei, talvez um dia se chegue a conhecer a razão, Queres que te diga o que penso, Diz, Penso que não cegamos, penso que estamos cegos, Cegos que veem, Cegos que, vendo, não veem1. A frase está imortalizada no notável romance de José Saramago. Uma metáfora atemporal, aplicável a vários contextos. Um deles, é a nossa organização político-institucional. A cada ano, o início do mês de fevereiro marca a abertura do ano legislativo. Como de praxe, é realizada uma sessão solene no Congresso, na qual mensagens dos chefes dos três poderes são lidas. Boa parte dos discursos contém aquilo que se gosta de ouvir2. O Executivo salientou que o diálogo é condição necessária para a democracia, devendo superar filiações partidárias, preferências políticas ou disputas eleitorais, uma obrigação republicana a ser cumprida por todos. O Judiciário ponderou que os magistrados não podem carregar suas paixões ao decidir, devendo agir pelas virtudes da equidistância e da imparcialidade, o que torna sua atuação, em boa medida, diferente da política. Bradou, ainda, o princípio da separação dos poderes: ao Judiciário, o que é do direito, ao Legislativo o que é do Parlamento, ao poder Executivo, o que toca a administração pública. E o Legislativo, em tom mais provocativo, sobretudo pelas palavras do Presidente da Câmara dos Deputados, ressaltou a defesa das prerrogativas do Congresso Nacional, acentuando a competência para aprovação da peça orçamentária. Do todo, o que é realidade, o que é ficção? Ano após ano, discursos polidos são proferidos, porém nem sempre conectados com as ações concretas. De um lado as palavras, do outro a vida como ela é. A parte mais sensível nas mensagens de abertura do ano legislativo situa-se no recado do Presidente da Câmara dos Deputados, relativo à peça orçamentária. O Orçamento da União para 2024 foi aprovado pelo Congresso com significativo aumento nos valores das emendas parlamentares. Eis os dados3: De R$ 37 bilhões em 2023 para R$ 53 bilhões em 2024. São verbas cujo destino fica a cargo dos congressistas, sem interferência dos demais poderes. O presidente da República vetou R$ 5,6 bilhões das chamadas emendas de comissão, gerando tensão política com o Legislativo. Na versão aprovada pelos parlamentares, estas emendas somariam R$ 16,6 bilhões. Com o veto, a previsão caiu para R$ 11 bilhões, valor superior ao do ano de 2023 (R$ 7,5 bilhões). Os outros tipos de emendas parlamentares, que são as emendas individuais obrigatórias (R$ 25 bilhões) e as emendas de bancada (R$ 11,3 bilhões), não sofreram modificação de valores. Há uma crítica generalizada por parte da sociedade quanto à inviabilidade de se tratar parcelas significativas do orçamento público sob a lógica das emendas parlamentares. As críticas não sensibilizam o Presidente da Câmara. No discurso deixou claro a sua visão de que o orçamento não pode ser de autoria exclusiva do Executivo, tampouco de uma burocracia técnica, que não foi eleita para definir as prioridades da nação4. Do ponto de vista constitucional, há um equívoco na forma como o tema foi abordado. A aprovação do orçamento, indiscutível competência do Congresso Nacional, não se confunde com a sua elaboração e execução. Cabe ao Poder Executivo encaminhar ao Legislativo a proposta de lei orçamentária e a este cabem os ajustes que entender pertinentes. Ocorre que nos últimos anos a atuação do Congresso em relação ao orçamento tem extrapolado, e muito, sua competência para ajustar e fiscalizar os gastos públicos. O Legislativo marcha para uma espécie de cooptação do orçamento público, pelo emprego de diferentes tipos de emendas parlamentares. A estratégia é concentrar, cada vez mais nos parlamentares, a decisão quanto ao modo e montante de aplicação das verbas em redutos eleitorais, por meio de um calendário de pagamento de emendas. Parte-se da visão - não necessariamente correta - de que os parlamentares, por estarem mais próximos da população, têm melhores condições de definir prioridades no momento de aplicação dos recursos. Nas palavras do Presidente da Câmara, são os parlamentares - e não os técnicos do Ministério da Fazenda - que "gastam a sola do sapato" percorrendo os pequenos municípios brasileiros. Este modo de ver as coisas desconsidera um dos mais elementares princípios orçamentários, que é o da programação, que tem a ver com planejamento. O fim do orçamento público é a entrega de bens e serviços para satisfazer as necessidades da população, cujos meios sãos os recursos, as dotações autorizadas pelo Legislativo, que permitem a realização das ações5. A lógica das emendas parlamentares desconsidera, em grande parte, tal princípio. Quando fatias generosas do orçamento passam a ser aplicadas de acordo com a discricionariedade de políticos, independentemente de estudos mais aprofundados sobre as prioridades, o resultado não pode ser satisfatório. Orçamento segue a lógica da escassez, o que em linguagem popular se chama de "cobertor curto". Empenho técnico, precisão e certa dose de criatividade são ferramentas essenciais na administração dos recursos públicos. Em suma: planejamento de gastos. É fazer o máximo possível, mediante critérios de racionalização dos recursos disponíveis. No rumo das chamadas despesas discricionárias, marcadas por elevada ingerência política no destino, tais vetores costumam ser desconsiderados. O rito é a relação entre padrinhos e apadrinhados. Quanto maior for a proximidade com um congressista, maior será a chance de ter um pedido atendido. Esta relação de dependência compromete até mesmo o bom desempenho parlamentar. Os representantes acabam tendo sua atuação - que deve ser macro - desfocada frente a interesses paroquiais. As emendas guiam-se por interesses eleitoreiros. Servem para fortalecer a base política dos que as subscrevem. Sua finalidade é a perpetuação no poder, por meio de sucessivas reeleições. O modus operandi é avesso até mesmo ao ideal democrático, à medida que favorece a reeleição dos que têm o poder de alocar verbas públicas em seus redutos eleitorais. O livre jogo da disputa política sofre considerável perturbação. Por vezes, para atender eleitores, recursos são alocados independentemente de requerimentos de prefeitos. Nesta lógica não costuma haver planejamento ou qualquer estudo detalhado acerca das prioridades da população. A prática é refratária ao equilíbrio fiscal, à fixação de prioridades e, sobretudo, à correta fiscalização do destino das receitas tributárias. A aprovação do orçamento não pode se confundir com a sua execução. A proposta e execução são competências típicas do Poder Executivo, a quem cabe, por meio de um corpo técnico especializado (ministérios), definir os critérios de emprego das verbas, visando a realizar os objetivos fundamentais da República, como a redução das desigualdades regionais. Na atual sistemática, as desigualdades só tendem a aumentar. Se um município não possui bons padrinhos, está fadado a viver apartado de parcela do orçamento público. Nesta ótica as emendas parlamentares desconsideram até mesmo o traço marcante da forma federativa de Estado, que é a autonomia financeira dos respectivos entes da federação. O fato é que a cada ano vem crescendo o apetite do Congresso sobre o montante destinado às emendas parlamentares. Vale dizer, um considerável avanço do Legislativo sobre as prerrogativas do Executivo. Dados revelam que dos R$ 222 bilhões de livre destinação no ano de 2024, R$ 44,6 bilhões se referem a emendas parlamentares (20,05% do total)6. Se for considerada a realidade que era praticada antes da criação das emendas impositivas (2014), ao Legislativo cabia indicar apenas 4,65% do valor dos gastos discricionários7. Tudo isso dentro de um sistema de governo presidencialista, no qual o Executivo resta cada vez mais enfraquecido. Tivéssemos um sistema de governo parlamentarista, com as vantagens que lhe são peculiares, como a responsabilidade política do chefe de governo, separação entre chefia de Estado e de governo e funcionamento voltado à governabilidade, o protagonismo do Legislativo na execução orçamentária poderia ser pensado de forma diferente. Não é o caso do atual sistema presidencialista de governo. Enquanto isso, inicia o novo ano legislativo, com lindos discursos. De volta ao início: Por que foi que cegamos? __________ 1 SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995, p. 310. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui.
Eleger as verdadeiras prioridades é uma das características que colocam líderes na condição de estadistas. Algo raro no Brasil, o que ajuda a explicar os motivos pelos quais as crises insistem em nos abraçar. A reforma do pacto federativo é uma destas prioridades. Na agenda política, segue em um plano distante. Em verdade, desde os primórdios da República o Brasil não respirou o verdadeiro espírito federativo. Quando a Constituição Republicana de 1891 foi promulgada se importaram - ainda que aos pedaços - diversos institutos do sistema norte-americano, como a forma e o sistema de governo. Foi, de fato, na forma de Estado - Federação - que mais nos afastamos da então referência estadunidense. Tivemos como referência o país que mais pratica o ideal de descentralização territorial do poder político e administrativo, mas ao colocarmos em prática, fizemos tudo ao contrário. Os pais fundadores dos EUA (Founding Fathers), se vivos estivessem, ficariam estarrecidos com a nossa capacidade de distorcer institutos e sistemas. Colamos ao nome do país o selo de federação, sem praticá-la à contento. A forma federativa de Estado é uma ideia voltada à eficiência. Parte do pressuposto de que a centralização de poderes e competências dentro de um país é algo contraprodutivo. O ideal de descentralização territorial do poder afirma-se como o núcleo do pensamento federativo, focado no princípio da subsidiariedade. Mais do que uma nomenclatura, representa a ideia de que o gestor que está mais próximo da realidade tem, em princípio, melhores condições de identificar os problemas e propor as devidas soluções. Uma ideia que advém da própria racionalidade, praticada, inclusive, como sinônimo de boa governança em instituições públicas e privadas. O pacto federativo, em especial o grau de descentralização territorial do poder, deve-se pautar por critérios mínimos de funcionalidade. Os árduos debates sobre a reforma tributária de 2023, que certamente se prolongarão nos próximos anos, são a prova de que o pacto federativo é matéria cuja importância, entre nós, adquiriu aspecto acessório. Quando se tem em mente que o cerne de um sistema tributário diz respeito à forma de financiamento dos poderes públicos, surge a questão: como é possível alterar o sistema tributário sem que se discuta, paralelamente, o pacto federativo? Uma federação na qual um ente passa a depender de outro(s) está fadada ao fracasso. O mesmo ocorre quando se constrói uma federação às avessas, em que a centralização de poderes do ente central é o traço marcante. A doutrina especializada há muito alerta: nas últimas décadas forjou-se um sentimento de preocupação quanto à sorte da federação no Brasil, devorada por um centralismo cada vez mais absorvente1. O próprio STF desenvolveu nas últimas décadas uma jurisprudência que converge para a centralização de poder da União. Decisões como a que estabelece que leis municipais proibindo a cobrança de estacionamento em shopping centers seriam inconstitucionais, por tratarem de questão típica de direito civil - matéria de competência legislativa privativa da União2, são apenas um exemplo. Por justiça, deve-se reconhecer que o STF, durante o período da pandemia, proferiu um conjunto de decisões acertadas que fortaleceram o pacto federativo, sobretudo as que retiraram das mãos do governo federal a exclusividade das decisões em matéria de promoção da saúde, típica questão de competência legislativa concorrente3. Se esta será uma tendência, ou o retorno à jurisprudência do "shopping center", só o tempo irá dizer. Por seu turno, a Constituição Federal de 1988, apesar de ter conduzido os Municípios à condição de entes da federação, dotados de autonomia política e administrativa, relegou ao menor dos entes a uma posição frágil na distribuição das fatias que compõem o bolo tributário. Quando os Municípios ficam com uma diminuta parcela das receitas tributárias globais, o cenário de estabilidade econômica mostra-se adverso. A Constituição também não se preocupou em condicionar a existência dos Municípios, ou mesmo a criação de novos, ao cumprimento de metas mínimas de viabilidade econômica. Em suma: o sistema constitucional vigente não colocou os devidos freios à criação de Municípios, tampouco à sua manutenção. É bem verdade que o Congresso Nacional não cumpriu devidamente o seu papel, já que insiste em não regulamentar o art. 18, § 4.º da Constituição Federal, que trata de pressupostos para a criação de novos Municípios no país. O próprio STF reconheceu o estado de mora legislativa na matéria, contribuindo para frear aquilo que se poderia denominar de "inflação municipalista". Dados atuais mostram a gravidade do problema. Segundo o IBGE, o Brasil possui, atualmente, 5.570 Municípios4. Uma pesquisa feita pela Confederação Nacional dos Municípios (CNM), publicada em agosto de 2023, revelou um dado alarmante: 51% das cidades estão atualmente com as contas no vermelho. O fato deve-se ao pequeno crescimento da arrecadação e à expansão generalizada do gasto público, em especial das despesas de custeio, que tocam à manutenção da máquina pública5. A raiz do problema parece residir em dois fatores. O primeiro é que desde o advento da República Federativa não se desenvolveu no país a cultura da federação. Não é por menos. Como várias outras criações, ela nos foi imposta de cima para baixo, por um canetaço do governo central de então. O segundo, mais atual, é que a inflação municipalista tem origem em questões típicas da política nacional, de caráter clientelista. Em bom português: interesses políticos. Antes de se destinar à melhora das condições de vida das pessoas, objetivo constitucional permanente, a criação de novos municípios acaba servindo como trampolim para a consolidação de lideranças políticas locais, com forte influência na máquina pública, que dela se utilizam para fins eleitoreiros. Recentemente, o protagonismo das emendas parlamentares6, que afasta a racionalidade na administração do orçamento público, torna a expansão municipalista ainda mais atrativa. A receita é clara. Pouco importa que muitos Municípios se mostrem inviáveis do ponto de vista financeiro. Deste que sejam atraentes do ponto de vista político, a conta acaba fechando na lógica da consolidação de currais eleitorais que perpetuam o poder de políticos e dos seus familiares. Urge o aperfeiçoamento do pacto federativo. A começar pela distribuição mais equilibrada das fatias tributárias entre os entes da federação, passando pela maior descentralização político-administrativa, inclusive em face de competências legislativas e, em particular, pela adoção de critérios mais rígidos para a manutenção de municípios. A fusão e a incorporação de municípios deficitários deve ser uma prioridade, sob pena de o federalismo brasileiro adquirir elevada disfuncionalidade, já a partir da base. Se não for assim, corromperemos a própria ideia matriz do federalismo, consolidando o princípio da subsidiariedade às avessas. __________ 1 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 188. 2 Disponível aqui.  3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui.
sexta-feira, 5 de janeiro de 2024

Melhor reforma é a mudança de mentalidade

Quando uma sociedade entra em crise consigo mesma porque não consegue mais se reconhecer no seu modo concreto de viver com os outros e no modo de se organizar institucionalmente, surge, como necessidade interna, a exigência de refletir criticamente e de se explicar teoricamente quanto aos valores e representações que configuram essa sociedade.1 Para começar o ano, esta é uma reflexão de peso. Aceitamos as mazelas da nossa organização política, como se estivéssemos condenados a jamais delas nos libertar. Em perspectiva filosófica fica claro o interesse da razão nas seguintes questões: O que sabemos? O que nos é permitido esperar? O que devemos fazer? As respostas, nada simples, passam por projeções. Seu acerto depende do senso de realidade de quem analisa os fatos, aliado à sorte de quem arrisca prever algo, em um cenário político-institucional tão complexo. Se por um lado a geopolítica acaba por influenciar a realidade nacional de forma imprevisível, por outro, a não realização do dever de casa insere-se no rol das situações que, embora previsíveis, não costumam ser contornadas. Um exemplo é aceitar que a agenda das reformas estruturantes, mesmo longe da ideal, está na velocidade do Brasil. Um raciocínio pragmático, espécie de rendição às circunstâncias da política. A aprovação da reforma tributária pelo Congresso Nacional no ano de 2023 foi um feito político memorável. Pode-se debater se foi a reforma correta ou não. Todavia, o fato de ter sido aprovada após anos de estagnação da matéria nos escaninhos do Congresso mostra que, quando há vontade política, consensos sobre o principal podem vencer os dissensos sobre o acessório. A questão é que em outros temas cruciais, tão ou mais importantes que a reforma tributária, consensos acabam não sendo produzidos, gerando uma estagnação constante. Grande parte das reflexões dos modernos pensadores centra-se na questão do conhecimento. Quem se ocupa do estudo das instituições políticas sabe - e bem - que praticamos uma arquitetura de baixa qualidade. É por isso que a principal reforma é a de mentalidade. Evoluir para priorizar os grandes temas da agenda política, que devem convergir para o aprimoramento das instituições permanentes, deixando de lado questões menores, cuja eficácia costuma ser cosmética. É neste ponto que empacamos e, por mais que os analistas se esforcem em prever soluções, não estamos conseguindo enfrentar os grandes problemas. A consolidação das contas públicas, em um cenário de racionalização das prioridades de investimentos do erário, é uma espécie de nó górdio que ainda não foi objeto de corte. Neste ponto, a reconfiguração das instituições políticas brasileiras, a começar pela reforma dos sistemas eleitoral, partidário e de governo, é o maior desafio. José Murilo de Carvalho fez uma genial alusão para descrever as relações políticas no Brasil: política e teatro têm algo em comum. A representação política tem elementos comparáveis à teatral pelo fato de serem exercidas em palcos montados, por meio de atores que têm papéis conhecidos. Há enredo e, principalmente, ficção.2 A maior ficção está em acreditar que o sistema presidencialista de governo, uma usina permanente de crises, será capaz de tirar o país do atoleiro fiscal. Esta ficção se projeta em diferentes níveis. O primeiro é eleger um Presidente da República que cumula funções de natureza diversa - chefia de Estado, de governo e da Administração federal - que requerem habilidades distintas, inviabilizando o seu exercício a contento por uma única autoridade. O segundo é normalizar a eleição de um chefe de governo que não tem a sua disposição maioria parlamentar para aprovar os projetos que compõem sua plataforma de governo. O terceiro é insistir em uma arquitetura institucional que não combina com o modelo de Estado social preconizado pela Constituição de 1988. No atual modelo, a governabilidade passa a depender do loteamento de cargos públicos e da distribuição de generosas emendas parlamentares, fomentando a irracionalidade no emprego de verbas públicas. Uma verdadeira disrupção na ideia de representação política. O presidencialismo de coalizão foi dragado pelo de cooptação. A ficção, na linguagem teatral de Murilo de Carvalho. É como se o país conduzisse, na prática, a preponderância do Legislativo, típica de sistemas de governo parlamentaristas, mas com as amarras típicas do presidencialismo, com chefe de governo sem responsabilidade política perante o parlamento. A lógica de uma representação política que empareda o Executivo, por força da cooptação do orçamento público, cujo emprego volta-se a fortalecer a presença dos seus atores nos respectivos redutos eleitorais, é o quadro de uma disfuncionalidade permanente,3 com reflexos negativos na economia nacional. No apagar das luzes de 2023, o Congresso Nacional aprovou a Lei Orçamentária Anual (LOA) prevendo despesas de R$ 5,5 trilhões, cujo maior montante se refere ao refinanciamento da dívida pública.4 Se não se estrangulam as causas que comprometem a saúde financeira do país, não se pode evoluir. Um exemplo prático: no bolo da LOA está prevista a cifra de R$ 4,9 bilhões para compor o Fundo Eleitoral, ou seja, parte da verba que irá financiar as campanhas para as eleições municipais no corrente ano. A justificativa é o surrado bordão de que a democracia não tem preço. Tudo isso quando se fala que a meta fiscal do orçamento de 2024 é a de zerar o déficit público. Não há como reorganizar as contas públicas neste quadro de perversão institucional. Invariavelmente, a conta acaba caindo nos colos da sociedade, na experiência coletiva de aceitar o que não se consegue mudar. Implica compreender que sem instituições políticas racionais não se chega a resultados positivos. Se pode dizer que o Brasil está percorrendo um lento caminho das reformas, mas não que temos uma construção institucional capaz de grandes e duradouros avanços nas prioridades. Portanto: O que sabemos? Que a arquitetura político institucional vigente não se mostra apta a resolver os complexos problemas do país, esvaziando os objetivos estatais permanentes, cristalizados como objetivos fundamentais da República (art. 3.º CF). O que nos é permitido esperar? Se mantivermos a atual arquitetura institucional, os problemas que há muito vivemos não serão resolvidos. Pode-se avançar aqui ou acolá, ou até mesmo retroceder, mas a estagnação que nos acompanha desde a República velha permanecerá, apenas sob nova roupagem. O que devemos fazer? Coragem para avançar nas reformas. Acima de tudo, compreender que a principal reforma é a de mudança de mentalidade. Investir em uma má configuração institucional é uma passagem só de ida para o caos. Construir consensos mínimos, que priorizem o país, no lugar de tentações eleitoreiras rasas. Fortalecer a democracia pelas instituições. O Direito Constitucional vivo exige que se pense o país sob a perspectiva da viabilidade das suas instituições, sob pena de sempre permanecermos reféns dos nossos condicionantes. Um pensamento muito pobre, para uma nação tão exuberante. A evolução começa pela mudança de mentalidade, a principal reforma. __________ 1 HERRERO, Xavier. A razão kantiana entre o Logos socrático e a pragmática transcendental. Síntese Nova Fase, Belo Horizonte, v. 18, n. 52, jan./mar. 1991, p. 37. 2 CARVALHO, José Murilo de. A construção da ordem: a elite política imperial. Teatro de sombras: a política imperial. 3.ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007, p. 420. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 
Uma das partes mais importantes - e mais desrespeitadas - da Constituição Federal diz respeito ao dever de proteção do meio ambiente. Prevê o art. 225 que "todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Dificilmente se poderia pensar em redação melhor. Aqui temos um típico direito de terceira geração, com fundamento no constitucionalismo solidário. De caráter transindividual, a norma impõe ao poder público e aos particulares um verdadeiro dever de hierarquia constitucional. Mais do que isto, um dever de natureza intergeracional. A obrigação não se limita a garantir o bem-estar das pessoas que já habitam o planeta, mas, igualmente, das futuras gerações. A afirmação corrente de que o Brasil é um país respeitador do meio ambiente não passa de uma falácia. Um exemplo que aponta para esta realidade é a inadequação dos planos diretores da imensa maioria dos municípios brasileiros, além das falhas estruturais que minam a atuação efetiva dos órgãos competentes. As enchentes que devastaram regiões do sul do Brasil, em setembro de 2023, são apenas um dos indícios dos efeitos causados pelas mudanças climáticas, aliadas a uma cultura de omissões e desmandos de todos os tipos. Os terríveis impactos gerados por eventos catastróficos da natureza deveriam levar as autoridades e a sociedade a refletir sobre os rumos de uma vida com segurança. Não é o que costuma ocorrer. As tragédias se repetem, mudam apenas os lugares e as vítimas. Fruto de uma cultura de indiferença, de omissão das autoridades e de uma ilusão quanto a uma falsa zona de conforto. Os desastres naturais conectam-se a um duplo quadro de vulnerabilidades. O primeiro, físico, decorre de fenômenos climáticos; o segundo, de ordem social, da falência de políticas públicas1. Resta evidente que as vulnerabilidades físicas são potencializadas pelas vulnerabilidades sociais. Uma retroalimenta a outra. Quanto mais intensa for a desigualdade social, maior será a tendência a ocupações irregulares e à urbanização desordenada, que geram um processo crescente - por vezes irreversível - de degradação ambiental, catalisador de desastres naturais de diferentes proporções. Aqui se insere a chamada era do "direito dos desastres".2 Uma disciplina que busca verificar em que medida o sistema jurídico possui mecanismos para lidar com os desafios e consequências geradas pelos desastres ambientais gerados pela ação e omissão humanas. Atribui-se ao direito a função de fornecer um hígido ambiente regulatório de natureza preventiva e repressiva. Uma perspectiva de aproximação do aspecto jurídico com a dinâmica da política, a partir da formulação de standards mínimos de regulação. As decisões que se baseiam em medidas preventivas acabam por se revestir de inegável natureza política, considerando realidades orçamentárias e de percepção de prioridades locais e regionais distintas, dentro da ótica transfederativa. Focado no princípio da subsidiariedade, núcleo da federação, a solução dos problemas começa pelas ações locais. As catástrofes naturais que decorrem da falta de cuidado com o meio ambiente proporcionam a violação de direitos fundamentais básicos de um elevado grupo de pessoas. Decorrem da omissão prolongada das autoridades, da falência e da inadequação das políticas públicas vigentes. Não é exagerado falar que vivemos em uma espécie de estado de coisas inconstitucional em matéria ambiental. Maurice Blanchot, quando escreveu a obra "A escrita do desastre" (The Writing of the Disaster), no ano de 1986, já profetizava que pensar nos desastres ambientais, com a dúvida se irão ou não ocorrer, equivaleria a não ter mais nenhum futuro para se pensar nisto.3 Há que ser dar um basta nas omissões, sobretudo em face da atuação preventiva e repressiva por parte dos poderes públicos. A realidade de grande parte dos municípios brasileiros aponta para um conjunto capilarizado de más decisões sobre a ocupação do solo. Regulações ineficazes. Políticos desconectados do interesse público. A isto se soma a inaceitável omissão das autoridades judiciais para combater a elaboração de planos diretores absolutamente desconectados de questões urbanísticas e ambientais elementares. Um cenário favorável às vulnerabilidades que culminam em desastres ambientais. Os esforços fiscalizatórios são inegáveis instrumentos preventivos, pois agem em momento anterior à ocorrência de catástrofes. Infelizmente, uma realidade distante da maioria dos municípios brasileiros. Lamentável é a constatação de que este déficit não decorre apenas de carências estruturais. A fiscalização e o planejamento adequados também costumam esbarrar no poder econômico, que influenciando os núcleos de poder, blinda construções irregulares ou faz adaptar as normas às demandas corporativas. Basta observar o modo como tem ocorrido o parcelamento do solo nas cidades litorâneas brasileiras, um dos tantos exemplos de má gestão. Fica cada vez mais evidente, dentro da lógica exposta por Rousseau na célebre carta a Voltaire, em 1756, ocasião em que debatiam as causas do terremoto e da enchente que destruíram Lisboa, em 1755, que as catástrofes não decorrem exclusivamente das forças da natureza, mas sim da própria sociedade. A lógica de Rousseau se aplica como uma luva aos dias atuais: não se deve tornar a natureza ou Deus responsáveis pelos males sofridos pelos homens. Eles os infligem a si próprios.4 Tudo na lógica da privatização dos lucros e da socialização dos prejuízos. Vale dizer: em matéria de danos ao meio ambiente os homens criam seus próprios infortúnios e a eles cabe evitá-los. __________ 1 FARBER, Daniel A.; CARVALHO, Délton Winter de. (Orgs.) Estudos aprofundados em direito dos desastres: interfaces comparadas. 2 ed. Curitiba: Appris, 2018, p. 73. 2 CARVALHO, Délton Winter de. Desastres Ambientais e sua regulação jurídica: deveres de prevenção, resposta e compensação ambiental. 2. ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2020. 3 BLANCHOT, Maurice. The Writing of the Disaster. Lincoln: University of Nebraska: Press, 1986, p. 2. 4 ROUSSEAU, Jean-Jacques. Lettre à M. de Voltaire. 
Retomo o tema da democracia defensiva, a partir da palestra ministrada no TSE, no dia 16/08/2023, pelo juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF), Dr. Josef Christ.1 Conforme analisado na coluna anterior,2 as democracias enfrentam o dilema em torno da questão: o Estado deve garantir liberdade aos próprios inimigos da liberdade? À Constituição cabe a tarefa de configurar instituições e instrumentos destinados a evitar que a liberdade constitucionalmente garantida seja deturpada pelos seus inimigos, voltados a instituir um sistema ditatorial. Esta seria a gênese da democracia defensiva, um regime capaz de se defender dos inimigos que, abusando das liberdades, conspiram para eliminá-las. Embora seja um tema atual, não é novo. A doutrina há muito alerta que o recurso aos fins supremos do ordenamento jurídico - como as liberdades - não pode servir de meio para ludibriar a Constituição.3 Se por um lado o uso abusivo das liberdades tem que ser combatido, por outro, nem sempre fica claro o momento a partir do qual o uso se torna, de fato, abusivo. Em nome da democracia defensiva abusos também podem ser praticados, em particular quando a liberdade de expressão é restringida de forma desproporcional. Christ observa que o risco, que não pode ser desconsiderado, é a exclusão de determinados pontos de vista que são apresentados no marco de possíveis soluções para os problemas institucionais. Advogar por uma democracia defensiva não implica desconsiderar que ela, como qualquer construção jurídica, não está livre de deturpações. No livre mercado de ideias elas ocorrem, por exemplo, quando se recorre aos instrumentos da democracia defensiva para combater adversários políticos ou críticas indesejadas. Toda liberdade, quando restringida de forma excessiva, aponta para a violação de pilares elementares do constitucionalismo, passando a conflitar com a própria evolução civilizatória. Em cada época mudam os desafios em face de novos riscos. Aos operadores jurídicos cabe a complexa tarefa de mensurar as ameaças, na busca de parâmetros equilibrados e seguros, aptos a definir os contornos aceitáveis do exercício das liberdades individuais e coletivas. A defesa da democracia defensiva não pode se tornar cega ao ponto de subverter a sua própria razão de ser. Ela só deve ser empregada para conter aqueles que, de forma clara, agem como inimigos de uma ordem fundamental livre e democrática. São estes que devem ter as suas opiniões excluídas do confronto público. A aplicação demasiada da democracia defensiva tende a gerar os mesmos males que ela própria se volta a combater. Christ aponta alguns parâmetros que contribuem para o controle de excessos. 1. A democracia defensiva só pode ser empregada para proteger princípios básicos centrais indispensáveis ao Estado constitucional liberal. 2. É necessário que exista um limiar mais elevado de risco a partir do qual os instrumentos são aplicados. 3. A maioria dos instrumentos fica sob o manejo exclusivo do Tribunal Constitucional. 4. Os instrumentos da democracia defensiva devem estar claramente definidos no que tange os seus efeitos jurídicos, de modo a combater o arbítrio. A compreensão destes parâmetros é fundamental para que não se caia no que se costuma denominar de declive escorregadio. Boas intenções podem ser perigosas quando manejadas sem cuidados mínimos. Bons remédios, quando ministrados fora da dosagem recomendada, equiparam-se ao veneno que querem neutralizar. Os instrumentos da democracia defensiva voltam-se a combater o uso abusivo das liberdades, visando a resguardar bens caros à ordem constitucional. Uma resposta à noção deturpada de democracia, que de forma manifesta relativiza os valores da Constituição, ao ponto de esvaziar seu conteúdo. As medidas devem estar limitadas à proteção de princípios fundamentais elementares, indispensáveis à manutenção de uma ordem fundamental livre e democrática. Christ lembra que o TCF, desde o início de sua atuação, buscou determinar quais seriam os conteúdos mais sensíveis desta ordem. Destacam-se duas decisões históricas do tribunal, relacionadas ao tema da proibição do funcionamento de partidos políticos, aspecto que é previsto na Lei Fundamental alemã (art. 21, II, 2), mas raramente utilizado. Até hoje, somente dois requerimentos desta natureza na Alemanha obtiveram êxito junto ao TCF, ambos na década de 1950. O primeiro partido que teve o seu funcionamento proibido pelo TCF foi o Partido Socialista do Reich - SRP (Sozialistische Reichspartei), por força de decisão tomada no ano de 1952.4 O segundo foi Partido Comunista da Alemanha - KPD (Kommunistische Partei Deutschlands), no ano de 1956.5 Em ambos os casos, com o contexto histórico então vigente, o TCF visualizou a excepcional possibilidade de proibir a atuação destes partidos a partir da noção de ordem fundamental. A ordem que, excluindo qualquer forma de dominação arbitrária e violenta, representa um Estado de Direito baseado na autodeterminação do povo, conforme a vontade da respectiva maioria, na liberdade e na igualdade. Desde então, ligou-se a noção de ordem fundamental livre e democrática à manutenção da dignidade humana como valor supremo, à qual se somam os direitos fundamentais, principalmente o direito à vida e ao livre desenvolvimento da personalidade. Integram, também, a base da ordem fundamental a soberania popular, a separação dos poderes, a responsabilidade do governo, a legalidade da Administração Pública, a independência dos tribunais, o pluripartidarismo e a igualdade de chances para todos os partidos políticos, com o direito à formação nos moldes constitucionais e ao exercício de uma oposição. Da mesma forma, o princípio democrático é parte integrante da ordem fundamental livre e democrática e, assim, um bem tutelado pela democracia defensiva. É ele que garante ao cidadão o direito de escolher seus representantes, de forma pessoal e objetiva, por meio de eleições livres e igualitárias. Imprescindíveis a um sistema democrático são a participação igualitária de todos os cidadãos no processo de formação da vontade política e a responsabilidade do poder público perante o povo. Por fim, a vinculação dos poderes estatais à lei e ao direito, o controle dessa vinculação por tribunais independentes e o monopólio estatal do poder também integram a ordem fundamental livre e democrática. Todos estes princípios e garantias são bens tutelados pela doutrina da democracia defensiva. A sua incondicional proteção justifica a prática de restrições à liberdade. A ideia se volta ao combate de uma animosidade constitucional organizada (organisierte Verfassungsfeindschaft), servindo de proteção constitucional preventiva.6 Portanto, é a noção de ordem fundamental que parece pautar os limites do emprego da teoria da democracia defensiva, a partir da eleição de um rol de bens constitucionais, dignos de proteção. Até aí, nada está dito quanto à configuração de ações concretas capazes de ameaçar, efetivamente, esta ordem. Vale dizer, qual é o grau de risco concreto que justifica a restrição de liberdades constitucionalmente asseguradas? Não se pode dissociar o emprego dos instrumentos da democracia defensiva à noção de risco efetivo, sob pena de um instrumento idealizado para salvaguardar a liberdade se tornar seu algoz. Estes instrumentos podem se constituir em uma das armas mais afiadas - e de dois gumes - do Estado democrático de direito contra os seus inimigos organizados. Destinam-se a combater os riscos que emanam da existência de grupos com tendências anticonstitucionais e as suas típicas possibilidades de ação associativa.7 Um ponto que leva à reflexão, de que a mera lógica de combater abusos não pode justificar a prática de outros tipos de excessos. Encontrar o ponto de equilíbrio no emprego das liberdades, a partir de diferentes visões de mundo e ideológicas, se constitui um dos temas mais difíceis para a democracia contemporânea. Um dilema que só será resolvido quando as instituições democráticas, cientes de seus deveres republicanos, se pautarem pelos limites conferidos pela própria ordem que devem defender. Do contrário, teremos omissão ou a lógica do arbítrio. __________ 1 Ciclo de palestras organizado pela Embaixada da Alemanha e pelo Fórum Juridico Brasil-Alemanha, coordenado por Karina Nunes Fritz.  2 Disponível aqui. 3 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 33. 4 BVerfGE 2, 1 5 BVerfGE 5, 85. 6 Schlaich, Klaus; Korioth, Stefan. Das Bundesverfassungsgericht. Stellung, Verfahren, Entscheidungen. Ein Studienbuch. 8 Auf. München: Beck, 2010, Rdn. 340. 7 BVerfGE 144, 20 (.º1 item da ementa).
No dia 16/8/2023, o juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão (TCF), Dr. Josef Christ, proferiu uma palestra no TSE sobre o tema da democracia defensiva,1 organizada pelo Fórum Jurídico Brasil-Alemanha.2 O assunto é atual e desperta diferentes perspectivas, em cenários nos quais condutas extremistas de todos os tipos crescem. A pergunta central proferida pelo magistrado alemão na conferência foi: pode o Estado garantir liberdade aos inimigos da liberdade? Ela foi descrita como um verdadeiro dilema que as democracias livres enfrentam ao redor do mundo. Christ iniciou o seu pronunciamento com uma manifestação que para muitos é surpreendente. Segundo a jurisprudência do TCF, a liberdade de expressão também pode ser invocada por aqueles que rejeitam valores fundamentais da Constituição. Uma das linhas construídas pela jurisprudência protege opiniões que visam à extinção da democracia liberal, desde que manifestadas pacificamente. Uma construção que se ampara na crença do livre embate de ideias como a arma mais eficaz contra a disseminação de ideologias totalitárias. Ou seja, desde que afastados meios agressivos combativos, a liberdade de se expressar proporciona uma ampla esfera de proteção. Todavia, Christ pondera que esta visão somente faz sentido quando a Constituição se mostra capaz de desenvolver instrumentos aptos a proteger a liberdade contra os inimigos da liberdade. Uma ideia nitidamente baseada na noção de riscos, pois se por um lado a liberdade pode servir para aniquilar a própria liberdade, por outro a sua contenção demasiada pode chegar ao mesmo resultado. Ciente desta realidade, Christ define a teoria da democracia defensiva a partir das seguintes observações. A ordem estatal prevista na Constituição parte do pressuposto de que a democracia, a liberdade e o estado de direito devem estar permanentemente garantidos e protegidos. Este pressuposto justifica o fato de que a Constituição não pode conceder liberdades para extinguir a ordem constitucional. Destaca-se o argumento de que o exercício da liberdade não pode se tornar um risco para a própria liberdade. A ideia inerente ao conceito de democracia defensiva é que não se pode tolerar condutas que visam a ameaçar, prejudicar, destruir a ordem constitucional ou a existência do próprio Estado. Trata-se da consolidação de um princípio que, segundo o TCF, deriva da expressão da vontade político constitucional consciente de solucionar um problema típico das democracias: como tolerar diferentes concepções políticas e o compromisso com valores fundamentais tidos como invioláveis em um Estado de direito? Nesta perspectiva, a necessidade de proteção deve agir frente aos ataques advindos do próprio Estado, como também por parte da sociedade. Algo semelhante a uma proteção multidirecional, típica das concepções de eficácia vertical e horizontal dos direitos fundamentais.3 Foi destacado que a Alemanha, em particular, tem razões histórias claras para o desenvolvimento de uma teoria da democracia defensiva. Assume destaque a dolorosa experiência em torno da violação dos princípios mais elementares da existência humana durante o período de terror imposto pelo regime nacional-socialista. Foi esta terrível experiência que levou à construção de uma institucionalidade voltada à limitação do poder, com parâmetro na garantia de inúmeros direitos fundamentais. Um dos pontos altos da palestra foi a observação de que é difícil entender os limites da democracia defensiva sem que se olhe para o passado. Christ apontou que a República de Weimar serviu de contraste para a promulgação da Lei Fundamental de 1949. Aquele modelo fora construído a partir de uma noção positivista, que se vinculava muito mais ao método jurídico, do que para seus objetivos centrais. E foi exatamente a aplicação deturpada de um método que, ao se impor, levou à quebra dos pilares elementares à civilização. O resultado foi a construção de uma democracia frágil, que relativizada valores. Os intérpretes da Constituição de Weimar partiam do pressuposto de que uma democracia, para permanecer fiel a si mesma, também deveria tolerar movimentos voltados à destruição da própria democracia. "Era preciso permanecer fiel à sua bandeira, ainda que o navio afundasse". Uma estratégia perigosa, que não foi capaz de resistir aos anseios totalitários. Uma concepção de Estado presa a um relativismo axiológico, aliada à ausência de proteção perante maiorias parlamentares antidemocráticas, no bojo de uma Constituição flexível, levou, naquele momento histórico, a uma erosão do tecido constitucional. Na época, vigorava a noção, baseada na doutrina de Gerhard Anschütz, de que a Constituição não estaria acima do Poder Legislativo, mas à sua disposição. Algo que, segundo Christ, estaria sofrendo uma espécie de reedição em vários países, por força de movimentos políticos que visam a afrouxar a densidade do controle exercido pelos tribunais constitucionais no interesse de uma suposta vontade popular. Percebe-se que a partir da história vivida, projeta-se um arcabouço de concepções voltadas ao presente. Um aspecto sensível, quando se leva em conta que, por vezes, os próprios tribunais constitucionais também contribuem para desestabilizar os sistemas democráticos, quando se deixam pautar por condutas ativistas em grau incompatível com a separação dos poderes. Um tema, aliás, muito debatido entre nós. Feita esta observação, retomo o ponto central levantado por Christ: como é possível se proteger contra abusos praticados em nome de uma democracia defensiva? Dependendo da forma como se emprega a noção de democracia defensiva, pode surgir uma restrição desproporcional à liberdade de expressão e a outros relevantes direitos fundamentais ligados à própria noção de liberdade. O risco é a exclusão de determinados pontos de vista que são apresentados no marco de possíveis soluções para os problemas institucionais. Portanto, a própria noção de democracia defensiva não está livre de abusos e deturpações. Eles ocorrem, particularmente, quando a teoria é empregada para combater adversários políticos ou críticas indesejadas. Um fenômeno comum em um universo de narrativas votadas à disseminação de visões parciais de fatos, muitos deles com propósitos tão ou mais obscuros do que aqueles que aparentemente visam a combater. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019.
Oliver Wendell Holmes, um dos juízes mais célebres que passou pela Suprema Corte Norte-americana, afirmou: "quando os ignorantes são ensinados a duvidar, eles não sabem no que podem acreditar com segurança. E me parece que neste momento precisamos mais de educação no claro do que de investigação do obscuro".1 Enquanto a qualificação da representação política não for o foco do sistema eleitoral, não se avança. A democracia é um regime de governo que parece estar sempre posta à prova. A dura tarefa de zelar pela manutenção das instituições democráticas fica dificultada quando as próprias instituições deixam de cumprir satisfatoriamente o seu papel. Na calada da noite do dia 14/06/2023, em votação relâmpago, a Câmara dos Deputados aprovou o PL 2.720/2023, que criminaliza a recusa, por parte de instituições financeiras, de abertura ou manutenção de contas e concessão de crédito em favor de pessoas politicamente expostas, denominadas de PEPs.2 O PL será remetido ao Senado, para deliberação. Um olhar atento sobre o projeto ajuda a compreender o senso de distanciamento da realidade por parte da classe política. A versão aprovada pela Câmara prevê que detentores de altos cargos nos três poderes, parentes e até mesmo pessoas ligadas a estas autoridades, não podem ser discriminados por instituições financeiras pelo fato de responderem a processos ou investigações diversas. A pena prevista será de reclusão de 2 a 4 anos e multa para quem negar, imotivadamente, a abertura de conta, sua manutenção ou a concessão de crédito. O raio de proteção não poderia ter sido maior. A partir das PEPs são alcançadas as pessoas jurídicas das quais elas participam, os familiares até o segundo grau e os seus estreitos colaboradores. Isto mesmo, colaborar estreitamente com uma pessoa politicamente exposta garante proteção extra contra discriminação. Como a definição de PEPs é muito ampla, já que parte do Chefe de Estado e de Governo, passando por oficiais generais, políticos diversos, membros do Judiciário, Tribunal de Contas e do Ministério Público, diretores de entidades da administração indireta, até chegar nos vereadores, torna-se difícil fazer uma estimativa, mesmo que aproximada, do total de beneficiados. Para a identificação das PEPs deverá ser consultado o Cadastro Nacional de Pessoas Expostas Politicamente (CNPEP), disponível no Portal da Transparência3. Ao ponto. Toda discriminação tem que ser combatida. O fato de ser político ou detentor de alto cargo na República não significa que possa ser discriminado. A questão é a contradição, que vem escancarada na exposição de motivos do PL aprovado pela Câmara. Lá consta que a discriminação se apresenta como uma nefasta realidade que tem permeado as diversas esferas da sociedade, gerando prejuízos e inegáveis violações aos direitos e garantias fundamentais previstos na Constituição. Menciona, ainda, que o preconceito, que se origina de conclusões negativas e intolerâncias injustificáveis quanto a certo conjunto de indivíduos, tem potencial lesivo, pois viola direitos humanos.4 Abstratamente, difícil discordar. A pergunta que fica é: por que a mesma Câmara dos Deputados, ora tão preocupada com o preconceito das PEPs, reluta em defender parcelas muito mais vulneráveis da sociedade? Por que até hoje não tratou de aprovar um PL que criminaliza a homofobia e a homotransfobia? Quantas medidas legislativas poderiam ser tomadas para combater, por exemplo, o racismo estrutural na sociedade, a discriminação contra mulheres, idosos, pessoas com deficiência ou os povos originários? Ou quem sabe, por que não se aprova o fim de inúmeras regalias e supersalários, que por serem custeados pelos cofres públicos em benefício de quem já é mais favorecido, acabam por prejudicar - discriminar - quem é menos? Sem prejuízo de tantos outros exemplos que poderiam ser trazidos, a verdade vem à tona. O PL das PEPs nada mais é do que a expressão da velha tática de autoproteção. Uma blindagem, que escancara a fragilidade da República. Ao se colocar políticos e detentores de altos cargos públicos, juntamente com as pessoas próximas que lhes cercam, em patamar de vulnerabilidade semelhante ao de parcelas sofridas da população, escancara-se não apenas a falta de razoabilidade, como também a de empatia social. Mais um entre tantos privilégios que nos afastam da noção republicana, ofuscando o senso elementar de que o arbítrio desconhece e desafia o direito5. O quadro se agrava quando se leva em conta a prática de reiteradas omissões legislativas de natureza afirmativa em favor de quem, de fato, é vulnerável. Rui Barbosa, na célebre Oração aos Moços, pontuou: "vulgar é o ler, raro o refletir"6. Não se torna, a golpes de legislação, vulnerável quem não é, exceto quando o tema é a autoproteção. Quando se cria uma pseudofragilidade das PEPs abrem-se espaços para se relativizar quaisquer situações. O recurso excessivo para o que venha a ser preconceito encurta o caminho para a banalização e, consequentemente, para um déficit de proteção. Dito de outro modo: ao se focar no que não é, não se enxerga o que é. Enquanto o Brasil não adotar um sistema eleitoral distrital, que aproxime, efetivamente, o eleitor do eleito, com a possibilidade de recall, nas hipóteses de distanciamento de compromissos éticos mínimos, dificilmente nos livraremos destas e de outras tantas blindagens. Até lá, bem que se poderia criar a figura do eleitor politicamente exposto - EPEs. Seria, ao menos, um consolo. __________ 1 HOMES, Oliver Wendell Jr. The Essential Holmes. Selections from the Letters, Speeches, Judicial Opinions, and Other Writings of Oliver Wendell Holmes, Jr. Chicago and London: University of Chicago Press, 1996, p. 146. "When the ignorant are taught to doubt they do not know what they safely may believe. And it seems to me that at this time we need education in the obvious more than investigation of the obscure". 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 CIRNE Lima, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 111. 6  Disponível aqui.
sexta-feira, 2 de junho de 2023

Presidencialismo de joelhos

A crise na aprovação da medida provisória (MP 1.154/2023) que definiu a organização dos Ministérios do Governo Lula1 é o retrato da falência do sistema presidencialista de governo. A MP previa 31 ministérios, além de seis órgãos com status de ministério, totalizando 37 ministros. A Câmara dos Deputados introduziu modificações no organograma ministerial definido pelo Poder Executivo, em particular na pasta responsável pelo meio ambiente, que teve suas competências esvaziadas. Parte das competências originalmente previstas pelo governo foram realocadas para outras pastas. O COAF, unidade de inteligência para prevenção e combate à lavagem de dinheiro e à corrupção, originalmente incorporado ao Ministério da Fazenda, que a partir de agora deverá retornar à alçada do Banco Central. A vigência da MP encerraria no final do dia 01/06/2023. A Câmara dos Deputados aprovou o texto no dia 31/05/2023, obrigando o Senado, horas depois, a converter a MP em lei, de forma relâmpago, no último dia do prazo, sob pena de comprometer a estrutura ministerial. Ao ponto, pois. Como um sistema de governo pode funcionar a contento, quando o Presidente da República eleito não dispõe, sequer, do poder de decidir com quantos ministérios quer governar? Dito de outro modo: o sistema político vigente permite a eleição de um chefe de governo que não tem poder para estabelecer, por conta própria, a estrutura do seu ministério, já que tal decisão toca, em última análise, ao Congresso Nacional. Trata-se de debilidade - ou incoerência - considerando que a Constituição Federal prevê que o Poder Executivo é exercido pelo Presidente da República, auxiliado pelos Ministros de Estado (art. 76 CF) e que, dentre as tarefas dos Ministros, está a de praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente (art. 87, § único, IV CF). Os ministérios são órgãos de assessoramento direto da Presidência da República. Isso faz com que uma relação de confiança com o chefe do Executivo seja fundamental na boa condução dos trabalhos. A extensão da relação de confiança resta subtraída pelo Congresso Nacional, que pode decidir, soberanamente, o número de pastas e o tipo de atribuições que cada uma deve possuir. Apesar de o Presidente da República ser o chefe da Administração federal, quem determina a sua extensão, e até mesmo pormenores de competências, é o Poder Legislativo. Pode-se até não concordar com decisões do governo do dia, isto faz parte da democracia. Contudo, impedir que um governo democraticamente eleito decida com quantas pastas quer governar, bem como as atribuições de cada uma, parece incompatível, em demasia, com a chefia da Administração. Temos, de verdade, um sistema presidencialista de governo? Ao menos um que funcione? Há muito se percebe que o presidencialismo brasileiro está coberto de disfuncionalidades. A começar pelo fato de que a pessoa que é eleita Presidente da República não conta com maioria política para governar. Elege-se o(a) Presidente da República, cujo partido não possui maioria nas Casas Legislativas para levar à frente o seu programa de governo. Surge um nó muito difícil de desatar. O sistema político ancorado na Constituição não garante ao eleito boas chances de governabilidade dentro de uma conjuntura de estabilidade política. A Constituição atribui ao Presidente da República a Chefia de Governo (juntamente com as Chefias de Estado e da Administração) ao mesmo tempo em que confere ao Congresso Nacional o poder para aprovar, reprovar ou até mesmo bloquear grande parte dos projetos de governo, bem como os assuntos mais relevantes para o país. Na prática, o Poder Legislativo tem enorme primazia de decisão em relação ao Executivo. Os cidadãos são levados a acreditar que o poder de decisão e influência do Presidente da República nas grandes questões nacionais é muito maior do que, de fato, é. O motivo que leva a esta má percepção é que, inegavelmente, por força da configuração político-institucional vigente, cabem aos Deputados e Senadores as decisões sobre a maior parte dos assuntos relevantes para o país. A questão que se coloca é: como se governa sem apoio político majoritário no Congresso Nacional? A resposta, do ponto de vista pragmático, é a seguinte: neste disfuncional sistema, ou se compra apoio político majoritário ou não se governa. O que varia é a moeda de troca. As mais comuns, para ficar dentro do quadro da aparente institucionalidade, são o loteamento dos milhares de cargos na Administração e a irracional concessão de ementas parlamentares em troca de um apoio político volátil e transitório. Não é por menos que os órgãos e imprensa, na questão da crise da referida MP, noticiaram: em apenas um dia, o governo liberou R$ 1,7 bilhão de reais em emendas parlamentares, cujos valores foram empenhados quando havia a expectativa de votar a MP que reorganiza os Ministérios. Detalhe: grande parte dessa verba foi para os partidos do chamado Centrão.2 Daí o título desta coluna: presidencialismo de joelhos. Ou cede, ou não governa. Para alguns, isto faz parte da democracia. Para outros, dentre os quais eu me incluo, representa grande disfunção, já que a governabilidade fica à mercê de práticas contrárias ao interesse público, normalizando a irracionalidade do emprego de verbas escassas e extremamente relevantes para o desenvolvimento nacional. Em um Estado democrático de direito o exercício do poder só se legitima quando dirigido à obtenção dos fins, que justificam as atribuições de competência no marco da Constituição.3 Daí se compreende que um sistema de governo não é um fim em si mesmo, já que a sua manutenção deve estar orientada ao bem comum e à realização dos objetivos constitucionais permanentes. Vale dizer, o arbítrio desconhece e desafia o direito.4 O presidencialismo de coalizão, na clássica expressão cunhada por Sérgio Abranches5, está falido. Grande parte das pessoas que apoia o sistema repousa na figura mística do ser presidencial. A autoridade que veste a faixa, que toma posse em carro aberto, que discursa à nação. A defesa de um sistema, quando fica preponderantemente orientada aos atributos pessoais de quem o exerce, passa a se tornar irracional. Nunca é demais lembrar que uma Constituição não é apenas uma compilação de regras, por meio das quais os órgãos estatais se relacionam. Ela é, em primeiro lugar, o autoentendimento de um povo acerca de sua existência política e a afirmação dos traços essenciais da ordem social.6 Está na hora de compreender que a governabilidade passa, inegavelmente, pelo Legislativo, de modo que as instituições democráticas que levam à construção do Congresso Nacional devem ser objeto de grande esforço de aprimoramento. Várias são as instituições que podem potencializar ou desfigurar os sistemas de governo. Não há como negar que os mecanismos de solução de crises no presidencialismo são muito complexos, já que as crises se retroalimentam pela lógica do próprio sistema. Um quadro de dilemas permanentes, que ameaçam o próprio Estado. Urge a implantação de um novo sistema de governo, apto a funcionar com base na realidade parlamentar brasileira. Voltado à funcionalidade, com características que permitam governar, com mais eficiência, livre do clientelismo político. Neste quadro, blindar a Administração contra o loteamento de cargos públicos é medida irrenunciável, bem como a racionalização do emprego do orçamento público, oposta à sistemática atual de distribuição de emendas parlamentares no varejo. Somente instituições políticas bem configuradas são capazes de sufocar as más práticas, ao passo que o inverso as potencializa. Vamos debater o parlamentarismo ou o semipresidencialismo, cientes de que o atual modelo não mais se mostra suportável. É isso, ou seguir levando todos os Presidentes a se ajoelharem perante o Congresso, até mesmo para escolher com quantos ministérios querem governar. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 SUNDFELD, Carlos Ari. Fundamentos de Direito Público. 3 ed. São Paulo: Malheiros, 1998, p. 151. 4 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 111. 5 ABRANCHES, Sérgio Henrique Hudson de. Presidencialismo de Coalizão: O Dilema Institucional Brasileiro. Revista de Ciências Sociais, Rio de Janeiro, vol. 31, n. 1, 1988, p. 5ss. 6 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik. Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 51.
Caio Tácito, em escrito de 1959, advertia: o equilíbrio e a estabilidade socais dependem, cada vez mais, da eficiência e moralidade da administração pública, cujas repercussões atingem, constantemente, os interesses de toda a sociedade1. A frase não merece retoques. A União Europeia deu um importante passo para regulamentar e conter o poder das plataformas digitais. O Regulamento de Serviços Digitais (RSD), publicado no dia 25/04/2023, passa a listar um conjunto de plataformas digitais2 e de serviços de busca na internet3 que passam a se submeter a uma rígida regulamentação. A ideia é reduzir o risco sistêmico de utilização destes serviços, inclusive por meio da moderação de conteúdos. Inicialmente, o alvo da medida são os serviços que contam, anualmente, com mais de 45 milhões de usuários dentro da totalidade dos 27 países que compõem a União Europeia4. A regulamentação está inserida no marco de um amplo pacote legislativo que visa criar um espaço digital seguro, com foco no respeito aos direitos fundamentais dos usuários e na criação de condições de operação equitativas para que as empresas possam promover a inovação, o crescimento e a competitividade, não apenas na Europa, como também em nível mundial5. A matéria é tratada sob a perspectiva de serviços e mercados digitais, em que dois diplomas legais se destacam. O primeiro é o ato legislativo sobre os serviços digitais (DSA)6 e o segundo é ato legislativo para o mercado digital (DMA)7. Na sequência da sua designação, as empresas terão um prazo de quatro meses (portanto, até 25/08/2023) para cumprir, na íntegra, o pacote das novas obrigações definidas pelo RSD. E não são poucas. Ganha destaque uma série de obrigações, como a de expor algoritmos aos órgãos reguladores - a "caixa preta" das empresas de tecnologia -, auditorias anuais e o dever de tomar providências voltadas a incrementar a transparência na política de publicidade dirigida aos usuários. Dentre as medidas, destacam-se8: 1. Maior capacitação dos usuários: Os usuários obterão informações claras sobre as razões subjacentes à recomendação de determinados conteúdos e terão o direito de se autoexcluírem dos sistemas de recomendação, com base na definição de perfis. Os usuários devem poder denunciar facilmente conteúdos ilegais e as plataformas têm que tratar essas denúncias de forma diligente. Os anúncios publicitários exibidos não podem basear-se em dados sensíveis do usuário. Segundo o Regulamento Geral de Proteção de Dados (RGPD) vigente na União Europeia, dados sensíveis abarcam informações pessoais que revelem a origem racial ou étnica, opiniões políticas e convicções religiosas ou filosóficas, filiação sindical; dados genéticos, dados biométricos tratados simplesmente para identificar um ser humano; dados de saúde, de vida sexual ou, ainda, da orientação sexual da pessoa9. Identificar todos os anúncios e informar os usuários sobre quem os promovem. Fornecer um resumo dos seus termos e condições, facilmente compreensíveis e em linguagem simples, nas línguas dos países em que operam. 2. Forte proteção dos menores de idade: As plataformas terão de rever a concepção dos seus sistemas para garantir um nível elevado de privacidade, segurança e proteção dos menores. A publicidade direcionada com base na definição de perfis deixa de ser permitida no caso das crianças. Fornecer às autoridades estimativas de riscos especiais, inclusive no que diz respeito aos efeitos negativos na saúde mental deste grupo de usuários. Rever a concepção dos seus serviços, incluindo em suas interfaces recomendações, termos e condições, a fim de atenuar estes riscos. 3. Moderação de conteúdo mais diligente, com menos desinformação: As plataformas e os motores de pesquisa devem tomar medidas para fazer frente aos riscos associados à transmissão de conteúdos ilegais e aos efeitos negativos na liberdade de expressão e de acesso à informação. Dispor de termos e condições claros e aplicá-los de forma diligente e não arbitrária. Adotar um mecanismo que permita aos usuários sinalizar conteúdos ilegais e, ao receber as notificações, devem agir de forma ágil. Analisar os seus riscos específicos e adotar medidas de atenuação. No combate à desinformação, devem dispor de mecanismos que evitem o emprego inautêntico dos seus serviços, como, por exemplo, por meio de robôs. 4. Maior transparência e responsabilização: As plataformas devem assegurar que suas estimativas de riscos e sua conformidade com todas as obrigações do RSD sejam objeto de auditorias externas e independentes. Facultar aos investigadores acesso aos dados publicamente disponíveis. Publicar repositórios de todos os anúncios exibidos em sua interface. Publicar relatório de transparência sobre as decisões de moderação de conteúdo e de gerenciamento dos riscos. Uma das medidas que gera grande expectativa dos usuários e órgãos reguladores diz respeito ao que se costuma denominar de governança algorítmica. Algoritmos são o "cérebro" das plataformas digitais. São eles que tomam as decisões de qual informação chega até nós, quem se conecta com quem e, dependendo da forma como são programados, podem direcionar conteúdos e gerar informações de forma preconceituosa, apta a violar inúmeros direitos fundamentais. Para fazer cumprir o pacote legislativo, foi criado o Centro Europeu de Transparência Algorítmica (ECAT)10, que será composto por uma equipe interdisciplinar de cientistas de dados, especialistas em inteligência artificial, cientistas sociais e juristas. A função deste centro é fornecer à Comissão Europeia conhecimentos técnicos e científicos para garantir que os sistemas algorítmicos utilizados pelas empresas digitais com grande número de usuários cumpram os requisitos de gestão, mitigação e transparência de riscos previstos na legislação europeia. A sua atuação será decisiva para diminuir a discricionariedade das plataformas digitais, que é considerado o calcanhar de Aquiles da regulação. Dentre as competências, situa-se a realização de análises técnicas dos algoritmos, visando a avaliar o seu funcionamento, de modo a formar conhecimento que embase melhores práticas para mitigar riscos. Fala-se na criação de um ecossistema de aplicação digital, reunindo experiências de vários setores relevantes. É inegável que a Europa avança com velocidade por meio de regulamentos que tocam em pontos sensíveis do modelo de negócios das big techs. É muito cedo para saber se as gigantes do mundo digital irão, de fato, se curvar aos regulamentos, pressionar por suavizações, ou até mesmo abandonar o mercado europeu. É fácil perceber que a União Europeia está muito à frente do Brasil em matéria de regulação e prevenção de riscos no ambiente digital. Muitas das prognoses feitas pelos europeus não são sequer objeto de consideração pelas autoridades brasileiras. Isso não significa que os esforços legislativos europeus conduzirão, necessariamente, a um mercado seguro, isento de preocupações. Contudo, o simples fato de compreender que as plataformas digitais não mais podem atuar em um espaço sem regulamentação e que devem assumir responsabilidades na exata proporção dos riscos que geram, representa um grande avanço. O tempo e a experiência hão de revelar as correções necessárias, sobretudo em face da interpretação de conceitos vagos. Eis o grande desafio: como interpretar expressões como riscos especiais, efeitos negativos, forma diligente e não arbitrária e a própria noção de desinformação? Um dos maiores problemas de se trabalhar com conceitos abstratos, passíveis de preenchimento valorativo, é que eles passam a fomentar o que se costuma denominar de voluntarismo dos órgãos de controle. A tarefa regulatória consiste em promover um ambiente de regulação que não seja um fim em si mesmo, mas sim um instrumento para se transitar com segurança no mundo digital, em que a transparência se afirme como o grande vetor de atuação dos atores envolvidos. Ao Brasil cabe se livrar da imaturidade política e estudar, tecnicamente, a iniciativa europeia. Não para copiá-la cegamente, mas para verificar em que medida pode inspirar o nosso modelo regulatório, na busca de algo que deveria unir a todos os povos: a defesa dos direitos fundamentais das partes envolvidas. __________ 1 TÁCITO, Caio. O abuso de poder administrativo no Brasil. (Conceito e Remédios). Rio de Janeiro: Instituto Brasileiro de Ciências Administrativas, 1959, p. 11. 2 Alibaba AliExpress, Loja Amazon, AppStore da Apple, Booking.com, Facebook, Google Play, Google Maps, Google Shopping, Instagram, LinkedIn, Pinterest, Snapchat, TikTok, Twitter, Wikipédia, YouTube e Zalando. 3 Bing e Google. 4 Disponível aqui. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui. 7 Disponível aqui. 8 Disponível aqui.  9 Disponível aqui.   10 Disponível aqui.  
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, uma série de direitos de grande envergadura, que incluem a proteção da vida e contra qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. A previsão consta, expressamente, no art. 227 da Constituição Federal. Fosse este direito respeitado, seria difícil encontrar outro lugar melhor para viver, considerando a beleza da sua construção. Infelizmente, como costuma ocorrer com outras normas constitucionais relevantes, a proteção das crianças e adolescentes trava na falência de políticas públicas, na eleição de outras prioridades e na omissão reiterada das autoridades. A onda de violência praticada em creches e escolas pelo país deveria servir de alerta para repensarmos muitas coisas. A começar pelo respeito à Constituição. Em nenhuma outra passagem o texto constitucional emprega a expressão "absoluta prioridade". Somente o faz, quando se ocupa da proteção deste grupo vulnerável: crianças, adolescentes e jovens. Isto tem enorme significado para a definição e correção das políticas públicas, bem como para a responsabilização dos que negligenciam tal dever. Ela não pode ser interpretada como mero conselho ou intenção. Trata-se de comando imperativo, apto a gerar consequências. Significa que, ao menos sob o prisma constitucional, o agir dos poderes públicos deve convergir, em primeiro lugar, para a proteção deste grupo. Os crimes que vêm ocorrendo nas escolas brasileiras atestam, infelizmente, que a absoluta prioridade não passa de uma folha de papel, no sentido de uma autêntica concepção sociológica de Constituição, que cede aos fatores reais de poder na sociedade1. Há que se mudar, imediatamente, o quadro. Não há como manter o marco civilizatório às margens da Constituição. Ignorar o pacto constitucional implica se afastar do porto seguro, onde a instituição e o exercício do poder são regulamentados e contidos2. Estamos diante de um, dentre vários exemplos, de negligência de um dever de proteção estatal de máxima hierarquia. Um dos recortes que o tema permite diz respeito à necessidade de regulamentar as redes sociais, de forma a prevenir violência nas escolas. Poucos temas são tão complexos, do ponto de vista dos limites à liberdade de ação geral, como os que dizem respeito à liberdade de expressão e às condições de seu exercício. Não é por menos que situações que envolvem desinformação, controle de redes sociais etc., são objeto de grandes polêmicas, em vários países. A preciosidade dos bens envolvidos - crianças, adolescentes e jovens - obriga a construção de um sério debate acerca dos limites que devem ser impostos aos territórios virtuais. Um debate que não pode ser consumido em si mesmo, que deve resultar em ações concretas, de natureza preventiva e repressiva. Não se ignora que o calor da emoção, após vivenciarmos tragédias como a de Blumenau/SC, costuma ser contraprodutivo na busca de boas soluções. Todavia, ignorar as dificuldades não significa que não existam. O constitucionalismo liberal ensina que a regra é a liberdade, fruto de grandes lutas ao longo da história recente da humanidade. Esta mesma história ensina que o agir livre, desprovido de controle, transforma-se em risco coletivo, apto a ameaçar a própria liberdade. Na prática, quanto maior for a relevância dos bens em jogo, tão mais fortes são os argumentos que justificam restrições pontuais às liberdades constitucionalmente asseguradas, como a de expressão e de acesso à informação. Esta realidade legitima a imposição de uma moderação aos operadores de redes sociais e assemelhados, no sentido de programar seus algoritmos a não transmitirem informações cujo conteúdo possa ser classificado, de forma incontroversa, como criminoso. Ela passa, igualmente, por um modelo que combine a reserva de jurisdição (quando a remoção de conteúdos ilícitos depende de ordem judicial) com a autorregulação regulada (quando a remoção pode ser solicitada pelos usuários ou realizada de ofício pelos provedores de aplicações em rede)3. O dever de proteção das crianças, com absoluta prioridade, justifica a adoção de um modelo regulatório no qual manifestações de incitação à violência nas redes sociais, por seu potencial danoso, devem ser removidas, inclusive de ofício, pelas próprias redes sociais4. A combinação de modelos encontra respaldo no fato de que a proteção das crianças não é apenas um dever do Estado, mas, igualmente, da família e de toda a sociedade. Em abril de 2023, o Ministério da Justiça e Segurança Pública publicou uma portaria para evitar que crimes como o de Blumenau sejam incentivados por postagens em redes sociais5. Dentre as obrigações está a previsão de instauração de processos administrativos voltados à apuração de responsabilidades por parte dos operadores das redes, no caso de violação do dever de segurança e de cuidado em face de postagens com conteúdos violentos contra comunidades escolares. Há previsão do dever de divulgação de relatórios de avaliação de riscos sistêmicos sobre propagação de conteúdos ilícitos, além da obrigação de compartilhamento, entre as plataformas e as autoridades policiais, de dados que permitam a identificação do usuário e dos terminais de conexão empregados para a disseminação dos conteúdos ilícitos. Imposição às plataformas do dever de impedirem a criação de novos perfis a partir de endereços de IP, em que já foram detectadas atividades ilegais, danosas e perigosas. Instituição de um banco de dados de conteúdos ilegais voltados à prevenção. Previsão de multas às plataformas em caso de descumprimento das obrigações, que além de conterem somas elevadas, podem implicar suspensão administrativa dos serviços das redes sociais no país. Várias dificuldades se avizinham. A primeira, de ordem formal, é em que medida um ato administrativo como uma portaria pode prever uma série de obrigações que representam intervenções duras no campo de atuação das redes sociais? Intervenções significativas na liberdade requerem reservas legais qualificadas. Deste modo, o ideal seria que tais obrigações estivessem previstas na lei, em sentido formal, tema que atrai as dificuldades inerentes à representação política. Outra é o emprego recorrente, no texto da portaria, de expressões de conteúdo vago e abstrato que, na prática, podem provocar inúmeras dúvidas interpretativas no momento de aplicação do ato normativo, como, por exemplo, "riscos sistêmicos", "extremismo", "efeitos negativos", "apologia", "circunstâncias extraordinárias" etc.6 O tema é polêmico e, certamente, não encontra consensos fáceis. Em assuntos complexos a crítica é sempre a saída mais fácil. Entretanto, o simples fato de as autoridades não silenciarem a respeito, ainda que se divirja da forma como a solução foi por ora proposta, constitui aspecto digno de elogio. Pelos riscos que impõem à coletividade, deixar as mídias sociais fora de qualquer regulamentação não mais se mostra como aceitável. Deve-se debater o tipo de regulação, mas a inexistência não é plausível. Estamos diante de uma nova perspectiva de direito administrativo sancionador, apto a enquadrar os operadores de redes que se abstêm de cumprir o dever constitucional. Um autêntico diálogo das fontes7, que deve unir diferentes âmbitos jurídicos na realização dos valores máximos da ordem constitucional. Como envolve crianças, cujo afeto e sentimento de proteção deve guiar toda a sociedade, acima das clivagens que separam, há que se fazer um esforço para superar divergências, na busca do bem maior. Isto é honrar a expressão constitucional de absoluta prioridade. É fazer a diferença. ____________ 1 LASSALLE, Ferdinand. A Essência da Constituição. 6.ª ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2001, p. 17ss. 2 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik. Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 49. 3 CUEVA, Ricardo Villas Bôas. Alternativas para a remoção de fake News das redes sociais. In: ABBOUD, Georges; NERY JR., Nelson; CAMPOS, Ricardo. Fake News e regulação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018, p. 169ss. 4 HARFF, Graziela; DUQUE, Marcelo Schenk; Discurso de ódio: perspectivas do direito comparado. Revista de Faculdade de Direito da Universidade Federal de Uberlândia, v. 48, nº 2, jul.-dez. 2020, p. 264ss. 5 Disponível aqui. 6 Disponível aqui.  7 Termo inspirado na doutrina de Erik Jayme e Claudia Lima Marques. Vide, MARQUES, Claudia Lima. Contratos no Código de Defesa do Consumidor: o novo regime das relações contratuais. 5.ed. rev., atual. e ampl. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006, p. 690ss.
sexta-feira, 24 de março de 2023

A Lei das Estatais sob ataque no STF - Parte I

O sistema presidencialista de governo, imerso em um cenário hiperpartidário, é avesso à governabilidade. Não há outra forma de governar o Brasil, sem se obter apoio político junto ao Legislativo. Em um cenário de dezenas de agremiações representadas no Congresso Nacional é impossível que um Presidente eleito possua, junto ao seu partido, uma maioria de parlamentares apta a lhe garantir a aprovação dos projetos de interesse do governo. Um velho e insuperável dilema do presidencialismo de coalizão. Ou se formam coalizões políticas, ou o Presidente não governa. O problema sempre foi o preço destas coalizões políticas. Quem acompanha a política sabe que o apoio ao governo do dia não costuma ser dado por simpatia aos projetos, respeito à figura presidencial, ou até mesmo por apego ao interesse público. O apoio costuma ser dado em troca de benesses que a política proporciona. Dentre as mais comuns, emendas parlamentares e a distribuição de cargos na administração pública, tribunais de contas etc. Trata-se de uma cultura corruptora. Empregam-se órgãos públicos como moeda de troca para a governabilidade, em total desrespeito ao interesse público. Esvai-se, assim, a independência da administração1. A máquina administrativa tende a ser inflada, para acobertar os aliados de plantão. O custo desta prática é elevadíssimo. Gasta-se muito para manter uma estrutura desnecessária, em detrimento de setores carentes de investimentos. Ao mesmo tempo, pela falta de capacidade técnica de muitos indicados, a qualidade dos serviços é atingida em cheio. Muitos se aproveitam da permanência temporária em funções de direção, chefia ou assessoramento, para se locupletarem, favorecendo as práticas de improbidade administrativa. O escancaramento do uso da máquina pública por parte de indicações políticas foi tão intenso nos últimos anos, que o próprio Congresso Nacional foi instado a reagir. No ano de 2016, foi aprovada a lei 13.3032, conhecida como Lei das Estatais, que traz uma importantíssima conquista para a sociedade brasileira: o estabelecimento de critérios mais rígidos para as indicações políticas nas empresas que contam com capital público. A lei visou a quebrar o costume de alocação de pessoas sem os mínimos critérios de competência ou idoneidade para atuarem nas estatais, no curso de cargos comissionados. Quando o endurecimento das regras passou a dificultar a obtenção de apoio político, surgiu um conjunto de iniciativas parlamentares voltadas a retomar o status quo ante. Projetos de lei voltados à flexibilização das novas regras3, passando pela tentativa de declarar a inconstitucionalidade das restrições perante o STF. Um destes movimentos foi o ajuizamento da ADI 7.331, proposta pelo PCdoB. Referida ação visa a impugnar o enrijecimento das indicações de natureza política nas estatais. O relator da ação, Min. Ricardo Lewandowski, por meio de decisão monocrática, deferiu medida cautelar voltada a suspender a parte da norma que impede indicações de conselheiros e diretores que sejam titulares de determinados cargos públicos, ou que tenham atuado, nos três anos anteriores, na estrutura decisória de partido político ou na organização e na realização de campanha eleitoral4. Trata-se de grave equívoco, que desconsidera a realidade da política brasileira. O Jornal Estado de São Paulo, em editorial datado de 18/03/2023, intitulado "O STF precisa respeitar a Lei das Estatais", fez uma análise cirúrgica do fato: "Tem horas que o STF se esforça por ser parte do problema, e não da solução". Não há nada na Lei das Estatais que contrarie a Constituição. Pelo contrário, ela realiza os princípios constitucionais da moralidade e da eficiência, em defesa do interesse público. Nos termos da ordem constitucional vigente, o Congresso tem competência para definir critérios e restrições para os cargos nas estatais. É matéria que cabe ao Legislativo decidir. Na ausência de restrições desproporcionais por parte do Legislativo, a interferência do Poder Judiciário configura ativismo judicial, medida equivocada, apta a perturbar a separação dos poderes. No entendimento do Relator, a Lei das Estatais criou discriminações desproporcionais contra pessoas que atuam na esfera governamental ou partidária, sem levar em conta nenhum parâmetro de natureza técnica ou profissional que garanta a boa gestão. O argumento não resiste à melhor análise constitucional. Os parâmetros levados em conta pelo Poder Legislativo derivam de prognoses de natureza política, que impõem ao Poder Judiciário considerável autocontenção no momento de confrontá-las com a Constituição, cujos princípios que tratam da matéria são marcados por vagueza e abstração5. Princípios constitucionais apontam para fins que devem ser alcançados, ou seja, uma direção, de modo a prover um estado ideal de coisas6. Admitem realização em diferentes graus, o que aponta para uma inegável margem de discricionariedade, vale dizer, um juízo de conveniência e oportunidade por parte da esfera política. Assim, a apreciação constitucional do caminho eleito pelo legislador passa a depender do quão acertadas são tais suposições, no que diz respeito a seu real desenvolvimento futuro, no âmbito da regulamentação normativa.7 Como observado no referido editorial, no caso da lei 13.303/2016, foi a própria política quem definiu os limites para a política. Outro argumento empregado para fulminar a lei foi no sentido de que restrições de direitos dessa ordem somente poderiam ser estabelecidas pela própria Constituição. É justamente a Constituição, quando consagra os princípios que devem reger a administração pública, que legitima a intervenção do legislador para proteger a probidade e a eficiência do agir administrativo. É por esta razão que, além da Lei das Estatais, existem outras previsões no ordenamento jurídico que, visando a proteger o patrimônio público, a eficiência e a moralidade administrativa, justificam a prática de restrições à liberdade de profissão. Cite-se, por exemplo, a lei 9.986/2000, que dispõe sobre a gestão de recursos humanos das Agências Reguladoras, que também impõe critérios temporais rígidos, de modo a impedir o aparelhamento político nas respectivas autarquias8. O próprio direito fundamental de liberdade de profissão (art. 5.º XIII CF) é uma típica norma de eficácia contida, no dizer de José Afonso da Silva9, já que condiciona o exercício das profissões às qualificações que a lei estabelecer. Um típico caso de reserva legal qualificada, que autoriza o legislador a impor restrições ao exercício das profissões, sempre que presente risco social. Não há risco social mais evidente, que o nefasto aparelhamento político das estatais, em detrimento do interesse público. Longe de ser uma prognose falsa por parte do legislador, deriva da comprovada experiência dos riscos que as indicações políticas têm causado à máquina administrativa. Voltaremos a este assunto na próxima dinâmica constitucional. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.   3 Disponível aqui.   4 Disponível aqui. 5 DUQUE, Marcelo Schenk. Eficácia Horizontal dos Direitos Fundamentais e Jurisdição Constitucional. 2 ed. revista e ampliada. São Paulo: Editora dos Editores, 2019, p. 238ss. 6 ÁVILA, Humberto. Teoria dos Princípios. Da definição à aplicação dos princípios jurídicos. 12 ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 78. 7 GRIMM, Dieter. Die Verfassung und die Politik: Einsprüche in Störfällen. München: Beck, 2001, p. 207. 8 Lei 9.986/2000, art. 8-A: Art. 8º-A. É vedada a indicação para o Conselho Diretor ou a Diretoria Colegiada: I - de Ministro de Estado, Secretário de Estado, Secretário Municipal, dirigente estatutário de partido político e titular de mandato no Poder Legislativo de qualquer ente da federação, ainda que licenciados dos cargos; (Incluído pela lei 13.848, de 2019). II - de pessoa que tenha atuado, nos últimos 36 (trinta e seis) meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral; (Incluído pela lei 13.848, de 2019). 9 SILVA, José Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 37 ed. São Paulo: Malheiros, p. 260s.
sexta-feira, 10 de março de 2023

Apoio a ditaduras: omitir-se é tomar parte

Em recente reunião do Conselho de Direitos Humanos da ONU, o Brasil se recusou a acompanhar a moção ratificada por mais de 50 nações, em repúdio pela reiterada prática de crimes contra a humanidade, cometidos na Nicarágua pelo regime do ditador Daniel Ortega. Trata-se de grave equívoco cometido pela diplomacia brasileira, certamente orientada, neste sentido, pelo governo. A falta de manifestações contundentes contra o regime nicaraguense por parte do Brasil configura apoio tácito à nefasta ditadura. Ao assim agir, o governo brasileiro silencia frente à prática de crimes humanitários, devidamente relatados e comprovados pela comunidade internacional. É inegável que apoiar ditaturas macula a imagem de qualquer país que pretenda ter protagonismo no cenário externo. Quando um Estado respalda, ainda que de forma velada, regimes ditatoriais, passa a se afastar de um patamar mínimo de civilização, que deve guiar a ação internacional. As feições totalitárias do regime imposto por Daniel Ortega são inquestionáveis e não passam despercebidas pela comunidade internacional, que luta pela preservação dos direitos humanos. A conclusão da ONU é que, para calar opositores, o regime comete crimes contra a humanidade. Vale lembrar que a Nicarágua está nas mãos de um ditador que governa com mão de ferro há pelo menos 16 anos. O quadro é de grave crise institucional e humanitária. É notória a prática de gravíssimas perseguições contra aqueles que discordam do regime. Execuções, prisões arbitrárias, torturas, estupros e até mesmo retirada compulsória de nacionalidade fazem parte do cardápio de graves violações contra os direitos humanos. O mundo assiste a um conjunto de medidas de viés totalitário, patrocinadas pelo Estado, voltadas à perpetuação no poder de um determinado grupo político. Para agravar a situação, o governo Ortega se vale de grupos milicianos armados, de caráter paramilitar, que atuam violentamente contra toda a sorte de opositores. Líderes religiosos, organizações de direitos humanos, observadores internacionais e jornalistas independentes vêm sendo expulsos do país, como forma de calar as suas vozes. Há relatos, inclusive, de confisco de bens de organizações internacionais e de órgãos de imprensa por parte do Estado. Em um país majoritariamente católico, nem mesmo líderes religiosos foram poupados. Vista como inimiga do regime, pelo fato de ter se disposto a mediar o conflito e assumir o papel de proteger as vítimas, a Igreja passou a sofrer forte repressão. Religiosos foram presos e expulsos do país. A celebração de cultos por parte de críticos do regime foi proibida e até mesmo universidades ligadas à Igreja foram fechadas. O poder executivo passou a controlar todos os poderes de Estado. Não mais se cogita de um Judiciário independente. Fica claro que o pequeno país da América Central é vítima de terrorismo de Estado, com a finalidade de minar qualquer oposição política. Suprimir qualquer voz dissidente é a estratégia do regime. A gravidade das ações do governo de Daniel Ortega contra os seus opositores exige uma forte reação por parte de todos aqueles que se dizem protetores dos direitos humanos. Não há espaço para contemporizar, já que não se pode ser flexível ou transigente com tamanhas atrocidades. Infelizmente, muitos daqueles que se dizem defensores dos direitos humanos calam-se em oportunidades cruciais, sobretudo quando determinados ditadores têm laços históricos com ideologias ou líderes que admiram. Uma atitude seletiva, que em nada contribui para a meta de proteção integral da dignidade humana. Falta, aos defensores seletivos dos direitos humanos, a noção elementar de que a única ideologia que move a causa deveria ser aquela que coloca o ser humano no centro das considerações de qualquer pensamento ou ação política. Preferências ou inclinações partidárias devem ser protegidas em qualquer estado de direito, mas não ao ponto de chancelar violações ao bem mais caro à civilização: a dignidade humana. As ideologias políticas de direita e de esquerda podem - e devem - ser compatíveis com o dever de proteção dos direitos humanos. Quando um expoente dessas ideologias se afasta da razoabilidade, deve ser plenamente rechaçado pela comunidade internacional. O fato de Ortega ter uma ligação com líderes mundiais de esquerda não pode servir de justificativa para lhe passar panos quentes. Não é por menos que governos esquerdistas, como os da Colômbia e do Chile, firmaram, ao contrário do Brasil, o documento crítico ao regime. Eis a seletividade que envergonha. Muitos que - com razão - teciam fortes críticas ao governo Bolsonaro, nada falam da omissão do atual governo em relação à tragédia que o povo nicaraguense sofre. Estaríamos diante de categorização seletiva da prática de genocídio, uma nova categoria do direito internacional? Não é possível apenas criticar o totalitarismo praticado por determinado campo e ignorar práticas igualmente nefastas provenientes de outro espectro ideológico. Incoerência, neste caso, é eufemismo. Um agir com servilismo político, no lugar de postura crítica e reflexiva, voltada à perpetuação da cultura humanista e democrática. A omissão de governos em combater ditaduras de estimação costuma ser justificada por meio de argumentos de baixa envergadura técnica. Um deles é o recurso à soberania da nação estrangeira, que atrairia o princípio da não-intervenção. Um Estado não pode invocar soberania para violar direitos humanos. Entendimento contrário coloca qualquer país fora de consensos mínimos que devem guiar o bloco internacional de constitucionalidade. Outro seria a necessidade de se preservar a autodeterminação dos povos. Mais uma vez, um argumento fácil de ser afastado. Quando uma população se vê subjugada pelo poder, torna-se incapaz de resistir à força e à opressão. O corpo social perde as condições mínimas para determinar o seu próprio destino. A proteção da dignidade humana traduz um fim supremo de todo o direito,1 de modo que a sua afirmação como fundamento do Estado2 lhe conduz ao cume do ordenamento jurídico, como conceito-chave na relação entre a pessoa e o Estado.3 É por esta razão que a defesa dos direitos humanos perpassa a delimitação das fronteiras nacionais, traduzindo-se em verdadeiro imperativo para a comunidade internacional. Do ponto de vista das relações internacionais exsurge a figura de um dever de proteção fundamental, que obrigue os Estados que fazem parte de tratados internacionais a não compactuarem com as violações sistemáticas aos direitos humanos. A ordem internacional de inviolabilidade da dignidade humana tem a importante função de rechaçar todo e qualquer comportamento estatal que expresse uma falsa valoração do ser humano, por meio de ações que imponham fins aparentemente mais elevados à custa da própria pessoa.4 A proteção da dignidade humana é o valor jurídico mais elevado da comunidade internacional. Com base neste fundamento, há que se aplicar o conceito de jurisdição universal, que legitima um Estado a investigar e julgar crimes cometidos fora de seu território, ainda que por meio da ação de estrangeiros. A ideia é potencializar as chances de responsabilizar individualmente as autoridades que insistem em violar direitos humanos, ao agir escudadas por instituições corrompidas e dominadas pelo regime. Não é demais lembrar que pelo menos uma das vítimas do regime era brasileira. Trata-se de perspectiva adicional dos deveres de proteção internacionais dos direitos humanos, que obrigam os Estados a garantir justiça para as vítimas. Na prática, a postura de abstenção do governo brasileiro na ONU vai em direção contrária. Falta, à chefia de Estado, clareza no sentido de que contemporizar com ditaturas, ainda que sob o argumento de manter canais abertos de diálogo, implica grave insulto às vítimas de tão cruel regime. Não há como deixar de tecer críticas à postura do Brasil neste caso. Não se pode nem dizer que a prudência - sempre recomendável nas relações internacionais sensíveis - justificaria a omissão do Estado brasileiro. Afinal, não há nada que poderia prejudicar os interesses internacionais do Brasil, pelo fato de se posicionar, veementemente, ao lado de dezenas de nações amigas, contrárias à tirania. Por fim, não basta o Brasil expressar preocupação com os relatos de graves violações de direitos humanos na Nicarágua e se oferecer para receber os cidadãos degredados, ao mesmo tempo que se omite de chancelar documentos internacionais voltados à condenar a ditadura. É necessário que o Brasil se junte, sem rodeios, ao conjunto das ações que são tomadas pelos órgãos internacionais competentes. A omissão, neste caso, configura nítida forma de conivência, deplorável em todos os sentidos. __________ 1 BENDA, Ernst. Menschenwürde und Persönlichkeitsrecht. In: Benda, Ernst; Maihofer, Werner; Vogel, Hans-Jochen. et al. (Hrsg.). HVerfR. 2., neub. und erw. Aufl. Berlin, New York: Gruyter, 1994, Rdn. 4. 2 SILVA, José Afonso da. A Dignidade da Pessoa Humana como Valor Supremo da Democracia. Revista de Direito Administrativo. Rio de Janeiro: Renovar, n. 212, abr.-jun. 1998, p. 92. 3 STERN, Klaus. Das Staatsrecht der Bundesrepublik Deutschland: Allgemeine Lehren der Grundrechte. München: Beck, 1988, B. III/1, p. 15. 4 STEIN, Ekkehart; FRANK, Götz. Staatsrecht. 20., neu. Auf. Tübingen: Mohr, 2007, § 29, p. 235s.
A invasão e destruição dos prédios que abrigam os Poderes públicos, no dia 8 de janeiro de 2023, na capital federal, merecem total repúdio. Barbárie, depredação e vandalismo não permitem relativização. Pouco importa se não se concorda com o governo eleito. Vandalismo, depredação e selvageria nunca são soluções. Aqueles que se julgam no "direito" de vandalizar instalações públicas consideram-se, na prática, mais brasileiros do que outros. Ou quem sabe, mais patriotas... O patrimônio destruído não é do Presidente da República, dos políticos ou dos ministros do Supremo Tribunal Federal. É do Estado brasileiro. Falta àqueles que depredaram o patrimônio público a noção elementar de estado de direito e, sobretudo, da distinção entre oposição e subversão. Faz parte do direito de oposição democrática ir contra o governo do dia, por meio de protestos pacíficos, sem armas, em locais abertos ao público, mediante prévio aviso às autoridades competentes, para que possam organizar a segurança de todos. Da mesma forma, integra o núcleo da democracia a possibilidade de livre pronunciamento e votações nos órgãos políticos de deliberação coletiva. Contudo, quando se age contra o Estado, não se trata de oposição, mas sim de subversão! A invasão violenta e a depredação, sem precedentes no Brasil, dos prédios dos poderes públicos representa verdadeiro ato subversivo, que deve atrair dura punição no marco da legislação vigente. Os atos violentos não visam apenas à destruição física das instalações, mas, igualmente, ao enfraquecimento das instituições que representam. Isto é inadmissível em uma democracia. A violência não tem proteção constitucional. Eventuais descontentamentos devem ser manifestados de modo pacífico. Qualquer entendimento contrário representa uma via - de mão única - para o caos. Em uma democracia funcional a alternância de poder tem que ser vista com naturalidade. Os derrotados aceitam o resultado e rumam para a oposição. O que se tem visto no Brasil, em particular a partir dos episódios violentos do início do ano de 2023, aponta para um estado de irracionalidade que, se não controlado, pode levar a consequências trágicas. O momento é complexo, sensível e requer a atuação de lideranças com espírito estadista, no lugar daqueles que só se interessam por dividendos eleitorais ou pela manutenção no poder a qualquer custo. Os acontecimentos foram graves e exigem investigação séria e profissional. As pessoas que danificaram o patrimônio púbico e que atuam para derrubar as instituições democráticas não podem fugir à responsabilidade. Elas estão em dívida com o povo brasileiro. As dificuldades são consideráveis. Certamente, muitas pessoas que se faziam presentes nos protestos não tinham a intenção de agir como bárbaros. Alguns foram arrastados pelo chamado "efeito manada". Entretanto, ao tomarem parte em atos deploráveis de vandalismo, devem ser chamados à justiça, na forma da lei. Aos órgãos competentes cabe a árdua tarefa de averiguar a participação de cada um, para efeitos de responsabilização. Sem embargo, a tarefa principal dos órgãos judiciais é encontrar os financiadores desses atos, bem como as autoridades que, voluntariamente, se omitiram de cumprir seu dever legal. Aqueles que podiam agir para evitar os danos e nada fizeram. Os primeiros são aqueles que agem nas sombras. Provavelmente, assistiram à barbárie no conforto das suas casas. Usam pessoas que são manipuladas para o atingir fins obscuros, que parte dos manifestantes sequer imagina, em nome de uma pretensa causa maior. Os segundos são os que mais preocupam. Quando atos criminosos têm a participação de agentes estatais, na forma de omissão deliberada, fica claro que a criminalidade possui tentáculos no aparelho estatal. Aqui está-se diante do quadro mais grave, que justifica a mais rigorosa punição. Não resta dúvida que a democracia foi atacada e que necessita empregar os meios constitucionalmente assegurados para se defender. O desafio, que se mostra presente, é compreender em que ponto erramos e quais aprimoramentos institucionais se fazem urgentemente necessários. O momento é de serenidade. Há que se construir uma cultura estatal voltada à pacificação social. É importante ter em mente que nenhuma democracia sobrevive, por mais consolidada que seja, quando a todo momento for submetida a uma crise sistêmica de legitimidade.1 No centro do debate está a sobrevivência do sistema democrático. É fundamental que os atores políticos, assim como as autoridades constituídas, compreendam o seu papel no curso da delicada conjuntura que o país enfrenta. A escassez de estadistas cobra seu preço. Deixar a justiça fazer o seu trabalho com eficiência, sem holofotes e discursos virulentos, é o caminho de ouro. Toda narrativa incendiária deve ser evitada. Não se pode esquecer que um país dividido é um país estagnado. Marcada a defesa contundente da democracia e do estado de direito, há que se trabalhar com menos exposição e mais profissionalismo na busca da integridade nacional. Ao Supremo Tribunal Federal, particularmente, coloca-se o desafio de atuar nos estritos limites constitucionais. Uma tarefa árdua, considerando que ao chamar para si o encargo de responsabilizar criminosos, coloca-se, ao mesmo tempo, na condição de vítima e julgador. É necessário perceber que por mais graves que tenham sido os atos criminosos, não se pode dar uma espécie de carta branca para qualquer instituição, em nome da repressão e da justiça, agir fora do devido processo legal. Convém lembrar que quando um órgão estatal se acostuma a abusar do poder, ainda que em nome de uma "causa nobre", abre-se um perigoso precedente, que pode se converter em regra geral de conduta, difícil de ser superada com o passar dos tempos. Lawfare, para usar um termo da moda - manipulação de procedimentos judiciais visando à perseguição de desafetos, mediante violação de direitos - não pode ser tolerado. Não se combate um mal, recorrendo a instrumentos igualmente maléficos. Vale dizer: o recurso aos fins supremos do ordenamento jurídico não pode servir de meio para ludibriar a Constituição, no instante em que a eleição destes fins pode representar interesses, cuja hierarquia é controvertida2. Isso significa que no curso da responsabilização daqueles que atuaram e atuam contra as instituições democráticas, a Constituição não pode ser abandonada por conta da insegurança gerada por uma luta permanente de poderes e de opiniões que, em sua argumentação, não logram êxito em referir-se a uma base comum3. O direito constitucional, mesmo em momentos de crise, não admite aplicação seletiva. As respostas têm que ser buscadas na Constituição, não fora. É ela que possui os remédios adequados para cada tempo, mesmo os mais duros, em tempos difíceis. Não se pode defender uma espécie de direito constitucional do inimigo, que defende garantias para apenas um dos lados. As punições devem incidir sobre os culpados, na medida das suas respectivas responsabilidades, mas sempre no marco do devido processo legal. Se o caminho for outro, estaremos nos afastando da racionalidade e da funcionalidade do ordenamento jurídico. É fato que o Brasil foi colocado em posição de vergonha mundial, pela ação de grupos bem articulados, verdadeiros artífices da desordem, que atuam para acabar com a democracia, em proveito próprio. A democracia defensiva tem que agir para se proteger, sobretudo, daqueles que, em nome da própria democracia, atuam para eliminá-la. Sempre dentro das regras, nunca fora. Os bons exemplos são esperados de cima. Somente assim os espíritos serão apaziguados. A partir daí, todos devemos nos voltar aos aprimoramentos institucionais necessários. Só as boas instituições nos colocam a salvo dos piores males. __________ 1 LYNCH, Christian; CASSIMIRO, Paulo Henrique. O Populismo Reacionário. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 189. 2 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 33. 3 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 33.
sexta-feira, 16 de dezembro de 2022

A proteção das estatais à beira do retrocesso

A Câmara dos Deputados, em votação na calada da noite, às vésperas do início do recesso de 20221, aprovou um projeto de lei que flexibiliza a Lei das Estatais (lei 13.303/2016)2. Se convertido em lei, o PL 2.896/20223 facilitará não apenas o aparelhamento político da administração indireta, como, também, a corrupção, contrariando o interesse público. O estatuto jurídico das empresas públicas e das sociedades de economia mista foi uma conquista da sociedade brasileira. Aprovado no governo Temer, representou uma espécie de reação aos desdobramentos dos grandes escândalos de corrupção que envolveram, sobretudo, a Petrobrás. O objetivo da norma foi agregar às estatais regras de governança corporativa, transparência, gestão de riscos e controle interno, visando a proteger o patrimônio público e o dos seus acionistas. Criou-se, dentre outras medidas, um conjunto rígido de regras voltado a impedir interferências políticas na administração desse tipo de empresas, bem como a redução dos gastos com publicidade. Com ampla maioria, a Câmara dos Deputados decidiu facilitar a alocação de políticos nas estatais, bem como ampliar seus gastos com publicidade. Um enorme retrocesso, típico daquilo que a política vem proporcionando aos brasileiros nos últimos tempos. Atualmente, o tema pende de aprovação pelo Senado. A redação original da Lei das Estatais proíbe a indicação, para o Conselho de Administração e para a diretoria das empresas, de pessoa que atuou, nos últimos 36 meses, como participante de estrutura decisória de partido político ou em trabalho vinculado a organização, estruturação e realização de campanha eleitoral. A intenção da lei é clara: evitar o aparelhamento político das estatais. A mudança aprovada pela Câmara dos Deputados fixou o prazo mínimo de desligamento para 30 dias. Ou seja, o prazo que separa a atividade política e a investidura em um alto cargo em estatais foi reduzido de três anos para apenas um mês. As regras, caso aprovadas pelo Senado, passarão a ser aplicadas, inclusive, para as agências reguladoras. Na mesma toada, a Câmara dos Deputados aprovou a ampliação dos gastos das estatais com publicidade e a mudança de limites de gastos em ano eleitoral4. Pelas regras atuais, as despesas das estatais com publicidade não podem ultrapassar, em cada exercício, o limite de 0,5% da receita operacional bruta do exercício anterior. Este limite, contudo, pode ser ampliado até 2% da receita bruta, por proposta das respectivas diretorias, quando devidamente justificada com base em parâmetros de mercado, sujeita à aprovação dos conselhos de administração. Com a inovação, o patamar máximo de 2% com despesas com publicidade torna-se padrão, facilitando a sua aprovação. Tomando-se por base o faturamento das estatais no ano de 2021, R$ 998,8 bilhões, os valores relativos à publicidade que ficariam à disposição dos governos tangenciariam a cifra de R$ 20 bilhões. Considerando a experiência negativa que os gastos com publicidade oficial proporcionaram na história recente do país, a medida mostra-se, nitidamente, temerária. Caso a modificação da lei das estatais venha a ser aprovada pelo Senado, estaremos diante de um retrocesso histórico. Um dos aspectos decisivos para a engenharia constitucional de uma nação passa pela construção de um modelo que prime pela autonomia e imparcialidade da administração pública.5 Mecanismos rígidos de controle e de governança corporativa visam a prevenir a ocorrência de corrupção. O projeto da Câmara dos Deputados vai em direção contrária. A corrupção é um problema endêmico no Brasil. A forma como as nossas instituições políticas e de governo estão configuradas, favorece a prática de atos contrários aos princípios constitucionais da administração pública. Falta à classe política nacional, ao menos em sua maioria, a noção de que quanto mais recorrermos a estruturas arcaicas de organização dos poderes públicos, mais nos aproximaremos do colapso. O problema está nitidamente associado ao sistema presidencialista de governo, aliado ao sistema de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados. No Brasil, elege-se um Presidente da República que cumula as funções de chefia de Estado, de governo e da própria administração pública federal. Além da exercer funções que, em seu conjunto, podem se mostrar incompatíveis, o Presidente eleito pelas urnas não possui maioria política no Congresso Nacional, capaz de garantir a governabilidade. Não há outra saída, se não aderir a um amplo espectro de coalizões, muitas delas de natureza espúria, sob pena de inviabilizar o próprio governo. O problema é que o apoio político tem um preço alto, que costuma ser pago, dentre outras moedas - a da moda é o orçamento secreto - pelo loteamento de cargos na administração. É neste ponto que o comando das estatais entra como uma luva na mira dos partidos que pretendem ingressar na base de governo. Como se não bastasse, pela lógica do sistema de eleição proporcional, os deputados federais ficam praticamente desvinculados de um eleitorado que os possa responsabilizar pelas más escolhas. Não possuímos um sistema distrital de votação, com possibilidade de recall. O sistema é corruptor. Uma boa arquitetura institucional livra o país de desmandos. A autonomia e independência das estatais são instrumentos de grande valor para um Estado democrático de direito. São elas que contribuem para a indispensável separação entre Estado, governo e administração, sem a qual uma democracia fica impossibilitada de adquirir funcionalidade. As nocivas interferências da política e das ideologias de plantão, no lugar da boa técnica e da governança, têm minado a administração pública como um todo. Elas vêm emperrando o desenvolvimento racional e sustentável do país, catalisando a corrupção institucional, que há muito nos asfixia. Se por um lado governo e administração são dependentes um do outro no aspecto funcional, por outro, o respeito à Constituição exige que a administração atue com autonomia, independência e responsabilidade própria diante das forças políticas.6 A flexibilização da lei das estatais, mais do que um retrocesso histórico, é a prova da falta de conexão de parte expressiva dos nossos representantes políticos com os interesses nacionais. O caminho é a institucionalidade e não o oportunismo político. É pensar no futuro e não apenas nas conveniências do presente. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui. 3 Disponível aqui. 4 Disponível aqui. 5 WEBER, Max. Economia e sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva. v. 2. Brasília, DF: Editora Universidade de Brasília; São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 1999, p. 212ss. 6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 536s.
sexta-feira, 2 de dezembro de 2022

República ou regalias

Atualmente, no âmbito da atuação dos poderes públicos fala-se muito em moralidade ou na sua falta. A Constituição Federal, em um dos seus mais importantes títulos, traz a moralidade como princípio vetor de toda atuação administrativa. Portanto, toda e qualquer conduta que destoe da moralidade estará afastada da proteção constitucional. Neste tema as dificuldades são extremas. A começar pela tarefa de definir o que configura uma conduta imoral de um agente público. Emerge, neste ponto, a observação imortalizada por Santo Agostinho, no Livro XI, Capítulo XIV, das Confissões, quando indagado sobre o que significa o tempo.1 "Que é, pois, o tempo? Se ninguém me pergunta, eu sei; mas se quiser explicar a quem indaga, já não sei". Se apoiando na obra do gigante, faço o mesmo raciocínio: o que é, pois, a moralidade administrativa? Assim como ponderou Santo Agostinho em relação ao tempo, tenho dificuldades para definir o que é. Contudo, em face de situações concretas, que vivenciamos a cada semana no Brasil, é muito mais simples entender o que não é. Quando parlamentares viajam ao Catar para assistir jogos da seleção brasileira na Copa do Mundo do ano de 2022, financiados direta ou indiretamente com recursos públicos, sob a pretensa missão de representar o país, tal conduta pode ser tudo, menos moral. Quando os mais altos níveis remuneratórios do serviço público se autoconcedem regalias, independentemente de autorização legislativa específica, também. Quando a lei privilegia classes de agentes públicos com remunerações totalmente incompatíveis com a realidade das contas públicas, concedendo auxílios financeiros expressivos a quem menos precisa, a título de parcelas indenizatórias, livres de tributação, de forma retroativa, sem prescrição, não apenas a irresponsabilidade no manejo das contas públicas se faz presente, mas, igualmente, a total ausência da noção republicana de igualdade. Inúmeros outros exemplos poderiam ser citados para descrever este estado de coisas inconstitucional que o Brasil enfrenta, há um bom tempo. Seria o sinal de que o pacto constitucional de 1988, ao menos no que tange aos princípios da administração pública, ruiu? Alguns sinais apontam que sim. O mais evidente deles diz respeito à interpretação que se consolidou no país sobre o que significa direito adquirido. A garantia tem sido empregada, com a máxima energia, por todos aqueles que defendem distorções injustificáveis no serviço público. Uma minoria, mas muito barulhenta. Há muito se confundem direitos com regalias no Brasil. Se poderia, mais uma vez, invocar a lição de Santo Agostinho. Em abstrato é difícil definir o que é uma regalia. Ao se analisar fatos, torna-se fácil perceber. Existe um pequeno grupo de agentes públicos que ganha muito, incluindo benefícios de toda sorte, sem qualquer relação com o resultado da sua atuação. Verifica-se que, em muitos casos, há um acúmulo de servidores no topo salarial da carreira, ainda que se situem em níveis diferentes de progressão. Por outro lado, existe um enorme grupo de servidores com salários muito defasados, que, diga-se de passagem, são os que costumam ter uma atuação mais próxima dos cidadãos. No Brasil, não raro, o teto salarial se torna piso, graças a um conjunto inexplicável de penduricalhos, que transporta, com inegável eficiência, a base salarial para o topo. A busca do melhor interesse público vai em direção contrária à das regalias. Em um país ideal, sem prejuízo do salário ser definido em função das responsabilidades e dos riscos inerentes a cada mister, ciente de que situações especiais justificam diferenciação, o setor público deveria ser submetido às mesmas regras impostas à imensa maioria dos trabalhadores, que com seus tributos sustentam o todo. É, ao menos, o que se deflui de uma das conquistas mais elementares de um Estado de direito republicano: a igualdade. É importante reconhecer que a maioria dos servidores públicos brasileiros é vocacionada para suas tarefas, cumprindo-as com distinção. O problema surge quando determinados grupos não conseguem diferenciar o que significa um direito adquirido de uma regalia. Por certo, é difícil criticar o que outra pessoa recebe por seus méritos individuais. Não se nega que grande parte da elite do serviço público ascendeu à carreira por inegável esforço pessoal, a começar pela aprovação em concursos públicos com altíssimo nível de exigência. Se reconhece a renúncia pessoal em muitos anos de preparação. Todavia, a compensação por este esforço não pode se dar de forma desproporcional, ao ponto de ferir inúmeros pilares do espírito republicano. Um meio termo há de ser encontrado: vencimentos dignos e compatíveis com os cargos, porém sem destoar da razoabilidade. O mais grave é quando algumas regalias adquirem roupagem legal, não por uma correta apreciação da igualdade em sentido material. Nas palavras de Rui Barbosa:2 "Tratar com desigualdade a iguais, ou a desiguais com igualdade, seria desigualdade flagrante, e não igualdade real". Preocupante é quando as regalias se consolidam pela eficiente organização e poder de barganha, típica de corporações muito bem articuladas. Neste caso, costuma-se invocar o direito adquirido que, muitas vezes, está mais para privilégio adquirido. Quando uma lei concede regalias ao ponto de ignorar os princípios republicano, da igualdade, da moralidade, dentre outros, ela não pode se eternizar no tempo. O princípio da segurança jurídica, do qual deflui o da proteção da confiança, não podem implodir os alicerces da ideia republicana. Entendimento contrário faz com que os vivos - que suportam os prejuízos - sejam eternamente governados pelos mortos - que, no passado, por diferentes conjecturas, concederam privilégios a quem quer que seja. Não há dúvida de que a imoralidade administrativa se associa à noção de desvio de poder e dos princípios de justiça e equidade.3 Integra, necessariamente, um juízo voltado à manutenção de condutas eticamente corretas.4 Encontro a sabedoria de Santo Agostinho em todos estes tópicos. "Se o presente, para ser tempo, deve tornar-se passado, como podemos afirmar que existe, se sua razão de ser é aquela pela qual deixará de existir? Por isso, o que nos permite afirmar que o tempo existe é a sua tendência para não existir".5 A razão de existir uma República é a antítese de privilégios e regalias. Contra esta noção, não há direito adquirido que se faça forte. Ruy Cirne Lima6 lembrava que os estudos de direito administrativo não deveriam ficar reservados aos juristas e aos eruditos. Pelo contrário, afirmava o mestre que se deveria, quanto possível, procurar difundir extensamente pela massa dos cidadãos o conhecimento dos pilares do direito administrativo. O mesmo se diga em relação ao direito constitucional, a partir da imortal expressão cunhada por Fritz Werner:7 "O direito administrativo é o direito constitucional concretizado". É fundamental que a população seja ouvida no que diz respeito à concessão de regalias, que nem de perto chegam à massa que toca o país. É, justamente neste ponto, que o sistema representativo tem falhado. Se o pacto constitucional não é capaz de perceber isto, é porque ruiu ou está no caminho de ruir. __________ 1 Disponível aqui, p. 120. 2 BARBOSA, Rui. Oração aos Moços. 5 ed. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa, 1999, p. 26. 3 DI PIETRO, Maria Sylvia Zanella. Direito Administrativo. 28 ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 112. 4 CARVALHO FILHO, José dos Santos. Manual de Direito Administrativo. 30 ed. São Paulo: Atlas, 2016, p. 22. 5 Disponível aqui, p. 120.  6 CIRNE LIMA, Ruy. Princípios de Direito Administrativo. 6 ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1987, p. 48. 7 WERNER, Fritz. "Verwaltungsrecht als konkretisiertes Verfassungsrecht". DVBl. Köln: Heymanns, 1959, p. 527ss.
sexta-feira, 18 de novembro de 2022

Que república queremos?

República não combina com desmandos, regalias, golpes e com a apropriação dos espaços públicos para fins particulares. No mundo em geral o início do século e do milênio revelou um panorama político-constitucional de grandes transformações e instabilidades.1 Essas instabilidades plantam dúvidas até mesmo em relação a sermos, de fato, uma república. O nome apartado da realidade. A república expressa o ser comum (res publica), no qual todo poder público deve ser derivado da comunidade, sendo obrigado a servir ao bem de todos. Exprime uma ideia de conceber o Estado totalmente oposta à noção de despotismo, na qual nada mais existe que o arbítrio dos detentores do poder.2 A história republicana ainda é pouco contada no Brasil. O que mais se sabe é que o dia 15 de novembro é um feriado nacional, alusivo à data da proclamação, no ano de 1889. Contudo, pouco se debate sobre o verdadeiro significado da palavra república. A instabilidade que tem se visto presente nos últimos anos no Brasil, acrescida de uma série de escândalos mal resolvidos de corrupção; da disfuncionalidade institucional - a começar pelo sistema presidencialista de governo; e da perpetuação de regalias injustificadas nos Poderes Públicos, absolutamente incompatíveis com a dura realidade da população, dentre outros problemas, determinam uma reflexão urgente naquilo que realmente pretendemos, como nação e como república. A clássica obra O Príncipe, de Nicolau Maquiavel, publicada postumamente no ano de 1532, inicia o primeiro capítulo com a frase: "Todos os Estados, todos os governos que tiveram e têm autoridade sobre os homens, foram e são ou repúblicas ou principados".3 A frase tinha caráter inovador: além do termo Estado, empregava o conceito de república na acepção de uma forma de governo, em oposição às monarquias. As formas de governo revelam a forma de vida do Estado, a partir do caráter coletivo do seu elemento humano.4 Como tal, a república deve descrever uma espécie de Estado vocacionada para a realização do bem comum, avessa a privilégios e disfuncionalidades. A ideia republicana passa pela expressão democrática de governos, pela limitação do poder e pela atribuição de responsabilidade política, visando a assegurar a liberdade.5 Os clássicos advertiam que o problema fundamental para a investigação política, tanto sob a perspectiva da ciência antiga quanto da nova, em sua essência é o mesmo: buscar as garantias contra o poder absoluto do soberano mediante restrições legais.6 Isso equivale a dizer que a organização das instituições estatais e o modo como se relacionam é o que, na prática, irá caracterizar a forma de governo.7 Como traço geral, a forma de governo designa como se constitui o chefe de Estado em uma nação. As monarquias são formas de governo nas quais o chefe de Estado é hereditário e vitalício, enquanto nas repúblicas é eletivo e temporário.8 A partir daí, surgem inúmeras distinções. Dentre as características mais importantes de uma república está o fato de o Estado não se fundir à figura do Presidente, exatamente pela eletividade e pela periodicidade dos governos, em seu mais alto escalão.9 A essência de uma república reside na negação da condução do Estado por uma pessoa física, no sentido de rechaço à vontade suprema de um ser individualmente considerado.10 Com o objetivo de racionalizar o processo político, a democracia possibilita a produção de continuidade suprapessoal (überpersonaler Kontinuität). Significa que o poder estatal não pode estar vinculado a uma determinada pessoa, da mesma forma que o processo político não pode estar concebido para uma determinada pessoa. A continuidade da ordem política não é uma questão de indivíduos ou de rostos.11 Em outras palavras, em uma república ninguém poderia se perpetuar em qualquer posto de mando. A ideia básica é abominar o abuso de poder de qualquer espécie. Isto gera uma reflexão importante quanto à viabilidade de cargos vitalícios em posições-chave, sobretudo quando nomeados por critérios políticos. Tradicionalmente, o desenvolvimento da ideia republicana se deu por meio das lutas contra a monarquia absolutista e pela afirmação da soberania popular. Foi, basicamente, uma expressão de reivindicações populares, de vários matizes.12 Contudo, definitivamente, não foi o que aconteceu no Brasil. Graves são os problemas que foram se somando, desde a queda do Império, por meio de conspiração arquitetada por militares e republicanos civis. A história brasileira comprova que a proclamação da república se deu na forma de um autêntico golpe de Estado. Não havia, por parte da população, uma vontade clara e manifesta de depor o Imperador. Não há como se negar que Dom Pedro II foi um dos maiores estadistas deste país. Amante das letras, das ciências e de probidade inquestionável, foi um grande Imperador.13 A forma como foi tratado pelos militares e elites econômicas da época cobra até hoje seu preço na história. Uma deportação humilhante, marcada pela vergonha. Na prática, a mudança da forma de governo - de monarquia para república - veio de cima para baixo, como tantas outras coisas no Brasil. Mais do que uma vontade, uma imposição movida por interesses nada republicanos. É a expressão da frase perpetuada por Alceu Amoroso Lima, quando afirmou que o Brasil se formou às avessas, começando pelo fim.14 Tivemos república, antes de consolidar um verdadeiro espírito republicano. O último ministério do Império foi deposto pelas armas dos militares, sob o comando do Marechal Deodoro da Fonseca, sem que a república estivesse, de fato, proclamada, o que criou um vácuo na forma governo. Por alguns momentos, o país não era nem monarquia, nem república. Destituído de qualquer poder, Dom Pedro II não podia exercer as funções de Chefe de Estado, nada podendo fazer sem consultar o Marechal Deodoro, que por força de grave enfermidade, encontrava-se à beira da morte15. Com o Congresso em recesso, formou-se um governo provisório que tomou posse na Câmara Municipal do Rio de Janeiro. Uma cena inusitada, como lembra Laurentino Gomes, pois a instância máxima do Poder Executivo nacional - agora na forma republicana - prestou juramento diante de representantes de um poder municipal. Uma das tantas ironias da história, já que a mesma Câmara Municipal veio a ser dissolvida apenas três semanas mais tarde, por ordem do novo governo republicano, sob alegação de "estado de decadência"16. Mais uma da série, aqui se faz, aqui se paga. Assim se construiu uma república, que no seu berço nascera de um golpe armado, descolada das ruas, sem qualquer participação popular. A república nasceu fragilizada e sem legitimidade, o que ajuda a explicar a sucessão de problemas e golpes que se sucederam, desde então. O grande problema, que reflete o que atualmente somos, é o modo como a nossa história foi forjada. Ela deixa sequelas que por vezes são difíceis de serem removidas, passando a integrar um aspecto importante - e nefasto - da nossa identidade nacional. Os donos do poder, que dificilmente dele se descolam e seguem decidindo o destino do país. Mudam os nomes, os rostos, mas as práticas patrimonialistas se perpetuam. Uma espécie de coronelismo transgeracional, que resiste aos tempos e se adapta com versatilidade às novas realidades. Não se advoga que deveríamos permanecer um império, em pleno século XXI. O que se sustenta é que a monarquia foi abolida de forma prematura, por um golpe militar, quando ainda presente no país um grande estadista, apto a chefiar o Estado, em um momento decisivo da nossa história e da consolidação das instituições liberais. Por certo Dom Pedro II errou por vezes, o que não é extraordinário. Mas foi, como registra a história, diligente no cumprimento do dever e no respeito à lei.17 Isto se alia à tese de que golpes militares no Brasil nunca produziram bons resultados, deles nada podendo se esperar. Sem embargo, a ampla troca de constituições no país atesta a dificuldade que possuímos em promover acertos institucionais duradouros. Mesmo a independência, conquista importantíssima, que no ano de 2022 completou 200 anos, não foi capaz, por si só, de trazer a pujança que se espera de uma nação tão rica e bela, como o Brasil. As repúblicas democráticas dependem da estrutura social do povo que as habitam que, por sua vez, depende da qualidade das instituições públicas. Este, aliás, é um dos grandes motivos pelos quais a educação nunca foi prioridade na república brasileira. Quanto mais carente de informação, cultura e igualdade de oportunidades, menor se torna o empoderamento coletivo. Por seu turno, maior é a possiblidade de manipulação e indiferença, sentimentos sociais que servem de adubo à manutenção de castas no poder. É o caminho perfeito para a manutenção de uma república de papel. Para formar a vontade jurídica suprema, a república necessita de uma organização exterior e de uma divisão das funções estatais, nos termos previstos na Constituição.18 Se a Constituição contempla soluções equivocadas, dificilmente a ideia republicana pode se tornar realidade. Por outro lado, a experiência mostra que as tentativas de transformar em realidade a identidade de governantes com governados, sem mediação institucional, não podem dar certo, pois contêm o perigo de se converterem em domínio total (totale Herrschaft).19 A saída está no aprimoramento das instituições. Aprimorar não significa abolir, mas sim racionalizar. Não devemos ter receito de reformar as instituições, quando fica claro que a configuração vigente não produz bons resultados. Viver sem instituições é algo inviável, da mesma forma que insistir em modelos falidos. Assim como erramos, gravemente, na forma e no momento de proclamar a nossa república, continuamos errando ao manter um sistema político e de repartição de funções que conduz a resultados insatisfatórios, independentemente da ideologia política de plantão. Triste é o país que não possui estadistas, em número suficiente, capazes de fazer a diferença, alertando o povo de que somos reféns de um modelo disfuncional de organização do Estado e dos poderes públicos. Pensar a república conduz, necessariamente, a uma espécie de refundação, mantendo o que é bom e se livrando do que é ruim. Não por golpes autoritários, mas sim por um sentimento de indignação, apto a demonstrar que o que vêm sendo praticado, há muito tempo, não nos levará a lugar algum, para além do fosso em que estamos presos. ________________ 1 MIRANDA, Jorge. Teoria do Estado e da Constituição. 5 ed. Rio de Janeiro: Forense, 2011, p. 41. 2 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 120. 3 https://docs.google.com/a/fcarp.edu.br/viewer?a=v&pid=sites&srcid=ZmNhcnAuZWR1LmJyfG51cGVkaXxneDoyZWIyZDBjYjVkNjQyMjY2 4 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4 ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 231. 5 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 227. 6 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 720. 7 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 222. 8 AZAMBUJA, Darcy. Teoria Geral do Estado. 4 ed. São Paulo: Globo, 2008, p. 240. 9 MENEZES, Aderson de. Teoria Geral do Estado. 8 ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 215. 10 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 711 11 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 137s. 12 DALLARI, Dalmo de Abreu. Elementos de Teoria Geral do Estado. 31 ed. São Paulo: Saraiva, 2012, p. 226. 13 TÔRRES, João Camillo de Oliveira. A Democracia Coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 525ss. 14 LIMA, Alceu Amoroso Lima. In: CARDOSO, Vicente Licínio [Org.]. À Margem da História da República. Tomo. 2. Brasília: Editora UNB, 1981, p. 51s. 15 GOMES, Laurentino. 1889. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 279. 16 GOMES, Laurentino. 1889. 1. ed. São Paulo: Globo, 2013, p. 285. 17 TÔRRES, João Camillo de Oliveira. A Democracia Coroada. Teoria Política do Império do Brasil. Rio de Janeiro: José Olympio, 1957, p. 527. 18 JELLINEK, Georg. Allgemeine Staatslehre. 3. Auf. Bad Homburg: Hermann Gentner, 1960, p. 720. 19 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. 20 Auf. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 131.
Em uma democracia funcional a alternância de poder deve ser vista com naturalidade. Os derrotados aceitam o resultado e rumam para a oposição. Nenhuma democracia sobrevive, por mais consolidada que seja, quando a todo momento for submetida a uma crise sistêmica de legitimidade.1 O que se tem visto no Brasil, após a proclamação do resultado das eleições presidenciais de 2022, aponta para um estado de irracionalidade que, se não controlado, pode levar a consequências trágicas. Pessoas comparecendo à frente de quartéis solicitando intervenção das Forças Armadas, caminhoneiros bloqueando estradas, atos de violência envolvendo manifestantes, discussões sem fim em grupos, são apenas parte dos sintomas de uma sociedade que se deixou contaminar pelo extremismo. Quando estes tempos de incerteza passarem, deveremos reunir nossos esforços para achar uma resposta, minimamente confiável, à pergunta "onde foi que erramos". Penso que erramos quando não fomos capazes de configurar um sistema político institucional que oferecesse maior resistência ao populismo. Erramos, quando as nossas instituições se omitiram no momento em que deveriam ter tomado providências em face de atos deploráveis na história recente da República - cada um poderá eleger os seus - ou quando não souberam manter a necessária autocontenção, desestabilizando o necessário equilíbrio entre os Poderes. Erramos ao não combater narrativas seletivas, que particularizam negacionismos explícitos. Algo do tipo: tudo o que o meu adversário - que, em verdade, é tratado como inimigo - faz, é errado. Já o que os meus aliados fazem, é pura expressão do exercício legítimo de poder, ancorado pela democracia. Seguimos errando quando não fomos capazes de entender que o exercício da liberdade requer responsabilidade, e que direitos não são absolutos, em particular a liberdade de expressão, tão potencializada pela revolução do mundo digital. O modo como as diferentes plataformas e redes de comunicação atuam, em contraposição à responsabilidade jurídica e social que delas se espera, ainda é tema muito incipiente entre nós. Viver em bolhas de pensamento único nunca foi tão perigoso. O bom debate se esvaiu, o ambiente se tornou tóxico. A intimidação digital, na forma de desinformação deliberada e discursos de ódio, remove os perfis moderados do bom debate. É muito fácil ser hostilizado à cada manifestação no fórum público virtual. Os algoritmos empregados pelas plataformas digitais, cujo funcionamento é guardado a sete chaves, tornam o acesso à informação cada vez mais tendencioso e problemático. Atualmente, no mundo digital não mais importa tanto onde buscamos a informação, mas sim quem decide que tipo de informação receberemos. Este estado de coisas contribuiu para que o Brasil mergulhasse em um clima social insalubre, em que amizades e relações familiares se esvaem, numa fração de segundos. Está mais do que na hora de percebermos que grande parte do comportamento irracional deriva de tentativas de manipulação por parte de pessoas que têm como objetivo primordial chegar ou se manter indefinidamente no poder. Mais do que nunca, verdadeiros estadistas se fazem necessários. É o momento em que todos os poderes públicos devem refletir sobre seus erros, deixando vaidades de lado, adotando a humildade como régua, na busca de pacificação. Não há mais espaço para incendiar o debate. A hora é de trabalhar institucionalmente. Isto começa pelo reconhecimento do resultado das eleições e pela noção de que, na ausência de provas minimamente idôneas, inclusive quanto à sua origem e autoria, não há que se falar em fraude. Nunca ficou tão claro que deslegitimar o jogo eleitoral faz parte de uma estratégia para enfraquecer as instituições e o próprio regime democrático. Ao Poder Judiciário não cabe morder a isca, caindo na armadilha de responder desproporcionalmente, ao ponto de dar munição àqueles que usam dos instrumentos da democracia para, no fundo, eliminá-la. Chegou a hora de praticarmos uma democracia defensiva, uma evolução do conceito de democracia militante,2 para protegermos nossas instituições em um ambiente de paz social. Há que se entender que o recurso aos fins supremos do ordenamento, formulados de modo abstrato e, portanto, passíveis das mais variadas interpretações, não pode, em nenhum momento, servir de meio para ludibriar a Constituição.3 Requerer intervenção militar, seja qual nome se dê a tão desvairada hipótese, representa não apenas o desconhecimento mais elementar da ordem constitucional democrática, como também a tentativa de subverter as bases do ordenamento jurídico.4 Toda a correção de rumos, por mais complexa que seja, deve seguir os caminhos regulares, que não passam por qualquer tipo de intervenção armada. Já passou o momento de percebermos que à chefia de Estado cabe a função de preservação da unidade estatal. Atualmente, parece que lutamos contra tudo e contra todos. Dentre toda gama de problemas que isso traz, está o fato de não percebermos que no sistema presidencialista de governo a chefia de Estado é exercida em conjunto com a de governo e da administração, atrelada a partidos e ideologias específicos.5 Quando uma única pessoa, em uma democracia, não é capaz de garantir essa unidade, uma mediação levada a cabo por uma autoridade que não se identifica fortemente com um partido ou ideologia, na condição de força neutra, pode, em situações de crise, converter-se em um elemento de agregação nacional.6 É aqui que entra a importância de um poder moderador, que no sistema presidencialista de governo não se faz presente. E é aqui, também, que muitas vozes se equivocam ao sustentarem que o art. 142 da Constituição Federal,7 que trata das Forças Armadas, seria a solução para impasses como o que estamos vivendo, por meio de intervenção de natureza militar. Não cabe às Forças Armadas exercerem função moderadora. À uma, porque força armada não modera, impõe. À duas, pelo fato de estarem submetidas à autoridade do Presidente da República, em relação de hierarquia. Passou da hora de os estadistas trabalharem para uma reforma institucional que torne a democracia brasileira mais resistente às tentativas de golpe de toda espécie. Enquanto teorias da conspiração permanecerem no centro do debate, o que interessa, de fato, não é posto em pauta. Este é um dos motivos, diga-se de passagem, para se adubar a todo o tempo estes discursos conspiratórios. Fica a reflexão trazida por Barack Obama, em um dos seus grandes discursos, quando pontuou aspectos importantes para a estabilidade democrática.8 A democracia é dura, duvidosa, barulhenta e, por certo, nem sempre inspiradora. Às vezes se perde um argumento e até mesmo a eleição. Quem perde a eleição deve fazer reflexões e aprender com seus erros e, quem sabe, voltar mais forte nas próximas eleições. O que não se pode é colocar em dúvida o processo eleitoral sem argumentos e provas plausíveis. É por isso que Barack Obama conclui: a presunção de boa-fé do povo, nas suas escolhas, é essencial para uma democracia vibrante e funcional. Amar a democracia é saber a hora de passar o bastão. __________ 1 LYNCH, Christian; CASSIMIRO, Paulo Henrique. O Populismo Reacionário. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 189. 2 LOEWENSTEIN, Karl. Militant Democracy and Fundamental Rights I, The American Political Science Review, v. 23, n. 3, p. 423ss. 3 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auf. Heidelberg: Müller Verlag, 1999, Rdn. 33. 4 Disponível aqui.  5 SOUZA JUNIOR, Cezar Saldanha. A Crise da Democracia no Brasil: aspectos políticos. Rio de Janeiro: Forense, 1978, p. 93ss. 6 HESSE, Konrad. Grundzüge des Verfassungsrechts der Bundesrepublik Deutschland. Neudruck der 20. Auflage. Heidelberg: Müller, 1999, Rdn. 535. 7 Art. 142 CF. As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. 8 Disponível aqui.
Na coluna anterior, com base nos resultados das eleições de 2022, demonstrei que o sistema eleitoral proporcional para eleição de deputados federais gera resultados de difícil compreensão. Um deles é que dos 513 deputados federais eleitos, somente 25 conseguiram se eleger com votos próprios, sem depender dos votos totais obtidos pelo partido ou federação, o que equivale a apenas 4,87% do total.1 Fica claro que, neste sistema, o eleitor não tem o menor controle de quem será eleito com o seu voto, já que, ao votar em um, pode eleger outro por tabela, que desconhece ou não gosta. Nesta oportunidade, analiso outro aspecto que é muito ruim no sistema de eleição proporcional: o distanciamento entre candidatos e eleitores e, consequentemente, a dificuldade de se conhecer as propostas de cada um. Um bom sistema eleitoral passa pela facilidade de formação de um juízo seguro quanto às escolhas políticas. O modelo de eleição proporcional para a Câmara dos Deputados e Assembleias Legislativas dificulta, bastante, as escolhas dos eleitores. Os candidatos disputam votos de todos os eleitores, nos respectivos estados. É como se cada estado fosse uma única e gigantesca circunscrição, na qual cada eleitor vota em um único candidato a deputado federal e estadual. Números ajudam a compreender a dimensão do problema. Recortando a análise na eleição para a Câmara dos Deputados em 2022, a tabela mostra o número de candidatos a deputado federal que disputaram os votos dos eleitores, em cada estado.2   Estado N.º vagas Deputado Federal N.º de Candidatos Deputado Federal Acre 8 140 Alagoas 9 184 Amazonas 8 173 Amapá 8 154 Bahia 39 776 Ceará 22 414 Distrito Federal 8 216 Espírito Santo 10 201 Goiás 17 391 Maranhão 18 367 Minas Gerais 53 1.103 Mato Grosso do Sul 8 161 Mato Grosso 8 163 Pará 17 323 Paraíba 12 251 Pernambuco 25 474 Piauí 10 177 Paraná 30 632 Rio de Janeiro 46 1.083 Rio Grande do Sul 31 546 Rio Grande do Norte 8 187 Rondônia 8 165 Roraima 8 165 Santa Catarina 16 314 Sergipe 8 169 São Paulo 70 1.540 Tocantins 8 161   Tome-se São Paulo como exemplo: 1.540 candidatos a deputado federal solicitaram votos aos eleitores paulistas. A pergunta é: como conhecer as propostas de cada um, para formar um juízo seguro no momento de votar? A resposta é evidente! Não é possível comparar propostas em um sistema de eleição proporcional, em que uma multidão de candidatos apresenta-se como opção. Mesmo em estados com menor número de eleitores, a dificuldade permanece. No Acre, por exemplo, 140 candidatos à Câmara dos Deputados disputaram votos. Conhecer 140 propostas também é inviável. Na prática, o sistema não permite que o voto seja direcionado à pessoa que tem as ideias mais alinhadas à visão dos eleitores sobre os temas de relevância nacional. É impossível conhecer, ainda que minimamente, as propostas de um número expressivo de candidatos. Se buscarmos saber o que os candidatos pensam sobre as reformas política, administrativa, tributária, trabalhista e previdenciária, além de orçamento público, teremos inúmeras dificuldades de colher tais informações. Muita quantidade de opções, muita dispersão e pouca aproximação. Este é um dos motivos pelos quais a eleição aos cargos de deputados costuma ser deixada de lado pelos eleitores. Muitos acabam escolhendo na última hora, recorrendo a dicas de conhecidos - que na maioria das vezes têm as mesmas dificuldades de escolha - ou votando nos rostos de sempre, apenas porque são conhecidos. Isto ajuda a explicar a baixa renovação na política, quando se leva em conta o elevado índice da insatisfação da população com seus representantes. Apesar de descontentamentos generalizados, nas eleições de 2022 o índice de renovação na Câmara dos Deputados foi de 39%, o que significa que apenas 202 dos 513 deputados são considerados novatos. Já o número de deputados reeleitos é de 294 (57%).3 É inegável a importância de se eleger bons parlamentares para a Câmara dos Deputados, onde os temas relevantes são decididos. Não é exagero falar que a responsabilidade pelo sucesso ou insucesso de um país passa pelos ombros do Poder Legislativo.4 No entanto, praticamos um sistema eleitoral que dificulta, sobremaneira, a escolha de bons representantes. Salta aos olhos que a saída passa por uma reforma política, que introduza no país um sistema eleitoral distrital para a escolha dos deputados, abandonando a opção pelo atual sistema proporcional. Em um sistema distrital, cada estado é repartido em um número de distritos eleitorais equivalente ao número de cadeiras em disputa. Cada partido indica um único candidato a deputado no respectivo distrito. E cada eleitor poderá votar apenas nos candidatos que concorrem no distrito. Simples assim. O modelo proporciona inúmeras vantagens. Elas começam pela real possibilidade de conhecer as propostas de cada candidato. No lugar de centenas, ou milhares, apenas alguns disputarão os votos no distrito. Os partidos terão que se esforçar para colocar bons nomes na eleição por distrito, sob pena de comprometer a sua representação. Neste modelo, a eleição para a Câmara dos Deputados (e Assembleias Legislativas) torna-se majoritária. É possível que dentro de um distrito se organizem debates entre os candidatos a deputado, de modo semelhante ao que costuma ser feito para os cargos de prefeito, governador ou presidente da república. Os debates podem ser feitos em associações, clubes, universidades, órgãos de mídia ou até mesmo em espaços abertos. As opções tornam-se mais conhecidas e a eleição ao legislativo passa a interessar, pois polariza as candidaturas. Ao aproximar os candidatos dos eleitores, o distrito converte-se em uma espécie de júri que passa a responsabilizar, de forma mais efetiva, o representante eleito, que tem a quem prestar contas pelos seus votos, ao invés de se esconder em um estado inteiro. Além disso, reduz-se, drasticamente, o custo das campanhas, já que a eleição passa a ser feita apenas no distrito e não em todo o estado. Diminui-se, ainda, a influência de fatores intermediários na eleição, como exposição na mídia, financiamentos etc., o que contribui para que novos rostos ingressem na política, a partir da sua vocação. Atualmente, o elevado custo das campanhas dificulta a participação igualitária dos iniciantes na política, porque não são conhecidos pelos eleitores e não obtêm as mesmas facilidades de financiamento público, que os atuais candidatos à reeleição possuem. A lógica perversa do modelo proporcional é que quanto mais cara for a manutenção de uma campanha, mais beneficiados serão os candidatos à reeleição ou aqueles que detêm elevada capacidade econômica. Por fim, um sistema distrital contribui para diminuir a eleição de candidatos com perfil radical, em qualquer um dos espectros ideológicos. Normalmente, no distrito eleitoral não residem eleitores, em número suficiente, dispostos a eleger radicais. Nele convivem pessoas dos mais variados perfis, visões de mundo e preferências. No modelo atual, se inúmeros eleitores dispersos no estado direcionam suas escolhas a um candidato com um perfil radical, na pulverização e soma de votos, ele acaba sendo eleito. Esta é a razão pela qual no sistema proporcional os candidatos tendem a se agarrar em determinadas causas ou corporações, nitidamente defendidas, visando a atrair, em todas as regiões do estado, eleitores que com elas simpatizam. O resultado é a facilidade de eleição de candidatos com perfil extremista, subcelebridades, pessoas conhecidas por trabalharem na mídia, astros do esporte, líderes religiosos e, muito comum na atualidade, os chamados influenciadores digitais. Nas eleições proporcionais a lógica do pertencimento ganha evidência. Se somar a um grupo expressivo atrai votos, independentemente de uma análise minimamente aprofundada da causa. Investir em algo que, decididamente, não vem produzindo bons resultados, não parece acertado. O sucesso da democracia passa por uma efetiva reforma política. No centro do radar está a adoção de um sistema eleitoral distrital. Pode-se debater, se no modelo puro ou misto, mas, inevitavelmente, um sistema que supere as deficiências do atual modelo proporcional. ____________ 1 https://www.migalhas.com.br/coluna/din%C3%A2mica-constitucional/374903/eleicoes-proporcionais-se-eleger-pelos-proprios-votos-e-excecao 2 https://divulgacandcontas.tse.jus.br/divulga/#/ 3 https://www.camara.leg.br/noticias/911393-com-mais-deputados-reeleitos-e-menos-novatos-renovacao-da-camara-sera-de-39/ 4 https://www.migalhas.com.br/coluna/din%C3%A2mica-constitucional/374019/o-descaso-dos-eleitores-com-o-legislativo
Concluído o primeiro turno das eleições gerais de 2022 é possível fazer uma análise dos resultados, do ponto de vista da viabilidade do sistema. Na esteira do que escrevi na coluna passada1, sobre a importância da eleição dos membros do Legislativo, centro a análise na composição da Câmara dos Deputados, à luz do sistema de eleição proporcional. Para se analisar os problemas do sistema proporcional é necessário entendê-lo. A sua lógica não é complicada. Complicados são os efeitos que ela gera. Vamos à lógica. O modelo de eleição proporcional centra-se na força de cada partido, dentro da distribuição dos votos válidos, excluindo-se os brancos e nulos. Em um primeiro momento, os votos válidos são computados para cada partido ou federações partidárias, lembrando que as regras vigentes não permitem coligações nas eleições proporcionais. Posteriormente, verifica-se o número de votos que cada candidato recebeu, dentro do partido, no que se costuma denominar de lista aberta. Pelo critério da proporcionalidade os partidos ou federações partidárias que receberam mais votos elegerão mais candidatos e os com pior desempenho, menos. Este é o motivo pelo qual candidatos mais votados por uma agremiação acabam, por vezes, sendo derrotados por outros, que embora com votação nominal inferior, foram eleitos por um partido que, no cômputo total de votos, teve melhor desempenho. Ou seja, no sistema de eleição proporcional é possível que um candidato à deputado menos votado seja eleito, no lugar de outro que teve votação superior. É por isso que no sistema de eleição proporcional o mandato é atribuído ao partido e não ao político. Os resultados são determinados por um conjunto de fórmulas matemáticas, essas sim complexas, a partir do cálculo de dois quocientes. O quociente eleitoral é definido pela divisão dos votos válidos (votos diretos em candidatos + votos apenas na legenda, excluindo brancos e nulos) pelo número de cadeiras em disputa. É ele que determina o número de votos que o partido precisa para eleger um candidato. O quociente partidário é definido pela divisão do número de votos válidos que cada partido ou federação obteve, pelo quociente eleitoral anteriormente calculado. É ele que determina o número total de candidatos eleitos por cada partido ou federação. Portanto, cada eleição possui um quociente eleitoral fixo no respectivo estado, para cada cargo em disputa (deputado federal ou estadual). A partir daí, cada partido na disputa obtém o seu respectivo quociente partidário. O sistema funciona com listas abertas de candidatos, de modo que ao votar em uma pessoa, o voto é atribuído à respectiva legenda pela qual concorre. E assim os partidos vão somando votos. De acordo com as vagas conquistadas pelo quociente partidário, a ordem de eleição é definida pelos candidatos mais votados, dentro do partido. Se o eleitor vota apenas na legenda, está sinalizando que não tem preferência de candidato, mas sim de partido, o que na prática transfere aos demais eleitores a decisão sobre quais candidatos do partido serão, efetivamente, eleitos. Evidentemente que os resultados são números fracionários, que geram sobras de vagas, distribuídas por cálculos complexos, ligados à média de desempenho de cada partido. Os números ajudam a ilustrar a sistemática de uma eleição proporcional. Considerando os resultados divulgados pelo TSE2, tomando-se por base a eleição para a Câmara dos Deputados no ano de 2022, apresentam-se os números aproximados nos seguintes estados. Pelo valor dos respectivos quocientes eleitorais percebe-se o número de votos que o candidato deve somar, para eleger-se pelas próprias forças, sem depender de votos de outros colegas de partido. Por sua vez, o tamanho das bancadas partidárias dependerá do número de votos que o partido ou federação recebeu, o que será determinado pelo quociente partidário, um cálculo a ser feito para cada legenda. A lógica é: quanto mais votos, maior será a bancada de cada partido na Câmara dos Deputados. Eis que vem o dado aterrorizante. Nas eleições de 2022, somente um em cada 20 deputados federais eleitos superou o quociente eleitoral. Significa, na prática, que dos 513 deputados, somente 25 conseguiram se eleger com votos próprios, ou seja, sem depender dos votos totais obtidos pelo partido ou federação que concorreram3. O número equivale a 4,87% do total de deputados federais. À guisa de comparação, nas eleições de 2018, 27 deputados federais (5,26%) foram eleitos com votos próprios, o que revela uma tendência no modelo de eleição proporcional. Qual é a consequência disso? A principal é que o eleitor não tem o menor controle de quem será eleito com o seu voto. Ao votar em um, pode eleger outro por tabela, que desconhece ou até mesmo não gosta. Pelo complexo critério das sobras de votos, pode contribuir para eleger até mesmo um candidato de outro partido. A pergunta que se coloca é: como uma democracia pode funcionar bem, se o sistema não permite ao eleitor controlar quem está elegendo com seu voto? Se poderia argumentar que os partidos existem para apresentar ao eleitor quadros minimamente homogêneos de candidatos, dentro de um espectro ideológico-programático minimamente uniforme, o que relativizaria este inconveniente do modelo proporcional. Entretanto, a realidade da política partidária brasileira aponta para outra direção. Esta é a razão pela qual, em que pese o descontentamento com os representantes políticos ser expressivo, a renovação sempre se mostra abaixo do esperado ou, ao menos, incompatível com a rejeição que os políticos que já cumprem mandatos possuem. Nas eleições de 2022 a renovação da Câmara dos Deputados ficou em apenas 39%4. Mais da metade, portanto, renovou o seu mandato. Comparativamente, nas eleições de 2018 a renovação atingiu um patamar de 47%5. É claro que a renovação, por si só, não significa aumento ou decréscimo de qualidade da representação política, mas é um indício que o sistema não traduz os anseios da população em geral. Voltarei a explorar estes dados nas próximas colunas. Por ora, fica a reflexão: você concorda com um sistema eleitoral em que o eleitor - peça chave - não tem o controle de quem elege com o seu voto? Democracia sem controle é uma democracia disfuncional. Enquanto não entendermos, às claras, os motivos pelos quais o sistema político brasileiro definha, dificilmente compreenderemos as possíveis soluções. As deficiências do sistema eleitoral praticado no Brasil ocupam um lugar de destaque da prateleira dos motivos que levam ao fracasso da política. A adoção de um sistema eleitoral distrital, que não se confunde com o que se costuma chamar de "distritão"6, está na ordem do dia. Ciente de que sem a boa política não avançaremos na solução dos problemas estruturais brasileiros, só nos resta avançar no estudo de aperfeiçoamentos. __________ 1 Disponível aqui. 2 Disponível aqui.  3 Disponível aqui.  4 Disponível aqui.  5 Disponível aqui.  6 Disponível aqui.