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Economia e finanças.

Francisco Petros
terça-feira, 29 de julho de 2014

Setor de tecnologia precisa de inovação

O Brasil, segundo dados do Ministério da Ciência e Tecnologia, investe cerca de US$ 24 bilhões na área de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), algo como 1% do PIB. Observados os mesmos critérios (dados da OCDE), os EUA investem 2,8%, a Alemanha e França, pouco mais de 2%, Japão 3,4% e a Coréia do Sul 4%. No caso do Brasil, a grande parte dos investimentos é feita pelo Estado na formação de centros de pesquisa, em pesquisadores, aquisição de equipamentos, etc. O setor privado investe pouco e, no caso das multinacionais, a importação de tecnologia é a política mais comum de ser adotada. O Brasil está atrasado e sem competitividade tecnológica. A evidente desindustrialização da economia brasileira, demonstrada pela cadente participação da indústria no PIB (24,9% em 2013) - estamos retornando para os patamares do governo JK - e o minúsculo investimento em P&D no Brasil, compõem um cenário pouco promissor para o desenvolvimento nacional. Isso sem levar em conta os fatores estruturais básicos de competitividade, os quais envolvem o baixíssimo nível da educação, a insegurança jurídica, a corrupção, etc. De fato, estamos numa situação crítica em relação ao tema da inovação tecnológica, mas nem isso propicia melhores debates entre os nossos líderes políticos. A sociedade está "enfadada" com a política, mesmo que a única solução possível para a questão do desenvolvimento e inovação tecnológica dependa umbilicalmente da política. No caso específico do financiamento da tecnologia, será necessária uma conjunção de esforços entre o Estado e o setor privado para que nos próximos anos a questão possa ser solucionada. Tais esforços necessariamente passam pelo aumento de recursos estatais para incrementar a tecnologia do país, os quais necessitam se aliar rapidamente ao setor privado de vez que tecnologia produzida longe da produção tem caminho certo: o museu. Uma das formas de fazer a aproximação entre os recursos do Estado e o setor privado são o maior estímulo à formação de fundos de venture capital e private equity voltados exclusivamente para o setor de tecnologia e que tenham a injeção majoritária de recursos públicos e privados. Os managers do setor privado podem servir aos interesses do Estado. Já há normatizações e regulamentações sobre estes instrumentos de investimento no âmbito do governo, especialmente pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM). Todavia, creio que o estímulo tem de ser multiplicado e mais benefícios tem de ser concedidas, tais como, a isenção total de impostos para estes veículos, prazo maior para a maturação de investimentos, algo entre 15 e 20 anos, subsídios para a criação de conselhos consultivos de elevado nível (com profissionais do Brasil e do Exterior) de forma a que se analise melhor as oportunidades, se atraia alianças com o exterior, se avalie as possibilidades múltiplas de utilização das tecnologias, se melhore o reporting para os investidores, etc. Não nos parece razoável que o setor de tecnologia, em geral, e o de P&D, em particular, tenham regras de mercado próximas aquelas que são "usuais". O segmento precisa sair da dicotomia entre liberais e intervencionistas. Até o EUA já superaram este (falso) debate. Há, realisticamente, incompatibilidade entre o funcionamento do mercado financeiro e de capital no momento atual e as necessidades de desenvolvimento do setor tecnológico. Tanto o a forma tradicional de financiamento, via empréstimos, quanto o próprio mercado de capitais, tem crescido substancialmente em termos de participação no PIB dos países desenvolvidos e emergentes. Tão consistente quanto este crescimento foi a evidente tendência das instituições financeiras e fundos de investimentos em aumentar suas operações de tesouraria o que implicou no equivalente aumento das operações no próprio mercado bancário e de capital, bem como o substancial e progressivo incremento das operações destinadas ao financiamento de imóveis. As operações destinadas às empresas, especialmente às emergentes foram reduzidas de forma sistemática desde os anos 50 - portanto, não estamos a tratar de tendências de curto prazo. Esta alteração do perfil do mercado financeiro, reduziu a propensão dos emprestadores e investidores a aceitar prazos de maturação dos investimentos mais dilatados, bem como taxas de retorno compatíveis com os projetos. Nem mesmo o processo agudo de desintermediação financeira iniciado no início dos anos 1990 propiciou condições para que os investidores "alongassem no tempo" as suas expetativas. O mercado se tornou mais especulativo, volátil e focado no retorno de curto prazo. Observado o cenário atual não há como progredirmos no processo de inovação tecnológica sem que o Estado assuma um papel de investidor de forma direta (operações com ações e financiamento de longo prazo), combinada, em menor proporção, com o setor privado. Do lado do management é preciso dar velocidade e competência técnica para a aplicação destes recursos. Esta deve se a principal forma para melhorar a competitividade sistêmica da economia brasileira, sobretudo em tempos de acelerado desenvolvimento tecnológico e busca de uma economia pautada em processos ambientalmente sustentáveis. Os advogados têm uma contribuição enorme a dar, criando estruturas jurídicas para estas operações que exigirão esforço multidisciplinar para a implementação e compatibilização entre prazos e taxas de retorno, passando pelos processos de investimento (forma e análise de risco/retorno) e desinvestimento. Uma economia criativa exige um direito criativo, inteligente e socialmente engajado.
quarta-feira, 16 de julho de 2014

A miopia do mercado

Há quem afirme que o tal do "mercado financeiro e de capital" é uma parcela bem informada da opinião pública. Nem tanto ao céu e nem tanto ao mar. O mercado (não apenas o financeiro e de capital) é a representação, historicamente construída, de certos interesses, sobretudo os capitalistas. Não se pode igualar a dinâmica do mercado com a da sociedade, pois isto seria um reducionismo incabível. De outro lado, não se pode imaginar que o "mercado" seja uma ficção descolada da realidade: é como já dito a "construção" histórica que permite que os preços dos bens e serviços flutuem ao sabor das informações disponíveis e expectativas formadas. A harmonia entre os interesses representados no mercado financeiro e de capital - este enquanto parcela de todo o "mercado" - e os interesses sociais é vital para o desenvolvimento econômico e social. Por sua vez, é a política que permite que sejam exercidos os checks and balances necessários à arbitragem dos interesses específicos do mercado financeiro e de capital e da sociedade como um todo. Não se pode "socializar" o mercado e nem se pode mercantilizar de forma absoluta a sociedade. Caso uma destas escolhas absolutistas seja feita, o caminho é o do atraso ou da desestabilização política. Como afirmava o pensador alemão Karl Mannheim (1893-1947), não se pode tornar a forma de conhecer as coisas um ato meramente lógico (digo eu: como o mercado), mas é preciso acrescer a este conhecimento elementos de natureza não-teórica advindos da vida social e das experiências dos indivíduos. Uma rápida olhada na história nos ensina aonde desembocou a União Soviética em pouco mais de 70 anos de socialismo científico e como as crises capitalistas do início século XX acabaram por causar grandes conflagrações políticas, incluso o nazismo e fascismo. As próximas eleições gerais brasileiras serão provavelmente marcadas por uma disputa ideológica feroz. De um lado os governos do PT serão apresentados como dissociados dos interesses do mercado. Isto resultou, segundo esta versão, num completo fracasso econômico que atolou o país num crescimento medíocre e numa perspectiva pouco promissora. De outro lado, o situacionismo tentará provar ao distinto eleitor que os avanços sociais foram fundamentais para tornar o país mais igualitário, aspecto este paradigmático frente à história brasileira. A oposição, por esta visão, estaria organizada para evitar novos avanços sociais. Nem precisamos ir muito longe para constatarmos que estes posicionamentos eleitorais servirão apenas para obscurecer um debate mais verdadeiro sobre o futuro do país. A questão mais importante para o eleitor talvez seja como harmonizar a construção de uma sociedade moderna do ponto de vista capitalista e calcada em avanços sociais que curem as mazelas da ignorância e da pobreza. Discutir este tema implica em menos desconstruções e muito mais em orientações no sentido do desenvolvimento e da civilização. Pode parecer pueril esta posição, mas não nos resta alternativa se enquadrarmos a próxima corrida eleitoral num perfil meramente de forma sem conteúdo concreto. O Brasil está muito atrasado em relação ao mundo global e necessita urgentemente de reformas capitalistas e sociais, ao mesmo tempo e em larga envergadura. Do ponto de vista do mercado financeiro e de capital as variações mais recentes das cotações adquiriram o perfil ideológico da política: a cada notícia ruim na órbita do governo as ações das nossas principais blue chips estatais variam para cima e vice-versa. A chamada "análise fundamentalista" se transformou em um jogo automático no qual o mercado observa o próprio umbigo e acaba por esquecer que a sociedade é algo muito maior e à política cabe muito mais que ajustar tarifas de empresas elétricas e da Petrobras. A sociedade brasileira é complexa e cheia de variantes e o próximo presidente terá de repensar sua liderança no sentido de estabelecer a necessária harmonia entre os vários interesses existentes na sociedade. Mesmo porque em todos estes anos de governos petistas, não se pode dizer que o mercado teve seus interesses contrariados. Ao contrário, muitos deles foram muito bem satisfeitos. Da mesma forma, o período tucano não foi tão liberal quanto imaginam os operadores financeiros. Olhados os últimos 20 anos houve conquistas e derrotas e na somatória destas o país ainda está longe de seu potencial, seja do ponto de vista capitalista, seja do ponto de vista social. É preciso que esta parcela organizada da sociedade, denominada de "mercado" não caia na armadilha do jogo político dicotômico que está sendo construído nesta corrida eleitoral. Isto pode contribuir para a pouca efetividade do debate que se aproxima depois da Copa do Mundo. Ademais, pode ser uma armadilha na qual os melhores interesses do mercado acabem tropeçando e sendo dragados.
Estamos diante de um importante rally no mercado de ações internacional. Os índices de ações dos EUA estão nos seus níveis históricos mais elevados, inclusos setores de maior risco, representados pelos índices Nasdaq e Russell. No Japão, na China e nos principais mercados europeus, o cenário também é promissor. Do ponto de vista dos fundamentos econômicos, a melhoria dos mercados está associada à baixíssima taxa e juros prevalecentes desde 2008, bem como uma consistente recuperação da atividade econômica que estimula o consumo e, em menor medida, o investimento, a despeito dos relevantes problemas ainda existentes no mercado laboral, especialmente na Europa Meridional. Acredito que este cenário pode ser favorável, sobretudo se houver uma recuperação mais consistente dos preços das commodities, para os países emergentes, especialmente o Brasil, o México e a Rússia. Contudo, isto também dependerá de outras variáveis geopolíticas (Iraque e Ucrânia), bem como do cenário doméstico de cada um destes países. É neste contexto que deve ser analisada o lançamento das medidas de estímulo ao mercado de capitais lançadas na semana passada. A mais notória foi aquela que incentiva ao lançamento de ações de pequenas e médias empresas (definidas como aquelas que tem valor de mercado de R$ 700 milhões e faturamento de R$ 500 milhões), por meio da isenção de Imposto de Renda sobre ganhos de capital obtidos em "novas" operações de underwriting. Os efeitos desta medida serão, sem dúvida positivos, sobretudo para fazer "girar" os portfólios dos fundos de private equity que tem encontrado dificuldades para serem reciclados com novos ativos, bem como para novas operações de empresas com o porte previsto pela MP. Note-se que apenas 11 empresas de capital aberto atendem aos requisitos governamentais para obterem os prometidos incentivos. Outro aspecto substantivo destas medidas de incentivo é que as empresas terão de adotar parâmetros de governança corporativa correspondentes ao Novo Mercado e ao Mercado de Acesso da BM&FBovespa. Certamente, a boa gestão das empresas se constitui em aspecto essencial para associar estes estímulos tributários a um avanço consistente do mercado e das empresas. Dados da bolsa brasileira indicam que existem no Brasil cerca de 15 mil empresas que teriam condições de realizar captações no mercado de capitais brasileiro. Cerca de 200 destas já estariam "mapeadas" pela área técnica da BM&FBovespa. De fato, o mercado de capitais pode oferecer uma "porta de entrada" bastante impressionante e interessante para que as empresas se desenvolvam e possam ser cada vez mais profissionais. Há, contudo, que se incrementar estas medidas, ampliando a isenção para empresas de um porte um pouco maior, bem como incluindo emissões de valores mobiliários relacionados com dívidas (debêntures, por exemplo) e operações estruturadas que incluam derivativos, mas que tenham risco de equity (por exemplo, debt/equity convertible assets). Há notório equívoco quando se observa estas operações de um ponto de vista distinto das operações "tradicionais" com ações. É perfeitamente possível se exigir padrões e parâmetros mais elevados de governança corporativa para operações como estas, o que reforçaria a qualidade intrínseca de crédito de tais empresas. Por fim, não se pode deixar de mencionar que o cenário macroeconômico será essencial para o sucesso destas medidas. Com a taxa de juros nominal mais elevada do mundo, bem como a atividade econômica cadente, os investidores ficarão hesitantes de adquirir tais ativos no mercado, dado o fato de que a relação risco/retorno de tais operações fica muito desfavorável. Ademais, pergunto: por que não se cria de uma vez um efetivo incentivo fiscal para as pequenas e médias empresas brasileiras? Algo que seja realmente simples e transparente ao invés da miscelânea de tributos que incidem sobre tais empresas (e quase todas no Brasil). Este seria um sinal de que o Fisco brasileiro se preocupa também com desenvolvimento e não apenas em fechar as contas do governo por meio de uma legislação arcaica e procedimentos extrajudiciais e judiciais injustos mesmo para bons pagadores de impostos.
O debate político no Brasil está longe de atender as ansiedades do distinto eleitor, aquele cidadão que deposita o seu voto na urna em função de problemas concretos e não em atendimento ao proselitismo político distante da realidade cotidiana da sociedade. Se tem uma marca registrada do Brasil, sem que exista contestação à ela nos últimos dois séculos, esta marca é a desigualdade social. Além dos evidentes contornos econômicos do patrimonialismo oligárquico e do descaso das elites com a relação público-privado, a desigualdade assumiu nos últimos anos uma feição "moral" que tem movimentado os protestos recentes. Afinal, o cidadão comum está literalmente raivoso com as condições oferecidas por um Estado tomado por interesses privados que interditam o exercício da função pública do Estado. Do transporte à saúde, o que é público é muito ruim. O interessante nesta constatação é que ainda existem crentes que a desigualdade brasileira possa ser superada reduzindo-se a participação do Estado neste processo. O traço deste pensamento é meramente ideológico e quando verificado na realidade observa-se que nada tem de ligação com a realidade. Do velho Império Britânico até os atuais tigres asiáticos, passando pelos EUA (não esqueçamos de Hamilton e Roosevelt!), todos adotaram políticas estatais ativas e relevantes para a superação da pobreza, da desigualdade, do atraso tecnológico e da ignorância. Nem cito a China especificamente porquanto país comunista escusa o exemplo. Por aqui a coisa vai mal. Criou-se um falso debate sobre o tema. De um lado, os privatistas, Aécio Neves à frente, querendo libertar os empedernidos capitalistas prontos para solver as nossas necessidades. Em tese, apenas precisam de sinais governamentais para saírem à caça e, com efeito, desenvolverem o país. De outro lado, temos aqueles que creem que o Estado não é uma criação humana, mas uma criação divina, a partir da qual tudo que é privado contém um pecado original mais perigoso que o do Gênesis. A presidente Dilma Rousseff prestou enormes serviços a esta corrente de pensamento, com o agravante que, além do erro ideológico, cometeu erros primários de gestão, das tarifas públicas às concessões de serviços públicos. O Brasil precisa urgentemente da terceira via de pensamento. É o que mostram as pesquisas eleitorais que mostram Aécio Neves estagnado, apesar da vasta torcida midiática, e Dilma cambaleante. Eduardo Campos, aquele que até seis meses atrás indicava aliados para exercer cargos no governo petista, não consegue alinhavar planos políticos e econômicos e sequer tece uma aliança razoável com a "sonhática" Marina Silva. Cerca de 1/3 do eleitorado vaga pelo deserto das ideias de nossos candidatos. O Direito tem possibilidades concretas de dar uma contribuição teórica enorme ao debate político neste momento tão delicado do país. É preciso construir separações mais claras entre o público e o privado, para evitar as mazelas da corrupção, das transações maléficas ao bom funcionamento do mercado e ao prejuízo das políticas públicas necessárias ao saneamento da desigualdade imoral do Brasil. De outro lado, o direito tem de construir os necessários pontos de intersecção entre o público e o privado para que viabilizar o arranque do desenvolvimento brasileiro (e não apenas o "crescimento"). É preciso construir novas bases jurídicas para as Parcerias-Públicas-Privadas (PPPs), regras mais seguras (para o Estado e a inciativa privada) no caso das concessões de serviços públicos, contratos mais confiáveis nas licitações, uma legislação ambiental mais eficiente para os negócios e para a natureza, etc. Temos de sair das formas jurídicas carcomidas pelo tempo - veja-se a CLT - para padrões que incorporem o modelo vitorioso da Economia Social de Mercado. Este modelo aproveita o vigor produtivo do capital e o limita pelo interesse social historicamente construído. Trata-se de uma combinação de interesses e não de uma oposição entre estes. Neste sentido, o Estado é matriz essencial para a o afloramento, a direção e a regulação dos interesses de ambos os lados desta equação. Isso exige a competência política de atrair e conjugar os polos e a competência operacional de planejamento e execução de projetos. Tudo de olho no longo prazo. Foi assim que a Coréia do Sul e o Brasil: semelhantes no início dos anos 1970 se tornaram tão desiguais neste século XXI. A primeira aumentou a intervenção estatal na educação, tecnologia e na política industrial e atraiu capitais de todos os lados. O Brasil aumentou a contradição entre o capital e o trabalho, por meio de arcabouços político-jurídicos arcaicos e, com efeito, "atolou" o país em termos de desenvolvimento. É preciso mudar de geração política! O país da Copa do Mundo parece estar torcendo nas arquibancadas da política, como se jogo Aécio versus Dilma nos levasse a algum lugar sem mudanças estruturais em novas bases e com novos atores. O Brasil não precisa de reformas. Precisa de um novo recomeço, em novas bases sociais e políticas. O atraso chegou por aqui há algum tempo e poucos estão dispostos a defenestrá-lo por meio de um New Deal.
terça-feira, 27 de maio de 2014

Petrobras: em busca de direitos prejudicados

Cabe-nos como cidadãos verdadeiramente interessados nos interesses públicos, além daqueles que privadamente nos dizem respeito, que os eventuais desmandos na Petrobras sejam esclarecidos. Quando existem indícios que vigorava na empresa algo além de desvios, mas um verdadeiro esquema criminoso, interessa a toda sociedade que os fatos sejam esclarecidos, os desmandos punidos e que o futuro seja mais seguro para a empresa e para a União, na condição de acionista controlador, e os investidores da empresa. Consta na Folha de S.Paulo desta última segunda-feira que a gigante estatal contratou US$ 278 milhões em fretes, sem que existisse nenhum contrato escrito entre a Petrobras e os fornecedores. A reportagem não informa o período em que isto ocorreu, apenas que ocorreu durante a gestão (2004/2012) do recém-liberado da prisão, o ex-diretor Paulo Roberto Costa. Sabe-se, contudo que tal "falha" não foi registrada por mais de um ano no sistema de controle da empresa, a despeito de se tratarem de transações que tem efeito sobre o caixa da empresa. Não se sabe, segundo relatório de auditoria interna da empresa, o total do prejuízo. Este é "apenas" mais uma notícia que dá conta de enormes prejuízos à estatal, com repercussão gigantesca sobre o desempenho operacional da empresa, bem como efeitos sobre o seu valor de mercado. Há tentativas de investigação dos desmandos na Petrobras no Congresso Nacional, via Comissões Parlamentares de Inquérito, mas o andamento destas iniciativas é tão duvidoso quanto os próprios fatos que cercam a estatal. Pode-se avaliar os fatos relatados pelo jornal paulista de diversas formas, da criminal até a financeira. De nossa parte, escolhemos refletir mais uma vez sobre a questão da "governança corporativa" da empresa os direitos e deveres cabíveis especialmente a quem exerce o poder de controle daquela sociedade anônima. A questão, portanto, além dos aspectos republicanos a ela relacionados, tem que ser examinada no que tange à infringência do direito privado dos acionistas não-controladores (vulgarmente denominados de minoritários) da empresa que foram prejudicados. Existe um "ângulo especial" pelo qual todos os eventuais prejuízos da empresa, fruto de práticas ilícitas, precisam ser examinados. Não cabe, neste curto artigo, esgotar o tema, mas apenas enunciá-lo. Vejamos. Está no site da empresa, na área de "Relações com os Investidores" a seguinte sentença sobre a governança da empresa: "A companhia segue procedimentos de gestão compatíveis com as normas dos mercados em que atua, de modo a garantir a adoção de padrões internacionais de transparência. Dessa forma, reforça sua credibilidade no mercado e aprimora o relacionamento com seus públicos de interesse: acionistas, investidores, clientes, fornecedores, empregados e sociedade, entre outros." Pois bem: do ponto de vista da moderna literatura em finanças sobre o tema da "Governança Corporativa", a transparência deve se dar não apenas em relação aos fatos per se, mas, antes destes, sobre como funcionam os controles internos (os "procedimentos de gestão" informados pela empresa) e os órgãos administrativos e estratégicos da empresa (inclusos os conselhos de administração, consultivos (se houver), os comitês, o conselho fiscal, etc.). E, também, o cabimento de responsabilidades que decorrem deste funcionamento. Conforme pode ser subentendido da figura abaixo, extraída do site da empresa, a auditoria da empresa tem papel central na forma e nos "procedimentos" funcionais. Logo, a pergunta que se segue pode parecer singela demais, mas, a esta altura dos acontecimentos, é essencial ser respondida: diante de fatos tão graves, o Conselho de Administração e os outros órgãos corporativos foram informados sobre o que ocorria de ilicitudes na empresa? Será que houve omissão em relação à fiscalização das atividades da Petrobras? Se juntarmos todas as acusações gravíssimas que pairam sobre certos negócios da empresa, é de se esperar que o Conselho de Administração e outras peças da governança da empresa, particularmente o Comitê de Auditoria, soubessem minimamente sobre as ocorrências e, assim, tivessem atuado sobre estas. Caso contrário, a governança corporativa da empresa simplesmente não funciona. Disto, decorrem responsabilidades funcionais sérias. Aliás, não é incomum, mesmo que exista espaço cada vez mais escasso, que a tal "governança corporativa" seja apenas formal, sem maiores repercussões efetivas na gestão e administração de certas empresas. Custa crer que este seja o caso da Petrobras, a maior empresa brasileira e uma das maiores do mundo. Todavia, as incertezas são crescentes e os desmandos cada vez são mais públicos. Há que se observar também que o assunto afeta o acionista controlador, no caso a União, pois este "usa efetivamente seu poder para dirigir as atividades sociais e orientar o funcionamento dos órgãos da companhia". (Artigo 116, Lei das Sociedades Anônimas). Logo, eventuais falhas dos órgãos corporativas e que resultem em prejuízos para a empresa seriam de responsabilidade do acionista controlador. Há que se investigar a culpa ou o dolo inerente a tais prejuízos, mas quando fica evidente que os "órgãos da companhia" eventualmente não funcionaram efetivamente e os montantes envolvidos são relevantes em função da sua magnitude, há de se pensar na responsabilização do acionista controlador e de seus representantes. Ensina Fabio Konder Comparato, em "O Poder de Controle na Sociedade Anônima" que "em caso de controle majoritário, é irrelevante o uso efetivo do poder: o acionista terá status de controlador e as responsabilidades dele decorrentes, seja por ação ou por omissão. (pp. 69)". O artigo 117 da lei 6.404/76 informa que "o acionista controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder" em caso de "eleger administrador ou fiscal que sabe inapto, moral ou tecnicamente" (§1º, "d"), "induzir, ou tentar induzir, administrador ou fiscal a praticar ato ilegal, ou, descumprindo seus deveres definidos nesta lei e no estatuto, promover, contra o interesse da companhia, sua ratificação pela assembleia-geral" (§1º, "e"), "aprovar ou fazer aprovar contas irregulares de administradores, por favorecimento pessoal, ou deixar de apurar denúncia que saiba ou devesse saber procedente, ou que justifique fundada suspeita de irregularidade" (§1º, "g"), e no § 3º do mesmo artigo deixa evidente que "o acionista controlador que exerce cargo de administrador ou fiscal tem também os deveres e responsabilidades próprios do cargo". Estas hipóteses legais precisam ser examinadas com base nos fatos públicos que se espalham mundo afora. Eventualmente deve-se buscar a via judicial, por parte daqueles que, além de seus interesses como cidadãos, sentem-se prejudicados enquanto acionistas pela tragédia que recai sobre a Petrobras.
terça-feira, 6 de maio de 2014

Os limites dos juros

O economista e estudioso da finança pública sob à óptica jurídica Bevenuto Griziotti (1884-1956), citado no artigo "A Benção de Hamilton na Semiperiferia: Ordem Econômico-Social e os Juros da Dívida Pública Interna" do Prof. Alessandro Octaviani, propôs a denominada "análise funcional do direito financeiro", pela qual o fenômeno (factual) financeiro fosse analisado em suas dimensões econômica, social, política e técnico-jurídica. Esta "análise funcional" tem o claro objetivo de atrair os valores que determinam a formação dos contratos na sociedade, bem como o próprio sistema normativo. Foge-se, assim, do formalismo jurídico pelo qual se observa as formalidades e a estrutura do denominado "negócio jurídico" para entender como estes se formam e, com efeito, se se ingressa no campo mais abrangente do fenômeno jurídico que projeta a sua validade perante o bem comum e os fins sociais da lei os quais, por sua vez, podem engendrar o abuso de direito e o desvio de finalidade. No direito empresarial, em geral, e no direito societário, em particular, estes conceitos já estão incorporados e, ademais, já dispõem em larga medida de positivação. O abuso do poder de controle (Fábio Konder Comparato), a função social do contrato e da empresa já são sinais visíveis daquilo que Griziotti preconiza na sua teoria funcional do direito financeiro. A subtração histórica e gradativa do império da forma e da estrutura adquire nova substância quando adentramos no campo da legitimidade política. Cria-se, por assim dizer, uma lógica intrínseca da norma pela qual o meio (norma) se adequa à sua finalidade, a qual se traduz em uma imposição jurídica igualmente legítima. Nesta diapasão "a vontade interna dos agentes" se vê limitada pelo ambiente externo (social), criando assim a "função jurídica" que acaba por guiar a norma e o contrato (entendido como norma entre as partes que o compõe). No âmbito do direito financeiro e da própria teoria econômica, esta construção se torna essencial de vez que passa pela investigação da necessidade e do interesse público e a própria atividade do Estado frente à norma jurídica. Note-se que quando referimo-nos à norma de direito financeiro neste caso, estamos a nos reportar ao orçamento público. Este não pode ser visto como mera imposição normativa para a ação do Estado e de seus agentes: à luz da visão de Grizotti, trata-se de uma norma que necessita ser "funcional" frente aos interesses públicos. Logo, analisar as rubricas do orçamento implicam não apenas vê-las como uma "regra", mas também se estas estão inseridas numa visão lógica, programática e funcional. Este aspecto é muito mais relevante em países subdesenvolvidos, caso do Brasil, de vez que a superação de sua condição depende da utilização dos instrumentos financeiros (muitos deles plenamente normatizados e codificados no direito financeiro). Pode-se inclusive verificar que na recente crise de 2008, nos EUA, a utilização funcional do orçamento, independente da dogmática regulamentar que o cercava, foi fundamental para que o Estado pudesse implementar políticas de suprimento de recursos para debelar a depressão econômica pós-débâcle. Ninguém ousou tergiversar sobre "quebras de regras" ou de "contratos" quando o Banco Central norte-americano e o Tesouro passaram a adotar planos de "salvação" por todos os lados, especialmente as instituições financeiras e o mercado de capital. No que se refere ao subdesenvolvimento, este caracteriza-se, dentre outros aspectos, pela ausência de capacidade estatal de se autodeterminar em diversos campos (tecnológico, administrativo, financeiro), bem como pela gravosa disparidade de renda e condições sociais entre as classes. Para estes aspectos, a superação depende da formação e instalação de instituições políticas que permitam ao Estado a aquisição de instrumentos para formular e executar políticas e programas que possam livrar o país do subdesenvolvimento por meio de processos endógenos de desenvolvimento (e.g. o tecnológico). Note-se que tais processos e instituições tem por norte aquilo que foi pactuado na Constituição de 1988. Portanto, não estão dissociados, à solta, relativamente à previsão jurídica que, a partir desta visão, adquirem o caráter de normas de aplicação imediata sem os "retardos ideológicos" quanto à sua eficácia (se contida, imediata, etc.). Assim sendo, ao proclamar os objetivos nacionais, a Constituição não pode ser analisada apenas como um documento declaratório com vista a nortear normas futuras que lhe darão eficácia (final). A Constituição per se já determina o que tem de ser feito, pois está a tratar de objetivos cristalinos, programáticos, direcionadores. Algo próximo da pregação jurídica de Bevenuto Griziotti, na determinação da norma pela sua função, sem delongas formalistas que, de fato, se constituem em verdadeiros empecilhos para a superação do subdesenvolvimento brasileiro. Ademais, estamos distantes mais de vinte anos do vigor pleno da Constituição e ainda estamos a debater a sua eficácia. Soa mal, digamos. Neste contexto, a questão do elevado e caríssimo custo da dívida interna brasileira merece reflexão, sobretudo, nestes tempos eleitorais que se aproximam. Alexander Hamilton (1755-1804), como primeiro secretário do Tesouro norte-americano, utilizou com arte e sabedoria, a capacidade de endividamento do Estado para criar as condições materiais para a transformação econômica da América pós-independência e contra as anteriores políticas britânicas que norteavam a economia americana pela dependência e subdesenvolvimento. Ora, foi por causa desta evidente constatação que Hamilton via a questão do endividamento em consonância com os objetivos desenvolvimentistas da política econômica de superação histórica da América. Estruturou a regulamentação e o direito financeiro sob a guarda destes interesses maiores e nacionalista. Na visão marxista, este processo dizia respeito à "acumulação primitiva do capital", aspecto essencial que é o crédito público para a alavancagem do desenvolvimento capitalista. O orçamento público, por sua vez, é manejado para manter o crédito público não apenas viável, mas também organiza o sistema público de tal sorte este seja compatível com a solvência do sistema financeiro (o pagamento de juros e a rolagem da dívida) e, ao mesmo tempo, tenham o mesmo caráter funcional para o desenvolvimento capitalista - utilizar recursos financeiros presentes para o desenvolvimento imediato, sendo os seus pagamentos realizados no futuro, remunerados por uma determinada taxa de juros. De modo geral, pode-se dizer, que as despesas com os juros da dívida interna são uma rubrica orçamentária que tem de ser compatível com todo o sistema de direito financeiro, no qual o orçamento é uma expressão maior. Não pode-se tratar esta questão como se estivesse separada de toda a lógica econômica e financeira, inclusa aí a questão da viabilização do subdesenvolvimento. Seria por demais equivocado, para dizer o mínimo, separar o joio do trigo apenas na questão dos juros frente a todas as demais despesas e investimentos públicos. Ora, o Brasil é campeão mundial de taxa de juros e, por conseguinte, tem como maior despesa de seu orçamento o pagamento de juros de sua dívida interna. O orçamento da previdência social, da saúde e da educação estão muito abaixo do nível alcançado pela "orçamento da dívida pública" brasileira. Portanto, não se pode atribuir "apenas" à saúde, educação, previdência, segurança, etc. o excesso de gastos do Estado brasileiro. A sociedade tem de investigar as causas e os efeitos do excessivo endividamento público (50% do PIB), o qual é absolutamente incompatível com o tamanho da taxa de juros real praticada pelo país. Interessante que todos aqueles que estão empenhados em adequar o controle dos gastos estatais à uma "política", usualmente requerida para reduzir os gastos correntes não admitem o mesmo para a dívida pública interna. Seria isso um mero "truque ideológico"? De fato, a questão da taxa de juros no Brasil precisa ser analisada tendo em vista toda a lógica funcional da política econômica, bem como dos artifícios normativos do direito financeiro que dela resultam. Senão, perde-se a oportunidade histórica de operar o crédito público com o objetivo de servir ao desenvolvimento, tal qual Hamilton fez na América (e não na URSS). Este debate não é apenas necessário, pode-se dizer seguramente. Ele é condição sine qua non para que exista uma reorganização financeira do Estado brasileiro com vistas ao desenvolvimento. Não é pouca coisa, como se pode ver.  
Muito se comenta no mercado financeiro e de capital, bem como em segmentos profissionais especializados (e.g., consultorias financeiras, empresas de auditoria independente, etc.), sobre "valor justo" de um ativo/passivo e/ou empresa. Neste caso, "valor justo" poderia ser resumidamente definido como aquele valor calculado por meio de um modelo de avaliação geralmente aceito e baseado num conjunto de premissas específicas aplicáveis ao caso concreto. Como se pode verificar um conceito como este é bastante amplo, muito embora seja o que de fato é a prática financeira moderna. No que se refere aos modelos, de uma forma geral, pode-se dizer que estes levam em consideração (i) expectativas de retorno (e.g., fluxos de recursos futuros relacionados aos ativos) e (ii) variáveis de risco (e.g. risco específico dos fluxos de caixa e o risco de mercado). No que se refere às expectativas de retorno, estas são formadas por variáveis com múltiplos inter-relacionamentos (e.g., avaliação de produtos e seus respectivos custos) e não relacionadas (e.g., o crescimento setorial ou do PIB). No que tange às variáveis de riscos estas podem ser "extraídas" de dados de mercado (e.g., taxas futuras de juros, volatilidades implícitas dos ativos, etc.) ou serem inerentes à natureza do próprio setor/produto (e.g., eventuais mudanças tecnológicas). Observados estes conjuntos de variáveis de retorno e risco percebe-se claramente que se trata de um emaranhado de dados objetivos e subjetivos que, uma vez "emoldurados" por um modelo que calcula o seu "valor presente" (que é o valor futuro dos fluxos estimados de caixa descontados por uma taxa de juros e por uma taxa de risco). Usualmente, compara-se o resultado deste cálculo de "valor justo" com o valor praticado no mercado para se identificar o quão um ativo/passivo está caro ou barato (ou subavaliado e superavaliado). Toda esta complexa modelagem serve para "interpretar o futuro", o qual é opaco senão imprevisível. Foi uma construção histórica que consolidou estes modelos de avaliação os quais passam por revisões "científicas" de tempos em tempos que, por sua vez, geram um novo estado da arte no tema. É sob esta aura de elevada complexidade metodológica e de dados que devemos analisar a incorporação de ativos numa empresa para fins de aumento de capital. Apesar de toda a complexidade do tema, não é preciso ser um expert em finanças para se perceber que, não sendo elementar o cálculo de um "valor justo", é muito elevado o risco de se construir, a partir deste cálculo, uma operação de incorporação de ativos que produza efeitos sobre o capital de uma determinada empresa. Por meio da incorporação de ativos e sua correspondente alteração do capital (e.g., via aumento de capital) pode-se se onerar desigualmente os acionistas que (i) incorporam ativos e recebem novas ações, (ii) os que não incorporam e subscrevem novas ações em dinheiro e (iii) os que tem a sua participação no capital diluída e, em mesma medida (iv) a companhia. Não bastasse esta possibilidade, há que se frisar que os efeitos deste tipo de operação se propagam no tempo, pois quase sempre o que se estima em relação ao futuro de fato acaba por apresentar diferenças, às vezes substanciais. *** O artigo 115 da lei 6.404/76, reza que "o acionista deve exercer o direito a voto no interesse da companhia; considerar-se-á abusivo o voto exercido com o fim de causar dano à companhia ou a outros acionistas, ou de obter, para si ou para outrem, vantagem a que não faz jus e de que resulte, ou possa resultar, prejuízo para a companhia ou para outros acionistas". No parágrafo 1º do mesmo artigo consta que "o acionista não poderá votar nas deliberações da assembleia-geral relativas ao laudo de avaliação de bens com que concorrer para a formação do capital social e à aprovação de suas contas como administrador, nem em quaisquer outras que puderem beneficiá-lo de modo particular, ou em que tiver interesse conflitante com o da companhia". Note-se que no caso do caput do referido artigo, o legislador faz uma menção de natureza geral sobre o que é um voto abusivo (aquele que causar dano à companhia ou a outros acionistas). No caso, a lei não distingue se o acionista faz parte ou não do controle da empresa, bem como distingue claramente a companhia de seus acionistas. Protege assim certos acionistas de outros e a companhia de quaisquer destes. Trata-se de uma tutela geral que incorpora os modernos conceitos e postulados da literatura de finanças que distingue claramente os interesses corporativos (em razão da "função social da empresa") dos interesses entre acionistas (controladores ou não). De outro lado, no § 1º do artigo 115 da lei das Sociedades Anônimas, o legislador construiu uma proteção específica em relação à aprovação de "avaliação de bens com que concorrer para a formação do capital". Trata-se de uma tutela cristalina que levou em consideração o fato de que a avaliação de ativos, ao concorrer para a alteração do capital social, põe em risco a relação entre os acionistas e a própria empresa. Intrinsecamente, o legislador também reconhece que a complexidade dos laudos de avaliação de ativos, por conterem variáveis sobre um "futuro opaco", de natureza objetiva e subjetiva, merecem redobrada atenção, razão pela qual aqueles que alteram o capital por meio de incorporação de ativos não podem votar nas assembleias realizadas para tornar efetiva tal incorporação. Trata-se não apenas de uma prevenção em relação ao visível conflito de interesses envolto na matéria. Há que se observar que, afora este conflito de interesses, tais laudos merecem um olhar independente daqueles acionistas que não se utilizam desta avaliação de bens para subscrever capital. Como se vê, não se trata de se verificar se há dolo ou culpa, se o laudo é positivo ou negativo, se o método adotado é o adequado, etc. Trata-se de uma restrição protetiva objetiva, aplicável diante de uma realidade factual, normalmente de fácil verificação (a incorporação de bens para a formação de capital). Com efeito: não há muito que se interpretar em relação à vedação, mesmo que haja muito que se interpretar em relação às suas causas (conflitos de interesse, prejuízos possíveis à companhia, complexidade dos laudos de avaliação, etc.) Observados os aspectos acima e brevemente enunciados, é à luz destes que se deve analisar a autorização dada pela Comissão de Valores Mobiliários (CVM) de 25/3/14 que autorizou que os acionistas controladores da Oi votassem na Assembleia de Acionistas que aumentará o capital da empresa por meio de incorporação de ativos. Parece-nos que os limites contidos no artigo 115 da lei das S.A. foram transpassados injustificadamente. Enormes riscos de prejuízos à companhia e aos outros acionistas foram criados, além da evidente prova de que a proteção aos acionistas é um assunto "muito flexível" no país, a despeito de todo arcabouço legal e regulatório sobre o tema.
A Constituição Federal promulgada em 1988 foi, sem sombra de dúvidas, um dos maiores avanços políticos na história brasileira. Embora ainda estivéssemos sob a presidência de José Sarney, prócer da ditatura militar, a nova Constituição empurrava o país para um novo período democrático. Muitos criticam o fato de a nova Constituição democrática ser extensa, recheada de novos direitos individuais, sociais, econômicos e políticos. Ocorre que o pacto político que originou a nova Constituição surgiu depois de vinte anos de regime autoritário e ao final de um século com profundas transformações no país. O processo retardado de industrialização, em meio à instabilidades institucionais, foi dos mais rápidos e de maior porte dentre as maiores economias industriais do ocidente. O Brasil, do início do século até 1988, cresceu a uma média ligeiramente superior a 5% ao ano e em cerca de quarenta anos transformou-se em uma sociedade urbana a partir de um ruralismo pós-escravocrata, oligárquico e de monocultura, quando não apenas extrativista. Este processo de profunda transformação econômica, não foi acompanhado pela correspondente evolução dos direitos sociais e políticos. Ao contrário, as ditaduras e instabilidades institucionais foram como um contrapeso das classes superiores para que não se desenvolvesse a dinâmica capitalista clássica, marcada pela formação de classes salariais que se apropriam de parcelas relevantes da renda e a expansão expressiva das denominadas classes médias, urbanas e cujo acesso se deve fundamentalmente à educação. De fato, a concentração de renda - a maior entre os vinte países mais industrializados - foi uma das cicatrizes mais aparentes que se podia verificar quando do nascimento da nova Constituição de 1988. Os direitos sociais declarados na referida Constituição se tornaram na maior parte das vezes encargos adicionais para o Estado. O setor privado acabou sendo onerado a posteriori com a paulatina e substantiva expansão do número de tributos e da tributação - em 1988 representava algo como 22% do PIB e dez anos depois, em meio a seguidas crises de balanço de pagamentos, atingia marcas ao redor de 37% do PIB. Foi no contexto acima descrito que houve a distribuição das obrigações sociais entre os entes federativos, entre os quais os municípios passaram a integrá-los. De outro lado, no capítulo da Ordem Econômica, a Constituição de 1988, persistiu com a tendência secular por um sistema tributário centralizado, tendo a União a prevalência regulatória e em termos de volume de recursos no sistema de arrecadação e de distribuição dos tributos. Os Estados e municípios, especialmente estes últimos, não receberam parcelas de recursos congruentes aos ônus. Vale lembrar que em 1988, os Estados ainda tinham à disposição um sistema financeiro próprio que poderia servir à atração de recursos financeiros privados para as necessidades de financiamento de despesas e investimentos, bem como a capacidade de endividamento dos tesouros com títulos estaduais e municipais. Afora os evidentes problemas de gestão, dentre os quais destaca-se a corrupção, tais instituições financeiras acabaram se tornando caudatárias do elevado endividamento dos Estados e municípios e, assim, apenas rolavam a dívida junto ao sistema privado, perdendo a sua função de organização de recursos para os projetos de Estados e municípios. A consolidação do endividamento público brasileiro ocorreu em meados dos anos 1990 em meio à necessidade da União reduzir as tensões criadas junto aos investidores internacionais em função do elevado endividamento de Estados e municípios, bem como, para atender as demandas do sistema financeiro doméstico que, apesar de ter ofertado crédito de forma duvidosa para os entes federativos, pressionavam para nada perder no processo de conversão de dívidas estaduais e municipais em títulos Federais, mais seguros e, geralmente, mais rentáveis. Neste contexto, dois efeitos relevantes foram engendrados no sistema federativo brasileiro: (i) os Estados e municípios consolidaram as suas dívidas e passaram a ter um custo fixo, eventualmente mais alto, ora mais baixo, que o custo do dinheiro no mercado (balizado pela autoridade monetária central, o BC) e (ii) comprometeu-se a título de "principal item" do orçamento os gastos de rolagem da dívida, seja para a União, seja para os demais entes federativos. O sistema financeiro doméstico e internacional foi inteiramente preservado neste processo de consolidação ao contrário do que ocorreu no período de renegociação da dívida externa entre 1990 e 1995 quando encontrou-se uma fórmula que combinou uma "saída de mercado" (reduzindo o valor presente da dívida) com a sustentação do balanço de pagamentos. A lei de responsabilidade fiscal (LFR - LC 101) de maio de 2000 surge como um elemento essencial para ordenar as finanças públicas brasileiras. Não há que se duvidar de sua necessidade estrutural, seja para impor transparência à finança do setor público, seja para obrigar que os entes federativos possam estipular planos de curto, médio e longo prazo em relação aos gastos públicos (despesas+investimentos) à luz das possibilidades concretas do setor público amealhar recursos para tanto. Isso tudo criou um sistema de "amarração" de gastos em relação à arrecadação e, assim, criou o "limite físico" entre o recurso disponível (via tributação, endividamento ou repasse de recursos) e o gasto a ser feito. Há que se honrar os méritos desta lei neste aspecto básico da boa gestão da coisa pública. Todavia, isso não é tudo. Se a LRF é uma espécie de cânone do sistema econômico brasileiro, há também de se reconhecer que esta perenizou uma injustiça federativa pela qual, os Estados e, sobretudo, os municípios tem limitações de arrecadar e se endividar muito embora as demandas pelos serviços públicos (saúde, educação, segurança, etc.) sejam crescentes desde a edição da Constituição de 1988. Ora, se de um lado a LRF tornou "sustentável" o endividamento público brasileiro do ponto de vista de risco (usualmente medido pela relação entre total da dívida pública e o PIB), de outro, esta acabou por tornar impossível a sustentação do aumento de demandas sociais por mais gastos em setores sensíveis, não medido por nenhum "índice". Com efeito: ou se repensa o federalismo brasileiro no campo das receitas (distribuição das tributação entre os entes federativos, endividamento de estados e municípios, etc.) ou se repensa os direitos contidos na Constituição Federal de 1988 (com todos os seus custos políticos) ou, ainda, se repensa ambos. É comum na mídia e na fala de certos analistas econômicos e do mercado financeiro e de capital a consideração de que o simples debate sobre a LRF seja um atentado às finanças públicas e a segurança dos investidores. Qualquer um que levante o tema é considerado um "heterodoxo", "agente da inflação", "populista" e outras coisas mais. Trata-se do já famoso apelo ideológico que esconde uma questão econômica-política-social-federativa mal resolvida e um considerável risco para o futuro do país. De fato, defende-se o sistema estabelecido, exigindo-se "ajustes" que não são propriamente "difíceis e duros", mas essencialmente impossíveis. Também é causa fundamental para o fraco e insustentável crescimento do Brasil. Há mais um efeito que merece destaque neste tema. Os Estados e municípios não estão somente perdendo capacidade de investir e implementar programas sociais. Estão perdendo capacidade de planejar. Isso porque a racionalização dos programas governamentais é feita sob um grau de incerteza substantivo em relação ao médio e longo prazo. De fato, a LRF exige que Estados e municípios façam planejamento de mais largo prazo, mas pune, de fato, os resultados considerados "negativos" que são de curto prazo. Ora, sob o peso de penas institucionais (sobretudo, financeiras) e pessoais, os prefeitos e governadores acabam por preferir uma gestão "medrosa" e não propriamente "conservadora" como seria desejável. Em ano eleitoral este tema deveria ser obrigatório para o questionamento dos candidatos. Provavelmente não será, pois o revestimento ideológico que protege o tema do debate acabará por evitar que se exponha também as mazelas da LRF no contexto do federalismo brasileiro, muito embora ninguém possa olvidar das evidentes virtudes ontológicas da lei. Os candidatos não querem falar nada que perturbe o tal do "mercado" e certos setores de "formadores de opinião". Mesmo que diuturnamente possam ver prefeitos e governadores de "pires na mão" nos corredores das repartições de Brasília, buscando sanar os problemas do federalismo brasileiro, enquanto os cidadãos demandam mais e mais direitos constitucionais legítimos.
Afora os evidentes aspectos políticos, econômicos e de administração da res publica, a divulgação da transação envolvendo uma refinaria localizada em Pasadena, Texas, nos Estados Unidos deixa evidente outro grave problema envolvendo a maior empresa estatal brasileira, a Petrobras. Trata-se de sua governança corporativa, de importância fundamental para o pleno entendimento dos últimos acontecimentos envolvendo a empresa petroleira. Desde o início do século XXI, a governança corporativa no Brasil encontra sólidas bases, seja na regulação legal, seja na infralegal (inclusa as instituições de mercado). Isso vale especialmente para o caso das empresas de capital aberto, dentre as quais encontra-se a Petrobras que é o foco deste artigo. A lei das Sociedades Anônimas (6.404/76) foi reformada pelas leis 10.303 de 2001 e 11.638 de 2007 e incorporou suficientes previsões e institutos que criam um sistema bastante razoável de checks and balances que permite o equilíbrio entre os interesses dos acionistas detentores do controle acionário, os administradores das empresas e a parcela mais numerosa desta relação, paradoxalmente denominados pela doutrina jurídica e pelo jargão de mercado de "acionistas minoritários" ou "preferencialistas". De fato, tais acionistas são os "acionistas investidores", aqueles que ordinariamente tomam riscos quando adquirem ações preferenciais das empresas nas bolsas de valores do Brasil e do exterior (usualmente via recibos de ações). Infelizmente, tais investidores ainda não tem a "maioridade capitalista" de deterem o poder de voto. Apenas excepcionalmente estes podem emprestar o voto para tomar decisões, como no caso de incorporação de ativos dos acionistas controladores. Mesmo assim, seus interesses e direitos são fustigados por querelas junto aos órgãos regulados (no geral, a CVM - Comissão de Valores Mobiliários). Chegará o dia no Brasil em que "uma ação representará um voto" para o bem do desenvolvimento do capitalismo brasileiro. A governança corporativa, devido à inexistência do direito de voto para as ações preferenciais, apesar de elevados padrões formais ainda carecem de fortaleza material. Afinal, sem o direito de voto, os acionistas preferencialistas acabam, no limite do exame das questões corporativas, limitados pelos interesses do acionista controlador. Note-se que isso ocorre em detrimento de uma mais perfeita avaliação das empresas, cujo valor de mercado (market value) acaba minimizado fossem todas as ações detentoras do direito de voto. Há, de fato, uma estranha democracia censitária pela qual o investidor pode tudo, só não pode aquilo que o acionista controlador não quer. O Estado, por meio de seus órgãos reguladores (CVM, por exemplo) e de fomento (onde pontificam o BNDES e o BNB), foi um instrumento que contribuiu decisivamente para a melhoria da governança corporativa ao exigir melhores padrões quando da concessão de empréstimos e investimento. No momento, contudo, poderia o Estado acelerar ainda mais as mudanças que valorizariam as ações preferenciais, sobretudo nas fusões e aquisições que patrocinam. Não é o que ocorre, de vez que, parece estar acomodado em relação ao tema. No caso das entidades privadas, notadamente a BMFBovespa e os fundos de investidores institucionais (fundos de pensão, fundos de investidores ativos, etc.), os avanços quanto a governança corporativa são mais contínuos mesmo porque tais entidades estão mais próximas dos interesses forjados pelo mercado. Não à toa, os níveis de governança corporativa implementados pela Bovespa, no passado, e mantidos e reavaliados continuamente pela BMFBovespa atendem infralegalmente aos mais importantes interesses dos investidores e são parâmetros internacionalmente reconhecidos. Há, ainda, um outro aspecto a ser observado no tema. A governança corporativa não pode ser olhada apenas como interesse do mercado de capitais ou um interesse meramente "microeconômico" na nomenclatura da literatura econômica. Vai além disso. Na verdade, a excelência da governança corporativa é, no limite, de interesse público, pois a separação entre interesses privados e públicos está cada vez mais mitigado pela realidade observada nos diversos segmentos de mercado. Uma crise que envolva empresas privadas relevantes é na essência uma crise macroeconômica e é por esta razão que a partir do último quartil do século passado os Estado acabou intervindo nos processos tipicamente de mercado e sendo articulador do saneamento de grandes e médias empresas. Os mais liberais não comentam muito este aspecto factualmente evidente, mas não se importam de se valer do Estado quando os riscos acabam afetando os ativos privados e o denominado risco sistêmico. A Petrobras, neste contexto, é um caso que merece as maiores e melhores atenções. É a maior empresa brasileira, responsável por enormes investimentos setoriais e pelo fornecimento do mais importante insumo que viabiliza toda a dinâmica da logística doméstica do Brasil. Além disso, é uma empresa de capital aberto e se serve do mercado de capitais local e externo para a satisfação de suas operações de crédito e de equities. O prejuízo verificado na aquisição da Refinaria de Pasadena, bem como as denúncias envolvendo padrões éticos duvidosos no caso do aluguel de plataformas de petróleo são resultados de uma conjunção de fatores, alguns declinados, outros camuflados pela obscuridade das indicações políticas de seus diretores e pelas práticas comerciais e administrativas que confundem o público e privado, quase sempre com desvios na direção de bolsos alheios. A governança corporativa da empresa demonstra com sólida evidência que "há algo de errado no reino da Petrobras". A presidente do Conselho de Administração de quando a já famosa operação de Pasadena foi concretizada era a atual presidente da República. Provavelmente, ela não mente quando diz que tomou decisões baseadas em "laudos incompletos", muito embora tenha votado a favor do negócio e, nisso, foi acompanhada pelo restante dos conselheiros da empresas, inclusos aí, personagens de alto coturno da indústria nacional como Jorge Gerdau. Lembro neste ponto a responsabilidade pessoal dos conselheiros em relação aos votos proferidos em relação à condução dos negócios corporativos. Muito provavelmente, a Petrobrás carecia, como ainda carece, de uma governança corporativa sólida, calcada nas necessidade de conciliar os interesses públicos e privados dos quais a empresa é uma espécie de "fiadora". No que tange ao papel dos conselheiros, vale dizer que o material produzido pela empresa relativos às reuniões do Conselho de Administração e enviado aos seus conselheiros é volumoso como a velha Enciclopédia Britânica. Somente conselheiros profissionais e extremamente dedicados podem ler este material e, com espírito crítico, votar nas matérias que dependem de decisão. Teria a então ministra Dilma Rousseff tempo para isto? O mesmo vale para o empresário Jorge Gerdau e outros conselheiros. Ademais, pergunta-se: um general de Exército é o melhor conselheiro para uma estatal, no caso de então o valoroso Gleuber Vieira? Por que os acionistas "minoritários" não tinham verdadeiramente uma representação no Conselho de Administração? Isso não poderia criar um sistema mais eficiente de checks and balances em favor da empresa? Por que a transparência desta operação permanece tão obscura se se trata de uma empresa de capital aberta e com deveres legais de informar? Não bastasse isso, percebe-se que aquela situação perpetua-se. Dentre os candidatos à composição do Conselho de Administração que devem ser eleitos no próximo dia dois de abril, estão inclusos Guido Mantega (ministro da Fazenda), Marcio Zimmermann (secretário Executivo do Ministério das Minas e Energia) e Luciano Coutinho (presidente do BNDES). Note-se o peso destes conselheiros na gestão da empresa e o quanto estes representam os interesses governamentais conflituosos, em muitos casos, com os da empresa. Não seria melhor que houvesse mais equilíbrio na composição do Conselho de Administração? É certo que o acionista controlador, no caso a União, necessita ser representado, mas empresas públicas que operam no regime jurídico de empresas de capital privado requerem mais do que representação. Requerem atributos de gestores, de experts na administração de negócios e defensores de padrões privados de eficiência. A título de ilustração analise-se o caso das multas bilionárias (R$8,7 bilhões) aplicadas pela Receita Federal à Petrobras. O Presidente do Conselho de Administração da Petrobras é o chefe supremo da Receita Federal, o Ministro Guido Mantega. Se isso não é um flagrante conflito de interesses, o que mais poderia ser? Hoje a Petrobras tem apenas um representante dos "acionistas minoritários". Isso é outra evidência de que o governo não está atento aos interesses da governança corporativa da estatal em prol da defesa do valor da empresa. Pensa estar a defender, de forma errônea (para dizer o mínimo), os interesses do Tesouro em detrimento do tal do mercado. Triste ver que as autoridades pouco se sensibilizam com a perda gigantesca de valor de mercado - as ações que já foram cotadas a R$ 62 valem R$ 14 atualmente. Neste sentido, a questão dos desajustes do preço dos combustíveis é "apenas" mais um elemento a evidenciar o extraordinário desequilíbrio nos poderes de gestão da empresa. A hora é de investigar os fatos ao redor da Petrobras e que geram tantas dúvidas e indignações aos investidores e aos cidadãos brasileiros. Todavia, também é rara ocasião de se repensar a governança corporativa da empresa. É o caso de torná-la um exemplo de como a adequada forma de gestão de uma gigante com esta serve aos interesses públicos mais relevantes. Inclusive poderia evitar que a presidente da República tivesse tomado decisões tão importantes com base em "laudos duvidosos".
terça-feira, 11 de março de 2014

Solidariedade e o fim do dualismo do Direito

Estamos, sem sombra de dúvidas, numa era em que a discussão dos campos jurídicos do público e do privado estão eivados de enormes concentrações de componentes ideológicos que cada vez mais não encontram ressonância na realidade factual. A separação clássica de Ulpiano entre o direito público e privado - quod ad statum rei romanae spectat e quod ad singulorum utilitatem pertinet - ainda é substancialmente marcante nos sistemas jurídicos de origem romana. Todavia, avançam solidamente na evolução dos direitos os marcos do direito germânico a partir do qual a distinção entre tais universos jurídicos vai sendo superada. O alemão Otto von Kierke (1841-1921), quem desenvolveu as ideias primevas do Direito Corporativo, já identificava na fórmula dualista de Ulpiano as consequências indesejáveis que convertem o Direito Público em regras formais de vezos absolutistas e que o Direito Privado carreasse frutos exageradamente individualistas para as sociedades modernas. Nada mais atual que esta discussão. Afinal de contas, há uma larga pregação de cepa "Liberal" admoestando sobre as intervenções estatais e, de outro lado, vê-se uma crescente e volumosa atuação do Estado a salvar a res privada com custos fiscais exorbitantes e, em muitos casos, descabidos. Não cabe nos dias de hoje o dualismo entre o público e o privado. Esta máxima é facilmente verificada nos fatos sociais. Veja-se, a título de luminar ilustração, a gigantesca intervenção realizada pelo Estado norte-americano, no âmbito do Programa TARP (Troubled Assets Rescue Plan) o qual injetou em instituições financeiras e outras empresas do denominado "setor real" algo como USS 1,0 trilhão (R$ 2,3 trilhões) para resgatar o setor privado das mazelas da irresponsabilidade corporativa de inúmeras instituições financeiras que literalmente apostaram em processos de investimentos altamente duvidosos. O mais intrigante desta realidade é que ainda restou em operação parcelas substantivas das sociedades ocidentais a pregar argumentos meramente ideológicos em favor da liberdade dos mercados e contra a intervenção estatal. Note-se que no caso específico dos EUA, os lobbies gravitaram (e ainda gravitam) ao redor da Câmara dos Representantes e do Senado para fazer valer a preservação dos interesses de grupos de poder alojados em Wall Street e outros recantos do capitalismo da maior economia mundial. Para o Direito, observa-se a franca utilização das instituições jurídicas em favor do Poder (político e econômico) em evidente desapreço aos fatos que proporcionaram imensas consequências sociais - o desemprego nos EUA atingiu o patamar acima de 10% da força de trabalho e na Europa são muitos os países com desemprego além dos 25%, mais de 50% entre os jovens abaixo de 30 anos. O Direito positivo, formal como é, destoou da própria materialidade dos interesses públicos em favor dos privados. Neste contexto, ressurge a antítese entre o público e o privado, como complicador da substância do direito. Há, de um lado, os que retomam a visão clássica marxista que evoca como mera construção do Poder burguês as instituições do Direito construídas desde o final dos anos 1940 do século passado. Assim, a intervenção estatal se justificaria pela necessidade de romper com os modelos vigentes reavivando, com efeito, a crença no vigor da revolução que integraria um novo homem social, sujeito tão somente orientado pelo Direito Público e Social. De outro lado, arraigam-se os ideólogos dos modelos liberais à defesa da propriedade, das obrigações e dos contratos e dos direitos sucessórios. Trata-se, no geral, da defesa inconteste do status quo econômico e social, o qual os fatos desmentem como possíveis de serem equilibrados por instituições de direito privado vigentes até agora. É preciso negar este dualismo imperfeito. Este é baseado na construção ideológica de que existe uma antítese entre o público e o privado que pode ser enquadrado em um único Direito. Neste contexto, há que se resgatar um tertium genus em que os direitos sociais sejam, de fato, limitadores dos interesses públicos e privados. No fundo, estamos a tratar de um Direito que enquadre os interesses numa visão de solidariedade social. Neste sentido, o direito romano-germânico europeu fornecesse todos os elementos suficientes para que se possa ter êxito na construção do Direito baseado na solidariedade. No Velho Continente o desafio é enquadrar as variáveis econômicas na capacidade financeira do Estado, separando o joio do trigo, os excessos de gastos não-sociais como se sociais fossem. Ali, trata-se não propriamente de guiar-se por um revisionismo conceitual do Direito, mas pela vigilância em relação às funções que sejam verdadeiramente essenciais para a sociedade. Em poucas palavras, revisitar as regras e verificar se estas são razoáveis para o exercício do Direito Privado entendido como uma Função Social, na linha já preconizada por Léon Duguit (1859-1928). Para o Brasil, esta discussão não é somente necessária. Num ano eleitoral como este, mesmo que obscurecido pela ufania da Copa do Mundo, a discussão sobre a Função Social no Direito deve ser vocacionada para o desenvolvimento econômico do país. Está evidente que desde o final dos anos 1980 que o modelo econômico está esgotado ainda que as demandas sociais tenham avançado numa velocidade enorme. Desta contradição, o tertium genus acima proposto tem de equilibrar as variáveis do consumo (inclusas as demandas sociais) e do investimento. Este equilíbrio dependerá em larga medida dos préstimos do Direito verdadeiramente solidário definido como aquele que combinar melhor as relações comutativas (entre os privados), as sociais (o privado em débito com o público) e as distributivas (o público em débito com o privado). Os atuais ocupantes do Poder não apenas confundem conceitualmente tais relações. Na maioria dos casos a confusão se origina numa "desconcertação" (proposital ou não) entre os interesses públicos e privados. Basta de debruçar com o orçamento do BNDES ou com os estragos na Petrobrás para se constatar a que ponto chegamos. Há evidente desproporcionalidade às necessidades e méritos sociais e à capacidade de contribuição dos entes sociais para com o todo. É desta desproporcionalidade que nascem os maiores riscos brasileiros deste momento. Por via tortas, destorcem-se as visões sobre os direitos envolvidos e criam-se os riscos aos contratos entre o Estado e os entes privados (concessões, PPPs, licitações, etc.). A armadilha em que o Brasil está engalfinhado se coaduna com as imensas contradições existentes no âmbito do dualismo prevalecentes no Direito dos países de capitalismo central. Logo, para estes últimos, há que se repensar novamente a linha existente entre o público e o privado, prevalecendo o Direito Solidário. Por estes lados, temos de escrever as primeiras linhas verdadeiramente republicanas sobre tal relação. O custo é a anticivilização na qual infelizmente vivemos.