Vez por outra, especialmente durante debates políticos em períodos eleitorais, ressurge a tese sobre a independência do Banco Central. Trata-se de tema complexo e extremamente delicado. Em princípio, um assunto destes não deveria ser um slogan ou um mote de campanha de vez que a sua complexidade não permite compatibilizar a necessária profundidade no debate sobre o tema com o escasso tempo de medíocre propaganda eleitoral na mídia. Todavia, o que se vê é que, nesta hora eleitoral, prevalece a panaceia e não o verdadeiro debate. Este artigo, mais extenso que o usual, tem o objetivo de delinear alguns aspectos sobre o tema, sem a pretensão de esgotá-lo, está claro.
A lei 4.595/64 foi a que criou o Banco Central do Brasil. Concebia-se naquele período autoritário uma entidade executiva, supervisionada e orientada pelo Conselho Monetário Nacional (CMN), o qual teve várias feições durante o regime militar, desde o absoluto controle ministerial do governo (governos Castello Branco (1964-1967) e Costa e Silva (1967-1969) até uma espécie de "vitrine" da economia nacional, com a participação de empresários de vários setores, nos governos Geisel (1973-1979) e Figueiredo (1979-1984). Obviamente, não se poderia falar em "independência" neste contexto. A redemocratização, gradual e lenta, conforme preconizava o regime autoritário, não alterou a configuração original do Banco Central (BC). O governo José Sarney (1984-1989) acabou por utilizar a instituição para a execução da baixa política que caracterizou o seu mal afamado governo. Até escândalos de corrupção marcaram a gestão do maranhense em relação ao BC, coisa relativamente rara naquela autoridade monetária. Todavia, foi durante o governo Sarney e no subsequente de Fernando Collor de Mello (1989-1992) que se consolidou a ideia de que o BC é peça essencial na estabilidade da moeda - aquele era o período da hiperinflação. Muito embora a manutenção do poder de compra da moeda esteja na Lei 4.595/64 como principal missão do BC, de fato, a indexação da moeda durante o regime autoritário acabou por minimizar funcionalmente o papel da autoridade monetária. Além disso, mecanismos de emissão direta de moeda para cobrir déficit do Tesouro Nacional, tal qual a "famosa" conta-movimento do Banco do Brasil, extinta apenas em 1986, após o lançamento da fracassada tentativa de estabilização via Plano Cruzado, acabavam por limitar o controle da moeda pelo BC.
Foi durante as gestões dos presidentes Itamar Franco (1992-1994) e Fernando Henrique Cardoso (1994-2002) que o CMN foi restruturado para operar apenas como um órgão governamental (sem a participação de outros membros senão os ministros da área econômica do governo), bem como foi essencial para a viabilização do bem-sucedido Plano Real (lançado por Itamar em 1993). Até 1999, com a adoção do modelo de câmbio semifixo (crawling peg), o BC acabou tento papel essencial em três frentes: (i) controle da moeda, (ii) implementação da política cambial e (iii) restruturação do sistema financeiro por meio do saneamento e privatização dos bancos estaduais e das fusões e aquisições de bancos que vieram a sofrer intervenção ou liquidação (Bamerindus, Nacional, etc.).
Em 1999, após a adoção do regime cambial flutuante, o BC foi novamente reformado "operacionalmente" e passou a adotar o atual regime de metas de inflação. Assim, abandonava-se o denominado controle quantitativo da moeda e passava-se ao "controle das expectativas dos agentes". Por este sistema, consagrado na gestão monetária do Federal Reserve (EUA) e do então recém-criado Banco Central Europeu, e posteriormente usado pela maioria dos países desenvolvidos, o BC (ou o Executivo ou o Legislativo) estabelecia metas de inflação as quais, para serem cumpridas, dependiam da manipulação pelo BC da taxa de juros básica. Singelamente: se as expectativas em relação à inflação são altistas, a taxa de juros básica deve subir ex ante. E vice-versa. Este modelo, intrinsecamente, baseia-se na elevada credibilidade do BC sob dois aspectos básicos: (i) de que agirá tecnicamente no estabelecimento da política monetária em vista da meta de inflação fixada, no caso do Brasil pelo CMN, e que (ii) agirá com "independência" em relação às outras instâncias do Poder Estatal. Este é o atual status quo do BC.
Agora temos o debate sobre uma nova "independência" do BC. O atual governo, assim como o de Lula da Silva e Fernando Henrique Cardoso, prega uma "independência operacional", cuja definição não é exata, mas poderia ser estabelecida em relação "à Fazenda e à Presidência da República", mas não seria absoluta: dependeria de uma coordenação entre os objetivos do governo e da política monetária. Como se vê, trata-se de uma independência baseada no comportamento presumidamente responsável do governo em relação à função monetária exercida pelo governo. Em última instância, a eventual irresponsabilidade em relação à inflação seria avaliada pelo eleitor, na eleição ou reeleição do Presidente da República. Neste modelo, os diretores do BC podem ser demitidos ad nutum, por livre vontade da Presidência da República.
O modelo de "independência plena" tem por principal pressuposto a fixação de mandatos para os diretores do BC, normalmente intercalados com o da Presidência da República, sendo que os diretores apenas podem ser demitidos pelo Congresso Nacional em caso de fato antijurídico contra o Estado. Havendo normalidade legal em suas ações, são indemissíveis. Este pressuposto essencial do modelo de plenitude de independência do BC, contudo, não pode ser adotado sem que se revisse completamente as funções do BC. São "detalhes" extremamente importantes para definir a questão da independência. Vejamos.
A lei 4.595/64 define como objetivos do BC (i) zelar pela adequada liquidez da economia (emissão de papel-moeda, meio circulante, estabelecer empréstimos compulsórios, operações de redesconto, regras de compensação de títulos, compra e venda de títulos federais, exercer o controle do crédito etc.), (ii) manter reservas internacionais em nível adequado (controle do fluxo de capitais, administração das reservas, etc.), (iii) estimular a formação de poupança (um objetivo bastante genérico) e (iv) zelar pela estabilidade e promover o permanente aperfeiçoamento do sistema financeiro (exercer a autorização e fiscalização das instituições financeiras, fiscalizar e opinar em relação às fusões e aquisições do setor financeiro, estabelecer condições para o exercício de cargos de direção de instituições financeiras, etc.)
Como se pode verificar pelo conteúdo da lei do Banco Central, os objetivos da autoridade monetária são amplos. Nem todos estes objetivos requerem a "independência absoluta" pregada por alguns. Dentre as quatro funções básicas do BC (manter a estabilidade, execução da política de reservas internacionais, fiscalização do sistema financeiro e normatização deste) poderíamos dizer que somente a manutenção da estabilidade requer uma maior independência do BC em relação ao Executivo. Assim sendo, seria preciso "cindir" o BC e criar "órgãos especializados" para cada uma destas funções, o que depende da adoção de diplomas legais específicos. Caso contrário, se estaria concedendo ao BC uma parcela de autonomia indesejável, porquanto amplo, perante o conjunto do Estado brasileiro.
Há, ainda, uma definição relevante em relação a "independência". Se de um lado deseja-se autonomia em relação ao governo, de outro, deve-se salientar que a "independência" também deve ser dada em relação ao sistema financeiro. Afinal de contas, não é difícil perceber que há acúmulo quantitativo e qualitativo de conflitos de interesses entre o papel do BC e as instituições financeiras.
Neste último aspecto, a experiência internacional, muito embora ainda não exista muita pesquisa acadêmica recente em relação ao tema, deve nos deixar alertas em relação aos conflitos de interesses difusos (representados pelo papel estatal e institucional de um BC independente) e os interesses específicos das instituições financeiras. A crise de 2008 levanta a hipótese, bastante plausível, de que a frouxidão da política monetária e de crédito dos principais BCs dos países desenvolvidos foi determinante para o maior colapso financeiro desde 1929. Neste caso, a independência dos BCs pouca importância teve no controle monetário necessário à contenção de crises prospectivas. Portanto, a independência absoluta do BC não é uma "garantia" igualmente absoluta contra crises sistêmicas ou, até mesmo, processos inflacionários renitentes. O que a experiência demonstra é que o adequado sistema de checks and balances entre o governo, o BC, o Congresso e outras instituições estatais (no caso do Brasil, a CVM, a Receita Federal, etc.) é essencial para o sucesso da política monetária, no seu sentido amplo (estabilidade do sistema) e restrito (controle da inflação).
Como se vê, do ponto de vista histórico e legal, a questão da independência da autoridade monetária requer uma ampla reforma dos diplomas legais atuais. Deve-se, à luz destas mudanças, construir atribuições e limites entre as instituições que contribuem para a estabilidade do sistema financeiro e da moeda nacional. Este não é um assunto tão "consagrado" internacionalmente quanto pregam alguns preconizadores da independência absoluta do BC. Da mesma forma, a autonomia operacional, vigente atualmente, também não pode ser considerada como "suficiente" para garantir a estabilidade da moeda nacional. O Brasil deveria construir um modelo próprio de independência do BC - os "detalhes" neste caso são essenciais. Pode-se, é claro, adotar muitos dos pressupostos e arcabouços que são vigentes nos países que já tem modelos de independência do BC. Todavia, é preciso observar as (boas e más) características de nosso modelo atual e temperar a adoção da independência pelas boas características. Além disso, vale lembrar, que a independência do BC é questão de interesse público amplo e não deve e não pode ser construída par atender apenas os interesses do sistema financeiro.