O encerramento formal do processo de impeachment da presidente da República Dilma Vana Rousseff permite que essa estranha figura política saia da cadeira presidencial e entra na história. A tarefa de investigação profunda de seu período de seis anos de mandato é necessária. Da sua ascensão ao centro do Poder até o seu destino político de agora, a personalidade política de Dilma Rousseff se caracteriza pela incapacidade administrativa, insensibilidade e palidez na articulação da política, substancial ignorância econômica, boa vontade com as políticas sociais e comunicação confusa e, muitas vezes, contraditória. Isso parece claro e foram as causas reais de sua queda, por meio de um arcaico método institucional que a colocou como "improba", aspecto esse que não resta provado. O processo de impeachment, tal como aplicado à Collor e Dilma, é simplesmente incompatível com o processo político, econômico e social de um país das dimensões do Brasil. Estamos parados ou em marcha lenta há mais de dois anos e os efeitos desse processo podem durar mais dois ou três. Simplesmente não dá mais para isso acontecer.
Pergunto ao leitor: como uma figura como a de Dilma, face as constatações acima descritas, ascendeu ao exercício do maior mandato da República? Como pôde Lula da Silva, conhecido por sua perspicácia e intuição, patrocinar politicamente alguém tão incapaz? E, finalmente, como Rousseff pôde ser eleita (com 55,7 milhões de votos) e reeleita (54,5 milhões de votos), ser tão popular (mais de 78% de avaliação "ótima" e "boa" em seu primeiro mandato) e ter a derrocada que ora se consolida no Congresso?
Essas questões terão de ser respondidas pelos sociólogos políticos, historiadores, enfim, por todos aqueles que se interessam pela política brasileira nos próximos anos. Todavia, está claro que Dilma Rousseff é parte de estranho enredo trágico, transpassado por quatro crises que persistem e é com estas que temos de nos preocupar, aqui e agora.
Nesse artigo mais longo, analiso as quatro crises que ao meu ver se constituem nos obstáculos mais sensíveis ao governo Temer e ao país. Vejamos.
Crise I: moralidade e política
A operação Lava Jato é a nossa melhor mostra da impossibilidade de construirmos um processo político baseado na corrupção, na lavagem de dinheiro, no nepotismo, no favorecimento de empresas, pessoas, corporações, etc. A leitura dos autos policiais e judiciais desta famosa operação é o roteiro completo do "estado das coisas" na política brasileira. A política virou "negócio", os partidos são "franquias" comandadas por caciques, em grande parte, de péssima estirpe e baixa capacidade de elaboração de boas políticas públicas e o Congresso não funciona para resolver problemas e deliberar leis em prol do país, mas para "chantagear" o governante localizado no Palácio do Planalto e dele extrair cargos e vantagens. É possível e viável avançarmos nesse contexto?
A reforma no campo político, portanto, terá de ser de porte, sob pena de propagação intermitente de crises. Observadas as propostas (projetos de lei) situadas no Congresso e em poucas instituições fora dele sobre a reforma das leis eleitorais e dos partidos políticos o que se vê é um quadro ainda muito incipiente de mudanças e transformações. Isso ocorre por dois fatores básicos: (i) a indiferença ou pouca mobilização da sociedade, inclusas as suas instâncias mais poderosas, e (ii) a devoção quase fundamentalista dos congressistas aos seus próprios mandatos e interesses.
Portanto, nesse item, o risco é elevado e grave para os agentes econômicos, em particular, e para a sociedade, em geral.
No curto prazo, a principal variável a ser observada é o andamento da operação Lava Jato. As próximas delações podem expandir ainda mais a visão da sociedade em relação às vísceras do Poder no Brasil. Teremos, muito possivelmente, novos atores políticos denunciados nos autos e na mídia. Preparemo-nos.
Crise II: representação versus poder real
Ao tempo da crise de moralidade na política a qual resumidamente nos referenciamos no item acima, há a "crise gêmea" de representatividade.
O crescimento da percepção da sociedade de que os partidos políticos não representam os interesses como deveriam (o que é verdade) motivou o crescimento de movimentos dissociados não apenas dos partidos políticos, mas também propagadores de que a "política é um mal". As denominadas redes sociais seriam o paradigma de novas relações, não apenas as sociais, mas também as políticas. Por essa lógica, as redes acabam se tornando espécie duvidosa de "processo eleitoral".
O paradoxo que se formou é considerável: de um lado esses movimentos baseados em rede manifestam-se enquanto "poder real" ou "de facto" e, de outro, vige a "política representativa", suportada pelos elementos legitimadores da Lei e das eleições, as quais não parecem mais proporcionar o acesso ao "poder real". Em poucas palavras: o poder se dissociou da política.
Nesse campo reside o risco estrutural de que a atmosfera contra a política aceite meios e formas autoritárias, cujo pano de fundo possível é o totalitarismo, mesmo que esse pareça, por ora, muito improvável. A própria operação Lava Jato oferece os sintomas de que o risco é considerável: de um lado, a força-tarefa encarregada dele, testa os limites da Lei e do próprio Estado de Direito por meio da adoção de práticas jurídicas novas e que alguns consideram contra legem (ilegais) e, de outro, o sistema político e estatal "tradicional" tenta se proteger por meio de tentativas de parar o processo de investigação e punição - as vulgarmente denominadas "operações-abafa". Os movimentos sociais, nesse contexto, estão claramente dispostos a aceitar eventuais abusos à Lei e à própria liberdade para sanear ou, até mesmo, extirpar a classe política, quiçá a própria política. Por enquanto, não está claro o que se colocará no lugar daquilo que é "tradicional", mas o autoritarismo parece ser opção próxima e, com efeito, perigosa.
Caso a crise econômica não seja superada, Brasília não se utilize do cérebro para mudar a realidade e a insatisfação social se intensifique é provável que sejam reacendidos os clamores dos movimentos de ruas os quais são capazes de protestar, mas tem baixíssima capacidade de elaborar e tornar efetivas as políticas necessárias à correção contra os fatos e conjunturas contra os quais protestam.
Crise III: capacidade fiscal versus direitos
Desde o final dos anos 1980s a intelligentsia tem pregado que o Brasil necessita de reformas estruturais para modernizar o Estado. Tais reformas permitiriam a construção da política fiscal que traria duas redenções macroeconômicas: (i) a primeira seria a queda da taxa de juros básica a qual nos últimos vinte anos gravitou no seguro intervalo entre 5% e 10% ao ano, em termos reais; (ii) a segunda redenção seria a do crescimento. Com menor nível dos juros reais, a poupança apurada no resultado primário do setor público se juntaria à economia nas despesas de juros da dívida pública e, assim, a taxa de investimento caminharia para os 25% do PIB - a qual gravitou entre 15% e 20% nos últimos trinta anos.
Pois bem: ultrapassados os mais de 32 anos da redemocratização do país, a única reforma estrutural levada à cabo foi a reforma monetária que recolocou o Brasil em condições de executar a política monetária. Mesmo assim, não faltam profetas e tribunos a denunciar os limites institucionais da política monetária frente às fragilidades fiscais.
Aqui não cabe os detalhes, aliás bem conhecidos, das falhas fiscais do país, previdência social à frente de todas.
Todavia, após o período petista, a crise fiscal terá de ser solucionada num contexto ainda mais difícil. Nesse contexto, o país registra queda consistente da produtividade por força da mudança demográfica que deixa claro que já somos um "país de meia-idade" e, ademais, o presidente cordial Lula da Silva combinou o crescimento econômico de seu governo (alavancado pelo denominado "bônus externo das commodities") com gastos sociais crescentes e sem resultados notáveis sobre a taxa de produtividade - benefícios previdenciários, de proteção social, trabalhistas, etc. concedidos contrastaram com a manutenção dos mesmos padrões na educação e tecnologia, apenas para citar dois campos que alteram estruturalmente a produtividade de uma economia.
Sob Dilma Rousseff, quando o "bônus externo" findou o seu ciclo, a introdução de novos gastos públicos fez aparecer o déficit fiscal, desta feita além do seu caráter conjuntural, ou seja, ficou claro que no longo prazo a situação era e é insustentável. Afora esse fato, a presidente adicionou à economia, políticas setoriais e monetárias duvidosas até para marxistas moderados. A ignorância presidencial em assuntos econômicos lançou o país na atual recessão o que se constituiu no principal fator para catapultar a presidente do Palácio do Alvorada.
Portanto, depois de Dilma Rousseff, o presidente Michel Temer terá de escolher entre uma política saneadora efetiva ou inflação/riscos ao crédito público.
Ocorre que não será possível combinar cortes de despesas e/ou aumento de tributos com benesses sociais de ocasião. Se tentar essa estratégia, Temer fracassará. A razão é simples, o Brasil precisa de teto de gastos para reduzir a velocidade de crescimento das despesas públicas em comparação ao PIB. A recuperação da capacidade de execução da política fiscal implicará inexoravelmente na redução de direitos já estabelecidos que impactem o orçamento.
A escolha possível de Temer está enquadrada na seguinte premissa: ou cortar direitos do lado do trabalho e/ou do lado do capital (renúncia fiscal e incentivos de toda a ordem). Pode perder apoio dos dois lados e, com efeito, terminar o seu meio-mandato enrolado em crise imprevisível.
Crise IV: favorecimento do capital versus desigualdade social
Dilma Rousseff ao acreditar que era possível quebrar os princípios gerais da boa gestão econômica imaginou estar contribuindo para a maior justiça social. O custo da tentativa Dilmista é o consistente retorno dos indicadores de desigualdade aos níveis anteriores ao denominado Lulismo.
Como já dissemos em artigos anteriores a política tecnoempresariocrática de Michel Temer pretende alterar regras das concessões públicas, das políticas setoriais de infraestrutura e, assim, facilitar o retorno do crescimento com base na atração do capital privado para esses segmentos. Essa louvável política microeconômica, entretanto, terá resultados lentos e graduais, além de dependerem de mudanças de marco legal.
Após o afastamento de Dilma e a ascensão de Temer, a melhor expectativa em relação à condução da política fiscal e monetária, fez com que, em apenas três meses, o crescimento econômico "na margem" mudasse de uma taxa negativa para algo entre 1,5%-2,0% de crescimento do PIB. Essa, será provavelmente a elevação do PIB em 2017.
Todavia, o Brasil precisa crescer acima de 3,5% para se tornar de novo um país promissor para o investimento. Assim sendo, o esforço de Temer terá que combinar forte ajuste fiscal, como já explicado no item anterior, com as pretendidas mudanças microeconômicas na área de infraestrutura. Nesse diapasão dificilmente a desigualdade deixará de se ampliar, apesar da existência de crescimento e não a recessão de Dilma Rousseff.
Ao favorecer o capital para alavancar o crescimento, Temer terá de lidar com a contradição de concomitantemente aumentar a desigualdade social, este efeito ainda retardatário da era lulista que adotou políticas populistas que anestesiaram as mazelas sociais, sem curá-las definitivamente ou, ao menos, colocá-las no caminho certo.
Com efeito, provavelmente ressurgirá a luta ideológica do passado, bem ao estilo latino-americano: a velha esquerda atrasada a pregar políticas populistas frente a um governo que terá de se desvencilhar de suas hostes patrimonialistas e oligárquicas.
O risco aqui é Temer não ter a coragem política para fazer a travessia necessária ao país e/ou tropeçar nos imensos buracos da política partidária, analisadas nos dois primeiros itens.
Conclusão
É difícil projetar o futuro em condições normais da economia e da política. É impossível quando estamos diante do cenário conturbado do presente. Todavia, parece-me que as variáveis estão postas e claras.
O período pós-Dilma engendrará mudança estrutural na política tradicional do país: ou esta se reformulará apenas parcialmente e manterá o seu caráter atrasado e, assim, manterá as estruturas arcaicas da economia brasileira ou veremos uma transformação essencial. Ocorre que essa alteração de essência ainda não tem feições mínimas de natureza para qualificarmos se serão suficientes para mudar para melhor a economia e as políticas sociais.
Este fascinante e perigoso momento do país será vivido muito provavelmente num contexto de baixo crescimento e aumento da desigualdade entre classes, a despeito da melhora evidente da política econômica sem a presença de Dilma Rousseff, como já se viu nos últimos três meses.
Temer se ambicionar alterar as tendências estruturais do país na economia e na área social terá de se arriscar e lançar políticas mais ousadas e profundas. Como sabemos, a política funciona inversamente ao mercado: primeiro são criados os fatos e depois as expectativas.