No Brasil, com base em dados do IBGE, são assassinadas 155 pessoas por dia. Em 2016, o número de mortes dessa natureza atingiu a marca de 61,6 mil. Dados preliminares de 2017 indicam que esse patamar deve ter sido superado - no primeiro semestre do ano passado fora 28,2 mil. O Vietnã é detalhe para o cenário brasileiro em comparação com a tragédia da América que tanto inspirou Hollywood: por lá morreram 58 mil soldados norte-americanos de novembro de 1955 até 1975.
Se o Brasil é "cordial" quando se trata da confusão entre as esferas públicas e privadas, no campo da violência pública, somos um país despojado de civilidade primária. Por aqui a vida humana vale pouco. O Estado por sua vez age de forma errática e ineficiente - calcula-se que menos de 10% dos homicídios sejam punidos. A política de segurança pública atrai atenção popular, votos para "justiceiros televisivos e imagéticos", mas não está inclusa na agenda do Estado. Assim, o populismo das ações política prevalecem sobre aquelas políticas que são efetivas, eficazes e justas.
O Rio de Janeiro, face à sua estrutura geofísica e a formação de sua aglomeração urbana (1,4 milhão de pessoas vivem em favelas na Cidade Maravilhosa, segundo o IBGE), é apenas a representação mais crônica e, ao mesmo tempo, aguda, das escaras criminais do Brasil. Do Morro da Providência, onde se formou a primeira favela com os ex-combatentes da "Guerra de Canudos", até a magnitude do "Complexo do Alemão" observa-se o descaso secular com políticas públicas, em geral, e a política de segurança, em particular.
Todavia, a Cidade Maravilhosa e o Estado Fluminense são também a representação do estado da política no Brasil: cinco de sete ex-governadores desde 1982, estão presos e/ou com acusações na Justiça. Por ali, a teoria dos checks and balances é bem particular: todos os poderes do estado estão envolvidos em malfeitos, para usar uma palavra amena ao descrever a geleia geral daquele pedaço do país.
Agora temos novidade no front: o Rio de Janeiro protagoniza a primeira intervenção federal desde a promulgação da Constituição Cidadã por meio da caneta do Presidente Michel Temer, apoiado pelas forças políticas de diversas cepas do Congresso Nacional.
Em vista dos números que ilustram o tema, está claro que o problema de segurança pública strictu sensu justifica medidas críticas para a solução desse triste quadro. Mas, ao mesmo tempo, não devemos nos iludir: essa intervenção se reveste de relevância substantiva e material para a política nacional, além -muros do trato do próprio tema.
O Presidente da República, empossado por força do impeachment da presidente-infanta Dilma Rousseff, sempre buscou a legitimidade política, muito embora tivesse obtido a legitimidade formal, garantida pela Constituição. De fato, jamais a obteve. Basta verificar os índices de aprovação e popularidade de seu governo. Estes esbarram em limites estreitos, algo como 10% dos totais apurados pelos institutos de pesquisas. Em ano eleitoral, de eleições quase gerais, o ocaso do presidente seria bastante natural. Com índices estatísticos de popularidade tão ínfimos, o poente do atual mandato presidencial se assemelhava aquele que o acadêmico das letras José Sarney vivenciou antes da eleição de Fernando Collor de Mello em 1989.
A estratégia de Temer, desde sua posse até o anúncio da intervenção federal no Rio de Janeiro, consistiu em atrair para o seio de sua administração temas relacionados às denominadas "reformas estruturais", assim como, o retorno ao leito seguro e tradicional da macroeconomia com o objetivo de enraizar sua legitimidade política sobre o capital, as empresas e, se possível, o mundo financeiro empresarial - o que denomino de política tecnoempresariocrática. Nesse sentido, registrou sucesso na reforma trabalhista, no controle da inflação e na política monetária, em geral. Obteve resultados ruins nas finanças públicas o que, em verdade, se deve aos efeitos tributários da recessão pós-impeachment, bem como, por causa de problemas estruturais, notadamente no caso da previdência social. Especificamente, em relação à reforma previdenciária, Temer propôs um bom conteúdo reformista, mas esbarrou na tradicional inapetência congressual para tratar de temas espinhosos, mesmo que estratégicos, bem como no corporativismo de dois milhões de funcionários públicos que imobiliza a sociedade como um todo. Aqui, ficou evidente que de nada adianta lotear o governo com partidários que possuem votos nas câmaras baixa e alta do Legislativo, pois o sistema político do Brasil não responsabiliza, não há accountability. De fato, esse modelo político dá instrumentos facilitadores do clientelismo, da corrupção, do populismo, etc., conforme se vê nas tripas espalhadas pela operação Lava Jato.
Agora, o presidente da República empreendeu mudança qualitativa em termos políticos. Abandona as políticas embutidas tecnoempresariocracia que o garantiram sentado na cadeira presidencial para experimentar o protagonismo da, agora batizada, "dependência federativa". Por essa estratégia o presidente garante o centro das atenções por meio do exercício do poderio do governo central sobre o frágil sistema federativo. Começou em grande estilo: selecionou a segurança pública como tema, as forças armadas (e o orçamento correspondente) como meio e o Rio de Janeiro como fim. Isso pode tornar o seu poente presidencial em alvorada para a reeleição.
Ninguém pode, em princípio, desconsiderar o direito e, sobretudo, o dever de o presidente agir para sanar legítima demanda por política pública, no caso concreto, a segurança dos distintos cidadãos fluminenses. Ocorre que o meio escolhido (a intervenção via forças armadas) pode rapidamente se transformar em fim e aí o risco sobe. Explico.
Levando em conta que a intervenção federal deva ser mesmo ser feita dessa forma, o que é no mínimo discutível, ao escolher um militar para cuidar da execução da estratégia, o presidente Temer repousará sobre o General Braga Netto as expectativas sobre o sucesso e o insucesso do controle da situação criminal no Rio de Janeiro.
Se o General Braga obtiver bons frutos da empreitada, o bônus irá ser contabilizada nos livros da popularidade presidencial, no exato período em que ele encerra seu mandato e poderá tentar um novo. Ocorre que deverá também ser depositado na pessoa (política) do General, distinto membro de uma das instituições que campeia o imaginário popular com a ideia de "segurança, paz e seriedade". Daí, decorrerá legitimação política da área militar fato que não ocorria desde a redemocratização.
De eventual insucesso da intervenção, o presidente escapará de seus maiores efeitos políticos e seguirá para o ocaso de seu mandato-tampão. Já do ponto de vista social, é possível, que haja demanda por mais intervenção militar no Rio de Janeiro ou em outros membros da federação, afinal de contas as forças armadas se constituem em espécie de "última instância" quando o assunto é segurança. Nesse caso, pode ser que o General Braga Netto (ou outro) não colha dividendos políticos, mas as forças armadas colherão maior protagonismo na cena política do país precisamente quando o vazio político é oceânico. Risco novo, como se vê.
O que ainda não ficou claro é se o peso do interesse político do presidente é maior que o próprio interesse público de tema que é o mais relevante para os eleitores dentre uma lista bastante extensa. A preocupação não deveria ser pequena em relação à possibilidade de o presidente ter agido de moto e também para o interesse próprio.
Está cristalino que a crise institucional brasileira se tornou crônica e, talvez por isso, seja menos percebida no corpo social, especialmente pelas elites. Não à toa, há engenharia política querendo levar esse caldeirão para Luciano Huck. Vejam só!