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Economia e finanças.

Francisco Petros
quarta-feira, 17 de fevereiro de 2021

Poder e autoridade em tempos de pandemia

Aqueles que têm Poder são desprovidos da autoridade necessária às mudanças necessárias ao país.   A pandemia é a maior tragédia econômica, social e psicossocial desde a última guerra mundial. Sendo extraordinária, não pode ter tratamento ordinário no que diz respeito às políticas públicas. Os governos providos de responsabilidade têm se esforçado em apresentar soluções mais holísticas que abranjam desequilíbrios conjunturais e estruturais. Vale notar que diante da realidade da pandemia do coronavírus, os policy makers não têm visibilidade temporal para avaliar os efeitos imediatos e mediatos dessa tragédia. Neste sentido, a pandemia se assemelha com a guerra: a destruição vai além do cenário das ruínas e penetra mais profundamente no tecido social e, com efeito, na arena política. O Brasil permanece, neste contexto, com a sua face e alma de país exótico. Não propriamente pelas especialidades de suas belas características naturais, mas, sobretudo, pelo zelo inconteste na manutenção da desigualdade social e do subdesenvolvimento econômico. A superestrutura política, com efeito, é a representação mais próxima daquilo que é a prática no país, sobretudo pelos que detêm o poder, seja o político, seja o econômico. Na falta de melhor citação filosófica fiquemos com Stanislaw Ponte Preta: "A prosperidade de alguns homens públicos do Brasil é uma prova evidente de que eles vêm lutando pelo progresso do nosso subdesenvolvimento". Noto, de minha parte, que os "alguns" da sentença pontepretana poderiam ser substituídos por "muitos". Neste ponto, há de se fazer a distinção clara entre os conceitos de "Poder" e "Autoridade". No uso do que desenvolveu Hanna Arendt, o poder (potestas) está relacionado com a pessoalidade de quem o exerce no presente. O sujeito que exerce meramente o poder se caracteriza usualmente pelo autoritarismo e arbitrariedade. Quem tem poder, possui força, mas não necessariamente autoridade (auctoritatis). Já a autoridade está enraizada no passado que ecoa no presente e traz a tradição à contemporaneidade (a educação, a lei, a cultura, etc.). A autoridade se reveste de dignidade. O poderoso tem autoridade concedida pelo outro (o eleitor?) e, muitas vezes, ele usa da coerção (que pode ser econômica) para submeter todos à mesma "verdade", o que é impossível, mas é tentado pelo poderoso. Quem tem autoridade é obedecido sem coerção vez que não tem a autoridade concedida pelo "outro" o que permite que este "outro" mantenha a sua liberdade. Ensinou Arendt em 1961 que "as numerosas oscilações na opinião pública, que há mais de cento e cinquenta anos têm balançado a intervalos regulares de extremo ao outro, de um clima liberal a outro conservador, e de volta para outro mais liberal, tentando em certas ocasiões reafirmar a autoridade e, em outras reafirmar a liberdade, resultaram somente em um maior solapamento de ambas, confundindo os problemas, borrando as linhas distintivas entre autoridade e liberdade e, por fim, destruindo o significado político de ambas". Feita essa distinção, voltemos à observação da realidade. A pandemia espalhada pelo mundo e pelo Brasil trouxe muitos males, mas também fez emergir a clara distinção entre os governantes que têm autoridade e aqueles que não tem, muito embora tenham poder disponível. Vimos que mesmo em democracias tidas como consolidadas, como no caso dos EUA, o alcance das arbitrariedades do poderoso de plantão bateu literalmente às portas do congresso nacional. As assustadoras cenas da turba invadindo o Capitólio para a tomada do poder propugnada por Donald Trump é sinal evidente de que o gap entre autoridade e poder vai além das meras aparências da democracia formal. Por aqui, coisa semelhante foi tentada em relação ao STF e o Congresso sob os auspícios ideológicos do poderoso de plantão. Ou não foi? Poderíamos apontar longa lista de causas que tornam a autoridade (e, portanto, a tradição) cada vez mais corrompida pelo poder. Retenho os argumentos em apenas duas de uma longa lista. Refiro-me à desigualdade concreta e efetiva vigente nas sociedades e, escancaradamente, no Brasil. Em segundo plano, a corrupção, não apenas a pecuniária, mas a dos valores republicanos colapsados na política. A discussão em torno do "auxílio emergencial" é retrato fiel da inexistência de combate à desigualdade. Não apenas os duzentos reais para os miseráveis retratam a limitação da pretensão governamental (e do Congresso) aos anseios eleitorais de 2022, assim como, as alegações de limitações fiscais se desmoralizam diante das concessões, e.g., de subsídios e benefícios fiscais de toda ordem às classes mais privilegiadas. A título de ilustração, foi revelado que multinacionais de refrigerantes recebem subsídios de R$ 2,0 bilhões em 2020 e 2021, 1/3 do auxílio mensal aos desprovidos nacionais. Apenas um pequeno exemplo do que é a caixa de pandora dos benefícios e subsídios fiscais no Brasil. Certo é que o governo atual não tem plano algum para reduzir a desigualdade social. Apenas promove a alegação ideológica de que o "mercado" resolve o problema. Sob o manto de falso liberalismo, o ministro da economia prega que "no governo Bolsonaro não haverá aumento de impostos". Ora, de quem e para quem o ministro fala? Pobres pagam a maior parcela dos tributos no Brasil vez que são os tributos indiretos os mais relevantes para o erário e estes são altamente regressivos do ponto de vista da renda. Como se vê o jogo de palavras é apenas um jogo de poder, sem qualquer autoridade ética, moral, política e republicana. Boa fortuna é a dos poderosos de plantão diante do doce silêncio da sociedade e da oposição. De outro lado, a conquista do poder pelo deputado Arthur Lira e Rodrigo Pacheco é daqueles fatos que demonstram que o Congresso virou as costas para o povo. Do sofrível português dos discursos verificou-se que o jogo eleitoral é endógeno e interno aos partícipes do convescote eleitoral daqueles que se sentam nas cadeiras dos plenários. Ali não se viu nenhuma discussão dos interesses sociais e políticos do país. Em verdade foi um desfile de políticos com bolsos recheados pelas verbas liberadas pelo liberal Paulo Guedes. Isso mesmo: as verbas que adoçaram o voto em Lira e Pacheco. Afora isto o desfile foi de um mau gosto imenso, das roupas ao palavreado. Há inúmeras análises dando conta da possibilidade de uma reviravolta que faça o país crescer. Pode ser que os números do PIB melhorem. Todavia, no ritmo que vamos a renda nacional dobrará somente em trinta anos e a desigualdade social ensejará disputas eleitorais cada vez mais perigosas dado o populismo vigente e crescente. O Brasil elege e promove os que têm poder, mas estes são desprovidos da autoridade necessária às mudanças necessárias ao país. A sociedade assiste passiva ao espetáculo. A oposição se tranca em copas para fugir dos processos de corrupção. O preço político deste cenário será alto. Não é a adoção da independência do Banco Central que levará o país à modernidade. Deixemos nossas ilusões às portas do Congresso Nacional.
terça-feira, 22 de dezembro de 2020

A devastação, a humildade e a sabedoria

"E vou mostrar-te uma coisa bem diversaDe tua sombra de manhã a correr atrás de tiOu de tua sombra à tarde a se erguer ao teu encontro;Vou mostrar-te o medo num punhado de pó." (Terra Devastada - T.S. Eliot)   Escrever sobre 2020 causa a sensação íntima de que estamos desprovidos de ideias e pensamentos diante de um papel em branco, tanto é o ineditismo do que vivemos e, ao que se pode ver, ainda viveremos. De fato, o vírus marcado por uma coroa, não conformado com sua própria virulência, não quis apenas reinar: fez-se imperador do mundo. O coronavírus, queiram ou não os políticos, intelectuais e cientistas, demonstrou que a humanidade necessita de mais humildade e compaixão, empática e coletiva. O que de fato aprendemos em matéria de política e economia ultrapassou as fórmulas áridas e consagradas em tempos não tão idos. Os governos e os mercadores das finanças aprenderam que déficit público per se não é causa de inflação ou colapso de crédito, quando combinado com um ambiente de recessão e desagregação dos fatores de produção. Ou seja, a ciência econômica não pode e não deve ser dogmatizada porquanto ciência social (e humana) que é. Todavia, não faltam tentativas de escravizar a economia em modelos fechados. Da mesma forma, as sociedades aprenderam que a taxa de juros, mesmo que negativa em termos reais (descontada a inflação) é ineficaz e inútil diante de perspectivas não apenas incertas, mas sobretudo diante da possibilidade de que a produção possa adentrar a um cenário disruptivo. Nesse 2020, os bancos centrais, de uma forma geral, se apequenaram perante uma realidade inexistente por um século. Os relatórios das autoridades monetárias se tornaram inúteis diante das possibilidades materiais e factuais da economia. Os relatos médicos foram melhores referências de estudo. Também foi tempo de descobrir que o vírus inoculou aqueles descrentes no Estado. Não fosse a finança pública e os instrumentos estatais, a comemorada "economia de mercado" teria entrado no inferno dantesco. Os tais dos liberais da economia podem até vocalizar os seus dogmas, mesmo que inúteis, mas a sobrevivência dos privados tem sido garantida com o dinheiro dos erários. Os ministros das fazendas apelaram para os gastos excessivos para salvar, em primeiro lugar, as empresas e os mais ricos. De resto, as sobras dos argumentos têm natureza ideológica e distante da mais viril realidade. Também desmoronou por terra a ideia de que é possível que as nações prevalecentes possam agir como se fossem únicas na Terra. Pudemos ver nações ricas construírem containers nas portas dos hospitais para acumularem os cadáveres que sequer puderam ser atendidos nos hospitais. Ademais, os sistemas de saúde não resistiram às pretensões de que estavam asseguradas pelos seus participantes ou pelos seus mantenedores. O colapso evidenciou que "PIB de primeiro mundo" não é garantia para que países ricos possam se sentir insulados da miséria que prevalece na maioria dos povos do globo. Impressionou ainda em 2020 que o populismo político pudesse ainda mostrar os seus dentes. A grosseria de suas ideias, a recusa em aceitar a ciência como uma das saídas dessa pandemia maldita, as demonstrações públicas de líderes contra as normas sanitárias mais básicas e o distanciamento social cravado por máscaras de proteção simbolizam o quanto pode ser cruel a prática política e seus praticantes. Por vezes, ficou claro que a coragem dos populistas deve ter raízes fortalecidas na sua própria ignorância. Joe Biden se constitui, a despeito de sua própria vontade ou história, em renovada esperança. Fosse o outro, o vencedor do pleito na América, o mau exemplo daquele ser ainda propagaria muita maldade e muita assombração à humanidade. E aqui vale dizer que a existência de considerável séquito a certos líderes não retira a necessidade de que se encontre uma saída honrosa para a política. Não precisamos ler a teoria do conhecimento de Bertrand Russel para aprendermos que o que vimos nos Estados Unidos pode ser o caminho para que aprendamos aqui que o populismo é manifestação paradigmática da bestialidade política. A pandemia também nos abriu os olhos para a necessidade de uma ética em relação ao meio ambiente. Não haverá sobrevivência neste Planeta Azul se não houver consciência coletiva e individual de que moramos na mesma casa e dela temos de prestar cuidados. A economia da quarta e quinta geração necessita da inclusão dos consolidados valores éticos da solidariedade e do respeito mútuo. Senão, não haverá preservação. O financismo que impera nos mercados financeiro e de capital permanece como o risco mais perigoso para a estabilidade econômica mundial. Os preços dos ativos nos píncaros é sinal dos excessos em relação à concentração da riqueza, dos imóveis às obras de arte, e evidência da pouca valorização do investimento que gera novos bens. A produtividade permanece em queda há mais de três décadas em quase todas as economias ocidentais. Somente a China guarda para si um desempenho notável, mas geopoliticamente obscuro em termos da estabilidade do cenário mundial. O ano de 2021 será, por certo, o ano da vacina. Embora não se saiba todos os efeitos dessa esperança redentora, aprendemos que a cura se tornou uma necessidade cognoscível, mesmo que os seres, sobretudo os líderes, ainda não sejam plenamente cognoscentes. As previsões estão muito dependentes da aplicação desse remédio. Se o império desse maldito vírus declinar e, por fim, tombar, a humanidade, a economia e a política têm a chance concreta de seguir em frente. Resta saber se a humildade exigida nessa hora terá se sedimentado como sabedoria. Feliz 2021.
sexta-feira, 13 de novembro de 2020

O corpo e a alma da América

Onde não há justiça não pode reinar a paz A eleição norte-americana demonstrou que as escolhas dicotômicas tomaram conta daquele país. Se no Brasil, há dois anos, a eleição revelou o "antilulismo", na eleição dos EUA a vitória de Joe Biden se revestiu de características "antitrumpista". "Os rostos enlouquecidos e raivosos iluminados por tochas. Os cantos ecoando a mesma bile antissemita ouvida em toda a Europa na década de 1930", escreveu Biden sobre a campanha. "Se não estava claro antes, está claro agora: estamos vivendo uma batalha pela alma desta nação."  Como representação fiel dessa realidade, o Congresso dos EUA está partido ao meio, uma proxy da sociedade fraturada entre duas ideias relativamente primárias sobre os destinos do país e sua economia que representa ¼ do PIB mundial. A interpretação desses sinais deveria indicar de que há, por detrás de cada voto, a percepção de existir algo muito errado na América. O que mudou na sua conhecida democracia? O sociólogo alemão Niklas Luhmann, em seu livro "Sociologia do Direito" de 1972 argumentou que "o sistema é a sociedade e o direito é a estrutura e estes se condicionam mutuamente de acordo com o seu grau de complexidade". Se nessa construção retirarmos a palavra "direito" e a substituirmos por "política", o sentido ontológico (essencial) não muda muito na medida em que a Política pode ser vista do ponto de vista estruturante como um mecanismo que permite e regula o governo da sociedade. Pois bem: essa eleição na América parece ter demonstrado que a complexidade dos problemas sociais e econômicos do país estão limitando o exercício da democracia. Com efeito, estamos diante de um cenário problemático do ponto de vista sistêmico e a estrutura não é capaz de dirimir as ansiedades sociais. Aí está a crise. Do ponto de vista social vê-se os EUA fracionados pelos elementos que formam o tecido social, os negros, os latinos, as mulheres, os gays, os suburbanos, os urbanos, os sulistas, os red necks e assim por diante. Em plena vigência dos novos paradigmas da "indústria 4G" e da digitalização 5G, verifica-se que a dinâmica de cada um desses segmentos sociais é marcada por ativas agendas próprias (o que é natural), mas cuja "agenda comum" está esgarçada pelo populismo que torna as temáticas eleitorais maniqueístas por vezes inviáveis do ponto de vista lógico e, digamos, prático. Ocorre que tanto o fracionamento quanto o maniqueísmo decorrem de fatores socioeconômicos que mitigaram a possibilidade de um diálogo democrático entre os "diferentes". A desigualdade social nos EUA aumenta de forma sistemática desde os anos 1980, quando o modelo de Welfare State começou a ser desmontado. Desde 1973 os 20% mais ricos ganham sistematicamente mais participação na renda nacional, sendo que em 2018, segundo dados do Departamento de Comércio dos EUA, 1% destes mais ricos concentram 32% do PIB. O índice de Gini (no qual zero representa a igualdade total) em 2018 foi de 0,485, o mais alto desde 1967 quando era 0,397. Cerca de 40 milhões de norte-americanos, a imensa maioria de negros e imigrantes latinos, estão abaixo da linha oficial de pobreza do país. Impressiona que essa desigualdade aumentou sistematicamente, mesmo diante de índices próximos ao pleno emprego. De fato, a riqueza (e não somente o capital) se concentra mais em períodos de crescimento econômico vez que os salários crescem menos que os rendimentos de capital (dividendos e ganhos de capital) e o valor de outros bens (imóveis, obras de arte, bens de alto luxo, etc.) que compõem aquilo que se denomina "riqueza". É essa desigualdade que é acalentada por discursos radicais. "A América em primeiro lugar", por exemplo, resulta da percepção (falsa) de que são os imigrantes e as importações as causas da pobreza de muitos americanos e da redução relativa dos salários. Nesse sentido, tanto Joe Biden ("Battle for the soul of the nation") quanto Donald Trump ("Make America great again") se aproximam: seus slogans de campanha ressaltam a promessa de uma América grande e líder quando se sabe que a sua fraqueza não deriva de sua grandeza, mas de sua desigualdade. Onde não há justiça não pode reinar a paz. É essa a mensagem que os eleitores de Trump e de Biden enviaram às elites políticas do país. O desafio do ponto de vista da Política, enquanto estrutura, diante da sociedade (sistema) será governar para corrigir rumos em três direções: (i) reformar a economia no rumo da igualdade social sem tirar a força motriz do crescimento, (ii) combinar os anseios da minorias, inclusos os econômicos, com um consenso mínimo em relação à agenda comum do país e (iii) dearticular o "financismo" atual, pelo qual o mercado financeiro e de capital atua de forma distanciada dos interesses das economia real, de sorte o investimento possa voltar a crescer. Como se vê essas tarefas do novo governo terão de ser executadas com doses elevadas de paciência para articular a classe política em favor delas. Isso significa que não se trata de pilares a serem concluídos em quatro anos. No curto prazo, os democratas terão de ser generosos em relação a algumas das agendas do trumpismo para desarmar os ânimos e reduzir as fraturas políticas e sociais. Isso tudo sem cair em contradições que façam o governo Biden ser abandonado pelos democratas de longa data que acreditam em políticas públicas mais ativas, efetivas e afirmativas. Estamos diante de desafios para estadistas e não para governantes, como se vê.
terça-feira, 23 de junho de 2020

Na busca de uma saída

A natureza do presidente e deste governo é barreira severa para que uma saída razoável seja possível   Muitos se questionam sobre de que forma sairemos da enrascada na qual o Brasil está. Diante de um governo débil, sem projeto, sem direção, condicionado pelos humores presidenciais e, até mesmo, sem partido, de fato não se pode esperar a potência institucional necessária ao enfrentamento da conjuntura da pandemia e pós-pandemia. Há, adicionalmente, os problemas estruturais que requerem a utilização de uma "engenharia" institucional, política, econômica e social de envergadura multiplicada. Para refletir sobre esse tema é preciso partirmos de premissas concretas e objetivas. Destaco três. O fato mais objetivo que temos é que estamos diante da completa falência do sistema político brasileiro. A representatividade está castigada por agremiações políticas sem ideologia, programas e lideranças descomprometidas com a agenda do país. Os partidos são espécie de franquias, onde pontificam franqueadores na ponta de cima, franqueados regionais e apaniguados na ponta de baixo. Não há vida partidária orgânica, não há debate ou crítica e muito menos disciplina na ação parlamentar. Há recursos do fundo partidário e a lógica financeira dos caciques das siglas. Por debaixo da crise de representatividade temos governos eleitos com legitimidade formal, mas sem legitimidade concreta. A classe política é imaginada pelos distintos eleitores e cidadãos como algo à parte, sem ligação com a vida socioeconômica. Além do mais, há a percepção, muitas vezes real, de que a corrupção, o nepotismo, o "fisiologismo" e outras mazelas não são ocorrências, mas metas daqueles que são eleitos ou exercem os poderes da República. Soma-se a isso, a demonização da política que decorre da exposição dos malfeitos na Jurisdição: justa ou injustamente, o fato é que a penalização dos políticos veio com a criminalização da política. Do ponto de vista da governança, o Estado brasileiro vê-se tomado pelo corporativismo que limita as suas ações ao campo burocrático, entendido como o conjunto de procedimentos públicos, na visão weberiana. De outro lado, o Estado perdeu ao longo das últimas décadas a capacidade de planejar, viabilizar e realizar políticas públicas. Mesmo nas típicas atividades estatais - educação, saúde, justiça, segurança nacional e pública, e a diplomacia - vê-se que as deficiências seculares do passado se projetam perigosamente para o futuro. Com isso, o Estado perde efetividade e coercibilidade para agir e mudar as estruturas que escravizam o país no atraso e no subdesenvolvimento em pleno século XXI. É nesse contexto que a figura do ex-capitão deve ser projetada. Trata-se de figura revestida de legitimidade formal, mas que forja políticas e ações ilegítimas no plano político e civilizatório e não apresenta saídas concretas para mudar estruturalmente o país. Sendo o maior mandatário e apuradas as evidências de quem ele efetivamente é, pessoal e politicamente, a questão emergente é: é possível continuar com este presidente? Os eventos antidemocráticos com a participação presidencial, o funcionamento de uma fábrica de fake news desde a campanha eleitoral, os atentados de sua excelência, por enquanto verbais, contra as instituições e o deboche pessoal e governamental em relação à pandemia do coronavírus são apenas fotografias parciais de um desastre de grandes proporções. Obviamente, as mudanças estruturais não virão somente como fruto de um processo de impeachment ou cassação da chapa no Tribunal Superior Eleitoral. São necessárias muitas e profundas mudanças a começar em relação àquelas que relacionei nas premissas acima. Todavia, pergunto: é possível construir uma solução a partir do que resta desse governo? Nos últimos dias não são poucas as análises nesse sentido. Verifica-se que há articulações de muitas vertentes, mas que se resumem a três, de forma geral: (i) reestruturar o ministério bolsonarista e dar-lhe uma feição operacional e política que possibilite ao governo funcionar; (ii) tornar o governo ainda mais militarista e implementar um projeto nacional-desenvolvimentista, compatível com a gênese castrense; (iii) incluir a classe política no governo e viabilizá-lo perante o Congresso e, assim, possibilitar o projeto liberal de Paulo Guedes. Obviamente que há muitas variantes e variáveis na análise desse governo, inclusas as futilmente desejadas. Todavia, creio que é em torno desses possíveis cenários que gravitam as tentativas de solução para esse desgoverno. Na primeira hipótese, seriam necessárias pessoas dispostas a ingressar em um governo desastrado e orgulhoso de seus fracassos. Notáveis têm currículos a zelar e requerem autonomia para articular e agir. Ademais, esperam frutos concretos do ponto de vista político. O presidente já demonstrou que não "gosta de quem lhe faz sombras". Não à toa tem um ministério medíocre. Na segunda hipótese, haveria uma guinada estrutural onde teriam de conviver, de um lado, o poder real dos militares e, de outro, o poder aparente do ex-capitão. Pode ser um arranjo aceitável para o presidente, mas de elevado risco para os militares, notadamente os da ativa. Associar as Forças Armadas ao governo pode trazer riscos relevantes em caso de fracasso. Na última hipótese, é certo que se encontra no Congresso Nacional boa colheita de parlamentares dispostos a assumir o governo. O processo, contudo, requereria capacidade elevada de articulação do presidente e seus asseclas palacianos. Sabe-se que por ali, no Planalto, o costume está mais para impor do que dispor. Além disso, uma vez no governo, o presidente teria de harmonizar e dirimir as divergências e apontar direções. Aqui a dificuldade é evidente: o ex-capitão é medíocre, detesta conversar e ama discursar. Seus quase trinta anos de Câmara dos Deputados ensinaram que ele gosta de ser um raivoso lobo solitário. O que se escreve acima é apenas uma rápida reflexão sobre processos complexos e sujeito às muitas variáveis, como dissemos. Todavia, o que se pretende é demonstrar que a natureza do presidente e deste governo é barreira severa para que uma saída razoável seja possível. Isso tudo em meio à crise estrutural e conjuntural pela qual o país passa. Mais uma vez, a nação se defronta com um cenário de difíceis escolhas. A porta de saída é estreita e as instituições estão sob estresse. Como escreveu Voltaire: "Tudo depõe aos meus olhos contra o "Tudo está bem". É hora da coragem.
terça-feira, 16 de junho de 2020

Jogo empatado

Se há de fato um Poder Moderador no Brasil, esse Poder é o Judiciário. O Brasil caminha para um lugar de destaque dentre os países mais relevantes nas estatísticas da pandemia da Covid-19. Já estamos no pódio dessa corrida e, quem sabe, chegaremos em primeiro lugar. Quem observa o cenário com cuidado pode cair na desesperança. Afinal, todas as variáveis apontam para piora da conjuntura - não é apenas a pandemia que avança. O cenário econômico é absolutamente incerto. A equipe econômica, afinada e com intimidade com os conceitos mais retrógrados desse governo, não sinaliza nada substancial. Do lado fiscal, sabe-se do estrago momentâneo, mas o "Posto Ipiranga" não informa os passos que dará. Sabe-se apenas que um de seus pares mais aguerrido, Mansueto Almeida está para partir do Tesouro na direção da iniciativa privada. A política monetária é de relaxamento, com taxa de juros básica bem baixa. Todavia, as medidas que facilitem o crédito, sobretudo para indivíduos e pequenos negócios, são tímidas. Na política cambial o cenário é de alta volatilidade e intervenção massiva do Banco Central. É verdade que o "tal do mercado" enveredou pelo caminho otimista. O Ibovespa está longe dos níveis mais baixos e quase tocou os píncaros. De fato, os investidores brasileiros são irmãos siameses dos norte-americanos: ao redor de 80% dos movimentos dos preços dos ativos de lá são equivalentes aos daqui. De fato, o mercado é uma espécie de "opinião pública", pequena na quantidade de componentes, mas poderosa para pautar a agenda econômica, social política do país. Enquanto isso os pigmeus se aglomeram nas favelas e dentro do transporte popular. Os ingredientes políticos estão dados: recessão gritante, desesperados desempregados às turras, hospitais lotados e empresas tentando reabrir suas portas e alavancar a produção. Já os atores da política, estes estão em franca ebulição. Se há de fato um Poder Moderador no Brasil, esse Poder é o Judiciário. Verdade seja dita: com todos os defeitos e críticas que se possa fazer ao STF, foi daquela casa que foi forjado o enfrentamento à marcha do capitão contra às instituições. O Congresso Nacional tentou exercer esse papel, mas pelo menos dois fatores o impediram: (i) a fragmentação política, a qual foi acentuada pelas investidas de Bolsonaro para comprar o denominado "centrão" e (ii) a falta de ação política dos líderes mais importantes. Na realidade, de Ciro a Lula, de Dória a Rodrigo, predomina o pensamento eleitoral com vistas ao distante 2022. Erro crasso. O que está em jogo agora é muito mais que isso: é a viabilidade de uma democracia mitigada pela crise institucional. Infelizmente, o único ator mais ativo na política é o capitão: na falta de feitos positivos, esse sabe o que quer tomar e de quem. Voltemos ao STF. Das mesas dos ministros togados da casa saíram as boas decisões para sustentar minimamente à viabilidade de uma saída institucional para o país. O inquérito que o ministro Alexandre de Moraes tem nas mãos permite que ele investigue, diligencie, aja e, do ponto de vista concreto, sentencie. Em torno de Moraes a união dos ministros é plena, em que pese o insólito e estranho poder jurisdicional de Moraes. A prisão dos nazistas que atacaram na Esplanada dos Ministérios é apenas um teste, a meu ver. O objetivo desse inquérito é bem maior: quer atingir milicianos de alto coturno. Do lado do TSE, o ministro Barroso encontrou o elemento que precisava para conter o capitão e o general, respectivamente moradores do Alvorada e do Jaburu. A chapa eleitoral deles nas eleições de 2018 está sob judice, talvez eivada de crimes eleitorais de natureza virtual. Esse é o sinal que o Planalto mais observa no momento. Também está claro que as tropas ativas das Forças Armadas não topam aventuras nas selvas da institucionalidade. Generais, Almirantes e Brigadeiros já avisaram aos "colegas de pijama" que o compromisso com a democracia e a Constituição está cristalizado nas instituições fardadas. O capitão e sua trupe sentiram o "golpe desarmado" e reagiram de três formas: (i) sinalizam abrir os cofres para viabilizar o "Bolsa Bolsonaro" e, assim, recuperar popularidade, (ii) mandaram emissários afagar o STF e TSE e (iii) deixaram seus militantes agir por conta própria - Sara Winter, essa revolucionária ex-feminista que fogueteou o STF e o Congresso, que cuide dos próprios interesses. Se tivesse que fazer uma analogia com a esgrima eu diria que não se ouvirá touché. De fato, está valendo o pas de touché, ou seja, ninguém toca em ninguém. Se fosse o futebol o objeto da analogia, poderia ser dito que o "jogo está empatado". Esse cenário, contudo, ilustra uma situação de equilíbrio instável e momentâneo. Os lestrigões e ciclopes estão contidos, por ora. Já outros monstros menos mitológicos podem atacar a democracia a qualquer momento. Sem que se solidifique uma concreta e razoável vitória contra os atentados às Instituições, não haverá paz para que se enfrente a difícil situação a qual o país defronta. Vale lembrar: muito improvável que a natureza do capitão e seu governo sofra uma mutação democrática. Lembremo-nos daquela reunião de 22 de abril. Ali repousa a verdade desse governo.
A recessão no Brasil deve ser longa, duradoura e mais profunda que a média mundial O Brasil passa por um momento que revela alterações estruturais na política, na dinâmica social e na economia. Do ponto de vista estritamente analítico, o trato dos fatos e atos como alterações da conjuntura é erro primário. O que estamos a vivenciar é de ordem fundamental, estrutural, essencial. A eleição do ex-capitão, nesse contexto, depois de seus vinte e oito anos de pobre e conturbada atuação no parlamento, não foi propriamente um "fato novo e inusitado". Na realidade foi evidência cristalina da falência da política brasileira. Destaco duas dimensões desse processo: (i) em relação à legitimação formal e efetiva viu-se, na eleição de 2017, um anticandidato (e.g. "votei contra o PT"), desprovido de consolidadas ideias e proposições programáticas, mas com capacidade imagética suficiente para praticar a mentira (e.g. "o risco comunista", "armar o povo para evitar a ditadura") como arte de sua "verdade política" e, (ii) em relação à ação política, verificou-se que o novo presidente soube transformar a operação de governar em movimento da "minoria ativa" e não como a liderança da maioria passiva que acredita nas regras democráticas. As duas dimensões são novidades na política do Brasil e ambas foram catapultadas do campo eleitoral para a realidade da ação governamental. Caiu por terra a ideia de que uma coisa é a eleição e outra é o governo. Bolsonaro criou o que antes não havia, pelo menos há décadas na história brasileira. No sentido do parágrafo acima, mais que acerta o decano do Supremo Tribunal Federal (STF) ministro Celso de Mello, quando prega que "os bolsonaristas pretendem instalar no Brasil uma ditadura militar e que o país vive cenário semelhante ao da Alemanha pouco antes do nazismo ser implantado". Aqui, resta claro que não há identidade plena entre Adolf Hitler e o ex-capitão. Todavia, a essência é a mesma: a ideologia messiânica do governo se soma ao uso do ódio e da violência como meios de alcançar e exercer o poder. Caminhamos, sem dúvida, para um ambiente político perigosíssimo, digno das piores menções da história. É imprudente, ao menos, senão omissão grave ou comprometimento com ideias antidemocráticas, não reconhecer isso. Diante dessa realidade essencial o que podemos vislumbrar desse perigoso governo? Vale ressaltar que tratamos de macroprocessos que marcam essa mutação estrutural do Brasil. Vejamos. Do ponto de vista político não há possibilidade concreta, factível e realista de que essa administração possa conviver com os "contrários". De fato, o confronto não é nem de ideias e nem de ações. É existencial. Esse governo não tolera aquilo que não é semelhante a ele. Ser contra o governo significa ser inaceitável. Sergio Moro é bom exemplo: ao aderir ao governo, esperava que fosse granjeado apoio dele às representações mais profundas da administração capitaneada pelo supremo líder, incluída a possibilidade de desrespeitar a institucionalidade do Estado. O ex-juiz foi ingênuo, para se dizer o mínimo. Tornou-se inimigo das milícias do capitão. Do ponto de vista econômico não se pode separar a relação umbilical e altamente interdependente entre a ação política e a econômica. É erro banal que se possa acreditar que Guedes e seus Chicago caps sejam capazes de agir isoladamente em relação ao todo do governo. A própria adesão de Paulo Guedes aos valores e às falas mais radicais na reunião-comício do dia 22 de abril de 2020, demonstra que o "Posto Ipiranga" é agente do capitão e não o contrário, como alguns imaginavam. Nem mesmo pode-se inferir que Guedes é a "banda boa" desse governo, como se batizou em várias administrações (e.g. Marcílio Marques Moreira em relação a Fernando Collor de Mello, ou Henrique Meirelles e Eduardo Guardia em relação a Michel Temer). Mas, há mais em matéria econômica. A substância ideológica que norteia as ações da equipe econômica, conspira contra a possibilidade de que a atual administração tenha a necessária flexibilidade requerida pela pandemia que castiga a saúde das pessoas e a economia. Por ora, ser "liberal" e acreditar, como no século XIX, que o "mercado" resolve tudo significa não entender que a pandemia ajustou a demanda muito para baixo e, possivelmente, a oferta também para baixo. Logo, a política econômica terá de ser heterodoxa, ou seja, valer-se de fortes intervenções no mercado para evitar que a recessão seja profunda e duradoura. O Estado terá de atuar cautelarmente na formação da oferta e da demanda. Angela Merkel que não pode ser acusada de "comunista" pelo capitão ou Paulo Guedes, é um excelente exemplo disso: a chanceler alemã abandonou os preceitos liberais que constam de históricos livros-textos e sacou 600 bilhões de euros para salvar a economia alemã do penhasco recessivo. Aprovou o plano no governo numa quarta e no parlamento até o final da semana. Não se espera que no Brasil a rapidez e flexibilidade possam ser as da chanceler germânica. Todavia, com Guedes, um verdadeiro bolsonarista cheio de ideologia econômica na cabeça, a conclusão é óbvia: a recessão no Brasil deve ser longa, duradoura e mais profunda que a média mundial. Não à toa, os investidores do mercado financeiro e de capital já sacaram mais de US$ 10 bilhões em ativos brasileiros no último mês de abril. Nesse sentido, o mercado realmente é eficiente e liberal, como gosta o ministro liberal-bolsonarista. Do ponto de vista institucional, este governo ambiciona a unidade essencial do Poder Estatal em suas mãos, estas eventualmente armadas. É devaneio romântico que esse presidente e o seu governo aceitem a premissa básica de que a divisão funcional do Poder é parte do "sistema" que equilibra as funções do Executivo, Legislativo e Judiciário. Governos que acreditam carregar a "verdade", política e ideologicamente não estão habilitados a aceitar limites (checks and balances constitucionais), pois "quem tem a verdade que liberta" não crê que possam existir "outras verdades". A intolerância aos limites que o pacto político constitucional impõe, somada à impossibilidade do diálogo, leva à ambição para o totalitarismo que apenas pode ser limitado pelo momento histórico. A serpente já espalhou os seus ovos. A oportunidade faz o ditador. Não cabe ilusão nessa hora. Como já dito, há mudanças e processos estruturais que podem arrastar o país para cenários jamais vistos em setenta anos. Infelizmente, a maioria do eleitorado viu no ex-capitão a oportunidade da esperada "mudança forte" frente aos anos recentes anteriores, marcados pela incompetência, pela corrupção e pela estagnação social e econômica. Tratava-se do ex-capitão, cujo método incluía, dentre tantas manifestações, elogios à tortura, xingamentos aos deputados e deputadas (especialmente) que dele discordavam, além dos elogios à ditadura militar. Mesmo sendo um político, praguejava contra a política. Um truque que funcionou. Pois bem: ele chegou ao poder e mostrou, vejam só, que ele é ele mesmo.
terça-feira, 26 de maio de 2020

Democracia, sem vírus ou morte

Não pode haver progresso e desenvolvimento sustentado sem paz calcada nos sustentáculos da democracia. No magnífico livro "Como as democracias morrem" (2017), dos professores de ciência política da Universidade de Harvard Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, no capítulo 3 "A grande abdicação republicana" encontramos uma construção sobre os quatro indicadores de comportamento autoritário. São eles, segundo esse estudo: (i) "rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas)", (ii) "negação dos oponentes políticos", (iii) "tolerância ou encorajamento à violência" e (iv) "propensão a restringir liberdade civis de oponentes, inclusive à mídia". A reunião ministerial do ex-capitão que lidera o Poder Executivo brasileiro, no dia 22/4/2020 escancara, descortina de forma real, todos os elementos da essência desse governo. Vejamos algumas poucas e literais transcrições daquela reunião, confrontando com os indicadores de Levitsky e Ziblatt. (Perdoem-me o uso da linguagem presidencial. É chula e grotesca). Sobre a "rejeição das regras democráticas do jogo (ou compromisso débil com elas)": Eu tô vendo o mais antigo aqui, o General Heleno aqui. Ele sabe o que é meia, o que foi meia quatro. Muitos aqui não sabem. Essa cambada que tentou chegar no poder em meia quatro, se . se tivesse chegado, a gente tava fodido todo mundo aqui. Cortando . ia tá felicíssimo se tivesse cortando cana, ganhando vinte dólar por mês. Não pode esquecer disso. Nós não podemos esquecer o que é esse povo (...)". Sobre a "negação dos oponentes políticos": "O que esses caras fizeram com o vírus. Esse bosta desse governador de São Paulo, esse estrume do Rio de Janeiro, entre outros, é exatamente isso". Sobre a "tolerância ou encorajamento à violência": No meu governo tá errado! É escancarar a questão do armamento aqui. Eu quero todo mundo armado! Que povo armado jamais será escravizado. E que cada um faça, exerça o teu papel. Sobre a "propensão a restringir liberdade civis de oponentes, inclusive à mídia": "Pera um pouquinho, dá licença um pouquinho. A questão da imprensa. Eu acho que eu resumi hoje na frente do palácio em vinte segundos: "Eu não vou falar com vocês, porque vocês não deturpam, vocês inventam, e potencializam". Tem que ser o papel de cada um, não pode um sair daqui no cantinho "A, foi mais ou menos isso", não pode falar nada. Tem que ignorar esses caras, cem por cento. Senão a gente não, não vai para frente". Como se pode verificar nesses poucos exemplos, vislumbramos o todo. Todavia, não é apenas isso. Vejamos o Ministro da Economia Paulo Guedes em plena ação, livre e solta: "Ô presidente, esses valores e esses princípios e o alerta aí do Weintraub é válido também, como seu . sua evocação é que realmente nós estamos todos aqui por esses valores. Nós tamos aqui por esses valores. Nós não podemos nos esquecer disso. Nós podemos conversar com todo mundo aqui, porque é o establishment, é porque nós precisamos dele pra aprovar coisa, mas nós sabemos que nós somos diferentes. Nós temos noção que nós somos diferentes deles (...). Vale mencionar que essa fala de Paulo Guedes segue as bravatas do messias sobre "armar o povo", bem como, a "erudita" digressão do Ministro da Educação Abraham Weintraub sobre "prender os bandidos do STF". Um dos mais brilhantes juristas alemães do século XX foi Carl Schmitt. Intelectual de porte, Schmitt rivalizou com Hans Kelsen em certa época acerca da "guarda da Constituição". Em sua obra "O Guardião da Constituição" (Der Hüter der Verfassung), Schmitt caiu na tentação intelectual de minimizar o papel do "Tribunal Constitucional" enquanto guardião da Constituição de Weimar e valorizar, provavelmente por conclusão intelectual própria, que o Presidente da República seria melhor guardião da Constituição porquanto ele era mais "político". Schmitt não relutou em afirmar que o leimotiv dessa visão: a Constituição era para ele um diploma político e não essencialmente jurídico, mesmo que tratasse de direitos e deveres com efeitos claros e evidentes de natureza jurídica. Caberia ao Executivo a guarda da Constituição. Em 1933, Carl Schmitt ingressa no Partido Nazista e nele permanece até o fim da guerra em 1945. Nesse período a Constituição de Weimar não foi oficialmente revogada, mas o Tribunal Constitucional não interpretava e guardava a Constituição. Esse era o papel do Führer Adolf Hitler. Todos sabem aonde foi a Alemanha. Schmitt tornou-se um jurista esquecido, muito embora fosse brilhante e suas ideias, paradoxalmente, jamais tenham sido aceitas completamente pelos nazistas. A adesão às ideias reacionárias é sempre um perigo atroz, muito embora se deva reconhecer que a tentação para tal, muitas vezes não é pequena, especialmente quando se defronta com o "outro", "o diferente", "o contraditório", "o oponente" e assim vai. Ocorre que essa adesão é, usualmente, realizada sem reflexão e por meio da passividade que justifica a ilusão de que "as coisas melhorem". Na Alemanha nazista muitos intelectuais e membros da elite, dentre tantos, se somaram ao "cabo Hitler", um populista que usou das armas, via suas milícias de assalto (as SA, comandada por Ernst Röhm, assassinado em 1934 pelo próprio Hitler), fechou o parlamento (Reichstag), censurou a imprensa, impôs uma "revolução cultural e de valores" (pangermanismo e antissemitismo) e restringiu a liberdade individual e civil. Vale salientar que Adolf Hitler, antes do desastre final, foi excelente para o "mercado" e para os "capitalistas". Hjalmar Schacht, Ministro da Economia de Hitler e membro honorário do Partido Nazista, foi o "garante de Hitler" perante a burguesia alemã. Promoveu grandes obras, fez reformas financeiras e monetárias que controlaram a hiperinflação e transferiu para os capitalistas alemães muitos bens e demandas para a "máquina de guerra" do cabo Hitler. O "tal do mercado" adorava Schacht. Grave devaneio. A história não se repete vez que os fatos são outros, os contextos e as variáveis. Todavia, certos valores, sobretudo aqueles que ligam a civilização à liberdade, ao progresso e ao desenvolvimento integral da economia e dos seres humanos, permanecem como basílicas da democracia. A transigência com os fundamentos dos valores sócio-políticos mais caros é erro grosseiro. Ademais, a separação entre "política" e "economia" é equívoco primário. Não pode haver progresso e desenvolvimento sustentado sem paz social calcada nos sustentáculos da democracia. Ninguém está a salvo de um reacionário ou ditador. Há quem não queira encontrar naquela reunião do governo do capitão os fatos e atos que identificam os ingredientes e os indicadores antecedentes da "morte da democracia". A tertúlia ministerial foi gravíssima. Não há como minimizar. Para não deixar que a democracia se esvaia como a vida de muitos doentes desse vírus maldito, o covid-19, será necessária muita ação política. É preciso que se retire do atual presidente o virtual monopólio da atividade política. É preciso que os democratas se mobilizem, que protestem, que inviabilizem os planos desse governo. Não se pode capitular perante a tentativa de cercear a liberdade, de singrar os mares da ruptura política e, estimular a violência via os meios de comunicação tradicionais e virtuais e o armamento do povo. Trata-se de completa insanidade. Os eventuais defeitos de nossa democracia brasileira, e esses são muitos, não podem justificar a palidez, a flacidez e a passividade diante do que está diante de nossos sentidos. Não pode haver oposição à democracia e à liberdade, bem como, às instituições democráticas. Os políticos precisam se unir em torno de princípios básicos e extirpar, sem tergiversações ou piedade, o que atenta contra os nossos valores. Na paráfrase de Mario Vargas Llosa, é "preciso que a realidade não nos empobreça e que não comprovemos que somos menos do que sonhamos".
A construção civilizatória sempre teve as suas sístoles e diástoles, contrações e expansões da liberdade Processos humanos, dentre os quais os políticos, possuem intrinsecamente os nervos e a pele da alma humana. A civilização, construída há mais de dois milênios criou as condições para o aperfeiçoamento da convivência entre os homens. Nesse sentido, a política ocupa lugar de destaque: foi esta invenção helênica que humanizou as relações de poder na direção do bem comum (e público). Metaforicamente poderíamos dizer que a tessitura da política, sobretudo, por meio da divisão funcional do Poder do Estado, tratou de procurar corrigir as falhas dos nervos e pele dos humanos. Verdade é que a construção civilizatória sempre teve as suas sístoles e diástoles, contrações e expansões da liberdade, da Justiça e do desenvolvimento. Para o bem e para o mal. Diante da realidade atual e tendo em conta a brevíssima digressão acima, parece certo que no mundo e, especialmente, no Brasil, estamos diante de processos que conspiram contra a civilização. Já ultrapassamos, por aqui, a barreira da crise institucional - esta é evidente, muito embora a escondamos por debaixo do discurso dos líderes políticos. Suponha o nosso leitor se o capitão que nos governa pudesse curar instantaneamente os males do coronavírus e o país passasse a crescer, digamos, 5% ao ano. Sua popularidade subiria, quase certeza. Alguém acredita que o capitão, munido de mais apoio do povo recuaria nas suas ambições reacionárias? As erupções vulcânicas do supremo líder à porta do Palácio da Alvorada são, há muito, a representação da grosseria, da bazófia, da falta de liturgia e da ignorância que norteia esse governo. Vejo, por aí, certos segmentos tecendo comentários sobre alguns "oásis de competência" nessa administração. Não seriam esses "oásis", de fato, pares de um projeto que ambiciona o autoritarismo, senão a ditadura? A história nos ensina que é melhor a luta contra o que atenta contra a civilização do que a crença de que é possível conviver com a barbárie, domesticando-a ao modo dos interesses do momento, em verdade, uma armadilha. Mas, não nos enganemos: sobram acólitos de braços juntos com o capitão. Assim foi com Hitler, não é mesmo? Diante do poder instalado, é preciso alertar que, dada a catástrofe política que vivemos, não se pode confluir para o ambiente econômico três características necessárias ao desenvolvimento: consistência de objetivos, aderência social e confiança no longo prazo. Governos autoritários sempre falharão em um ou mais desses pilares e, assim, as consequências surgem, no geral, graves. Portanto, impossível imaginar que um governo possa ser hermafrodita como as minhocas: de um lado os liberais, de outro os reacionários. Em algum momento, a contratação reacionária vinga e os liberais sucumbem. No caso do Brasil de hoje, vê-se que não há consistência de objetivos. Como dialogam Weintraub e Damares com os Generais? Apenas um exemplo de onde estamos a caminhar. No que tange à aderência social, o que se vê são os camisas verde-amarelos prontos para a pancadaria virtual, verbal ou física. É o reino da construção do ódio e da agressão. O que se dirá da confiança em um governo que fez da espetacularização como seu meio de diálogo social? Tudo que seremos capazes de verificar nos tempos atuais, sob o jugo ausência de civilização, é o oportunismo momentâneo. Esqueçamos, para a manutenção de nossa saúde mental, de alguma confiança no futuro. Estamos como que assegurados pelos milicianos que nos garantem dos traficantes de drogas. Perdoem-me a força das palavras. No campo econômico o acúmulo de problemas é virulento. Enquanto todos os países relevantes se preparam para políticas compensatórias e injeção de recursos para reanimar as economias combalidas pela paralisia que o vírus carreou, no Brasil não saímos do lugar. Há a falsidade das propostas "garantistas" do orçamento, calcadas em um enorme desemprego, e, de lado oposto, os carnavalescos do orçamento público, mais preocupados com os adereços do que com o desempenho da economia. Ou se preferirem, há os "ortodoxos cegos" e os "heterodoxos surdos". Haveria um bom espaço para manipular, no melhor sentido da palavra, as taxas de juros, o crédito e o orçamento, para construir um "plano de entrada" na salvação da economia e outro "de saída" quando o crescimento voltar. Para tanto precisamos de "consistência de objetivos, aderência social e confiança no longo prazo". Teremos isso? Enquanto escrevo esse artigo, vejo que o vírus espalha a morte de forma crescente e a agonia começa a fervilhar nas regiões mais pobres do Brasil. Não temos sequer ministro da Saúde na cadeira e ativo. Temos, isso sim, a tomada do Estado pelos militares, em postos que podem levar a desmoralização das tropas de cima para baixo. O Poder Civil se debruça sobre as matreirices presidenciais - o Judiciário e o Legislativo aceitam o papel de caudatário dessa marcha da insensatez. Aqui e ali temos pequenas vitórias que logo depois se dissipam por outros fatos, dentre estes, a caminhada do Supremo Líder e seu cordão na direção do Supremo Tribunal Federal. Essa é a cena, aquela que Noberto Bobbio denominava da racionalização da apatia que somada à manipulação do consentimento eram, para o grande jurista e pensador, os dois vícios da democracia moderna. Ocorrem quando a participação política deixa de ser significativa na crença de que o conjunto das regras democráticas resolverão os conflitos. É possível que os conflitos soterrem as regras democráticas e a própria civilização, enquanto a sociedade for apenas uma audiência.
quinta-feira, 7 de maio de 2020

Não é uma gripezinha

Não é difícil concluir sobre qual é a pretensão aberta do presidente. A surpresa que a covid-19 trouxe à humanidade não foi somente a sua existência e capacidade de se expandir por todos os rincões. De fato, países ricos e pobres viram-se interdependentes, e, sobretudo, semelhantes, frágeis diante de algo inusitado e com danosos efeitos econômicos e sociais. O Brasil, obediente à sua tradição de ser a terra da jabuticaba, vive o espanto daquilo que é como é. Estar boquiaberto por tudo que se assiste no país é algo que ganha ares de naturalidade. Há de se alertar que essa adaptação não tem nada de virtuosa - em verdade pode ser sinal de que o espanto poderá ser ainda maior. A recuperação econômica do Brasil, pós-pandemia, não será em "V" como informou o ministro da Economia Paulo Guedes. Não propriamente porque isso não seja possível, mesmo que difícil. Ocorre que a política no país está em frangalhos. O presidente da República resolveu alimentar a crise institucional com manobras que têm a ousadia que somente os ignorantes podem propiciar. As manifestações e aglomerações antidemocráticas que estamos a assistir tem duas características marcantes, dentre tantas poderíamos destacar: são planejadas com a certeza de que o presidente delas participará e tem uma estrutura de ideias inconsistentes entre si, mas organizadas em um receituário feito para confundir. Existe uma investigação, conduzida pela Política Federal e jurisdicionada pelo STF, para saber quem organiza tais passeatas reacionárias e antidemocráticas. Em que pese a necessidade de se chegar aos "autores do crime" em função do devido processo legal, do ponto de vista conceitual já se sabe quem é o autor intelectual dessas tertúlias reacionárias: o líder supremo do Executivo. Para se chegar a essa conclusão não se faz necessária o rigor da observação hipocrática no intento de se saber sobre a doença. Não houvesse a participação do Presidente da República nos eventos, haveria pouco conteúdo informacional e "ideológico" a ser reportado. Aqueles homens e mulheres de verde e amarelo seriam como as torcidas organizadas que parecem torcer para determinado clube de futebol, mas, de fato, são apenas criminosos, no caso, travestidos de patriotas. No que diz respeito àquilo que se propaga nesses "encontros" está claro que as ideias não têm relação com o "Brasil acima de tudo" e, muito menos, "Deus acima de todos". Como ensinou o ensaísta, escritor e pensador inglês Samuel Johnson (1709-1784), o patriotismo é o último refúgio do canalha. O que se verifica nessas marchas nazistas é a difusão de ideias que são avaliadas pelos seus emissores como "definitivas", "suficientes", "necessárias", para que a redenção carregada pelo seu maior líder prospere. Tais ideias não podem, com efeito, suportar a existência do Poder Judiciário que "limita" o poder presidencial, muito menos do Poder Legislativo, que fiscaliza e propõe o que não necessariamente tem identidade com o que propalam esses "camisas verde-amarelos". Não é difícil concluir sobre qual é a pretensão aberta do presidente. O "messias" ou "mito" pretende o diálogo direto com a turba, sem intermediários ou juízes. A democracia para estes não é a construção civilizatória, sedimentada ao longo de séculos, mas "algo" produzido pelos atores do momento, milicianos da "nova sabedoria" reverberada a partir do oráculo da Virgínia (EUA). Impressiona que se tenha acreditado que um reacionário pregador na Câmara dos Deputados pudesse ser o democrata-presidente. A demissão do ex-juiz Sergio Moro foi sinal mais evidente do que evidente já estava. Ambos disputavam o mesmo espaço eleitoral. Por ora, vingou aquele que tinha a caneta na mão para assinar a demissão. Há, contudo, um dado interessante, registrado após o encontro de Brasília no último dia 3 de maio. A nota do Ministério da Defesa deixou cristalino que o primeiro mandatário não tem o apoio das tropas na ativa. Embora a "administração" do messias conte com dezenas e dezenas de militares da reserva, as peripécias reacionárias e anticonstitucionais do Supremo Líder não têm respaldo fardado. Excelente sinal. Em meio aos mortos da covid-19, teremos de cuidar da democracia brasileira. No contexto atual, faz todo sentido que seja considerado o impeachment presidencial como um fato de probabilidade concreta e relevante. Ou será que o que estamos a assistir não é grave atentado contra a Ordem Institucional? O cenário é perturbador e tende a ser acrescido com mais inquietações vindas da área econômica. A se continuar o infindável debate sobre como deve ser a política econômica para superar o grave momento nacional, é provável que mergulhemos em uma recessão desproporcional ao tamanho dos efeitos que o coronavírus trouxe para o Brasil e o mundo. De um lado vemos a sanha devastadora contra a ordem das contas públicas, o populismo fiscal. De outro, a pregação de uma ordem ideológica de que não há muito a ser feito da parte do Estado. De fato, nem uma coisa, nem outra: o Brasil tem de ter um plano de recuperação econômica mais consensual, baseado no aumento relevante do dispêndio público, limitado no tempo, mas grandioso na intensidade. É preciso suprir a demanda perdida nos últimos meses e garantir a demanda no futuro. Não é preciso ser liberal ou socialista para perceber que o problema do desemprego e da queda de renda é gravíssimo. A vida de uma pessoa ou de um país não é linear. Todavia, o que estamos a assistir no Brasil é a crise continuada como cenário usual e corriqueiro. Assim não dá. Temos de dar um basta a isso. Isso não é uma gripezinha.
segunda-feira, 27 de abril de 2020

Política e economia em tempos de cólera

Toda essa cena do teatro político atingirá o navio da política econômica. Todos os processos intestinos da política nacional, nesse momento, já estavam delineados desde a eleição de 2018. Conforme escrevi no meu artigo anterior ("O vírus ataca instituições frágeis") "o líder supremo desse estranho movimento político parece ter necessidade imperiosa de um 'inimigo invisível' para, assim, poder se relacionar com a realidade objetiva". No caso concreto do que ocorreu na semana passada, o "inimigo invisível" assumiu a forma do ex-ministro Sergio Moro. Aí o processo parece ter ganhado contornos bem mais complexos, mesmo que mais precisos. Não me parece necessário aprofundar os fatos em torno da demissão de Sergio Moro para poder desembocar na conclusão de que o presidente quebrou não somente as normas institucionais na ânsia de mudar o diretor-Geral da Polícia Federal. De fato, as mínimas "reservas institucionais", aquelas regras não-escritas que fazem parte dos pesos e contrapesos do Estado e do governo, foram quebradas. Refiro-me, para encurtar o argumento, a três destas reservas: (i) o respeito pela organização interna do Poder Executivo, no caso em relação à Polícia Federal, (ii) a moderação no tratamento do Poder Judiciário que investiga os palacianos de agora e (iii) a tentativa de interferir nas investigações policiais e judiciais que, eventualmente, possam atingir o presidente e sua família. Do ponto de vista das infrações normativas propriamente dita, as possibilidades de que o presidente da República tenha cometido crimes saiu da unidade para a dezena. A polêmica sobre quais seriam esses ilícitos é tarefa menor frente à conclusão de que o impeachment entrou definitivamente na agenda do país. Mais uma vez poderemos assistir que no pedaço de tempo entre a vigência da Constituição 1988 e o momento de agora, um presidente poderá não terminar o seu mandato. Grave e evidente sinal do fracasso de nossa organização política. No caso do atual "líder supremo" o cenário é devastador. Estamos diante de um político profissional (28 anos de Câmara dos Deputados), conhecido pelo radicalismo e pela grosseria de seus embates, que alçou a presidência da República, a partir de seu próprio obscurantismo, porque o centro político, do PT ao PSDB, jogou o país na desesperança com a política. A corrupção e a ausência de um projeto verdadeiramente centrista e reformista desanimaram a Nação a tal ponto que os votos desembocaram no deputado eleito pelo Rio de Janeiro. O caminho do capitão foi célere e inesperado, do obscurantismo para o "mito". Agora, estamos a coletar o resultado da eleição de 2018 na sua forma mais trágica: enquanto muitos morrem sob o covid-19, o presidente faz um espetáculo dantesco em Brasília. No entanto, não é certo acreditar que o ex-capitão não tenha método. Isso ele tem. Método de coragem travestida de ignorância política e absoluta. O presidente jamais quis ter uma base política, apregoando que "não se vendia". Para ele a dissociação entre a figura presidencial e o Congresso era uma necessidade. Nesse caso, as reformas econômicas e sociais, deveriam ser feitas à luz da Nêmesis que estas representavam. Nesse sentido, o presidente assistia ao processo político como se fosse qualquer um de nós, afinal ele não era parte disso. Era apenas o "mito" que propunha a redenção. De resto, os políticos, de cabo a rabo, mereciam a desconfiança: "vermelhos", "corruptos", "vendidos" e por aí vai. Quando o líder supremo, por esses dias, subiu no carro para estimular um grupo radical a esculhambar as instituições, não há em verdade surpresa: é a cena natural do presidente que não quer fazer política. Quer apenas mandar. Sejamos claros: há uma parcela não desprezível da população brasileira que aceitaria a ditadura, se essa fosse implementada. A ampliação dessa parcela pode ser feita por meio do populismo que permite ao líder navegar acima das instituições. Esse método messiânico faz parte do método do atual presidente. Para ele, a crise não é eventual - esta é permanente para que fique evidente de é ele quem tem o poder e esse poder é redentor perante os seus pares da política. Nesse sentido, para o presidente o episódio espetacular com Sergio Moro é um "acidente", "um tropeço", "uma turbulência". Obviamente, aqui o presidente errou de alvo. Sergio Moro, imageticamente marcado pela Lava Jato, também representa o antagonismo ao establishment. A sua obra anticorrupção não é somente relevante do ponto de vista do combate ao crime, mas também encarnou a denúncia de como funciona de fato o nosso sistema político. A mente narcisista do líder supremo tropeçou no fato de que Sergio Moro não depende da imagem do presidente. Tem luz própria. Mais importante: de saída do Ministério da Justiça, Moro não levou apenas suas coisas do gabinete. Levou também parte do eleitorado do presidente. É o mesmo. O efeito desse acontecimento é que o cenário político agora está completo. O presidente nunca foi funcional para os seus próprios objetivos ou os de seu governo. Agora isso está escancarado em meio à pandemia mais nefasta em um século que deve se agravar nas próximas semanas, segundo muitos e respeitados especialistas. Até a elite que apoiou o "messias" vê-se boquiaberta. Essa ausência de funcionalidade política deve se agravar em meio às ondas de investigações e debates sobre os malfeitos presidenciais revelados na sexta-feira, 24 de abril de 2020. Provavelmente, os erros presidenciais serão mais constantes e, quiçá mais graves - seus conselheiros mais próximos são seus próprios e despreparados herdeiros. De outro lado, surge na cena, sorrateiro e cauteloso, o vice-presidente. Com ele a entourage nacionalista e desenvolvimentista do militarismo brasileiro. De seu lado, Sergio Moro ganhou asas, mas pode não voar - não esqueçamos o exemplo do ex-ministro do STF Joaquim Barbosa. Em breve, toda essa cena do teatro político atingirá o navio da política econômica. Não se sabe ainda se para o bem ou para o mal. Nem se sabe se com os mesmos atores. O cenário positivo de outrora, tornou-se ironicamente positivista, se bem me entendem.
quinta-feira, 16 de abril de 2020

O vírus ataca instituições frágeis

O Estado já sem eficiência passou a ter as suas Instituições longe do interesse comum Não há demonstração mais cabal sobre a ausência de funcionalidade das instituições brasileiras do que os fatos que rodeiam a gravíssima crise do covid-19. De fato, as repetidas intervenções das instituições do Estado, notadamente do Judiciário e Legislativo, evidenciam que as soluções funcionais de cada órgão da administração pública não atendem aos objetivos que devem ser atendidos em prol do interesse público. Não são poucos os exemplos. Destaco dois: (i) os julgamentos do STF sobre se os entes federativos podem legislar sobre o "direito de ir e vir" e sobre o papel dos sindicatos em relação aos acordos trabalhistas pós-coronavírus e (ii) a ausência completa de discernimento comum entre o Legislativo e o Ministério da Economia sobre o socorro aos estados e municípios. Observados esses dois fatos vê-se que estes demonstram profundo desequilíbrio institucional, desde os temas federativos até a harmonia desejada entre os Poderes do Estado para superar a crise grave como essa que vivemos. Há ainda a explicitação da tragédia que é o sistema político. O processo eleitoral, em geral, e a forma de eleição do presidente da República, especificamente, permitem que um populista, materialmente "sem partido", fruto de uma oportunidade histórica, sem apoio no Congresso Nacional e com retrospecto deplorável de carreira política chegue ao posto de maior mandatário do país. Há de salientar que a legitimação das urnas de alguém como o que descrevo cria, concretamente, um problema e não uma solução republicana. Não à toa já vivemos dois processos de impeachment desde à redemocratização pós-1964. Quem poderia achar que a política pode ir minimamente bem diante dessa realidade? Está claro que mesmo sistemas políticos e eleitorais mais funcionais podem produzir animais políticos com características tenebrosas, do populismo ao reacionarismo. De esquerda e de direita, frise-se. Todavia, o caso brasileiro é diferente: a construção constitucional e normativa foi realizada para cumprir o destino certo: falhar e não funcionar. Não se trata de singelo apotegma. Talvez essa crise possa expor para a sociedade brasileira, inclusive para a sua dita elite, sem maiores fabulações, que sem positiva e profunda reforma do pacto político não há solução. Já estamos patinando por mais de 35 anos e há ainda que defenda a manutenção dessa dantesca cena. Em tudo isso não há improvisação. Ao longo dessas últimas três décadas os partidos políticos foram sofrendo uma mutação social e política, de forma sistemática, que os converteu em "franquias" de certos caciques políticos e/ou de grupos organizados. Assim, os assuntos internos à organização política se tornaram mais relevantes que o encaminhamento de temas de interesse público. Os efeitos dessa transformação de alma e corpo foram decisivos para a dissociação da agenda pública com as bases eleitorais. Ademais, criou-se número enorme de interesses privados que instigaram a corrupção. É essa a causa mais profunda do que vimos desde Collor até Temer, ou se quiserem, de Paulo César Farias a Wesley Batista. Do ponto de vista da sociedade, sobretudo do poder econômico, a leitura desse quadro não gerou indignação, ao contrário, engendrou a adaptação impressionante pela qual a obtenção dos benefícios privados trouxe ao alcance o uso da coisa pública. Obviamente, tais interesses excluíram do orçamento e das proposições afirmativas do Estado, a educação, a saúde, a tecnologia, ou, de forma geral, o desenvolvimento. As Instituições, nesse contexto, buscaram mais poder, de forma singular e granular, para participar do concurso ou da corrida de quem "negocia" mais com as estruturas políticas e privadas. Além dos malefícios conhecidos aos interesses públicos, verificou-se a desagregação do Estado que cada vez mais viu-se em dificuldades para elaborar políticas públicas consistentes. Pois que, ao dirimir os interesses de tantos agentes privados agindo sobre o Estado, as políticas públicas se tornaram disfuncionais e com meios e objetivos mitigados. O Estado já sem eficiência passou a ter as suas Instituições Públicas cada vez mais longe daquilo que se denomina de interesse comum. O quadro institucional, peculiar e com múltiplas colorações, é o terreno mais fértil que poderíamos encontrar para o populismo. Aqui, nesta Terra abaixo do Equador, trata-se do populismo travestido de ideias exóticas (e.g. terraplanismo) e salvacionistas (e.g. "o perigo vermelho"). O líder supremo desse estranho movimento político parece ter necessidade imperiosa de um "inimigo invisível" para, assim, poder se relacionar com a realidade objetiva. Há que se notar que aparenta bisonho que tantos militares, acostumados ao tratamento positivista das ideias e dos processos políticos possam ter aderido a isso tudo. Pretendem a tutela? Há também que se ressaltar que esse ambiente político, marcado pela fragilidade e ausência de funcionalidade institucional, é essencial e substancialmente diverso de outros populistas como Donald Trump (EUA), Rodrigo Duterte (Filipinas), Narendra Modi (Índia), Recep Erdogan (Turquia), ou mesmo, Boris Johnson (Reino Unido). A operação política de cada um deles obedece a certo ordenamento institucional (mesmo que fraco) e as ideias e estratégias não se somam ao exotismo existente por aqui. Tanto é assim que as manchetes da mídia mundial catapultaram o líder supremo do Brasil para a condição de pior entre os piores na gestão dessa terrível crise pandêmica. Mandetta bem exemplifica o que escrevo. Finalmente, a atual crise, ao fazer transbordar a insustentabilidade e inconsistência das políticas públicas também desmoraliza a ideia disseminada dentre as elites de que seria possível cultivar "hortas de racionalidade" em meio à floresta de imbecilidades da atual administração. Os tais liberais encastelados na economia e em poderosas posições "tecnoempresariocratas" do Poder Central acabaram por corroborar que, de um lado, têm de aderir ao modelo majoritário do governo e, de outro, serem ameaçados pelo escrutínio virtual de forças ocultas e milicianas que jogam certos grupos sociais na contramão do processo político e, por que não dizer, da construção civilizatória. Um tal de "gabinete do ódio" não é tão distante dos gabinetes frequentados pelos "donos do poder" (no uso da expressão weberiana do saudoso Raymundo Faoro). Deixemos as nossas ilusões na porta dessa triste e perigosa crise. Não haverá sobrevivência de qualquer projeto nacional que eleve a condição de nosso país ao patamar superior na escala da civilização humana se não formos capazes de enfrentar a crise das Instituições brasileiras. A ideia Constituinte, batida pelos encastelados no status quo atual e pouco debatida pelos que podem mudar o Brasil, talvez seja o gatilho para começar um verdadeiro processo de construção da felicidade nacional. Como disse Ludwig Wittgenstein "nada é tão difícil quanto não nos enganarmos".
segunda-feira, 6 de abril de 2020

A geopolítica do vírus

Há chance concreta de que a política americana ganhe mais força na direção do binômio: populismo-nacionalismo A covid-19 é extremamente virulenta em relação à humanidade e os efeitos da pandemia que se propagaram no mundo são impressionantes do ponto de vista sócio-econômico. Não sabemos ainda os meios pelos quais os impactos sanitários serão saneados e, quiçá, os riscos sejam extintos. Os cálculos iniciais dos economistas no que diz respeito à atividade econômica já indicam que o PIB dos países da OCDE deve cair na ordem de 1,0%-1,5% neste ano. Ademais, os efeitos colaterais sobre a demanda, o crédito mercantil e os ativos financeiros, ainda carecem de avançada e acurada avaliação da parte dos policy makers. Vale relembrar que essa inesperada, mas pressentida crise, afeta os fatores de produção de forma grave, os quais estão preservados em larga medida. O "capital de giro", de indivíduos a empresas, é a variável mais preocupante e que tem de ser "preenchida" pelos recursos dos erários e pela injeção direta de moeda no sistema financeiro. Observado analiticamente à distância, esse vírus parece vencível em prazo razoável. De perto, o vírus oferece uma perspectiva assustadora. A covid-19, além das variantes sanitárias e econômicas, produzirá outras importantes alterações mais duradouras nos próximos anos, quiçá na década. Refiro-me à geopolítica e às relações internacionais. A crise demonstrou a interdependência dos países, bem como, a vulnerabilidade, sobretudo do Ocidente em relação à uma variável nada relacionada com a economia e às potencialidades militares: o populismo-nacionalismo. O contexto atual das relações internacionais está marcado pelo combate ao globalismo, especialmente por parte dos EUA, na figura de seu presidente, anunciado em seu discurso inaugural: America First. Concretamente, essa nova ideologia se traduziu no ataque frontal aos acordos internacionais de comércio, à Organização Mundial do Comércio (OMC), bem com, pela adoção do protecionismo ao mercado doméstico como meio de estímulo à produção interna e à disponibilidade maior de empregos. Especificamente, a política estadunidense resultou em aberta "guerra comercial" com a China, além de medidas legais na Jurisdição local e internacional, contra o que seria a "concorrência desleal" chinesa. Afora isso, os norte-americanos, apontaram para as políticas cambiais dos países, incluso o Brasil, como parte dessa "deslealdade" comercial contra os interesses nacionais da América. Vale notar que o presidente Donald Trump, enquanto candidato em 2016, não foi levado à sério em suas promessas de natureza populistas-nacionalistas, um engano custoso do ponto de vista estratégico. Também é interessante sublinhar que esse novo cenário se constituiu em afronta inesperada às instituições criadas pós-II guerra mundial que garantiam a presença hegemônica dos EUA na cena internacional, mas por meio de instituições e diplomas, digamos, "estabilizadores" desse poder. Não à toa, os aliados permanentes e históricos da maior potência do mundo ficaram de fora do teatro de operações dos EUA. Agora o que há é o confronto direto de interesses do capitalismo americanos, com revestimentos populistas no que diz respeito à classe trabalhadora, relação ao "capitalismo estatal" da China que deixou de ser "aliada formal" para ser ameaça de longo prazo à estabilidade política e econômica norte-americana. Morriam assim os clássicos pressupostos liberais da política externa dos EUA, cuja atuação usualmente foi realizada por meio de "pactos coercitivos" e não pela persuasão estratégica e militar. A China também se vê diante de um novo cenário. Da liberalização econômica, gradual e segura, de Deng Xiao Ping nos anos 1980, inclusive por meio do pedido de adesão ao GATT (atual OMC) em 1986, até a integração plena às cadeias de produção mundiais nos anos 2000, o gigante asiático vivencia o momento em que enfrentará os EUA em novo ringue: a tecnologia. O paradoxo desse quadro é que o desenvolvimento tecnológico chinês se fez com investimentos estrangeiros (e inversão posterior chinesa), majoritariamente norte-americanos, de US$ 200 bilhões por ano na década passada. Além disso, o acesso relativamente aberto aos principais mercados mundiais permite que a agregação de valor (via tecnologia) seja feita com elevado volume das transações (exportações) o que dilui os elevados custos de inovação e desenvolvimento de novas tecnologias. Toda essa nova conjuntura atenta contra os interesses dos EUA. Com efeito: a "guerra comercial" é a "comissão de frente" na estratégia de combate à possível superação dos EUA como força-motriz da criação de tecnologias, algo estratégico para o exercício de seu poder coercitivo e persuasivo. Na síntese acima feita vale citar dois dados adicionais muito representativos: a pesquisa científica na China representa hoje 2,2% do PIB (nos EUA, 2,7%). Era 0,5% em meados dos 1990s (o Brasil em 2014 investia 1,3%); a China (por meio de suas estatais) detém o capital majoritário de quase 50 portos em 40 países, um ganho logístico evidente, cujos benefícios serão ainda mais acentuados no longo prazo. Voltemos à covid-19. O presidente Donald Trump chamou a covid-19 de "vírus chinês" nos primeiros dias após ter ficado claro que a crise sanitária originária da China tinha se tornado uma pandemia. Essa forma e ênfase do presidente norte-americano não foi ocasional e muito menos desprovida de significado político. Claramente, o presidente americano estava enquadrando e esquadriando o fato novo na perspectiva de suas políticas contrárias aquilo que alguns ideólogos denominam de globalismo. Diante da recessão e do cenário eleitoral de novembro próximo, quando Trump disputará a reeleição, não há razão e nem evidência de que a política estadunidense sofrerá alteração para o sentido anterior, a globalização. Ao contrário, há chance concreta de que a política americana ganhe mais força na direção do populismo-nacionalismo representado por Trump. O coronavírus é um argumento que se tornou chave na propagação ideológica daquilo que propõe e implementa a atual administração americana. São três as razões que destaco, dentre muitas, para que possamos acreditar no aprofundamento da atual política dos EUA: (i) o coronavírus evidenciou diferenças "civilizatórias" com a China, destacadamente, as questões sanitárias e a transparência das informações e liberdade de expressão; (ii) a política de isolamento sanitário reforçou as variáveis internas dos países em detrimento à política de colaboração internacional e (iii) o fato de as principais economias ocidentais saírem mais enfraquecidas que a China dessa crise. Mesmo a derrota de Trump na arena eleitoral, mantida a maioria republicana, não retirará o viés da política externa que ele fincou junto à sociedade norte-americana. Sobretudo a classe média, percebe que a América está em rota de decadência frente ao gigantismo chinês. Por diferentes razões, a sociedade de lá, age (i) como nos anos 1960 em relação à corrida espacial (quando a URSS estava à frente dos EUA no início da década), (ii) como nos 1970 em relação à corrida armamentista (a URSS expandiu a sua zona de influência nas bordas de suas fronteiras) e nos anos 1980 quando Reagan enfrentou o socialismo como uma luta de valores. Agora a China desperta a visão, muito mais concreta, de que os EUA se tornarão mais dependentes da evolução tecnologia chinesa e que os investimentos americanos na China gestaram um problema geopolítico incontornável. Por fim, vale ressaltar que as empresas americanas já estão revisando suas estratégias de suprimento e manufatura, reduzindo a dependência da China e aumentando o papel da Índia, países menores do sudeste asiático (como o Vietnã) e, em menor medida, o México. Ou seja, as propostas nacionalistas de Trump podem não revigorar a taxa de investimento dentro dos EUA (o que seria "patriótico"), mas aumentaram os desembolsos de capital para fora da China. A reação estratégica chinesa virá. Até agora, Xi Jiping optou por trabalhar taticamente: ceder peremptoriamente para colocar os burocratas de volta à mesa de negociação, estabelecer acordos provisórios e propagar no âmbito microeconômico as consequências da política de Trump para pressionar o governo americano via o establishment econômico do país. Para países periféricos como o Brasil, a política externa e comercial terá de se adaptar ao novo cenário com uma diplomacia mais capaz de atender ao momento. São muitas as consequências estratégicas. Aqui, para finalizar, cito apenas uma: trafegar entre blocos econômicos e relações multilaterais exigirá muito mais inteligência diplomática e organização política interna. Para tanto, traços ideológicos muito nítidos não são bons ingredientes para esse novo momento da política internacional.
Governos preferiram deixar o tratamento da pandemia e da economia em "caixas separadas" Não há precedentes para a pandemia que abala todas as nações do mundo nessa hora. Afora a dimensão geográfica e humana do espalhamento do Convid-19 nas entranhas sociais do mundo, há que se considerar as ações e os cálculos políticos que rodeiam as ações de governos e instituições. Não é irrisório que os EUA estejam em meio à campanha eleitoral e que o coronavírus tenha se tornado o maior eleitor do momento. As guerras e as crises geopolíticas sempre foram fatores de reações centrífugas e centrípetas em relação aos líderes políticos, cujos efeitos eleitorais determinaram relevantes sucessos (e.g. Rooselvelt, eleito cinco vezes) e enormes insucessos (e.g. Carter, na crise de 1978 com o Irã ou o fim da ditadura argentina depois da guerra das Malvinas em 1982). Crises de pandemia jamais tiveram maiores efeitos políticos, nem mesmo a gripe espanhola de 1918. Agora viveremos isso. Vale observar que nessa crise não é à toa que o termo "guerra" tem sido usado pelos governos e seus porta-vozes: na ausência de amálgama para a linguagem política, nada melhor do que usar um termo tantas vezes usado. Dois temas parecem ganhar contornos políticos "especiais" em meio à pandemia: o primeiro diz respeito ao grau de isolamento que os governantes estão impondo às populações dos países. O segundo diz respeito às medidas econômicas de natureza "compensatória" que estão sendo engendradas pelos erários. Em respeito ao primeiro tema, está claro que ganham popularidade e credibilidade os governantes que agregam às (duras) medidas de contenção ingredientes de estabilização social, liderança em meio à crise e preocupação com a segurança das pessoas. No que diz respeito ao segundo tema, os governantes são avaliados sobremaneira em relação à capacidade de articulação com as forças políticas e sociais para produzir medidas que satisfaçam, mesmo que parcialmente, à conjuntura do momento. Obviamente, o impacto das medidas empreendidas pelos líderes é fundamental para conter as expectativas e até alterá-las. Todavia, a "articulação" é o fator mais observado pelas sociedades em relação aos líderes políticos no que se refere à economia. Quem bem articula, melhor é avaliado. Não obstante, as pesquisas de opinião têm indicado que as expectativas estão a se deteriorar e que o pessimismo tomou conta dos cidadãos mundo afora. A verdade é que o impacto dessa crise foi em larga medida subestimada pelos governos ocidentais. Agora a corrida em busca de soluções acabou por causar deterioração mais acentuada nas principais economias. De todo o modo o que se percebe é que os governos preferiram deixar o tratamento da pandemia e da economia em "caixas separadas". Em verdade, essas áreas estão inter-relacionadas, mas tem-se optado em criar relação de causa (pandemia) e consequência (recessão) com evidente distinção de tratamento entre ambas. Ocorre que poucos países têm delimitado o horizonte temporal para a saída da crise de saúde e de suas medidas de contenção. Nesse contexto, o que será da economia? De fato, sem o fim do isolamento não há análise econômica que se sustente. Todavia, se se demonstrar para a sociedade que não faltará recurso para a recuperação é possível que as expectativas se estabilizem e até se recuperem. No caso dos EUA, o pacote de US$ 2 trilhões focou de forma mais proporcional nas famílias e indivíduos em relação aos negócios e empresas: eis um sinal evidente de que o governo tenta atuar num espectro mais elástico da opinião pública e não apenas em relação aos "donos do poder econômico". Aqui no Brasil a situação é, no mínimo, mais complexa. As "caixas" (saúde e economia) não estão insuladas: misturam-se temas prioritários de saúde pública com temas secundários (decorrentes) que dizem respeito à atividade econômica (recessão, desemprego, etc.). Seguido o roteiro é possível, senão já provável, que o país colha os piores frutos dessa pandemia: o colapso do sistema de saúde com perdas de muitas vidas somado com os efeitos econômicos negativos e, provavelmente, com expectativas ainda mais deterioradas. Ou seja, se trocará um horizonte de retomada econômica imediata pelo risco de uma piora ainda maior no médio prazo (seis meses). Há de se recordar que do ponto de vista econômico há muito a ser feito, seja porque falta a necessária energia para elaborar e, especialmente, implementar políticas públicas e econômicas capazes de estabilizar e, no médio prazo, reverter as deterioradas expectativas. Ao adotar o viés ideológico que caracteriza o debate político do momento e que, por sua vez, não altera o curso das ações, troca-se a necessária dinâmica necessária às medidas pela estática de se usar o mesmo diagnóstico para conjunturas que se alteram. O lema do governo poderia ser "mudam os fatos e eu permaneço com a minha opinião". Deveria ser: "Ter uma postura condizente com a realidade sem debater a sua 'natureza ideológica'". Como já enfatizei em artigos anteriores, a atual crise criou um hiato entre a produção de bens e serviços e a demanda por estes. Quanto maior a capacidade de o Estado prover recursos e preencher esse gap com recursos financeiros e materiais, mais rápida será a recuperação mais à frente. Chegou a hora de os governos cuidarem para que as pessoas fiquem "paralisadas" em suas casas em prol do rápido e saudável retorno à atividade, bem como, cuidando para que a paralisia econômica acabe o mais rápido possível disponibilizando recursos com eficiência e rapidez. No caso do Brasil estamos com riscos redobrados: ter o pior na saúde das pessoas e na economia. Não deve ser essa a nossa sina, não é mesmo?
O papel do Estado e dos governantes é fundamental e não pode ser afastado por discussões ideológicas  As condições econômicas para a superação da atual crise do covid-19 estão dadas. Essa crise alienou momentaneamente o trabalho enquanto fator de produção, com consequências relevantes para o consumo de bens e serviços vez que há impactos substantivos em termos de renda e de expectativas (ruins, no caso). Todavia, é preciso que fique claro que, ao contrário do que ocorre com as guerras e certas catástrofes naturais, a pandemia não necessariamente deve provocar a extinção das condições básicas para que as economias voltem a funcionar. O que está a ocorrer é a paralisia momentânea do corpo econômico, mas isso não causará inexoravelmente a morte de "partes" desse corpo. Superada a crise o corpo voltará a funcionar de forma articulada. Há riscos, contudo. Somente esses riscos, mais "criados" do que "inerentes" é que podem desarticular o bom funcionamento da economia. Dentre esses riscos o principal é a questão do suprimento de recursos financeiros que permitam a que os agentes econômicos (pessoas, empresas, instituições, etc.) possam manter o seu "capital de giro" para funcionar. No caso das pessoas, estamos a falar de coisas ainda mais importantes -  o dinheiro necessário à subsistência básica, por exemplo. Com efeito, há de se garantir as condições para pagar as contas e manter o funcionamento dos lares e da vida ordinária das pessoas. No caso das empresas, é fundamental que estas possam financiar a suas operações, comprar matéria-prima, conceder crédito aos clientes, bancar as operações (industriais ou de serviços) e assim por diante. A manutenção desse "capital de giro", como se pode verificar, dependerá essencialmente da capacidade dos Estados em prover apoio "fiscal" para que não se crie um gap, um hiato temporal e material, de natureza financeira. O uso da "política fiscal" difere da "política monetária" na medida em que a primeira diz respeito a forma pela qual se utiliza o orçamento, no que se refere às despesas e receitas dos Estados e/ou suas instâncias e divisões administrativas (e.g. estados e municípios). A disponibilização de recursos para suprir o "capital de giro" de pessoas e empresas, seria um "gasto fiscal" oriundo do orçamento. De outro lado, a política monetária tem por objetivo garantir as condições de liquidez da economia, notadamente a do sistema financeiro e de capital. Por meio da manipulação da taxa de juros e das reservas bancárias, os bancos centrais garantem que as transações legítimas dos agentes econômicos sejam realizadas. Não é difícil perceber que é da combinação das duas políticas (monetária e fiscal) que sairá a solução da atual crise pandêmica. Porém, é ainda mais evidente que a política fiscal preponderará nesse processo na medida em que os gastos orçamentários podem garantir a manutenção e criação de bens. Por exemplo, o Erário pode bancar um déficit fiscal momentâneo para que seja desenvolvido um programa de desenvolvimento da infraestrutura com o objetivo de criar empregos. Obviamente, há limites para a estratégia de gastar recursos orçamentários. O principal desses limites é a inflação: se os gastos do governo não proporcionarem a revitalização da economia (leia-se "crescimento do PIB"), os recursos financeiros alimentarão a demanda pelos mesmos bens existentes, logo, os preços começarão a subir sistematicamente, o que tecnicamente é chamado de "inflação", que ocorre quando o nível da capacidade instalada de produção é ocupado. Se os gastos alimentarem o sistema e novos bens forem criados, não deve haver inflação. A política fiscal sempre é utilizada, inclusive pelos governos de cepa liberal, para situações nas quais as condições de expansão da demanda e da oferta estão contingenciadas por certos fatos. A pandemia se enquadra perfeitamente nesse contexto factual. Não quero desprezar os riscos e nem minimizar o sofrimento das pessoas diante da perspectiva de ter a saúde e, eventualmente, a própria vida, afetadas pelo covid-19. De outro lado, é preciso que seja instalada na sociedade a discussão sincera e verdadeira de que essa crise pode ser superada, senão com "facilidade", pelo menos com "racionalidade" suficiente para que não ocorra um enorme colapso econômico e social. Dito isso, está claro que o papel do Estado e dos governantes é fundamental e não pode ser, de modo algum, afastado por discussões ideológicas. Caso contrário, se retirará a condição básica para o sucesso das estratégias fiscais e monetárias que é a confiança. Líderes débeis e políticas frouxas levam as pessoas para a desesperança e para ações que conspiram contra a recuperação econômica. De fato, temos duas mazelas inter-relacionadas: um vírus "virulento demais" e sinais preocupantes em relação à economia. Ambos merecem atenção e ambos merecem ações políticas equivalentes à própria gravidade. Há que se notar que a receita que de forma singela descrevo aqui está sendo adotada ao redor do Globo. Hoje mesmo (25/3/2020) será votado um pacote de US$ 2 trilhões nos EUA para satisfazer as condições para o combate da pandemia e, de outro lado, para cuidar das variáveis econômicas necessárias à recuperação de empregos e produção de bens e serviços. O discurso do presidente Jair Messias Bolsonaro, na noite de ontem, dando conta de uma "gripezinha" para qualificar o vírus convid-19 e chamando a atenção para a recessão que virá por conta das ações de governos estaduais, cientistas, mídia, etc. não é apenas uma irresponsabilidade. É a demonstração cabal de sua própria incapacidade para entender as variáveis do processo econômico e de como um governante tem de agir em relação a esta dinâmica. Impressiona também o sumiço de seu ideólogo econômico que parece intimidado para usar a política fiscal e monetária de forma "keynesiana" (menção a Lord Keynes quem revolucionou a teoria econômica). Parecem ambos, Bolsonaro e Guedes, empenhados em guiar o barco da Nação na direção do abismo. Um pela incontinência verbal. Outro pela incapacidade de engendrar políticas necessárias ao momento. Por fim, essa crise talvez tenha desmoralizado a tese de que a "voz do povo" é a "voz de Deus" no que se refere à legitimidade que as urnas trazem para o governante. Vê-se que a benção das urnas pode recair sobre pessoas e partidos absolutamente despreparados para a gestão da coisa pública. Sinal inequívoco de que o nosso sistema político é desastrado e ineficiente para os objetivos do desenvolvimento social e econômico do país. A democracia é um bem demasiado importante para ser manipulada pelos falsários que a rodeiam. A hora é de repensar com profundidade o que estamos a viver. Isso para evitar que o Brasil possa sucumbir a essa crise por conta de seu líder mais importante. 
terça-feira, 17 de março de 2020

O mercado do vírus

É tempo de dar proporção aos riscos, não os minimizar, mas também não os engrandecer Em artigo anterior ("O vírus do mercado", de 4/3/2020) fiz uma reflexão sobre os "efeitos do vírus sobre o mercado". Naquele artigo alertei para o fato de que não deveríamos subestimar o efeito do maléfico vírus corona vez que "previsões iniciais sobre cada uma delas (as pandemias) falharam por demais. Para o bem e para o mal". Agora verificamos que o efeito do vírus se agigantou perante os principais países do mundo e, enfim, chegou a nossa vez de enfrentar o problema de frente. A previsão falhou "para o mal..." As cotações dos ativos estão derretendo: a título de ilustração, o Índice SP500 perdeu ¼ do seu valor entre 19/2/2020 e 16/3/2020. Interessante que o processo de queda começou sem grande volume de negociação, possivelmente por estarmos diante de um fato relativamente inédito, e, aos poucos, os vendedores foram ganhando força. Certamente há pânico no mercado a ponto de os investidores terem reagido negativamente até quando as autoridades monetárias injetaram recursos no mercado e reduziram para zero as taxas de juros, como foi o caso do Federal Reserve. Das teorias da conspiração até a simples percepção de que vem uma recessão forte logo a frente, poucos tiveram consistência analítica para bem informar o tal do mercado. O que não faltou foram as fake news e líderes populistas, liderados por Donald Trump, minimizando os efeitos do vírus. O presidente norte-americano até explicitou xenofobia com o "vírus estrangeiro" que atacava o país. Agora o populista americano se rende à realidade. Obviamente, é muito difícil diante das batalhas, ter a frieza e as informações que permitam vislumbrar minimamente o desfecho dessa tragédia. Todavia, uma coisa é certa: os preços dos ativos estavam elevados antes do início da queda do mercado e os investidores, ao redor do mundo, estavam muito comprados. O efeito do processo de redução da alavancagem (posições compradas em ativos acima do valor disponível no caixa) já seria devastador. Com o vírus correndo solto, o ajuste foi rápido e violento, desta feita para baixo. Usualmente em situações como essa, depois de certo tempo os investidores com horizontes de mais longo prazo têm a chance de comprar ativos de qualidade bem mais baratos. O que assusta nesse momento é que enorme ceticismo tomou conta do mundo e os efeitos da crise estão se espalhando para além dos hospitais caóticos. Há a presunção de que mercados são operados dentro da racionalidade. Ocorre que no momento é o pânico a única razão dos movimentos dos preços. Conceitualmente, no uso do jargão do mercado, "pânico" ocorre quando os investidores tem visões bastante distintas sobre o retorno esperado de determinado ativo que seja compatível com o risco, posto que o risco é desconhecido (ou de difícil determinação). Assim sendo, a volatilidade (grau de incerteza sobre o retorno esperado) é muito elevada. É exatamente a situação atual: ninguém parece capaz de auferir qual será o efeito da crise sanitária sobre a economia mundial e local. O que me parece certo é que as medidas adotadas pelos governos para combater o vírus são insustentáveis do ponto de vista lógico. Não parece provável que as pessoas possam ficar sistematicamente reclusas sem que isso acabe por afetar o abastecimento de bens, especialmente de comida. Portanto, teremos de ver como as coisas andarão nas próximas semanas. Até lá muito álcool gel. Um raciocínio simples indicaria que o ajuste de preços no mercado não deveria ir muito além do que foi. Se considerarmos que os preços dos ativos estão relacionados com o "valor intrínseco", ou seja, pelo valor presente dos fluxos de caixa futuros, a recessão vindoura pode não afetar mais de um ano. Logo, a parcela do fluxo de caixa futuro é relativamente pequena em relação ao valor total desse fluxo (que é o valor da empresa). O que seria um ou dois anos em um fluxo de dez anos mais o valor da perpetuidade dos resultados das empresas? Depois de tanta queda dos preços, estruturalmente os ativos podem ter descontado os excessos otimistas dos últimos anos. Obviamente, falo de uma maneira geral, não estou me referindo às especificidades de certos ativos. De todo modo, não dá para minimizar o que está a ocorrer. Estou apenas construindo um pensamento minimamente lógico em meio ao comportamento volátil e eventualmente irracional dos investidores. Também não quero aqui minimizar o "financismo" que prevalece no mundo capitalista. Não parece razoável que haja um deslocamento tão grande entre a realidade econômica e aquela que é vivida nas mesas de operações, estas sempre focadas em interesses e visões de curto prazo. De outro lado, também temos a desigualdade social, as tensões políticas externas e internas, os riscos cibernéticos e os temas ambientais como assuntos que são deixados de lado em prol dos interesses financistas. Creio que estamos diante de um fato inédito desde a grande guerra que terminou em 1945: as pessoas estão recolhidas como que a espera de um bombardeio. Essa pandemia realmente impressiona. Todavia, é tempo de dar proporção aos riscos, não os minimizar, mas também não os engrandecer. Um enorme ajuste econômico está a caminho, mas o horizonte continua lá. É preciso olhá-lo com certa frieza para que não nos desesperemos. Não estou tão pessimista quanto verifico que o tal do mercado está.
quarta-feira, 4 de março de 2020

O vírus do mercado

É hora de darmos uma olhada no horizonte Desde a inauguração da temporada de especulações sobre o espalhamento do coronavírus ao redor do mundo, o mercado de capitais abandonou os patamares de preços dos ativos mais elevados de toda a história. Nos EUA, residência oficial do capitalismo financeiro mundial, os índices S&P 500 e Nasdaq caíram ao redor de 10%, desde que o "corona" deixou de ser vírus e tornou-se pandemia para os investidores. Interessante que bem trajados analistas e economistas aparecem na TV com ares médicos para especular sobre as consequências do COVID-19. Diz-se que o tal do vírus é transmitido pela saliva, espirro, tosse ou pela gentileza dos apertos de mãos. De fato, parece transmissível por meio das cotações do mercado de capital e financeiro. Aqui abdico do papel de lidar com temas virais de saúde para adentrar naqueles que viralizam nos mercados. Pois bem. O jogo de curto prazo dos mercados parece estar mais relacionado com a percepção sobre quanto nervosismo e pânico esse vírus vai causar. Isso é reflexo direto daquela percepção ordinária que as pessoas tem de que o surto vai atingi-las. Com efeito, os hábitos de consumo e investimento se alteram no sentido do pânico e se cria um "movimento de manada" tão irracional que acaba por ser impossível analisá-lo. Não é pouco caso: viagens estão sendo canceladas, eventos transferidos para datas tardias e assim vai. Até apertos de mãos se tornaram suspeitos. Todavia, não subestimemos: relevantes eventos econômicos podem decorrer dessa irracionalidade. Há que se recordar que previsões de pandemias não faltaram na história econômica, da gripe espanhola (1918) até a síndrome respiratória do Oriente Médio e a Síndrome Respiratória Grave Aguda, estas duas bem mais recentes. Os efeitos de cada um dessas doenças sobre a economia foram bem diversos e, mais, as previsões iniciais sobre cada uma delas falharam por demais. Para o bem e para o mal. Como se vê estamos em terrenos pantanosos, mas, mesmo assim, o Federal Reserve, o Banco Central dos EUA, resolveu meter o estetoscópio nos ouvidos para ouvir os pulmões do mercado (americano e mundial). Nessa terça-feira (4/3/2020), aplicou um remédio poderoso e baixou a taxa de juros básica em 0,5% para o intervalo de 1,00%-1,25%. Aí o jogo começou a mostrar sinais ainda mais preocupantes. Afinal, se o tão bem informado Federal Reserve mandou sinais de que há pânico perigoso no mercado, logo os investidores ampliaram o terrenos de especulações: será que a coisa é mais grave ou o Fed está "enxergando" algo a mais no cenário? Bom, estamos no meio desse debate inquietante, mas creio que é hora de darmos uma olhada no horizonte. Sem preconceitos, diga-se. Os preços dos ativos estão ainda nas alturas, na crença de que viveremos sob taxas de crescimento econômico (cada vez) mais baixas. Os sinais, anteriores a "pandemia" eram de queda da produtividade nos EUA, o que significa perda de vitalidade do crescimento, bem como, menor consumo e investimento na China. Sobre o resto do mundo o comentário chega a ser repetitivo: está atolado em baixo crescimento (Europa, Japão) há duas décadas (pelo menos) ou com crescimento oscilante e inconsistente (América Latina). Os países da Bacia Asiática seguem a China. Neste contexto, a análise sobre os mercados era paradoxalmente otimista: com taxas de crescimento baixas, as taxas de juros permanecerão negativas ou neutras e, aí, é confortável especular com ativos mais arriscados. Ademais, o fornecimento de crédito nas economias centrais não serve à expansão da base econômica, mas ao fetiche das fusões e aquisições, às recompras de ações pelas empresas e ao refinanciamento (alongamento de prazos, sobretudo) dos outros títulos de crédito. Até Warren Buffet andou tratando do tema. É verdade que o paradigma tecnológico está mudando rápida e vigorosamente, mas os sinais desse processo sobre a produtividade (crescimento) não são claros: as taxas de investimento nos EUA estão caindo desde a década de 1980, só para citar um exemplo sempre relembrado pelo economista Paul Krugman. Tem mais: os riscos para as empresas estão cada vez menos associados aos seus fundamentos intrínsecos e próprios dos setores econômicos e mais ligados aos riscos sistêmicos. Como enfatizou (mais uma vez) Klaus Schwab, fundador e líder do World Economic Forum, os maiores riscos para as empresas estão associados às tensões políticas (internas e externas), aos riscos ambientais, à desigualdade social e aos riscos cibernéticos. Com patamares de preços tão altos dos ativos financeiros, também ganha contorno preocupante o desenrolar da política ao redor do mundo. Sabe-se que líderes reacionários e/ou populistas acabaram por se associar às políticas econômicas tidas como pró-mercado. Todavia, as tensões (desorganizadas) proporcionadas por esse cenário começa a evidenciar que a ausência de harmonia social e política mina as condições essenciais para que exista confiança para se consumir e investir. (Veja o caso do Reino Unido: é mais fácil as traquinagens eleitorais sobre o Brexit do que lidar com a sua realidade). Logo, pouco a pouco, está a se instalar no ambiente econômico um certo mal estar entre os partícipes do mercado e os donos do poder político. Obviamente, não está claro se isso evoluirá para mudanças no curto e médio prazo, mas não deixa de ser sintomático que um político da velha esquerda norte-americana como Bernie Sanders tenha conseguido ter alguma voz - nos EUA a desigualdade tem aumentado e a classe média começa a perceber que o jogo econômico e político não a favorece tanto quanto Wall Street prega. Assim sendo, parece-me que manter a calma diante de um amigo gripado seja importante para que não sejamos arreados no comportamento eventualmente esquizofrênico dos investidores. De outro lado, talvez seja a hora de dar uma parada e verificar os fundamentos profundos e desajustados do atual capitalismo financeiro mundial. O vírus do mercado pode ser outro que não o "corona".
terça-feira, 10 de dezembro de 2019

Desigualdade na renda, mais desigualdade no Direito

A desigualdade social, especialmente quando crescente, desagrega e desintegra o próprio sistema jurídico Nos últimos dois artigos publicados nessa coluna ("Olhai os espinhos do mundo" e "O maior risco do momento") procurei oferecer aos leitores uma visão ordenada sobre os riscos que pesam sobremaneira no cenário atual. Entendo que as ameaças conjunturais, usualmente relacionadas com ciclos econômicos, inflação, emprego, etc., no momento decorrem mais de aspectos estruturais, tais como, os riscos geopolíticos, os temas de comércio internacional, os gaps tecnológicos e outros tantos. Com efeito, a probabilidade de a economia mundial registrar fortes choques, eventualmente disruptivos, parece ser relevante. Pesquisa do World Economic Forum de 20181 destacou quatro principais riscos: persistente desigualdade social, tensões políticas internas e externas, riscos ambientais e vulnerabilidades cibernéticas. Para 59% dos respondentes os riscos aumentaram naquele ano. Arrisco-me a afirmar que esses riscos aumentaram em 2019. Pesquisa mundial recentíssima da consultoria PwC2 que envolveu 2.084 executivos de organizações de todos os tamanhos, de 25 setores e 43 países mostrou que as "disrupções competitivas", os crimes cibernéticos, problemas regulatórios e tensões geopolíticas estão dentre as preocupações preponderantes para os dirigentes das empresas. Tratam-se de desafios sistêmicos e dos quais as causas e soluções/mitigações dependem relativamente pouco de cada empresa individualmente observada. Nesse artigo, pretendo chamar atenção para o efeito gravíssimo da desigualdade econômica e social sobre o cenário e os efeitos sobre o denominado Estado de Direito. Vale dizer que mesmo em relação às teses do "livre mercado", muitas vezes são "esquecidos" ou "pouco comentados" os seus fundamentos e princípios teóricos. A título de ilustração, a ideia da "mão invisível" de Adam Smith - que não era economista no strictu sensu do termo - descreve o modo pelo qual interesse individual se conforma em interesses sociais mais amplos. Todavia, essa construção de Smith apenas poderia funcionar de facto se houvesse um ambiente onde o Estado de Direito e as normas éticas e morais fossem prevalecentes. Caso contrário, o "mercado" propagaria a desigualdade econômica e social e, com efeito, prejudicaria ou não realizaria o interesse comum e amplo da sociedade. Portanto, mesmo sob o guarda-chuva teórico do liberalismo dos séculos XVIII e XIX, a Rule of Law (Estado de Direito) e os valores éticos se constituíam em pilares indissociáveis do livre mercado. Nas sociedades modernas, o Estado de Direito se sedimenta sobre relações sociais e econômicas cada vez mais complexas, bem diferentes dos "séculos liberais". Significa dizer que o ordenamento jurídico é multifacetado, sofisticado e recheado de entroncamentos de normas que individual e coletivamente se constituem em um sistema igualmente complexo. A desigualdade social, especialmente quando crescente, desagrega e desintegra o próprio sistema jurídico o que aumenta as tensões e a probabilidade de que o sistema político deixe de ser meio de pacificação e equacionamento das relações sociais. A desigualdade da distribuição da riqueza e os espectros econômicos e políticos são bem conhecidas na academia, especialmente nos EUA e Europa. Os efeitos desse processo sobre a Justiça e o ordenamento jurídico é menos estudado, mas há muitos trabalhos que exploram a matéria sob diversos ângulos. Destaco entre os estudiosos do assunto o Professor da Cornell University Robert H. Frank que examina como as questões da desigualdade e outros aspectos socioeconômicos que influenciam as superestruturas políticas e do mercado. No contexto da desigualdade crescente, a eleição do presidente Donald Trump teve como fator determinante os votos dos excluídos e marginalizados. A financeirização da maior economia do mundo (1/4 do PIB mundial) fez com que o crescimento orgânico das unidades geradoras de renda e empregos (as empresas e outros negócios) deixasse de ser, ao longo dos últimos vinte ou trinta anos, a alavanca do desenvolvimento econômico. De outro lado, o incremento da "riqueza" (não propriamente o capital) proporcionou o distanciamento maior entre as classes sociais. Cito alguns dados para ilustrar o fenômeno: dados do primeiro trimestre de 2017 informam que o "montante da riqueza" (casas, automóveis, bens valiosos, negócios, poupança e investimentos) dos americanos era de US$ 94,7 trilhões. Considerando-se o número de lares dos EUA (124 milhões) a riqueza por lar seria de US$ 760 mil. Todavia, os 50% dos lares mais pobres dos EUA têm um "estoque de riqueza" de apenas US$ 11 mil3. Pesquisa de 2013 mostrou que 1% dos moradores de lares mais ricos da América são detentores de 38% das ações negociadas no mercado norte-americano4. Dados de 2014 informavam que o 1% dos mais ricos nos EUA detém 40% da riqueza, sendo que a diferença de riqueza entre os 10% mais ricos e a classe de renda média é de mais 1000%5. No Brasil, os dados são mais alarmantes. A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (2018) informa que o rendimento médio de 1% da parcela mais rica da população (R$ 27.744/mês) foi 34 vezes maior que os 50% mais pobres (R$ 820/mês). Cerca de 43% do total da massa de rendimentos é detida por um décimo da população. Esses números tem piorado conforme o PIB do país permanece estagnado ou cai. O impacto dessa desigualdade de riqueza e renda nos EUA e no Brasil são semelhantes entre as maiores economias capitalistas. Mesmo dentre os países europeus, os índices de desigualdades são impressionantes: os 10% dos europeus mais ricos ganham 19 vezes mais que os 10% mais pobres. A denominada "Justiça distributiva", conceito caro aos juristas de toda cepa, tem demonstrado que as sociedades não têm sequer mantido o nível de desigualdade nas economias mais importantes do globo. As propostas discutidas nos parlamentos não têm sido capazes de reduzir esse fenômeno desintegrador do tecido social. Leis que versam sobre a taxação da riqueza, impedimento das recompras de ações por parte das empresas, aumento da tributação direta em detrimento da indireta, estímulo à concessão de benefícios aos trabalhadores mais pobres e outras tantas têm esbarrado na oposição dos empresários e detentores majoritários da riqueza. O ordenamento jurídico tem se renovado em ritmo lento enquanto a realidade e os fatos ganham tração a cada dia. Não bastasse a paralisia legislativa nos principais países ocidentais, a aplicação das leis por parte dos tribunais, sobretudo os superiores, tem se caracterizado pelo particularismo. O que vale são os interesses econômicos concretos a cada caso, sem que se observe os seus efeitos extensivos a toda a sociedade. O principal elemento desagregador da aplicação do direito é o fato de que a discriminação econômica, via desigualdade de renda e riqueza, tem resultado em equivalente discriminação para o acesso efetivo à Justiça. As discussões formais nas cortes de justiça têm impedido que significativa parcela dos mais pobres tenham acesso às decisões do Judiciário6. O aumento da desigualdade de riqueza e renda, por sua vez, reduziu a oferta de assistência jurídica para os mais pobres. Se somarmos essa menor assistência ao fato de que os parlamentos estão cada vez mais condicionados pelos lobbies dos interesses dos mais ricos, o reflexo da desigualdade se propaga por meio de leis favoráveis aos mais abastados e acesso estrito à justiça para os mais pobres. Há ainda a impunidade que normalmente está ligada às classes mais altas. Finalmente, a desigualdade fundada no processo econômico, produz, no campo jurídico, o denominado legalismo em detrimento do Estado de Direito. O legalismo é a pura deturpação da aplicação da norma vez que o fundamento constitucional (que é fruto do pacto político) que deveria ser nortear a verificação dos direitos e deveres sociais é esquecido ou deturpado em prol da preponderância das normas infraconstitucionais. Vale dizer que a formação da vontade e do julgamento dos temas jurídicos depende da existência de verdadeira democracia participativa que, por sua vez, não se sustenta na existência de desigualdades sistêmicas e, por que não dizer, imorais. A prevalecente ausência de igualdade econômica no mundo precisa ser debatida também sob a óptica do Direito. O risco desse preocupante processo é que a essência pacificadora do Direito se perca na sua própria e aparente funcionalidade e, assim, não apenas a desigualdade se propague, mas seja destruída a ordem do Estado de Direito. Os sinais estão dados. Resta saber quem os verá. __________ 1 The Global Risks Report 2018 3th edition 2 Pesquisa Global sobre Crises 2019 3 Perspectives on Inequality and Opportunity from the Survey of Consumer Finances. 4 The Market Isn't Bullish for Everyone. 5 Discurso State of the Union 2014, Barack Obama 6 Teubner, Gunther/Febbrajo, Alberto (1992). "State, Law and Economy as Autopoietic Systems: Regulation and autonomy in new perspective".
quinta-feira, 7 de novembro de 2019

O maior risco do momento

A ideologia falsamente libertária que prevalece se soma ao novo paradigma tecnológico  No último artigo que escrevi ("Olhai os espinhos do mundo"), elenquei uma série de observações sobre o desenvolvimento dos fatos que estrutural e conjunturalmente podem afetar as economias e os mercados. Aquele artigo não teve a pretensão de exaurir analiticamente o que abordou. Foi tão-somente um exercício. Todavia, a importante conclusão que propus à reflexão foi que a capacidade de se elaborar previsões está bastante diminuta, diante dos riscos atuais. Aqui prossigo na exploração dos fatos e processos que, de forma curiosa e inquietante estão a prevalecer no capitalismo atual. Vejamos. O visível declínio da forma de gestão (e criação de valor) baseada na produção e no crescimento orgânico das empresas, forma que prevaleceu até meados dos anos 80, deu lugar à obtenção de resultados e valorização de ativos por meio de "transações", notadamente as cisões e fusões corporativas, bem como, por meio de crescente uso de instrumentos do mercado de capital e de derivativos, processo esse intensificado a partir do novo milênio. Poderíamos dizer que o foco dos gestores das corporações se deslocou da empresa em si para a sua "representação" no mercado. Com efeito, o valor de mercado passou a ser mais relevante que o "valor intrínseco" do negócio, dois valores que deveriam ser compatíveis entre si, mas a realidade concreta aponta que há excesso de goodwill, valores intangíveis nas empresas. A crise de 2008, fato muito especial desde a crise de 1929, demonstrou que essa visão sobre as empresas e os negócios (i) prosperou em frágil ambiente regulatório (que foi essencial para superar os estragos pós-1929) e (ii) que foram os bancos que iniciaram a crise por causa dos ativos (das próprias empresas) que tinham em seus balanços ou que lançaram no mercado. Depois do terremoto de 2008, cujas consequências foram minoradas pela atuação dos Estados (bancos centrais e erários) das economias relevantes do capitalismo, a regulação permaneceu frágil e ideologicamente démodé. Antes de 1929 os administradores de muitas empresas europeias e norte-americanas praticavam, com certa liberdade, falcatruas corporativas para obter "resultados". A regulação pós-crise, sobretudo no pós-II Guerra, permitiu que ajustes de largos efeitos estruturais fossem construídos para que o desenvolvimento capitalista prosseguisse. Do ponto de vista sócio-político, o incremento da regulação no mundo capitalista pós-1929 também propiciou o aumento da participação das classes laborais no processo de acumulação de renda e no aumento do consumo, notadamente nos EUA. Politicamente, transformou a democracia e afastou a decepção com a democracia liberal que forjou duas guerras mundiais. A política foi salva pelo Estado do Bem-Estar Social. No período pós-2008, a regulamentação dos mercados financeiro e de capital apresentou poucos progressos para se evitar colapsos como o do subprime. De fato, a condução dos 'negócios' (e não somente das 'empresas') permaneceu com regulação favorável aos detentores do "poder transacional": os banqueiros, os investidores, os gestores de ativos financeiros. As soluções de mercado para os negócios corporativos permaneceram semelhantes ao que acontecia desde os anos 1980s: a engenharia da produção foi trocada pela engenharia financeira. Politicamente, essa realidade financista refletiu-se em processos eleitorais, dos poderes Executivos e Legislativos, cada vez mais marcados pela plutocracia. Foi revigorada a percepção anterior à I Guerra Mundial de que a democracia liberal é, de fato, a "democracia dos ricos". Na prática, o contrato social do Welfare State rompeu-se na sua essência vez que essa construção política não decorre da "ordem econômica", mas de uma "ordem jurídica-política" que corrige eventuais distorções no processo capitalista. No mundo atual, a "ordem jurídica-política" é vista como distorção ao postulado de que os mercados são eficientes e que a expansão do capitalismo financeiro implica na "popularização do capital" e na "retirada de milhões da pobreza". Ocorre que essa pregação, digamos, política-ideológica dos benefícios dos mercados eficientes, não encontra respaldo na observação dos indicadores econômicos: e.g. a renda per capita dos países capitalistas cresceu pouco desde os anos 1990s, nos EUA algo como 2%, menos que na "década perdida" dos anos 70 (+2,5%) e o dobro desde 1945. Outros indicadores sociais impressionam: os EUA têm hoje cerca de 13% de sua população ativa na pobreza (41 milhões), cuja expectativa de vida é declinante. (Dados do Banco Mundial e do Instituto Brookings) Obviamente, a nem tudo no Welfare State foi perfeito: as melhorias econômicas e sociais propiciaram a criação de interesses e direitos pouco flexíveis para o desenvolvimento. Se a renda aumentou, também as distorções econômicas apareceram. Contudo, o que aqui se chama a atenção é que o resultado relativo e absoluto dessa construção é amplamente favorável à redução da desigualdade e ao crescimento econômico. O cenário atual que revive a "liberdade dos mercados", trouxe de volta o populismo político e o agrupamento social de parcelas excluídas que desprezam os processos eleitorais, as instituições políticas e os próprios políticos. Lembra os anos 1920s e 1930s, de triste memória. A ideologia falsamente libertária que hoje prevalece se soma ao novo paradigma tecnológico, recheado de conexões cybers que, em tese permitiria à maioria, inclusão social mais plena e capacitação mais eficiente (sem trocadilhos) para suportar as transformações econômicas e corporativas. A título de ilustração, a Internet das Coisas (IdC) que reúne bilhões de dados discretos ao sensor permite a tomada de decisões e o controle direto dos atores do mundo real, de geladeiras a prédios. Aqueles que dominarem os processos de coleta e análise de dados serão os detentores do poder da IdC. Os perdedores serão aqueles sem esse acesso e que não entendem a nova era. Não é difícil perceber se a maioria estará apta a se "apropriar" desse conhecimento. A desigualdade pode até aumentar. As derivadas políticas desse novo cenário não combinam com a presunção de que os "mercados" resolverão dilemas éticos, sociais e políticos. O populismo político, a aversão às instituições políticas e a destruição da autoridade do Estado na consecução da "regulação" econômica são incompatíveis com o processo disruptivo que se apresenta. Se de um lado, o padrão coletivo das sociedades pode se elevar, de outro, é preciso evitar a acumulação de conhecimento e riqueza nas mãos de poucos, bem como, a precariedade das relações pessoais, inclusa as de trabalho. A liberalização dos mercados, fenômeno crescente desde os anos 80, se levado à cabo, produzirá uma hecatombe política na nova era tecnológica. Sem regulação que preserve valores, o ser humano e a isonomia de seus direitos, teremos o caos político e social. É o populismo do livre mercado o maior risco do momento.
quinta-feira, 24 de outubro de 2019

Olhai os espinhos do mundo

Aqui não tenho a pretensão de fazer projeções e nem previsões sobre o cenário Quem der uma passada de olhos no mundo constatará preocupantes e oscilantes indicadores econômicos e a firme tendência de inquietação política e social. Vê-se que o acentuado declínio da taxa de investimento nas economias centrais, ao longo das duas últimas décadas, se soma a incrível onda de avanços tecnológicos. Nesse contexto, há evidente incerteza sobre os efeitos desse complexo e aparentemente contraditório processo em relação à produtividade das economias. O acúmulo de "conhecimento tecnológico e produtivo" não tem se universalizado de forma homogênea. Ao contrário, tem provocado severas exclusões, não propriamente pelo desconhecimento do que ocorre - há excesso de usuários -, mas pela lacuna não preenchida do domínio dos novos processos e conteúdos tecnológicos. Com efeito: os padrões de vida entre os países têm se diferenciado acentuadamente e, internamente, as sociedades têm constatado o aumento da desigualdade social que não é apenas de renda, mas de "funcionalidade" vez que a força de trabalho tem se tornado inepta perante os novos padrões de produção e consumo. Para se ter uma noção dos efeitos entre áreas geoeconômicas, a Europa e a América do Norte tem 47,5% do PIB afetados positivamente pelas pesquisas e desenvolvimentos tecnológicos ("P&D"), a Ásia do Leste e o Pacífico, 38,6%, enquanto a África subsaariana apresenta um sofrível 0,8% e a América Latina e Caribe, 3,6%. Os dados são da UNESCO. Dou um exemplo do efeito interno aos países da desigualdade tecnológica: não é anedótico e ocasional o fato de que as empresas empregam pessoas cada vez mais velhas para não perder o "conhecimento produtivo". As empresas têm apostado em quem já está com as raízes mudancistas da tecnologia. Melhor ter de saída um patamar mais elevado para superá-lo logo à frente. Imensa multidão de desempregados, sobretudo os mais jovens, perderam a funcionalidade concreta de participar no processo de desenvolvimento econômico. Esse cenário, estreitamente posto, recomendaria que fosse aumentada a colaboração e a integração das políticas econômicas, culturais e de desenvolvimento entre os países. Do contrário, num mundo de 7,7 bilhões de pessoas, essa desigualdade provocará, de forma crescente, instabilidades internas nos países e entre estes, com efeitos altamente perturbadores. Pesquisa de 2009 do PNUD, órgão das Nações Unidas para o desenvolvimento, indicou que 3% dos habitantes do mundo moravam fora dos países em que nasceram. Estima-se que dez anos depois esse número seja de 5%, podendo dobrar nos próximos dez anos. Em breve, mais de 20% da população dos EUA será de estrangeiros. Efeito da desigualdade entre as nações. A observação não-ideológica da realidade indica, lamentavelmente, que o andamento das iniciativas da política internacional está marcado por aquilo que Hans Morgenthau, o grande teórico das relações internacionais, classificou como "proposições abstratas para preceitos de ação". Ou seja, há larga linguagem vulgar sobre "globalismo", "nacionalismo" e "manutenção da cultura" que divide e desintegra. A política internacional é o reino do caos desorganizado, com riscos por todos os lados. Dos curdos abandonados em meio à guerra da Síria ao Brexit, o repertório é completo e os atores são cômicos. Basta observar como são "tratados" os Tratados. Internamente, os países registram verdadeiros apagões políticos que, se ainda não são altamente destrutivos, tornaram as instituições políticas mitigadas para exercer ações vigorosas para o enfrentamento dos desafios. No momento em que escrevo esse artigo, registram-se instabilidades inquietantes com diferentes escalas sísmicas: Hong Kong contesta o ordenamento jurídico chinês, o Canadá acaba de passar por um processo eleitoral que engrandeceu o populismo, os EUA litigam um processo de impeachment presidencial, a União Europeia não consegue lidar com o Brexit, o Oriente Médio está generalizadamente incrementando as tensões particulares entre os países, o governo do México está distratando arbitrariamente com o setor privado, o Equador está com a capital "transferida" por conta dos distúrbios políticos, o Chile, porto seguro dos liberais latinos, está sob estado de sítio, a Argentina vive eleições plebiscitárias, a Bolívia tem eleições populares contestadas e assim por diante. Já na economia já não há mais incertezas sobre o cenário. Em verdade o cenário é a própria incerteza. Leitura acurada e desinibida dos relatórios das instituições multilaterais (e.g. FMI, Banco Mundial, BIS), bem como, dos bancos centrais das principais economias nos informam que o risco de deflação é bem maior que o de inflação e que a atividade econômica está sob risco de cair na recessão. A reação é a baixa ordenada dos juros reais (negativos) o que se sabe não produzirá efeitos nem sobre a demanda de consumo e, muito menos sobre o investimento. A hora recomenda estímulos tipicamente fiscais, o aumento dos gastos públicos. Ocorre que isso depende de parlamentos que pecam pela desorganização política vez que estão saturados pelo populismo, pelo regionalismo, pelo debate excludente sobre temas de costumes, pela irrelevância orgânica dos partidos políticos e pela ausência de diálogo com os movimentos sociais. Há, a despeito, desse quadro de sistemática disfuncionalidade política quem acredita que fatos isolados serão capazes de desviar dos obstáculos estruturais. Cito um exemplo: o acordo preliminar da China e dos EUA em relação à denominada "guerra comercial" é incompatível com o fato de que o país asiático é "na margem" mais competitivo que os norte-americanos. Logo, ou os EUA "freiam" os chineses via políticas alfandegárias e tributárias ativas ou sofrerão os efeitos de sua menor capacidade de competir abertamente. Isso tudo considerado o fato de que as multinacionais americanas hoje investem mais na China que nos EUA. A "guerra comercial", concretamente, está apenas começando. Enquanto isso, os mercados financeiros e de capital desfilam nas telas de computador, operando sob modelos racionalizados (algoritmos) e com a participação cada vez mais ativa de pessoas físicas em busca do caminho do ouro: a volatilidade não é mais um indicador - é a característica permanente que reflete riscos que viciam os fundamentos econômicos e das empresas. O valor das empresas e ativos é uma espécie de fetiche que obscurece as possibilidades efetivas de crescimento orgânico das corporações. Obviamente, há oportunidades para todos: a racionalidade de cada agente econômico pode levar ao sucesso individual. Ocorre que também pode integrar a irracionalidade coletiva que leva ao desastre. Se o leitor teve a paciência de me ler até aqui, pode estar pensando que o relato acima é a representação do pessimismo exagerado. Registro que aqui não tenho a pretensão de fazer projeções e nem previsões sobre o cenário. Parece-me impossível construir modelos preditivos diante de variáveis políticas, sociais e econômicas que não podem ser combinadas para reduzir riscos e aumentar retornos e/ou melhorar as expectativas. Afora o fato de que, em princípio, a realidade recomendaria muita cautela e conservadorismo, da ação individual à política. Ocorre que essa é a hora mais sublime da civilização humana para que os detentores do poder possam ser mais ousados e construtivos.
quarta-feira, 4 de setembro de 2019

Hora de estimular a economia

A discussão fiscalista do governo está centrada apenas no orçamento equilibrado Os repetidos e obscuros conflitos comerciais, especialmente com a China, provocados pelos presidente dos EUA Donald Trump, a redução continuada da taxa de investimento nas principais economias centrais, o baixo desempenho da criação de empregos ao redor do mundo, a adoção de políticas populistas em importantes economias como o Reino Unido e os EUA, bem como, a pressão incomum e sem resultados sobre os bancos centrais, são, individualmente e no seu conjunto, fatos suficientes para colocar nuvens carregadas sobre a economia mundial. O crescimento ainda constatado não poderá mais ser sustentado dentro dos padrões atuais da política econômica adotada pelos principais policy makers. O problema é que para mudar o status quo da gestão da finança e da política monetária ainda não se encontrou apoio político equivalente. Ao contrário: o establishment político ora adota um padrão meramente ideológico cujas consequências são indecifráveis, ora combate o debate mudancista sob o argumento de que "forças retrógradas" estão a atuar no cenário. Essa dinâmica pode ser facilmente vislumbrada no debate sobre a política fiscal. Vejamos. Se está claro que a demanda enfraquece e a taxa de juros já está baixa demais para ser ferramenta útil ao estímulo do consumo e do investimento, a recomendação mais clássica que se pode fazer nesse momento é a de se considerar seriamente a utilização da política fiscal para se evitar um quadro de risco considerável para a economia mundial - provavelmente equivalente ao cenário de 2008. Ocorre que decisões sobre política fiscal dependem em larga medida de debates parlamentares e de aprovações internas nas instâncias dos próprios proponentes das políticas. Nesse caminho, além da usual morosidade processual, há tortuosa mitigação dos objetivos iniciais traçados, fruto dos interesses instalados nos caminhos pelos quais tramitam as medidas. Ao final, é possível que a efetividade das políticas seja menor ou, até mesmo, inócua. Afora a questão do processo decisório há a incorporação ideológica no debate econômico de questões pouco relacionadas com a realidade visível: liberais se esgoelam para argumentar sobre os riscos de que o grande leviatã fiscal possa levar a todos para serem devorados pelo Poseidon do Estado. Do lado da esquerda renasce o discurso menos preocupado com o emprego e mais preocupado com o domínio da máquina estatal, da manutenção de privilégios organizados. Enquanto isso, a economia despenca. Dados do Federal Reserve, o banco central dos EUA, mostram que desde 2011 a diferença acumulada entre as estimativas de mercado para o PIB do país e o dado efetivamente constatado é de quase dez pontos percentuais. Ou seja, mesmo nesse período de bonança que vivemos recentemente o PIB cresceu certa de 20% quando deveria ter crescido (segundo os investidores) ao redor de 30%. O "mercado", como se vê, não é tão sábio quando o assunto é previsão. Ademais, os investidores são os maiores formadores de opinião do mundo moderno e pouco falam de fenômenos que realmente importam para a vida dos cidadãos comuns. Um exemplo disso, é o fato de que em meio a euforia dos mercados o que se viu desde nos últimos dez anos (2009-2019) foi um aumento continuado e relevante da poupança sem que isso se tornasse real investimento em capital. Outro aspecto muito relevante é o fato de que as empresas, sobretudo as mais monopolistas estão produzindo mais lucros com menos investimentos, até mesmo por que estão pressionadas para pagar dividendos e bônus para os seus diretores: investir virou um pecado capital, sem trocadilhos. Mesmo diante de estímulos fiscais - e.g. menos tributação corporativa nos EUA- o que se verificou é que esses recursos não foram investidos na produção, mas para pagar mais dividendos. Enquanto isso os trabalhadores americanos, não isentados de mais tributos, não aumentaram seus gastos. Resultado: nem aumentou o investimento e nem o consumo. Obviamente, esses são apenas alguns exemplos dos dilemas modernos da economia que quando confrontados com argumentos tipicamente ideológicos estão carregando o debate para um impasse e a economia para um cenário de mais e mais riscos. Aqui no Brasil, esse debate seria ainda mais gritante. Afinal, a taxa de emprego, de desalento e de subemprego são tão elásticas que já deveria haver um "comitê de emergência nacional" para cuidar dessa situação. É o que fariam os americanos, para citar um exemplo que tanto agrada aos círculos informados de nosso país. No entanto, parecemos completamente rendidos a certas expectativas duvidosas. Acreditamos piamente que a reforma da previdência será capaz de alavancar o crescimento na magnitude suficiente para nos tirar do atraso. Com o devido respeito à reforma, isso é um pouco mais que uma miragem no deserto de ideias que povoa o país. De outro lado, a discussão fiscalista do governo está centrada apenas no orçamento equilibrado. Ou seja, se este "equilíbrio" for construído sobre o lamaçal da economia a coisa parece boa para o governo. Pergunto: e o crescimento? Virá de onde? De nossas exportações não-competitivas? De investimentos externos que não são feitos nem nos países centrais? Da privatização de ativos que já existem? Os fatores de produção do nosso país estão desocupados, a taxa de juros ainda é alta, não há crédito para alavancar o crescimento, a produtividade é baixa e, mesmo com tudo isso, há uma lógica construída que sugere que iremos crescer de forma sustentada? Bom, se for para ser otimista.... Ao que parece, precisamos desinterditar o debate e pelo menos testar as hipóteses keynesianas de aumentar os gastos em investimentos. As obras paradas de infraestrutura das quais tanto se fala que serão retomadas são apenas o começo da necessária retomada da economia brasileira. As famílias desesperadas agradecem.
quarta-feira, 14 de agosto de 2019

Dualismo, reformar, projetar

O Brasil está a correr riscos que talvez jamais tenha incorrido Em pleno low season no Hemisfério Norte o cenário está mais quente que a temperatura acima do usual nesse verão recheado de riscos e fatos. A invasão do aeroporto de Hong Kong pela população daquela ilha, amante da liberdade, é sinal vital do tamanho das contradições que vigem na crosta terrestre. O Império Chinês, tal qual qualquer outro, não é afeito às contradições. De outro lado, a guerra comercial entre a América liderada por um populista em busca de aventura eleitoral e uma China disposta a arregaçar as mangas cambiais, atrai riscos de sobra para os oscilantes mercados financeiros e de capital ao redor do mundo. A política monetária, essa sim, está cada vez mais se tornando apenas um caderno de anotações das variáveis: todos avaliam os riscos nos informes dos bancos centrais, mas nem todos acreditam que as autoridades monetárias sejam capazes ou estejam autorizadas a retomar as ações necessárias para injetar ânimo nas economias centrais. A interdependência capitalista é um fato, mas o jogo político não-cooperativo é outro. Esses tempos estranhos estão a motivar enorme especulação nas bolsas de valores e nos mercados. Nas duas últimas semanas, a denominada "volatilidade implícita" dos segmentos do mercado norte-americano (SP500 e Nasdaq) tem variado bastante, sendo que na semana passada dobrou em relação a semana anterior. Isso quer dizer que o risco aumentou. Vale dizer que nessa época de férias no Norte a liquidez é menor e o noticiário costuma ser ameno ao contrário do clima que é bem afeito às temperaturas tropicais. Ocorre que a verborragia de Trump em relação à guerra comercial com as evidências de que as perspectivas de ativação da economia estão a piorar os investidores estão acessando seus celulares para operar nos mercados a partir das praias e casas de campo. Nem o ócio é mais respeitado. Para o Brasil esse cenário externo chega em má hora. O país não consegue sair do atoleiro no qual está aturdido desde meados de 2013. O baixo crescimento combinado com a ausência de um processo político construtivo e voltado para o desenvolvimento econômico está arranhando os traços de "país emergente". De fato, vê-se uma sociedade incapaz de organizar suas forças internas de forma relativamente produtiva e justa numa visão capitalista. Afora isso, a ausência de perspectiva para a superação, de um lado, da extrema pobreza, ignorância e falta de integração às cadeias tecnológicas da população, e, de outro, da necessidade, de uma ampla integração com as cadeias de produção mundiais, faz com que o desenvolvimento do país esteja cada vez mais distante de seus pares emergentes. O Brasil deixou de ser prioridade de investimento em função da recessão instalada, sem perspectiva de ser superada no curto e médio prazo e em função desse gap funcional-estrutural. É o dualismo do qual precisamos sair. O Brasil não está isolado no içamento eleitoral do populismo, mas temos de reconhecer que em países onde o eleitorado é iletrado e funcionalmente sem educação, a liderança populista que propaga a confusão informacional e propaga a mentira organizada, a chance de se estabelecer politicamente é bem maior. Pior ainda quando a elite também está a defender interesses estreitos com feições mais interesseiras e oligárquicas, como no caso da Rússia: a chance de prosperar o populismo é muito maior. Não há dados concretos e objetivos para que possamos examinar o que está a ocorrer no âmbito microeconômico, mas é possível que o dualismo brasileiro (profunda desigualdade social e falta de integração nas cadeias produtivas mundiais) esteja mudando definitivamente a racionalidade empresarial. A operação das empresas talvez ocorra sob o signo do baixíssimo investimento e da alocação cada vez mais racionalizada da mão-de-obra, com a contenção dos salários reais. A desmontagem das estruturas sindicais, por mais obsoletas que fossem (e, de fato, eram!), ainda se constituíam em barreiras para esse processo estrutural. Esse quadro que combina uma (i) onda de aumento de riscos conjunturais sensíveis, (ii) com incremento da volatilidade do mercado no âmbito internacional nesse verão no Hemisfério Norte, no exato momento em que (iii) os bancos centrais acendem suas luzes amarelas, com alertas de que a atividade econômica poderá sofrer significativo slowdown, (iv) com a presença inquietante de lideranças populistas irresponsáveis nas rédeas de economias importantes, o Brasil está a correr riscos que talvez jamais tenha incorrido. As variáveis de risco estruturais de nosso país estão presentes e vigorosamente mostram-nos que tanto políticas populistas quanto aquelas que aguçam às lutas de classes não produzirão resultados para a superação desse difícil momento do país. Estamos precisando pensar em saídas muito além do pobre debate momentâneo. Reformar é muito importante. Ter um projeto de país é mais importante ainda.
terça-feira, 6 de agosto de 2019

EUA e China: sinal de alerta

O Brasil é, obviamente, caudatário desse processo. O futuro é naturalmente opaco, mas o populismo político, com fortes feições reacionárias e o atolamento do crescimento econômico estão deixando o horizonte muito cerrado. O processo de globalização e liberalização de mercados produziu ao redor do globo um enorme incremento da riqueza em detrimento do aumento do capital. O investimento capenga enquanto os gastos em bens de alto valor, inclusos os imóveis e bens de luxo, sobem. Os sinais são de aumento gritante das diferenças entre as classes sociais. No capitalismo norte-americano, jamais os mais ricos ganharam tanto em relação aos mais pobres. Essa constatação, em menor medida, vale também para os outros países centrais do capitalismo. O impacto desse processo é o aumento gradual, constante e relevante das tensões políticas. Líderes de estirpe populista estão a se apropriar do discurso estridente do anti-globalismo, nacionalismo, racismo e do uso dos valores ditos tradicionais para vociferarem as ansiedades das multidões abandonadas pelo processo de desenvolvimento capitalista. Ademais, as instituições burguesas, notadamente a democracia liberal está sob o jugo de lideranças que estão a testá-las no intento de concentrar mais poder na forma mais personalista, quiçá ditatorial ou autoritária. A ordem jurídica internacional é sempre mais caótica que a interna de cada país como bem doutrinaram George Frost Kennan e Raymond Aron. No contexto da globalização vigente e do vasto arsenal militar atômico usado como "meio diplomático", o jogo tende a ser cada vez mais não-cooperativo diante do populismo interno dos países. Donald Trump é a manifestação mais presente desse processo. Faz um jogo interno de médio prazo, pensando, de um lado, nas eleições do ano vindouro e, de outro, em variáveis estratégicas, tais como, o atraso tecnológico dos EUA frente à China (e.g. na área da tecnologia 5G) e na captura comercial das empresas norte-americanas pelo 'Gigante do Oriente'. Enquanto isso, seu eleitorado no Meio-Oeste do país fica à espera de algum resultado concreto que até agora não veio. Com efeito: o discurso político tem de radicalizar uma vez mais para manter sob controle o eleitorado do populista-republicano. Do lado democrata, o jogo se torna confuso, pois a defesa de suas plataformas tradicionais, mais voltadas para o mercado interno, conflita com a pauta populista de Trump. Forma-se, então uma enorme confusão, cujo desfecho eleitoral é completamente incerto. O que não é incerto é que o jogo de Trump no mercado internacional é de risco enorme. A subida das tarifas alfandegárias para combater as importações chinesas é de duvidoso resultado do ponto de vista da atividade econômica e coloca o mundo inteiro em frenética expectativa que contamina o consumo e o investimento. Afora a reação chinesa de retaliar os EUA por meio de equivalente aumento de tarifas contra produtos norte-americanos, agora vê-se o governo de Pequim realizando manobras cambiais, desvalorizando sua moeda, o renminbi. Isso significa que a "guerra comercial" saiu de sua versão convencional de usos de tanques e infantaria (tarifas e outras restrições) para armamentos não-convencionais, quiçá a bomba atômica (desvalorizações cambiais contínuas). Os chineses, ao desvalorizar a sua moeda, facilitarão as suas exportações para os EUA e para os países vinculados ao dólar (como o Brasil), mas também dificultarão os investimentos realizados em dólar que se tornarão mais custosos em termos comparativos. Importante lembrar que o sistema financeiro chinês é extremamente regulamentado pelo governo comunista e sob seu controle agirá no interesse da política econômica do país. Esse não pode ser o caso do sistema financeiro dos EUA que não necessariamente acompanhará Trump em sua aventura populista-econômica. Obviamente, que há riscos para o lado chinês, tais como, o aumento dos preços das commodities que pode afetar a inflação doméstica e o próprio nível de consumo interno do país. Todavia, a aposta que Pequim faz no âmbito da política cambial parece trazer mais riscos para os EUA, pois coloca a maior economia mundial frente a dilemas perante os seus principais aliados, os quais hoje estão rebaixados à categoria de segunda classe. A ordem mundial também está sob risco. O Brasil é obviamente caudatário desse processo. Além de ser menos relevante no comércio mundial, está submetido a uma longa estagnação, desde meados de 2014. Por aqui a retomada do investimento é bastante incerta e o consumo está maculado pela baixa renda e pelo imoral desemprego. A sociedade quer acreditar que a reforma da previdência social é um "novo começo", mas isso parece ser algo mais imagético do que propriamente real. Claro que construir uma previdência mais isonômica e justa é essencial, mas de ilusões não se pode viver. É hora de enfrentar desafios reais. Somos um país de analfabetos funcionais, desagregado por anos de atraso tecnológico e por aventuras econômicas. Falta-nos capacidade de organização política e agora o discurso volta a ser meramente ideológico. Estamos diante de devaneios de Bolsonaro enquanto lá fora a coisa pode acabar em um tremendo pesadelo provocado por Trump.
terça-feira, 23 de julho de 2019

O paradoxo do ortodoxo

Se houver sucesso econômico fruto de políticas liberalizantes poderemos cair em retrocesso essencial Retorno a posição de observador que milita em favor do esclarecimento, do debate e, quando possível, da atuação na esfera de minhas especialidades jurídicas e da ciência econômica. Isso, quando penso que convivemos com tempos estranhos para a civilização humana. O grande jurista Celso Lafer, ao citar a pensadora Hanna Arendt, relembrou que "o conhecimento está ao nosso alcance, mas o reconhecimento não". A conjuntura desmemoriada do mundo atual despreza o conhecimento acumulado da história social, política e econômica ao tempo em que certos personagens constroem seus itinerários tomando por fundamento a presunção de que reina vasta ignorância sobre temas tão caros. Abandona-se o conhecimento. Paradoxalmente, tem-se o "reconhecimento" dos "pregadores das antinomias, sem que se chegue às sínteses", no uso da citação de Miguel Reale. O Brasil está necessitado de profundas transformações econômicas, políticas e sociais. Para tanto, parece razoável tomar a suposição de que isso apenas será conseguido por meio da criação, desenvolvimento e aumento contínuo da eficácia das instituições do Estado moderno. Há que se ter em conta que esse almejado progresso se insere no contexto de um mundo globalizado, integrado em muitas vertentes e desintegrado em outras tantas, notadamente na distância preocupante entre sociedades arcaicas e pobres e outras extremamente desenvolvidas. O gap é inquietante. A surpresa que o gênio humano nos produz por hora é agonizante: estamos a perder a lucidez em muitos temas e a dimensão desse processo alcançou lideranças eleitas pelo voto, aqui e alhures. A paz, o desenvolvimento e a cooperação civilizatória estão em risco. É preciso reacender as luzes para que não se perca o caminho que é democrático não apenas porque o voto assim concede. O debate no Brasil está concentrado em poucos temas que são elevados pelo poder incumbente como determinantes da inauguração de uma nova era. A reforma da previdência social, assim, assumiu um caráter paradigmático pelo qual relançará as bases de maior crescimento econômico. É certo que a reforma previdenciária se faz como uma necessidade que vai além da necessária restruturação de natureza fiscal. Há que se retroceder nesse tema e verificar que não se pode ter um tratamento tão ausente de isonomia entre o regime previdenciário dos "comuns" e aquele devotado aos privilegiados do setor público. Portanto, a reforma essencialmente cria maior isonomia e, a longo prazo, resulta em ganhos que economizam recursos do Erário, de todos nós. Resta saber, se a partir desse preceito econômico, maior higidez fiscal, resultarão políticas de desenvolvimento que viabilizarão Justiça mais ampla, não apenas para as oportunidades do capital, mas também para os trabalhadores e os mais necessitados, vasta multidão no Brasil. Com efeito: a reforma de previdência não é nem começo, nem fim. É apenas um meio cujos fins estão necessitados de definição política. Há aqueles que vem no liberalismo desta hora a oportunidade de retomada do crescimento e do desenvolvimento. Aqui vê-se a liberdade para o lado da oferta, para o detentor do capital, para o empreendedorismo privado e privatista. De fato, vê-se na economia brasileira excessos que retém o capital acanhado e submetido a regras extravagantes e que retira a dinâmica dos tomadores de riscos empresariais. Os excessos tributários e burocráticos são duas evidências do fraco desenvolvimento da oferta (investimento). Todavia, há que se reconhecer que, como um exemplo, o crédito caro e escasso também demonstra que a fragilidade do arranque da oferta está muito além do Estado incompetente. O compromisso dos capitalistas brasileiros com o próprio capitalismo não é tão másculo quanto o discurso forte das autoridades econômicas e dos defensores ideológicos das reformas em curso. Nesse caminho, a privatização, a desburocratização, a liberação e integração econômica não podem ser construídos sem que haja compromissos teratológicos, finalísticos e com perspectivas. Senão, os meios ficam órfãos de fins. Se há uma constatação que pode ser facilmente verificada é que o processo de desenvolvimento capitalista foi construído pela confrontação de interesses cujo desfecho sempre recaiu sobre o problema da redistribuição da riqueza criada. A melhora da ambiência dos negócios tem de resultar em compromisso consistente com a superação da miséria, da atração de novos partícipes para o consumo e para as atividades criadoras de riqueza, para a proteção de direitos individuais, sociais e coletivos. Esse processo não pode ser dirimido por meio de instituições frágeis e desprovidas de condições de distribuir riqueza, Justiça e proteção social e ambiental. A história nos ensinou, já no século XX - para citar o que nos é mais próximo - que a ausência de freios e contrapesos institucionais nos leva ao precipício. No século XX verificamos a derrocada de cinco impérios, dragados pela sua própria incapacidade de reformar, de assumir compromissos transformadores do ponto de vista político, social e econômico. O custo desse processo foram duas guerras mundiais e uma longa "guerra fria" - a feição da guerra tem mudado cada vez mais. A criação de instituições, a consecução de tratados, a assunção de responsabilidades internas e externas aos países foram, isso sim!, se constituíram em freios às novas barbáries possíveis e indesejadas. Não se pode, à luz da complexidade dos processos, adiar as soluções ou simplificá-las por meio da pregação de uma ideologia leviana, fútil, irresponsável, inconsequente e que parece produzir soluções fáceis e erradas para os problemas complexos da humanidade. No Brasil de hoje, vê-se não mais a crise institucional que se sedimentou sob a irresponsabilidade e corrupção política e a desigualdade econômica e social. Estamos diante de completa "confusão institucional", com perdas significativas para o conceito e a aplicação da Justiça em seu amplo sentido. Também corre risco a liberdade na medida em que se cria distância abismal entre a prática política e as instituições democráticas. A estrutura formal dessas instituições está perdendo "sentido de valor". O que se preenche do ponto de vista institucional e normativo não atinge mais os seus objetivos democráticos, de Justiça, de proteção aos direitos individuais, coletivos e internacionais. Vulgariza-se a linguagem para produzir os efeitos populistas que inundam a sociedade de divisões, agressões e rupturas. Se houver sucesso econômico fruto de políticas liberalizantes poderemos cair em retrocesso essencial na medida em que estamos sob um forte autoritarismo por debaixo das instituições. A ortodoxia econômica tem um claro paradoxo: a ausência de fins políticos verdadeiramente civilizatórios, isonômicos e que nos levam ao progresso.  
quinta-feira, 7 de março de 2019

Reforma necessária, mas insuficiente

A economia brasileira necessita de muitas e profundas reformas para se desenvolver A reforma da previdência social, lançada pelo governo há duas semanas, parece ser uma resposta razoável às necessidades do país no que tange ao tema. A economia total em 10 anos deve gravitar ao redor de R$ 1,1 trilhão e virá pelo aumento a idade mínima para aposentadoria e pela redução do benefício, em alguns casos. Em 2018, a Previdência e Assistência social apresentaram um dispêndio da ordem de R$ 700 bilhões, cerca de seis vezes o que se gastou com saúde e dez vezes o que se gastou com educação. Assim não dá. As resistências às manobras legislativas que pretendem reduzir a gritante desigualdade nos gastos da previdência social vêm de dois segmentos muito simbólicos: de um lado a esquerda anacrônica que não reconhece a situação e defende o direito dos mais ricos. Marx teria calafrios, posso imaginar! De outro, os corporativistas, estes seres bem instalados no Congresso Nacional, cuja pregação sugere que todos serão injustiçados se houver reforma. De fato, os corporativistas desprezam os mais pobres e cuidam mesmo é de seu contracheque mensal. O discurso corporativista funciona apenas para segmentos das Casas Legislativas vez que a evidência demonstra que o funcionalismo, em geral, ganha cinco vezes mais que os "comuns" (maior parte do eleitorado), sendo que no caso de militares, procuradores e juízes essa diferença beira à imoralidade absoluta. Dá para ser otimista em relação à votação do tema ser proveitosa para a finança pública. A razão mais forte para isso é que, sem a reforma, Estados e municípios se tornarão inviáveis. Logo, os distintos representantes do povo e dos Estados terão de arbitrar entre (i) uma reforma previdenciária que torne mais isonômicos os ganhos de poucos milhões de funcionários públicos e (ii) uma crise federalista mais à frente. Sinceramente, acredito que suas excelências acabarão por preservar os cargos de prefeito e governador que sempre estão a cobiçar. Portanto, a previdência deve ser reformada porque finalmente aportamos no "espírito do tempo" no qual o Mefistófeles de plantão é o crescente déficit que engalfinha o Estado e seus asseclas. É claro que que as corporações, aqui e ali, tirarão nacos da reforma a seu favor. Contudo, o que estou a dizer é que, ao final do processo legislativo, o ganho fiscal será positivo e bom para o Brasil. Sem equívocos, pode-se afirmar que a reforma da previdência é condição prévia de qualquer reforma fiscal. O déficit previdenciário é tão avassalador que não se pode falar de reforma fiscal sem se falar de previdência. O que parece realmente discutível é a elaboração teórica de que a reforma da previdência trará inexoravelmente crescimento econômico. Isso pode acontecer ou não. É verdade que os fatores de produção (capacidade instalada, empregos, etc.) estão bem desocupados que podemos aumentar rapidamente a produção sem que isso implique no curto prazo em aumento das expectativas de inflação. Por esse raciocínio a boa-nova da reforma da previdência soará como fator decisivo para o crescimento do consumo e do investimento. Será? A vontade de consumir e investir nasce do denominado "espírito animal" (conceito aristotélico tomado por Keynes na sua teoria econômica) daqueles que tomam no presente o risco de enfrentar o futuro opaco para realizar maior satisfação de consumo e lucros por investir. Ou seja, o processo racional de investir e consumir tem fortes componentes de expectativas. De forma breve, esse raciocínio parece englobar muito mais que o resultado da votação da reforma da previdência social. Há muito fatores que indicam que a economia brasileira perdeu tração para se desenvolver. Do papel letárgico do Estado para forjar o desenvolvimento por meio de políticas públicas até a queda sistemática da produtividade dos fatores de produção, inclusa a mão-de-obra influenciada pelo fator demográfico, há evidências de que a economia brasileira tende à estagnação. Somente com enorme esforço dos agentes econômicos é que será quebrada essa tendência estrutural. Assim sendo, muito embora a promessa liberal seja a de libertar o "espírito animal" dos empreendedores por meio de reformas pró-mercado (sem dúvida um aspecto positivo), parece relevante que se pense um modelo novo para o papel que o Estado exercerá nesse processo. Questões básicas, tais como a disponibilização ou facilitação do crédito, a melhora da infraestrutura, o treinamento da mão-de-obra, ainda estão pendentes de serem repensadas. Outros temas novos como a "revolução industrial 4G", políticas de inovação tecnológica, a integração do país nas cadeias produtivas mundiais, necessitam de respostas eficientes e rápidas para que possamos surfar nas ondas das principais economias mundiais. O que temos verificado nos fatos disponíveis, no comportamento dos agentes públicos e privados, são movimentos muito desencontrados e tímidos. A economia brasileira necessita de muitas e profundas reformas para que possa voltar ao leito do desenvolvimento. A reforma da previdência social é fato essencial do processo, mas não é a revolução necessária para que o Brasil possa acompanhar a revolução que ocorre lá fora.
quarta-feira, 23 de janeiro de 2019

Davos, o Brasil e o mundo 4G

Há razões substantivas para se ter esperança no desenvolvimento tecnológico O inverno frio dos Alpes Suíços é tempo quente de discussão no Fórum Econômico Mundial (FEM). Essa organização não-governamental tem prestado serviços relevantes para a discussão de temas candentes de natureza econômica, mas também social e política, desde 1971 - de fato, desde 1987 tem o perfil atual. Nesse artigo reporto-me a publicação do FEM, exatamente o livro Shaping The Fourth Industrial Revolution, de 2018, coordenado pelo fundador e presidente executivo do FEM Klaus Schwab. Trata-se de obra bastante abrangente, holística desde os seus fundamentos até as suas conclusões e reflexões mais profundas. Representa, a partir de sua leitura, uma oportunidade para se pensar nas variáveis econômicas, políticas, sociais e jurídicas sobre a denominada revolução industrial de quarta geração, ou a Revolução 4G. Para início de conversa o leitor interessado nas coisas de nosso país sente-se arrepiado quando confrontado com a realidade vigente e a vindoura. No Brasil, a discussão, do meio acadêmico ao político, passando pelas elites econômicas, sobre o nosso futuro é de uma primariedade impressionante. Por aqui ainda estamos discutindo se regimes previdenciários devem ser universais (um para toda a sociedade), privilégios de elites burocráticas, crimes inacreditáveis e controle de finanças públicas. Realmente uma pobreza considerável de pensamento. Ademais, agora estamos embebidos pela crença de que a recuperação do pensamento liberal do século XIX é a salvação da lavoura - sem trocadilhos. Temos também os sussurros inacreditáveis sobre o globalismo, o tratamento dos direitos de minorias e a influência de religiosidade mais interessada nas coisas comezinhas da política e da atividade social. As práticas sectárias da esquerda mudaram de sinal e, agora, estão na direita barulhenta e com feições castrenses. Ainda há a violência verbal e de suas políticas. Já da esquerda temos a bobagem generalizada, a negação de preceitos econômicos básicos e a ausência de aggiornamento econômico, social e político de sua prática política. Além da falta de mea culpa pela corrupção perpetrada em seus governos. A figura de Gleise Hoffmann, presidente do PT na posse de Maduro na Venezuela é de doer...Estamos mal. Quem espera em Shaping The Fourth Industrial Revolution um livro ideológico acaba por verificar a reflexão realmente profunda e ilustrada sobre o futuro em suas dimensões mais enraizadas. Não há maniqueísmo. Ao tempo em que conclui o livro que há razões substantivas para se ter esperança no desenvolvimento tecnológico e industrial, há sérios questionamentos sobre a capacidade de distribuição dos benefícios desse progresso para a sociedade. Mesmo porque, está evidente que o crescimento até agora tende a formação de perigosos oligopólios que exercem enorme controle social. Os modelos jurídicos atuais não são ainda capazes de decifrar todos os efeitos factuais desse relevante processo. Exemplos: baseado em dados de 2017, o Google já controla 90% da participação global no mercado de negócios de publicidade de buscas, o Facebook 77% do tráfico social móvel e a Amazon tem quase 75% do mercado de e-books. Ao largo de forte percepção sobre a democratização do conhecimento e da informação vê-se a morte do modelo tradicional de emprego: 94% dos novos postos de trabalho criados no período de 2005 a 2015 nos EUA são de "formas alternativas de trabalho", sem proteção social. Por aqui, ainda estamos discutindo se juízes do trabalho são úteis no uso da nossa CLT dos anos 1940 e se eles podem continuar penhorando on-line bens de pessoas que algumas vezes nada tem com os litígios e julgando casos à luz de um mundo que caminha para esse tipo de transformação. Essa realidade também pode ser avaliada dentro da óptica de valores (axiologia) de enorme repercussão no mundo do direito. A conclusão de Klaus Schwab, paradoxal a meu ver, é que "todas as tecnologias são políticas", não no sentido de "governos", mas, pelo contrário, em função de sua repercussão social, cujo efeito institucional é grandioso. Com efeito: a identidade antropológica dos indivíduos e da sociedade, os valores e princípios, os poderes, as estruturas, etc. afetam e são afetados pelo desenvolvimento de tecnologias cada vez mais avançadas. Nesse sentido, o avanço da biotecnologia, da Internet das Coisas e da Inteligência Artificial (IA) trazem à tona dilemas éticos profundos e que precisaram de escrutínio social e jurídico intenso. As instituições políticas estão prontas para dirimir essas questões? O jogo todo requererá democrático processo, seja em termos de meios (como fazer), seja de fins (para onde ir), que não pode ser calcado em ideologias que pretendem a dominação da sociedade. Afinal de contas, sem plenitude das ações das partes interessadas não há como prosseguirmos no debate e na consecução de políticas em prol do avanço tecnológico. Educação renovada, nesse ponto, é fator vital para esse processo. Os tempos que estão vindo velozmente deveriam ser marcados pela valorização das pessoas, enquanto seres diferentes que, por sua vez, valorizam coisas diferentes. A prioridade, portanto, é transformar os valores nessa perspectiva e não pela opressão ou pela criação de obstáculos a essa dinâmica democrática. A governança, de países, de empresas, das comunidades locais, etc. deve ser ágil e responsável em liderar. Naturalmente que os sistemas jurídicos e seu ordenamento deontológico e processual não deve ser dogmático. A estabilidade sistêmica decorrerá da capacidade de dirimir e organizar a sociedade com graus de flexibilidade aceitáveis, com códigos de ética mais evoluídos e modelados para a educação da sociedade e dos indivíduos. Mudam os fatos, muda o Direito. Aqui há um aspecto muito importante do ponto de vista econômico e muito bem delineado no livro: as necessidades de infraestrutura mudarão não somente em termos de funcionalidade (utilização), mas também em modelos cada vez mais compartilhados sob pena de inviabilização de toda a supraestrutura que se forma no contexto 4G. Os contratos, assim, precisam ser revisitados e o conceito de propriedade sofrerá mudança essencial (ontológica) e não apenas de forma. Finalmente, não se pode subestimar as externalidades de toda essa mudança. Nesse aspecto, o tema das mudanças climáticas ganha enorme relevância. A energia limpa, a sua distribuição organizada entre as instâncias sociais e econômicas, o papel da colaboração e da educação, o aquecimento global como risco estruturante e estrutural, a forma de legislar, fiscalizar, punir e, sobretudo, governar serão determinantes para a humanidade e não mais para países. Os pactos globais, nesse item, ganham relevância enorme. As empresas, portanto, não podem ser vistas apenas como organizações econômicas com objetivos limitados aos seus acionistas: revoluções de certas empresas podem significar fracasso em ambientes mais amplos e além da visão contábil-econômica. Esse é o ambiente que prepondera em Davos, o local da conferência do FEM. Por lá, o capitão Jair Messias Bolsonaro, nosso presidente, não deveria desfilar discursos sectários e promessas particulares e primárias demais. O mundo é do multilateralismo, da liderança da tecnologia, de novos e velhos valores repensados e discutidos democraticamente, em integração e não-exclusão de partes interessadas dentro de uma visão moderna do capitalismo, da integração de fronteiras e do tratamento sério, determinado, aguerrido na defesa do meio ambiente. O arcaísmo de lideranças como Trump não devem ser referências quando se pensa em revoluções industriais como a que estamos a passar e adentrar todos os dias. O custo é mais atraso. Chega.
quarta-feira, 9 de janeiro de 2019

Sincretismo governamental

É possível avançar no crescimento e regredir nos valores democráticos O dualismo vigente desde a ascensão meteórica e espetacular de Jair Messias Bolsonaro à presidência da República é perfeitamente possível a despeito da contra argumentação: o ultraliberalismo propalado por Guedes e seus blue caps se restringe à economia e o conservadorismo "tipo Trump" habita as fronteiras do terreno do moralismo brasileiro ideologizada por nada menos do que Olavo de Carvalho. O sincretismo é fenômeno bem brasileiro pelo qual há abandono da análise racional das premissas, doutrinas, conceitos e fatos pela absorção simplista de caminhos e crenças que se contradizem interna e externamente. Somente a aceitação dessa premissa permite que consideremos a seguinte hipótese: é possível regredir estruturalmente na construção de uma sociedade mais aberta, solidária e sem preconceitos e paradoxalmente progredir nas bordas da economia. Os efeitos dessa estranha conjunção serão muito relevantes nos próximos meses, quiçá, anos. Do ponto de vista da economia o governo acerta em cheio a variável a ser perseguida que é o ajuste fiscal. Vejo, até mesmo, sinais de que essa mudança seja feita não somente em termos quantitativos (digamos, a relação entre despesas e PIB), mas também qualitativos, ou seja, melhor gasto em melhores destinações. Nesse último item, há de se reconhecer que nem o funcionalismo público corporativista e nem os legisladores priorizam e operam adequadamente as demandas do país. Creio, que por força da essência dual do governo, a melhora qualitativa deve se limitar, se acontecer de fato, às áreas mais econômicas. Se o governo acertar na Previdência Social e contar com o apoio do Legislativo, haverá de fato melhora substantiva nas expectativas tipicamente fiscais. A oposição, ao ignorar a problemática do déficit previdenciário, comete erro grosseiro e estratégico. Deixará sem alternativa a análise da proposta governamental e ficará ainda mais escassa a confiabilidade na denominada esquerda brasileira. Depois de mergulhar na corrupção e no populismo de esquerda, PT e seus asseclas, demonstrarão a sua incapacidade de aggiornamento da agenda que propõe para o Brasil. Na área monetária o ajuste será muito mais de "alinhamento" da política aos ajustes monetários lá fora e à evolução dos ajustes de natureza fiscal por aqui. É possível (e recomendável) que a taxa básica de juros seja mantida como está a despeito da elevação dos juros primários nos EUA e outros países centrais. Afinal de contas, com melhores perspectivas fiscais não há razão para manter positiva a taxa de juros overnight. Esta precisa ter identidade matemática com a inflação. E nada mais. É assim no mundo inteiro. Se somarmos melhores perspectivas e fatos fiscais e monetários às reformas estruturais, aí o Brasil pode crescer 3%-4% nos próximos anos. Refiro-me particularmente ao processo de privatização e aqui cabe substantiva ressalva. Quando escrevo "privatização" refiro-me ao processo racional de seleção de ativos que devem ser passados para a iniciativa privada porque essa tem melhores condições de tocar em frente tais ativos e empresas. Isso não se comunica com a análise meramente ideológica do tema. Sabe-se que o funcionamento pleno do mercado é muito melhor do que as alternativas. Todavia, essa premissa ideológica e factual somente pode ser examinada face às premissas que a sustentam dentre as quais que somente há perfeita troca de bens entre os agentes se estes tiverem as mesmas informações e condições de participar dessas trocas. Mercados também podem ser imperfeitos e isso é muito relevante, por exemplo, quando se decide se é melhor manter um ativo nas mãos do Estado ou não. O que se vê, por enquanto nesse governo, é uma "religião ideológica do mercado" cujo dogma é que tudo que é privado é melhor. Fosse assim, ao longo da história tantas instituições (capitalistas, diga-se) não teriam sido construídas para "controlar" certos segmentos do mercado. Cabe, portanto, debate transparente sobre o tema, muito embora já esteja claro que concessões de aeroportos, estradas, muitas das estatais e outros ativos devam ser transferidos para o setor privado, pois as imperfeições do mercado nessas áreas já estão "controladas" e há de se prevalecer a eficiência (custo versus retorno). Reformas estruturais aumentarão a produtividade dos fatores econômicos e o PIB pode crescer. Ademais, temos de considerar que a atual baixa atividade da economia favorece a que o processo de retomada seja construído pela ocupação da ociosidade existente. Isso ajuda muito a que o cenário inicial não seja inflacionário. As variáveis acima analisadas não são "um cenário ou previsão". Não há, com efeito, otimismo ou pessimismo embutido na descrição das variáveis. Apenas devemos reconhecer que (i) a área econômica de Bolsonaro acerta no diagnóstico e caminha para uma ação correta e (ii) as condições gerais da economia brasileira permitem melhoras no seu desempenho. Simples assim. Pode atrapalhar esse cenário o evidente slowdown das principais economias mundiais. Os mercados de ativos (ações, títulos de renda fixa, etc.) já sinalizam que haverá menos crédito e crescimento ao redor do mundo. O Brasil é parte (pouco relevante) da economia global, mas terá que conviver com isso. A outra perna do dualismo do governo Bolsonaro evidencia que a coisa vai de mal a pior. Ninguém de boa-fé deve aceitar a premissa de que a corrupção ou malfeitos sejam bons para o país. Com efeito, combater o mau uso de recursos (públicos e privados) é tarefa legítima do ponto de vista da ordem jurídica e social e necessária do ponto de vista econômico. Todavia, esse combate não pode legitimar um ambiente de "caça às bruxas" ou de "moralismo" generalizado. O governo parece tentar informar a sociedade que há um complô generalizado armado dentro do Estado para assaltar os bens públicos. O que houve por certo, foram assaltos bem organizados e grandiosos por parte de uns grupelhos de empresários, políticos, funcionários públicos e assim por diante. Cabe puni-los dentro da lei. Há, ainda, que se guardar certa "reserva institucional" e não ficar espalhando pela mídia notícias de perseguição de natureza política, bem como, difamando pessoas de bem que, eventualmente, não pensam como os bolsonaristas. O PT já encabeçou esse tipo de perseguição, não precisaria o governo imitá-lo. Há também obscuras provocações absolutamente irresponsáveis nas áreas de meio-ambiente, educação, políticas sociais e direitos humanos. Aqui, parece que o governo prefere ficar com a doutrina e abandonar o exemplo, parafraseando o padre Antônio Vieira. Não cabe aqui relacionar as bobagens nada infantis praguejadas pelos ideólogos do governo. Vale dizer que essa prática não é "conservadorismo", é fascismo no sentido provocativo que deu a ex-secretária de Estado dos EUA Madeleine Albright: forma de manter o poder pela construção de ideias excludentes. Independe, portanto, da natureza política de determinado governo. Há os de esquerda e há os de direita. O discurso atual do governo mexe nas raízes do Estado Democrático de Direito. Na área internacional a destruição é substancial. Do alinhamento automático aos EUA ao abandono de compromissos de Estado já assumidos estão ruindo todas os pilares da política externa do Brasil. A atuação de nosso chanceler envergonha o Brasil.
quarta-feira, 21 de novembro de 2018

A economia sem a política não anda

Sem uma agenda comum entre essas duas vertentes não haverá prosperidade As eleições, no caso as ocorridas em outubro no Brasil, projetaram novo consenso majoritário no Brasil. Talvez seja algo realmente novo, do ponto de vista histórico, quando se verifica que destruiu de forma relativamente retumbante o consenso anterior aglutinado em partidos que exerceram papéis de governo e oposição, o PT e o PSDB. O recado das urnas foi de que o eleitor não estava nada feliz. O caráter dicotômico e plebiscitário do pleito último dá vastas evidências dessa afirmação, seja pela nova distribuição geográfica, ideológica, partidária, dentre outras, da nova formação das casas legislativas e dos executivos em todos os planos, seja pelo cuidadoso exame do proselitismo dos oponentes na cena eleitoral. Jair Messias Bolsonaro surge como inegável fenômeno eleitoral face ao simbolismo que incorporou, bem como, em função do elevado grau de expectativa que atraiu para seu governo. Fenômenos eleitorais são, muitas vezes, sinais de tempos turbulentos a partir dos quais as sociedades buscam de forma mais frenética e intensa o preenchimento de suas ansiedades políticas, sociais e econômicas. De repente, surge nesse tipo de horizonte novas lideranças que corporificam as ideias ordinárias do eleitorado de forma ideológica e, na maioria das vezes, demagógica. Enquanto a "nova política" deita raízes no eleitorado a "velha guarda" sucumbe, perdida no próprio status quo. De outro lado, os fenômenos eleitorais não necessariamente conseguem estruturar equações políticas, dentro da ordem política e jurídica vigente, que sejam capazes de viabilizar as demandas sociais e econômicas. Quando a estrutura política necessária ao processo de mudanças se forma em suficiência, aí o "novo poder" está habilitado a fazer avanços. Tudo dentro da democracia, está claro. Caso contrário, nada anda ou até regride do ponto de vista social e econômico. A frustração, nesse último caso, pode resvalar ou adentrar na instabilidade política que sempre pode afetar a democracia. Vezes não raras cai no autoritarismo ou na ditadura. A partir do contexto exploratório e teórico que acima descrevo, vejamos os fatos (políticos) já passíveis de serem analisados da nova administração que vem. Em primeiro lugar, cabe registrar que Jair Bolsonaro até agora consegue manter estreita coerência com seu projeto pregado nas ruas. Nada contradiz o que falou para o eleitorado. Do ponto de vista econômico o futuro presidente está zeloso de que a tecnocracia liderada por seu guru econômico Paulo Guedes faça prevalecer seus projetos e líderes na consecução da prometida política econômica liberal ou, até mesmo, ultraliberal. Economista nenhum das cercanias de Chicago seria capaz de reclamar do ex-capitão. Da formação do núcleo da equipe econômica até o espalhamento de suas ideias no campo da diplomacia, da regulação econômica, da direção das estatais, do controle das áreas sociais, ambientais e culturais, passando pela justiça, há um todo relativamente organizado na superestrutura do governo que virá. Será uma nova experiência verificar como esse ambicioso projeto tecnocrático adentrará no sedimentado patrimonialismo, corporativismo e na oligarquia do país, ou mesmo, na crise institucional crônica que vige no Brasil, na qual os poderes estatais conspiram contra o bom funcionamento da sociedade. Todavia, não há de se perder de foco que esse projeto abrangente ainda não é um projeto político. Trata-se em verdade apenas de um "plano diretor" que engendra nova ideologia acima da sociedade, mas que para ganhar força social terá de andar por dentro das estruturas políticas do Planalto Central e da Federação. Provavelmente, terá de arrancar volumosa quantidade de mato daninho, vísceras e esqueletos que repousam dentro do Estado e larga série de benefícios e privilégios bem duvidosos, inclusos os de parcela substancial do poder econômico. Vale dizer que essa infraestrutura política está viva e ativa, bem representada e organizada dentro e fora dos partidos políticos vencedores. Há até corrida frenética dentre estes para aderir ao governo no intento de direcioná-lo para seus próprios interesses. É igualmente notável que, apesar da existência de organizados interesses econômicos, políticos e sociais que se chocam com o projeto tecnocrático de Bolsonaro, não há conhecimento razoável de como Bolsonaro terá apoio de facto nas casas legislativas, necessárias a suportar politicamente o novo governo. A incrível (e inesperada) renovação congressual não permite previsões acuradas de como a nova maioria se formará em favor do governo. (Imagino que essa maioria exista porquanto ansiosas e esperançadas estão as ruas em relação ao governo da "nova direita" de Bolsonaro). Será uma maioria formada sob à égide dos partidos políticos ou será construída por meio de convencimento em favor de certos temas e assuntos da agenda brasileira? Aqui vale relembrar a salada de frutas que é o sistema político-partidário do Brasil. Sigla partidária é negócio de franquias. Como se verifica, se até agora o ex-capitão foi explícito quanto às ambições econômicas por meio da terceirização do trabalho de realizar em favor de Paulo Guedes, no campo político ainda há um quadro opaco no qual o único brilho é que todos os (novos) políticos estão fascinados com a nova presidência e suas possibilidades concretas. O deputado gaúcho Onyx Lorenzoni até consegue passar alguns recados, mas ainda não parece habilitado a informar ao presidente eleito como se dará a execução política do projeto econômico. Ninguém em pleno uso das razões mentais será capaz de negar que os desafios brasileiros são enormes. Muito se fala da previdência social e dos tributos como barreiras mediatas ao crescimento. Todavia, o conjunto dos problemas é muito mais intrincado e sem força motriz vigorosa e abrangente a dinâmica da produtividade do país não vai mudar para melhor. O Brasil é um país que se tornou medíocre, seja pela baixa qualidade de seu capital humano deseducado, seja pela distância que o país está dos canais de suprimento de tecnologia e acesso aos principais mercados mundiais. Somos um país incompetente para competir no mundo moderno. Assim sendo, para fugir do ostracismo econômico, o Brasil precisa mudar o sinal negativo, em termos de processos, poupança e investimento, organização, infraestrutura, tecnologia, etc. E isso não pode se resumir aos ajustes das contas públicas, redução de ministérios ou à própria privatização dos ativos. Estamos a falar de algo bem mais submerso na realidade que aquilo que foi dito na campanha eleitoral. Aqui é onde se une a complexidade do desenvolvimento econômico com a fiação embrulhada e igualmente complexa da política: sem uma agenda comum entre essas duas vertentes não haverá prosperidade. Ou Bolsonaro demonstra que seu projeto econômico é politicamente viável ou a permanência dessa dúvida se transmutará em esfinge e o devorará. Afinal, a promessa foi enorme. Há, finalmente, outro detalhe que merece observação. A conjuntura mundial favorável desde 2010, ano no qual vislumbrou-se que a grande recessão de 2008 seria superada, está sob forte escrutínio por parte dos agentes econômicos dos países centrais. Há sinais suficientes originados pelos indicadores econômicos e de mercado (bolsas e mercado de renda fixa, e.g.) que dão sustentação a expectativa de uma economia internacional menos vigorosa e, até mesmo, estagnada em 2019 e 2020. A sorte, a partir dessa constatação, já não sorri tanto quanto na era de Dilma e Temer quando desperdiçamos bons anos de tranquilidade na economia mundial por causa de nossos tropeços políticos. Está claro que os tecnocratas nos arredores de Bolsonaro já avisaram o presidente dessa realidade e agirão considerando essa variável de risco. Esperemos que a formação da nova maioria no Brasil seja saudável ao nosso processo civilizatório, que a democracia seja processo proveitoso de avanços no nosso desenvolvimento social e político. Sem macular a minoria política e seus contraditórios. Já perdemos tempo demais.
segunda-feira, 29 de outubro de 2018

Bolsonaro: fatos verdadeiros, realidade profunda

A democracia por aqui não se exerce de fato pela via eleitoral, mas pela possibilidade concreta de exercer o poder obtido nas urnas. Ensina o lendário fotógrafo Henri Cartier-Bresson que "em si mesmos os fatos não oferecem interesse. O importante é escolher entre eles; captar o fato verdadeiro em relação à realidade profunda". Pois é: o fato verdadeiro é que o deputado Jair Messias Bolsonaro foi eleito presidente da República. Já a "realidade profunda" dessa eleição de 2018 dependerá da sedimentação dos fatos doravante e daquilo que constitui a sociedade, seus valores e formas de representação. A eleição deste ano decorreu com elevado grau de polarização entre o petismo e o antipetismo, renovação elevada da elite política no Congresso Nacional, tendências conservadoras nos costumes e o uso direto do apelo religioso para cabalar votos. No segundo turno o confronto de ideias entre o vencedor da eleição e seu contendor Fernando Haddad foi limitadíssimo dada a ausência de debates entre eles. Perdeu o país, por certo. Também há de se destacar o fato de que nesse pleito "adversários" se tornaram "inimigos". Não precisa ser doutor em linguística para interpretar o sentido violento e chulo das palavras emitidas, notadamente pelo presidente eleito. Seu discurso de quando eleito nada sinaliza no sentido da conciliação nacional. A vitória do ex-capitão será teste relevante para o país. O novo presidente terá de lidar politicamente com as mesmas forças sociais que apoiaram o PT, seja na sua feição lulista ou que vivenciaram o fracasso econômico de Dilma Rousseff e que estão a demandar larga mudança no ordenamento estatal para que a democracia formal (do ponto de vista jurídico) se torne uma democracia fundada em preceitos econômicos mais igualitários. Do ponto de vista factual, a multidão elegeu o 8º presidente pós-regime militar, mas a demanda mudancista permanece intacta. Ressalte-se que, nesse estágio da democracia brasileira, não são poucos os riscos e dificuldades no que tange às "regras do jogo", à sustentação fiscal do Estado frente as demandas feitas pela sociedade, à incompetência do Estado e seus agentes e à marginalização dos partícipes da democracia devido à ignorância funcional generalizada pelo país. Ademais, o ex-capitão nasce como fruto daquilo que foi o PT no governo e o PSDB na oposição. O centro político foi perdido. De saída, antes mesmo de sua posse, Jair Bolsonaro terá de confirmar sua vertente democrática em vista das severas dúvidas que estão dispostas na cena política sobre o tema. As perguntas são amplas e abertas: como lidará o novo presidente com a participação ativa das forças sociais? Suas escolhas quanto a organização do governo será capaz de descentralizar o poder, seja do ponto de vista federalista, seja do ponto de vista do próprio executivo? Como harmonizará o novo mandatário com a multiplicidade de instituições estatais, sobretudo com o Judiciário e Legislativo? Como será integrado o ambiente interno e externo do Brasil, sobretudo quando a credibilidade do candidato Bolsonaro é questionada mundo afora? Como será o relacionamento do presidente com a mídia? Diante dessas acentuadas dúvidas, a vigilância, da oposição formal no Congresso até as organizações sociais, será provavelmente muito presente e ativa. A redução dessas tensões é missão imediata e necessária para confirmar o caráter democrático das pretensões do novo presidente ao longo dos próximos quatro anos. Os temas relacionados à afirmação democrática do presidente dependem essencialmente dele próprio no campo da retórica e dos comandos que emitirá para aqueles que com ele seguem para exercer o governo. Já do ponto de vista do exercício do poder, Bolsonaro deverá se ater às considerações concretas e instrumentais. Na atual e atribulada democracia brasileira, o processo decisório, interno e externo ao executivo é policêntrico, dependente de várias camadas de decisão e, no que tange ao Legislativo, sem consistente maioria, conforme verificamos nas últimas administrações. De fato, as "regras do jogo" no relacionamento externo do Executivo e com o Legislativo, tem por marca fundamental a formação de uma maioria desorganizada em termos de objetivos e organizada em termos de forma de agir. Os partidos políticos brasileiros são desprovidos de programas e de quadros intelectuais que sejam capazes de fazer uma crítica consistente e consequente no que se refere às políticas públicas desde a sua fase de concepção. Não à toa, a qualidade das normas emanadas das casas legislativas é de baixa qualidade porquanto mitigadas pelos interesses que cercam os debates sobre elas e também sem a crítica do ponto de vista do interesse geral e comum. Reina a desorganização no debate. De outro lado, os representantes do povo e dos estados são extremamente organizados em torno de interesse próprios, patrimoniais e clientelistas. Dos cargos que negociam para si e para outros até os pedidos nada republicanos há longa cadeia organizada para negociar com o presidente o cumprimento dos fins do governo por meio do atendimento a certos interesses. Essa é a natureza da nossa democracia representativa. Romper com esse "método político" requererá, da parte de Bolsonaro, o abandono das reformas econômicas essenciais para colecionar lutas tipicamente políticas, tais como, sobre a organização partidária, a formação da base política do governo, novas regras sobre o processo eleitoral e assim por diante. Como se vê, uma agenda importante, mas bem distante das demandas mais urgentes das classes econômicas e sociais. Ora, se é improvável que Bolsonaro se volte às reformas estruturais que gerem inflexão da atual classe política na direção de uma democracia mais eficiente do ponto de vista de seu funcionamento, temos de verificar como o novo governo agirá em relação a formação dessa maioria desorganizada em termos de objetivos e organizada do ponto de vista de seus próprios interesses. O poder real de qualquer presidente no contexto político do Brasil depende da solução (ou não) dessa equação. A democracia por aqui não se exerce de fato pela via eleitoral (fato), mas pela possibilidade concreta de exercer o poder obtido nas urnas (realidade profunda). Os fatores positivos em favor do novo presidente para a estabilização político-partidária de seu governo são: (i) o fato de que poderá compor no Legislativo, a partir de seu partido mais engrandecido (segunda maior bancada com 52 deputados, 4 senadores), com partidos com grandes bancadas (PP, MDB, DEM, dentre os principais) normalmente aderentes ao governo e (ii) o fato de ter havido enorme renovação na "elite" política o que pode criar ambiente mais amigável para a negociação. Negativamente, pesa contra o novo presidente (i) a desorganização ideológica dos partidos no sentido das reformas pretendidas pelo governo e (ii) a continuidade de representantes "corporativistas" contra as reformas, caso dos servidores públicos, para citar um exemplo. Aqui, vale registrar a presença na cena dos militares enquanto agentes políticos sobre os quais pouco se pode prever ou analisar por enquanto. Fato novo e sensível. Também, temos de notar, que o novo presidente terá de lidar com a sua própria minoria, aquela que exercerá o poder no Executivo. Já se verifica dentro da própria estrutura de poder que cerca o presidente a luta de grupos igualmente minoritários cujas concepções devem se chocar. A título de ilustração, há aqueles que creem em "setores e empresas estratégicas" necessárias ao Brasil e, de outro lado, há os ultraliberais privatistas para quem o estratégico se resume a "Estado mínimo". Formar a maioria dessa minoria que dirigirá o Executivo é tarefa mais complexa que nos ilustra a mídia face às lutas intestinas ao poder. Do ponto de vista econômico também há importante mudança no cenário. Os agentes econômicos nas principais economias do mundo começam a registrar expectativas mais deterioradas em relação ao crescimento econômico. Isso deriva do fato de que a elevação dos juros primários dos EUA começa a produzir os primeiros efeitos sobre a concessão de crédito bancário e nos custos das emissões de dívida e, assim, espera-se uma queda da atividade econômica. Não se trata, contudo, da expectativa de recessão ou da configuração de um cenário de colapso financeiro e econômico como foi o caso de 2008. Todavia, 2019 apresenta expectativas mais deterioradas para as economias centrais. Basta ler os informes mais recentes do FMI. Do ponto de vista das economias emergentes, o impacto da desaceleração das economias desenvolvidas deve ser mais relevante. Nesse ponto, o destaque é a China sobre a qual já se espera crescimento mais moderado do seu PIB. Também é o caso da Índia e dos demais países emergentes. O efeito desse cenário mais pessimista já é sentido no mercado financeiro e de capital. As principais bolsas de valores estão extremamente voláteis nas últimas semanas e a queda do preço dos ativos é notada em quase todos os segmentos. O Brasil é exceção nesse contexto porque a eleição do novo presidente foi vista como boa para os investidores e capitalistas. Aqui, o otimismo está acima dos fundamentos, conforme a revista The Economist escreveu sobre Bolsonaro na última edição: "a perversão do liberalismo". O Brasil tem uma sociedade complexa na qual o jogo da democracia deve enfrentar dois testes relevantes. O primeiro é o atendimento das expectativas quanto ao desenvolvimento econômico e das demandas sociais. O segundo é sobre a funcionalidade da democracia: há desconforto social e crescente e perigosos apelos por um "governo forte". Tudo isso em torno de um ambiente econômico com riscos crescentes, aqui e lá fora.
quinta-feira, 25 de outubro de 2018

A natureza heterogênea do novo governo

Legislativo, Executivo e Judiciário devem enfrentar ondas de nervosismo institucional A provável eleição do deputado Jair Messias Bolsonaro para ocupar a presidência da República inaugura nova era desde a promulgação da Constituição de 1988. Esgotou-se o período em que se acreditou ser possível a construção de uma sociedade educada para a liberdade, na qual a democracia tinha formalmente um fim, no caso, a maior igualdade social, econômica e de direitos fundamentais. Creio que, no período de 30 anos de vigência da Constituição, houve avanços e retrocessos relevantes na aquisição dos direitos mais fundamentais, aqueles desprezados no período do regime militar (mas, não apenas nele). Ao final, o processo foi amplamente favorável. O mesmo não pode se dizer em relação aos direitos sociais e econômicos. Nesse campo, prevaleceu o nosso "capitalismo tardio" e atrasado, sem que fôssemos capazes de integrar ao processo imensas parcelas da sociedade brasileira que sucumbem sob a pobreza, a miséria e a desigualdade imoral. Some-se a isso, a deplorável situação dos pilares sociais da educação, da saúde, dos serviços e bens públicos. Somos um país funcionalmente analfabeto, ignorante sobre as modernidades do mundo digital, da indústria 4.0 e assim por diante. Sejamos transparentes. A democracia brasileira, portanto, combina elementos de progressos materiais no campo dos direitos fundamentais e cabal fracasso no campo econômico e social o qual se se restringiu ao exercício apenas "formal" daquilo que prevê a Constituição-cidadã. Creio que a nova administração Bolsonaro é resultado de um processo eleitoral que revelou grandiosa decepção do eleitorado em relação à democracia enquanto instrumento "formal". Ao não atingir o seu fim de produzir a felicidade econômica e social, o eleitorado jogou para fora do poder o "centro político" que exerceu debilmente o seu papel de oposição, bem como execrou a atrasada esquerda brasileira, suas práticas éticas e seu programa irresponsável, embasado em premissas oníricas. Restou ao eleitorado imaginar que uma nova classe eleita possa exercer o papel modernizador que a democracia pós-1988 não alcançou. Digo que isso é fruto da "imaginação" porque as evidências sobre o candidato Bolsonaro não indicam que o escolhido está à altura da missão, bem como, aqueles que o acompanham - refiro-me aos militares e às parcelas de políticos de muitas matizes. A nova administração combina elementos de populismo, primário liberalismo econômico e conservadorismo sobre direitos fundamentais. Trata-se de combinação complexa que deveria provocar enorme estranheza e preocupação. Não à toa, tanto a mídia quanto "formadores de opinião" estão a tentar entender os anúncios esparsos emitidos pela mídia social por parte do candidato, bem como, vê-se questionamentos para saber se será mantido grande parte do status que prevaleceu a partir de 1988. É esforço louvável de que atua nesse sentido, mas como analista cabe perguntar se isso será suficiente para evitar que a nova administração siga caminho diverso daquele que se esperaria. Quem viver, verá. Vale lembrar, a partir do empréstimo teórico do jurista Noberto Bobbio, que o Estado pode ser essencialmente liberal na consecução de seus projetos econômicos e "quase nada democrático" no que tange à separação entre o indivíduo e o Estado. Acrescento eu: a própria discussão sobre temas "morais" da sociedade, inclusos aqueles relativos às minorias e aos especificados por gênero, raça, escolhas sexuais, etc., abre perigoso flanco de submissão dos indivíduos ao Estado e seus preceitos, seja pelo exercício explícito de suas funções, seja indiretamente por meio da adoção de "novas práticas", conforme demonstra o discurso do candidato e aquilo que está em seu programa. Não é, portanto, ficção a preocupação com essa razão dualista que combina liberdade econômica crescente e direitos sociais e fundamentais limitados ou reduzidos. A própria cidadania, expressão política do indivíduo, sofre riscos relevantes. Há de se considerar também a situação estruturalmente crítica das finanças públicas, bem como a elevada regressividade da tributação no Brasil, a meu ver, dois fatores econômicos preponderantes no momento e que indicam que a política vindoura adicionará restrições de acesso a bens e serviços, bem como redução de direitos de partes significantes da sociedade. Para que se possa lograr sucesso no denominado "ajuste fiscal", se o novo governo não desejar ser apenas restritivo em matéria de direitos, terá de praticar necessariamente justiça distributiva, ou seja, tributar mais os ricos e minorar os efeitos da regressividade tributária sobre os pobres, via redução de tributos indiretos (o ICMS é o exemplo mais notório), além do aumento da tributação da renda dos poderosos. Aqui é nó que não foi desfeito desde 1988. Também mexe em outro tema complexo: a federação. Seria de se esperar que um governo de cepa (economicamente) liberal, marcado pelos princípios basilares dessa ideologia, praticasse e implementasse maior satisfação aos anseios dos erários dos estados e municípios. Na prática, porém, se o governo quiser praticar justiça distributiva, terá de discutir o federalismo brasileiro, pois reduzir tributos indiretos (ICMS, IPI, etc.) significará penalizar erários estaduais e municipais. Portanto, há estreita incompatibilidade entre o atual federalismo e pretendido reformismo tributário, com feridas adicionais a qualquer liberalismo econômico. Em suma, difícil imaginar que se chegue lá, descentralizando o poder estatal na direção dos entes federalistas. Em verdade, Bolsonaro e sua equipe, dada a emergência fiscal devem recorrer à mais clássica fórmula de quem preserva seu próprio cofre: não muda nada na estrutura tributária e manda subir ou criar algum tributo. Veremos. Do ponto de vista político, a manutenção ou redução da autonomia estadual significa que o jogo diário no Congresso significará que ou Bolsonaro concede à velha política ou vai para o conflito, esse de natureza institucional. Há que se ter em vista que o candidato do PSL está a prometer menos ministérios e, eventualmente, menos "matéria-prima para negociar". A despeito do apoio que se possa dar a essa ideia, temos de concordar que para a turma do Congresso isso soa a redução de cargos e salários para apaniguados. Portanto, as particularidades do funcionamento da política partidária criam suspeitas de que ou teremos enfrentamento ou teremos concessões que podem inviabilizar o projeto heterogêneo da nova administração Federal. Finalmente, o espaço entre os indivíduos (com seus direitos) e o Estado (com seus deveres) não está programaticamente preenchido nem pela equipe econômica de Bolsonaro e nem pelas estruturas políticas que o sustentam. Há, inclusive, o retorno material dos militares ao governo, coisa que não ocorria desde 1985. Estes tem poder, mas não tem votos no Congresso Nacional. Diante da possibilidade de enfrentamento entre o governo e os representantes do povo e dos Estados, esse é sinal de atenção, senão de tensão política. Em tempos de elevada desfuncionalidade entre as frações do Poder Estatal, Legislativo, Executivo e Judiciário devem enfrentar ondas de nervosismo institucional e terão de deliberar soluções efetivas para que a democracia não corra riscos. Para ser otimista sobre o futuro, no contexto que procurei descrever acima, deverá haver mais que o entusiasmo eleitoral vigente a partir da vitória de um e a derrota de outro.
quinta-feira, 18 de outubro de 2018

Expectativas e riscos sob Bolsonaro

Não existe democracia ou bom funcionamento da política sem consenso mínimo sobre política, economia e agenda social. O segundo turno das eleições de 2018 parece que caminha para a vitória do ex-capitão e deputado Federal Jair Messias Bolsonaro. Seria talvez mais diplomático ou, eventualmente, passível de certo cinismo não reconhecer o fato de que o líder nas pesquisas está com indicadores eleitorais consistentes para ser o próximo presidente da República. Parece-me muito improvável que, num cenário de candidatos postos como opositores extremados, haja transição de votos de um lado para o outro do que resta da disputa política - Haddad parece vítima do passado leviano de seu partido e das contemporâneas demandas sociais por um "governo forte". Obviamente, expectativas na política se formam a partir dos fatos contrariamente ao que ocorre na atividade econômica onde as expectativas exercem propulsão aos fatos. Com efeito, é possível que surja um "fato novo" capaz de alterar o cenário, mas para fins da análise política isso apenas pode ser desfiado quando ocorrer. De todo o modo, por aqui, vamos nos situar no cenário mais provável. O que podemos esperar da nova administração sob a liderança de Bolsonaro? Inicialmente, vale registrar que a alteração ocorrida na composição do Congresso Nacional foi maior do que se esperava - eu mesmo não acreditava nessa mudança, dada a concentração de poder e recursos partidários nas mãos dos "caciques" dos principais partidos. Aqui reside o primeiro fator a ser observado em relação ao provável governo do ex-capitão. Qual será o papel dos "novos situacionistas" que adentram aos portões da Câmara baixa e alta de Brasília? Não me parece claro o papel e o pensamento dos muitos militares, policiais, evangélicos e membros do PSL (partido de Bolsonaro) e dos outros partidos que dão (e darão) sustentação política ao candidato. Todavia, é certo que o papel desses apoiadores, bem como, dos adesistas ao novo governo (podem ser numerosos) será fundamental para determinar a base mínima que o governo contará logo de saída. Há, contudo, outro aspecto tão relevante, mas pouco lembrado: como estas (novas e velhas) forças político-partidárias funcionarão em relação ao controle do governo, seja no viés da administração e gestão, seja do ponto de vista do controle propriamente político - aqui se inclui o tema do controle democrático, de como as instituições e os pesos e contrapesos formais e informais serão respeitados. No que tange especificamente à gestão econômica e administrativa, o horizonte parece relativamente turvo, muito embora o mercado financeiro e de capital esteja a projetar bons agouros. O aspecto a ser observado nesse item é como se casará um governo conservador-populista com a feição liberalizante na administração econômica que Paulo Guedes, o guru econômico de Bolsonaro, está a confeccionar. Afinal, a agenda de privatizações e redução do papel do Estado, enquanto propulsor do desenvolvimento econômico, elimina instrumentos relevantes de execução de políticas públicas que possam alicerçar o pacto de Bolsonaro com seus aguerridos seguidores. O contra-argumento "liberal" clássico em relação à pergunta dessa natureza é que "menos Estado na economia, significa mais Estado na educação, saúde e outras políticas públicas". Obviamente, esta experiência terá de ser vivida para sabermos o desfecho da relação entre o distinto público (o eleitorado) e o liberalismo prometido, com riscos outros para o meio ambiente, para citar um deles. É, de todo o modo, cedo demais para apostas arrojadas nesse campo. Mesmo porque as restrições fiscais são muitas e não há sinais de que o investimento privado local e externo esteja convencidos de que a turma econômica do candidato pode garantir, ela mesma, a estabilidade que na realidade depende do Presidente da República. Seria amarga a ilusão dos agentes econômicos de que a economia caminhará longe dos olhos e do faro político do líder nas pesquisas eleitorais. Outro tema que me parece substancial num provável governo Bolsonaro diz respeito ao novo comportamento da opinião pública face a polarização política que estamos a viver. Por mais que existam explicações e elaborações teóricas sobre o tema, está claro que foi incorporada na política um grau de radicalização que não se vê desde a década de 1960. O posicionamento dos candidatos, suas propostas de políticas públicas e o próprio comportamento pessoal e político de cada um deles deixaram de ser escrutinados pelos eleitores e se formaram claques que aplaudem os candidatos sem que se saiba claramente o que estes estão a dizer e propor. A política virou, por assim dizer, um espetáculo que diverte ou emociona, mas que não se propaga para a formação de expectativas e novas perspectivas. Nesse contexto, a continuidade desse processo é risco relevante do ponto de vista político: craques querem ver gols, não importando muito como se chega lá e se o jogo está controlado sob regras e normas. É inegável que nessa eleição se perdeu a dose da razoável civilidade no tratamento e no debate político. No sentido do que apontamos no parágrafo anterior, a existência de novos players políticos é outra variável a ser observada, seja pela eventual inexperiência na atividade parlamentar destes, seja porque esses "novos" incluem uma parcela especial que não adentrava à política faz certo tempo: os militares. Não se pode omitir, sob pena de erro analítico grosseiro, que os membros das Forças Armadas darão suporte ao novo presidente e não é à toa que se registra a presença do general Hamilton Mourão como vice do ex-capitão. O papel dos militares será de governo e não de Estado. Se observarmos a agenda de demandas e necessidades da sociedade brasileira, boa parcela dela tem relação com insegurança, seja a física, seja a jurídica e social. Ora, esta agenda pode ser preenchida pelos militares, mesmo porque é sólida a crença (justificada ou não) de que os fardados entendem do assunto e podem resolver. O próprio precedente da intervenção na segurança pública do Rio de Janeiro pode ser ampliado horizontalmente para outros recantos do Brasil, como pode ser aprofundado verticalmente, no sentido de mais poder para que os militares possam cumprir a tarefa (ou será missão?). Se do ponto de vista econômico Bolsonaro obtiver sucesso nos primeiros passos de sua administração, a mutação da política do país pode sofrer variações muito maiores: em contexto de melhoria de renda e de maior progresso econômico, a consecução de políticas públicas pode se tornar mais radicalizada e ser menos obediente ao denominado Estado Democrático de Direito. Por óbvio, não posso antecipar se isso deve acontecer, apenas registro que pode acontecer. Note-se, por exemplo, os arroubos cada vez mais autoritários de Donald Trump nos EUA, no exato momento de boom econômico. Por fim, será também necessário observarmos como se comportará a oposição ao novo governo num contexto em que os velhos polos da política, PSDB e PT, podem estar juntos na posição de minoritários no Congresso Nacional. Se o contraponto da oposição for meramente programático e pontual, Bolsonaro há de se prevalecer do momento favorável por certo tempo, independente do sucesso de seus primeiros passos no exercício do governo. A memória do que fez o PT em matéria de corrupção e desmandos, bem como, a percepção de que o PSDB foi oposição pífia e incapaz em relação ao petismo, especialmente no auge do denominado lulismo, fazem com que a dominação bolsonarista da agenda seja provavelmente segura. De outro lado, se a oposição for capaz de se reaglutinar e repensar um novo projeto para o país que inclua a agenda que eleva Bolsonaro à posição de primeiro mandatário do país, aí é possível que a sociedade tenha ouvidos menos moucos a outros projetos que não de Bolsonaro. Tanto PT quanto PSDB ou mesmo os Democratas sempre tiveram dificuldades em elaborar muito além da dicotomia entre os programas econômicos. Bolsonaro, por sua vez, ampliou o debate para campos antes pouco explorados, tais como, o dos costumes e dos temas das minorias. Um risco e tanto que terá de ser abarcado pela oposição. Nesse sentido, a política pode se radicalizar ainda mais. Por fim, a legitimidade de Jair Bolsonaro, fruto de sua vitória eleitoral tem chance concreta de ser utilizada para mudanças nas regras políticas e democráticas, bem como para desmobilizar grupos e ações que lhe seja contrários do ponto de vista político ou econômico. Considerado o fato de que há uma crise institucional crônica no Brasil vez que os pilares do Estado estão disfuncionais ou débeis, o jogo político pode se tornar pouco cooperativo. Não existe democracia ou bom funcionamento da política sem que exista consenso mínimo sobre política, economia e agenda social.