Um dos principais obstáculos ao acesso à justiça no Brasil é o elevado valor das custas judiciais. Conforme Mauro Cappelletti e Bryant Garth em sua obra "O Acesso à Justiça", "os litigantes precisam suportar a grande proporção dos demais custos necessários à solução de uma lide, incluindo os honorários advocatícios e algumas custas judiciais"1. Em um país que ainda possui a desigualdade como um de seus principais desafios, o alto custo para o cidadão buscar a tutela jurisdicional por seus direitos violados se impõe como uma barreira econômica à justiça.
A proteção ao acesso à justiça e a inafastabilidade da jurisdição encontram amparo no texto constitucional. O artigo 5º, da Constituição Federal, fixa em seus incisos XXXV e LXXIV, respectivamente: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito" e "o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos". Todo indivíduo, como titular de direitos, deve ter garantido o ingresso ao Judiciário para que possa ver protegidas suas pretensões jurídicas2.
O instituto da gratuidade da justiça mostra-se como instrumento para a efetivação desses princípios constitucionais, vez que garante o acesso à justiça aos seus beneficiários. Pontes de Miranda3 conceitua o benefício como o direito à dispensa provisória das despesas exercíveis em relação jurídica processual perante o juiz que promove a prestação jurisdicional.
Caso vencido, o beneficiário deverá arcar com o pagamento que lhe foi dispensado, visto que a parte credora terá o direito de exigir tudo o que adiantou. Entretanto, as obrigações decorrentes da sucumbência ficarão suspensas nos cinco anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, para que o credor, dentro desse prazo, comprove que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão da gratuidade4. Após os cinco anos, são extintas tais obrigações do beneficiário.
O Código de Processo Civil de 2015 positivou a gratuidade judiciária em seus arts. 98 a 102, que regulamentam o procedimento para sua concessão, impugnação e revogação. O CPC/2015 inova ao fazer referência específica ao benefício da justiça gratuita, que não encontra normativo equivalente no CPC/1973. Antes da vigência do novo Código, a gratuidade da justiça encontrava como principal base normativa a Lei 1.060/1950, a qual regulamentava também a assistência judiciária. O CPC/2015, no entanto, revogou os arts. 2º, 3º, 4º, 6º, 7º, 11, 12 e 17 do referido dispositivo legal.
De acordo com o caput do artigo 98, do CPC/2015, tem direito à gratuidade da justiça a pessoa natural ou jurídica, brasileira ou estrangeira, com insuficiência de recursos para pagar as custas, as despesas processuais e os honorários advocatícios.
O art. 2º, parágrafo único, da Lei 1.060/1950 restringia a concessão do benefício para ""todo aquele cuja situação econômica não lhe permita pagar as custas do processo e os honorários de advogado, sem prejuízo do sustento próprio ou da família". Assim, o normativo abria margem para a interpretação de que apenas a pessoa natural, única capaz de constituir família, poderia fazer jus à gratuidade da justiça5. Esse entendimento foi superado pelo novo Código, que inova ao prever a pessoa jurídica no rol dos legitimados para requerer o benefício..
Em conformidade com a legislação, a Súmula n. 481 do STJ dispõe que: "faz jus ao benefício da justiça gratuita a pessoa jurídica com ou sem fins lucrativos que demonstrar sua impossibilidade de arcar com os encargos processuais".
Em relação aos estrangeiros, o CPC/2015 não faz distinção entre aqueles que são residentes no Brasil ou não - diferentemente do diploma anterior, que restringia o deferimento do benefício aos residentes6.
A "insuficiência de recursos", prevista no caput do artigo 98, é requisito para concessão do benefício. Assim, não são exigidos miserabilidade, estado de necessidade, renda familiar ou faturamento máximo ao beneficiário da gratuidade judiciária - pois "não se pode exigir que o sujeito tenha que comprometer sua renda ou liquidar seus bens para ter acesso à justiça e custear o processo"7. Sob esse raciocínio, o patrocínio da parte por advogado particular não constitui óbice para a concessão da gratuidade de justiça8.
A pessoa natural, por sua vez, possui presunção relativa de veracidade da declaração de pobreza, conforme entendimento do Superior Tribunal de Justiça9 e do Tribunal Superior do Trabalho10. Já a pessoa jurídica deverá comprovar a precariedade de sua situação financeira para a concessão da justiça gratuita, inexistindo, em seu favor, presunção de insuficiência de recursos11. O novo estatuto processual não alude à sociedade irregular, nem aos entes formais que possuem personalidade judiciária (massa falida, espólio etc.) - os quais, conforme entendimento da doutrina, podem auferir a gratuidade da justiça.
Quanto ao empresário individual e ao microempreendedor individual, a jurisprudência do STJ12 consolidou que estes devem ter sua caracterização como pessoa jurídica relativizada, vez que "são pessoas físicas que exercem atividade empresária em nome próprio, respondendo com seu patrimônio pessoal pelos riscos do negócio, não sendo possível distinguir entre a personalidade da pessoa natural e da empresa". Segundo decisão judicial, para a concessão da benesse da justiça gratuita de EI ou de MEI "basta a mera afirmação de penúria financeira, ficando salvaguardada à parte adversa a possibilidade de impugnar o deferimento da benesse, bem como ao magistrado, para formar sua convicção, solicitar a apresentação de documentos que considere necessários, notadamente quando o pleito é realizado quando já no curso do procedimento judicial"13.
Em conformidade com o CPC/2015, a Jurisprudência em Teses do Superior Tribunal de Justiça, Edição n. 150, fixou os seguintes parâmetros para concessão da gratuidade da justiça:
(i) "É inadequada a utilização de critérios exclusivamente objetivos para a concessão de benefício da gratuidade da justiça, devendo ser efetuada avaliação concreta da possibilidade econômica de a parte postulante arcar com os ônus processuais"14;
(ii) "A faixa de isenção do Imposto de Renda não pode ser tomada como único critério para a concessão ou denegação da justiça gratuita"15, e;
(iii) "A mera declaração de estado de pobreza para fins de obtenção de benefícios da justiça gratuita não é considerada conduta típica, diante da presunção relativa de tal documento, que comporta prova em contrário"16.
O 1º parágrafo do art. 9817 elenca o rol das despesas processuais de cujo adiantamento estará dispensado o beneficiário da gratuidade da justiça. São elas: (i) as taxas ou as custas judiciais; (ii) os selos postais; (iii) as despesas com publicação na imprensa oficial, dispensando-se a publicação em outros meios; (iv) a indenização devida à testemunha que, quando empregada, receberá do empregador salário integral, como se em serviço estivesse; (v) as despesas com a realização de exame de código genético - DNA e de outros exames considerados essenciais; (vi) os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira; (vii) o custo com a elaboração de memória de cálculo, quando exigida para instauração da execução; (viii) os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório; (ix) os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido. Trata-se de rol meramente exemplificativo, de modo que despesa não inclusa expressamente no normativo pode ser requerida em juízo pela parte.
Como visto, o CPC/2015 detalha as hipóteses de concessão do benefício da justiça gratuita, mas não o faz exaustivamente, ao fixar um rol exemplificativo. Dessa forma, o novo código permite um certo grau de abertura em relação às despesas devidas conforme a peculiaridade de cada caso específico - conforme observado no caso das custas referentes à remuneração do mediador, por exemplo, as quais não são indicadas no rol. Assim, os artigos do CPC/2015 que dispõem sobre a gratuidade da justiça e sua impugnação são aplicáveis ao procedimento de mediação e conciliação judicial18. A lei 13.140 de 2015, em consonância com o princípio do acesso à justiça, prevê em seu artigo 4º, § 2º: "aos necessitados será assegurada a gratuidade da mediação".
O CPC, portanto, harmoniza a legislação brasileira ao incorporar e atualizar as previsões da Lei 1.060/1950 acerca da gratuidade da justiça, proporcionando maior segurança jurídica. A previsão legal do benefício assegura a concretização dos princípios do acesso à justiça e da inafastabilidade da jurisdição, vez que possibilita que todo cidadão com insuficiência de recursos tenha pleno acesso à tutela jurisdicional.
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1 Cappelletti, M.; Garth, B. Acesso à justiça. Tradução de Ellen Gracie Northfleet. Porto Alegre: Fabris, 1988, p. 15.
2 Conforme Kazuo Watanabe, o princípio de acesso à justiça "não assegura apenas acesso formal aos órgãos judiciários, e sim um acesso qualificado que propicie aos indivíduos o acesso à ordem jurídica justa, no sentido de que cabe a todos que tenham qualquer problema jurídico, não necessariamente um conflito de interesses, uma atenção por parte do Poder Público, em especial do Poder Judiciário". In: WATANABE, Kazuo. Política Pública do Poder Judiciário Nacional para tratamento adequado dos conflitos de interesses. Revista de Processo, São Paulo, ano 136, v. 195, p. 381-390, maio 2011. p. 385
3 MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967: com a Emenda n. 1 de 1969, 1987, p. 642.
4 CPC, Art. 98 (...)
§3º Vencido o beneficiário, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos 5 (cinco) anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.
5 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.) et al. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
6 A gratuidade da justiça passou a poder ser concedida a estrangeiro não residente no Brasil após a entrada em vigor do CPC/2015. STJ. Corte Especial. Pet 9815-DF, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 29/11/2017 (Info 622).
7 WAMBIER, Teresa Arruda Alvim (Coord.) et al. Breves comentários ao novo Código de Processo Civil. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 359.
8 "3. Nos termos do que dispõe o artigo 99, §4º, do Código de Processo Civil, a assistência do requerente por advogado particular não impede a concessão de gratuidade da justiça." Acórdão 1272408, 07053038420208070000, Relatora: SIMONE LUCINDO, Primeira Turma Cível, data de julgamento: 5/8/2020, publicado no DJE: 20/8/2020.
9 "3. A afirmação de pobreza goza de presunção relativa de veracidade, podendo o magistrado, de ofício, indeferir ou revogar o benefício da assistência judiciária gratuita, quando houver fundadas razões acerca da condição econômico-financeira da parte (edição 149 de Jurisprudência em Teses do Superior Tribunal de Justiça). 4. A condição de necessitado não se confunde com absoluta miserabilidade e não pressupõe estado de mendicância, mas tão somente incapacidade para suportar as custas e demais despesas processuais, conforme dispõe o art. 98, caput, do CPC." Acórdão 1356239, 07081156520218070000, Relator: ROBERTO FREITAS, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 14/7/2021, publicado no DJE: 27/7/2021.
10 A Súmula TST n° 463 dispõe que para a concessão da assistência judiciária gratuita à pessoa natural, basta a declaração de hipossuficiência econômica firmada pela parte ou por seu advogado, desde que munido de procuração com poderes específicos para esse fim.
11 STJ. 4ª Turma. AgInt no AREsp 1.983.350/RJ, Rel. Min. Raul Araújo, julgado em 21/3/2022.
12 STJ. 4ª Turma. REsp 1899342-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 26/04/2022 (Info 734).
13 STJ. 4ª Turma. REsp 1899342-SP, Rel. Min. Marco Buzzi, julgado em 26/04/2022 (Info 734).
14 Julgados: EDcl no REsp 1803554/CE, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 26/11/2019, DJe 12/05/2020; EDcl no AgRg no AREsp 668605/RS, Rel. Ministro MARCO BUZZI, QUARTA TURMA, julgado em 04/05/2020, DJe 07/05/2020; AgInt no AgInt no AREsp 1368717/PR, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 28/04/2020, DJe 04/05/2020; AgRg no AgRg no REsp
1402867/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 27/02/2018, DJe 14/03/2018; AgInt no REsp 1703327/RS, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 06/03/2018, DJe 12/03/2018; REsp 1706497/PE, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 06/02/2018, DJe 16/02/2018. (Vide Informativo de Jurisprudência N. 528)
15 Julgados: REsp 1846232/RJ, Rel. Ministro HERMAN BENJAMIN, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/12/2019, Je 19/12/2019; AgInt no AREsp 366172/RS, Rel. Ministro NAPOLEÃO NUNES MAIA FILHO, PRIMEIRA TURMA, julgado em 18/02/2019, REPDJe 26/02/2019; AgInt no REsp 1372128/SC, Rel. Ministro GURGEL DE FARIA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 12/12/2017, DJe 26/02/2018; AgInt no REsp 1401929/SC, Rel. Ministro OG FERNANDES, SEGUNDA TURMA, julgado em 05/09/2017, DJe 11/09/2017; AgRg no AREsp 353863/RS, Rel. Ministro MAURO CAMPBELL MARQUES, SEGUNDA TURMA, julgado em 03/09/2013, DJe 11/09/2013; AgRg no AREsp 231788/RS, Rel. Ministro CASTRO MEIRA, SEGUNDA TURMA, julgado em 21/02/2013, DJe 27/02/2013.
16 Julgados: AgRg no HC 404232/RJ, Rel. Ministro JOEL ILAN PACIORNIK, QUINTA TURMA, julgado em 15/05/2018, DJe 25/05/2018; AgRg no RHC 43279/SP, Rel. Ministro RIBEIRO DANTAS, QUINTA TURMA, julgado em 13/12/2016, DJe 19/12/2016; RHC 24606/RS, Rel. Ministro NEFI CORDEIRO, SEXTA TURMA, julgado em 26/05/2015, DJe 02/06/2015; RHC 46569/SP, Rel. Ministra MARIA THEREZA DE ASSIS MOURA, SEXTA TURMA, julgado em 28/04/2015, DJe 06/05/2015; RHC 53237/MG, Rel. Ministro ERICSON MARANHO DESEMBARGADOR CONVOCADO DO TJ/SP), SEXTA TURMA, julgado em 18/12/2014, DJe 06/02/2015; HC 261074/MS, Rel. Ministra MARILZA MAYNARD (DESEMBARGADORA CONVOCADA DO TJ/SE), SEXTA TURMA, julgado em 05/08/2014, DJe 18/08/2014. (Vide Informativo de Jurisprudência N. 546)
17 Art. 98 - (...)
§1º A gratuidade da justiça compreende:
I - as taxas ou as custas judiciais;
II - os selos postais;
III - as despesas com publicação na imprensa oficial, dispensando-se a publicação em outros meios;
IV - a indenização devida à testemunha que, quando empregada, receberá do empregador salário integral, como se em serviço estivesse;
V - as despesas com a realização de exame de código genético - DNA e de outros exames considerados essenciais;
VI - os honorários do advogado e do perito e a remuneração do intérprete ou do tradutor nomeado para apresentação de versão em português de documento redigido em língua estrangeira;
VII - o custo com a elaboração de memória de cálculo, quando exigida para instauração da execução;
VIII - os depósitos previstos em lei para interposição de recurso, para propositura de ação e para a prática de outros atos processuais inerentes ao exercício da ampla defesa e do contraditório;
IX - os emolumentos devidos a notários ou registradores em decorrência da prática de registro, averbação ou qualquer outro ato notarial necessário à efetivação de decisão judicial ou à continuidade de processo judicial no qual o benefício tenha sido concedido.
18 VIII Fórum Permanente de Processualistas Civis - FPPC, Enunciado 624.