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Conversa Constitucional

Fatos do cotidiano à luz da CF e a rotina do STF.

Saul Tourinho Leal
Na errante jornada da humanidade, mulheres foram perseguidas, humilhadas e marginalizadas. Eram tratadas social e juridicamente como se não fossem dotadas de dignidade. Esse capítulo ultrajante da caminhada humana não ficou inteiramente para trás. Todavia, a nossa democracia não subscreve tal compreensão da existência. Por isso, a autonomia da vontade individual tem uma dimensão constitucional feminina que reclama reconhecimento. Junto dela, os ventos da liberdade (caput do art. 5º da CF). Mulheres submetidas a relacionamentos abusivos perdem a sua autonomia. Sem esta, não há liberdade nem dignidade. A mulher passa a se conduzir segundo a vontade de uma outra pessoa, que se coloca na posição de soberana, autorizando ou proibindo o exercício de direitos personalíssimos, algo cuja essência reside no elemento mais intrínseco da liberdade. É um comportamento que desmorona as individualidades, o respeito à vontade do outro, o espaço necessário da diversidade e do pluralismo. O Preâmbulo da Constituição instituiu um Estado Democrático, destinado a assegurar, também, o desenvolvimento, a igualdade e a Justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Desenvolvimento que não é apenas o econômico ou o nacional, mas o pleno desenvolvimento humano. Igualdade que precisa ser material, não apenas formal. Isonomia, portanto. Justiça como elemento que tem habitado o coração dos povos desde a aurora dos tempos. Segundo Hans Kelsen, "a aspiração à Justiça está tão profundamente enraizada nos corações dos homens porque, no fundo, emana da sua indestrutível aspiração à felicidade". Tudo porque o Preâmbulo nos reconhece como uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Daí não haver mais espaço para se destruir mulheres nos esconderijos dos lares nem nas armadilhas das ruas. Fraternidade imortalizada pelos franceses com a sua Revolução que resultou na Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão (1789). Mas uma sociedade que não é meramente fraterna é pluralista e sem preconceitos. Pluralista, porque reconhece a proteção e o respeito das individualidades como a nossa maior riqueza. Sem preconceitos, porque tem a mente aberta para entender o diferente, o que escapa aos padrões, aquilo que não é majoritário. Por isso, se uma mulher, livre e conscientemente, olha para si e, diante dos desafios de uma vida que não costuma ser fácil, entende que precisa dar curso ao seu particular projeto de vida, não pode o Estado, nem tiranos particulares, operar qualquer resistência a esse projeto, seja por obstruções explícitas, seja pelas veladas. Três dos objetivos fundamentais da República são: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º). A Constituição é insistente nesse propósito. O respeito à autonomia da vontade individual da mulher é sinal de progresso civilizatório. No Século das Luzes, o Iluminista John Stuart Mill anotou: "Todas as mulheres são, desde a mais tenra infância, criadas na crença de que o seu ideal de carácter é diametralmente oposto ao dos homens: não vontade própria e capacidade de se governarem autonomamente, mas submissão e rendição ao controlo dos outros"1. E prosseguiu: "A teoria antiga era a de que se devia deixar o mínimo possível à escolha do agente individual; que tudo o que ele tinha de fazer lhe deveria ser, tanto quanto possível, ditado por uma mente superior. Entregue a si próprio, iria certamente fazer asneira. Ora, a convicção moderna, fruto de mil anos de experiência, assenta na ideia de que as coisas em que o indivíduo é a pessoa diretamente interessada só correm bem quando são deixadas ao seu próprio critério; e que qualquer regulação por uma autoridade, salvo quando se trate de proteger os direitos de outros, será seguramente nociva"2. Mill arrematou: "a liberdade de escolha individual é a única coisa que conduz à adopção dos melhores processos e que coloca cada operação nas mãos daqueles que estão mais habilitados a executá-la"3. O teórico encarna o que contemporaneamente a dogmática constitucional brasileira contemplou como liberdade, autonomia da vontade individual (caput do art. 5º) e dignidade da pessoa humana como fundamento da República (art. 1º, III). A dignidade reclama o reconhecimento de que o ser humano é um fim em si mesmo, dotado de valor intrínseco, que não deve ser enxergado como um meio para algo ou como rito de passagem para a consecução dos desejos estatais. É a essência do pensamento kantiano imortalizado na Constituição de 1988 quando coloca a dignidade da pessoa humana como um dos fundamentos da República (art. 1º, III). Nessa linha, trilhando um caminho teórico, João Costa Neto recorda as lições de Karl Larenz e Manfred Wolf, para quem o ser humano deve ter, em regra, o direito de perseguir seus próprios fins e objetivos e de não ter sua ação 'heterodeterminada'. A dignidade humana traz um conteúdo antipaternalista. Isso porque, "ela implica que os seres humanos sejam, no mínimo em regra, a última instância de decisão quanto a seus propósitos, intenções e ações, o que está associado à ideia kantiana de fim em si mesmo. A par disso, a dignidade humana funda uma proibição de instrumentalização ou reificação, o que significa que se veda, por via de regra, a heterodeterminação do sujeito", anota. João Costa Neto prossegue recordando que, "ao lado da autonomia e do antipaternalismo, é possível enxergar a dignidade humana, na sua dimensão de direito de defesa, como um 'trunfo contra a maioria'". Garante-se ao indivíduo uma esfera de não importunação. "A coletividade não poderá ainda que para promover o bem comum, ingerir como bem entender nessa esfera mínima previamente determinada. Quando muito, poderá efetuar intervenções submetidas a toda a dogmática restritiva dos direitos fundamentais, cujas leis limitadoras são submetidas a um regramento todo próprio"4, diz Costa Neto. Esse respeito à autonomia da vontade individual revela o caráter laico do Estado, no sentido de não ingressar no indevassável domínio das intimidades, dos desejos personalíssimos. Decisões que mulheres hão de tomar livremente sem que o façam premidas por ameaças estatais nem privadas. O Estado Democrático de Direito (art. 1º, caput, CF), especialmente em sociedades abertas e inclusivas, não foi erguido para ingressar nesse tipo de esfera da intimidade humana feminina. Steve Pinker, falando sobre "uma mentalidade humanista que baseia a moralidade no sofrimento e no florescimento dos indivíduos conscientes, mais do que no poder, na tradição ou na prática religiosa", destaca que a mentalidade atual do ocidente "foi confirmada segundo o princípio da autonomia: de que as pessoas têm direitos absolutos sobre seus corpos, que não podem ser tratados como um recurso a ser negociado com as outras partes interessadas". Ele anota: "o princípio da autonomia, lembremos, também foi uma chave na abolição da escravidão, do despotismo, da escravidão por dívida e dos castigos cruéis durante o Iluminismo"5. No Brasil contemporâneo, o caput do art. 5º da Constituição assegura a todos, além da igualdade perante a lei, a inviolabilidade do direito à liberdade. O inciso I dispõe que "homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta Constituição". Essa igualdade se desdobra em outros comandos. O art. 226, § 5º, dispõe que "os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher". Segundo o art. 183, § 1º, "o título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil". O título de domínio e a concessão de uso serão conferidos ao homem ou à mulher, ou a ambos, independentemente do estado civil, nos termos e condições previstos em lei (art. 189, parágrafo único). A igualdade entre homens e mulheres pretendida pela Constituição não é meramente formal. É material. Cuida, pois, da concretização do direito à isonomia que equilibra desigualdades intrínsecas de modo a promover uma igualdade verdadeira que muitas vezes reclama ações distintas entre homens e mulheres. Tanto que se reconhece a necessidade de uma interpretação construtiva quanto à mulher. Segundo o art. 7o, XX, são direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem à melhoria de sua condição social, "proteção do mercado de trabalho da mulher, mediante incentivos específicos, nos termos da lei". Novas demonstrações constitucionais de respeito à necessidade de igualdade material e, portanto, de isonomia, vem do art. 40, § 1º, segundo o qual os servidores abrangidos pelo regime de previdência de que trata este artigo serão aposentados, calculados os seus proventos a partir dos valores fixados na forma dos §§ 3º e 17: III - voluntariamente, desde que cumprido tempo mínimo de 10 anos de efetivo exercício no serviço público e cinco anos no cargo efetivo em que se dará a aposentadoria, observadas as seguintes condições: a) 60 anos de idade e 35 de contribuição, se homem, e 55 anos de idade e 30 de contribuição, se mulher; b) 65 anos de idade, se homem, e 60 anos de idade, se mulher, com proventos proporcionais ao tempo de contribuição. Não é diverso o art. 201, § 7º, segundo o qual é assegurada aposentadoria no regime geral de previdência social, nos termos da lei, obedecidas as seguintes condições: I - 35 anos de contribuição, se homem, e 30 anos de contribuição, se mulher; II - 65 anos de idade, se homem, e 60 anos de idade, se mulher, reduzido em 5 anos o limite para os trabalhadores rurais de ambos os sexos e para os que exerçam suas atividades em regime de economia familiar, nestes incluídos o produtor rural, o garimpeiro e o pescador artesanal. Percebe-se que as consequências do desrespeito da autonomia da vontade individual feminina terminam por destruir a aspiração legítima a um projeto de vida, especialmente sobre mulheres desamparadas. Isso é hostil ao objetivo fundamental da República de promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (art. 3º). Essa vedação ao preconceito se repete no inciso XLI do art. 5º, que diz: "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". Não se usa a expressão "projeto de vida" à toa. No fim da década de 1990, a Corte Interamericana de Direitos Humanos proferiu duas sentenças reconhecendo um direito de todo ser humano a criar e a desenvolver um projeto de vida. Partindo da autonomia pessoal, entendeu a Corte que, quando um Estado priva gravemente o indivíduo da liberdade de traçar as metas pessoais que pretende alcançar, impedindo-o de desenvolver plenamente a sua personalidade e destruindo suas oportunidades de perseguir os seus objetivos de vida, isso acarreta 'danos ao projeto de vida', ensejadores do dever de reparação. Os mais célebres são os casos Loayza Tamayo versus Peru e o caso Villagran Morales versus Guatemala. Neles, "a Corte Interamericana entendeu que aos Estados é proibido praticar condutas tendentes a obstaculizar as liberdades de cada indivíduo de estabelecer um projeto de vida e buscar sua plena realização existencial"6, anotaram Daniel Wunder Hachem e Alan Bonat. Avançar contra o legítimo desejo da mulher de escrever a sua história de vida segundo as suas vontades, sem impor danos a terceiros, é uma forma de degradar a autonomia da vontade individual, degradar a pulsão legítima pela liberdade e, especialmente, degradar o reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Segundo o inciso III do art. 5º da Constituição, "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". Essa discussão já encontrou aconchego no Supremo Tribunal, que anotou: "45. Imposição, além do mais, que implicaria tratar o gênero feminino por modo desumano ou degradante, em contrapasso ao direito fundamental que se lê no inciso II do art. 5º da Constituição, literis: 'ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante'. Sem meias palavras, tal nidação compulsória corresponderia a impor às mulheres a tirania patriarcal de ter que gerar filhos para os seus maridos ou companheiros, na contramão do notável avanço cultural que se contém na máxima de que 'o grau de civilização de um povo se mede pelo grau de liberdade da mulher' (Charles Fourier)"7. Portanto, há vasta proteção constitucional à autonomia da vontade individual feminina, realçada pela jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos no sentido de reconhecer como um direito humano o direito a um projeto de vida. É preciso que as relações femininas no Brasil sejam mergulhadas nas águas emancipadoras da Constituição para que possamos seguir construindo uma nação verdadeiramente plural e democrática. Enquanto isso não ocorrer, as únicas águas que veremos diante de nós serão as das lágrimas vertidas por mulheres que, mesmo podendo tocar o céu da felicidade por viverem uma vida plena, seguem devassadas pela dor e pelo sofrimento quase sempre causados por uma sociedade machista na qual homens violentos fazem dos prazeres sádicos - se alegrar com a dor do outro - a sua própria razão de viver. É uma forma sombria de entender os propósitos da vida. Uma forma que não encontra qualquer amparo na Constituição brasileira. __________ 1 John Stuart Mill, A sujeição das mulheres. Lisboa: Almedina. Trad. Benedita Bettencourt, 2006, p. 59/60. 2 John Stuart Mill, A sujeição das mulheres. Lisboa: Almedina. Trad. Benedita Bettencourt. 2006, p. 64. 3 Ibidem, p. 87/88. 4 João Costa Neto. Dignidade humana. Visão do Tribunal Constitucional Federal Alemão, do STF e do Tribunal Europeu. São Paulo: Saraiva, 2014, pp. 35-36. 5 Steven Pinker. Os anjos bons da nossa natureza: Por que a violência diminuiu. Trad. Bernardo Joffily e Laura Teixeira Motta. São Paulo: Companhia das Letras, 2013, p. 542. 6 O Direito ao Desenvolvimento de um Projeto de Vida na Jurisprudência da Corte Interamericana de Direitos Humanos e a Educação como Elemento Indispensável. 7 Página 55 do acórdão da ADI 3510 (Min. Carlos Ayres Britto, Pleno, DJe 28/5/2010).
segunda-feira, 7 de maio de 2018

O direito à inovação

É duro lembrar. Aquele homem simples, numa pequena cidade do Piauí, entregou sua vida a atividades cotidianas. Atendia as pessoas na agência dos Correios onde trabalhava, ia à igreja e conversava com conhecidos na calçada de casa. Merecia seguir vivendo a vida boa que vivia. Morreu sufocado, ofegante, com o coração inchado, vítima do que apenas depois se descobriu sendo as sequelas da doença de Chagas. O diagnóstico médico foi tardio. Na combinação mortal entre secura, acabamento ruim, falta de claridade, barro e a palha usados respectivamente nas paredes e nos tetos das casas, o barbeiro foi um assassino que agiu sem piedade. Ele matou o pobre homem. Matou também a muitos outros. E não são apenas as pessoas que sofrem. Os animais também. Sai a doença de Chagas, entra a seca. No sertão, ela é como se fosse uma bomba atômica. Arrasa tudo. Destrói esperanças, humilha agricultores, impede as pessoas de verem qualquer risco verde no horizonte. Espalhando-se por raios a fio, alcança animais indefesos. A região tem muitos lagos e lagoas. Tem rios também. E a causa do massacre que vive é a seca. Os animais morrem lenta e cruelmente, diante da vista de todos ali, num espetáculo macabro cuja cena final se abre com a chegada do urubu, que com o seu bico dá o último tiro numa vítima decadente e indefesa. São episódios de degradação, dor e sofrimento decorrentes da falta de desenvolvimento e especialmente de investimento em inovação. Diagnósticos médicos, formas de construir moradias mesmo preservando os costumes locais, projetos de irrigação, automação sustentável nas formas de produção..., tudo reclama inovação e o Brasil não pode mais adiar esse seu encontro com um amanhã que é presente em muitos países em todo o mundo. O primeiro passo é simplesmente cumprir a Constituição. Nações respeitáveis conferiram proteção constitucional à inovação. A Suíça, por exemplo, dispõe, no art 64, 1, que "a Confederação promoverá a pesquisa científica e a inovação". Já o art. 127, 1, da Constituição da Coréia do Sul reza que "o Estado deve esforçar-se para desenvolver a economia nacional através do desenvolvimento de ciência e tecnologia, informação e recursos humanos e incentivo à inovação". Quanto a nós, é duro saber que Ucrânia, Mongólia, África do Sul, México, Chile, Índia, Panamá, Colômbia, Uruguai..., foram considerados ambientes mais inventivos e amigáveis à inovação. O Brasil ocupa a 69ª posição no Índice de Inovação Global1. Apesar de sermos vistos como um povo inventivo, essa imagem não tem se convertido em benefícios da nossa comunidade. "Nada é mais poderoso do que a ideia cujo tempo chegou". A citação, que é de Victor Hugo, abre espaço para a compreensão da importância da inovação2. O inventor é, desde a aurora dos tempos, um agente de transformação. Devemos entendê-lo com um olhar no futuro, não no passado. O constitucionalismo é um agente fundamental a esse propósito. Para Wolfgang Hoffmann-Riem, juiz da Corte Constitucional alemã, "o Direito Constitucional também deve estar aberto à inovação"3. Uma hermenêutica inclusiva reclama uma interpretação estatal suave dessas inovações, para que os experts possam medir potenciais externalidades negativas e estudar as formas de contê-las, sem que a liberdade de inovar seja comprometida. O inciso IX do art. 5º da nossa Constituição diz: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". É a liberdade de inovar. A Constituição de 1988 deu à ciência e à tecnologia o destaque de um capítulo próprio. A ele, diversos dispositivos foram inseridos pela Emenda 85, de 2015, resultando no Capítulo IV, da "Ciência, Tecnologia e Inovação". Todos os entes federados devem proporcionar os meios de acesso à ciência, tecnologia, pesquisa e inovação (art. 23, V). O caput do art. 218 diz: "O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação". O § 1º reclama "tratamento prioritário do Estado, tendo em vista o bem público e o progresso da ciência, tecnologia e inovação". O parágrafo único do art. 219 diz que o Estado estimulará a formação e o fortalecimento da inovação nas empresas, bem como nos demais entes, públicos ou privados, a constituição e a manutenção de parques e polos tecnológicos e de demais ambientes promotores da inovação, a atuação dos inventores independentes e a criação, absorção, difusão e transferência de tecnologia. Normativamente, o ambiente é de abundância, mas é preciso dar vida a essas regras, torná-las vivas e ativas entre nós. Até porque inovação não é uma expressão vazia4. A lei complementar 123/2006, no seu art. 64, I, traz o seguinte conceito: "a concepção de um novo produto ou processo de fabricação, bem como a agregação de novas funcionalidades ou características ao produto ou processo que implique melhorias incrementais e efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando em maior competitividade no mercado". Há outras leis apontando um sentido semelhante5. Esse ambiente chegou ao Supremo Tribunal Federal. Segundo o ministro Gilmar Mendes, "o Tribunal não pode se furtar a abarcar situações novas, consequências concretas do mundo real, com base em premissas jurídicas que não são mais totalmente corretas", pois "o apego a tais diretrizes jurídicas acaba por enfraquecer o texto constitucional, pois não permite que a abertura dos dispositivos da Constituição possa se adaptar aos novos tempos, antes imprevisíveis" (ADI-MC 1945, Pleno, 26/5/2011). É o mesmo sentimento do ministro Ricardo Lewandowski, que decidiu: "Na sociedade moderna, a internet é, sem dúvida, o mais popular e abrangente dos meios de comunicação, objeto de diversos estudos acadêmicos pela importância que tem como instrumento democrático de acesso à informação e difusão de dados de toda a natureza" (ADPF 403, monocrática, DJe 1º/8/2016). O ambiente é fruto da Quarta Revolução Industrial. Para Klaus Schwab, presidente do Fórum Econômico Mundial, essa nova face da corrida industrial não envolve apenas máquinas inteligentes e conectadas; seu escopo é amplo. "Estamos observando simultaneamente ondas de avanços em diversas áreas, que vão do sequenciamento genético à nanotecnologia. É a fusão dessas tecnologias e a inovação com as dimensões física, digital e biológica que tornam o fenômeno atual diferente de todos os anteriores. Tecnologias emergentes e inovação em ampla escala têm se difundido mais rapidamente e de maneira mais ampla do que em movimentos do passado. Além disso, os ganhos de escala com a inovação são assombrosos e algumas tecnologias disruptivas parecem demandar muito pouco capital para prosperar"6, diz. A quarta Revolução Industrial culmina na sociedade em rede, sobre a qual Manuel Castells discorre. Ele garante que a internet está transformando a prática das empresas em sua relação com fornecedores e compradores, em sua administração, em seu processo de produção e em sua cooperação com outras firmas, em seu financiamento e na avaliação de ações em mercados financeiros7. Esse solo fez nascer as startups baseadas em plataformas digitais destinadas a promover inovações com um caráter "disruptivo". "Inovação disruptiva" é aquela que estabelece um novo modelo de negócio (business model) capaz de redesenhar, refundar ou substituir toda uma indústria. Por não se encaixar nas regulações vigentes, termina requerendo do hermeneuta judicial ou administrativo um tratamento jurídico inclusivo e igualmente inovador. Isso, para não se estrangular a inovação. Startups também tem lastro constitucional. O § 2º do art. 218 da Constituição, dispõe: "a pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional". O § 4º diz: "a lei apoiará e estimulará as empresas que invistam em pesquisa, criação de tecnologia adequada ao país, formação e aperfeiçoamento de seus recursos humanos". É a base normativa entregue ao progresso das futuras gerações. É preciso dar vida a todos esses comandos legais e constitucionais. Sem inovação não haverá desenvolvimento, que é um dos objetivos fundamentais da República (art. 3o, II, CF). Sem desenvolvimento não haverá progresso (art. 4o, IX, CF). Pessoas de boa índole sofrerão ou morrerão pela falta de diagnósticos médicos ágeis e confiáveis que hoje estão à disposição em qualquer tela de smartphone. Animais serão massacrados pela seca, quando a irrigação é absolutamente possível. Crianças viverão privadas de uma esperança que preenche a existência e entregarão seus talentos para atividades precárias, de pouco ou nenhum valor agregado. Inovação é fundamental e o direito a ela é um direito que assiste às gerações presentes e futuras. A Constituição assim dispõe e o caminho para a sua concretização é um caminho que precisa ser percorrido imediatamente. Não por ostentação ou glamour passageiro, mas por ser, a inovação, o elemento mais palpável para amenizar a dor e o sofrimento conduzindo todos nós a uma vida menos penosa e com mais conforto. Recusar a plena eficácia a esses comandos normativos é como praticar um crime contra a nossa própria gente. Por isso, a hora é agora. Estamos atrasados. É preciso reconhecer e assegurar o direito constitucional à inovação. __________ 1 Global Innovation Index 2017 Report Now Available. Acesso abril/2018. 2 "As startups têm em comum quatro aspectos: baixíssimo investimento, modelo de negócio repetível e escalável, atuação no ramo de inovação tecnológica e início de suas atividades em cenário de incerteza" Diogo Luiz Araújo de Benevides Covêllo. As formas de promoção e incentivo do Estado brasileiro na inovação, p. 467. Já João Pontual de Arruda Falcão anota: "Startups são empresas que criam modelos de negócio altamente escaláveis, a baixos custos e a partir de ideias e tecnologias inovadoras". Startup law Brasil: o direito brasileiro rege mas desconhece as startups. 160 f. Dissertação (mestrado) - Escola de Direito do Rio de Janeiro da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro, 2017, p. 3. 3 Direito, tecnologia e inovação. Coord. Gilmar Mendes, Ingo Wolfgang e Alexandre Zavaglia. São Paulo: Saraiva, 2015, p. 29. 4 Em 1942, Joseph Schumpeter publicou Capitalismo, socialismo e democracia, sobre o desenvolvimento do sistema capitalista e seu futuro, onde ele apresenta o conceito de "destruição criativa". O autor identificou, como elemento do capitalismo, uma estrutura econômica revolucionária que destrói, a partir dela mesma, antigas estruturas e cria novas lógicas econômicas. A destruição criativa seria a primeira de uma série de fatores que contribuiriam para a transformação definitiva de um modo de produção. 5 A lei 11.196/2005, que dispõe sobre incentivos fiscais para a inovação tecnológica, traz no § 1º do art. 17 o conceito de inovação: "Considera-se inovação tecnológica a concepção de novo produto ou processo de fabricação, bem como a agregação de novas funcionalidades ou características ao produto ou processo que implique melhorias incrementais e efetivo ganho de qualidade ou produtividade, resultando maior competitividade no mercado". A lei 10.973/2004 já dispunha sobre incentivos à inovação e à pesquisa científica e tecnológica no ambiente produtivo. Segundo o inciso IV do art. 2º, considera-se inovação: "introdução de novidade ou aperfeiçoamento no ambiente produtivo e social que resulte em novos produtos, serviços ou processos ou que compreenda a agregação de novas funcionalidades ou características a produto, serviço ou processo já existente que possa resultar em melhorias e em efetivo ganho de qualidade ou desempenho" (Redação pela lei 13.243/2016). 6 Schwab, Klaus. A quarta revolução industrial. Trad. Daniel Moreira Miranda. SP: Edipro, 2016, p. 65. 7 Castells, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Trad. Maria Luiza X. de A. Borges. Revisão Paulo Vaz. Rio de Janeiro: Zahar, 2003, p. 56.
Tive a honrosa oportunidade de, convidado pela Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor do Senado Federal, presidida pelo senador Ataídes Oliveira (PSDB/TO), participar na última quarta-feira, dia 11/4/2018, de audiência pública para debater a transparência e demais assuntos relacionados ao Sistema S. Enfatizei que as entidades do Sistema não são empresas privadas. Também não são autarquias públicas. Mesmo revestidas de uma roupagem institicional privada, a vocação dessas entidades é de fomento social de ações de interesse público destinadas ao aperfeiçoamento da mão de obra trabalhadora. Elas precisam ver reconhecida, sem embaraços ou deturpações, a sua liberdade. Mas essa liberdade há de ser vivida em proveito da finalidade do Sistema, que é social, voltada para a comunidade por meio de iniciativas de interesse público. Numa democracia marcada por necessidades inadiáveis, pessoas jurídicas de direito privado podem contar com o fomento estatal em proveito da realização material de direitos sociais. Essas entidades não prestam serviço público delegado pelo Estado, mas atividade privada de interesse público. O Estado incentiva mediante subvenção garantida pelas contribuições parafiscais destinadas a essa finalidade. Isso não transforma as entidades do Sistema S em entes estatais. Impensável cogitar que suas atividades se deem distantes da comunidade. Muito menos que ela não terá acesso fácil e direto às entidades cuja razão de existir é a qualificação profissional dos trabalhadores. É natural que deveres coletivos de natureza social requeiram ampla, sincera e engajada participação popular. Essa é uma mensagem clara no texto da Constituição de 1988. O Tribunal de Contas da União, no exercício de suas competências, há de ter em mente que sendo as entidades do Sistema S pessoas jurídicas de direito privado - e a sua forma de financiamento não esvazia esse fato -, o espaço para incursões em sua estrutura é sempre balizado pelo diálogo institucional de um lado e o princípio da legalidade do outro. O diálogo institucional propositivo iniciado pelo TCU exorta o Sistema S a melhorar a sua governança e costuma ser feito por meio de recomendações posteriores a auditorias, com amplo espaço para se ouvir as diferentes vozes que integram o Sistema, todas elas dotadas de garantias constitucionais. Desse diálogo nasce o aperfeiçoamento do Sistema, que deve implementar novas práticas, alterar procedimentos ou dar início a outras formas de execução de sua finalidade. O ambiente há de ser civilizado e convidativo, marcado pelo bom senso, compreensão e elevado espírito público. Há de haver um espaço para a cooperação. Mas o fato incontestável é que o Sistema há de ter deferência à comunidade que lhe fundamenta a existência. Ele não é um fim em si mesmo, nem seus integrantes podem conduzir os destinos das entidades desamarrados dos compromissos atrelados à finalidade do Sistema. Tudo isso tem robusta base constitucional. Daí o dever de transparência. Vale como inspiração a frase dita em 1914 pelo então presidente da Suprema Corte dos Estados Unidos, Louis Brandeis: "A luz do sol é o melhor desinfetante". O Justice se referia aos assuntos da República. Dimana da própria Constituição o dever que o Sistema S tem de atuar em sintonia com a comunidade. Suas ações não podem se dar cobertas pelo véu do segredo. Difícil conceber, por exemplo, que um membro beneficiado por uma das entidades do Sistema S possa ser privado de meios para uma interação eficaz caso queira fazer críticas, denúncias, questionamentos ou sugestões. São desses elementos que as instituições inclusivas se constituem. Envolvimento comunitário para que, a partir da transparência, possam estar ligados ao controle finalístico e à prestação de contas que faz o TCU, como o faz socialmente a imprensa, a sociedade civil organizada e as pessoas para quem os direitos sociais foram construídos numa jornada que cruzou o tempo. O Sistema S nasceu para empoderar trabalhadores, não para enriquecer patrões. O ethos é social. As entidades não podem viver da adrenalina dos negócios. Sua missão é agir em favor da comunidade, não em seu prejuízo. Por meio de trabalhadores qualificados, com uma formação de excelência, a prosperidade é capaz de colorir o horizonte, reduzindo desigualdades. A formação para o trabalho incrementa a isonomia e colabora na busca do progresso. Quando as águas do mar sobem, todas as jangadas se elevam. Nesse particular, o princípio da legalidade e o Congresso são vetores necessários ao processo de aperfeiçoamento do Sistema S, mas decorre diretamente da Constituição a base normativa segundo a qual não pode haver qualquer espaço para a indevida constituição de castas refratárias ao dever comunitário de transparência. Essa foi a mensagem que tentei deixar na audiência pública realizada dia 11/4/2018 pela Comissão de Transparência, Governança, Fiscalização e Controle e Defesa do Consumidor do Senado Federal. A íntegra do estudo que apresentei está disponível, bem como o vídeo da minha fala no Senado?.
segunda-feira, 2 de abril de 2018

Prisão em segunda instância: A hora do STF

Ninguém jamais viu algo assim. Uma Suprema Corte pressionada por um país à beira de um ataque de nervos para que decida sobre a liberdade de um líder político nacional que, após uma grave condenação imposta por duas instâncias de um Judiciário independente, despenca abismo abaixo na vida pública da nação. Na iminência do cárcere alheio, é o Supremo Tribunal Federal que suplica pela sua própria liberdade. É preciso recordar o caminho. Em 10/11/2016, o Supremo, pelo Plenário Virtual, reconheceu a repercussão geral da questão relativa à legitimidade da execução provisória de sentença condenatória criminal fixando a seguinte tese do Tema 925: "A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo art. 5º, LVII, da Constituição"1. A tese repetiu a decisão tomada em 17/2/2016, no habeas corpus 126.292 (min. Teori Zavascki), que, por 7 votos de maioria, entendeu que a Constituição admite a prisão do condenado após a decisão em segundo grau - posteriormente à condenação por Tribunal de Justiça ou por Tribunal Regional Federal -, independentemente do trânsito em julgado da decisão, isto é, mesmo cabíveis recursos especial e extraordinário. Ficaram vencidos os ministros Rosa Weber, Marco Aurélio, Celso de Mello e Ricardo Lewandowski. Foi um reencontro do STF consigo mesmo. Era essa a posição da Corte desde a promulgação da Constituição, em 19882, até 5/2/2009, quando, com o julgamento do HC 84.078 (min. Eros Grau), passou-se a entender, por 7 x 4, que a Constituição impedia a execução provisória da pena. Segundo a decisão, a ampla defesa "engloba todas as fases processuais, inclusive as recursais de natureza extraordinária", de modo que "a execução da sentença após o julgamento do recurso de apelação significa, também, restrição do direito de defesa". Dos atuais componentes, concederam a ordem os ministros Ricardo Lewandowski, Celso de Mello, Marco Aurélio e Gilmar Mendes. A ministra Cármen Lúcia a denegou. Tudo gira em torno da interpretação do art. 5º, LVII, da Constituição, que diz: "ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória". É o princípio da presunção de não culpabilidade. Acontece que o Supremo não aprovou, após a definição da tese do Tema 925 da repercussão geral e dos precedentes que se seguiram, uma súmula vinculante para conferir efeitos erga omnes e eficácia vinculante à posição. Posição que diz: "a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau recursal, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo art. 5º, LVII, da Constituição". A Corte pode, de ofício, editar enunciado de súmula que terá efeito vinculante em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública direta e indireta, nas esferas federal, estadual e municipal (art. 2º da lei 11.417/2006). Segundo o art. 354-E do Regimento Interno, a proposta poderá versar sobre questão com repercussão geral reconhecida, caso em que poderá ser apresentada por qualquer Ministro logo após o julgamento de mérito do processo, para deliberação imediata do Pleno na mesma sessão. Repetindo: "poderá ser apresentada por qualquer Ministro logo após o julgamento de mérito do processo, para deliberação imediata do Tribunal Pleno na mesma sessão". Mas o Supremo nada fez. Posição diversa foi a adotada em 19/11/2009, quando a Corte, após apreciar habeas corpus e reafirmar a sua jurisprudência na sistemática da repercussão geral, julgou o recurso extraordinário 602.072 (min. Cezar Peluso), fixando a tese do Tema 238: "A homologação da transação penal prevista no art. 76 da lei 9.099/1995 não faz coisa julgada material e, descumpridas suas cláusulas, retoma-se a situação anterior, possibilitando-se ao Ministério Público a continuidade da persecução penal mediante oferecimento de denúncia ou requisição de inquérito policial". A tese virou a súmula vinculante 35. Há mais. Em 23/2/2006, o pleno apreciou o habeas corpus 82.959 (min. Marco Aurélio), definindo que viola a garantia da individualização da pena - art. 5º, XLVI, da Constituição - a imposição, mediante norma, do cumprimento da pena em regime integralmente fechado. Declarou-se a inconstitucionalidade do art. 2º, § 1º, da lei 8.072/19903. A posição virou a súmula vinculante 26: "Para efeito de progressão de regime no cumprimento de pena por crime hediondo, ou equiparado, o juízo da execução observará a inconstitucionalidade do art. 2º da lei 8.072/1990, sem prejuízo de avaliar se o condenado preenche, ou não, os requisitos objetivos e subjetivos do benefício, podendo determinar, para tal fim, de modo fundamentado, a realização de exame criminológico". O mesmo se deu com as súmulas vinculantes 10, 36 e 454. Mas nada disso ocorreu após o julgamento do habeas corpus 126.292 e da fixação da tese do Tema 925 da repercussão geral. Essa ausência de efeitos erga omnes e eficácia vinculante da nova posição do STF - que de nova não tem nada, pois prevaleceu por décadas - fez com que o min. Celso de Mello, em 1º/7/2016, concedesse liminar no habeas corpus 135.1005, para suspender, cautelarmente, a execução de mandado de prisão expedido contra o paciente. Recordou, o min. Celso, as razões da decisão: "notadamente porque, no momento em que por mim deferido aquele provimento cautelar (em 1º/7/2016), havia somente uma decisão proferida em processo de índole meramente subjetiva (HC 126.292/SP), vale dizer, uma decisão destituída de eficácia vinculante ou de repercussão geral (...)". Ao tempo, sequer a tese do Tema 925 da repercussão geral havia vindo à tona. A batalha seguiu seu curso. Em 19/5/2016, foram ajuizadas as ações declaratórias de constitucionalidade 43 e 44. A primeira, pelo Partido Ecológico Nacional - PEN. A segunda, pelo Conselho Federal da OAB. Postulam a declaração da constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, com redação dada pela lei 12.403/2011, que prevê: "Ninguém poderá ser preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente, em decorrência de sentença condenatória transitada em julgado ou, no curso da investigação ou do processo, em virtude de prisão temporária ou prisão preventiva". Seriam nulos os pronunciamentos judiciais que, sem a declaração de inconstitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, implicam a execução provisória de decisão condenatória, ante a inobservância do art. 97 da Constituição (cláusula de reserva de plenário)6. Em 5/10/2016, o relator, min. Marco Aurélio, trouxe o voto quanto às cautelares nas ADC's. Destacou a necessidade de haver uma decisão vinculante: "Vejo, a mais não poder, a necessidade de apreciação da matéria em processo objetivo, com ampla cognição, efeitos vinculantes e eficácia geral". Para o min. Marco Aurélio, a execução provisória da sentença penal condenatória revela-se incompatível com o direito fundamental do réu de ser presumido inocente até que sobrevenha o trânsito em julgado de sua condenação criminal. Ficou vencido7. Prevaleceu a divergência do min. Edson Fachin, segundo a qual "inexiste antinomia entre a especial regra que confere eficácia imediata aos acórdãos somente atacáveis pela via dos recursos excepcionais e a disposição geral que exige o trânsito em julgado como pressuposto para a produção de efeitos da prisão decorrente de sentença condenatória a que alude o art. 283 do CPP". Indeferindo a cautelar, a Corte na prática adiantou todo o mérito das ADC's ao pontuar o seguinte: "Declaração de constitucionalidade do art. 283 do Código de Processo Penal, com interpretação conforme à Constituição, assentando que é coerente com a Constituição o principiar de execução criminal quando houver condenação assentada em segundo grau de jurisdição, salvo atribuição expressa de efeito suspensivo ao recurso cabível". Indeferiu-se a cautelar, vencidos os ministros Marco Aurélio, Rosa Weber, Ricardo Lewandowski, Celso de Mello, e, em parte, o ministro Dias Toffoli8. Esse julgamento contou com ampla participação dos interessados. Falaram os requerentes, Partido Ecológico Nacional - PEN e Conselho Federal da OAB. Falou ainda o procurador-Geral da República. Também falaram os seguintes amici curiae: Defensoria Pública da União; Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro; Instituto Brasileiro de Ciências Criminais - IBCCRIM; Associação dos Advogados de São Paulo - AASP; Instituto de Defesa do Direito de Defesa; Instituto dos Advogados de São Paulo; Associação Brasileira dos Advogados Criminalistas - ABRACRIM; Instituto Ibero Americano de Direito Público Capítulo Brasileiro - IADP. O Supremo ingressou tanto no mérito das ADC's que o min. Gilmar Mendes suscitou questão de ordem para que se encerrasse a questão, apreciando-se logo ali o mérito. Disse o ministro: "talvez, se formada a maioria, devêssemos - na linha do que já fizemos em outro momento - também, converter esse julgamento em julgamento de mérito, até porque, senão, vamos ter outro debate sobre a eficácia desse julgamento, uma vez que estaremos apenas indeferindo a liminar. A mim, me parece que coloco essa questão como uma questão de ordem para que possamos definir. A mim, me parece que, se estamos até tarde, hoje, é em razão de termos uma definição. E é importante, então, que essa decisão tenha eficácia geral, efeito vinculante". O pedido tem o aconchego da jurisprudência do STF. São vários os precedentes de conversão de julgamento de cautelar, ou de referendo de cautelar, em apreciação do mérito no âmbito do controle abstrato de constitucionalidade: ADI 5253 (min. Dias Toffoli, Pleno, DJe 1º/8/2017), ADI 5357 (min. Edson Fachin, Pleno, DJe 11/11/2016), ADPF 378 (rel. p/acórdão min. Roberto Barroso, Pleno, DJe 8/3/2016), ADI 4925 (min. Teori Zavascki, Pleno, DJe 10/3/2015), ADI 4163, min. Cezar Peluso, DJe 1º/3/2013). Tendo havido a manifestação exaustiva de todos os intervenientes na causa, os necessários e os facultativos (amici curiae), e a situação processual já permitindo cognição plena e profunda do pedido, é possível o julgamento imediato em termos definitivos do caso. Foi esse o pedido. O min. Celso de Mello, que havia acompanhado o min. Marco Aurélio deferindo a cautelar, exortou a presidente, min. Cármen Lúcia, a definir se seria o caso de, para dar segurança jurídica à questão, apreciar logo o mérito. "O ministro-relator é quem tem a condução do processo. Por isso, ministro Marco Aurélio, eu faço a indagação que o Ministro Celso agora me põe, sobre a proposta do Ministro Gilmar Mendes de convolação em julgamento definitivo", indagou a Presidente, mostrando sua disposição em definir, com efeitos erga omnes e eficácia vinculante, essa tão relevante discussão. O min. Marco Aurélio, contudo, recusou a questão de ordem. "Há uma impossibilidade física para ter-se esse julgamento: o relator não está habilitado a proceder ao relato - precisaríamos, talvez, mesmo no improviso, mais umas três horas - nem a proferir voto. Como podemos ter julgamento definitivo?", justificou. As ADC's não tiveram o seu mérito julgado e a questão segue sem posição vinculante até hoje. Em 5/12/2017, as ações foram liberadas para inclusão em pauta para julgamento definitivo. Agora consta como item 1 da pauta do pleno para quarta-feira, dia 4/4/2018, o habeas corpus 152.752, de relatoria do min. Edson Fachin, cujo paciente é o ex-presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva. O paciente foi condenado em primeiro grau pela prática dos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, provimento confirmado, com ampliação da pena, em segundo grau. O Tribunal Regional Federal da 4ª região determinou o início da execução da pena após o exaurimento da jurisdição ordinária. Pleiteia-se a concessão da ordem para o fim de vedar a execução provisória da pena até decisão final, transitada em julgado, atinente ao processo-crime 5046512-94.2016.4.04.7000/PR, em atenção ao art. 5º, LVII da Constituição, e, subsidiariamente, a concessão da ordem para garantir ao Paciente o direito de permanecer em liberdade até o exaurimento da jurisdição do STJ. O ministro relator indeferiu o pedido de liminar, por não se tratar "de decisão manifestamente contrária à jurisprudência do STF, ou de flagrante hipótese de constrangimento ilegal". Em seguida, afirmando haver "relevante questão jurídica e necessidade de prevenir divergência entre as Turmas quanto à questão relativa à possibilidade de execução criminal após condenação assentada e segundo grau de jurisdição", encaminhou o habeas corpus à deliberação do Plenário. A tese a ser fixada pretende definir, mais uma vez, se o paciente pode iniciar o cumprimento da pena de prisão antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Até o fechamento dessa coluna havia, além de um pedido de extensão do salvo conduto concedido pelo STF ao ex-presidente, quatro pedidos de ingresso como amici curiae. Evidente que esse habeas corpus definirá a posição de todo o sistema de justiça do país acerca do momento de cumprimento da pena pela condenação criminal. O min. Dias Toffoli, nos derradeiros debates antes do adiamento do julgamento do referido habeas corpus, semana passada, registrou: "É um tema que (...) na verdade, embora não estejamos aqui a julgar as ações abstratas, mas ele se abstrativou, e necessitará, portanto de um aprofundamento". Foi um comentário na linha do feito pelo min. Nelson Jobim, no passado, ao votar no habeas corpus 82.959, relativo à declaração de inconstitucionalidade do § 1º do art. 2º da lei 8.072/90, que vedava a progressão de regime para condenados por crimes hediondos. Então presidente do STF, o min. Jobim anotou: "Se os Colegas concordarem, gostaria de explicitar, como já feito pelo Ministro Sepúlveda Pertence, que, na verdade, não estamos decidindo o caso concreto, estamos decidindo o regime de progressão ou não do sistema". Claro. Não há dúvida. O STF precisa sair da sessão do dia 4 de abril com uma posição derradeira. A solução é a imediata aprovação, na mesma sessão, do que seria a súmula vinculante 57. Segundo o art. 354-E do Regimento, a proposta de edição de súmula vinculante poderá versar sobre questão com repercussão geral reconhecida, caso em que poderá ser apresentada por qualquer ministro logo após o julgamento de mérito do processo, para deliberação imediata do Tribunal Pleno na mesma sessão. A edição dependerá de decisão tomada por 2/3 dos membros do STF (§ 3º do art. 2º da lei 11.417/2006). Da decisão judicial ou do ato administrativo que contrariar enunciado de súmula vinculante, negar-lhe vigência ou aplicá-lo indevidamente caberá reclamação ao STF, sem prejuízo dos recursos ou outros meios admissíveis de impugnação. O min. Luís Roberto Barroso, ao votar as cautelares nas ADC's 43 e 44, já havia cogitado a necessidade de edição de súmulas vinculantes. Tanto que anotou: "É possível pensar em medidas que favoreçam o cumprimento das decisões do STJ e do STF, como a edição de súmulas vinculantes em matéria penal nos casos em que se verificar maior índice de descumprimento de precedentes dos tribunais" (p. 78 do acórdão, parágrafo 63). Surpreende não ter havido, até aqui, a aprovação da súmula vinculante. A procuradora-Geral da República, Dra. Raquel Rodge, poderá se manifestar na sessão. O mesmo quanto aos membros da Comissão de Jurisprudência. É da tradição da Corte essa postura racionalizadora. Como recordou o min. Ricardo Lewandowski, noutra oportunidade, "as últimas súmulas vinculantes que ditamos foram propostas e ditadas aqui, em Plenário, e aprovadas de viva voz pelo eminente procurador da República. A meu ver, data venia, seria uma medida até de economia processual, no sentido amplo da palavra, que nós já procedêssemos imediatamente a essa aprovação. Até porque os integrantes da Comissão de Jurisprudência - e hoje tive a honra de ser cientificado por Vossa Excelência que eu integro essa Comissão - estão todos aqui e que, se tiverem alguma objeção, já se manifestarão desde logo. Portanto, eu encaminharia, com todo o respeito, uma proposta no sentido de que nós já, desde logo, dentro da medida do possível, propuséssemos a redação desta súmula"9. A credibilidade de Supremas Cortes em todo o mundo é um cristal. Não é tarefa fácil colar, caso se parta ao meio. Por isso é tão importante que o Supremo entregue à sua comunidade, na quarta-feira, uma posição definitiva dotada de efeitos erga omnes e eficácia vinculante sobre o tema, como se dá com as súmulas vinculantes. Os tumultos da política passam. A Suprema Corte permanece10. __________ 1 ARE 964.246, Min. Teori Zavascki. 2 Para ilustrar, a ementa do HC 68.726 (Min. Néri da Silveira, 28.6.1991): "A ordem de prisão, em decorrência de decreto de custódia preventiva, de sentença de pronúncia ou de decisão e órgão julgador de segundo grau, é de natureza processual e concernente aos interesses de garantia da aplicação da lei penal ou de execução da pena imposta, após o devido processo legal. Não conflita com o art. 5º, inciso LVII, da Constituição. De acordo com o § 2º do art. 27 da lei 8.038/1990, os recursos extraordinário e especial são recebidos no efeito devolutivo. Mantida, por unanimidade, a sentença condenatória, contra a qual o réu apelara em liberdade, exauridas estão as instâncias ordinárias criminais, não sendo, assim, ilegal o mandado de prisão que órgão julgador de segundo grau determina se expeça contra o réu". 3 O Tribunal, por maioria, deferiu o pedido de habeas corpus e declarou, incidenter tantum, a inconstitucionalidade do § 1º do artigo 2º da lei 8.072/1990, nos termos do voto do relator, vencidos os ministros Carlos Velloso, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie, Celso de Mello e Presidente (min. Nelson Jobim). O Tribunal, por votação unânime, explicitou que a declaração incidental de inconstitucionalidade do preceito legal em questão não gerará consequências jurídicas com relação às penas já extintas nesta data, pois esta decisão plenária envolve, unicamente, o afastamento do óbice representado pela norma ora declarada inconstitucional, sem prejuízo da apreciação, caso a caso, pelo magistrado competente, dos demais requisitos pertinentes ao reconhecimento da possibilidade de progressão. 4 Súmula vinculante 10: "Viola a cláusula de reserva de plenário (CF, artigo 97) a decisão de órgão fracionário de Tribunal que embora não declare expressamente a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público, afasta sua incidência, no todo ou em parte"; Súmula Vinculante 36: "Compete à Justiça Federal comum processar e julgar civil denunciado pelos crimes de falsificação e de uso de documento falso quando se tratar de falsificação da Caderneta de Inscrição e Registro (CIR) ou de Carteira de Habilitação de Amador (CHA), ainda que expedidas pela Marinha do Brasil"; e súmula vinculante 45: "A competência constitucional do Tribunal do Júri prevalece sobre o foro por prerrogativa de função estabelecido exclusivamente pela constituição estadual". 5 "Nem se invoque, finalmente, o julgamento plenário do HC 126.292/SP - em que se entendeu possível, contra o meu voto e os de outros 03 (três) eminentes Juízes deste E. Tribunal, 'a execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário' -, pois tal decisão, é necessário enfatizar, pelo fato de haver sido proferida em processo de perfil eminentemente subjetivo, não se reveste de eficácia vinculante, considerado o que prescrevem o art. 102, § 2º, e o art. 103-A, 'caput', da Constituição da República, a significar, portanto, que aquele aresto, embora respeitabilíssimo, não se impõe à compulsória observância dos juízes e Tribunais em geral", anotou o Min. Celso de Mello. 6 Constituição, art. 97. Somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público. 7 O min. Marco Aurélio expôs ainda em seu voto: "Se este Pleno suplanta, no controle objetivo de constitucionalidade, o que não acredito, a literalidade do artigo 5º, inciso LVII, da Lei Maior, admitindo a gradação da formação da culpa para fins de incidência da garantia em jogo, é necessário admitir que a certeza jurídica não ocorre em segunda instância, mas, sim, perante o Superior Tribunal de Justiça. Caso vencido na extensão maior do voto, defiro a liminar para, reconhecendo a constitucionalidade do artigo 283 do Código de Processo Penal, determinar a suspensão de execução provisória de réu cuja culpa esteja sendo questionada no Superior Tribunal de Justiça, bem assim a libertação daqueles presos com alicerce em fundamentação diversa". 8 O Min. Dias Toffoli votou pela concessão, em parte, da medida cautelar, para o fim de i) se determinar a suspensão das execuções provisórias de decisões penais ordenadas na pendência de julgamento de recurso especial (REsp) ou de agravo em recurso especial (AREsp) que tenham por fundamento as mesmas razões de decidir do julgado proferido pelo Plenário do STF no HC nº 126.292/SP; e ii) se obstar que, na pendência de julgamento de recursos daquela natureza, sejam deflagradas novas execuções provisórias com base nas mesmas razões. 9 A posição foi externada - e vencedora - dia 11/6/2008, no pleno do STF, por ocasião dos debates para a aprovação das Súmulas Vinculantes 7 e 8. Ela se repetiu em outras ocasiões. 10 Uma vez aprovada a súmula vinculante, as ADC's 43 e 44, que, na prática, já tiveram seu mérito apreciado, poderiam ganhar o mesmo destino da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4071, cuja decisão monocrática do Min. Menezes Direito, relator, foi a seguinte: "(...) A questão objeto da presente ação direta de inconstitucionalidade foi recentemente decidida pelo Plenário deste Supremo Tribunal Federal, em 17/9/2008, no julgamento dos recursos extraordinários de nºs 377.457 e 381.964, ambos da relatoria do Ministro Gilmar Mendes. Naquela oportunidade, firmou-se o entendimento de que o conflito aparente entre lei ordinária e lei complementar não deveria ser resolvido pelo critério hierárquico, mas pela natureza da matéria regrada, de acordo com o que dispõe a Constituição Federal. (...) Na mesma sessão de julgamento, o Plenário rejeitou a possibilidade de atribuição de efeitos prospectivos àquela decisão, mediante a aplicação analógica do art. 27 da Lei nº 9.868/99, por não vislumbrar razões de segurança jurídica suficientes para a pretendida modulação. Claro, portanto, que a matéria objeto desta ação direta de inconstitucionalidade já foi inteiramente julgada pelo Plenário, contrariamente à pretensão do requerente, o que revela a manifesta improcedência da demanda. Ante o exposto, com fulcro no art. 4º da Lei nº 9.868/99, indefiro a petição inicial".
Não é fácil definir felicidade. Então falemos primeiro de dor e sofrimento. Em fevereiro de 1694, Dandara, uma guerreira negra no Brasil colonial, esposa de Zumbi dos Palmares, se atirou de uma pedreira ao abismo, após ter sido presa. Ela jamais aceitaria retornar à condição de escrava. A sua morte ajudou a ilustrar uma ferida de difícil cicatrização: a vergonha perpétua por sabermos que os nossos ancestrais foram capazes de celebrar, por três séculos, a crueldade da escravidão. Fizeram para dispor de privilégios, por terem uma inclinação a oprimir os famintos de direitos e para ganharem dinheiro às custas da humilhação do semelhante. Nenhum país do mundo foi tão longe, por tanto tempo, com a escravidão como o Brasil. Corajosa, Dandara se atirou da pedreira. Perdeu a vida. Manteve a dignidade. Em fevereiro de 2017, também no nordeste, em Fortaleza, a travesti Dandara dos Santos, cujo nome ela escolheu em homenagem à guerreira negra, foi barbaramente assassinada por um grupo de homens. A tortura foi gravada e fartamente divulgada nas redes e mídias sociais. A primeira dilaceração foi a das palavras: "viado", "arrombado", "baitola!", "mundiça!", gritavam, orgulhosos pelo o que achavam ser coragem, mas era pura covardia. Palavras são armas que machucam. Na África do Sul, chamar um negro de "kaffir" é considerado discurso do ódio. Por meio dessa palavra os brancos no apartheid impunham seu poder sobre a comunidade negra, destruindo a sua autoestima. Mas não foram apenas as palavras que mataram Dandara. Paus, pedras, golpes físicos e tiros foram usados para interromper uma caminhada de 42 anos. Dandara, infectada pelo HIV, estava sozinha e indefesa. Ela foi assassinada no Conjunto Palmares, mesmo nome do Quilombo de onde a heroína negra do Brasil colonial tornou-se livre apenas com a morte. Duas Dandaras. Três séculos. É o império do preconceito reinando sobre pessoas que foram condenadas não por crimes que cometeram, mas por serem quem eram. A primeira Dandara era uma mulher negra numa nação escravocrata. A segunda, uma travesti num ambiente homofóbico. São histórias de dor e sofrimento. Mas também há relatos de felicidade. Na manhã da última quinta-feira, o Tribunal Superior Eleitoral, apreciando a Consulta 060405458, de relatoria do ministro Tarcísio Vieira, formulada pela senadora Fátima Bezerra, definiu que a reserva de vagas para mulheres quanto a registros de candidaturas em campanhas eleitorais constante da lei 9.504/1997, contempla as mulheres transexuais e travestis. Talvez tenha sido a mais paradigmática decisão do TSE quanto à proteção de minorias no processo eleitoral em toda a sua história. No mesmo dia, à tarde, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275, reconhecendo o direito à mudança de (pre)nome e sexo de transexuais e travestis, independente de cirurgia de transgenitalização, de laudos de terceiros e de ação judicial. Tanto no voto do relator da Consulta no TSE, como no do decano, ministro Celso de Mello, no STF, o direito à felicidade foi utilizado aliado ao princípio da dignidade da pessoa humana, de explícita e insistente presença constitucional, a partir logo dos fundamentos da República (art. 1o, III). Os dois julgamentos abrem um espaço que incrementa o respeito e a consideração pela comunidade dos travestis e transgêneros no Brasil. Mas essas vitórias também nos empurram à reflexão: quantos Brasis há no Brasil? Pouco mais de 90 dias após o assassinato de Dandara dos Santos, em 2017, Gisele Alessandra Schmidt e Silva usou a tribuna do Supremo para levar suas razões como representante do amicus curiae Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros nos autos da citada ADI 4275. Foi a primeira advogada transexual a usar essa tribuna. Tinha apenas dois anos de formada. Ela abriu sua fala dizendo ser uma sobrevivente. Supremas Cortes e Cortes Constitucionais costumam requerer licenças adicionais, carteiras especiais, habilitações extras, tempo de formado, senioridade e outros requisitos para que advogados possam atuar. O Brasil, contudo, escolheu o caminho da inclusão. Somos uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Gisele não teria o direito de falar na grande maioria das Supremas Cortes do mundo. Mas somos melhores nesse particular, porque optamos por não copiar ninguém. São dois Brasis possíveis. O primeiro, o da barbárie medieval. O segundo, das conquistas iluministas: a razão, a tolerância e os direitos fundamentais. O primeiro, um Brasil sem o direito. O segundo, uma nação conduzida por uma Constituição generosa e uma jurisdição constitucional independente. No primeiro episódio, dor e sofrimento. No segundo, o direito à felicidade sendo assegurado às minorias. Se há algo fácil de compreender nos enigmas do direito à felicidade é que ele se presta a reduzir a dor e o sofrimento na maior medida possível daqueles grupos ou pessoas que sentem com intensidade o fardo pesado da injustiça. O art. 3o, I, da Constituição, apresenta como um dos objetivos fundamentais da República construir uma sociedade livre, justa e solidária. É um comando que reclama concretização. O direito à felicidade tem sido a forma genuinamente brasileira de enxergar a dignidade da pessoa humana. Léopold Sédar Senghor disse que, se a razão é europeia, a emoção é africana. É o nosso caso. Uma nação impregnada do DNA africano, majoritariamente negra, construiu um jeito de ser único e, como a Constituição também é cultura, essa realidade termina influenciando a hermenêutica do STF. Feliz do povo que tem originalidade e sábio é o país que conhece e reconhece a sua própria história. Para a Corte Constitucional sul-africana, dignidade é o ubuntu, o compromisso africano ancestral que conecta a comunidade construindo laços de irmandade e proteção recíproca, estimulando uma compreensão coletivista da existência. Para nós, brasileiros, dignidade é felicidade, vista como o sentido da vida, uma vida que, segundo a própria Constituição, há ter qualidade (art. 225, caput). Nos julgamentos da Consulta, pelo TSE, e da ADI 4275, pelo STF, consolidou-se a integração ao constitucionalismo brasileiro clássico que nasceu mergulhado no compromisso de consideração aos projetos de felicidade das pessoas. Falar do direito à felicidade é falar das raízes do nosso constitucionalismo. Basta recordar as lições de Pimenta Bueno: "O fim das sociedades, o móvel ou principio constitutivo dellas, não é nenhum outro senão de promover e segurar a felicidade dos homens". Na sequência, ele arremata: "Se o exercício bem regulado dos direitos políticos funda a liberdade política dos povos, o exercício bem regulado dos direitos civis funda a sua liberdade civil, o seu bem-ser. São os princípios vivificantes do homem; se a liberdade civil não existe, tudo o mais é uma mentira; cumpre mesmo não olvidar que os direitos ou liberdades políticas por si mesmas não são as que fazem a felicidade pública, não são valiosas senão como meios de garantir os direitos ou liberdades civis. De que serviria o homem livre morrendo à fome?"1. A transcrição de Pimenta Bueno é de 1857, num ambiente que respirava o Iluminismo. Sérgio Paulo Rouanet afirma que o novo Iluminismo proclama sua crença no pluralismo e na tolerância e combate todos os fanatismos, sabendo que eles não se originam da manipulação consciente do clero e dos tiranos, como julgava a Ilustração, e sim da ação e de mecanismos sociais e psíquicos muito mais profundos. Concretizar a Constituição à luz do direito à felicidade exibe ao constitucionalismo global um tipo de compromisso com as nossas origens que há de inspirar o mundo. Isso porque, tudo o que é decente, e original, é inspirador. Não custa recordar que o Conselho de Estado, na sua primeira reunião, em 2 de junho de 1822, exigiu a convocação de uma Assembleia Geral Constituinte e o fez com a seguinte passagem: "Senhor, este é o momento em que se decide a felicidade ou a ruína do Brasil...Leis europeias podem trazer a felicidade para europeus, de maneira alguma, porém, a (sul) americanos". O documento foi assinado pelos procuradores-Gerais da província do Rio de Janeiro, Joaquim Gonçalves Ledo e Joaquim Mariano de Azevedo Coutinho, e pelo governador geral do Estado Cisplatino, Don Lucas Jose Obes. O nosso constitucionalismo é o constitucionalismo da coragem, a ponto de Ulisses Guimarães, no histórico discurso que proferiu em 5 de outubro de 1988, por ocasião da promulgação da Constituição Federal, ter afirmado que a primeira marca da Constituição era a marca da coragem, "matéria-prima da civilização", disse. Não é a primeira vez que o Brasil opta pela originalidade. Somos bons nisso. Pelé, em 1958, foi forçado a jogar imitando os europeus. Recusou. Nos campos, apresentou um futebol que não era força, mas beleza; não era competição, mas arte; não era técnica, mas uma combinação de ritmo e alegria. Ganhamos. A "ginga" é algo nosso, fruto da grande penetração negra na cultura brasileira. Saímos da razão europeia e abraçamos a emoção africana. O resultado? Triunfo e inspiração. Não devemos nos envergonhar das nossas emoções. É essa combinação humanista que fez nascer o direito à felicidade que tem sido compreendido pelo ministro Celso de Mello - e agora também pelo TSE a partir do ministro Tarcísio Vieira - como uma dimensão brasileira da dignidade humana, assim como se dá com a interpretação que a Corte Constitucional da África do Sul faz quanto ao ubuntu, reconhecendo-o como a maneira africana de enxergar o valor ocidental da dignidade. As referidas decisões do TSE e do STF resgataram as raízes do nosso constitucionalismo que são raízes irrigadas pela crença na humanidade. Em 3 de junho de 1822, José Bonifácio de Andrada abriu a Assembleia Geral Constituinte com a seguinte mensagem: "Deixai-o sair do caos de instituições contraditórias que fazem de sua prudência hipocrisia, de sua felicidade, obra do acaso e do crime, e vereis que o homem é mais bom do que mau". Ele persistiu nos anjos bons da nossa natureza. A identidade da guerreira negra Dandara foi a sua condenação. O mesmo se deu com a Dandara branca, do Conjunto Palmares, em Fortaleza. O pedido de clemência de Dandara dos Santos, impregnado de humanidade, envergonhou seus algozes. Mostrou que ela, até o último minuto, acreditou no ser humano. Foi um comportamento inteiramente harmônico com as raízes humanistas que o nosso constitucionalismo tem sabido preservar. Mesmo assim, mataram Dandara. O Poder Judiciário, concretizando a Constituição, recorreu mais uma vez ao direito à felicidade para expandir direitos fazendo-os chegar a grupos vulneráveis para quem a jurisdição constitucional foi feita. As decisões promovem um retorno ao clássico deixado por figuras públicas de extraordinária qualidade como Pimenta Bueno e José Bonifácio. Sob a invocação do direito à felicidade, o STF assegurou direitos aos transgêneros assim como o TSE o fez quanto às mulheres transgênero e travestis. Foi uma forma de ajudar a cicatrizar feridas abertas em nossa sociedade. Grupos vulneráveis foram protegidos juridicamente pela crença secular na razão, na tolerância e na proteção a direitos. Esse é um Brasil possível. Uma postura essencialmente iluminista que deu as cartas na origem do nosso constitucionalismo e que agora retorna num movimento de equilíbrio do pêndulo, para o bem de todos nós. __________ 1 Direito Publico Brazileiro e Analyse da Constituição do Império. José Antônio Pimenta Bueno. 1857.
O que seria das Constituições sem os poetas e as poetisas, esses ourives das palavras, escultores dos sentimentos que vivem a lapidar, desde a aurora dos tempos, a existência humana? Para Peter Häberle, diretor do Instituto de Direito Europeu e Cultura Jurídica Europeia da Universidade de Bayreuth, Alemanha, pouco restaria do Estado Constitucional sem os poetas, as poetisas e sua arte imortal. Na obra "Um diálogo entre Poesia e Direito Constitucional", recém-publicada pela Série IDP/Saraiva de Direito Comparado, traduzida por Gercélia Batista de Oliveira Mendes, o espanhol Héctor López Bofill, professor de Direito Constitucional e uma das vozes mais influentes da poesia catalã, trava com o seu mestre, Peter Häberle, um diálogo em torno do papel da poesia no Estado Constitucional. A conversa se deu em Munique, em 23 de junho de 2003. Coube ao ministro Gilmar Mendes a apresentação da obra: "Que têm a ver poesia e Direito? Tudo. Afinal, se, pela via das definições, a jurisprudência persegue a certeza, é a indeterminação da poesia que possibilita a abertura e a transformação do sentido necessárias à apreensão dos conceitos jurídicos, principalmente numa sociedade aberta de intérpretes constitucionais", introduz o ministro. O livro é curto. Não pequeno. Um sopro. Daqueles sopros que, mesmo fugaz, acaricia a face e corteja as lembranças. Héctor López Bofill, poeta talentoso, abre o trabalho agitando as águas do oceano poético no qual vive mergulhado: "Aquilo que permanece é fundado pelos poetas", diz, recordando o verso de Friedrich Hölderlin, para refletir sobre o papel da poesia na ordem política e no Estado Constitucional. Do outro lado, Häberle, que é do ramo. No Brasil, suas obras têm extraordinária aceitação. Fale em "sociedade aberta dos intérpretes da Constituição" numa aula de Direito Constitucional, ou na tribuna do Supremo Tribunal Federal, e não demorará para alguém balbuciar falando consigo mesmo: "Peter Häberle". No imaginário da nossa comunidade jurídica, é forte a lembrança do seu nome. O professor estruturou a sua "Teoria da Constituição como Ciência da Cultura" incorporando a literatura e a poesia como elementos centrais na compreensão dos textos constitucionais e como fatores que contribuem para a integração e a estabilidade das comunidades políticas. Há tempos ele tem tentado explicar a influência que a poesia exerce sobre a Constituição como conceito de cultura. Nesse particular, cita Friedrich Schiller, que estabeleceu uma relação direta entre poesia e política em "Carta sobre a Educação Estética do Homem", ou Jean-Jacques Rousseau, que escrevia poesias ("o que é conceito de 'vontade geral' senão um conceito de matriz poética?", indaga Häberle, em referência a Rousseau). Na obra, o Hino à Alegria, de Beethoven, é apontado como um "texto clássico" para a Europa. A letra traz um poema de Friedrich Schiller, de 1785, cantado no quarto movimento da 9ª sinfonia. Expressa os ideais de liberdade, paz e solidariedade. É a demonstração de uma firme crença na nossa humanidade. Häberle menciona também o papel da crítica poética de Bertold Bretch: "Todo o poder do Estado procede do povo, mas até onde vai?", anotou Bretch. O questionamento encontrou ressonância na redação que abre o parágrafo único do art. 1o da Constituição brasileira, que diz: "Todo o poder emana do povo". Para Häberle, "alguns aspectos do Direito Constitucional são especialmente sensíveis à atividade criadora dos poetas". Os exemplos são os preâmbulos das constituições e os enunciados de direitos fundamentais. "Os poetas proporcionam a dose suficiente de utopia que orienta o sentido da realidade constitucional", anota, antes de citar a nova Constituição da Suíça, de 1999, em que parte do preâmbulo foi inspirado no poeta suíço Adolf Muschg. Diz o verso: "a força do povo é medida pelo bem-estar dos fracos". Preâmbulos são mesmo poéticos. Basta ouvir na paz do silêncio a redação dada por Thomas Jefferson - conhecido como "a caneta magistral" - à Declaração de Independência dos Estados Unidos: "Consideramos estas verdades como autoevidentes, que todos os homens são criados iguais, que são dotados pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes são vida, liberdade e busca da felicidade". É a frase em língua inglesa mais conhecida do mundo. Pura poesia. Nesse âmbito preambular, a nossa Constituição não decepciona. Firma-se o compromisso de "assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a Justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos". Se a Constituição suíça de 1999, no preâmbulo, não se esquece dos fracos, a nossa vai além. O inciso III do art. 3o aponta como um dos objetivos fundamentais da República erradicar a "pobreza e a marginalização" e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Nas alíneas 'a' e 'b' do inciso LXXVI do art. 5o, assegura-se para os "reconhecidamente pobres" (na forma da lei), o registro civil de nascimento e a certidão de óbito. O art. 6o traz, como direito social, a assistência aos "desamparados". Consta que a Defensoria Pública promoverá a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos "necessitados" (art. 134). São comandos batizados nas águas do Brasil. "Pobres", "marginalizados", "desamparados" e "necessitados". Os personagens silenciados pela desigualdade social que uma história de escravidão, corrupção e privilégios vergonhosamente legou. Constituição e cultura, como quer Häberle. Seguindo o raciocínio, o professor pondera: "os valores derivados de alguns princípios e objetivos constitucionais, como a tolerância e a educação democrática, podem se fundar na formulação linguística e no conteúdo material enunciado pelos poetas". Ele recorda a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, "cujo êxito universal foi propiciado, em parte, pelo caráter contundente, sugestivo e penetrante do estilo que lhe foi conferido por alguns dos literatos reunidos na Assembleia Nacional Francesa, como Mirabeau", diz. Não é só o professor que enxerga poesia na Declaração de Direitos de 1789. A ministra Cármen Lúcia, presidente do Supremo Tribunal Federal, também. Em sua obra "Direito para todos", publicado pela Fórum, a ministra comenta poeticamente todos os artigos da Declaração. De um por um. No material, muito de sua personalidade e sensibilidade é dividido com os leitores. Uma exposição infrequente aos juristas, mas sem a qual as poetisas não conseguem viver. "Às vezes, já se vislumbra um céu mais claro a guiar o homem para novas possibilidades. Essa estrela guia pode não ser seguida, mas segue o homem mostrando-lhe direitos que podem clarear, em muito, o seu trajeto com o outro", anotou a ministra, no livro. Quanto à tolerância, o art. 3º, I, da Constituição aponta como um dos objetivos fundamentais da República, "construir uma sociedade livre, justa e solidária". Sobre a educação, dispõe: "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho" (art. 205). No diálogo com o seu mestre, Héctor López Bofill fala sobre a influência da poesia na hermenêutica constitucional. "Se a poesia está na origem da ordem constitucional, também se pode afirmar que a poesia é um meio de interpretação dos conceitos constitucionais. A interpretação é extraída de uma sistemática das diferentes partes (preâmbulo, conteúdo dos direitos e objetivos ou fins constitucionais) em relação com a palavra poética que os estabeleceu", diz o professor e poeta. Häberle aproveita a deixa e engata: "na Constituição, são abundantes os conceitos mutantes, como o de 'dignidade', 'família', 'arte', que são quase tão indeterminados como aqueles empregados na poesia". No Brasil, família e dignidade estão unidos no art. 230 da Constituição: "A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida". Quanto à arte, o inciso II do art. 206 dispõe que um dos princípios que servirá de base para que o ensino seja ministrado é o da "liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber". "Essa analogia entre Direito Constitucional e poesia também explica a peculiaridade dos métodos interpretativos desenvolvidos pelo Direito Constitucional, qual seja, a interpretação tópica ou a interpretação da sociedade aberta de intérpretes constitucionais, na qual, na minha perspectiva, a palavra poética encontra seu espaço", esclarece Peter Häberle. Aludindo à terminologia aplicada à interpretação de textos orais e escritos desde Friedrich Schleiermacher e Hans-Georg Gadamer, "a poesia seria um marco de pré-compreensão na arte da interpretação jurídica". Será? Onde se encontram o poeta e o hermeneuta? Quem fala mais alto? Qual deles escuta melhor? Quem governa quem? Há, no Direito Constitucional brasileiro, uma fresta de luz a nos iluminar na busca pelas respostas a essas perguntas? Nesse particular, considerando a presença marcante do ministro Carlos Ayres Britto, talentoso poeta, no constitucionalismo brasileiro, uma breve investigação histórica pode confirmar se Häberle tem razão quanto à relação entre o poeta e a hermenêutica constitucional. Vamos ver. O ministro Luís Roberto Barroso conheceu o ministro Carlos Ayres Britto em Belo Horizonte, no ano em que eu nasci, 1982. Confessando ter, em sua estante, "com dedicatórias que os tornam infungíveis", alguns de seus livros de poesia, o ministro Barroso dá a sua opinião quanto às poesias do amigo: "Ele é bom nisso também". Em seguida, arremata, ainda em inconfidências: "Muito antes de Carlos ir para o Supremo Tribunal Federal, entreguei a ele uma separata de um artigo constitucional brasileiro, com a seguinte dedicatória: 'Querido Carlos, você já na poesia e eu ainda no Direito'". A impressão é que a poesia, e o direito, sempre andaram juntos na vida do ministro Carlos Ayres Britto. Basta ver. E sentir. Quando o ministro apreciou o caso que discutia se a imunidade tributária para templos religiosos poderia se aplicar aos cemitérios (RE 578.562), pontificou: "Quer dizer, nem a última morada do indivíduo é subtraída à longa manus fiscal". Antes, o poeta já havia anotado: O governo confunde FISCO com confisco.Até o pôr-do-sol por trás dos prédios incrementa o IPTU1. Noutra oportunidade, o STF discutia a continuidade, ou não, da ação penal contra um caseiro que havia furtado cinco galinhas do seu patrão. Para o ministro, a conduta se deveu "muito mais a extrema carência material do paciente do que indícios de um estilo de vida em franca aproximação da delituosidade". A posição poderia ter sido antevista da leitura de um dos seus poemas: Três meninos-de-rua a furtar cenouras numa hortaliçaE as cenouras a se dar a eles com um sumarento gosto de Justiça2. Mais à frente, ao proferir o voto no caso das uniões homoafetivas, leading case de sua relatoria (ADI 4277 e ADPF 132), o Ministro registrou: "É a perene postura de reação conservadora aos que, nos insondáveis domínios do afeto, soltam por inteiro as amarras desse navio chamado coração". O último trecho - "amarras desse navio de nome coração" - é o fecho do seu poema Experiência. Há 45 anos atrásEu tinha treze anos.Poucas ideias na cachola,É verdade.Mas sonhos em profusãoE uma experiência enormeNo soltar as amarras desse navioDe nome coração3. Por fim, ao deliberar sobre a recepção, ou não, da Lei de Imprensa (ADPF 130), também como relator do célebre leading case, o Ministro uniu liberdade de expressão e democracia. Isso, ele já tinha feito no poema "Primeiro botão": O que quer que sejapode ser dito por quem quer que seja.- Esse primeiro botão que eu trançariaNo colar de flores da Democracia4. Héctor e Häberle estão certos. Rousseau e Mirabeau também. O poeta habita a alma do jurista, especialmente a do juiz constitucional. Poesia e Constituição. Poeta e hermeneuta. Verso e texto. Poema e norma. São elementos que não dá para apartar. E não são apenas versos. Albie Sachs, que foi juiz da Corte Constitucional da África do Sul indicado por Nelson Mandela, confessa não dispensar, na redação de seus votos, uma prosa que forneça aconchego às emoções de quem lê a decisão. Sachs explica: "O direito depende grandemente da mística. A própria noção de justiça apresenta uma profunda dimensão moral-histórica. Conceitos como o estado de direito, direitos fundamentais e a independência do judiciário ocupam espaços distintos, sagrados, que irradiam energias com grande poder de atração. Caso sejam devidamente empregados, esses princípios podem proporcionar sentido de forma, de dignidade, de estilo". Quanto à redação dos votos, ele fornece a receita: "Ornamentação é aquele 'bocadinho de exibição' que acrescenta uma voz e registro distintos à exposição. Se quiser, chame a isso 'brilho'; se não, chame 'adrenalina'". E justifica: "contato que seja mantido sob controle, acho que esse 'bocadinho de ornamentação' ou, mais delicadamente, certa expressão cuidadosamente modulada de orgulho jurídico, não viola a compostura esperada de um juiz"5. Rudolf Smend, no seu Constituição e Direito Constitucional, publicado em 1928, no final da República de Weimar, apresentou suas ideias sobre os fatores emocionais como fonte de consenso que devem ser fornecidos a partir do Direito Constitucional. A esse respeito, o professor Peter Häberle diz: "podemos incluir entre os elementos emocionais os hinos nacionais como a Lied de Haydn, no caso da República Federal da Alemanha". Mas as emoções que encurralam os poetas e poetisas também podem ser agoniantes. A distância entre eles e o Estado Constitucional em que costumam viver é enorme. "Ao poeta é permitido praticamente tudo, ele transita além do sentido comum, nas fronteiras da ordem. O jurista, ao contrário, é um mediador entre cidadãos e deve ter como horizonte o sentir e o pensar do homem comum. Por isso, sua atuação é presidida pela ideia de tolerância e atenção à dignidade do outro, do próximo", anota Häberle. O professor recorda que "a proteção do meio ambiente já esteve na sensibilidade dos poetas românticos, não compartilhada na época pelo homem comum". É apenas um exemplo. No Brasil, o art. 225, caput, da Constituição, dispõe: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações". Häberle lembra ainda que ninguém soube descrever melhor do que Shakespeare e Goethe as características e as preocupações que hoje impregnam o homem contemporâneo. "Essa vocação profética de alguns artistas possui, em sua vertente pessimista, a faculdade de nos anunciar realidades sinistras: Kafka e Orwell fizeram a descrição de um mundo de pesadelo que se transformou, posteriormente, em uma triste realidade, como o que aconteceu na República Democrática Alemã (RDA). Eles prognosticaram como uma ordem constitucional pode se degenerar em uma tirania", anota. É o grave preço suportado pelas almas sensíveis. "Os regimes totalitários, como o nazismo e o comunismo da União soviética, tendiam ao extermínio das diferenças ególatras que o artista representava", diz Häberle. O Estado Constitucional, todavia, tem a obrigação de conviver com elas. O professor também destaca a larga tradição de artistas e poetas que eram juristas ou que tiveram formação jurídica: Heinrich von Kleist, Franz Kafka e o próprio Goethe, cujas inquietações sobre sociedade e a justiça elevaram-se à mais alta categoria expressiva. As reflexões de Friedrich Schiller sobre a dignidade do homem impregnaram um grande número de cláusulas constitucionais. "Os clássicos não só vinculam os poetas, filósofos e músicos, mas também os juristas, que bebem de suas fontes, como demonstram as obras de Savigny e Radbruch na história do pensamento jurídico alemão", anotou Häberle, afirmando que na função de legitimação e participação, os criadores devem se aprofundar na representação de um espaço comum cujos antecedentes remotos são encontrados na obra do poeta francês Victor Hugo. O livro "Um diálogo entre Poesia e Direito Constitucional" traz, então, trechos de "A Constituição dos Literatos", publicada em 1983 por Häberle, que aborda a relação entre poetas, narradores e intelectuais alemães com a Lei Fundamental de Bonn de 1949. É a segunda joia dada ao leitor. Um novo sopro, ainda mais generoso. "Interpreto a tese de Walter Jens, que afirmou que não existe nenhum âmbito, por mais recôndito que seja, que não possa ser iluminado com a ajuda da poesia", registra Häberle, abrindo a segunda obra. Para ele, os textos literários e outras cristalizações culturais podem ser entendidos como textos constitucionais em sentido amplo: "muitas vezes, eles contêm uma retrospectiva da construção e da erosão do Estado Constitucional". O professor recorda os textos de Gotthold Lessing sobre tolerância em "Nathan, o Sábio"; de Schiller, em "Don Carlos", sobre a liberdade ideológica ou as máximas de Ernst Bloch e Bertolt Brecht sobre a dignidade do homem e a democracia. Lembra ainda que o Hino Nacional da França, a Marselhesa, "é um desses textos musicais e literários em sentido constitucional, em que parte da república e da identidade francesa reproduzem-se". O mesmo se dá com o Salmo Suíço e, na Alemanha, com a Deutschland-Lied, de Joseph Haydn. No Brasil, penso que a declaração de Dom Pedro I, no Dia do Fico, seria um desses clássicos: "Se é para o bem de todos e felicidade geral da Nação, estou pronto! Digam ao povo que fico". Novamente, a poesia e sua infinitude. Häberle indica o texto "O mensageiro de Hesse", de Georg Büchner, com o lema da Revolução Francesa: "Paz nas cabanas! Luta nos palácios!", que, segundo ele, pode ser interpretado, sob a ótica constitucional, como uma defesa da não violência. É um princípio contemplado pelos incisos VI e VII do art. 4º da Constituição brasileira, segundos os quais a República rege-se, nas suas relações internacionais, pelos princípios da defesa da paz e da solução pacífica dos conflitos. E quanto à morte das Constituições? Seria essa uma partida desejada? Para muitos, as Constituições hão de ser eternas. Nascem para não morrer. A poesia também. Ela se lança à eternidade. A este respeito, desabafa Häberle: "Certamente os poetas possuem um olfato especial para captar o sentido das relações jurídicas e políticas que acontecerão no futuro. Pode-se pensar que a ambivalência de suas afirmações consegue inspirar outros escritores atuais e impregna suas abordagens futuras". Häberle diz que teóricos de grande estilo, como Otto Mayer e Georg Jellinek, sempre tiveram consciência disso (o mesmo valeria no Direito Civil para as obras de F. K. Von Savigny, nos tempos de Goethe e Martin Wolf em Weimar, ou de Ernest Rabel): "sua literatura jurídica ocupava a posição de verdadeira prosa e configurou parte essencial da cultura jurídica", diz. E prossegue: "Não devemos estranhar se, alguma vez, um poeta houver pronunciado uma máxima do tipo: 'A constituição é algo demasiado importante para ser deixada apenas na mão dos juristas'. Em outras palavras: todos somos guardiões da Constituição!". Sendo o poeta um guardião da Constituição numa sociedade aberta de intérpretes, então a poesia também serve como crítica pública. Para ilustrar, uma crítica ao Tribunal Constitucional Federal alemão foi feita poeticamente por Erich Fried, decepcionado com a construção de uma jurisprudência que se distanciava de valores cultivados pela esquerda no país. O poeta escreveu: Aonde foram as esperanças?Na ConstituiçãoE sua decepção?Em sua interpretação. Não há morte capaz de sepultar a beleza da simplicidade desse poema crítico de E. Fried. Para Häberle, "a Ciência do Direito do Estado não deveria esquecer que ela mesma poderia constituir uma parte da literatura e que um teórico do Estado é, de certo modo, um escritor". Logo, é preciso haver um reforço às exigências sobre a qualidade dos textos e a preocupação dos juristas sobre a formulação linguística que utilizam. "Isso poderia ser um veículo de aproximação e maior compreensão entre escritores e constitucionalistas", anota o Professor, coberto de razão. A obra "Um diálogo entre poesia e Direito Constitucional" é uma viagem marcante. Ela mostra que a poesia é uma utopia, mas que isso não é feio, nem indigno. Utopias são mais do que ideias, são ideais e a vida dos poetas, e dos constitucionalistas, hão de ser impulsionadas por ideais. A poesia "não pode prescindir de um mundo utópico, do mesmo modo que a Teoria do Estado também requer utopias", escreveu Häberle. Mesmo porque, segundo ele, o próprio Estado Constitucional era uma utopia quando foi esboçado pela primeira vez por John Locke. Constituições transformadoras, como a brasileira, trazem em si espaços de utopias. Assim como a poesia, esses espaços não nos limitam nem nos impedem de sonhar. Pelo contrário. Eles nos convidam a sonhar e a realizar. Vem dessa utopia o convite insistente à esperança. Uma esperança que não é inerte, mas cheia de vontade de implementar a Constituição e transformar a realidade. Viver não basta. Por isso, a arte poética é necessária às constituições. "A arte existe porque a vida não basta", imortalizou Ferreira Gullar. A obra "Um diálogo entre Poesia e Direito Constitucional" nos mostra que, também no Direito Constitucional, não basta. Simplesmente não basta. __________ 1 Varal de borboletras. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 48. 2 Varal de borboletras. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 97. 3 A Pele do ar. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 121. 4 Ópera do silêncio. Belo Horizonte: Fórum, 2004, p. 100. 5 Vida e Direito: Uma estranha alquimia, Série IDP/Saraiva de Direito Comparado, 2017, p. 67.
"No Direito Privado, o indivíduo pode se comportar com certo 'capricho', embora tal 'capricho' não seja o que deveria ser. Mas, no domínio do Direito Público - Direito Constitucional e Administrativo - o 'capricho' é uma doença terminal"1. O trecho acima foi gravado na pedra da história de um povo que sabe como ninguém o que é história. Ele ilustrou a discussão travada, em 2003, na Suprema Corte de Israel, no caso "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General" (HCJ 7367/97). Tudo em Jerusalém. Os fatos vêm a calhar. O Movimento por um Governo de Qualidade em Israel levou o Primeiro-Ministro Ariel Sharon à Suprema Corte. A razão? Uma controvertida escolha para o Ministério da Segurança Pública. Judicializou-se a indicação antes da posse do indicado ao cargo de Ministro. Tzahi Hanebi havia sido apontado. Em 1982, jovem, ele foi condenado por se envolver numa confusão na universidade. Posteriormente, já uma figura pública, viu seu nome pululando em três investigações sem que tivesse sido condenado em nenhuma delas. O Movimento entendia que Hanebi não poderia servir ao Governo, pois apesar de não ter sido condenado, todos os rumores que seu nome despertava estilhaçavam o cristal da confiança pública no Ministério, o que terminava gerando obstruções dos populares. Essas obstruções, somadas a toda a mídia que o indicado atraía e ao burburinho de que novas investigações poderiam surgir atrapalhavam a continuidade do serviço público prestado pelo Ministério e pareciam limitar a capacidade do próprio Hanebi de executar uma agenda com legitimidade. O Justice Mishael Cheshin, autor do trecho que abre esta coluna, proferindo o seu voto, arrematou: "Aqueles que exercem autoridade em nome do Estado ou de qualquer outra autoridade pública - no nosso caso, o Primeiro-Ministro e o Ministro da Segurança Pública - devem estar conscientes de que suas questões não são suas. Trata-se de questões que dizem respeito a outros e eles são obrigados a conduzirem-se com justiça e integridade, em estrita conformidade com os princípios da administração pública"2. Cheshin ficou vencido ao lado de um colega. A Suprema Corte de Israel concluiu não haver razão para impedir que Ariel Sharon empossasse Tzahi Hanebi no Ministério da Segurança Pública. Vetar a assunção ao posto sem que houvesse taxativa previsão a respeito ou, pelo menos, que o conjunto dos fatos indicasse evidências mais robustas, poderia se tornar um hábito caprichoso de juízes moralistas. Melhor não abrir essa Caixa de Pandora. O julgamento ocorreu em 2003. Estamos em 2018. Até hoje Hanebi é Ministro de Estado. Está à frente, atualmente, da pasta de Cooperação Regional. Vida que segue. Mas e quanto ao Brasil? Bem, o nosso país não vive o seu melhor momento. Nem o pior. Estamos numa fase de águas agitadas, ninguém sabendo muito bem o que delas vai sair. Políticos que ocupam cargos ilustres são hostilizados por populares em aeroportos, ruas, calçadas, corredores, bares, aviões..., em qualquer lugar. Nos olhos do povo vê-se revolta e um desejo de revanche. Muitos políticos estão em apuros. Mesmo assim, o poder em Brasília segue soprando vento em direção ao fogo. Quanto mais vento sopra, mais o fogo sobe o morro. Fogo morro acima e água rio abaixo são fenômenos difíceis de conter. O ideal é pensar antes de agir. Pelo menos. O último desses ventos foi a indicação da deputada federal Cristiane Brasil para o posto de Ministra do Trabalho. Conterrâneos da parlamentar se socorreram da instituição que a Constituição lhes entregou - o Poder Judiciário - para, se opondo à indicação, ter a chance de discuti-la publicamente. Uma ação popular3 ajuizada no Rio de Janeiro, seu estado, conseguiu a suspensão da posse da indicada4. O presidente da República, na Praça dos Três Poderes, disse quem seria a Ministra. Advogados habituados a levar governantes aos Tribunais entendiam que a indicação não era constitucionalmente aceitável. O juiz, em Niterói, deu razão a eles. A decisão gerou perplexidades, mas também forneceu a matéria-prima da qual qualquer República se alimenta: o debate público. Pode uma parlamentar condenada pelo Judiciário por desrespeitar direitos trabalhistas se tornar Ministra do Trabalho? Sempre que chamado a analisar potencial violação da Constituição em razão da indicação, pelo Presidente, de um nome que se tornará Ministro de Estado, ou quando demandado a deliberar sobre as consequências de um comportamento desviante dessas autoridades, o STF antecipou que esse tipo de escrutínio judicial é excepcional. Isso não quer dizer que o Tribunal esteja impedido de conferir eficácia ao princípio constitucional da moralidade administrativa (art. 37, caput) diante de casos concretos. Vamos puxar pela memória. No mandado de segurança 25.579 (Pleno, DJe 24/8/2007), o ministro Joaquim Barbosa, relator, anotou: "Na qualidade de guarda da Constituição, o STF tem a elevada responsabilidade de decidir acerca da juridicidade da ação dos demais Poderes do Estado. No exercício desse mister, deve a Corte ter sempre em perspectiva a regra de auto-contenção que lhe impede de invadir a esfera reservada à decisão política dos dois outros Poderes, bem como o dever de não se demitir do importantíssimo encargo que a Constituição lhe atribui de garantir o acesso à jurisdição de todos aqueles cujos direitos individuais tenham sido lesados ou se achem ameaçados de lesão". No caso acima, a Corte definiu que o membro do Congresso que se licencia do mandato para investir-se no cargo de ministro de Estado não perde os laços com o Parlamento (art. 56, I), devendo seguir observando as vedações e incompatibilidades inerentes ao estatuto constitucional do congressista, assim como as exigências ético-jurídicas que a Constituição (art. 55, § 1º) e o que os regimentos internos das casas legislativas estabelecem como elementos caracterizadores do decoro parlamentar5. Noutra oportunidade, a Corte definiu que "os ministros de Estado, por estarem regidos por normas especiais de responsabilidade (CF, art. 102, I, "c"; lei 1.079/1950), não se submetem ao modelo de competência previsto no regime comum da Lei de Improbidade Administrativa (lei 8.429/1992)". Somente o STF pode processar e julgar Ministro de Estado no caso de crime de responsabilidade e eventualmente determinar a perda do cargo ou a suspensão de direitos políticos. São incompetentes os juízos de primeira instância para processar e julgar ação civil de improbidade administrativa ajuizada contra agente político que possui prerrogativa de foro perante o STF, por crime de responsabilidade (art. 102, I, "c", da Constituição)6. O status de ministro conferido a determinadas autoridades também chegou ao Supremo. Uma ação direta de inconstitucionalidade atacou a Medida Provisória 207/2004 (convertida na lei 11.036/2004), que alterou disposições das leis 10.683/2003 e 9.650/1998, equiparando o cargo de natureza especial de Presidente do Banco Central ao cargo de ministro de Estado, com a consequente prerrogativa de foro para o Presidente do BACEN7. Falando em tese, o foro por prerrogativa de função aos Ministros de Estado (art. 102, I, 'c', da CF) às vezes pode virar um incentivo a mudanças casuísticas no desenho da Esplanada dos Ministérios. Se alguém que está à frente de uma pasta sem tal status sente os sussurros do sistema carcerário esquentando seus ouvidos, passa a ser sedutora a ideia de elevação do status da pasta, muitas vezes por medida provisória. Recentemente, o PSOL impetrou o mandado de segurança 34.615 para questionar ato do Presidente da República que, por meio da medida provisória 768/2017, conferiu o status de Ministério à secretaria-geral da Presidência da República. Alegando ilegalidade e desvio de finalidade, o Partido requereu a nulidade da nomeação, como forma de proteger o patrimônio público e a moralidade administrativa. No mandado de segurança 34.609, a Rede Sustentabilidade encampou a iniciativa. O Supremo também precisou definir se a nomeação de um secretário de Estado irmão do Governador que o nomeou violaria a posição da Corte contra o nepotismo (Súmula Vinculante nº 13). Julgando a reclamação 6650 MC-AgR (Min. Ellen Gracie, Pleno, DJe 21/11/2008), a Corte afastou a aplicação da citada súmula. Há pouco tempo, o mandado de segurança 34.070 (Min. Gilmar Mendes) questionou o ato de nomeação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva para o cargo de ministro chefe da Casa Civil. O relator, ministro Gilmar Mendes, anotou na decisão monocrática que proferiu: "Nenhum Chefe do Poder Executivo, em qualquer de suas esferas, é dono da condução dos destinos do país; na verdade, ostenta papel de simples mandatário da vontade popular, a qual deve ser seguida em consonância com os princípios constitucionais explícitos e implícitos, entre eles a probidade e a moralidade no trato do interesse público 'lato sensu'". O racional acima esteve presente na decisão da Suprema Corte de Israel no caso "Women's Lobby v. The Minister of Labor and Welfare, (HCJ 2671/98)". Ficou registrado: "Ao agir no domínio do direito público, a autoridade investida do poder de nomeação opera na qualidade de administrador público. Assim como um administrador fiduciário não possui nada próprio, também a autoridade que nomeia não possui nada dela. Deve conduzir-se à maneira do administrador: agir com integridade e equidade, considerando apenas fatores relevantes, atuando com razoabilidade, igualdade e sem discriminação"8. No caso brasileiro, o Ministro Gilmar Mendes anotou ainda: "O princípio da moralidade pauta qualquer ato administrativo, inclusive a nomeação de Ministro de Estado, de maneira a impedir que sejam conspurcados os predicados da honestidade, da probidade e da boa-fé no trato da 'res publica'". Então, arrematou: "o argumento do desvio de finalidade é perfeitamente aplicável para demonstrar a nulidade da nomeação de pessoa criminalmente implicada, quando prepondera a finalidade de conferir-lhe foro privilegiado". Parece haver consenso quanto à figura do desvio de finalidade no Direito Administrativo. Todavia, a nomeação foi obstada por uma decisão monocrática ("one single judge"), o que não é o ideal do ponto de vista institucional. Por zelo com a autoridade da Suprema Corte, decisões dessa magnitude devem contar com espaço na pauta de um dos colegiados do Tribunal - Turmas ou Plenário. À luz da Constituição de 1988, a Corte chegou a ordenar a exoneração de um Ministro de Estado. Dessa vez, pelo plenário. A decisão foi unânime. Na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 388, de relatoria do Ministro Gilmar Mendes (DJe 1º/8/2016), a Corte estabeleceu a interpretação de que membros do Ministério Público não podem ocupar cargos públicos fora do âmbito da instituição, salvo o de professor e funções de magistério (art. 128, § 5º, II, "d", da CF). Derrubou-se a resolução 72/2011 do Conselho Nacional do Ministério Público. A ordem final foi: "Outrossim, determinada a exoneração dos ocupantes de cargos em desconformidade com a interpretação fixada, no prazo de até vinte dias após a publicação da ata deste julgamento". O então Ministro da Justiça caiu. A exoneração de um Ministro de Estado pelo fato de a sua nomeação violar a Constituição encontra a companhia da Suprema Corte de Israel. No já citado "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General" (2003), o Justice Eliezer Rivlin, relator, registrou em seu voto-vencedor: "Tanto a decisão do Primeiro-Ministro de nomear uma pessoa e sua decisão de não exonerar um indicado ao seu gabinete estão sujeitas a padrões de razoabilidade, integridade, proporcionalidade, boa-fé e ausência de arbitrariedade ou discriminação"9. No Brasil, o presidente da República está constitucionalmente vinculado aos princípios constitucionais da Administração Pública: legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência (art. 37, caput). Segundo o art. 78, o presidente e o vice-presidente tomarão posse em sessão do Congresso, prestando o compromisso de "manter, defender e cumprir a Constituição", observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil. Não há governo fora da Constituição. Simplesmente não há. Então, o chefe do Poder Executivo nomeia para o Ministério do Trabalho uma parlamentar que foi condenada pelo Poder Judiciário por ter desrespeitado direitos dos trabalhadores. A indicada é do Partido Trabalhista Brasileiro. Agora será apreciada, pelo STF, a reclamação 29.508, de relatoria da Ministra Cármen Lúcia (DJe 1º/2/2018), que definirá o destino do Ministério. Para a Ministra, deliberando inicialmente sozinha, "é bem sabido que não compete ao Poder Judiciário o exame do mérito administrativo em respeito ao Princípio da separação dos Poderes. Este mandamento, no entanto, não é absoluto em seu conteúdo e deverá o juiz agir sempre que a conduta praticada for ilegal, mais grave ainda, inconstitucional, em se tratando de lesão a preceito constitucional autoaplicável". O raciocínio repete a linha da excepcionalidade. Em 2016, a Suprema Corte de Israel apreciou o caso "Movement for Quality Government in Israel v. Prime Minister" (HCJ 232/16), no qual se questionava a indicação do membro do Knesset - Parlamento israelense -, Rabbi Aryeh Machlouf Deri, para o posto de Ministro do Interior. Deri havia sido condenado por corrupção na década de 1980, entre outras coisas. O Justice Salim Joubran anotou: "a intervenção deste Tribunal, na discricionariedade das pessoas autorizadas a remover um Ministro ou Vice-Ministro do cargo, deve ser limitada às situações em que a gravidade da infração não pode ser conciliada com a continuidade do serviço público"10. Excepcionalidade mais uma vez. A discussão é rica. O poder que chefes do Executivo têm hoje não é nem de longe o que um dia tiveram. Esses governantes cada vez mais sofrem controles variados e não podem usar a caneta que lhe demos para fazer estripulias por aí. Moisés Naím, especialista no tema, chegou a ser peremptório: "O poder está em degradação". Para ele, "no século XXI, o poder é mais fácil de obter, mais difícil de utilizar e mais fácil de perder". Naím explica que os governantes estão cada vez mais com dificuldades de exercer o poder que sonhavam ter. Não são absolutos, nem jamais serão. As democracias têm requerido dos poderosos mais e mais tolerância com o controle diário de seus poderes. Sua derradeira frase é: "De Chicago a Milão e de Nova Délhi a Brasília, os chefes das máquinas políticas irão prontamente admitir que têm bem menor capacidade de tomar as decisões unilaterais que seus predecessores davam como certas"11. Os Palácios precisam digerir essa pouco apetitosa realidade global. Essa combinação entre o povo cansado e um Judiciário disposto traz à ribalta questionamentos insistentes. O que é o poder? A quem ele deve servir? À luz da Constituição, a certeza é a seguinte: o povo é o poder. "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição", dispõe o parágrafo único do art. 1o da Constituição. O art. 5o, XXXIV, "a", dispõe que são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas, o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder. Tanto o povo é o próprio poder como pode elevar a sua voz na defesa de direitos, contra ilegalidade ou abusos. Naím tem razão. São inúmeros os instrumentos de controle. No Brasil, eles decorrem da Constituição e chamam o povo a participar desse tipo de obstrução republicana quando partes legitimadas levam ao Judiciário a discussão sobre temas tais como a qualidade dos nomes apresentados à comunidade, pelo Presidente, para liderar Ministérios executando uma agenda de políticas públicas. Destoa da ideia de estado constitucional supor que o chefe do Poder Executivo é absoluto em suas escolhas. Ele está submetido à Constituição. O que não quer dizer que amanhã juízes poderão ordenar a impressão de moeda, a declaração de guerra ou a celebração da paz. O Poder Executivo é exercido pelo Presidente, "auxiliado pelos Ministros de Estado" (art. 76 da CF). Compete-lhe privativamente: I - nomear e exonerar os Ministros de Estado; II - exercer, "com o auxílio dos Ministros de Estado", a direção superior da administração Federal (art. 84, I e II da CF)12. Acontece que, entendendo ter havido uma escolha que compromete a confiança pública no governo ou mesmo a capacidade da indicada, em razão de fatos passados, executar uma agenda voltada ao trabalhador, parece natural que alguém levante a mão no meio da multidão e diga: "Talvez devêssemos discutir melhor essa indicação". A massiva publicidade sobre o caso, a necessidade de justificação das decisões judiciais, os recursos bem fundamentados da Advocacia-Geral da União, as declarações oficiais do Poder Executivo, tudo isso engrandeceu o espaço público quanto a um assunto genuinamente republicano. Indo além, não parece sábio argumentar que as altas autoridades da Administração Pública Federal não se submetem à moralidade administrativa. Como não? Basta ler a apresentação do Código da Alta Administração Federal (CCAAF): "A Constituic¸a~o Federal de 1988 consagrou, no seu artigo 37, o princi'pio da moralidade como um daqueles a que todos os Poderes da Unia~o, dos estados, do Distrito Federal e dos munici'pios, devem obedecer no exerci'cio de suas atividades administrativas". Então, o arremate: "Tendo a Constituic¸a~o positivado, vale dizer, juridicizado a e'tica, esta deixou de ser um conjunto de normas de conduta voltadas para cada um em particular, pois no centro das considerac¸o~es morais da conduta humana esta' o eu, conforme lic¸a~o de Hannah Arendt. Passou, assim, a e'tica a ter status juri'dico e interessar diretamente ao Estado, visto que ele esta' no centro das considerac¸o~es juri'dicas da conduta humana". Bela apresentação. Foi escrita pelo jurista Américo Lacombe, presidente da Comissão de Ética Pública da Presidência da República. Segundo o art. 3º do Co'digo, "no exerci'cio de suas func¸o~es, as autoridades pu'blicas devera~o pautar-se pelos padro~es da e'tica, sobretudo no que diz respeito a` integridade, a` moralidade, a` clareza de posic¸o~es e ao decoro, com vistas a motivar o respeito e a confianc¸a do pu'blico em geral". É a exortação a um compromisso ético que dimana do caput do artigo 37 da Constituição. Não se deve vandalizar as indicações do Executivo, mas é preciso constitucionalizá-las. Tanto que o Ministério Público Federal - exercendo as funções institucionais que a Constituição lhe conferiu (art. 129, IX) - recomendou a troca de todos os vice-presidentes da Caixa Econômica Federal, invocando o artigo 34, o princi'pio republicano, o princi'pio da impessoalidade da Administrac¸a~o Pu'blica, o artigo 173, "caput" e §1º, II, o artigo 170, IV e o artigo 219, todos da Constituic¸a~o. Recomendou-se a "melhoria no processo de seleção de altos executivos" e a "troca imediata dos vice-presidentes"13. O chefe do Poder Executivo atendeu a recomendação. A postura de atuar em harmonia com determinadas recomendações do Ministério Público não é diversa da que se vê em outros países do mundo cuja chaga da corrupção tem gangrenado uma República surrada por uma desigualdade social que envergonha coletivamente e humilha individualmente. É o caso da África do Sul. No país, a Suprema Corte de Recursos, apreciando o caso "SABC v DA (393/2015) [2015] ZASCA 156", em outubro de 2015, contando com a Corruption Watch como amicus curiae, definiu que as recomendações da "Public Protector" - equivalente ao nosso Ministério Público - tem a mesma eficácia de uma decisão judicial. Logo, toda e qualquer autoridade tem que cumprir a recomendação. Caso entenda-a injusta, é preciso ir ao Judiciário desconstituí-la, numa corrida cara e exaustiva. A solução sul-africana, portanto, foi mais invasiva do que a brasileira. Também não impressiona o argumento segundo o qual os autores da ação popular que combaliu a indicação da parlamentar são questionadores insistentes dos atos dos governantes. A jurisprudência da Suprema Corte de Israel foi construída graças à corajosa atuação da organização não-governamental "Movimento por um Governo de Qualidade em Israel", ou seja, um organismo que se dedica a confrontar o governo. São os micropoderes - expressão de Moisés Naím - sendo vistos em ação. Nada de errado. Quanto à chance de haver uma avalanche de ações populares inviabilizando o próprio e necessário exercício do poder - e a guerrilha política usa essas armas - a Constituição traz mecanismos que eliminam esse risco. A Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental está aí, tanto que foi no bojo de uma ADPF que o Supremo ordenou, em 2016, a exoneração que alcançou o então Ministro da Justiça. Por qual motivo o PTB não ajuizou uma ADPF incidental à ação popular (art. 1º, I, da lei 9.882/1999) para permitir que o Supremo deliberasse sobre a questão? A ADPF incidental, ao contrário da sua modalidade autônoma (art. 1º, caput, da lei 9.882/1999), existe para isso. Outras ações populares foram ajuizadas deixando clara a chance de pulverização processual deletéria da questão. O Ministro Gilmar Mendes, recebendo a ADPF 388 - atacava diretamente o Decreto de 2 de março de 2016 da presidente da República - , anotou: "Meio eficaz de sanar a lesão é aquele apto a solver a controvérsia constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata. Relevância do interesse público como critério para justificar a admissão da arguição de descumprimento". Eis o caminho. Diante dos comandos da Constituição Federal, ficarmos absolutamente impedidos de controlar o poder do chefe do Executivo, mesmo em atos dessa natureza, não seria bom sinal. Quem judicializaria a indicação, por Getúlio Vargas, de Filinto Müller para o cargo de Oficial de Gabinete do Ministro da Guerra? A estabilidade judicial quanto às indicações era absoluta. Ainda assim, aquele não foi um tempo bom. A Constituição de 1988 entregou aos cidadãos a ação popular e um Judiciário independente. Porém, alertou: "Cuidado com a má-fé!" (art. 5º, LXXIII, da CF). É dessa má-fé - cuja aferição é um tormentoso exercício - que precisamos nos precaver. Má-fé que pode motivar qualquer dos envolvidos nessas decisões que suspendem as nomeações de ministros de Estado. É preciso ter extremíssima cautela. E o nosso Judiciário tem sido, nos últimos anos, um mar mais revolto do que calmo. Também não tem fama de ser o mais cauteloso do planeta. Nem os fatos o ajudam a ser. Isso se agrava com a utilização desenfreada, nos Tribunais, incluindo o Supremo Tribunal Federal, do padrão "one single judge" de decisão, algo que existe em modelos estrangeiros respeitáveis como a Corte Europeia de Direitos Humanos, mas não costuma ser utilizado com a intensidade que utilizamos por aqui. Decisões judiciais monocráticas pipocam na grande panela de pressão que se tornou o país. A exceção começa a rivalizar com a regra. É possível que haja julgamentos que, a despeito de moralizarem as desgraças da política, terminem por comprometer elementos essenciais da própria democracia. Por isso, é de fundamental importância resistir à tentação de tudo poder. Até porque uma hiper-judicialização dos atos de governo poder ser algo artificializado, sem legitimidade. Não são exatamente populares querendo discutir a qualidade das escolhas das autoridades. Pode ser, em alguns casos, apenas a guerra da política num país dado a golpes abaixo da linha da cintura no vale tudo do poder. Na Tailândia, a Corte Constitucional entendeu, em 2008, por unanimidade, que o então Primeiro-Ministro Samak Sundaravej havia violado a Seção 267 da Constituição, que veda às autoridades também serem empregadas privadas. O julgamento implicou no fim do seu mandato e derrubou todo o gabinete de ministros14. Mas qual a grave acusação para justificar um resultado dessa natureza? O Primeiro-Ministro havia apresentado um programa de culinária antes da posse - era o ganha-pão dele no passado - e recebido o salário por isso quando já exercia o posto de Primeiro-Ministro. A Corte Constitucional argumentou que alguns programas podiam ter sido gravados durante o exercício do cargo. A literatura especializada não se orgulha do precedente acima. Pelo contrário. Retrata-o como um ato autoritário que, passando por cima da Constituição e abusando imensamente dos poderes da Corte Constitucional, ultimou o mandato de um agente eleito simplesmente por entender que o seu tempo tinha acabado. A queda precipitou tumultos sociais e a democracia tailandesa seguiu seu caminho entre sopapos fortes e solavancos persistentes. O país teve vinte Constituições em menos de um século. Desde 1932, sofreu onze golpes militares bem-sucedidos e sete tentativas de golpe. Que tal? Ninguém é tolo para ouvir algo tipo "independência dos poderes" ou "as instituições estão funcionando" sem fazer um juízo de valor mais acurado quanto ao contexto no qual decisões derrubando autoridades são tomadas. Na Tailândia, uma elite provinciana dada a golpismos exortou a independência dos poderes para reverter, com a linguagem jurídica dos acórdãos, o resultado singelo - e para alguns indigesto - das urnas. É a metástase da democracia. Quando esse tipo de coisa acontece, quem é gravemente penalizada é a parcela mais vulnerável da população. Como diz um ditado africano: "Quando os elefantes brigam é a relva que sofre". Portanto, feito esse registro quanto à necessária cautela no exame judicial excepcional das indicações do Presidente da República para a chefia de Ministérios, e retomando o objeto da coluna - o "caso Cristiane Brasil" -, é sim, importante, que o Supremo, pelo seu colegiado, responda se a condenação de uma parlamentar, pela Justiça do Trabalho, por violação aos direitos de um trabalhador, a inabilita, à luz da Constituição, a assumir o posto de ministra do Trabalho. O contexto prova que o debate é necessário. O art. 21, XXIV da Constituição diz competir à União organizar, manter e executar a inspeção do trabalho. Há menos de um ano, numa inspeção, o Ministério do Trabalho flagrou 118 crianças, com idades de 3 a 17 anos, em condições degradantes de trabalho em feiras públicas, no lixão, em ruas e em carvoarias. Foi em Boa Vista. O exemplo ilustra o papel do Ministério do Trabalho. Numa nação coberta pela vergonha de saber que muitas de suas crianças têm suas esperanças e chances de felicidade queimadas em carvoarias, calcular mal o relevo de uma pasta como a do Trabalho é convidar os cidadãos a obstruírem qualquer escolha que não reflita as legítimas expectativas por uma agenda que, além de ter vasto amparo constitucional, é socialmente fundamental. Por isso, a controvérsia judicial instalada não é mera artilharia inconsequente de uma batalha política de baixa qualidade. O Ministério do Trabalho foi criado em 1930. Logo mais será uma pasta centenária. Além disso, o "trabalho" é a base da Constituição de 1988, que veio colorida por esse sistema. Será bom ao país discutir, por meio da sua Suprema Corte, questões ligadas ao princípio republicano, à confiança pública no governo, à moralidade administrativa, ao controle dos atos do Executivo e às condições necessárias, numa democracia contemporânea, para se conseguir uma boa-governança numa pasta das mais relevantes. Mal não fará. Acreditem. __________ 1 Consta do parágrafo 24 (p. 400) do acórdão: "Within the area of private law the individual can behave with a measure of the "capriche", though such "capriche" is not what it used to be, nor should it be. But in the realm of public law - constitutional and administrative law - caprice is a terminal illness". 2 Consta do parágrafo 24 (p. 400) do acórdão: "Those exercising authority on behalf of the state or any other public authority - in our case, the Prime Minister and the Minister of Public Security - must constantly be aware that their affairs are not their own. They are dealing with matters that concern others and are obligated to conduct themselves with fairness and integrity, in strict compliance with the principles of public administration". A íntegra da célebre decisão da Suprema Corte está disponível em: 3 Art. 5º, LXXIII: "Qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência". 4 A Ação Popular 001786-77.2018.4.02.5102 foi ajuizada com o objetivo de impedir os efeitos da nomeação, pelo Presidente da República, e a subsequente posse da deputada federal Cristiane Brasil Francisco no cargo de Ministra de Estado do Trabalho. O fundamento seria o fato de, em processos da Justiça do Trabalho, ter sido provado que a indicada havia "fraudado normas trabalhistas em pelo menos duas oportunidades, seja deixando de promover formalização de vínculos de emprego, seja submetendo os trabalhadores a jornadas exaustivas". O Juízo da Quarta Vara Federal da Seção Judiciária de Niterói/RJ antecipou os efeitos da tutela invocando, como fundamento, o princípio da moralidade administrativa, em seu artigo 37, caput. O Juiz suspendeu a eficácia do decreto de nomeação, bem como sua posse. 5 O Ministro de Estado, que era parlamentar, havia sido acusado - e constou dos autos - de haver usado de sua influência para levantar fundos junto a bancos "com a finalidade de pagar parlamentares para que, na Câmara dos Deputados, votassem projetos em favor do Governo" (Representação 38/2005). 6 Rcl 2138, Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJe 18/4/2008. 7 ADI 3289, Min. Gilmar Mendes, Pleno, DJ 3/2/2006. 8 Consta do parágrafo 24 do acórdão: "When acting in the domain of public law, the appointing authority operates in the capacity of a public trustee. Just as a trustee possesses nothing of his own, so too, the appointing authority possesses nothing of its own. It must conduct itself in the manner of the trustee: acting with integrity and fairness, considering only relevant factors, acting with reasonableness, equality, and without discrimination". A íntegra está disponível no seguinte endereço. 9 No parágrafo 17 do acórdão consta: "Therefore, both the Prime Minister's decision to appoint a person and his decision not to remove one from office are subject to the accepted standards of reasonableness, integrity, proportionality, good faith, and the absence of arbitrariness or discrimination". Disponível em. 10 Consta do parágrafo 28 do voto-vencedor no acórdão: "(...) the boundaries of the Court's intervention in appointments is limited to those instances in which an appointment might seriously harm the standing of the institutions of government and the public's confidence in them'. Disponível em. 11 Naím, Moisés. O fim do poder: nas salas da diretoria ou nos campos de batalha, em Igrejas ou Estados, por que estar no poder não é mais o que costumava ser?/ Moisés Naím; tradução Luis Reyes Gil. - São Paulo: LeYa, 2013. 12 "Compete aos Ministros de Estado, pelo menos: I - exercer a orientação, coordenação e supervisão dos órgãos e entidades da administração federal na área de sua competência e referendar os atos e decretos assinados pelo Presidente da República; II - expedir instruções para a execução das leis, decretos e regulamentos; III - apresentar ao Presidente da República relatório anual de sua gestão no Ministério; IV - praticar os atos pertinentes às atribuições que lhe forem outorgadas ou delegadas pelo Presidente da República" (art. 87, parágrafo único, da Constituição). 13 Recomendação 87/2017, do Ministério Público Federal (Força-Tarefa Greenfield). 14 A esse respeito, Verapat Pariyawong publicou a dissertação "Three-Course Recipe for the Court's Cookery: A Critique on Thai Democracy and Judicial Review", pela Harvard Library.
A alma humana pode caminhar descolada da realidade, flutuando na imaginação infinita ou até mergulhada na loucura. Ela sobrevive. Decisões judiciais, não. Expressão inequívoca do poder do Estado sobre si mesmo e sobre as liberdades das pessoas, ordens de juízes precisam estar associadas às condições essenciais ao seu próprio cumprimento. Quando inexequíveis, ou cruéis, são ruins para a credibilidade do Poder Judiciário. O Santo Graal das Supremas Cortes parece ser a forma de cumprimento de suas decisões, mais do que o conteúdo que elas veiculam. Na Alemanha, o Tribunal Constitucional Federal determinou, em 1995, a retirada dos crucifixos de escolas públicas do ensino fundamental numa cidade da Baviera. A decisão serviu aos livros, aos colóquios jurídicos e até de inspiração para jovens estudantes. Jamais foi cumprida, contudo. Um desperdício de legitimidade pela Corte. Esqueceram o Santo Graal. Pragmáticos, os estadunidenses fizeram diferente. Quando a Corte Warren achou por bem desmantelar a segregação racial - pelo menos a promovida pelo Estado -, o Tribunal se colocou à beira do abismo. E se não cumprissem a decisão? Sábio, Earl Warren, presidente da Suprema Corte, maquinou para inserir, ao final da ordem unânime, a expressão "com toda a velocidade possível". Mentes precipitadas podem supor que a decisão foi vaga. Nada disso. Ela mudou o rumo de um país atolado no pântano de uma sangrenta luta racial. Vinte anos depois já não havia uma única escola segregada nos Estados Unidos. Como explicar? Respeito ao Santo Graal. A jurisdição constitucional não se faz em passe de mágica. O cumprimento de uma decisão da Suprema Corte muitas vezes depende das diretivas às instâncias responsáveis por trazer para a realidade o propósito de transformação social que muitas vezes está embutido em decisões dessa natureza. Essa discussão é recorrente quando se trata de servidores públicos e a transição para a Constituição de 1988. Caso emblemático é o dos defensores públicos do Estado do Espírito Santo. A Corte declarou, em 2006, na ADI 1199, a inconstitucionalidade do art. 64, caput, e parágrafo único, da lei complementar 55, de 1994, do Espírito Santo, que interpretava o art. 22 do ADCT alcançando os defensores ingressos após a Constituição de 1988. O referido art. 22 diz: "Art. 22. É assegurado aos defensores públicos investidos na função até a data de instalação da Assembleia Nacional Constituinte o direito de opção pela carreira, com a observância das garantias e vedações previstas no art. 134, parágrafo único, da Constituição". Os defensores deveriam ser "desligados". Todavia, não se modulou os efeitos da ordem nem se procedeu a diretivas quanto ao seu cumprimento. Como abrir um alçapão para engolir um grupo de pessoas que trabalha em nome do Estado desde o começo da década de 1990 prestando assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos, nos termos do art. 5o, LXXIV, da Constituição? A falta de diretivas resultou na judicialização da questão. Um dos casos requereu indenização contra o Estado do Espírito Santo por defensora que teria sofrido danos morais em razão do "desligamento" que lhe foi imposto sem espaço de diálogo para a preservação de seus direitos1. Outro questionou quem teria competência para "desligar" esses defensores, se o governador ou a Defensora Pública-Geral2. Houve judicialização para saber se teriam, as autoridades do Estado, incorrido em improbidade administrativa3 quanto ao cumprimento da decisão. Também se questionou se o cargo de defensor público-Geral estaria alcançado pelo julgamento da ADI 11994. Em situações semelhantes, o STF agiu de outro modo5. Em 26/3/2014, na ADI 4876 (Min. Dias Toffoli, DJe 1/7/2014), a Corte modulou os efeitos da declaração de inconstitucionalidade para, em relação aos cargos para os quais não havia concurso público em andamento ou com prazo de validade em curso, produzir efeitos a partir de doze meses, contados da data da publicação da ata de julgamento. Em seguida, procedeu-se às diretivas. O Tribunal entendeu que doze meses era "tempo hábil para a realização de concurso público, a nomeação e a posse de novos servidores, evitando-se, assim, prejuízo aos serviços públicos essenciais prestados à população". A Corte ressalvou: a) aqueles que já estejam aposentados e aqueles servidores que, até a data de publicação da ata do julgamento, tenham preenchidos os requisitos para a aposentadoria, exclusivamente para efeitos de aposentadoria, o que não implica em efetivação nos cargos ou convalidação da lei inconstitucional para esses servidores; b) os que se submeteram a concurso público quanto aos cargos para os quais foram aprovados; e c) a estabilidade adquirida pelos servidores que cumpriram os requisitos previstos no art. 19 do ADCT, que diz: "Os servidores públicos civis da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios, da administração direta, autárquica e das fundações públicas, em exercício na data da promulgação da Constituição, há pelo menos cinco anos continuados, e que não tenham sido admitidos na forma regulada no art. 37, da Constituição, são considerados estáveis no serviço público". Opostos embargos de declaração, o STF estendeu "o prazo de modulação dos efeitos até o final de dezembro de 2015", esclarecendo que deveriam ser mantidos válidos os efeitos produzidos pelo acordo celebrado entre a União, Minas Gerais e o INSS - homologado pelo STJ no Resp. nº 1.135.162 - no que tange à aplicação do regime próprio de previdência social aos servidores atingidos pela declaração de inconstitucionalidade, com a manutenção do período de contribuição junto ao regime próprio. Nada disso foi feito no caso dos defensores do Espírito Santo, a ADI 1199. Diretivas são ínsitas à jurisdição constitucional. Na África do Sul, a supervisory order - ou interdito - é uma ordem por meio da qual a Corte supervisiona a implementação de suas decisões. Possui quatro elementos: (i) Ordem determinando a Administração a tomar certa ação para remediar uma situação inconstitucional; (ii) Requerimento para que a Administração submeta um relatório com as medidas já realizadas e aquelas ainda a serem tomadas para dar cumprimento à ordem; (iii) Abertura de prazo para que a parte atingida comente o relatório; e (iv) Possibilidade de proferir ordens complementares, seja confirmando o cumprimento da ordem original ou reforçando-a. No caso Joe Slovo Community, a decisão da Corte Constitucional sul-africana de despejar pessoas em moradias irregulares veio em conjunto com a ordem de provisão de habitações alternativas. Em Pheko, a Corte ordenou o Município de Ekurhuleni a submeter um relatório (confirmado por juramento) contendo as medidas tomadas para realocar as pessoas cujas casas foram ilegalmente demolidas pelo município6. Há casos nos quais a desconstituição imediata do ato administrativo pode causar uma violação de direitos. Nessas situações, o Supremo deve, ao proferir a declaração de inconstitucionalidade, oferecer diretivas sobre o que fazer com os atos consolidados. É uma demonstração de zelo pela executoriedade de suas ordens e de respeito pelas pessoas submetidas ao seu poder. O respeito é mais elevado do que o temor. Isso vale para as relações humanas e para as Supremas Cortes também. É imprescindível que seja assegurado o procedimento administrativo próprio, individualizado, que preserve a segurança jurídica (art. 5º, XXXVI, "a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada"), o direito de ser ouvido por autoridade competente (art. 5º, LIII - "ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente"), o devido processo legal (art. 5º, LIV - "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"); o contraditório e a ampla defesa (art. 5º, LV - "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes") e a proteção da confiança legítima (art. 19, II, para ilustrar o dever de confiança). É um estatuto que dimana da própria Constituição. As instituições não nascem prontas. Uma nação não nasce pronta. Pessoas não nascem prontas. O país deu um salto de qualidade em seu serviço público. Boa parte se deve à regra do concurso público (art. 37, II). Isso não quer dizer que aqueles que arregaçaram as mangas na aurora de 1988, quando tudo era penúria e privação, devem ser esmagados agora. A jurisdição constitucional não nasceu para destruir pessoas. O aperfeiçoamento institucional de qualquer país reclama a sabedoria do tempo e o apreço pelos pioneiros que, valendo-se das possibilidades que dispunham, e premidos pela força das circunstâncias, deram o melhor à comunidade. A situação desses defensores segue em discussão no STF em razão de um recurso do Estado do Espírito Santo contra a fórmula de transição que o Tribunal de Justiça avalizou como modo justo de dar cumprimento à decisão da ADI 1199. Embargos de declaração dos defensores sob a relatoria do Min. Alexandre de Moraes foram colocados no Plenário Virtual para julgamento (ED no RE 856.550). Ter-se-á a apreciação virtual de uma questão que põe fim à vida profissional de um grupo que, desde a década de 1990, presta assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovam insuficiência de recursos. O ideal seria proceder às diretivas de modo a viabilizar os standards mínimos a partir dos quais essa grave decisão seria cumprida. Sem isso, o quadro de indefinição tende a persistir. Não parece justa a mera ordem para que se "desligue" esse pequeno grupo. Os defensores não concursados podem ser exonerados, mantidos ou aposentados. Jamais "desligados". Desligamos aparelhos, interruptores, máquinas, não gente. __________ 1 ARE 1.058.442, Min. Dias Toffoli, DJe 4/10/2017. 2 RE 291.645, Min. Gilmar Mendes, DJ 17/4/2006. 3 Rcl 7167, Min. Dias Toffoli, Dje 5/6/2013. 4 Rcl 10.461, Min. Ellen Gracie, DJe 18/11/2010. 5 Quanto aos defensores públicos de Minas Gerais, o STF derrubou as leis que amparavam defensores sem concurso, porém, modulando os efeitos para 6 meses a contar do julgamento, abrindo espaço para que a Administração Pública construísse uma fórmula de transição constitucionalmente aceitável (ADI 3819,Min. Eros Grau, Pleno, DJe 28/3/2008). 6 Residents of Joe Slovo Community, Western Cape v Thubelisha Homes and Others (Centre on Housing Rights and Evictions and Another, Amici Curiae) 2010 (3) SA 454 (CC) (Joe SlovoCommunity) parágafo 7; Pheko e Outros v Ekurhuleni Metropolitan Municipality 2012(2) AS 598 (CC) parágrafo 53. Cf. Currie & De Waal at 199. Bishop (pp. 9-179) e K Roach & G Budlender Mandatory Relief and Supervisory Jurisdiction: When is it Appropriate, Just and Equitable? (2005) SALJ, 325.
quinta-feira, 11 de janeiro de 2018

O reconhecimento da dignidade humana em Israel

No trajeto de Jerusalém para Masada, a sudoeste do Mar Morto, na região da Judeia, um deserto infinito se impõe com toda a autoridade sobre as vidas que ali resistem. Penhascos, cavernas e crateras são fiéis companheiros. Enxergar um rasgo de água pura serpenteando a estrada seria uma ilusão. Não há. Animais, pessoas, árvores, plantas, frutas, borboletas..., não se vê nada. É o encontro da solidão com o infinito. Tudo se esvai ali. Mas, antes que a esperança escape, o inesperado aparece. É algo que os olhos nordestinos demoram a aceitar. Grandes, fortes, verdes, belas, imponentes..., milhares de árvores carregadas de frutas fazem no horizonte o desenho de um tapete verde inalcançável à vista. Canos preenchidos pela mais cristalina das águas irrigam um solo que parecia morto. Como se fosse leite e mel. Pessoas trabalham, veículos entram e saem. Há produção, há atividade, há energia humana. É vida. Vida em abundância. Como é possível, logo ali, florescer aquilo? É um contraste. Escassez e abundância uma ao lado da outra. Israel parece ser formada de contrastes. Tristeza e felicidade. Queda e triunfo. Ponto e contraponto. Guerra e paz. Medo e esperança. Essa dialética também acontece no Direito Constitucional israelense. Como pode florescer um vasto campo para direitos constitucionalmente protegidos num país onde não há uma Constituição? Em Israel isso aconteceu. E não foi um milagre. Em 14 de maio de 1948, poucas horas depois do fim do mandato Britânico sobre a Palestina, David Ben-Gurion, um founding father, declarou a independência do Estado de Israel. Ali, ele abria a larga comporta do inesperado. A Declaração de Independência foi promulgada pelo Conselho do Povo, o parlamento dos Yishuv. Os Yishuv são a comunidade judaica na Palestina. O Conselho do Povo, todavia, atribuiu a si a designação de Conselho de Estado Provisório e escolheu 13 dos seus membros para servir como Administração Popular. O novo Estado teve a sua primeira eleição em 25 de Janeiro de 1949. Os cidadãos de Israel escolheram uma Assembleia Constituinte de 120 membros, responsável por elaborar uma Constituição. Contudo, uma vez reunida, a Assembleia resolveu mudar seu nome e suas responsabilidades. Virou Knesset, o Parlamento de Israel. A Constituição, todavia, ficou para depois. Um depois que jamais chegou. Um ano mais tarde, o Knesset aprovou a Resolução Hahari, que conferiu à Comissão de Constituição, Direito e Justiça do Knesset o dever de elaborar uma série de leis básicas que, juntas, formariam a Constituição. Essa compilação, e ulterior aprovação, não aconteceu. Em 1992, o Knesset aprovou a Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade. A Seção 2 da Lei Básica diz: "2. Não deve haver violação da vida, corpo ou dignidade de qualquer pessoa como tal". A Seção 4 da Lei Básica adiciona: "4. Todas as pessoas têm direito à proteção de sua vida, corpo e dignidade". Israel, o país do empreendedorismo, da inovação, de maneira inesperada, recebe do Knesset a tecnologia humanista que precisava para fundar a sua mais primordial startup: uma democracia constitucional vinculada à dignidade de sua gente. Essa é a startup de todas as startups. A startup-mãe da nação. Esse insumo logo foi percebido pela Suprema Corte. Em 1995, num julgamento emblemático (Banco Mizrahi v. The Minister of Finance), mesmo tendo, a Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade, sido aprovada sem um quórum especial, o Tribunal a reconheceu como materialmente constitucional. Qualquer outra lei que a contrarie deve, pois, ser declarada inconstitucional. A decisão correspondeu, para a jurisdição israelense, a um Marbury v. Madson (1803) dos Estados Unidos. Uma revolução sem armas. Nas palavras de Aharon Barak, que presidiu a Suprema Corte por mais de uma década: "Uma revolução constitucional". Como, ao longo de 45 anos, o Knesset havia aprovado onze Leis Básicas em matérias variadas, então mesmo sem o procedimento formal estipulado pela Resolução Hahari o país passou a ter a sua própria Constituição, formada pelas referidas leis. A partir daí, a Suprema Corte começou a usar esse fabuloso insumo como matéria-prima de uma robusta produção coletiva de direitos. Em razão do reconhecimento da materialidade constitucional da Lei Básica, direitos variados passaram a ser reconhecidos à luz da dignidade humana: da personalidade, a uma subsistência humana digna, à reputação, à vida familiar, à igualdade, à liberdade de expressão, à liberdade de consciência e religião, à liberdade de movimento, à educação, ao emprego e ao devido processo legal. Num solo onde uma Constituição não foi plantada nasceram os mais valiosos frutos de uma verdadeira democracia constitucional. Quem poderia imaginar isso? A Suprema Corte anotou que "a Lei Básica não meramente declara 'políticas' ou 'ideais' (cf. art. 20(1) da Lei Básica da Alemanha). A Lei Básica não meramente delineia 'um plano de operação' ou um 'propósito' para os órgãos do governo (cf. art. 27(2) da Constituição da África do Sul; art. 39 da Constituição da Índia). Ela não meramente oferta um conceito guarda-chuva para guiar a interpretação..., as Seções 2 e 4 da Lei Básica trazem um direito - o direito que garante a dignidade humana. Esse direito impõe aos órgãos do governo o dever de respeitá-los" (s. 11).1 Como Aharon Barak disse: "dignidade humana em Israel não é uma metáfora". Mas o país vive dos seus paradoxos. O que poderia ser visto como um triunfo coletivo - o reconhecimento da possibilidade de a Suprema Corte declarar leis inconstitucionais - passou a ser enxergado como um atrevimento contra o Knesset. Em junho de 2000, teve início no Parlamento a tramitação de uma proposta introduzida por Eliezer Cohen (Israel Beytenu Party) criando uma Constituição. A proposta dava ao Knesset o poder de criar um documento constitucional uno e harmônico. Dos 120 membros, 44 apoiaram a proposta. Em novembro, os parlamentares Cohen e Igail Bibi (Partido Nacional Religioso - Mafdal) propuseram um plano complementar para criar uma Corte Constitucional. A proposta foi apoiada por 52 membros, dos 120. Em janeiro de 2002, depois de amargar uma notável oposição, o Knesset rejeitou as propostas. Não parou por aí. Em 2007, o então Ministro da Justiça propôs uma lei que institucionalizaria o poder de declarar a inconstitucionalidade de leis pela Suprema Corte. Todavia, se a Corte anulasse uma lei, o Knesset poderia reverter essa anulação por uma maioria de 61 membros. A proposta também não vingou. A Suprema Corte de Israel persiste independente. A Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade também. Diariamente, cidadãos e cidadãs batem às portas do Tribunal vindicando direitos constitucionais. Fazem isso mesmo não havendo uma Constituição formal no país. Elas simplesmente acreditam. Por isso, seguem adiante. A necessidade do povo gozar direitos constitucionais muitas vezes não é reconhecida em pedaços de papéis. Ela pode não estar escrita. Mas é sentida. Somos seres emocionais. Negligenciar isso é recusar a nossa própria humanidade. Se, dos penhascos secos da Judeia, o tirocínio humano fez nascer um carpete verdejante de prosperidade tal como montanhas de leite e mel, a decisão da Suprema Corte de Israel, em 1995, reconhecendo sua competência para aferir a constitucionalidade de leis, abriu espaço para o florescimento de uma cultura verdadeira de reconhecimento de direitos essenciais a todas as pessoas. Isso faz com que o constitucionalismo israelense seja uma genuína demonstração de um feliz acaso. Ninguém poderia imaginar que num país sem uma Constituição nasceria um exuberante campo de estudo sobre a dignidade humana reconhecida como um direito constitucional. Parece um milagre, mas não é. A conquista é fruto da coragem das pessoas que requereram direitos que sentiam possuir. Uma conquista talvez combinada, quem sabe, com um empurrão dos céus. __________________ 1. São muitos os precedentes que reconheceram direitos implícitos nas cláusula geral da dignidade humana. Apenas para ilustrar: HCJ 366/03 Commitment to Peace and Social Justice v. Minister of Finance, IsrLR 335, 347 (Barak J) (2005). CA 294/91, Jerusalem, Chevra Kadisha v. Kestenbaum, IsrSC 46(2) 464, 524 (1992). HCJ 6427/02 The Movement for Quality Government in Israel v. Knesset, IsrSC 61(1) 619, 681 (2006).
Saul Tourinho Leal e Natália Levy (acadêmica de Direito da UnB) A vida de muita gente, o constitucionalismo contemporâneo e a compreensão atual do direito social à educação não seriam os mesmos sem essas meninas. Três garotas que, pelo desejo de prosseguirem com seus estudos, não se encantaram com o conforto do silêncio, nem flertaram com a vergonha da covardia. As circunstâncias foram intolerantes com elas, mas elas souberam seguir e sorrir, duelando e vencendo o estranhamento e a resistência. Todos devemos muito a elas. A primeira, nascida em 1942, em Topeka, Kansas, nos Estados Unidos, Linda Brown, muito jovenzinha não compreendeu a razão de suas longas e sofridas viagens diárias para a escola, já que havia um colégio a quatro quarteirões da sua casa. Ela tinha a pele negra e, em seu país, a educação era separada pela cor da pele. A escola perto de casa era para brancos apenas. Seu pai levou a questão à Suprema Corte, que a apreciou em 1954. Foi o caso Brown v. Board of Education. Distante dali, sob as montanhas do vale do Swat, no nordeste do Paquistão, a jovem Malala, de 15 anos de idade, desafiou talibãs e insistiu em frequentar a escola, o que era considerado um acinte, por ela ser mulher. Em 2012, num ônibus escolar, um homem armado chamou-a pelo nome, apontou-lhe uma pistola e disparou três tiros. Uma das balas atingiu sua cabeça. Em 2014, quando ganhou o Nobel da Paz, ela disse: "Uma criança, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo". Esses exemplos de coragem e compromisso incondicional com a educação ganharam, no Brasil, o reforço de alguém que não luta contra a segregação racial nas escolas nem tem de enfrentar talibãs para assistir suas aulas, mas, ainda assim, confronta a segregação das ideias e os atentados vindos pelo medo da mudança. A jovem Valentina, em 2012, impetrou um mandado de segurança contra ato da Secretaria Municipal de Educação do município de Canela, Rio Grande do Sul. Ela tinha onze anos de idade. Até o ano de 2011, estudou na Escola Municipal Santos Dumont. Insatisfeita com aspectos ligados à religião e a convicções filosóficas e políticas do ensino, solicitou o direito de ser educada pelos pais, em casa. As autoridades locais de educação negaram o pedido. Ela bateu às portas do Judiciário. Requereu a educação domiciliar, homeschooling, forma de educação de crianças e adolescentes realizada no ambiente doméstico, em que os próprios pais, tutores, membros da família ou da comunidade fornecem aos menores a instrução formal, em oposição ao ensino escolar, fornecido por instituição de ensino pública ou privada. Considerando a ação imprestável por "conter pedido juridicamente impossível", o juiz decidiu em 48 horas. "Uma criança que venha a ser privada desse contato possivelmente terá dificuldades de aceitar o que lhe é diferente. Não terá tolerância com pensamentos e condutas distintos dos seus", fundamentou o julgador. Valentina apelou. O recurso foi analisado pela 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Os desembargadores negaram a apelação. No acórdão de 19 páginas, o relator anotou: "Nessa perspectiva, não merece prosperar o apelo manejado pela impetrante Valentina uma vez que não se vislumbra prova pré-constituída das suas alegações, inexistindo direito líquido e certo a amparar o pleito de ser educada pelo sistema de educação domiciliar". A partir daí fez uso integral do parecer do Ministério Público. Foi só. Valentina levou o caso para a Suprema Corte, que aceitou julgar o Tema 822: "Possibilidade de o ensino domiciliar (homeschooling), ministrado pela família, ser considerado meio lícito de cumprimento do dever de educação, previsto no art. 205 da Constituição Federal" (RE 888.815, repercussão geral reconhecida em 5/6/2015). Ainda não há data para o julgamento. O relator do caso, ministro Roberto Barroso, ao aceitar julgar a disputa, anotou: "(...) discutem-se os limites da liberdade dos pais na escolha dos meios pelos quais irão prover a educação dos filhos, segundo suas convicções pedagógicas, morais, filosóficas, políticas e/ou religiosas". Registrou ainda: "A controvérsia envolve, portanto, a definição dos contornos da relação entre Estado e família na educação das crianças e adolescentes, bem como os limites da autonomia privada contra imposições estatais". O Estado do Rio Grande do Sul requereu ingresso como amigo da Corte. Antecipando sua posição, trouxe passagem do filósofo Fernando Savater. Um trecho se destacou: "Um dos primeiros objetivos da educação é preservar os filhos de seus pais". Os demais Estados, por meio da Câmara Técnica do Colégio Nacional de Procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, subscreveram a manifestação do Rio Grande do Sul e encamparam a ideia de que "um dos primeiros objetivos da educação é preservar os filhos de seus pais" (p. 4-5). Em seguida, pediram que seja declarado inconstitucional "qualquer forma de ensino domiciliar que permita aos pais alijar seus filhos do ensino regularmente ofertado". Também pediram ingresso como amigo da Corte o Instituto Conservador de Brasília e a Associação Nacional de Educação Domiciliar- ANED. A Advocacia-Geral da União se manifestou contra o pedido de Valentina. O então procurador-Geral da República, dr. Rodrigo Janot, opinou por afastar a consideração do "ensino domiciliar, ministrado pela família, como meio lícito de cumprimento do dever de educação". Na página 46 do parecer, registrou: "Dada a gravidade da omissão dos pais ou responsáveis, há, inclusive, tipificação penal da desobediência ao dever de prover a instrução primária do filho em idade escolar (art. 246 do Código Penal Brasileiro)". Alguns pais querem, excepcionalmente, cumprindo as normas gerais da educação nacional e com autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público (art. 209, I e II da CF), educar suas crianças e adolescentes. O Ministério Público reage invocando o art. 246 do Código Penal, que trata do crime de abandono intelectual. Assim, amedrontam pais cuidadosos que jamais abandonaram seus filhos. Luciane Muniz Ribeiro Barbosa defendeu, na faculdade de Educação da Universidade de São Paulo, a tese de doutorado "Ensino em Casa no Brasil: um desafio à escola?"1. O trabalho mostra uma realidade: Valentina não está sozinha. Segundo a pesquisadora, a família Vilhena Coelho, de Anápolis/GO, foi a primeira que levou a questão ao Judiciário, tendo recebido parecer da Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação, além da manifestação do Ministério Público Federal e de julgamento do Superior Tribunal de Justiça. Dos cinco filhos, os três primeiros (com 10, 9 e 7 anos quando o caso foi a julgamento) estudaram em casa. O pai era procurador da República em Goiás, e a mãe, bacharel em Administração e, na época, do lar. Quando o filho mais velho estava prestes a completar o primeiro ciclo do Ensino Fundamental, a Secretaria da Educação do Estado não abonou o número de faltas sob a alegação de que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB - lei 9.394/96) exige que o Ensino Fundamental seja presencial. Ponto final. Em dezembro de 2000, foi aprovado pelo Conselho Nacional de Educação um parecer (CEB 34/2000) negando o pedido dos pais. Judicializada a questão, o STJ manteve a proibição (MS 7407, 1ª Seção, ministro Peçanha Martins; DJ 21/3/2005). Também há a família Nunes, de Timóteo/MG. O pai, empresário autônomo, e a mãe, do lar, decidiram, em 2006, tirar os dois filhos da escola, na época com 11 e 12 anos. O mesmo fizeram com a filha menor (ainda abaixo da idade escolar obrigatória). No fim de 2006, a família foi denunciada por vizinhos. O Conselho Tutelar foi acionado e o Ministério Público entrou na disputa. Em dezembro de 2007 os pais foram condenados por descumprimento do parágrafo 1º do art. 1.634 do Código Civil e dos arts. 22 e 55 do Estatuto da Criança e do Adolescente. Também ao pagamento de multa de seis salários mínimos cada um (R$ 3.060,00 cada), bem como ao restabelecimento da frequência escolar dos filhos. Como não cumpriram a decisão, veio, em fevereiro de 2010, a condenação pelo crime de abandono intelectual (art. 246 do Código Penal). O juiz criticou os pais, acusando-os de serem intolerantes, preconceituosos e desconhecedores da Constituição. Ele qualificou a infração penal como crime permanente, cuja consumação prolongou-se do início de 2006, quando deixaram de matricular os filhos na escola, até maio de 2008, quando o filho mais novo completou 14 anos e deixou de ter idade escolar. Condenou o pai a cumprir pena de multa de 10 dias-multa, no valor de 1/10 do salário mínimo vigente (R$ 51,00). Já a mãe, ? devido às condições econômicas como "desempregada", foi condenada a cumprir pena de multa de 10 dias-multa, no valor de 1/30 do salário mínimo vigente (R$ 17,00). O juiz solicitou que os nomes dos réus fossem lançados no livro ? Rol dos Culpados; que a condenação fosse comunicada ao Tribunal Regional Eleitoral, para fins do art. 15, III da Constituição; e que a condenação fosse comunicada ao Instituto de Identificação de Estado de Defesa Social de Minas Gerais. A mãe foi impossibilitada de votar nas eleições e ambos tiveram as contas bancárias examinadas. Foram rastreados dados do casal no Departamento de Trânsito para penhora de seus bens. Mas e quanto às crianças? Luciane Muniz Ribeiro Barbosa lembra que nos quatro primeiros meses de 2012, os garotos haviam ganhado mais de R$ 30 mil em concursos e viagem à Califórnia após vencerem a edição brasileira do Campus Party. Entre os concursos estão o Prêmio Mário Covas, que incentiva o desenvolvimento de inovação em gestão. Também foram campeões do concurso Open Innovation Submarino 2012, promovido pelo portal Submarino para premiar os autores de ideias mais criativas e inovadoras. Mas nada disso importava. Luciane Muniz Ribeiro Barbosa traz ainda a família Ferrara, de Serra Negra/SP, que tinha duas meninas, filhas de um norte-americano com uma brasileira que residia nos Estados Unidos. Em 2008, o casal decidiu tirá-las da escola e educá-las em casa. Em 2010, o Conselho Tutelar recebeu uma denúncia anônima e encaminhou o caso ao Ministério Público, que solicitou ao delegado a instauração de um inquérito. O juiz da Vara da Infância e Juventude instaurou um procedimento verificatório. Segundo a mãe, o juiz atribuiu ao casal uma multa de três salários mínimos, que a família se recusou a pagar. Também determinou a matrícula das filhas em uma instituição de ensino, sob pena de multa diária de R$ 50,00. A mãe procurou várias escolas públicas, mas não havia vagas. Restou ao magistrado anular a multa e indicar a matrícula das filhas no início do ano seguinte. O casal voltou para os Estados Unidos. Essas famílias são minorias. Elas têm sido hostilizadas, perseguidas e criminalizadas. Isso machuca. A educação domiciliar não é uma esquisitice. O art. 166 da Constituição de 1946 dispunha que "a educação é direito de todos e será dada 'no lar' e na escola. Deve inspirar-se nos princípios de liberdade e nos ideais de solidariedade humana". O art. 168 da Carta de 1967 dizia que "a educação é direito de todos e será dada 'no lar' e na escola; assegurada a igualdade de oportunidade, deve inspirar-se no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e de solidariedade humana". Após a emenda constitucional 1/69, o art. 176 passou a dispor: "A educação, inspirada no princípio da unidade nacional e nos ideais de liberdade e solidariedade humana, é direito de todos e dever do Estado, e será dada 'no lar' e na escola". Então, por qual motivo as nossas instituições estão causando esse mal às famílias quanto a algo que não é estranho à nossa trajetória constitucional? "Os pais têm o dever de assistir, criar e educar os filhos menores", diz a primeira parte do art. 229 da Constituição de 1988. Mais claro impossível. O homeschooling é uma iniciativa privada. O ensino é livre à iniciativa privada, desde que atendidas as seguintes condições: I - cumprimento das normas gerais da educação nacional; II - autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público (art. 209, I e II). A própria Constituição aponta standards para a prática, sem que qualquer lei infraconstitucional seja necessária para essa etapa inicial de diretrizes. Os pais têm tentado, a todo custo, cumprindo as normas gerais da educação nacional, obter autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público da educação domiciliar. Nesse sentido, o homeschooling não afasta o Estado do seu dever de prestar o serviço educacional, mas, na verdade, realiza esse dever de forma indireta, da mesma forma que se dá com as instituições de ensino particulares. O Poder Público deve, portanto, supervisionar as famílias que optarem por esta modalidade de ensino, por meio de avaliações periódicas de aprendizagens pelos próprios órgãos do sistema de educação, para aferir a qualidade do ensino domiciliar e verificar se as diretrizes e bases fixadas por ele próprio estão sendo devidamente cumpridas. O inciso I do art. 206 da Constituição dispõe que o ensino será ministrado com base na igualdade de condições para o acesso e permanência na escola. O que esse inciso quer dizer? Que todos que optarem pela escola sabem que lhes é assegurado igualdade de condições para o acesso e permanência. Os incisos II, II e VII são gerais, incluindo a parcela que, cumprindo as normas gerais da educação nacional, e tendo autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público, optem pela educação domiciliar: II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VII - garantia de padrão de qualidade. O equacionamento das naturais dúvidas quanto à educação domiciliar vem da própria Constituição, que apresenta diretrizes ao ulterior disciplinamento jurídico do instituto, sem que ele seja previamente vedado, por não haver qualquer elemento que criminalize, ou hostilize, os pais que voluntária e livremente se apresentam perante as autoridades com a intenção de educar seus filhos em casa. Por um lado, há quem defenda que o fenômeno do homeschooling absolutiza a autonomia dos pais, que, ao optarem por eles mesmos lecionarem aos filhos em casa, da forma que lhes convier, retiram do Estado a legitimidade e o dever de prestação do serviço público de educação. Essa forma de ensino seria, na verdade, uma restrição ao direito fundamental à educação das crianças e adolescentes, pois impediria que estes vivenciassem experiências de socialização, construção de valores éticos, morais e sociais, que fazem parte desse direito fundamental. Será? Não se deve fazer pouco caso da justa preocupação quanto à socialização das crianças. Acontece que a Constituição, no art. 227, diz: "É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e 'à convivência familiar e comunitária', além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". O dispositivo fala de convivência "familiar e comunitária", deixando claro que o ser humano continua sendo ser humano, dotado de dignidade, e merecedor de igual consideração e respeito, mesmo que a sua educação não se dê da forma tradicional. O cuidado adicional vem com a concretização do direito à convivência familiar e comunitária, que virá das muitas formas de atividades extracurriculares. Uma interpretação abrangente do "planejamento familiar" incluiria a forma pela qual se educa os filhos. Tudo abrangido pelos domínios da vida privada, que é inviolável (art. 5o, X, da CF). Esse planejamento familiar é disciplinado pelo art. 226, § 7º da Constituição, segundo o qual, fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, constitui livre decisão do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte de instituições oficiais ou privadas. A educação familiar também seria uma forma de expressão da atividade intelectual, que há de ser livre, independentemente de censura ou licença (art. 5o, IX, da CF). Todavia, essa liberdade parece ofender. O covarde uso do art. 246 do Código Penal sobre pais que jamais abandonaram intelectualmente seus filhos desperta anjos maus incompatíveis com o compromisso do Preâmbulo constitucional de assegurar "o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a Justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos". São compromissos que se repetem nos incisos I e IV do art. 3º, como objetivos fundamentais da República: I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. Por outro lado, os defensores do homeschooling entendem que tem o indivíduo a faculdade de se educar conforme a própria determinação, contanto que o método escolhido alcance os objetivos traçados no referido art. 205 da Constituição. Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei (art. 5o, II). A omissão legislativa já seria suficiente para, de forma preliminar, declarar a validade da educação domiciliar, em razão do princípio da legalidade. Além disso, todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se a inviolabilidade do direito à liberdade (art. 5º, caput). Valentina pede para ser educada pelos pais. Justifica pela sua crença religiosa e convicções filosófica e política. A Constituição exige, para pessoas cuja crença religiosa ou convicção filosófica ou política requererem a abstenção de cumprimento a obrigação legal a todos impostas, a oferta de uma prestação alternativa fixada em lei (art. 5o., VIII). É o direito à objeção de consciência, um direito fundamental. O procurador-Geral da República, no parecer que ofertou ao caso na Suprema Corte, contudo, anotou: "pais e responsáveis legais não têm autorização para, mediante invocação do poder familiar, negar aos filhos educação nos parâmetros legais, ainda que na forma da escusa constitucional de consciência e de crença (art. 5, VI, da CF). Inexiste estipulação legal de prestação alternativa que lhes permita escusar-se da obrigação legal a todos imposta de matricular seus filhos e mantê-los na escola (art. 52, VIII, da CF)". Uma leitura redutora de um direito fundamental. O caso envolve tratados internacionais de direitos humanos, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem (art. 3º, item 3) e a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica, art. 12, item 4). São documentos relevantes. Segundo os incisos II e IX do art. 4o. da Constituição, a República rege-se nas suas relações internacionais pelos princípios: II - da prevalência dos direitos humanos; e IX - da cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Segundo o art. 5º, § 2º, os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República seja parte. Também há disciplinamentos na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB - lei 9.394/96), no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA - Lei 8.069/90) e no Código Civil (Lei X/2002). Mas quaisquer que sejam eles, a interpretação conforme à Constituição apontará para a não vedação do homeschooling e esse é o caminho para a interpretação de qualquer comando infraconstitucional. É plenamente possível a manutenção de todos os dispositivos voltados à frequência escolar, desde que se entenda que se trata da regra do modelo educacional, inaplicável, todavia, à educação domiciliar. Em regra, costuma ser o art. 205 da Constituição o dispositivo invocado para se justificar o raciocínio de que a educação das crianças e jovens está inteira ou preferencialmente entregue ao Estado. É que o "Estado" antecede a "família" na redação: "A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". De repente, estamos criminalizando pais preocupados com os seus filhos em razão de uma brincadeira de palavras. Pouco importa a precedência do Estado no dispositivo, haja vista haver na Constituição um sem número de comandos que apontam os pais como elemento central na vida dos filhos e vice-versa. Para Aharon Barak, que presidiu a Suprema Corte de Israel, "o papel do juiz é entender o propósito do Direito na sociedade e ajudá-lo a alcançar seu propósito". Por esse raciocínio, as diretrizes diretamente constitucionais autorizativas e ao mesmo tempo inicialmente reguladoras do homeschooling no Brasil seriam: (i) pleno desenvolvimento da pessoa; (ii) seu preparo para o exercício da cidadania; (iii) e a sua qualificação para o trabalho (art. 205, da CF). Outro dispositivo lembrado é o art. 208, § 3º, segundo o qual "compete ao Poder Público recensear os educandos no ensino fundamental, fazer-lhes a chamada e zelar, junto aos pais ou responsáveis, pela 'frequência à escola'". Zelar pela frequência à escola tanto significa a textualidade do comando como se esmerar pela assiduidade nas outras formas de ensino, como a educação domiciliar. No caso da menina Valentina, o parecer do Ministério Público Federal concluiu que "embora não decorra da Constituição Federal direito ao ensino domiciliar, não há vedação para que se elabore disciplina própria para o homeschooling, mediante adoção, pela via legislativa, dos instrumentos e métodos adequados ao ensino domiciliar para crianças e adolescentes em idade escolar, desde que não entrem em conflito com as disposições constitucionais sobre a educação e a escolarização". Noutras palavras, condiciona o exercício de uma liberdade - direito fundamental - ao disciplinamento infraconstitucional. Mas o que diz o Poder Legislativo a respeito disso? Emile Boudens lembra que, em 1994, quando o então Deputado João Teixeira apresentou na Câmara dos Deputados o primeiro projeto que tentou regulamentar o ensino domiciliar, e ele foi rejeitado pelo relator, Carlos Lupi, a justificativa foi a de que ele não era necessário, "pois não havia nenhum tipo de impedimento na Constituição que inviabilizasse a prática do ensino domiciliar"2. Não há vedação constitucional. O homeschooling existe em Portugal, Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Finlândia, França, Inglaterra, Israel, ltália, Nova Zelândia, Noruega, África do Sul, Suécia..., apenas para ilustrar. O parecer do PGR, com 51 páginas, dedica 15 delas à jurisprudência estrangeira a respeito do assunto (p. 27 a p. 42). De todos os exemplos trazidos por Manoel Morais de O. Neto Alexandre (p. 7)3, o que mais me seduz é o da Finlândia, por ter partido da cidade de Turku, onde estive recentemente, a convite da Universidade Åbo Akademi. Lá, tanto quanto aqui, anônimos passaram a perseguir uma mãe que educava seus dois filhos em casa. Ela foi processada criminalmente por autoridades locais que queriam que os meninos fossem "supervisionados" pela escola. A decisão do Tribunal finlandês, em 2015, foi favorável à mãe. Um trecho da decisão diz: "São os pais que supervisionam o seu homeschool, não a escola que supervisiona os pais, exatamente como são as pessoas que supervisionam o Governo, e não o Governo que supervisiona as pessoas". As palavras acima dariam paz ao espírito dos pais brasileiros que educam seus filhos escondidos, receosos de denúncias de vizinhos e das acusações de "abandono intelectual" (art. 246 do Código Penal). Linda Brown deu o pontapé inicial para dessegregar todas as escolas dos Estados Unidos. Malala mudou a concepção dos talibãs quanto à educação feminina. Considerando as ambições dessas garotas quanto ao direito à educação, o pedido de Valentina é singelo: sem se impor qualquer dano, e sem causar mal a ninguém, ela quer, por razões constitucionais, cumprindo as normas gerais da educação nacional e com autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público (art. 209, I e II, da CF), ser educada em casa, pelos pais, que têm estrutura e disposição para fazê-lo, inclusive com professores para as diversas disciplinas, se propondo a realizar avaliações regularmente. A concessão do pedido, rigorosamente recusado pelas instâncias do Judiciário até agora, abriria um novo capítulo nas formas de concretização do direito social à educação (art. 6o da CF), somando esforços na difícil tarefa de realização desse comando, além de derrubar estigmas cruéis sobre uma minoria da nossa sociedade. Valentina é uma variante feminina de Valentim, diminutivo de valens, valentis. Quer dizer "garotinha valente". Sua batalha não tem sido fácil. Só ela, em sua intimidade, sabe. Mas é da coragem dessas jovens que a história do direito à educação tem sido feita. Que siga valente a menina Valentina. Não só por ela. Por nós também. __________ 1 Tese de grande qualidade. 2 O trabalho "Homeschooling do Brasil", de Emile Boudens, Consultor Legislativo (Estudo Jan/2001), foi de essencial consulta quanto aos aspectos legislativos. Também: Manoel Morais de O. Neto Alexandre. "Quem tem medo do homeschooling?: o fenômeno no Brasil e no mundo". Brasília: Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa, 2016. 22p., com nuances do Direito Comparado. 3 Manoel Morais de O. Neto Alexandre. "Quem tem medo do homeschooling?: o fenômeno no Brasil e no mundo". Brasília: Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa, 2016. 22p.
Hoje, muitas cidades do Brasil celebram o Dia da Consciência Negra. Honrando a data, a coluna divide com os leitores a obra "Raízes do conservadorismo brasileiro: a abolição na imprensa e no imaginário social", de Juremir Machado da Silva, recentemente publicada pela Civilização Brasileira. A obra é necessária para entendermos melhor como a interpretação da Constituição e das leis é responsável pela manutenção da situação indigna dos negros no Brasil, um país pelo qual eles deram não apenas a vida, mas a morte. Sempre que alguém disser que a vida do negro é boa, que não há preconceito e que se faz muito barulho por nada, devemos recordar quais eram as impressões de uma elite privilegiada que, sustentando o seu ócio, se enriquecia com a escravidão. "O escravo é entre nós um verdadeiro fidalgo proletário", disse Andrade Figueira, deputado do Partido Conservador. "A escravidão é conveniente mesmo em bem do escravo", anotou Cansanção do Sinimbu, senador do Partido Liberal. "Amo mais a minha pátria do que ao negro", registrou o Conselheiro José Antônio Saraiva, um "liberal à brasileira". "O fazendeiro deve merecer mais cuidados dos poderes públicos do que os escravos", encerrou Martim Francisco Ribeiro de Andrada, deputado do Partido Liberal. Pouca coisa mudou. A libertação negra não foi fruto da caridade branca. Rui Barbosa apontou para a coragem dos escravos como causa da conquista emancipatória: "Essa desobediência bendita, essa indisciplina salvadora, selou a emancipação do povo negro", disse. Tentou-se, ao tempo, dar-se uma solução constitucional para a escravidão, banindo-a. Perdigão Malheiro, presidente do Instituto dos Advogados - e filho do presidente do Supremo Tribunal de Justiça - destacou que o projeto de Constituição Imperial, abortado em 1823, previa, no art. 253, a emancipação lenta dos negros. "Mas na Constituição de 1824 coisa alguma se disse sobre escravos, nem no Ato Adicional de 1834 que extinguiu os Conselhos Gerais da Província e substituiu pelas Assembleias Provinciais, nem na lei de sua interpretação de 1840", anotou Malheiro. De fato, em 1823, durante os trabalhos da primeira constituinte, José Bonifácio de Andrada e Silva preparou um projeto de abolição contundente, ainda que gradualista. A Assembleia Geral Constituinte Legislativa do Império do Brasil acabou dissolvida por Dom Pedro I. Bonifácio foi preso e deportado. Para José Bonifácio, "como poderá haver uma Constituição liberal e duradoura em um país continuamente habitado por uma multidão imensa de escravos brutais e inimigos?". Daí ele ter deixado a imortal exortação: "É tempo, pois, e mais que tempo, que acabemos com um tráfico tão bárbaro e carniceiro; é tempo também que vamos acabando gradualmente até os últimos vestígios da escravidão entre nós, para que venhamos a formar em poucas gerações uma Nação homogênea, sem o que nunca seremos verdadeiramente livres, respeitáveis e felizes". Antes da abolição, quando da votação da Lei do Ventre Livre, não tardou para que os liberais à brasileira, esses empreendedores tropicais, passassem a requerer do Estado algum dinheiro para apagar o rastro deixado pela sua maldade. Para Alencar Araripe, que chegou a ser ministro do Supremo Tribunal Federal, "a decretação da liberdade do ventre, sem prévia indenização, viola a propriedade (...), logo, o proprietário do fruto procedente do ventre servil não pode ser privado de sua propriedade sem prévia indenização, conforme o preceito constitucional". O senador Paulino de Sousa, com a sua linguagem bacharelesca, também justificou: "o escravo é objeto de propriedade, e, portanto, equiparado à coisa. (...) como atestam a jurisprudência de todos os tempos neste país, a doutrina dos jurisconsultos, os julgados dos tribunais. Se não são escravos, por que os libertais? Se são, liberta-os embora, estancai a fonte, como dizeis; mas reconhecei o direito, desapropriai, e idenizai. É o que permite a Constituição". Há os que conseguiam descer ainda mais. "O fruto do ventre escravo pertence ao senhor deste tão legalmente como a cria de qualquer animal do seu domínio. (...) Há, sem dúvida, um direito adquirido a esse fruto, tão rigoroso como o do proprietário da árvore aos frutos que ela pode produzir; há perfeita identidade de condições", defendia o deputado Barros Cobra. A Constituição, no art. 179, garantia a inviolabilidade da propriedade e que só previamente indenizado do seu valor poderia o cidadão ser privado do seu uso e emprego (parágrafo 22 do citado artigo). Logo, o raciocínio era simples: "A Constituição só permite desapropriação mediante indenização". Coube a Rui Barbosa desarmar essa armadilha indecente: "Quanto à Constituição do Império, esta não contém no seu texto uma palavra que pressuponha o cativeiro. Logo, se mais de uma vez se alude a libertos, parece claro que, longe de estender-se ao futuro, não se referia senão aos preexistentes". Em 1871, o deputado Andrade Figueira considerava que tudo no projeto que resultou na Lei do Ventre Livre era inconstitucional. Para ele, até para receber doações os escravos precisavam ser autorizados por seus donos. Postulava que, como em 1850, as discussões da matéria fossem secretas. Não tardou para um contraponto digno chegar. O parecer especial da Câmara dos Deputados, de 30 de julho de 1871, dizia: "O que a nossa Constituição assegura, em toda a sua plenitude, é o direito de propriedade, mas da real, da verdadeira, da natural; é o que recai sobre coisas; pois não é propriedade o que recai sobre pessoas. Instituição puramente de direito civil, manifestamente viciosa, privilégio que tem uma raça de conservar outra no cativeiro, não se chama propriedade". O senador Sales Torres Homem, em discurso em 28 de setembro de 1871, depois de aprovado a Lei do Ventre Livre, afirmou: "Criaturas inteligentes, dotadas, como nós, de nobres atributos e os mesmos destinos, não podem ser equiparadas, no ponto de vista da propriedade, ao potro e ao novilho". Talvez a visão mais repulsiva tenha vindo deste que foi jurista e escritor de destaque, José de Alencar. Para ele, "a escravidão caduca, mas ainda não morreu; ainda se prendem a ela graves interesses de um povo. É o quanto basta para merecer o respeito". Defendeu ainda que a escravidão "é uma forma, rude embora, do direito; uma fase do progresso; um instrumento da civilização". E foi além: "Na história do progresso representa a escravidão o primeiro impulso do homem para a vida coletiva, o elo primitivo da comunhão entre os povos. O cativeiro foi o embrião da sociedade; embrião da família no Direito Civil; embrião do estado no Direito Público". José de Alencar votou contra a Lei do Ventre Livre. Um dos argumentos contrário à Lei é conhecido: o princípio da proteção da confiança legítima. "Não pode o Estado burlar os cidadãos, que na sua palavra depositaram crédito. Fazer isso seria uma extorsão, e um desonroso abuso de confiança. É um cidadão que se guiou por aquela prescrição constitucional, que o desobriga de fazer ou deixar de fazer alguma coisa, a não ser em virtude da lei". Quando dos debates sobre a Lei dos Sexagenários o argumento do direito à propriedade não arrefeceu. Segundo o Visconde de Muritiba, "a libertação forçada ou sem indenização dos escravos que tiverem atingido a atingirem 60 anos é um atentado contra o direito de propriedade, uma restrição arbitrária e odiosa da propriedade servil, que deve ser tão garantida e respeitada como qualquer outra". Quando os proprietários de escravos enxergaram na abolição uma forma de arrancar dinheiro do Estado - num liberalismo à brasileira - o senador Paulino de Sousa se explicou: "Não convinha, dizia-se, que no dia em que as mãos dos trabalhadores servis fossem livres, as mãos dos proprietários estivessem vazias". Quanto à abolição da escravidão, Paulino de Sousa, esse senador pelo Rio de Janeiro e representante das grandes fortunas cafeeiras, representou uma retórica constitucional assombrosa. "A proposta que se vai votar é inconstitucional, antieconômica e desumana", disse ele, passando a explicar a base de sua afirmação. "É desumana porque deixa expostos à miséria e à morte os inválidos, os enfermos, os velhos, os órfãos e crianças abandonadas da raça que se quer proteger, até hoje nas fazendas a cargo dos proprietários, que hoje arruinados e abandonados pelos trabalhadores válidos, não poderão manter aqueles infelizes por maiores que sejam os impulsos de uma caridade que é conhecida e admirada por todos os que frequentam o interior do país", justificou. "É antieconômica porque desorganiza o trabalho, dando aos operários uma condição nova, que exige novo regime agrícola; e isto, senhor presidente, ao começar-se uma grande colheita, que aliás poderia, quando feita, preencher apenas os desfalques das falhas dos anos anteriores. Ficam, é certo, os trabalhadores atuais; mas a questão não é de número, nem de indivíduos, e sim de organização, da qual depende principalmente a efetividade do trabalho, e com ela a produção da riqueza", afirmou. Quanto à acusação de ser "antieconômica", a obra de Juremir Machado da Silva mostra como eram fortes e influentes, no imaginário dos escravagistas, as interpretações econômicas, consequencialistas, que tentavam justificar a manutenção da escravidão com base em análises econômicas da situação: "Precisamos pensar na estabilidade e nas consequências econômicas da libertação dos escravos", diziam. Isso fazia com que o senador Rodolfo Dantas se indignasse na tribuna do Senado: "Que maldito interesse é esse, que, mesmo diante de tantas atrocidades ainda se mantém empedernido, dizendo que, apesar de tudo, da instituição servil é que vem a nossa felicidade? Vem a nossa desgraça; virá felicidade para aqueles que entendem que é preciso ter muito café, muito açúcar, muito algodão à custa do suor e do sangue do escravo! Pois desapareça metade desse açúcar, desse café, desse algodão, e sejam todos livres, porque daí a pouco recuperaremos pelo trabalho livre aquilo que por um pequeno lapso de tempo tenhamos a perder", discursava. O Barão de Cotegipe, todavia, não queria saber. "O proprietário que hipotecou a fazenda com escravos, porque a lei assim o permitia, delibera de seu modo próprio alforriá-los, o que pela nossa lei constitui um crime, e é por isso remunerado! Os bancos, os particulares adiantaram somas imensas para o desenvolvimento da lavoura, das fazendas. Que percam! Enfim, senhores, decreta-se que este país não ha propriedade, que tudo pode ser destruído por meio de uma lei, sem atenção nem a direitos adquiridos, nem a inconvenientes futuros!", retrucava. Pondo fim à sua explicação, o senador Paulino de Sousa arrematou: "É inconstitucional porque ataca de frente, destrói e aniquila para sempre uma propriedade legal, garantida, como todo direito de propriedade, pela lei fundamental do Império entre os direitos civis de cidadão brasileiro, que dela não pode ser privado, senão mediante prévia indenização do seu valor". Uma vergonha. Mas essa imundície retórica não ficou sem resposta. Rui Barbosa objetou: "É fútil, pois não tolera o mínimo exame, a objeção de inconstitucionalidade, explorada contra as medidas emancipadoras, ou abolicionistas, por mais adiantadas que sejam". Quando se adensou o movimento em favor da Lei da Abolição, José de Alencar apontou para a falta de dados. É o conservadorismo bajulando o status quo. "No Brasil não se levantou ainda, que eu saiba, qualquer estatística acerca deste objeto. Pretende-se legislar sobre o desconhecido, absurdo semelhante ao de construir no ar, sem base nem apoio", dizia. José de Alencar chegou a afirmar o seguinte: "Pode-se afirmar que não temos já a verdadeira escravidão, porém um simples usufruto da liberdade, ou talvez uma locação de serviços contatados implicitamente entre o senhor e o Estado como tutor do incapaz". Contrapondo os escravagistas, José Bonifácio fazia uma defesa intransigente da igualdade e da empatia: "Se os negros são homens como nós e não formam uma espécie de brutos animais; se sentem e pensam como nós, que quadro de dor e de miséria não apresentam eles à imaginação de qualquer homem sensível e cristão? Se os gemidos de um bruto não condoem, é impossível que deixemos de sentir também certa dor simpática com as desgraças e misérias dos escravos". Em 1823, Bonifácio já dizia que a acumulação primitiva do capital no Brasil ostentava um superávit de cadáveres jamais visto em outro lugar. "O luxo e a corrupção nasceram entre nós antes da civilização e da indústria; e qual será a causa principal de um fenômeno tão espantoso? A escravidão, senhores, a escravidão, porque o homem, que conta com os jornais de seus escravos, vive na indolência, e a indolência traz todos os vícios", sustentava, com coragem. Ele prosseguia com a contundência dos justos. "Riquezas e mais riquezas gritam os nossos pseudoestadistas; os nossos compradores e vendedores de carne humana; os nossos sabujos eclesiásticos; os nossos magistrados, se é que se pode dar um tão honroso título a almas, pela maior parte, venais, que só empurram a vara da Justiça para oprimir desgraçados, que não podem satisfazer à cobiça, ou melhorar a sua sorte". Não havia concessões com a miséria da escravidão. Joaquim Nabuco também se manifestou: "Tudo o que significa luta do homem com a natureza, conquista do solo para habitação e cultura, estradas e edifícios, canaviais e cafezais, a casa do senhor e a senzala dos escravos, igrejas e escolas, alfândegas e correios, telégrafos e caminhos de ferro, academias e hospitais, tudo, absolutamente tudo que existe no país, como resultado do trabalho manual, como emprego de capital, como acumulação de riqueza, não passa de uma doação gratuita da raça que trabalha a que faz trabalhar". Para Nabuco, "o nosso caráter, o nosso temperamento, a nossa organização toda, física, intelectual e moral, acha-se terrivelmente afetada pelas influências com que a escravidão passou trezentos anos a permear o Brasil". Era como se a escravidão fosse um pecado original do qual jamais nos livraríamos enquanto não expuséssemos as vísceras desse cadáver moral pelo qual forjamos a nossa sociedade. Mas vale indagar: já fizemos essa exumação? Rui Barbosa falava sobre a possibilidade de uma geração, privilegiada pelo roubo praticado pela geração anterior, ter de vir a prestar contas desse malfeito, abrindo mão dos privilégios que lhes foram indevidamente concedidos. "Dizem que a geração de hoje está inocente: trata-se apenas de um legado dos seus amores, cuja origem ela não conspurcou as mãos. Mas o esbulho, perpetrado pelos ascendentes, lava-se do seu vilipendio nas mais dos filhos, interessados em explorá-los?". A obra de Juremir Machado da Silva mostra que a escravidão foi juridicamente justificada pelo respeito à legalidade. Isso, sem se considerar que eram leis feitas por algozes. Instrumentos jurídicos formulados por brancos contra negros, por opressores contra oprimidos, por proprietários contra escravos. Segundo o autor, "não era um parlamento livre e representativo de toda a nação, mas a casa que geria os interesses dos cafeicultores escravistas do sudeste". A este respeito, José Bonifácio se mantinha altivo: "As leis civis, que consentem estes crimes, são não só culpadas de todas as misérias que sofre esta porção da nossa espécie, e de todas as mortes e delitos que cometem os escravos, mas igualmente o são de todos os horrores, que em poucos anos devem produzir uma multidão imensa de homens desesperados, que já vão sentidos o peso insuportável da injustiça, que os condena a uma vileza e miséria sem fim". Do outro lado da história estava ele, José de Alencar. "Toda lei é justa, útil, moral, quando realiza um melhoramento na sociedade e apresenta uma nova situação, embora imperfeita da humanidade. Neste caso está a escravidão". Para ele, "quem fere moralmente uma lei derrama sangue, como se apunhalara um homem". José de Alencar gozava da companhia do Barão de Cotegipe, para quem "a propriedade sobre o escravo, como sobre os objetos inanimados, é uma criação do direito civil. A Constituição do Império, as leis civis, as eleitorais, as leis da fazenda, os impostos, etc..., tudo reconhece como propriedade e matéria tributável o escravo, assim como a terra". A lei 3.270, de 28 de setembro de 1885, de fato reconheceu o direito de propriedade, taxando o valor dos escravos segundo suas idades e sexos, e elevando por meio de novos impostos de emancipação, para desta forma ainda mais apressar a extinção da escravidão. Um efeito extrafiscal. A ideologia da legalidade fez com que o Judiciário exercesse um papel importante na manutenção da escravidão. O deputado Morais Sarmiento somou às justificativas o álibi da maioria: "O tráfico era apoiado pela maioria da população". Pela Lei Feijó, de 1831, estava proibido o tráfico de escravos. Ela fazia de todo africano que tivesse entrado no Brasil a partir daquela data um homem livre. Alguns casos paravam nos tribunais, que contrariavam a lei, jamais revogada, e decidiam a favor dos proprietários. "Juízes alegavam que a lei caíra em desuso", anota Juremir Machado da Silva. "A Justiça foi um dos maiores sustentáculos da escravidão no Brasil, mesmo quando dispunha de instrumentos legais para agir em defesa do principio da liberdade e da dignidade humana", diz o autor. O tráfico negreiro tinha seus juristas. José de Alencar era um deles. "Eis um dos resultados benéficos do tráfico. Cumpre não esquecer, quando se trata desta questão importante, que a raça branca, embora reduzisse o africano à condição de uma mercadoria, nobilitou-o não só pelo contato, como pela transfusão do homem civilizado". Chega a ser sádico. Joaquim Nabuco denunciou a leniência dos magistrados escravocratas: "O escândalo continua, mas pela indiferença dos poderes públicos e impotência da magistratura, composta, também, em parte de proprietários de africanos; e não por que se pretenda seriamente que a lei de 1831 fosse jamais revogada". E havia aferições de constitucionalidade em benefício da escravidão. Em 1855, o Conselho de Estado determinou que era inconstitucional um escravo obrigar seu dono a libertá-lo mediante pagamento de seu valor de mercado. Tudo em nome do direito de propriedade. Em 4 de fevereiro de 1888, Monteiro de Azevedo, juiz, afastou a acusação de crime o açoitamento de escravos por um padre. No mesmo ano se deu o julgamento da milionária Francisca de Castro, acusada de açoitar as escravas Eduardo e Joana até cobrir-lhes os corpos de esquimoses. Foi absolvida. Tudo isso inspirou o acadêmico Josué Montello, em sua obra "Os tambores de São Luís", a escrever: "Um desembargador no Tribunal de Justiça que, ao saber que a abolição está chegando, exclama: 'Perdi meus pretos, perdi meus pretos'". Apenas quando um ex-cativo, advogado de escravos ilegais, Luiz Gama, usou a interpretação das leis e da Constituição como instrumento de luta, o cenário mudou. Em 26 de junho de 1883, o senador Silveira da Motta leu em plenário a sentença de um juiz: "Verificando-se da matrícula em original, à fl. 96, assinada pelo falecido inventariado, que o preto Galdino é natural da Costa d'África, e que nasceu em 1836, visto como tinha a idade de 36 anos em 1872, data da referida matricula; e cumprindo o decreto de 7 de novembro de 1831, que em seu art. 1o. declara livres todos os escravos que entrassem no excluído da partilha, e se lhe dê carta de liberdade, ficando livre aos interessados o direito de provar o seu estado de escravidão". Domingos Rodrigues Guimarães, juiz da pequena Pouso Alto em Minas Gerais, interpretou a lei em favor da dignidade dos escravos. Interpretando o conceito jurídico de "filiação desconhecida", juízes concediam alforria legal a escravos cujo senhor não conseguisse provar terem nascidos em terras brasileiras. Na dúvida, cabia ao proprietário provar a naturalidade do pretendido escravo. O governo, contudo, reagiu modificando a lei de 1887. Muitos juízes foram expulsos de suas casas por proprietários de escravos injuriados com sentenças desfavoráveis. Em 6 de agosto de 1886, o senador Sousa Dantas referiu-se longamente à morte de escravos por açoitamento. Dois escravos, depois de açoites infligidos em virtude de uma decisão judicial, morreram em caminho, na estação de Entre-Rios. Eis o telegrama do juiz de direito José Ricardo ao ministro da Justiça: "A cada um dos escravos condenados a trezentos açoites, foram aplicadas cinquenta de cada vez, nos dias em que se achavam em condições de sofrê-los sem perigo". Mas a verdade era a de que depois dos castigos um médico foi chamado para cortar nas nádegas dos escravos a carne apodrecida pela ação dos açoites, a fim de evitar a gangrena. Foram, os escravos, conduzidos da cidade a trote, acompanhando a marcha dos animais que levaram os empregados do senhor de escravos; e como estavam impossibilitados de correr, começaram a tomar chicote nas costas. O Código Penal, no art. 60, previa a pena de açoite. Foi a deixa para o ministro da Justiça, Ribeiro da Luz, chamado pelo Parlamento a dar explicações sobre a morte dos escravos, invocar a legalidade: "Mas enquanto não houver lei modificando o Código Penal, o Poder Judiciário não pode deixar de aplicar as penas nele consignadas". Nenhum fio de água a serviço da dignidade humana a ser visto nesse oceano de barbaridade e selvageria. Em 13 de maio de 1888, veio a Lei Áurea. "Art. 1o - É declarada extinta desde a data desta lei a escravidão no Brasil. Art. 2o - Revogam-se as disposições em contrário". Para o senador Dantas a Lei "vale por uma nova Constituição". Votaram contra: Paulino de Sousa, Cotegipe, Belisário, Pereira da Silva, Ribeiro da Luz e Diogo Velho. Mas há sempre a distância entre o idealismo transformador operado por leis e a realidade sentida nas engrenagens da elite brasileira. Dia 14 de maio de 1888, o jornal Diário do Maranhão exibia um de seus anúncios: "Aluga-se uma mulatinha de 14 anos de idade própria para todo serviço doméstico; e aluga-se também o 1o andar da casa nº 8 na rua dos Barbeiros, próxima ao Largo do Carmo, com muitos cômodos". O negro seguia sendo coisa, desumanizado. O jornal Diário do Maranhão passava a requerer um conjunto de medidas que marcaria, para sempre, a vida dos negros em sua própria terra: "Centenas de indivíduos sem ofício, e que terão horror ao trabalho entregando-se por isso a toda sorte de vícios, precisam ficar sob um rigoroso regime policial para assim poderem ser mais tarde aproveitados, criando-se colônias, para as quais vigore uma lei, como a que foi adotada na França, recolhendo o estabelecimentos especiais os vagabundos, sujeitando-os à aprendizagem de um ofício, ou da agronomia, para que mais tarde o país utilize bons e úteis cidadãos". Exigia-se ainda "aumento das polícias nas províncias, leis coercitivas do vício e da ociosidade; e tribunais correcionais com processos sumários". Era a criminalização antecipada do negro, visto como "vagabundo" por uma elite que se habituou a viver de privilégios, trabalhando pouco. Segundo anota Juremir Machado da Silva, "o Brasil consumiu e degradou mais de quatro milhões de africanos em várias etapas". Primeiro, foi o ciclo da Guiné, que dominou o século XVI. Depois, o de Angola, no século XVII. Já no século XVIII, predominou o ciclo de Benin e Daomé. Por fim, no século XIX, já com o tráfico condenado pela Inglaterra, surgiram mercados alternativos, como Moçambique. Hoje, no Dia da Consciência negra, importa a todos uma reflexão acerca das raízes do conservadorismo brasileiro. A obra de Juremir Machado da Silva é um bom começo de caminho, por isso a indico vivamente. Mais de cem anos se passaram. Olhem, vocês, à sua volta. Procurem os negros nas posições de liderança, nas esferas de poder, na tomada de decisões relevantes, nos quadros pendurados nas paredes de universidades influentes do país, nas grandes companhias, nas altas rodas ou nos altares de honrarias. Vocês não os verão. Não como eles merecem. Mas eles estão aqui, entre nós. A escravidão, com o seu legado horrendo, segue invisibilizando, negligenciando e excluindo. Como disse Joaquim Nabuco: "A escravidão permanecerá por muito tempo como a característica nacional do Brasil". Resta saber se um dia haveremos de nos levantar.
segunda-feira, 13 de novembro de 2017

PEC da gravidez forçada é retrocesso

Foi aprovado na Comissão Especial da Câmara dos Deputados o parecer à Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 181-A/2015 (apensada à PEC 58-A/2011), que altera a redação do art. 7o, XVIII, da Constituição, estendendo a licença-maternidade em caso de parto prematuro à quantidade de dias que o recém-nascido passar internado, "não podendo a licença exceder a 240 dias". Na justificativa do parecer aprovado, consta o seguinte: "Impõe-se, em razão dessas considerações, tornar ainda mais claro o espírito da Constituição e da nossa tradição cultural e jurídica - como antes demonstrado - no sentido de, na linha da extensão da licença-maternidade daquele que existia prematuramente, proteger a pessoa humana 'desde a concepção'". Noutras palavras, a PEC fixa constitucionalmente o início da vida: a concepção. A partir desse momento, a Constituição passará a reconhecer todos os direitos de uma "pessoa humana". É uma iniciativa que desmantela a harmonia do texto constitucional na matéria, que, sabiamente, optou por não fixar o início da vida exatamente para que, de tempos em tempos, possa, o Supremo Tribunal Federal, diante dos casos concretos levados ao seu julgamento por uma sociedade complexa, discutir a questão de maneira racional e aberta à crítica pública. A Constituição Federal de 1988 fala sobre a vida, sem dizer, contudo, quando ela se inicia. Diz, por exemplo, ser inviolável a vida privada (art. 5º, X). Quando remete à lei complementar o estabelecimento de outros casos de inelegibilidade, ordena que se considere a vida pregressa do candidato (art. 14, § 9º). Remete ao júri o julgamento dos crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII). Segundo o caput do art. 5º, é garantido aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida. Para gozar desses direitos há de ser brasileiro/brasileira e estrangeiro/estrangeira residente no país. O feto não é brasileiro, nem estrangeiro, nem residente no país. Pelo menos não ainda. O art. 227, que impõe deveres à família, à sociedade e ao Estado, determina que se assegure à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. O feto não é criança, nem adolescente, nem jovem. É verdade que a Constituição não nega o ciclo das novas gerações. Tanto que, no art. 225, dispõe que o meio ambiente ecologicamente equilibrado é essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações. Mesmo assim, não diz quando começa a vida. Protege, reconhece..., mas não diz quando ela se inicia. No inciso V, parágrafo § 1º, do mesmo art. 225, diz incumbir ao Poder Público controlar a produção, a comercialização e o emprego de técnicas, métodos e substâncias que comportem risco para a vida, a qualidade de vida e o meio ambiente. Fala em "controlar" emprego e técnicas que comportem risco para a vida. Mas, quando ela começa? A Constituição não responde. E, quando dispõe sobre a gravidez, o faz com atenção à grávida. Segundo o art. 201, II, a previdência social atenderá, nos termos da lei, a proteção à maternidade, especialmente à gestante. O art. 7º, XVIII, por sua vez, dispõe serem direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de 120 dias. É a gestante que aparece como objeto de proteção. O art. 7º, I, estipula, como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, relação de emprego protegida contra despedida arbitrária ou sem justa causa. O ADCT, em seu art. 10, II, 'b', dispõe que até que seja promulgada a referida lei complementar, fica vedada a dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. A Constituição empodera a mulher. Ela não pode ser arbitrariamente dispensada. Confirma-se a gravidez, assim como o parto, mas nem por isso é possível se afirmar, à luz da Constituição, quando começa a vida. Por isso, vale recordar o raciocínio da ministra Rosa Weber no voto que proferiu na ADPF 54 (fetos anencéfalos). Para a ministra, praticar o infanticídio não gera penas tão graves quanto as do homicídio, que, por sua vez, é punível de forma mais exasperada do que a prática de um aborto. A lesão corporal grave tem pena máxima maior do que a do aborto. O aborto provocado sem o consentimento da gestante tem pena de 3 a 10 anos, inferior à de homicídio. Para a ministra Rosa Weber, espera-se menos da relação da gestante e da sociedade com o feto do que na relação entre dois indivíduos já formados organicamente no que tange à proteção da vida e do direito à plenitude da integridade física como bens jurídicos. O estupro é causa de excludente ilicitude do aborto (art. 128, II, do Código Penal), mesmo que o feto seja viável. Ou seja, em caso de inviabilidade da vida humana, presente vida tão somente biológica, não há como concluir que proteja o ordenamento, o feto em detrimento da mãe. "A leitura sistêmica conduz à compreensão de que a proteção está do lado da mãe", anotou a ministra Rosa Weber. É isso mesmo. Mesmo Constituições de países dominados pela Sharia, como a Somália, seriam mais generosas do que a do Brasil, caso alterada pelos termos atuais da PEC 181-A/2015. A Constituição da Somália permite a interrupção da gravidez quando a mãe tem de fazer a grave escolha entre a própria vida e a do feto. A PEC brasileira, contudo, se limita a assegurar todos os direitos inerentes à pessoa humana ao feto, desde a sua concepção. Se, antes, já era uma aberração dizer a uma mulher que a condição do perdão em caso de interrupção da gravidez era ter sido estuprada, imagine agora, quando sequer esse perdão lhe concederão. A nova redação da PEC cria um tipo de gravidez compulsória. A gestante vira propriedade do Estado. A proposta, nos termos do relatório aprovado pela Comissão Especial da Câmara, abriria espaço para uma batalha jurídica sem precedentes, que poderia resultar, no limite, nos seguintes problemas: (i) questionamentos sobre a constitucionalidade da comercialização da pílula do dia seguinte, uma vez que o direito à vida passa a ser integralmente reconhecido desde a concepção; (ii) dúvidas quanto à constitucionalidade da Lei de Biossegurança, que permitiu a pesquisa com células-tronco embrionárias (ADI 3510); (iii) negação do direito da gestante em optar pela própria vida em detrimento da do feto na hipótese de gravidez de risco; (iv) mulheres poderiam ter de gerar o fruto de estupros, pois a vida há de ser absolutamente preservada "desde a concepção"; (v) reversão do precedente do STF que permitiu a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos (ADPF 54); (vi) reversão do precedente da 1a Turma do STF permitindo a interrupção da gravidez em até 12 semanas de gestação (HC 124.306); (vii) impossibilidade de interrupção da gravidez em caso de microcefalia decorrente do Zika (ADI 5581); e (viii) impossibilidade de o STF apreciar a ADPF 442, que requer a descriminalização do aborto sob certas condições. É como se, após um cochilo, acordássemos num passado distante. Se, o que se queria, era presentear as mulheres com a ampliação do direito à licença-maternidade, o preço que se cobrou foi alto demais. Melhor seria simplesmente recusar a oferta. Não sem razão a PEC tem sido chamada de "Cavalo de Tróia". É, de fato, um "presente" de grego.
Luiz Maklouf Carvalho, jornalista premiado, colocou à disposição da sociedade um tesouro sobre a "vontade do Constituinte", método de interpretação da Constituição invocado com frequência. A obra "1988: segredos da Constituinte: Os vintes meses que agitaram e mudaram o Brasil", da Record, mostra que a "vontade do Constituinte" pode ser imprestável à interpretação constitucional. Vamos ao livro. O Congresso Constituinte - 1987/1988 - teve início com os seus 559 integrantes no primeiro dia de fevereiro de 1987 - um domingo - em sessão solene presidida pelo presidente do Supremo Tribunal Federal, José Carlos Moreira Alves, indicado à Corte pelo general Ernesto Geisel. A sessão solene deixou de fazer menção a Tancredo Neves, o fiador de todo o processo de redemocratização, alguém que deu não apenas a vida ao Brasil, mas a morte. Aécio Neves, o neto, deputado constituinte, acusou o golpe e dia seguinte o Congresso fez um minuto de silêncio pela falha. Não foi uma Constituinte exclusiva, mas um Congresso Constituinte, em que a Câmara e o Senado continuaram funcionando. Dos 559, eram 487 deputados e 72 senadores. Desses, 23 haviam sido eleitos antes, em 1982, e tiveram sua legitimidade questionada para votar na Constituinte. Votaram mesmo assim. Apenas 26 eram mulheres. Havia 243 bacharéis em Direito. A Constituição seria feita, na primeira etapa, por oito comissões temáticas, cada qual com três subcomissões, nas quais os 559 constituintes se dividiriam, por indicação dos líderes partidários. Na segunda etapa, as propostas decididas nas 24 comissões seguiriam para a Comissão de Sistematização composta por 93 parlamentares. Havia a Subcomissão dos Negros, Populações Indígenas, Pessoas Deficientes e Minorias. Também a Comissão da Soberania e dos Direitos e Garantias do Homem e da Mulher. Na formação das 24 comissões [e subcomissões], nenhuma mulher foi indicada presidente. As mulheres, contudo, lutaram pelos seus direitos. O primeiro foi o direito a um banheiro. Não havia toilette feminino na Constituinte. Maria de Lourdes Abadia, deputada, recorda: "Sabe o que eles falavam pra gente? Vocês não querem ser iguais aos homens? Aprendam a mijar de pé!". Ulysses Guimarães entregou a chave do banheiro do seu gabinete temporariamente. Depois, resolveu a questão. Havia alguma brutalidade. O então diretor-Geral da Câmara dos Deputados, Adelmar Sabino, que o diga. "Uma vez foi um barbudão, da CUT, fortão, que começou a gritar palavrão. Eu pedi pra se acalmar, mas não adiantou. Aí eu mandei os seguranças darem um pau nele. Pegaram o sujeito de porrada amarraram pelas pernas e jogaram lá fora. Veio uma mulher tomar satisfação. Dá um pau nessa mulher também!". Um pouco do backstage da festa democrática brasileira. O presidente da República, José Sarney, havia criado a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais encarregada de elaborar um anteprojeto da Constituição. Com cinquenta integrantes, ela foi presidida por Afonso Arinos de Mello Franco, já com 84 anos. Ulysses Guimarães, contudo, resolveu partir do zero e desprezou o anteprojeto, nada obstante o texto tenha influenciado os trabalhos em algum medida. O presidente recorda o conselho que recebeu do general Geisel quando anunciou que discutiria a redução do seu mandato de seis para cinco anos - contra os quatro anos que havia prometido na eleição. "Ô Sarney, eu quero lhe dar um conselho: não discuta o tempo do seu mandato. Entregue ao Supremo Tribunal Federal, que ele decide com a Constituinte", aconselhou Geisel. Já era, antes da Constituição, a judicialização da política recomendada por um General. Para Sarney, "a Constituição passou a ser uma caixa de pressão, transformou-se numa bacia das almas". Antônio Britto, outro Constituinte, faz coro: "O momento no Brasil era de conferir poderes divinos à Constituição. O lema da sociedade com a Constituição era 'o que a gente escrever, acontecerá'". José Fogaça, integrante, diz que "o carro da constituinte só tinha farol traseiro", opinião desfrutada por Antônio Britto: "poucos de nós fizeram a Constituição olhando para o futuro". Outra reflexão vem de Jorge Bornhausen: "Colocamos a CLT dentro da Constituição, consideramos o Estado todo-poderoso, capaz de resolver a saúde e a educação de todos os brasileiros. Houve certo utopismo". São testemunhos dos constituintes. Miguel Reale Júnior, que assessorou a presidência do Congresso, imortalizou a frase "a Constituinte foi uma grande passarela por onde desfilou a sociedade, da tanga à toga". Mas mesmo essa ampla participação popular foi questionada. Com a conclusão do texto, Ulysses Guimarães disse: "Sarney, olhe, passaram 12 milhões de pessoas aqui durante a Constituinte. Isso mostra a participação". No que o presidente comentou: "(...) a única que sobreviveu até nós, até hoje, é a Constituição americana, que foi feita por 32 pessoas". O presidente Sarney chegou a se referir à Constituição como "aquela coisa lamentável". É a vontade do Constituinte na versão bruta. A elaboração da Constituição gerou coléricos debates desde o seu preâmbulo. Segundo Sandra Cavalcanti, deputada constituinte, "a única coisa que eles não queriam, de jeito nenhum, era citar a proteção de Deus. Foi outra guerra". Mas e quanto aos termos constitucionais de múltiplos significados? Por quê tantos? A verdade é que, quando não era possível um consenso acerca de um dispositivo, acontecia o "buraco negro". Qual a saída? Bernardo Cabral, o relator, responde: "Colocar 'Na forma da lei'. Não tinha outro caminho". Está explicado. O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, entrevistado na obra, recordou que Felipe González [primeiro ministro da Espanha entre 1982 e 1996] lhe disse que toda boa Constituição tem que ser ambígua, como a Bíblia. "Porque tem que dar margem a interpretações diversas". Maklouf ironiza: "Nisso a nossa é campeã absoluta, não?". No que FHC confirma: "É campeã". Antônio Britto encorpa o raciocínio. "Como é que se resolve um impasse? Usando palavras neutras ou estéreis, e depois, no futuro, se identificará o que elas são. Essa é uma bela saída para resolver problemas de texto. Se eu disser que a finalidade de uma coisa é promover o equilíbrio e o desenvolvimento, você não sabe de que coisa eu estou falando e concorda com a minha frase". Claríssimo. Outra vem de Ibsen Pinheiro. "Alguns dos piores textos da Constituinte foram unânimes, porque com frequência a gente optava pela inocuidade", afirma. Nenhum dos constituintes ouvidos por Maklouf foi tão didático nesse particular como Nelson Jobim: "Isso aí tem cem votos, ninguém vai votar desse jeito que está.... Então eles pediam que eu introduzisse ambuiguidades. Eu ia tornando o texto mais ambíguo até conseguir o voto da maioria. Era um negócio genial". Jobim segue: "O jogo era esse. Tu tinha que trabalhar com ambiguidades. Quando não se conseguia o acordo, e não tinha solução num texto ambíguo, eu usava a técnica de jogar pra a lei complementar ou lei ordinária". Novamente, a vontade do Constituinte. E quanto aos lobbies? "É evidente que o lobby dos servidores públicos criou um regime único, difícil de administrar. Constitucionalizaram privilégios", afirma Luiz Carlos Bresser-Pereira. Uma cena constrangedora é lembrada por Fernando Henrique Cardoso: "Uma vez, na Comissão de Sistematização, eu mandei uns juízes se retirarem de uma sala. Era uma vergonha. Os setores organizados da sociedade, que tinham um nível mais elevado, entravam em tudo. O lobby era muito grande na Constituinte". Para Oscar Corrêa Júnior, deputado Federal (PFL/MG) e filho do ministro do STF, Oscar Corrêa, "o lobby do Supremo era forte". Não apenas o do STF, mas de todo o Judiciário. Carlos Ary Sundfeld anota: "Os juízes Federais, por exemplo, adorariam se tornar desembargadores federais - e não existia esse cargo. Opa, seria muito bom de houvesse essa reforma na Justiça Federal, criando uma segunda instância, os tribunais regionais federais e o Superior Tribunal de Justiça. A existência do STJ, como terceira instância, lhes dava oportunidade de ascensão profissional. É uma mudança que está muito em linha com as oportunidades da carreira. E foi feita. Mas outras mudanças que colocassem em risco o modelo, como a do Conselho Nacional de Justiça, não foram feitas". Outra testemunha foi Miguel Reale Júnior. "Era só lobby. O dos magistrados, por exemplo, foi um dos maiores. O do Ministério Público, o da Polícia Militar, da Policia Civil, do Banco do Brasil, da Petrobras... Quem conseguiu obter benefícios ou privilégios, fundamentalmente, foram as categorias organizadas. Foi o corporativismo, especialmente, o corporativismo estatal", afirma. O debate atual acerca do nosso modelo presidencialista pode ser iluminado pelo relator da Constituinte, Bernardo Cabral: "Eu trabalhei pelo Parlamentarismo na Comissão de Sistematização, nós aprovamos. Quando derrubaram, e ficou o presidencialismo por uma emenda do [senador] Humberto Lucena, eu disse a ele que precisava tirar o artigo da medida provisória, mas afeito ao parlamentarismo. (...) Eu chamei a atenção, para tirarem, porque iam dar ao presidente da República mais poder do que qualquer ditador da nossa revolução". Bernardo Cabral, do Amazonas, marcou posição quanto à imunidade tributária da Zona Franca de Manaus. Segundo Maílson da Nóbrega: "Ele só discordou com um ponto: tirar o prazo do benefício fiscal da Zona Franca de Manaus, que ele tinha posto como de quinze anos". E quanto ao direito à educação (capítulo III da Constituição)? Qual teria sido a vontade do Constituinte. Oscar Corrêa Júnior nos ajuda a saber: "Pode ter certeza que muita coisa relacionada ao capítulo da própria educação saiu da casa do Di Gênio". Refere-se a João Carlos Di Gênio, dono do grupo Objetivo. Ficaram famosas as festas que ele oferecia, em sua casa no Lago Sul, em Brasília. Nelson Jobim recorda: "O Di Gênio fazia jantares e convidava um grande número de deputados. Tinha uma tenda de circo na frente da casa. De repente abria uma porta e começava a sair mulher de dentro. Umas gurias bonitas pra burro (...)". Imagine só um caso complexo relativo ao direito constitucional à educação sendo decidido à luz da vontade do Constituinte. Discorrendo sobre dois parlamentares que o visitaram para levar proposta de incluir na Constituição uma anistia da dívida bancária dos agricultores, Maílson da Nóbrega confidencia: "A ideia era uma disposição constitucional que dissesse 'os agricultores não precisam pagar suas dívidas'. Eu falei: 'Isso é inadmissível, vai ser um custo enorme para o país, com impactos terríveis para a própria agricultura. Quem é que vai emprestar sabendo que o Congresso pode cancelar as dívidas?'". Maílson achou que eles estavam blefando. "Era tão absurdo que não era possível que fosse aprovado. Mas foi". A sorte é que o deputado Roberto Freire, do PCB, apresentou uma emenda que restringia o benefício aos pequenos produtores [art. 47, II]. Maílson da Nóbrega lembra que "a Constituição chegou ao ponto de determinar onde moraria o juiz" [art. 93, VII]. Recorda que "o capítulo dos direitos trabalhistas, por exemplo, tem dispositivos que antes constavam de portaria ministerial". A vontade do Constituinte também pode ser encontrada nas palavras do deputado José Fogaça, quanto ao número de parlamentares do Congresso: "O Siqueira Campos fez greve de fome para que a Constituinte votasse a criação do estado do Tocantins. Aquilo desencandeou um processo terrível para o país. Todos os territórios se transformaram em estados, com super-representações. Como Goiás perdeu o Tocantins, os deputados de Goiás reivindicaram uma mudança no critério de contagem. O mínimo anterior eram quatro deputados por estado. Passou-se a ter oito. A proporção era completamente injusta em relação a São Paulo, Minas e Rio de Janeiro. Oito deputados mínimos, em São Paulo, na Bahia, no Rio Grande do Sul, é uma coisa. Mas em Roraima é muito". Para Fogaça, "foi uma das coisas mais erradas da Constituição - e resultou nesse parlamento desnessariamente superlativo de 513 deputados" [art. 45, § 1º]. Tudo por uma greve de fome. Agora, que tal sabermos mais sobre o dispositivo que previa a limitação da taxa de juros reais a 12% ao ano [§ 3º do art. 192, revogado pela EC 40/2003]? Quem explica é o hoje senador José Serra: "Eu era secretário do Montoro, e tinha capitaneado um aumento do ICM de um ponto percentual, e consegui que o Delfim [Neto, então ministro da Fazenda] mandasse o pedido para o Senado, e aumentou. E aí, no jantar, o Gasparian criticou isso. Falou que era um absurdo, porque o aumento de imposto ia diminuir a arrecadação. Eu disse 'Ah, Fernando, essa é a conversa de sempre. Nunca se vai reajustar um imposto, porque no limite sempre tem esse argumento'. Ele ficou magoado comigo e tal. Mas o fato é que ele se elegeu deputado, na Constituinte - já estava assim comigo - e veio com essa proposta, dos 12%". Francisco Dornelles também deixou a sua versão: "Houve uma votação sobre a reforma agrária - e o Ronaldo César Coelho, banqueiro, votou a favor, com a esquerda. A bancada ruralista resolveu dar o troco no Ronaldo - e votou nos 12% do Gasparian". Eis a vontade do Constituinte mais uma vez revelada. E o que o Constituinte acha do sistema tributário? "Do ponto de vista fiscal e tributário é um negócio inacreditável. A gente desenhou todas as despesas e não desenhou simultaneamente as receitas. Então as despesas e as receitas não casaram, não são conciliáveis", diz Antônio Britto. José Fogaça também divide impressões sobre a Constituição: "Nenhuma Constituição do mundo trata do sistema financeiro no seu texto" [capítulo IV da CF]. Para quem quer saber sobre a imunidade tributária do papel [art. 150, VI, 'd'], vale ler o diálogo entre Luiz Maklouf Carvalho e o José Lourenço, deputado constituinte. Maklouf: A Veja fez uma boa cobertura da Constituinte. E o senhor foi dos poucos constituintes entrevistados nas Páginas Amarelas. José Lourenço: Fui um dos primeiros. Eles queriam isenção de impostos na importação do papel. Na obra, Francisco Dornelles diz como foi a aprovação do dispositivo da livre iniciativa [parágrafo único do art. 170]. "O Lula me ajudou a aprovar uma emenda que até hoje está na Constituição, 'A iniciativa privada pode exercer toda e qualquer atividade, a menos que proibida por lei', alguma coisa assim. Botei em votação, na parte da tarde. Faltavam dois votos para ganhar. Entra no plenário o Valmir Campelo, que me deu um voto. Entra o Lula: 'Ô Lula, me dá um voto'. Ele disse: 'Se a emenda é sua, deve ser contra a pátria ou contra o povo'. Eu falei: 'Não, essa é a favor da pátria e do povo'. Ele respondeu: 'Vou dar, mas estou certo que é contra'. E deu o voto". Nelson Jobim, por sua vez, com a sua franqueza matemática, confidencia os bastidores do dispositivo relativo ao repouso remunerado aos domingos [art. 7o, XIV]: "O texto da esquerda queria 'repouso semanal remunerado obrigatoriamente aos domingos'. A direita queria 'repouso semanal remunerado, na forma de convenção ou contrato coletivo de trabalho'. E deu-se o impasse. (...) Então fiz uma redação, aprovada pela direita e pela esquerda que está na Constituição: '[repouso semanal remunerado, preferencialmente aos domingos'. (...) Não era obrigatório, era preferencial. Todo mundo aprovou [risos de satisfação]". Houve de tudo. Joaquim Falcão lembra de Milton Santos, oftalmologista e cientista mineiro, que propôs um artigo dizendo que "o corpo do morto pertencia ao Estado". Ele precisava ter um banco de transplante de córneas. "Prometemos doar as nossas córneas. O senhor tem razão, falta córnea, está aqui a minha, mas não bote na Constituição [risos]", recorda o professor Joaquim Falcão. Fernando Ernesto Corrêa, assessor da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (ABERT), também deu depoimento a Luiz Maklouf Carvalho. Ele recordou que havia um grupo que defendia a proibição de qualquer tipo de publicidade de cigarro, bebidas alcoólicas e agrotóxicos. "O que nós conseguimos? [lendo o parágrafo 4o do inciso II do art. 220]: 'a propaganda comercial de tabaco, bebidas alcoólicas, agrotóxicos, medicamentos e terapias estará sujeito a restrições legais'. Essa palavra, restrições, fui eu que coloquei. Por que restrição e uma coisa, proibição é outra. (...) eles queriam 'acabar com o monopólio da Globo'. Então nós colocamos [lendo o parágrafo 5o. do inciso II do art. 220]: 'os meios de comunicação social não podem, direta ou indiretamente, ser objeto de monopólio ou oligopólio'". E não acaba aí. "Queriam colocar que 30% da programação tinha que ser local, regional. Nós colocamos aqui [lendo o art. 221]: 'A produção e a programação das emissoras de radio e televisão atenderão aos seguintes princípios'. Depois teria que haver uma lei [inciso III do art. 221], regionalização da produção cultural, artística e jornalística, conforme percentual estabelecidos em lei, que até hoje, quase trinta anos depois, não saiu. Foram essas jogadas que a gente fez", afirma o representante da ABERT. Parece não ter fim. Fernando Ernesto Corrêa tem apetite para falar: "E o artigo [222] de que a radiodifusão tem que ser privativa de brasileiros? Tinha a questão do Adolfo Bloch [dono da Rede Manchete], que não é brasileiro. Então, aí, em vez de botar [lendo o 222] 'a propriedade dos veículos de radiodifusão tem que pertencer a brasileiros natos', nós botamos 'brasileiros natos ou naturalizados há mais de dez anos', para salvar o Bloch". Mais uma lição sobre a vontade do Constituinte. Atualmente, com o fim do chamado imposto sindical obrigatório, vale saber o que pensava Jair Meneguelli, presidente da CUT. "A CUT defendia a unidade sindical e o fim do imposto sindical. Teria acabado ou pelo menos diminuído esse absurdo de sessenta pedidos de novos sindicatos a cada mês". Olha só! Theodoro Mendes, Constituinte, diz que a proposta do art. 37 dizia: 'A primeira investidura em cargo público dependerá de concurso de provas e títulos'. "Ou seja: o cara entrava como ascensorista, por concurso, e depois ia pulando de galho em galho. Eu fiz uma emenda retirando a palavra primeira", afirma. Recentemente, a fala do general da ativa, Antônio Hamilton Martins, em defesa da possibilidade de intervenção das forças armadas [art. 144 da Constituição], gerou reações imediatas. O presidente Sarney revela a vontade do Constituinte nesse particular: "Quando eles tentaram fazer uma redação em que as forças armadas não podiam intervir na ordem interna, houve uma reação muito grande da área militar". Heráclito Fortes, mais um Constituinte, diz que, na Constituição [art. 5o do ADCT], havia "um penduricalho que garante, na sucessão dos prefeitos em exercício, a disputa de parentes em primeiro grau. Nós tivemos um caso concreto: em Campina Grande, na Paraíba, o [deputado constituinte] Cássio Cunha Lima sucedeu Ronaldo [Cunha Lima], que era seu pai". Quanto ao Ministério Público [capítulo IV, seção I, da CF], Ibsen Pinheiro revela: "Eu me arrependo de não ter posto as correspondentes responsabilidade. As prerrogativas são importantes, mas a irresponsabilidade é muito grave. O promotor pode fazer uma ação civil pública, ao gosto dele, para mandar alguém fazer tratamento nos Estados Unidos, por exemplo, ou trocar uma ponte de um lugar para o outro - e não responder por isso com o seu bolso quando a lide é temerária. Faltou essa responsabilização, entre outras". Já Francisco Dornelles, confidenciou: "Oscarzinho [Dias Corrêa Júnior] que enxertou o Ministério Público de Contas". Michel Temer, o quarto Constituinte a presidir o país (os outros foram Itamar Franco, Fernando Henrique Cardoso e Lula), diz que havia um artigo: São poderes do Estado o Legislativo, o Executivo e o Judiciário [art. 2o]. "Eu propus que se colocasse de outra maneira: 'São poderes do Estado - independente e harmônicos entre si - o Executivo, o Legislativo e o Judiciário'. Foi aprovado", gaba-se o presidente. Se hoje todos falamos sobre formas de persuasão racional e sobre a força do argumento, a Constituinte lidava com esses conceitos ao seu modo. Na Comissão de Agricultura, a esquerda lutava pela reforma agrária. Contrário, José Lourenço tentou persuadir os colegas: "Eu encostei no sujeito e disse: 'Se der mais um passo eu lhe fodo, seu filho da puta. Meto bala, para aí, não vai assinar porra nenhuma'". O reforço argumentativo veio com um revólver 38 mm na cintura. A equiparação de direitos entre portugueses e brasileiros [art. 12, § 1º] também contou com debates. José Lourenço, que era português, ouviu do colega Paulo Ramos, do Rio de Janeiro: "Vossa Excelência, como filho de Portugal, não deveria estar sentado nessa bancada que deveria ser exclusiva para filhos do Brasil". Lourenço reagiu: "Quero dizer a Vossa Excelência que eu prefiro ser filho de Portugal do que ser como Vossa Excelência, que é filho da puta". Um debate parlamentar com método socrático à brasileira. Quanto à licença-paternidade (art. 7o, XIX), proposta por Alceni Guerra, inicialmente a maioria votaria contra. Ulysses Guimarães pilheriou: "A alegria do pai se faz nove meses antes". Alceni, magoado, foi à tribuna e reagiu. "Todo mundo que ira votar contra votou a favor", recorda o presidente Temer. Também aconteceram surpresas. Roberto Jefferson propôs o fim das polícias militares. "Estão extintas as policias militares. Seus efetivos serão integrados à polícia civil", constava. Quanto ao FGTS [art. 7o, III], recorda: "Quem sugeriu a multa de 40% do Fundo de Garantia fui eu. Escrevi aquela emenda em cima da perna". Na questão do aborto, Sandra Cavalcanti, deputada Constituinte, recorda que "a guerra foi em torno de acrescentar ou não, depois de direito à vida, a expressão desde a concepção, defendida pelos grupos mais contrários ao aborto. O Bernardo Cabral e eu chegamos à conclusão de que nem se devia tocar nesse assunto". A colega Maria de Lourdes Abadia afirma que "na discussão do aborto, a imprensa só ouvia as mulheres, como se fizessem os filhos sozinhas". E continua: "Fechamos questão na campanha contra o aborto, que não deixamos botar na Constituinte. Uma vez eu fui num debate, no programa do Ferreira Netto. Na chegada, as feministas jogaram tomate na gente". O que diria uma interpretação originalista acerca da constitucionalidade da criminalização do aborto atualmente? Para fechar, um personagem influente, o General Leôndidas, expressa seus sentimentos quanto a nossa Constituição: "Ela não presta, em termos, porque nós também não prestamos, em termos". Um homem direto em suas conclusões. A obra "1988: segredos da Constituinte - Os vinte meses que agitaram e mudaram o Brasil", de Luiz Maklouf Carvalho, é uma matéria-prima necessária a todos nós. O livro desnuda os corpos que conduziram a elaboração da Constituição Federal de 1988 e abre cortinas que estavam fechadas ao público, impedindo-o de conhecer melhor o grande teatro da nossa atual democracia constitucional. As revelações em nada obscurecem as conquistas da Constituição, mas deixam o seguinte questionamento: Devemos mesmo tentar interpretar a Constituição a partir de uma tal vontade do Constituinte? Como guiar uma discussão, por exemplo, sobre direito à educação à luz da vontade do Constituinte quando se afirma que dispositivos foram escritos sob uma tenda de circo numa mansão do Lago Sul por parlamentares entretidos com corpos femininos pagos por um empresário? Qual a vontade deles ali? Por isso, a ideia de uma interpretação originalista da Constituição brasileira, no limite, pode ser uma quimera. O fato de a obra de Maklouf aguçar a curiosidade dos estudiosos em relação a esse tradicional método de interpretação já mostra o valor do livro e, também, a perspicácia intelectual do autor. Vale cada página.
Na noite de segunda-feira, dia 23/10, o professor Roberto Gargarella, acadêmico de renome na Argentina e no mundo, proferiu palestra em Brasília a convite do Instituto de Diálogos Constitucionais - IDCON, numa iniciativa do ministro do Supremo Tribunal Federal, Luís Roberto Barroso, da professora Lilian Rose, do UNICEUB e do advogado Miguel Gualano de Godoy. Falando sobre "Diálogos Institucionais" a partir da prática de diferentes Supremas Cortes e Cortes Constitucionais, Gargarella, trouxe quatro modelos inovadores cuja relevância em seus países, segundo o professor, foi do êxtase à descrença: 1) Notwithstanding clause (cláusula do não-obstante) no Canadá; 2) Meaningful engagement (engajamento significativo) na África do Sul; 3) Prior consultation (consulta prévia) na Colômbia; e 4) Public hearings (audiências públicas) no Brasil1, Argentina e México. Esses institutos, ao abrirem a jurisdição constitucional a atores diversos, ou ainda, ao entregarem a outros poderes - no caso, o Parlamento canadense - a última palavra quanto a certas matérias decididas pela Suprema Corte, estariam, no sentir de Gargarella, inovando no judicial review e, com isso, permitindo que certos experimentalismos pudessem revestir essa esfera de poder de elementos outros àqueles que lhe são tradicionalmente reconhecidos, como o déficit democrático combinado com o caráter contramajoritário. Seria uma inovação interessante. Gargarella explicou que todos os referidos institutos foram inicialmente vistos com profundo entusiasmo pelos acadêmicos para, depois, demonstrarem fragilidades e limitações quanto a uma verdadeira capacidade de transformação das características essenciais da revisão judicial, características essas criticadas por pensadores como Mark Tushnet e Jeremy Waldron. Outro agravante seria o fato de as próprias Cortes, nada obstante tenham, incialmente, impulsionado esses instrumentos, posteriormente os abandonaram, reduzindo sua eficácia e afastando-os da rotina de suas decisões. O Brasil, e o Supremo Tribunal Federal, não passam imunes ao tema. Talvez quem mais francamente tenha discorrido sobre o "diálogo institucional" brasileiro a partir do Supremo tenha sido o saudoso ministro Teori Zavascki. Passada a euforia inicial com os "diálogos institucionais", que, assim como nos outros países, migrou do entusiasmo à decepção, essas iniciativas ganharam uma crítica direta do ministro Teori ao votar na ADI 4650, que questionava as formas de financiamento privado de campanhas. O ministro rejeitou o pedido do Conselho Federal da OAB, que requeria a promoção de um "diálogo interinstitucional" entre o STF e o Congresso Nacional. A justificativa do ministro foi longa, mas definitiva: "Cumpre desde logo registrar que o 'diálogo interinstitucional' proposto constituiria, na verdade, apenas um monólogo unidirecional: o STF 'exortaria' o Congresso a legislar em determinado sentido, num certo prazo, sob pena de, não o fazendo, ficar essa incumbência transferida ao Tribunal Superior Eleitoral. É, como se percebe, uma proposta inovadora, estranha e, no meu entender, incompatível com os modelos constitucionais de solução de omissão ou insuficiência da atividade legislativa, especialmente no âmbito de ação direta de inconstitucionalidade. Mesmo nas hipóteses especiais de procedência de ação de mandado de injunção ou de inconstitucionalidade por omissão, não haveria base constitucional para o Judiciário avançar sobre atribuições típicas do Poder Legislativo, nos moldes pretendidos, especialmente para delegá-las ao Tribunal Superior Eleitoral". O voto do ministro Teori Zavascki, aliado às reflexões de Roberto Gargarella, mostra que, no Brasil, como no mundo, os diálogos institucionais têm suas limitações. Isso, contudo, inspira uma investigação científica para além dos instrumentos formais de diálogo institucional, como a fórmula do apelo ao legislador, e também do constitucionalismo dialógico integrado pelas audiências públicas e os amici curiae. É que, no Brasil, talvez não haja meramente os institutos formais de diálogos institucionais, mas inúmeros "diálogos institucionais informais" desempenhados diariamente pelo Supremo Tribunal Federal, ora para reconstruir laços de poder esgarçados, ora para interagir com os grupos vulneráveis afetados por suas decisões, ora para arbitrar conflitos submetidos à sua jurisdição com chances de conciliação. A verdade é que toda Suprema Corte ou Corte Constitucional deve guardar sintonia com a cultura das pessoas a quem ela afetará. Não que isso represente um óbice ao próprio poder transformador da Constituição. De modo algum. Estudar as práticas e iniciativas de uma Suprema Corte à luz da cultura na qual esta Suprema Corte está imersa nada mais é do que reconhecer que, na análise social, as pessoas contam. A cláusula do não-obstante (notwithstanding clause) do modelo canadense, por exemplo, que nasceu em 1982, segundo Gargarella com impressionante entusiasmo acadêmico, hoje mostra resultados demasiadamente discretos. Precisamos, nós, importar algo semelhante? Talvez não. Isso porque o instrumento provoca em nossa gente lembranças traumáticas reabrindo feridas que supúnhamos curadas. É que esse tipo de comando remete nossas memórias à Polaca, Constituição autoritária de 1937 que, em seu artigo 96, parágrafo único, permitia a reversão da decisão do STF pelas forças políticas - Executivo e Legislativo -, em nome do "interesse nacional". Insistiríamos em imitar um modelo estrangeiro cuja lembrança simbólica - a praxe canadense contemporânea, obviamente, nada tem a ver com a de Getúlio em 1937 - nos atormenta. Em 2010, quando teve impulso a proposta de emenda à Constituição nº 33/11, que autorizava o Congresso Nacional a revisar decisões do STF, fortes e apaixonadas reações da comunidade foram despertadas, fruto da ferida deixada pela subalternidade que a Polaca impôs a nossa Suprema Corte. A reação social a uma tentativa da elite política - ou acadêmica - em fabricar em nossa história uma nova cláusula do não-obstante (notwithstanding clause) não deixa de ser uma legítima defesa coletiva, uma reafirmação do princípio do never again, uma reação ligada à cidadania constitucional. É como se dissessem: "Tivemos a Polaca. As forças políticas humilharam um Tribunal que existe para proteger os nossos direitos. Respeitamos os modelos estrangeiros e sabemos que o Brasil de hoje - e o Canadá - são diferentes do país conduzido por Vargas. Mesmo assim, pedimos que respeitem a nossa história e simplesmente parem". Exatamente por essas singularidades é que cada país deve ser original - e digno - o suficiente para criar os seus próprios instrumentos de diálogos institucionais. Vejamos o interessante exemplo do Quênia. Intrigado com a baixa adesão da população a uma cultura constitucional baseada nos direitos fundamentais, o país, após enfrentar um conflito civil de imensa proporção entre duas de suas mais influentes etnias - os luos e os kikuyus - estabeleceu, na atual Constituição - a Katiba - a criação de uma Comissão de Implementação da Constituição. A Comissão não apreciaria casos relativos a direitos humanos, como há na África do Sul com a Human Rights Commission, nem zelaria disciplinarmente pela magistratura, como, no Brasil, faz o Conselho Nacional de Justiça. Sua missão era educativa: estimular a conscientização da população quanto a seus direitos constitucionais e ampliar a divulgação acerca do texto da Constituição. A Katiba trouxe, no Anexo Sexto das Disposições Transitórias, a Comissão de Implementação da Constituição com prazo certo para acabar: cinco anos após a sua criação. A Comissão nasceu com a Constituição e, cinco anos depois, foi dissolvida. Cabia, a ela, o diálogo necessário à consolidação inicial de uma cultura constitucional. O Quênia estabeleceu algo diferente e, assim, honrou o seu compromisso de originalidade, que, para ser respeitável, não precisa ser perfeito, apenas verdadeiro. Cada país precisa se entender e se valorizar para ser entendido e valorizado. Nações são como o povo, quando se respeitam, os outros também respeitam. O constitucionalismo há de estar conectado com a cultura do povo a quem ele pretende influenciar. A África do Sul também dá provas disso. O meaningful engagement lembrado pelo professor Roberto Gargarella nada mais é do que uma forma de compatibilizar judicialmente a prática comunitária do Ubuntu. Comunitarismo, coletivismo e compromissos de igualdade dão o tom da história africana. Dizer que uma decisão de forte impacto na comunidade, e de índole social - direito à moradia - deve contar, antes, com interações com os populares, nada mais é do que a cristalização da prática dos aldeões, ou mesmo da forma de líderes tradicionais resolverem disputas. Muito além de se tratar de mera categorização processual, o meaningful engagement revela uma forma de viver a vida na África do Sul: assuntos comunitários precisam ser decididos com o envolvimento da comunidade. Simples. Lidar com a comunidade, debater, discutir, fazer assembleias - como as indabas - tudo isso é muito próprio ao africano. Por isso, institutos como o engajamento significativo (meaningful engagement) meramente dão vazão a algo mais forte, que é o reconhecimento institucional pela Corte Constitucional do jeito de ser da comunidade2. O Brasil também tem o seu jeito de ser. Não devemos nos envergonhar disso. A nossa alma coletiva é a nossa maior força. A inclinação que temos de evitar conflitos desnecessários e, sempre que possível, tentar fazer duas pessoas que brigam darem às mãos uma à outra, termina sendo levado à Suprema Corte. Recentemente, o ministro Luís Roberto Barroso convocou representantes da União, do Banco do Brasil, da Caixa Econômica Federal e dos Estados da Paraíba, Espírito Santo, Minas Gerais e Pernambuco para uma conciliação quanto à disputa decorrente da assinatura de um de termo de ajustamento de conduta celebrado entre o Ministério Público Federal, a Controladoria-Geral da União e os dois bancos para impedir o saque e a transferência de verbas federais depositadas em contas bancárias abertas para o recebimento de recursos da União (ACO's 3033, 3034, 3038 e 3040). Antes, há cerca de um ano, a ministra Cármen Lúcia, presidindo o STF, participou de reunião de secretários estaduais de Fazenda para saber como o Judiciário pode auxiliar na conciliação dos interesses dos entes federados e de toda a população. E não foi só. O ministro Luiz Fux finalizou uma conciliação entre União e Estado do Rio de Janeiro para estabelecer novos critérios para a distribuição dos royalties do petróleo (ACO 2865). Em agosto de 2015, a seu pedido, representantes do Sindicato dos Servidores e Empregados dos Conselhos e Ordens de Fiscalização do Exercício Profissional no Rio Grande do Sul e de Conselhos Regionais de fiscalização profissional do estado concordaram em formalizar acordo no processo que discute o regime jurídico aplicável aos trabalhadores dos conselhos profissionais (RCL 19537). Em novembro de 2014, o Ministro negou liminar solicitada pelo Ministério Público Federal, na ACO 2536, a fim de proibir que a Agência Nacional de Águas autorize o estado de São Paulo a realizar obras com objetivo de captar águas do Rio Paraíba do Sul para o abastecimento do Sistema Cantareira. Ao decidir, o Ministro marcou mediação entre o MPF, a União Federal, a Agência Nacional de Águas, o Ibama e o Estado de São Paulo. Em setembro de 2012, outra tentativa de conciliação foi sobre a adoção de livros de Monteiro de Lobato pela rede pública de ensino (MS 30.952). Essas iniciativas - conciliações - não aparecem categorizadas como promotoras de um "diálogo institucional", nem introdutoras de um constitucionalismo dialógico. Elas simplesmente acontecem. Contudo, vale perguntar: Não seriam, elas, a nossa versão aproximada do meaningful engagement sul-africano3? As interações entre as partes afetadas e o Tribunal que atua, na hipótese, ora como um supervisor, ora como conciliador, têm sido adotadas pelo Supremo Tribunal Federal por meio das conciliações. O STF faz o que o brasileiro faz: vê duas pessoas em conflito, chama-as para uma conversa e sugere: "E se encerrássemos esse duelo? E se, talvez sem se tornarem imediatamente amigos, pudessem, vocês, se respeitarem e desfrutarem de um país que pertence a ambos? Que tal?". Há mais exemplos. Em razão do julgamento da PET 3388, relativa à demarcação da Reserva Indígena Raposa Serra do Sol, os ministros Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, em 23/5/2008, foram até a reserva. Lá, conheceram o local, visualizaram sua geografia, se encontraram e conversaram com membros da comunidade indígena afetada pela futura decisão. A visita foi prévia. A partir dali, os ministros levaram ao Tribunal suas impressões e, então, essas impressões, aceitas ou recusadas, compuseram os muitos elementos que ilustraram a mente dos julgadores. Parece ser uma forma de diálogo institucional segundo o qual a Suprema Corte inova em sua forma de decidir questões complexas, ampliando a interação entre os julgadores e as partes envolvidas, especialmente se tratando de grupos vulneráveis com especial proteção constitucional - os índios. A visita prévia de ministros à reserva termina fazendo as vezes, com distinções, do instituto da consulta prévia dos colombianos, apresentado, pelo professor Gargarella, como um diálogo institucional. Pensemos, agora, no julgamento da ADPF 347, de relatoria do min. Marco Aurélio, que reconheceu a figura do "estado de coisas inconstitucional" quanto ao sistema penitenciário. Os Ministros Ricardo Lewandowski, Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, por exemplo, pela peculiaridade de serem, também - em tempos diversos -, presidentes do Conselho Nacional de Justiça, inseriram, em suas rotinas, visitas a presídios. Não somente eles, mas muitos outros ministros da Corte. Trata-se de um diálogo com uma realidade desconhecida por muita gente. Mas e quanto a essas visitas? Qual seu nome? Como batizá-las? Em qual categoria as inseriremos? Diante desses questionamentos, tudo leva a crer que um novo front dessa rica e importante pesquisa relativa aos diálogos institucionais no Brasil talvez devesse mergulhar na possibilidade de haver formas informais de diálogos, de inovações, de interações que, num país como o Brasil, dado às informalidades, podem assumir grande relevância. Não sem razão um dos campos de estudos quanto às Supremas Cortes atualmente é, exatamente, a "diplomacia judicial". Quando a ministra Cármen Lúcia, presidindo o STF, afirma que, após ter recebido uma petição assinada conjuntamente por dois governadores que duelavam judicialmente, pedindo que o julgamento de um grupo de ações sobre guerra fiscal de ICMS seja adiado, para que possa, o Poder Legislativo, regrar a matéria e, a presidente, aquiesce, permitindo que a LC 160/2017 venha à tona, o que Sua Excelência fez foi dialogar com esferas outras que não o próprio Judiciário. Isso, evitando fricções institucionais e atritos entre a política e a justiça. Não seria esse mais um exemplo de um diálogo institucional informal, que, apesar de público, não encontra nome, nem forma, nem procedimento? Ele simplesmente acontece e gera efeitos4. Mesmo no recente episódio no qual a presidente Cármen Lúcia recebeu o presidente do Senado, Eunício Oliveira (PMDB-CE), para buscar uma solução para o impasse envolvendo o afastamento do senador Aécio Neves (ADI 5526), estamos tratando de um diálogo institucional informal de inegável valor. A chefe de um Poder se encontra com o chefe de outro Poder para, pelo diálogo, encontrar uma solução para um impasse institucional. Segundo o jornal O Estado de São Paulo: "Na iminência de ver o Senado derrubar a decisão do STF e abrir uma crise entre os dois Poderes, Cármen e Eunício decidiram apostar no 'diálogo' para evitar o impasse" (Beatriz Bulla, 2.10.2017). O resultado do julgamento, que introduziu, quanto à imposição a parlamentares de medidas cautelares diversas da prisão (art. 319 do CPP), uma notwithstanding clause (cláusula do não-obstante), foi excomungado pelo povo, que, mais uma vez, mostrou desprezo por fórmulas que privem o Supremo de tomar decisões e vê-las cumpridas sem ulteriores bênçãos das forças políticas. A palestra de Roberto Gargarella expõe a questão dos diálogos institucionais contemporâneos, suas promessas e frustrações e, além disso, abre espaço para que o assunto siga sendo investigado no Brasil, agora, com essa nuance: num país dado a conversas e a informalidades, os diálogos, mesmo os institucionais, nem sempre ocorrem como modalidades processuais ou formas explícitas de decisão, mas como realidade de um tipo de diplomacia judicial exercida pelo STF e por seus juízes e juízas. O tema segue seu curso instigando e desafiando a todos nós para que questionemos mais e investiguemos melhor. É assim que deve ser. Em sua vinda ao Brasil, Roberto Gargarella deixou acesa essa centelha de curiosidade intelectual que estimula as pessoas e envolve os estudantes. Cumpriu virtuosamente sua missão. __________ 1 Relação das audiências públicas feitas pelo STF: 1) Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil, em especial quando esse for invocado pela própria vítima ou por seus familiares (Min. Dias Toffoli, 12.6.2017, RE 1.010.606); 2) Aspectos dos arts. 10 e 12, II e IV, da Lei 12.965/2014 - Marco Civil da Internet (Min. Rosa Weber, ADI 5527) - e a Suspensão do Aplicativo WhatsApp por Decisões Judiciais no Brasil (Min. Edson Fachin, ADPF 403), em 2 e 5.6.2017; 3) Armazenamento de perfis genéticos de condenados por crimes violentos ou hediondos (Min. Gilmar Mendes, 25.5.2017, RE 973.837); 4) Novo Código Florestal (Min. Luiz Fux, 18.4.2016, ADIs 4901, 4902, 4.903 e 4937); 5) Uso de depósito judicial (Min. Gilmar Mendes, 21.7.2015, ADI 5072; 6) Ensino religioso em escolas públicas (Min. Roberto Barroso, 15.6.2015, ADI 4439; 7) Internação hospitalar com diferença de classe no SUS (Min. Dias Toffoli, 26.5.2014, RE 581.488; 8) Alterações no marco regulatório da gestão coletiva de direitos autorais no Brasil (Min. Luiz Fux, 17.3.2014, ADIs 5062 e 5065); 9) Programa "Mais Médicos" (Min. Marco Aurélio, 25 e 26.11.2013, ADIs 5037 e 5035); 10) Biografias não-autorizadas (Min. Cármen Lúcia, 21 e 22.11.2013, ADI 4815); 11) Financiamento de campanhas eleitorais (Min. Luiz Fux, 17 e 24.6.2013, ADI 4650); 12) Regime Prisional (Min. Gilmar Mendes, 27 e 28.5.2013, RE 641.320); 13) Queimadas em Canaviais (Min. Luiz Fux, 22.4.2013, RE 586.224); 14) Campo eletromagnético de linhas de transmissão de energia (Min. Dias Toffoli, 6 a 8.3.2017, RE 627.189); 15) Novo marco regulatório para a TV por assinatura no Brasil (Min. Luiz Fux, 18 e 25.2.2013, ADIs 4679, 4756 e 4747); 16) Proibição do uso de amianto (Min. Marco Aurélio, 24 e 31.8.2012, ADI 3937); 17) Lei Seca - Proibição da venda de bebidas alcoólicas nas proximidades de rodovias (Min. Luiz Fux, 7 e 14.5.2012, ADI 4103); 18) Políticas de ação afirmativa de acesso ao ensino superior (Min. Ricardo Lewandowski, 3, 4 e 5.3.2010, ADPF 186 e RE 597.285); 19) Interrupção de gravidez - Feto anencéfalo (Min. Marco Aurélio, 4 e 16.7.2008, ADPF 54); 20) Pesquisas com células-tronco embrionárias (Min. Carlos Ayres Britto, 20.4.2007, ADI 3510). 2 Quanto ao diálogo institucional entre a Corte Constitucional sul-africana e o Parlamento, Albie Sachs, falando sobre o caso Fourie, de sua relatoria, que declarou a inconstitucionalidade da Lei Matrimonial que se referia, quanto ao casamento, apenas a homens e mulheres, anota: "(...) tínhamos dado ao Parlamento um ano para corrigir o defeito da lei. Esse poder é conferido à Corte pela Constituição: declaramos que algo é inconstitucional e suspendemos a declaração de nulidade de forma a possibilitar que a lei seja corrigida. E não queríamos que a Lei Matrimonial, caso não fosse alterada, fosse anulada por inconstitucionalidade passado o prazo de um ano - seria um resultado desastroso. Assim, dissemos que se o Parlamento não corrigisse o defeito no prazo estabelecido, seria automaticamente inserida na Lei Matrimonial a frase "ou cônjuge" que corrigiria a discriminação. Essa era a posição alternativa. E apenas dois dias antes do encerramento do ano, o Parlamento promulgou o que passou a ser chamado Lei da União Civil". [Vida e Direito: Uma Estranha Alquimia. São Paulo: Saraiva/IDP, p. 223]. 3 Tanto que, a Corte Constitucional da África do Sul, segundo recorda Max du Plessis, apreciando o caso Joe Slovo Community, concedeu uma extensa interdição obrigatória, juntamente com uma ordem de supervisão relativa à provisão de habitação para pessoas que deveriam ser despejadas de um assentamento informal. Mais recentemente, no caso Pheko, a Corte ordenou ao município de Ekurhuleni que apresentasse um relatório (confirmado em declaração juramentada) sobre as medidas que havia tomado para identificar terras para o assentamento dos requerentes cujas casas tinham sido demolidas ilegalmente pelo município. Pheko and Others v Ekurhuleni Metropolitan Municipality 2012 (2) SA 598 (CC). Quanto à citação de Max du Plessis: Constitutional Litigation, Johannesburg, Juta, 2013, p. 124. 4 A afirmação foi feita pela presidente dia 30/3/2017, na sessão do pleno do STF que apreciou o RE 718874 (Rel. p/acórdão min. Alexandre de Moraes).
Semana passada, o STF, por 6 x 5, concluiu que os artigos 312 (prisão preventiva) e 319 (medidas cautelares diversas da prisão) do Código de Processo Penal (CPP) se aplicam aos parlamentares, podendo, a respectiva Casa Legislativa, reverter a decisão da Corte que imponha quaisquer dessas medidas, desde que elas impliquem o embaraço direto ou indireto ao exercício do mandato parlamentar (ADI 5526). A decisão resulta, em parte, do fato de que a Constituição Federal trouxe uma sistemática de julgamento dos congressistas que envolve tanto o Congresso Nacional como o Supremo Tribunal Federal. Antes de tudo, a Constituição conferiu ao STF a missão de julgar deputados Federais e senadores (art. 53, § 1º). A inviolabilidade penal (e também civil) dos congressistas diz respeito às suas opiniões, palavras e votos (art. 53 da CF). Nada mais. O art. 53, § 2º, diz que, caso os membros do Congresso sejam presos em flagrante de crime inafiançável1, os autos serão remetidos dentro de 24 horas à Casa respectiva, para que, pelo voto da maioria de seus membros, resolva sobre a prisão. A Suprema Corte já definiu que o comando não se restringe aos crimes inafiançáveis (AC 4070). A partir desse dispositivo, o Tribunal definiu que caso se imponha aos congressistas medidas cautelares diversas da prisão que interfiram no regular exercício do mandato deve, a respectiva Casa Legislativa, "resolver" sobre as medidas. Se o parlamentar adotar procedimento incompatível com o decoro parlamentar, é a Câmara ou o Senado que o julga. Caso sofra condenação criminal em sentença transitada em julgado, a perda do mandato também será decidida pela Câmara ou Senado (art. 55, § 2º, c/c o art. 55, I, II e VI)2. Mas há hipóteses em que as Casas Legislativas não têm margem para aferir se devem ou não punir seus membros. Pelo art. 55, perderá - o verbo é imperativo - o mandato o deputado ou senador: III - que deixar de comparecer, em cada sessão legislativa, à terça parte das sessões ordinárias da Casa a que pertencer, salvo licença ou missão por esta autorizada; IV - que perder ou tiver suspensos os direitos políticos3; V - quando o decretar a Justiça Eleitoral, nos casos da Constituição. A perda será "declarada" pela Mesa da Casa respectiva, de ofício ou mediante provocação de qualquer de seus membros, ou de partido político representado no Congresso, assegurada ampla defesa (art. 55, § 3º). A verdade é que, premido por escândalos eleitorais, pela degradação moral da classe política e por uma tempestade de corrupção praticada à luz do dia por parlamentares, o STF tem se visto forçado a construir, do dia para a noite, a mais rica - e sobressaltada - jurisprudência criminal sobre congressistas de todo o mundo. Primeiramente, definiu que eles, quando condenados numa sentença penal transitada em julgado, perdem seus mandatos por ordem do STF, sem a necessidade de interação com o Congresso Nacional (AP 470, "mensalão"). Essa posição foi revertida, tendo a Corte entendido que cabe à respectiva Casa Legislativa a deliberação acerca da preservação, ou não, do mandato de parlamentar condenado criminalmente (AP 565). Uma liminar posteriormente concedida pelo ministro Luís Roberto Barroso acrescentou uma exceção à hipótese acima. Suspendeu-se os efeitos da deliberação do Plenário da Câmara que manteve o mandato de deputado federal de um condenado a 13 anos, 4 meses e 10 dias de prisão (MS 32.326). Segundo o Ministro, como regra, cabe ao Congresso a decisão sobre a perda do mandato de parlamentar que sofrer condenação criminal transitada em julgado. No entanto, a regra não teria aplicação no caso de condenação em regime inicial fechado, por tempo superior ao prazo remanescente do mandato parlamentar, em razão de impossibilidade jurídica e física de seu exercício. Veio, então, a prisão em flagrante por crime que não era inafiançável, em 25/11/2015, de um Senador (AC 4039). Em 5/5/2016, impôs-se a suspensão do exercício do mandato de deputado federal e de presidente da Câmara dos Deputados (AC 4070). Em 5/12/2026, mais uma decisão, dessa vez afastando um senador da presidência do Senado por ser ele réu numa ação penal (ADPF 402). Por fim, em 17/5/2017, o afastamento do senador Aécio Neves do seu mandato. Todas essas decisões, sem exceção, foram tomadas por meio de cautelares concedidas solitariamente por um dos juízes da Suprema Corte. Mesmo posteriormente referendadas, à exceção daquela que afastou o então presidente do Senado do cargo, são medidas drásticas tomadas solitariamente por integrantes de um órgão que é colegiado. O fato de terem se dado no bojo de ações cautelares impede que os acusados se defendam quanto ao pedido específico de suspensão de mandato. Outra perplexidade é não haver prazo. Estão suspensos ou banidos? Toda suspensão tem prazo. A única Constituição que permitiu a suspensão de mandatos parlamentares em toda a história do Brasil foi a de 1967. Com a Emenda 11, de 1978, o art. 32, § 5º, passou a dispor: "Nos crimes contra a Segurança Nacional, cujo processo independe licença da respectiva Câmara, poderá o Procurador-Geral da República recebida a denuncia e atenta à gravidade do delito, requerer a suspensão do exercício do mandato parlamentar, até a decisão final, de representação pelo STF"4. O Regimento Interno do STF dispunha, no art. 236, que requerida a dita suspensão, o Tribunal, dada vista à defesa pelo prazo de 15 dias, julgaria o pedido, que seria processado em apartado, como incidente, e não obstaria o prosseguimento da ação penal. Como se vê, havia um rito próprio para a tramitação desse tipo de pedido. A decisão recentemente tomada pelo STF avaliza o emprego do art. 319 do CPP, que, na prática, permite a suspensão judicial do exercício de mandatos parlamentares, numa inovação que não existe em democracias respeitáveis, como a dos Estados Unidos ou mesmo a inglesa. Nem se diga que nesses dois países não há corrupção. Casos escabrosos têm sido relevados com incomum frequência, todavia, ainda persiste a ideia de que é o próprio Parlamento que deve fazer o controle do comportamento de seus integrantes. Essa ideia, é bem verdade, tem sido cada vez mais questionada. No Brasil, a violência dos fatos e o assombro causado por malas de dinheiro desfilando por aí fizeram a Suprema Corte aproveitar o compartilhamento de responsabilidades trazido pela Constituição para, reconstruindo jurisprudencialmente uma competência extinta pela Constituição de 1988, resgatar para si a suspensão do exercício de mandatos parlamentares. Já que assim o foi, deve, o Tribunal, refinar os procedimentos destinados a esses tipos de medidas para que o faça em honra à ampla defesa e ao devido processo legal. Talvez seja o caso de alterar seu Regimento Interno. O Código de Ética do Senado, na linha do que ocorre em parlamentos importantes, dispõe, no art. 10, sobre a "perda temporária do exercício do mandato". Segundo o art. 12, essa sanção será decidida pelo Plenário, em escrutínio secreto e por maioria simples, mediante provocação da Mesa, do Conselho de Ética e Decoro Parlamentar ou de Partido Político representado no Congresso Nacional. O Regimento Interno da Câmara dos Deputados, por sua vez, traz, no art. 10, III, como penalidade aplicável por conduta atentatória ou incompatível com o decoro parlamentar, a "suspensão temporária do exercício do mandato". A aplicação da penalidade, de no máximo 30 dias, é da competência do Plenário da Câmara, que deliberará por maioria absoluta de seus membros, por provocação da Mesa ou de partido político representado no Congresso, após processo disciplinar instaurado pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar (art. 14). Como se vê, a suspensão tem prazo. Agora, como se entendeu que a utilização do art. 319 do CPP equivale à imposição de prisão e que, por tal, tem, o Senado ou a Câmara, a última palavra a respeito delas, deve, o STF, adaptar o seu Regimento Interno a essa nova competência, resgatando o procedimento próprio que sequer os anos de chumbo negaram. De igual modo, deveria, tanto a Câmara, como o Senado, alterar seus Códigos de Ética para que, sempre que se verem chamados a resolverem sobre medidas cautelares diversas da prisão impostas a seus membros, acionem, automaticamente, seus Conselhos de Ética e Decoro Parlamentar, para que deliberem sobre a adequação do comportamento do parlamentar à luz do decoro que a Constituição exige, não somente à luz do Código Penal. São exames distintos e complementares. O STF, à luz do que havia na Constituição de 1967 - com a redação da EC 11/1978 - passa a poder, excepcionalmente, suspender o exercício do mandato de parlamentares que tentem sabotar investigações em curso na Suprema Corte. É uma nova competência que, no âmbito do Tribunal, precisa ser compatibilizada procedimentalmente com a sua própria gravidade. __________ 1 São crimes inafiançáveis: art. 5º, XLII - a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei; art. 5º, XLIV - constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. 2 O § 3º do mesmo artigo dispõe que, recebida a "denúncia" contra o Senador ou Deputado, por crime ocorrido após a diplomação, o STF dará ciência à Casa respectiva, que, atendida certas condições, poderá, até a decisão final, sustar o andamento da ação. O § 5º diz que a sustação suspende a prescrição, enquanto durar o mandato. Susta-se temporariamente o andamento da ação, do processo, jamais da investigação em curso, pois ninguém tem, numa República, o direito de não ser investigado. 3 Segundo o art. 15 da Constituição, duas das hipóteses de perda ou suspensão de direitos políticos são: III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos; V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º. 4 Art. 32, § 5º: Nos crimes contra a Segurança Nacional, poderá o Procurador-Geral da República, recebida a denúncia e considerada a gravidade do delito, requerer a suspensão do exercício do mandato parlamentar, até a decisão final de sua representação pelo STF (Redação dada pela EC 22, de 1982).
Em 2009, ele estava radiante diante do púlpito no Parlamento de Gana, em Acra, capital. Barack Obama, presidente dos Estados Unidos, num dos seus discursos mais inspirados, fez a exortação magistral: "A África não precisa de homens fortes. Ela precisa de instituições fortes". A mensagem combatia o desmantelamento de instituições importantes motivado por caprichos políticos dos homens do poder. Três anos depois, os estudiosos Daron Acemoglu e James A. Robins publicaram Why Nations Fail (Por que as nações fracassam), no qual, superando o senso comum, apontaram que o destino de uma nação depende, basicamente, das instituições pelas quais ela é governada. Noutras palavras: o que tornará um povo mais ou menos próspero no século XXI são, simplesmente, elas: Instituições, instituições, instituições. A Constituição brasileira de 1988 anteviu tudo isso. O Ministério Público é "instituição permanente" (art. 127), assim como a Defensoria Pública (art. 134). A Advocacia-Geral da União é a "instituição" que, diretamente ou através de órgão vinculado, representa a União, judicial e extrajudicialmente (art. 131). É competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das "instituições" democráticas e conservar o patrimônio público (art. 23, I). O Título V trata: "Da Defesa do Estado e das 'Instituições' Democráticas". Dentre tantas instituições de porte constitucional temos os Tribunais de Contas. A eles a Constituição conferiu garantias. Para Paulo Bonavides, garantias institucionais são a "proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade, bem como a certos direitos fundamentais providos de um componente institucional que os caracteriza"1. Elas também se constituem como "proibições dirigidas ao Legislativo para não ultrapassar na organização do instituto aqueles limites extremos, além dos quais o instituto como tal seria aniquilado ou desnaturado"2. Alguns conterrâneos ilustres parecem não ter dado atenção às lições do mestre Bonavides. Consta da pauta do pleno do STF, para quarta-feira, dia 4/10, o julgamento da ADI 5763, de relatoria do min. Marco Aurélio, ajuizada pela Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil - ATRICON, pedindo uma cautelar para derrubar a emenda 92 à Constituição do Ceará, de 2017, que, aparentemente, reagiu à independência do Tribunal de Contas dos Municípios extinguindo-o. Reformar-se uma Constituição para destruir uma instituição da magnitude e importância do Tribunal de Contas gera desconfiança. É que, nesse caso, a dúvida milita em favor da instituição, não contra. Como adverte o professor Carlos Ayres Britto, "é da natureza das coisas, é consequência lógica da rigidez constitucional que os atos de reforma da Constituição Positiva sejam recebidos com desconfiança. Uma desconfiança que já está na própria Constituição, que disciplina com rigor incomum o processo de sua própria reforma, ao menos no plano das emendas"3. Mas esse caso é ainda mais curioso. O capítulo II da inicial da ADI 5763 aborda, dentre outros pontos, o "desvio do poder de legislar" que teria sido cometido pela Assembleia Legislativa do Ceará "com o propósito de constranger o regular funcionamento do sistema de fiscalização das contas públicas" (p. 10). A inicial anota que "os parlamentares estaduais propuseram a extinção do TCM-CE com o nítido propósito de retaliar a corte pelo julgamento rigoroso de suas contas, bem como das contas de seus correligionários" (parágrafo 19 da p. 15). O argumento introduz algo novo no xadrez da jurisdição constitucional brasileira. Antes, já havia a Suprema Corte indicado que parlamentares foram comprados para votarem segundo ordens do Poder Executivo (na AP 470, o "caso mensalão"). Deveriam, eles, votar por um ideal, não pelo metal. Recentemente, o Ministério Público Federal apresentou denúncia apontando que uma medida provisória (MP 471/2009) teria sido vendida pelo Poder Executivo. Diante de fatos tão perturbadoramente contrários a Constituição, não parece absurdo falar na possibilidade de a Suprema Corte, em determinados casos, aferir a constitucionalidade das motivações do processo legislativo e do seu resultado. No direito constitucional estrangeiro, bem como na literatura especializada, há sinais claros dessa possibilidade. Nos Estados Unidos, apreciando os casos Washington v. Davis (1976) [426 U.S. 229]4 e Village of Arlington Heights v. Metropolitan Housing Development Corp (1977) [429 U.S. 252]5, a Suprema Corte entendeu ser "necessário provar a intenção ou o objetivo de discriminação racial para demonstrar que houve violação da Cláusula de Igual Proteção", reconhecendo, assim, a possibilidade de se analisar a constitucionalidade das "intenções" do legislador ao aprovar uma lei. Noutra oportunidade, a Suprema Corte se deparou com a situação de a Assembleia Legislativa do Alabama ter aprovado uma lei que reordenava os limites do município de Tuskegee, excluindo de sua área a grande maioria dos quatrocentos eleitores afro-americanos que lá residiam. A lei teve sua constitucionalidade questionada no caso Gomillion v. Lightfoot. Foi declarada a inconstitucionalidade da lei. "Leis ordinariamente legais podem tornar-se ilegais quando feitas para a obtenção de fins ilegais"6, constou de uma decisão unânime. No campo teórico, John Hart Ely - que foi clerk do Chief Justice Earl Warren, na Suprema Corte - defende a possibilidade de se ingressar na motivação dos atos legislativos. "Em primeiro lugar, existem casos concretos em que uma motivação inconstitucional, mesmo da parte do Legislativo, pode ser constatada com toda plausibilidade; e, em segundo lugar, haverá casos em que um ato que intuitivamente parece inconstitucional só poderá ser apresentado efetivamente como tal com base na teoria da motivação", diz Ely. Ele ilustra: "Suponhamos que um sargento da Guarda Nacional precise escolher três membros de seu pelotão, composto por seis homens, para uma tarefa particularmente perigosa de repressão a uma rebelião civil, e acabe por escolher Fulano, Beltrano e Sicrano". Nesse caso, não haveria inconstitucionalidade caso a escolha tenha se baseado na pontuação mais alta alcançada nas provas de tiro. "Suponhamos, entretanto, que eles foram escolhidos por serem metodistas, ou republicanos, ou por terem ascendência polonesa - ou simplesmente porque o sargento não gostava deles. Nessas circunstâncias, nossa intuição nos diz que Fulano, Beltrano e Sicrano receberam um tratamento que não condiz com a Constituição", anota. Não se nega a dificuldade de comprovação de uma motivação inconstitucional no processo legislativo. A Corte precisa demonstrar o vício. Ely, reportando-se ao seu exemplo, diz que "os problemas de produção de provas seriam enormes (principalmente se os três escolhidos fossem de fato os melhores atiradores), mas é preciso perceber o que sugere o exemplo que o mesmo ato do Estado pode ser constitucional ou inconstitucional dependendo dos motivos pelos quais foi efetuado". No caso da emenda à Constituição do Ceará que extinguiu o Tribunal de Contas dos Municípios, poder-se-ia sustentar a impossibilidade de se definir qual motivação única ou dominante teria maculado o processo legislativo. Ely é sensível a esse tipo de questionamento e diz que "as considerações que dão pertinência à motivação não exigem que se descubra uma motivação 'única' (será que isso existe?) ou mesmo 'dominante' (o que quer que isso signifique), e sim que nos perguntemos se uma motivação inconstitucional parece ter influenciado de modo significativo a escolha: se houve tal influência, o procedimento foi ilegítimo - negou-se o 'devido processo legislativo' - e seu resultado deve ser declarado nulo". A tentativa de destruição de instituições independentes costuma gerar efeitos colaterais severos. É que outras instituições, e seus representantes, percebendo a gravidade da atitude, tendem a reagir. Foi o que fez o Congresso Nacional, que aprovou, em 1º turno, a Proposta de Emenda à Constituição 2/2017, de autoria do senador Eunício de Oliveira, presidente do Congresso, alterando o art. 75 da Constituição Federal, para que passe a constar o seguinte comando: "Os Tribunais de Contas são instituições permanentes, essenciais ao exercício do controle externo, e as normas estabelecidas nesta seção aplicam-se, no que couber, à organização, composição e fiscalização dos Tribunais de Contas dos Estados e do Distrito Federal, bem como dos Tribunais e Conselhos de Contas dos Municípios". A justificativa da PEC 2/2017 é explícita: "Nota-se grande insegurança no sistema de controle externo, essencial à fiscalização e ao combate à corrupção tão reclamado pela sociedade nos dias atuais. Infelizmente, não é raro que existam abusos por parte de governos em tentar fragilizar o regime jurídico, estrutura e funcionamento desses órgãos mediante diversos expedientes, como a extinção de cargos e órgãos respectivos ou fortes cortes orçamentários injustificados"7. Da leitura da justificativa da PEC 2/2017, percebe-se o acerto da fala de Barack Obama, em Gana, a virtude dos estudos de Daron Acemoglu e James A. Robins e, claro, a antevisão heroica da Constituição de 1988. A intenção é transformar todos os Tribunais de Contas em "instituições permanentes, essenciais ao exercício do controle externo". Mais uma vez: instituições, instituições, instituições. O aspecto prático da PEC 2/2017 se revela em John Hart Ely, que destaca o seguinte: "se certas pessoas forem privadas de determinado direito por motivos de raça, religião ou política, ou simplesmente porque a autoridade que faz a seleção não gosta delas, isso será incompatível com as normas constitucionais. No momento em que tal princípio de seleção foi adotado, o sistema passou a funcionar mal: de fato, podemos dizer com exatidão que a seleção negou o devido processo"8. Na ADI 5763, aponta-se, exatamente, vício no devido processo legislativo resultante do abuso do poder de legislar. Sustentar a possibilidade de um parlamentar abusar da prerrogativa da qual é constitucionalmente dotado encontra amparo na Constituição. Tanto que, no art. 55. § 1º, da Carta, consta ser incompatível com o decoro parlamentar, além dos casos definidos no regimento interno, "o abuso das prerrogativas asseguradas a membro do Congresso Nacional (...)". O abuso tem advertência expressa no texto constitucional. A discussão em torno da EC 92/2017 à Constituição do Ceará serve para nos lembrar que o século XXI não é o século do Executivo, nem do Legislativo, nem do Judiciário. São, as instituições, tais como o Tribunal de Contas, os personagens mais influentes do nosso tempo. Isso, para que nunca mais tenhamos nossas vidas inteiramente entregues aos caprichos dos homens. Devem, os destinos de um povo, ser assegurados por meio de suas liberdades e pela virtude de suas instituições. Muitas vezes homens que se acham fortes desmantelam instituições que não podem ser fracas. O dever do STF é reposicionar a questão e mostrar que só há uma soberana: a própria Constituição. Segundo a inicial da ADI 5763, foram várias as iniciativas voltadas ao desmantelamento do Tribunal de Contas dos Municípios do Ceará. Primeiro, uma tentativa frustrada de aprovação de uma emenda à Constituição extinguindo o Tribunal (EC 87/2016). Ela foi barrada pela decisão da presidente da Suprema Corte, ministra Cármen Lúcia (ADI 5638). Em revanche, atingiu-se o orçamento do Tribunal para, assim, humilhar a instituição e seus membros. Então, depois da indignidade imposta, veio uma nova emenda extinguindo mais uma vez a Corte de Contas (EC 92/2017). Mudar a Constituição para destruir um Tribunal é o tipo de ação que gera efeitos colaterais persistentes. É deletério ao imaginário coletivo saber que, se Cortes - quaisquer que sejam elas - incomodarem homens do poder podem, estas Cortes, serem destruídas. Se isso é verdade, se homens reunidos numa assembleia podem, por um capricho - segundo se sustenta na ADI 5763 - , esmagar instituições constitucionais, o que não poderão fazer, esses mesmos homens, contra os cidadãos? Se, de ambição em ambição, puderem, os políticos, demolirem tribunais, não tardará para que destruam a nós mesmos. A Constituição brasileira não faz distinções entre violações cometidas pela União, pelos Estados ou pelos municípios. Segundo o seu texto, qualquer dos entes federados tem igual dever de respeito ao texto constitucional. Portanto, se o raciocínio adotado pela Assembleia Legislativa do Estado do Ceará fosse adotado pela União, por exemplo, estaríamos todos num abismo. O precedente é grave. Para ilustrar, vale trazer à recordação o fato de que, em 1990, o ex-presidente da Argentina, Carlos Menen, encurralou a Suprema Corte perguntando: "Por que eu deveria ser o único presidente argentino a não ter o meu próprio Supremo Tribunal?" Anos depois, o ex-presidente peruano Alberto Fujimori paralisou o Tribunal Constitucional de seu país ao formular acusações contra três juízes da Corte. Na Venezuela, o presidente Hugo Chávez dissolveu integralmente a Suprema Corte em 1997, tendo suspendido cerca de 300 juízes de primeira instância e nomeado 101 novos. No Equador, no mesmo ano, o novo governo realizou algo semelhante. Em 2003, os presidentes do Paraguai e da Argentina, respectivamente, lançaram processos de impeachment contra juízes constitucionais, fazendo com que vários deles pedissem exoneração9. Esse desmantelamento sistêmico de tribunais mostra, mais uma vez, que a máxima da prosperidade das nações está de pé: instituições, instituições, instituições. O STF pode, e deve, dentre todos os argumentos apresentados na inicial da ADI 576310, ingressar, também, na motivação dessa emenda à Constituição do Ceará. A extinção desse Tribunal é, sem dúvida, uma conta que não fecha. __________ 1 Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 537. 2 Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros, 2004, p. 541. 3 Teoria da Constituição, Rio de Janeiro: Forense, 2003, p. 202. 4 Relato em https://www.oyez.org/cases/1975/74-1492. 5 Relato em https://www.oyez.org/cases/1970-1979/1976/1976_75_616. 6 Relato em https://www.oyez.org/cases/1960-1969/1960/1960_32. 7 Em: https://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/128035 8 Democracia e desconfiança: uma teoria do controle judicial de constitucionalidade. Tradução Juliana Lemos. Revisão técnica Alonso Reis Freire. Revisão da tradução e texto final Marcelo Brandão Cippola. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 183-186. 9 Courts under Constraints. Judges, Generals and Presidents in Argentina. Gretchen Helmke. Cambridge University Press, 2005, p. 1. 10 Os fundamentos são: 1) "violação do princípio da separação de poderes (art. 2º e 60, § 4º, da Constituição Federal) e do princípio da autonomia dos Tribunais de Contas"; 2) que "a EC n. 92 incorre ainda em violação dos princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa, fixados no caput do artigo 37 da Constituição Federal, decorrente do princípio Republicano, estabelecido no artigo 10 da Constituição Federal"; 3) que "ao buscar extinguir o Tribunal de Contas dos Municípios do Estado do Ceará, a EC 92/2017 altera, via Constituição Estadual, questão que está disciplinada pela Constituição Federal"; 4) vício de iniciativa, uma vez que "a ampla reorganização dos Tribunais de Contas e do controle externo das contas públicas no Estado do Ceará foi feito por meio de Emenda à Constituição Estadual de iniciativa de parlamentar, sem que tenha sido proposta por qualquer um dos próprios Tribunais de Contas"; 5) descumprimento do devido processo legislativo, visto que "não houve o mínimo de deliberação legislativa quanto ao tema, sendo a aprovação da Emenda Constitucional fruto de procedimento legislativo fechado à maturação do debate acerca do seu objeto"; 6) violação do princípio federativo, dado que os municípios não foram chamados a se manifestar.
segunda-feira, 25 de setembro de 2017

O Emendismo Constitucional brasileiro

Estamos na Emenda à Constituição de número 96. Não tardará para que cheguemos na primeira centena delas. Esse recorde, do qual muitos não se orgulham, precisa despertar alguma reflexão, pelo menos quanto à primeira de suas consequências: a constante necessidade de aferição da constitucionalidade de emendas à Constituição pelo Supremo Tribunal Federal. As emendas correspondem à primeira das espécies normativas dos incisos (I a VII) do art. 59. Seu rito começa mediante proposta: I - de 1/3, no mínimo, dos membros da Câmara ou do Senado; II - do presidente da República; III - de mais da metade das Assembleias Legislativas das unidades da Federação, manifestando-se, cada uma delas, pela maioria relativa de seus membros (art. 60, I, II e III). Os limites procedimentais são: 1) as regras referentes à iniciativa da reforma (art. 60, caput, I, II e III); 2) o procedimento de discussão e votação (art. 60, § 2o); 3) a forma de promulgação (art. 60, § 3o); 4) a impossibilidade de reapresentação na mesma sessão legislativa de propostas de reforma rejeitadas ou prejudicadas (art. 60, § 5o). Indo além, não poderá, a Constituição, ser emendada na vigência de intervenção Federal, de estado de defesa ou de estado de sítio (art. 60, § 1º). São as limitações circunstanciais que se somam ao requisito da iniciativa. Por fim, não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir, dentre outros bens, a separação dos Poderes e os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, III e IV). São limitações materiais que, no caso, abrem espaço para a configuração de violação, pela EC 96/2017, à Constituição. São muitos os "ismos" na tumultuada trajetória brasileira. Colonialismo, coronelismo, caudilhismo e caciquismo. Agora, o emendismo. Para Wellington Márcio Kublisckas, "(...) o fenômeno do emendismo constitucional teve um outro efeito bastante claro: o aumento vertiginoso da incidência de casos de controle de constitucionalidade sobre as normas constitucionais e, por conseguinte, da declaração da inconstitucionalidade - formal e material - de normas constitucionais1. Emendas que, ao contrário de incrementarem a cultura de direitos ou aperfeiçoarem as instituições nacionais, meramente lidam com questões de pouca importância, contribuem para a negação da força normativa da Constituição à qual faz menção Konrad Hesse. O jurista alerta que a frequência das reformas constitucionais abala a confiança na sua inquebrantabilidade, debilitando a sua força normativa. Isso porque é, a estabilidade, condição fundamental da eficácia da Constituição2. Otto Bachof, em seu Normas Constitucionais Inconstitucionais?, autorizava as Supremas Cortes a aferirem a constitucionalidade das normas constitucionais. No Brasil, a proposta de Bachof teve o amparo da Suprema Corte quanto às emendas à Constituição. Em 1994, a Corte julgou a ADI 830 (Min. Moreira Alves, DJ 16.9.1994), que questionava a EC 2/1992 (Plebiscito). O STF se definiu competente para, em controle difuso ou concentrado, examinar a constitucionalidade, ou não, de emenda constitucional. Também que a emenda pode ser impugnada por violar tanto cláusulas pétreas explícitas como implícitas. A partir daí, inúmeras emendas tiveram sua constitucionalidade analisada pelo Supremo: 1) EC 3/1993 (IPMF): ADI 939 (Min. Sydney Sanches, DJ 18.3.1994); 2) EC 16/1997 (reeleição dos Chefes do Poder Executivo): ADI 1805 MC (Min. Néri da Silveira, DJ 14.11.2003); 3) EC 20/98 (Reforma da Previdência): ADI 2024 (Min. Sepúlveda Pertence, DJe 21.6.2007); 4) EC 19/1998 (Regime Jurídico Único dos Servidores Públicos): ADI 2135 MC (Rel. p/acórdão Ellen Gracie, DJe 6.3.2008); 5) EC 73/2013 (cria os TRF's da 6ª, 7ª, 8ª e 9ª Regiões): ADI 5017 MC (Min. Luiz Fux, DJe 31.7.2013). A possibilidade de o STF apreciar a constitucionalidade de emendas à Constituição, em potencial ofensa a cláusulas pétreas, é aceita por estudiosos como Oscar Vilhena, que anota: "Esse caminho - que tem a vantagem de justificar o controle judicial de emendas à Constituição em face das teorias procedimentais da democracia - deixa aberta certas frestas, por onde poderiam passar reformas inadmissíveis da perspectiva dos direitos humanos, do Estado de Direito e da própria democracia, se vista de uma perspectiva mais substantiva"3. Mas a quem cabe a palavra final acerca da interpretação da Constituição? A qual dos Poderes do Estado - Legislativo, Executivo e Judiciário - cabe dizer, como palavra derradeira, qual o conteúdo das cláusulas pétreas? A resposta vem da lição clássica - memoravelmente imortal - de Rui Barbosa: "Pois, se da política é que nos queremos precaver, buscando a Justiça, como é que à política deixaríamos a última palavra contra a Justiça? Pois, se nos Tribunais é que andamos à cata de guarida para os nossos direitos, contra os ataques sucessivos do Parlamento ou do Executivo, como é que volveríamos a fazer de um destes dois poderes a palmatória dos Tribunais?"4. Rui sabia o que dizia. Há mesmo virtudes em se dar à Suprema Corte a palavra final sobre a interpretação constitucional. Para Dieter Grimm, juiz aposentado da Corte Constitucional da Alemanha: "(...) uma instituição especializada na imposição da Constituição, já devido ao seu próprio interesse institucional, estará mais disposta a propiciar a validade à Constituição e também a poder transmitir ao público a importância da Constituição do que uma jurisdição constitucional integrada"5. Também não pode se perder de vista a rigidez imposta pela Constituição quando do exercício de sua competência de guarda precípua da Constituição. O devido processo legal (art. 5o, LIV, da CF) é rigoroso quanto à declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo por parte dos tribunais. Segundo o art. 97 da Constituição, somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do poder público. Trata-se de um dispositivo que impõe cautela para se derrubar o produto da atuação do Legislativo. O dispositivo também se aplica à Suprema Corte. Além desse rigor procedimental, há, ainda, as virtudes da própria formação da Suprema Corte. Segundo o art. 101, o STF compõe-se de onze Ministros (colegialidade), escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade (experiência), de notável saber jurídico (sabedoria) e reputação ilibada (virtude). Os ministros serão nomeados pelo presidente da República, depois de aprovada a escolha pela maioria absoluta do Senado, numa robusta demonstração de harmonia entre os poderes. Suas decisões hão de ser fundamentadas com base na Constituição Federal. A declaração de inconstitucionalidade de uma lei não é tarefa simples. Além do art. 97 (cláusula de reserva de plenário) à qual a Suprema Corte também está submetida, o art. 103, § 1º, da Constituição, diz que o procurador-Geral da República deverá ser previamente ouvido. O § 3º, por sua vez, determina que o STF cite, previamente, o advogado-Geral da União, que defenderá o ato ou texto impugnado. Participa, ainda, o Poder Legislativo e o Executivo que participaram da promulgação da lei ou ato normativo (art. 103, II e III da CF). Tudo para conferir vitalidade a ideia de check and balances e, além disso, enaltecer a relevância da legislação. Portanto, o fato de ser a política a força bastante a alçar os representantes do povo ao apogeu da representação democrática e também ser o capital que alimenta a vivência de casas como o Congresso Nacional, não a torna forte o bastante para que os congressistas imunizem as emendas à Constituição quanto à possibilidade de questionamento de sua constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal. Isso, como se viu, tem sido frequente e se mostra como a primeira consequência inevitável da figura do emendismo constitucional brasileiro. __________ 1 Wellington Márcio Kublisckas. Emendas e mutações constitucionais: análise dos mecanismos de alteração formal e informal da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Atlas, 2009, p. 214. 2 Apud, Emendas e mutações constitucionais: análise dos mecanismos de alteração formal e informal da Constituição Federal de 1988. São Paulo: Atlas, 2009, p. 214. 3 A Constituição e sua reserva de justiça: Um ensaio sobre os limites materiais ao poder de reforma. São Paulo: Malheiros, 1999, p. 234. 4 Na clássica Oração perante o Supremo Tribunal Federal. Pensamentos e ação de Rui Barbosa, p. 169. 5 Grimm, Dieter. Constituição e política. Tradução de Geraldo de Carvalho. Coordenação e supervisão Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2006, p. 195.
Saul Tourinho Leal e Rafael Wowk1 Esse mês de setembro não tem sido um bom mês para os direitos constitucionais. Nem bem tomávamos fôlego após boicotes conservadores e censuras judiciais, tivemos a notícia da decisão do juiz Waldemar Cláudio de Carvalho, da 14ª vara Federal da seção judiciária do Distrito Federal. O magistrado, numa Audiência de Justificação Prévia exigida pelo art. 300, § 2o do Código de Processo Civil, apreciou o pedido de tutela de urgência formulado na Ação Popular 1011189-79.2017.4.01.3400, ajuizada por duas psicólogas e um psicólogo, contra o Conselho Federal de Psicologia. Ao que parece, haviam sido, as autoras, penalizadas pelo referido Conselho por oferecerem a "terapia de reorientação sexual", conhecida, no Brasil, como "cura gay". Para se verem livres de suas advertências, atacaram a resolução 01/99 do Conselho, cuja interpretação servia de base para não se admitir a dita "terapia". A Ação Popular objetiva a "(...) suspensão dos efeitos da resolução 01/99, a qual estabeleceu normas de atuação para os psicólogos em relação às questões relacionadas à orientação sexual". A resolução constituiria "ato lesivo ao patrimônio cultural e científico do país, na medida em que restringe a liberdade de pesquisa científica assegurada a todos os psicólogos pela Constituição, em seu art. 5º, IX". Na prática, a Ação requer, por ofensa à Constituição, a declaração de inconstitucionalidade da resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia, aplicável aos mais de 300 mil profissionais espalhados pelo país. O dispositivo constitucional violado seria o inciso IX do art. 5o, que diz: "é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação independentemente de censura ou licença". Na audiência, foram formulados os seguintes questionamentos aos autores: "a) pretendem os autores divulgar ou propor terapia tendentes à reorientação sexual?; b) os autores estão impedidos ou foram punidos pelo C.F.P. por prestarem suporte psicológico, ainda que solicitados e de forma reservada, às pessoas desejosas de uma reorientação sexual? c) no campo científico da sexualidade, em especial no que diz respeito ao comportamento ou às práticas homoeróticas, o que se permite ao psicólogo estudar ou clinicar sem contraria a resolução 01/1999 do C.F.P.?" O Conselho não se intimidou. Para ele, as "terapias de reversão sexual" não têm resolutividade, além de provocarem sequelas e agravos ao sofrimento psíquico. Desde a Classificação Internacional de Doenças (CID) nº 10, de 1990, a Organização Mundial de Saúde (OMS) entende que "a orientação sexual por si não deve ser vista como um transtorno". Dizer a uma pessoa que ela será tratada psicologicamente para que "deixe de ser gay" seria, além de uma estupidez, uma violência. A compreensão de que a orientação sexual não pode ser enxergada, numa sociedade civilizada, como patologia ou distúrbio, não é novidade. A expressão "homoafetividade", por exemplo, nasceu exatamente para evitar a associação entre a orientação sexual e doenças. Na obra "União Homossexual, o Preconceito e a Justiça", de Maria Berenice Dias, consta: "Há palavras que carregam o estigma do preconceito". Assim, o afeto para a pessoa do mesmo sexo chamava-se 'homossexualismo'. Reconhecida a inconveniência do sufixo 'ismo', que está ligado a doença, passou-se a falar em 'homossexualidade', que sinaliza um determinado jeito de ser. Tal mudança, no entanto, não foi suficiente para pôr fim ao repúdio social ao amor entre iguais". Daí o aparecimento do termo "homoafetividade". As razões apresentadas pelo Conselho Federal de Psicologia, contudo, não impressionaram o juiz. "Defiro, em parte, a liminar requerida para, sem suspender os efeitos da resolução 01/99, determinar ao Conselho Federal de Psicologia que não a interprete de modo a impedir os psicólogos de promoverem estudos ou atendimento profissional, de forma reservada, pertinente à (re) orientação sexual, garantindo-lhes, assim, a plena liberdade científica acerca da matéria, sem qualquer censura ou necessidade de licença prévia por parte do C.F.P., em razão do disposto no art. 5o, inciso IX, da Constituição de 1988", consta da decisão". Vale refletir. Por quê uma ação popular para discutir isso? Segundo o art. 5o, LXXIII, da Constituição, qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular, dentre outros, ato lesivo ao patrimônio cultural. Assumir como premissa que a vedação a terapias que prometam "curar" gays violaria o patrimônio cultural brasileiro já soa, por si só, um preconceito assombroso. Enquanto a decisão da 14a vara Federal do Distrito Federal depositou suas esperanças num "tratamento psicológico" que permita a "reorientação sexual", o Supremo Tribunal Federa, no leading case que reconheceu a união estável entre casais homoafetivos (ADI 4277 e ADPF 132), encontrou, na psicologia, uma das razões para se separar orientação sexual de patologia: "O que, por certo, inspirou Jung (Carl Gustav) a enunciar que 'A homossexualidade, porém, é entendida não como anomalia patológica, mas como identidade psíquica e, portanto, como equilíbrio específico que o sujeito encontra no seu processo de individuação'", anotou o ministro Carlos Ayres Britto, em seu voto-vencedor. No caso, a psicologia foi instrumento de destruição de estigmas perversos, não de reafirmação deles. Há outro ponto: Uma liminar dando interpretação conforme à Constituição de um ato normativo em vigor por 18 anos? Qual o perigo da demora a justificar essa tutela de urgência? Não vigorou, a Resolução, por quase duas décadas? Também é válido questionar a respeito da capacidade institucional do Judiciário em definir quais terapias hão de compor a psicologia brasileira. Teriam, os julgadores, capacidade institucional para, sob a invocação de proteção do patrimônio cultural, driblar orientações da OMS e, derrubando uma resolução do Conselho Federal de Psicologia, autorizar psicólogos a oferecerem um tratamento reputado não apenas inútil, mas perturbador ao bem-estar dos pacientes? Isso, para que essa dor e sofrimento sejam vistos como avanço científico? Que tipo de sociedade faz isso com os seus? Resta saber se o que os autores populares fizeram não foi se valerem desta ação popular para proceder à declaração de inconstitucionalidade de um ato normativo com efeitos gerais (erga omnes), como ocorre com o julgamento, pelo STF, da ação direta de inconstitucionalidade e da arguição de descumprimento de preceito fundamental. Isso porque, não cabe, à ação popular, fazer as vezes destas ações, sobre pena de se usurpar a competência do Supremo no exercício de sua função precípua de guarda da Constituição. Segundo o art. 18 da lei 4.717/65, no caso da ação popular, "a sentença terá eficácia de coisa julgada oponível 'erga omnes'". A resolução 01/99 tem efeitos mais do que concretos, pois disciplina o comportamento de todos os psicólogos do Brasil (são mais de 300 mil), valendo-se de uma linguagem típica, pela sua fluidez, de lei. A primeira parte do art. 3° da Resolução, diz: "Os psicólogos não exercerão qualquer ação que favoreça a patologização de comportamentos ou práticas homoeróticas (...)". Seus comandos encarnam princípios diretamente constitucionais, como o da vedação ao preconceito em razão do sexo (Preâmbulo, art. 3o, IV e art. 5o, caput, da Constituição). O STF já reconheceu a viabilidade de se aferir a constitucionalidade, pela via do controle abstrato, de vários tipos de resoluções: 1) Resolução de qualquer Tribunal (ADI 3544, Min. Edson Fachin, 30.6.2017); 2) Resolução do Conselho Nacional de Justiça (ADI 4638 MC-Ref, Min. Marco Aurélio, 8.2.2012); 3) Resolução do Conselho Nacional de Magistratura (ADI 4140, Min. Ellen Gracie, 29.6.2011); 4) Resolução do Conselho Nacional do Ministério Público (ADI 3831, Min. Cármen Lúcia, 4.6.2007); 5) Resolução do Presidente do Conselho da Justiça Federal (ADI 3126 MC, Min. Gilmar Mendes, 17.2.2005); 6) Resolução do Conselho Monetário Nacional (ADI 2317 MC, Min. Ilmar Galvão, 19.12.2000); 7) Resolução do Conselho Administrativo do Superior Tribunal de Justiça (ADI 1610 (Min. Sydney Sanches, 3.3.1999); 8) Resolução do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ADI 51, Min. Paulo Brossard, 25.10.1989). Indo além, ao proceder à técnica da interpretação conforme à Constituição, numa sentença erga omnes, a decisão usurpa, novamente, a competência do Supremo. Segundo o art. 28, parágrafo único, da lei 9.868/99, que disciplina o julgamento de ações do controle concentrado no STF, a declaração de constitucionalidade ou de inconstitucionalidade, inclusive a interpretação conforme à Constituição, têm eficácia contra todos e efeito vinculante em relação aos órgãos do Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal. O uso da técnica, numa ação popular, coloca a decisão em rota de colisão com a Suprema Corte, pois a converte, em desrespeito ao art. 97 da Constituição (cláusula de reserva de Plenário), em resposta máxima de guarda da nossa Carta. Mas esse vício tem cura. O art. 102, I, 'l', da Constituição, dispõe que compete ao STF, precipuamente, a guarda da Constituição, cabendo-lhe processar e julgar, originariamente, a reclamação para a preservação de sua competência. O art. 988, I, do CPC, diz que "caberá reclamação da 'parte interessada' ou do Ministério Público para preservar a competência do tribunal". Em muitos países, têm sido, as leis e a Constituição, instrumentos de transformação empoderadores das pessoas pelo acesso a direitos. Edwin Cameron, juiz da Corte Constitucional da África do Sul, uma autoridade gay e soropositiva, anotou em sua obra, "Justice", o seguinte: "O direito ofereceu-me a chance de remediar e reparar a minha vida. A Constituição oferece a nós a chance de remediar o nosso país". Não é diferente com a Carta brasileira, cujos comandos abrem espaço para a fraternidade necessária a superar entraves ao reconhecimento integral, e orgulhoso, da dignidade da pessoa humana. Segundo o Ministro Carlos Ayres Britto, "a sociedade não pode ter outro fim que não seja a busca da felicidade individual dos seus membros e a permanência, equilíbrio e evolução dela própria"2. Isso é fruto de uma "democracia fraternal", na qual o pluralismo se "concilia com o não-preconceito"3. Além das questões quanto ao cabimento da ação popular, há, ainda, elementos materiais dignos de nota. Primeiramente, nenhuma liberdade desse mundo autoriza um profissional da saúde a oferecer, como serviço, a "cura" da orientação sexual de alguém, ainda que atribua, a essa "terapia", outro nome (reorientação ou reversão sexual, por exemplo). É algo indigno. Segundo o ministro Carlos Ayres Britto, "a pessoa humana passou a ser vista como portadora de uma dignidade inata. Por isso que titular do 'inalienável' direito de se assumir tal como é: um microcosmo"4. Ninguém pode abrir mão de sua dignidade, daí não impressionar o argumento de que o tratamento é voluntário e para adultos. Pouco importa. Nesse aspecto, a liberdade é limitada pela própria Constituição. Tanto que o STF, recentemente, apreciando a cautelar na Ação direta de Inconstitucionalidade 5501 (Min. Marco Aurélio, Pleno, 19.5.2016), registrou: "Foi-se o tempo da busca desenfreada pela cura sem o correspondente cuidado com a segurança e eficácia das substâncias". Isso, para "afastar desenganos, charlatanismos e efeitos prejudiciais ao ser humano", anotou o Ministro Marco Aurélio, declarando a inconstitucionalidade da lei que prometia a cura das pessoas com câncer pelo uso da fosfoetanolamina, até mesmo sem a autorização da Agência Nacional de Vigilância Sanitária. A vida que a Constituição quer para todos nós é uma vida abundante. Ela determina que se controle o emprego de técnicas e métodos que comportem risco para a qualidade de vida (art. 225, V). No voto que proferiu em favor das uniões homoafetivas, o Ministro Carlos Ayres Britto registrou que a orientação sexual é fato "de auto-estima no mais elevado ponto da consciência. Auto-estima, de sua parte, a aplainar o mais abrangente caminho da felicidade". Noutras palavras: não há felicidade sem dignidade. São faces da mesma moeda. Ninguém jamais será privado, numa democracia constitucional como a brasileira, de estudar o que quer que seja, de pesquisar aquilo que deve ser pesquisado. Psicólogos não só podem, como devem, se dedicar a explorar, com seus estudos e pesquisas, todas as nuances da sexualidade humana. Todavia, numa comunidade atenta tanto ao preconceito quanto ao sofrimento, é possível, por meio de uma resolução, que um conselho profissional advirta profissionais da saúde, como os psicólogos, de que não devem oferecer às pessoas iniciativas que sugiram que alguém pode - ou deve - ser "curado" por um fato da vida: ser gay. Isso é cruel. E o curioso é saber que o mesmo Judiciário que pode, pelas suas decisões, abrir caminho para a reafirmação de estigmas é o mesmo que cede espaço para o empoderamento. Dia 5.5.2011, o STF apreciou a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4277 e a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 132. Conferiu-se igualdade de direitos às uniões homoafetivas. "A preferência sexual se põe como direta emanação do princípio da 'dignidade da pessoa humana' (inciso III do art. 1º da CF), e, assim, poderoso fator de afirmação e elevação pessoal", anotou o Ministro Carlos Ayres Britto, relator. Deve ser, a dignidade da pessoa humana, o princípio regedor da matéria relativa à constitucionalidade da resolução 01/99 do Conselho Federal de Psicologia. Um princípio do qual ninguém abre mão, nem mesmo os adultos voluntariamente. Também um princípio que, protegendo minorias de danos ao seu bem-estar subjetivo, impede que se abrace a ideia de que a liberdade deve ser utilizada para se impor danos aos outros. Nem nos clássicos, nem nos contemporâneos, jamais, a liberdade se prestou a isso. Gays têm todo o direito de ter uma sadia vida psíquica. Diante dos dilemas da vida, podem relatar seus dramas e tentar encontrar explicações compatíveis com o que se espera da psicologia. Todavia, psicólogo nenhum pode abrir as portas do seu consultório para implementar uma terapia que prometa fazer o gay "deixar de ser gay". É um embuste. Quando deixamos de reconhecer o potencial sofrimento do semelhante, perdemos o que temos de mais valioso em nós: a nossa humanidade. A orientação sexual, e a total liberdade a ela inerente, são conquistas civilizatórias decorrentes de extrema dedicação de gerações e gerações que, marginalizadas por serem quem são, não tombaram diante do preconceito e seguiram acreditando que não há o que ser curado na exuberância da sexualidade humana. Ninguém mais neste país deve passar pela violência de ser tratado, por profissionais da saúde para que "deixe de ser gay". Viramos essa página. Passou. Acabou. A Constituição enxerga todos os gays como semelhantes que devem, cada vez mais, ser empoderados para que, livres e felizes, numa sociedade fraterna e sem preconceitos, deem as mãos aos seus concidadãos na dura tarefa de reconstruir os laços esgarçados da nossa comunidade. Há espaço, respeito e direitos para todos, tantos quantas são as cores do arco-íris. Não há, nessa condição humana, nada a ser curado. Pelo contrário. Há o que ser, como um plus da vida, celebrado. Ainda bem. __________ 1 Rafael Wowk é mestre em Direito pela Sorbonne - Paris 1 e pela New York University. Ambos integram o escritório Ayres Britto Consultoria Jurídica e Advocacia.   2 O humanismo como categoria constitucional. Belo Horizonte: Fórum, 2010, p. 21.   3 Ibidem, p. 34.   4 Ibidem, p. 20.
O modelo triunfante de jurisdição constitucional contemporânea é produto de uma pequena elite das nações. Aqueles que fomentaram guerras, que deram dimensão global à escravidão e que lucraram com a colonização dos países africanos montaram formas de justiça constitucional que têm sido replicadas mundo afora. A primeira, dos Estados Unidos, traz a Suprema Corte. Há a francesa, diversa e de menor apelo. Então, o modelo europeu continental, com destaque para a Alemanha. De repente, nações que impuseram ao mundo crueldades inimagináveis passaram a dar lições de respeito aos direitos fundamentais. Uma grande ironia. Hoje, lugares reputados por muitos como os mais inóspitos do planeta dão exuberantes demonstrações das virtudes do constitucionalismo. Sexta-feira passada, a Suprema Corte do Quênia declarou a inconstitucionalidade das eleições presidenciais realizadas em agosto desse ano. Novas eleições deverão ocorrer em 60 dias. Foi uma medida que raramente se vê por aí. Precisamos acompanhar, contudo, o seu cumprimento. Segundo a decisão, a Comissão Eleitoral Independente falhou, negligenciou ou recusou conduzir a eleição presidencial como manda a Constituição. Houve ilegalidades na transmissão de dados de apuração. O fato do responsável pela tecnologia da votação ter sido assassinado uma semana antes das eleições intensificou a desconfiança. Erros na apuração não são uma exclusividade africana. Nos Estados Unidos, a disputa entre George Bush e Al Gore, no ano 2000, pelos votos da Flórida, terminou na Suprema Corte, a quem compete apontar os erros e corrigi-los. A Corte preferiu tirar um "zerinho ou um" e entregar a George W. Bush a presidência. Aprendemos com a mãe da democracia que ter sido ou não eleito pode ser um detalhe desimportante para se sagrar vitorioso numa disputa eleitoral. Outro paradoxo. Vale conhecer o contexto no qual a decisão da Suprema Corte do Quênia foi tomada. Em 2002, o país teve a sua mais importante eleição, que alçou ao poder o líder oposicionista Mwai Kibabi da etnia Kikuyu. Raila Odinga, ex-ministro dos Transportes, da etnia Luo, abriu dissidência e se candidatou a presidente no pleito seguinte. A eleição se deu em dezembro de 2007. As pesquisas mostravam o Movimento Democrático Laranja, liderado por Raila Odinga, à frente do Partido da União Nacional, do presidente Mwai Kibaki. A expectativa era de que Odinga conquistasse três vezes mais votos para o parlamento do que Kibaki. Segundo Kofi Annan, Nobel da Paz: "Essa expectativa de mudança foi acompanhada não só de uma sensação de direito adquirido, por parte das tribos em desvantagem, como também, no entender delas, de um sentimento de justiça iminente, no qual os recursos apropriados pelos dominadores seriam legitimamente tomados deles. Essa era, particularmente, a esperança dos luos, uma das três maiores tribos, que com frequência tinha sido deixada de fora da hegemonia étnica rotativa da política queniana, que beneficiava principalmente os kikuyus e os kalenjins" (Intervenções: Uma vida de guerra e paz. Companhia das Letras, 2013, p. 228). No entanto, em 30 de dezembro, depois de atrasos na apuração em regiões nas quais o Partido da União Nacional possuía grande popularidade, uma reviravolta deu a vitória a Kibaki, reeleito por uma larga margem. Aliados de Odinga requereram à Comissão Eleitoral a recontagem dos votos, mas o pedido foi negado. Kofi Annan recorda que "o presidente foi empossado às pressas, durante a noite, em uma cerimônia a que esteve presente um punhado de pessoas". Rasga o tecido social o fato de grupos injustiçados não terem a chance de ascenderem legitimamente ao poder. A nação explodiu. Milícias étnicas espalharam o terror pelo país, notadamente no Vale do Rift (predominância dos Luo) e no subúrbio de Nairóbi (predominância dos Kikuyu). Primeiro, os saques aos Kikuyus pelos Luos. Então, "um ciclo ascendente de insegurança e violência, de tribo contra tribo". Kofi Annan diz que "a insegurança conduziu à violência, à brutalidade e, em pouco tempo, ao assassinato em massa de forma sistemática". Na barbárie, "ônibus detidos por gangues armadas com machados que obrigavam os passageiros a exibir seus documentos de identidade. O nome da família e o lugar do nascimento indicavam a que tribo pertencia a pessoa. Se o documento desse a resposta errada, o portador era espancado ou morto". Annan prossegue: "Trinta pessoas tinham sido aprisionadas e mortas numa igreja no Ano-novo. Incendiavam escolas e atacavam aldeias inteiras. Assassinatos e estupros eram praticados contra kikuyus por luos ou kalenjins e vice-versa. Alguns começavam a dizer que os conflitos de tribo contra tribo tinham sido aprofundado demais para que houvesse alguma esperança de detê-los. Os aviões chegavam a Nairóbi completamente vazios, enquanto os veículos que deixavam o país saíam lotados". O resultado foi perturbador: 2.500 mortos e 250 mil desabrigados. A quantidade de migrações resultantes da crise chegou a 600 mil. O Quênia estava sendo tragado por um ralo de ódio aberto em seu próprio seio. Foi quando o concerto das nações viu em Kofi Annan, um africano, de Gana, que foi secretário-geral da ONU, a legitimidade para coordenar um processo de paz. Em 14 de fevereiro de 2008 um acordo foi assinado. Em 4 de março foi criada a Comissão de Inquérito sobre Violência Pós-Eleitoral e a Comissão da Verdade, Justiça e Reconciliação. Também foi criada a Comissão de Coesão e Interação Nacional. Kofi Annan entendeu que "um acordo de poder compartilhado e uma emenda constitucional seria o único caminho para tirar o Quênia daquele atoleiro sangrento". A Constituição que nasceria, a Katiba, promovera "uma redução progressiva dos poderes do presidente". Ela foi referendada em agosto de 2010. Katiba, na língua suaíli, significa Constituição. O referendo perguntava: "Você aceita a nova Constituição proposta?". 68,55% votaram sim, contra 31,45%, além dos 2,40% dos votos brancos e nulos. Dia 27 de agosto de 2010, a Constituição foi promulgada. Passados dez anos do massacre, o demônio adormecido despertou: nova fraude eleitoral nas eleições presidenciais. Se, antes, homens fortes tentaram resolver a questão com machados nas mãos, agora, foi essa heroína mansa e generosa, a Katiba, que agiu. Logo após o anúncio da decisão, o presidente reeleito, Uhuru Kenyatta, disse que acatava o veredicto e pediu que seus apoiadores fizessem o mesmo. As pessoas sentiram os ventos da esperança soprarem a relva de um solo que volta a florir. As diferenças seriam superadas sem que entes queridos tivessem as cabeças cortadas por machados. São os frutos do constitucionalismo. Mas é preciso perseverar para não haver retrocessos. O Quênia mostra que é capaz de lidar com situações complexas sem se afastar dos caminhos que sua Constituição traçou. Se seguir respeitando o Estado de Direito verá florescer mais liberdade, segurança e um constitucionalismo profundamente transformador. Em 2012, a Comissão de Implementação da Constituição do Quênia me convidou para ir até o país, no Vale do Rift - onde os conflitos foram mais intensos -, falar na conferência que celebrava cinco anos da Katiba. Discorri sobre o "ativismo judicial das virtudes", quando o Judiciário passa a tomar decisões reforçando os princípios republicanos abandonados pelos políticos. Depois, fui até a sede da Comissão, em Nairóbi, repetir a fala perante os conselheiros. Estávamos na savana. Do local, a cerca de 7.000 metros, era possível ver as águas do Lago Naivasha, um dos mais belos da África. Também a cratera vulcânica do Monte Longonot e as montanhas de Abedare. A região de safári tem por habitantes leões, rinocerontes, guepardos, hipopótamos, impalas, zebras (inclusive albinas), cervos, vários tipos de antílopes, crocodilos, chacais, hienas, javalis e girafas. A conferência aconteceu sob a Grande Tenda, no Great Rift Valley Lodge & Golf Resort. É da tradição queniana realizar eventos dessa dimensão em espaços afastados. Em 12 de fevereiro de 2008, por exemplo, Kofi Annan transferiu as reuniões que resultaram na elaboração da Katiba para o Kilanguni Safari Lodge, nas imediações do Parque Nacional Tsavo. O centro dos conflitos, com toda a sua negatividade, foi convertido em positividade e esperança. O presidente que teve sua reeleição declarada inconstitucional, Uhuru Kenyatta, é filho de Jomo Kenyatta, o fouding father da nação. O Quênia foi colonizado pelo Reino Unido, a partir de 1890. Em 12 de dezembro de 1963, teve sua independência reconhecida. Jomo Kenyatta assumiu como presidente e governou até 1978, quando morreu. Ele dá nome ao aeroporto de Nairóbi, tem uma estátua diante da Suprema Corte, estampa as notas de 100 xelins e dia 20 de outubro é seu dia, feriado nacional. Hoje, cinco anos depois da conferência, saber da decisão anulando uma eleição presidencial viciada me faz sentir que o constitucionalismo contemporâneo e os princípios que ele exorta são caminhos sem volta. O Quênia ganhou do destino a rara oportunidade de reconstruir o seu passado e pode fazê-lo sem armas nem ódio, mas com a dignidade dos que sabem agir diante dos convites da história. Do coração do continente africano veio uma altiva demonstração de grandeza institucional. É cedo para dizer, mas a reação à decisão leva a crer que o povo curou suas dores e, curando a si, cicatrizou as feridas abertas na alma de uma nação que lhes pertence. Luminoso o fato de o poder ter sido refreado no país. São sempre os desamparados os primeiros a penarem quando os duelos dos poderosos não encontram limites. É como um provérbio suaíle ensina: "Quando os elefantes brigam quem sofre é a relva". Suprema Corte do Quênia, que declarou a inconstitucionalidade das eleições presidenciais ocorridas em agosto. Sob a Grande Tenda, em 2012, na conferência que celebrava cinco anos da Katiba, a Constituição do país. Os participantes da conferência no Vale do Rift, em 2012, palco dos conflitos mais sangrentos em 2007, quando o país explodiu após uma suspeita de fraude eleitoral. Saul é o segundo da esquerda para a direita. Na sede da Comissão de Implementação da Constituição, em Nairóbi, falando para os conselheiros.
A educação pública brasileira voltou à ribalta. Para falar um pouco sobre ela, vamos escolher como ponto de partida a educação europeia medieval imposta pelo colonizador português sob o mando do Marquês de Pombal, com suas Aulas Régias. Isso, quando o mundo já vivia as luzes. Não foi, de fato, o começo ideal. Então, passamos a contar com uma legião de escolas confessionais formando gerações e gerações em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. O ilegítimo intervalo militar de mais de duas décadas também deixou marcas. Passamos a contar com generais e, a depender da indisciplina, com canhões. O fim da ditadura inaugurou a fase atual de dominância político-partidária, com militantes fazendo a sua propaganda ideológica delirante no lugar do ensino. Os nossos jovens parecem ter vindo ao mundo para serem objetos de causas dos outros. Quando a causa será, pura e simplesmente, a educação? Um padre ou uma freira podem ser excelentes professores, mas um convento que ensina música será sempre um convento. Assim como o fato de um coronel poder ter uma extraordinária didática não significa que um quartel que ensina matemática seja algo diferente de um quartel. O mesmo se diga de um partido que dá aulas de sociologia. Ele seguirá sendo um partido, nada além. Então, por quê confundir os papéis no tocante à educação pública? Simplesmente confundem. Agora, o pré-candidato à presidência da República, o deputado Federal Jair Bolsonaro, trouxe à tona um debate que tem tudo para render: a expansão da militarização das escolas públicas. No solo da desesperança, esse é um tipo de adubo que pode fazer florescer um matagal de distorções. Como homem público e postulante do cargo máximo da República, é natural que o deputado tenha propostas. Nós, observadores constitucionais, devemos, todavia, aferir a compatibilidade delas com a Constituição. Antes de tudo, é claro que a educação pública brasileira tem inegáveis problemas. Alguns indicativos ajudam a ilustrar. Em 2016 saiu o resultado do Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (PISA), aplicado em 2015, que avalia o rendimento dos estudantes nas ciências, leitura e matemática. O Brasil ficou em 63o lugar em ciências, 59o em leitura e 66o em matemática. A prova, coordenada pela Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), foi aplicada em 70 países. Somos, segundo esse índice, espécies de párias da educação em todo o mundo. De acordo com a OCDE, o nível mínimo esperado para um estudante rudimentar é o nível 2 (vai de 1 a 6). No Brasil, mais da metade dos estudantes ficaram abaixo dele em todas as áreas avaliadas: ciências, literatura e matemática. Que pai ou mãe é capaz de se orgulhar disso? É terrível. É essa humilhação pública frequente que abre um fosso na sociedade capaz de emprestar eco à proposta do deputado Bolsonaro. Acontece que, no Brasil, a educação é um tema constitucional. Ninguém tratará dele sem passar a vista, antes, na Constituição Federal de 1988. O art. 208, § 1º, dispõe que "o acesso ao ensino obrigatório e gratuito é direito público subjetivo". A Suprema Corte tem rica e recente jurisprudência tocando em pontos importantes da educação pública. Ela, por exemplo, fixou a seguinte tese quanto ao Tema 531: "A administração pública deve proceder ao desconto dos dias de paralisação decorrentes do exercício do direito de greve pelos servidores públicos, em virtude da suspensão do vínculo funcional que dela decorre, permitida a compensação em caso de acordo. O desconto será, contudo, incabível se ficar demonstrado que a greve foi provocada por conduta ilícita do Poder Público" (RE 693.456, Min. Dias Toffoli). O precedente mencionou as greves no sistema de ensino e os prejuízos suportados pelos alunos. Nesse ponto, mais uma diferença entre instituições civis e as militares é o fato de o art. 142, IV, da Constituição dispor que "ao militar são proibidas a sindicalização e a greve". Outra tese se deu quanto ao Tema 535: "A garantia constitucional da gratuidade de ensino não obsta a cobrança por universidades públicas de mensalidade em cursos de especialização" (RE 597.854, Min. Edson Fachin). Além desses casos, está liberado para inclusão em pauta o RE 888.815 (Min. Luís Roberto Barroso), cujo Tema 822 trata da "possibilidade de o ensino domiciliar (homeschooling), ministrado pela família, ser considerado meio lícito de cumprimento do dever de educação, previsto no art. 205 da Constituição". E há mais. O ministro Luís Roberto Barroso, recentemente, concedeu liminar na ADPF 461 para suspender dispositivo de lei de Paranaguá (PR) que proíbe o ensino sobre gênero e orientação sexual nas escolas do município. Segundo o ministro, "a norma impugnada compromete o acesso imediato de criança, adolescentes e jovens a conteúdos pertinentes à sua vida íntima e social, em desrespeito à doutrina da proteção integral". Além desses casos, na pauta dessa semana no pleno do STF está a ADI 4439 (Min. Luís Roberto Barroso), que discute dispositivos da Lei de Diretrizes e Bases da Educação relativos ao ensino religioso. O procurador-Geral da República pede, com fundamento no princípio da laicidade do Estado, que o STF assente que o ensino religioso em escolas públicas deve ter natureza não confessional, ou seja, sem vinculação a religiões específicas, com a proibição de admissão de professores na qualidade de representantes das confissões religiosas. O tema foi objeto de audiência pública na Corte. Também na pauta está a ADI 5599 (Min. Edson Fachin), que questiona a reforma do ensino médio. A ação sustenta que um tema dessa complexidade não poderia ser tratado por meio de medida provisória (Medida Provisória 746/2016, posteriormente convertida na lei 13.415/2017). Agora, no plano político, vem a proposta de militarização das escolas públicas. Ninguém é capaz de negar a excelência de espaços como o Instituto Tecnológico de Aeronáutica ou a Academia Militar das Agulhas Negras. Também os colégios militares têm ajudado a formar uma boa elite nacional. É um mérito que reclama todo o reconhecimento. Isso não quer dizer que a solução para os desafios da educação pública seja a substituição das escolas por quartéis. Colégios militares são experiências pontuais, excepcionalíssimas, caras e que para seguirem exitosas devem continuar sendo exceção, não regra. Também há, no experimento, questões constitucionais problemáticas. Colégios militares podem soar excludentes. Filhos de militares têm preferência na admissão. É como se, por ter nascido num lar civil, uma criança estivesse condenada ou tivesse de sofrer um fardo adicional. Como imaginar uma política pública abrangente segundo a qual alguém pode ser privado de direitos ou ter o seu acesso à educação condicionado a um traço hereditário? Há, ainda, a falta de gratuidade. Colégios militares requerem "mensalidades" ou coisa que o valha. Pode até ser um valor razoável, quando comparado com as escolas privadas, mas, mesmo assim, é uma inovação: ensino público gratuito que não é gratuito. Segundo a Constituição, pode? Além disso, seria certo negar acesso à educação a um estudante desamparado? Que tipo de revolução educacional pública é essa centrada em traços hereditários e censitários? Somos, desde o preâmbulo da Constituição, uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos" Além disso, a Constituição chama a família para a missão da educação, uma família que, no século XXI, é plural, sem preconceitos e fundada no afeto. Pede-se o suporte do Estado e a colaboração da sociedade. E só. Segundo o art. 205 da Constituição, "a educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". O comando se repete no art. 227, segundo o qual "é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Outro ponto vem do art. 206, que indica alguns princípios que são a base sobre a qual o ensino será ministrado: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de idéias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos oficiais; V - valorização dos profissionais da educação escolar, garantidos, na forma da lei, planos de carreira, com ingresso exclusivamente por concurso público de provas e títulos, aos das redes públicas; VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei. A militarização das escolas testa os limites de todos esses princípios acima. Primeiro, não há igualdade de condições para o acesso à escola. A liberdade é substituída pela hierarquia e disciplina. O pluralismo cede espaço à unidade. Não há gratuidade. Tanto há "taxas", como pagamentos "voluntários", como despesas com a manutenção do vestuário que sustenta o simbolismo militar. Os profissionais da educação escolar são substituídos por militares ou a eles submetidos. Como compreender a liberdade de cátedra de um professor cercado por guardas com fuzis? Por fim, os militares têm muitas virtudes. Todavia, "gestão democrática" não parece ser uma delas. Não bastasse, as Forças Armadas não têm competências constitucionais voltadas à educação. Segundo o art. 142, elas são constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. A Constituição também não conferiu aos militares qualquer dever com a educação. O art. 144, § 5º, dispõe que "às polícias militares cabem a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública". A menção se justifica pelo fato de parte dessa "militarização" envolver a Polícia Militar. Assim, nada obstante a educação pública no Brasil não tenha conseguido superar seus desafios e isso colocar em risco o futuro das próximas gerações, a expansão da militarização escolar encontra obstáculos constitucionais evidentes. Por isso, devemos pensar mais. Há muitas formas de manter estudantes motivados. Em todos os lugares, a primeira delas é fazendo-se bom uso desse personagem central: o professor. Aquele vocacionado que não serve a causas outras que não seja a causa constitucional da educação. O foco é a relevância que o Estado confere ao professor, não a sua substituição por soldados armados. A Finlândia é lembrada como exemplo de educação. Na última edição do PISA o país figurou entre os cinco melhores tanto em ciências como em literatura. Na sala de aula, eles têm professores. Além disso, têm compromisso com os alunos, respeito à diversidade, pedagogia atrativa, inovação e, claro, metas. Não há hierarquia e disciplina. Mas há resultados. E eles são excelentes. No Brasil, os alunos de colégios militares têm mostrado um extraordinário valor. O mesmo vale para os mestres que lhes influenciam a formação. Isso não quer dizer, contudo, que a solução para a educação pública brasileira seja a militarização de escolas. A proposta parece tratar de forma simples uma questão repleta de complexidades. Um exemplo banal de solução aparentemente simples, mas inteiramente equivocada, é a opção de impor castigos corporais a crianças para lhes moldar o caráter. Sopapos num garoto desobediente talvez lhe incuta a ideia de não atirar lápis no ventilador da sala. Nem por isso nós aceitamos esse tipo de punição. E não somos só nós. A África do Sul declarou a prática inconstitucional. Uma escola evangélica justificava as punições com base em versículos do livro de Provérbios e de Deuteronômio, da Bíblia. A Corte Constitucional, sob a relatoria do juiz Albie Sachs, entendeu que permitir que professores ou diretores escolares surrassem estudantes era indigno a todos os envolvidos e à própria comunidade [Christian Education South Africa v Minister of Education, CCT4/00]. A Corte sul-africana manteve a constitucionalidade da lei que bania a prática. A escola teve de mudar sua postura. Saiu a tora de pau. Entrou a advertência. Menos mal. Aprendemos que missões colonizadoras, conventos, quartéis e partidos políticos têm suas próprias causas e que a educação pode até ser uma delas, mas sempre em tom acessório, jamais principal. Desesperados, podemos até cogitar entregar as nossas escolas públicas aos militares. Mas esse ato irrefletido esbarra na Constituição. É bom que saibamos disso. No fundo, para educar nossos jovens, não deveríamos precisar nem de colônias, nem de conventos, nem de quartéis, nem de partidos. No tocante à educação pública, escolas e professores formam a combinação mais bem sucedida que o mundo foi capaz de realizar. É bom ter cuidado com as escolhas que fazemos em tempos de desespero. Costuma ser nesses momentos da história que surgem as melhores ideias, mas também, os mais terríveis vexames.
terça-feira, 22 de agosto de 2017

A violência obstétrica à luz da Constituição

Ser mulher sempre foi um ato de coragem. Hoje, não é diferente. Para entender, vale conhecer a história de Paula de Oliveira Pereira, 28 anos, dona de casa, mãe de quatro crianças entre 11 anos e 11 meses nascidas em hospitais públicos da grande São Paulo. Ela foi, há poucas semanas, apresentada ao país pela imprensa em razão de uma drama pessoal que experimentou. Em 2015, Paula teve o terceiro filho. Ficou 14 horas em trabalho de parto, sem acompanhante, embora a lei lhe assegure esse direito. Pediu anestesia, em vão. Sozinha e fora de si, caiu da maca. O corpo esmagou sua barriga no chão. Depois de ser recolhida pela equipe médica, ainda se debatendo, ouviu que não estava contribuindo para o parto "andar logo". Foi quando a enfermeira resolveu agir. Saltando sobre Paula, passou a empurrar o bebê pressionando a parte superior do útero. Estava deitada sobre a gestante. É a manobra de Kristeller, desaconselhada pelo Ministério da Saúde. Paula perdeu o ar. A barriga se transformou num hematoma. Ela passou semanas sem levantar da cama, mas o menino nasceu. Foi um parto "desumanizado". Algo cotidiano. Para dar a luz nas condições acima só mesmo tendo nervos de aço. Acontece que somos seres humanos, trazemos conosco emoções, não aço. Ano passado, Paula percebeu que era hora de encarar mais um parto. Tendo experiência de sobra no assunto, entrou em pânico. Desesperada, comprou uma arma e preparou um plano. Chegaria ao hospital e exigiria uma cesárea. Se não fosse atendida, se mataria ali mesmo. Mandou uma mensagem para a mãe avisando. A senhora comunicou à polícia e correu para o hospital em socorro de Paula. Persuadidos, os médicos fizeram a cesárea. Em seguida, os policiais a separaram do seu bebê e a levaram presa, num camburão, tão logo teve alta, três dias depois do parto. Porte ilegal de arma foi a acusação. Paula foi encaminhada para a delegacia de Itapecerica e depois para o Centro de Detenção Provisória (CDP) Feminino de Franco da Rocha. Ainda carregava na barriga os pontos da cesárea. Passou 21 dias presa. Segundo o art. 5º, L, da Constituição, às presidiárias serão asseguradas condições para que possam permanecer com seus filhos durante o período de amamentação. Paula nem viu o filho, nem o amamentou. A promotora de Justiça de Itapecerica da Serra pediu sua absolvição. A juíza concordou. O relato, fruto das várias entrevistas que Paula concedeu à imprensa depois que O Estado de São Paulo a descobriu, escandaliza uma rotina que grita em silêncio nos hospitais brasileiros. Há partos que são uma tortura. Grávida, sozinha, em pânico, desorientada, Paula sofreu. Quantas Paulas vagam por aí? Os episódios relatados correspondem ao que a literatura especializada chama de "violência obstétrica". Na Venezuela, é um crime com expresso tratamento legal. Na Argentina, também. No Brasil, estudos e discussões começam a se adensar a respeito da questão e o caso de Paula trouxe tudo à tona com mais força. A violência obstétrica pode ocorrer na gestação, no parto e no pós-parto ou no atendimento em situações de abortamento. Humilhar a gestante com gritos e xingamentos, negar a aplicação de anestesia ou equivalentes, não permitir a entrada de um acompanhante, adotar procedimentos como a manobra de Kristeller e mutilar a mulher, são exemplos de violência contra a gestante. Paula sofreu um caso clássico de violência obstétrica. Enquanto a divulgação de episódios de violência obstétrica começa a pipocar pelo país, há, do outro lado, o instrumento mais poderoso a conter essa prática cruel. A Constituição distribui empatia às gestantes. O preâmbulo diz que o nosso Estado democrático se destina a assegurar o "bem-estar". A dignidade da pessoa humana, por sua vez, é um dos fundamentos da República (art. 1º, III). É preciso que todas as Paulas saibam disso. A Constituição é por elas, não contra; defende-as, não as acusa; ameniza seus sofrimentos, não os intensifica. Segundo os depoimentos de Paula, o parto foi internalizado como sofrimento e humilhação. Acontece que, pelo art. 5º, III, da Constituição, ninguém será submetido à tortura nem a tratamento desumano ou degradante. Se assim o é, então como essas mulheres têm passado por tudo isso? Se a Constituição não pretendesse construir uma sociedade sensível às gestantes não teria assegurado como direitos dos trabalhadores urbanos e rurais a licença à gestante, sem prejuízo do emprego e do salário, com a duração de cento e vinte dias (art 7º, XVIII). A proteção à maternidade é um direito social (art. 6º, caput). O art. 10, II, 'b' traz restrições severas à dispensa arbitrária ou sem justa causa da empregada gestante, desde a confirmação da gravidez até cinco meses após o parto. Não bastasse, a previdência social atenderá, nos termos da lei, a proteção à maternidade, especialmente à gestante (art. 201, II). Outra conclusão não há que não seja a de que a Constituição é atenta às gestantes. Não se trata simplesmente do direito à saúde ou do direito à vida, entendida como vida digna. A Constituição, generosa e repleta de empatia, se dedica especificamente às gestantes, ou seja, abre um campo normativo próprio ao enfrentamento da violência obstétrica. Há um conjunto eloquente de dispositivos realçando a vulnerabilidade da gestante e conferindo-lhe especial proteção. Além disso, tanto a dignidade da pessoa humana quanto a vedação à tortura ou a tratamento desumano ou degradante encontram perfeito emprego em situações como a vivida por mulheres como Paula. Essa articulação dos dispositivos constitucionais pode acelerar uma revolução humanitária nos partos no Brasil. Dar a luz não pode significar ver as trevas. O Poder Judiciário deve ser procurado. O Ministério Público e a Defensoria Pública já demonstraram disposição em enfrentar a questão. Além disso, o Congresso Nacional, por meio de leis, deve estimular o Poder Executivo a disciplinar a violência obstétrica considerando-se o contexto brasileiro e a experiência internacional com o assunto. Já há iniciativas nesse sentido. Quanto a Paula, O Globo noticiou que ela está grávida de novo, agora, de quatro meses. É o quinto filho gestado no ventre de quem não completou sequer 30 anos. Moradora em Embu das Artes, na grande São Paulo, ela vive em uma casa de um cômodo com os quatro filhos e o marido desempregado. Paula segue em busca de uma cesárea ou, pelo menos, do direito de não ser mais vítima de violência obstétrica. A hiper exposição do seu drama deu a ela visibilidade suficiente para não precisar mais enfrentar tudo o que enfrentou num hospital. Mas há ainda muitas Paulas por aí. A Constituição quer conhecê-las e protegê-las. O nascimento de crianças há de simbolizar a renovação das esperanças, o sopro da vida, não tortura e humilhação. Para isso, uma boa saída: mais e mais respeito à Constituição.
Parecia que estávamos no século XIX. Ninguém acreditou quando viu aquele vasto número de pessoas brancas, segurando tochas, marchando, sob a escuridão da noite, pelo campus da Universidade da Virgínia, em Charlottesville. "Sangue e solo", gritavam, ao mesmo tempo em que exigiam medidas de ódio contra negros, gays, judeus e imigrantes. Considerado como de "ultra direita", o movimento se associa à supremacia branca e ao nazismo. O espetáculo visual miserável de intimidação e hostilidades está protegido pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos, que garante a liberdade de expressão. O estopim dessa explosão repulsiva teria sido uma medida adotada pela Câmara de Vereadores, em abril, que aprovou lei determinando a remoção de uma estátua do general Robert Lee no parque que tinha o seu nome e foi rebatizado de Parque da Emancipação. Durante a Guerra Civil (1862-1865), Lee foi um dos comandantes do Exército Confederado, do Sul, opositor da abolição da escravatura defendida pelo presidente Abraham Lincoln e os Estados do Norte. Ao final da marcha, os "protestantes" se posicionaram ao redor da estátua de Thomas Jefferson, no campus da Universidade. Logo ele, o pai da Declaração de Independência, estava ali, assistindo a tudo aquilo. A verdade é que sempre houve, nos Estados Unidos, grupos como o que se viu vagando pela Universidade da Virgínia. A eleição de Donald Trump deu a eles a esperança de retorno à vida pública nacional. Seria um triunfo tardio. O próprio Jefferson se insere nesse contexto de exortação tardia à escravidão. Ele teve vários filhos com sua escrava, Sally Hemigs, mas jamais os reconheceu. A paternidade só foi comprovada em 1998, por exames de genética nos descendentes da Sally, até hoje atacados pela família de Jefferson. O ex-presidente dos Estados Unidos - foi o terceiro - era dono de escravos. Possuía 267 escravos na Virgínia e atuava no tráfico negreiro. Jefferson morava em Paris durante a Revolução Francesa. Atraído por ela, acreditou que o terror e as execuções na guilhotina eram aceitáveis em nome do avanço das novas ideias políticas. Segundo ele: "A árvore da liberdade precisa ser irrigada de tempo em tempo pelo sangue de patriotas e tiranos. É a sua forma natural de crescer". A turba de Charlottesville parece ter dado ouvidos, nesse particular, a Thomas Jefferson. Os gritos de "sangue e solo" vistos no campus da Universidade têm inspiração romântica. O romantismo é a forma de ver a vida pelo passado. É como o filme Meia-Noite em Paris, de Woody Allen. O passado é sempre melhor do que o presente. É uma espécie de fuga infantil. Quem melhor explica a ideia de "sangue e solo" - mote da marcha dos supremacistas brancos na Virgínia - é Steve Pinker, o decifrador da mente coletiva que leciona em Harvard. Pinker esclarece que quatro correntes ideológicas se opuseram às conquistas do século das luzes. A primeira foi "um nacionalismo militante que veio a ser conhecida como 'sangue e solo' - a ideia de que um grupo étnico e a terra na qual ele se originou formam um todo orgânico com qualidade morais únicas e que sua grandeza e glória são mais preciosas que as vidas e a felicidade de seus membros individualmente". Também recorda o "militarismo romântico", a ideia de que "a guerra é nobre, enaltecedora, virtuosa, gloriosa, heroica, empolgante, bela, santa, emocionante". Uma outra seria o "socialismo marxista, para o qual a história é uma gloriosa luta de classes que culmina na subjugação da burguesia e na supremacia do proletariado". Por fim, a quarta, teria sido "o nacional-socialismo, para o qual a história é uma gloriosa luta de raças que culmina na subjugação das raças inferiores e na supremacia dos arianos" (Os Anjos Bons da Nossa Natureza, p. 269). O que se viu na Virgínia, portanto, é uma evocação romântica ao movimento "sangue e solo" que apresentou um viés contrailuminista no século XIX, associando a vinculação com certo lugar à superioridade de grupos em detrimento de outros vindos de fora. É um prato cheio contra imigrantes. Dificilmente grupos como esse conseguirão reverter as conquistas recentes da humanidade. Se antes havia o Iluminismo, hoje temos o que se pode chamar de Revolução Humanitária, um marco na redução histórica da violência, e, segundo o próprio Steve Pinker, "uma das realizações de que a humanidade mais deve se orgulhar". Matanças supersticiosas, punições cruéis, execuções frívolas e escravidão constituem um legado repulsivo que jamais assumirá o controle de nossas vidas novamente. Por mais que tolos fantasiados marchem romanticamente com suas tochas nas madrugadas dos Estados Unidos eles não têm mais a força que um dia tiveram a ponto de reverterem os virtuosos frutos dessa Revolução humanitária, que são: o crescimento da empatia entre as pessoas e das pessoas com outras espécies; a celebração da vida humana; o reconhecimento da dignidade de todos, indistintamente; a consolidação de uma cultura do conhecimento ou "das letras"; a fundação de um humanismo esclarecido; a persistência com os marcos da civilização; e a própria manutenção de ideais universais trazidos pelo Iluminismo. Ainda que radicais conservadores digam o contrário, os Estados Unidos jamais retornará para as Leis Jim Crow. Os direitos civis nos fizeram sentir repulsa pelos linchamentos raciais. Isso, independentemente da cor da nossa pele. As pessoas mudaram e, com elas, a nação ganhou outra conformação psicológica. Com a insistência em abordar os direitos da mulher, por exemplo, veio o declínio do estupro e do espancamento. A bandeira dos direitos das crianças reduziu o infanticídio, os maus-tratos e o bullying. Lutar por direitos da comunidade gay resultou no declínio dos espancamentos e na descriminalização da homossexualidade em muitos países do mundo. Vem de pautas como a dos direitos dos animais a discussão sobre o que podemos fazer para pôr fim à crueldade com os bichos. São muitas as conquistas. É preciso mais do que turbas fantasiadas assustando pessoas pela madrugada para que todos esses frutos sejam perdidos. Para isso acontecer, seria necessário derrubar instituições como o Poder Judiciário independente, a imprensa livre e o acesso à educação plural. Não irão tão longe. Demônios interiores como o desejo de dominação, a aptidão pela revanche, o sadismo e a inclinação a se conduzir por ideologias, serão sempre vilões da história, jamais mocinhos. É por isso que movimentos como o que se viu na Universidade da Virgínia impressionam mais pela ousadia em se exibir de maneira tão ultrapassada do que por verdadeiramente assumir o controle da vida da maioria da população. Não custa ser vigilante, é claro, mas a vida se dá mesmo é para frente, não para trás. Por isso, esses movimentos de flashback coletivo às maldades do passado dificilmente serão vitoriosos. Ainda bem.
segunda-feira, 7 de agosto de 2017

A disrupção constitucional do Brasil

Conquistas constitucionais tomaram melhor forma com o Iluminismo, movimento que contrapôs várias formas de primitivismo. A Constituição requer, para o seu pleno funcionamento, o cumprimento de acordos a priori, sem os quais a sua implementação jamais se dará. Mesmo com inúmeros comandos dedicados aos direitos e garantias individuais, um projeto consistente de nação exige unidade. Daí se referir ao "povo" enquanto abstração da coletividade, um todo indivisível. Essa acepção colide frontalmente com a ideia de isolamento. O preâmbulo da Constituição fala em "povo brasileiro", exortando, em seguida, a "harmonia social". Optamos pela solução pacífica das controvérsias. É uma conquista civilizatória. No art. 1o., parágrafo único, diz-se que o poder emana "do povo", do todo. A ideia de federação parte do pressuposto de que todos devemos viver juntos. Por isso, o art. 1o , caput, fala em "união indissolúvel". A forma federativa de Estado é uma cláusula pétrea (art. 60. § 4º, I). Tudo pela unidade enquanto elemento crucial de um projeto de nação. Cada um de nós tem não só um direito, mas um dever de "cidadania" (art. 1o., II), um dos fundamentos da República. Mas cidadania se associa a deveres com os outros e com a nação. No isolamento, o dever é com o grupo, apenas. A Constituição adota, como princípio a reger as nossas relações internacionais (art. 4º, IX), a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade. Essa oração diz muito. Abraça mais uma conquista civilizatória associada ao Iluminismo. Só prosperaremos se cooperarmos entre nós e com os outros. Mas o retorno ao isolamento de grupos pode comprometer gravemente as nossas conquistas. Segundo a Constituição, o ensino será ministrado com base na liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber e no pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas (art. 206, II e III). O fanatismo político, a propaganda ideológica e a proliferação das superstições erodem esse comando. Num retorno ao isolamento em grupos, nenhum educador será livre. Seus pensamentos serão julgados e, se destoantes dos grupos mais agressivos, condenados. Se o educador, isolado, resistir, ele será destruído. É difícil sobreviver sozinho a investidas de grupos bem organizados e com compromissos claros de lealdade entre seus membros. Nesse ambiente, as universidades são sempre as primeiras a serem atacadas. Cientistas, pesquisadores e todos aqueles guiados pelo pensamento racional perderão espaço. Com o tempo, serão hostilizados. A conflituosidade será ampliada. A lógica e a argumentação pela razão serão contrapostas por cânticos, mantras, marchas, gritos, invocações ancestrais e violência. Haverá destruição e agressão. Então, muitas universidades entrarão em colapso. O método cientifico será desacreditado. Professores, pensadores e cientistas serão perseguidos a depender das conclusões de seus trabalhos. Liberdade de expressão só existe na civilização. Fora dela, é uma aspiração infantil. Por isso, num retorno primitivo, o ambiente acadêmico ficará hostil ao dissenso. Comportamentos serão inspirados pela propaganda ideológica, superstições e fanatismo político. Não haverá mais a verdade. Tudo será relativo. Com a destruição dos paradigmas, faltará espaço para o florescimento dos matemáticos, físicos, químicos e engenheiros. As ciências exatas serão abandonadas. O povo verá reduzida a sua capacidade de analisar, planejar e dominar a natureza. Incêndios, enchentes e ventanias matarão pessoas diariamente. Outras morrerão de doenças da idade média cujo combate consiste em higiene e saneamento básico. Estará em risco o art. 218 da Constituição, segundo o qual o Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação. Nada disso floresce no isolamento, pois é preciso cooperação para concretizar esse comando. Diante da proliferação das tragédias, as superstições terão mais influência sobre as pessoas. Enquanto escolas e universidades entram em colapso, templos são abertos em abundância e suas sedes são cada vez mais faraônicas. Logo os seus rituais, os mais variados, estarão na morada de todas as pessoas, transmitidos em forma de espetáculos públicos de grande adesão social. A cada dia eles se tornarão mais poderosos, reclamando mais exceções das leis e contando com a proteção das autoridades. Na prática, nos tornaremos um estado de superstições, ao contrário do que dispõe a Constituição. A ética médica e o progresso da ciência serão desafiados frequentemente. O retorno ao primitivismo torna vulnerável todos aqueles que não encontram um grupo para protegê-los. Argumentos racionais serão tomados como ofensas ao grupo, reclamando solidariedade imediata dos seus membros. O espírito coletivo e o dever de lealdade podem resultar em reações desproporcionais. Haverá revanche e nenhum perdão. As pessoas alheias aos grupos passam a ser presas fáceis. Atacadas, não encontram grupos que a elas devam lealdade. Sozinhas, ficam entregues ao barbarismo. Não durarão muito. A razão, a ciência e o talento humano serão desprezados e, no limite, combatidos. Com a perda dos padrões artísticos, o bizarro se sobressairá. Serão cada vez mais reduzidos os incentivos ao Mecenato, uma prática do Renascimento. Sem suporte financeiro, diante dos conflitos e em razão do recrudescimento da estupidez, poucos conseguirão se dedicar à reflexão e dar vazão a seus talentos. Gênios serão abandonados. Em seu lugar, virá o tolo. Não tardará para que uma juventude sem trabalho aplauda exibições de ânus ou jatos de urina. É a era escatológica. Os novos intelectuais se reunirão, em pequenas rodas, para saudarem montes de fezes. Isolados em seus grupos, excluirão aqueles que não se associarem a seus caprichos. Haverá mais disrupção. Para evitar conflitos por território, o art. 5o. XXII, da Constituição garante o direito de propriedade. Num retorno ao primitivismo, contudo, grupos expansionistas passarão a invadir territórios. Com o medo e a quebra de confiança recíproca, mais grupos se isolarão e passarão a fazer Justiça com as próprias mãos. Ficará difícil haver um controle estatal sobre os riscos sofridos por tantos grupos numa terra tão vasta. Membros destruirão a ideia de propriedade privada diariamente, à luz do dia, diante de todos. Haverá saques e pilhagens. Quem não se associar a algum grupo não terá a menor chance de se proteger. Milícias e grupos armados surgirão. Guerreiros mercenários encontrarão o seu espaço. Nesse duelo tribal, a selvageria dará as cartas. Um retorno primitivo combate toda e qualquer forma de unidade. Isso provoca novas formas de disrupção. Exercer o poder uno e indivisível se torna difícil. O Estado perde a capacidade de dirigir comportamentos. Com o esvaziamento do monopólio da força, práticas de linchamento serão frequentes. Grupos passarão a assisti-los e a divulga-los. Eles capturarão não membros e aplicarão suas próprias leis sobre eles. A sociedade deixará de ter empatia com os capturados. Em seguida, celebrará a dor alheia, inserindo o sadismo na estrutura primitiva de vida fora da Constituição. Sem unidade, acostumados com os conflitos, e vivendo uma vida que não terá qualquer valor, abrirá mão da condição humana. A dignidade será uma abstração romântica. O isolamento em grupos tira da sociedade moderna uma das suas maiores conquistas: a habilidade em cooperar. Perdemos escala e aumentamos a ineficiência. Passaremos mais tempo em conflito do que produzindo. Assim, deixaremos de ter competitividade. Ineficientes e pouco competitivos, virá a escassez. Com ela, o desemprego. Então, o aumento da miséria. Em resposta, mais isolamento. Não tardará para que mesmo os membros desses grupos sejam abandonados pelos seus iguais. É a ruína do progresso que alcançamos. Diante desse quadro, que mesmo hipotético, soa real, a única forma de superar o que parece ser um cenário de desagregação é resgatando a unidade e os deveres de cidadania consagrados na Constituição. Reafirmando a nossa identidade coletiva e, em substituição ao que parece ser um retorno a um primitivo isolamento em grupos, retomaremos a vivência enquanto "povo". Com a cooperação poderemos ultrapassar esses conflitos insistentes. Reside na Constituição, portanto, a chance de resgatarmos a liga coletiva que parece ter se perdido. É preciso exercitar logo a unidade e a capacidade de cooperar, sob pena de assistirmos a disrupção constitucional do Brasil e de sua ideia de "povo brasileiro".
Veio da cidade de Lucerna, na Suíça, a prova de que, apesar do tempo aparentemente escuro em nossa comunidade, o sol do talento e da dedicação começa a brilhar mais uma vez graças a uma nova geração de brasileiros. Letícia Machado Haertel, Bernardo Fico, Bárbara Teixeira e Ana Carolina Almeida são estudantes de Direito. Os três primeiros, da Universidade de São Paulo. Ana Carolina, da Universidade Federal da Bahia. Eles compuseram um seleto rol de trinta universitários de todo o mundo escolhidos num criterioso processo seletivo para participarem, por três semanas, em julho, do "Lucerne Academy for Human Rights Implementation" [Academia de Lucerna para a Implementação dos Direitos Humanos], curso de verão oferecido pela Faculdade de Direito da Universidade de Lucerna. O curso se debruça sobre desafios dos Direitos Humanos. Nele, a atividade prática é muito importante, com destaque para habilidades como análise de casos, escrita ágil e argumentação oral. Ao final, um julgamento simulado (Moot Court Competition) é realizado entre oito equipes formadas pelos trinta estudantes. Nessa 9ª edição, Letícia Machado Haertel foi premiada como a melhor oradora e seu time apresentou o melhor memorial (argumentação escrita). Além disso, sua equipe saiu-se vitoriosa no julgamento simulado. Bernardo Fico conquistou o prêmio de terceiro melhor orador e seu time disputou a final da competição. Para Ana Carolina Almeida, a experiência foi engrandecedora. "Ter aulas com ex-juízes da Corte Europeia de Direitos Humanos, como Mark Villiger, e participar de um Moot Court com uma banca de juízes tão brilhantemente formada por advogados praticantes da Corte e professores renomados foi uma experiência inebriante", afirma a acadêmica de Direito da UFBA. Bárbara Teixeira também se entusiasmou. A acadêmica de Direito da USP diz que o curso "permite aprofundamento em pouco tempo com professores incríveis e reconhecidos". Quanto ao Moot, ela revela: "Ele se tornou um marco na minha vida acadêmica, além de ter sido uma experiência de superação e crescimento pessoal". Bárbara realça a singularidade de Lucerna. "O maior diferencial foi a distinção acadêmica e profissional dos diretores da academia, professores, juízes do Moot, apoiadores e integrantes, que fazem toda a experiência mais proveitosa", finaliza. Leticia Machado Haertel, que voltou para casa com três premiações, tem uma boa trajetória nos chamados "moots". Ela participou da 20ª Inter-American Moot Court Competition, em 2014; das rodadas americanas e internacionais da Price Media Law Moot Court Competition, em 2015, como oradora e, em 2016 como juíza; da Nelson Mandela World Human Rights Moot Court Competition, em 2015, como oradora e, em 2016, como treinadora; e da Jessup Moot Court Competition, em 2017. Logo no primeiro semestre da faculdade, começou sua especialização em Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH). Além da graduação na USP, ela terá dupla graduação na Ludwig-Maximillians Universität, em Munique, Alemanha. Bernardo Fico também tem uma longa caminhada. Quanto aos moots, foi orador, pesquisador, juiz, e agora será treinador de duas competições. Está fazendo um curso de Diversidade Sexual e Direitos Humanos, trabalhou na Corte Interamericana de Direitos Humanos na época em que tramitava um parecer da Corte sobre direitos LGBTI, cooperou com a Relatoria de Direitos LGBTI da Comissão Interamericana, auxiliou a apresentação feita pelo advogado Paulo Iotti de um caso de homofobia ao Sistema Interamericano, e, agora em agosto, voltará para a Costa Rica para fazer considerações a respeito do direito de refugiados LGBTI a não serem discriminados. Além do terceiro melhor orador da disputa, Bernardo e seu time chegaram à final da competição. Ser aceito, participar, e receber prêmios em disputas jurídicas desse porte é um feito. Para Letícia, "tais competições formam um jurista completo, ensinando habilidades de pesquisa, argumentação, escrita, oratória, debate e trabalho em equipe e desenvolvendo capacidade de auto-organização, disciplina e resistência a situações de alta pressão". Todavia, a prática ainda não é suficientemente valorizada pela maioria das Universidades no Brasil, escritórios e outras instituições, o que pode resultar em surpresas negativas por parte dos candidatos e até mesmo desistências. Letícia reconhece esse cenário, mas sabe como transformá-lo. "Essa barreira pode ser vencida quando o aluno ou a aluna percebe que as habilidades aprendidas com o moot podem ajudá-los em todas as áreas de suas vidas". Ela destaca outras vantagens: "Depois de participar em um moot, qualquer outra tarefa é considerada mais fácil e a pessoa tem maior facilidade para lidar com ela. Além disso, a oportunidade de competir lado a lado com as melhores pessoas de universidades de renome pelo mundo não pode ser desperdiçada. Por último, o medo de falar em público, tende a ser um empecilho. Hoje, depois de tantas competições, tal medo praticamente desapareceu - mas o frio na barriga ao me aproximar da tribuna permanece como se fosse a primeira vez", diz ela. Bernardo também é um entusiasta. Ele tem dicas a dar: "Acho que o primeiro conselho é encontrar um tema que te interesse e ao qual você queira muito se dedicar, isso facilita demais na hora de engrenar em uma competição. Muitas vezes quando eu falo sobre moots as pessoas dizem que tem medo de falar em público, mas essa é uma habilidade que a gente desenvolve", esclarece. Além do preparo intelectual e do exercício de habilidades como a exposição oral, os participantes também tiveram de lidar com o inesperado. Foi o caso de Letícia. Na véspera da competição, uma colega de equipe teve uma emergência familiar e informou de que não poderia participar mais. "Éramos 4 pessoas e nossa apresentação tinha 4 partes, de forma que com a saída dela alguém precisaria assumir espontaneamente a parte dela. Eu tive uma noite para me preparar e apresentar uma argumentação completamente nova. Eu estava com muito medo de meu nervosismo em relação a essa parte nova me atrapalhar", recorda ela. O resultado mostra a capacidade de superação de todos da equipe. Bernardo também precisou transcender desafios. "Eu apresentava duas partes do caso, e minhas duas colegas de equipe apresentavam uma parte cada. Como elas nunca haviam participado de uma competição, era crucial um acompanhamento de perto para que elas tivessem segurança", recorda ele. Bernardo, contudo, diz jamais ter duvidado do potencial de seu próprio time. "Eu sempre soube do potencial delas, mas o pouco tempo para a preparação deixou as duas muito nervosas. Conseguir motivá-las e dar o apoio para que elas pudessem se desenvolver, enquanto eu mesmo também tinha que me preparar para as rodadas foi um desafio enorme". Letícia e Bernardo dizem ser o curto tempo reservado à preparação para a competição o grande diferencial do Lucerne Academy e, também, o seu maior desafio. "Enquanto outras competições reservam ao menos dois meses para a fase escrita e um mês para preparação da fase oral, tivemos duas semanas para escrever o memorial e menos de uma semana para preparar a apresentação. Não havia margem para erros ou mudanças de plano", reconhecem eles. Os dois estudantes têm uma visão realista do Brasil quanto aos Direitos Humanos, uma visão que, mesmo real, não é negativa nem pessimista. "O caso da Lei Maria da Penha é um exemplo de como as autoridades do nosso país souberam lidar bem com uma questão de direitos humanos que foi trazida por uma instância internacional, agindo de maneira interna para garantir uma melhor atuação do Estado", afirmam. Quanto ao futuro profissional, Letícia não deixa portas fechadas. "Diversos especialistas em Direitos Humanos trabalham junto a empresas e escritórios e se utilizam destas instituições para provocar mudança. Esse inclusive foi o tema desse ano na Academia de Lucerne, onde estudamos a relação entre Empresas e Direitos Humanos. Considero esse também um caminho possível para mim". Bernardo segue se dedicando principalmente a questões de direitos LGBTI. "Eu não poderia estar mais contente com o retorno que toda essa experiência tem me dado - e não estou falando de retorno financeiro, mas de satisfação pessoal. Eu vejo um caminho bem longo pela frente, tanto pra mim quanto para as pautas que eu defendo. Ainda tem muito desafio, mas também tem muito progresso vindo e eu quero contribuir da melhor maneira possível", afirma. Leticia ainda tem alguns semestres até a graduação. Contudo, sabe que cursará um LLM na Ludwig-Maximillians Universität, em Munique. "Provavelmente passarei um tempo trabalhando na Corte Europeia de Direitos Humanos", adianta ela. Bernardo também tem projetos. "Tive o privilégio de conviver com pessoas que me ensinaram e me inspiraram muito, quer fossem próximas, quer fossem referências que sempre admirei. Espero poder retribuir inspirando gerações futuras, como defensor de direitos humanos, como docente e como referência na temática de direitos de pessoas LGBTI", afirma. O programa suíço "Lucerne Academy for Human Rights Implementation" segue fresco na memória dos participantes. Bárbara Teixeira guarda na mente alguns momentos: "A redação do memorial proporcionou intenso estudo de questões de Direito Internacional dos Direitos Humanos e a sustentação oral nos trouxe habilidades e técnicas essências para este meio", recorda. Ana Carolina Teixeira também não esquece as conquistas. "A melhor parte foram as grandes amizades que fiz, além de ter provado a mim mesma que sim, brasileiros são capazes de tudo e que experiências como essa não são inatingíveis: pelo contrário, são possíveis e nós as desempenhamos com graça e garra!", destaca. Letícia, Bernardo, Bárbara e Ana Carolina. Quatro estudantes de Direito que, na Suíça, deram o melhor de si não somente para eles mesmos, mas para toda a nossa comunidade. Um resultado que alimenta os anjos bons da nossa natureza coletiva. Mostra que, com paixão, talento e dedicação, podemos mudar a nós, contribuir com o próximo e ajudar a transformar o mundo. Uma bonita lição.
Democracia nenhuma se faz somente de representantes do povo. Contudo, não há notícia de um regime democrático sem eles. Também não há democracia constitucional sem Poder Judiciário. Mas, de igual modo, não seria democrático o país no qual juízes dessem todas as cartas sobre o futuro das pessoas e da nação. O acerto está no equilíbrio. Não é pedir muito. No Brasil, parlamentares contaram com especial atenção da Constituição. Em momentos de sopapos institucionais, num país habituado a solavancos políticos, são eles a voz que segue falando quando o silêncio autoritário grita no meio de nós. Por isso, no art. 53, § 8o, da Constituição, está dito que "as imunidades de deputados ou senadores subsistirão durante o estado de sítio, só podendo ser suspensas mediante o voto de dois terços dos membros da Casa respectiva, nos casos de atos praticados fora do recinto do Congresso Nacional, que sejam incompatíveis com a execução da medida". O comando diz muito. Diz tudo. Até no estado de sítio, quando há espaço constitucional para se frear a pulsão da liberdade, cabe ao Congresso, e somente a ele, num quórum elevado, a suspensão de imunidades dos congressistas, e apenas por atos praticados fora do recinto do Parlamento. Mesmo assim, nasceu entre nós algo jamais visto, nem cogitado, em qualquer país civilizado do mundo. Falo da suspensão judicial, cautelar, monocrática - mesmo num órgão colegiado -, por tempo indeterminado, de membros do Congresso Nacional. Um banimento político. Tudo começou com a decisão do saudoso ministro Teori Zavascki, que, atendendo a um pedido da Procuradoria-Geral da República, afastou o então deputado Federal Eduardo Cunha, tanto do seu mandato parlamentar, como do exercício da presidência da Câmara, numa decisão encampada posteriormente pelo pleno da Suprema Corte. O fato de um eleito ser alguém ardiloso, ou mesmo violador das leis, não derruba o tratamento constitucional conferido ao mandato que o povo lhe deu. Isto, não em sua pessoal homenagem, mas em deferência a ele, sempre ele, esse senhor importante em toda e qualquer democracia: o voto. Não que o eleito se torne um soberano, um absoluto. Não é isso. Ele responde judicialmente e perante os seus iguais, ou seja, outros parlamentares. Mas, jamais, com a possibilidade judicial de um banimento político, cautelar, por tempo indeterminado, ordenado solitariamente num órgão que é colegiado. Mesmo assim, mais adiante, o ministro Marco Aurélio determinou o afastamento do senador Renan Calheiros da presidência do Senado Federal, apreciando, também sozinho, uma antiga cautelar anteriormente prejudicada, na ADPF 402, que contava com seis votos favoráveis a que réus não presidam nem a Câmara dos Deputados nem o Senado, pois integram a linha sucessória da presidência da República. Atualmente, qualquer réu é elegível para o cargo de presidente da República. E não pode presidir o Senado porque talvez substitua o presidente num de seus pernoites fora do país? Pois é. Recentemente, mais uma "suspensão". Baniu-se por tempo indeterminado do exercício de atividade política, o que começa, claro, pelo seu mandato, o senador Aécio Neves, com argumentos próximos aos que justificaram o afastamento do então deputado Eduardo Cunha. Novamente, uma decisão cautelar, tomada solitariamente num órgão plural, dessa vez pelo ministro Edson Fachin, que foi revertida semana passada, pelo ministro Marco Aurélio. Ao chamar para si a competência de banir por tempo indeterminado da política parlamentares eleitos, mesmo dando-lhe o nome de "suspensão", o STF tira todo e qualquer incentivo do Congresso Nacional para que fiscalize os seus próprios integrantes. E não se diga que o Poder Legislativo não o faz. Nomes emblemáticos como o de José Dirceu e Eduardo Cunha tiveram seus mandatos cassados pelas próprias casas representativas. No Senado, homens poderosos, como Antônio Carlos Magalhães, já se viram diante de furacões políticos que os fizeram renunciar a postos, ou mesmo a mandatos, pelo receio da cassação pelos seus pares. É a política se retroalimentando, em seus erros e acertos, vícios e virtudes. Um modelo que não é perfeito, mas que parece ter sido o que de melhor se inventou até o momento. A suspensão judicial, cautelar, monocrática, por tempo indeterminado, de mandatos parlamentares, reduz o espaço da política na correção de rumos de seus líderes. De repente, eles ficam desonerados do compromisso ético de se corrigirem por meio do exame institucionalizado de suas posturas. É o esvaziamento do que resta da política que, como sabemos, também inclui a fiscalização quanto à dignidade, o decoro, dos congressistas. Com menos política, temos menos democracia. Com menos democracia, temos menos liberdade. Com menos liberdade, tudo deixa de fazer sentido. Para que pressionar congressistas a punirem colegas indecorosos se é possível auferir o mesmo resultado numa decisão judicial solitária e cautelar? Para que insistir com a política? A Suprema Corte contribuiria mais se, adotando uma postura procedimentalista, assegurasse que as minorias parlamentares tenham voz e que os órgãos internos de controle do comportamento parlamentar funcionem plenamente. Foi o que fez ao determinar que se instalasse comissões parlamentares de inquéritos para investigar malfeitorias. Ou quando determinou que se criasse a comissão responsável pela análise de pedidos de impeachment. Ou, ainda, ao impulsionar a instalação dos conselhos de ética e exigir o seu funcionamento desobstruído. A rota que a Constituição deu foi essa. Sair dela é flertar com casuísmos. Democracias constitucionais hão de ser, antes de tudo, um estado de certeza, ou, pelo menos, de previsibilidade. Governam as leis, não o capricho dos homens. Heróis não são necessários, pois, em seus lugares, há instituições virtuosas que, mesmo em sua imperfeição, controlam o poder e renovam as aspirações democráticas. Supremas Cortes exercem um relevante papel no incentivo à superação de dificuldade por partes de instituições fundamentais à República. Viver fora do controle equilibrado das instituições não traz uma vida boa, pelo contrário. Eu posso ilustrar. Em janeiro de 2000, em Harare, Zimbábue, o mestre de cerimônia Fallot Chawawa, anunciou o ganhador da loteria nacional organizada pelo banco controlado pelo Estado, o Zimbank. O sortudo era ninguém menos do que o presidente, Robert Mugabe, que governa o país com mão de aço desde 1980. Ele dirige o banco que o premia. No Zimbábue, não há previsibilidade. As leis não são respeitadas pelos poderosos. No lugar delas triunfam o capricho dos homens. Mugabe, esse ditador cruel travestido de presidente eleito, é fruto da crença de que ao contrário das instituições, são os heróis que nos salvarão. Ledo engano. Ninguém bem intencionado quer viver num lugar onde a cada dia saca-se uma nova regra para reger uma situação inusitada. No Estado de Direito, as previsões vêm para nos precaver exatamente daquilo que é incomum, porque é nesse espaço de hesitação que buscamos certezas. Certezas essas que muitas vezes passam pela cautela judicial em optar por estimular o funcionamento das instituições. Não há salvação fora das instituições e, no Brasil, a Constituição foi sábia ao reservar a cada uma delas o seu feixe de competências. "Bem maior", "bem do povo", "interesse nacional" e outros mantras retóricos não devem substituir convicções singelas, como a de que não é natural que um chefe de poder, ou um parlamentar, por mais tortuoso que seja o seu comportamento, seja banido da atividade política, ao argumento de que foi judicialmente "suspenso", por prazo indeterminado, cautelarmente, numa decisão solitária de um integrante de um órgão colegiado, mesmo se tratando de um juiz da Suprema Corte. Haverá, em qualquer democracia constitucional civilizada do mundo, poder judicial maior do que esse? Poder de derrubar imunidades parlamentares que, segundo a Constituição, sequer o estado de sítio é capaz de alcançar? Tempestades irrefreáveis requerem coragem e cautela. O buraco parece mais fundo do que imaginamos, é verdade. Estamos realmente numa penosa travessia. Mesmo assim, é importante que, nesse intervalo grave da nossa história, saibamos preservar o caminho do amanhã para onde queremos ir. Por mais desesperador que seja assistir a tudo o que temos assistido, não há, numa democracia, saída fora da política. É isso ou o porrete. E, como sabemos, o porrete dói e deixa sequelas. Por isso, entre a força ou a Constituição, o ideal é se agarrar a esta última, por ser ela, essa heroína generosa, a única chance de um futuro melhor para todos nós.
segunda-feira, 26 de junho de 2017

Quando o Ministério Público muda o mundo

No fundo, todos sabíamos que não iria demorar. A Suprema Corte brasileira começa a ser instada a definir os contornos constitucionais dos vários e novos instrumentos que têm sido utilizados pela operação Lava Jato. Semana passada, deu o primeiro passo com a petição 7074, sobre os limites de atuação do ministro-relator na homologação de acordos de colaboração premiada. Pelo andar da carruagem, não tardará para surgirem discussões também sobre o papel do Ministério Público, especialmente nas colaborações premiadas e na celebração de acordos de leniência. É difícil imaginar que não aparecerá alguém, em algum momento, questionando as atribuições do Parquet perante o Supremo Tribunal Federal. Nesse particular, vale a lembrança de que, em 2015, reafirmando entendimento anterior, o STF fixou tese com repercussão geral entendendo decorrer do próprio texto constitucional os poderes de investigação do Ministério Público (RE 593.727, min. Gilmar Mendes, Tema 184). O racional do precedente pode inspirar respostas a eventuais questionamentos futuros. Por exemplo: Qual é o papel do Ministério Público nos acordos de leniência à luz da própria Constituição, e não apenas da Lei Anticorrupção (lei 12.846/2013)? Parece que as idas e vindas da legislação, especialmente a Medida Provisória 703/2015, inserindo e retirando a participação dessa instituição nos acordos, seriam indiferentes, pois residiria, na própria Constituição, e somente nela, a resposta a esse questionamento. É um assunto fascinante. Mas para falar das competências do Ministério Público, vale muito, considerando-se que ele tem encampado pautas globais, fazer uma breve reflexão sobre um país cujos desafios sociais, de combate à corrupção e de consolidação democrática, se aproximam dos nossos: a África do Sul. Nesse país, quem faz as vezes de Ministério Público é a Public Protector. A instituição tem expressa previsão constitucional. O capítulo nove da Constituição sul-africana é destinado às "instituições estatais de suporte à democracia constitucional". A Public Protector é a primeira delas. Além do poder de investigação expressamente conferido (art. 182, 'a'), assegura-se a competência para divulgar, após investigações, relatórios oficiais sobre a conduta de agentes públicos e, ainda, "tomar as medidas corretivas apropriadas". Além disso, confere "poderes adicionais", nos termos de lei nacional. Não há como falar dessa instituição sem falar de Thuli Madonsela. Essa mulher, negra, viúva precoce, que criou sozinha duas crianças, esteve à frente da Public Protector até outubro de 2016. Thuli cresceu em Soweto, a township (algo próximo às nossas favelas) onde morou Nelson Mandela, nos arredores de Johanesburgo. Ela fazia parte do partido de Mandela, o African National Congress (ANC), e ajudou no projeto final de elaboração da Constituição do país. Em 2009, o presidente da República, Jacob Zuma, também do ANC, a apontou para um mandato de sete anos à frente da Public Protector. O nome foi aprovado por unanimidade pelo Parlamento. Thuli desempenhava plenamente suas funções até que, em 2014, ela divulgou um relatório oficial anunciando que, segundo investigações, o presidente Jacob Zuma, o mesmo que a indicara, havia utilizado, irregularmente, recursos públicos para reformar sua casa de campo, se valendo de uma lei que permitia apenas a inclusão de itens de segurança. Ao contrário de cumprir a lei, o Presidente incrementou o seu galinheiro, fez uma piscina e inseriu, na casa, um cinema, dentre outras malfeitorias. "Segurança no conforto" foi o nome do relatório encaminhado ao próprio presidente e ao Parlamento, determinando a adoção de uma série de medidas, o que incluía a devolução do dinheiro. A África do Sul ainda é um dos países mais socialmente desiguais do mundo. Saber que o presidente da República usa recursos públicos para incrementar sua casa de campo é algo que destrói a esperança de qualquer pessoa. Foi a partir desse momento que Thuli se viu obrigada a triunfar sobre o medo. Como dizia Nelson Mandela, coragem não é a ausência de medo, mas o triunfo sobre ele. Com a divulgação do relatório, o mundo desabou sobre a sua cabeça. Membros do Parlamento, aliados do presidente, imediatamente sugeriram reformas quanto às competências constitucionais da Public Protector. Diante da forte resistência popular, e do próprio Judiciário, a ideia não vingou. Tentando desqualificar Thuli, o ministro da Defesa e dos Veteranos Militares afirmou que ela trabalhava para a CIA. Depois, pressionado, se retratou. Enquanto o ambiente político reagia colérico, o presidente Jacob Zuma seguia omisso quanto às medidas determinadas. Paralelamente, ele articulou para que fosse instalada, no Parlamento, uma Comissão para examinar o relatório. Formada por aliados, a Comissão centrava fogo em Thuli. Dizia que ela agia com fins políticos, que era populista e que buscava projeção pessoal. O tempo foi passando sem que o Parlamento, nem o presidente, adotassem as medidas. Foi quando dois partidos de oposição, o direitista Democratic Alliance (DA) e o de extrema-esquerda Economic Freedom Fighters (EFF), decidiram fazer algo. Eles bateram às portas da Corte Constitucional com uma engenhosa interpretação da Constituição. Além da determinação de que cabe ao Parlamento fiscalizar o presidente da República, consta, no art. 83, 'b', do texto constitucional, que "o presidente deve preservar, defender e respeitar a Constituição enquanto lei suprema da República". Para os partidos de oposição, Jacob Zuma havia violado esse dispositivo ao se omitir na adoção das medidas determinadas pela Public Protector. Além disso, o próprio Parlamento, pela sua Presidente, havia violado a Constituição ao deixar de fiscalizar o Poder Executivo. Contrapondo esse raciocínio, estavam os Poderes Executivo e Legislativo, sustentando que a Constituição não determinava que se desse cumprimento aos relatórios. Eles não seriam vinculantes. Assim, sendo meras "recomendações", poderiam ser cumpridos ou não. Tanto fazia. Um argumento patético. A Corte aceitou apreciar o caso e, em 31 de março de 2016, julgou o "Nkandla's case". Nkandla é o nome da fazenda onde fica a dita casa de campo do presidente Zuma. Poucas vezes em sua história a Corte Constitucional viu algo como aquilo. Uma multidão cercava o Tribunal. A imprensa estava presente desde cedo. Militantes dos partidos de oposição se aglomeravam. Os do EFF, com suas roupas vermelhas e boinas sobre a cabeça, mais barulhentos. Os do DA, vestindo azul, mais silenciosos. Dentro da Corte, os ministros e ministras perceberam que aquele dia era um daqueles raros na história do país. Vinte anos depois da promulgação da Constituição, um presidente da República legitimamente eleito era acusado pelo uso indevido de recursos públicos e poderia, verdadeiramente, ser condenado. Além disso, estava em xeque as competências da Public Protector, uma instituição que abria o honroso capítulo nove da Constituição. Dentro de um plenário lotado, Thuli sentou-se à primeira fileira. Discreta, ela mostrava sutilmente ao advogado papéis que poderiam ajudar na sustentação oral. Estava elegante, sóbria, séria. Sabia que o futuro da instituição que chefiava corria perigo. Era o último ano do seu mandato. Não queria deixar, como legado, uma derrota massacrante como a que o presidente Jacob Zuma, e seus aliados, queriam lhe impor. Mesmo assim, não parecia desesperada. Tinha a calma dos justos. Estava serena. Durante o dia inteiro advogados se revezaram na tribuna expondo suas defesas e, na sequência, sendo interpelados pelos juízes e juízas da Corte. O patrono da Public Protector sustentava que a Constituição, ao determinar que a instituição "adote as medidas corretivas apropriadas" e, além disso, ao dispor que haviam "funções e poderes adicionais, nos termos de lei nacional", estava, em verdade, abrindo espaço para o reconhecimento do caráter vinculante dos relatórios oficiais preparados após investigações de órgãos ou agentes públicos. Seria uma competência constitucional implicitamente reconhecida. Os relatórios, portanto, vinculavam a Administração, não podendo ser descumpridos. Por isso, falharam tanto o presidente da República como a presidente do Parlamento. Do outro lado, tanto a patrona do Parlamento, quanto o do presidente Jacob Zuma, insistiam que a vinculação não estava explícita na Constituição, razão pela qual nenhum dos dois poderes poderia ser responsabilizado. Assim, nem o presidente da República havia descumprido seu compromisso constitucional de preservar, defender e respeitar a Constituição enquanto lei suprema da República, nem a presidente do Parlamento falhou em não fiscalizar, nem punir, o Presidente. Depois da deliberação secreta, os ministros e ministras voltaram para anunciar a decisão. Do lado de fora, a multidão dançava e repetia: "Devolva o dinheiro! Devolva o dinheiro!". Como o plenário da Corte fica abaixo da rua onde estavam os manifestantes, todos ali dentro ouviam as músicas cantadas e sentiam a força dos pés pisando o chão e impondo pressão à estrutura do recinto. Vermelhos e azuis, EFF e DA, militantes de ideias políticas tão diversas, estavam unidos em sua diversidade, dançando e cantando juntos, guiados pela necessidade mútua de reafirmação da Constituição, um documento cujo esvaziamento acabaria com a esperanças de ambos. Ali não havia ideologia de direita, nem de esquerda. Tudo o que importava, naquele momento, era a certeza de que uma instituição fundamental ao país seria preservada. No limite, eles estavam investindo imensa energia na preservação da jovial democracia sul-africana. O presidente da Corte, o chief justice Mogoeng Mogoeng, depois que os outros dez juízes e juízas se sentaram, começou a ler a histórica decisão. Num dado momento, elevou a voz e, eloquentemente, em seu sotaque africano, afirmou: "Nossa democracia constitucional só é verdadeiramente fortalecida quando: há tolerância zero com a cultura da impunidade; as perspectivas de boa-governança são devidamente reforçadas por uma responsabilidade redobrada; há observância ao Estado de Direito; e se respeita todos os aspectos da nossa Constituição enquanto lei suprema da República. No contexto dos poderes de reparação da Public Protector, ela deve ter os recursos e as capacidades necessárias para efetivamente executar seu mandato, para que possa fortalecer a nossa democracia constitucional". Por unanimidade, a Corte Constitucional definiu que a Constituição assegurava, implicitamente, à Public Protector, o caráter vinculante de seus relatórios frutos de investigações feitas sobre órgão e agentes públicos. Essa conclusão decorria, além da própria vocação da instituição ao combate à corrupção, da leitura combinada dos dispositivos que tanto lhes dava "poderes adicionais" compatíveis com suas competências como também impunham "tomar as medidas corretivas apropriadas". O caráter vinculante vinha da própria Constituição, sendo desnecessário a edição de lei para tal. Além disso, a Corte reconheceu a falta tanto do presidente da República como da presidente do Parlamento. Ao final, decidiu que, sim, o Presidente deveria devolver o valor gasto com a reforma da casa. A decisão inspirou orgulho e dignidade em todos que por ela aguardavam. Simbolizava a decência, a integridade e a correção diante do assédio político intenso promovido pelo Presidente e seus apoiadores. Prevaleceu o raciocínio que justificou, no Brasil, o reconhecimento dos poderes de investigação do Ministério Público, uma lógica interpretativa que encontra sintonia em outras jurisdições no mundo. Os militantes, as autoridades, os jornalistas, os curiosos e as pessoas em geral foram, pouco a pouco, partindo, descendo a rua principal, depois da proclamação do julgamento. Diante do prédio da Corte Constitucional há um monumento no qual queima initerruptamente uma chama de fogo. Chama-se "chama da democracia" e foi construído no aniversário de 15 anos da Constituição, para inspirar nas pessoas lembranças do passado e sonhos para o futuro. Abaixo da chama há, gravado numa pedra, uma inscrição sobre os direitos fundamentais do país. A "chama da democracia", em sua solidão consciente, depois que todos partiram, e o sol se pôs, seguiu queimando. Thuli Madonsela, aquela mulher distinta que aceitou o convite da coragem quando inimigos cruéis tentavam destruí-la, havia ganhado uma briga desigual. Sua atitude deu honra e reconhecimento à instituição por ela chefiada. Abriu espaço para que as futuras gerações tenham um exemplo a seguir. Ao cumprir com o seu papel, Thuli não mudou apenas a si, nem à instituição que liderava. Suas lições de equilíbrio, coragem e integridade tocaram as pessoas. Quando conseguimos tocar as pessoas, acreditem, mudamos o mundo. E isso basta. No Brasil, o art. 127, caput, da Constituição, confere ao Ministério Público o caráter de "instituição permanente, essencial à função jurisdicional do Estado, incumbindo-lhe a defesa da ordem jurídica, do regime democrático e dos interesses sociais e individuais indisponíveis". O art. 129, II, impõe-lhe "zelar pelo efetivo respeito dos Poderes Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia". O inciso IX do mesmo dispositivo aponta como função institucional "exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade" (comando que se repete no art. 6o, XIV, da LC 75/93). São dispositivos parecidos com os da Constituição da África do Sul, relativos à Public Protector, cuja interpretação, pela Corte Constitucional, conferiu à instituição o caráter vinculante de seus relatórios conclusivos de investigações de órgãos e agentes públicos. Foi interpretando também esses dispositivos que o STF reconheceu os poderes de investigação do Ministério Público. O combate à corrupção e a busca por uma boa-governança são pautas globais. Nações em todo o mundo têm tentado incrementar as instituições cuja vocação é preservar a coisa pública. Da leitura da Constituição, novas competências têm aparecido. No Brasil, o poder investigativo. Na África do Sul, o caráter vinculante dos relatórios conclusivos de investigações, com a determinação da adoção de medidas. Não tardará para que, no nosso país, diante do avanço da operação Lava Jato, novas discussões apareçam, como, por exemplo, a relativa à possibilidade de o Ministério Público firmar acordos de leniência. A resposta, como temos visto, está, antes de tudo, na própria Constituição. E ela, ao seu tempo e modo, virá.
Ocorreu, dia 12/6/2017, no Supremo Tribunal Federal, audiência pública a respeito do chamado "direito ao esquecimento", vinculada ao RE 1.010.606, de relatoria do ministro Dias Toffoli, que deliberará sobre o Tema 786 da repercussão geral: "Aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares". É importante conhecer os fatos que ilustram o caso. No começo do século passado, Gattás Assad Curi e Jamila Jacob Curi migraram da cidade de Saidnaya, nas montanhas da Síria, a 30 quilômetros de Damasco, para o Brasil, onde tiveram cinco filhos: Nelson, Roberto, Maurício, Waldir e Aída. Com a morte do pai, em 1944, quando Aída tinha somente 5 anos, ela foi enviada pela mãe para uma escola de freiras católicas espanholas na cidade do Rio de Janeiro, encarregada de educar, em regime de internato, meninas órfãs. Em julho de 1958, aos 18 anos, Aída foi a um apartamento em Copacabana, com dois rapazes. Ao tempo, ela, repleta de talentos, havia feito curso de datilografia, tocava piano, falava inglês e já trabalhava. Aída subiu até o terraço do prédio com os jovens. A partir dali, um crime bárbaro seria perpetrado. Ela foi espancada, sofreu tentativa de estupro coletivo e terminou sendo atirada do alto do edifício. Dois dos assassinos, Ronaldo Guilherme de Souza Castro e Cássio Murilo Ferreira - este, menor e filho de uma alta autoridade militar -, eram jovens que viviam em conforto e imitavam artistas de Hollywood, com suas lambretas, jaquetas de couro, topetes, rock and roll e brigas de gangues. Era a "Juventude Transviada". Os réus passaram por três julgamentos. Absolvido num segundo julgamento junto ao cúmplice, porteiro do prédio, Ronaldo, de óculos escuros, ouviu no Tribunal salvas de palmas e gritos em sua homenagem, de uma plateia formada por garotas e garotos de vinte e poucos anos que o viam como o herói cruel que sacodira um Brasil conservador. Segundo a influente revista O Cruzeiro, "em São Paulo, durante um baile em que se dançava 'rock'n'roll', meninas e molecotes gritaram 'Ronaldo! Ronaldo!', no instante em que lá chegou a notícia de que o matador de Aída conseguira escapar às garras curtas da Justiça". Enquanto isso, o arcebispo do Rio de Janeiro, Dom Hélder Câmara, liderava uma campanha pela apuração do crime. Ronaldo terminou condenado, em 1963, num terceiro julgamento, a oito anos e nove meses de prisão por homicídio e tentativa de estupro. Cássio, menor e enteado do síndico - uma autoridade militar -, não foi julgado. Em 1967, ele matou um vigilante, tendo sido condenado a 30 anos de prisão. Permaneceu no exterior, sustentado pela família, até que o crime prescrevesse. Manoel Antônio da Silva Costa, que entregara a chave do terraço, foi condenado a um ano e três meses de prisão por crime contra os costumes. Antônio João de Souza, o porteiro, foi condenado num primeiro julgamento, mas absolvido depois. Nunca mais foi visto. Em 2004, a emissora de televisão, Rede Globo, dedicou um programa ao crime. Visando abordar de maneira popular crimes bárbaros e discutir suas causas e formas de não vivê-los novamente, a emissora lançou o programa Linha Direta Justiça. Em uma de suas edições, o crime cometido contra Aída foi abordado. A emissora abriu um fórum de discussão em sua página na internet. Várias pessoas participaram. A maioria era formada por mulheres. Ao final do programa, uma enquete perguntava: "Passados quase 50 anos, você acha que hoje as mulheres são mais respeitadas ou menos respeitadas pelos homens?". A partir daí, a comunidade pôde se fazer ouvir por meio do website www.globo.com/linhadireta. No "Fórum para a sociedade", inúmeras mulheres deixaram o medo de lado e se fizeram ouvir. Foram depoimentos que revelavam desesperança com a condição da mulher no país e, também, grande revolta com a impunidade. Os irmãos da vítima, contudo, haviam se oposto formalmente à exibição do programa. Ajuizaram uma ação pleiteando indenização por danos materiais e morais, além do pedido de censura-prévia à emissora quanto a futuras menções ao crime. Não há mulheres compondo qualquer dos polos da disputa. A primeira decisão entendeu que a emissora cumpriu seu papel. A partir da apelação, passou-se a invocar o direito ao esquecimento, não em nome da vítima, mas no dos irmãos. O caso chegou à Suprema Corte. Quase sessenta anos após o assassinato de Aída, a taxa de feminicídios no Brasil é de 4,8 para 100 mil mulheres - a quinta maior no mundo, segundo dados da Organização Mundial da Saúde (OMS). Em agosto de 2006, foi sancionada a lei 11.340, a "Lei Maria da Penha", visando incrementar o rigor das punições para crimes de violência contra a mulher. Em 2015, a lei 13.104 alterou o art. 121 do Código Penal para prever o feminicídio como circunstância qualificadora do homicídio. Também alterou o art. 1º da lei 8.072/1990, para incluir o feminicídio no rol dos crimes hediondos. O crime cometido contra Aída é hediondo. Pela Constituição, eles são imprescritíveis, não podendo - nem devendo - ser esquecidos. Conceder ou não um pedido de indenização contra veículos de comunicação em nome do direito à privacidade não é algo incomum. Há inúmeras leis domésticas que fundamentariam qualquer que fosse a decisão. Não parece haver complexidade suficiente a ponto de a Suprema Corte desconsiderar o ordenamento jurídico ao qual está vinculada e buscar em diretivas europeias, e decisões estrangeiras sobre o direito ao esquecimento, orientação para uma questão jurídica que, sinceramente, chega a ser trivial. Ainda que se queira conhecer a forma pela qual outras nações lidaram com a questão da lembrança, talvez valha conhecer experiências em países cujas dores se aproximam das nossas. A África do Sul, por exemplo, viveu com intensidade uma experiência de resgate de suas próprias lembranças, ainda que dolorosas. A Constituição sul-africana de 1996, abraçada por Nelson Mandela, abriu espaço para a posterior criação da Comissão da Verdade e Reconciliação, cujo estatuto de fundação incluiu a filosofia comunitarista ubuntu - "eu sou porque nós somos" - como um dos seus princípios fundadores. Presidida pelo Prêmio Nobel da Paz, o arcebispo Desmond Tutu, a Comissão dedicou parte do seu trabalho a ouvir as pessoas simples, cidadãs e cidadãos comuns, que provaram o apartheid em suas experiências cotidianas. Mais de vinte mil manifestações chegaram à Comissão. Foi por intermédio dela que a história de Phila Ndwandwe, uma heroína sul-africana, foi lembrada. Phila foi morta a tiros pelas forças de segurança do governo do apartheid, depois de ser mantida nua durante semanas na tentativa de fazer com que delatasse seus companheiros. Manteve sua dignidade confeccionando calcinhas e usando uma sacola plástica azul, vestimenta que foi encontrada envolvendo sua pélvis quando de sua exumação. "Ela simplesmente não falava", testemunhou um dos policiais envolvidos em sua morte. "Meu Deus..., ela era corajosa". A artista plástica sul-africana Judith Mason chorou ao ouvir os depoimentos dos assassinos de Phila perante à Comissão. "Quem dera eu ter podido fazer um vestido para você", disse. A artista juntou sacolas plásticas azuis descartadas e as cozeu, fazendo um vestido. Na saia, pintou a seguinte carta: Irmã, uma sacola plástica talvez não seja a armadura completa de Deus, mas você estava lutando com unha e dentes e contra poderes superiores, contra os senhores da escuridão, contra a maldade espiritual em lugares sórdidos. Suas armas era seu silêncio e um pouco de lixo. Achar aquela sacola e vesti-la até ser exumada foi algo tão frugal, sensato, um ato de esposa zelosa, um ato simples..., em algum nível, você envergonhou seus captores, e eles não acrescentaram a seus maus tratos um segundo desnudamento. Mesmo assim, mataram você. Só sabemos sua história porque um homem com um riso constrangido lembrou-se de como você foi corajosa. Há testemunhos de sua coragem por toda parte; sopram pelas ruas e perambulam nas ondas e se enroscam nos espinheiros. Esse vestido é feito de alguns deles. Hamb kahle. Umkhonto1. Falar sobre angústias nutridas no seu tecido social foi a saída honrosa encontrada pela África do Sul para construir o seu próprio modelo de democracia constitucional. O vestido acabou sendo colocado na Corte Constitucional como uma peça de arte valiosa. Lembrar inspirou orgulho e dignidade. Assassinatos de mulheres têm sido lembrados em todo o mundo. É uma pauta global. Abordar a condição da mulher na sociedade atual empoderou cidadãs silenciadas. Tão logo a Rede Globo abriu o espaço, as mulheres falaram sobre impunidade. Talvez estivessem cansadas. Elas não queriam esquecer. Aída foi tida como uma heroína. Educada por freiras espanholas católicas, ela recebeu, in memorian, uma especial homenagem. Madre Eusébia Garmêndia, ex-superiora do educandário onde estudou, enviou, em 8/12/1959, para Dona Jamila (sua mãe), de Barcelona, a correspondência abaixo: Minha boa e querida Dona Jamila, Meus parabéns! Sim, meus parabéns, pois lhe coube a felicidade de ser mãe de uma mártir... disto eu não tenho a menor dúvida. Aída foi um modelo de educanda e continuará sendo um modelo verdadeiramente exemplar para as mocinhas do meu saudoso Brasil; este mundo miserável não merecia possuir uma criatura como ela, e Deus a levou, depois de demonstrar como ajuda, dando a coragem necessária até ao heroísmo para vencer as dificuldades e conseguir o cumprimento de nobres ideais. Sinto-me feliz de ter convivido com a sua boníssima filha e minha angelical e dedicada Aída Curi. O abraço amigo de Madre E. Garmêndia2. "(...) este mundo miserável não merecia possuir uma criatura como ela", está escrito. Mesmo a Madre, em sua discrição clerical, não suportou esquecer. É preciso seguir lembrando para que possamos, enquanto membros de uma sociedade fraterna e solidária, tentar transformar a realidade. Pelo menos até o dia em que cartas sejam enviadas a mães para felicitá-las pela vida plena que suas meninas vivem, não borradas por lágrimas vertidas diante da penosa condição da mulher no Brasil e no mundo. Então teremos nossas heroínas vivas e ativas entre nós. Lembrar é a única saída. Por isso, jamais esqueceremos. Não fosse toda a ornamentação feita sobre a expressão "direito ao esquecimento", o leading case da jovem Aída, que será julgado pelo STF, seria enxergado segundo suas próprias características, quais sejam, uma baixa complexidade fática e certa simplicidade jurídica. Não se trata de um caso difícil. A democracia constitucional brasileira consegue encontrar uma resposta com base em seu ordenamento jurídico. Não faltam dispositivos na Constituição e na legislação. A resposta adequada ao Tema 786 da repercussão geral, questionando a aplicabilidade do direito ao esquecimento na esfera civil quando for invocado pela própria vítima ou pelos seus familiares (RE 1.010.606), declina o pedido dos autores. O ideal é esquecer o direito ao esquecimento. __________ 1 Sachs, Albie. Vida e direito: uma estranha alquimia. Tradução de Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 14. 2 Recanto das Letras.
Primeiro, um desejo incontido de alguns de acabar com a Constituição de 1988. Depois, apelos por um "constitucionalismo popular" no qual multidões, às ruas, com cânticos, gritos e marchas, mudariam dispositivos constitucionais, cassando competências do Congresso Nacional. Agora, rumores acerca de uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito que pode convidar, ou convocar, o ministro Edson Fachin a dar "esclarecimentos", logo ele, o relator, no Supremo Tribunal Federal, dos processos relativos à operação Lava Jato. Não fosse o suficiente, a revista Veja afirmou que a ABIN teria sido demandada pelo Palácio a vasculhar a vida do ministro, para intimidá-lo. Se verdadeira, a informação, brincam com coisa séria. Movimentações políticas contra Supremas Cortes e seus juízes só prosperaram onde as instituições não eram de boa qualidade. Vale aprender com a história. Em 1932, Franklin D. Roosevelt foi eleito presidente dos Estados Unidos. O democrata contava com maioria nas duas casas do Congresso. Era um líder popular. Seu programa de recuperação econômica, o New Deal, lidava com o colapso de 1929. Como boa parte do plano exigia a aprovação de leis, a Suprema Corte foi chamada a analisar a constitucionalidade das medidas, derrubando algumas delas. Posteriormente, passou a reconhecer a sua constitucionalidade, mas num apertado placar de 5 x 4. Em 9 de março de 1937, reeleito, o presidente Roosevelt disse, numa transmissão no rádio, que a Corte não estava agindo como um corpo judicial, mas como um formulador de políticas públicas. Então, encaminhou ao Congresso o "Judiciary Reorganization Bill", impondo a aposentadoria compulsória dos juízes aos setenta anos. Roosevelt passaria a ter competência para indicar seis novos julgadores, o que abriria espaço para que aqueles contrários ao New Deal saíssem da Suprema Corte substituídos por juízes simpáticos ao plano econômico. O presidente achava que tinha o Congresso em suas mãos. Não tinha. O juiz Louis Brandeis, mesmo favorável ao New Deal, criticou a iniciativa. Era, ali, uma voz influente se opondo ao projeto. Na sequência, a Câmara dos Deputados se recusou a apreciar a matéria. Corajosamente, a Comissão Judicial do Senado encaminhou o projeto para votação com relatório contrário. No plenário, por 70 x 20, entendeu-se que o texto deveria ser inteiramente reescrito. A tentativa de emparedar a Suprema Corte, oriunda de um líder genuíno que imaginava dominar o Congresso, se mostrou um fracasso retumbante. É explicável. Para Daron Acemoglu e James A. Robinson, instituições políticas inclusivas atuam para assegurar a continuidade da pluralidade e do equilíbrio dos poderes. Assim agiu o Congresso dos Estados Unidos. Ele garantiu que a Suprema Corte seguisse seu caminho de independência, continuando capaz de frear os caprichos eventuais de um presidente da República. Se, naquele momento, o líder do país se voltava contra a Corte, quem poderia assegurar que, no futuro, não se voltaria contra o próprio Congresso? Para Dieter Grimm, que foi juiz da Corte Constitucional da Alemanha, "a independência judicial é a salvaguarda constitucional contra a ameaça crescente de políticos ao exercício apropriado, pelos juízes, de suas funções". No Brasil, os rumores de que o Palácio confabula contra o ministro Edson Fachin testam a independência que o STF precisa para se desincumbir do seu papel. Se reais, são movimentações que nascem fracassadas. Por isso, vale, mais uma vez, ir à história. Em 1946, Juan Domingo Perón foi democraticamente eleito presidente da Argentina. Após a sua vitória, aliados na Câmara dos Deputados propuseram o impeachment de quatro dos cinco membros da Suprema Corte. Três foram cassados e um renunciou. Perón indicou quatro novos e passou a governar sem freios institucionais até 1955, quando um golpe o tirou do poder. Mais à frente, em 1990, Carlos Saúl Menen, eleito presidente pelo Partido Peronista, conseguiu emplacar uma lei aumentando o número de juízes da Suprema Corte argentina de cinco para nove. Tendo nomeado quatro novos ministros, passou a contar com maioria na Corte e, tal qual Perón, começou a manipular a Constituição e a abusar do poder, até ser derrubado. Não houve um Congresso Nacional atento aos riscos de se encurralar a Suprema Corte ou qualquer de seus juízes. A falta de contraponto às movimentações palacianas contra a independência do Judiciário na Argentina gerou graves consequências ao país, consequências que persistem até os dias atuais. No Brasil, movimentos recentes ora se levantam contra a Constituição Federal de 1988, ora evocam a implementação de um "constitucionalismo popular" exercido pelas multidões, nas ruas, cassando competências do Congresso, ora avançam, agora, contra o ministro Edson Fachin. São todas elas precipitações danosas à democracia brasileira. Aharon Barak, que presidiu a Suprema Corte de Israel, diz que, se não protegermos a democracia, a democracia dificilmente nos protegerá. É um bom conselho. A sociedade civil brasileira deve perceber a gravidade desses rumores. Supremas Cortes não são lugares sagrados nem se espera que delas surjam anjos querubins. Todavia, a vida sem elas, especialmente a dos grupos mais vulneráveis da sociedade, é pior. Muito pior. Para mantê-las independentes, e assegurar que seus integrantes cumpram seu papel, é importante que haja suporte cívico de quem já se habituou às vantagens de se viver num ambiente no qual os direitos fundamentais são protegidos, especialmente por juízes. Desse engajamento podem surgir os freios que não foram vistos na Argentina de Perón e de Menem, mas que prevaleceram nos Estados Unidos de Franklin Delano Roosevelt. Essa é uma causa boa e pela qual se vale a pena lutar.
segunda-feira, 29 de maio de 2017

Conversa Constitucional nº 31

PEC das Diretas pode tirar a locomotiva dos trilhos Parece florescer na mente de figuras respeitáveis da política brasileira um desejo talvez pouco refletido de substituir o modelo atual de Estado constitucional - cuja essência reside na atuação contramajoritária do Judiciário viabilizando a proteção de minorias -, por uma democracia popular segundo a qual, pelo "poder ao povo", a Constituição Federal passaria, simbolicamente, a dever obediência à vontade de multidões aglomeradas por aí, com seus discursos, gritos de guerra, cantos e marchas. Tramitam na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, propostas de emenda à Constituição desfigurando a forma atual pela qual se elege o presidente da República em caso de vacância do posto nos dois últimos anos do mandato. Atualmente, a eleição é indireta, ou seja, os eleitores são os parlamentares, segundo o § 1º do art. 81 da Constituição, em harmonia com o parágrafo único do art. 1º, que diz que todo o poder emana do povo, que o exerce, também, pelos representantes eleitos. A PEC 227/2016 (deputado Miro Teixeira), que tramita na Câmara, e a PEC 67/2016 (senador Antônio Reguffe), em discussão no Senado, reduzem, em marcos temporais diversos, o espaço para a realização dessas eleições excepcionais indiretas, convertendo-as em diretas, ou seja, com a participação de todo o eleitorado. As PEC's pretendem barrar os efeitos de eventual declaração de inconstitucionalidade dos § 3º e 4º, do art. 224 do Código Eleitoral, que, na redação da lei 13.165/2015, trouxe novo rito para preenchimento da vacância presidencial ocorrida nos dois últimos anos do mandato. Esses dispositivos estão sendo questionados no STF, por legitimados diversos, em aspectos diferentes, nas ações diretas de inconstitucionalidade 5525 e 5619, ambas de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso já liberadas para inclusão em pauta de julgamento. O comando das eleições indiretas excepcionais acompanha o nosso constitucionalismo desde a Constituição de 1934 (art. 52, §3º), passando pelas de 1937 (art. 82) e 1946 (art. 79, §2º). A Constituição de 1967, em seu art. 76, previa eleições indiretas pelo Colégio Eleitoral. São quase cem anos de prestígio institucional conferido ao Congresso Nacional para apontar, excepcionalissimamente, aqueles que concluirão mandatos interrompidos pelas armadilhas da história. Por tudo o que consta nas justificativas das PEC's, e do que se conclui a partir dos debates que lhe dão suporte, fica a impressão de que o recente processo de impeachment deixou cicatrizes dolorosas que não serão curadas sem o empenho de toda a nação. Para muitos que dão suporte às eleições diretas, teria sido, o recente impeachment, um processo de tal forma injusto, que seus supostos artífices não poderiam ficar impunes. Talvez, eleições diretas em caso de vacância presidencial seja um acerto de contas entre os que se sentem vítimas e seus supostos algozes. Sempre que pessoas, machucadas pelo o que julgam ser trapaças políticas, anunciam um desejo de revanche, vem à mente Nelson Mandela e sua sabedoria em não deixar a pulsão da vingança ganhar curso entre a sua gente. "Nós podemos ter prosperidade ou nós podemos ter vingança. Mas não podemos ter os dois. Vamos ter de escolher"1, dizia ele durante as negociações que asseguraram à democratização do país e a superação do apartheid. Pura sabedoria. Potenciais traições que não raramente contaminam a democracia não devem servir de combustível para incendiar o constitucionalismo. Na Idade Antiga, o ditador Júlio César, no Senado Romano, levou 23 facadas cravadas por sessenta senadores. Isso mostra que nenhum governante está imune a conspirações. Aos que se sentem vítimas de injustiças, é preciso reagir com espírito elevado e de tal modo que não se mire a Constituição para meter nela o que se supõe ser uma bala de prata. Vale ceder espaço à razão. Quando chamado à responsabilidade de decidir acerca do preenchimento da vacância do posto do chefe do Poder Executivo num Estado, em 1962, o ministro Victor Nunes Leal, em voto vencido no STF, anotou: "Não sinto, no caso, qualquer emoção especial, porque suponho que não está envolvida neste processo a salus populi. É uma briga de políticos, em que a salvação pública não está em jogo". (Rp 515, Pleno, DJ 9.8.1962). Um "ministro-raiz" ou, usando uma expressão que é do ministro Marco Aurélio, "da velha guarda". Essa serenidade ganha relevo ao percebermos que, em muitos países da América Latina, e mesmo no Brasil, alterar as formas pelas quais políticos são eleitos, especialmente o presidente da República, são decisões que não raramente anunciam precipícios a partir de onde apenas os inocentes serão arremessados. Além disso, é preciso ter a consciência de que suprimir competências do Congresso Nacional ao argumento de que não se pode confiar nessa Casa, pode ser perigoso. Trechos de um documento histórico que governou um povo por décadas ajuda a entender a afirmação. "A Assembleia Parlamentar é uma representação enganadora do povo e os regimes parlamentares constituem uma solução enganadora do problema da democracia". Em seguida: "A Assembleia Parlamentar apresenta-se fundamentalmente, como representante do povo, mas esse fundamento, em si, não é democrático, porque a democracia significa o poder do povo não o poder de um substituto". Ao final, uma oração parecida com as trazidas nas justificativas das PECs 227 e 67: "O poder deve ser inteiramente o do povo". Essas são passagens do Livro Verde, que serviu como base do regime de Muammar Kadhafi, por quase quarenta anos, na Líbia. O "Cachorro-louco" terminou arrancado pelos cabelos de um buraco e morto, entre tiros, chutes, cuspidas, socos e coronhadas, pelo mesmo povo que ele mentirosamente disse defender. É a revolta absoluta do povo contra o regime absoluto de um tirano. "Parece natural que uma revolução seja predeterminada pelo tipo de governo que ela derruba; quanto mais absoluto for o governante, mais absoluta será a revolução que vem a substituí-lo"2, já explicava, profeticamente, a extraordinária Hannah Arendt. Se a lógica de Hannah Arendt estiver correta, aqueles que se julgam vítimas de um golpe, reagirão contra os que reputam golpistas, promovendo novos golpes, em um acerto de contas sem fim. Se for isso mesmo, acreditem, estamos todos condenados. Enquanto a peleja não acaba, a nossa juventude busca formas de construir a nova vida longe daqui. Ou, então, segue desesperançosa. Isso, quando não adere aos desejos de revanche. Esses meninos e meninas não merecem isso. Não se quer, com as menções ao Livro Verde, estereotipar os apoiadores das eleições diretas em caso de vacância presidencial. São irmãos e irmãs que têm investido energia em buscar alternativas a tudo o que temos visto no país, um país, frise-se, que pertence a todos nós. A apresentação das propostas é legítima e o debate em torno das PECs 227 e 67 tem sido de bom nível. A menção apenas mostra os riscos do raciocínio segundo o qual o Congresso é inconfiável e o povo deve se substituir à Constituição. Essa conclusão coloca o nosso futuro em risco. Isso é preocupante, porque, como sabemos, o futuro é onde todos nós passaremos o resto de nossas vidas. Além disso, está-se privando os próximos parlamentares de uma competência que há muitas décadas lhes foi dada. A esse respeito, a voz influente de H. L. A. Hart diz: "o Parlamento não pode, mediante lei por ele editada, subtrair irrevogavelmente nenhum tópico do âmbito da atividade legislativa futura do próprio Parlamento"3. O Congresso Nacional pode muito mais do que apontar os eleitos em um "mandato-tampão". Ele participa da declaração de guerra e da celebração de paz. Isso, por meio de seus membros, senadores e deputados. Confiar, a esse corpo eleito, a missão de eleger aqueles que conduzirão o país numa situação excepcional não é indigno à democracia. Essa é uma conclusão a que se chega também por Ronald Dworkin, para quem "nenhuma pessoa ou grupo sofre suspeita de indignidade quando uma decisão importante é atribuída a um Parlamento eleito em vez de ser deixada a cargo do povo em geral num referendo. Se essa decisão é uma negação parcial do direito de sufrágio, ela o nega igualmente a todos os grupos e pessoas não eleitos"4. Também não é tão convincente o argumento de que a Constituição precisa ser mudada, e o Congresso necessita perder uma de suas mais nobres competências, pelo fato de vivermos tempos de sopapos políticos. Moisés Naím lembra que a Holanda passou quatro meses sem governo em 2010. A Bélgica, em 1988, demorou 150 dias para ver seus políticos formarem uma coalização capaz de governar. Em 2007-2008, por tensões entre as regiões dos flamengos, de fala holandesa, e dos valões, de fala francesa, o país ficou nove meses e meio sem governo. Em fevereiro de 2011, a Bélgica superou o Camboja sendo o país a passar mais tempo sem governo no mundo. Em 6 de dezembro de 2011, após 541 dias, "foi empossado um novo primeiro-ministro"5. Alguém dirá que são, Holanda e Bélgica, "Repúblicas de Bananas" pelo fato de terem, em sua história recente, episódios de instabilidade política? Por fim, as eleições indiretas não têm espantado o Judiciário. Em 2009, julgando o RCED 698, o TSE decretou a perda de mandato do governador de Tocantins e de seu Vice, determinando a realização de eleição indireta pela Assembleia Legislativa. No mesmo ano, o STF, apreciando a ADI 4298 MC/TO, examinou a lei 2.154/2009, do Tocantins, que previa a eleição excepcional indireta. Reputando-a constitucional, o ministro Cezar Peluso, relator, anotou: "a própria regra da eleição indireta, no âmbito federal, traz em si mesma, na ratio iuris, a demonstração de sua razoabilidade e proporcionalidade, enquanto constitui sensata resposta normativo-constitucional às demandas de uma excepcional conjuntura que, por seu decisivo ingrediente temporal, desaconselharia realização de eleição direta, com todos os seus pesados e intuitivos custos ao aparato administrativo e à própria sociedade". Um ano antes, ao julgar a ADI 2709, a Suprema Corte declarou a inconstitucionalidade da Emenda Constitucional 28, que alterou o § 2º do art. 79 da Constituição de Sergipe, por suprimir a eleição indireta para governador e Vice, realizada pela Assembleia em caso de vacância nos dois últimos anos do mandato. Em 2001, ao apreciar a ADI 1057 MC/BA, analisando a Lei 6.571/94, da Bahia, acerca da mesma hipótese, o STF definiu, preliminarmente, tanto que as condições de elegibilidade (CF, art. 14, § 3º) e as hipóteses de inelegibilidade (CF, art. 14, § 4º a 8º), inclusive aquelas decorrentes de legislação complementar (CF, art. 14, § 9º), aplicam-se à eleição indireta. Também que a votação seria aberta. Faz sentido essa deferência judicial. Trata-se, inclusive, de uma postura presente em outros lugares do mundo. Aharon Barak, que foi juiz da Corte Constitucional de Israel, anota: "Sem a regra da maioria, como refletido no Poder Legislativo, não há democracia. Como juízes e juristas, muitas vezes esquecemos este princípio fundamental. (...) Minar o Poder Legislativo prejudica a democracia"6. De fato, é difícil imaginar Cortes Supremas, em Estados constitucionais contemporâneos, retrocedendo rumo às democracias populares do passado, onde, sob a invocação de "poder ao povo", Constituições nasciam para ser violadas. Numa democracia constitucional, o povo é o poder desde que em harmonia com a Constituição. É, como Peter Häberle fala, a substituição da velha ideia de "soberania popular" pelo conceito atual de "soberania da Constituição"7. Em suma, a locomotiva brasileira está andando. Há trilhos obstruídos, mas muita gente de boa-fé tem tentado arrumá-los. Não é uma viagem fácil, como jamais o é para os que são pioneiros. Vez ou outra há sopapos e eles nos assustam, é verdade. Até nos machucam. Mas isso é coisa de quem está tentando ser dono do próprio destino e, com a sua gente, realizar os remendos que esses trilhos, e essa locomotiva, precisam. Se a viagem ainda está sendo dura - e eu acho que está - serve de alento saber que, se fizermos a nossa parte, as futuras gerações gozarão de mais conforto. Eles passarão menos apertos e irão encarar poucos solavancos. A Constituição Federal de 1988 traçou um curso, lançou as regras e apontou as exceções. Não tem mistério. Agora, é se segurar firme, e seguir a marcha. Pode até ter alguma emoção, e deve ter, mas, no final, tudo vai dar certo. __________ 1 Os elementos da justiça. Tradução de William Lagos; revisão da tradução Aníbal Mari. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 322. 2 Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 205. 3 O conceito de direito. Pós-escrito organizado por Penelope A. Bulloch e Joseph Raz; tradução de Antônio de Oliveira Sette-Câmara; revisão da tradução Marcelo Brandão Cipolla; revisão-técnica Luiz Vergílio Dalla-Rosa. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009. p. 194. 4 A Raposa e o Porco-Espinho: Justiça e Valor. Tradução Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2014, p. 601. 5 O Fim do Poder. Tradução Luis Reyes Gil. São Paulo: Leya, 2013. p. 133. 6 The judge in a democracy. Princeton University Press, 2017, p. 226. 7 Conversas Acadêmicas com Peter Häberle. Organizador Diego Valadés, traduzido do espanhol por Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 4. Entrevista de César Landa.