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Conversa Constitucional

Fatos do cotidiano à luz da CF e a rotina do STF.

Saul Tourinho Leal
Aposentou-se da Corte Constitucional sul-africana, dia 20 de agosto, depois de 25 anos servindo como juiz em várias instâncias do Poder Judiciário, Edwin Cameron, alguém cuja história de vida, imortalizada em sua obra "Justiça. Uma versão pessoal (Justice. A personal Account)", publicada pela editora Tafelberg, merece ser dividida. Cameron era um garoto branco pobre, na África do Sul do apartheid, que morava com sua família numa casa alugada na periferia de Pietermaritzburg, na província de KwaZulu-Natal. Não chegou a conhecer sua irmã, Daphne, que foi dada para a adoção aos seis meses de vida. A outra irmã, Laura, a mais velha, faleceu quando Cameron tinha sete anos. O enterro aconteceu no dia em que a terceira irmã, Janie, completava 11 anos. Foi quando Cameron reencontrou o pai, que havia conseguido uma autorização para participar do enterro. Ele estava preso, cumprindo pena pelo roubo de um carro. Numa trajetória repleta de episódios de embriaguez, fruto do alcoolismo que o acompanhou durante quase toda a vida, o pai perdeu seu último emprego e, assim, precipitou a partida da família para um nível ainda pior. Eles se mudaram para uma espécie de orfanato, em Queenstown, um pequeno município que, ao tempo, era um enclave branco. O juiz da Corte Constitucional, que acaba de se aposentar sob os aplausos de um país inteiro, revela que, ao tempo, com o mercado de trabalho cheio de reservas para brancos, havia uma enorme demanda por pessoas como o seu pai, um eletricista. Os negros não podiam trabalhar nessa área. Bastava que ele permanecesse empregado para que a família tivesse conforto. Mas ele não conseguia. Certa vez, ainda criança, Cameron gritou, fazendo pirraça. Seu pai, falando rudemente, disse: "Se você gritar como uma garotinha, você será vestido como uma garotinha". A intimidação despertou mais gritaria. "Apesar de meu choro desespera como uma garotinha", recorda, em sua autobiografia. O juiz vai até a sua infância, quando tinha quatro anos, para explicar um traço de sua personalidade que afloraria na vida adulta. "Eu, na idade em que a gente aprende a caminhar, percebi que era gay. Minha mãe me ofereceu algumas roupas em miniatura para o meu urso. Pareceu uma boa ideia", escreve Cameron. "O urso deve vestir calças?", perguntou minha mãe. "Não", eu disse. "Eu quero um vestido de garotas". Cameron estudou no Pretoria Boy's High e, depois, na tradicional Stellenbosch University, na Cidade do Cabo. Daí, conseguiu uma Rhodes Scholarship, bolsa que o permitiu estudar em Oxford. Adulto, se assumiu gay. Começava sua carreira de advogado em Joanesburgo, aos trinta anos, tendo tido um rápido - e fracassado -, casamento heterossexual. Mudou-se para uma pequena casa alugada em Westdene, passando a viver com seu primeiro companheiro, Wilhelm Hahn, um arquiteto que dava aulas na Wits University. Posteriormente, Wilhelm se mudou para os Estados Unidos, para lecionar em Houston, Texas. Wilhelm voltou para a África do Sul após 20 anos, onde morreu de câncer de próstata, em março de 2008. Cameron fala que seu relacionamento com Wilhelm, e os longos anos de agonia, lhe deram força e orgulho para dizer "nunca mais". "Eu resolvi que nunca mais pediria desculpas por algo tão profundamente intrínseco a minha natureza que me faz ser quem eu sou. Eu nunca mais diria: 'me desculpe por ser gay'", afirma. Ele começou a falar em palanques públicos sobre direitos para gays e lésbicas. Tudo ia bem e Cameron retomava sua vida, quando foi infectado. Anos depois, na tarde de sexta-feira, dia 19 de dezembro de 1986, a notícia. "Eu recebi uma ligação telefônica do meu médico. Ele me falou que eu tinha o HIV, o vírus causador da Aids". Ele tinha 33 anos e trabalhava como advogado na área de Direitos Humanos no Centro de Estudos Jurídicos Aplicados, na Wits University. "Meu diagnóstico sobre o HIV pareceu uma certeira sentença de morte, daquelas que levariam minha vida e meu trabalho para um iminente e traumático fim. Não havia cura para a Aids. Também não havia nenhum tratamento efetivo", anota. No final de 1986, Cameron já havia acompanhado mortes agonizantes decorrentes da Aids. Ele sabia o que o esperava. "Eu tinha visto eles perderem peso, enfraquecerem e morrerem, com olhos saltados, esqueléticos, em casas, hospício e hospitais. Eu tinha visto seus médicos e familiares se manterem esperançosamente firmes. A maioria, homens jovens. No melhor momento de suas vidas. Como eu", lembra. Aquele que foi um dos maiores nomes da Corte Constitucional da África do Sul, então, escancara sua intimidade: "O pior de tudo era o senso de vergonha que eu sentia. Eu estava envergonhado por ter o HIV. Mais do que envergonhado, eu estava assombrado. Aviltado com o organismo que tinha infectado minha corrente sanguínea e meu corpo. O HIV fez eu me sentir manchado. Contaminado. Sujo. Imundo, poluído, impuro". No final de 1990, estimava-se que até 120.000 pessoas viviam com o HIV na África do Sul. A maioria era negra. E mulher. "Eram pessoas que sofreriam os sintomas da terrível infecção do HIV. Inevitavelmente, sem cura ou tratamento para a AIDS, eles morreriam. Eles eram como eu", escreve. Seus amigos e clientes viram-se no ostracismo, sem emprego, sem uma casa, sem amigos ou colegas, quando foram descobertos com o HIV. Para eles, não havia cobertura de plano de saúde. Frequentemente, não podiam se candidatar para um emprego, porque muitos empregadores monitoravam se os novos candidatos eram portadores do HIV. Segundo Cameron: "Eles acreditavam que descartar candidatos com o HIV asseguraria uma mão de obra livre do vírus". Havia, ainda, uma face mais cruel. "Algumas mães grávidas, diagnosticadas com HIV, voltavam para casa para dividir a notícia com seus maridos - homens que geralmente as tinham infectado - somente para serem espancadas e expulsas", revela. Em 1994, quando a África do Sul retomou a democracia constitucional, a média das mulheres com HIV dentre as que compareciam nas clínicas públicas de pré-natal era de aproximadamente 6%. A doença não deu trégua a Cameron. "Meus dois pulmões foram diagnosticados com pneumocystis pneumonia. É uma forma rara de pneumonia. Esse fungo estava bloqueando minha respiração. Eu acordava na madrugada, tentando respirar. Meus pulmões se sentiam ineficientes, inchados, como balões cheios de água. Mas o que me fazia sentir pior era outra enfermidade oportunista, uma ferida gastro-intestinal. Isso criava uma camada na minha boca, língua, garganta e estômago. Esse fungo também é encontrado em pessoas saudáveis, sem causar qualquer efeito drástico, mas, no meu corpo frágil e sem controle, formava uma camada que me impedia de mastigar ou engolir. Eu perdi minha energia e o meu apetite. E quando eu conseguia me alimentar, meu estômago não conseguia digerir. Eu estava perdendo peso tão rápido quanto a minha força, e começando a ficar esquelético como 'a Aids se parece'. Não ajudava lembrar que os fungos se multiplicam em corpos em decomposição. Meu corpo estava se afundando". Em 1999, a Corte Constitucional determinou que o governo da África do Sul fornecesse tratamento para todos os portadores do HIV. "Felizmente, nossa Constituição é suprema. E os ativistas arrastaram-na para os tribunais de modo a concretizá-la. Os tribunais responderam com justiça. Eles determinaram que o governo do Presidente Thabo Mbeki começasse a disponibilizar tratamento com o antirretroviral (ARV), e para o crédito do presidente, ele finalmente aceitou a regra. Hoje, a África do Sul tem o maior programa público de tratamento com o ARV em todo o mundo", afirma Cameron. Ele festeja o fato de a Constituição ter usado a expressão orientação sexual. "Nenhuma outra Constituição Federal do mundo menciona expressamente essas duas palavras. Em termos de proteção aos gays, lésbicas, bissexuais, intersex e transgênero, a África do Sul alcançou o primeiro mundo", afirma. Sua indicação foi feita em 2009. Indicações para posições como essas algumas vezes servem para unir a nação em torno de símbolos de orgulho e honra. Diante de uma comunidade que chegou a perder a crença no futuro, por se imaginar condenada a morte por um vírus fatal, o presidente mostrou, com o nome de Cameron, que, na Nação Arco-Íris, um gay, ainda que enfrentando o HIV, pode persistir em seus sonhos e alcançar uma posição na Corte Constitucional. É um símbolo poderoso. Ele fala da indicação. Lembra que o então Chief Justice Arthur Chaskalson o recebeu na guarita de segurança do Constitutional Hill, em Joanesburgo. Em seguida, o conduziu para o gabinete judicial. Lá, ofereceu uma xícara de chá. "Enquanto eu sentava, eu travava uma batalha impulsiva para não dizer nada, de modo algum, sobre o HIV", lembra, relevando em seguida: "Mas, ao contrário, eu me forcei a desembuchar sem medo. Eu disse: 'Arthur, você sabe que eu fui indicado para me tornar um juiz da Corte Constitucional. Mas eu preciso lhe contar uma coisa: eu tenho HIV'". Foi quando viu uma cara de choque. Estava claro que era uma notícia inesperada. Arthur Chaskalson o encorajou a aceitar o posto e a seguir seu caminho ajudando a construir uma África do Sul mais atenta ao compromisso com a diversidade. Uma vez nomeado, Edwin Cameron passou a destacar o valor da diversidade na Constituição do país. "Eu expliquei o valor silencioso que poderosamente sublinha todas as aspirações da nossa Constituição, - o valor da diversidade. Eu expliquei isso da minha perspectiva como um homem orgulhosamente gay, alguém que cresceu repleto de medo e envergonhado da minha própria sexualidade, mas que, agora, serve seu país sem qualquer desqualificação em razão de quem eu sou", anota. Sobre a diversidade, ele diz: "Diversidade é ouvir. A Constituição assegura que nós ouçamos. É nossa escolha fazê-lo graciosamente". Então recorda as palavras do atual Chief Justice, Mogoeng Mogoeng: "A nossa é uma democracia constitucional designada para garantir que os que não têm voz sejam ouvidos, e que mesmo aqueles que têm, caso não admitam os pontos de vista das minorias marginalizadas ou impotentes, pelo menos escutem"1. Para Cameron, "a Constituição nos empodera em todas as nossas diferenças. Mas nós temos uma longa jornada antes de dizermos que nós, enquanto país, temos aceitado completamente o convite para nos unirmos em nossas diferenças". Edwin Cameron rejeita a ideia de que o constitucionalismo seria um fenômeno de elite, confinado a advogados ou idealistas de gabinete. Ele diz que essa impressão tem se mostrado completamente equivocada. "O constitucionalismo é uma das mais poderosas forças em todos os níveis da nossa política e debate nacional. O direito me deu a chance de remediar e reparar minha vida. A Constituição ofereceu a nós a chance de reparar e remediar o nosso país", afirma. Resumindo sua vida, diz: "Uma jornada maravilhosa, repleta de altos e baixos, mas que, ao final, consolida as possibilidades práticas da esperança". Dia 20 de agosto de 2019, presente à cerimônia que celebrou a passagem de Edwin Cameron na Corte Constitucional, foi uma honra e um privilégio abraçar e celebrar esse homem, a quem Nelson Mandela se referiu como "um dos heróis da nova geração de sul-africanos". Sua trajetória mostra a força da esperança e a necessidade de países como o Brasil seguirem sem medo rumo a um amanhã mergulhado nas refrescantes águas da diversidade, do pluralismo e da aceitação das diferenças. Aquela criança assombrada por um pai violento, tornou-se um jovem consciente da sua orientação sexual e, hoje, um adulto que contribuiu e seguirá contribuindo com a humanização dos debates constitucionais ao redor do mundo. __________  1 "Diversity is about listening. The Constitution ensures that we hear. It is our choice to do so joyfully". "Ours is a constitutional democracy that is designated to ensure that the voiceless are heard, and that even those of us who would, given a choice, have preferred not to entertain the views of the marginalized or the powerless minorities, listen". Edwin Cameron. Justice: A personal account. Cape Town: Tafelberg. 2014, p. 227.
terça-feira, 4 de junho de 2019

Roberto Campos contra a Constituição

Na oligarquia dos mentecaptos, a ausência sentida dos eruditos é a centelha que risca a mudança ou a revolução. É que o saber cativa, a leitura empodera, a fina ironia envolve, as artes elevam..., e esses elementos de um intelecto apurado parecem ter simplesmente se ido no rebotalho do poder atual no Brasil. No ecossistema daqueles de pouca leitura e muitas certezas, é demasiado esperançoso cogitar haver "um deserto de ideias". Não há desertos. Tampouco ideias. Todos estão perdidos no vazio abundante de sua própria ignorância. Por isso, tem sido pelo brilho de estrelas já partidas que insistimos resistindo, sozinhos, nessa noite escura de um inverno sombrio que parece ter engolido boa parcela da esfera pública nacional. Uma dessas estrelas é Roberto Campos. Ele já partiu, mas seu brilho intelectual segue sendo apreciado nesse grande cortiço de ideias povoado por nós, pobres mortais. Disciplinado pelo seminário católico, refinado pela diplomacia, escaldado como ministro de Estado e encouraçado por um mandato de senador da República (Mato Grosso) e outros dois de deputado Federal (Rio de Janeiro), o cuiabano Roberto de Oliveira Campos brilha agora na obra "A Constituição contra o Brasil: ensaios de Roberto Campos sobre a constituinte e a Constituição de 1988", organizado por Paulo Roberto de Almeida e publicado pela LVM Editora. A obra "reúne artigos elaborados durante aproximadamente uma década - a partir de meados dos anos 1980". Roberto Campos não veste a carapuça do erudito que não sabe se fazer compreender. Ao expressar suas opiniões sobre a Assembleia Nacional Constituinte, ele o faz com didatismo superior. "Um misto de panaceia e paixão". "Catálogo de utopias". "Uma nova panaceia jurisdicista". "Carnaval cívico". "Desastre ecológico". Consegue até encontrar essa altaneira reflexão: "Se Gorbachev expusesse a 'perestroika' aos nossos constituintes, eles o chamariam de 'testa de ferro das multinacionais'". Fez-se claro? Lembrando que Miguel Reale teria reputado o produto da Comissão de Sistematização da Assembleia Nacional Constituinte uma "patifaria", Roberto Campos disse que uma patifaria "exigiria uma coerência volitiva superior". Segundo ele, "trata-se apenas de um besteirol incrementado. Ou seja, um superbesteirol". E arrebenta: "É uma mistura de tudo: mesquinharia, xenofobia, irracionalidade econômica, corporativismo, pseudonacionalismo e vários outros 'ismos' infectos". Roberto Campos sobre os notáveis: "ninguém acusará a obra dos notáveis de notável bom senso...". Pessimista - ou realista -, vaticina: "É óbvio que a Constituinte começou mal". Então, categoriza o material humano da Assembleia: "sumidades, mediocridades e nulidades". Expressa, ainda, o conhecimento que a população tinha do processo antes dele começar: "71% da população paulista, à véspera das eleições, não sabia o significado da palavra 'Constituinte'". Aponta o porque de o texto não ter saído com qualidade: "Não é democrático obrigar ao raciocínio aqueles que não querem pensar". Rememorando que Ulysses Guimarães a chamava de "a Constituição dos miseráveis", Roberto Campos a define como uma "favela jurídica onde os três poderes viverão em desconfortável 'promiscuidade'". Dando-se por satisfeito, conclui: "Essa peça tragicômica tornará o país ingovernável". Para ele, a Constituição de 1988 é permeada por "uma espécie de 'democratice', essa perversão do conceito de democracia, que garante a todos e a cada um o direito ao seu pequeno absurdo". Tancredo Neves teria cometido um imperdoável erro: "se esqueceu de formular um mandato para os notáveis: 'É proibido sonhar'". Campos se refere ao texto como "a desastrosa Constituição de 1988". Diz que "a nova Constituição é um camelo desenhado por um grupo de constituintes que sonhavam parir uma gazela...". Chama-a de Carta Magna, mas ressalva: "apenas no tamanho". É, segundo ele, "a Constituição dos 559 patetas", um "dicionário de utopias de 321 artigos", a "Constituição besteirol". Esse é Roberto Campos, como o fogo: ilumina e queima. Ele recorda o primeiro-ministro do trabalhismo inglês, James Callaghan, para quem "nada mais perigoso do que a feitura de textos constitucionais. Isso desperta o instinto utópico adormecido em cada um de nós". Sobre o futuro, Roberto Campos aconselha: "Ou o Brasil acaba com essa Constituição ou ela acaba com o Brasil!...". Não. O intelectual explica porque foi contra a ideia de uma Constituinte exclusiva: "Duvido que houvesse candidatos dispostos a exaurir-se, física e financeiramente, só para partejar, em sete meses, um texto constitucional, retornando depois ao escritório, à forja ou ao arado...Seria um caso de patriotismo potenciado ao nível de masoquismo...". E quanto ao duro trabalho dos constituintes? "Os constituintes não podem senão sentir-se como pianistas no Titanic, arranjando a partitura e ajeitando a banqueta, enquanto o navio afunda...". Metáforas eruditas. Um jardim florido delas. Recorda o então primeiro-ministro português, Cavaco Silva, que, segundo Campos, amargou "a penosa experiência de consertar a Constituição da República dos Cravos". Para Cavaco Silva, "o problema das Assembleias Constituintes é que fazem besteiras por maioria absoluta e depois são precisos dois terços para corrigi-las". Para Roberto Campos, "a nova arquitetura constitucional pode esperar. A crise econômica, não...". Ele explica: "A Constituição é um problema de estrutura, que pode esperar. A inflação e a insolvência são problemas de conjuntura, que não podem esperar". A Constituição de 1988 teria nascido velha, pois "é obsoleto falar em reserva de mercado num momento em que o mundo todo fala em integração de mercados. É obsoleto falar-se em faixa de fronteira, em nome da segurança nacional, quando a Europa e a Norte-América se apresentam para eliminar fronteiras. É absurdo hostilizar a presença de capitais estrangeiros na mineração quando a poupança nacional escasseia, o risco da pesquisa é ingrato (...)". Roberto Campos explica a razão de os estadunidenses amarem a sua Constituição e nós não termos - segundo ele - o mesmo sentimento pela nossa: "ela é um desenho arquitetônico, e a nossa um regulamento enxundioso". São muitos os dispositivos constitucionais comentados. O art. 165 que constava em uma das versões do projeto, garantia "ao trabalhador salário-mínimo, 'capaz de satisfazer suas necessidades normais e de sua família', assim como acesso a 'colônias de férias e clínicas de repouso', mantidas pela União". Campos comenta: "Isso a rigor pressupõe uma economia sem desemprego nem inflação, e equivale a declarar 'inconstitucional' nossa própria condição de subdesenvolvimento". Antevendo os efeitos colaterais do hiperpartidarismo, anotou: "A única esperança restante para elidir as 'disfuncionalidades' da proliferação partidária seria distinguir-se entre a 'formação' de partidos, que deveria ser livre, e sua 'representação' no Congresso, que exigiriam um contingente eleitoral de pelo menos 5% dos votos na primeira eleição subsequente à implantação da liberdade partidária". Prossegue: "Dar a quaisquer partidos o direito de participação no Legislativo é transformá-lo num comício permanente". Naquele tempo, já profetizava: "Passamos subitamente de um extremo ao outro. Do bipartidarismo constrangido para o pluripartidarismo caótico". Então, anuncia: "Estamos construindo um 'multipardidarismo anárquico'". Ao final, arremata: "A representação parlamentar de minúsculos fragmentos da população é 'democratice'. O processo decisório passa a ser refém de coalizões instáveis". Profético ou não? Campos almeja escapar "do sinistro rodízio latino-americano entre o populismo e o militarismo, para desembocarmos, afinal, no estuário da democracia social". Mesmo assim, alerta para o surgimento de líderes populistas, que, nulificando o Congresso Nacional, tentam governar construindo contato direto - às vezes divino - com as multidões. "A democracia plebiscitária utilizada pelos líderes carismáticos para contatos diretos com as massas acaba quase sempre em ditadura". Atentai bem. Sobre os relatores arranjados pelo então senador Mário Covas (PMDB) para as Subcomissões da Constituinte, diz que, salvo honrosas exceções, "convergem na exibição de três qualidades desamoráveis: (a) agressividade ideológica; (b) desinformação econômica; (c) carência de sense of humor - esse doce pudor diante da vida de que falava o poeta". E conclui: "Quando abrem a boca contribuem para reduzir a soma total de conhecimentos à disposição da humanidade...". Genialmente ferino. Roberto Campos rechaça o que chama de glorificação do absurdo. Como exemplo de "surrealismo", traz a "constitucionalite". Explica: "uma nova Constituição criaria condições mágicas para a resolução de vetustos problemas - a consolidação democrática, a retomada do desenvolvimento, a correção das injustiças sociais". Ele lembra que, "segundo o professor americano Keith Rosen, os países latino-americanos já fabricaram, desde sua independência, 277 Constituições. Ou seja, uma média de 13 por país. Como o Brasil está partejando sua oitava Constituição, estamos ainda abaixo da média continental. O que significa a probabilidade de sofrermos novos ataques de 'constitucionalite', doença endêmica nos países subdesenvolvidos". Roberto Campos criticava o nosso presidencialismo. Dizia: "Nesta 'Nova República', conseguimos reunir o pior dos dois mundos: um presidencialismo de jure, em que o presidente edita decretos-leis, e um parlamentar de facto, de vez que a maioria parlamentar se considera com direito a ratear entre si ministérios e cargos do Executivo". Defendia o Parlamentarismo, com condicionantes: "Qualquer ensaio parlamentarista exigiria, além de partidos estruturados, um Banco Central independente a uma burocracia profissionalizada". E arrematava: "Sinto-me em relação ao parlamentarismo como Santo Agostinho se sentia em relação à castidade: Dê-me, senhor, mas não já". Sobre o projeto da Comissão de Notáveis, presidida por Afonso Arinos, diz o seguinte da parte que tratava da área econômica e social: "Contém coisas tão bizarras como o art. 343, III, que objetiva assegurar a todos o 'direito a uma fonte de renda que possibilite existência digna', como se a sociedade estivesse obrigada a financiar vagabundos e beberrões". Roberto Campos, uma vez mais, Roberto Campos. O diálogo insistente entre direitos negativos e positivos é por ele categorizado como "garantias não onerosas" e "garantias onerosas", "que devem ser cuidadosamente medidas para não se confundir o desejo com a realidade, e as aspirações da sociedade com sua capacidade efetiva de prover satisfações". Sobre o Estado, e seus servidores públicos, adverte: "o Estado não é composto de missionários apaixonados pela prioridade do social, mas de funcionários em carne e osso, que também operam sob o princípio do lucro; não o lucro obtido pela eficiência do mercado, mas o lucro representado pelo desfrute do poder e de suas mordomias". Conceitua o povo: "aquela parte da sociedade que não sabe o que quer...". Há mais. A Constituição trouxe o art. 225, que diz: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Roberto Campos chama o dispositivo de "ensaio de voluntarismo paranoico". Ele passa a comentar dispositivos do projeto. O art. 342, III (direito a uma fonte de renda que possibilite uma existência digna), teria, na hermenêutica cortante de Roberto Campos, essa redação: "A sociedade deve financiar os bêbados e vagabundos". O art. 342, VI (direito à moradia... adequada, em condições de higiene e conforto) ganharia a seguinte: "Ficam abolidas as favelas". Na sequência, o art. 343, XII (garantia de manutenção, pelas empresas, de creches para os filhos até um ano de idade e escola maternal até quatro anos): "É melhor só contratar empregados solteiros". Em seguida, o art. 343, XVI (estabilidade no emprego): "É melhor comprar máquinas e robôs, pois ninguém pode garantir às empresas a estabilidade da receita ou vendas". O art. 345, § 20 tinha a seguinte redação: "As categorias profissionais de serviços essenciais que deixarem de recorrer ao direito de greve farão jus aos benefícios obtidos pelas categorias análogas ou correlatas". Roberto Campos o traduz para o seguinte: "Fica estabelecido o 'salário contágio', sem sequer o esforço de fazer greve". Mordaz. Mordaz demais. Para ele, o Título "Da Ordem Econômica" converte o empresário em funcionário. Já a sucessão de dispositivos introdutores da ordem econômica seria um "ensaio de pornografia econômica dos notáveis". Campos diz que fica proibida a transferência a estrangeiro das terras onde existam jazidas, minas, outros recursos minerais e potenciais de energia elétrica, "o que significa uma extensão da tese do 'petróleo é nosso' para todo o reino mineral". Sobre o Capítulo "Da Ciência e Tecnologia", afirma se tratar de "um sápido coquetel de nacionalismo-obscurantista e intervencionismo-cartorial", pois "permite ao tecnocrata estabelecer 'reserva de mercado', nos casos em que exija o desenvolvimento tecnológico'". E, uma vez mais, deita sarrafos no servidor público: "É ele - o tecnocrata - que não dirige fábricas nem paga contas, quem decide sobre o produto e os mercados do empresário". E arremata: "O Estado não é tripulado por missionários e sim por um misto de funcionários e corsários". Pois não. Sobre o capitalismo brasileiro e a livre iniciativa assegurada pelo art. 170 da Constituição, adverte: "Boçal engano!". Explica: "Características essenciais do capitalismo são a liberdade de preços e o livre ingresso no mercado. Nosso sistema de preços é controlado (e às vezes congelado), monopólios e cartéis proliferam". O art. 219 da Constituição diz que "o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal". Para Roberto Campos, é "o encapsulamento de três asneiras em quatro linhas", pois "se cada nação considerasse seu mercado interno patrimônio nacional, extinguir-se-ia o comércio internacional. (...) Ora, o mercado é um ente secular e impessoal onde milhões de indivíduos decidem simultaneamente, não podendo ser ordenado senão pela lei da oferta e procura". Sobre os direitos dos trabalhadores, qualifica-os como "uma viagem ao seio da utopia". Recordando que a Comissão de Ordem Social havia restaurado a estabilidade de emprego - instituto getulista - aos três meses, Roberto Campos disse que o tempo era "suficientemente curto para que um beberrão possa fingir sobriedade, um cleptomaníaco, desamor à propriedade alheia, e um vagabundo, incansável operosidade...". Segue: "é impossível garantir estabilidade no emprego se ninguém garante às empresas estabilidade no faturamento. E as empresas brasileiras são anormalmente instáveis. Não enfrentam apenas os caprichos do mercado. Enfrentam os caprichos do governo". Ele já alertava: "Do ponto de vista dos empregados, entretanto, a demissão será sempre imotivada, abrindo-se imediatamente um contencioso na Justiça do Trabalho, hoje sobrecarga, e psicologicamente despreparada para aceitar a aspereza no mercado competitivo". Profético uma vez mais? Sobre a licença paternidade, (art. 7º, XIX c/c § 1º do art. 10 do ADCT), ele cruza a linha: "A comédia final do dia 2 de fevereiro foi a aprovação de emenda que garante ao marido parturiente 8 dias de descanso, após o parto. Trata-se de prática conhecida na tribo dos Carajás e em algumas culturas polinésias". Virou galhofa. Sobre os direitos trabalhistas das mulheres, diz: "Só um antifeminista poderia punir as mulheres com as conquistas que as esquerdas lhe oferecem, e que tornara a contratação de mulheres uma insensatez econômica". Vale notar, todavia, o firme vigor com o qual defende o Fundo de Garantia por Tempo de Serviço. Para ele, "permanece uma conquista real, muito mais tangível e concreta que a ilusória estabilidade do emprego da era getulista". E diz mais: "o empregado não precisava escravizar-se à empresa, à espera da estabilidade, mas poderia escolher melhores empregos, carregando consigo o pecúlio financeiro do FGTS. A indenização de despedida no regime anterior era um prêmio pagável somente no desastre do desemprego. O FGTS era um patrimônio crescente do empregado, disponível para várias finalidades". Sim. Sim. Um intelectual acima de tudo. Roberto Campos também divide suas impressões sobre a Comissão de Ordem Social. Diz que ela oferece uma solução simplíssima para a Reforma Agrária. Dispõe, no art. 39 de seu relatório, que todos os "sem terra passam a ter direito assegurado à propriedade na forma individual, cooperativa, condominial, comunitária ou mista", cabendo ao Estado promover as necessárias desapropriações. A partir desse ponto, Roberto Campos novamente: "Talvez por esquecimento, os Constituintes não garantiram ao trabalhador urbano o direito de ter sua própria fábrica, aos carpinteiros de possuírem uma carpintaria, as costureiras de conseguirem uma boutique...". Para ele, no capítulo da Reforma Agrária (Capítulo III, Título VII - Da Ordem Econômica e Financeira), "desapropriação e reforma agrária se tornaram sinônimos". Acontece que "a desapropriação é apenas um - o mais dispendioso e conflitivo - dos instrumentos de reforma". E conclui: "ao contrário dos bem-sucedidos projetos de colonização privada, os assentamentos do Incra são um rosário de derrotas". Roberto Campos diz que o projeto da Constituição "declarou incompatível a incompatibilidade". Exemplifica: "O art. 304 veda taxativamente 'a vinculação ou equiparação de qualquer natureza, para o efeito de remuneração do servidor público'. Nos arts. 238 e 239 diz-se precisamente o contrário. Os membros do Ministério Público e Defensores Públicos são equiparados, em garantias e vantagens, ao Poder Judiciário". Ele advertiu que "os orçamentos dos estados explodiriam cada vez que fossem aumentados os vencimentos dos ministros do Supremo Tribunal Federal". Quanto à educação superior, disse: "À parte o ensino primário, gratuito, a educação nos demais níveis deveria ser paga pelos alunos ricos, dando-se aos pobres, que provassem suficiência acadêmica e insuficiência econômica, bolsas que os habilitassem a optar livremente por escolas públicas, privadas ou confessionais". Recorda que as Universidades públicas são "suntuosas em seus campi e franciscanas em seus laboratórios de pesquisa". E fecha: "os filhos ricos, dispensados de trabalhar, e capazes de pagar cursinhos, se qualificam para aterrissar, em automóvel próprio, nas universidades públicas, enquanto os pobres pagam seu ensino noturno em universidades privadas". Ele sapateou sobre o direito à saúde: "O capítulo sobre saúde é risível". Ao fundamentar, exagera: "Diz o art. 349, 'saúde é direito de todos e dever do Estado'. Só que as bactérias e os vírus não foram informados que ao infectarem os brasileiros estarão violando a Constituição...". De hábitos moderados, Campos era dado a excessos verbais. Diz: "promete-nos uma seguridade social sueca com recursos moçambicanos". No capítulo dos índios, também não mostra otimismo: "Da crueldade em relação aos indígenas, passaremos no novo texto constituinte a um indigenismo romântico". Sobre a função social da propriedade, um dos princípios da ordem econômica (art. 170, II), comenta: "Não faltarão advogados trabalhistas, pseudoambientalistas, ou 'teólogos' da libertação incapazes de pegar na enxada, mas perfeitamente capazes de habilitar o burocrata e questionar a observância da função social". Há quem repute as garantias sociais cláusulas pétreas. Mas, para Roberto Campos, "isso é confundir pedra com paçoca". Resume as conquistas sociais assim: "foram um plantio de dragões para uma colheita de pulgas, como diria Heine". Ele distingue patriotismo - o amor ao seu país -, do Nacionalismo, "espécie de sarampo infantil da humanidade, de que falava Einstein em seu continente; ou essa cultura dos incultos, como diz Vargas Llosa sobre a América Latina". Sustentou que a definição de empresa nacional (revogada pela Emenda Constitucional nº 6/1995) era "de uma patriótica cretinice", pois se destina "a afugentar o capital estrangeiro e reforçar os cartórios nacionais". Com o resultado final ao qual chegou a Comissão, o Brasil teria virado "um mendigo orgulhoso". O art. 199, § 3º veda "a participação direta ou indireta de empresas ou capitais estrangeiros na assistência à saúde no País, salvo nos casos previstos em lei". Roberto Campos vaticina: "No campo da saúde, ficam proibidos os hospitais estrangeiros, o que significa que a doença é nossa, e os pacientes só poderão morrer em mãos tupiniquins". Campos indaga se, pela versão original do art. 37 da Constituição (alterado pela Emenda Constitucional no. 19/1998), "nem Einstein, nem qualquer Prêmio Nobel de Ciência poderia ser professor de nossas universidades, transmitindo-nos conhecimentos científicos, a não ser que se naturalizasse brasileiro?". Ao ler o art. 133 da Constituição - originalmente apelidado de "Cabralão II" - que diz que "o advogado é indispensável à administração da justiça, sendo inviolável por seus atos e manifestações no exercício da profissão, nos limites da lei", Roberto Campos afirma que a Constituição "singulariza criaturas especiais", pois há "desigualdade em favor dos professores, médicos, advogados, e, a prevalecerem tendências atuais, garimpeiros e seringalistas". A partir daí, as rosas são atiradas sobre os advogados. Cravam, contudo, apenas os espinhos. "O campeonato do corporativismo cabe à profissão de advogado, pois ele é declarado indispensável à administração da justiça. Nem mesmo um desquite amigável (com secreta troca de insultos) será possível sem um rábula...". Na sequência, os membros do Ministério Público. "Obtiveram os privilégios da magistratura, convertendo-se o Ministério Público numa espécie de quarto poder". Ele puxa o barbante e a lâmina desce: "O professor Octávio Bulhões, atazanado pelas delongas processuais na liberalização de empréstimos externos, indispensáveis a caixa de um tesouro falido, costumava murmurar: 'O Brasil não se conserta enquanto não extinguirmos a carreira de procurador, criando em seu lugar a profissão de achador'". Roberto Campos tenta identificar uma razão para o que chama de "furor corporativista". "Nada menos que 186 constituintes, ou seja, 1/3 do total, são advogados. Somente 115 constituintes, ou seja, 21% do total, provém de profissões diretamente vinculadas ao processo produtivo - empresários, industriais, administradores e agropecuaristas. O restante é composto de jornalistas, professores, servidores públicos, bancários, militares ou políticos profissionais, que se somam aos advogados para formar uma burguesia intelectual". Segundo Campos, essa "burguesia intelectual" não hesita "em ditar regras para a distribuição da riqueza alheia e decretar as conquistas sociais, dispensando-se, naturalmente, de se explicar quem vai pagar a conta". Mas como ser uma pessoa pública de alto gabarito no Brasil? Campos responde: "É preciso ter o couro duro de elefante, que Adenauer considerava o presente supremo de Deus ao estadista". Avisa, contudo, que o exercício do poder depende do ele chama de quarteto maravilhoso: "caneta, Diário Oficial, chave do cofre e a sombra da baioneta". A derradeira profecia de Roberto Campos é de arrepiar. Afirmando que seria necessário, no ministério da Fazenda, "homens capazes de repelir o irracionalismo xiita, sem submissividade aos políticos e sem interesses enraizados no estamento burocrático", Roberto Campos escolhe como um dos representantes do que chama de "a brilhante e jovem geração emergente" ele, Paulo Guedes. Esse seria um dos homens a corrigir "o sinistro legado do PMDB: perda de credibilidade externa e incredulidade interna". Paulo Guedes é, hoje, o lustroso ministro da Economia. Profecia uma vez mais? No § 3º do art. 217 da Constituição, consta que "o Poder Público incentivará o lazer, como forma de promoção social". Roberto Campos exorta a ética do trabalho, mas adverte: "tudo indica que estamos mais preparados para a ética do lazer". Roberto Campos excomunga o controle de constitucionalidade por omissão. "Estabelecer-se-á um permanente contencioso sobre a adequação do salário mínimo às necessidades básicas", anotou. Sustenta que "o cidadão comum poderá, na falta de normas regulamentadoras, pleitear no Judiciário 'direitos', liberdades e prerrogativas constitucionais. O Judiciário deixará assim de ser o intérprete e executor das normas para ser o feitor das normas confundindo-se a função judiciária com a legislativa". E mais. "O país será quintessencialmente um país litigante. Os causídicos encontraram afinal seu paraíso...". Despede-se deixando o seguinte post scriptum: "Logo após a promulgação pedirei, como idoso, um mandado de injunção para que o Bom Deus seja notificado de que tenha garantia de vida, mesmo na ocorrência de doenças fatais (art. 233), sendo, portanto, inconstitucional afastar-me de meus contatos terrestres...". O art. 177, I da Constituição (monopólio da União a pesquisa e a lavra das jazidas de petróleo e gás natural e outros hidrocarbonetos) não passa incólume. "Com o bom senso que caracterizada os founding fathers norte-americanos, abstiveram-se na Constituição da Filadélfia de mencionar a lenha, e nenhuma das Constituições europeias do século passado mencionou o carvão. (...) Coube ao Brasil esse pioneirismo ridículo de entronizar hidrocarbonetos na Carta Magna". Ele explica, com pedagogia, a razão pela qual diverge do monopólio do petróleo (art. 177, I a IV, da Constituição). "O monopólio de petróleo é mero fetiche, típico de países subdesenvolvidos, que aliam ao subdesenvolvimento financeiro um bocado de subdesenvolvimento mental". O caráter analítico da Constituição também o toca. "Teremos uma Constituição de 156 artigos, o que dará mais emprego a bacharéis, mais desemprego aos trabalhadores, mais desilusão para todos e uma advertência para que outros países não se entreguem a exercícios de besteirol". O descumprimento, ou o ato consciente de ignorá-la, é, para Campos, "tratamento que a história habitualmente destina aos reservatórios de utopias". Roberto Campos, então, abre o jogo: "Já tivemos sete Constituições, enquanto os americanos só tiveram uma e os ingleses, nenhuma. Não costumamos consultar e muito menos cumprir qualquer de nossas Constituintes, sejam as votadas, sejam as outorgadas". E conclui: "o problema nunca foi de Constituições e sim de instituições". Resumiu mais de 500 anos de história do Brasil. Diz que a Constituição brasileira pouco ou nada se parece com as constituições civilizadas que conhece. "Seu teor socializante cheira muito à infecta Constituição portuguesa de 1976, da qual Portugal procura agora desembarcar-se a fim de embarcar na economia de mercado da Comunidade Econômica Europeia. O voto aos dezesseis anos dizem copiado da Constituição da Nicarágua. A definição de empresa nacional parece só existir na Constituição de Guiné-Bissau. Em ambos os casos, nem o mais remoto odor de civilização...". Roberto Campos teima em enxergar o meio copo vazio. Ele persevera: "Elencam-se 34 'direitos' para o trabalhador, e nenhum 'dever'. Nem sequer o 'dever' de trabalhar, pois é irrestrito o direito de greve. Obviamente, ninguém teve a coragem para incluir, entre 'os direitos fundamentais', o direito do empresário de administrar livremente a sua empresa". Tem mais. Roberto Campos lembra que "a palavra produtividade só aparece uma vez no texto constitucional; as palavras usuário e eficiência figuram duas vezes; fala-se em garantias, 44 vezes, em direitos, 76 vezes, enquanto a palavra deveres é mencionada apenas quatro vezes". Segundo ele, "ao contrário dos países civilizados, no Brasil, as interpretações dos tribunais superiores não vinculam as instâncias inferiores. Há tantas normas quantos são os intérpretes". E adverte: "A previsão das consequências certamente não tem sido o esporte preferido dos constituintes". Se a ciência é simplesmente a previsão das consequências, "a Assembleia Nacional Constituinte é a catedral da anticiência", finaliza. Não parece que Roberto Campos queria outra Constituição para o Brasil. Talvez quisesse apenas um outro Brasil, com Constituição ou não. Tanto que chegou a confidenciar: "Sempre defendi a tese de que é melhor não ter constituição escrita". Um homem dessa envergadura não deixaria de refletir sobre a felicidade. "Jefferson falou no direito à vida, à liberdade e à busca da felicidade (pursuit of happiness)". Mas, a partir daí, fez-se Roberto Campos uma vez mais: "Nossa Comissão da Ordem Social não faz por menos. A felicidade passa a ser não apenas um objetivo buscado pela sociedade, mas uma garantia constitucional, pois, segundo o artigo 1º, inciso II: 'Todos têm direito à moradia, alimentação, educação, saúde, descanso, lazer, vestuário, transporte, e meio ambiente sadio'". Reputando a Constituição uma "loucura de primavera", diz que ela "programa a felicidade, com frequentes bodocadas no bom senso. É saudavelmente libertária no político, cruelmente liberticida no econômico, comoventemente utópica no social...". A sua conclusão, no tema da felicidade, é essencialmente utilitarista: "O mérito da democracia não é necessariamente assegurar o governo melhor, mas apenas garantir, pela regra da lei, o afastamento de um governo mau. Idealmente, a sociedade deveria maximizar a felicidade; mas já seriam bom se conseguisse minimizar o sofrimento...". Roberto Campos, mesmo liderando, como protagonista, um lado diverso da bancada das ideias na qual me sento com a discrição de um modesto jovem observador, merece cada instante de atenção que a ele dedico na coluna de hoje. Tudo vem do livro "A Constituição contra o Brasil: ensaios de Roberto Campos sobre a constituinte e a Constituição de 1988", organizado por Paulo Roberto de Almeida, da LVM Editora. Fala de um brasileiro. Um erudito. Uma pessoa de coragem. Alguém que prosperou graças aos estudos. Isento dos privilégios de um berço de ouro, viveu a verdade e percorreu o caminho. E fez ao seu modo. Sempre. Na oligarquia dos mentecaptos, como fazem falta esses estadistas. Parabéns ao organizador da coletânea, Paulo Roberto de Almeida e parabéns, in memoriam, a Roberto Campos.
Símbolos têm poder. E, com o poder que têm, se impõem sobre as pessoas, dirigindo seus comportamentos, ainda que contra suas vontades. Não é diferente no Supremo Tribunal. Na capital Federal, Brasília, desde 21 de abril de 1960, o edifício-sede fica na Praça dos Três Poderes, obra do arquiteto Oscar Niemeyer, com projeto original de Lúcio Costa. É um prédio público repleto de símbolos. Como não poderia deixar de ser, trata-se de uma edificação que dá conforto a autoridades igualmente repletas de poder. Na entrada, a estátua que personifica a Justiça, do escultor mineiro Alfredo Ceschiatti, em granito de Petrópolis e pedra monolítica. A Deusa, vendada e sentada - talvez no seu trono -, empunha, com a mão direita, uma espada. Com a ponta dos dedos da mão esquerda, ela confere o quão afiada está a lâmina. Esse é o símbolo escolhido para, diante dos olhos de todos os que entram e saem do Tribunal, representar a jurisdição constitucional exercida pelo Supremo Tribunal Federal. O próprio site da Corte explica: "Em primeiro lugar, a espada é o símbolo do estado militar e de sua virtude, a barreira, bem como de sua função, o poderio. O poderio tem um duplo aspecto: o destruidor (embora essa destruição possa aplicar-se contra a injustiça, a maleficência e a ignorância, e por causa disso, tornar-se positiva); e o construtor, pois estabelece e mantém a paz e a justiça (CHEVALIER, 2002, p. 392). É aplicada contra a injustiça, maleficência e ignorância. Tornando-se positiva, ela estabelece e mantém a paz e a justiça. De acordo com Udo Becker (1999, p. 101), quando associada com o símbolo da Justiça, simboliza a decisão, a separação entre o bem e mal, sendo misericordiosa com o primeiro e golpeando e punindo o segundo. É a força máxima para punir o culpado e perdoar o inocente. (BECKER, 1999, p. 101)"1. Segundo a descrição oficial, a espada mostra uma Justiça constitucional misericordiosa com uns e cruel com outros, punindo e golpeando, se preciso for. Esse elemento termina por habitar as moradas sem trancas do nosso inconsciente. Na Coreia do Sul, no fundo do prédio da Corte Constitucional, em Seul, também há uma grande estátua. De bronze, ela traz um homem em busca da ordem constitucional, da verdade e da justiça. É o guardião da Constituição. Na mão direita, não há espadas afiadas, mas um código jurídico cravado sobre uma balança. Com a mão esquerda, ao contrário de acariciar uma lâmina, o Guardião arrebenta uma corrente que restringe as liberdades. Ele está em pé, não sentado num trono. Tem mais. No continente africano, também se optou por símbolos que convidem ao engajamento consciente de cidadãos e cidadãs. Na Corte Constitucional da África do Sul, a porta de acesso ao edifício é imensa e pesada, de madeira, e traz, talhados, os dispositivos asseguradores dos direitos fundamentais, acompanhados de desenhos que iluminem o seu significado. A interpretação da Constituição há de começar e terminar por esses comandos, assim como as pessoas, para entrar e sair do prédio, precisam cruzar aquelas grandiosas portas de madeira. Albie Sachs, que já integrou a Corte, diz o seguinte sobre o prédio: "Existe algo na arquitetura padrão dos tribunais que exala autoridade, que diz: 'Cuidado, o Estado está acima de você'. Contudo, nossa Corte não expressa poder, ela modera o poder"2. Falou tudo. A jurisdição constitucional exercida por uma Suprema Corte não deve expressar o poder, mas moderá-lo, pacificamente, zelando pela sua autoridade. O Preâmbulo da Constituição brasileira nos reconhece como uma "sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias". Somos da paz, não da guerra. Na ordem interna, e na internacional, primamos por soluções pacíficas. Exemplo é o inciso VII do art. 4º, que diz que a República Federativa rege-se, nas suas relações internacionais, pelo princípio da "solução pacífica dos conflitos". Trecho do art. 98, I, dispõe que a União, no Distrito Federal e nos Territórios, e os Estados criarão juizados especiais, "competentes para a conciliação, o julgamento e a execução de causas cíveis de menor complexidade e infrações penais de menor potencial ofensivo (...)". Mais expresso, impossível: conciliação. Longe de impor cegamente o seu poder, sentada num trono, de posse de uma espada amolada, selecionando pessoas para misericórdia ou punição, o que se reclama de uma jurisdição constitucional humanista é a capacidade de, por meio da sua autoridade, inspirar em nós o que Lincoln chamava de "os anjos bons da nossa natureza". A missão do STF nesse século é nos convidar a sentarmos juntos, numa mesa redonda - sem cabeceiras -, para olharmos reflexivamente para os nossos conflitos e, de boa-fé, e com esforço sincero, renunciarmos reciprocamente a questões individuais na busca de uma solução coletiva. Como diz o min. Ayres Britto, "uma saída para chamar de nossa"3. É uma missão que dimana diretamente da Constituição, ao dispor, logo a partir do preâmbulo, sobre as soluções pacíficas das controvérsias - incluindo as judiciais -, a despeito de também haver, no Código de Processo Civil, vários comandos abrindo caminho para as conciliações (arts. 139, V, 487, III, 'b' e 932, I). Mas a verdade é que a ideia de ter tribunais elevados buscando, no exercício do poder, a conciliação entre as partes, não é novidade. Ao pregar a paz pelo direito, Hans Kelsen anotou que "a jurisdição compulsória de um tribunal internacional não exclui um procedimento de conciliação". Ponderou ele que "O tribunal se torna competente apenas no caso de eventual malogro da conciliação"4. Kelsen foi um juiz constitucional. Ele viveu a verdade, não a conheceu apenas nos livros que leu e escreveu. Ao fundar e compor uma Corte Constitucional - a da Áustria -, Kelsen percorreu o caminho, afastando-se da posição cômoda de apenas saber onde esse caminho ficava. Sabia sobre o que falava. E falou. A ideia da conciliação, como elemento de paz no Direito, não está presente apenas na monumental obra teórica de Hans Kelsen. A prática constitucional na África do Sul, por exemplo, mostra que os juristas daquele país, fugindo da acomodação acrítica e automática de institutos jurídicos estrangeiros, optaram por desenhar de maneira criativa e original os seus próprios remédios processuais. A conciliação não foi deixada de fora. Pelo contrário. A ela se disse: bem-vinda! Pierre De Vos anota que alguns instrumentos adotados pela Corte Constitucional "visam a direcionar os atores a agirem de uma maneira mais consonante com a noção de democracia participativa. Os tribunais podem usar esses remédios para ajudar a aprofundar a democracia e capacitar os cidadãos que podem facilmente se sentir alienados num estado burocrático"5. Foi assim que nasceu o "engajamento significativo". Engajamento significativo é a forma que a jurisdição constitucional sul-africana encontrou para, fiel à sua história, persistir com a experiência adquirida com as práticas tradicionais do país, especialmente o hábito de aldeões se sentarem debaixo de árvores com membros da comunidade que estão em conflito para, arbitrando uma solução, apontar um caminho que inspire o sentimento de justiça, não de vingança. Também, uma forma de reparar laços sociais esgarçados por vendetas cotidianas. Não é à toa que o símbolo oficial da Corte Constitucional é uma árvore frondosa, com pessoas embaixo. O engajamento significativo não raramente resulta na expedição, pela Corte, de uma ordem - ou interdito estrutural -, pela qual o Tribunal mantém a supervisão da implementação de sua decisão, das seguintes formas: (i) uma ordem obrigando o governo a tomar certas medidas para remediar uma situação ilegal; (ii) a exigência de que o governo apresente um relatório sobre as medidas que tomou ou pretende tomar para dar efeito à ordem; (iii) uma oportunidade para a outra parte ou partes comentarem o relatório; e (iv) a possibilidade de novas ordens judiciais, confirmando o cumprimento da ordem original ou concedendo mais tempo para o cumprimento integral da medida6. No caso Joe Slovo Community, a Corte Constitucional da África do Sul concedeu um amplo interdito obrigatório, juntamente com uma ordem de supervisão relativa à provisão de habitação para pessoas que seriam despejadas de um acampamento ilegal. No caso Pheko, ordenou que o Município de Ekurhuleni apresentasse um relatório sobre as medidas que havia tomado para identificar terras para a transferência dos requerentes cujas casas haviam sido ilegalmente demolidas pelo Município7. A Corte concedeu este remédio pela primeira vez no caso Occupiers of 51 Olivia Road, Berea Township and 197 Main Street Johannesburg v City of Johannesburg and Others8, ao declarar inconstitucional o ato administrativo de um município expulsar ocupantes ilegais sem primeiro se envolver com eles, individual e coletivamente, de forma significativa9. O engajamento foi um processo bilateral, no qual a Prefeitura e aqueles que estão prestes a se tornarem sem-teto conversam entre si de maneira significativa, a fim de alcançar certos objetivos, tais como: (a) saber quais as consequências do despejo; (b) se a cidade pode ajudar a aliviar essas terríveis consequências; c) se foi possível tornar o edifício em causa relativamente seguro e propício à saúde durante um período; (d) se a cidade tinha alguma obrigação com os ocupantes nas circunstâncias prevalecentes; e (e) quando e como a cidade poderia ou iria cumprir essas obrigações10. Se a África do Sul tem o engajamento significativo, o Brasil tem a máxima consolidada em cada um de nós: "é conversando que a gente se entende". Nada mais natural do que o nosso jeito de ser compor a nossa forma de, à luz da Constituição, resolver conflitos judicializados ou pelo menos tentar conciliar posições divergentes. O STF tem, na altiva sabedoria da sua prática, feito florescer uma expertise valiosa para o constitucionalismo global: a arte de conciliar partes que, pelas mais variadas razões, se veem em disputas cuja solução passa pela interpretação da Constituição. Confira a coluna na íntegra. __________ 1 Disponível em: clique aqui. 2 Vida e direito: uma estranha alquimia. Tradução Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 95. 3 Disponível: Clique aqui. 4 Kelsen, Hans. A paz pelo direito. Tradução Lenita Ananias do Nascimento. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2011, p. 32. 5 South African Constitutional Law in Context. Pierre De Vos (editor). Oxford University Press. 2014, p. 413. 6 No original: "A supervisory order - also referred to as a structural interdict - is an order in which the court retains supervision over the implementation of its order. Although a supervisory order may take many forms, it tipicaly consists of four elements: (i) an order compelling the government to take certain action to remedy an unlawful situation; (ii) a requirement that the government must submit a report on the steps that it has taken or intends to take to give effect to the order; (iii) an opportunity to the other party or parties to comment on the report; and (iv) the possibility of further court orders either confirming compliance with the original order or granting further relief", Constitutional litigation, Brickhill, J; Du Plessis, M; Penfold, Gp. Juta. Johannesburg, 2013, p. 124. 7 No original: "Nevertheless, the Constitutional Court has, more recently, granted supervisory orders in several cases. For example, the court in Joe Slovo Community granted an extensive mandatory interdict coupled with a supervisory order relating to the provision of housing to persons who were to be evicted from an informal settlement. More recently, the court in Pheko ordered the Ekurhuleni Municipality to file a report (confirmed on affidavit) regarding steps that it had taken to identify land for the relocation of the applicants whose homes had been unlawfully demolished by the Municipality. The order gave the applicants 5 days to respond the report", Constitutional litigation, Brickhill, J; Du Plessis, M; Penfold, Gp. Juta. Johannesburg, 2013, p. 124. 8 No original: "Some remedies are aimed at directing role players to act in a manner more in accordance with the notion of participatory democracy. Courts can use these remedies to help deepen democracy and empower citizens who can easily feel alienated from the bureaucratic state. One such a remedy is the remedy of meaningful engagement. This remedy is similar in effect to the structural interdict. The Constitutional Court granted this remedy for the first time in its judgement in Occupiers of 51 Olivia Road, Berea Township and 197 Main Street Johannesburg v City of Johannesburg and Others", South African Constitutional Law in Context. Pierre De Vos (editor). Oxford University Press. 2014, p. 413. 9 No original: "In this case the Constitutional Court held that it would be unconstitutional for a municipality to evict unlawful occupiers without first engaging with them, individually and collectively, in a meaningful manner", South African Constitutional Law in Context. Pierre De Vos (editor). Oxford University Press. 2014, p. 414. 10 No original: "In the same judgement, the Constitutional Court also stated that engagement is a two-way process in which the City and those about to become homeless would talk to each other meaningfully in order to achieve certain objectives. While there is no closed list of objectives, the Court explained further, the sorts of objectives that ought to be achieved when a city wishes to evict people who may be rendered homeless as a result of the eviction are as follows: (a) what the consequences of the eviction might be; (b) whether the city could help in alleviating those dire consequences; (c) whether it was possible to render the building concerned relatively safe and conducive to health for an interim period; (d) whether the city had any obligations to the occupiers in the prevailing circumstances; and (e) when and how the city could or would fulfil these obligations". South African Constitutional Law in Context. Pierre De Vos (editor). Oxford University Press. 2014, p. 414.
Qualquer animal é capaz de, com um único coice, destruir um estábulo. Apenas bons carpinteiros, contudo, conseguem reerguer estruturas de madeira destruídas pela força bruta de quem não pensa. Na vida e no Direito, mais cedo ou mais tarde, seremos convidados a decidir quem somos, se o animal bruto ou o carpinteiro dedicado. Quem é você? Aquele que destrói ou o que constrói? De que a sua história é feita? De coices ou obras? Ruth Bader Ginsburg, juíza da Suprema Corte dos Estados Unidos, preferiu ser a carpinteira. Tornou-se alguém que, nos seus 86 anos, tem o que dizer e o que mostrar. Com suas ações, ajudou a mudar o mundo, amenizando a dor e o sofrimento do semelhante e reparando as lágrimas das que se desesperaram, machucadas pelas feridas da desigualdade. Com a coragem dos que fazem, elevou a sua voz em favor da igualdade de gênero num Estados Unidos repleto de limitações artificialmente impostas às mulheres. Vindicou Justiça. Assumiu o risco pagando para ver. E viu. Matriculada na Faculdade de Direito de Harvard, foi uma das nove mulheres em uma turma de 500 alunos. Em 1983, o presidente Bill Clinton a indicou para a Suprema Corte. Seu nome foi aprovado pelo Senado por 96 x 3. A partir daí, uma nova estrela passou a brilhar no céu da mais bem-sucedida jurisdição constitucional que a civilização foi capaz de construir. E segue brilhando. A coluna de hoje deriva da leitura da obra editada por Helena Hunt, "Ruth Bader Ginsburg in her own words". Preconceito, doenças cruéis, subestimação..., foram convertidos naquilo que faz a diferença: coragem. Vale conhecer um pouco dessa caminhada, à luz da coletânea de frases e pensamentos da juíza. Em Cornell, o professor de literatura europeia, Vladimir Nabokov, mudou a maneira como ela lia e escrevia. "Palavras podem pintar quadros", aprendeu. "Escolher a palavra certa e a ordem correta", ilustrou o professor, "poderia fazer uma enorme diferença na hora de transmitir uma imagem ou uma ideia". Para Ruth, "é a arte que torna a vida bela". É difícil segurar os frutos de uma mente criativa guardada num corpo que dorme tarde cansado e acorda cedo disposto. Com imaginação e trabalho, Ruth Bader Ginsburg foi abrindo os caminhos para as futuras gerações. A obra traz manifestações da juíza sobre o constitucionalismo dos Estados Unidos. "Os pais fundadores pensavam pela veia dos direitos naturais", diz. Discorrendo sobre a Constituição, a chama de "instituição notável", e explica: "O que ela fez foi rejeitar o poder patriarcal dos reis e dizer que a sorte das pessoas nos Estados Unidos não iria decorrer do status decorrente do seu nascimento". Sobre a igualdade, afirma: "a nossa Constituição originariamente não tem nenhuma provisão de igualdade, porque alguns humanos foram mantidos em cativeiro por outros humanos. A Constituição não foi aperfeiçoada a respeito disso até depois da Guerra Civil". Quanto à Emenda Constitucional nº 2, que assegura o direito de ter e portar armas, Ruth Bader Ginsburg afirmou: "A Segunda Emenda está desatualizada, pois a sua função se tornou obsoleta. E, na minha opinião, se a Corte tivesse interpretado corretamente a Segunda Emenda, teria dito: 'Essa emenda era muito importante quando a nação era nova. Ela dava o direito de manter e portar armas, mas por um propósito único, que era o de ter grupos que pudessem lutar armados para preservar a nação'". Não deixou de se manifestar sobre a pena capital: "A aplicação da pena de morte diminuiu, de modo que agora, acho que há apenas três Estados que realmente administram a pena de morte. Nem sequer Estados inteiros, mas áreas particulares nesses Estados". Na obra, define o método hermenêutico originalista, dizendo-se adepta dela. "Eis o Originalismo: Eu coloco aqueles homens - eram todos homens os que escreveram a Constituição - conosco hoje. Então, sei que Thomas Jefferson, que valorizava tanto a igualdade, apesar de ser proprietário de escravos, aplaudiria como a ideia de igualdade se expandiu ao longo das décadas". Quanto à advocacia, Ruth se recorda do seu primeiro contato com a prática jurídica. Foi algo que a transformou. Do abuso autoritário de autoridades do Estado e da retórica do medo empregada contra os opositores qualificando-os como "comunistas", Ruth diz se recordar do seguinte: "A minha primeira exposição (à lei) foi enquanto estudante universitária no auge do senador Joe McCarthy, de Wisconsin. Havia um enorme 'Pânico Vermelho' (Red Scare) no país, e este era um senador que via um comunista em todos os cantos e estava convocando pessoas perante o Comitê de Investigação do Senado e o Comitê de Atividades Antiamericanas da Câmara (...). Eu tinha um professor de Direito Constitucional que indicou que havia advogados defendendo essas pessoas e lembrando ao Congresso que a nossa Constituição garante o direito de pensar, falar e escrever como acreditamos e não como o governo nos diz que é o jeito certo. E temos ainda a Quinta Emenda, que protege as pessoas contra a autoincriminação. Então, pensei que era uma coisa muito bacana - um advogado poderia ganhar a vida, e ainda fazer o bem para a sociedade em que vive". A juíza persevera no papel do advogado em nossa sociedade. Diz: "Geralmente, não é a ideologia que impede os advogados de ajudar a reparar as lágrimas em suas comunidades, nação e mundo, e nas vidas dos pobres, dos esquecidos, das pessoas privadas por serem membros de minorias desfavorecidas ou desacreditadas. É mais provável que a apatia, o egoísmo ou a ansiedade esteja se excedendo. Essas são forças que não são fáceis de superar. No entanto, os advogados que se consideram não apenas comerciantes trabalhando por um dia de pagamento, mas membros de uma profissão verdadeira e instruída, esforçar-se-ão para superar a inércia, as cargas de trabalho em suas mesas e a brevidade do dia". E não para por aí: "Se você vai ser um advogado e apenas praticar sua profissão, você tem uma habilidade, então você é muito parecido com um encanador. Mas se você quer ser um verdadeiro profissional, você vai fazer algo para além de si mesmo, algo para reparar as lágrimas em sua comunidade, algo para tornar a vida um pouco melhor para as pessoas menos afortunadas do que você". A obra, então, começa a retratar os pensamentos de Ruth Bader Ginsburg acerca do Poder Judiciário e do papel dos juízes na democracia. Diz ela: "Um juiz é obrigado a decidir cada caso de forma justa, de acordo com os fatos relevantes e a lei aplicável. O dia em que um juiz é tentado a ser guiado, contrariamente, pelo o que 'a multidão quer', é o dia em que ele deve renunciar e buscar outro trabalho". Ela prossegue: "O que um juiz deve levar em conta não é a temperatura do dia, mas o clima de uma era". Na sequência, afirma o seguinte: "Os juízes devem estar conscientes de seu lugar em nossa ordem constitucional; devem sempre lembrar que vivemos em uma democracia que pode ser destruída se os juízes decidirem governar como guardiões platônicos". É por isso que temos a lei. "É por isso que temos um sistema de stare decisis. Isso impede os juízes de infundirem suas próprias crenças morais, de se tornarem reis ou rainhas". E arremata: "O juiz efetivo... esforça-se para persuadir, não para pontificar. Ela fala com uma voz moderada e contida, dialogando com, não tendo diatribes contra, departamentos co-iguais de governo, autoridades do Estado e até mesmo os seus próprios colegas". Ruth Bader Ginsburg enaltece o papel pedagógico exercido pelos críticos da Suprema Corte: "Críticas aos Tribunais, e, similarmente, críticas aos outros ramos do governo, não devem ser rechaçados. Pelo contrário, devem ser aceitas com graça e consideradas reflexivamente. Para os juízes que são nomeados para postos vitalícios, a crítica ponderada tem uma importância especial. Ajuda a manter no colegiado atitudes saudáveis ??de humildade e alguma insegurança". Para ela, "todos sabemos que a instituição à qual servimos é muito mais importante do que os indivíduos que a compõem a qualquer momento. E o nosso trabalho, a meu ver, é o melhor trabalho que um jurista poderia ter. Nossa responsabilidade é buscar a justiça da melhor maneira possível". Então, recorda as limitações do Poder Judiciário e a necessidade de uma democracia constitucional poder confiar em suas instituições, até para fazer valer as decisões da Suprema Corte: "O que Alexander Hamilton disse foi que o Judiciário era o ramo menos perigoso, porque não possuía a bolsa nem a espada. Mas possuía, na verdade, duas outras coisas: razão e jurisdição. E você pode pensar em alguns momentos extraordinários do país quando isso realmente importava. Pense na Suprema Corte em sua decisão de 1954, declarando inconstitucional a segregação nas escolas públicas do nosso país... Bem, a Suprema Corte não tinha tropas, mas o presidente Eisenhower as convocou para garantir que a decisão fosse cumprida. E é assim que tem sido. Houve alguns tempos difíceis, sim, mas na maior parte o poder da Suprema Corte vem de sua razão e da sua jurisdição. O resto do sistema vem do reconhecimento do valor dessa instituição". A juíza põe abaixo especulações: "Não há negociação de votos. Não há 'se você me acompanha neste caso, eu ficarei do seu lado em outro caso'. Nunca. Isso jamais acontece". Prosseguindo, dá sugestões: "Um Ministro da Suprema Corte, contemplando a elaboração de um voto próprio, divergente, deveria sempre perguntar a si mesmo: essa discordância ou concordância é realmente necessária?". E fecha com a chave da sabedoria em colegiados judiciais: "Quando uma palavra impensada ou indelicada é pronunciada, esqueça. Reagir com raiva ou aborrecimento não aumentará a sua capacidade de persuasão". Há, ainda, uma derradeira observação: "Você está redigindo uma divergência para uma era futura, e sua esperança é que, com o tempo, a Corte veja a matéria da forma que você está vendo". Suas posições, mesmo vencidas, ajudaram a estimular o processo de deliberação política e, assim, a transformar a sociedade. No caso Ledbetter vs. Goodyear Tire & Rubber Co, uma ação que tratava sobre discriminação salarial entre homens e mulheres, o Congresso dos Estados Unidos aprovou o "Lilly Ledbetter Fair Pay Act", que terminou por, na prática, derrubar a opinião majoritária da Suprema Corte ao remover as limitações que resultavam em discriminação salarial em razão do gênero do trabalhador. "O que essa Suprema Corte produz é um voto da Corte, então, você não está escrevendo para si mesmo. Está escrevendo, esperançosamente, para todo o Colegiado, e, se não, pelo menos para a maioria dos membros. Deve ter em conta o que eles pensam". Explicando os rótulos dos juízes da Suprema Corte em relação aos partidos que suportaram suas indicações, diz ela: "Durante meus 24 anos na Suprema Corte, os juízes mais 'liberais' foram, eles próprios Republicanos declarados, John Paul Stevens e David Souter". Ruth Bader Ginsburg também é crítica a determinadas decisões emanadas da sua própria Suprema Corte. Ela diz: "O Citizens United é provavelmente o mais importante caso recente, em que o Tribunal teve a oportunidade de barrar a prática de ganhar a eleição desde que se consiga arrecadar mais dinheiro. Essa possibilidade foi admitida, e espero que algum dia essa decisão seja revertida". Não deixa de reconhecer a necessidade de boa interação entre a Suprema Corte e os demais Poderes, até para que suas decisões sejam cumpridas. Diz: "Em nosso sistema jurisdicional, os assuntos raramente conseguem ser totalmente resolvidos com base em um ou em dois casos; em geral, exigem um trabalho mais árduo, muitas vezes envolvendo respostas ou um diálogo contínuo com outros ramos do Governo Federal, dos Estados ou do setor privado". A obra não deixaria de trazer pensamentos sobre o feminismo e as mulheres. Ela diz: "O feminismo é essa noção de que cada um de nós deveria ser livre para desenvolver nossos talentos, sejam eles quais forem, e não sermos impedidas por barreiras artificiais - barreiras feitas pelo homem, barreiras que certamente não foram enviadas pelos céus". A Juíza chama de liberdade "para ser eu e você". Mais à frente, Ruth lembra do que não pode ser esquecido: "Florence Allen terminou o segundo ano de sua turma e seus colegas de classe a elogiaram por sua 'boa mente masculina', ao pensar 'como um homem'". E prossegue: "Sandra Day O'Connor, certo dia, disse o seguinte: 'Se Ruth e eu tivéssemos nor tornado maiores de idade em uma época em que não houvesse discriminação contra as mulheres, seríamos hoje sócias aposentadas de uma grande firma de advocacia'". Recorda que "As mulheres não estavam no Judiciário federal até Jimmy Carter se tornar presidente. Ele deu uma olhada e disse: 'Você sabe, todos eles se parecem comigo. Mas não é isso o que o esse grande Estados Unidos da América se parece'". Ela lembra da filha: "Às vezes, minha filha é perguntada sobre como se sente a respeito da nomeação da mãe como segunda mulher a servir a Suprema Corte. Ela responde: 'Sinto-me bem. Mas seria ainda melhor quando tantas mulheres forem juízas em todos os tribunais do país a ponto de ninguém precisar contar mais'". Na Suprema Corte, aponta distinções entre as juízas mulheres e os juízes homens. "Há uma conexão entre os votos da Justice O'Connor e os meus que eu acho que você não encontrará nos dos meus colegas. É que nos atemos aos argumentos. Não disperdiçamos palavras dizendo algo desagradável sobre os colegas ou sobre os juízes de primeira instância". Ruth diz ainda o seguinte: "As mulheres pertencem a todos os lugares onde as decisões estão sendo tomadas. Eu não digo que deve ser 50-50. Pode ser 60% homens, 40% mulheres, ou o contrário. O que não pode ocorrer é as mulheres seem a exceção". Apesar de tudo, é uma pessoa otimista e reconhece os avanços: "Ainda há uma distância considerável para percorrer, mas já cruzamos um longo caminho desde o dia em que o Presidente Thomas Jefferson disse à sua secretária de Estado: 'A nomeação de uma mulher para um cargo público é uma inovação para a qual o público não está preparado. Nem eu estou'". Ruth Bader Ginsburg passa a rememorar aquilo que não pode ser esquecido: "No início da década de 1870, uma mulher chamada Virginia Minor disse: 'Eu sou uma pessoa com direito à igual proteção das leis. O direito mais fundamental de um cidadão é votar nas pessoas que irão representá-lo. Então, eu sou uma pessoa, uma cidadã, logo, eu tenho o direito de votar'. A resposta da Suprema Corte, nesse caso, foi: 'É claro que você é uma pessoa. Nós não duvidamos disso nem por um instante. Mas pessoas também são as crianças. E quem pensaria que crianças devem ter o direito de votar?'". No ACLU Women's Rights Project, que ela ajudou a lançar no início de 1972, e nos seminários da faculdade de Direito que realizou primeiro na Rutgers (Universidade Estadual de New Jersey), depois em Columbia (em Nova York), o trabalho se deu em três frentes: "avançando, simultaneamente, o entendimento do público sobre os temas, a mudança legislativa e a mudança no pensamento judicial". Ruth explica: "Crescendo em uma sociedade na qual virtualmente todas as posições de influência e poder são mantidas pelos homens, as mulheres acreditam que pertencem a um sexo inferior". Ela recorda um episódio bastante ilustrativo da condição das mulheres ao seu tempo: "O reitor (da Faculdade de Direito de Harvard) cumprimentou as mulheres da primeira turma com um convite para jantar em sua casa. Ele trouxe-nos para a sua sala de estar e pediu para cada uma de nós lhe dizer por que estávamos na Harvard Law School ocupando um assento que poderia ser ocupado por um homem". Ruth traz na obra uma espirituosa razão pela qual trocou o termo "sexo" por gênero. Diz ela: "Eu tinha uma ótima secretária na Faculdade de Direito da Universidade de Columbia que, ao digitar os meus escritos, disse: 'Eu estou digitando estes resumos e a palavra 'sexo' está aparecendo em tudo. Você não sabe que a primeira associação dessa palavra não é o que você quer que esses juízes pensem? Use 'gênero'. É um bom termo em livros de gramática. Vai afastar associações dispersivas'". Mas Ruth Bader Ginsburg também tem as suas cicatrizes. Primeiro, o preconceito. "Lembro-me uma vez em que estávamos voltando das férias de fim de semana. Dirigíamos pela Pensilvânia e havia o que hoje chamamos de 'cama e café da manhã', com uma placa do lado de fora dizendo: 'Não é permitido cães ou judeus'. Eu nunca tinha visto nada como aquilo antes. Senti-me chateada, pois eu estava muito orgulhosa de ter nascido e criada nos Estados Unidos". Depois, mais preconceito. "Ao tempo em que me formei na Faculdade de Direito da Columbia, em 1959, nenhum escritório de advocacia em toda a cidade de Nova York me empregaria. Eu descobri os motivos, e eles eram três: eu era judia, era mulher e era mãe. O primeiro fez levantar uma sobrancelha. O segundo, duas. O terceiro me tornou indubitavelmente inadmissível". As dores não param por aí. "Lembramos com tristeza que a Europa de Hitler, seu Reino do Holocausto, não era desprovido de lei. De fato, era um Reino cheio de leis, leis implantadas por pessoas altamente instruídas - professores, advogados e juízes - para facilitar a opressão, a escravidão e o assassinato em massa. Convocamo-nos para dizer 'nunca mais', não apenas ao regime mais injusto da história ocidental, mas também a um mundo em que bons homens e mulheres, no exterior e até nos EUA, testemunharam ou souberam dos crimes do Reino do Holocausto contra humanidade, e deixaram-os acontecer", diz ela. A juíza enfrentou mais de um câncer. Ela anotou: "Acho que o meu trabalho é o que me salvou de dois cânceres. Eu sabia que tinha um trabalho a fazer, um trabalho importante, então, não conseguia me debruçar sobre as dores. Eu só tinha que fazer o meu trabalho". E arrematou: "Não há nada como um câncer para fazer uma pessoa apreciar as alegrias de estar vivo. É como se uma especiaria rara e saborosa temperasse o meu trabalho e os meus dias. Cada coisa que faço vem com uma apreciação apurada de que eu sou capaz de fazê-lo". Mas Ruth também contou com seus anjos da guarda: "Comecei a duvidar se eu poderia gerir uma criança pequena e uma Faculdade de Direito. O meu sogro então me deu um conselho maravilhoso. Ele disse: 'Ruth, se você não quer ir para a Faculdade de Direito, você tem a melhor razão do mundo, e ninguém vai pensar menos de você. Mas se você realmente quer se tornar uma advogada, pare de sentir pena de si mesmo e simplesmente encontre uma maneira de fazê-lo'. Tenho seguido esse conselho em todas as dificuldades da minha vida". E quanto a sua indicação para a Suprema Corte? Ela recorda bem da escola: "Quando o presidente Clinton estava remoendo sua primeira indicação à Suprema Corte, o justice Antonin Scalia foi perguntado: 'Se você estivesse preso em uma ilha deserta com o seu novo colega de Corte, quem você prefereria: Larry Tribe ou Mario Cuomo?'. Scalia respondeu rápida e respeitosamente: 'Ruth Bader Ginsburg'. Dentro de poucos dias o presidente me escolheu". Para a juíza, "é claro que a segurança é importante, mas nossos direitos individuais devem ser preservados. Caso contrário, não seremos diferentes das forças contra as quais estamos lutando". Diz ainda: "Na longa luta por um mundo mais justo, as nossas memórias são os recursos mais poderosos". Por fim: "Em tempos ruins, numa sociedade opressiva, nossa humanidade deveria manter firme em nossas mentes a decência humana, de modo que nunca, na atividade desempenhada por líderes políticos, vamos implementar leis ou decretos do Executivo que neguem a humanidade, a dignidade humana, dos outros". Ruth Bader Ginsburg reconhece o fundamental papel da imprensa numa sociedade livre e democrática: "Eu acho que a imprensa tem desempenhado um papel tremendamente importante como vigilante sobre o que o governo está fazendo. E isso impede o governo de sair da linha, porque ele estaria no centro das atenções. Então, sim, há todos os tipos de excessos na imprensa também, mas acho que temos a melhor alternativa possível". Também fala sobre o escrutínio mais severo de leis que prejudicam um certo e determinado grupo de pessoas: "Há uma necessidade de olhar com especial suspeita para qualquer lei que prejudique um grupo de pessoas, especialmente quando essas pessoas não estão proporcionalmente representadas na tomada de decisão pelo Legislativo ou Executivo". A juíza lembra da sua referência primeira e mais influente fonte de inspiração: "Uma das minhas lembranças é a de ter crescido sentada no colo da minha mãe enquanto ela lia para mim. Eu aprendi a amar a leitura dessa forma". Sua mensagem derradeira é poderosa como é a sua trajetória: "Ao seguir os seus caminhos na vida, deixe rastros. Assim como os outros têm sido meios para você, ajude aqueles que seguirão em seu caminho. Faça a sua parte para ajudar a levar a sociedade ao lugar que você gostaria que resultasse na saúde e o bem-estar das gerações seguintes à sua". Boas fontes existem para fazer jorrar os elementos que dão sentido à vida. Também assim o é com as fontes de inspiração. As melhores delas alimentam os anjos bons da nossa natureza, incutindo em nós o desejo altivo de reparar as lágrimas do semelhante. Apenas as obras imortalizam. Ruth Bader Ginsburg é uma mulher repleta de obras. Por isso, colhe hoje os frutos do que plantou. Sua reputação e reconhecimento apenas mostram uma realidade incontornável: na jornada da realização dos direitos fundamentais, a história prefere os que fazem. Só pessoas assim se tornam imortais. Ruth Bader Ginsburg é uma dessas estrelas raras. Seguirá brilhando, hoje e sempre. Por isso, a obra editada por Helena Hunt, "Ruth Bader Ginsburg in her own words", vale cada página.
"Diversidade é ouvir. A Constituição assegura que nós ouçamos. É nossa escolha fazê-lo graciosamente"1. A exortação acima é do juiz da Corte Constitucional da África do Sul, Edwin Cameron, alguém cuja fascinante história de vida, feita de quedas e triunfos, inclui ser pobre, gay, soropositivo, cotista e filho de um presidiário. Cameron foi um advogado combativo que ajudou a desmantelar o apartheid, um regime que privilegiava pessoas como ele, brancas. Tendo estudado por cotas ofertadas a jovens empobrecidos num apartheid em colapso, Cameron fala sobre diversidade a partir das vivências que experimentou. Seu brilhantismo fez com que Nelson Mandela o indicasse para o Tribunal Superior de Recursos. Depois, foi apontado para a Corte Constitucional sul-africana, onde segue como um ativo juiz até hoje. Cameron lembra as palavras do seu Chief Justice, Mogoeng Mogoeng: "A nossa é uma democracia constitucional designada para garantir que os que não têm voz sejam ouvidos, e que mesmo aqueles que têm, caso não admitam os pontos de vista das minorias marginalizadas ou impotentes, pelo menos escutem"2. As passagens de juristas sul-africanos encontram reverberação dogmática entre nós. A democracia constitucional plural do Brasil (Preâmbulo e art. 1o, V da Constituição) requer que as minorias sejam pelo menos ouvidas. Uma Suprema Corte que fecha as suas portas para grupos marginalizados da comunidade fica com muito pouco, ou quase nada, para fazer com a missão que a Constituição lhe deu. É nesse contexto que apresento a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 527, ajuizada pela Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais e Intersexos - ABGLT, de relatoria do min. Roberto Barroso, no Supremo Tribunal Federal, indicando, como preceitos constitucionais fundamentais descumpridos, a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), a proibição ao tratamento degradante e/ou desumano (art. 5º, III) e o direito à saúde (art. 196). O fundamento da controvérsia é a aplicação dos arts. 3º, § §1º e 2º e 4º, parágrafo único, da Resolução Conjunta do Conselho Nacional de Políticas Criminais e Penitenciárias e do Conselho Nacional de Combate à Discriminação nº 1/20143 (Resolução Conjunta 1/2014)4, que diz o seguinte: "Art. 3º - Às travestis e aos gays privados de liberdade em unidades prisionais masculinas, considerando a sua segurança e especial vulnerabilidade, deverão ser oferecidos espaços de vivência específicos. § 1º - Os espaços para essa população não devem se destinar à aplicação de medida disciplinar ou de qualquer método coercitivo. § 2º - A transferência da pessoa presa para o espaço de vivência específico ficará condicionada à sua expressa manifestação de vontade. Art. 4º - As pessoas transexuais masculinas e femininas devem ser encaminhadas para as unidades prisionais femininas. Parágrafo único - Às mulheres transexuais deverá ser garantido tratamento isonômico ao das demais mulheres em privação de liberdade." A resolução tem sido aplicada divergentemente5. O pedido da ADPF 527 é: "interpretação conforme a Constituição dos referidos dispositivos para assentar que: 'I - As custodiadas transexuais do gênero feminino somente poderão cumprir pena em estabelecimento prisional compatível com o gênero feminino; e II - As custodiadas travestis, identificadas socialmente com o gênero feminino, poderão optar por cumprir pena em estabelecimento prisional do gênero feminino ou masculino'"6 (peça 11). Para a Advocacia-Geral da União, todavia, "a Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais não se destina à representação de uma classe ou categoria profissional ou econômica determinada" (p. 5 da manifestação, peça 33)7. O min. Roberto Barroso preferiu ouvir a ABGLT. Reconhecendo a legitimidade da associação8, Sua Excelência superou a jurisprudência do STF "para assentar como entidade de classe de âmbito nacional, aquelas que, tendo comprovado seu caráter nacional, reúnam membros unidos por vínculo de natureza econômica, profissional ou pela defesa de direitos de grupos minoritários e vulneráveis de que façam parte". Antes, na Questão de Ordem na ADI nº 1037 (min. Moreira Alves, julg. 3/6/98), o min. Marco Aurélio defendeu a legitimidade da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil e, para tal, sustentou: "houve, quando dos trabalhos da Assembléia Constituinte, uma opção visando-se justamente a elastecer os legitimados para a ação direta de inconstitucionalidade. O objetivo foi abrir a possibilidade, abandonando-se o nefasto monopólio do Ministério Público, da Procuradoria Geral da República, de ajuizamento da ação direta de inconstitucionalidade". Ficou vencido, mas não convencido. Optou por ouvir. Em 2012, veio na ementa da ADI nº 4029 (min. Luiz Fux, DJe 27/6/2012): "1. A democracia participativa delineada pela Carta de 1988 se baseia na generalização e profusão das vias de participação dos cidadãos nos provimentos estatais, por isso que é de se conjurar uma exegese demasiadamente restritiva do conceito de 'entidade de classe de âmbito nacional' previsto no art. 103, IX, da CRFB. 2. A participação da sociedade civil organizada nos processos de controle abstrato de constitucionalidade deve ser estimulada, como consectário de uma sociedade aberta dos intérpretes da Constituição, na percepção doutrinária de Peter Häberle, mercê de o incremento do rol dos legitimados à fiscalização abstrata das leis indicar esse novel sentimento constitucional." No caso, o min. Luiz Fux registrou: "a manifestação da sociedade civil organizada ganha papel de destaque na jurisdição constitucional. Como o Judiciário não é composto de membros eleitos pelo sufrágio popular, sua legitimidade tem supedâneo na possibilidade de influência de que são dotados todos aqueles diretamente interessados nas suas decisões. Essa a faceta da nova democracia no Estado brasileiro, a democracia participativa, que se baseia na generalização e profusão das vias de participação dos cidadãos nos provimentos estatais". Em 6/5/2015, na ADI nº 5291 (DJe 11/5/2015), o min. Marco Aurélio voltou à ribalta: "Acreditando que restringir o conceito de entidade de classe implica, ao reduzir a potencialidade de interação entre o Supremo e a sociedade civil, amesquinhar o caráter democrático da jurisdição constitucional, em desfavor da própria Carta de 1988, reconheço a legitimidade ativa do Instituto Nacional de Defesa do Consumidor - IDECON". De fato, a interpretação do inciso IX do art. 103 da Constituição Federal quanto ao conceito de "classe", reduz o acesso de grupos vulneráveis à justiça constitucional. Isso ficou claro na ADPF nº 54, que discutia a possibilidade de interrupção de gravidez. A ação não partiu de qualquer entidade ligada à causa da mulher, mas da Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde - CNTS. Outro efeito colateral grave se viu na ADPF nº 172, quando a voz que se elevou na discussão do garoto Sean Goldman não foi a de nenhum dos muitos grupos ligados a um ou outro lado da discussão, mas a do Partido Progressista9. Um partido político inteiramente dissociado da temática familiar teve de intervir. O reconhecimento da legitimidade da ABGLT para o ajuizamento da ADPF nº 527 se insere no excepcional quadro de hipervulnerabilidade das transexuais do gênero feminino e das travestis identificadas socialmente com o gênero feminino, encarceradas, no contexto de um país cuja Suprema Corte reconheceu o "estado de coisas inconstitucional" no sistema carcerário (ADPF nº 347 MC). Recentemente, o min. Ricardo Lewandowski liderou o posicionamento em defesa de mulheres presas com filhos a amamentar e admitiu a figura do habeas corpus coletivo: "o Supremo Tribunal Federal tem admitido, com crescente generosidade, os mais diversos institutos que logram lidar mais adequadamente com situações em que os direitos e interesses de determinadas coletividades estão sob risco de sofrer lesões graves. A título de exemplo, vem permitindo a ampla utilização da Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF)(...)"10. Prosseguiu Sua Excelência: "É que, na sociedade contemporânea, burocratizada e massificada, as lesões a direitos, cada vez mais, assumem um caráter coletivo, sendo conveniente, inclusive por razões de política judiciária, disponibilizar-se um remédio expedito e efetivo para a proteção dos segmentos por elas atingidos, usualmente desprovidos de mecanismos de defesa céleres e adequados"11. Preferiu ouvir. Então, arrematou: "Como o processo de formação das demandas é complexo, já que composto por diversas fases - nomear, culpar e pleitear, na ilustrativa lição da doutrina norte-americana (Cf. FELSTINER, W. L. F.; ABEL, R. L.; SARAT, A. The Emergence and Transformation of Disputes: Naming, Blaming, Claiming. Law & Society Review, v. 15, n. 3/4, 1980), é razoável supor que muitos direitos deixarão de ser pleiteados porque os grupos mais vulneráveis - dentre os quais estão os das pessoas presas - não saberão reconhecê-las nem tampouco vocalizá-los12". No caso tratado pela coluna hoje, a ADPF é mais eficaz do que o habeas corpus coletivo, pois culmina com a fixação de uma tese dotada de efeitos erga omnes cujo desrespeito resultará em notícia direta ao STF, que zelará pelo seu cumprimento. Logo, considerando as posições dos ministros Marco Aurélio, Roberto Barroso, Luiz Fux e Ricardo Lewandowski, a Constituição reclama que a Suprema Corte ouça a voz das minorias marginalizadas da comunidade. Por isso, a ABGLT e outras entidades de iguais matrizes devem gozar do reconhecimento da sua legitimidade para ajuizar ações do controle abstrato de constitucionalidade no STF. O Preâmbulo da Constituição funda um Estado Democrático destinado a assegurar o exercício da Justiça como um dos valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. Essa exortação eleva iniciativas como essa ao patamar de forças necessárias a uma prestação jurisdicional que seja, nas palavras do jurista sul-africano Albie Sachs, "acessível, amigável e calorosa"13. O inciso II do art. 1º da Constituição aponta como um dos fundamentos da República a cidadania; cidadania esta que, exercida à luz do art. 2º14, é vivida não apenas no Legislativo e no Executivo, mas, notadamente, no Judiciário. A posição do min. Roberto Barroso na ADPF nº 527 nada mais é do que a viabilização do exercício de cidadania judicial, expressão do direito de petição e da inafastabilidade da jurisdição. Segundo a alínea 'a' do inciso XXXIV do art. 5º, "são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder". O inciso XXXV, por sua vez, diz: "a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito". Trata-se de uma iniciativa de quem enxerga o Judiciário - e especialmente o STF - como um espaço público que realiza suas missões de modo inclusivo e participativo, potencializando o comando constitucional do devido processo legal (art. 5º, LIV: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal"). O STF tem por missão assegurar, em tempos de incertezas, e quando as circunstâncias são hostis, os direitos dos grupos marginalizados. É desse exercício de cura das feridas da nossa sociedade, à luz da Constituição, que se alimenta a legitimidade da Corte. O inciso IX do art. 103 da Constituição não pode ser compreendido isoladamente. A Constituição é inclusiva. O STF é acolhedor. A sociedade é aberta. São raciocínios que abrangem a própria viabilidade processual da ADPF que, na hipótese, é o único veículo do controle objetivo de constitucionalidade capaz de, a partir da interpretação judicial dissonante da Resolução Conjunta nº 1/2014, proceder a uma orientação para todo o sistema penitenciário nacional e a todas as varas de execuções penais, para que não haja tratamentos anti-isonômicos na matéria. Para acabar, vale honrar uma lembrança. Do lado de fora do plenário da Corte Constitucional da África do Sul, na cidade de Johanesburgo, há um painel com luzes de neon vermelhas e uma mensagem escrita em língua portuguesa: "A luta continua". A expressão mostra para as pessoas que entram e saem da Corte, local destinado a ouvir súplicas por justiça constitucional, que não há descanso na jornada dos direitos fundamentais. Não pode haver retrocesso. Encerrando-se um ciclo, outro se inicia. Foi assim com as mulheres. Também com o povo negro. Não seria diferente com a comunidade LGBTI. Na concretização dos direitos da diversidade, combinados com os inúmeros elementos do controle de constitucionalidade brasileiro, a luta continua. Como disse Nelson Mandela: "É longa a caminhada para a liberdade". Mesmo longa, ela começa com o primeiro passo. E esse passo já foi dado. A caminhada está em curso e não deve parar. Essa jornada, a partir do STF, há de ser inclusiva. Para isso, é fundamental ter em mente que, antes e acima de tudo, diversidade é ouvir. __________ 1 "Diversity is about listening. The Constitution ensures that we hear. It is our choice to do so joyfully", Edwin Cameron. Justice: A personal account. Cape Town: Tafelberg. 2014. p. 227. 2 "Ours is a constitutional democracy that is designated to ensure that the voiceless are heard, and that even those of us who would, given a choice, have preferred not to entertain the views of the marginalized or the powerless minorities, listen". Ibidem. 3 Publicada no DOU de 17/4/2014 (nº 74, Seção 1, pag. 1). 4 O Conselho Nacional de Combate à Discriminação - CNCD foi criado pelo Decreto nº 3.952/2001, pelo Ministério da Justiça, para a formulação e proposição de diretrizes de atuação governamental voltadas para o combate à discriminação e para a promoção e defesa dos direitos. Ao conselho compete participar na elaboração de critérios e parâmetros de ação governamental, assim como compete a revisão e monitoramento de ações, prioridades, prazos e metas do Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - PNLGBT. Compõe-se paritariamente por 30 membros do poder público e da sociedade civil. 5 O art. 64, I, da Lei de Execuções Penais (lei 7.210/84) dispõe que "ao Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária, no exercício de suas atividades, em âmbito federal ou estadual, incumbe propor diretrizes da política criminal quanto à prevenção do delito". O art. 1º do Decreto nº 7.388/2010, diz que o CNCD, tem por finalidade, respeitadas as demais instâncias decisórias e as normas de organização da administração federal, "formular e propor diretrizes de ação governamental, em âmbito nacional, voltadas para o combate à discriminação e para a promoção e defesa dos direitos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais - LGBT". 6 Na peça 25 dos autos da ADPF 527, o GADvS - Grupo de Advogados pela Diversidade Sexual e de Gênero Aliança Nacional LGBTI, requerente a Amicus Curiae, defende "alas exclusivas para si nos presídios, como forma de preservação de sua dignidade e autonomia corporal e sexual". 7 Um ponto trazido pela AGU foi o de que essa discussão não deveria ocorrer no âmbito do STF, pois "a arguente deixou de especificar os atos do Poder Público impugnados no instrumento de procuração que acompanha a petição inicial, o qual se limita a conceder, genericamente, poderes para o ajuizamento de arguição de descumprimento de preceito fundamental perante essa Suprema Corte" (p. 17). 8 A esse respeito, anotou o min. Celso de Mello: "no desempenho dos poderes processuais de que dispõe, assiste, ao Ministro-relator, competência plena para exercer, monocraticamente, o controle das ações, pedidos ou recursos dirigidos ao Supremo Tribunal Federal, legitimando-se, em conseqüência, os atos decisórios que, nessa condição, venha a praticar". ADPF 45, monocrática em 29/4/2004, DJ 4/5/2000. 9 ADPF 172 (min. Marco Aurélio, julg. 2/6/2009, DJe 10/6/2009): "1. O Partido Progressista - PP formalizou esta arguição de descumprimento de preceito fundamental considerada sentença proferida pelo Juízo da 16ª Vara Federal da Seção Judiciária do Rio de Janeiro no Processo nº 2009.51.01.018422-0, que tem, como autora, a União e, como réu, João Paulo Bagueira Leal Lins e Silva. Fê-lo ante a conclusão sobre o retorno do menor Sean Richard Goldman aos Estados Unidos, implicando a sentença a ordem de busca e apreensão caso, presente a tutela antecipada, o menor não venha a ser apresentado ao Consulado Americano na cidade do Rio de Janeiro, no dia de amanhã, até às 14h". 10 Página 155 do voto do min. Ricardo Lewandowski no HC 143.641. 11 Página 16 do voto do min. Ricardo Lewandowski no HC 143.641. 12 Anotou o min. Lewandowski: "Considero fundamental, ademais, que o Supremo Tribunal Federal assuma a responsabilidade que tem com relação aos mais de 100 milhões de processos em tramitação no Poder Judiciário, a cargo de pouco mais de 16 mil juízes, e às dificuldades estruturais de acesso à Justiça, passando a adotar e fortalecer remédios de natureza abrangente, sempre que os direitos em perigo disserem respeito às coletividades socialmente mais vulneráveis. Assim, contribuirá não apenas para atribuir maior isonomia às partes envolvidas nos litígios, mas também para permitir que lesões a direitos potenciais ou atuais sejam sanadas mais celeremente. Ademais, contribuirá decisivamente para descongestionar o enorme acervo de processos sob responsabilidade dos juízes brasileiros". Página 16 do voto no HC 143.641. 13 Sachs, Albie. Vida e direito: uma estranha alquimia. Tradução de Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva, 2016, p. 95. 14 "Art. 2º São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário".
Naquela tarde de quinta-feira, logo na primeira semana após o carnaval de 2016, a sessão do plenário do Supremo Tribunal Federal prometia. Os trabalhos do dia anterior haviam sido repletos de temas desafiadores, como o cabimento ou não de habeas corpus contra ato de ministro do STF1 e a reafirmação da possibilidade de execução provisória da pena a partir do acórdão de segundo grau2. A complexidade das questões constitucionais submetidas à Suprema Corte estava longe de se esvair. É no plenário do STF onde a jurisdição constitucional se consolida. Ao fundo, o painel em mármore criado por Athos Bulcão. Nele, o Brasão de Armas Nacionais e a imagem de Cristo Crucificado, feita por Alfredo Ceschiatti, com o madeiro confeccionado em pau-brasil. A presidência cabia ao ministro Ricardo Lewandowski. Dando continuidade à sessão do dia anterior, seguia na pauta, após oito sustentações orais, o recurso extraordinário 601.314, de relatoria do ministro Edson Fachin, com o tema nº 225 da repercussão geral, acerca do fornecimento de informações sobre movimentações financeiras ao Fisco sem autorização judicial, nos termos do art. 6º da LC 105/2001 e a aplicação retroativa da lei 10.174/2001 para apuração de créditos tributários referentes a exercícios anteriores ao de sua vigência. Finalizadas as sustentações orais, o ministro Luís Roberto Barroso pediu a palavra e, a partir da sua intervenção, um diálogo se estabeleceu: "O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Senhor Presidente, eu gostaria de fazer uma indagação à ilustre representante da Fazenda Nacional. Eu bem entendo que o contribuinte do imposto de renda, na sua declaração de ajuste anual, precisa prestar informações acerca das suas movimentações bancárias: seu saldo, pagamentos feitos a terceiros e suas aplicações. Portanto parte do argumento que Vossa Excelência constrói é de que a Receita já deveria ter acesso a essas informações, se elas tivessem sido honestamente prestadas. Eu gostaria de saber se essa lógica valeria também para Estados e municípios. A SENHORA LUCIANA MIRANDA MOREIRA (PROCURADORA DA FAZENDA NACIONAL) - Eminente Ministro, nós imaginamos que, em princípio, parece, numa primeira impressão, que os dados bancários têm mais importância quando se considera a renda. O que acontece? É importante verificar - e a receita não verifica, a receita verifica montantes globais - que há diversos contribuintes que, na verdade, movimentam dez vezes ou mais valores do que de fato declaram. Em princípio, em se tratando de movimentação bancária, nós entendemos que há uma correlação maior com a renda, portanto isso seria mais interessante para o fisco federal. Nem tenho notícia se os Estados ou Municípios se utilizam dessa prerrogativa. O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Mas o artigo 6º, de fato, autoriza. A SENHORA LUCIANA MIRANDA MOREIRA (PROCURADORA DA FAZENDA NACIONAL) - Sim, sim. É verdade. O SENHOR MINISTRO LUÍS ROBERTO BARROSO - Muito obrigado." A iniciativa do ministro pareceu uma quebra de protocolo. Na verdade, era uma postura condizente com quase meio século de previsão regimental. Mas como quem não é visto não é lembrado, o dispositivo, que raramente é usado, terminou esquecido por uma Casa que vive de suas regras internas. Pena que seja assim. No desafio de estudar uma Suprema Corte, são infinitas as ferramentas de análise, assim como os caminhos a serem percorridos. É possível se dedicar a historiografar a Corte a partir de suas decisões. Outra forma é se dedicar à biografia de cada julgador. Há quem prefira entender os regimentos internos ou as práticas de tradição. Não podemos esquecer, nesse estoque de possibilidades, a arquitetura dos prédios das Supremas Cortes. O desenho de cada edifício pode exercer uma profunda influência no bem-estar de quem o frequenta e revelar as relações de poder prevalecentes naquele ambiente. A ligação entre a arquitetura de prédios públicos e a história do país é umbilical e não deve ser negligenciada. Como sabemos, o desenho arquitetônico do interior do plenário do STF - assim como ocorre em todos os tribunais brasileiros - diverge de muitos outros desenhos que traçam a configuração de colegiados judiciais mundo afora. Na Suprema Corte dos Estados Unidos, na Corte Constitucional Federal alemã, na Suprema Corte de Israel, na Corte Constitucional da Coreia do Sul, na Corte Constitucional da África do Sul, na Suprema Corte do Quênia..., os julgadores se sentam de frente para aqueles que vindicam justiça à luz das normas presentes - formal ou materialmente - na Constituição. No Brasil, não. Os julgadores se voltam para eles mesmos, ficando fisicamente impelidos a debaterem apenas uns com os outros, forçados a darem as costas ou a ficarem de lado para os advogados e pessoas presentes. O formato de "U" fecha fisicamente o colegiado nele próprio. Apenas o presidente, sentado na base do "U", se posta diretamente ao público. Os demais integrantes, não. Apesar de essa disposição em nada se comunicar com a qualidade da prestação jurisdicional, ela pode exercer - ou representar - certos simbolismos enraizados no cotidiano da Corte, daí valer a pergunta: por quê é assim? Há muitas respostas possíveis. Uma das hipóteses é a de que esse desenho é fruto da compreensão histórica de que o julgamento é resultado de uma interação que ocorre no seio do colegiado de julgadores apenas, não envolvendo, nos debates, os patronos que representam aqueles que se dirigem ao Judiciário. Não sem razão não temos, com frequência, julgadores da Suprema Corte fazendo indagações aos patronos, com a finalidade de melhor esclarecer as complexas questões que ilustram leading cases formados na cúpula do sistema de Justiça. A novidade adotada pelo ministro Roberto Barroso no julgamento do RE 601.314 - e em outros episódios, também por outros ministros, mas, sempre, excepcionalmente - é uma novidade velha, haja vista que a base regimental que lhe dá guarida, como já referido, está em vigor há quase meio século. O regimento interno do STF (DJ 27/10/19803) dispõe no caput do art. 96: "Em cada julgamento a transcrição do áudio registrará o relatório, a discussão, os votos fundamentados, bem como 'as perguntas feitas aos advogados e suas respostas', e será juntada aos autos com o acórdão, depois de revista e rubricada". O § 1º do mesmo art. 96, por sua vez, diz: "Após a sessão de julgamento, a Secretaria das Sessões procederá à transcrição da discussão, dos votos orais, bem como das 'perguntas feitas aos advogados e suas respostas'". O derradeiro comando é o parágrafo único do art. 124: "Os advogados ocuparão a tribuna para formularem requerimento, produzirem sustentação oral, ou 'responderem às perguntas que lhes forem feitas pelos ministros'". O regimento de 1970 (DJ 4/9/1970) repetia os mesmos comandos nos seus art. 92 e parágrafo único do art. 129. Desde então, a possibilidade de os julgadores formularem aos advogados perguntas acerca do caso em julgamento encontra expressa previsão regimental4, apesar de sequer necessária ser essa previsão, uma vez que tal interação está embutida no devido processo legal5 e na ampla defesa6. Esclarecimentos acerca dos fatos, mesmo em se tratando de ações do controle abstrato de constitucionalidade; perguntas sobre a consistência dos fundamentos aportados em seus pedidos; reposicionamento da aderência de precedentes citados para ilustrar o leading case; eventuais pontos sobre consequências ou condições de cumprimento da decisão; dúvidas quanto a números apresentados no caso..., são muitas as possibilidades a serem exploradas numa relação mais dialógica e verdadeiramente cooperativa entre julgadores e patronos. Tanto que, logo após o ministro Barroso ter feito o citado questionamento, o presidente Ricardo Lewandowski deu início a outra interação. Eis trechos: "O SENHOR MINISTRO RICARDO LEWANDOWSKI (PRESIDENTE) - Doutora, eu tenho também uma questão. Permita-me. Acho que esta é uma prática salutar e muito utilizada em outras cortes supremas, especialmente na Suprema Corte dos Estados Unidos, que teve recentemente o desfalque lamentável de um grande juiz, Scalia. Eu queria perguntar a Vossa Excelência se, uma vez obtidos os dados para instruir um processo administrativo fiscal, se porventura esse processo administrativo fiscal redundar num processo criminal, ou seja, em uma sonegação fiscal passível de uma persecução criminal, esses dados poderão ser compartilhados com a autoridade responsável pela persecutio criminis? A SENHORA LUCIANA MIRANDA MOREIRA (PROCURADORA DA FAZENDA NACIONAL) - Na verdade, para os crimes contra a ordem tributária, faz-se necessário o esgotamento da via administrativa. Então, somente após o esgotamento da via administrativa, com o lançamento, faz-se a comunicação ao Ministério Público Federal." Não é somente a Suprema Corte dos Estados Unidos que constrói seus precedentes a partir de exaustivos debates envolvendo não apenas os julgadores, mas, também, os patronos. Na África do Sul, o advogado tem dez minutos para expor seus argumentos e fundamentos para a Corte Constitucional sabendo que, a partir daí, será cordialmente interrompido pelos julgadores sempre que dúvidas ou quaisquer colocações oportunas vierem à mente. A consciência de cada juiz constitucional é a de que todos estão ali para extrair dos advogados o máximo de interação possível, não apenas para ouvir os patronos proferirem, orgulhosos, os seus discursos. Em 1997, a Corte Constitucional da África do Sul julgava o célebre caso Soobramoney v Minister of Health (Kwazulu-Natal) (CCT32/97), um marco acerca das formas de concretização política e também judicial do direito à saúde. Questionamentos e respostas entre o advogado do Estado e o juiz da Corte, Albie Sachs, deram a impressão de que a discussão se tornava mais acirrada. Quem recorda o episódio é o próprio Albie. "Lembro-me vividamente de uma altercação entre mim e o advogado sobre esta questão. Fiz-lhe a seguinte pergunta: ele queria dizer que alguém que morasse nas montanhas poderia ir a juízo e dizer que queria água de torneira, mesmo que o dinheiro gasto para atender sua reivindicação particular pudesse ser usado para fornecer água a dez mil pessoas moradoras nas planícies abaixo?", relembra. O advogado do Estado respondeu de forma inapropriada. Ele disse que o argumento do juiz Albie Sachs não passava de um "argumento emocional" Albie não se intimidou e mostrou que, na arena dos debates jurídicos, é a força do melhor argumento que há de triunfar. "Não, propus, fazia parte da promoção do melhor uso de recursos escassos para efetivação de direitos sociais e econômicos. E perguntei eu, se somente os indivíduos que tiverem os cotovelos mais pontudos (e os melhores advogados) devem conseguir casa, água e eletricidade, e além disso, a Constituição deve ser interpretada de forma a conferir a cada juiz de cada tribunal o direito e o dever de decidir quem deve ter acesso prioritário a bens sociais escassos?", rememora Albie Sachs. O advogado replicou que sim, "se os indivíduos em questão estiverem abaixo do nível de existência compatível com a dignidade, seus direitos estavam sendo violados"7. Com sua resposta, a interação entre juiz e patrono voltou aos trilhos. Debates como esse passam a fazer a história da jurisdição constitucional da forma mais nobre possível, por meio daquilo que eleva a humanidade: a discussão cordial - mesmo que assertiva - sobre questões essenciais à comunidade, a partir de parâmetros objetivos como os comandos constitucionais e os precedentes da Corte. Um mundo que evolui em suas ações de impacto coletivo graças ao debate entre pessoas bem intencionadas e preparadas para articular ideias de forma livre e respeitosa é um mundo mais civilizado do que aquele que apela para a gritaria ruidosa, ou pior, para a opressão, pela força bruta, do mais fraco pelo mais forte. A literatura é repleta de exemplos. Obras como O Mercador de Veneza, de Shakespeare, inspiram a capacidade humana de triunfar usando argumentos. Quando duas ou mais pessoas duelam por ideias e ao final uma dessas ideias prevalece, foi a ideia que triunfou, não a pessoa. Somos mensageiros de nossas ideias e os fundamentos que utilizamos para justificar a nossa posição correspondem a uma contribuição que damos ao propósito maior de chegar a uma reposta próxima do que seja a verdade. Por isso, num debate justo e transparente, não há pessoas perdedoras. Há apenas uma livre circulação de proposições que, após serem intelectualmente testadas, à luz de comandos objetivos, sobreviverão ou perecerão. Esse cenário apresenta o estado da arte da mais pura humanidade, da civilização, do virtuoso legado que o Iluminismo foi capaz de cultivar e consolidar entre nós. Quem quer que tenha tido contato com O Mercador de Veneza jamais esquecerá o debate entre Shylock e Pórcia acerca do cumprimento - mesmo que pela ponta de uma faca - de um contrato livremente celebrado. Como esse debate teria sido possível se Shylock tivesse se colocado perante o Duque de Veneza e lido um discurso previamente escrito para depois se sentar na primeira fileira de assentos do Tribunal passando a ouvir a sucessão de leituras de votos? Teria havido a defesa de direitos perante julgadores num Palácio da Lei? Evidente que grandes oradores ocuparão seus lugares na história e sua mensagem será igualmente imortalizada no modelo adotado no Brasil. O mesmo se diga dos julgadores e julgadoras que prestam a jurisdição fiados na Constituição de forma independente e reafirmadora de direitos. Todavia, se temos sido capazes de construir, a partir da nossa forma de defesa oral, ícones oradores, não podemos dizer o mesmo quanto a exímios debatedores. Isso, pelo simples fato de não termos debates. Gerações e gerações de juristas têm sido testadas quanto a seus talentos enquanto oradores, não como debatedores. Não poderíamos exercitar ambas habilidades tão cultivadas nas civilizações mais avançadas que a semeadura das luzes foi capaz de ver florescer? A Constituição Federal tem sinalizações. A alínea "a" do inciso XXXIV do art. 5º dispõe que "são a todos assegurados, independentemente do pagamento de taxas: a) o direito de petição aos Poderes Públicos em defesa de direitos ou contra ilegalidade ou abuso de poder". Não é "discurso" sobre direitos. Não é "oração" sobre direitos. É "defesa" de direitos. Defesa! O inciso LV do art. 5º, por sua vez, diz: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". Questionamentos, esclarecimentos, posições, retificações, reafirmações..., são meios e recursos inerentes ao contraditório ou à ampla defesa de direitos? Parece que sim. Se promovermos um diálogo de fontes normativas e, à luz dos dispositivos acima transcritos da Constituição, buscarmos vitalizar o caput e o § 1º do art. 96, além do parágrafo único do art. 124, todos do Regimento Interno do STF, reconhecendo a teleologia do comando constitucional que assume o advogado como indispensável à administração da justiça (art. 133), teremos a base positiva a partir da qual a mudança de comportamento institucional pode se operar no Supremo Tribunal Federal. Na década de 1920, Charles Evans Hughes, que havia sido juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos - e para lá voltaria como Chief Justice - afirmou que a sustentação oral, no modelo estadunidense, ajuda os julgadores a "separar o joio do trigo" e que, na maioria dos casos, "a impressão que um juiz tem ao final de uma defesa oral conduz a sua posição final"8. É a opinião de quem viveu a verdade. Se uma boa apresentação é capaz de salvar um caso, o mesmo se diga quanto a afundar julgamentos aparentemente vitoriosos. Esse alerta é feito pela juíza Ruth Bader Ginsburg, também da Suprema Corte dos Estados Unidos. Ela diz: "eu tenho visto vários potenciais vencedores se tornarem perdedores, no todo ou em parte, devido aos esclarecimentos provocados na discussão oral"9. No Brasil, tomamos uma decisão inteiramente compatível com o povo que somos. Admitimos que qualquer advogado ou advogada tenha o direito de, em nome da parte que representa, fazer uso da tribuna. Isso não é comum mundo afora. Acontece que toda originalidade tem o seu preço. Um efeito colateral é a defesa oral ser feita por profissionais que não se prepararam adequadamente para tal missão, que negligenciaram o nervosismo de se estar ali ou que não contam com pleno conhecimento dos protocolos e cerimônias da Corte. O grave é que o fracasso do advogado na defesa oral significa o prejuízo das partes, ou seja, ele prejudica terceiros que a ele confiaram um mandato para em seu nome vindicar Justiça. Contudo, é graças a nossa originalidade que temos testemunhado momentos profundamente unificadores da diversidade que somos. Há sustentações feitas no Supremo Tribunal Federal que ninguém jamais verá em nenhum outro lugar do mundo. Em 2009, o STF deliberou acerca do caso Raposa Serra do Sol (PET 3388). No Brasil, nenhuma língua indígena é considerada oficial, apenas a língua do europeu, o Português. Mesmo assim, a advogada Joênia, moradora de Roraima, com brincos, colares e a face pintada com as cores do seu povo, deu início à sua fala na língua indígena. Depois, traduzindo, ela disse: "Nós estamos esperando que esse dia do julgamento bote um ponto final em toda a violência que os povos indígenas da Raposa Serra do Sol têm vivido pela disputa sobre suas terras. Que os nossos valores espirituais nossos valores culturais sejam considerados na aplicação dos nossos artigos da Constituição de 1988". Uma índia, de beca, exercendo a nobre função de advogada, com a face pintada, usando brincos e colares indígenas, vindicando direitos pertencentes a sua gente, elevando a sua voz contra o que entendia injusto, e iniciando a sua fala com uma oração na língua falada pelos Wapichana. A Corte não lhe demandou tempo de advocacia, carteira suplementar, o cumprimento de requisitos adicionais para atuar ali, nada. Em que outra Suprema Corte do mundo isso seria possível? Tem mais. Em fevereiro de 1694, Dandara, uma guerreira negra no Brasil colonial, esposa de Zumbi dos Palmares, se atirou de uma pedreira ao abismo, após ter sido presa. Ela jamais aceitaria retornar à condição de escrava. Perdeu a vida. Manteve a dignidade. Em fevereiro de 2017, em Fortaleza, a travesti Dandara dos Santos, cujo nome ela escolheu em homenagem à guerreira negra, foi barbaramente assassinada por um grupo de homens. A tortura foi gravada e divulgada nas redes e mídias sociais. Pouco mais de 90 dias após o assassinato de Dandara dos Santos, Gisele Alessandra Schmidt e Silva usou a tribuna do STF para levar suas razões como representante do amicus curiae Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275. Foi a primeira advogada transexual a usar essa tribuna. Tinha dois anos de formada. "Eu sou uma sobrevivente", disse, abrindo a sustentação. Esse outro Brasil, no qual a transexual Gisele usa a tribuna da Suprema Corte do seu país para levar uma mensagem fiada na Constituição e sai daquele plenário coberta de honra e orgulho, é um país que pode tudo. É o Brasil que devemos querer para nós. Um país unido em sua diversidade a partir do plenário do STF. Recentemente, foi o jovem Mateus Costa Ribeiro que usou nove minutos do tempo disponível para, da tribuna do plenário do Supremo Tribunal Federal, deixar a sua mensagem perante os julgadores. Tinha 18 anos de idade e era advogado há três meses. Portou-se como mais um brasileiro que honrou a tribuna e a cada um de nós. Em qual outro país do mundo um jovem de 18 anos, com três meses de prática, teria desempenhado tão grave missão perante o colegiado da Suprema Corte do país? Essas são demonstrações de que mesmo no modelo atual, no qual os julgadores falam e debatem apenas com eles mesmos, podemos inserir originalidade: aqui, qualquer um é bem-vindo a, atendendo a cerimônia da Corte, elevar o semelhante graças aos direitos que temos em nossas leis e na Constituição. Mesmo porque, devemos reconhecer, qualquer modelo contará com as suas fragilidades. No ano de 1948, Frederick B. Weiner escreveu o seguinte na Harvard Law Review: "foi-me dito por um juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos que quatro de cada cinco argumentos aos quais ele pode se referir por ter escutado não são sequer bons"10. Em 1973, o presidente da Suprema Corte, Warren E. Burger, disse que "de um terço a metade dos advogados que aparecem nos casos mais sensíveis não estão realmente qualificados para prestar uma representação absolutamente adequada"11. E o juiz William O. Douglas desabafou em suas memórias que 40% dos advogados que discutiram na Suprema Corte eram simplesmente "incompetentes"12. Ou seja, pessoas não apropriadamente qualificadas para se apresentarem perante a Suprema Corte existirão em qualquer que seja o modelo e o país. Portanto, não se trata exatamente de elevar o nível dos patronos, mas de potencializar o conceito presente de ampla defesa, de devido processo legal e, especialmente, de responsabilidade dos advogados que dirigem as suas vocações em favor do semelhante, à luz da Constituição, na Suprema Corte do país. É bem verdade que é mais cômodo dizer: "Pouco importa a sustentação oral. O caso já vem decidido antes". Para os céticos, contudo, vale a resposta de Antonin Scalia e Bryan Garner, quando explicam que esse "ceticismo se provou falso em todo e qualquer estudo comportamento judicial que conhecemos"13. Essa interação pode reclamar dos juízes e juízas do Supremo maior abertura para a reconsideração de seus votos. Está aí mais uma valia da mudança. O maior dinamismo da defesa oral imporá igual dinamismo no cotejo do que está sendo esclarecido da tribuna e o que se trouxe num voto. Faz parte. O Chief Justice John Roberts, dos Estados Unidos, certa feita anotou algo que merece a nossa atenção. Disse ele: "Minha principal conclusão depois de um ano estando do outro lado do balcão é que o debate oral é terrivelmente importante"14. Acerca desse modelo mais cooperativo, tem-se Ruth Bader Ginsburg a dizer: "o melhor argumento, na sua melhor parte, é a troca de ideias sobre o caso, um diálogo ou discussão entre o tribunal e o advogado"15. Entre nós, esse diálogo é o próprio dever de cooperação previsto no Código de Processo Civil, no art. 6º, que diz: "Todos os sujeitos do processo devem cooperar entre si para que se obtenha, em tempo razoável, decisão de mérito justa e efetiva". É claro que a mudança pode esbarrar no medo do novo. A história da humanidade tem sido assim, feita entre raízes e cometas, ambos necessários, mas com propósitos distintos. Caberá sempre ao presidente do STF ser a passagem segura que opera com sabedoria a correlação de forças entre a tradição e a modernidade. Recorrendo novamente ao desenho arquitetônico das Supremas Cortes, em Israel, há dois muros opostos na entrada do edifício-sede do Tribunal. O primeiro foi erguido com as rochas de Jerusalém. O outro, é branco, liso e macio. Ficam frente à frente e representam o diálogo permanente entre tradição e modernidade. Um se alimenta do outro e, canalizando reciprocamente essa extraordinária energia, há a escadaria de três lances, cada um com dez degraus. A escadaria liga a base ao topo do prédio. Ela é responsável pela interconexão entre o tradicional e o moderno, sem destruir nem reduzir o significado de nenhum deles. Deve haver na Suprema Corte líderes capazes de operarem essa correlação de forças, funcionando como uma escadaria que, partindo de baixo, toca o ápice das potencialidades transformadoras do Tribunal, mantendo harmônicas as distinções inerentes à nossa pluralidade e equilibrando o tradicional com o moderno. O prédio do Supremo Tribunal Federal também tem as suas mensagens encriptadas no desenho arquitetônico, mas dotadas de chaves-mestras entregues a cada cidadão ou cidadã constitucional do país. Sediado na capital Federal, Brasília, desde 21 de abril de 1960, seu edifício-sede fica na Praça dos Três Poderes, numa obra do arquiteto Oscar Niemeyer, com projeto original de Lúcio Costa. Diante do prédio fica a estátua que personifica a Justiça, do escultor Alfredo Ceschiatti, em granito de Petrópolis e pedra monolítica. Há, nas colunas da fachada externa, linhas retas e curvas. As retas podem ser vistas como a tradição, o que é clássico. Já as curvas, representam o moderno, a possibilidade que toda instituição multissecular tem de mudar. As duas linhas, retas e curvas, dão conformação e imprimem personalidade ao edifício. São, ao mesmo tempo, a sua base de sustentação. Sem elas, a Corte pode vir a ruir. Uma dinâmica mais dialógica no plenário do STF será capaz de regatar o valor e a finalidade de dispositivos regimentais que estão em vigor há quase meio século, sem intensa utilização até aqui. Seria a conciliação entre as linhas retas e as linhas curvas. Tradição e modernidade, juntas, atuando em favor da qualidade dos debates que traçam o destino nacional por meio do exercício da jurisdição constitucional. Não nos esqueçamos que, se oradores fazem história com os seus discursos, debatedores também o fazem. Precisam apenas de oportunidades. Estreando a sua bem-sucedida carreira de advogada, Ruth Bader Ginsburg, defendendo a igualdade entre os sexos perante as leis dos Estados Unidos, ocupava a tribuna numa Corte inteiramente masculina, quando um dos julgadores interrompeu o seu argumento e disse: "A palavra 'mulher' não aparece uma única vez sequer na Constituição dos Estados Unidos". Disse isso para silenciá-la. Em vão. Ruth respondeu, de improviso: "Nem a palavra "liberdade", Excelência". Ganhou o caso. Temos mais processos tramitando no Supremo Tribunal Federal do que boa parte das Cortes do mundo. Temos mais juristas do que a maioria das nações, também. Há uma juventude repleta de talento forjada em moot courts que têm se espalhado em todo o país. Jovens daqui passam a ganhar destaque em competições internacionais de debates jurídicos e simulações de julgamentos16 que tomam como base o formato de Cortes internacionais onde o debate com patronos é a regra, não a exceção. Esses jovens estão prontos para assumirem mais à frente a grave responsabilidade de consolidarem a mudança para as futuras gerações. Se combinarmos essa realidade com o fato de o Supremo Tribunal Federal ser um dos mais inclusivos do mundo, permitindo que qualquer um de nós, munido de uma carteira da OAB, vindique Justiça perante os julgadores daquela Casa, não é exagero afirmar que, quanto à metodologia de julgamento de Supremas Cortes, podemos ser a inspiração do constitucionalismo global contemporâneo. Ninguém é capaz de imaginar onde uma geração talentosa de juristas do Brasil será capaz de chegar se ela for estimulada a, além de discursar, debater, inspirada pela realização de Justiça constitucional que ela vê acontecer no plenário do Supremo Tribunal Federal. Isso vale para patronos e julgadores. Por isso, e por muito mais, vale mudar. Tudo com base no Regimento Interno do STF e em proveito da qualidade da deliberação judicial colegiada. É apenas uma questão de postura institucional. Para isso, basta que o Supremo dê o primeiro passo. E não pare mais. __________ 1 HC 105.959 (rel. p/ac min. Edson Fachin, DJe 15/6/2016): "(...) 1. Não cabe pedido de habeas corpus originário para o Tribunal Pleno contra ato de ministro ou outro órgão fracionário da Corte.(...)". 2 HC 126.292 (min. Teori Zavascki, Pleno, DJe 17/5/2016): "(...) 1. A execução provisória de acórdão penal condenatório proferido em grau de apelação, ainda que sujeito a recurso especial ou extraordinário, não compromete o princípio constitucional da presunção de inocência afirmado pelo artigo 5º, inciso LVII da Constituição Federal. 2. Habeas corpus denegado". 3 O primeiro Regimento Interno do STF foi organizado em virtude dos arts. 340 e 364 do decreto 848, de 11 de Outubro de 1890 e do art. 8º do decreto 1, de 26 de Fevereiro de 1891. 4 No Regimento Interno de 1940 (DJ 28/2/1940), o art. 58 dizia: "Os advogados que assistirem às sessões, terão assento em lugar separado do público. Quanto, porém, tiverem de requerer ou fazer sustentação oral, ocupação a tribuna, ou outro lugar, no recinto, designado pelo presidente". Não dispunha sobre "perguntas". O art. 68 dizia: "O relatório, discussão e votos, em cada julgamento, serão taquigrafados e redigidos convenientemente, juntando-se aos autos respectivos as notas taquigráficas, que serão rubricadas pelos respectivos ministros, reportando-se a elas o relator, no acórdão. (Decreto 19.656, de 3 de fevereiro de 1931, art. 6º)". O Regimento de 1909 (24/5/1909, de relatoria de Epitácio Pessôa), dispunha, no art. 34: "Os advogados que assistirem ás sessões terão assento em lugar separado do publico e da mesa dos juízes; quando, porém, tiverem de exercer qualquer acto do seu ministerio perante o Tribunal, occuparão lugar no próprio recinto reservado aos ministros". Sem previsão expressa para perguntas. Eis o art. 55: "A sentença será escripta pelo relator, ou por outrem em papel por ele rubricado. Si o relator fôr vencido, o presidente designará para redigir a sentença um dos juízes, cujo voto tenha sido vencedor. O accordam conterá as conclusões das partes, as requisições finaes do procurador geral, os fundamentos de facto e de direito e as decisões; será assignado pelo presidente e pelo relator, com a declaração da qualidade de cada um, e depois pelos demais juízes, sendo licito a qualquer deles declarar os motivos de seu voto em seguida á assinatura". 5 Art. 5º, LIV, da CF: "ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal". 6 Art. 5º, LV, da CF: "aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes". 7 Sachs, Albie. Vida e Direito: uma estranha alquimia. Tradução de Saul Tourinho Leal. São Paulo: Saraiva/IDP, p. 168. 8 Charles Evans Hughes, The Supreme Court of the United States, 61, 63 (1928). A transcrição original: "Writing in the 1920s, Chief Justice Charles Evans Hughes commented that oral argument helps the justices 'separate the wheat from the chaff' and that, in most cases, 'the impression that a judge has at the close of a full oral argument accords with the conviction which controls his final vote'". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business". 9 Ruth Bader Ginsburg, "Remarks on Appelate Advocacy", 50 S.C. L. Rev. 567, 570 (1999). A transcrição original: "Justice Ruth Bader Ginsburg notes, 'I have seen few victories snatched at oral argument from a total defeat the judges had anticipated on the basis of the briefs'. But I have seen several potential winners become losers in whole or in part because of clarification elicited at oral argument". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business". 10 Frederick Bernays Wiener, "Oral Advocacy,", 62 Harv. L. Rev. 56, 56 (1948). No original: "In 1948, Frederick B. Weiner wrote in the Harvard Law Review that '[w]ithin the [past] year I have been told by a justice of the Supreme Court of the United States that four out of every five arguments to which he must listen are 'nor good'". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business". 11 Warren E. Burger, "The Special Skills of Advocacy," 42 Fordham L. Rev. 227, 234 (1973). No original: "In 1973, Chief Justice Warren E. Burger expressed the opinion that 'from one third to one-half of the lawyers who appear in the serious cases are not really qualified to render fully adequate representation'". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business". 12 William O. Douglas, The Court Years, 1939-1975, at 183 (1980). No original: "And Justice William O. Douglas complained in his memoirs that 40 percent of the lawyers who argued in the Supreme Court were 'incompetente'". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business". 13 Antonin Scalia & Bryan A. Garner, Making Your Case: The Art of Persuading Judges 139 (2008). No original: "Justice Antonin Scalia and Bryan Garner explain, however, '[t]his skepticism has proved false in every study of judicial behavior we know'". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business". 14 No original: "Chief Justice Roberts 'My main conclusion after a year of being on the other side of the bench is that oral argument is terribly, terribly important'". Ela também consta em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business". p. 3. 15 Ginsburg, "Remarks on Appelate Advocacy", 50 S.C. L. Rev. At 569. No original: "As Justice Ginsburg has written, '[o]ral argument, at its best, is an exchange of ideas about the case, a dialogue or discussion between court and counsel'". Em "Supreme Court and Appelate Advocacy. Mastering oral Argument", de David C. Frederick, publicado em 2003 pela West, "A Thomson Reuters business". 16 Escrevi a respeito.
Aquela era a criança mais linda, inteligente e afetuosa que eu havia conhecido. Ela foi crescendo até que um dia, antes que a sua adolescência chegasse, eu a reencontrei: "O que o senhor faz?". "Sou um constitucionalista". "E o que um constitucionalista faz?". "Estuda e aplica a Constituição. Começa pelo preâmbulo, que fala numa sociedade fraterna, até chegar no artigo 6º, que pede moradia, saúde, educação, alimentação, transporte..., para o povo", eu respondia, quando ele me interrompeu. "Mas o senhor sabe que o comunismo fracassou em todos os países, não sabe?" Segundo a Constituição, somos um "Estado Democrático de Direito" (art. 1º), com uma ordem econômica baseada nos princípios da propriedade privada e da livre concorrência (art. 170, II e IV), sendo assegurado o lucro (art. 7º, XI) e a liberdade de iniciativa econômica para todos os particulares (parágrafo único do art. 170), independentemente de autorização dos órgãos públicos. Como assim, comunismo? A verdade é que ali não havia mais um diálogo. Aquilo era uma revelação. O cérebro daquele garoto havia sido lavado para que ele se imaginasse um "conservador" brasileiro. Será que nada entre nós pode ser coerente? Onde está o fio mínimo de integridade que inspira, causa orgulho e exerce autoridade sobre outras pessoas? Um almoço de família no Brasil se transformou num estudo antropológico. A vizinha infeliz, dopada por Rivotril, que já tentou se matar ao descobrir as infidelidades conjugais e desejou que o marido violento morresse, defende a "família brasileira". O avô agradece pelo fim da "sem-vergonhice desses homossexuais". Então, toma o remédio trazido pelo filho amado, um gay que há dez anos mora com o seu companheiro. "As crianças cantarão o Hino na escola!", festeja a tia que não sabe cantar o Hino, nem tem qualquer domínio da Língua Portuguesa, apesar dos diplomas que ostenta. Aquele primo que se sustenta com "boquinhas" no Estado justifica "um governo liberal, para eu seguir empreendendo". A mulher que apanhou uma menina pobre num vilarejo e a colocou para trabalhar 15 horas por dia em sua casa, na cidade grande, a fez abortar do seu filho adolescente, no tenebroso quartinho dos fundos. "Estamos livres daquelas abortistas!", celebra. A prima, uma abonada pensionista, diz que o beneficiário do programa Bolsa Família é vagabundo. "Adoram receber sem trabalhar". O militar de baixa patente faz a sua cruzada contra o "petismo sindical", mas não pisa no quartel, pendurado na direção de alguma entidade classista. O último é o tio, que acabou de encaminhar mais uma notícia falsa no grupo da família. "Tem que se informar para não ser burro como eles". É como se nós tivéssemos nos livrado do passado, mas apenas para vê-lo do avesso. E esse avesso consegue ser ainda mais feio do que antes. Um grita "fascista" para ouvir o outro retrucar "comunista". Lamentável. E cansativo. "Sou conservador. Sou mesmo!", justificam agora. Quem disse que o conservadorismo é sinônimo de egoísmo? A Igreja é conservadora e vive de suas ações sociais. Quando Aída Curi foi barbaramente assassinada, em 1958, e a sociedade machista culpou a vítima e aplaudiu os assassinos num baile, o cardeal Dom Hélder Câmara liderou o caminho para a punição dos acusados. Comportou-se como hoje fariam os muitos coletivos feministas em busca da punição de playboys feminicidas. O que era o Cardeal? Um comunista? E Irineu Evangelista de Souza, o Barão de Mauá, o primeiro grande capitalista brasileiro e que defendia o fim da escravidão? Isso o torna um comunista? Jamais se viu na história das democracias capitalistas liberais tanta intervenção econômica como com Franklin Delano Roosevelt, com o seu New Deal. Isso onde? Nos Estados Unidos. As políticas públicas para a economia são muitas e dependem de inúmeras circunstâncias, não podendo serem vistas como uma religião ou uma ideologia. Lembremos da vergonha que foi, no Reino Unido, Margaret Thatcher ouvir de seus generais que a invasão das Ilhas Malvinas pela Argentina foi causada pelos seus cortes de gastos na área da segurança. "Não podemos pensar apenas em dinheiro nessas circunstâncias", disse a primeira-ministra, ao autorizar o embarque das tropas para as Malvinas. Consta da sua biografia. A mulher que nesse momento torrou uma fortuna de dinheiro público em tempos de crise econômica agiu como uma populista ou uma líder mundial? Sabem como Thatcher se referia à Junta Militar que governava a Argentina? "Governo fascista". E deu o seu veredito: "Eu não vou negociar com criminosos, com bandidos". Thatcher era uma comunista por ter desmoralizado a moribunda ditadura militar argentina? E Winston Churchill? Ele olhou com desprezo para aqueles homens de farda que ao contrário de serem militares honrados, tornaram-se milicianos nazistas, bajuladores interesseiros de um líder populista radical. Churchill sapateou na cabeça da horda de assassinos de alta patente. Era ele um comunista? Conservadores republicanos defendiam a igualdade entre brancos e negros nos Estados Unidos à luz da ética religiosa de que todos somos igualmente filhos de Deus. E quanto ao líder sindical Ronald Reagan? Isso mesmo, o homem que presidiu sucessivas vezes o Screen Actors Guild, o Sindicato dos Atores nos Estados Unidos. Todas essas são figuras conservadoras que se notabilizaram por atos de bravura e grandeza. Ser conservador significa entender que o processo de mudança da sociedade - ou das suas instituições - deve ser lento mesmo. Apesar de não ser a minha forma de ver a vida, reconheço que há múltiplas razões para se pensar de forma conservadora. Exatamente por isso, é de torcer o estômago ver pessoas que são simplesmente ruins se declararem, agora, "conservadores". O jovem garoto que sugeriu que eu era comunista, pelo fato de eu defender um documento que fala em saúde e educação, é o futuro do Brasil. Talvez pela primeira vez passaremos a tocha do amanhã para uma geração mais interessada no passado do que no futuro. E isso não é bom. A bisavó de muitos de nós não podia trabalhar. Ela questionou isso. Como resultado, nossas avós puderam fazer um curso e ter uma profissão. Mas elas também não quiseram conservar isso. O resultado foi que as nossas mães se tornaram mulheres com múltiplas profissões, contudo, em escolas segregadas pelo gênero. A geração delas quis mudança. As nossas irmãs não estudaram mais em escolas segregadas, mas inclusivas, com homens e mulheres juntos, como há de ser na sociedade que queremos construir para nós. Todas essas mudanças foram frutos da coragem de mudar, não de conservar. Uma geração não poderia sequer imaginar se divorciar, pois se tornaria uma pária. A geração seguinte, insatisfeita, conseguiu o direito de se divorciar, apesar de as condições serem desafiadoras. A geração atual pode se divorciar sabendo que há uma vasta legislação protegendo a mulher, o marido, os filhos, tratando do patrimônio, de pensões, da guarda das crianças e até dos cachorros. O divórcio deixou de ser uma condenação e se tornou o exercício responsável de uma liberdade assegurado pela Constituição (art. 226, § 6º). Antes, as pessoas passavam uma hora, todos os dias, jogando água na calçada. Eu perguntei para os meus alunos o que eles achavam disso. "E o meio ambiente?". As gerações foram promovendo novos pactos para a conservação do planeta. Essa renovação intergeracional é o motor da civilização. O resultado está na redação do art. 225 da Constituição, que diz: "Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações". Vão chamar esse dispositivo de comunista? Até mesmo o Hino Nacional, que pertence a todos nós (art. 13, § 1º da Constituição), entrou nessa guerra infeliz, associado a obscurantismos ufanistas. Mas o Hino é puro progressismo. Ele avisa que o sol da liberdade brilha no céu e nos exorta a conquistarmos o penhor da igualdade. Reconhece que somos um sonho intenso de amor e de esperança. Diz que temos campos, flores, vida e amores. E pede paz, convidando-nos a nos erguemos a partir da justiça. Será que o Hino Nacional é comunista? A Constituição é o elemento que une o Brasil. Precisamos perseverar nessa união. Até porque, com os conservadores, podemos ter mais ordem do que progresso. Com os progressistas, mais progresso do que ordem. Mas, juntos, temos os dois: Ordem e Progresso. É essa a nossa aspiração fundamental. Acontece que se hoje temos crianças sendo ensinadas em casa que entender que o Estado deve ter preocupação com o próximo é coisa de comunista, que tipo de transformação ela será capaz de promover no futuro? Grandes nações têm sabido conviver com conservadores e progressistas. Inúmeras figuras conservadoras fizeram a diferença e abriram um belo capítulo no livro da história. Mas todas elas traziam consigo integridade, coerência e amor ao próximo. No Brasil atual há, nas mais elevadas esferas de poder, pessoas que têm exibido um comportamento feio e contrário às regras e princípios constitucionais. É como se estivéssemos de fato descendo no poço, mas o poço parece não ter fundo, nem fim. Há preconceito, num país que abomina qualquer tipo de preconceito (art. 3º, IV, da Constituição). Enaltecem a beligerância mesmo sabendo que a Constituição conclama à paz e à solução pacífica dos conflitos (art. 4º, VI e VII). Combatem a intelectualidade, questionam os resultados da ciência..., e ao final dizem: "É porque eu sou um conservador". Nada disso. Não são conservadores. São pessoas ruins e atrasadas, apenas. Aprendamos a diferença e não nos calemos mais. Não devemos ser obrigados a escolher lados nesse poço sem fundo. A Constituição brasileira começa com "nós" e segue povoada pelo "povo brasileiro". É o documento da reconciliação. Esse é o caminho.
segunda-feira, 1 de abril de 2019

O vídeo da revanche

Uma foto da ex-presidente Dilma Rousseff, tirada em 1970, quando ela tinha 22 anos, define um século de história política no Brasil. Na foto, a ex-presidente prestava depoimento na auditoria militar do Rio de Janeiro. Era uma jovem de família rica, que dormia em conforto e compunha um grupo que acreditava, naquele tempo, na combinação entre armas e um governo autoritário. Diante de si estavam homens fardados, militares, que integravam um regime que comungava da mesma crença: armas em punho e autoritarismo nas ruas. Com armas e autoritarismo, quem aterrorizava fora do poder constituído era terrorista. Já quem aterrorizava dentro desse poder era torturador. Ambos admitiam, como parte do jogo, matar pessoas para realizar a ambição do poder. Numa ponta da corda havia guerrilheiros reticentes quanto à democracia. Na outra, uma parcela de militares que traziam em suas biografias o antecedente de um golpe contra a nossa democracia. Esse duelo que marcou o século passado não tem absolutamente nada a ver com estado liberal versus estado social. Nem com direita ou esquerda. Muito menos com conservadorismo ou progressismo. Tem a ver com autoritarismo e nada mais. Tanto que, a Constituição de 1988, conhecendo esse conflito, estipulou, no inciso XLIII do art. 5º, que a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia tanto a tortura quanto o terrorismo. Que desgraça de destino é o aparentemente reservado a nós, esse de termos de passar o resto de nossas vidas escolhendo entre o trauma do terrorismo ou o da tortura para, a partir dele, escolhermos os nossos líderes políticos. Será que na história que nos envolve não há nada mais a ser considerado? Resumimos tudo o que somos a isso? A jovem guerrilheira Dilma Rousseff virou a primeira mulher eleita presidente do Brasil. Eleita e reeleita. Sofreu um processo de impeachment e perdeu as eleições para o senado Federal pelo Estado de Minas Gerais. Enquanto presidente, não deu qualquer sinal de autoritarismo institucional que colocasse em risco nossas liberdades fundamentais, nem governou com armas em punho. Entrou e saiu democraticamente, apesar do desarranjo financeiro que boa parte das suas decisões nos legou. Já em 2018, foi a vez de outros personagens aparecerem na ribalta do poder. Dessa vez, sem tanques. Veio das urnas a legitimidade que cobriu dois militares reformados como presidente e vice-presidente da República, Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, respectivamente. Estão esses homens libertos do século XX ou presos a ele? A foto da ex-presidente Dilma Roussef diante dos militares da ditadura, imortaliza os extremos que seguem se digladiando em prejuízo de todos aqueles que não se sentem representados por qualquer dos dois polos. O grande problema dos extremos da corda é que, sempre que ela se parte, o rompimento se dá no meio, onde nós estamos. As duas pontas seguem intactas, prontas para serem amarradas mais uma vez uma a outra para seguirem sendo esticadas até quebrarem novamente. O meio se partirá. Esses dois grupos se retroalimentam um do outro, numa relação de um quase parasitismo alternado. Sem um não há o outro. E vice e versa. É uma relação tóxica, ruim, que divide o país, quebra as famílias, separa os amigos, transforma as redes sociais numa carnificina e nos impede de concentrarmos esforços no que realmente interessa. Força-nos a escolher lados, como se estivéssemos numa guerra que não tem fim. Essa guerra de extremos nos impede de celebrar as nossas conquistas granjeadas desde o fim da ditadura. O engraçado é que a maior delas é o nosso pluralismo político. A Argentina ficou, de 1983 a 2007, revezando o poder entre apenas dois partidos, a União Cívica Radical e o Partido Justicialista. De 1958 a 2002, também somente dois partidos se alternaram na Colômbia. Em Ruanda, Paul Kagame, um tutsi, assumiu o poder em 2000, ajudando a pacificar o país após o genocídio entre hutus e tutsis. Em agosto de 2017, Kagame foi reeleito para o terceiro mandato, com mais de 98% dos votos. São quase 20 anos sendo governado pelo mesmo homem. Na África do Sul, 1990 foi o ano da libertação de Nelson Mandela, alguém que largou as armas, cumpriu quase três décadas de prisão, e saiu da cadeia para abrir caminho, como um estadista, para a reconciliação. Desde o fim do apartheid, apenas um partido governou o país. Essa concentração de poder na mão de um ou dois grupos não aconteceu entre nós. O nosso pluralismo político é radical. Se contarmos a partir de Tancredo Neves (PSD), tivemos: José Sarney (PMDB), Fernando Collor de Mello (PRN), Itamar Franco (PMDB), Fernando Henrique Cardoso (PSDB), Luís Inácio Lula da Silva (PT), Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (PMDB) e Jair Bolsonaro (PSL). A presidência da República percorreu, em pouco mais de 30 anos, seis partidos, sendo que, em partidos como o PMDB, o grupo de José Sarney não tinha nada a ver com o de Itamar Franco que, por sua vez, não era o mesmo de Michel Temer. A linha presidencial começa com um opositor da ditadura - Tancredo Neves - e termina com um adorador dessa mesma ditadura - Jair Bolsonaro. Percorremos 180 graus. Essa intensa liberdade na escolha dos nossos presidentes, aliados à forma como conduzimos a saída da ditadura militar, nos torna um laboratório. A África do Sul, por exemplo, o país mais estudado quanto à experiência com a sua Comissão da Verdade e Reconciliação, presidida pelo Nobel da Paz, o arcebispo Desmond Tutu, conta hoje com uma juventude desiludida com os caminhos do país, especialmente pela falta de transformação material em suas vidas após o fim do apartheid. O Brasil não conseguiu construir grandes simbolismos com a sua Comissão da Verdade, mas avançou extraordinariamente em termos materiais na compensação de suas vítimas. Em 2002, foi instalada a Comissão de Anistia, para examinar requerimentos de anistia política, implementar o Memorial de Anistia Política do Brasil e promover ações de reparação e memória sobre o período da ditadura militar. Se fizemos pouco em termos de memória, não se é possível dizer o mesmo quanto às compensações financeiras. Dados mostram que, desde que a comissão foi criada, já foram pagos R$ 10 bilhões em indenizações. Outros R$ 14 bilhões, já aprovados, aguardam decisão judicial para serem depositados. Foram recebidos 78 mil requerimentos. Às vezes, o pedido de perdão vem num envelope com um cheque. Israel, com o presidente Chaim Weizman, não falou em perdão, mas estipulou uma indenização para a Alemanha: US$ 1 bilhão, mais US$ 500 milhões para organizações judaicas de suporte às vítimas do Holocausto em outros países. O acordo, assinado em setembro de 1952, entregou US$ 820 milhões, em dinheiro vivo e mercadorias, para Israel, com o pagamento parcelado até 1965. Tendo pluralismo político, uma dimensão material robusta de reconhecimento dos males da ditadura e se, nesse processo de reconciliação, incluímos a vitória, numa eleição livre e democrática, de dois militares reformados para os mais importantes assentos da República, deveríamos estar prontos para seguir adiante, certo? Errado. Seguir adiante é tudo o que essas pessoas não admitem. Virar a página nos levaria a seguir lendo o livro da história até terminá-lo. Estaríamos prontos para lermos tantos outros livros quanto achássemos interessantes. Já pensou quantas experiências transformadoras teríamos? Ontem, dia 31 de março, a secretaria de comunicação do Palácio do Planalto divulgou um vídeo revivendo o século XX, arrastando a todos nós para um passado que precisa ser superado. É como se fosse uma maldição. O vídeo, de poucos minutos, preparado para ser explodido nas redes sociais como rastro de gasolina, sugere que devemos ser gratos ao Exército por ele ter roubado a nossa democracia por mais de duas décadas. Devemos agradecer. Quanta honra! O senhor que narra o texto, tendo a bandeira do Brasil de fundo, diz: "Era, sim, um tempo de medo e ameaças". Ora! Falava ele dos terroristas que agiam contra o poder ou dos torturadores que atuavam dentro dele? O tempo era claramente de medo e ameaças, mas são esses dois protagonistas do duelo que causavam esse clima hostil. Então prossegue: "Prendiam e matavam seus próprios compatriotas. Havia, sim, muito medo no ar". Falava de quem? Terroristas guerrilheiros ou torturadores militares? Ambos prendiam e matavam seus próprios compatriotas. A quem o senhor do vídeo se referia? Até quando a nossa própria história será anulada para que em seu lugar entre a propaganda distorcida de quem assumiu o poder no Brasil? Hannah Arendt diz, que se uma pessoa olha para um sol radiante lá fora e diz: "Sol? Que sol? É noite, agora", ela já não mais está debatendo algo. Aquela reação de absoluto descolamento de fatos objetivos costuma ser um traço de debilidade cerebral. A pessoa precisa ser tratada. Não há como dialogar. É o que se dá com o vídeo divulgado pelo Palácio do Planalto, que exorta os brasileiros a celebrarem o fim da democracia e a agradecer o Exército por ter descido tão fundo no poço da nossa trajetória política. Governo nenhum deveria existir para dividir a sua gente. Ninguém pode governar apenas para o seu séquito. Isso é inconstitucional "de Deus a Virgílio Távora", ou seja, do início ao final da Constituição. Não é de hoje que os inquilinos do Palácio do Planalto governam dividindo. Eles não parecem entender que não há "nós contra eles" na Constituição. O texto fala tão somente em "povo brasileiro". É o que somos, tanto que o art. 78 determina que o presidente e o vice-presidente da República tomarão posse em sessão do Congresso Nacional, prestando o compromisso de manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do "povo brasileiro", sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil. A iniciativa do vídeo talvez seja, na perspectiva simbólica, o ato mais grave já praticado por um governo democraticamente eleito em toda a história do Brasil. Isso, pelo simples fato de, a partir do uso aberto da máquina pública, dar início a uma narrativa de que podemos celebrar o fim da democracia, desde que ela se dê pelas mãos do Exército contra os inimigos por ele escolhidos. As Forças Armadas pertencem a todos nós, protegem a todos nós, devem ser o orgulho de toda a nação. Mas, ao tomar partido e entrar no palco político, elas deixam de se comportar como uma instituição nacional e passam a se converter numa espécie de partido aliado ao presidente Jair Bolsonaro. É algo muito arriscado. Não é possível que seja apenas isso o que esteja em jogo ou em vista. Simplesmente não é possível. Segundo o art. 142 da Constituição, "as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares", destinadas à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem. Como é possível que instituições nacionais destinadas à garantia dos poderes constitucionais sejam capazes de defender um golpe de Estado que interrompeu a nossa democracia? O início de um regime que cassou 173 parlamentares eleitos? Que tipo de Exército é esse, que difunde a ideia entre nós de que isso é certo, de que esse foi o caminho apropriado, que devemos agradecer por isso? Num país que tinha elegido pelo voto popular Juscelino Kubitschek, e, mantendo a nossa tradição de transitoriedade do poder elegeu em seguida o seu opositor, Jânio Quadros, o dia 31 de março de 1964 abriu um fosso de 21 anos sem eleições para presidente do Brasil. Um horror sem justificativa. O vídeo, ao justificar o golpe, fala que havia greves e insegurança. Acontece que greve é um direito constitucional. E se houver greves amanhã? Vão fazer o que? Há insegurança em muitos lugares. Qual a saída à luz da sabedoria do vídeo? Um golpe? O Brasil escapou do estribo dos ditadores militares, elegeu um homem público da envergadura de Tancredo Neves, tem eleições diretas de quatro em quatro anos desde 1989, criou a Comissão de Anistia pagando bilhões de reais em indenizações pelos males da ditadura e assegurou que o pêndulo presidencial saísse de Tancredo Neves - um adversário da ditadura - até chegar a Jair Bolsonaro - um adorador da ditadura. Que outro país lidou tão de perto com os seus traumas? Países que acharam por bem acertarem as contas com o passado seguem acertando essas contas até agora. Passa da hora de parar. Aquela foto da ex-presidente Dilma, imortalizando o duelo da Guerra Fria, entre autoritários guerrilheiros e militares autoritários precisa ficar no passado. Há uma juventude cheia de brilho querendo passar, mas não consegue. Na posse sem votos populares do general Castello Branco como presidente da República, em 15/4/1964, ele prometeu diante de todos: "Cumprirei com honra e lealdade a Constituição do Brasil". Não cumpriu. Depois, emendou: "O meu procedimento será o de um chefe de Estado sem tergiversações no processo de eleição do brasileiro a quem entregarei o cargo em 31 de janeiro de 1966". Não cumpriu mais uma vez. Cassaram os mandatos daqueles que, de boa-fé, os aplaudiam no plenário da Câmara dos Deputados. Entregaram o poder 21 anos depois. Por mais de duas décadas o povo não foi o poder. "Eles" eram o poder. Esse mesmo Exército que reclama aplausos de nós, democratas, por termos, graças a eles, permanecida por mais de duas décadas sem a nossa vida democrática, é aquele que, em seu corpo, também conta com democratas. Mas onde estão os democratas do Exército? Sabiam eles desse vídeo? Quando militares tentaram impedir João Goulart de tomar posse, após a renúncia de Jânio Quadros, o marechal Teixeira Lott, em 26 de agosto de 1961, fez um manifesto às Forças Armadas. Escreveu o seguinte: "Aos meus camaradas das Forças Armadas e ao povo brasileiro. Tomei conhecimento, nesta data, da decisão do Senhor Ministro da Guerra, Marechal Odílio Denis, manifestada ao representante do governo do Rio Grande do Sul, deputado Rui Ramos, no Palácio do Planalto, em Brasília, de não permitir que o atual Presidente da República, Sr. João Goulart, entre no exercício de suas funções, e ainda, de detê-lo no momento em que pise o território nacional. Mediante ligação telefônica, tentei demover aquele eminente colega da prática de semelhante violência, sem obter resultado. Embora afastado das atividades militares, mantenho um compromisso de honra com a minha classe, com a minha pátria e as suas instituições democráticas e constitucionais. E, por isso, sinto-me no indeclinável dever de manifestar o meu repúdio à solução anormal e arbitrária que se pretende impor à Nação. Dentro dessa orientação, conclamo todas as forças vivas do país, as forças da produção e do pensamento, dos estudantes e intelectuais, dos operários e o povo em geral, para tomar posição decisiva e enérgica no respeito à Constituição e preservação integral do regime democrático brasileiro, certo ainda de que os meus camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcam sua história no destino da Pátria". Essa é a postura de um estadista que deveria inspirar o 31 de março no Brasil, uma data na qual o Exército pediria perdão, não aplausos. E nós, democratas, os perdoaríamos. "Só o homem perdoa, só uma sociedade superior qualificada pela consciência dos mais elevados sentimentos de humanidade é capaz de perdoar. Porque só uma sociedade que, por ter grandeza, é maior do que os seus inimigos é capaz de sobreviver". A afirmação é do então presidente do Supremo Tribunal Federal, ministro Cezar Peluso, último a votar no julgamento da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF 153) em que a Corte rejeitou o pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) por uma revisão na Lei da Anistia (lei 6683/79). 31 de março deveria ser o Dia da Reconciliação. Todo o país receberia do Palácio do Planalto um vídeo no qual o Exército pediria perdão, não aplausos. Nele, o narrador, ao contrário de justificar a ditadura pelo fato de haver greves e insegurança, mostraria grandes opositores apertando as mãos uns dos outros, num gesto de pacificação social que inspirasse a abertura para a tolerância entre nós. Pediria que pais e filhos que estão brigados, que amigos que se distanciaram, que pessoas que se gostam, mas não se falam mais em razão das disputas da política no Brasil, deixassem de lado esses conflitos e também apertassem as suas mãos, pois somos todos uma única nação, e temos, à nossa disposição, o Exército, para seguirmos sendo um só povo, o povo brasileiro. Mas não. Das máquinas públicas do Palácio do Planalto saiu propaganda descolada dos fatos, voltada a decepcionar e mentir. Que triste deve ser entregar a sua vida à terrível arma de machucar e dividir.
segunda-feira, 18 de março de 2019

Os livros e os meus cem dias em Jerusalém

Tenho cultivado, desde a infância, uma relação de amor e gratidão com os livros. Mesmo assim, eu achava que a minha história com eles já tinha me dado o seu melhor. Depois da experiência, entre os anos de 2014 e 2016, na África do Sul, onde fui assessor estrangeiro na Corte Constitucional, eu entendia que tinha tido o bastante. Como relatei aqui, parei naquele país graças às obras "A estranha alquimia entre a Vida e o Direito", de Albie Sachs, e "Justiça: uma versão pessoal", de Edwin Cameron, ambos juízes da Corte Constitucional sul-africana, hoje bons amigos. A vida foi me mostrando, ao longo do tempo, que os livros nos escolhem, não o contrário. Mostrou também que eles têm o tempo deles. Podemos possuir obras em nossas estantes por anos a fio. Certo dia, sem qualquer razão, olhamos um livro e algo nele nos chama a atenção. Ali, é o livro que está no controle, não nós. Chegou a hora e ele nos convida. Sempre que um livro o convidar a vivê-lo por inteiro, não recuse, aceite. Em Brasília, enquanto preparava as peças que ilustram casos perante o Supremo Tribunal Federal, a capa de um livro me chamava insistentemente. E eu resistia. "Que plenário diferente!", eu pensava, segurando "The judge in a democracy", do ex-presidente da Suprema Corte de Israel, Aharon Barak, uma lenda viva que, além de ter liderado o Tribunal por mais de dez anos, construiu uma profícua vida acadêmica. Devo confessar que não achava aquele plenário tão bonito quanto o da Corte Constitucional da África do Sul, tampouco como o do Supremo Tribunal Federal. Mas ele era diferente e isso mexia comigo, porque tudo o que é diferente aguça a minha curiosidade. Na capa, eu via três assentos, um ao lado do outro, de frente para o público, tendo, por trás, a Menorá judaica. Não havia uma bandeira de Israel. Havia duas. Entre a meia lua que servia de bancada para os três ministros, naquele pequeno plenário - são cinco turmas, ao todo -, havia a mesma ilha que há no plenário do Supremo Tribunal Federal para as taquígrafas. "Será que eles têm taquígrafas?". Na outra metade da meia lua, um maior número de cadeiras se confrontava aos três assentos colocados em posição mais elevada. "São para os advogados. Na África do Sul, era assim", eu conversava comigo mesmo. Olhar para a capa daquele livro me dispersava. Eu tinha prazos para cumprir, peças para encerrar, reuniões para participar, mas me via mergulhado numa fantasia profundamente simbólica. Era difícil me libertar. Aquela capa me tragava. A verdade é que o livro estava me chamando. E eu recusava. Mesmo assim, eu sabia: quando os livros chamam, por mais que se rejeite, é questão de tempo. Eles sempre vencem ao final. A obra de Aharon Barak venceria também. Mais cedo ou mais tarde. A partir daí, uma sucessão de felizes acasos assume o controle da minha vida. Essa sucessão teve início em janeiro de 2018, quando eu, minha mãe e minha esposa passamos uma semana em Israel. "Quero conhecer o prédio da Suprema Corte". Fizemos o tour oferecido pela Corte, conduzido pelo relações públicas do Tribunal. Fiquei maravilhado com a construção. De tão impressionado, fiz um vídeo mostrando os detalhes da arquitetura do prédio e as mensagens ocultas escondidas em muitos pedaços da Suprema Corte. Também escrevi um texto sobre a concretização do princípio da dignidade da pessoa humana no país. Ao tomar aquelas iniciativas, eu estava dando o primeiro passo. E, ao dar o primeiro passo, eu sabia que não pararia mais. Aquela viagem, combinada com a visão fixa e quase diária da capa do livro, abriu um portal na minha relação com Israel e, mais precisamente, com Jerusalém. Essa relação, sabia eu, era como as correntezas de um rio, as labaredas de um fogo que sobe um morro, ou como o vento de uma ventania. Era algo muito difícil de frear. Os felizes acasos se seguiram. Em abril, fui ao cinema assistir o filme 7 Dias em Entebbe, dirigido por José Padilha. O enredo é interessantíssimo. Em julho de 1976, um voo da Air France de Tel-Aviv à Paris é sequestrado e forçado a pousar em Entebbe, Uganda. Os passageiros judeus são mantidos reféns para que seja negociada a liberação dos terroristas palestinos presos em Israel, na Alemanha e na Suécia. Sob pressão, o governo israelense decide organizar uma operação de resgate, atacar o aeroporto e soltar os reféns. A operação é um sucesso retumbante. No filme, duas coisas penetraram a minha mente. Primeiramente, a música Echad Mi Yodea, que compõe a obra, cuja trilha sonora é de Rodrigo Amarante. Batida forte, ritmo impactante, refrão que fica na cabeça. Depois, a criatividade do resgate. O filme deixou em mim a primeira lição de honra, coragem e, principalmente, de trabalho em equipe a partir da liderança de Shimon Peres, então Ministro da Defesa de Israel. Como ele foi capaz de, para salvar a sua gente, se valer de um plano tão original? De onde vinha aquela criatividade? Como ter a altivez de, quando se trabalha em equipe, saber que se fez o melhor naquelas circunstâncias? "O que quer que aconteça, fizemos a coisa certa", disse Peres para seus soldados, antes deles partirem numa missão mirabolante de altíssimo risco para cada um deles. Shimon deu-lhes certezas, não hesitações. O fato é que Shimon Peres era especial. Figura central em sua vida foi seu avô, o Rabino Zvi Meltzer. No Yom Kipur, o importantíssimo Dia do Perdão judaico, Shimon se deliciava ouvindo o avô cantar. Zvi Meltzer morreu em Visheva, Polônia. Os Nazistas marcharam pela floresta e entraram na pacata vila. O Rabino foi colocado dentro da modesta sinagoga de madeira, junto com quase toda a congregação. Os Nazistas fecharam as portas e atearam fogo. Enquanto as labaredas engoliam o local, seu avô cantava, repetindo a mesma oração que encantava o pequeno Shimon durante o Yom Kipur. Honra e resistência. Quanto à música Echad Mi Yodea, o engraçado é que, estudando hebraico com o professor Matan Gicovate, descobri que se trata de uma canção para crianças aprenderem a contar ou a terem sua memória desafiada. Ela costuma ilustrar as celebrações da Páscoa judaica. Para mim, contudo, não soava infantil. Soava forte. O ano de 2018 seguiu seu curso. Mais adiante, estive brevemente com o ministro Luís Roberto Barroso, no Supremo Tribunal Federal. Conversamos rapidamente sobre textos acadêmicos que abordam questões relativas à interpretação teleológica. "Há um texto seminal de Aharon Barak, que foi presidente da Suprema Corte de Israel", recomendou-me. Perguntei: "Vossa Excelência o conhece?". "Sim. Deu-me aula em Yale". Naquele instante, pensei: "Os astros estão se alinhando". Estavam, de fato. Depois, no Congresso Mundial de Direito Constitucional, em Seul, Coréia do Sul, estávamos todos os painelistas confraternizando com o professor Dieter Grimm, que compôs a Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, quando se junta a nós uma das palestrantes, a professora Daphne Erez-Barak, juíza da Suprema Corte de Israel. "Eu visitei a Suprema Corte em janeiro. Fiquei fascinado pelo prédio", disse-lhe, no que ela responde: "Temos alguns assessores estrangeiros. Dê-me o seu cartão". Eu entreguei o cartão do escritório, conversamos um pouco mais e seguimos para um tour na zona desmilitarizada que separa as duas Coreias. "Mande um e-mail com o seu currículo para o e-mail da Corte. Há um programa". Eu mandei um e-mail para o mesmo relações públicas com quem eu havia conversado em janeiro, quando agendei o tour na Suprema Corte. Fiquei sabendo de um application formal, detalhado, que abria a chance de atuar como assessor estrangeiro. Pouco mais de um mês depois, num domingo muito cedo, vejo o título do e-mail pela tela do meu telefone. "Congratulations!", estava escrito. Eu não acreditei. O meu currículo havia passado de mão em mão e o vice-presidente da Suprema Corte, o juiz Hanan Melcer, me escolheu para ser o seu assessor a partir do início de 2019. Em regra, eu deveria passar seis meses em Jerusalém, onde fica a sede do Tribunal, mas seria tempo demais para ficar longe das minhas atividades no Brasil. Combinamos, então, que eu partiria em dezembro e voltaria após o carnaval, dia 10 de março, um domingo. Contei os dias: cem dias. Era essa a missão. Cem dias em Jerusalém. Antes de partir, fui na Embaixada de Israel, em Brasília, tendo sido recebido, além do embaixador, Yossi Shelley, pelo primeiro-secretário, David Atar. "Chamo-me Saul". Mostrei para David uma foto da minha esposa. "Rebeca". Depois, o meu sobrinho, Samuel. David não se aguentou: "Saul, Rebeca e Samuel, na mesma família? Não é possível! Você é judeu. Apenas não sabe ainda". Gargalhamos. Dia 1º de dezembro, eu embarquei para Israel, sozinho. Na Suprema Corte, eu e meus colegas fazíamos pesquisas sobre os temas mais variados. Judeus ortodoxos podem passar a estudar no sistema comum de ensino, mantendo a segregação por sexo? Propaganda eleitoral de mulheres poderia ser retirada de bairros ortodoxos? Candidatos podem tirar fotos com soldados das forças armadas? Que outro nome pode ser dado para a Constituição? Como funciona, juridicamente, a inseminação artificial? Artistas podem se recusar a cantar em certos locais quando são financiados pelo governo que os convida a cantar? Um diretor de uma autarquia ou empresa pública, com mandato, pode ter o seu mandato encurtado por uma lei? Operações militares podem ser judicializadas? Há limites para a liberdade de expressão? Como funciona a recuperação judicial no Brasil e na África do Sul? O constitucionalismo israelense é rico e erudito. Há uma infinidade de temas, os mais desafiadores, que deveriam ser pesquisados à luz dos meus conhecimentos e experiência no Brasil e na África do Sul. A partir dos resultados das pesquisas, tínhamos reuniões com o juiz e os demais colegas, além da preparação de memorandos quase diários. Para quem estava disposto a trabalhar - e eu estava -, não faltava o que fazer. Eu trabalhava até a quinta-feira, às 15 horas, quando tínhamos, na Suprema Corte, o "Kabbalat Shabbat". Era um happy hour sem bebida alcoólica. Eu aproveitava para praticar, com os colegas de Israel, o meu hebraico, já que todas as atividades profissionais eram em inglês. Shalom. Todá. Todá rabá. Besseder. Bevakashá. Sababa. En beya. Altidag. Narron. Betar. Má. Atá. At. Iesh lerrá. Iesh lá. Adain lo. In. Eu manuseava o meu estoque de hebraico com o cuidado de quem precisa se virar bem com pouco. Funcionava. Em Jerusalém, meu nome - "Shaul" - estava nas ruas, nas pontes, nas praças, na literatura e na filosofia. Eu havia me tornado um rei, o primeiro rei dos judeus. Certo dia, na cafeteria do Cinema City, shopping que fica ao lado do Tribunal, ligado pela Ponte da Suprema Corte, o atendente perguntou meu nome. "Em português, Saul. Em inglês, Sal. Aqui, chamam-me Shaul". Ele me alertou: "Shaul foi rei. Aceite o nome em hebraico. Você está em Jerusalém". Virei Shaul, o brasileiro do Piauí, não-judeu, que falava algum hebraico, era casado com a Rebeca, tio do Samuel e morava em Jerusalém, trabalhando na Suprema Corte ("Beit Mishpat Elyon"). Um dos pontos culminantes da missão foi ir, atendendo a um convite formal do vice-presidente da Suprema Corte, que também preside o Comitê Geral das Eleições, para uma audiência na sede do Parlamento israelense, o Knesset. Lá estavam representantes de todos os partidos políticos do país, com seus argumentos inflamados e contundentes. Também os representantes da procuradoria-geral. Advogados famosos, os mais aclamados, se alternavam na defesa de seus clientes, candidatos nas eleições de 2019. Um grande caso seria apreciado e eu estava ali não como um turista curioso, mas como uma pequena fração do maquinário responsável por assegurar a democracia naquele inacreditavelmente próspero pedaço de deserto no Oriente Médio. Uma extraordinária oportunidade de contribuir. [O vice-presidente da Suprema Corte, Hanan Melcer, e Saul Tourinho Leal, no Comitê Geral das Eleições, em Israel]. Lembro de um aprendizado que tive a partir de uma situação inusitada. Ao entrar diariamente na Suprema Corte, o mesmo segurança insistia em perguntar quem eu era, com quem eu trabalhava e para onde eu queria ir, mesmo depois de quatro semanas ali, todos os dias. Certa vez, ao pedir a ajuda de um colega, para me socorrer na situação, aprendi a lição. "Shaul, você tem que ter Chutzpah. Encare ele!". Eu não sabia o que era Chutzpah. A palavra é derivada do iídiche e a tradução remete para a audácia, o atrevimento, coragem e atitude diante das injustiças ou desafios da vida. Não raramente, uma pessoa com Chutzpah será questionadora, exigirá explicações ou justificativas. "Eu vou encarar ele!". De fato, encarei. E deu certo. Mas os cem dias em Jerusalém não foram apenas "cem dias em Jerusalém". Foram também "cem dias em Israel". Todas as quintas-feiras, logo que eu via o cume da pirâmide que compõe a arquitetura da Suprema Corte e notabiliza o desenho daquele prédio monumental, tocando o sol, era sinal de que a noite estava chegando e que, sendo quinta-feira (equivalente à nossa sexta-feira), era hora de encerrar o trabalho e partir. Viajei o país inteiro, a pé, de carro, de ônibus, de trem e de avião. [Da janela do seu desk, na Suprema Corte, via o cume da pirâmide tocar o sol. Era o sinal de que o pôr do sol chegava] Nessas viagens de final de semana, os livros me apresentaram David Ben-Gurion, Shimon Peres, Golda Meir, Ytzak Rabin, Ariel Sharon, Benjamin Netanyahu e muitos outros líderes do país. Foi uma imersão verdadeira, profunda e de grande fôlego. Talvez a viagem mais marcante foi para Tiberíades, no Mar da Galileia. Lá, num sábado, avistei um quiosque no qual era possível alugar um barco. Contudo, eu não poderia alugá-lo sozinho. Pelo menos uma outra pessoa tinha de estar comigo e eu não tinha ninguém. Uma família que estava ao lado percebeu a situação e viu que havia algo a fazer. Eles, em número de seis, teriam de alugar dois barcos para acomodar todos. Diante da minha situação, sugeriram que dois jovens fossem comigo. Eles ficariam dispensados de alugar um segundo barco e eu poderia fazer o meu passeio. Pela idade dos jovens garotos, o piloto do barco terminou sendo eu, logo eu, que sequer carro dirijo, porque não tenho um. Mas lá fomos nós. Uma vista estonteante nos conduzia ao ápice da paz. As águas do Mar da Galileia parecem um fino e estático espelho d'água. Dá a impressão de que podemos caminhar sobre elas, até alcançar o infinito. Há um silêncio arrebatador quebrado somente pelos cantos das gaivotas que cortam o céu azul daquele lugar único. Do outro lado do mar, montanhas se agigantam até tocarem, com seus dedos verdes, os pés do céu. É indescritível. Pouco antes de encerrarmos o passeio de barco, um dos jovens disse que cantaria algo com o irmão. E começaram: "Echad Mi Yodea? Echad?". A música que ficou na minha mente, meses antes, com o filme 7 Dias em Entebbe, estava sendo cantada no Mar da Galileia, para mim, no passeio mais improvável que eu poderia ter tido. Inacreditável. Em Israel, de repente, tudo parecia ter a cara do Brasil. Nas lojas de souvenirs, botons com as bandeiras de Israel e Brasil juntas eram vendidos como água no deserto. Na CyberTech 2019, maior conferência da indústria cibernética do planeta, estive com o astronauta Marcos Pontes, ministro da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações. "Bibi", como é chamado o primeiro-ministro de Israel, foi exibido em toda a mídia do país, por dias, em sua viagem pelo Brasil, de óculos escuros, batendo bola na praia do Rio de Janeiro e provando a nossa caipirinha. Em Tel Aviv, na cafeteria Origem Fresh Coffee, na rua Dizengoff, o casal de baianos Marcelo e Georgia Szporer me ofereciam um delicioso pão de queijo com a matéria prima produzida num Kibutz. Em Acre, no Norte, bandeiras do Brasil eram penduradas e até pintadas nos muros das casas. Nesse período, voltando de ônibus do Mar Morto, um grupo de soldados do Israel Defence Forces - IDF conversava entre si, quando eu passei. "Brasileiro?". "Sim", respondi. "Nossos companheiros estão embarcando para Brumadinho". Eu, brasileiro, tinha ido para Israel. E o Brasil foi junto comigo. Uma derradeira experiência se deu numa visita que fiz à casa de David Ben-Gurion, o primeiro primeiro-ministro de Israel, um founding father. Ben-Gurion foi um homem da guerra. Ele sentiu o perfume fétido da morte. Descobriu, impelido pelas circunstâncias, o que é matar pessoas. Sob suas ordens, um navio foi interceptado em Tel Aviv e concidadãos que tentavam se rebelar contra ele montando uma força paramilitar, foram mortos (Altalena Affair). Durante as guerras que enfrentou, a partir de 1948, Ben-Gurion habituou-se a ouvir o detonar dos canhões, o roncar dos tanques e o grito das sirenes. Seu olfato, além da morte, sentia o odor das ruínas de tudo o que era explodido pelos inimigos. Sob suas ordens, soldados foram buscar armas e munições em qualquer lugar. Ben-Gurion passou a ter intimidade com as consequências do terror. Viveu o que é a violência. Eu estive em sua casa, no deserto do Negev, sul de Israel. Diante da guia, perguntei: "Onde ele guardava as armas?". Após segundos de hesitação, ela responde: "Por favor, me acompanhe, elas ficam no maior cômodo da casa. Foi a partir delas que ele liderou o nascimento de Israel". Eu a acompanhava pensando: "Claro!". A guia abre uma porta. "Entre". Quando eu cruzo a entrada, vejo o que ela chamou de "armas". Era a mais linda biblioteca dentro de uma casa que já vi em toda a minha vida. Livros religiosos, de medicina, química, física, ciência política, filosofia, direito..., tudo. Percorri a biblioteca observando, com fascínio, cada livro nas muitas estantes. [O local onde David Ben-Gurion guardava as suas "armas"] "Posso ir ao quarto onde ele dormia?". Eu queria saber se o grande primeiro-ministro de Israel tinha algum herói em sua intimidade, um ídolo, um personagem no qual ele se inspirava. Inconscientemente, eu me perguntava se em seu quarto haveria uma foto ou um livro de alguma espécie de torturador do Estado ou um assassino revolucionário. Seria desse tipo de gente que aquele homem da guerra se alimentava? Fomos até lá. Era um quarto modesto, com uma cama de solteiro ao canto, uma estante e um criado-mudo com livros. Não havia, contudo, o quadro de nenhum assassino revolucionário, nem de torturadores do Estado. Eu vi, pendurado na parede, um quadro com uma foto de Mahatma Gandhi. Aquele homem da guerra tinha, no local onde descansava, a foto de um pacifista. Aquela foto me disse muito. Mostrou que a guerra, a violência e as armas são um mal. Que ninguém nasce para isso. Ben-Gurion se cercou de livros, não de fuzis. Mortes e ataques são contingências. Temos que aprender a nos defender, mas, em verdade, todos devemos almejar a paz e procurar realizar as nossas ambições pelas vias pacíficas. É o que a Constituição brasileira chama de "resolução pacífica das controvérsias". A foto de Gandhi não fala apenas sobre Ben-Gurion. Fala sobre Israel. Fala sobre o planeta. Ver aquele quadro trouxe à minha mente o primeiro dia do curso de formação para assessores estrangeiros na Corte Constitucional da África do Sul, anos atrás. Conduzidos por assessores com mais tempo de Tribunal, todos nós percorríamos o complexo da Old Fort Prison, onde fica, também, a Corte Constitucional. Algumas partes do complexo foram conservadas como eram durante o apartheid. Parecem dilapidadas, decadentes, em mau estado. Ignorante, perguntei: "Vocês não se sentem mal por trabalharem numa Corte cuja sede é num lugar de passado tão cruel?". A condutora do grupo, experimentada, não se surpreendeu. "Temos um misto de vergonha e orgulho. Dois jovens advogados, como você, entraram aqui como prisioneiros. Saíram como guerreiros da liberdade". Um dos advogados era Nelson Mandela. Mas e o outro? "Mahatma Gandhi", responde ela. A luta de Gandhi havia começado na Old Fort Prison, quando ele era um jovem e bem-sucedido advogado visitando a África do Sul para realizar uma audiência. Tudo se ligava. Da África do Sul a Israel, Gandhi e a sua busca pacífica pela paz estavam presentes. "A minha vida é a minha mensagem", escreveu ele, no registro que deixou na casa onde morou, em Joanesburgo. A guerra, como eu disse, era uma tragédia às vezes disparada pela necessidade de se defender de inimigos cruéis. Mas o ser humano não nasceu para ela. Nasceu para a paz. A minha experiência com a liderança de David Ben-Gurion não acabou aí. Quem já visitou Tel Aviv sabe sobre o que estou falando. Fui muitas vezes para lá, tentando escapar do frio, da chuva e da solidão de Jerusalém. Ao contrário de ver uma foto de Ben-Gurion de farda, ou diante de armas e munições, Tel Aviv prestou uma homenagem ao seu grande herói convertendo numa estátua engraçada a imagem deixada pelo próprio Ben-Gurion, numa fotografia que percorreu o mundo. A foto mostra o primeiro primeiro-ministro de Israel, de sunga, diante do seu instrutor, de cabeça para baixo, com a cabeça na areia da praia, projetando as suas pernas para cima. David Ben-Gurion, já com certa idade, fazia ioga e se deixou fotografar assim. Em sua homenagem, ergueram uma estátua, em forma de caricatura, na praia. A missão em Jerusalém havia deixado de ser jurídica, apenas. Ela passou a ser cultural, pessoal, passional e imortal. Também se expandiu. Já não se limitava a Jerusalém, mas a todo o país, de norte a sul, leste a oeste. Mas no dia 10 de março, cem dias após a partida, eu via a areia da ampulheta despencar no fundo do vidro. Não restava mais nada. A missão havia chegado ao fim. Na Suprema Corte, após me despedir dos meus colegas, saí do gabinete do vice-presidente. Caminhando no corredor de acesso aos gabinetes, eu me deliciava, pela última vez, com a beleza daquele prédio. "Eu nem acredito nisso. Não acredito". Antes de abrir a porta que cede espaço para a linda biblioteca de três andares da Corte, vi, no corredor dos ex-presidentes, a foto de Aharon Barak. Ele estava de terno escuro, com as pernas cruzadas, uma mão segurando a cabeça e a outra sobre o braço da cadeira, com seus cabelos brancos penteados para o lado, olhos postados por trás de óculos que acusavam uma vista dedicada à leitura, com o olhar fixo para a lente da câmera, naquela pintura a óleo. Sua postura não era ereta sobre a cadeira, mas de um homem relaxado. Era como se olhasse para mim, nos meus olhos. Eu carregava o seu livro "Judge in a democracy", um exemplar da Corte que eu devolveria para a biblioteca. Naquele corredor, eu parei, depois de olhar para um lado e para o outro e não ver ninguém por ali. "Eu não o conheci, mas conheci o seu livro. E ele me trouxe até aqui. Obrigado!", eu disse para aquele retrato, com o cuidado de não ser visto por alguém e terminar sendo taxado de maluco. Passei pela biblioteca, deixei o livro e parti. [Retrato de Aharon Barak, no hall dos ex-presidentes da Suprema Corte] O que vivi em Israel não foi apenas Chutzpah, essa audácia para a vida. Foi mais. Experimentei a fascinação de, num único dia, no mesmo lugar, em Jerusalém, ouvir o cântico islâmico de megafones na Dome of the Rock, a oração enfática dos judeus no Muro das Lamentações e a badalada dos sinos nos templos cristãos. Em Acre, ao norte, um trabalhador árabe me contou, no café da manhã, que a casa onde mora é da sua família há 800 anos. No sul, jantei no deserto com beduínos que dividiram sua refeição e me mostraram que, em ambientes hostis, resistir é a única possibilidade. Em Eilat, ao ver um grande monte do outro lado da praia, escutei o garçom me dizer: "É o Egito, logo ali". Em Tel Aviv, jovens converteram as cicatrizes e os conhecimentos adquiridos no tempo do exército em tecnologia e inovação que amenizarão o sofrimento do semelhante. Flutuando no Mar Morto, senti vida em abundância. Um deserto sem cor virou um tapete verdejante inalcançável à vista, ali, na minha frente, não por milagre, mas pelo tirocínio humano. Testemunhei trilhos percorrerem a borda do desenho do mar, engolidos por túneis que se ajoelham para as colinas da Terra Sagrada. Uma terra de leite e mel. Tudo isso só foi possível graças a um alinhamento de astros. Em cada um desses cem dias, eu vivi a verdade e percorri o caminho, inovando, dividindo e insistindo, porque toda missão deve contemplar essa trindade: imaginação, solidariedade e ousadia. Enquanto eu deixava a Suprema Corte, refletia sobre como mais uma vez fui presenteado pelos livros e pela magia que uma relação íntima entre leitor e obra é capaz de propiciar. Quando um livro lhe chamar, não resista, vá. Eles me deram o meu trabalho como advogado, a base da minha atuação como professor, me fizeram companhia percorrendo o Brasil em palestras e conferências e, incansáveis, me levaram para países especiais que têm uma história para contar. Devo tudo a eles. Os livros são capazes de nos levar para os lugares mais improváveis da nossa curta jornada nesse plano. Fora da zona de conforto, a magia acontece. Se ela aconteceu comigo, vai acontecer com você. Apenas abra um exemplar. Então, comece a ler. E não pare mais. Simplesmente, não pare mais. Esse é o segredo. E foi a partir dele que eu vivi os meus cem dias em Jerusalém. E que viverei muitos outros dias também. Ainda bem. [Após cem dias em Jerusalém, chega ao fim a missão na Suprema Corte de Israel]
Pode um candidato - especialmente se disputando a reeleição - visitar bases das Forças Armadas (uma base naval, por exemplo) para ser fotografado e filmado junto a soldados com a finalidade de utilizar esse material na sua propaganda eleitoral? O Comitê Central das Eleições de Israel, responsável por assegurar a integridade do processo eleitoral - as eleições ocorrerão dia 9 de abril - se debruçou sobre um interessante caso tendo proferido, semana passada, uma decisão de mérito que confirma a liminar anteriormente concedida. A decisão foi divulgada nos meios de comunicação do país1 e serve como fonte de estudo para os especialistas. Vamos aos fatos. O Partido Trabalhista, invocando a Lei das Eleições, de 1959, que proíbe o uso de soldados da Israel Defense Forces (IDF) nas campanhas eleitorais, ajuizou uma reclamação perante o Comitê requerendo a determinação ao Primeiro Ministro, Benjamin Netanyahu, para que não tire fotos nem grave vídeos com os soldados com a finalidade de utilizar esse material em suas plataformas de propaganda eleitoral. Bibi, como é chamado em Israel, além de Primeiro Ministro é Ministro da Defesa - acumulação comum na história política de Israel2 - e, desincumbindo-se dessa função, realizava visitas a bases militares. Essas visitas eram fotografadas e gravadas, gerando, a partir desse material, propaganda eleitoral a seu favor, propaganda essa da qual seus opositores não dispunham, uma vez que não têm, em razão do cargo, a prerrogativa de realizar, no exercício de suas funções, visitas como essas. Em sua petição, o Partido Trabalhista sustentou que "publicar fotos e vídeo de um partido (no caso, o Likud) com soldados do IDF como parte da campanha eleitoral viola a Lei das Eleições". Respondendo a acusação, o Likud sustentou que nem toda foto com soldados do IDF viola a lei. "O caráter essencial das fotos publicadas é informativo e de interesse público", anotou. Além disso, argumentou que a lei que limita o conteúdo da campanha deve ser interpretada estritamente de modo a evitar a violação da liberdade de expressão, bem maior a ser protegido no caso concreto. Semana passada, dias após uma audiência com todos os envolvidos - Partido Trabalhista, Likud (o partido de Benjamin Netanyahu) e representantes da Procuradoria-Geral - no Knesset, o Parlamento de Israel onde é sediada o Comitê, este deu razão ao Partido Trabalhista e, confirmando no mérito uma liminar anteriormente concedida, determinou que o Gabinete de Imprensa do Governo não divulgue mais as referidas imagens. Ordenou, ainda, que qualquer post nas redes sociais da campanha de Bibi seja excluído. Por fim, determinou ao Chefe de Gabinete do IDF que ordene aos oficiais e soldados que evitem tirar fotos com quaisquer candidatos nas eleições. O debate é interessante. No início deste mês, o Attorney-General, Avichai Mandelblit, havia recomendado que Bibi não tirasse fotos com os soldados, mas o Primeiro Ministro continuou a fazê-lo3. Semanas antes da decisão, a sua equipe divulgou fotos de uma base naval com o Primeiro Ministro cercado por militares. Segundo a manifestação do procurador-Geral, poderia haver exceções, como fotos inseridas num contexto de estratégia militar para deter inimigos ou em uma situação de emergência, mas, ainda assim, deveriam ser publicadas na página oficial do Gabinete do Primeiro Ministro no Facebook, não na página da campanha eleitoral dirigida pelo Likud. A decisão tomada pelo Comitê Geral das Eleições percorreu um caminho original para encontrar a sua fundamentação. Entendeu-se que, na verdade, as Forças de Defesa de Israel constituem "o Exército de todo o país, não apenas de um partido". Ou seja, a sua associação a um partido em especial - no caso, o que está no poder - descaracteriza o papel institucional das Forças Armadas, que são, acima de tudo, apolíticas. Segundo consta da decisão, o IDF "une grupos populacionais e visões de mundo na sociedade israelense". É, pois, uma instituição que há de ser reconhecida como catalizador de toda a sociedade, elemento de aglutinação em torno de valores básicos da Pátria que hão de ser nutridos por variados grupos da comunidade, não devendo servir de plataforma político-partidária de qualquer força eleitoral que seja. Com base nesse fundamento, determinou-se a exclusão de toda a propaganda eleitoral que se valeu dos soldados do IDF. Além disso, ordenou-se que os candidatos não persistam usando soldados em suas propagandas eleitorais. No Brasil, qualquer candidato tem o direito de mostrar sua biografia por meio de imagens coletadas ao longo da sua trajetória, mesmo quando essas imagens tenham sido coletadas por servidores públicos no exercício dos seus deveres estatais. De acordo com a lei 9.504/1997 (Lei das Eleições), em seu art. 54, § 2o: "Será permitida a veiculação de entrevistas com o candidato e de cenas externas nas quais ele, pessoalmente, exponha: I - realizações de governo ou da administração pública; II - falhas administrativas e deficiências verificadas em obras e serviços públicos em geral; III - atos parlamentares e debates legislativos". À luz dessa disposição, o Tribunal Superior Eleitoral decidiu que "não há abuso de poder no fato de que o candidato à reeleição apresentar, em sua propaganda eleitoral, as realizações de seu governo, uma vez que esta ferramenta é inerente ao próprio debate desenvolvido no referido anúncio" (RP 1.098, min. Cesar Asfor Rocha, DJ 20.4.2007). Logo, um candidato que já ocupe qualquer posição pública não está proibido de usar nas eleições imagens ou vídeos coletados durante sua trajetória, mesmo quando essas imagens foram tiradas por funcionários públicos encarregados de divulgar atos estatais estando armazenadas em bancos de imagens pertencentes ou geridos pela Administração. Todavia, é preciso enxergar a linha que separa o agente público no exercício do seu ofício do candidato que busca votos numa campanha eleitoral. O Código Eleitoral, a esse respeito, diz: "Art. 377. O serviço de qualquer repartição, federal, estadual, municipal, autarquia, fundação do Estado, sociedade de economia mista, entidade mantida ou subvencionada pelo poder público, ou que realiza contrato com êste, inclusive o respectivo prédio e suas dependências não poderá ser utilizado para beneficiar partido ou organização de caráter político". A disposição separa as atividades do presidente da República, por exemplo, daquelas desejadas por um candidato, que não raramente vem a ser o próprio Presidente disputando a sua reeleição. Considerando que uma pessoa que ocupa um determinado cargo público tem o dever de estar presente em espaços públicos como um meio de exercer plenamente seus poderes, um candidato que está em campanha tem o dever de não fazer uso da máquina pública em seu benefício e em prejuízo dos outros candidatos. E essa linha divisória não é fina o suficiente para não ser vista. É absolutamente possível separar um ato de mera gestão pública de um ato de campanha eleitoral. Para ilustrar essa afirmação, uma reunião administrativa, por exemplo, não é a mesma coisa de um comício político. Claro que são coisas diferentes e desencadeiam diversas consequências jurídicas à luz de um ambiente eleitoral justo e desejável. Considerando condutas vedadas na Lei das Eleições, o art. 73 diz: "Art. 73. São proibidas aos agentes públicos, servidores ou não, as seguintes condutas tendentes a afetar a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais: I - ceder ou usar, em benefício de candidato, partido político ou coligação, bens móveis ou imóveis pertencentes à administração direta ou indireta da União, dos Estados, do Distrito Federal, dos Territórios e dos Municípios, ressalvada a realização de convenção partidária; (...) III - ceder servidor público ou empregado da administração direta ou indireta federal, estadual ou municipal do Poder Executivo, ou usar de seus serviços, para comitês de campanha eleitoral de candidato, partido político ou coligação, durante o horário de expediente normal, salvo se o servidor ou empregado estiver licenciado". Ou seja, o uso de bens e servidores públicos durante o horário de expediente é proibido, a fim de não favorecer candidatos, partidos ou coligações. Julgando a Representação 84.453 (min. Admar Gonzaga, DJe, Tomo 184, 10.1.2014, p. 29), o TSE decidiu, por unanimidade: "1. O simples uso de fotografias que estão disponíveis para todos em um site oficial, sem obrigação de contraprestação, inclusive para aqueles que lucram com atividades comerciais (jornais, revistas, blogs, etc.), é uma conduta que não se enquadra nas hipóteses descritas nos incisos I, II e III do art. 73 da Lei Eleitoral". Em outro caso (RO 1960-83), que avaliou uma situação ocorrida no Estado do Amazonas, o TSE concluiu que "as imagens utilizadas em 15/9/2014 foram extraídas da publicidade institucional da Polícia Militar, acessível, portanto, a qualquer das pessoas". Já em 9/9/2014, por maioria, a Corte rejeitou a representação formulada pela coligação "Muda Brasil", que requereu a imposição de multa à então presidente Dilma Rousseff e ao fotógrafo da presidência, Roberto Stuckert, por suposta utilização de fotos dos eventos oficiais da presidente no site da campanha eleitoral da sua reeleição. A coligação "Muda Brasil", que apoiou o candidato Aécio Neves, sustentou que as fotos não eram bens de domínio público, mas "patrimônio da Administração Direta da União, produzido a serviço do Governo Federal, por remuneração paga pelos cofres públicos". O relator, ministro Admar Gonzaga, entendeu não haver no episódio a prática de conduta vedada pela presidente e pelo fotógrafo. O TSE anotou o seguinte: "É difícil imaginar que, se alguma das pessoas puder se valer dessas imagens e informações, dada sua natureza de uso comum, não poderá ser estendida ao candidato interessado, aqui representado". Na sequência, afirmou: "As imagens não foram captadas para fins eleitorais, muito menos fornecidas exclusivamente para a campanha dos representados. São imagens que foram capturadas no exercício regular da atividade profissional do segundo representado, registrando os compromissos oficiais da primeira representada no desempenho do cargo de Presidente da República". Para o TSE, "tais fotografias estão de acordo com o conceito - considerado o destino - de bens de uso comum, que são aqueles afetados por sua própria natureza ou pela lei, a um uso indistinto de todos os administrados, independentemente de qualquer ato administrativo que o preceda". Eles estariam em conformidade com a definição do art. 37, § 4º4, da Lei das Eleições, na medida em que sejam acessíveis a qualquer pessoa, que, aliás, só poderá baixá-los do site da presidência da República. Por maioria, indeferiu-se a representação contra a presidente Dilma Rousseff. Situação diversa se dá quando o candidato, exercendo o poder do qual é investido, visita espaços públicos, instalações do Estado ou servidores públicos que lhe são submetidos, a fim de obter dividendos eleitorais. No Recurso Ordinário 189.673 (min. Jorge Mussi, DJe 8/3/2018), o TSE manteve a multa de R$ 25.000,00 à parte recorrida, ex-governador do Estado do Amazonas, reeleito em 2014, pela prática das condutas vedadas do art. 73, I e III, da lei 9.504/97. Os candidatos usaram na propaganda eleitoral da televisão, em 8/9/2014, imagens de servidores e patrimônio da Polícia Militar produzidos especificamente para a campanha. Os policiais militares, fazendo uso de ativos corporativos (armas, veículos e helicópteros), "estavam à disposição das equipes de filmagem para participar, sob sua direção, e como atores" de vídeo para a propaganda eleitoral. Cruzou-se o Rubicão. Há mais. Em 9/10/2014, o ministro Admar Gonzaga (RP 119.878) concedeu liminar contra a então Presidente e candidata à reeleição, Dilma Rousseff. Em 4/5/2014, a presidente Dilma, concorrendo à reeleição, visitou uma Unidade Básica de Saúde (UBS) em Guarulhos/SP, para receber profissionais do programa "Mais Médicos". Para a coligação opositora, o episódio consistiu na "paralisação de um posto de saúde, utilizando todo o serviço público e seus servidores, com a presença do ministro da Saúde, em uma unidade administrada pela prefeitura municipal de sua base de apoio e em um programa do Governo Federal (Mais Médicos) com o único propósito de gravar trechos da sua propaganda eleitoral". Sustentaram ainda: "perguntar a servidores públicos, na presença da candidata a Presidente, se o serviço seria bem administrado, com o objetivo de aumentar a simpatia pelo programa Mais Médicos para fins eleitorais, em detrimento do público, incide no art. 73, incisos I e III, da lei 9.504/97". Para a maioria do TSE, "com a perspectiva de um equilíbrio razoável no processo democrático, que já é fortemente em favor daqueles que têm o poder desejado", era hipótese de se conceder "a liminar necessária para determinar que eles abstenham-se de veicular, em sua propaganda eleitoral em qualquer formato (bloco ou inserção), as imagens contidas no trecho da mídia em anexo". Voltando para a decisão tomada em Israel, ela é, de fato, mais sofisticada do que o que se tem na jurisprudência correlata até aqui, porque não se limita a questionar se se estava em horário de expediente ou não, nem se se tratava de imagens pretéritas ou atuais. A decisão fixa um marco: as Forças Armadas não participam de propaganda eleitoral em nenhuma hipótese. Ponto. Não são atores, nem correligionários. Não têm partido, nem formam palanques políticos. Elas pertencem, de forma perene, a toda a nação. Sempre. No Brasil, o Decreto 4.346/2002 aprova o Regulamento Disciplinar do Exército. No seu art. 14, dispõe que "transgressão disciplinar é toda ação praticada pelo militar contrária aos preceitos estatuídos no ordenamento jurídico pátrio ofensiva à ética, aos deveres e às obrigações militares, mesmo na sua manifestação elementar e simples, ou, ainda, que afete a honra pessoal, o pundonor militar e o decoro da classe". Na lista de transgressões, estão presentes essas seguintes: "56. Tomar parte, em área militar ou sob jurisdição militar, em discussão a respeito de assuntos de natureza político-partidária ou religiosa; 57. Manifestar-se, publicamente, o militar da ativa, sem que esteja autorizado, a respeito de assuntos de natureza político-partidária; 58. Tomar parte, fardado, em manifestações de natureza político-partidária; 59. Discutir ou provocar discussão, por qualquer veículo de comunicação, sobre assuntos políticos ou militares, exceto se devidamente autorizado". As Forças de Defesa de Israel estão "subordinadas às instruções das autoridades civis democráticas e às leis do Estado". Não é diferente com as Forças Armadas brasileiras. Segundo o art. 142 da Constituição, "as Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do presidente da República, e destinam-se à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem". Vê-se acima que, segundo o texto constitucional, elas se destinam "à defesa da pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem", ou seja, nem de longe se traz a política partidária - e o apetite por votos saciado na propaganda eleitoral - para esse ambiente. A Constituição fala em defesa "da pátria". Não se pode confundir "pátria" com "partido". É evidente o caráter abrangente e aglutinador reclamado pela Constituição quando se refere às Forças Armadas. A decisão tomada pelo Comitê Central das Eleições de Israel serve de ponto de partida para uma investigação mais criteriosa acerca desse tema, que tem relevo entre nós e precisa ser pesquisado com maior profundidade. Ficam aqui, de todo modo, essas primeiras reflexões, nesse breve estudo comparado. __________ 1 Disponível aqui e aqui. 2 Outros líderes de Israel acumularam a posição de Primeiro Ministro com o posto de Ministro da Defesa: David Ben-Gurion, Levi Eshkol, Menachem Begin, Yitzhak Rabin, Shimon Peres e Ehud Barak. 3 Disponível aqui. 4 Lei das Eleições (lei 9.504/97), art. 37, § 4o: "Bens de uso comum, para fins eleitorais, são os assim definidos pela lei nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 - Código Civil e também aqueles a que a população em geral tem acesso, tais como cinemas, clubes, lojas, centros comerciais, templos, ginásios, estádios, ainda que de propriedade privada".
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2019

O sistema eleitoral israelense

Israel conta com a mais consistente democracia em todo o Oriente Médio. Não é de fachada. Sociedade civil organizada e ativa, imprensa livre, grupos de pressão trabalhando juntos, oposição corajosa, gente na rua criticando o poder, ascenção e queda popular de mandatários, minorias vindicando direitos perante um Judiciário independente..., tudo aquilo o que vitaliza uma democracia há em Israel. O Knesset é o Parlamento. Por lá passaram nomes como David Ben-Gurion, Golda Meir, Shimon Peres, Yitzhak Rabin e o atual Primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu. Os membros do Knesset são eleitos a partir das listas apresentadas por cada partido nas eleições gerais. Segundo o artigo 4o da Lei Básica do Knesset, o Parlamento se forma nas eleições gerais, nacionais, diretas, iguais, com votações secretas e proporcionais. Há uma cláusula de barreira. O percentual é de 3,25% dos votos válidos para cada lista partidária (ou da coligação) de candidatos, o que costuma dar cerca de quatro assentos na Casa. Cada partido é livre para estabelecer a forma de indicar os nomes que integrarão as suas listas. Alguns o fazem por meio de "primárias". Outros, por seus órgãos internos, como o Diretório Nacional. Há ainda listas formadas por escolha dos líderes partidários. Os candidatos de qualquer lista são eleitos com base na ordem em que aparecem nela. Se um membro do Knesset falecer ou renunciar por qualquer motivo, a próxima pessoa na lista irá substituí-lo. O membro do Knesset é eleito para um mandato de quatro anos, que pode ser dissolvido antes, por ato formal que, anunciando a dissolução do Parlamento também adiante a data das próximas eleições. Outra hipótese de dissolução se dá quando não se aprova o Orçamento dentro de três meses a contar do início do ano fiscal, ou, ainda, quando o Primeiro-ministro, com a aprovação do presidente do país, dissolver o Knesset por ter perdido condições de governabilidade. Quando há a dissolução, pode acontecer de o mandato dos membros do Parlamento ser prorrogado até a chegada das eleições seguintes, resultando, excepcionalmente, em mandatos mais extensos do que os quatro anos. Após as eleições, as listas de candidatos que ultrapassaram a cláusula de barreira recebem um número de assentos no Knesset proporcional à sua força eleitoral. Esta distribuição é feita pela divisão de votos válidos dados às listas que ultrapassaram a referida cláusula, por 120, que é a quantidade de assentos do Parlamento. Alcançado o número (similar ao nosso quociente eleitoral), então tem-se a quantidade de votos necessários para preencher cada assento e, por via de consequência, a formação do próprio Knesset à luz do resultado das urnas. Israel já contou com várias propostas de reforma eleitoral devido ao grande número de partidos e às dificuldades para se governar diante dessa pulverização, mas nenhuma delas prosperou. A introdução do sistema de eleições diretas para o Primeiro-ministro (promulgada em 1992 e revogada em 2001) foi resultado, em grande medida, do fracasso em se aprovar a reforma eleitoral. Os partidos, e suas listas de candidatos, podem celebrar entre eles, antes das eleições, acordos que viabilizem a transferência de votos excedentes de partidos que não ultrapassem a cláusula de barreira. Não havendo qualquer acordo prévio, esses votos são distribuídos para as listas com maior número de votos por assento. É o método Bader-Ofer, em homenagem aos parlamentares Yohanan Bader e Avraham Ofer, que o criaram. A Lei dos Partidos, de 1992, estabelece que um partido não será registrado se qualquer um de seus propósitos ou atos, explícita ou implicitamente, contiver: (i) negação da existência do Estado de Israel como Estado judeu e democrático; e (ii) incitamento ao racismo ou apoio a uma luta armada de um Estado inimigo ou de uma organização terrorista contra o Estado de Israel. A lei também proíbe o registro de um partido se houver motivo razoável para deduzir que ele servirá a atividades ilegais. A capacidade eleitoral ativa - votar - é exercida por todo cidadão israelense a partir dos 18 anos de idade. Já a passiva - ser votado -, é conferida a todo cidadão com pelo menos 21 anos de idade. Há inelegibilidades: o Presidente do país, o Controlador do Estado, juízes e oficiais do Exército, certos servidores públicos seniores..., precisam renunciar a seus cargos em prazos que variam de cem dias a três anos antes das eleições. A Lei das Eleições para o Knesset (1969) prevê um Comitê Central das Eleições a ser estabelecido dentro de 60 dias da posse de cada nova composição do Knesset, servindo até o Knesset seguinte tomar posse. Ele supervisiona as eleições e é dirigido por um juiz da Suprema Corte, escolhido pelos seus pares. Formada uma coalizão de partidos no Knesset de pelo menos 61 parlamentares, o nome de um parlamentar que represente essa coalizão é encaminhado ao Presidente do país. Este atribui a tarefa de formar um governo ao líder do partido da maioria, o que inclui as indicações para as pastas do Poder Executivo. O candidato escolhido pelo presidente, após consulta ao Knesset, formaliza perante o Parlamento a coalizão que se tornará "governista" e os nomes que passarão a, ao lado do Primeiro-ministro, governar o país. É quando a nação, formalmente, passa a contar com um novo Primeiro-ministro. Graças a esse modelo - repleto de imperfeições, como todos os outros -, Israel tem levado ao Oriente Médio lições de uma democracia robusta que se retroalimenta dia a dia, por meio da garantia de direitos fundamentais assegurados por um Judiciário independente, um Parlamento barulhento formado pelas mais variadas forças políticas do país, um Executivo cujo poder é duramente controlado e, acima de tudo, uma sociedade civil que, mergulhada no rio das liberdades, faz desse país uma das mais fascinantes experiências democráticas que o século XX foi capaz de legar às futuras gerações.
segunda-feira, 11 de fevereiro de 2019

A judicialização do poder em Israel

No trajeto de Jerusalém para Masada, a sudoeste do Mar Morto, na região da Judeia, um deserto infinito se impõe sobre as vidas que ali resistem. Penhascos, cavernas e crateras são fiéis companheiros. Enxergar um rasgo de água pura serpenteando a estrada seria uma ilusão. Não há. Animais, pessoas, árvores, plantas, frutas, borboletas..., não se vê nada. É o encontro da solidão com o infinito. Mas, antes que a esperança escape, o inesperado aparece. Grandes, fortes, verdes, belas, imponentes..., milhares de árvores fazem no horizonte o desenho de um tapete verde inalcançável à vista. Canos preenchidos pela mais cristalina das águas irrigam um solo que parecia morto. Como se fosse leite e mel. Pessoas trabalham, veículos entram e saem. Há produção, há atividade, há energia humana. É vida. Vida em abundância. Como é possível, logo ali, florescer aquilo? É um contraste. Escassez e abundância uma ao lado da outra. Israel parece ser formada de contrastes. Tristeza e felicidade. Queda e triunfo. Ponto e contraponto. Guerra e paz. Medo e esperança. Essa dialética também acontece no Direito Constitucional. Como pode florescer um vasto campo para direitos constitucionalmente protegidos num país onde não há propriamente uma Constituição formal? Em Israel isso aconteceu. E não foi um milagre. Em 14 de maio de 1948, poucas horas depois do fim do Mandato Britânico sobre a Palestina, David Ben-Gurion, um founding father, declarou o estabelecimento do Estado de Israel. A Declaração foi promulgada pelo Conselho do Povo, o parlamento dos Yishuv. Os Yishuv são a comunidade judaica na Palestina. O Conselho do Povo, todavia, atribuiu a si a designação de Conselho de Estado Provisório e escolheu 13 dos seus membros para servir como Administração Popular. O novo Estado teve a sua primeira eleição em 25 de janeiro de 1949. Os cidadãos de Israel escolheram uma Assembleia Constituinte de 120 membros, responsável por elaborar uma Constituição. Contudo, uma vez reunida, a Assembleia resolveu mudar seu nome e suas responsabilidades. Virou Knesset, o Parlamento de Israel. A Constituição ficou para depois. Um ano mais tarde, o Knesset aprovou a Resolução Hahari, que conferiu à Comissão de Constituição, Direito e Justiça do Knesset o dever de elaborar uma série de leis básicas que, juntas, formariam a Constituição. Essa compilação não aconteceu. Em 1992, o Knesset aprovou a Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade. Em 1995, num julgamento emblemático ("Banco Mizrahi v. The Minister of Finance"), mesmo tendo sido, a Lei Básica Dignidade Humana e Liberdade, aprovada sem um quórum especial, a Suprema Corte a reconheceu como materialmente constitucional. Qualquer outra lei que a contrarie deve ser declarada inconstitucional. A decisão correspondeu, para a jurisdição israelense, a um Marbury v. Madson (1803). Nas palavras de Aharon Barak, que presidiu a Suprema Corte por mais de uma década: "Uma revolução constitucional". Como, ao longo de 45 anos, o Knesset havia aprovado onze Leis Básicas em matérias variadas, então mesmo sem o procedimento formal estipulado pela Resolução Hahari o país ganhou a sua própria Constituição, formada pelas referidas leis. A partir daí, a Suprema Corte começou a usar esse fabuloso insumo como matéria-prima de uma robusta produção coletiva de direitos, o que incluiu, também, casos polêmicos fruto de uma intensa judicialização das atividades do Poder Executivo. Vamos a alguns desses casos. "No Direito Privado, o indivíduo pode se comportar com certo 'capricho', embora tal 'capricho' não seja o que deveria ser. Mas, no domínio do Direito Público - Direito Constitucional e Administrativo - o 'capricho' é uma doença terminal"1. Esse trecho ilustrou a discussão travada, em 2003, na Suprema Corte, no caso "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General" (HCJ 7367/97). O Movimento por um Governo de Qualidade em Israel levou o Primeiro-Ministro Ariel Sharon à Suprema Corte. A razão? Uma controvertida escolha para o Ministério da Segurança Pública. Judicializou-se a indicação antes da posse do indicado. Tzahi Hanebi havia sido o apontado. Em 1982, jovem, ele foi condenado por se envolver numa confusão na universidade. Posteriormente, já uma figura pública, viu seu nome pululando em três investigações sem que tivesse sido condenado em nenhuma delas. O Movimento entendia que Hanebi não poderia servir ao Governo, pois apesar de não ter sido condenado, todos os rumores que seu nome despertava estilhaçavam o cristal da confiança pública no Ministério, o que terminava gerando obstruções dos populares. Essas obstruções, somadas a toda a mídia que o indicado atraía e ao burburinho de que novas investigações poderiam surgir atrapalhavam a continuidade do serviço público prestado pelo Ministério e pareciam limitar a capacidade do próprio Hanebi de executar legitimamente uma agenda ministerial. O Justice Mishael Cheshin, proferindo o seu voto, arrematou: "Aqueles que exercem autoridade em nome do Estado ou de qualquer outra autoridade pública - no nosso caso, o Primeiro-Ministro e o Ministro da Segurança Pública - devem estar conscientes de que suas questões não são suas. Trata-se de questões que dizem respeito a outros e eles são obrigados a conduzirem-se com justiça e integridade, em estrita conformidade com os princípios da administração pública"2. Cheshin ficou vencido. A Suprema Corte de Israel concluiu não haver razão para impedir que Ariel Sharon empossasse Tzahi Hanebi no Ministério da Segurança Pública. Vetar a assunção ao posto sem que houvesse taxativa previsão a respeito ou, pelo menos, que o conjunto dos fatos indicasse evidências mais robustas, poderia se tornar um hábito caprichoso de juízes moralistas. Melhor não abrir essa Caixa de Pandora. O racional acima esteve presente na decisão da Suprema Corte no caso "Women's Lobby v. The Minister of Labor and Welfare", (HCJ 2671/98). Ficou registrado: "Ao agir no domínio do direito público, a autoridade investida do poder de nomeação opera na qualidade de administrador público. Assim como um administrador fiduciário não possui nada próprio, também a autoridade que nomeia não possui nada dela. Deve conduzir-se à maneira do administrador: agir com integridade e equidade, considerando apenas fatores relevantes, atuando com razoabilidade, igualdade e sem discriminação"3. No já citado "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General" (2003), o Justice Eliezer Rivlin, relator, registrou em seu voto-vencedor: "Tanto a decisão do Primeiro-Ministro de nomear uma pessoa e sua decisão de não exonerar um indicado ao seu gabinete estão sujeitas a padrões de razoabilidade, integridade, proporcionalidade, boa-fé e ausência de arbitrariedade ou discriminação"4. Em 2016, a Suprema Corte apreciou o caso "Movement for Quality Government in Israel v. Prime Minister" (HCJ 232/16), no qual se questionava a indicação do membro do Knesset, Rabbi Aryeh Machlouf Deri, para o posto de Ministro do Interior. Deri havia sido condenado por corrupção na década de 1980. O Justice Salim Joubran anotou: "a intervenção deste Tribunal, na discricionariedade das pessoas autorizadas a remover um Ministro ou Vice-Ministro do cargo, deve ser limitada às situações em que a gravidade da infração não pode ser conciliada com a continuidade do serviço público"5. A discussão é rica. O poder que chefes do Executivo têm hoje não é nem de longe o que um dia já tiveram. Moisés Naím, especialista, é peremptório: "O poder está em degradação". Para ele, "no século XXI, o poder é mais fácil de obter, mais difícil de utilizar e mais fácil de perder". Naím explica que os governantes estão cada vez mais com dificuldades de exercer o poder que sonhavam ter. As democracias têm requerido dos poderosos mais e mais tolerância com o controle diário do seu poder. Sua derradeira frase é: "De Chicago a Milão e de Nova Délhi a Brasília, os chefes das máquinas políticas irão prontamente admitir que têm bem menor capacidade de tomar as decisões unilaterais que seus predecessores davam como certas"6. Num único dia, em Jerusalém, é possível ouvir o cântico Islâmico de megafones na Dome of the Rock, a oração enfática dos judeus no Muro das Lamentações e, por fim, a badalada dos sinos nos templos cristãos. Em Acre, ao Norte, um trabalhador árabe vive na casa que pertence a sua família há 800 anos. No Sul, beduínos dividem sua refeição no deserto mostrando que, em ambientes hostis, resistir é a única possibilidade. Em Tel Aviv, jovens converteram as cicatrizes e os conhecimentos adquiridos no tempo do exército em tecnologia e inovação que, juntas, amenizarão o sofrimento do semelhante. No Mar Morto sente-se vida em abundância. Trilhos percorrem a borda do desenho do mar, engolidos por túneis que se ajoelham para as colinas da Terra Sagrada. Tudo isso em Israel. Num solo onde uma Constituição não foi plantada nasceram os mais valiosos frutos de uma verdadeira democracia constitucional. Quem poderia imaginar? Se, dos penhascos secos da Judeia, o tirocínio humano fez nascer um tapete verdejante de prosperidade tal como montanhas de leite e mel, a decisão da Suprema Corte de Israel, em 1995, reconhecendo sua competência para aferir a constitucionalidade de leis, abriu espaço para o florescimento de uma cultura verdadeira de revisão judicial. Isso faz com que o constitucionalismo israelense seja uma genuína demonstração de um feliz acaso. Ninguém poderia imaginar que num país sem uma Constituição nasceria um exuberante campo de estudo sobre o Direito Constitucional. Mas aconteceu. __________ 1 Consta do parágrafo 24 (p. 400) do acórdão: "Within the area of private law the individual can behave with a measure of the 'capriche', though such 'capriche' is not what it used to be, nor should it be. But in the realm of public law - constitutional and administrative law - caprice is a terminal illness". 2 Consta do parágrafo 24 (p. 400) do acórdão: "Those exercising authority on behalf of the state or any other public authority - in our case, the Prime Minister and the Minister of Public Security - must constantly be aware that their affairs are not their own. They are dealing with matters that concern others and are obligated to conduct themselves with fairness and integrity, in strict compliance with the principles of public administration". 3 Consta do parágrafo 24 do acórdão: "When acting in the domain of public law, the appointing authority operates in the capacity of a public trustee. Just as a trustee possesses nothing of his own, so too, the appointing authority possesses nothing of its own. It must conduct itself in the manner of the trustee: acting with integrity and fairness, considering only relevant factors, acting with reasonableness, equality, and without discrimination". 4 No parágrafo 17 do acórdão consta: "Therefore, both the Prime Minister's decision to appoint a person and his decision not to remove one from office are subject to the accepted standards of reasonableness, integrity, proportionality, good faith, and the absence of arbitrariness or discrimination". 5 Consta do parágrafo 28 do voto-vencedor no acórdão: "(...) the boundaries of the Court's intervention in appointments is limited to those instances in which an appointment might seriously harm the standing of the institutions of government and the public's confidence in them". 6 Naím, Moisés. O fim do poder: nas salas da diretoria ou nos campos de batalha, em Igrejas ou Estados, por que estar no poder não é mais o que costumava ser?/ Moisés Naím; tradução Luis Reyes Gil. - São Paulo: LeYa, 2013.
segunda-feira, 4 de fevereiro de 2019

O singular Poder Constituinte em Israel

Premido por circunstâncias únicas, nascido a partir de um arranjo institucional internacional irrepetível, compreendido como o resultado mais virtuoso ao qual a diplomacia é capaz de chegar, Israel dá ao mundo a oportunidade de investigar como a teoria do poder constituinte pode ser empregada no singular nascimento dessa nação. Em Israel, o ápice do movimento constituinte foi, internamente, a aglutinação popular que contou com a liderança de David Ben-Gurion. A partir dali, o grito de liberdade foi dado em Tel Aviv, no Museu de Artes, já não sendo apenas uma mera proclamação política, mas uma declaração fundante solenemente anunciada. Cada nação traz em sua história a centelha que faz disparar o Poder Constituinte Originário. Israel, demonstrando a originalidade da sua caminhada, contou com a participação fundamental da Organização das Nações Unidas. Por isso, a Declaração do Estabelecimento do Estado de Israel precisa ler lida em conjunto com a resolução 181, da Assembleia Geralda ONU, de 29 de novembro de 1947. Ao contrário dos demais países, cujo nascimento se dá a partir de normas jurídicas internas, Israel percorreu um caminho diferente, ganhando do concerto das nações a sua base jurídica fundante. Enquanto todos os países buscam declarar internamente suas independências para, a partir daí, ganharem a atenção do mundo, Israel ganhou a atenção do mundo e, então, estabeleceu internamente a si mesmo. Se o que se vê em regra é um movimento de dentro para fora, em Israel foi o contrário, de fora para dentro. A resolução 181 começa o seu texto com um preâmbulo e, em seguida, reclama expressamente a sua implementação. Logo no preâmbulo, dispõe que a Assembleia Geral "solicita que (a) o Conselho de Segurança tome as medidas necessárias, conforme previsto no plano para sua implementação". Vem então o capítulo "Plano de Participação com União Econômica", cuja "Parte I" trata da "Futura constituição e governo da Palestina". O tópico B, "Etapas Preparatórias à Independência", reitera o diálogo institucional necessário entre a Independência de Israel e os comandos da Resolução 181: "2. A administração da Palestina, à medida que o Poder Mandatório retira suas forças armadas, será progressivamente entregue à Comissão; que agirá em conformidade com as recomendações da Assembleia Geral, sob a orientação do Conselho de Segurança". Mesmo a formação da Assembleia Constituinte em Israel encontrou na resolução 181 o seu fundamento de validade. Eis o Item 9: "O Conselho Provisório de Governo de cada Estado deverá, no prazo máximo de dois meses após a retirada das forças armadas do Poder Mandatário, realizar eleições para a Assembleia Constituinte que serão conduzidas em linhas democráticas". Na sequência, o item 10 descreve detalhadamente como há de se dar a formação e funcionamento da Assembleia Constituinte. Isso reafirma que as regras e princípios que fundam o país encontram a sua base normativa não apenas na Declaração de Estabelecimento do Estado de Israel, mas na Resolução 181 da ONU, que integra o bloco de constitucionalidade cujo respeito e preservação cabe a cada um dos Poderes - Legislativo, Executivo e Judiciário. Abaixo, trechos do Item 10 da resolução 181: "10. A Assembleia Constituinte de cada Estado redigirá uma constituição democrática para seu Estado e escolherá um governo provisório para suceder o Conselho Provisório de Governo nomeado pela Comissão. As constituições dos Estados devem incluir os capítulos 1 e 2 da Declaração, previstos na seção C abaixo, e incluir, inter alia, disposições para: (a) Estabelecer em cada Estado um órgão legislativo eleito por sufrágio universal e por voto secreto com base na representação proporcional, e um órgão executivo responsável perante o legislativo; b) Resolver todas as controvérsias internacionais em que o Estado possa estar envolvido por meios pacíficos, de tal maneira que a paz, a segurança e a justiça internacionais não sejam postas em perigo; c) Aceitar a obrigação do Estado de abster-se, nas suas relações internacionais, da ameaça ou do uso da força contra a integridade territorial da independência política de qualquer Estado ou de qualquer outra maneira incompatível com os propósitos das Nações Unidas; (d) Garantir a todas as pessoas direitos iguais e não discriminatórios em matéria civil, política, econômica e religiosa e o gozo dos direitos humanos e liberdades fundamentais, incluindo a liberdade de religião, idioma, fala e publicação, educação, reunião e associação; (e) Preservar a liberdade de trânsito e a visita a todos os residentes e cidadãos do outro Estado da Palestina e da Cidade de Jerusalém, sujeitos a considerações de segurança nacional, desde que cada Estado controle a residência dentro de suas fronteiras". É de fundamental importância ter atenção com o que está disposto na cabeça do item10: "(...) As constituições dos Estados devem incluir os capítulos 1 e 2 da Declaração, previstos na seção C abaixo, e incluir, inter alia, disposições para: (...)"1. E o que dizem os citados capítulos 1 e 2 da Declaração? Eis a transcrição: "Capítulo 1 Lugares sagrados, edifícios religiosos e locais 1. Os direitos existentes em relação a lugares sagrados e edifícios religiosos ou locais não devem ser negados ou prejudicados. 2. No que diz respeito aos Lugares Sagrados, a liberdade de acesso, visita e trânsito será garantida, em conformidade com os direitos existentes, a todos os residentes e cidadãos do outro Estado e da Cidade de Jerusalém, bem como aos estrangeiros, sem distinção de nacionalidade, sujeita a exigências de segurança nacional, ordem pública e decoro. Do mesmo modo, a liberdade de culto deve ser garantida em conformidade com os direitos existentes, sujeita à manutenção da ordem e do decoro públicos. 3. Lugares Sagrados e edifícios ou locais religiosos devem ser preservados. Nenhum ato será permitido que de alguma forma possa prejudicar seu caráter sagrado. Se a qualquer momento parecer ao Governo que qualquer Lugar Sagrado, edifício religioso ou local necessita de reparos urgentes, o Governo pode convocar a comunidade ou as comunidades envolvidas para realizar tal reparo. O Governo pode realizá-lo às custas da comunidade ou comunidades envolvidas, se nenhuma ação for tomada dentro de um prazo razoável. 4. Nenhuma tributação será cobrada em relação a qualquer Lugar Sagrado, prédio religioso ou local que esteja isento de tributação na data da criação do Estado. Nenhuma mudança na incidência de tal tributação deverá ser feita, o que discriminaria entre os proprietários ou ocupantes de Lugares Sagrados, edifícios ou locais religiosos, ou colocaria tais proprietários ou ocupantes em uma posição menos favorável em relação à incidência geral de tributação do que existia no momento da adoção das recomendações da Assembleia. 5. O Governador da Cidade de Jerusalém terá o direito de determinar se as disposições da Constituição do Estado em relação aos Lugares Sagrados, edifícios religiosos e locais dentro das fronteiras do Estado e os direitos religiosos relacionados a eles estão sendo propriamente ditos, aplicada e respeitada, e para tomar decisões com base nos direitos existentes em casos de disputas que possam surgir entre as diferentes comunidades religiosas ou os ritos de uma comunidade religiosa em relação a tais locais, edifícios e locais. Ele receberá plena cooperação e os privilégios e imunidades necessários ao exercício de suas funções no Estado. Capítulo 2 Direitos Religiosos e Minoritários 1. A liberdade de consciência e o livre exercício de todas as formas de culto, sujeitas apenas à manutenção da ordem pública e da moral, devem ser asseguradas a todos. 2. Nenhuma discriminação de qualquer espécie será feita entre os habitantes por motivo de raça, religião, idioma ou sexo. 3. Todas as pessoas dentro da jurisdição do Estado terão direito a igual proteção das leis. 4. A lei de família e o status pessoal das várias minorias e seus interesses religiosos, incluindo doações, devem ser respeitados. 5. Exceto se for necessário para a manutenção da ordem pública e boa administração, nenhuma medida será tomada para obstruir ou interferir no empreendimento de entidades religiosas ou beneficentes de todas as religiões ou para discriminar qualquer representante ou membro desses órgãos sobre o assunto. base de sua religião ou nacionalidade. 6. O Estado assegurará educação primária e secundária adequada para a minoria árabe e judaica, respectivamente, em sua própria língua e suas tradições culturais. O direito de cada comunidade de manter suas próprias escolas para a educação de seus próprios membros em sua própria língua, conformando-se a tais requisitos educacionais de natureza geral que o Estado possa impor, não deve ser negado ou prejudicado. Os estabelecimentos de ensino estrangeiros continuarão suas atividades com base em seus direitos existentes. 7. Nenhuma restrição será imposta sobre o uso livre por qualquer cidadão do Estado de qualquer língua em relações privadas, no comércio, na religião, na imprensa ou em publicações de qualquer tipo, ou em reuniões públicas. 8. Nenhuma expropriação de terras pertencentes a um árabe no Estado judeu (por um judeu no Estado árabe) 4 / será permitida exceto para propósitos públicos. Em todos os casos de expropriação, a indenização integral, conforme fixada pelo Supremo Tribunal, será paga antes da expropriação." No capítulo C, "Declaration", consta o arremate: "As estipulações contidas na declaração são reconhecidas como leis fundamentais do Estado e nenhuma lei, regulamento ou ação oficial entrará em conflito ou interferirá com estas estipulações, nem qualquer lei, regulamento ou ação oficial prevalecerá sobre elas". Ou seja, Israel já tinha, antes de nascer, cláusulas pétreas cujo conteúdo material é típico de um Bill of Rights. O mundo, reunido numa mesa redonda, sem cabeceiras, com todas as nações em pé de igualdade, decidiu, institucionalmente, abrir caminho para a criação do Estado de Israel, que precisava se dar a partir de um conjunto de atos internos, notadamente a sua Declaração de Estabelecimento, seguida da Constituição. Todavia, todos os passos seguintes estariam integralmente vinculados ao verdadeiro Poder Constituinte Originário daquele momento histórico, poder este que residia nas mãos do mundo por meio da ONU. A Resolução 181 estabeleceu que qualquer que fosse o caminho adotado por Israel, ele jamais se daria sem a observância de direitos fundamentais ali estipulados e, indo além, que nenhuma lei - incluindo a própria Constituição ou emendas constitucionais -, regulação ou ato estatal poderiam entrar em conflito ou sequer interferir naqueles direitos, pois, caso isso ocorresse, os direitos fundamentais previstos na Resolução - "fundamental laws" -, prevaleceriam. Na Declaração de Estabelecimento do Estado de Israel, de 14 de maio de 1948, consta: "a Assembleia Geral exigiu que os habitantes de Eretz-Israel tomassem as medidas necessárias para a implementação dessa resolução. O reconhecimento pelas Nações Unidas do direito do povo judeu de estabelecer seu Estado é irrevogável". O que era externo, virou interno. O que veio de fora, passou e prevalecer dentro. Antes ONU, agora Eretz-Israel. A Resolução 181 foi internalizada. É norma vinculante. Os membros do chamado People's Council reiteraram: "Por isso, membros do Conselho do Povo, representantes da comunidade judaica de Eretz-Israel e do Movimento Sionista, estão aqui contidos no dia do cancelamento do Mandato Britânico sobre Eretz-Israel e, por virtude de nosso natural e o direito histórico e a força da resolução da Assembleia Geral das Nações Unidas, declaram o estabelecimento de um Estado Judaico em Eretz-Israel, para ser conhecido como Estado de Israel". Então, a declaração final: "O Estado de Israel está preparado para cooperar com as agências e representantes das Nações Unidas na implementação da resolução da Assembleia Geral de 29 de novembro de 1947 e tomará medidas para promover a união econômica de toda a região de Eretz-Israel". A Resolução 181 da ONU, e os direitos fundamentais que estipula, são, portanto, norma válida, dotada de eficácia imediata e plena perante todos os poderes do Estado de Israel, oriunda do Poder Constituinte Originário. O apogeu da história da democracia se dá em momentos de erupção política, não frequentes, nos quais uma grande aglutinação popular ou um corpo de lideranças políticas legitimadas decide encerrar o capítulo presente da trajetória do seu povo, rompendo com o status quo e criando, a partir dali, um novo Estado, fundado juridicamente, institucionalizando o poder, que há de ser controlado, e garantindo não apenas direitos fundamentais, mas, mais importante do que criá-los, estabelecendo formas de garanti-los. É o Poder Constituinte Originário, e apenas ele, o receptor jurídico da explosão política popular capaz de fazer um risco no chão da história de um país para que, a partir dali, um novo caminho seja percorrido. De tempos em tempos o mundo sente, em partes diferentes da Terra, esse Big Bang. De repente, do silêncio, surge o som. Do mergulho profundo na escuridão vem uma superfície de luz abundante. Os exemplos são vastos. Da Declaração de Independência dos Estados Unidos à Revolução Francesa. Da fundação do Estado de Israel em 1948 à independência dos países africanos na década de 1960. Do fim do apartheid na África do Sul à Primavera Árabe. Todos eles episódios de explosões populares que mudaram a história, para sempre. Momentos de explosão democrática, ou de grande torpor social, ou mesmo de natureza revolucionária, não encontram diante de si um enredo pronto para ser seguido. Não se tratam de peças a serem ensaiadas. A história quase sempre se faz de improviso, sem ensaio. Vem das forças políticas irrefreáveis e espontâneas o ápice dos acontecimentos que, exercitando a soberania popular - essa sim, eterna -, mais do que virar a página da história decidem por começar um novo livro, cujas páginas em branco serão preenchidas pelo povo - direta e indiretamente -, a partir de um grito de independência seguido pelo estabelecimento de uma nova Constituição ou documento equivalente. No caso de Israel, os comandos essenciais - as "fundamental laws" - da Resolução 181 foram explícita e rigorosamente repetidos na Declaração de Estabelecimento do Estado de Israel. Uma vez tendo internalizada a Resolução 181 da ONU, Israel positivou seu texto, dando-lhe imediata, direta e plena eficácia interna. Indo além, quando a Declaração de Estabelecimento do Estado de Israel qualifica a Resolução 181 como irrevogável, deixa evidente a natureza de Poder Constituinte Originário, ou seja, aquela explosão da diplomacia global, quando, num momento único na história das civilizações, o planeta se senta ao redor de uma mesa para, por meio do voto, dizer sim ou não quanto ao nascimento de um novo país. Nunca, jamais, o conjunto de elementos sociais, econômicos, jurídicos e políticos que fizeram o mundo tomar parte nesse grande acontecimento irá se repetir. Assim nasceu Israel, de forma única, e assim essa nação segue disposta no globo, num caldeirão de singularidades que não é apenas geográfico, ou geopolítico, mas jurídico também. __________ 1 "10. (...) The constitutions of the States shall embody chapters 1 and 2 of the Declaration provided for in section C below and include inter alia provisions for: (.)".
segunda-feira, 28 de janeiro de 2019

Ginga, ubuntu e chutzpah na Constituição

No primeiro elemento, criatividade. No segundo, empatia. No terceiro, audácia. Ginga, ubuntu e chutzpah. Constitui, cada um, um pedaço da alma do Brasil, da África do Sul e de Israel, respectivamente. Falar sobre eles é falar sobre o poder. O poder que temos sobre nós mesmos e também o poder coletivo, do povo, presente na Constituição Federal tanto no preâmbulo como no parágrafo único do art. 1o, quando diz que "todo o poder emana do povo". Vamos começar por casa. O que é a ginga, exatamente? Ginga é o conjunto de movimentos que cria a fantasia de que a capoeira é uma dança. Foi a forma criativa e original que os escravos encontraram para enganar seus captores. Enquanto treinavam suas habilidades de lutadores para enfrentarem com coragem a crueldade da escravidão no Brasil, eles davam a entender que nada faziam de errado, apenas dançavam. Movimento central da capoeira, a ginga - ou o gingado - tira do adversário o alvo fixo que pode ser fatal. Indo e voltando, o capoeirista engana o seu oponente, induzindo-o a um golpe, mas, com criatividade, saindo do ataque e reagindo com destreza. Há persuasão, graça, sensualidade, beleza, destreza e imaginação. O adversário é feito de bobo. No contexto da escravidão, considerando o poder que o adversário tinha sobre os escravos, essa era a vingança possível. Mas teria a ginga proteção constitucional atualmente? Ou algum comando normativo que sinalize a sua presença entre nós? A resposta é sim. A ginga, compreendida como uma forma de se expressar, de criar, de fazer e até de viver no Brasil encontra morada na Constituição. Os incisos I e II do art. 216 dizem constituir o patrimônio cultural brasileiro: "I - as formas de expressão; II - os modos de criar, fazer e viver". Originalidade, criatividade e imaginação constituem a matéria-prima da ginga. O inciso IX do art. 5º, diz: "IX - é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Segundo o caput do art. 220, a criação e a expressão, sob qualquer forma, processo ou veículo, não sofrerão qualquer restrição. O § 2º do mesmo comando veda toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística. Liberdade. Liberdade em abundância. Temos um vasto campo para fazermos o que temos de fazer com originalidade, criatividade e imaginação. A ancestralidade negra vive em nós, habita a nossa poesia, as nossas artes, as formas de pensarmos e olharmos o mundo. A ginga está aqui. E está constitucionalmente reconhecida e protegida. A ginga chega, por exemplo, no futebol. Cria um jogo único, cheio de mistérios, com dribles inexplicáveis. Pelé, em 1958, foi persuadido a jogar a Copa do Mundo imitando os europeus. Recusou. Nos campos, apresentou um futebol que não era força, mas beleza; não era competição, era arte; não era técnica, era paixão; não era somente disciplina, mas uma combinação entre ritmo e alegria. Como anotou o poeta senegalês (e presidente do Senegal), Léopold Sédar Senghor: "Se a razão é europeia, a emoção é africana". Colocamos emoção no jogo e fomos campeões. Ginga. Tudo isso só se faz inovando. E a inovação há de ser promovida e incentivada pelo Estado, como diz o caput do art. 218 da Constituição. Thaís Vasconcelos, por exemplo, enxergou nas plantas algo além do óbvio. Por inovar, enfrentou resistências. Na Inglaterra, não esqueceu o Brasil. Estudou a pitanga e o eucalipto. Fez de algo tão nosso a base da sua tese de doutorado. Ganhou o prêmio anual John C Marsden Medal, da Linnean Society, uma das mais prestigiadas honrarias científicas do mundo. Ao deixar a sua mensagem após o prêmio, disse: "A ciência precisa de mais pessoas criativas, de mais curiosidade". Criatividade e curiosidade têm base constitucional. Segundo o art. 206, II, um dos princípios base do nosso ensino é: "II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber". Esse ingrediente também é a matéria-prima da superação, da sobrevivência. Irriga de criatividade as veias de quem tem na derrota dos seus predadores a única chance de seguir vivo e, vivendo, perseguir a sua própria felicidade. No Deserto do Negev, em Israel, observei as cabras do deserto. Eu as enxerguei no topo de um monte, repleto de pedregulhos claros. A cor do seu couro, patas e cabeça é a mesma do chão árido do Negev. Camufladas, as cabras conseguem não ser facilmente vistas pelos predadores. Com originalidade, criam uma fantasia para despistar seus piores adversários. Dão a entender algo que, na verdade, não existe. Elas fazem os adversários de bobos e, assim, sobrevivem. É a vingança possível num ambiente hostil. Se o Brasil tem a ginga, a África do Sul tem o segundo elemento, o ubuntu. É uma palavra Zulu cuja compreensão deve vir da leitura de toda a expressão que lhe dá origem: "ubuntu ngumuntu ngabantu, motho ke motho lo batho ba bangwe". Um ser humano é um ser humano por causa dos outros seres humanos. A expressão mais simples, "umuntu ngumuntu ngabantu", tem tradução aproximada para: "uma pessoa é uma pessoa por, ou através, de outras pessoas". Algo como: "Eu sou, porque você é". Considerada a filosofia fundamental do povo banto na África do Sul, ela ultrapassa a ideia de comunitarismo ou coletivismo. Segundo John Donne, "ubuntu é um princípio constitucional ativo e central. É uma profunda má-compreensão confundi-lo com o lugar comum do comunitarismo". O ubuntu imortaliza a compreensão do ser humano como um ser social, cuja finalidade da existência não reside apenas em compromissos individuais, mas na capacidade de se projetar como alguém que só desenvolve seu potencial por meio das relações com outras pessoas. A vida pública na África do Sul é repleta de ubuntu. Em 2016, a Comissão de Serviço Judicial, que faz as entrevistas com os indicados pelo presidente da República a altos cargos nos tribunais, se surpreendeu com a candidata a vaga de juíza na High Court de Gauten, em Joanesburgo, Lobogang Modiba. Aos 43 anos, casada e mãe de três crianças, a advogada teve uma vida de pobreza. Órfã de mãe aos três anos, foi criada pelo pai. Em Alexandra, a township (equivalente aproximado das nossas favelas) onde morava, Modiba lidava com o frio e a falta de eletricidade. Para fugir dos ratos que infestavam seu barraco, se refugiava na biblioteca. "Os livros me ajudaram a escapar da miséria", disse. Jamais conseguiu se livrar da fobia a ratos. Quando o pai perdeu o emprego, ela começou a trabalhar na Clínica Jurídica de Alexandra. Ostenta hoje um mestrado em Direito, por Harvard, fruto de uma bolsa que ganhou. "Meu sonho é um dia estar na Corte Constitucional", comentou. "Eu estarei lá para aplaudir você", afirmou Dikgang Moseneke, vice-presidente da Corte Constitucional e um dos membros da Comissão. Modiba foi a escolhida para a vaga na High Court. E não é apenas ela. O próprio Dikgang Moseneke triunfou sobre a crueldade e manteve vivo os seus laços com a comunidade. Durante o apartheid, aos 14 anos, a polícia o encarcerou por participar de uma manifestação. Na cela, uma algema prendeu seus pulsos ao teto. Com os braços para cima, ele se segurou pelas pontas dos pés. Quando abriram as algemas, e ele caiu, pediu a presença de um médico. Moseneke havia notado seus pulsos fraturados. Foi quando viu um dos policiais voltando, vestindo um colete branco, de médico. Ali ele foi espancado. Os pulsos ainda guardam as cicatrizes da tortura. Anos depois, Dikgang Moseneke foi novamente preso, julgado e condenado. Ele participava da União dos Estudantes Africanos e lutava pelo fim do apartheid. Foi mandado para Robben Island, a prisão de Nelson Mandela, onde passaria 10 anos. Moseneke soube preservar sua dignidade. Ele conquistou um bacharelado em Inglês, outro em Ciência Política e, por fim, um em Direito, todos feitos por correspondência. Numa África do Sul democrática conduzida por uma Constituição generosa, Dikgang Moseneke se tornou o vice-presidente da Corte Constitucional. Lobogang Modiba e Dikgang Moseneke trazem, pelas suas histórias de vida, o traço inquestionável da superação, por meio do esforço pessoal, mas, também, pela crença na comunidade, no outro, no semelhante. Elevaram-se elevando os outros. A Constituição brasileira é cheia de ubuntu. O inciso IX do art. 4o aponta como um dos princípios pelo qual a República se rege nas suas relações internacionais: "a cooperação entre os povos para o progresso da humanidade". Os incisos do art. 3º apontam os objetivos fundamentais da República. Eis alguns: "I - construir uma sociedade livre, justa e solidária; III - erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". O caput do art. 6º inclui, como um dos direitos sociais, "a assistência aos desamparados". Segundo o inciso VII do art. 170, um dos princípios da ordem econômica é "a redução das desigualdades regionais e sociais". À luz do art. 193, a ordem social tem como objetivo "o bem-estar e a Justiça sociais". Todos esses comandos traduzem a consciência de que "eu sou, porque você é". Exortam a algo universal. O ubuntu africano, essa compreensão de que só crescemos quando elevamos o outro, está constitucionalmente presente entre nós. É bom que esteja. E quanto a Israel? Aqui, o elemento é a chutzpah, a palavra derivada do iídiche cuja tradução remete para a audácia, o atrevimento, coragem e atitude diante das injustiças ou desafios da vida. Visitei, no Deserto do Negev, a casa do primeiro primeiro-ministro de Israel, David Ben-Gurion. Homem culto, a biblioteca era o maior cômodo da casa. Em seu quarto, livros ficaram abarrotados na escrivaninha ao lado da cama. Ele viajou bastante. Fez amizade com líderes importantes e tinha um quadro de Gandhi em seu quarto. Todas as fotos que vi em sua casa mostravam-no com a testa enrugada, dando instruções, no meio do deserto ou em áreas de guerra. Era um homem de grande liderança, mas uma liderança que não era baseada em risos falsos, discursos vazios ou tapas das costas de aliados matreiros. A sua liderança se baseava na chutzpah. Na casa, há um cinema que exibe um filme biográfico. Nele, há uma cena de um discurso que faria no Knesset, o parlamento Israelense. Antes de entrar, o presidente do Knesset e uma integrante do Parlamento advertem que Ben-Gurion não deveria assinar o acordo que faria com que Israel recebesse dinheiro da Alemanha como compensação pelo Holocausto. Lá fora uma multidão gritava palavras de ordem contra o primeiro-ministro em razão da intenção de aceitar aquele dinheiro. "Eu não estou em busca de manchetes de jornais! Não sei o que o povo acha ou deixa de achar. Eu sei o que o povo precisa. E por isso vou aceitar esse dinheiro". Chutzpah é ter a audácia de ser comportar de forma contramajoritária, de saber que as grandes decisões precisam contar com sabedoria, não necessariamente arrancarem aplausos. Não raramente, uma pessoa com chutzpah será questionadora, exigirá explicações ou justificativas. Há uma tendência anti-establishment. Como dito, esses elementos são universais. Dou um exemplo. Lendo a biografia de Luiz Gonzaga, escrita por Dominique Dreyfus, vi que ele, antes de começar a carreira como cantor, era sanfoneiro na Rádio Tamoio. Ficava o dia inteiro tocando sanfona. Certo dia, sem aguentar mais sufocar o seu talento, Gonzaga pegou o microfone no meio de uma transmissão e cantou. Ele não podia fazê-lo, mas fez. O diretor da rádio, Fernando Lobo, não gostou. "Quem já imaginou sanfoneiro cantando?!". O atrevimento lhe custou muito. Dia seguinte, quando voltou para a Rádio Tamoio, da qual era contratado, Gonzaga viu o seguinte aviso no estúdio: "Luiz Gonzaga está terminantemente proibido de cantar, por ter sido contratado como sanfoneiro". Luiz Gonzaga ficou encabulado, reticente. Mas, com o tempo, aquele sentimento voltou a consumi-lo. Era maior do que ele. Luiz Gonzaga então criou coragem e decidiu cantar. Cantou e o fez como ninguém jamais foi capaz de fazer. Ao quebrar as regras da Rádio Tamoio em razão de algo que lhe parecia cristalino, Gonzaga teve chutzpah. Esse tipo de ousadia, de atrevimento, é a essência do elemento. Chutzpah traz a audácia para empreender, seguir adiante, desafiar o sistema. Ela está contemplada no inciso IV do art. 1º da Constituição, quando aponta, como um dos fundamentos da República, a livre iniciativa, que também é um dos princípios da ordem econômica (art. 170, III). A liberdade para fazer a diferença e fazê-lo com ousadia. Há outros exemplos singelos. Há alguns anos, o jornalista Márcio Canuto, da Rede Globo, entrevistou uma criança na sua primeira visita ao museu. Alto, forte e de voz inconfundível, o jornalista perguntou: "E aí? O que que achou?". A sequência de sons das palavras empregadas na frase fez com que o pequeno garoto ouvisse "E aí, cachorro?". Até então, a criança estava tímida, sem saber como se portar diante daquele homem grande, forte, de voz estridente. Mas, ao ouvir uma pergunta que lhe pareceu inapropriada, o pequeno reagiu com chutzpah: "Cachorro? Eu não sou cachorro não!". Claro que tudo foi apenas fruto da cacofonia gerada pela engraçada pergunta do jornalista. Mas, se estivesse diante de algo que entendesse injusto, aquele garotinho reagiria da mesma forma, com essa carga invencível de atrevimento. Chutzpah é ainda elevar a voz contra o que não pode ser tolerado. Noutras palavras: repudiar certas coisas. O inciso VIII do art. 4º da Constituição diz que a República rege-se, nas suas relações internacionais, também pelo seguinte princípio: "VIII - repúdio ao terrorismo e ao racismo". Repúdio absoluto. Quando cruza a linha, a chutzpah pode se transformar em prepotência, assim como a ginga, quando deformada, vira jeitinho. Ubuntu, se abandonado a si mesmo, pode estrangular as individualidades. O segredo dos três elementos está na medida, na dose. Criatividade, empatia e audácia. Brasil, África do Sul e Israel. Ginga, ubuntu e chutzpah. Esses são elementos de humanidade nutridos no seio do povo. Exalam poder, um poder coletivo que pode inspirar e transformar. A Constituição trouxe, em seus comandos, linhas de amparo a cada um desses elementos. Pelo primeiro, assegura o espaço necessário para ser criativo. No segundo, estabelece um conjunto de compromissos com o semelhante, vitalizando a compreensão de que só somos através dos outros. Por fim, abre caminho para a audácia de empreender e, também, para, sem medo, repudiar o que tem que ser repudiado. Ginga, ubuntu e chutzpah. Agora é praticar.
segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Suprema Corte de Israel reafirma direitos LGBT

A Suprema Corte de Israel, seguindo sua jurisprudência, decidiu um caso levado ao Tribunal por um casal homoafetivo que sustentou estar sendo discriminado pelo Estado quando comparado com casais heterossexuais. O casal, formado por dois homens gays, argumentou que quando um casal heterossexual adota uma criança, o ministro de Assuntos Internos lhe confere uma certidão de nascimento com o nome dos pais. Mas isso não acontece quando o casal é homoafetivo. Nessa hipótese, consta o pai ou a mãe, a depender de quem adota, não ambos. Eles pediram, portanto, a presença de ambos, como pais. Os autores do caso, que contaram com o suporte da AGUDA - LGBT Força-Tarefa, também sustentaram que a discriminação machucaria a criança, que tanto quer gozar dos direitos inerentes a uma criança adotada como, ainda pior, fica submetida a uma grande burocracia para que possam ter a sua certidão de nascimento. A Suprema Corte israelense se convenceu das alegações e determinou que o Estado emita uma certidão de nascimento com o nome do casal, não apenas de um dos adotantes, ambos como pais. "O princípio do melhor interesse da a criança pede o registro do nome integral da sua unidade familiar e não permite que um dos pais sejam excluídos da parentalidade, especialmente quando comparado com o tratamento conferido aos filhos de casais heterossexuais, que têm o direito de ter ambos adotantes - pai e mãe - em sua certidão de nascimento", anotou Neal Hendel, juiz da Suprema Corte. A decisão foi tomada numa turma de três juízes. O resultado foi unânime. Dois outros casos estão pendentes de análise. O primeiro traz um casal lésbico que demanda o direito de adotar o nome das duas mães na certidão. O outro, um pai transgênero requer que a certidão do seu filho seja retificado para que ele conste como pai, não mais como mãe. A postura da Suprema Corte de Israel se alinha à jurisprudência construída pelo Judiciário brasileiro em casos que também tocam direitos da comunidade LGBT. Esse ano, o Tribunal Superior Eleitoral, apreciando a consulta 060405458, de relatoria do ministro Tarcísio Vieira, formulada pela senadora Fátima Bezerra, definiu que a reserva de vagas para mulheres quanto a registros de candidaturas em campanhas eleitorais constante da lei 9.504/1997, contempla as mulheres transexuais e travestis. Talvez tenha sido a mais paradigmática decisão do TSE quanto à proteção de minorias no processo eleitoral em toda a sua história. No mesmo dia, à tarde, o Supremo Tribunal Federal finalizou o julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade 4275, reconhecendo o direito à mudança de (pre)nome e sexo de transexuais e travestis, independente de cirurgia de transgenitalização, de laudos de terceiros e de ação judicial. Tanto no voto do relator da consulta no TSE, como no do decano, ministro Celso de Mello, no STF, o direito à felicidade foi utilizado aliado ao princípio da dignidade da pessoa humana, de explícita e insistente presença constitucional, a partir logo dos fundamentos da República (art. 1o, III). Nos julgamentos da consulta, pelo TSE, e da ADI 4275, pelo STF, consolidou-se a integração ao constitucionalismo brasileiro clássico que nasceu mergulhado no compromisso de consideração aos projetos de felicidade das pessoas. Falar do direito à felicidade é falar das raízes do nosso constitucionalismo. Basta recordar as lições de Pimenta Bueno: "O fim das sociedades, o móvel ou princípio constitutivo dellas, não é nenhum outro senão de promover e segurar a felicidade dos homens". Na sequência, ele arremata: "Se o exercício bem regulado dos direitos políticos funda a liberdade política dos povos, o exercício bem regulado dos direitos civis funda a sua liberdade civil, o seu bem-ser. São os princípios vivificantes do homem; se a liberdade civil não existe, tudo o mais é uma mentira; cumpre mesmo não olvidar que os direitos ou liberdades políticas por si mesmas não são as que fazem a felicidade pública, não são valiosas senão como meios de garantir os direitos ou liberdades civis. De que serviria o homem livre morrendo à fome?"1. A transcrição de Pimenta Bueno é de 1857, num ambiente que respirava o Iluminismo. Sérgio Paulo Rouanet afirma que o novo Iluminismo proclama sua crença no pluralismo e na tolerância e combate todos os fanatismos, sabendo que eles não se originam da manipulação consciente do clero e dos tiranos, como julgava a Ilustração, e sim da ação e de mecanismos sociais e psíquicos muito mais profundos. Concretizar a Constituição à luz do direito à felicidade exibe ao constitucionalismo global um tipo de compromisso com as nossas origens que há de inspirar o mundo. Isso porque, tudo o que é decente, e original, é inspirador. As Supremas Cortes do Brasil e de Israel têm expandido direitos fazendo-os chegar a grupos vulneráveis para quem a jurisdição constitucional foi feita. São formas de ajudar a cicatrizar feridas abertas em nossa sociedade. Grupos vulneráveis foram protegidos juridicamente pela crença secular na razão, na tolerância e na proteção a direitos. Trata-se de uma postura essencialmente iluminista que deu as cartas na origem do constitucionalismo e que se mantém num movimento de equilíbrio do pêndulo, para o bem de todos nós. __________ 1 Direito Publico Brazileiro e Analyse da Constituição do Império. José Antônio Pimenta Bueno. 1857.
segunda-feira, 10 de dezembro de 2018

Shimon Peres: do kibutz para a história

Foi publicada pouco antes do seu falecimento, que se deu em setembro de 2016, a autobiografia do líder israelense Shimon Peres, cuja tradução livre é "Sem espaço para sonhos pequenos". O subtítulo não deixa de ser uma descrição da personalidade do biografado: "Coragem, imaginação e a construção de uma Israel moderna". Coube à Weidenfeld & Nicolson, da Grã-Bretanha, a publicação. Vale cada página. Tudo na obra é real, profundo e dotado de uma força poderosa capaz de nos chacoalhar. A começar pela dedicatória: "Para a próxima geração de líderes, em Israel e ao redor do mundo". De líder para líderes. Fala com a autoridade de 70 anos de uma vida pública repleta dos mais delicados desafios, a começar por ajudar a fundar um país que receberia as vítimas do Holocausto e do anti-semitismo espalhadas pelos quatro cantos do mundo. Coisa de gente grande. Shimon Peres faz parte de uma geração de ouro que criou o Estado de Israel nos moldes contemporâneos. Sua trajetória foi construída a partir de um alinhamento irrepetível dos astros. As guerras que enfrentou não o isentaram de cicatrizes, mas Shimon morreu coberto de glória porque foi, antes de tudo, um sobrevivente e, no espelho de sua caminhada, muitos judeus veem a si mesmo. Nascido em Vishneva, em 2 de agosto de 1923, na fronteira entre a Polônia e a Rússia, o líder descreve sua vila como "um pedaço de terra, cercado por uma floresta e constantemente imerso no inverno". Uma geografia fria recebeu uma alma de fogo. É a partir dessa deixa que recorda a imagem de quando era um garoto precoce de 11 anos. Levado até a casa de um amigo da família que acabara de regressar de Jaffa, em Israel, Shimon viu o senhor abrindo caixas para mostrar - num ritual que se repetia a cada ida ao país - os tesouros que trazia da Terra Sagrada: laranjas. "Eu segurei a laranja sobre a ponta do meu nariz, sentindo pela primeira vez o perfume das frutas cítricas. Era verdadeiramente extraordinário - em cor, em fragrância, em sabor. Muito mais do que um pedaço de fruta, era o símbolo das minhas aspirações e esperanças". A vida não mais do garoto, mas do grande Shimon Peres, se inicia. Shimon cita Theodor Herzl, o fundador do Zionismo, que defendia que a existência do povo judeu dependia da constituição de um Estado judeu, unido não somente pela religião, mas também pela língua e pela nacionalidade. "Deixem eles nos darem soberania sobre um pedaço de chão na Terra, apenas o suficiente para as necessidades da nossa gente. Nós faremos o resto", repetia Herzl, numa profecia que se realizaria depois, como todos podem ver. Filho de Sara Meltzer, uma bibliotecária, Shimon lembra do amor e amizade que nutria pela mãe. "Havia apenas uma coisa na vida que me trazia mais alegria do que ler, era a alegria de estar na companhia dela". A conexão que tinha com os livros aparece muitas vezes na autobiografia: "Eu cresci para me tornar um homem dos livros, mas eu comecei como um garoto dos livros, lendo ao lado da minha mãe". Em seguida, arremata: "Eu amava os livros com grande fervor e interesse". Ele entregou o seu coração para os livros e estes o conduziram para os mais honrosos palcos da geopolítica global. Além dos livros, um outro ingrediente forjou aquele jovem garoto num homem repleto de imaginação. Era a liberdade. "Meus pais me criaram sem muitos limites ou fronteiras, jamais me dizendo o que fazer, sempre confiando que a minha curiosidade me levaria ao caminho certo", anota. Para quem não sabe, Shimon era poeta e chegou a escrever letras de músicas, uma delas, inclusive, cantada por Andrea Bocelli. Shimon Peres lembra que, muito jovem, fazia discursos para adultos sobre a natureza do Zionismo ou quanto às virtudes dos seus escritores preferidos. Mas todo jovem que se entrega com amor ao que é incomum à sua idade, paga um preço. "Para os adultos, isso me fazia um garoto precoce com um futuro brilhante pela frente. Para mim, me fazia sentir que eu estava no começo de algo maior. Mas para os meus colegas de escola, isso me tornou um estranho, aquele que claramente não gostava dos outros colegas", desabafa. Natural. Aquele que ouvir com sensibilidade e sabedoria o chamado de sua própria vocação encontrará, em quem não ouviu tal convocação, resistência e incompreensão. Shimon aprendeu a lição. Fechou os ouvidos para a barulheira cética, abriu os olhos para o que realmente importava e seguiu adiante. No começo da década de 1930, o negócio do seu pai, Yitzhak Perski, foi destruído pela majoração abusiva e proposital de impostos contra os negócios de judeus. O pai faliu e toda a família sentiu o fardo pesado do anti-semitismo. Era apenas o começo. Outra figura central em sua vida foi seu avô, o Rabino Zvi Meltzer. Shimon lembra que, no Yom Kipur, o importantíssimo Dia do Perdão judaico, ele se deliciava ouvindo o avô cantar. Certo dia, olhando para o neto, o avô pediu: "Prometa-me que você será sempre um judeu". Shimon respondeu: "Eu prometo, Zaydeh". Fê-lo com uma fé infinita, celebrando um compromisso que jamais seria quebrado. As lembranças carinhosas de um avô que lhe servia de inspiração genuína, contudo, foram irreversivelmente feridas pelo mal absoluto. Zvi Meltzer morreu em Visheva. Os Nazistas marcharam pela floresta e entraram na pacata vila anos depois que Shimon partiu para Israel, ao tempo, o Mandato Britânico da Palestina. O Rabino foi colocado dentro da modesta sinagoga de madeira, junto com quase toda a congregação. Os Nazistas fecharam as portas e atearam fogo. Enquanto as labaredas engoliam o local, seu avô cantava, repetindo a mesma oração que encantava o pequeno Shimon durante o Yom Kipur. "Foi o último momento de uma dignidade estóica antes que o fogo roubasse suas palavras, sua respiração e sua vida, ao lado dos outros membros da nossa congregação". Perdeu a vida. Ganhou a dignidade. A obra prossegue retratando com imagens que tocam os nossos olhos inúmeros episódios da vida de um homem que viveu a verdade percorrendo o caminho. Recorda, por exemplo, que na busca do sonho Zionista, os pioneiros em Israel tentaram construir uma nova forma de sociedade, erguida sobre igualdade e cooperação, justiça e equanimidade, propriedade coletiva e vida em comunidade. O laboratório primeiro de todo esse ideal era o kibutz. "O kibutz era o lugar que transformava crianças em líderes", resume Shimon. Líderes. De verdade. Tendo passando pela monumental Tel Aviv, foi no kibutz Ben-Shemen que Shimon se encontrou. "Em Tel Aviv eu era um estranho. Em Ben-Shemen, eu era um garoto popular". Durante o seu segundo verão em Ben-Shemen, ele se juntou ao movimento "HaNoar HaOved" ou Juventude Trabalhadora - que o elegeu delegado para a convenção nacional. "Eu fui avisado de que detinha uma habilidade que os outros achavam poderosa: a habilidade de persuadir". Em maio de 1947, já sabendo da iminente declaração de independência e fundação do Estado de Israel, o pai-fundador, Ben-Gurion, que se tornaria o primeiro-ministro do país, enviou uma correspondência para Shimon Peres exortando-o a servir o exército judeu clandestino Haganah, que posteriormente se tornaria a Israel Defense Force (IDF). "O que eu devo fazer?", perguntou Shimon, depois de ter aceito o desafio, no que Ben-Gurion responde: "Simples. Ache as armas para nós o mais rápido que possa". Sabia-se que um general havia abandonado o posto de chefe do staff, então preenchido por Shimon. "Eu não desejo ser chefe do staff por seis dias", deixara registrado, num pedaço de papel, o General, desapontado. Preocupado com o tamanho do desafio, Shimon Peres pergunta ao colega que o recebeu a razão da desistência do General. "Foi o estoque de balas. Tínhamos seis milhões". No que Shimon comenta, inocente: "Parece um monte". É quando o colega mostra que por trás de cada convite honroso há uma responsabilidade monumental: "Quando a guerra começar, precisaremos de um milhão de balas por dia. Não é um emprego fácil". Ao ouvir o colega, Shimon divide o seu sentimento: "Eu podia ouvir meu avô dizendo: 'Seja sempre um judeu'". E ele foi. Até o fim. "Ele não mente. Não fica falando mal das pessoas por aí. E quando bate a minha porta, normalmente traz uma nova ideia". Foi essa a resposta que Ben-Gurion deu a uma pessoa que lhe perguntou a razão da confiança inabalável em Shimon. A nova realidade de Shimon Peres, que sequer trinta anos tinha, o impactou. "Eu deixei de tirar leite de vaca no kibutz para construir amizade com negociantes de armas e montar parcerias com contrabandistas de armamentos. Assumi missões secretas com passaportes falsos, trabalhando nas sombras para adquirir o máximo que eu pudesse". Em seis meses ele tinha conseguido armamento suficiente para enfrentar a guerra. A criação do Estado de Israel pela ONU não se deu sem a gratidão de Shimon por um brasileiro. "Nós podíamos ouvir Oswaldo Aranha, o presidente da Assembleia Geral, chamando para a votação da resolução. Nós ouvíamos com toda a atenção, ao lado de comunidades judaicas de todo o mundo"1. Após a aprovação da Resolução, abrindo espaço normativo no Direito Internacional para a criação do Estado de Israel, Ben-Gurion acelerou a declaração de independência. "Cantaram espontaneamente Hatikvah, o hino Zionista que havia sido banido pelos britânicos". Na tarde de 14 de maio de 1948, horas antes do Shabbat, no Museu de Arte de Tel Aviv, a independência foi formalmente anunciada. Shimon Peres enfrentou, em seguida, uma guerra iniciada pelos vizinhos árabes. Mesmo assim, viu ali a chance de estabelecer uma relação de confiança com quem esteve ao seu lado naquela sangrenta batalha. "Os laços formados durante tempos de crise são normalmente fortes". Foi vitorioso em seus imensos desafios porque soube constituir bons times de trabalho, valorizá-los e deixá-los saber que eles jamais seriam abandonados no meio do caminho. Funcionou. Na primavera de 1949, com a independência assegurada, Shimon Peres entendeu que era hora de superar algo que o afligia: a falta de formação acadêmica de qualidade. Ele sabia que, nos mares que ambicionava navegar - e já navegava -, era preciso densidade intelectual formal. Decidiu fazer o dever de casa. "Eu procurei Ben-Gurion e expliquei as minhas preocupações. Eu queria ir para Nova Iorque terminar a minha educação e ao mesmo tempo representar Israel como integrante do Ministério da Defesa israelense nos Estados Unidos". Em 14 de junho de 1949, a esposa Sonia, a filha Tsvia e Shimon partiram. Ele não falava uma única palavra em inglês. Como muita gente vivia no apartamento onde eles moravam, deram-no o nome de Kibutz. Shimon assistia aulas na New School for Social Research, um centro de excelência onde lecionavam personagens como Felix Frankfurther e Hannah Arendt. Shimon Peres era um homem de ação. Mas, ao mesmo tempo, guiado por uma privilegiada imaginação. Razão e sentimento. Realidade e utopia. Veio dessa combinação poderosa os elementos que dotaram o jovem garoto do kibutz da capacidade de se projetar rumo aos mais elevados acontecimentos históricos do seu tempo. "Eu aprendi sobre a virtude da imaginação e o poder de um processo decisório criativo". Num desses lampejos de criatividade, ele anteviu a necessidade de Israel ter uma indústria de aviação moderna e globalmente competitiva. Ao levar a ideia a potenciais investidores, ouviu que Israel não conseguia fazer direito sequer bicicletas, imagine aviões. 'Eles estavam convencidos que o mundo olharia com olhos céticos para qualquer produto 'made in Israel'", anotou. "Mas eu sabia que nós jamais alcançaríamos grandes feitos se deixássemos a austeridade ser um obstáculo para a audácia". Para Shimon, "o medo de assumir riscos pode ser o maior risco de todos". Ele liderou uma frutífera aproximação com a França. Chegou ao país sem nada. Saiu com acordos celebrados que dotariam Israel de extraordinária capacidade de competir globalmente em fronteiras relevantes como a da aviação. Em algum tempo, já falava francês. O jovem que tirava leite de vacas se tornou um poliglota sofisticado. Ele esteve à frente da fantástica e bem-sucedida operação de resgate de judeus feitos reféns por militantes revolucionários que queriam a libertação de terroristas em diversos lugares do mundo. Em 27 de junho de 1976, os militantes sequestraram um Airbus A300 da Air France, que fazia a ligação Tel Aviv-Paris, com escala em Atenas (Grécia), levando 258 pessoas a bordo. A aeronave terminou em Entebbe, Uganda. Uma das reféns, sobrevivente do Holocausto, entrou em colapso nervoso ao, mais uma vez, se ver diante de alemães armados gritando em alemão contra a vida de judeus. Os sequestradores passaram a separar judeus e não-judeus para decidir quem matariam. Quando Shimon soube, decidiu que não haveria negociação. Era hora de agir. E agiu. Numa operação cinematográfica, todos os reféns, exceto um - morto acidentalmente -, voltaram salvos para casa. O tenente-coronel Yonatan Netanyahu (irmão do primeiro-ministro israelita Benjamin Netanyahu) morreu em combate. Nenhum terrorista presente escapou. Há tempos de guerra e tempos de paz. Nos de guerra, Shimon ganhou. Nos de paz, também. Já idoso, decidiu empenhar os seus esforços na ideia de construir uma nação start-up. "Nós criamos um sistema onde os investidores vinham até nós esperando um pioneirismo tecnológico. Para mantê-los vindo, tínhamos de estar na mais longínqua fronteira da ciência. Não era suficiente estar atualizados. Precisávamos ser o amanhã". Incansável, apostou no futuro mais uma vez. "Nanoteclologia não era destrutiva, mas construtiva - realinhando átomos para produzir novos materiais e novas formas de armazenar e gerar energia. Lembrava-me Israel: de algum modo, tão pequeno, mas com um poder milagroso". A história de Shimon Peres se confunde com a própria história de Israel. "Eu vi o povo judeu lutar por um pequeno pedaço de terra no deserto, então, transformá-lo num país que ultrapassou os nossos mais grandiosos sonhos". Terminando como começou, Shimon deixa uma mensagem imortal: "Você precisa de uma geração que busque a liderança como uma causa nobre, definida não pela ambição pessoal, mas pela moralidade e um chamamento para missões". E mais. "Nós precisamos de líderes que acreditem que o mundo pode ser mudado não por assassinatos ou tiros, mas pela criatividade e competição, líderes que prefiram ser controversos pelas razões certas do que populares pelas erradas, líderes que usem sua imaginação mais do que sua memória". Em 13 de setembro de 2016, Shimon Peres esteve com milhares de empreendedores de todo o mundo. Ele os encorajou a investir nas tecnologias israelenses. Quando o dia acabou, foi para o hospital. Dia 28 de setembro, aos 93 anos, faleceu. Na primeira reunião que fez após o falecimento, o primeiro-ministro, Benjamin Netanyahu, comentou: "Hoje é o primeiro dia do Estado de Israel sem Shimon Peres". Partiu o homem que um dia, garoto, sentiu o perfume de uma laranja pela primeira vez e tirou dali a inspiração que precisava para, de um pedaço do deserto no Oriente Médio, construir os mais grandiosos sonhos de prosperidade, reconstrução e triunfo. Nobel da Paz, Primeiro-ministro, Presidente, Ministro de diversas pastas, membro do Knesset - o Parlamento Israelense -, Shimon Peres viveu uma vida de desafios, mas superou todos eles, com trabalho e, acima de tudo, imaginação. Ele foi fiel à promessa que fez ao avô. "Eu serei sempre um judeu". É um exemplo. Começou no kibutz. Terminou na história. Mostra que, onde quer que comecemos, ponto de partida algum é capaz de nos impedir de chegarmos o mais longe que desejarmos. Isso porque, como Shimon Peres, podemos ser a realização dos sonhos mais elevados dos nossos ancestrais. Temos apenas que dar o primeiro passo. E não parar mais. __________ 1 Essa semana, depois de ler o livro que serviu a essa coluna, num café em Jerusalém, passei, voltando para casa, no centro da cidade, pela Praça Oswaldo Aranha. Senti-me orgulhoso por ser brasileiro.
Julius Nyerere foi um estadista que governou a Tanzânia até 1985, tendo implementado a política "Ujamaa", baseada na cooperação entre as pessoas, fruto do resgate de uma identidade a ser compartilhada pelo povo. Conseguir essa unidade foi um feito. Ujamaa, na língua Swahili, significa família. Sob esse ethos, o país manteve unidas as populações das regiões de Zanzibar e do Lago Tanganica. As maravilhas da Tanzânia, como o Monte Kilimanjaro, passaram a ser emprestadas ao mundo. Ernest Hemingway lá encontrou inspiração para escrever Green Hills of Africa, The Snows of Kilimanjaro e The Short Happy Life of Francis Macomber. Mas esse tempo passou. Mesmo sendo um país que vive em paz, a Tanzânia se viu atirada no precipício da migração de sua gente. Décadas após o colapso da política da Ujamaa, Edd Abdallah Mohamed, tanzaniano de Zanzibar, aos 28 anos, partiu de Johanesburgo, África do Sul, num navio. Fez o mesmo trajeto feito, há séculos, pelos africanos escravizados que habitavam os porões de navios negreiros rumo ao Brasil. A embarcação atracou no Porto de Santos em agosto de 2002. Quando se deparou com o povo brasileiro, ele não hesitou em dizer: "Sou jogador de futebol". Na verdade, segundo depoimento dado às autoridades, "veio fugindo de problemas políticos no seu país". Jamais foi preso nem processado no exterior. No Brasil, pediu refúgio ao Conare, mas não foi atendido. Na cidade de São Paulo, passou a dividir um apartamento com outros africanos em situação semelhante a dele. Morava na Rua Apocalipse. Dia 31 de janeiro de 2013, policiais Federais, após uma denúncia anônima, avistaram "um indivíduo de aparência africana", a quem pediram o passaporte. O de Mohamed era falso. Indagado, ele decidiu cooperar. Confessou e avisou as autoridades sobre outros imigrantes ilegais. Mesmo tendo colaborado, Mohamed violou o artigo 304 combinado com o artigo 297 do Código Penal, cometendo o crime de uso e falsificação de documento público. Terminou condenado a 2 anos e 7 meses de prisão, que foi cumprida em lugares como a Penitenciária Franco da Rocha. Seres humanos erram. Eles precisam aprender com o erro e, conscientes de seus compromissos com a comunidade, hão de retomar a convivência social sabendo que não devem repetir o erro. Tendo prestado contas à sociedade, Mohamed decidiu recomeçar. Todavia, com a condenação penal, veio a portaria 552/2006, determinando sua expulsão do território nacional, em conformidade com o que dispõe o artigo 65 da lei 6.815/80 (Estatuto do Estrangeiro). Ele foi considerado "estrangeiro que atenta contra a segurança nacional, a ordem política ou social, a tranquilidade ou moralidade pública e a economia popular" (fls. 266 dos autos). O Estatuto do Estrangeiro mantém várias restrições estabelecidas pelo decreto-lei 941/1969, baixado no ápice do ufanismo brasileiro. "Brasil: ame-o ou deixe-o!". Como decorrência dessa realidade, o controle migratório é percebido sobretudo sob a óptica da segurança nacional, com grande abertura à deportação ou expulsão dos estrangeiros. Esses estatutos foram aprovados quando a concepção de direitos humanos, tal qual como consolidada hoje, não existia. O artigo 75, inciso II, alínea "b", do Estatuto do Estrangeiro diz que a expulsão do estrangeiro não se procederá quando este possuir filho brasileiro cuja guarda e dependência econômica seja devidamente comprovada. Ressalva, contudo, no §1º do artigo, não constituir "impedimento à expulsão a adoção ou reconhecimento de filho brasileiro superveniente ao fato que motivar". Nesse ponto, a jornada de Mohamed muda de curso. Duas personagens transformaram o universo desse africano. A primeira foi a cabelereira Pamela Claude, tanzaniana natural de Kigoma, cidade portuária do Lago Tanganica. Ela é companheira de Mohamed. Do seu ventre veio a segunda personagem: Oprah, filha de Mohamed, nascida no Brasil. O pai veio de Zanzibar. A mãe, de Tanganica. São os frutos da visão conciliadora de Julius Nyerere, o estadista da Tanzânia. Sua fé na Ujamaa funcionou. Paul Collier, diretor do Centro de Estudos Africanos de Oxford, no livro Exodus, ressalta que "cada êxodo individual é o triunfo do espírito humano". O raciocínio é diverso da compreensão do Poder Executivo da União Federal brasileira. Suas autoridades, especialmente seus advogados, questionaram a paternidade de Mohamed. A acusação era de que ela não seria sua filha e que tudo não passaria de uma farsa. Mohamed era tratado, em documentos oficiais, como "o pretenso genitor". A Delegacia de Polícia de Imigração, contudo, confirmou o vínculo familiar e a dependência econômica da criança. Disse serem legais os documentos apresentados, pondo abaixo outra acusação feita pelo Poder Executivo da União Federal. Judicializada a questão, o Superior Tribunal de Justiça considerou sem efeito o decreto de expulsão, motivo pelo qual a União interpôs recurso extraordinário, sustentando que "a expulsão é medida de retirada compulsória do estrangeiro do território nacional, expressão da soberania nacional e, por isso, poder discricionário do chefe de Estado". A análise endossaria o pedido de expulsão de Mohamed, pois o nascimento e registro de sua filha foram verificados após a ocorrência do ato criminoso que deu ensejo ao decreto de expulsão. Há precedentes do STF nesse sentido1. Todavia, a orientação do STJ, notadamente após o julgamento do HC 31.449, inaugurou interpretação mais condizente com os tempos atuais. O relator, o saudoso ministro Teori Zavascki, ponderando sobre caso análogo, considerou as nuances trazidas pela Constituição de 1988, pela lei 8.069/1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente), e pelas convenções internacionais recepcionadas em nosso ordenamento jurídico. Entendeu pela proibição de expulsão de estrangeiro cujo filho seja superveniente ao fato motivador do decreto de expulsão. Deveria prevalecer o melhor interesse da criança, de maneira a priorizar a garantia da infância e da juventude ao direito à identidade, à convivência familiar e comunitária, bem como à assistência pelos pais. No STF, quinta-feira passada, o RE da União começou a ser apreciado pelo pleno da Corte. O placar chegou a sete votos pelo desprovimento do recurso. Para a União, a lei 6.815/1980 (Estatuto do Estrangeiro) - matéria atualmente regida pela lei 13.445/2017 (Lei de Migração) - previu a impossibilidade de expulsão de estrangeiro somente quando a prole brasileira seja anterior ao fato motivador da expulsão. Todavia, o relator, min. Marco Aurélio, entendeu que o fundamento de soberania trazido pela lei 6.815/1980 deve ser compatibilizado com os avanços constitucionais. A Constituição de 1988 teria intensificado a tutela da família e da criança, assegurando-lhes cuidado especial, que foi concretizado pelo legislador na edição do ECA. Para o relator, a regra do parágrafo 1º do artigo 75 da lei 6.815/1980, representa a quebra da relação familiar, independentemente da situação econômica do menor e dos vínculos socioafetivos desenvolvidos. Além disso, a norma questionada afronta o princípio da isonomia ao estabelecer tratamento discriminatório entre filhos havidos antes e após o fato motivador da expulsão. Os prejuízos associados à expulsão de genitor, defendeu o ministro, independem da data do nascimento ou da adoção, muito menos do marco aleatório representado pela prática da conduta motivadora da expulsão. Por fim, destacou que a prevalência dos princípios da proteção do interesse da criança e da família "não esvazia a soberania nacional". Acompanharam o voto do relator os ministros Alexandre de Moraes, Edson Fachin, Roberto Barroso, Rosa Weber, Cármen Lúcia e Ricardo Lewandowski. O min. Gilmar Mendes pediu vista. Não são poucos os obstáculos impostos a pessoas como Mohamed. O idioma, os costumes, a xenofobia e o preconceito são alguns deles. As condições pioram quando falamos de negros, africanos e sem recursos financeiros. Em uma época de intensa migração para a Europa, somada à crise dos refugiados e frequentes atentados terroristas, houve o fortalecimento de um cenário político mundial conservador quanto aos fluxos migratórios. Na Alemanha, em 2016, eleições locais deram o triunfo a um partido de ultra-direita, nacionalista, cuja proposta central é combater os migrantes. Nos Estados Unidos, o candidato eleito do Partido Republicano à presidência da República viu seus aliados gritarem coisas como "Construa o muro! Mate todos eles!" e "Mandem aqueles bastardos de volta!"2. No Brasil, o nacionalismo também volta a mostrar a sua face entre nós. Mohamed poderia estar na Tanzânia, premiado pela magia do Monte Kilimanjaro, o lugar de onde Ernest Hemingway tirou inspiração. Estaria ao lado daqueles que compartilham o seu nome, sua língua-mãe, sua cultura e onde está fincada a sua linha ancestral. Mas ele alimentou a esperança numa nova jornada que começou num navio que partiu do continente africano em direção ao Brasil. A história mostra que foram muitos os navios que fizeram esse trajeto e intensas as dores que essa jornada alimentou. Por adulterar seu passaporte - um crime -, ele passou anos na cadeia. Ressocializado, ao que se sabe hoje trabalha em São Paulo. Da sua união com Pamela, nasceu Oprah, uma brasileira. Expulsá-lo não tornará o Brasil uma nação elevada, nem mais segura. Pelo contrário. Mostrará um país repleto de rancor e tendente à revanche. Somos assim? Sem Mohamed, Oprah verá o ideal de Julius Nyerere, o pai fundador da Tanzânia, ser destruído mais uma vez. A menina verá seu pai partir, expulso de um país que é dela. Não haverá mais Ujamaa pela qual lutar. Estará condenada a família, o pai, a mãe e a criança. Talvez dentro de um outro navio, coberto de vergonha e marcado por uma pena que parece ser perpétua, Mohamed sentirá na pele um elemento que não parece compor a nossa alma coletiva: a incapacidade de perdoar. __________ 1 HC 72.082/RJ (Min. Francisco Rezek, DJ 01.3.1996, p. 113); HC 80.493/SP (Min. Marco Aurélio, DJ 27.6.2003, p. 590); HC 82.040/PA (Min. Ilmar Galvão, DJ 20.9.2002, p. 477). 2 The New York Times.
segunda-feira, 12 de novembro de 2018

Lições de patriotismo constitucional

Venta em Brasília. São ventos otimistas, não pessimistas. Um otimismo realista, que não é inalcançável nem tolo. Ventos com um frescor positivo de tudo o que foi feito nesses 30 anos de caminhada constitucional. Não precisamos nos envergonhar nem pedir perdão. A culpa é uma algema. Quem a impõe o faz para dominar. É preciso quebrá-la. Mesmo porque, o balanço da jornada percorrida até aqui é muito bom. Fechemos os olhos e recordemos 5 de outubro de 1988, quando Ulisses Guimarães, presidindo a Assembleia Nacional Constituinte, no célebre discurso que proferiu, disse que a "exposição panorâmica da lei fundamental que hoje passa a reger a Nação permite conceituá-la" como a "Constituição cidadã" ou "Constituição coragem". Muito bem. Falar de uma constituição é falar, essencialmente, sobre o poder. Quando Nelson Mandela, de punho cerrado diante da multidão, gritava "Amandla!", o povo respondia: "Ngawethu!". Nas línguas bantas, Amandla quer dizer "Poder". "Ngawethu" significa "para o povo". Poder e povo, sempre juntos. Abraham Lincoln, chamado à responsabilidade de reconciliar uma nação mergulhada no sangue da Guerra Civil, imortalizou em Gettysburg aquele que se tornaria o mais belo conceito de democracia jamais visto: "O governo do povo, pelo povo, para o povo". Falou isso carregando o fardo de 600 mil mortos numa guerra cuja divergência maior era a diferença entre a cor da pele de irmãos estadunidenses, a dominação e supremacia de uns sobre os outros. Poder e povo, mais uma vez. Esse elo universal e atemporal foi captado pela Constituição no parágrafo único do seu art. 1º, que diz: "Todo o poder emana do povo". Poder que há de ser exercido "nos termos da Constituição". Termos que se iniciam com a clássica tripartição. Segundo o art. 2º, "são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". Tudo começa pelo Legislativo. Não poderia ser diferente. Legislativo que combatemos e questionamos, como deve ser, mas Legislativo que nos protege também. Para ilustrar, pelas mãos dos representantes do povo ganhamos a Lei do Feminicídio (lei 13.104/2015), a Lei Maria da Penha (lei 11.340/2006) e a PEC das Domésticas (Emenda Constitucional 72/2013). Quem pode dizer que o Congresso Nacional não nos serve? Essas legislações protegem minorias e realizam direitos. Com o Poder Executivo não é diferente. Vem das políticas públicas do Executivo o coquetel antirretroviral distribuído gratuitamente pelo Sistema Único de Saúde para os soropositivos. Também toda a logística que permite a realização de uma cirurgia de transgenitalização igualmente ofertada, mesmo com demora, pelo SUS. Ainda, o Mais Médicos, que tenta dirigir para zonas remotas de uma nação continental profissionais cuja missão e vocação é reduzir a dor e o sofrimento das pessoas. Mas a Constituição de 1988 não ficou apenas com a tripartição dos poderes. Ela acreditou no reforço quanto ao controle do poder por meio do estabelecimento de inúmeras instituições independentes ou que gozam de boa autonomia. O Ministério Público, as polícias, os tribunais de contas, o Banco Central, as agências reguladoras, as defensorias públicas..., são exemplos. Evidentemente, há efeitos colaterais em tanto controle. Um deles pode ser a própria degradação do poder, a ingovernabilidade ou mesmo uma espécie de disrupção política, quando não se sabe mais como exercer o poder que se tem. A ação popular é um exemplo. Segundo o inciso LXXIII do art. 5º da Constituição, "qualquer cidadão é parte legítima para propor ação popular que vise a anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, ficando o autor, salvo comprovada má-fé, isento de custas judiciais e do ônus da sucumbência". Inúmeras indicações de presidentes da República foram obstadas por populares em lugares variados do Brasil, que se valeram de ações populares. Quem já imaginou um dia um presidente da República, do 3º Andar do Palácio do Planalto, em Brasília, determinar que o Diário Oficial da União publique uma nomeação da relevância da nomeação de um ministro de Estado para, dias depois, um popular, num país de mais de 210 milhões de habitantes, dizer: "Eu me oponho a essa indicação"? Todos estamos tentando entender isso melhor e lidar com o fenômeno. Essa disrupção pode fornecer um instrumento essencialmente democrático de controle do poder, mas, ao mesmo tempo, obstruir de tal forma o seu exercício a ponto de não haver mais sequer o próprio poder. Isso pode ser perigoso, claro, por gerar demasiada instabilidade e impedir o Executivo de cumprir a sua missão. Mesmo assim, parece ser excepcional o sucesso dessa obstrução popular às ações do presidente da República. Além dos Poderes Legislativo e Executivo, a Constituição de 1988 não deixou de falar do Poder Judiciário e, ao dele tratar, apresentar o seu órgão de cúpula, o Supremo Tribunal Federal. Reafirmou-se o elo global e atemporal relativo ao poder que deve orbitar em torno da política, mas sem ser, ele, uma casa de representantes do povo. O art. 101 fala em "mais de trinta e cinco anos de idade" (experiência), notável saber jurídico (sabedoria) e reputação ilibada (virtude) como requisitos para se tornar ministro do Supremo Tribunal Federal. Experiência, sabedoria e virtude como elementos essenciais a dotar um Poder da capacidade de controlar as pulsões da política. Na Grécia Antiga, era a Gerúsia, o conselho de anciões, em especial de Esparta, que controlava o poder dos reis e guardava a Constituição de Esparta. Depois, em Roma, veio o Senado, que atuava como "magistratura suprema". Mais adiante, nos Estados Unidos, a Seção 47ª da Constituição da Pensilvânia, de 1776 (a primeira a seguir a Declaração de Independência), dizia: "O Conselho de Censores terá também o poder de convocar uma comissão extraordinária que deverá reunir-se nos dois anos que se seguirem à sessão do dito Conselho, se lhes parecer que haja uma necessidade de absoluta de corrigir algum artigo defeituoso da Constituição (...)". Portanto, esse racional que aglutina experiência (mais de 35 anos), sabedoria (notável saber jurídico) e virtude (reputação ilibada), como elementos integrantes do Poder (Judiciário) que controla os outros Poderes (Legislativo e Executivo) deita raízes nas mais célebres civilizações da humanidade, e, até hoje, está vivo entre nós. O Supremo Tribunal Federal, cuja missão é a de, de modo contramajoritário, conter o poder, impedindo-o de esmagar as minorias, tomou uma decisão inteiramente compatível com o povo que somos. Ele admitiu que qualquer advogado ou advogada tenha o direito de, em nome da parte que representa, deixar a sua mensagem perante a nossa comunidade, fazendo uso da tribuna, na chamada sustentação oral. Toda originalidade tem o seu preço, é verdade. Um efeito colateral, por exemplo, é a defesa oral ser feita por profissionais que não se prepararam adequadamente para tal missão, que negligenciaram o nervosismo de se estar ali ou que não contam com pleno conhecimento dos protocolos e cerimônias da Suprema Corte. Contudo, apesar dos aspectos negativos, é essa opção genuinamente brasileira que dá espaço para que a magia aconteça. Há sustentações que ninguém jamais verá em nenhum outro lugar do mundo, apenas aqui. Algo nosso, único, inteiramente brasileiro. Em 2009, o STF deliberou acerca do caso Raposa Serra do Sol (PET 3388). No Brasil, nenhuma língua indígena é considerada oficial, apenas a língua do europeu, o Português. Mesmo assim, a advogada Joênia, moradora de Roraima, com brincos, colares e a face pintada com as cores do seu povo, deu início à sua fala na língua indígena. Depois, traduzindo, ela disse: "Nós estamos esperando que esse dia do julgamento bote um ponto final em toda a violência que os povos indígenas da Raposa Serra do Sol têm vivido pela disputa sobre suas terras. Que os nossos valores espirituais nossos valores culturais sejam considerados na aplicação dos nossos artigos da Constituição de 1988". Uma índia, de beca, exercendo a nobre função de advogada, com a face pintada, usando brincos e colares indígenas, vindicando direitos pertencentes a sua gente, elevando a sua voz contra o que entendia injusto, e iniciando a sua fala com uma oração na língua falada pelos Wapichana. A Corte não lhe demandou tempo de advocacia, carteira suplementar, o cumprimento de requisitos adicionais para atuar ali, nada. Em que outra Suprema Corte do mundo isso seria possível? Tem mais. Em fevereiro de 1694, Dandara, uma guerreira negra no Brasil colonial, esposa de Zumbi dos Palmares, se atirou de uma pedreira ao abismo, após ter sido presa. Ela jamais aceitaria retornar à condição de escrava. Perdeu a vida. Manteve a dignidade. Em fevereiro de 2017, em Fortaleza, a travesti Dandara dos Santos, cujo nome ela escolheu em homenagem à guerreira negra, foi barbaramente assassinada por um grupo de homens. A tortura foi gravada e divulgada nas redes e mídias sociais. Paus, pedras, golpes físicos e tiros foram usados para interromper uma caminhada de 42 anos. Dandara, com o HIV, estava sozinha e indefesa. Ela foi assassinada no Conjunto Palmares, mesmo nome do Quilombo de onde a heroína negra do Brasil colonial tornou-se livre apenas com a morte. Pouco mais de 90 dias após o assassinato de Dandara dos Santos, Gisele Alessandra Schmidt e Silva usou a tribuna do STF para levar suas razões como representante do amicus curiae Cidadania de Gays, Lésbicas e Transgêneros na Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 4275. Foi a primeira advogada transexual a usar essa tribuna. Tinha dois anos de formada. "Eu sou uma sobrevivente", disse, abrindo a sustentação. Esse outro Brasil, no qual a transexual Gisele usa a tribuna da Suprema Corte do seu país para levar uma mensagem fiada na Constituição e sai daquele plenário coberta de honra e orgulho, é um país que pode tudo. É o Brasil que devemos querer para nós. O Supremo Tribunal Federal optou também por não negociar quando o que está em jogo são as nossas liberdades. Em 2009, a Corte entendeu ser incompatível com a Constituição a Lei de Imprensa (lei 5.250/67), no julgamento da ADPF 130. Em 2014, declarou a constitucionalidade da Marcha da Maconha (ADPF 187). Ano seguinte, reafirmou a constitucionalidade da publicação de biografias sem a necessidade de autorização prévia do biografado ou seus representantes (ADI 4815). Recentemente, reiterou o compromisso com a liberdade de expressão nas universidades durante o período eleitoral (ADPF 548). Vale uma dispersão necessária, apenas para contextualizar uma outra decisão do STF sobre liberdade de expressão. Em janeiro de 2011, a Praça Tahrir, na cidade do Cairo, Egito, milhões de pessoas elevaram suas vozes contra o presidente Hosni Mubarak, no poder há 30 anos. Foi a "Revolução da Dignidade", disparada com a chamada Primavera Árabe. Durante esses protestos o bem estabelecido cardiologista Bassem Youssef percebeu que poderia fazer mais pelo seu país do que cortar pessoas numa sala de cirurgia. Ele montou na lavanderia do seu apartamento um pequeno estúdio amador no qual gravava vídeos imitando personalidades egípcias. Revelando um grande talento, os vídeos viralizaram. O seu humor era inteligente e crítico. No final de 2011, com orçamento e uma boa produção, ele lançou o "Al Bernameg" (O Programa), na ONTV. Ano seguinte, ele estava na CBC à frente de uma grande produção. Passou a ser chamado de "Jon Stewart do Egito". Tanto participou do Daily Show como recebeu Stewart num dos seus programas, num teatro no centro do Cairo, com uma plateia que participava ao vivo. Um tributo à liberdade de expressão. Em 30 de junho de 2012, Mohamed Morsi foi empossado presidente. O Egito tinha tido eleições livres. Morsi pertencia à Irmandade Muçulmana. Era um religioso conservador. Não demorou para Bassem pegar carona. Após um programa no qual o comediante imitou o péssimo inglês do Presidente e ironizou um título de doutor honoris causa dado a ele pela Universidade do Paquistão, um mandado de prisão foi emitido contra o comediante a pedido do Procurador-Geral. Bassem Yousseff teve de comparecer à Suprema Corte. Foi libertado sob fiança de 15.000 libras egípcias. Posteriormente, ele viu Mohammed Morsi perder popularidade e passar a sofrer tentativas de golpes por parte dos militares, liderados pelo general Abdel Fattah el-Sisi, conhecido como general Sissi, chefe das Forças Armadas e Ministro da Defesa. Depois de conseguir derrubar Morsi e começar a governar o Egito - com grande suporte popular -, o general Sissi passou a ser instado a concorrer à presidência. Em maio de 2014, Sissi foi eleito presidente para um mandato de sete anos. Os órgãos oficiais por ele controlados indicaram uma maioria de 96,91% dos votos. Bassem Youssef seguiu fazendo humor. Não demorou para a Procuradoria-Geral retomar as acusações contra ele. Após suspender a exibição do programa, a emissora de televisão CBC processou Bassem por quebra contratual. Ele havia criticado o presidente. Os tribunais egípcios condenaram o comediante a uma multa de £ 50 milhões. Na decisão, insinuaram que Youssef perturbava a paz e incitava a agitação pública. Temendo ser preso, o humorista deixou o país em novembro de 2014. No Brasil, nesse ano, cada um de nós teve o direito de se deliciar com os nossos humoristas debochando dos candidatos à presidência da República. Ríamos sem medo, sem imaginar que alguém entraria em nossa casa e nos levaria preso, muito menos cogitar que um desses humoristas serão aterrorizados pelo Estado. O STF, em decisão unânime (ADI 4451), entendeu que o inciso II do art. 45 da lei 9.504/97 e, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º do mesmo artigo, incluídos pela lei 12.034/2009, violam as liberdades de expressão e de imprensa e o direito à informação. Os comandos legais vedavam sátiras contra candidatos. Já no Egito, Sissi foi reeleito. Dessa vez, os órgãos por ele controlados indicaram uma maioria de 97,08%. Bassem Youssef hoje vive nos Estados Unidos. Tripudiamos dos políticos por meios dos nossos humoristas porque vivemos numa democracia. Nesse particular, o STF exerceu um papel central. Reconheçamos. E há mais decisões. Em 2016 encerrou-se o julgamento da ADI 4650. Consta da decisão: "A doação por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais, antes de refletir eventuais preferências políticas, denota um agir estratégico destes grandes doadores, no afã de estreitar suas relações com o poder público, em pactos, muitas vezes, desprovidos de espírito republicano". Então, diz-se que as doações por pessoas jurídicas a campanhas eleitorais "destina-se a bloquear a formação de relações e alianças promíscuas e não republicanas entre aludidas instituições e o Poder Público, de maneira que a não extensão desses mesmos critérios às demais pessoas jurídicas evidencia desequiparação desprovida de qualquer fundamento constitucional idôneo". A retirada do dinheiro empresarial da cena política que fez ressurgir o voto de opinião. Com ele, a reafirmação de convicções. Consequentemente, os conflitos. As pessoas voltaram a brigar por política, e, especialmente, por políticos. Faz parte. Agora, temos dois militares reformados no poder: Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão, presidente e vice-presidente, respectivamente. A história da política brasileira tem se dado por cores. Primeiro, os azuis, com Fernando Henrique Cardoso. Então, os vermelhos, com os presidentes Lula e Dilma Roussef. Agora, uma novidade: os verdes, os militares. Os azuis nos deram a economia. Os vermelhos, o social. Os verdes prometem segurança. São pautas constitucionais. Mas saibam, o Brasil que a Constituição quer ver nascer é aquele que se torne uma Nação Arco-Íris, onde os azuis, os vermelhos, os verdes e muitas outras cores possam brilhar juntas, num Brasil que é como nenhuma outra nação do mundo, infinitamente colorido. É preciso ser otimista. Uma janela de oportunidade é a chance de que eles, os militares, reconhecendo o que aconteceu após o golpe que foi dado, peçam perdão e, assim, construam um caminho para que os perdoemos e, então, reconciliemos esse país. Apenas com o reconhecimento e o pedido de perdão poderemos construir verdadeiramente um princípio do nunca mais entre nós: nunca mais viveremos sob o comando de uma ditadura, qualquer que seja ela, porque nós, o povo, somos o poder. Esse reencontro é inadiável. Com Nelson Mandela não foi diferente. "Peguem suas armas, suas facas, suas 'pangas', e joguem ao mar. Eles me deixaram preso 27 anos e eu os perdoei. Se sou capaz de perdoar, vocês também são!", disse Madiba, para 200 mil pessoas colocadas diante dele dispostas a matar e a morrer a depender da ordem do seu líder, quando o país se desmanchava em sangue na luta entre brancos e negros. Não sem razão, o último presidente da África do Sul, antes do integral colapso do apartheid, Frederik de Klerk, Nobel da Paz, afirmou: "Eu e muitos outros líderes pedimos formalmente perdão pela dor e sofrimento causados pelas políticas anteriores implementadas pelo Partido Nacional". O nome disso é covardia? Não. É liderança. Ulisses Guimarães disse que a Constituição de 1988 é a "Constituição Cidadã". A verdade é que, depois desses 30 anos, nunca fomos tão cidadãos. A política é o começo, o fim e o meio de nossas vidas no Brasil. E ela está viva como nunca. Cintila nas ruas, nas praças, nas cidades e nos vilarejos. As pessoas falam, debatem, questionam, até brigam por suas convicções. Sobra democracia. Acontece que agora é tempo de a geração presente receber a tocha e seguir adiante, concretizando aquela que foi a segunda exortação do doutor Ulisses, a "Constituição Coragem". É preciso ter coragem e patriotismo constitucional. Coragem para corrigir aqueles que violam as leis, para dizer não. Coragem para reformar, para mudar a rota. Coragem, acima de tudo, para defender a Constituição. Essa é a missão para os próximos 30 anos de caminhada constitucional. Tudo isso porque nós, apenas nós, somos o poder. E jamais deixaremos de ser.
A história da política brasileira tem se dado por cores. Primeiro, os azuis, com Fernando Henrique Cardoso. Então, os vermelhos, com os presidentes Lula e Dilma Roussef. Agora, uma novidade: os verdes. O deputado Federal Jair Bolsonaro foi eleito presidente do Brasil. Terá como vice, a partir de 1º de janeiro de 2018, o General Hamilton Mourão. Ambos prestarão, no ato de posse, esse compromisso: "manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil". A oração consta daquele que há de ser o verdadeiro livro de cabeceira de quem ocupa um posto dessa envergadura: a Constituição. A redação do juramento é um primor. Antes de tudo, "manter, defender e cumprir a Constituição". Que país pode seguir seu curso sem realizar esse comando? Como pensar no amanhã se não cumprirmos a Constituição? Caso não sejamos capazes disso, que tipo de projeto verdadeiramente unificador conseguiremos implementar? O Preâmbulo começa arrebatador. E segue. "Promover o bem geral do povo" e "sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil". Uma nação que é governada por uma Constituição que tem um Preâmbulo dotado dessa beleza não tem o que temer. É o que basta para consolidar um sentimento de patriotismo constitucional. Por esse sentimento, mesmo diante de tanta ruína, estamos de pé. Fomos feridos, é verdade. Ganhamos cicatrizes. Mesmo assim, não estamos de joelhos. E o melhor, seguimos juntos, na mesma terra, numa nação que pertence a todos os que nela vivem. O juramento feito pelo presidente e vice guarda sintonia com a competência comum da União, Estados, do Distrito Federal e dos municípios, para, segundo o art. 23, I, "zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público". Apesar de competir ao Supremo Tribunal Federal, pelo caput do art. 102, a guarda da Constituição, União, Estados, Distrito Federal e Municípios não estão desonerados de "zelar pela guarda da Constituição". Mas para manter, defender e cumprir a Constituição é preciso, antes de tudo, conhecê-la. Vale repetir: a Constituição deve ser o livro de cabeceira de qualquer presidente do Brasil. Aquela obra onde, a cada consulta, o líder da nação encontra respostas às complexas demandas que lhe chegam diariamente. Há mais no Preâmbulo. O nosso Estado Democrático é "destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais". Mas quem somos nós? Demônios perversos que amedrontam pessoas? Assassinos esperando à espreita para dar fim em alguém? Zumbis cegos repetidores de mentiras? Ignorantes messiânicos em busca de um líder? Seres amorais que, por ódio político, rasgaram os seus laços? Quem somos nós? À luz da Constituição, nós somos o poder. Nós, o povo. Além de sermos o povo, somos uma sociedade "fraterna, pluralista e sem preconceitos fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias". Fraternidade, pluralismo, vedação ao preconceito, harmonia social e solução pacífica das controvérsias. Essa é a porta de entrada da Constituição. Presidente algum pode fechá-la. Se o fizer, nós abriremos, pois temos conosco a chave da própria democracia: o voto. E quanto à República? Constituída em Estado Democrático de Direito, ela tem como dois de seus fundamentos a dignidade da pessoa humana e o pluralismo político. Dignidade para nos salvar até de nós mesmos. Política plural, porque não é singular; ela é heterogênea, não homogênea; e diversificada, não uniforme (art. 1º, III e V). Tanto que, segundo o art. 17, é livre a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos, resguardados a soberania nacional, o "regime democrático", o pluripartidarismo e "os direitos fundamentais da pessoa humana". A marcha segue. Pelo art. 2º, "são Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". O comando mostra a possibilidade de, mesmo com total independência, haver harmonia entre as instituições fundamentais da República, que, agindo desembaraçadamente, também zelam pela harmonia intergovernamental, num comportamento institucional que deve ser tanto de checks and balances (controles recíprocos) como de cooperação. Cabe ao presidente saber quais são os objetivos fundamentais da República. Segundo o inciso IV do art. 3º, um deles é "promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação". Não o bem de uns e o terror de outros. Não o bem de amigos e o mal de inimigos. Não o bem de aliados e a perseguição a opositores. Não o bem de verdes, e o mal de vermelhos, ou vice-e-versa. A Constituição é clara: "o bem de todos". E quais são os princípios centrais a inspirar as relações internacionais desta mesma República? Destaco três, presentes no art. 4º, II, VI e VII: prevalência dos direitos humanos; defesa da paz; e solução pacífica dos conflitos. O Brasil é da paz. Não há espaço para mergulharmos a nossa gente em sangue e dor. É esse o caminho. Vem então o art. 5º. Se o Preâmbulo corresponde aos olhos da Constituição, o art. 5º é o coração. Vem dos direitos fundamentais a pulsão daquilo que irriga as nossas veias cidadãs, os vasos sanguíneos de uma verdadeira democracia. Esse coração, o art. 5º, bate por meio de seus incisos. O III diz: "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". O torturador é um pária. O XLI: "a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais". A discriminação é uma deformação bárbara. Já o XLII assevera que "a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei". Racismo não é piada, não é brincadeira, não é liberdade de expressão, não é franqueza. Racismo é crime inafiançável e imprescritível. Passar por cima desses incisos é mais do que atropelar a Constituição, é atropelar aquilo que nos faz civilizados. Tudo há de girar em torno de nós, o povo, não de políticos poderosos que, do terceiro andar do Palácio do Planalto, olham a partir de uma visão privilegiada para o horizonte que mais decepciona do que emancipa. Além de zelar por esses direitos, o presidente deve reforçá-los perante a federação. Segundo o art. 34, a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para: VII - assegurar a observância dos seguintes princípios constitucionais: a) forma republicana, sistema representativo e regime democrático; b) direitos da pessoa humana. A Constituição está precavida contra almas autoritários. O regime é um só: o democrático. Tudo girando em torno dos direitos da pessoa humana. Cabe ao Congresso Nacional, com a sanção do presidente da República, dispor sobre todas as matérias de competência da União (art. 48). Mas há as cláusulas pétreas. E contra essas cláusulas pétreas Presidente algum pode opor emendas britadeiras. "Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: (i) a separação dos Poderes; e (ii) os direitos e garantias individuais (art. 60, § 4º, III e IV)". Toda é qualquer iniciativa que tenda a abolir cláusulas pétreas será inconstitucional "de Deus a Virgílio Távora". Deus consta do Preâmbulo, no começo da Constituição. Virgílio Távora foi a última assinatura, já in memoriam, no texto constitucional. É inconstitucional, portanto, do começo ao fim. O mais importante é ter na lembrança que deixar de ler o livro e de se portar segundo os seus ensinamentos é considerado, pelo art. 85, crime de responsabilidade. São crimes de responsabilidade os atos do presidente que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra: II - o livre exercício do Legislativo, do Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação; III - o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais; VII - o cumprimento das leis e das decisões judiciais. Ou seja, antes de tudo, é fundamental ter em mente que um Presidente da República terá o seu poder muito controlado. Além disso, líder algum pode solapar direitos políticos, individuais e sociais. Todas as leis, e as decisões judiciais, devem ser cumpridas. Recusar esses comandos é incidir em crime de responsabilidade, num país onde, de 1990 para cá, dois presidentes sofreram impeachment. Como foi dito no começo, a trajetória política brasileira após a Constituição - saltando, claro, o curto governo do ex-presidente Fernando Collor de Mello -, tem se dado por cores. Os azuis nos deram a economia. Os vermelhos, o social. Os verdes prometem segurança. São pautas constitucionais. Mas saibam, o Brasil que a Constituição quer ver nascer é aquele que se torne uma Nação Arco-Íris, onde os azuis, os vermelhos, os verdes e muitas outras cores possam brilhar juntas, irradiando a sua beleza e servindo de inspiração para muitos outros países. O presidente eleito Jair Bolsonaro, e o seu vice, Hamilton Mourão, hão de se ver, dia e noite, noite e dia, com esse que, verdadeiramente, deve ser o livro de cabeceira de um líder nacional. E precisam ter em mente, com humildade, que nós, o povo, somos o poder. Ninguém mais. Jamais. Apenas nós. Também precisam compreender que não nos reduzimos a azuis, vermelhos e verdes. Somos mais. Muito mais. Somos o próprio arco-íris, dotados de todas as cores, ansiosos para, com o fim dessa chuva torrencial das eleições, reluzirmos, juntos, nesse lindo espetáculo da natureza cidadã que é a democracia. Que assim seja.
No ano e mês da celebração dos 30 anos da Constituição de 1988, importa a todos nós saber um pouco mais sobre esse elemento essencial constitutivo da prosperidade de quaisquer povos, em todos os tempos: a capacidade de cooperar. A cooperação brilha no palco constitucional brasileiro. O inciso IX do art. 4º, dispõe que a República rege-se nas suas relações internacionais por princípios, dentre os quais, a "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade". Bela oração. Quando os povos cooperam, a humanidade prospera. Eis a receita. A Constituição trata também de algo mais específico e igualmente fundamental. Segundo o § 2º do art. 174, a lei apoiará e estimulará o "cooperativismo". Primeiro, a Constituição impediu o atirar de lanças pelo homem contra o próprio homem. Em 1988, os garimpos gritavam. Mortes, justiçamentos, ausência de leis, insalubridade, periculosidade, destruição do meio-ambiente e degradação social. A Constituição associou a atividade do garimpo aos princípios da proteção do meio ambiente e à promoção econômico-social dos garimpeiros. Proteção do meio ambiente para que não haja mais pilhagem de filhos ingratos à Mãe Natureza. Promoção econômico-social dos garimpeiros para que não seja apenas a ambição pela riqueza o condutor do destino desses homens. Para alcançar esse propósito, o § 3º do art. 174 diz: "o Estado favorecerá a organização da atividade garimpeira em cooperativas". Ou seja, do outro lado do arco-íris não havia um pote de ouro. Mas, hoje, pode haver irmãos e irmãs cooperados, unidos em suas ambições legítimas e protegidos contra abusos. Ocorre que a dor não vem apenas do garimpo. Vem do campo também. É lá onde nasceu o latifúndio improdutivo fruto de uma nação que teve como pia batismal as capitanias hereditárias. A escravidão, o capitão do Mato, o senhor de Engenho, a Casa Grande, a Senzala..., todo esse legado foi forjado no campo passado. Como superá-lo? O inciso VI do art. 187, dispõe: "a política agrícola será planejada e executada na forma da lei, com a participação efetiva do setor de produção, envolvendo produtores e trabalhadores rurais, bem como dos setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, levando em conta, especialmente, o cooperativismo". Todos sentados numa mesa sem cabeceiras. Produtores e trabalhadores rurais, os setores de comercialização, de armazenamento e de transportes, ligados pelo cooperativismo. O comando não foi em vão. A Cooperativa Aurora, por exemplo, prova a capacidade humana de atuar cooperativamente e prosperar, nessa pedagogia da mesa redonda, sem cabeceiras. Ela impulsiona as suas atividades por meio da agricultura familiar, mostrando que o pequeno também pode realizar coisas grandiosas. Se o garimpo deixou escapar pela peneira da história sonhos de desbravadores e se as fazendas do começo da história escravizavam jovens indefesos, as cidades floresceram e viram se agigantar uma figura que aterroriza aqueles a quem a Constituição chama de "desamparados" (art. 6º). É o agiota, o sujeito que sobe quando os outros estão caídos. Por isso, o art. 192 da Constituição dispõe que "o sistema financeiro nacional, estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade, em todas as partes que o compõem, abrangendo as cooperativas de crédito, será regulado por leis complementares que disporão, inclusive, sobre a participação do capital estrangeiro nas instituições que o integram". No mundo dos pequenos, a escassez de crédito cria um contingente de excluídos que, em tempos de crise, são os primeiros a sucumbir. Indagado sobre a situação do seu país, o juiz da Suprema Corte, Louis Brandeis, profetizou: "Os Estados Unidos podem ter ou democracia ou concentração de riqueza nas mãos de poucos, mas ter os dois é impossível"1. Na verdade, o mundo não quer menos sistema financeiro. Quer mais. No Quênia e em parte da Tanzânia, os massais, grupo étnico africano de seminômades com suas mantas vermelhas e adornos exuberantes, desfrutam de autonomia material para implementar seus projetos de vida. O "milagre" vem do serviço M-Pesa, lançado em 2007. O M significa móvel (mobile) e pesa significa dinheiro na língua Swahili. Vodafone, Safaricom e Vodacom, os maiores operadores de telefones móveis no Quênia e na Tanzânia, permitem, com o M-Pesa, que os usuários depositem dinheiro em uma conta armazenada em seus celulares, enviem balanços usando mensagens de texto SMS protegidas por PIN para outros usuários, incluindo vendedores de bens e serviços, e para resgatar depósitos em cash. Os usuários pagam uma pequena taxa para enviar e retirar valores usando o serviço. Até 2012, 17 milhões de contas M-Pesa haviam sido registradas no Quênia. Em junho de 2016, a Vodacom tinha 7 milhões de contas na Tanzânia. Do solo árido da escassez, pilhagem e colonização, brotou prosperidade e dignidade para aqueles a quem o sistema financeiro tradicional não conseguiu incluir2. O triunfo africano se explica. Desmond Tutu, arcebispo sul-africano e Prêmio Nobel da Paz, descreveu a palavra zulu Ubuntu como "eu sou, porque você é". Ela representa a humanidade, a partilha, a comunidade ou o humanismo em relação aos outros. "Uma pessoa é uma pessoa através de outras pessoas" (Umuntu ngumuntu ngabantu). O acesso ao crédito por meio de inovações disruptivas como o M-Pesa, uma fintech pioneira do Quênia, é, em um sentido econômico, o reconhecimento de que "eu sou, porque você é"3. É o nascimento de um tipo de mercado Ubuntu, uma forma inteligente de encarar o capitalismo, como o faz o cooperativismo brasileiro. As principais instituições financeiras, como bancos e gestores de fundos são limitadas por regulamentações domésticas e internacionais que embaracam o pleno atendimento daqueles que estão na base da pirâmide social de uma nação desigual. Além disso, a cultura empresarial das instituições financeiras perpetua o foco nos clientes que estão no topo dessa pirâmide. A desconcentração do crédito promovida pelas cooperativas realiza comandos constitucionais como os incisos IV e V do art. 170, segundo o qual a ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios: IV - livre concorrência; V - defesa do consumidor. Portanto, as cooperativas foram novamente convocadas a contribuir com a cicatrização de uma ferida social: a concentração do crédito. Primeiro, os garimpos. Então, a terra. Depois, o dinheiro. Onde há súplica social, há cooperativismo. Tudo a partir de uma liberdade fundamental: o direito de cooperar. Pelo inciso XVIII do art. 5º, "a criação de associações e, na forma da lei, a de cooperativas independem de autorização, sendo vedada a interferência estatal em seu funcionamento". Em outros lugares também é assim. A Constituição portuguesa (1976) dispõe, no art. 288, 'f', que "as leis de revisão constitucional terão de respeitar a coexistência do sector público, do sector privado e do sector cooperativo e social de propriedade dos meios de produção". A inspiração tocou Angola4, Guiné-Bissau5, Moçambique, Guiné-Equatorial, Timor-Leste e São Tomé e Príncipe, irmãos da nossa língua6. E não é só7. O art. 129(2) da Constituição da Espanha (1978) diz que "as autoridades públicas devem promover de forma eficiente as várias formas de participação nas empresas e incentivar as sociedades cooperativas através de legislação adequada". O art. 45 da Constituição italiana dispõe: "A República reconhece a função social da cooperação de caráter mutualista e sem objetivos de especulação privada. A lei promove e favorece o seu desenvolvimento com os meios mais idôneos e assegura-lhe, mediante os controles oportunos, o caráter e a finalidade. A lei assegura a proteção e o desenvolvimento do artesanato". A Constituição indiana (1949), no art. 19 (1) 'b', relativo ao direito à liberdade, assegura que "todos os cidadãos têm o direito de formar associações, sindicatos ou sociedades cooperativas". Sensível a essa realidade, a UNESCO incorporou as cooperativas à sua lista do patrimônio cultural intangível da humanidade. A ONU, por sua vez, aprovou a resolução 49/155, de 23/12/1994, exortando os governos a encorajarem a criação de cooperativas8. A OIT fez o mesmo com a sua Recomendação 1939. Hoje, um bilhão de pessoas integra cooperativas. Na China, 91% do microcrédito é cooperativo. Na Índia, as necessidades de consumo de 67% dos integrantes de famílias rurais são supridas por cooperativas10. No Afeganistão, elas ajudaram na estabilização pacífica da zona rural após a retirada das tropas estadunidenses11. No Quênia, empregam 300.000 pessoas e criam indiretamente trabalho para 2 milhões de pessoas12. Estima-se em 250 milhões os agricultores membros de cooperativas nos países em desenvolvimento13. Em nosso país, o art. 4º da lei 5.764/71, dispõe que "as cooperativas são sociedades de pessoas, com forma e natureza jurídica próprias, de natureza civil, não sujeitas à falência, constituídas para prestar serviços aos associados". Esta lei foi recepcionada pela Constituição de 1988 com natureza de lei ordinária14. E as cooperativas não estão isoladas. São várias as instituições que aperfeiçoam o cooperativismo. Os regramentos e fiscalização da Receita Federal do Brasil, por exemplo. O Banco Central participa em razão de sua atividade quanto às cooperativas de crédito. O mesmo se diga quanto ao Ministério do Trabalho15, cujas competências legais incluem a fiscalização das cooperativas de trabalho. A Agência Nacional de Saúde atua junto às cooperativas de saúde e a Agência Nacional de Transportes Terrestres às cooperativas de transporte de cargas. O colorido das instituições independentes, numa virtuosa aliança, aperfeiçoa o próprio cooperativismo. Esse é um diálogo institucional que se une aos vários ramos do cooperativismo. A Organização das Cooperativas Brasileiras reconhece 13 deles: agropecuário, consumo, crédito, educacional, especial, infraestrutura, habitacional, produção, mineral, trabalho, saúde, turismo e lazer, e transporte16. Tudo alcançado pelo art. 146, III, "c", da Constituição, que diz: "cabe à lei complementar adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas". O "adequado tratamento tributário" constitui um "direito-prerrogativa". Direito, por caracterizar uma situação jurídica ativa, referida a determinados sujeitos. Prerrogativa, por significar direito conferido a um tipo fechado de pessoas jurídicas: as sociedades cooperativas. Sendo um "direito-prerrogativa", tanto não é dado aos seus detentores a ele renunciarem como não podem, quaisquer dos braços do Estado, ou seus agentes, negligenciar ou embaraçar o seu cumprimento. A eficácia há de ser imediata, plena, para não ser convertida numa proclamação retórica ou numa promessa vazia. Esse "direito-prerrogativa" é balizador do conteúdo de todas as leis sobre as sociedades cooperativas, não apenas à própria lei complementar federal a que se reporta a alínea "c" do inciso III do art. 146. A eficácia do comando constitucional vincula a atuação do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. Se o adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas é um direito subjetivo qualificado, tal prerrogativa se desdobra no que a Constituição refere como "incentivo" (art. 174, caput). Incentivo ou fomento estatal que abre espaço para uma iniciativa intervencionista-indireta do Estado. A regra geral da atuação estatal se dá no campo das leis em sentido formal e material. "Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado", consta do caput do art. 174. O Supremo Tribunal Federal conta com o Recurso Extraordinário 672.215, de relatoria do ministro Roberto Barroso, que traz o Tema 536 da repercussão geral. Nele, a Fazenda Nacional sustenta que as cooperativas médicas, embora não tenham fim lucrativo e destinem seus resultados aos cooperados, realizam a hipótese de incidência da COFINS, do PIS e da CSL. Não sendo imunes, nem isentas, estariam sujeitas ao pagamento desses tributos sobre a sua receita bruta, com as deduções e exclusões da base de cálculo previstas na lei 9.718/98, art. 30, § 50 (cooperativas de crédito) e art. 15 (demais cooperativas) e na Medida Provisória 1.858/99, bem como da CSL, na forma dos arts. 1º a 40, da lei 7.689/88. Ainda que se tratasse de receitas decorrentes da prática dos atos cooperativos próprios, previstos no art. 79 da lei 5.764/71, os ganhos deles decorrentes estariam dentro do campo material descrito pelos arts. 195, I e 239, da Constituição, aptos a gerarem receita, faturamento e lucro. A cooperativa médica recorrida, todavia, se opõe. Segundo ela, "as entradas decorrentes dos atos cooperados não são da cooperativa, mas de seus associados, os verdadeiros prestadores de serviços aos terceiros". A cooperativa não teria, nesse particular, receita própria, nem faturamento a configurar o fato gerador da COFINS, do PIS, da CSLL [e também do IRPJ]17. Tratar-se-ia da remuneração do trabalho desses profissionais, repassada pela cooperativa, sobre a qual os associados/cooperados já pagam o Imposto de Renda de Pessoa Física18. O disciplinamento legal demandado pelo art. 146, III, 'c', tem margem de liberdade para fazer calibrações, dosagens e cálculos de proporcionalidade. Até que ele venha, contudo, o que deve valer é a liberdade em não se ver tributado pelo fato de interagir com não membros em atos que são atos cooperativos. Segundo o caput do art. 79 da lei 5.764/71, "denominam-se atos cooperativos os praticados entre as cooperativas e seus associados, entre estes e aquelas e pelas cooperativas entre si quando associados, para a consecução dos objetivos sociais". O parágrafo único dispõe: "O ato cooperativo não implica operação de mercado, nem contrato de compra e venda de produto ou mercadoria". Uma cooperativa idônea, que atua em sintonia com os deveres ínsitos à proteção que lhe deu a Constituição, é marcada pela relação com os respectivos membros, o que pressupõe a sua participação ativa no desenvolvimento das atividades, algo diverso de uma relação comercial. Os ativos da cooperativa são detidos em comum pelos membros, e os excedentes são distribuídos exclusivamente entre eles, na proporção das suas transações com a cooperativa. É a mutualidade19. No acórdão dos embargos de declaração opostos ao Recurso Extraordinário 599.362, o ministro Dias Toffoli adotou uma análise holística das cooperativas para definir a incidência do PIS/COFINS: "desnecessidade de se investigarem as espécies de atos cooperativos, pois a questão da incidência da contribuição ao PIS não deve levar em consideração se o ato do qual a receita ou o faturamento se origina é qualificado como cooperativo ou não, mas sim se a sociedade tributada praticou o fato gerador dessa exação, se auferiu receita ou faturamento, tendo em conta suas atividades econômicas e seus objetos sociais"20. O precedente acima se restringiu a certas nuances de algumas cooperativas de trabalho, destacando, ainda, os ramos que possuem o reconhecimento em lei ordinária da exclusão do ato cooperativo da base de cálculo de tributos. O fato é que as sociedades cooperativas não podem aderir ao SIMPLES - à exceção das cooperativas de consumo, por serem tributadas, por lei, como empresas -, nem abrir capital para acionistas, ou permitir o aporte de capitais por investidores. Sua estrutura societária impõe-lhe limitações na captação de recursos, que não virá de outra fonte que não seja o empenho dos cooperados. Não é fácil financiar uma cooperativa. Essas singularidades demonstram a necessidade de o STF promover uma distinção entre as decisões que tomou nos RREE 598.085 (min. Luiz Fux, Tema 177) e 599.362 (min. Dias Toffoli, Tema 323), na hora de fixar agora, à luz da Constituição, a tese geral quanto a não incidência de PIS/COFINS e CSL. Será o passo certo a dar. De resto, a viagem cooperativista prossegue. No trajeto de Jerusalém para Masada, a sudoeste do Mar Morto, na região da Judeia, um deserto infinito se impõe sobre as vidas que tentam resistir. Penhascos, cavernas e crateras são fiéis companheiros. Enxergar um rasgo de água pura serpenteando a estrada seria uma ilusão. Animais, pessoas, árvores, plantas, frutas, borboletas..., não se vê nada. Solidão infinita. Mas antes que a esperança escape, o inesperado aparece. Grandes, fortes, verdes, belas, imponentes..., milhares de árvores carregadas de frutas fazem no horizonte o desenho de um tapete verde inalcançável à vista. Canos preenchidos pela mais cristalina das águas irrigam um solo que parecia morto. Como se fosse leite e mel. Pessoas trabalham, veículos entram e saem. Há produção, há atividade, há energia humana. É vida. Vida em abundância. Como é possível? Tudo começou com o Kibutz, que equivale ao grande sonho cooperativista brasileiro. Não é diferente na Escandinávia, onde, no verão, por milhares de quilômetros, são vistos os mais lindos campos produzidos pelas cooperativas. Saindo de lá, na Suíça, ao se pedir um queijo na grande Zurique, ou na pequena Lucerna, o letreiro do supermercado dirá: Coop. O concorrente é o Migros. O que ambos têm em comum? São cooperativas. Se todos esses lugares estiverem errados, procure a sabedoria popular da primeira cooperativa de piscicultura que encontrar por aqui. O sábio pescador dirá: "quando as águas sobem, todos os barcos se elevam". Eis a receita do cooperativismo. Estamos no ano e mês da celebração dos 30 anos da Constituição de 1988. Esse texto discorre, à luz da Constituição, sobre a capacidade de cooperar. Em 5 de outubro de 1988, o presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulisses Guimarães, apresentou a Constituição como a "Constituição Cidadã", também chamando-a de "Constituição Coragem". Após a longa caminhada desses 30 anos, há muito mais cidadania no cooperativismo. A geração que percorreu o caminho cumpriu a sua missão. Mas a tocha há de passar de mão para os próximos 30 anos. Essa nova caminhada demandará do cooperativismo, além da cidadania, coragem. Não que tenha faltado. Pelo contrário. Mas é que os direitos fundamentais são feitos de ciclos. Coragem para seguir adiante, para inovar, para mudar o que deve ser mudado e para ter orgulho de si mesmo. Coragem também para se apresentar dignamente perante o STF levando o seu legado virtuoso e submetendo à Suprema Corte uma interpretação apropriada da alínea "c" do inciso III do art. 146, acerca do "adequado tratamento tributário ao ato cooperativo praticado pelas sociedades cooperativas". Esse é o espólio dos 30 anos da Constituição e sua relação com o cooperativismo. Até aqui, cidadania. Daqui em diante, coragem. Muita coragem. __________ 1 Louis D. Brandeis Legacy Fund for Social Justice. 2 How mobile money is driving economic growth. 3 Vijay Mahajan. Africa rising. How 900 million African consumers offer more than you think. Prentice Hall. New Jersey, p. 189. 4 Constituição de Angola: Art. 77(3) A iniciativa particular e cooperativa nos domínios da saúde, previdência e segurança social é fiscalizada pelo Estado e exerce-se nas condições previstas por lei; Art. 79(3) A iniciativa particular e cooperativa nos domínios do ensino, da cultura e do desporto exerce-se nas condições previstas na lei. Art. 92(1) O Estado garante a coexistência dos sectores público, privado e cooperativo, assegurando a todos tratamento e protecção, nos termos da lei. 5 Constituição de Guiné-Bissau: Art. 13(1) O Estado pode dar, por concessão, a cooperativas e a outras pessoas jurídicas singulares ou colectivas a exploração da propriedade estatal desde que sirva o interesse geral e aumente as riquezas sociais; Art. 49(3) É garantido o direito de criação de escolas privadas e cooperativas. 6 Cabo Verde fala em solidariedade (art. 1º (3)), sem usar o termo "cooperativismo". 7 Bolívia (2009), Bósnia e Hezergovina (1995), China 1982, Colômbia (1991), República Democrática do Congo (2005), Cuba (1976), Equador (2008), Egito (2014), El Salvador (1983), Etiópia (1994), Guiana (1980), Irã (1979), Quênia (2010), México (1917), Nepal (2015), Nicarágua (1987), Paquistão (1973), Paraguai (1992), Peru (1993), Filipinas (1987), Sérvia (2006), Somália (2012), Suriname (1987), Taiwan (1947), Tajiquistão (1994), Uzbequistão (1992), Venezuela (1999), Namíbia (1990) e Bangladesh (1972), apenas para ilustrar. 8 Background - The Co-operatives Movement. 9 A Recomendação 193 da OIT sugere 18 diretrizes para a promoção do cooperativismo no mundo. 10 Dados referenciados no documento "Plano de Ação para uma Década Cooperativa", da International Co-operative Alliance. 11 Apenas para ilustrar. 12 OIT (2012) How women fare in East African cooperatives: the case of Kenya, Tanzania and Uganda. 13 Banco Mundial (2007) World Development Report 2008: Agriculture for Development. 14 No RE 598.085 (min. Luiz Fux, Pleno, DJe 9.2.2015), constou: "A Lei 5.764/71, que define o regime jurídico das sociedades cooperativas e do ato cooperativo (artigos 79, 85, 86, 87, 88 e 111), e as leis ordinárias instituidoras de cada tributo, onde não conflitem com a ratio ora construída sobre o alcance, extensão e efetividade do art. 146, III, c, CF/88, possuem regular aplicação". 15 A lei 12.690/2012, sobre a organização e o funcionamento das Cooperativas de Trabalho, dispõe, no art. 17, que "cabe ao Ministério do Trabalho e Emprego, no âmbito de sua competência, a fiscalização do cumprimento do disposto nesta Lei". 16 Disciplinamento legal: 1) lei 5.764/71 (Lei Geral das Cooperativas): Define a Política Nacional de Cooperativismo e institui o regime jurídico das sociedades cooperativas; 2) LC 130/2009 (Sistema Nacional de Crédito Cooperativo): Dispõe sobre o Sistema Nacional de Crédito Cooperativo; 3) lei 12.690/2012 (Cooperativas de Trabalho): Dispõe sobre a organização e o funcionamento das Cooperativas de Trabalho e institui o Programa Nacional de Fomento às Cooperativas de Trabalho (PRONACOOP); 4) lei 9.867/99 (Cooperativas Sociais): Dispõe sobre a criação e o funcionamento de Cooperativas Sociais; 5) decreto 8.163/2013 (Pronacoop Social): Institui o Programa Nacional de Apoio ao Associativismo e Cooperativismo Social; 6) Cooperativismo no Código Civil: O capítulo VII do código é dedicado ao cooperativismo; 7) Medida Provisória 2.168-40/2001 (Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo - Sescoop): Autoriza a criação do Sescoop, entidade de direito privado com o objetivo de organizar, administrar e executar o ensino de formação profissional, desenvolvimento e promoção social do trabalhador em cooperativa e dos cooperados; 8) decreto 3.017/99: Serviço Nacional de Aprendizagem do Cooperativismo. Há os disciplinamentos estaduais: Acre: lei 1.598/2004; Alagoas: lei 6.904/2008; Amapá: lei 1.131/2007; Amazonas: PEC 04/2012; Bahia: Lei 11.362/2009; Espírito Santo: lei 8.257/2006; Goiás: lei 15.109/2005; Maranhão: lei 9.170/2010; Mato Grosso: lei 9.129/2009; Mato Grosso do Sul: lei 2.830/2004; Minas Gerais: lei 15.075/2004; Pará: Lei 7.780/2013; Paraná: lei 17.142/2012; Pernambuco: lei 15.688/2015; Piauí: lei 6.852 /2016; Rio Grande do Norte: lei 8.553/2004; Rio Grande do Sul: lei 11.829/2002 e lei 11.995/2003; Rondônia: lei 1.462/2005; Santa Catarina: lei 16.834/2015; São Paulo: lei 12.226/2006; e Tocantins: lei 2.594/2012. 17 O Decreto 1.401/94, no art. 168, dispõe que somente os atos não cooperativos é que são sujeitos à incidência do IR: "As sociedades cooperativas que obedecerem ao disposto na legislação específica, pagarão o imposto calculado sobre os resultados positivos das operações estranhas à sua finalidade". 18 São valores transferidos mensalmente, e de forma estimada, aos associados, na proporção da atividade de cada um com a cooperativa. Anualmente, essa transferência se torna definitiva com a apuração, em balanço, das "sobras líquidas", que estabelecem o resultado final da participação dos associados em cada exercício. 19 O princípio da mutualidade consta do art. 3° da Lei 5.764/71, que diz: "Celebram contrato de sociedade cooperativa as pessoas que reciprocamente se obrigam a contribuir com bens ou serviços para o exercício de uma atividade econômica, 'de proveito comum', sem objetivo de lucro". 20 RE 599.362 ED (min. Dias Toffoli, Pleno, DJe 7.11.2016).
segunda-feira, 15 de outubro de 2018

A liderança na democracia constitucional

"Nós". Essa é a primeira palavra da Constituição de 1988. É a maneira pela qual é aberto o mais importante livro da nossa comunidade cidadã, comunidade essa fadada a viver civicamente entrelaçada. "Nós" é muito mais do que uma exortação à união do povo, é uma compreensão generosa do todo, o estabelecimento, com uma simples palavra, de um belo e sincero projeto de nação. "Nós", imortalizou o Preâmbulo. O Brasil pertence a todos os que nele vivem. Não pode haver "eles" no interior de uma gigante terra entregue a todos "nós". Juntos, "nós", o povo, somos o poder. É preciso ter isso dentro das nossas veias, irrigando os corações da cidadania que batem espalhados pelo corpo de uma nação tão grande. Consta do parágrafo único do art. 1o da Constituição: "todo o poder emana do povo". Pode haver questionamento acerca de qual caminho devemos seguir, e qual é a melhor forma de chegarmos do outro lado do arco-íris, mas, inquestionavelmente, estamos no mesmo barco e, se ele afundar, todos perderemos. Por isso, não podemos falar que estamos em guerra. À luz da Constituição, é inconcebível a guerra de brasileiro contra brasileiro. A guerra é sempre contra agressão estrangeira. O inciso XIX do art. 84, diz: compete privativamente ao presidente da República declarar guerra, "no caso de agressão estrangeira". Patriotas constitucionais divergem, brigam, rompem, disputam, competem, se magoam..., mas a Constituição não reconhece a guerra de brasileiro contra brasileiro. Há apenas um Brasil. Ponto. Contrapondo o precipício arriscado da guerra, a Constituição é sensível às vozes da esperança ao dispor que compete privativamente ao presidente da República "celebrar a paz" (art. 84, XX). Ouça: "celebrar". É o reconhecimento da liderança do presidente e da sua capacidade de aglutinação, um irrecusável convite à reconciliação e à cicatrização das feridas abertas na pele da comunidade. Se compete ao presidente tão grave missão, então precisamos olhar sem paixões, nem viralatismos, a qualidade das lideranças que estamos mandando para o terceiro andar do Palácio do Planalto. São boas? Ruins? Em 12 de janeiro de 1948, Gandhi realizou seu último jejum para persuadir hindus e muçulmanos a trabalharem juntos pela paz. A caminhada para a independência tinha sido árdua demais para que o triunfo fosse um povo dividido. Conseguiu, com a paz, derrotar um império cruel e a independência da Índia. O nome disso? Liderança. Com Nelson Mandela não foi diferente. "Peguem suas armas, suas facas, suas 'pangas', e joguem ao mar. Eles me deixaram preso 27 anos e eu os perdoei. Se sou capaz de perdoar, vocês também são!", disse Madiba, para 200 mil pessoas colocadas diante dele dispostas a matar e a morrer a depender da ordem do seu líder, quando a África do Sul se desmanchava em sangue por conta da luta entre brancos e negros. E aqui? Como temos nos saído? Primeiro, devemos observar como nossos líderes chegaram em palácios para, do topo da colina do poder, rolarem moribundos aos subsolos de calabouços, povoando hoje a sarjeta fria reservada a bandidos perigosos e criminosos incorrigíveis. Falharam eles? Falhamos nós? Falhamos todos? Nelson Mandela, diante do anúncio de sua prisão por crime de traição, disse: "Eu lutei contra a dominação branca e lutei contra a dominação negra. Cultivei o ideal de uma sociedade democrática e livre na qual todas as pessoas vivam juntas em harmonia e com oportunidades iguais. É um ideal pelo qual espero viver e alcançar. Mas, se preciso for, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer". Provou que pode haver dignidade até no cárcere. Tudo depende do caráter do encarcerado. Entre nós, o ex-presidente Lula foi condenado por corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Antes de cumprir a pena, deixou uma mensagem gravada na pedra da história: "Eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia misturada com as ideias de vocês". Foi essa a declaração de quem governou por oito anos tendo eleito e reeleito a sua sucessora. Alguém que, em 2018, se candidatou pela sexta vez a presidente, tendo sido barrado pelo TSE, numa candidatura impossível. "Eu não sou mais um ser humano, eu sou uma ideia"? É essa a explicação? Que coisa! Em 2016, tendo tido de responder a policiais se havia enriquecido indevidamente, o ex-presidente declarou: "Se quiseram matar a jararaca, não bateram na cabeça, bateram no rabo. E a jararaca está viva, como sempre teve". Ô! As atitudes dessas pessoas do poder, que foram banhadas nas águas cristalinas do voto popular, são desarmônicas com a honra e integridade dos postos por elas ocupados. Imagine se a ex-presidente Dilma Rousseff, numa solenidade transmitida por todas as emissoras de televisão, justificasse seu voto num impeachment contra o eventual presidente Jair Bolsonaro da seguinte forma: "Por Adélio Bispo de Sousa, o pavor de Jair Bolsonaro, voto sim". Não seria ultrajante? Pois foi como o deputado Bolsonaro, depois de parabenizar o então presidente da Câmara, Eduardo Cunha, votou. No lugar de Adélio entrou Brilhante Ustra, a quem até as pedras acusam de ter intimidade com a tortura. Nos Estados Unidos, na década de 1960, o presidente da Suprema Corte, Earl Warren, liderou a decisão que determinou o fim da segregação racial no país. Enfrentou resistência dos homens e mulheres racistas de lá. Certa feita, cruzou com uma manifestante na Convenção da Associação dos Advogados da Califórnia, onde discursaria. Ela ofereceu um panfleto que o criticava, chamava-o de comunista e pedia o seu impeachment. Warren recebeu e seguiu. Foi constrangedor. Mas foi civilizado. Em São Paulo, há pouco tempo, o então prefeito João Dória, ainda sem ter esquentado a cadeira da prefeitura, recebeu flores de uma ciclista. "Esta flor é em homenagem aos mortos nas marginais", disse ela, numa postura absolutamente aceitável para quem é, em verdade, a dona da cidade. Dória não aceitou. A ciclista deixou o ramalhete no painel do elegante veículo. O prefeito da cidade, recém-eleito, pegou as flores e as atirou ao chão. Depois de arremessar o ramalhete para fora do carro, deu as costas e partiu. A senhora, dignamente, se abaixou e, do chão, recolheu o ramalhete. Quem eles pensam que são? É preciso cultivar a capacidade de nos indignarmos. Essas pessoas ocupam posições que influenciam profundamente as presentes e futuras gerações. Se, com a sua postura, cospem em nossa face, devem ser derrotadas imediatamente. Não precisam ser canonizadas nem devemos cobrar delas perfeição ou um comportamento impossível para nós mesmos. O que não é mais possível é ter os piores guiando as nossas vidas. Isso, não. Na Nigéria, o então presidente, Goodluck Jonathan, ao perceber que não se reelegeria, antes que conflitos internos colocassem a unidade do país em risco, se adiantou e parabenizou seu rival e candidato do partido opositor Congresso de Todos os Progressistas, Muhammadu Buhari, pela vitória, reconhecendo o resultado das urnas. No Brasil, em 2014, o PSDB, partido que já governou com Fernando Henrique Cardoso, após ser derrotado pela candidata do PT, Dilma Rousseff, pediu ao Tribunal Superior Eleitoral uma auditoria para verificar a "lisura" da eleição presidencial. Não havia faltado lisura nas urnas eletrônicas. O que faltou foi voto ao candidato Aécio Neves. A atitude abriu um caminho terrível de desconfiança quanto às urnas que ninguém sabe onde dará e que tem erodido a credibilidade depositada na Justiça eleitoral. Mesmo no trato com os adversários há lama espalhada por todos os lugares. Isso afasta muita gente boa da caminhada política. Ninguém decente aceitará ser mergulhado num lamaçal infame apenas pelo fato de lançar seu nome na disputa eleitoral. Em 2008, num comício de John McCain, candidato republicano à presidência dos Estados Unidos contra o democrata Barack Obama, uma mulher disse que não confiava em Obama. "Li sobre o que ele é, ele é um árabe", disse. McCain discordou: "Tenho de dizer que é um homem decente, com quem tenho apenas desacordos em relação a alguns temas fundamentais". Um homem se disse assustado com a possível presidência de Obama: "é alguém ligado aos terroristas locais". McCain não deixou que o medo desse o tom da eleição: "É uma pessoa a quem vocês não devem temer como presidente dos Estados Unidos. Se eu não acreditasse que poderá vir a ser um excelente presidente, não o defenderia", retrucou. O nome disso? Liderança. Entre nós, em 2014, a campanha da candidata Dilma Rousseff deu a entender que as propostas de Marina Silva sobre o pré-sal tirariam um trilhão e trezentos bilhões de reais da saúde e da educação. Noutro vídeo, mostrou a comida desaparecendo da mesa de uma família sugerindo que era isso o que ocorreria se Marina fosse eleita. Estava claro que não havia fundamento racional para uma propaganda tão mentirosa como aquela. A postura cristalizou a mensagem de que devemos nos comportar como gente desonrada caso queiramos ganhar eleições. Isso inspirou os anjos maus da nossa natureza. Péssimo. Estão riscando até o último cristal. A admiração que os militares gozam passou a sofrer abalos, com o General Hamilton Mourão dando entrevistas. Trata-se de um general de 4 estrelas que tem a honra de ser candidato a vice-presidente. É o que de melhor as Forças Armadas podem formar. Mas, quando abre a boca... "Temos uma certa herança da indolência, que vem da cultura indígena", disse, arrematando em seguida: "Nada contra, mas a malandragem é oriunda do africano". Semanas depois, a pá de cal: "Olha, meu neto é um cara bonito, viu ali? Branqueamento da raça". Não é possível que um general 4 estrelas tenha tido uma formação humanística tão pobre, tão deficiente. Militares são inspiração em qualquer boa democracia. São fonte de confiança e credibilidade. Honram o país e dignificam a comunidade. Nos Estados Unidos, o General Eisenhower abriu seu primeiro discurso, em 1953, como presidente da República, assim: "Eu proponho usar toda a autoridade que existe no cargo de Presidente para encerrar a segregação no Distrito de Columbia, incluindo o Governo Federal, e qualquer segregação nas Forças Armadas". O General fez de Washington um modelo para o resto do país ao iniciar a integração nas escolas públicas para crianças brancas e negras. Ele propôs ao Congresso as Leis dos Direitos Civis de 1957 e de 1960, que se tornaram fundamentais para acabar com o racismo institucionalizado desde 1875. E não foi só ele. Em 1963, o Alabama era o único estado cuja segregação racial, a despeito da decisão da Suprema Corte, era mantida. O governador George C. Wallace Jr, proclamara que ficaria em frente da porta de qualquer escola do Alabama que tivesse de acabar com a segregação. "Eu digo: segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre", afirmava, em seus discursos, o governador racista. Depois de um grande circo armado diante da Universidade, o Governador viu o General Henry Graham se aproximar e afirmar, sem alterar o tom de voz: "É meu grave dever pedir-lhe que se afaste do caminho para que sejam cumpridas as ordens do presidente dos Estados Unidos". O país era comandado por John Kennedy. O Governador Wallace saiu da frente e, limpando o rastro de sujeira racista deixado no Alabama, os corajosos jovens James Hood e Vivian Malone se tornaram os dois primeiros negros a se matricularem na universidade do estado. Fizeram história. Na maior democracia do planeta, toda a garantia dos direitos dos negros nos momentos mais difíceis na longa caminhada para a liberdade veio dos militares, que, com a sua integridade, coragem e amor à Constituição, deram o melhor de si para unir a nação em momentos em que ela parecia prestes a se partir em pedaços. Por isso, é perturbador ouvir as manifestações à imprensa do candidato à vice-presidência, Hamilton Mourão. Quem conhece as Forças Armadas sabe o oceano de excelência que banha aquele campo verde. O que deu errado com o General? Tem mais. Presa e levada para o quartel do Exército em Vila Velha, Espírito Santo, a jornalista Míriam Leitão, então militante do PCdoB, conheceu o inferno a partir de 4 de dezembro de 1972: tapas, chutes, golpes que abriram a sua cabeça, a humilhação de ser forçada a ficar nua na frente de soldados e horas a fio trancada numa sala escura com uma cobra. Em depoimento a Luiz Cláudio Cunha, a jornalista disse: "ainda aguardo um pedido de desculpas das Forças Armadas". Apenas perdão. Há algumas semanas, ela entrevistou o General Hamilton Mourão. Míriam vestia preto. Indagou como podia o General celebrar Brilhante Ustra, alguém acusado, do Oiapoque ao Chuí, de ser um torturador cruel. Mourão o chamou de herói. Quando a jornalista indagou que tipo de herói era aquele, o candidato finalizou: "Heróis matam". Ponto. Saiu sem pedir desculpas. Podemos ser melhores do que isso. Há irmãos tão machucados como nós que, mesmo mergulhados em lágrimas de dor e sofrimento, conseguiram receber de seus algozes alguma compaixão. Vale recordar o relato de Albie Sachs, que foi juiz da Corte Constitucional da África do Sul, indicado por Nelson Mandela. Tony Yengeni, que pertencera ao braço armado do ANC, partido de Nelson Mandela, ficara cara-a-cara, na Comissão da Verdade e Reconciliação, com o Sargento Benzien, que o torturara e ao tempo pedia anistia à Comissão. Tony pediu que o Sargento Benzien mostrasse como colocara sacos molhados nas cabeças de prisioneiros. "Mostre à Comissão como você nos sufocava até pensarmos que estávamos nos afogando, que sufocaríamos e morreríamos". A Comissão pediu que alguém se deitasse no chão e o saco foi colocado em sua cabeça. "Agora, por favor, mostre-nos como você o segurou - por quanto tempo o segurou ali". O Sargento Benzien ajoelhou-se e segurou o saco. Depois que ele se levantou, Tony pediu: "Pode explicar como um ser humano pode fazer isso com outro ser humano?". O Sargento começou a chorar. As lágrimas escorriam num rosto avermelhado coberto pela vergonha e pelo vexame. Fazer aquilo com outra pessoa era simplesmente errado. Não era possível negar isso, ou justificar o comportamento. Simples. Não sem razão, o último presidente do apartheid, Frederik de Klerk, Nobel da Paz, afirmou: "Eu e muitos outros líderes pedimos formalmente perdão pela dor e sofrimento causados pelas políticas anteriores implementadas pelo Partido Nacional". Liderança. Precisamos refletir. No que estamos nos tornando? Recentemente, durante o clássico entre Atlético Mineiro e Cruzeiro, os torcedores do Atlético ofenderam os rivais com gritos homofóbicos. Uma das canções entoadas dizia: "Ô cruzeirense, toma cuidado: o Bolsonaro vai matar veado". Assombroso. Escavamos o fundo do nosso poço moral. O esporte já foi usado para unir, não para despedaçar. Basta lembrar o final da Copa do Mundo de Rugby, em 1995, quando o capitão da seleção sul-africana, François Pienaar, ao ouvir que o time contava no estádio com 16 mil sul-africanos dando apoio, fez uma correção: "Não. Nós tivemos 43 milhões de sul-africanos nos dando suporte". Falava da população do país, brancos e negros, unidos graças ao presidente Nelson Mandela, que viu no esporte, e no estádio, catalizadores de bons sentimentos. Precisamos pensar a qualidade da liderança política dos nossos presidentes da República. Não que não tenhamos em todas as nações citadas exemplos ruins em igual ou maior quantidade. Somos conscientes sobre Hitler, Stalin, Lenin, Mao Tse Tung, Kim Jong Li e muitos outros. Não estamos atrás de anjos, mas de líderes, de carne e osso, repletos de defeitos, mas que, pelo menos, não esfreguem em nossa cara, diariamente, suas deformações. Não se trata de competir por quem é pior, mas de perceber que os nossos líderes têm tido um comportamento incompatível com as necessidades do país e que essa falta de liderança e institucionalidade nos impede de avançar civicamente. O presidente Fernando Collor, confrontado por manifestantes, em 1991, reagiu dizendo que tinha "aquilo roxo". Jânio Quadros, em 1961, proibiu as mulheres de usarem biquíni. Em 2012, a presidente Dilma Rousseff ordenou que as pessoas se dirigissem a ela apenas como "A Presidenta". Do solo sem os minerais da liderança verdadeira brotaram o confisco da poupança, o terror da ditadura militar com a renúncia de Jânio e uma das piores recessões econômicas da história do país. Não há colheita possível. E há mais lições. Quando Ronald Reagan, presidente dos Estados Unidos, se recuperou do atentado que sofreu, em 1981, ele deu uma coletiva à imprensa do lado da esposa agradecendo pela sua vida. Acenou demonstrando que a nação tinha comando, que seu líder estava bem, e que havia muito a fazer pelo país. No Brasil, esse ano, após ser covardemente esfaqueado, num atentado político praticado por um militante da esquerda, Jair Bolsonaro deixou-se fotografar, numa cama de hospital, imitando o uso de uma arma e sorrindo. Era essa a mensagem que entendeu adequada deixar para a história. Não nos deu tempo sequer de seguirmos com a nossa compaixão. Rapidamente, o candidato que está a poucas semanas de ser eleito presidente do país numa votação esmagadora, nos fez recordar de que essência ele é feito. Semanas antes, no Acre, pegando um tripé de uma câmera, imitou usar uma arma e gritou para a multidão: "Vamos fuzilar essa petralhada!". Em termos de discurso do ódio, mais do que isso não é possível haver. É o fim da linha. Principalmente, vindo de um homem que galopa com folga nas eleições presidenciais num país dividido. É inaceitável que um líder nas eleições diga a seus apoiadores que "metralhem" opositores, seja em qual contexto for. Em 22 de julho de 2011, na Noruega, um ataque terrorista resultou numa explosão na zona de edifícios governamentais da capital, Oslo, e num tiroteio na ilha de Utøya. Morreram 76 jovens do Partido Trabalhista. Sabe o que gritava o assassino norueguês, Anders Behring Breivik, enquanto atirava nos jovens? "Apareçam, seus marxistas!". Palavras têm poder, principalmente na mente de extremistas. Líderes devem ser cautelosos com incitações a multidões. Acender a fagulha é explodir o país. O primeiro-ministro norueguês, Jens Stoltenberg, abriu um inquérito cuja conclusão foi a de ter havido falhas por parte do governo quanto à segurança. Ao encontrar as famílias das vítimas do ataque, pediu perdão e disse que ele e o governo poderiam ter feito mais para evitar o massacre. O nome disso? Liderança. No nosso país, após sermos humilhados com o incêndio que destruiu o Museu Nacional, no Rio de Janeiro, vimos jornalistas questionarem o candidato Jair Bolsonaro sobre o episódio. Ele disse: "Já está feito, já pegou fogo, quer que faça o quê? O meu nome é Messias, mas eu não tenho como fazer milagre". Pois não. O custo da falta de uma postura de estadista e de um comportamento compatível com o poder que essas pessoas ostentam tem saído caro. Tem sacrificado gerações, condenado jovens e exterminado sonhos. Não é possível que, numa nação de 210 milhões de habitantes, sejam, essas pessoas, a representação do que de melhor o país produziu. Alguém imagina Gandhi gargalhando, num trio elétrico, enquanto chuta o boneco inflável de um opositor preso? Ou uma senadora presidente do partido de Margareth Thatcher ao seu lado num comício dizendo que ela fede "a cachaça", antes de vê-la partir para um presídio? Cadê as pessoas cuja liderança, amor e respeito ao país farão um rasgo na mata fechada das nossas esperanças abrindo caminho para orgulho e consagração? Em uma de suas conversas com a presidente Dilma Rousseff, gravadas com autorização judicial, o ex-presidente Lula disse: "Eu tô pensando em pegar todo o acervo e jogar na frente do Ministério Público. Eles que enfiem no c... e tomem conta disso". A presidente perguntou do que se tratava. "Ô Dilma! Onze contêineres de tranqueira que eu ganhei quando eu 'tava' na presidência". Uma marca da civilização é o zelo com a preservação da história. Numa nação, isso passa pela conservação da memória dos ex-presidentes. São livros, discursos, fotografias, documentários, filmagens, presentes, condecorações e tudo da trajetória. Esses espaços não são destinados à adoração de políticos. São ambientes onde estudantes fazem visitações, universitários pesquisam materiais, jornalistas cruzam informações, historiadores comprovam fatos e turistas conhecem um pouco mais do país. O ex-presidente Lula, com a sua incomum trajetória, tem o mais rico acervo presidencial do Brasil. Não sabe, contudo, o seu valor. Como pode? Numa democracia constitucional, liderança é um bem jurídico. O art. 89 da Constituição diz que participam do Conselho da República: IV - os líderes da maioria e da minoria na Câmara dos Deputados; V - os líderes da maioria e da minoria no Senado Federal. O art. 140, dispõe: "A Mesa do Congresso Nacional, ouvidos os líderes partidários, designará Comissão composta de cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de defesa e ao estado de sítio". A missão dimana diretamente da Constituição. Não é, pois, uma aspiração política apenas. No Brasil, o instituto da "liderança" foi constitucionalizado. E liderar não é necessariamente ser eloquente, encantar multidões com discursos inflamados, fazer acordos de bastidores, ter um carisma extraordinário ou gerar memes com frases de efeito que viralizam. Sequer ser eleito é necessário. Liderar é ter senso de Justiça, coragem de fazer o que é certo e capacidade de inspirar as pessoas pelo exemplo. A partir do dia 1o de janeiro, teremos novos presidente e vice. O art. 78 da Constituição aponta o caminho a partir da bela oração do juramento: "(...) manter, defender e cumprir a Constituição, observar as leis, promover o bem geral do povo brasileiro, sustentar a união, a integridade e a independência do Brasil". Cobremos, com a dignidade que nossos ancestrais nos legaram, para que floresça o perdão, se acabe a revanche e um renovar de esperança tome conta de uma terra que é bonita por natureza. O fim é o começo, como um reencontro. "Nós". Essa é a primeira palavra da Constituição. Não há "eles". Há apenas "o povo brasileiro". É a Constituição do "nós", enquanto nação, unida por um ideal. Fiquemos de olho, pois, como consagrado na cabeceira da história política, "nós" somos o poder. Nós, não "eles".
E nós, sempre os últimos a saber, achávamos que já tínhamos visto tudo nessas eleições. Não vimos nada ainda. O item 1.4 do Plano de Governo da Coligação "O Povo Feliz de Novo" (PT - PCDOB - PROS), que tem como candidato a presidente o advogado Fernando Haddad, e, como vice, a deputada estadual Manuela d'Ávila, transformou o aniversário de 30 anos da Constituição de 1988 num funeral. O que era festa virou luto. Até isso destruíram. Eis a abertura: "O Brasil precisa de um novo processo constituinte: a soberania popular em grau máximo para a refundação democrática e o desenvolvimento do país". Soberania popular em grau máximo? A Constituição assegura a soberania popular. O parágrafo único do art. 1º, diz: "Todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Mais à frente, o art. 14 dispõe: "A soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos, e, nos termos da lei, mediante: I - plebiscito; II - referendo; III - iniciativa popular". Esse é grau máximo de soberania popular. Não há previsão do fim da Constituição em nome da soberania popular. Então que soberania popular em grau máximo é essa? Trechos de um documento histórico que governou um povo por décadas ajuda na tentativa de encontrar uma resposta. "A Assembleia Parlamentar apresenta-se fundamentalmente, como representante do povo, mas esse fundamento, em si, não é democrático, porque a democracia significa o poder do povo não o poder de um substituto", consta. Então, a pá de cal: "O poder deve ser inteiramente o do povo". São passagens do Livro Verde, que serviu como base do regime de Muammar Kadhafi, por quase quarenta anos, na Líbia. Soberania popular em grau máximo. O "Cachorro-louco" terminou arrancado pelos cabelos de um buraco e morto, entre tiros, chutes, cuspidas, socos e coronhadas, pelo mesmo povo que ele mentirosamente disse defender. É a revolta absoluta do povo contra o regime absoluto de um tirano. "Quanto mais absoluto for o governante, mais absoluta será a revolução que vem a substituí-lo"1 explicou, profeticamente, a extraordinária Hannah Arendt. Vamos aprender para não esquecer. E não esquecer para não repetir. Se a lógica de Hannah Arendt estiver correta, aqueles que se julgam vítimas de um golpe, reagirão contra os que reputam golpistas, promovendo novos sopapos institucionais, em um acerto de contas sem fim. Se for isso, estamos todos condenados. Fica a impressão de que o processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff deixou cicatrizes que não serão curadas sem o empenho de toda a nação. Para os que dão suporte a uma nova Constituição nos termos propostos pelo Plano de Governo do candidato Fernando Haddad, teria sido o impeachment um processo de tal forma injusto que seus supostos artífices não poderiam ficar impunes. Uma nova Constituição viria inspirada pelo sentimento ruim da revanche. Seria um fruto nascido podre. Sempre que pessoas machucadas pelo o que julgam ser trapaças políticas anunciam revanche, vem à mente Nelson Mandela. "Nós podemos ter prosperidade ou nós podemos ter vingança. Mas não podemos ter os dois. Vamos ter de escolher"2, dizia ele durante as negociações que asseguraram a superação do apartheid. Potenciais traições que não raramente contaminam a democracia não devem servir de combustível para incendiar o constitucionalismo. O ditador Júlio César, no Senado Romano, levou 23 facadas cravadas por sessenta senadores. Isso mostra que nenhum governante está imune a conspirações. Aos que se sentem vítimas de injustiças, é preciso reagir de tal modo que não se mire a Constituição para lançar nela uma bala de prata. E há mais no Plano de Governo do candidato Fernando Haddad: "O golpe aprofundou a crise de representac¸a~o poli'tica e agravou o desequili'brio no sistema de pesos e contrapesos das instituic¸o~es republicanas. A refundac¸a~o democra'tica liderada pela Coligação O Povo Feliz de novo implicara' mudanc¸as estruturais do Estado e da sociedade para restabelecer o equili'brio entre os Poderes da Repu'blica e assegurar a retomada do desenvolvimento, a garantia de direitos e as transformac¸o~es necessa'rias ao pai's". Antes de qualquer coisa, "sistema de 'peso' e contrapesos" é uma novidade. Estava habituado com "freios e contrapesos". Espera-se que o redator do Plano de Governo não seja o mesmo da próxima Constituição. Além disso, a Constituição de 1988 disciplina o equilíbrio entre os Poderes. O art. 2º dispõe: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário". Ponto. O risco da mudança proposta é vir algo que carregue no "peso" e alivie no contrapeso. Ao final, o arremate: "Para assegurar as conquistas democra'ticas inscritas na Constituic¸a~o de 1988, as reformas estruturais indicadas neste Plano e a reforma das Instituic¸o~es, e' necessa'rio um novo Processo Constituinte. Para tanto, construiremos as condic¸o~es de sustentac¸a~o social para a convocac¸a~o de uma Assembleia Nacional Constituinte, livre, democra'tica, soberana e unicameral, eleita para este fim nos moldes da reforma poli'tica que preconizamos. Nosso governo participara' logo apo's a posse da elaborac¸a~o de um amplo roteiro de debates sobre os grandes temas nacionais e sobre o formato da Constituinte", diz o Plano. Noutras palavras: para assegurar as conquistas democráticas inscritas na Constituição de 1988 vamos acabar com a Constituição de 1988. Morro e não vejo tudo! Vamos reconhecer, o poder mudou. Simplesmente mudou. E não foi apenas no Brasil, foi no mundo. É como explica Moisés Naím: "O poder ficou mais fácil de adquirir, mas mais difícil de usar, e mais fácil de perder". A Constituição brasileira é inocente. Naím lembra que a Holanda passou quatro meses sem governo em 2010. A Bélgica, em 1988, demorou 150 dias para ver seus políticos formarem uma coalização capaz de governar. Em 2007-2008, por tensões entre as regiões dos flamengos, de fala holandesa, e dos valões, de fala francesa, o país ficou nove meses e meio sem governo. Em fevereiro de 2011, a Bélgica superou o Camboja sendo o país a passar mais tempo sem governo no mundo. Em 6 de dezembro de 2011, após 541 dias, "foi empossado um novo primeiro-ministro"3. Alguém dirá que são, Holanda e Bélgica, "Repúblicas de Bananas" pelo fato de terem, em sua história recente, episódios de instabilidade política? Toda Constituição serve para frear o poder, não para adulá-lo. Seja de farda e baionetas, seja de camisa vermelha e megafones, quem quer que planeje derrubar a Constituição de 1988 tem em mente um projeto particular, não coletivo; um projeto de poder para si, não para empoderar o outro; algo egoísta, não altruísta. Não se reconstrói um país assim. Quem não sabe virar a página não consegue ler o livro. E o mais grave disso tudo é que o poder pode muito. Se eleito, quando o hoje candidato Haddad levar a ideia adiante, não tardará para aparecerem candidatos a constituintes. Uma reunião no Palácio será o suficiente para fazer água virar vinho. Exatamente por isso essa ideia infeliz precisa encontrar imediata e dura resistência. E o pior é que esse desejo não é novo no Partido dos Trabalhadores. O movimento "O Gigante Acordou", fenômeno impregnado por uma coragem esperançosa vivido no Brasil em junho de 2013, teve como estopim o aumento de R$0,20 centavos na tarifa do transporte público na cidade de São Paulo, o que fez com que milhões de pessoas tomassem as ruas protestando contra as condições de vida no país. Dia 21 de junho, a então presidente da República, Dilma Rousseff, cancelou uma viagem oficial e fez um pronunciamento anunciando uma nova constituinte para fazer uma reforma política. Depois de uma onda de protestos, desistiu4. A falta de apoio a impediu. A Presidente vivia o poder em decadência. Já não tinha força política sequer para se manter de pé. Antes que o café esfriasse, homens gananciosos tiraram-lhe do Palácio. Se tivesse permanecido, ninguém sabe onde essa ideia chegaria. Em tempos de promessas vazias, o bom é ouvir quem tem algo a dizer. Quanto à Constituição, Ulisses Guimarães é quem mais tem a falar. Basta consultar seu discurso em 5 de outubro de 1988, por ocasião da promulgação da Constituição. Ele disse: "Quanto a ela, discordar, sim. Divergir, sim. Descumprir, jamais. Afrontá-la, nunca. Traidor da Constituição é traidor da Pátria". Deu nome aos bois. Quanto à acusação de que a Constituição não é perfeita, respondeu: "A Constituição certamente não é perfeita. Ela própria o confessa, ao admitir a reforma". O caminho das emendas está aberto e é conhecido. Ele foi percorrido 99 vezes, além das emendas de revisão. Ninguém se perde no caminho de volta. Podemos reformar. Mas jogar tudo fora para começar do zero? Por revanche? Não. "Há lugares em que as pessoas vêm acertando as contas há séculos e o ciclo de destruição mútua não vai parar até que as pessoas objetivem deixar o passado para trás"5 - alerta David Schmidtz. Tudo isso porque é preciso entender que a Constituição de 1988 não é um pote de ouro no final do caminho. Ela é o próprio caminho. E isso também foi dito por Ulisses Guimarães: "A persistência da Constituição é a sobrevivência da democracia". Outro ponto é o fato de o PT supor que reunirá condições de impulsionar uma nova Constituição com maior apelo popular do que a Constituição de 1988. Como? A constituinte teve o seu caos, e nela houve de tudo, mas isso não tira o seu caráter intrinsecamente popular. É o que o doutor Ulisses chamou de sopro de gente: "Há, portanto, representativo e oxigenado sopro de gente, de rua, de praça, de favela, de fábrica, de trabalhadores, de cozinheiros, de menores carentes, de índios, de posseiros, de empresários, de estudantes, de aposentados, de servidores civis e militares (...)". Quanto ao desgoverno brasileiro, esse é fruto da crise econômica e Constituição nenhuma é capaz de fazer dinheiro dar em árvores. A Constituição não imprime moeda, não tem a chave do Tesouro. Nesse ponto, mais um vaticínio de Ulisses: "O desgoverno, filho da penúria de recursos, acende a ira popular, que invade primeiro os paços municipais, arranca as grades dos palácios e acabará chegando à rampa do Palácio do Planalto". Quando o dinheiro alheio acaba, e o povo volta a ouvir a barriga roncar, todas as ideologias políticas vão ao chão. Sendo você um governante de direita, de centro ou de esquerda, se faltar o que comer na casa do povo, acredite, você está em apuros. E há três coisas nessa vida que são difíceis de frear: fogo morro acima, água rio abaixo, e presidente da República afundando diante de uma crise econômica. Não tem nova Constituição que resolva. Quanto à intenção de enquadrar o Ministério Público, acabando com o seu poder de investigação - proposta do ex-deputado federal José Dirceu -, o certo sempre pareceu ser acabar com a corrupção, não com quem a combate. Teremos uma nova Constituição com um Ministério Público adulador do poder? Novamente: morro e não vejo tudo! Nesse ponto, Ulisses Guimarães também profetizou: "A corrupção é o cupim da República. República suja pela corrupção impune tomba nas mãos de demagogos, que, a pretexto de salvá-la, a tiranizam". Olhem para o Brasil e reflitam. Há corruptos demagogos tiranizando o povo? Profecia pura. Os nossos líderes roubaram, deixaram roubar e querem tirar da cadeia quem roubou. É o contrário da lógica de Ulisses: "Não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube". Inverteram tudo. E querem constitucionalizar essa inversão. Sinceramente... No encerramento do célebre discurso de 5 de outubro de 1988, o doutor Ulisses pediu ao final: "Nosso desejo é o da Nação: que este Plenário não abrigue outra Assembléia Nacional Constituinte". Fernando Haddad e Manuela d'Ávila, com o Plano de Governo que apresentaram à nossa comunidade, dão de ombros para esse pedido. São, ambos, candidatos a presidente e a vice, empatados tecnicamente com o primeiro colocado, o capitão Jair Bolsonaro cujo vice é o General Hamilton Mourão. A Constituição completa 30 anos essa semana. O que era para ser um aniversário, virou um funeral. Até isso eles estragaram. Lamentável tudo isso. __________ 1 Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p. 205. 2 Os elementos da justiça. Tradução de William Lagos; revisão da tradução Aníbal Mari. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 322. 3 O Fim do Poder. Tradução Luis Reyes Gil. São Paulo: Leya, 2013. p. 133. 4 Mais informações em: clique aqui. 5 SCHMIDTZ, David. Os elementos da justiça. Tradução de William Lagos; revisão da tradução AníbalMari. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2009, p. 321.
Em julho desse ano, em entrevista à TV Cidade, de Fortaleza, o candidato a presidente pelo PSL, o deputado federal Jair Bolsonaro, afirmou que pretende ampliar o total de ministros do Supremo Tribunal Federal para poder interferir em sua composição e assim garantir para si a indicação de uma maioria capaz de lhe fazer as vontades. "Temos discutido passar para 21 ministros, para botar pelo menos dez isentos lá dentro", justificou o Capitão. Vai faltar espaço no Plenário para tanta gente. Mas o arremate foi pior: "para termos a maioria lá dentro. Pensamos até nisso porque para você, como presidente, governar com esse Supremo que está aí está complicado". Que coisa! Propostas para suprimir conquistas fundamentais não são novidades no rebotalho do poder. Um ditador, diante de um assessor que lhe dizia que o habeas corpus era uma cláusula pétrea sem chance de supressão, teria respondido: "Para cada cláusula pétrea, apresentaremos uma emenda britadeira". Pois não. É claro que podemos estar diante de uma proposta vazia feita em tempo de eleição apenas para agradar alguma parcela do eleitorado. Ou não. Caso ela se materialize, a chance de aprovação é grande. Sufocar o STF é um sonho antigo de muitos congressistas, mas irrealizado por faltar figuras talhadas para a missão. Agora, o plano encontrou homens com disposição. Será agoniante ver o STF se debatendo sem ar, tentando gritar em vão até perder os sentidos. Suprema Corte nenhuma merece correr esse risco. Com o Diário Oficial da União à sua disposição, uma popularidade eletrizante nas ruas e militares postados ao seu redor, o Capitão e o General terão os meios para realizar o intento, caso queiram. Por maior que seja a gritaria de alguns setores, não tardará para que homens fascinados pelo poder comecem a achar a ideia razoável. Será a chance de almejar um gabinete para chamar de seu e, dentro dele, lustrar as botas do poder. Mas a proposta é inconstitucional "de Deus a Virgílio Távora". A menção a Deus vem do Preâmbulo da Constituição, que fala "sob a proteção de Deus". E Virgílio Távora foi quem assinou a Constituição por último. Ou seja, é inconstitucional do início ao fim. Não que uma emenda não possa alterar a quantidade de ministros em tribunais superiores. A Emenda à Constituição 45, por exemplo, o fez quanto ao Tribunal Superior do Trabalho. Mas quanto ao Supremo Tribunal Federal, é diferente, porque toda a conformação institucional dessa Corte é diversa. Apenas o STF recebe, em nome da proteção dos incisos do art. 5º, a missão de poder contramajoritário postado como guardião precípuo da Constituição. E mais. Ela é mais do que uma Corte Superior, é a única Corte Suprema, o órgão de cúpula de todo o Poder Judiciário com membros presidindo tanto o Conselho Nacional de Justiça como o Tribunal Superior Eleitoral. Tudo no STF é institucionalmente elevado. Nesse sentido, vale ler o inciso III do § 4º do art. 60 da Constituição, enquanto ele ainda está por aí. Dispõe que "não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir: "III - a separação dos Poderes"" É uma cláusula pétrea. No Brasil, de todos os tribunais o STF é o que, à luz da Constituição, viabiliza a "separação dos poderes" com julgamentos dotados de efeitos sobre toda a população. Segundo o art. 101, o STF compõe-se de onze ministros, escolhidos dentre cidadãos com mais de trinta e cinco e menos de sessenta e cinco anos de idade, de notável saber jurídico e reputação ilibada. É o formato para, segundo o art. 102, agir, "precipuamente", na "guarda da Constituição". Nenhum outro tribunal conta com essa vocação. Aqui reside a preservação dos direitos e garantias fundamentais. Por isso, o STF é o único tribunal a ser chamado de "legislador negativo", capaz de desfazer com efeitos abrangentes, e à luz da Constituição Federal, aquilo que os legisladores do Brasil - União, Estados, Distrito Federal e Municípios - fazem. Tudo para que sejamos, como determina o art. 1º da Constituição, um "Estado Democrático de Direito". Movimentações políticas contra Supremas Cortes e seus juízes só prosperaram onde as instituições não eram de boa qualidade. Acontece que, em tempos de populismo triunfante nos dois extremos da corda da cena política brasileira, não sabemos ao certo a força dos freios entre nós. Eis os ingredientes: um Diário Oficial da União galopante, multidões dando total suporte em busca de revanche e homens armados no Palácio. Quem conseguirá barrar o fruto dessa combinação? E há mais. Ainda que se consiga a desejada maioria das indicações no Tribunal nada assegura que os novos indicados se comportarão como cavalos guiados em rédeas curtas. Quando, mesmo indicados, a independência judicial começar a incomodar o terceiro andar do Palácio do Planalto, o jeito será avançar contra ela. E a inamovibilidade? E a vitaliciedade? E a irredutibilidade de vencimentos? E a irrecorribilidade das decisões do STF? Um ato não será suficiente. Talvez precisem de cinco. No Brasil, o número é cabalístico. A pegada do quinto ato é sempre mais forte. Cuidado. Para Dieter Grimm, que foi juiz da Corte Constitucional da Alemanha, "a independência judicial é a salvaguarda constitucional contra a ameaça crescente de políticos ao exercício apropriado, pelos juízes, de suas funções". A história dá razão a Grimm. Em 1932, Franklin D. Roosevelt foi eleito presidente dos Estados Unidos. O democrata contava com maioria nas duas casas do Congresso. Era um líder popular. Seu programa de recuperação econômica, o New Deal, lidava com o colapso de 1929. Como boa parte do plano exigia a aprovação de leis, a Suprema Corte foi chamada a analisar a constitucionalidade das medidas, derrubando algumas delas. Posteriormente, passou a reconhecer a sua constitucionalidade, mas num apertado placar de 5 x 4. Em 9 de março de 1937, reeleito, o presidente Roosevelt disse, numa transmissão no rádio, que a Suprema Corte não estava agindo como um corpo judicial, mas como um formulador de políticas públicas. Então, encaminhou ao Congresso o "Judiciary Reorganization Bill", impondo a aposentadoria compulsória dos juízes aos setenta anos. Roosevelt passaria a ter competência para indicar seis novos julgadores, o que abriria espaço para que aqueles contrários ao New Deal saíssem da Suprema Corte substituídos por juízes simpáticos ao plano econômico. O presidente achava que tinha o Congresso em suas mãos. Mas não tinha. O juiz da Suprema Corte Louis Brandeis, mesmo favorável ao New Deal, criticou a iniciativa. Era, ali, uma voz influente se opondo ao projeto. Na sequência, a Câmara dos Deputados se recusou a apreciar a matéria. Corajosamente, a Comissão Judicial do Senado encaminhou o projeto para votação com relatório contrário. No plenário, por 70 x 20, entendeu-se que o texto deveria ser inteiramente reescrito. A tentativa de emparedar a Suprema Corte, oriunda de um líder genuíno que imaginava dominar o Congresso, se mostrou um fracasso retumbante. Para Daron Acemoglu e James A. Robinson, instituições políticas inclusivas atuam para assegurar a continuidade da pluralidade e do equilíbrio dos poderes. Assim agiu o Congresso dos Estados Unidos. Ele garantiu que a Suprema Corte seguisse seu caminho de independência, continuando capaz de frear os caprichos eventuais de um presidente da República. Se, naquele momento, o líder do país se voltava contra à Suprema Corte, quem poderia assegurar que, no futuro, não se voltaria contra o próprio Congresso? Mas isso foi no lado norte do continente. Aqui no sul os precedentes são diversos. Em 1946, Juan Domingo Perón foi democraticamente eleito presidente da Argentina. Após a sua vitória, aliados na Câmara dos Deputados propuseram o impeachment de quatro dos cinco membros da Suprema Corte. Perón queria primeiro ver os juízes da Suprema Corte ajoelhados para, depois, passar-lhes a espada no pescoço num golpe só. Três foram cassados. Um renunciou. Perón indicou quatro novos e passou a governar sem freios institucionais até 1955, quando um golpe o tirou do poder. Mais à frente, em 1990, Carlos Menen, eleito presidente pelo Partido Peronista, conseguiu emplacar uma lei aumentando o número de juízes da Suprema Corte argentina de cinco para nove. Tendo nomeado quatro novos ministros, passou a contar com maioria na Corte e, tal qual Perón, começou a manipular a Constituição e a abusar do poder, até ser derrubado. Não houve um Congresso Nacional atento aos riscos de se encurralar a Suprema Corte ou qualquer de seus juízes. Em 2004, a maioria parlamentar venezuelana, favorável a Hugo Chávez, aprovou a ampliação do número de juízes da Corte Suprema. Em lugar dos 20 juízes que tinha, a Corte Suprema passou a ter 32. Os novos juízes foram indicados por partidários de Chávez para fazer as vontades do comandante. No Brasil, em 1965, por meio do Ato Institucional 2, o presidente Castelo Branco, ampliou de 11 para 16 o total de ministros do STF. Em 1969, através do Ato Institucional 5, o presidente Costa e Silva aposentou compulsoriamente três ministros: Victor Nunes Leal, Hermes Lima e o meu conterrâneo Evandro Lins e Silva. Ou seja, há precedentes. Composição de Suprema Corte é algo para ser aperfeiçoado quanto à sua qualidade, não quantidade. É assegurado que o presidente da República indique, obedecendo a Constituição, o nome que bem entender, havendo vaga aberta. Não consta que possa, contudo, abrir quantas vagas bem entender, para fazer do STF o que quiser. O Supremo não existe para bater continência para o poder. Nem para lhe lustrar as botas, pentear seus cavalos ou limpar suas armas. Ele existe para controlar o poder. Aharon Barak, que presidiu a Suprema Corte de Israel, afirmou que, se não protegermos a democracia, a democracia dificilmente nos protegerá. Disse tudo. No Brasil, sem a Suprema Corte não há democracia, porque esta é, desde Aristóteles, onde as minorias contam com direitos fundamentais assegurados por uma instância independente. E uma Suprema Corte fraca demais para nos incomodar em tempos de certezas será também fraca demais para nos proteger em tempos de incertezas. Temos o triste hábito de só valorizar o que perdemos. O STF de hoje, rigorosamente do jeito que é, fará falta caso a proposta do Capitão ganhe curso com uma eventual vitória nas eleições. Acreditem: vai sobrar para nós.
segunda-feira, 17 de setembro de 2018

Planejam enterrar a Constituição, mesmo viva

Faltam poucos dias para o aniversário de 30 anos da Constituição de 1988. Estamos em festa, não nos preparando para ir enlutados vestidos de preto a um funeral. Mesmo assim, indiferente à celebração, o candidato à vice-presidente na chapa de Jair Bolsonaro (PSL), General Mourão (PRTB), fazendo campanha em Curitiba, defendeu que o Brasil precisa de uma nova Constituição, elaborada por "notáveis" e aprovada em plebiscito. A forma de elaboração da Constituição de 1988 teria sido "um erro". A nova Constituição deveria ser mais "enxuta". O General Mourão é candidato a vice-presidente. De Tancredo Neves para cá, apenas Fernando Henrique e Lula começaram e terminaram seus mandatos. José Sarney, Itamar Franco e Michel Temer eram vices. Governaram como titulares. E se o General estiver nessa lista da história? Presidentes não têm opinião. Eles têm o Diário Oficial da União. É preciso levar a sério o que pensam.    Tecnicamente, não é um absurdo ter uma Comissão de Notáveis elaborando uma Constituição. Basta lembrar que o então presidente da República, José Sarney, criou a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais encarregada de elaborar um anteprojeto da Constituição de 1988. Com cinquenta integrantes, ela foi presidida pelo respeitabilíssimo Afonso Arinos de Mello Franco, com 84 anos. Ulysses Guimarães, contudo, resolveu partir do zero e desprezou o anteprojeto. Acontece que, considerando a raiz popular da Constituição de 1988, algo assim seria um grave retrocesso. Generais não são bons em escrever Constituições. Nem em inspirá-las. As últimas que fizeram foi a de 1967 e a Emenda de 1969. Quem tem saudades? Quem as estuda com esperança e entusiasmo? Pois é...   E não nos faltam Constituições. Sobram. A queda de braço entre o povo e os poderosos destruiu seis delas. São as seguintes: 1824, 1891, 1934, 1937, 1946 e 1967/1969. Agora querem enterrar a sétima, a de 1988. Enterrar como, se ela está viva? Esse cabo de guerra constitucional tem, numa ponta da corda, a liberdade e, na outra, a falta dela. Basta olhar. Em 1824, o Império. Em 1891, a República. Com Getúlio Vargas, duas Constituições - a de 1934 e a de 1937 - diminuindo as liberdades. Depois, numa ressaca, a de 1946, ampliando. A Constituição de 1964 nos aprisionou. A de 1988, libertou. Foi assim. Não parece sábio seguir puxando a corda. Quanto à "Comissão de Notáveis", é irreal imaginar, a essa altura do campeonato, um corpo não eleito reunido para, segundo sua vontade, de cima para baixo, fuzilar a Constituição e, em seu lugar, colocar a que um General achar melhor.  De todas as Constituições que produzimos, a de 1988 é a que mais perto chegou de nós. Ela toca nossas dores, fala de nossas necessidades, olha para as instituições e projeta o amanhã com pioneirismo. Não é uma obra perfeita, mas nenhuma Constituição o é. Fala-se que muitas ideias capturadas pelo constituinte materializaram compromissos apenas temporários. É verdade. Mas essas pontes de transição sempre existirão. O inciso III do art. 3º aponta como um dos objetivos fundamentais da República erradicar a "pobreza e a marginalização" e reduzir as desigualdades sociais e regionais. Nas alíneas 'a' e 'b' do inciso LXXVI do art. 5o, assegura-se para os "reconhecidamente pobres" (na forma da lei), o registro civil de nascimento e a certidão de óbito. O art. 6º traz, como direito social, a assistência aos "desamparados". Consta que a Defensoria Pública promoverá a defesa, em todos os graus, judicial e extrajudicial, dos direitos individuais e coletivos, de forma integral e gratuita, aos "necessitados" (art. 134). E se resolverem "enxugar" os pobres da Constituição? E se, na nova Constituição, enxugarem o art. 5º? E os comandos do Congresso Nacional? E as competências do Poder Judiciário? E o Ministério Público? As águas dos direitos e garantias constitucionais são como chuva do céu, não podem ser enxugadas. Elas devem refrescar a nossa face, irrigar o solo, aliviar a sede, limpar a sujeira e curar cicatrizes. Isso, sim. Mas enxugar? Não. Deixa refrescar. Deixa escorrer. Deixa transbordar. É disso que o país está precisando.    A proposta de uma nova Constituição fruto de uma Comissão de Notáveis agita ainda mais um mar que tem estado revolto. Ela chacoalha uma nau que sofreu avarias, mas ainda é capaz de reparos. Uma nau cuja tripulação deseja, acima de tudo, a certeza de cumprimento do trajeto anteriormente traçado. Nesse trajeto, há um curso elaborado com base em um mapa. O mapa é a Constituição. Desconsiderar, a essa altura, o mapa, e implementar novo curso a uma jornada tumultuada, é impor aflição a inocentes. Não vieram da Constituição de 1988 o empobrecimento da nossa gente e os mais de 13 milhões de desempregados que o país abriga. Vieram dos nossos líderes, pessoas que estão habitando hospedagens antes reservadas aos párias pobres da sociedade. E essa é mais uma transformação operada sob os auspícios da Constituição. E tem mais. Propor um referendo para dar legitimidade à proposta é algo desconectado do patriotismo constitucional que apenas a Constituição de 1988 foi capaz de despertar. Corresponde ao que o ministro do STF, Celso de Mello, chama de "cesarismo governamental", que acarreta "graves distorções no modelo político e gerando sérias disfunções comprometedoras da integridade do princípio constitucional da separação de poderes" (MS 27.931, Pleno, 16/12/2009). Mas se Generais não são bons em escrever nem inspirar Constituições democráticas, eles podem ser extraordinários em cumpri-las. Há precedentes. Após o suicídio de Getúlio Vargas, Café Filho assumiu a presidência da República e nomeou o então general Teixeira Lott ministro de Guerra. Quando Juscelino Kubitschek e João Goulart venceram as eleições presidenciais de outubro de 1955 - para presidente e vice-presidente -, houve uma divisão nas Forças Armadas. Em 11 de novembro, Lott desencadeou o movimento militar de resgate do quadro constitucional. Houve a declaração do impedimento do presidente em exercício, Carlos Luz (Café Filho, infartado, afastara-se da presidência), a entrega de seu cargo ao presidente do Senado, Nereu Ramos, e a garantia da posse dos eleitos. Lott não propôs enxugar nada. Apenas cumpriu a Constituição. Na eleição presidencial de 1960, já na reserva, ele foi candidato à presidência da República pela coligação governista PTB/PSD. Jânio Quadros o derrotou. Em 1961, Lott se opôs à tentativa de golpe dos ministros militares para impedir a posse de João Goulart após a renúncia de Jânio. Fez um manifesto às Forças Armadas: "conclamo todas as forças vivas do país, as forças da produção e do pensamento, dos estudantes e intelectuais, dos operários e o povo em geral, para tomar posição decisiva e enérgica no respeito à Constituição e preservação integral do regime democrático brasileiro, certo ainda de que os meus camaradas das Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcam sua história no destino da Pátria", declarou. Em razão desse pronunciamento, foi preso. O Marechal Lott afastou-se da vida pública por não concordar com o regime militar. Quando morreu, em 1984, negaram-lhes as honras militares no enterro. Sobral Pinto, um amigo querido, declarou: "se tivesse ido para a presidência do Brasil, teria instaurado um governo de legalidade e de respeito à pessoa humana, e uma vinculação com partidos políticos, porque era um democrata sincero, inteligente e honrado. Com Lott na presidência, não teríamos ditadura militar durante vinte anos, não teríamos a falência nacional. Nada disso teria acontecido". A história ensina. No quadro de medalhas da República haverá sempre espaço para as figuras públicas que, por amor à democracia, cumpriram a Constituição. Também para os que, tendo as veias dos democratas, participaram felizes da elaboração popular de textos constitucionais. Há espaço, igualmente, para os defensores das Constituições vigentes. Mas qual o lugar a ser reservado para quem destruir a Constituição de 1988? "Aqui jaz o homem que acabou com a mais democrática Constituição brasileira". Quem teria orgulho de ter essa inscrição em sua lápide? Seria um legado lamentável.  Vamos deixar a Constituição em paz. A locomotiva brasileira está andando. Há trilhos obstruídos, mas muita gente de boa-fé tem tentado arrumá-los. Não é uma viagem fácil. Vez ou outra há sopapos e eles nos assustam, é verdade. Até nos machucam. Mas isso é coisa de quem está tentando ser dono do próprio destino e, com a sua gente, realizar os remendos que esses trilhos e essa locomotiva precisam. Se a viagem ainda está sendo dura - e eu acho que está - serve de alento saber que, se fizermos a nossa parte, as futuras gerações gozarão de mais conforto na jornada. A Constituição de 1988 traçou um curso, lançou as regras e apontou as exceções. Não tem mistério. Agora, é segurar firme, seguir a marcha e ir tocando em frente.
segunda-feira, 10 de setembro de 2018

A política está viva como nunca entre nós

No colo das dores do povo é onde se deita qualquer democracia. Não na ambição dos enriquecidos, na presunção dos eruditos ou no messianismo de militantes fanáticos. Numa nação desigual como a brasileira, atolada no lamaçal de privilégios e entornada pelo vendaval da corrupção, a voz dos brasileiros comuns desprezados se eleva afirmando com altivez: "o Brasil pertence a nós também". Eles estão certos. Democracia é povo. Povo é raiz. Ela não se constitui apenas por professores refinados, jornalistas com visibilidade, artistas que dormem em conforto ou jovens privilegiados que se enxergam como revolucionários em sua megalomania infantil. Povo mesmo, com cicatriz. Gente sofrida cujo cotidiano duro mostra a verdade arrebatadora que apenas a privação e a invisibilidade exibem. É dessa vitamina que a democracia se energiza. Democracia é sangue, suor e lágrimas. Churchill sabia o que dizia. E esse povo comum tem demandas. Demandas que não podem ser negligenciadas, sob pena de, como água represada, destruir barragens e alagar o amanhã para sempre. Num país cuja Constituição assegura insistentemente a "segurança" não é justo que alguém perca o seu ente querido num assalto e não encontre, nas lideranças do seu país, compaixão e solidariedade. O desprezo à dor de quem sofre ou a ideologização da lágrima que escorre num rosto aflito viola o inciso I do art. 3o, que aponta como um dos objetivos fundamentais da República "construir uma sociedade livre, justa e solidária". Isso porque os direitos humanos não têm lado, não devem ter lado, não podem ter lado. Eles são universais, abrangem a todos indistintamente. Se alguém, antes de ter empatia por um irmão dilacerado, pergunta com qual partido essa pessoa simpatiza, esse alguém não ama o próximo, apenas idolatra um partido. Desse tipo de subalternidade mental nada de verdadeiramente redentor jamais será construído no seio da nação. Não podemos esquecer: o povo é o poder. O preâmbulo da Constituição se abre com a expressão "Nós, representantes do povo brasileiro". O parágrafo único do art. 1o assenta que "todo o poder emana do povo". O art. 14 imortaliza a "soberania popular". O art. 78, ao narrar o compromisso a ser prestado pelo presidente e o vice-presidente da República, cita o de "promover o bem geral do povo brasileiro". Sim, o povo é o poder. Mas esse poder precisa de controle, sob pena de se tornar abusivo ou autoritário. O povo é soberano no voto, não no julgamento. Por isso, numa democracia constitucional quem julga é o juiz. Aristóteles, em Política, repudiava o governo da maioria capaz de esmagar as minorias. Seria uma tirania. O povo é o poder, mas sempre controladamente. Esse controle judicial dos abusos cometidos pelo povo em detrimento da democracia encontra na sede da Corte Constitucional da África do Sul uma representação arquitetônica simbólica. Diante do prédio, em Johanesburgo, há o monumento "A chama da democracia", onde uma pira queima initerruptamente, mostrando que enquanto o Tribunal tiver independência para cumprir sua vocação constitucional de preservação dos direitos fundamentais, a democracia seguirá irradiando seus raios de luz sobre todas as pessoas, igualitariamente. Acontece que o Judiciário controla o poder do povo, quando abusivo, mas não pode se imaginar capaz de ser a encarnação isolada do próprio povo. Hão de ser reconhecidas as limitações institucionais dos juízes para empurrar adiante a roda do poder. Em séculos de história, sempre que, do abismo dos acontecimentos, cadáveres escarnecidos povoaram guerras e revoluções, foram os políticos que lideraram o povo no retorno à civilização, jamais um juiz. É preciso, portanto, humildade judicial. A política é o começo, o fim e o meio. E ela está viva como nunca. Cintila nas ruas, nas praças, nas cidades e nos vilarejos. As pessoas falam, debatem, questionam, até brigam por suas convicções. Há candidatos para todos os gostos. Sobra democracia. Quando Nelson Mandela, de punho cerrado diante da multidão, gritava: "Amandla!", o povo respondia eletrizado: "Ngawethu!". Nas línguas bantas, Amandla quer dizer "Poder". "Ngawethu"significa "para o povo". Lincoln, chamado à responsabilidade de reconciliar uma grande nação mergulhada no pântano da Guerra de Secessão, imortalizou em Gettysburg aquele que se tornaria o mais belo conceito de democracia jamais visto: "O governo do povo, pelo povo, para o povo". E o povo gosta de mudar. Ele tem a mania de canalizar para as urnas mágoas acumuladas ao longo dos mandatos. O Brasil que elegeu Juscelino Kubitschek, com o seu charme e progressismo, foi o mesmo que, cinco anos depois, elegeu o provinciano populista Jânio Quadros, num comportamento democraticamente anti-establishment. Em 2008, defendi, no Instituto Brasiliense de Direito Público - IDP, a dissertação de mestrado "Ativismo ou Altivez? O outro lado do Supremo Tribunal Federal". Há uma década o grande tema que se apresentava já era o aristocrático "governo dos juízes", feito de cima para baixo, por sábios experientes e de reputação ilibada desprovidos de um único voto sequer. Boa parte da literatura já apontava ao tempo que uma das causas dessa condução aristocrática das coisas da República era exatamente a falta de uma exuberante legitimidade democrática dos representantes do povo, especialmente pela ausência de entusiasmo da juventude pela política partidária, seus candidatos, disputas, eleições e exercício do poder. O cenário é bem diferente hoje. Há política em toda parte. Mesmo com seus insultos, simplificações grosseiras e senso comum, o fato é que a política foi colocada novamente na sala de estar dos brasileiros. Está em cada smartphone, cada tela de computador, cada tablet. Transita de vídeo em vídeo, áudio em áudio, post em post, pululando insistentemente em grupos de WhatsApp, contas do Facebook e fotos no Instagram. A política ingressou nos bares, sentou-se às mesas dos cafés, pediu licença para entrar na casa dos nossos tios e avós há tempos descrentes com as eleições e seus candidatos. É uma política das massas, de pessoas comuns, uma política simples feita por cada um de nós. Ela pode ser por vezes revanchista, errática, até caótica, mas como dizer que não se trata da quintessência da própria democracia? Aqui entra o deputado Federal Jair Bolsonaro, que lidera a disputa para o honroso cargo de presidente da República e sofreu, semana passada, um odiento atentado à faca. É de se perguntar se a liderança popular de Bolsonaro nessas eleições mostra que a nossa democracia está em risco. Está? Claro que não. Política é feita disso, de gente na rua, de aplausos e vaias, de confusão e bate-boca. É feita de Bolsonaros também. Se você acha que o Brasil está descendo ladeira abaixo na colina da democracia porque as pessoas estão sustentando suas opiniões com destemor, acredite, você está errado. Os excessos - mesmo crimes como o atentado - encontram numa nação civilizada os caminhos previstos pelas leis e são conduzidos por instituições. Na barbárie, o criminoso que tentou dar fim à vida de Bolsonaro teria sido linchado em praça pública. Numa democracia constitucional como a nossa, ele foi levado pelas autoridades para prestar contas pelo crime que cometeu. É isso. Somos uma nação, não uma turba de assassinos caçando inimigos nas ruas. Aplicamos a "solução pacíficas das controvérsias" prevista no preâmbulo constitucional. O inciso I do art. 23 diz competir à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos municípios "zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas e conservar o patrimônio público". Somos governados por instituições, não pelo ódio, e quando este desafia aquelas, costuma levar a pior. Também é pura presunção estigmatizar o eleitorado de Bolsonaro chamando-o de fascista. Esse eleitorado seria formado por cidadãs e cidadãos desesperados pela insegurança, brasileiros humilhados em suas convicções, jovens sem esperança, idosos magoados, militares queixosos, uma classe média angustiada e conservadores românticos que sonham com um passado que há tempos já passou. Mas não teria sido a democracia feita também para esses grupos? Democracia não é um espelho para o qual o sujeito vaidoso olha e estranha tudo o que não é a sua imagem e semelhança. Segundo a Constituição, o pluralismo político é um dos fundamentos da República (art. 1º, V). Pluralismo de verdade. O voto em Bolsonaro parece ser, pelo menos em parte, uma manifestação anti-establishment que de tempos em tempos o brasileiro faz. No passado, rebeldia era contrariar a Igreja. Isso porque ela, tendo montado suas pautas morais, espalhava seu séquito fiscalizando se o povo estava alinhado. Quem não estava era pecador, libertino, homem de pouca fé, ovelha desgarrada, herege, fariseu, excomungado, pagão, desvirtuado, falso profeta e tudo o mais. Viver era culpa e sacrifício. Apesar de todo o serviço prestado pela Igreja à sociedade - serviço que até hoje ameniza as dores de pessoas em nossa comunidade -, ainda assim o véu um dia se rasgou. Ninguém aguenta esse tipo de patrulhamento. Precisamos respirar, errar, cometer atos falhos. É assim que somos. Hoje, não é mais a Igreja que entra nas casas das pessoas simples impondo pautas morais e fiscalizando comportamentos. São as manipulações ideológicas da luta por direitos. Não os direitos em si, mas a manipulação ideológica feita sobre eles. Aqueles que são indiferentes a essa apropriação partidária e têm uma visão ecumênica das garantias constitucionais passam a suportar estigmas graves como os de serem xenófobos, homofóbicos, racistas, fascistas, nazistas, misóginos, opressores, agressores, conservadores, reacionários e tudo o mais. Refiro-me a todos que, em algum momento de suas vidas, foram injustamente taxados de tal forma por não se deixarem colonizar intelectualmente por uma revolução partidária infinita que simplesmente não tem razão de ser. Viver passou a ser novamente culpa e sacrifício. Trivializar adjetivos é uma tragédia, pois agora canalhas podem passar impunes, já que as palavras não têm mais poder. Se alguém hoje chamar uma criança de herege, ela gargalhará. O mesmo acontecerá no futuro ao se acusar alguém de ser machista. E isso é horrível, porque há entre nós extremo machismo, mas banalizar isso, entendendo que, para ser machista, basta ser homem, é um erro colossal. Além disso, esse autoritarismo moral foi tão longe a ponto de, por exemplo, exigir que idosos das zonas rurais tivessem a mesma compreensão de mundo de jovens urbanos das universidades. Condenou-se inocentes. Como é possível construir uma comunidade coesa assim? Marginalizar pessoas porque vestem suas filhas como princesas, comem carne, sacrificam carreiras pela criação das filhas e filhos, matam insetos, acreditam em Deus, são cristãs, aplaudem policiais ou cantam o Hino Nacional é machucá-las em convicções sinceras que integram a sua própria identidade. É como se elas não fossem bem-vindas. Acontece que o Brasil pertence a todos os que nele vivem. Defender direitos constitucionais não pode significar impor o capricho de uns sobre os outros, pois isso gera ressentimento. Ninguém se lembrou que as pessoas hostilizadas têm emoções e votam. Acuadas, elas se unem. União de massas machucadas e urna aberta têm sido o motor das democracias. Bolsonaro não está embalado apenas por um punhado de ordinários radicais. Em democracias, punhados não elegem presidentes. Parte considerável do eleitorado encontrou alguém que, em seu narcisismo e virulência retórica, catalisou todo o abandono de parcela considerável do país. O fenômeno mostra que há na nossa comunidade um grupo significativo que se sentiu silenciado, esmagado e ferido em suas ideias. Isso porque o governo anterior supôs que a política e o ciclo de conquista de direitos são uma guerra ideológica. Acontece que a política e os direitos vieram para libertar e estabelecer um ambiente de inclusão. Já nas guerras, vence o mais forte, esse é o problema. Mas o extremismo político tem seus efeitos colaterais não apenas sobre as minorias covardemente insultadas - comportamento que os extremistas costumam adotar -, mas sobre o próprio líder sectário. É que a massa que aplaude eletrizada é a mesma que despreza indiferente. Quando o populista Jânio Quadros renunciou o mandato para voltar ao poder nos braços do povo viu o tempo passar sem que a população fizesse nada para tê-lo de volta. Durou pouco mais de 200 dias no poder. Depois, virou poeira varrida para debaixo do tapete da história. Superestimou o seu apoio popular. O povo é como o fogo. Aquece, ilumina, traz segurança. Mas, se negligenciado, queima; se incitado, incendeia; se insuflado, destrói. Quando largado, migra para outro lugar. Não é bom brincar com os sentimentos da massa. Hoje ela bota. Amanhã ela tira. Cuidado. A democracia que a Constituição de 1988 trouxe veio para ficar. Um governo não democrático, um Direito Penal como armadilha, a perseguição contra minorias e a tortura de pessoas por autoridades militares constituem um legado repulsivo que jamais assumirá o controle de nossas vidas novamente. Tanto que, segundo o inciso XLIV do art. 5o da Constituição, "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático". Por mais que sujeitos fantasiados marchem saudosamente pelas ruas do Brasil pedindo a volta da ditadura militar eles não têm mais a força que um dia tiveram a ponto de reverterem os virtuosos frutos do nosso constitucionalismo, que são: o crescimento da empatia entre as pessoas e das pessoas com outras espécies; a celebração da vida humana; o reconhecimento da dignidade de todos; a consolidação de uma cultura do conhecimento ou "das letras"; a fundação de um humanismo esclarecido; a substituição da superstição religiosa pelos benefícios da ciência; a firme convicção que, numa democracia, minorias não podem ser destruídas; a manutenção de ideais universais trazidos pela Constituição. Nossos corações são irrigados pelas veias do "nunca mais". Independente de quem seja eleito presidente da República, nunca mais farão com a nossa democracia e com os nossos concidadãos o que fizeram a partir de 1964. Somos seres humanos, não nascemos para sermos medidos por "arrobas" ou colocados em paus de arara. Nossos órgãos genitais servem para nos dar prazer, fazer necessidades e abrir caminho para o triunfo da vida, não para receber eletrochoques de agentes estatais que agem em nome do poder constituído. Torturadores do Estado não merecem o nosso respeito. Eles são párias da comunidade, vermes cívicos. Por isso, devemos repetir: "nunca mais". Mas essas são convicções calorosas que precisam ser refrescadas nas águas cristalinas da democracia, que é essencialmente plural. Por isso, é que uma coisa é detestar Bolsonaro ou se chocar com algumas de suas declarações, outra é qualificar a sua candidatura como antidemocrática e estigmatizar o seu eleitorado como fascista. É um equívoco intelectual fazê-lo. A candidatura de Bolsonaro integra um mosaico essencialmente democrático, por mais confrontadora que seja boa parte de suas declarações numa cultura de fortalecimento irrenunciável dos direitos fundamentais. O seu eleitorado é formado por uma gama muito variada de brasileiros e nela pode estar o nosso pai, mãe, tio, amigo, colega de trabalho ou o vizinho. Não são fascistas, são brasileiros comuns que, democraticamente, entendem que esse candidato preenche melhor seus anseios e aspirações cidadãs. Um dos princípios constitucionais sensíveis, cujo desrespeito enseja intervenção da União nos Estados ou no Distrito Federal, é a forma republicana, o sistema representativo e o "regime democrático" (art. 34. VII, "a"). Democrático não apenas para mim, mas para o outro também, qualquer que seja ele, incluindo Bolsonaro e seus apoiadores. Somente democracias permitem que líderes populistas, homens demagogos ou candidatos extremistas registrem candidaturas, disputem eleições, façam seus discursos e amealhem votos. Sendo a nossa uma democracia constitucional, esses personagens respondem judicialmente quando incitam o ódio. Respondem mesmo. O povo tem direitos fundamentais e esse é um caminho sem volta. Também apenas em democracias o povo tem meios para, pelas urnas, derrotar livremente candidatos. Essa é a magia democrática, uma magia cuja chama segue viva e ardente como nunca entre nós.
"A educação, direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho". Essa é a redação do art. art. 205 da Constituição brasileira. A realização do direito à educação é uma corrida de muitos caminhos. Nesse trajeto, quatro garotas têm assento especial no palco dos acontecimentos. A primeira, nascida em Topeka, Kansas, nos Estados Unidos, é Linda Brown. Já jovenzinha, ela não compreendia a razão de seus longos percursos diários para a escola, principalmente quando soube que havia um colégio a quatro quarteirões da sua casa. Linda tinha a pele negra e, em seu país, a educação era separada pela cor da pele. A escola perto de casa era para brancos. Seu pai levou a questão à Suprema Corte, que a apreciou em 1954. Foi o caso Brown v. Board of Education. Na África do Sul, quem fez história foi Sunali Pillay. Graças a sua bravura a Corte Constitucional apreciou a constitucionalidade da conduta de uma escola que proibiu a utilização de um piercing nasal. A instituição tinha um Código de Conduta que vedava o adereço. Foi o caso MEC for Education: Kwazulu-Natal and Others v Pillay. Sunali Pillay era aluna de uma elitizada escola feminina de nível médio da cidade de Durban (Durban Girls' High School). A garota integrava uma comunidade originária de imigrações da região sulina da Índia marcada pela combinação de elementos religiosos, linguísticos, geográficos, étnicos e artísticos. Após a primeira menstruação, as mulheres da comunidade passam a usar um piercing nasal esquerdo, simbolizando a fertilidade feminina e anunciando o começo da caminhada rumo à vida adulta. É algo profundamente enraizado em sua cultura. A Corte Constitucional determinou que a escola, com os alunos, pais e professores, emendasse o Código de Conduta para adequá-lo a aspectos religiosos e culturais, além de estabelecer exceções a serem asseguradas a todos. Distante dali, nas montanhas do vale do Swat, no nordeste do Paquistão, a jovem Malala, de 15 anos de idade, desafiou talibãs e insistiu em frequentar a escola, o que era considerado um acinte, por ela ser mulher. Em 2012, num ônibus escolar, um homem armado chamou-a pelo nome, apontou-lhe uma pistola e disparou três tiros. Uma das balas atingiu sua cabeça. Em 2014, quando ganhou o Nobel da Paz, ela disse: "Uma criança, um professor, um livro e uma caneta podem mudar o mundo". O elo universal entre Linda, Malala e Sunali ganhou um reforço brasileiro. Em 2012, a jovem Valentina impetrou um mandado de segurança contra ato da Secretaria Municipal de Educação do município de Canela, Rio Grande do Sul. Ela tinha 11 anos de idade. Até 2011, havia estudado na Escola Municipal Santos Dumont. Insatisfeita com aspectos ligados à religião e a convicções filosóficas e políticas do ensino, solicitou o direito de ser educada pelos pais, em casa. As autoridades locais de educação negaram o pedido. Ela bateu às portas do Judiciário. Requereu a educação domiciliar (homeschooling), forma de educação de crianças e adolescentes realizada no ambiente doméstico, em que os próprios pais, tutores, membros da família ou da comunidade fornecem aos menores a instrução formal. Considerando a ação imprestável por "conter pedido juridicamente impossível", o juiz decidiu em 48 horas. "Uma criança que venha a ser privada desse contato possivelmente terá dificuldades de aceitar o que lhe é diferente. Não terá tolerância com pensamentos e condutas distintos dos seus", fundamentou. Valentina apelou. O recurso foi analisado pela 8ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Os desembargadores negaram a apelação. No acórdão de 19 páginas, o relator anotou: "Nessa perspectiva, não merece prosperar o apelo manejado pela impetrante Valentina uma vez que não se vislumbra prova pré-constituída das suas alegações, inexistindo direito líquido e certo a amparar o pleito de ser educada pelo sistema de educação domiciliar". A partir daí fez uso do parecer do Ministério Público. A jovem levou o caso para a Suprema Corte, que aceitou julgar o Tema 822 da repercussão geral: "Possibilidade de o ensino domiciliar (homeschooling), ministrado pela família, ser considerado meio lícito de cumprimento do dever de educação, previsto no art. 205 da Constituição" (RE 888.815). O caso será apreciado pelo plenário do STF quinta-feira, dia 30/8/2018. Nele, o relator, ministro Roberto Barroso, anotou: "(...) discutem-se os limites da liberdade dos pais na escolha dos meios pelos quais irão prover a educação dos filhos, segundo suas convicções pedagógicas, morais, filosóficas, políticas e/ou religiosas". Registrou ainda: "A controvérsia envolve, portanto, a definição dos contornos da relação entre Estado e família na educação das crianças e adolescentes, bem como os limites da autonomia privada contra imposições estatais". O Estado do Rio Grande do Sul requereu ingresso como amigo da Corte. Antecipando sua posição, trouxe passagem do filósofo Fernando Savater. Um trecho se destacou: "Um dos primeiros objetivos da educação é preservar os filhos de seus pais". Os demais Estados, por meio da Câmara Técnica do Colégio Nacional de procuradores-Gerais dos Estados e do Distrito Federal, subscreveram a manifestação do Rio Grande do Sul e encamparam a ideia de que "um dos primeiros objetivos da educação é preservar os filhos de seus pais" (p. 4-5). Em seguida, pediram que seja declarada inconstitucional "qualquer forma de ensino domiciliar que permita aos pais alijar seus filhos do ensino regularmente ofertado". Também pediram ingresso como amigo da Corte o Instituto Conservador de Brasília e a Associação Nacional de Educação Domiciliar - ANED. A Advocacia-Geral da União se manifestou contra o pedido de Valentina. A Procuradoria-Geral da República opinou por afastar a consideração do "ensino domiciliar, ministrado pela família, como meio lícito de cumprimento do dever de educação". Na página 46 do parecer, registrou: "Dada a gravidade da omissão dos pais ou responsáveis, há, inclusive, tipificação penal da desobediência ao dever de prover a instrução primária do filho em idade escolar (art. 246 do Código Penal Brasileiro)". A PGR ainda anotou: "pais e responsáveis legais não têm autorização para, mediante invocação do poder familiar, negar aos filhos educação nos parâmetros legais, ainda que na forma da escusa constitucional de consciência e de crença (art. 5, VI, da CF). Inexiste estipulação legal de prestação alternativa que lhes permita escusar-se da obrigação legal a todos imposta de matricular seus filhos e mantê-los na escola (art. 52, VIII, da CF)". O parecer concluiu que "embora não decorra da Constituição Federal direito ao ensino domiciliar, não há vedação para que se elabore disciplina própria para o homeschooling, mediante adoção, pela via legislativa, dos instrumentos e métodos adequados ao ensino domiciliar para crianças e adolescentes em idade escolar, desde que não entrem em conflito com as disposições constitucionais sobre a educação e a escolarização". Educação familiar não é esquisitice. O homeschooling existe em Portugal, Austrália, Bélgica, Canadá, Dinamarca, Finlândia, França, Inglaterra, Israel, ltália, Nova Zelândia, Noruega, África do Sul, Suécia..., apenas para ilustrar. São nações respeitáveis. O parecer do PGR dedica 15 páginas à jurisprudência estrangeira (p. 27 a p. 42). De todos os exemplos trazidos no bom texto de Manoel Morais de O. Neto Alexandre1 a respeito do tema, o da Finlândia é o mais fascinante. Lá, anônimos passaram a perseguir uma mãe que educava seus dois filhos em casa. Ela foi processada criminalmente por autoridades locais que queriam que os meninos fossem "supervisionados" pela escola. A decisão do Tribunal finlandês, em 2015, foi favorável à mãe. "São os pais que supervisionam o seu homeschool, não a escola que supervisiona os pais, exatamente como são as pessoas que supervisionam o governo, e não o governo que supervisiona as pessoas", consta da decisão. Um freio de arrumação na relação público x privado. Linda Brown deu o pontapé inicial para dessegregar as escolas dos Estados Unidos. Malala mudou a concepção dos talibãs quanto à educação feminina. Sunali conseguiu que a sua escola respeitasse a sua cultura e fosse mais inclusiva. Quem é capaz de duvidar do poder de uma alma alimentada por um coração que bate por ideais no peito de uma jovem capaz do infinito pelo direito à educação? Considerando as batalhas dessas garotas, o pedido de Valentina é singelo: sem impor qualquer dano, nem causar mal a ninguém, ela quer, por razões constitucionais, cumprindo as normas gerais da educação nacional e com autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público (art. 209, I e II, da CF), ser educada em casa, pelos pais, que têm estrutura e disposição para fazê-lo, inclusive com professores para as diversas disciplinas, se propondo a realizar avaliações regularmente. A concessão do pedido, recusado pelas instâncias do Judiciário, abriria um novo capítulo quanto ao direito à educação, somando esforços na realização desse direito. É da coragem de meninas que a história do direito à educação tem sido feita. Até aqui, Linda, Malala e Sunali. Do sul do Brasil veio a quarta brava garota: Valentina. O nome é uma variante feminina de Valentim, diminutivo de valens, valentis. Quer dizer "garotinha valente". São quatro jovens cuja coragem e determinação elevaram o direito à educação ao patamar de agenda global. Linda, Sunali, Malala e Valentina. Obrigado, meninas! __________ 1 Manoel Morais de O. Neto Alexandre. "Quem tem medo do homeschooling?: o fenômeno no Brasil e no mundo". Brasília: Câmara dos Deputados, Consultoria Legislativa, 2016. 22p.
segunda-feira, 13 de agosto de 2018

Um país sem humor é um país sem alma

Há quem tema o riso? A história mostra que sim, há. E quem o teme são eles, os poderosos cujo vazio de vida termina conduzindo-os para os abismos do autoritarismo. Quanto mais autoritária é a inclinação do poderoso, menos aptidão para rir de si mesmo esse tipo de pessoa tem. E isso também toca o Direito Constitucional. Em janeiro de 2011, a Praça Tahrir, na cidade do Cairo, no Egito, mostrou a força de uma revolução popular. Milhões de pessoas elevaram suas vozes contra o presidente Hosni Mubarak, no poder há 30 anos. Foi a "Revolução da Dignidade", disparada com a chamada Primavera Árabe. Durante esses protestos o bem estabelecido cardiologista Bassem Youssef percebeu que poderia fazer mais pelo seu país do que cortar pessoas numa sala de cirurgia. Atendendo manifestantes feridos nos protestos, ele percebeu a força viva daquilo que Hannah Arendt descrevia como "felicidade pública", uma espécie de direito de ser visto em ação, de participar como voz ativa dos assuntos da comunidade, da esfera pública. Bassem montou na lavanderia do seu apartamento um pequeno estúdio amador no qual gravava vídeos imitando personalidades egípcias. Revelando um grande talento para o humor, os vídeos viralizaram rapidamente. O seu humor era inteligente e crítico. Percebendo o potencial da internet num Egito que tentava se encontrar como país após a Revolução da Dignidade, Bassem lançou o programa "B+", em alusão ao seu tipo sanguíneo, numa produção independente. Os vídeos de cinco minutos disponibilizados no youtube se tornaram um sucesso arrebatador. No final de 2011, com orçamento e uma boa produção, ele lançou o "Al Bernameg" (O Programa), na ONTV. Ano seguinte, ele estava na CBC à frente de uma grande produção. Tornou-se uma celebridade. Passou a ser chamado de "Jon Stewart do Egito". Tanto participou do Daily Show como recebeu Stewart num dos seus programas, num teatro no centro do Cairo, com uma plateia que participava ao vivo. Nada parecido jamais havia sido feito no oriente médio. Um tributo à liberdade de expressão. Apenas por essa conquista, a Revolução da Dignidade já teria valido à pena. Bassem Youssef mostrou um carisma impressionante. Também uma veia crítica incrivelmente irrigada. Com a sua cara de galã, habilidade para dançar e suas expressões faciais que poderiam lembrar Jerry Lewis, o comediante se tornou a nova cara de um Egito democrático onde pessoas como ele poderiam criticar os governantes por uma noite inteira numa emissora de televisão cuja concessão era dada por esses próprios governantes. Era algo novo na terra dos faraós. Seguindo com os acontecimentos após a Revolução da Dignidade, em 30 de junho de 2012, Mohamed Morsi foi empossado presidente. O Egito tinha tido eleições livres. Morsi pertencia à Irmandade Muçulmana. Era um religioso conservador. Não demorou para Bassem pegar carona no atraso de ideias de Morsi. O Presidente passou a ser chamado de "Super Morsi", por concentrar indevidamente poderes executivos e legislativos. Após um programa no qual o comediante imitou o péssimo inglês do Presidente e ironizou um título de doutor honoris causa dado a ele pela Universidade do Paquistão, um mandado de prisão foi emitido contra o comediante a pedido do Procurador-Geral. A acusação era de que Bassem havia insultado o Islã e Morsi. "Eu nunca fui chamado para uma audiência antes de [o mandado de prisão] ser emitido, e ficamos surpresos ao ouvir a notícia pela mídia", disse Youssef via Facebook. O ato mostrou como é longo o caminho para a liberdade. Bassem não perdeu o senso de humor. Era isso o que incomodava os poderosos. Ele disse no Twitter que iria se entregar: "A menos que eles gentilmente mandem uma viatura da polícia hoje e me salvem do incômodo engarrafamento", escreveu. Bassem Yousseff teve de comparecer à Suprema Corte. Foi na manhã de um domingo. Uma multidão o esperava. O comediante apareceu vestindo uma versão descomunal do chapéu usado pelo presidente Morsi quando recebeu o doutorado honorário da Universidade do Paquistão. A multidão não se aguentou de tanto rir. Twitando de dentro do gabinete do procurador-geral, Bassem Youssef disse que os funcionários do Ministério Público estavam lutando para encontrar um laptop com software de vídeo apropriado para exibir episódios contra ele. "Policiais e advogados no escritório do promotor geral querem ser fotografados comigo, talvez seja por isso que eles ordenaram a minha prisão?", seguiu brincando. O comediante foi libertado sob fiança de 15.000 libras egípcias. Posteriormente, Bassem Yousseff viu Mohammed Morsi perder popularidade e passar a sofrer tentativas de golpes por parte dos militares, liderados pelo general Abdel Fattah el-Sisi, conhecido como general Sissi, chefe das Forças Armadas e Ministro da Defesa. Não demorou para o comediante começar a ironizar o que chamava de "Sissimania", o suporte dado pelos apoiadores que elogiavam o exército egípcio. Depois de conseguir derrubar Morsi e começar a governar o Egito à força - isso, com grande suporte popular -, o general Sissi passou a ser instado a concorrer à presidência. Seu rosto adornava cartazes e lembranças no país. Num de seus programas, Bassem colocou um vendedor de doces no palco com bolos e doces enfeitados com o rosto do General. Em maio de 2014, Sissi foi eleito presidente para um mandato de sete anos. Os órgãos oficiais por ele controlados indicaram uma maioria de 96,91% dos votos. Bassem Youssef seguiu fazendo humor e tripudiando de Sissi. Não demorou para a Procuradoria-Geral retomar as acusações contra ele. As acusações eram as mesmas de antes: distúrbios à paz e à ordem pública. No mesmo ano, após suspender a exibição do programa, a emissora de televisão CBC processou Bassem por quebra contratual. Ele havia criticado o presidente e isso não era permitido. Os tribunais egípcios condenaram o comediante a uma multa de £ 50 milhões. Na decisão, insinuaram que Youssef perturbava a paz e incitava a agitação pública. Temendo ser preso, o humorista deixou o país em novembro de 2014. Depois que o programa Al Bernameg terminou, a polícia egípcia invadiu os escritórios da produtora prendendo vários funcionários e confiscando seus computadores. Era o fim do curto sopro de liberdade de expressão para humoristas no Egito. Desde então, o governo não aceita mais risos contra si. No Brasil, no ano de 2011, quando Bassem desfrutava dos primeiros ventos da liberdade acariciando a face dos egípcios, o ministro Carlos Ayres Britto levava para o referendo do plenário do Supremo Tribunal Federal a cautelar por ele concedida na ADI 4451 (DJe 1/7/2011). Na decisão que proferiu e dividiu com os colegas de Corte, o Ministro anotou: "Programas humorísticos, charges e modo caricatural de pôr em circulação ideias, opiniões, frases e quadros espirituosos compõem as atividades de 'imprensa', sinônimo perfeito de 'informação jornalística' (§ 1º do art. 220)". Em seguida, registrou: "o exercício concreto dessa liberdade em plenitude assegura ao jornalista o direito de expender críticas a qualquer pessoa, ainda que em tom áspero, contundente, sarcástico, irônico ou irreverente, especialmente contra as autoridades e aparelhos de Estado". A decisão foi uma exortação insistente à liberdade de expressão no Brasil. Consta dela ainda o seguinte: "Se podem as emissoras de rádio e televisão, fora do período eleitoral, produzir e veicular charges, sátiras e programas humorísticos que envolvam partidos políticos, pré-candidatos e autoridades em geral, também podem fazê-lo no período eleitoral". Esse ano, em 2018, em decisão unânime, o Plenário do STF encerrou o julgamento da ação e entendeu que o inciso II do art. 45 da lei 9.504/1997 e, por arrastamento, dos §§ 4º e 5º do mesmo artigo, incluídos pela lei 12.034/2009, violam as liberdades de expressão e de imprensa e o direito à informação. Os comandos legais vedavam sátiras contra candidatos. Já no Egito, Sissi foi reeleito. Dessa vez os órgãos por ele controlados indicaram uma maioria de 97,08%. Bassem Youssef hoje vive nos Estados Unidos. O humor é parte da democracia. Essa capacidade de uma nação aceitar e tolerar que comediantes ironizem seus governantes, que levem a público a crítica inteligente a poderosos, constitui a mais poderosa arma contra o autoritarismo. Quando o humor vai embora, quando ele passa a ser proibido, é sinal que a democracia também dá sinais de arrefecimento. Uma nação sem humor é uma nação sem alma. O Egito ainda não conseguiu triunfar sobre homens autoritários. Mas o Brasil conseguiu. O humor tem lugar entre nós. E seguirá tendo. Pelo menos enquanto tivermos uma Constituição generosa como a de 1988 e uma Suprema Corte disposta a tirá-la do papel e coloca-la na sala de estar da população. Seguiremos, assim, gargalhando contra os poderosos para o bem deles mesmos, da gente e do nosso país.
Certa feita, indagado sobre a situação do seu país mergulhado na concentração de poder financeiro nas mãos de poucos, o juiz da Suprema Corte, Louis Brandeis, profetizou: "Os Estados Unidos podem ter ou democracia ou concentração de riqueza nas mãos de poucos, mas ter os dois é impossível". O tempo deu razão a Brandeis. Da combinação dos nomes "financeira" e "tecnologia" surgiu o termo fintech, referindo-se às startups que surgem incrementando o acesso de consumidores às vezes excluídos do sistema financeiro tradicional. Para Luiz Humberto Cavalcante Veiga e Valter Vitelli, a sua marca "é o desenvolvimento e utilização de inovações tecnológicas com a finalidade de superar e substituir, com maior eficiência e excelência, os bancos e demais agentes financeiros na prestação dos serviços, reduzindo custos e burocracia e garantindo aos usuários maior controle sobre as operações realizadas". Segundo os autores, "serviços que antigamente eram monopólio de determinadas instituições agora são fornecidos por vários autores situados fora do setor tradicional"1. Na verdade, o mundo não quer menos sistema financeiro. Quer mais. Mais atores envolvidos nessa árdua missão de promover uma verdadeira inclusão financeira que liberte os excluídos. Para Luigi Zingales, da escola de negócios da Universidade de Chicago, "as finanças são um ingrediente essencial para injetar concorrência num sistema econômico. O acesso generalizado a elas é crucial para atrair novos empreendedores ao sistema e dar a eles a chance de prosperar e crescer. As finanças são também um grande equalizador: quando o sistema financeiro funciona como deve, as ideias são mais importantes do que o dinheiro, o que significa que pessoas talentosas podem concorrer de igual para igual com qualquer um, independentemente da riqueza individual. Sem esse acesso aos fundos, os talentosos não podem triunfar sozinhos, e muitas vezes acabam trabalhando para os mais abastados, simplesmente ajudando os ricos a enriquecer ainda mais2". Há, nesse particular, exemplos virtuosos. No Quênia e em parte da Tanzânia, os massais, grupo étnico africano de seminômades com suas mantas vermelhas e adornos exuberantes, desfrutam de autonomia material para implementar seus projetos de vida. O "milagre" vem do serviço M-Pesa, lançado em 2007. O M significa móvel (mobile) e pesa significa dinheiro na língua Swahili. Vodafone, Safaricom e Vodacom, os maiores operadores de telefones móveis no Quênia e na Tanzânia, permitem, com o M-Pesa, que os usuários depositem dinheiro em uma conta armazenada em seus celulares, enviem balanços usando mensagens de texto SMS protegidas por PIN para outros usuários, incluindo vendedores de bens e serviços, e para resgatar depósitos em cash. Os usuários pagam uma pequena taxa para enviar e retirar valores usando o serviço. Até 2012, 17 milhões de contas M-Pesa haviam sido registradas no Quênia. Em junho de 2016, a Vodacom tinha 7 milhões de contas na Tanzânia. Do solo árido da miséria e da pilhagem colonizadora brotou prosperidade e dignidade para aqueles a quem o sistema financeiro tradicional não conseguiu incluir3. Uma fintech nasceu, floresceu e empoderou um povo excluído que teimou em inovar. Na India, Muhammad Yunus, o economista Nobel da Paz, criou o Grameen Bank, oferecendo microcrédito para milhões de famílias. Em 1976, ele constatou as dificuldades de pessoas carentes obterem empréstimos na aldeia de Jobra, numa Bangladesh empobrecida. Os bancos recusavam emprestar pequenas quantias que permitiriam às pessoas pobres comprar materiais para trabalhar. Essas pessoas não podiam oferecer qualquer garantia. Além disso, os juros eram altos. Com o Banco Grameen, Yunus emprestava sem garantias nem documentos, sendo procurado, sobretudo, por mulheres, que são 97% dos 6,6 milhões de beneficiários. A taxa de recuperação dos microempréstimos é de 98,85%4. São boas saídas para a inclusão financeira. Mas nem tudo é triunfo. O historiador Niall Ferguson mostra a melancólica parte leste da cidade de Glasgow, na Escócia, "um dos lugares mais sombrios da Europa Ocidental". Com uma expectativa de vida média masculina de 64 anos, grupos sem acesso ao crédito passam a ser presas deles, os agiotas. "Você dá o seu cartão de aposentadoria como garantia e ele dá o empréstimo. No dia em que seu beneficio chega, ele devolve o seu cartão e vai até os correios para pegar o seu dinheiro", diz. A lógica é perversa. Pede-se emprestado 10 libras e paga-se 12,50 no final de semana. É uma taxa de 25% por semana. "Mas se você calcular a taxa anual terá 11 milhões por cento", comenta Ferguson, indo além: "Em Glasgow, deixar de pagar seu empréstimo é altamente desaconselhável. Lesões corporais graves não são uma consequência desconhecida por decepcionar um agiota"5. A agiotagem e a violência são frutos da falta de inclusão financeira. Em 4/3/2017, no Brasil, um microempresário que havia sido levado do estacionamento dele no Centro de Fortaleza, foi encontrado morto. A suspeita da polícia é de que o caso esteja relacionado à agiotagem6. São inúmeras as ocorrências. A falta de acesso ao crédito não é uma queixa vazia, nem um reclame infundado. Ela mata. Portanto, as fintechs precisam ser compreendidas à luz dos próprios comandos constitucionais. Primeiramente, as startups, cuja base está do § 2º do art. 218, que diz: "A pesquisa tecnológica voltar-se-á preponderantemente para a solução dos problemas brasileiros e para o desenvolvimento do sistema produtivo nacional e regional". Depois, o direito à inovação previsto no art. 218: "O Estado promoverá e incentivará o desenvolvimento científico, a pesquisa, a capacitação científica e tecnológica e a inovação". Por fim, o art. 192, segundo o qual o sistema financeiro nacional há de ser estruturado de forma a promover o desenvolvimento equilibrado do país e a servir aos interesses da coletividade. É preciso derrubar o muro da invisibilidade daqueles que são excluídos financeiramente. Poucas omissões corrompem tanto a dignidade do semelhante como a falta de acesso ao dinheiro. Fintech é custo baixo. Custo baixo é acessibilidade. Acessibilidade é inclusão financeira. Inclusão financeira é a concretização da própria Constituição. O caminho está aberto. __________ 1 Veiga, Luiz Humberto Cavalcante; Vitelli, Valter. Seriam as fintechs apenas correspondentes bancários eletrônicos?, p. 330. In: Fernandes, Ricardo Vieira de Carvalho; Costa, Henrique Araújo; Carvalho, Angelo Gamba Prata de (Coord.) Tecnologia jurídica e direito digital: I Congresso Internacional de Direito e Tecnologia - 2017. Belo Horizonte: Fórum, 2018, p. 323-342. 2 Um capitalismo para o povo: reencontrando a chave da prosperidade Americana. São Paulo: BEI Comunicação, 2015, p. 41. 3  Cf. 4 Yunus, Muhammad. O banqueiro dos pobres. São Paulo: Saraiva. 5 Ferguson, Niall. A Ascenção do Dinheiro: A história financeira do mundo. São Paulo: Saraiva. 6 Do G1 CE, em 4/3/2017. "Corpo de empresário desaparecido é encontrado em terreno baldio no CE".
A história mostra que, no curso dos acontecimentos mais relevantes das nações e de seus povos, emendas constitucionais não raramente abriram caminho para a reconstrução dos laços comunitários esgarçados pelos persistentes duelos entre irmãos que foram ensinados a odiar, ao contrário de amar uns aos outros. Nos Estados Unidos, as emendas constitucionais números 13 e 14 serviram de ponte para que brancos e negros, nortistas e sulistas, encontrassem do outro lado do rubicão sangrento o fim da guerra civil. Aboliu-se a escravidão e assegurou-se igualdade de direitos. Emendas constitucionais podem pavimentar a avenida para uma reconciliação nacional. Na Coréia do Sul, essa foi a trilha rasgada na montanha das desavenças internas e externas que marcam a história de um país repleto de cicatrizes. Em 29 de outubro de 1987, em resposta ao anseio por democracia e pela garantia dos direitos básicos, os partidos da situação e da oposição concordaram em estabelecer, pela primeira vez na história da Coréia do Sul, uma Corte Constitucional. Recolheram as armas do ódio e apresentaram a bandeira branca da conciliação. Situação e oposição aprovaram uma emenda à Constituição de 1948. Em 5 de agosto de 1988, como previsto no art. 113-3 da Constituição, entrou em vigor a Lei da Corte Constitucional. Em 15 de setembro do mesmo ano nove juízes foram nomeados. Então tudo começou. A sede da Corte foi inaugurada em 1º de junho de 1993. O edifício fica em Bukchon-ro, na região de Jongno-gu. Tem cinco andares e um piso subterrâneo. Os pisos são circulares passando a impressão de que estão em rotação com o lobby, que fica na base, verticalmente aberto para a grande cúpula no topo do prédio. A construção ocupa 16.808 m2. Em outubro de 1993, ela ganhou o Prêmio Coreano de Arquitetura. Nas imediações está a Aldeia Hanok, com suas casas coreanas sem que ninguém veja qualquer grande edifício. Ali, jovens circulam vestidos em suas lindas roupas tradicionais Hanbok, alternando o antigo com o moderno. O local do prédio é histórico. Abrigava a casa de Hwanjae Park, Gyu-Soo (1807-1877), intelectual influente que chegou a ser o segundo vice-primeiro-ministro no final da Dinastia Joseon, tendo dirigido os rumos reformistas dessa dinastia à luz do Iluminismo. Era um progressista, alguém que achou que as coisas no país deviam mudar. E mudaram. O edifício de pedra foi construído em estilo neoclássico, incorporando a tradição com a nova tecnologia. Ele é enxergado em três partes: base, meio e topo. Fontes variadas exibem abundância de água na área frontal. Parece um oásis, mas sem deserto. Um oásis no meio de jardins. A divisão horizontal do prédio se une harmonicamente com as linhas verticais. A cúpula no topo é majestosa. Ela simboliza a Constituição, como ápice do ordenamento jurídico. As três linhas horizontais na parte superior ilustram o princípio constitucional da igualdade. As três colunas na entrada central representam a separação dos poderes. As colunas verticais e janelas corporificam o status da Corte como instituição que protege a Constituição e os direitos básicos dos cidadãos. É uma ambiência rigorosamente harmônica. Não há nada fora de lugar. O emblema da Corte traz uma porta cercada por pilares. Os pilares simbolizam o papel do Tribunal Constitucional como defensor da Constituição, que é a base da nação. A imagem da porta aberta e a luz difusa que dela sai representam os esforços da Corte para realizar a democracia por meio da proteção dos direitos básicos dos cidadãos. Além desse emblema, há o uso da Rosa de Saron como símbolo. Ela é a flor nacional do país. O fundo branco do círculo central da Rosa representa a igualdade, e o bordô das pétalas a autoridade da decisão do Tribunal, que é baseada na confiança do povo. O art. 112 (2) da Constituição diz que os juízes da Corte Constitucional não podem se engajar na política. O Tribunal é reputado pela população a instituição governamental mais confiável da nação. Ele tem sabido zelar por essa boa reputação. A Rosa de Saron é uma flor originária do vale de Saron, em Israel, na zona litorânea próxima ao Mar Mediterrâneo, entre o Monte Carmelo e Tel Aviv, região mais exuberante do que as montanhas da Samaria ou da Judéia. Em hebraico é chamada de "Chavatzelet HaSharon". Ela aparece no livro de Cânticos da Bíblia, um conjunto de poemas trocados entre um casal que se ama. Em Cânticos 2:1-2, a mulher se diz parecida com a Rosa de Saron, o lírio dos vales. O homem responde concordando e enaltecendo a sua beleza. É interessante que a Rosa de Saron tenha sido escolhida como símbolo da Corte Constitucional da Coréia do Sul. Na África do Sul, a logomarca da Corte é uma árvore frondosa com onze pessoas, brancas e negras, de pé, embaixo. A árvore protege as pessoas e as pessoas protegem a árvore. Esses países escolheram como símbolos de suas Cortes Constitucionais dois belos presentes da natureza. É preciso sensibilidade e sabedoria para escolher algo tão simples e, ao mesmo tempo, profundamente simbólico. Em Israel, cada uma das cinco turmas da Suprema Corte exibe na parede, por trás dos assentos dos ministros e ministras, a Menorá, o candelabro de sete braços que é um dos principais e mais difundidos símbolos do Judaísmo. No Brasil, há no plenário do Supremo Tribunal Federal o Cristo Crucificado, feito por Alfredo Ceschiatti, com o madeiro confeccionado em pau-brasil. Os símbolos das Cortes Constitucionais dizem muito sobre os países, seus povos e as relações de poder dominantes. No caso da Coréia do Sul, não poderia faltar jardins. Magníficos jardins. Na frente, um jardim de três níveis construído pelo homem com um lago e uma fonte. Há obras de arte feitas de relevos de granito no centro do lago, onde a água cai. A queda d'água usa a diferença de nível do terreno para fazer a água fluir do solo mais alto para o mais baixo. É um espetáculo difícil de descrever. No topo do edifício, num agradável terraço a partir do qual é possível ver muito de Seul, há outro jardim. São mais de 50 tipos de flora. Desse terraço também se vê o "Baeksong" (Pinheiro Lacebark), uma árvore de mais de 600 anos reconhecida como o Monumento Natural nº 8 da Coréia. É um tesouro nacional. O tronco branco do "Baeksong" convida as pessoas a refletirem sobre a sabedoria, numa associação entre a cor do tronco e os cabelos brancos vindos com a maturidade. O "Baeksong" fica no jardim vizinho da antiga casa do segundo presidente do país. Também há pinheiros indígenas, flores e árvores que florescem e murcham em diferentes épocas do ano. Desse chão nasce um colorido mágico que beija os olhos de quem fita um ecossistema verdadeiramente belo cravado no seio de uma metrópole modernista de mais de 23 milhões de pessoas. Tudo isso no prédio de uma Corte Constitucional. No fundo do prédio há mais jardins. Além de bancos postos sob uma típica cobertura coreana, o verde se espalha por todos os locais que a vista é capaz de alcançar. Desbravando o local, a pessoa se depara com uma grande estátua de bronze que introduz um homem em busca da ordem constitucional, da verdade e da justiça. É o guardião da Constituição. Na mão direita da estátua há um código jurídico encravado sobre uma balança simbolizando a verdade e a igualdade. Com a mão esquerda ele arrebenta uma corrente que restringe a liberdade. A estátua reconstrói a própria missão da jurisdição constitucional contemporânea. Nem bem se cruza a entrada do edifício, antes mesmo do lobby, tem-se gravado numa pilastra horizontal que serve de base para o primeiro piso o art. 10 da Constituição, que diz: "A todos os cidadãos e cidadãs deve ser assegurado valor e dignidade humana e o direito de buscar a felicidade. Deve ser dever do Estado confirmar e garantir os direitos humanos fundamentais e invioláveis dos indivíduos". A interpretação da Constituição há de se dar tomando como ponto de partida esse dispositivo. É como tem agido a Corte Constitucional. No vídeo institucional disponibilizado no site da Corte, consta: "Os nove justices, incluindo o presidente da Corte Constitucional, sempre elegem a felicidade das pessoas como a prioridade número 1 e procedem a julgamentos independentes, baseados em suas consciências acerca da Constituição". Indo além, em depoimento acerca de como enxerga a sua missão, o Justice Kim Yi-Su anotou: "Eu irei me dedicar inteiramente a fortificar a fundação e os pilares da Constituição, abrindo ainda mais as portas de uma verdadeira democracia, consequentemente criando um mundo repleto de sonhos e de felicidade para as pessoas". Não sem razão, em julho de 1997, o art. 809 da Seção 1 do Código Civil foi declarado inconstitucional. Ele proibia o casamento entre casais com o mesmo nome ancestral. O principal fundamento foi o art. 10 da Constituição, especialmente a parte que fala do direito de buscar a felicidade. Pelo o que se vê, todo aquele que sentiu sobre os seus ombros o fardo pesado da dor e do sofrimento consegue celebrar, sem culpa nem vergonha, o desejo genuíno que a humanidade nutre pela sua própria felicidade. A Coréia do Sul, uma nação milenar, tem mostrado isso por meio da sua jurisdição constitucional. No lobby do edifício, vê-se no chão um desenho circular branco sobrepondo-se a um retângulo preto. As formas rendem tributo à expressão: "O céu é um círculo e a Terra é um quadrado". Ele enaltece a harmonia do yin-yang, princípio central da filosofia chinesa onde yin significa escuridão e yang a claridade. As nove formas desse desenho representam os nove integrantes da Corte Constitucional. Além de o prédio contar com um auditório para 150 pessoas, também há o plenário, que acomoda 100 visitantes. O design interior reproduziu a atmosfera das casas tradicionais coreanas, com janelas e portas de vigas com colunas. Ao fundo, a obra de arte "Dez degraus de luz", de Ha, Dong-Chul (1992, 280x560cm). A luz, raiz da vida, transita em dez telas. Os raios partem do topo em direção à base construindo uma representação simbólica da paz final na Terra. O número de telas marca as dez hastes celestiais da Coréia do Sul, consideradas pela filosofia chinesa as dez forças intangíveis do céu. Coincidência ou não, a emenda que criou a Corte foi a de número 10. No plenário, os nove assentos escuros, de madeira, levam almofadas bordô, com o emblema da Rosa de Saron em cada um deles. Na parede, está ela, a Rosa de Saron, dourada, com um sol brilhando a partir do seu centro. Ela é vista por todos. Diferente das togas dos ministros do Supremo Tribunal Federal, pretas, ou dos juízes da Corte Constitucional da África do Sul, verdes, as togas dos juízes e juízas da Corte Constitucional sul-coreana têm a cor bordô, que simboliza a suprema autoridade da Constituição. A toga exibe a forma "Y" nas golas de veludo, numa representação de uma chave, usada para resolver os problemas jurídicos suscitados no Tribunal. Segundo o art. 111, Seção 1, da Constituição, a Corte Constitucional tem suas competências espalhadas em cinco atividades: 1) controle de constitucionalidade de leis requerido pelas cortes ordinárias; 2) impeachment de autoridades; 3) dissolução de partidos políticos; 4) disputas relativas a competências entre órgãos estatais e governos locais; e 5) reclamações constitucionais (remédio contra o exercício ou o não-exercício do poder público ou questionamento da constitucionalidade de uma lei ou, ainda, em grau de recurso contra decisões de tribunais ordinários). Desde 2017, a Corte é presidida por Jinsung Lee. Ao seu lado estão os oito justices: Kim Changjong, Ahn Changho, Kang Ilwon, Seo Kiseog, Cho Yongho, Lee Seon-Ae, Yoo Namseok. Há apenas uma mulher, Lee Seon-Ae. O presidente da Corte Constitucional é indicado pelo presidente da República entre os justices, com o consentimento da Assembleia Nacional. Ele serve como presidente do Conselho dos Ministros e preside o plenário. Três juízes são apontados a partir de pessoas selecionadas pela Assembleia Nacional e outros três a partir de pessoas indicadas pelo Chief Justice da Suprema Corte. Os juízes têm um mandato de seis anos renovável por mais seis. Independente do mandato, caso completem 70 anos, têm de se aposentar. Se o mandato expirar ou a posição for declarada vaga, o sucessor ou sucessora deve ser apontado em 30 dias. A lei declarada inconstitucional perde seus efeitos a partir do dia seguinte à decisão. São os efeitos ex nunc, adotando-se o modelo kelseniano em contraponto ao de Marshall, ou seja, não vigora o princípio da nulidade da lei declarada inconstitucional, mas o da anulabilidade. A exceção fica com as leis com imposições criminais. Essas, sim, perdem seus efeitos retroativamente. Um novo julgamento deve ocorrer. Há três turmas compostas cada uma por três ministros. Quando uma reclamação constitucional é ajuizada, a turma faz uma análise prévia para conhecer ou não dela. Caso não se alcance a unanimidade para recusar, a reclamação é encaminhada ao plenário. Se a turma passar mais de 30 dias sem se manifestar, o caso é transferido automaticamente. No plenário, pelo menos sete juízes devem estar presentes para que um caso seja ouvido. A decisão de mérito é tomada pela maioria. Para declarar a inconstitucionalidade de uma lei, é preciso quórum mais elevado: seis ministros. Há tanto sustentação oral como memoriais. O julgamento precisa ocorrer em até 180 dias do ajuizamento, mas esse prazo é flexível. As deliberações acerca do impeachment, da dissolução de partido político e de disputas de competência requerem sustentação oral. Já a análise de constitucionalidade de leis reclama apenas argumentos escritos. Todavia, o plenário é livre para ouvir partes, pessoas interessadas e testemunhas. Há a presença do amicus curiae. As pessoas podem assistir a sustentação oral. Já a deliberação dos julgadores, não. É na sala de deliberação onde os ministros tomam as suas decisões, sentados em assentos colocados ao redor da mesa retangular na antessala do plenário, com quatro cadeiras de cada lado e a do presidente na cabeceira. Ali eles discutem com as portas fechadas. Na parede ficam as fotos os ex-presidentes da Corte Constitucional. Na constelação de Tribunais Constitucionais do final do século XX, o da Coréia do Sul é uma estrela reluzente que tem prestado um grande serviço à comunidade daquele país. A Emenda Constituição nº 10 anteviu o amanhã ao fundar a Corte. Para seguir seu rumo com o êxito que obteve até aqui, basta que persista equilibrando, na interpretação da Constituição, o que no Brasil tem se notabilizado pela dialética entre regras e princípios; em Israel, pela interação entre direito e justiça; na África do Sul, pelo contraponto entre tradição e transformação; e, na Coréia do Sul, pela confluência hermenêutica das forças yin-yang, alternando luz e escuridão, num movimento que não imita apenas o Direito, mas a lógica da própria vida. O edifício da Corte Constitucional mostra muito do povo sul-coreano, seus valores, filosofias, história e aspirações. Agindo com independência, o Tribunal tem sabido preservar direitos fundamentais, opor o poder tanto do Legislativo como do Executivo e, principalmente, manter abertos os canais pelos quais as águas da democracia devem passar livremente. Que siga seu caminho com equilíbrio e graça.
Diante do turbilhão por que passa o país, tudo recomenda saber, daquele que é considerado o maior gênio de todos os tempos, suas impressões sobre a recente greve dos caminhoneiros, a crise da segurança pública, a reforma trabalhista, a hostilização de figuras públicas por populares, a autoridade do STF e, como não poderia deixar de ser, sua compreensão sobre o sentido da vida. Numa entrevista exclusiva, Albert Einstein apresenta uma visão sóbria sobre essas questões. A seguir, o encontro da coluna com o inigualável físico alemão1. Conversa Constitucional: Para começar, o que mais o surpreende no quadro atual da geopolítica mundial? Einstein: Nações outrora de primeira linha curvam-se perante tiranos que ousam afirmar abertamente: direito é aquilo que nos serve! CC: O ministro Marco Aurélio, do Supremo Tribunal Federal, costuma dizer que vivemos em "tempos estranhos". Devemos temer os tempos atuais? Einstein: Só através de perigos e convulsões podem as nações ser levadas a novos desenvolvimentos. Possam as atuais convulsões levar a um mundo melhor. CC: Mas haveria alguma saída que nos leve a uma vida política saudável? Einstein: Liberdade de expressão e ensino em todos os campos do esforço intelectual. Por liberdade, entendo condições sociais de tais que a expressão de opiniões e afirmações sobre questões gerais e particulares do conhecimento não envolva perigos ou graves desvantagens para seu autor. As escolas podem favorecer essa liberdade, incentivando o pensamento independente. CC: Falando em escolas, ganha adesão o projeto "Escola sem partido", que sugere advertências a professores que "doutrinem politicamente" seus alunos. Por outro lado, manifestações do ministro da Educação contra professores que, em universidades públicas, ofereceram disciplinas para tratar do que chamam de "golpe" foram reputadas hostis à liberdade de cátedra. Tendo estudado em colégios alemães, conhecidos pela disciplina, qual a sua opinião? Einstein: O professor deve gozar de ampla liberdade na escolha do conteúdo a ser ensinado e dos métodos de ensino a empregar. CC: Há muita preocupação com a indisciplina. Vídeos de alunos atacando fisicamente professores chocam. Muitos pais passam a enxergar o endurecimento das escolas como uma solução. Einstein: A meu ver, o pior para uma escola é trabalhar sobretudo com métodos de medo, força e autoridade artificial. Esse tratamento destrói os sentimentos sadios, a sinceridade e a autoconfiança do aluno. Produz o sujeito submisso. Ponha-se nas mãos do professor o menor número possível de medidas coercitivas, de tal modo que suas qualidades humanas e intelectuais sejam a única fonte de respeito que ele possa inspirar no aluno. CC: Recentemente, o médico Dráuzio Varella afirmou que "a USP não tem que preparar alguém para fazer cirurgia plástica nos Jardins". Qual a sua opinião a respeito do ensino superior integralmente gratuito? Einstein: O objetivo deve ser a formação de indivíduos capazes de ação e pensamento independentes, que, no entanto, vejam no serviço à comunidade seu mais importante problema vital. CC: Voltando para a política, figuras públicas variadas têm sido hostilizadas nas ruas por populares. Qual a causa disso? Einstein: Um grave enfraquecimento do pensamento e do sentimento moral. Esta, a meu ver, é uma causa essencial da barbarização das práticas políticas em nosso tempo. Considerada conjuntamente com a terrificante eficiência dos meios técnicos, a barbarização já constituiu uma terrível ameaça para o mundo civilizado. CC: Pessoas sem mandato também são vítimas. A presidente do STF, ministra Cármen Lúcia, teve a fachada do seu apartamento vandalizada. Algum conselho para a ministra? Einstein: Setas de ódio também foram disparadas contra mim; mas nunca me atingiram, porque de algum modo pertenciam a um outro mundo, com o qual não tenho nenhuma ligação. CC: Ainda na política, foi simbólica a construção de um muro diante do Congresso Nacional durante a votação do processo de impeachment da presidente Dilma Roussef. Oficializou-se a divisão entre direita e esquerda. Como lidar com essa divisão? Einstein: Não só devemos tolerar as diferenças entre indivíduos e entre grupos, como devemos de fato aceitá-las com satisfação e considerá-las enriquecedoras de nossa existência. Essa é a essência de toda tolerância verdadeira. CC: Também se questiona a legitimidade dos próprios representantes do povo. Fala-se há tempos numa Reforma Política... Einstein: Os membros das câmaras legislativas são escolhidos por partidos políticos, amplamente financiados ou influenciados de outros modos por capitalistas privados que, para todos os efeitos práticos, isolam o eleitorado do legislativo. A consequência é que os representantes do povo não protegem suficientemente, de fato, os interesses dos setores desfavorecidos da população. Assim, é extremamente difícil para o cidadão comum, e, na maioria dos casos, de fato absolutamente impossível, chegar a conclusões objetivas e fazer um uso inteligente de seus direitos políticos. CC: Mesmo decisões judiciais passam a sofrer o risco de não serem cumpridas. Incluindo as do STF. Einstein: O melhor tribunal de Justiça nada significa se não for sustentado pela autoridade e o poder para executar suas decisões. CC: Esse ano, teremos eleições gerais e o Tribunal Superior Eleitoral tem tentado se precaver das "fake news". O senhor já se pegou pensando a respeito? Einstein: A liberdade de ensino e de opinião, nos livros ou na imprensa, é a base do desenvolvimento estável e natural de qualquer povo. As lições da história - especialmente em seus capítulos mais recentes - são todas muito claras a esse respeito. Hoje, no entanto, temos de encarar o fato de que nações poderosas impossibilitam a seus cidadãos a adoção de opiniões independentes em matéria de política e induzem seu próprio povo em erro, mediante a difusão sistemática de informações falsas. CC: Há um certo recrudescimento do discurso político e isso tem encontrado ressonância social. Se antes candidatos eram ensinados a serem politicamente corretos, hoje são orientados a ofender seus oponentes. Einstein: É fora de dúvida que a crise mundial e o sofrimento e as privações que dela resultem para o povo são responsáveis, em certa medida, pelas perigosas convulsões de que somos testemunhas. CC: E sobre os líderes populistas? O que o senhor tem a dizer? Einstein: A estrada para a perdição sempre foi calçada pela exaltação hipócrita de algum ideal. CC: Mas há quem diga que ao fim e ao cabo tudo se resume a impor a força sobre os outros. Einstein: Durante a guerra, alguém tentou convencer um grande cientista alemão de que a força preponderava sobre o direito na história do homem. "Não posso refutar a correção do que afirma", respondeu ele, "mas sei que não teria nenhum interesse em viver num mundo assim"! CC: E quanto à segurança pública? Einstein: O Estado moderno deixou de ter condições de preparar adequadamente a segurança de seus cidadãos. Só a compreensão de nossos próximos, a justiça em nossas condutas e a disposição de ajudar nosso semelhante podem assegurar a permanência da sociedade humana e segurança do individuo. CC: Mas já não se passou dos limites? Einstein: Em tempos de intranquilidade e desordem, o povo tende ao ódio e à crueldade, ao passo que, em tempos de paz, esses traços da natureza humana só emergem furtivamente. CC: E quanto a "distribuir" armas para a população se defender dos criminosos? Einstein: Onde a crença na onipotência da força física predomina na vida política, essa força assume vida própria e se revela mais forte do que os homens que pensam usá-la como uma ferramenta. CC: Bandidos matam. Agora, cidadãos reivindicam o direito de matar também. Onde iremos parar? Einstein: O sofrimento e o mal produzem novos sofrimentos e novos males. CC: Há muita crítica acerca da falta de negros no poder, seja público ou privado. Qual a sua opinião sobre a relação do Brasil com o seu povo negro? Einstein: Seus ancestrais arrancaram essa gente negra de sua terra à força; e, na busca do homem branco por fortuna e vida fácil, eles foram impiedosamente esmagados e explorados, degradados à escravidão. O preconceito moderno contra os negros é resultado do desejo de manter essa condição indigna. CC: O atual governo fez uma reforma trabalhista. Como o senhor vê países como o Brasil diante da Quarta Revolução Industrial marcada pelo universo digital? Einstein: Um efeito da introdução dos meios mecânicos de produção numa economia desorganizada é que uma parcela substancial da humanidade deixou de ser necessária para a produção de bens, ficando assim excluída do processo de circulação econômica. As consequências imediatas são a redução do poder de compra e a desvalorização da mão de obra, em decorrência da competição excessiva, e estas dá origem a intervalos cada vez mais curtos, a uma grave paralisia na produção de bens. CC: Há muitas críticas quanto ao tamanho do Estado e a forma de distribuir o seu poder. A atual greve dos caminhoneiros trouxe à tona discussões sobre o monopólio do refino de combustível no Brasil pela Petrobras. Einstein: O Estado tornou-se, assim, um ídolo moderno a cujo poder insuflador poucos homens conseguem escapar. CC: A Constituição apresenta princípios a serem adotados pela República nas suas relações internacionais. Por exemplo: "prevalência dos direitos humanos; autodeterminação dos povos; não-intervenção; defesa da paz; solução pacífica dos conflitos". O senhor, que viveu durante a Segunda Guerra Mundial, acha que fizemos a opção correta ao optarmos pela paz? Einstein: Uma pessoa ou uma nação só pode ser considerada amante da paz se estiver disposta a ceder sua força militar as autoridades internacionais e a renunciar a qualquer tentativa de alcançar seus objetivos no exterior por meio da força, ou até renunciar aos meios para tanto. É preciso que se estabeleçam condições que assegurem a cada nação o direito de resolver seus conflitos com as outras nações em bases legais e sob jurisdição internacional. CC: Grupos têm advogado abertamente a volta da ditadura militar no país ou uma intervenção militar. Como o senhor vê esse fenômeno? Einstein: Se desejarmos resistir aos poderes que ameaçam suprimir a liberdade intelectual e individual, devemos ter muito presente o que está em jogo e o que devemos à liberdade que nossos ancestrais conquistaram para nós, após duras lutas. Sem essa liberdade, não teria havido Shakeaspeare, Goethe, Newton, Faraday, Pasteur ou Lister. Não haveria casas confortáveis para a grande maioria do povo, nem estradas de ferro, rádio, proteção contra epidemias, livros baratos, cultura e desfrute da arte para todos. Não haveria máquinas para poupar as pessoas do árduo trabalho necessário para o suprimento das necessidades essenciais da vida. CC: O que de mais importante os regimes autoritários subtraem das pessoas? Einstein: A liberdade do indivíduo, que nos propiciou todos os avanços do conhecimento e da invenção - liberdade sem a qual a vida, para um homem que se respeite, não merece ser vivida. CC: Sentimos falta de estadistas, professor. Einstein: O trabalho dos estadistas só pode ter êxito se eles forem apoiados pela vontade séria e determinada do povo. CC: É possível a regeneração da vida política nacional? Einstein: A pressão da injustiça acumulada fortalece no homem as forças morais que levam a uma libertação e purificação da vida pública. CC: O senhor é um homem otimista. Qual a sua profissão de fé? Einstein: Que sequer nos esquivemos da luta, quando ela for inevitável, para preservar o direito e a dignidade do homem. Se assim fizermos, logo estaremos de novo em condições de nos regozijar com a humanidade. CC: A história das liberdades deve muito a advogados e advogadas. Qual a sua opinião sobre Gandhi, por exemplo? Einstein: Um líder de seu povo, sem apoio de qualquer autoridade externa: um político cujos êxitos repousam não na astúcia nem no domínio de recursos técnicos, mas simplesmente no poder de convicção de sua personalidade; um lutador vitorioso que sempre desprezou o uso da força; um homem de sabedoria e humildade, armado de determinação e inflexível coerência, que devotou toda a sua força ao soerguimento de seu povo e à melhoria de sua sorte; um homem que enfrentou a brutalidade da Europa com a dignidade do simples ser humano, e por isso mostrou-se sempre superior. CC: Uma última pergunta: qual o sentido da vida? Einstein: O mais importante fator na moldagem da existência humana é o estabelecimento de uma meta; e essa meta é a criação de uma comunidade de seres humanos livres e felizes que, por constante trabalho interno, lutem por se libertar da herança dos instintos antissociais e destrutivos. __________ 1 Albert Einstein nasceu em Ulm, em 14 de março de 1879, e faleceu em Princeton, em 18 de abril de 1955. Esse físico teórico alemão radicado nos Estados Unidos, autor da teoria da relatividade, recebeu o Nobel de Física de 1921, pela correta explicação do efeito fotoelétrico. Foi eleito pela revista Time a Pessoa do Século. Cem físicos renomados o elegeram, em 2009, o mais memorável físico de todos os tempos. Em sua homenagem, a Editora Nova Fronteira lançou, na Coleção Clássicos de Ouro, a obra "Meus últimos anos. Os escritos da maturidade de um dos maiores gênios de todos os tempos", na 2ª edição (2017), traduzida por Maria Luyiza X. de A. Borges. São ensaios de um período de cerca de 15 anos - 1934 a 1950. Com base na obra, a coluna preparou essa entrevista imaginária na qual apenas as perguntas são hipotéticas. As passagens de Einstein foram retiradas na íntegra. Não há qualquer alteração.