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Conversa Constitucional

Fatos do cotidiano à luz da CF e a rotina do STF.

Saul Tourinho Leal
No início do filme Para Sempre Alice1, a pesquisadora que leva esse nome se vê, aos 50 anos, perdida num parque durante sua corrida diária. Ela não sabe como voltar para casa. Na última cena, sua filha, Lydia, lê um trecho da obra "Angels in America", de Tony Kushner: "Nada está perdido para sempre. Nesse mundo, há uma espécie de progresso doloroso. Saudades do que deixamos para trás e dos sonhos futuros". Lydia pergunta: "É sobre o quê?". Desafiava, com o questionamento, o mutismo da mãe, último e mais severo estágio da sua doença. "Amor..., amor", responde Alice, murmurando.    Já em Viver Duas Vezes2, o personagem Emílio, professor de matemática, abre o filme terminando de comer sua torrada e se aproximando do balcão para pagar a conta. A atendente exclama: "Você já pagou, Emílio!". Percebendo a falha de memória, ele disfarça e segue seu caminho. Na última cena, debilitado e morando numa casa de repouso, Emílio, em silêncio, abraça a filha, enquanto ela chora por sentir novamente aquele gesto de afeto que, com o avanço da doença, havia ficado no passado. Por fim, há o filme Meu Pai,3 que se inicia com o idoso Anthony vendo a filha chegar em casa perguntando se ele havia xingado a cuidadora. "Eu não sei quem ela é". A filha insiste. Ele retruca: "Eu não me lembro". Na última cena, Anthony, aos prantos, morando numa clínica, fala para a enfermeira: "Eu quero a minha mãe, quero sair daqui. Peça para ela vir me buscar". Quando a enfermeira pergunta o que está acontecendo, ele explica: "Eu sinto que estou perdendo todas as minhas folhas..., os galhos, o vento e a chuva. Eu não sei mais o que está acontecendo". E chora.   São filmes que tratam do mesmo tema: a doença de Alzheimer. Ela é hoje objeto de processos administrativos e judiciais que têm como protagonistas não os personagens Alice, Emílio ou Anthony, mas pessoas reais. Pessoas como o "Sr. Orlando".   Orlando trabalhou para o sistema de Justiça por mais de 64 anos.4   Aos 78 anos de idade, tendo sobrevivido a uma pandemia (Covid-19) e a um câncer, ele enfrentou um processo administrativo aberto para apurar falhas no cartório.   Ao longo do processo, o Sr. Orlando se debilita bastante e deixa a serventia, aposentado (por tempo de contribuição). Como a punição máxima era a perda da delegação, e esta ficou vaga com a aposentadoria, não havia mais utilidade no processo administrativo. Mas não. O caso continuou. Quando o interrogatório ocorreu, a vulnerabilidade, a fragilidade e a delicadeza do quadro mental daquela pessoa idosa e deficiente ficaram evidentes.   "Não lembro", disse ele, em resposta à maioria dos questionamentos. Lembra a fala do personagem Anthony, já mencionado: "Eu sinto que estou perdendo todas as minhas folhas..., os galhos, o vento e a chuva. Eu não sei mais o que está acontecendo". O Sr. Orlando tinha, há anos, Alzheimer. Não sabia, mas sentia. Tobias Barreto disse que "direito não é só o que se sabe, é também o que se sente". O ministro Ayres Britto, conterrâneo de Tobias, costuma lembrar que "sentença vem do verbo sentir". Mesmo tendo sido diagnosticado por perito nomeado pelo Juízo com "demência avançada com comprometimento cognitivo acentuado", ele foi interrogado, julgado e condenado.  Determinou-se a perda da delegação ante a superveniência da aposentadoria, e por não ser possível a execução da pena, ficou "registrada a prática de infração funcional grave que configurou a perda da delegação, referente a fatos ocorridos antes da aposentadoria, quando o faltoso estava à frente do serviço público prestado em caráter particular". Entendeu, a corregedoria, que "a prova existente não permite concluir pela incapacidade do registrador ao tempo das infrações a ele imputadas". A questão se transformou no PCA 0008083-92.2024.2.00.0000, de relatoria do conselheiro Pablo Coutinho Barreto, em tramitação no Conselho Nacional de Justiça e que chegou a ser pautado para julgamento virtual, tendo sido objeto de retirada, de modo a que o plenário se debruce, presencialmente, sobre a questão. Requer-se, no PCA, que se nulifique apenas uma das penas impostas, qual seja, a que determinou que ficasse "registrada a prática de infração funcional grave que configurou a perda da delegação, referente a fatos ocorridos antes da aposentadoria, quando o faltoso estava à frente do serviço público prestado em caráter particular". O Preâmbulo da Constituição dispõe que a Justiça é um dos "valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceito". A dignidade da pessoa humana é um dos fundamentos da nossa República. Dentre os objetivos fundamentais está o de "constituir uma sociedade livre, justa e solidária". Segundo o art. 229, "os filhos maiores têm o dever de ajudar e amparar os pais na velhice, carência ou enfermidade. Em seguida, diz: "A família, a sociedade e o Estado têm o dever de amparar as pessoas idosas, assegurando sua participação na comunidade, defendendo sua dignidade e bem-estar e garantindo-lhes o direito à vida" (art. 230).5 São princípios abrangentes do compromisso do Estado em conduzir, da melhor forma, as complexidades jurídicas geradas pelo comprometimento da saúde mental daqueles que do Estado fazem parte como delegatários ou servidores. Há ainda vasto tratamento infraconstitucional. A lei 14.878/24 institui a Política Nacional de Cuidado Integral às Pessoas com Doença de Alzheimer e Outras Demências. Já a lei 13.146/15 cria o Estatuto da Pessoa com Deficiência.6 A lei 10.741/03 (Estatuto da Pessoa Idosa), por sua vez, assegura que o respeito à dignidade da pessoa idosa é um imperativo perante órgãos como o CNJ. O direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, de valores, ideias e crenças, dos espaços e dos objetos pessoais (art. 10, § 2º). Por décadas toda a estrutura cartorária brasileira residiu sobre os ombros de pessoas como o Sr. Orlando. Não é justo que seja esse o fim de histórias como essa. Uma última nota. Há outro elo que une os filmes Para Sempre Alice, Viver Duas Vezes e Meu Pai. Em todos eles, na cena final, quando tudo se foi e apenas a parte mais severa da doença se impõe, quem permanece são as filhas. Elas providenciam ao doente o último traço de dignidade que suas biografias reivindicam. Lydia, na cena final, lê um livro para Alice. Julia abraça, chorando, o pai Emílio. Annie conversa com Anthony, no abrigo que vira o palco final da sua jornada. O caso retratado nesse texto, em tramitação no CNJ, não tem Lydias, Julias ou Annies. Mas tem Fabiana, filha do Sr. Orlando, que, em nome da honra do pai, da verdade dos fatos e da higidez do Direito persevera, como curadora, na busca por justiça. No caso, ele já estava aposentado quando da conclusão do processo administrativo, e também já se sabia, por perícia oficial, que enfrentava uma demência irreversível que o incapacitou absolutamente para a vida civil (e se iniciou em 2014). Pessoas do sistema de Justiça diagnosticadas em perícia oficial com Alzheimer (e incapazes) podem, já estando aposentadas e tendo perdido a delegação objeto do litígio, suportar outras consequências administrativas derivadas diretamente da culpa? O CNJ, ao deliberar sobre o PCA 0008083-92.2024.2.00.0000, o dirá. 1 Baseado no romance homônimo escrito por Lisa Genova. 2 Dirigido por Maria Ripoll, que também o roteiriza ao lado de María Mínguez. Produção de Gustavo Ferrada, Eva Muslera e Roberto Schroeder. 3 Baseado na peça de Zeller, Le Père, de 2012. 4 Em 23/6/59, ele iniciou como Auxiliar no Cartório de Registro de Imóveis de Nova Granada/SP. Em 10/8/92, assume como Oficial Titular do Cartório de Catanduva/SP, até se aposentar (2024). 5 O § 13 do art. 37 diz que o servidor público titular de cargo efetivo poderá ser readaptado para exercício de cargo cujas atribuições e responsabilidades sejam compatíveis com a limitação que tenha sofrido em sua capacidade física ou mental, enquanto permanecer nesta condição, desde que possua a habilitação e o nível de escolaridade exigidos para o cargo de destino, mantida a remuneração do cargo de origem. 6 A lei tem como base a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência e seu Protocolo Facultativo, ratificados pelo Congresso pelo Decreto Legislativo 186/08, em conformidade com o procedimento previsto no § 3º do art. 5º da Constituição, em vigor para o Brasil, no plano jurídico externo, desde 31/8/08, e promulgados pelo decreto 6.949/09, data de início de sua vigência internamente.
quarta-feira, 5 de março de 2025

O julgamento do golpe no pleno do STF

Fomos forjados em golpes de Estado. Talvez por isso, tudo se explique. Em 1823, na "Noite da agonia", Dom Pedro I dissolve a Assembleia Constituinte, prende deputados e, ele mesmo, elabora o projeto que resulta na Constituição de 1824. Tempos depois, abdica do trono em favor do filho. Pela Constituição, era preciso ter 18 anos para assumir. O Congresso, por um Ato Adicional, antecipa a maioridade do imperador e entrega o trono a um adolescente de 14 anos. Na Proclamação da República não foi diferente. Dom Pedro II estava no poder quando os militares, liderados pelo marechal Deodoro da Fonseca, derrubaram a monarquia. Em novembro de 1891, Deodoro fecha o Congresso e declara Estado de Sítio. Na sequência, renuncia, abrindo espaço para Floriano Peixoto, seu vice. Vem a "Revolução de 30", que tira o presidente Washington Luís do poder e alça Getúlio Vargas ao Executivo, pondo fim à República Velha. Em 1937, vem novo golpe de Getúlio, fundando o Estado Novo. Fica no poder, initerruptamente, por 15 anos. O último dos golpes, o de 1964, fez com que, por 21 anos, uma ditadura desmantelasse aquela que era, após uma transição entre dois adversários eleitos - Juscelino Kubitschek e Jânio Quadros -, a mais viva democracia da América Latina. Décadas depois, pela primeira vez em nossa história, entre o golpismo que nos aprisiona e a continuidade democrática que nos emancipa, esta venceu, e venceu graças ao Judiciário. É um evento único em uma caminhada tão atrapalhada. Por essa razão, julgar, em 2025, na Suprema Corte, uma denúncia sobre tentativa de golpe de Estado é, inevitavelmente, fazer história. Indo além, significa escrever uma nova história.    Sempre que uma nação busca se encontrar com o seu passado, curando feridas abertas e tentando abrir espaço para um futuro menos penoso, o caminho é o da justiça. "O bom senso da humanidade exige que a lei não se limite à punição de pequenos crimes cometidos por pessoas comuns. Deve também atingir homens que possuam grande poder e que dele façam uso deliberado e concertado para pôr em marcha males que não deixe nenhum lar no mundo intocado".1 Com essas palavras, Robert Jackson, procurador-chefe dos Estados Unidos, abriu, em 21 de novembro de 1945, no Palácio da Justiça em Nuremberg, Alemanha, sua declaração ao Tribunal Militar Internacional que julgaria as atrocidades cometidas por Adolf Hitler e sua vasta entourage diabólica. Não foi diferente em Ruanda. O Conselho de Segurança da ONU, dando início a um longo processo de estabilização do país, criou um Tribunal Penal Internacional (em Arusha, Tanzânia) para julgar os líderes do genocídio de 1994.  Em Israel, dentre as muitas iniciativas de reencontro do povo judeu consigo mesmo depois da Shoá, talvez a mais simbólica tenha sido o julgamento do criminoso nazista Adolf Eichmann, em Jerusalém, oportunidade na qual, pela primeira vez, as vítimas puderam confrontar perpetradores e, diante de todos, expressar suas dores, narrar os horrores do Holocausto e vindicar justiça abertamente.2 Na África do Sul, com a queda do apartheid, coube às muitas sessões públicas da Comissão da Verdade e Reconciliação, conduzida pelo arcebispo Desmond Tutu, o desenho dos traços a partir dos quais nasceria a nação arco-íris. No primeiro encontro da comissão, abrindo a sessão, Tutu disse: "Somos um povo ferido pelos conflitos do passado, independentemente de qual lado estejamos".3 Na Argentina, em 1985, no Julgamento das Juntas, o promotor Julio César Strassera disse, no Palácio da Justiça, o seguinte: "Este julgamento e a sentença que proponho buscam estabelecer uma paz baseada não no esquecimento, mas na memória. Não na violência, mas na justiça. Esta é nossa oportunidade. Talvez seja a última".4 São exemplos de países imbuídos do elevado propósito de, após acontecimentos profundamente perturbadores à democracia e aos direitos humanos, recorrer à justiça para fundamentadamente punir culpados, livrar inocentes e apresentar à sua gente e ao mundo uma versão juridicamente verdadeira da história, de forma que o mal que ela traz encontre dificuldade em se repetir e, assim, o caminho da superação esteja pavimentado. É por isso que me parece ser um grave erro histórico o STF não apreciar a denúncia quanto à tentativa de golpe de Estado no pleno da Corte, com os seus 11 ministros presentes e participando da deliberação. O objeto da denúncia é, claramente, a insurreição dos acusados contra as regras e princípios emanados da nossa CF/88, dentre eles, o primado da democracia. É preciso entender o fenômeno, defini-lo juridicamente, aplicar aos culpados as consequências dos seus atos e abrir um caminho sábio de desradicalização do país.   A denúncia proposta pela Procuradoria-Geral da República, a propósito, conclui o seguinte: "Em unidade de desígnios, dividiram-se em tarefas e atuaram, de forma relevante, para obter a ruptura violenta da ordem democrática e a deposição do governo legitimamente eleito, dando causa, ainda, aos eventos criminosos de 8/1/23 na Praça dos Três Poderes". Não há dúvida: as vítimas foram a democracia e a Constituição. A Constituição de 1988 é contundente quanto ao seu compromisso com a democracia. Enquanto o preâmbulo institui um Estado Democrático, o art. 1º pontua que a nossa República constitui-se em Estado Democrático de Direito. O inciso XLIV do art. 5º reputa crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Ainda segundo a Constituição, um brasileiro pode perder a sua nacionalidade caso tenha a sua naturalização cancelada, por sentença judicial, em virtude de atentado contra o Estado Democrático (art. 12, § 4º, I). O art. 17 condiciona a criação, fusão, incorporação e extinção de partidos políticos ao resguardo do regime democrático; segundo o art. 23, I, é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos municípios zelar pela guarda da Constituição, das leis e das instituições democráticas; e um dos princípios constitucionais sensíveis cujo desrespeito pode ensejar a intervenção da União nos Estados ou do Distrito Federal é precisamente o regime democrático (art. 34, VII, "a"). Julgar alguém por desrespeitar a democracia é, inevitavelmente, julgá-lo por violar a Constituição. Na denúncia, o Procurador-Geral da República anotou: "Se o respeito à dignidade da pessoa é a causa final da sociedade arquitetada pela Constituição em vigor, o modelo democrático é a sua causa eficiente". Em seguida, pontua: "Não há ofensa institucionalmente mais grave à democracia, entretanto, do que a interrupção do processo mesmo de ajustes inerentes ao sistema, pelo impedimento da atuação de qualquer dos poderes, sobretudo por meio da força, não autorizada constitucionalmente". Eis mais um trecho: "O intuito era o de manter a militância apaixonada e disposta a aceitar soluções de violência à ordem constitucional". Por fim, ao se referir ao 8 de janeiro, diz que a organização denunciada promoveu "atos atentatórios à ordem democrática, com vistas a romper a ordem constitucional, impedir o funcionamento dos Poderes, em rebeldia contra o Estado de Direito Democrático". Hoje, se uma lei qualquer de um vilarejo distante tiver sua constitucionalidade questionada no Supremo, o julgamento será no pleno, por força do art. 97 da Constituição, segundo o qual "somente pelo voto da maioria absoluta de seus membros ou dos membros do respectivo órgão especial poderão os tribunais declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo do Poder Público". O parágrafo único do art. 143 do regimento interno do STF dispõe que o quórum para votação de matéria constitucional é o do pleno. Como pode a violação singela a uma única linha constitucional merecer o julgamento do pleno, e a tentativa de pôr fim a essa mesma Constituição, não? Pelo art. 147 do Regimento Interno, basta três Ministros presentes para que haja julgamento nas Turmas. É com um quórum desse que passaremos a limpo o que ocorreu? Faz lembrar Bertold Brecht, que disse: "Há quem prepare cuidadosamente o seu próximo erro".       O julgamento pela turma também foge à tradição da Suprema Corte em debates dessa natureza. A liminar que suspendeu a nomeação do presidente Lula para a Casa Civil, no governo Dilma Roussef, viu o recurso contra ela ser pautado no pleno (posteriormente julgado prejudicado).5 A discussão sobre o rito do processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, também.6 Todo o debate sobre a prisão em segunda instância (especialmente o que resultou na soltura do presidente Lula) não se deu nas turmas7, mas no pleno. Quando o STF precisou validar a criação do chamado Inquérito das Fake news, levou ao pleno.8 Caminho semelhante se deu no "mensalão"9 e, agora, na condenação à prisão do ex-presidente Fernando Collor.10 Parece algo até intuitivo. Basta perguntarmos a nós mesmos se seria natural assistirmos a uma votação de um processo de impeachment contra o presidente da República esgotando-se numa das comissões do Senado, ao invés do seu plenário.  Por qual razão, então, manter essa deliberação num órgão fracionário do Tribunal, privando seis integrantes com notável saber jurídico de estudarem o caso, apresentarem seus votos e dialogarem uns com os outros acerca dos fundamentos e das conclusões de um julgamento que se confunde, muito infelizmente, com a nossa própria existência? Ou o episódio cuida de populares depredando prédios públicos e, por essa razão, um julgamento na turma é justa medida ou, então, se trata de tentativa bem elaborada de um golpe de Estado, que fracassou, mas que colocou em risco a Constituição e a nossa democracia, sendo, o pleno, o local para apurar tão grave acontecimento político. Desde o início da nossa vida pública engolimos instituições, escamoteamos as normas e impomos, por voluntarismos insistentes, saídas convenientes para problemas graves presentes há séculos, atrasando o nosso desenvolvimento social, econômico e institucional. É hora de fazer diferente, de simplesmente fazer a coisa certa. 1 Disponível aqui. 2 Esse julgamento, acompanhado de perto pela filósofa Hannah Arendt, ensejou o seu conhecido conceito de "banalidade do mal", cujos componentes teóricos podem ser conhecidos pela leitura da obra "Eichmann em Jerusalém: um relato sobre a banalidade do mal", publicado no Brasil pela Companhia das Letras. 3 Disponível aqui. 4 Recomendo o filme "Argentina, 1985", dirigido e coescrito por Santiago Mitre e protagonizado por Ricardo Darín e Peter Lanzani. 5 Mandados de Segurança 34.070 e 34.071 (Rel. Min. Gilmar Mendes). 6 MC na ADPF 378, Pleno, redator Min. Luís Roberto Barroso, DJe 8/3/16. 7 ADC's 43, Pleno, Rel. Min. Marco Aurélio, DJe 12/11/20, 44 e 54. 8 ADPF 572, Pleno, Rel. Min. Edson Fachin, DJe 7/5/21. 9 AP 470, Pleno, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJe 22/4/13. 10 AP 1025, Pleno, redator Min. Alexandre de Moraes, DJe 21/9/23.
É do poeta Robert Frost a lição de que "boas cercas fazem bons vizinhos". A afirmação não deixa de orientar, poeticamente, o princípio da separação dos poderes, elemento de sustentação de todas as democracias constitucionais saudáveis do mundo. No Estado Constitucional, a missão de concretizar direitos fundamentais, especialmente os de índole social (prestacionais, portanto), não se cumpre sem o envolvimento dos Poderes Legislativo e Executivo. O Judiciário, cujo órgão de cúpula é a Suprema Corte, corrige, quando provocado, as violações promovidas pelo Estado contra esses direitos, violações essas que também podem se dar por meio de omissões reiteradas. Mas é consenso na jurisdição constitucional contemporânea que a jornada de vindicação, positivação e realização de direitos fundamentais é uma caminhada longa demais para excluirmos dela os Poderes Legislativo e Executivo. A lei Maria da Penha nasceu do ecossistema político. O mesmo se diga da tipificação do crime de feminicídio. E quanto ao Estatuto da Pessoa Idosa ou o da Pessoa com Deficiência? E quanto à lei dos medicamentos genéricos? E quanto à previsão orçamentária de programas como o Bolsa Família? São conquistas que não nascem dos tribunais, mas de construções políticas ultimadas pela lei. O Brasil não está inerte na conformação normativa de demandas sociais. Se tomarmos como referência o art. 6º da CF/88, que veicula os direitos sociais (originalmente: educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados), em 2000 veio a emenda 26, inserindo a moradia; em 2010, com a emenda 64, a alimentação; e, em 2015, com a emenda 90, o transporte. A CF/88 foi alterada três vezes, apenas no art. 6º, para incluir mais direitos sociais demandados pela população.    Esse comportamento político responsável tem andado junto com as adaptações jurídicas necessárias à proteção de todos numa sociedade plataformizada. A esse respeito, eis o que anotou o ministro André Ramos Tavares, recentemente: "As plataformas digitais, engendradas com softwares aplicativos, representam uma das mais atuais e dinâmicas fronteiras na vanguarda da inovação digital voltada para o dia a dia do cidadão".1 Exemplo é o direito à mobilidade urbana eficiente. Como esse direito nasceu? Pela aprovação, em 2014, da EC 82. Dois anos antes, havia sido promulgada a lei 12.587, introduzindo a Política Nacional de Mobilidade Urbana. Movimento semelhante se deu com a EC 115, promulgada em 2022, inserindo, no rol do art. 5º, "o direito à proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais". Em 2018, já havia entrado em vigor a lei 13.709, sobre a proteção de dados pessoais, alterando a inovadora lei 12.965/14 (Marco Civil da Internet). Em 2019, a lei 13.853 deu ensejo à Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Ou seja, o Congresso Nacional não tem se omitido em erigir um sistema normativo condizente com o tempo presente, no qual o social e a inovação tecnológica andam juntas. É como escreveu a ministra Cármen Lúcia: "Há que haver o pensar e propor novos modelos jurídicos, coerentes com as novas demandas tecnológicas e seu uso. Esses devem ser aptos a assegurar a eficácia dos direitos fundamentais, permitindo o movimento transformador que a criatividade humana - incluída a tecnologia - poderá propiciar, em benefício da humanidade, se for bem cuidada e limitada pelas liberdades conquistadas e constitucional e supraconstitucionalmente asseguradas".2 Percorrendo esse caminho, a Câmara dos Deputados está debruçada sobre o projeto de lei complementar 12/24, de iniciativa do Poder Executivo, que dispõe sobre a relação de trabalho intermediado por empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros em veículos automotores de quatro rodas. O PLP é resultado de grupo de trabalho instituído pelo decreto 11.513/23, no Ministério do Trabalho e Emprego, assim formado: 15 representantes do governo Federal; 15 representantes dos trabalhadores; e 15 representantes dos empregadores. Eis a essência do projeto: a) Relação de trabalho entre os condutores e as empresas operadoras de aplicativos de transporte remunerado privado individual de passageiros, garantindo direitos trabalhistas, como piso remuneratório reajustado de acordo com a Política Nacional de Reajuste do Salário-Mínimo, e a segurança e saúde do trabalhador, estabelecendo, dentre outros, o limite máximo de 12 horas de conexão à plataforma por dia; b) Direitos previdenciários; c) Mecanismos de controle e fiscalização das atividades das empresas operadoras de aplicativos, definindo regras para o bloqueio, suspensão e exclusão do trabalhador da plataforma; d) Diretos à representação por entidade sindical, garantido direitos à organização sindical, a sindicalização e à negociação coletiva; e) Incentivo à capacitação e formação profissional dos condutores. A conclusão dos ministros Luiz Marinho, Carlos Luppi e Fernando Haddad, ao apresentarem o projeto, foi a seguinte: "A aprovação deste projeto de lei complementar representa um avanço significativo na promoção de um ambiente de trabalho mais justo e equitativo para os profissionais que atuam no setor de transporte remunerado privado individual de passageiros". O PLP 12/24, apresentado em março de 2024, tramita sob o regime de prioridade, já tendo sido despachado para as Comissões de Indústria, Comércio e Serviços; Trabalho; e Constituição e Justiça e de Cidadania. A tramitação desse PLP dá forma ao raciocínio do ministro Cristiano Zanin, que, na ADIn 7.633, anotou: "O debate público em uma sociedade democrática deve ser robusto e desinibido e que em muitas matérias a deliberação amplia a qualidade epistêmica da decisão. Vale dizer, a qualidade da deliberação pública é proporcional à qualidade do debate público que antecede, no qual deve haver a participação de todos os possíveis afetados em igualdade de condições. Tal prática estimula a melhoria da qualidade das deliberações públicas". É, em suma, o conceito de democracia deliberativa. Acontece que, em paralelo ao referido projeto, tramita no STF o Tema 1.291 (RE 1.446.336), de relatoria do ministro Edson Fachin, que cuida do "reconhecimento de vínculo empregatício entre motorista de aplicativo de prestação de serviços de transporte e a empresa administradora de plataforma digital". Ocorreu, inclusive, uma produtiva audiência pública acerca da questão nos dias 9 e 10 de dezembro de 2024. A decisão que será tomada refletirá a compreensão hermenêutica da questão para o passado, ou seja, será aplicável ao estoque de processos frutos do contencioso que se ergueu na Justiça do Trabalho tentando definir a natureza jurídica do motorista que toma o serviço de tecnologia por meio da intermediação prestada pelas plataformas. Pode, o STF, após responder a questão, identificar zonas de aperfeiçoamento ou indicações de inconstitucionalidades futuras a depender dos fatos vindouros? Sim. Se o fizer, é possível que, sofisticando a sua técnica decisória, alerte o Congresso para que envide todos os esforços em depurar preocupações sociais no PLP 12/24. Recentemente, a Corte Suprema referendou a cautelar concedida pelo ministro Cristiano Zanin na ADIn 7.633, que tratava da lei 14.784/23 (desoneração da folha). Como o equacionamento da questão envolvia o Poder Legislativo, o ministro Zanin abriu caminho para um diálogo institucional entre o STF e o Congresso e, ao fazê-lo, justificou: "No Estado Democrático de Direito cabe a jurisdição constitucional fomentar a espacialidade da política, pois é ela o espaço tanto da disputabilidade intersubjetiva das diversas cosmovisões, como o lócus por excelência para o diálogo, para a construção de consensos possíveis à luz da Constituição. Portanto, a construção de solução adequada e eficiente que permita a apresentação de razões e a composição de interesses disponíveis, mormente àqueles atinentes à dimensão econômica da vida social deve se dar primordialmente na ambiência da política. E próprio dos seus afazeres promover a disputa e o diálogo e a busca da melhor solução que respeite a Constituição". Sua conclusão foi a seguinte: "Decisões construídas coletivamente que são antecedidas desse debate tendem a ser mais respeitadas por todos os atores envolvidos". Noutra oportunidade, considerações relevantes foram feitas pelo ministro Nunes Marques e referendadas pelo plenário, nos autos da Pet 12.074. Tratava da concretização do Regime de Recuperação Fiscal de Minas Gerais. Eis trecho: "O Judiciário deve atuar de forma dialogada com os outros Poderes e a sociedade, de sorte que há três balizas por observar para a concessão, em parte, da prestação jurisdicional postulada na ação: (i) intervenção judicial mínima possível a viabilizar o alcance maximizado do objetivo; (ii) observância dos deveres constitucionais de cada Poder; e (iii) facilitação ou promoção de tratativas e de conduta cooperativa, transparente e solidária dos Poderes Legislativo e Executivo do Estado de Minas Gerais e da União". Não é só. No Tema 477 (RE 1.116.485), o ministro Luiz Fux enfatizou o seguinte: "Revela-se necessário o compartilhamento da tarefa de interpretar o sentido da Constituição, sem que se afirme a qualquer órgão a prevalência abstrata de assumir sempre a última palavra". Para o ministro, "a interpretação constitucional deve perpassar por um processo de construção plural entre os Poderes estatais e os diversos segmentos da sociedade civil organizada, como um mecanismo contínuo, ininterrupto e republicano de construção de significados no qual cada um dos players envolvidos contribui ao embate dialógico, com suas capacidades específicas, sem se arvorar como intérprete único e exclusivo da Constituição, em busca do aperfeiçoamento de soluções democráticas às questões de interesse público". Essa postura institucional do STF reduz tensões entre os Poderes e retira combustível da narrativa maldosa de estrangulamento, pelo Supremo, do espaço decisório legítimo do Poder Legislativo. A esse respeito, inclusive, o ministro Cristiano Zanin, na citada ADIn 7.633, ponderou: "Em tempos de divisões, verifica-se raro engajamento de diversos atoras e atores, que diante de questão crucial para a economia brasileira para equacionar a melhor solução possível para esta temática. (...) Está comprovado nos autos o esforço efetivo dos Poderes Executivo e Legislativo Federal, assim como dos diversos grupos da sociedade civil para a resolução da questão. Portanto, cabe a jurisdição constitucional fomentar tais espaços e a construção política de tais soluções". O Tema 1.291, em tramitação no STF sob a relatoria do ministro Edson Fachin, tem que responder, à luz da CF/88, ao pedido posto no RE 1.446.336, que é esse: "Seja reformado o acórdão recorrido e reconhecida a inexistência de vínculo empregatício entre motoristas parceiros e as ora Recorrentes". Há vínculo ou não? Respondido o requerimento do recorrente, o caso terá sido julgado. Mas, ainda que o ministro Edson Fachin (ou a Suprema Corte) anteveja zonas de vulnerabilidades futuras caso fatos inerentes à atividade se consolidem contrariamente à Constituição, é possível que exorte o Congresso Nacional a agir, no bojo do PLP 12/24.   Parece-me prudente manter aberto o caminho para que o Congresso Nacional resolva legislativamente a situação e esse caminho seria embaraçado caso o STF, deixando de se limitar a conceder ou não o pedido do recurso, erigisse algum tipo de regulação a partir da criação judicial. Como pontuou o ministro Edson Fachin, a jurisdição constitucional "não pode ser utilizada para inviabilizar a aprovação de projetos de lei, pois tal prática, além de estar em desacordo com a sua função, viola o princípio da separação de poderes" (ADIn 7.081). Essa linha encontra ressonância na Primeira turma do STF, pelo julgamento da cautelar na Rcl 60.347, da Cabify, em que a ministra Cármen Lúcia afirmou serem "modelos novos, para os quais é preciso que os legisladores e governantes pensem quais são as formas para o provimento desses direitos", tendo sido secundada pelo ministro Cristiano Zanin, que arrematou: "Uma outra forma de contratação que eventualmente possa merecer uma nova legislação que discipline a matéria, mas não na forma da CLT".     Não há omissão legislativa no tema (o PLP foi apresentado em março de 2024), não há vazios normativos na conformação jurídica da inovação tecnológica no Brasil, não há recalcitrância do Congresso Nacional em contemplar demandas sociais nas leis do país. Cumpre à Suprema Corte, no exame do Tema 1.291, considerar essas verdades. Como se disse, tudo se circunscreve à separação de poderes que, na CF/88, aparece no art. 2º com a seguinte redação: "São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o Judiciário"; e que, na construção poética de Robert Frost, é posta de forma didática: "Boas cercas fazem bons vizinhos". 1 Tavares, André Ramos. A nova matrix: direito (re)programado na civilização plataformizada. São Paulo: Etheria Editora, 2024, p. 28. 2 Trecho do prefácio feito à obra do ministro André Ramos Tavares, anteriormente citada.
quarta-feira, 8 de janeiro de 2025

Depósito de tesouros constitucionais

Dia 8 de janeiro de 2025 marca dois anos da invasão e destruição, por populares, com propósitos políticos golpistas, do prédio do Supremo Tribunal Federal, evento nomeado pela então presidente da Corte, ministra Rosa Weber, como "Dia da Infâmia". Como explicar, ainda que mínima e superficialmente, a cólera (que não é nova) contra Supremas Cortes e, em particular, contra o STF? É preciso ir ao passado. Em outubro de 1958, na Califórnia, Estados Unidos, um cartaz mal arrumado nasceu destinado a percorrer o mundo, tornar-se relevante e fazer história. Pedia-se, nele, o impeachment de um integrante da Suprema Corte. As justificativas eram caricatas. Uma delas dizia: "ele se apoia fortemente nos escritos de sociólogos estrangeiros como autoridade para muitas de suas decisões judiciais".   Seria, aquele juiz (ou ministro, como chamamos no Brasil), "um personagem perigoso e subversivo", "um aparente simpatizante do Partido Comunista" com cúmplices na própria Suprema Corte (dois colegas: Felix Frankfurter e Hugo Black). O cartaz apócrifo ia além. Detalhava as falhas da alta autoridade: "é um agitador fanático pela mestiçagem racial compulsória que proferiu várias decisões obrigando os brancos a misturarem-se com os negros nas escolas, nas acomodações públicas, nos restaurantes e nos locais públicos de recreação aquática". Veio a última das acusações: "Obriga crianças brancas em idade escolar a se misturarem intimamente com os negros". O panfleto denunciava a "tirania judicial" e o fato de o ministro ter transformado "ilegalmente a Suprema Corte num Politburo de tipo soviético, com poder sobre o Congresso e sobre os vários governos estaduais". Seria "um fanático que não vai parar por nada até alcançar seus objetivos" e que "deve ser tratado com extrema cautela e todas as suas ordens e decisões devem ser consideradas suspeitas". Eis o apelo final do cartaz: "As pessoas que desejam ajudar a levá-lo à justiça devem contatar os seus congressistas para pedir o seu impeachment por traição". Não há novidades. Sequer os insultos são novos: comunista, fanático, tirânico..., são os mesmos medos, os mesmos motes e os mesmos pensamentos conspiratórios. O juiz da Suprema Corte sobre quem falava o panfleto era Earl Warren, ex-governador da Califórnia (o único a ser eleito três vezes consecutivas - 1943/1953), membro do Partido Republicano e que presidiu a Corte de 1953 a 1969, lavrando, dentre muitos precedentes afirmadores dos direitos fundamentais, aquele que sepultou a segregação racial no país de forma unânime (caso Brown v. Board of Education). Como conseguiu ser tão combatido e odiado? A explicação é complexa. O poder político pede passagem e quer percorrer esse curso desprovido de quaisquer obstáculos. Supremas Cortes existem desde a Grécia antiga (chamavam-se Gerúsia, em Esparta), desde Roma (o Senado também era Magistratura Suprema), e a finalidade, em essência, é a mesma: impor algum tipo de embaraço a essa pulsão do poder. Não é incomum haver ruídos entre o detentor do poder (divino ou popular) e esses corpos de julgadores (que também detém bastante poder). De tempos em tempos, o que é ruído vira tempestade e trovoada. Na guerra (política ou jurídica), vence o mais forte, e o conceito de força aqui é bem relativo.  Quando a composição da Suprema Corte é boa, ela simplesmente freia o poder do outro, controlando-o nos limites de suas competências e nos termos da Constituição. Tanto que esse é o juramento feito ao se assumir o cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal: "Prometo bem e fielmente cumprir os deveres do cargo de ministro do Supremo Tribunal Federal, em conformidade com a Constituição e as leis da República". Mas quando a composição é ruim, a Corte usurpa parte desse poder político para que também sinta o seu doce sabor, descontroladamente; ou, então, simplesmente obedece ao governante, retirando-lhe os controles. Às vezes faz as duas coisas. O fato de a jornada ser conhecida não elimina o risco. Para que possamos colocar de pé os nossos projetos de felicidade individual e coletiva, é de fundamental importância que haja respeito às individualidades, um plexo de direitos previstos em algum lugar (que tenha contado com a nossa participação direta ou indireta) e a disposição de fazê-los valer ainda que o governante discorde. Quando se avança contra o Poder Judiciário e suas Supremas Cortes (imperfeitas que são, e, algumas delas, mais imperfeitas ainda), essa construção institucional fica comprometida. Quem sente as consequências somos nós.   É curiosa a relação dos Presidentes da República ou Primeiros-Ministros com os juízes das Supremas Cortes. Por vezes, os querem bem; noutras ocasiões, mal. Acontece que a ideia de justiça é tão poderosa, especialmente junto aos menos afortunados, quanto a de dignidade, de democracia ou de salvação. Poucas coisas são tão influentes na vida nacional do que um Poder Judiciário (ou uma Suprema Corte) respeitado. É preciso zelar por esse ideal. Não sem razão, muitos desses ministros outrora atacados se veem convocados a traçarem os destinos nacionais uma vez mais. Earl Warren, que via seu rosto em outdoors pedindo o seu impeachment, foi indicado, em 1963, pelo presidente Lyndon Johnson, para presidir a Comissão criada para investigar o assassinato do presidente John Kennedy. Quando aquela grande nação se partiu ao meio, foi a um juiz da Suprema Corte que as autoridades políticas recorreram. Em Nuremberg, quando os Estados Unidos necessitaram de um procurador-chefe à altura daquele episódio judicial histórico que sucedeu o fim da Segunda Guerra Mundial, suplicaram por Robert Jackson. O Presidente Harry Truman o indicou mesmo ele compondo a Suprema Corte, o que o fez tirar uma licença (Jackson, a propósito, compôs a unanimidade de votos em Brown v. Board of Education).    Ano passado, o governo israelense, que pouco antes tentara acabar com a jurisdição constitucional do país esvaziando as competências da Suprema Corte (Beit HaMishpat HaElyon), nomeou Aharon Barak como juiz ad hoc para atuar no Tribunal Internacional de Justiça no caso África do Sul v. Israel, que acusava formalmente Israel de genocídio. Barak presidiu a Suprema Corte israelense de 1995 a 2006 (integrava o Tribunal desde 1978). Muito recentemente, havia sido dura e covardemente atacado pelos aliados do Primeiro-Ministro Benjamin Netanyahu (pediam sua prisão e o chamavam de criminoso diante de sua casa). Mesmo assim, quando seu país lhe convocou para uma missão judicial desse porte, ele estava lá, com os seus 88 anos de idade. No Brasil, o atual Presidente, Luís Inácio Lula da Silva, após ter indicado o então ministro da Justiça (Flávio Dino) para a Suprema Corte, percebeu que o país seguia precisando de um insumo raro enviado em tempos especiais ao serviço público. Não titubeou em indicar Ricardo Lewandowski, mais um com passagem pela Suprema Corte e que acabara de se aposentar. Entre descansar ou servir, optou por servir. Os apelos aos homens e mulheres da justiça são frequentes no ecossistema político. Todos, em algum momento, o fazem. No final de 2024, o ex-presidente Jair Bolsonaro disse o seguinte numa entrevista para a Revista Oeste: "Vamos pacificar e zerar o jogo daqui para frente. Se tivesse uma palavra do Lula, do Alexandre de Moraes no tocante à anistia, tava tudo resolvido". Até ele apelou a um juiz da Suprema Corte. Ora, os juízes servem ou não servem? É, a Suprema Corte, o descanso de qualquer nação onde podemos encontrar meios para a correção de injustiças ou um lugar para ser fechado por "um soldado e um cabo"? Devemos nos apegar ao art. 2º da Constituição, que coloca o Judiciário como aquele que dá, pela lei e pela Constituição, a última palavra nas coisas do poder, depois do Legislativo e do Executivo, ou o nosso guia é o art. 142, que para alguns constituicidas diz que a última palavra na interpretação da Constituição é dada pelas Forças Armadas, marchando de armas em punho, com tanques nas ruas? Só há uma resposta possível: somos um Estado Constitucional. O Preâmbulo apresenta a justiça como sendo um valor supremo, enquanto o art. 3º, I da Constituição aponta como objetivo da República o de construir uma sociedade justa. Quem fala por último é o Supremo Tribunal Federal, que deve fazer em proveito dos direitos fundamentais e nos limites das suas competências.    Mas voltemos a Earl Warren. Ele morreu em 1974. Horas antes, esteve com William Brennan e William Douglas (que também seguiu Warren no caso Brown v. Board of Education). Foram ao hospital dar o último abraço ao líder e colega de Suprema Corte. Quando do funeral, seus antigos assessores selecionaram passagens escritas por ele e remeteram à sua esposa, para que escolhesse aquela que merecia ficar gravada na lápide do túmulo, no Cemitério Nacional de Arlington, na Virgínia (onde toda a história do constitucionalismo dos Estados Unidos começou). Nina, viúva de Warren, escolheu algo que o marido havia escrito em 1972, quando já estava aposentado. Diz o seguinte: "Onde há injustiça, devemos corrigi-la; onde existe pobreza, devemos eliminá-la; onde há corrupção, devemos erradicá-la; onde há violência, devemos puni-la; onde há negligência, devemos cuidar; onde há guerra, devemos restaurar a paz; e onde quer que sejam alcançadas correções, devemos adicioná-las permanentemente ao nosso depósito de tesouros." É um pensamento repleto de beleza. Entre nós também há uma afirmação magnífica. Ela diz: "Juro, no exercício das funções de meu grau, acreditar no Direito como a melhor forma para a convivência humana, fazendo da justiça o meio de combater a violência e de socorrer os que dela precisarem, servindo a todo ser humano, sem distinção de classe social ou poder aquisitivo, buscando a paz como resultado final". É o que jura cada brasileiro, cada brasileira, ao se tornar juiz no Brasil. Os homens e mulheres do poder político, nos seus mais graves momentos, recorrem à justiça, porque não há vida abundante sem ela. Mas a justiça não pode ser o que Eduardo Galeano advertiu: "como a serpente, que só morde os pés descalços". Juízes (especialmente os de uma Suprema Corte) têm a obrigação indeclinável de ser justos, de ser retos, de ser humildes quanto às competências das quais foram investidos, ao mesmo tempo que destemidos nessa rara arte de fazer justiça quando é dela que o país mais necessita. Não devem pedir licença para fazer cumprir a Constituição, pois são independentes, assim como não podem, a cada voto, criar uma própria Constituição para chamar de sua, pois são limitados pelos fundamentos de suas decisões. Sobrevivemos ao 8 de janeiro, é verdade, contudo, os inimigos da democracia constitucional seguirão nos rondando. Eles sempre estiveram à espreita e, no Brasil, formam um grupo com grande capacidade reprodutiva. É preciso seguir vigilante, dar exemplo e realçar todos os dias as razões pelas quais a justiça verdadeira é o capital mais importante de uma nação, incluída, nela, a justiça emanada das Supremas Cortes. Destruir um prédio público, incendiar suas cadeiras e estilhaçar suas vidraças são atos violentos profundamente desestabilizantes da paz social. Quando motivados por interesses golpistas e executados a partir de uma coordenação nacional, podem, sim, agitar um clima capaz de comprometer a democracia. Mas, na prática, são incapazes de destruir o sentimento de justiça que urge do espírito coletivo e que dá vida às sociedades. Por isso, os brutos do 8 de janeiro perderam, eles fracassaram em seu intento. Quem sofre, quer justiça; quem já se sentiu esmagado, almeja justiça; quem foi humilhado em sua dignidade, vindica justiça; quem foi invisibilizado, lutará por justiça; quem se viu privado dos seus direitos, perseguirá a justiça. No Brasil, são muitas dezenas de milhões de pessoas assim, pessoas que em algum momento da vida ouviram expressões como "fome de justiça" ou "sede de justiça", logo, o desejo por ver esse ideal acontecer forja a própria essência social do país, o seu espírito popular. E não há justiça sem Judiciário, tampouco o cumprimento da Constituição sem uma Suprema Corte. É por isso, e por muito mais, que o dia 8 de janeiro jamais pode se repetir. E, no que depender de nós, brasileiros e patriotas constitucionais, não se repetirá. Como bem profetizou Earl Warren: "Onde quer que sejam alcançadas correções, devemos adicioná-las permanentemente ao nosso depósito de tesouros." Assim será.  
terça-feira, 1 de outubro de 2024

Os shopping centers na Constituição e no STF

A versão originária da Constituição dos Estados Unidos, cuja vigência se iniciou em 1789, não trazia a palavra liberdade. Apenas em 1791, quando entrou em vigor o conjunto de dez emendas chamado Bill of Rights, a primeira delas introduziu a expressão ao tratar sobre a "liberdade de expressão". Estreando a sua bem-sucedida carreira de advogada, Ruth Bader Ginsburg, que depois se tornou juíza da Suprema Corte, certa feita ocupava a tribuna de um tribunal masculino defendendo a igualdade entre os sexos à luz da Constituição. De repente, o presidente da Corte a interrompe: "A palavra 'mulher' não aparece sequer uma vez no texto original da Constituição dos Estados Unidos!", diz ele. Ruth respondeu imediatamente e de improviso: "Nem a palavra 'liberdade', Excelência". Ganhou o caso. Essa cena é ilustrativa da potência que há na hermenêutica constitucional. A interpretação se vale de um conjunto robusto de técnicas capazes de habilitar o intérprete a alcançar o melhor que a Constituição tem para dar em termos de significado. Não havia, de fato, a palavra "mulher" no texto constitucional, mas isso limita o Poder Judiciário?   No Brasil, a CF/88 não traz a palavra shopping. Fala, contudo, nos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (art. 1º, IV). O caput do art. 5º - um dos mais importantes da Constituição - assegura a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, liberdade que também é de trabalho, ofício, profissão (inciso XIII) e de locomoção (inciso XV). Garante-se o direito de propriedade (inciso XXII), reconhecendo, nesta, uma função social (inciso XXXIII). Segundo o art. 6º, bens da vida como a alimentação, o trabalho e o lazer são exemplos de direitos sociais, sendo que, no caso do lazer, ele deve ser compreendido como uma das necessidades vitais básicas da pessoa e da sua família (art. 7º, IV). Ou seja, será mesmo que a Constituição não trata dessa relevante figura jurídica que é o shopping center pelo mero fato de não haver tais palavras em seu texto? A primeira resposta vem do reconhecimento, pelo STF, há mais de 35 anos, da legitimidade da Abrasce - Associação Brasileira de Shopping Centers para propor ação direta de inconstitucionalidade questionando dispositivos do interesse e com impacto direto na situação jurídica de setores dos shopping centers (ADIn 49, rel. min. Paulo Brossard, j. 31/05/89). É um honroso rol disposto no art. 103 da Constituição que coloca a Abrasce ao lado de protagonistas como o presidente da República, os governadores, o procurador-Geral da República, o Conselho Federal da OAB e partido político com representação no Congresso Nacional. Mas não é só. O Pleno do Supremo, órgão máximo composto pela totalidade dos integrantes - onze -, já asseverou que são inconstitucionais: (i) lei municipal que estabelece a obrigação da implantação, nos shopping centers, de ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro equipado para o atendimento de emergência (Tese 1051, RE 833.291, rel. min. Dias Toffoli, DJe 08/01/24); e (ii) qualquer tipo de regulação de preço de estacionamento em shopping (ADIn 6075, rel. min. Marco Aurélio, DJe 10/08/21). A 2ª turma, por sua vez, derrubou leis municipais que haviam instituído a obrigatoriedade, no âmbito daquele município, de cobertura de seguro contra furto e roubo de automóveis, para as empresas que operam área ou local destinados a estacionamentos, com número de vagas superior a cinquenta veículos, ou que deles dispusessem (RE 313.060, rel. min. Ellen Gracie, DJe 24/02/06). Boa parte desses precedentes nasce de inconstitucionalidades formais derivadas da invasão, por estados ou municípios, de competências legislativas privativas da União, constantes dos incisos do art. 22, tais como legislar sobre direito civil, comercial e do trabalho (I) e política de seguros (VII). Por outro lado, há posições assegurando haver certo espaço de conformação legislativa em temas que eventualmente alcancem os shopping centers, mas que estejam sob a competência complementar ou suplementar dos estados ou municípios. Exemplo é a constitucionalidade de lei municipal que estrutura e mantém equipes de bombeiros civis para prestação de atendimentos de primeiros socorros e de combate a incêndios em estabelecimentos comerciais de grande porte, por entender se tratar de norma de interesse local suplementadora da legislação federal e estadual (art. 30, I e II) (ARE 1.394.075 AgR, rel min. Nunes Marques, DJe 13/08/24). A 1ª turma, por sua vez, validou lei municipal que destinava uma quantidade de mesas e cadeiras em praças de alimentação de centros comerciais para o uso de deficientes, idosos e gestantes (ARE 1.479.968 AgR, rel. min. Flávio Dino, DJe 12/06/24). Entendeu-se se tratar de direto do consumidor, cuja competência é comum aos entes (art. 24, VIII, CF) e também disciplina sobre proteção e integração social das pessoas portadoras de deficiência, idosos e gestantes (art. 30, II, CF). Noutro caso, entendeu não competir ao Poder Judiciário suspender a exigibilidade de crédito tributário sem previsão legal. Pleiteava-se o afastamento da incidência de IPTU por ter havido restrição do exercício da propriedade durante o período de fechamento de shopping center em razão das medidas sanitárias adotadas na pandemia da Covid-19 (ARE 1.402.769 AgR, rel. min. Luiz Fux, DJe 01/12/22). Nem sempre, contudo, o fundamento dessas decisões se limita à invasão de competências da União. No RE 833.291 (DJe 08/01/24), de relatoria do ministro Dias Toffoli, a tese 1051 derrubou lei municipal que estabelece a obrigação da implantação, nos shopping centers, de ambulatório médico ou serviço de pronto-socorro equipado para o atendimento de emergência. Nesse precedente, a livre iniciativa conduziu o ethos interpretativo da maioria, para além da inconstitucionalidade formal (invasão de competência da União para legislar sobre direito do trabalho e comercial). Para o ministro Dias Toffoli, o legislador municipal havia invadido "indevidamente o espaço da liberdade de iniciativa", pois "as imposições contidas nas leis impugnadas afrontam, desproporcionalmente, a liberdade econômica, consistindo em inadequada e impertinente intervenção estatal". Segundo o ministro, "em que pese a necessidade da intervenção estatal no âmbito econômico se orientar na direção de valores sociais, tal atuação não pode ser desproporcional." Tais obrigações transbordariam "os limites de intervenção estatal na atividade econômica desenvolvida por esses estabelecimentos, seja pela ausência de correlação com a prestação de serviços oferecida, seja pela imposição de altos custos na implantação e na manutenção do espaço, incluindo gastos com contratação, afora o custo de oportunidade de utilização do espaço". O ministro Dias Toffoli pontuou, por fim, que "não obstante o valor tutelado pelas normas impugnadas, entendo que elas impõem demasiado ônus aos empresários do ramo, configurando intervenção estatal desarrazoada em clara afronta aos princípios da livre iniciativa, da razoabilidade e da proporcionalidade". Por 6 a 4, o STF deu provimento ao recurso da Abrasce para declarar a inconstitucionalidade das leis municipais, nos termos do voto do ministro Dias Toffoli, que foi acompanhado pelos ministros Nunes Marques, André Mendonça, Luiz Fux, Gilmar Mendes e Luís Roberto Barroso. O ministro Edson Fachin, que divergiu, foi acompanhado pelos ministros Cristiano Zanin, Alexandre de Moraes e Cármen Lúcia. Percebe-se, portanto, que as discussões constitucionais travadas pelo STF acerca de legislações dirigidas aos shopping centers encontram correções não apenas por poder haver nelas inconstitucionalidades formais, mas, também, graves violações materiais, o que torna ainda mais sofisticado esse debate. Caso ilustrativo é o RE 119.258 (DJe 21/08/92), segundo o qual leis municipais haviam instituído, em favor dos "centros de compras", regime de funcionamento diverso do previsto para o "comércio tradicional". Alegou-se afronta ao princípio da isonomia. A relatoria coube ao ministro Ilmar Galvão. A 1ª turma julgou improcedente o pleito. Segundo o ministro relator, os shopping centers não contribuem para a degradação das condições de vida das populações das cidades, pois não provocam excesso de concentração urbana, não acarretam o desconforto da poluição ambiental, nem congestionam o tráfego. Isso, em comparação com os "comércios tradicionais", em regra concentrados nos centros das cidades. O ministro Ilmar Galvão anotou ainda que os shopping centers oferecem, sem ônus para o Poder Público, segurança a seus frequentadores, não se limitando a uma opção confortável de compras, constituindo também uma "atração especial para os interessados em lazer e recreações, comodidades que ficariam fora do alcance dos que trabalham, se houvesse coincidência de horários". Concluiu a 1ª turma que a norma apenas conferiu um tratamento legal distinto para situações diferenciadas. Remanesce uma outra linha de fundamentação que parece ter potencial de alcançar os shopping centers: a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais. O primeiro grande precedente do Supremo lavrado à luz dessa corrente se deu no RE 201.819 (DJe 27/10/06), na 2ª turma, tendo se sagrado vencedor o voto do ministro Gilmar Mendes. O caso não versava sobre shopping centers.   A 2ª turma definiu que as associações privadas que exercem função predominante em determinado âmbito econômico e/ou social, mantendo seus associados em relações de dependência econômica e/ou social, integram o que se pode denominar de espaço público, ainda que não-estatal. A UBC - União Brasileira de Compositores, sociedade civil sem fins lucrativos, integrante da estrutura do ECAD, assumiria posição privilegiada para determinar a extensão do gozo e fruição dos direitos autorais de seus associados. A exclusão de sócio do quadro social da UBC, sem qualquer garantia de ampla defesa, do contraditório, ou do devido processo constitucional, oneraria, assim, o recorrido, o qual ficaria impossibilitado de perceber os direitos autorais relativos à execução de suas obras.  O voto do ministro Gilmar Mendes pontuou que "as violações a direitos fundamentais não ocorrem somente no âmbito das relações entre o cidadão e o Estado, mas igualmente nas relações travadas entre pessoas físicas e jurídicas de direito privado".   A conclusão foi essa: "O caráter público da atividade exercida pela sociedade e a dependência do vínculo associativo para o exercício profissional de seus sócios legitimam, no caso concreto, a aplicação direta dos direitos fundamentais concernentes ao devido processo legal, ao contraditório e à ampla defesa (art. 5º, LIV e LV, CF/88)". Igual perspectiva exegética foi adotada no julgamento da ADIn 2572 (DJe 10/11/22), de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso, que questionava lei que reservou 3% dos lugares disponíveis em salas de projeções, teatros, espaços culturais e nos veículos de transporte público municipal e intermunicipal do Estado do Paraná. Primeiro, se rejeitou a pecha de inconstitucionalidade formal, "tendo em vista que a política de inclusão adotada se enquadra na competência concorrente dos Estados, da União e dos Municípios para promover acesso à cultura, esporte e lazer (arts. 6º; 23, V; 24, IX; 215 e 217, § 3º, CF)". Quanto à inconstitucionalidade material, também se refutou a alegação, tendo em vista que "(i) a reserva de lugares foi estabelecida em percentual razoável e (ii) se trata de política inclusiva que não afronta a liberdade de iniciativa, principalmente se considerada a eficácia horizontal dos direitos fundamentais". Faz-se rica, portanto, a conformação constitucional que o STF vem, ao longo de sua longeva jornada, conferindo aos shopping centers por meio da interpretação de fatos, casos e relações travadas "por" ou "nesses" ecossistemas. Ora o vetor hermenêutico é o federalismo, com exortações relativas às competências legislativas das pessoas políticas em dados temas. Ora o vetor hermenêutico é a liberdade de iniciativa (e a proporcionalidade), dessa vez quando se detecta haver inconstitucionalidade material. Há ainda precedentes fiados no princípio da isonomia. Por fim, e ainda sem apresentar um caso cuidando exatamente de shopping centers, a chamada eficácia horizontal dos direitos fundamentais. Quanto a essa última possibilidade exegética (a eficácia horizontal dos direitos fundamentais), o Pleno do STF, recentemente, se viu impedido, por questões processuais, de deliberar acerca do tema 778, que era o seguinte: "Possibilidade de uma pessoa, considerados os direitos da personalidade e a dignidade da pessoa humana, ser tratada socialmente como se pertencesse a sexo diverso do qual se identifica e se apresenta publicamente" (RE 845.779). Impossível que a discussão não passasse pelos direitos fundamentais, mas o recurso extraordinário terminou não sendo conhecido. Shopping centers integram a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. Apoiam campanhas sociais, fortalecem a consciência popular acerca de agendas relevantes, elucidam e educam. Em seus espaços há cultura, há lazer, há desporto, há livre trânsito de pessoas, há o exercício das funções sociais da cidade, há cidadania, há um plexo robusto de direitos constitucionais sendo realizados diariamente. Esses espaços, frutos de um longo aperfeiçoamento urbano e do incremento do poder de consumo da população, devem ser compreendidos em toda a sua importância histórica, social e, por que não dizer, constitucional. Essa compreensão passa pelo reconhecimento de espaços restritos de conformação legislativa por leis emanadas de entes políticos subnacionais em dados temas que podem até alcançar, residualmente, os shopping centers. Mas passa também pela vitalização do primado da liberdade (especialmente a de iniciativa), do dever de desenvolvimento, do reconhecimento do direito de propriedade (com sua função social) e da preservação da autonomia privada. A Constituição rege e protege, sim, os shopping centers.
Em 1954, nos Estados Unidos, a Suprema Corte, julgando o caso Brown v. Board of Education, derrubou as políticas de segregação racial nas escolas públicas do país. Ano seguinte, no caso Brown II, a Corte optou por descentralizar o cumprimento e abrangência da sua decisão, delegando aos tribunais locais o poder de emitir ordens em torno da dessegregação. Qual o resultado? Uma proliferação de entendimentos enfraquecedores da força normativa da Constituição que terminaram por esvaziar a eficácia do célebre caso "Brown", atrasando bastante o processo de dessegregação. A forma encontrada para corrigir essa disfuncionalidade foi a Suprema Corte anular o caso Brown II, para que, em 1964, pudesse o próprio Tribunal voltar a assegurar a higidez do seu célebre precedente realizador de direitos fundamentais. O exemplo mostra que não costuma haver, nas jurisdições mundo afora, uma fina sintonia entre precedentes asseguradores de direitos fundamentais firmados pela Suprema Corte e um órgão competente para traduzir essas conquistas em iniciativas institucionais a serem adotadas celeremente pelo Poder Judiciário. A Suprema Corte decide, mas, muitas vezes, as cortes estaduais se valem de lacunas na decisão e se negam a aplicar, imediatamente, aquele precedente. O Brasil, contudo, dispõe de um aparato capaz de evitar insubordinações desse tipo. Um dos elementos desse aparato é o diálogo institucional operado entre o Supremo Tribunal Federal e o Conselho Nacional de Justiça. Muitas das resoluções emanadas do CNJ no exercício do seu poder normativo já reconhecido pelo próprio Supremo decorrem de decisões ou sinalizações exegéticas dadas pelo STF quando do exercício do seu dever de guarda da Constituição. Na ADC n° 12, o STF baniu o nepotismo, assim como fizera antes o CNJ na Resolução n° 07/2005, por considerar que se tratava da realização desses princípios constitucionais: moralidade administrativa, eficiência, igualdade e impessoalidade. Em 2013, o CNJ aprovou a Resolução nº 175, vedando às autoridades competentes a recusa de habilitação, celebração de casamento civil ou de conversão de união estável em casamento entre pessoas de mesmo sexo. O então presidente do STF e do CNJ, ministro Joaquim Barbosa, recordou que o STF havia apreciado a ADPF nº 132 e a ADI nº 4277, reconhecendo a inconstitucionalidade de distinção de tratamento legal às uniões estáveis constituídas por pessoas de mesmo sexo. No final de 2014, foi publicado o acórdão da ADPF nº 186, no qual o relator, ministro Ricardo Lewandowski, na companhia da unanimidade da Corte, anotou:  "I - Não contraria - ao contrário, prestigia - o princípio da igualdade material, previsto no caput do art. 5º da Carta da República, a possibilidade de o Estado lançar mão seja de políticas de cunho universalista, que abrangem um número indeterminados de indivíduos, mediante ações de natureza estrutural, seja de ações afirmativas, que atingem grupos sociais determinados, de maneira pontual, atribuindo a estes certas vantagens, por um tempo limitado, de modo a permitir-lhes a superação de desigualdades decorrentes de situações históricas particulares."  Segundo o ministro Ricardo Lewandowski, "o modelo constitucional brasileiro incorporou diversos mecanismos institucionais para corrigir as distorções resultantes de uma aplicação puramente formal do princípio da igualdade". Rememorou que o STF "em diversos precedentes, assentou a constitucionalidade das políticas de ação afirmativa". Ano seguinte, em 2015, o mesmo ministro Ricardo Lewandowski, dessa vez ocupando a presidência do CNJ, assina a Resolução nº 203, que dispõe sobre a reserva aos negros, no âmbito do Poder Judiciário, de 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos para provimento de cargos efetivos e de ingresso na magistratura. Depois, estendeu-se aos povos indígenas, pelo Ato Normativo nº 0007920-83.2022.2.00.0000. Esse histórico se repete com a Resolução nº 525/2023, ato normativo do CNJ que leva a assinatura da ministra Rosa Weber, então presidente do Conselho e do STF. A resolução traz uma ação afirmativa de gênero para acesso das magistradas aos tribunais de 2º grau (Política Nacional de Incentivo à Participação Institucional Feminina no Poder Judiciário). Ela coroa décadas de jurisprudência do STF reafirmando direitos exclusivos às mulheres.   Dia 10 de abril último, o Tribunal de Justiça de São Paulo promoveu, no critério merecimento, pela primeira vez no país, uma magistrada à luz da referida Resolução CNJ nº 525/2023. A juíza Maria de Fátima dos Santos Gomes, doutora em Direito e exercente da judicatura paulista há mais de 33 anos, se tornou desembargadora. O presidente do TJSP, desembargador Fernando Garcia, cumpriu integralmente a resolução, agindo como um "Estadista Judicial" (ou como os americanos denominam: Judicial Statesman)1. Superou resistências pontuais e aplicou a lei.  Agora, um novo capítulo se abre no país. O Poder Judiciário sempre exibiu, em seus palácios, figuras mitológicas femininas deixadas do lado de fora dos edifícios estatais, silentes, imóveis, como se fossem troféus adormecidos, postados sob a violência do sol ou a dureza da chuva. Enquanto do lado de fora sobravam estátuas, do lado de dentro faltavam desembargadoras. Agora, com a Resolução CNJ nº 525/2023, as magistradas brasileiras mostram que não aceitam mais ser apenas estátuas de pedra adornando fachadas nos palácios da lei. Suas Excelências vão entrar nesses palácios que também lhes pertencem, assumir os assentos que lhes foram direta ou indiretamente subtraídos, e, servindo ao público por meio do exercício da jurisdição, irão fortalecer as mais elevadas causas da justiça. Nada será capaz de frear o cumprimento desse destino. STF e CNJ devem seguir dialogando em proveito dos direitos fundamentais e inserindo o Poder Judiciário nessa equação emancipatória. A Resolução CNJ nº 525/2023 é apenas o primeiro passo. __________ 1 John Marshal, o inigualável presidente da Suprema Corte dos EUA, por exemplo, era chamado assim.
Dia 13/03/2024, a 1ª Seção do STJ retomará o julgamento dos Recursos Especiais n° 1.898.532/CE e 1.905.870/PR, de relatoria da ministra Regina Helena, veiculadores do Tema Repetitivo nº 1079, cuja redação é a seguinte: "Se o limite de 20 salários-mínimos é aplicável à apuração da base de cálculo de contribuições parafiscais arrecadadas por conta de terceiros, nos termos do art. 4º da lei 6.950/81, com as alterações promovidas pelos arts. 1º e 3º do decreto-lei 2.318/86". A Ministra Relatora negou provimento aos especiais e modulou os efeitos dessa virada jurisprudencial, incorporando, em sua proposta, sugestões do ministro Gurgel de Faria. A proposta ficou assim redigida: "1 - A norma contida no parágrafo único do art. 4° da Lei n° 6.950/81 limitava o recolhimento das contribuições parafiscais cuja base de cálculo fosse o salário de contribuição; 2 - Os arts. 1° e 3° do Decreto-Lei n° 2.318/86, ao revogarem o caput e o parágrafo único do art. 4° da lei 6.950/81, extinguiram, independentemente da base de cálculo eleita, o limite máximo para o recolhimento das contribuições previdenciárias e parafiscais devidas ao SENAI, SESI, SESC e SENAC." A Ministra invocou o art. 927, §3° do CPC, segundo o qual "na hipótese de alteração de jurisprudência dominante do STF e dos tribunais superiores ou daquela oriunda de julgamento de casos repetitivos, pode haver modulação dos efeitos da alteração no interesse social e no da segurança jurídica".  A modulação, tal como proposta, alcança apenas os contribuintes que ingressaram com ação judicial e/ou pedidos administrativos até o início do julgamento (25/10/2023) e que tenham granjeado decisão favorável, possibilitando-lhes recolher as contribuições parafiscais, ou recuperar os valores já recolhidos, com o limite dos 20 salários-mínimos para as suas respectivas bases de cálculo até a data da publicação do acórdão. Mas esse marco "início do presente julgamento (25/10/2023)", bem como a condicionante "obtendo pronunciamento judicial ou administrativo favorável", não são razoáveis de serem acolhidos pela 1ª Seção do STJ. É que o Judiciário, ao tomar decisões, orienta o comportamento dos particulares. Essa dinâmica alimenta a própria legitimidade da prestação jurisdicional. Por essa razão, quaisquer que sejam as hipóteses, contanto que tenha, o contribuinte, ingressado com ação judicial e/ou pedido administrativo, independente de decisão favorável, devem elas ser alcançadas pela modulação, pois foram pautadas na legítima expectativa de manutenção do entendimento até então vigente do STJ. Não se pode considerar como marco para fins de modulação a data de início do julgamento (25/10/2023), na medida em que, diante da sua interrupção pela vista do ministro Mauro Campbell, na referida data ainda prevalecia o entendimento favorável aos contribuintes e, portanto, deve ser levada a efeito a data de conclusão do julgamento e fixação da tese jurídica. No caso, considerando a existência de precedentes favoráveis ao contribuinte há mais de uma década, em decisões monocráticas e acórdãos proferidos por ambas as Turmas de Direito Público, e a inexistência de uma decisão qualquer contrária no âmbito do STJ, alimentou-se expectativa no sentido da existência da limitação de 20 salários-mínimos em debate, a qual não pode agora ser simplesmente ignorada. Assim, mesmo aquele que não obteve decisão judicial ou administrativa favorável, mas que não ficou inerte na busca do seu direito, ingressando com ação judicial ou protocolando requerimento administrativo até a conclusão do julgamento e fixação da tese jurídica (exercendo o seu de petição), deve ser alcançado pela modulação, pois a jurisprudência consolidada do STJ gerou, da mesma forma como gerou naquele que obteve decisão judicial favorável, confiança de que tais decisões orientavam o comportamento dos particulares. Com base nelas, as empresas, tenham ou não obtido pronunciamento favorável, moldaram o seu comportamento, num movimento compatível com a ideia de legitimidade do Judiciário. O art. 927, §3° do CPC apenas estabelece que a modificação de jurisprudência pacificada deve levar em consideração o princípio da proteção da confiança em relação ao entendimento anteriormente vigente. Não há, na lei, determinação de que se distinga contribuintes com decisão favorável daqueles que não a possuíram, para fins de prestígio à segurança jurídica, porquanto ambos os tipos de contribuinte agiram com boa-fé objetiva e confiaram na jurisprudência da Corte. Ainda, o outro motivo para se afastar como marco para fins de modulação o início do julgamento, bem como a condicionante da "obtenção de decisão favorável", decorre da própria segurança jurídica pressuposta da modulação. Todos os contribuintes que ingressaram com ação judicial ou protocolaram pedido administrativo discutindo as contribuições em questão (com ou sem decisão favorável) tiveram a mesma confiança e calculabilidade nos precedentes deste do STJ, isto é, confiaram que seu pedido iria ser, mais cedo ou mais tarde, acolhido pela Corte e, em função disso, ajustaram suas condutas. A jurisprudência consolidada do STJ sobre o tema remontava, no mínimo, aos idos de 20081, tendo a Corte proferido, desde então, diversas decisões monocráticas e acórdãos no mesmo sentido ao longo dos últimos 15 anos: REsp 953.742/SC, Rel. José Delgado, 1ª T, acórdão de 12/2/2008; REsp 1.439.511/SC, Rel. Herman Benjamin, monocrática de 9/6/2014; AgInt no REsp 1.241.362/SC, Rel. Assusete Magalhães, 2ª T, acórdão de 1/3/2018; AgInt no REsp 1.570.980/SP, Rel. Napoleão Nunes Maia Filho, 1ª T, acórdão de 17/2/2020 ; AgInt no REsp 1.825.326/SC, Rel. Regina Helena Costa, 1ª T, acórdão de 3/8/2020; REsp 1.907.308/SC, Rel. Og Fernandes, monocrática de 11/12/2020; REsp 1.908.527/RS, Rel. Sérgio Kukina, monocrática de 3/2/2021; REsp 1.910.665/RS, Rel. Benedito Gonçalves, monocrática de 24/2/2021. Ora, o comportamento das empresas foi pautado na orientação consolidada do STJ, não na orientação controvertida das instâncias inferiores ou administrativas, não se conseguindo extrair das decisões dessas últimas prestígio suficiente a condicionar a modulação apenas para quem obteve pronunciamento favorável. Entre a indisciplina judicial de instâncias inferiores que negam legitimidade às decisões do STJ e o papel pacificador que constitui a própria razão de existir de uma Corte Superior, deve, esse caso, honrar este último, mormente se se trata de segurança jurídica. Cenário ainda mais grave se colocou na sessão do dia 13/12/2023, quando o ministro Mauro Campbell votou para negar qualquer tipo de modulação. Para o Ministro, o que havia no tema, em verdade, eram decisões monocráticas num dado sentido, não havendo que se falar em "jurisprudência consolidada". Acontece que, como se demonstrou, há acórdãos lavrados pelas duas Turmas da 1ª Seção se pronunciando sobre a matéria, conforme reconhecido no voto da Ministra Relatora. Ademais, a mera existência de decisões monocráticas num mesmo sentido reaviva a lógica de que havia, antes, uma posição colegiada capaz de autorizar ministros e ministras a tomarem essas decisões individualmente. Se antes, sob a égide do CPC de 1973, consolidou-se no STJ a compreensão de que "o relator está autorizado a decidir monocraticamente recurso fundado em jurisprudência dominante" (art. 557, caput e § 1º- A), atualmente, pelo CPC de 2015, o fortalecimento de decisões emanadas das Cortes Superiores, notadamente o STJ, é ainda mais intenso, a ponto do inciso II do art. 988 autorizar o ajuizamento de reclamação da parte interessada ou do Ministério Público para "garantir a autoridade das decisões do tribunal". Mudar de posição e fazê-lo sem a responsabilidade institucional de projetar no futuro os efeitos dessa mudança equivale a, materialmente, afastar a incidência de todo esse plexo legislativo dedicado à segurança jurídica e à proteção da confiança. Por essa razão, o mais justo no Tema 1079 do STJ é promover a modulação de efeitos nos moldes tradicionais da Corte e da processualística, sem restrições indevidas, tampouco sem a negativa de que houve, no caso, mudança de jurisprudência.       __________ 1 REsp 953.742/SC, Rel. Ministro José Delgado, Primeira Turma, julgado em 12/2/2008.
segunda-feira, 22 de janeiro de 2024

Problemas na deliberação assíncrona do STF

Deliberações relevantes no Plenário Virtual ("PV") do Supremo Tribunal Federal têm despertado o desejo de uma melhor compreensão quanto ao desenho institucional aplicado a esse tipo de julgamento, que é qualificado como "assíncrono", por haver, no seu curso (em regra, do início da sexta-feira até o final da sexta-feira seguinte), o lançamento de votos sem a obediência de qualquer ordem de votação e também sem que exista uma discussão coletiva e instantânea sobre cada voto. Antes de aprofundar o ponto exposto no parágrafo acima, vale saber que o elemento de assincronicidade do PV não tem causado qualquer espécie ao STF. Para o ministro Edson Fachin, "o julgamento em sessão assíncrona em nada afeta a discussão que os Ministros poderão tecer sobre o caso" (HC 230.015 AgR). O ministro Gilmar Mendes, por sua vez, anotou ser "dotada de suficiente publicidade e motivação os julgamentos realizados por meio eletrônico e votação assíncrona" (MS 37.695). O ministro Ricardo Lewandowski chegou a lembrar o "avanço recente de novas modalidades síncronas e assíncronas de prestação do serviço jurisdicional, que apresentaram incremento de eficiência, celeridade e digitalização do Poder Judiciário" (HC 220.357 AgR), enquanto para o ministro Cristiano Zanin "o destaque do julgamento de feito - da sessão assíncrona virtual para sessão presencial ou por videoconferência - constitui excepcionalidade aferível pelo Relator, especialmente à vista da controvérsia vertida nos autos, por não trazer prejuízo às partes, preservados os debates que os Ministros poderão fazer sobre o caso" (RHC 230.931). Para quem, contudo, advoga no STF, há, sim, questões em aberto. É que o PV não se submete a alguns dispositivos regimentais e essa excepcionalidade, se abusiva, pode se converter em insegurança para a advocacia, as partes e a prestação jurisdicional. O primeiro dispositivo regimental sublimado pelo PV é o art. 135, cujo caput diz que concluído o debate oral, o Presidente tomará os votos do Relator, do Revisor, se houver, e dos outros Ministros, "na ordem inversa de antiguidade". Essa fórmula pressupõe uma deliberação ordenada e síncrona, com todos os ministros e ministras presentes e atentos ao seu momento de votar. O § 1º do mesmo art. 135 determina que apenas com a autorização do Presidente "os Ministros poderão antecipar o voto". Esse comando também é inaplicável ao PV. Por fim, há o § 2º, pelo qual, encerrada a votação, o Presidente proclamará a decisão. No PV, isso é artificializado, pois a proclamação é automática, feita pelo sistema. Também o art. 136 do Regimento Interno é colocado de lado. Ele diz que "as questões preliminares serão julgadas antes do mérito, deste não se conhecendo se incompatível com a decisão daquelas". Já o § 1º dispõe que, sempre que, no curso do relatório, ou antes dele, algum dos Ministros suscitar preliminar, será ela, antes de julgada, discutida pelas partes, que poderão usar da palavra pelo prazo regimental. Se não acolhida a preliminar, prosseguir-se-á no julgamento. Por fim, o art. 137 diz que, rejeitada a preliminar, ou se com ela for compatível a apreciação do mérito, seguir-se-ão a discussão e julgamento da matéria principal, pronunciando-se sobre esta os juízes vencidos na preliminar. Acontece que muitas vezes os votos lançados no PV são diferentes não apenas quanto aos fundamentos, mas quanto ao próprio método de elaboração. Enquanto um ministro abre uma preliminar, outro aborda apenas o mérito, e lá ficam os dois votos sem qualquer sintonia, lançados no PV, e o pior, sem que haja, entre os ministros que em seguida inserirão seus votos, discussão primeiramente acerca da preliminar e, apenas depois, quanto ao mérito, como determina o Regimento Interno do STF. Também há votos que mesmo no mérito já contemplam, de ofício, modulação de efeitos, enquanto outros nada dizem a respeito. E lá vamos nós explicar essa disfuncionalidade em audiências, pedindo que cada ministro perceba que há um voto - às vezes, já dentre vários - se antecipando a um pedido de modulação. Ou, ainda, votos que, em sede de embargos, apontam marcos temporais diversos quanto ao ponto de partida da modulação (se da data da publicação da ata, se da data do julgamento, se da data da publicação do acórdão...), sem que seja possível, em razão da assincronicidade da deliberação no PV, haver uma primeira (ou última) deliberação quanto a esse ponto para que, ao final, sejam contados os votos de cada corrente e, então, um resultado seja proclamado.   Há ainda as hipóteses nas quais há correntes hermenêuticas com fundamentos tão distintos, e em tão grande quantidade, que é impossível haver a proclamação do resultado (por faltar seis votos para qualquer que seja a corrente), uma vez que não estão, os ministros e ministras, ao mesmo tempo, no mesmo local, dedicados a, juntos, equacionarem, sincronamente, aquele problema, às vezes migrando para um ou outro lado na decisão. A ordem, rito e solenidade de manifestações durante uma deliberação jurisdicional da Suprema Corte não é mera perfumaria. Há uma lógica embutida em toda essa cerimônia. Ela ajuda na construção dos precedentes, imprimindo lógica, sequência e sentido aos debates e raciocínios empregados naquele ato solene e de profundas consequências nas vidas ou interesses das partes. Basta lembrar que a proclamação do resultado é um dos elementos constitutivos do próprio julgamento. Segundo o art. 941 do Código de Processo Civil, "proferidos os votos, o presidente anunciará o resultado do julgamento, designando para redigir o acórdão o relator ou, se vencido este, o autor do primeiro voto vencedor". O § 2º do art. 135 do RISTF diz que, "encerrada a votação, o Presidente proclamará a decisão". Atualmente, passada a resistência, e a euforia, quanto ao PV, o bom senso e a prática começam a apontar problemas. Deliberando acerca da modulação de efeitos pleiteada em embargos de declaração na ADI 4411 ("taxa estadual de segurança pública"), verificou-se a impossibilidade de se alcançar um resultado, o que fez com que o caso fosse movido, pelo sistema (não por iniciativa dos ministros) para a deliberação presencial. O mesmo na ADC 49 (Rel. Min. Edson Fachin), que, em sede de embargos, também discutia modulação ("ICMS sobre as transferências de mercadorias entre estabelecimentos de mesmo titular"). A situação se repetiu nas ADIs 6654 (Rel. Min. Alexandre de Moraes), 6688 (Rel. Min. Gilmar Mendes) e 6683 (Rel. Min. Nunes Marques) que discutiam as regras para reeleições nas Assembleias de Roraima, Paraná e Amapá, respectivamente; e, ainda, na ADI 6609 (redação para acórdão do ministro Gilmar Mendes), que fixou que "a remoção sempre precederá à promoção por antiguidade ou merecimento". Nessas hipóteses, o sistema, não tendo conseguido identificar qual o resultado do julgamento, remete automaticamente o caso para o plenário presencial. Também tem acontecido de o presidente do STF, um ministro, ou ministra, ou até mesmo o próprio relator, fazer um "destaque" tentando salvar o esforço judicial empreendido até ali no PV. Pelo destaque, a deliberação no PV é interrompida e tudo retorna, do início (incluindo leitura de relatório e sustentação oral), presencialmente. O § 3º do art. 21-b do RISTF diz: "No caso de pedido de destaque feito por qualquer ministro, o relator encaminhará o processo ao órgão colegiado competente para julgamento presencial, com publicação de nova pauta". Essa iniciativa costuma ser tomada quando cada julgador seguiu, no plano hermenêutico, por si, sendo impossível proclamar um resultado. No RE 1.276.977, os embargos de declaração contra o juízo meritório no Tema 1102 ("Revisão da Vida Toda"1), em razão de múltiplas correntes formadas, reclamaram, do relator, ministro Alexandre de Moraes, um destaque. Não foi diferente no Tema 1205 (RE 1266.095)2, no qual, após múltiplas correntes interpretativas terem se verificado, o ministro Dias Toffoli, relator, destacou o feito. Às vezes, o próprio autor do destaque (sendo relator ou não) desiste da iniciativa e permite que o julgamento prossiga no PV. Assim o faz quando, após estudo da disputa, percebe que não há complexidade bastante a justificar o deslocamento de um plenário (virtual) para o outro (presencial).3 O caso segue no PV. Ou seja, o julgamento presencial, cuja votação se dá sincronamente, existe (e existia) sem o PV, mas o inverso não é verdadeiro. Não há PV sem que tenha, o STF, a oportunidade de, presencialmente, e ao mesmo tempo, prestar a jurisdição, muitas vezes conseguindo um tipo de deliberação impossível ao PV. Em resumo, jamais teremos (torço eu) uma Suprema Corte absolutamente sustentada no Plenário Virtual.   Essa simbiose entre a deliberação assíncrona e síncrona, no PV e presencialmente, termina criando, pela prática, um modelo decisório híbrido, formado pela deliberação assíncrona e virtual, mas que se dá apenas até o ponto em que não haja, pela própria natureza do modelo, complexidade bastante a impedir a proclamação automática do resultado, providência essa que reclama discussões presenciais (e síncronas) na Corte. Acontece que, quando se é feito um destaque, o rito se reinicia, agora presencialmente, com leitura do relatório e sustentações orais, mas, quando o sistema simplesmente não consegue proclamar o resultado no PV e, por essa razão, remete essa proclamação (e apenas ela), para o presencial, não há oportunidade da advocacia se fazer sentir, ficando, esse ato, circunscrito aos ministros e ministras. É mais uma disfuncionalidade. Para que o PV exista - e é fundamental que ele exista -, é necessário fazer de conta que não sabemos das múltiplas violações regimentais que esse tipo de votação enseja. Ocorre que essa prática de deslocamento de casos para o PV, ainda que apenas para a proclamação de resultados, mostra ter, o PV, natureza acessória, complementar à deliberação síncrona e presencial. Prova, ainda, ser, ele, falho. Também mostra que há, em sua essência, problemas estruturais que reduzem a qualidade do processo deliberativo (e não necessariamente dos fundamentos dos votos), pela falta de sincronicidade do debate do qual se forja a prestação jurisdicional colegiada. Por fim, demonstra ser da natureza das Supremas Cortes a oportunidade de, atentas às regras regimentais, se dedicarem à construção, pelo debate (com seus contrapontos, evoluções, retificações e ratificações), ordenadamente, à luz de um rito e atenta a solenidades, de uma solução jurídica para a questão levada ao seu alto encargo. Em conclusão, a deliberação no PV, embora essencial à prestação jurisdicional eficiente (e célere), não é imune a críticas, tampouco a aperfeiçoamentos, sendo necessário que a tecnologia cumpra o seu papel, motivada, também, pela ambição de permanente aprimoramento por parte dos ministros e ministras do STF, a quem assiste o grave dever de entregar ao país a melhor prestação jurisdicional que suas competências são capazes de propiciar. A deliberação no PV pode mais e nós queremos esse "mais".     __________  1 Tese: "O segurado que implementou as condições para o benefício previdenciário após a vigência da Lei 9.876/99, e antes da vigência das novas regras constitucionais, introduzidas pela EC 103/2019, tem o direito de optar pela regra definitiva, caso esta lhe seja mais favorável." 2 Tema 1205: "Exclusividade da propriedade industrial em razão da demora na concessão do registro de marca pelo INPI concomitante ao surgimento de uso mundialmente consagrado da mesma marca por concorrente." 3 Exemplo foi o destaque feito pelo ministro Alexandre de Moraes no ARE 1.222.655, mas que, em seguida, ensejou a desistência do destaque pelo próprio ministro, retomando, o caso, seu curso normal.
quarta-feira, 3 de janeiro de 2024

A Suprema Corte de Israel resiste

Se o grande desafio do constitucionalismo no século XX foi fundar Supremas Cortes - e elas foram fundadas em todo o mundo como nunca antes -, o século XXI entrega a essas instituições outra tarefa: a de resistir. Percorrendo esse caminho, a Suprema Corte de Israel acaba de vencer uma batalha, não estando vencida, ainda, a guerra contra ela patrocinada pelo primeiro-ministro Benjamin Netanyahu e seus aliados. Para se conhecer as circunstâncias que ensejaram o já célebre precedente divulgado essa semana, vale incursionar, antes, nos muitos aspectos históricos que forjam a original jurisdição constitucional israelense.    Em 14 de maio de 1948, poucas horas depois do fim do Mandato Britânico sobre a Palestina, David Ben-Gurion estabeleceu Israel, tornando-se o primeiro primeiro-ministro do país. Houve uma Declaração de Estabelecimento do Estado de Israel. Esta, há de ser lida em conjunto com a Resolução nº 181, da Assembleia Geral da ONU, de 29 de novembro de 1947, segundo a qual qualquer que fosse o caminho adotado pelo país ali fundado, ele jamais se daria sem a observância dos direitos fundamentais então estipulados e que nenhuma lei - incluindo a Constituição ou emendas constitucionais -, poderia entrar em conflito ou sequer interferir naqueles direitos, pois, caso isso ocorresse, os direitos fundamentais previstos na Resolução - "fundamental laws" -, prevaleceriam. A Declaração, por sua vez, foi promulgada pelo Conselho do Povo, o parlamento dos Yishuv, que atribuiu a si a designação de Conselho de Estado Provisório e escolheu 13 dos seus membros para servir como Administração Popular. A primeira eleição se deu em 25 de janeiro de 1949. Os cidadãos escolheram uma Assembleia Constituinte de 120 membros, responsável por elaborar a Constituição. Contudo, uma vez reunida, a Assembleia resolveu mudar seu nome e suas responsabilidades. Virou Knesset, o Parlamento, e não aprovou Constituição alguma. Um ano mais tarde, o Knesset promulgou a Resolução Hahari, que conferiu à Comissão de Constituição, Direito e Justiça do Knesset o dever de elaborar uma série de leis básicas as quais, juntas, formariam a Constituição. Acontece que essa compilação jamais aconteceu. Israel segue sem contar com um documento jurídico uno, sistematizado e aprovado de uma só vez, como costuma ocorrer com as Constituições escritas. O que existe são as chamadas leis básicas, muitas delas. Em 1992, o Knesset aprovou a Lei Básica Dignidade Humana e Liberdade.1 A sua Seção 2 diz: "Não deve haver violação da vida, corpo ou dignidade de qualquer pessoa como tal". Já a Seção 4 dispõe: "Todas as pessoas têm direito à proteção de sua vida, corpo e dignidade". Em 1995, a Suprema Corte - o "Beit Mishpat Elyon" - apreciou um caso que reclamava a aplicação da Lei Básica Dignidade Humana e Liberdade. Num julgamento emblemático (United Mizrahi Bank v. Migdal Cooperative Village), mesmo tendo sido, a referida Lei Básica, aprovada sem qualquer quórum especial, como costuma ocorrer com as emendas constitucionais, a Suprema Corte, pela liderança do seu presidente, Aharon Barak, a reconheceu como sendo materialmente constitucional e, deste modo, qualquer outra lei que a contrariasse deveria ser declarada inconstitucional. Segundo o julgamento, "a Lei Básica não meramente declara 'políticas' ou 'ideais' (cf. art. 20(1) da Lei Básica da Alemanha). A Lei Básica não meramente delineia 'um plano de operação' ou um 'propósito' para os órgãos do governo (cf. art. 27(2) da Constituição da África do Sul; art. 39 da Constituição da Índia). Ela não meramente oferta um conceito guarda-chuva para guiar a interpretação..., as Seções 2 e 4 da Lei Básica trazem um direito - o direito que garante a dignidade humana. Esse direito impõe aos órgãos do governo o dever de respeitá-los (s. 11)".2 A decisão correspondeu, para aquele país, a um Marbury v. Madison (1803). Ali nascia a jurisdição constitucional israelense. Nas palavras do então presidente Aharon Barak, foi uma "uma revolução constitucional".3 Em razão do reconhecimento da materialidade constitucional da Lei Básica Dignidade Humana e Liberdade, vários direitos implícitos passaram a ser assegurados: direitos da personalidade, a uma subsistência humana digna, à reputação, à vida familiar, à igualdade, à liberdade de expressão, à liberdade de consciência e religião, à liberdade de movimento, à educação, ao emprego e ao devido processo legal.4 Passando a exercitar, com desenvoltura, o controle de constitucionalidade de atos do poder público, a Suprema Corte também erigiu, em temas de Direito Administrativo, o chamado "padrão de razoabilidade", elemento exegético viabilizador da aferição, pela Corte, da constitucionalidade de nomeações feitas pelo governo para o alto escalão da burocracia israelense. Esses juízos avaliavam se as nomeações atendiam aos parâmetros mínimos exigidos por uma democracia constitucional comprometida com a coisa pública. Caso reputasse a nomeação "irrazoável ao extremo", a Suprema Corte a fulminaria. O caso "The Movement for Quality Government in Israel v. Attorney-General" (HCJ 7367/97)5, apreciado em 2003, ilustra bem. O Movimento por um Governo de Qualidade em Israel havia levado o então primeiro-ministro, Ariel Sharon, à Suprema Corte, em razão de uma escolha para o Ministério da Segurança Pública. Tzahi Hanebi havia sido o indicado. Em 1982, jovem, ele foi condenado por se envolver numa confusão na universidade. Posteriormente, já sendo uma figura pública, viu seu nome pululando em três investigações sem que tivesse sido condenado em nenhuma delas. O Movimento entendia que Hanebi não poderia servir ao Governo, pois apesar de não ter sido condenado, todos os rumores que seu nome minava a confiança pública no Ministério, gerando obstruções populares. Essas obstruções, somadas a toda a mídia que o indicado atraía e ao burburinho de que novas investigações poderiam surgir, atrapalhavam a continuidade do serviço público e pareciam limitar a capacidade do próprio Hanebi de executar legitimamente uma agenda ministerial. A Suprema Corte concluiu, todavia, não haver razão para impedir que Ariel Sharon empossasse Tzahi Hanebi no Ministério da Segurança Pública. Vetar a assunção ao posto sem que houvesse taxativa previsão a respeito ou, pelo menos, que o conjunto dos fatos indicasse evidências mais robustas, poderia se tornar um hábito caprichoso de juízes. O critério da razoabilidade, apesar de tensionado, havia sido cumprido. Esse padrão interpretativo voltou no caso "Israel Women's Network v. Minister of Labor & Social Affairs", (HCJ 2671/98).6  Nele, a Suprema Corte determinou que o governo garantisse representação razoavelmente suficiente para as mulheres nos conselhos de administração de empresas governamentais e outras instituições públicas. Em 2016, a Suprema Corte apreciou o caso "Movement for Quality Government in Israel v. Prime Minister" (HCJ 232/16), no qual se questionava a indicação do membro do Knesset, Aryeh Machlouf Deri, para o posto de Ministro do Interior. Deri havia sido condenado por corrupção na década de 1980. Sua indicação, contudo, foi mantida, entendendo-se que, apesar de problemática, ela não era "irrazoável ao extremo".7 A jurisprudência seguiu assim até que, em janeiro de 2023, a Suprema Corte se valeu uma vez mais desse critério hermenêutico para impedir o mesmo Aryeh Deri, julgado em 2016, de servir no gabinete do atual primeiro-ministro Benjamin Netanyahu.8 Deri havia sido condenado por suborno e fraude em 1999 e novamente por fraude fiscal em 2022. Chegou a cumprir pena na prisão. Ele então fez um acordo de delação premiada com o Procurador-Geral, posteriormente homologado pelo Judiciário. No acordo, Deri se comprometia a renunciar à sua vaga no Knesset, além de se afastar da vida pública. Graças à promessa, garantiu o acordo de confissão, encerrou seu julgamento criminal e assegurou que o Judiciário não decidiria sobre a questão de sua condenação ter ou não sido considerada como de torpeza moral, o que o inabilitaria para a vida pública por um período de sete anos. A Suprema Corte destacou que o indicado havia feito uma promessa perante o Judiciário que terminou ensejando o perdão de penas criminais. A indicação era, portanto, "irrazoável ao extremo". A Corte barrou a nomeação e o primeiro-ministro Benjamin Netanyahu teve de se livrar de Deri de uma vez por todas. Mas o backlash veio quase imediatamente. Em julho de 2023, foi aprovada uma "Lei Básica", ou seja, uma emenda constitucional, impedindo o uso do padrão da razoabilidade para fundamentar a nulidade de nomeações do Poder Executivo. Segundo a emenda, o Poder Judiciário não poderia mais aferir a razoabilidade das decisões do governo, uma vez que razoabilidade seria um conceito vago, jamais positivado no direito israelense, e que havia ganhado, dos juízes, uma aplicação subjetiva.   A questão foi levada à Suprema Corte que, pela primeira vez, teria de definir se uma Lei Básica - formal e materialmente equivalente a uma emenda constitucional - poderia ser reputada, pela própria Suprema Corte, como sendo inconstitucional. Esse exercício hermenêutico jamais havia sido empregado pelos juízes e juízas da Corte.  Essa semana, por 12 x 3, a Suprema Corte reconheceu a sua competência para aferir a constitucionalidade de uma emenda constitucional. Em seguida, por 8 x 7, declarou a inconstitucionalidade da referida lei básica. Segundo o julgamento, o governo, ao aprovar a emenda, "revogou completamente a possibilidade de realizar a revisão judicial da razoabilidade das decisões tomadas pelo governo, pelo primeiro-ministro e pelos ministros", causando, assim, "danos graves e sem precedentes às características centrais de Israel como um estado democrático."9 Há muitos elementos que, de tão raros, tornam esse precedente histórico. Primeiramente, a Suprema Corte de Israel, mesmo na análise da constitucionalidade de leis, não se reúne en banc, ou seja, com toda a sua composição. A Corte é dividida em turmas, com três ministros cada, e é possível haver uma declaração de inconstitucionalidade pela chamada Hight Court of Justice ("Bagatz"), que é a composição estendida, sem que o caso seja necessariamente apreciado pelos quinze ministros que formam o total do Tribunal. Mesmo em casos emblemáticos, basta cinco ministros e o quórum para o judicial review terá sido alcançado. No caso apreciado essa semana, contudo, a Suprema Corte deliberou en banc, com todos os seus quinze integrantes. Foi a primeira vez que algo assim ocorreu. Outro elemento histórico é que duas juízas que tiveram seus mandatos expirados em outubro do ano passado, - Esther Hayut, presidente da Suprema Corte, e Anat Baron - não participariam da decisão se ela tivesse sido proferida após meados de janeiro. Elas terminaram tendo o direito de participar do julgamento pelo fato de haver, em Israel, uma lei que estende por um período de três meses, após a aposentadoria na magistratura, a oportunidade de concluir julgamentos. Foi o que foi feito. Sem as duas juízas, tudo leva a crer que a lei teria sido mantida talvez por um apertado placar de 7 x 6. A construção desse precedente chegou a considerar um apelo ao legislador, requerendo-se ao Knesset que reformulasse o texto de modo a não banir o uso da razoabilidade, estabelecendo, apenas, alguns requisitos para a sua adoção. Também se veiculou, num dos votos, a intenção de promover uma interpretação conforme de modo a restringir o escopo da emenda constitucional, mantendo-a no ordenamento jurídico, mas com um significado restrito. Essa foi a linha seguida por três dos juízes vencidos, tendo prevalecido, contudo, a declaração pura de simples de inconstitucionalidade da emenda. Em 2023, dezenas de milhares de pessoas protestaram pelas ruas de Tel Aviv contra a proposta de Reforma Judicial que, além de proibir a Suprema Corte de anular nomeações do Poder Executivo "irrazoáveis ao extremo", também retirava o seu poder de dar a última palavra em temas jurídicos, entregando-o ao Knesset. O tempo mostrou que essa luta não foi perdida. Na trajetória da jurisdição constitucional em todo o mundo, primeiro as Supremas Cortes foram criadas. Posteriormente, elas floresceram. Agora, muitas delas precisam resistir. A de Israel vem resistindo.   Adotar posturas que possam conferir resiliência à jurisdição constitucional em tempos de crise não significa abdicar da sua função de guardiã de direitos fundamentais, especialmente aqueles pertencentes às futuras gerações. Dentre as muitas estratégias adotadas por uma Corte em perigo, agir com independência e bravura é uma delas. Ninguém poderia imaginar que num país sem uma Constituição nasceria um exuberante campo de estudo sobre a jurisdição constitucional. Em Israel isso aconteceu. __________ 1 Também foi aprovada a Lei Básica da Liberdade Profissional. 2 CA 6821/93. A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui. 3 Barak, Aharon. A Constitutional Revolution: Israel's Basic Laws, pp. 83/84. Forum Constitutionnel. HeinOnline -- 4 Const. F. 84 1992-1993. Disponível aqui. 4 São muitos os precedentes que reconheceram direitos implícitos na cláusula geral da dignidade humana: HCJ 366/03 Commitment to Peace and Social Justice v. Minister of Finance, IsrLR 335, 347 (Barak J) (2005). CA 294/91, Jerusalem, Chevra Kadisha v. Kestenbaum, IsrSC 46(2) 464, 524 (1992). HCJ 6427/02 The Movement for Quality Government in Israel v. Knesset, IsrSC 61(1) 619, 681 (2006). 5 HCJ 3094/93. A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui. 6 HCJ 2671/98. A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui. 7 A íntegra do acórdão, em inglês, está disponível aqui. 8 Análise de Jeremy Sharon, em Deri v. High Court: What did he actually pledge in his 2022 plea bargain?, publicado em 24/01/2023 9 Isabel Kershner, Aaron Boxerman e Thomas Fuller. Israel's Top Court Strikes Down Move to Curb Its Powers. Disponível aqui.
segunda-feira, 26 de junho de 2023

Presidente, não se esqueça de mim

Senhor Presidente da República, Vossa Excelência tomou posse prestando o compromisso de manter os meus postulados, de me defender e de cumprir o que eu prometo. Não se esqueça disso, não se esqueça de mim. Também os ministros e ministras do Supremo Tribunal Federal prestaram o compromisso de bem cumprirem os deveres do cargo, de conformidade comigo e com as leis da República. Eu existo, eu importo, eu conheço esse país. No meu Preâmbulo, coloquei a igualdade ao lado da justiça. Fiz de propósito.  Dispus que um dos objetivos fundamentais da República é promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo ou cor. Também mandei criar incentivos específicos para proteger o mercado de trabalho da mulher e determinei a criação e a manutenção de programas de promoção e difusão da participação pública das mulheres. Presidente, eu ordenei a valorização da diversidade étnica, proibi diferença de critério de admissão por motivo de sexo e de cor e afirmei que homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações. Fiz isso, porque eu, além de ser mulher, tenho cor. Eu sou o resultado legítimo da maioria desse país. Vossa Excelência deve imaginar qual é a minha cor. Conhecendo o Brasil como conheço, tive o cuidado de determinar que se repudiasse o racismo. Ordenei que fôssemos uma sociedade sem preconceitos. Eu imortalizei as reminiscências históricas dos antigos quilombos e de suas comunidades, determinei que o Estado proteja as manifestações das culturas afro-brasileiras e que preserve a memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.  Mesmo antes de eventos históricos decisivos como a Independência dos Estados Unidos ou a Revolução Francesa, eu, naquela outra vida que tive, já perseverava pelo ideal de justiça no Brasil. Naquele tempo, o meu atual nome, Constituição, era escrito de outro modo. Eu me chamava Esperança. Numa fazenda no interior do Piauí, em 1770, pedi respeito aos direitos prescritos em leis feitas pelos homens do poder. A mulher negra, nordestina, escravizada, que conhece a injustiça, estava lá. Aprisionaram-me e amordaçaram-me. Mesmo o mundo sendo tão duro comigo, segui acreditando na justiça. Vossa Excelência sabe o que é isso? Sei que sabe. Pois é, Presidente, nós conhecemos essa dor. Mas hoje, mais de 250 anos depois da petição que redigi quando eu ainda me chamava Esperança e vivia no Piauí, nunca houve alguém como eu integrando a mais elevada das Casas de Justiça desse país. A leitura e a interpretação que lá fazem de mim jamais foram feitas por uma irmã, por uma mulher como eu, da minha cor. Como pode? Os homens costumam nos associar às rosas. Como elas, somos lembradas, elogiadas, homenageadas, falam da nossa beleza, do nosso perfume..., mas, acredite, Presidente, não somos enfeite, não viemos ao mundo para decorar mesas, para adornar convescotes, para sermos dadas de presente, embrulhadas em pacotes. A nossa história é feita de bravura, queremos igualdade, justiça e por que não ternura?    E por falar em rosas, soube que em outubro uma delas cumprirá o seu extraordinário destino no Supremo Tribunal Federal. Quando uma rosa se vai, o vazio se impõe. Apenas outra é capaz de preencher aquele lugar. Somos tantas, e tão diversas, que não precisamos ter a mesma forma, sequer a mesma cor. Uma rosa pode vir de Porto Alegre; a outra, de Salvador. Mas uma coisa é fato: só se substitui uma rosa por outra, isso é o mínimo.   Senhor Presidente, Vossa Excelência prometeu manter os meus postulados, me defender e cumprir o que eu prometo. Não se esqueça disso, não se esqueça de mim.
segunda-feira, 13 de fevereiro de 2023

Os contribuintes no constitucionalismo

Só há constitucionalismo hoje, porque houve contribuintes corajosos ontem. Com João Sem Terra, vieram dos contribuintes as exigências contempladas pela Carta Magna de 1215, como a anterioridade tributária. Séculos depois, os que foram buscar a felicidade no Novo Mundo exigiram participar das decisões que impunham novos tributos. "No taxation without representation", demandaram. Desprezados pela indiferença do poder, arremessaram o objeto de uma pesada taxação, a produção de chá, ao mar. O ato - Festival do Chá de Boston - precipitou a Declaração de Independência dos Estados Unidos e, então, a Coroa Britânica se viu forçada a nunca mais impor seus caprichos àquela terra da liberdade. Não foi só. Na França, a Bastilha caiu quando pessoas empobrecidas por um sistema tributário arcaico não conseguiam mais comprar pão, enquanto os ricos comiam, bebiam e dançavam em Versalhes. Quando a Declaração de Direitos do Homem e do Cidadão nasceu, o princípio da capacidade contributiva estava lá. No Brasil-Colônia, a violência portuguesa se intensificou com o Quinto, seguida da Derrama, culminando na Inconfidência Mineira, que, mesmo barbaramente sufocada, deu espaço para a Independência e para a nossa primeira Constituição, a de 1824. Apesar dos avanços normativos atuais, hoje consome-se cerca de 33% do PIB em tributos, sendo necessário quase duas mil horas por ano para que se consiga pagá-los. E as violações seguem. Recentemente, o Supremo Tribunal Federal descobriu que quando uma criança, num lar modesto, acendia a luz para fazer a lição de casa antes de dormir, sobre esse consumo os governadores cobravam a mesma alíquota de ICMS que exigiam do rico ao adquirir um Iate. Faziam isso enquanto a Constituição determinava o contrário. O jeito foi a Suprema Corte derrubar tamanha violência constitucional. A verdade é que quem, produzindo, vindica justiça tributária, o faz também evitando passar para o preço a conta dos abusos estatais. Pensam mais no povo do que as autoridades. Há 10 anos, por exemplo, repassou-se 20 centavos para o preço da passagem de ônibus. Foi o bastante para explodir o país. Será que o Estado não aprendeu nada? Quem se vê obrigado a pagar impostos indevidamente não quer mais ouvir que a solução é ler "o dever fundamental de pagar impostos". Estado Fiscal é, antes de tudo, aquele que assegura aos contribuintes o seu lugar, que foi conquistado e imortalizado pelo constitucionalismo. Não pode haver - e não haverá - retrocessos nessa conquista.  
segunda-feira, 6 de fevereiro de 2023

As rosas são eternas

Elas encantaram o grande William Shakespeare, que lembrou a Romeu do seu perfume; fizeram Umberto Eco com o seu nome batizar sua obra mais conhecida; e cobriram de sensibilidade as reflexões do Pequeno Príncipe, pensadas por Antoine de Saint-Exupéry. Quando Louis Armstrong sentiu a mão de Deus inspirá-lo a escrever o milagre "Que mundo maravilhoso" (What a Wonderful World), lá estavam as árvores verdes, os céus azuis, as nuvens brancas, os brilhantes dias abençoados, as escuras noites sagradas e todas as cores do arco-íris. Mas que mundo maravilhoso seria esse, sem elas? Corrigindo a grave falha, Armstrong tratou de complementar o verso: "red roses too".      Não parece ser apenas a beleza ou o perfume da planta, tampouco a sonoridade do nome, muito menos sua mera cor ou forma, há algo maior, uma coisa de força e mistério que anima, no espírito humano, tamanho carinho pelas rosas. Quando uma mulher, judia, feminista, filósofa e amante da luta política nasceu na Polônia, em 1871, os astros se alinharam para que a ela fosse dado esse nome: Rosa. Nos Estados Unidos, em 1955, o desmantelamento da odiosa segregação racial ganhou impulso com um gesto simples, mas poderoso, vindo de uma trabalhadora negra do Alabama que não aceitou mais ceder seu assento no ônibus sempre que um branco aparecia. O seu nome? Rosa. Elas são assim, navegantes do tempo, enviadas a muitos lugares, apresentadas sob corpos distintos, alimentadas pelas mesmas causas. Elas se espalham com a ajuda do vento da primavera, semeando os campos nos quais, cumprindo os seus destinos, costumam florescer. E não apenas os campos se completam com as rosas, como também as instituições. Na Coreia do Sul, o emblema oficial da Corte Constitucional é a Rosa de Saron, símbolo nacional presente no hino do país e designador da eternidade. No Brasil, para a nossa sorte, também há rosas entre nós e elas são muitas. Dia 8 de janeiro de 2023, o prédio do Supremo Tribunal Federal foi destruído pelo terror. Dias depois, diante dos governadores, de ministros de Estado e do presidente da República, a presidente da Suprema Corte prometeu que dia 1º de fevereiro o Tribunal abriria o Ano Judiciário. Ao final do encontro, todas as autoridades saíram juntas, de braços dados, como caules entremeados, caminhando pela Praça dos Três Poderes, do Palácio do Planalto até a sede do Supremo. O trajeto fez lembrar a Passagem do Knesset, em Jerusalém, percurso que liga a Suprema Corte de Israel ao Parlamento, cruzando o lindo bosque chamado Jardim das Rosas.   A promessa foi cumprida. Dia 1º de fevereiro, o Ano Judiciário foi aberto. Presidindo a sessão, estava ela: Rosa. Nesse que é o seu último ano no STF, o gesto dignifica todas as mulheres que vieram antes e deixa espalhados por um solo fértil botões de inspiração que serão colhidos pelas muitas outras que estão por vir, imortalizando uma mensagem absolutamente necessária, que diz: sejam corajosas! Os portugueses, em 1974, derrotaram o fascismo colocando cravos em fuzis. Em 2023, para colocar o terror em seu devido lugar pelo o que fizeram contra o STF, não dispúnhamos de cravos, mas tínhamos Rosa. Por seu intermédio, dissemos: no jardim da nossa democracia, o fascismo não se cria. Tendo vencido o terror, e apesar de ter sido inteiramente restaurada, a sede do Supremo deixou à vista de todos, para que se preserve a memória dos episódios, alguns machucados gravados em sua alma institucional. Rui Barbosa teve seu rosto ferido, e, mesmo marcado, seguirá lá. O espelho que compunha o Salão Nobre foi destruído e seus estilhaços serão exibidos para sempre. É possível ver as fotos da Galeria de Presidentes que foram arrancadas e rasgadas. Um exemplar queimado da Constituição de 1988 integra a memória dessa tragédia. O STF agora se parece mais com o povo brasileiro: tem marcas em sua pele, cicatrizes em seu corpo, traumas a serem tratados, feridas a serem curadas, mas, apesar de todos os golpes, está de pé, pronto para seguir adiante, sem desistir. Em seu discurso na abertura do Ano Judiciário, perante as mais altas autoridades do país, a presidente do Supremo Tribunal Federal falou de "tempos verdadeiramente perturbadores de maniqueísmos e deformações". Citou, na fala, Carlos Drummond de Andrade. Foi uma feliz lembrança. A mais madura obra do poeta, publicada em 1945, foi dedicada precisamente ao combate a maniqueísmos e deformações. A ela Drummond deu um belo nome: "A Rosa do Povo". Como têm sido fortes, essas rosas. Cartola disse que "as rosas não falam". Falam pouco, é verdade, mas fazem muito, e seus feitos têm, mesmo nas mais graves circunstâncias de uma história repleta de armadilhas, marcado permanentemente tudo por onde elas passam. As rosas são eternas.
Em Israel, o povo teve, após o fim da Segunda Guerra Mundial, a sua primeira eleição, em 1949. Escolheram uma Assembleia Constituinte de 120 membros. Nasceu o Knesset, o Parlamento israelense. Em seguida, foi aprovada a Resolução Hahari, conferindo à Comissão de Constituição do Knesset o dever de elaborar leis básicas que, juntas, formariam a Constituição do país. Essa compilação, todavia, jamais aconteceu. Em 1992, o Knesset aprovou a "Lei Básica: Dignidade Humana e Liberdade", um marco para as liberdades civis no país. O tempo passou até que, em 1995, julgando o caso "Banco Mizrahi v. Ministro das Finanças", a Suprema Corte - ou "Beit Mishpat Elyon" - entendeu que mesmo tendo sido, a referida Lei, aprovada sem um quórum especial, ela era materialmente constitucional, ou seja, equiparava-se a uma Constituição. A partir dali, a Suprema Corte passou a derrubar leis ou atos normativos que, contrariamente ao que estava estipulado na Lei, enfraquecessem direitos das minorias ou incrementassem, abusivamente, o poder do Estado em desfavor dos particulares. Nasceu, assim, a jurisdição constitucional de Israel. A decisão - um verdadeiro Marbury v. Madson israelense - foi chamada, pelo então presidente da Suprema Corte, Aharon Barak, de "Revolução Constitucional". Agora, o Primeiro-Ministro do país tenta, ao lado de aliados extremistas, emplacar uma Reforma do Poder Judiciário que sepulte a independência da Suprema Corte, submetendo suas decisões - especialmente as mais incômodas ao poder - ao Poder Legislativo, que passaria a ter a última palavra, ainda que se trate de uma deliberação judicial emanada da Suprema Corte do país, ou seja, tomada por juízes e juízas. Há poucos dias, quase 90 mil pessoas, debaixo de uma forte chuva, foram às ruas de Tel Aviv lutar pela democracia constitucional israelense. Diante dos adversários da jurisdição constitucional, eles resistem.
segunda-feira, 23 de janeiro de 2023

O televisionamento das sessões do STF

O ponto mais recente da longa história contemporânea se fez pela televisão. Da ida à Lua, ao debate entre os candidatos a presidência dos Estados Unidos, John Kennedy e Richard Nixon, passando pela queda do Muro de Berlin..., a televisão não criou os fatos, mas os imortalizou, equiparando-se a eles em força e significado. Não demoraria nada para essa realidade alcançar o aparato da Justiça. A ligação da televisão com as aspirações humanas por justiça nada tem de espetáculo, muito pelo contrário. Quando Israel buscou reparações pelas feridas abertas no diabólico Holocausto, dentre as muitas iniciativas, talvez a mais simbólica tenha sido a transmissão ao vivo do julgamento de Adolf Eichmann, oportunidade na qual, pela primeira vez, as vítimas puderam confrontar perpetradores e, diante de todos, expressar suas dores e vindicar justiça. Até então, suas memórias eram silenciadas pela desconfiança coletiva daqueles que não haviam passado por tamanho horror.   Também na África do Sul veio do televisionamento os encontros históricos reafirmadores da busca permanente pela emancipação humana dos grilhões de um passado aprisionador. Parte do pós-apartheid se deve precisamente à transmissão das sessões da Comissão de Verdade e Reconciliação, conduzida pelo Nobel da Paz, o arcebispo Desmond Tutu. A televisão permitiu que todos vissem e ouvissem os relatos do terror ao qual os sul-africanos negros foram submetidos. O televisionamento das sessões da Comissão foi o espelho por meio do qual a nação pôde conhecer suas dores mais profundas e, valendo-se da Justiça, tratá-las. No Brasil, temos hoje mais de 70 anos de experiência com transmissões televisivas comerciais. Há 20, o Supremo Tribunal Federal decidiu, na contramão dos Estados Constitucionais mundo afora, abraçar esse ritual e, convertendo-o num convite à cidadania constitucional, transmitir suas sessões plenárias. Não foi fácil. Quem conhece Brasília sabe que a luz do sol não é elemento reinante nas decisões do poder. Mas o STF fez. Hoje, não só a Suprema Corte, mas quase todos os tribunais brasileiros criaram suas formas de transmissão. Em muitas jurisdições estrangeiras, apesar de não haver uma TV Justiça, basta que a imprensa peça e a transmissão pode ser autorizada. Até a discreta Suprema Corte dos Estados Unidos hoje transmite seus "hearings" ao vivo, por áudio. No Brasil, a grita contra essa política institucional do STF costuma ser coberta por exageros. Em 2022, a Corte proferiu 87.983 decisões. No Plenário - órgão máximo que dá assento aos 11 ministros e ministras -, foram julgados apenas 56 casos. Ou seja, o televisionamento do Plenário alcançou, ano passado, 0,006% do todo. Muito pouco. Mesmo assim, esse despertar por uma nova dimensão da cidadania constitucional inspirou. O STF abraçou um sincretismo que traz o "judicial review" dos Estados Unidos, o controle concentrado europeu-continental, as audiências públicas argentinas, o estado de coisas inconstitucional colombiano, o engajamento significativo sul-africano, o apelo ao legislador alemão, a cláusula do não obstante canadense..., mas, quanto à transmissão das sessões, não. Longe de ser mais uma combinação estrangeira, trata-se de uma invenção nossa, genuinamente brasileira, que foi entregue à população para ser usada em proveito da construção de uma arena pública ciente dos seus direitos e conhecedora das missões da Suprema Corte. É uma medida inovadora que traz consigo um permanente convite à conscientização.
terça-feira, 17 de janeiro de 2023

A Corte da resistência

A composição atual do STF - com seus 11 integrantes - encontrou forças para resistir ao terror que lhe foi imposto dia 8 de janeiro de 2023. Imperfeita, pois humana, mas munida de grande patriotismo constitucional, ela se prepara para refundar, dia 1º de fevereiro de 2023, a nossa Suprema Corte. Se, em 1891 a Corte nasceu, no presente ano ela tem uma nova missão histórica: renascer. Imbuído desse propósito, o Supremo Tribunal Federal divulgou, em seu site, uma foto que jamais será esquecida. Nela, ao redor de uma mesa redonda, sem cabeceiras, seus juízes e juízas, em posição de igualdade, tomaram seus assentos despidos das togas, já que pelas circunstâncias foram transformados em mestres e mestras de obra. Eles têm por missão, ao lado de todos os colegas, nos devolver, intacto, um Tribunal que nos pertence, onde encontramos a última possibilidade de, sob as colunas do Direito e da Justiça - com suas linhas retas e curvas -, pedirmos respeito à Constituição. Nas estantes da sala retratada na foto, não há armas, mas livros, que falam sobre liberdade, sobre igualdade, sobre fraternidade, sobre dignidade e sobre democracia. Nas paredes, não há alusões à violência, mas arte, história e fé, elementos que animam os anjos bons da nossa natureza. Em meio a Rochas e Rosas, há Alexandres, Gilmares, Enriques, Josés e Luíses., todos. A sala exibe, ao fundo, a Bíblia, orientadora do espírito humano, mas que fica num espaço individual, de intimidade, pois sobre a mesa, à disposição de todos, sendo o instrumento de trabalho justificador de decisões públicas, o livro é outro: a Constituição. A foto mostra ainda que a ternura não foi derrotada: as flores do campo seguem sobre a estante, num vaso. Os juízes e juízas do STF sabiam que, ao tomarem posse como guardiões da Constituição, pagariam um preço, mas talvez não soubessem que seria tão alto. Foram covardemente hostilizados, à luz do dia, durante quatro anos. Foram submetidos, por pessoas do poder, a discursos de ódio diante de multidões, nas ruas e nas redes, que fizeram com que passassem a ser encurralados, perseguidos, cercados e ameaçados. Dia 8 de janeiro de 2023, seu lugar de trabalho, um Palácio da Justiça, foi deixado em ruínas. Mesmo assim, eles não fugiram, eles resistiram e, por isso, deixam para as presentes e futuras gerações o maior de todos os legados: o exemplo. Mostram que, sempre que a Constituição e a democracia forem atacadas pelo terror, não há outro caminho que não seja o da resistência.
A jurisdição constitucional nasceu para a resistência. Nos Estados Unidos, quando o presidente Thomas Jefferson disse não cumprir uma eventual determinação judicial obrigando-o a dar posse a um juiz indicado por seu antecessor e oponente, John Adams, a Suprema Corte, em Marbury v. Madson, 1803, reconheceu-se competente para declarar leis inconstitucionais, num pioneiro exercício de legítima defesa institucional. A Alemanha, por sua vez, fundou sua Corte atual para ajudar na limpeza das ruínas materiais e imateriais deixadas pelo nazismo. Nasceu para resistir. Na África do Sul, o então presidente Nelson Mandela criou a Corte Constitucional cuja missão é resistir a qualquer ensaio supremacista ou revanchista semelhante aos que forjaram o apartheid. O Estado Constitucional brasileiro, todavia, não havia mostrado, ainda, talento para a resistência. Getúlio Vargas e um grupo de militares, por exemplo, empacotaram a Corte. Mais tarde, ministros como Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes foram cassados pela Ditadura Militar. O então presidente da Corte, Gonçalves de Oliveira, e seu sucessor, Antônio Carlos Lafayette de Andrada, saíram do Tribunal, em protesto. Dizem que Adauto Lúcio Cardoso chegou a arremessar sua toga sobre a bancada e foi para casa para nunca mais voltar. A verdade é que assistimos, desde 1500, o colonizador triunfar sobre o povo originário colonizado; o escravocrata sobre o escravizado; a ditadura sobre a democracia e a desigualdade sobre a igualdade. Há também o tempero permanente do golpismo. "O Senhor Getúlio não deve ser candidato, se for candidato não deve ser eleito, se for eleito, não deve tomar posse, se tomar posse não pode governar", disse Carlos Lacerda, imortalizando, em 1950, o nosso espírito institucional golpista. Somos feitos também disso, da violência, da pilhagem e de golpes de Estado. Não sem razão nos últimos quatro anos, alguns militares e parte da sociedade civil, liderados por um capitão eleito presidente, tramaram tudo: Intervenção Militar, art. 142 da Constituição, Exército como Poder Moderador, fechamento do STF, ameaças de não cumprimento de decisões judiciais, pedidos de impeachment de ministros, balas contra agentes da Polícia Federal em resistência à prisão, negação formal do resultado das eleições, fogo em carros e em ônibus em Brasília, atentados à bomba., tudo à luz do dia. Acontece que, dessa vez, ministros como Edson Fachin, Luís Roberto Barroso e Alexandre de Moraes - os mais atacados - não partiram. Eles ficaram, vestiram suas togas e se juntaram às Rochas, às Rosas e aos demais juízes constitucionais. Quando a Suprema Corte dos Estados Unidos, para sobreviver, em 1937, reverteu sua posição então contrária ao New Deal do poderoso presidente Franklin Delano Roosevelt, ela abriu caminho para a vindicação futura por direitos. Perdeu naquele momento, mas para ganhar no dia seguinte. Nasceu, uma década e meia depois (1953/1969), a Corte de Warren, desmantelando a segregação racial e fazendo muito pela independência judicial e pelos direitos fundamentais. No Brasil, o STF, tendo reconstruído interpretativamente a sua competência para erguer mecanismos de legítima defesa institucional, mostrou ao mundo que o que ocorreu em países como Venezuela, Guatemala, Polônia e Hungria - cujos governos acabaram com a independência judicial -, é um acidente, não um destino. É possível resistir e o Supremo resistiu. Sem dúvida, o Estado Constitucional brasileiro foi o grande vitorioso de 2022.
terça-feira, 9 de agosto de 2022

O direito à paz na Constituição

A Constituição se abre pelo seu Preâmbulo, que apresenta a nossa sociedade como sendo fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias. O primeiro comando que replica e detalha esse ethos preambular é o art. 4º, que disciplina os princípios regedores da República nas suas relações internacionais. Colonizamos países? Não, pois a Constituição manda que defendamos a "independência nacional". E quanto a matar pessoas em seus países ou desrespeitar os seus direitos? Um outro princípio imposto pela Constituição é o da "prevalência dos direitos humanos". Não subjugamos os povos, pois estamos constitucionalmente vinculados à sua autodeterminação; não intervimos em nações soberanas, pois um dos princípios que nos regem é o da "não-intervenção"; não nos sentimos superiores, pois sabemos que, segundo o inciso V do art. 4º, devemos respeitar a "igualdade entre os Estados". E quanto às guerras? A Constituição manda que façamos a "defesa da paz" (art. 4º, VI). Ela não apenas dispõe sobre a "solução pacífica dos conflitos", mas determina que repudiemos o terrorismo. O inciso do art. 4º determina que perseveremos pela "cooperação entre os povos para o progresso da humanidade" (inciso IV), concedendo, inclusive, "asilo político" a quem dele necessitar (inciso V). Além da paz externa, a Constituição de 1988 reconhece o direito à paz doméstica. Essa conclusão não é retórica, mas, como se observa, absolutamente decorrente da positivação constitucional, que estabelece como sendo um dos objetivos fundamentais da República o de promover "o bem de todos" (art. 3º, IV). Acontece que essa paz na ordem interna se realiza, por exemplo, por intermédio da segurança. O primeiro e mais central elemento conformador dessa segurança é a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III), um dos fundamentos da República e ponto de partida e de chegada de toda a hermenêutica constitucional contemporânea. Assumida a premissa de que a segurança precisa ser buscada nos termos da Constituição e em respeito, especialmente, à dignidade da pessoa humana, é válida a lembrança de que o Preâmbulo diz estarmos destinados a assegurar o exercício dessa mesma segurança. O caput do art. 5º, voltado para os direitos e garantias individuais e coletivos, garante aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à segurança. O art. 6º, caput, veiculador dos direitos sociais, apresenta como um desses direitos exatamente o direito à segurança.  Mas para que haja verdadeira segurança é preciso haver a realização de outros direitos, como, por exemplo, a erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (art. 3º, III). Há uma correlação intrínseca entre esses elementos e os tensionamentos à segurança pública, por isso o país precisa adotar uma visão holística da questão, não depositando todas as suas fichas em termos de políticas públicas na repressão policial, sob pena de fracassar em seu propósito.  Feito esse registro, vale a lembrança de que o art. 144 da Constituição oferece algumas das instituições estatais por meio das quais essa paz interna pode ser alcançada. Diz o comando que a segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida para a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio, através dos seguintes órgãos: I - polícia federal; II - polícia rodoviária federal; III - polícia ferroviária federal; IV - polícias civis; V - polícias militares e corpos de bombeiros militares. VI - polícias penais federal, estaduais e distrital. Segundo o § 8º do mesmo dispositivo, os Municípios poderão constituir guardas municipais destinadas à proteção de seus bens, serviços e instalações, conforme dispuser a lei. Paz interna é, portanto, gozar de segurança, sabendo que esta não é um fim em si mesmo, mas uma forma de estabilizar a comunidade e permitir que ela goze de outros direitos. Essa segurança há de ser buscada por meio das instituições estatais previstas na Constituição, nos limites dessa mesma Constituição, e sempre em respeito à dignidade da pessoa humana, elemento catalizador de toda a nossa ordem constitucional. A falta de paz interna compromete o Estado Constitucional. Segundo o inciso XV do art. 5º, "no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano". O inciso III do art. 34 dispõe que a União não intervirá nos Estados nem no Distrito Federal, exceto para "pôr termo a grave comprometimento da ordem pública". Se é inegável a liderança do presidente da República na condução da paz externa, ou da paz na ordem internacional, não menos evidente é o papel central a ele outorgado pela Constituição em favor da paz interna, ou seja, da paz na ordem doméstica.    Essa compreensão encontra o seu pináculo no inciso IV do art. 85, ao se estipular, como sendo um dos crimes de responsabilidade, os atos do Presidente da República que atentem contra a Constituição e, especialmente, contra "a segurança interna do país". O art. 136 assevera que o Presidente pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou prontamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional. Há outros direitos, contudo, de exercício coletivo, que ora reclamam respeito aos "tempos de paz", ora impõem absoluto distanciamento de qualquer associação paramilitar, ora condicionam tal exercício à ausência de armas ou a propósitos de paz. A liberdade de associação, por exemplo, somente é plena quando tenha fins lícitos, sendo vedada "a de caráter paramilitar" (inciso XVII do art. 5º). O art. 17, § 4º veda a utilização, pelos partidos políticos, de organização paramilitar. Mesmo o direito de reunião apenas é assegurado se sua finalidade for pacífica e se as pessoas que dele fazem parte estiverem sem armas. Eis o inciso XVI do art. 5º: "todos podem reunir-se pacificamente, sem armas, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que não frustrem outra reunião anteriormente convocada para o mesmo local, sendo apenas exigido prévio aviso à autoridade competente". A reunião precisa ser pacífica e os participantes necessitam estar sem armas.    Há mais. Quando é livre, para qualquer um, a locomoção no território, de modo a que nele todos possam entrar, permanecer ou dele sair com seus bens? Tão fundamental liberdade - a de ir, vir e permanecer - apenas é assegurada pela Constituição de 1988 em "tempo de paz" (art. 5º, XV). Até esse básico intitulamento a guerra nos tira. A Constituição não descansa quanto aos grupos armados, civis ou militares, que agem contra a própria ordem constitucional ou contra o Estado Democrático. Trata-se de prática constitucionalmente abominada. Segundo o inciso XLIV do art. 5º, "constitui crime inafiançável e imprescritível a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático". O terrorismo também conta com absoluto repúdio. A lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia o terrorismo, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem (art. 5º, XLIII). Toda atividade nuclear em território nacional somente será admitida para fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional (art. 21, XXIII, "a"). Na guerra é possível haver penas de morte (art. 5º, XLVII, "a"). Também pode haver requisições civis e militares (art. 22, III) pela União. Esta, mediante lei complementar, poderá instituir empréstimos compulsórios para atender a despesas extraordinárias (art. 148, I) e impostos extraordinários, compreendidos ou não em sua competência tributária (art. 154, II). No estado de defesa, por exemplo, pode haver as seguintes medidas coercitivas: I - restrições aos direitos de: a) reunião, ainda que exercida no seio das associações; b) sigilo de correspondência; c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica; II - ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de calamidade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes (art. 136. § 1º). No estado de sítio, as restrições são ainda mais severas: quando decretado com fundamento no art. 137, I: obrigação de permanência em localidade determinada; detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes comuns; restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das comunicações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei; suspensão da liberdade de reunião; busca e apreensão em domicílio; intervenção nas empresas de serviços públicos; VII - requisição de bens (art. 139). Não fosse pouca coisa, a Constituição ainda não poderá ser emendada na vigência de estado de defesa ou de estado de sítio (art. 60, § 1º). A ordem constitucional brasileira quer a guerra ou a paz? Ela crê na diplomacia ou na pólvora? Persevera pela revanche ou pela reconciliação? Abraça, como estilo de vida coletiva, o duelo permanente ou a harmonia persistente? Resolve os conflitos pacificamente ou de forma beligerante? Antevê e protege um povo que traz armas em punho ou que mostra, mesmo nos momentos mais difíceis, uma mão estendida ao recomeço? Em caso de divergências, a convocação constitucional é pelo acesso à justiça ou aos duelos armados? A Constituição é da guerra ou da paz?   A Constituição anteviu associações e partidos políticos que jamais tivessem qualquer natureza paramilitar. Previu, ainda, reuniões que não fossem de ódio, mas pacíficas e, principalmente, com pessoas sem armas em punho. Estipulou a necessidade de um perpétuo tempo de paz, pois apenas nele é possível a liberdade de locomoção para que todos possam entrar, permanecer ou sair do nosso território com seus bens. Prevê ser criminosa - inafiançável e imprescritível - a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático. Qualifica como sendo um crime inafiançável e insuscetível de graça ou anistia o terrorismo. O Brasil sonhado pela Constituição de 1988 é um Brasil da paz. 
O plenário do STF se debruçará, dia 3/8/22, sobre o agravo em recurso extraordinário 843.989, relatado pelo ministro Alexandre de Moraes, discutindo o tema 1.199, qual seja: "Definição de eventual (ir)retroatividade das disposições da lei 14.230/21, em especial, em relação: (I) a necessidade da presença do elemento subjetivo - dolo - para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no art. 10 da LIA; e (II) a aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente".1 O debate tem início com o advento da lei 14.230/21, que redesenhou a lei de improbidade administrativa (lei 8.429/92), dispondo que a configuração da responsabilidade civil por ato de improbidade exige a comprovação da responsabilidade subjetiva dolosa, fixando também o prazo de prescrição em 8 anos contados da ocorrência do fato ou, no caso de infrações permanentes, do dia em que cessou a permanência (art. 23), mas trazendo marcos interruptivos da prescrição (art. 23, §4º) e a prescrição intercorrente; assim verificada uma das causas interruptivas, "o prazo recomeça a correr do dia da interrupção", mas "pela metade do prazo previsto no caput deste artigo" (art. 23, § 5º). Como o inciso XL do art. 5º da CF/88 diz que "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu", este caso indaga se seria tal comando aplicável aos implicados em improbidade administrativa, diante do advento da referida lei 14.230/21. Manifestando-se negativamente quanto ao provimento do recurso, o parecer do PGR sugere a seguinte tese: "I - As alterações do caput do art. 10 da LIA apenas explicitam a vedação à responsabilidade objetiva do agente, que, sistematicamente, sempre foi proibida no sistema brasileiro, o qual prossegue permitindo a punição a punição do erro grosseiro. II - Os novos prazos de prescrição geral e intercorrente previstos pela lei 14,230/21, para atos de improbidade administrativa cometidos antes da referida lei, somente são computados a partir da data de sua promulgação".2 Indo por outro caminho, por entender ser o caso de se julgar procedente o referido recurso e propondo uma resposta afirmativa às questões postas pelo tema 1.099, apresento pelo menos dois fundamentos jurídicos que justificam tal conclusão. São eles: (i) aproximação teleológica conferida pela Constituição de 1988 entre condenação criminal e condenação por improbidade; e (ii) a natureza fundamental do vasto plexo de bens jurídicos restringidos pela condenação por improbidade. A corrente que defende a irretroatividade de comandos benéficos no campo da improbidade administrativa costuma invocar as peculiaridades do Direito Penal, vinculado que está à liberdade do criminoso (princípio do favor libertatis), como sendo um elemento que impede a aplicação do inciso XL do art. 5º ("a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu") ao Direito Administrativo Sancionador. Seria, esse comando, uma exceção a ser interpretada restritivamente, uma vez que, no âmbito da jurisdição civil - a qual pertence a improbidade -, o princípio tempus regit actum3 encontraria abrigo no art. 6º da LINDB, que diz: "A lei em vigor terá efeito imediato e geral, respeitados o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada". Nada obstante haja, de fato, correntes teóricas contrapostas no tema - e o ministro Alexandre de Moraes as ilustrou no exame que fez da repercussão geral do caso4 -, há uma resposta à questão na própria Constituição. Não sem razão, o art. 1º, §4º da citada lei 14.230/21 assim dispõe: "Aplicam -se ao sistema da improbidade administrativa disciplinado nesta lei os princípios constitucionais do direito administrativo sancionador." Primeiramente, a Constituição aproximou, estrutural e teleologicamente, a condenação por improbidade da condenação criminal. O inciso III do art. 15, por exemplo, diz que a perda ou suspensão de direitos políticos se dará, além das outras hipóteses trazidas no dispositivo, nos casos de: "III - condenação criminal transitada em julgado, enquanto durarem seus efeitos;" e "V - improbidade administrativa, nos termos do art. 37, § 4º." Mas há mais. A Constituição estipula a possibilidade de perda de mandato de Deputado ou de Senador, desde que sofra "condenação criminal em sentença transitada em julgado" (art. 5º, VI). No mesmo rol acrescenta os que tiverem "suspensos os direitos políticos" (inciso IV), que é uma das consequências da condenação por improbidade. Mais uma vez, ao punir com severidade determinados comportamentos, restringindo gravemente certos direitos - direitos políticos e representação popular -, a Constituição elege a condenação criminal e, ao seu lado, a condenação por improbidade administrativa, como funcionalmente próximas e, juntas, distintas de todas as demais áreas do Direito. A equivalência teleológica entre a improbidade e a criminalização de dadas condutas é tamanha a ponto da Constituição estipular, no inciso V do art. 85, como sendo um dos crimes de responsabilidade, os atos do presidente da República que atentem contra "a probidade na administração". A tradição figura entre nós desde a Constituição de 1891.5 Portanto, a Constituição, nada obstante reconheça as naturezas jurídicas diversas, qualifica igualmente, em nível de gravidade, a condenação criminal e a condenação por improbidade administrativa, abrindo caminho para que uma interpretação do inciso XL do art. 5º mantenha a restrição exegética necessária à preservação da sua força normativa, mas incluindo, em seu alcance e concreção, a única hipótese outra que dimana da própria textualidade constitucional, qual seja, o benefício ao réu numa ação de improbidade. Firmado esse ponto, passa-se agora à natureza fundamental dos bens jurídicos restringidos por uma condenação por improbidade. Eis o § 4º do art. 37 da Constituição: "Os atos de improbidade administrativa importarão a suspensão dos direitos políticos, a perda da função pública, a indisponibilidade dos bens e o ressarcimento ao erário, na forma e gradação previstas em lei, sem prejuízo da ação penal cabível". O primeiro bem da vida restringido são os direitos políticos. A Constituição dedica um capítulo inteiro a eles. O capítulo IV (Dos Direitos Políticos) é inaugurado pelo art. 14 dispondo que a soberania popular será exercida pelo sufrágio universal e pelo voto direto e secreto, com valor igual para todos. O inciso II do § 3º aponta como uma das condições de elegibilidade "o pleno exercício dos direitos políticos". A cidadania fundamenta a República (art. 1º, II) e o parágrafo único desse mesmo art. 1º reafirma que "todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos ou diretamente, nos termos desta Constituição". Direitos políticos constituem matéria, inclusive, de edição vedada por medidas provisórias.6 Como se observa, uma condenação por improbidade interdita quase um capítulo inteiro da Constituição, nulificando ou restringindo o alcance dos direitos políticos. Mas não é só. Há também a perda da função pública. Somos, desde 1889, uma República. O ideal republicano oferta em sua ribalta mais elevada a oportunidade de servir ao público. Perder a condição necessária ao exercício desse mister é suportar, numa República, a sua mais juridicamente grave e moralmente vexaminosa punição.7 Como se não bastasse, vem, em seguida, a indisponibilidade dos bens. O STF guarda uma Constituição que traz, no rol de direitos fundamentais, o direito de propriedade (art. 5º, XXII), estabelecendo possibilidades excepcionais e vinculadas de uso público de propriedade particular ou da sua desapropriação.8 Quando a Constituição assegura o direito à livre locomoção, ela afirma que esse direito se traduz na possibilidade de qualquer pessoa, em tempo de paz, nos termos da lei, entrar, permanecer ou sair do território nacional "com seus bens" (art. 5º, XV).9 Mas ela vai além. Ao estipular os tipos de pena, primeiro disciplina a "privação ou restrição da liberdade" para, em seguida, apontar a "perda de bens"10 como pena. Ao assegurar o devido processo legal, primeiro dispôs que sem tal direito ninguém será privado da liberdade. Em seguida, complementou: "ou de seus bens" (art. 5º, LIV).11 Prosseguindo, umas das medidas que podem ser tomadas contra as pessoas na vigência do estado de sítio - decretado pelo art. 137, I -, além da restrição à liberdade de locomoção, é a "requisição de bem".12 Segundo o art. 150, V, é vedado à União, aos Estados, ao DF e aos Municípios estabelecer limitações ao tráfego de bens por meio de tributos interestaduais ou intermunicipais (ressalvada a cobrança de pedágio pela utilização de vias conservadas pelo Poder Público). A Constituição chega ao ponto de vedar a edição de medidas provisórias que visem a detenção ou sequestro de bens.13 Logo, sustentar uma suposta restrição exegética do inciso XL do art. 5º ao argumento de que apenas o Direito Penal restringe a liberdade, é desconsiderar a arquitetura constitucional dedicada a outros bens da vida complementares à liberdade e igualmente fundamentais, estando, todos eles, com a eficácia reduzida a partir de uma condenação por uma ação de improbidade administrativa. Assim, a conclusão é a de que o inciso XL do art. 5º da Constituição - "a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu" - autoriza a retroatividade das disposições da lei 14.230/21, em especial, em relação: (i) à necessidade da presença do elemento subjetivo - dolo - para a configuração do ato de improbidade administrativa, inclusive no art. 10 da LIA; e (ii) à aplicação dos novos prazos de prescrição geral e intercorrente. _____ 1 Houve a suspensão do processamento dos recursos especiais nos quais suscitada, ainda que por simples petição, a aplicação retroativa da lei 14.230/21. Suspendeu-se também o prazo prescricional nos processos com repercussão geral. No plano jurisprudencial, o STF havia definido a tese 666, no RE 669.069, de relatoria do saudoso ministro Teori Zavascki: "É prescritível a ação de reparação de danos à Fazenda Pública decorrente de ilícito civil". Posteriormente, fixou a tese 897, no RE 852.475, cuja redação para acórdão coube ao ministro Edson Fachin: "São imprescritíveis as ações de ressarcimento ao erário fundadas na prática de ato doloso tipificado na Lei de Improbidade".  Por fim, a tese 899 (RE 636.886, rel. min. Alexandre de Moraes), que diz: "É prescritível a pretensão de ressarcimento ao erário fundada em decisão de Tribunal de Contas". 2 Parecer ARESV/PGR 350.441/22 (peça 147). 3 Vale lembrar, por lealdade, o seguinte precedente do STF: ARE 1.019.161 AgR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, 2ª Turma, DJe de 12/5/2017: "(...) a retroatividade da norma mais benéfica em favor do réu é um princípio exclusivo do Direito Penal, onde está em jogo a liberdade da pessoa, admitindo, até mesmo, o ajuizamento de revisão criminal após o trânsito em julgado da sentença condenatória, há qualquer tempo. (...)". 4 Em seu voto quanto à presença de repercussão geral, o ministro Alexandre de Moraes ilustra as correntes teóricas deferentes à retroatividade, por meio dos juristas Heraldo Garcia Vitta (A Sanção no Direito Administrativo, Malheiros: 2003, p. 113) e Edilson Pereira Nobre Júnior (Sanções Administrativas e Princípios de Direito Penal. In: Revista Trimestral de Jurisprudência dos Estados. Ano 24 - Mar/Abr-2000 - Vol. 175. São Paulo: Jurid Vellenich Ltda. p. 69). Em contraponto, Rafael Munhoz de Mello (Princípios constitucionais de direito administrativo sancionador: as sanções administrativas à luz da Constituição federal de 1988. São Paulo, Malheiros, 2007, p. 154-155) e Fábio Medina Osório (Direito Administrativo Sancionador, 5ª ed., São Paulo: RT, 2015. p. 201). 5 Constituição de 1891: "Art 54 - São crimes de responsabilidade os atos do Presidente que atentarem contra: 6º) a probidade da administração;". 6 "Art. 62. § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I - relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral;". 7 Sob a égide da CF/88, o inciso I do art. 37 assevera que "os cargos, empregos e funções públicas são acessíveis aos brasileiros que preencham os requisitos estabelecidos em lei, assim como aos estrangeiros, na forma da lei". O art. 41, por sua vez, reputa "estáveis após três anos de efetivo exercício os servidores nomeados para cargo de provimento efetivo em virtude de concurso público". 8 "XXIV - a lei estabelecerá o procedimento para desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante justa e prévia indenização em dinheiro, ressalvados os casos previstos nesta Constituição;". "XXV - no caso de iminente perigo público, a autoridade competente poderá usar de propriedade particular, assegurada ao proprietário indenização ulterior, se houver dano;". 9 "XV - é livre a locomoção no território nacional em tempo de paz, podendo qualquer pessoa, nos termos da lei, nele entrar, permanecer ou dele sair com seus bens;". 10 "XLVI - a lei regulará a individualização da pena e adotará, entre outras, as seguintes: a) privação ou restrição da liberdade; b) perda de bens; c) multa; d) prestação social alternativa; e) suspensão ou interdição de direitos; 11 "LIV - ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal;". 12 "Art. 139. Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas: (...) VII - requisição de bens." 13 "Art. 62. § 1º É vedada a edição de medidas provisórias sobre matéria: I - relativa a: a) nacionalidade, cidadania, direitos políticos, partidos políticos e direito eleitoral; II - que vise a detenção ou seqüestro de bens, de poupança popular ou qualquer outro ativo financeiro;".
segunda-feira, 28 de março de 2022

A busca da verdade na jurisdição constitucional

Assim começa essa história. "O que é verdade?", perguntou Pilatos. Em seguida, o governador da Judeia partiu. Não lhe interessava ouvir a resposta.1  Milênios foram percorridos pelos passos agitados da humanidade e a verdade segue sendo a bola da vez. Mais pela sua ausência do que pela sua presença, é justo dizer. No Estado Constitucional contemporâneo - do qual o Brasil é adepto desde 1988 -, a verdade importa. A esse respeito, Peter Häberle chegou a afirmar: "na medida em que a comunidade dos povos se 'constitucionaliza', ela também pode se integrar gradualmente aos problemas da verdade e apresentar pretensões de verdade".2 Mas, então, se devemos conferir crédito à afirmação de Häberle no sentido de que declarações materiais e processuais sobre o tema da verdade são possíveis e certas condições de verdade são satisfeitas, como pudemos nos deixar levar para um caminho tão escuro? De que forma terminamos soterrados por um entulho de mentiras? Que bifurcação foi essa, perante a qual poderíamos ter percorrido a verdade e decidimos - ou decidiram por nós - trilhar, ao contrário, o caminho da ilusão?   Peter Häberle não foi indiferente às múltiplas questões da verdade. Em sua obra "Os problemas da verdade no estado constitucional"3, o célebre Professor desenvolve ideias acerca do tema e o faz com grande energia intelectual. Ele inicia com questionamentos: "Constituir o Estado sobre a verdade permanece um belo sonho?" "Sem uma pretensão de verdade também não há tolerância?"4 "É a verdade o resultado de um discurso infindável?" "Está a verdade sujeita às regras da maioria?" "Está a verdade com a maioria?"5 "Podem as constituições mentir?"6 Häberle passa a dividir suas compreensões. "O processo no terceiro poder, o judiciário, relaciona-se especificamente com o problema da verdade"7, diz ele, chegando a falar numa "Verdade jurisprudencial"8 e recordando que a teoria do consenso de Jürgen Habermas "compreende verdade como a conformidade de uma alegação ou, respectivamente, como a capacidade de consenso no discurso dos participantes, o qual, entretanto, está sob a ideia orientadora de um diálogo livre e universal".9 Para além de um direito fundamental à verdade titularizado pelos particulares, democracias constitucionais em outros lugares do mundo têm positivado o que pode ser compreendido como um dever fundamental com a verdade pelo Poder Judiciário. O inciso I do art. 180 da Constituição da Bolívia, por exemplo, determina o seguinte acerca do seu Judiciário: "A jurisdição ordinária baseia-se nos princípios processuais da liberdade, publicidade, transparência, oralidade, celeridade, probidade, honestidade, legalidade, eficácia, eficiência, acessibilidade, imediatismo, 'verdade material', devido processo legal e igualdade das partes perante o juiz".10 Não é apenas a Bolívia. Na Bulgária, o art. 121, 2, da Constituição diz: "O processo judicial assegura a apuração da verdade".11 Essa é a sua finalidade. Além de apurá-la, compete-lhe, a partir dos casos que lhes chegam, proferir uma decisão que seja, no corpo social, a verdade possível revelada. Quem matou? Quem roubou? Quem fraudou? Quem corrompeu? É inconstitucional? É legal? Essas são perguntas cotidianamente formuladas no âmbito da Justiça. Se esta responder com a mentira, trata-se, no Brasil, de erro judicial a ser reparado pelo Estado. Segundo o inciso LXXV do art. 5º da Constituição, "o Estado indenizará o condenado por erro judiciário". O descobrimento da verdade - na mesma acepção de Martin Heidegger12 - é o telos do Poder Judiciário brasileiro. Por isso, o art. 378 do Código de Processo Civil diz: "Ninguém se exime do dever de colaborar com o Poder Judiciário para o descobrimento da verdade".  Como a necessidade de estar sempre aberto para a verdade é perene, o inciso II do art. 504 do CPC diz não fazer coisa julgada "a verdade dos fatos, estabelecida como fundamento da sentença". É como diz Moraes Moreira na música Verdade: "Verdade ninguém pode ser o seu dono". Sequer o trânsito em julgado é capaz de impedir o seu desvelamento (usando, uma vez mais, expressão de Martin Heidegger).    Se a verdade constitui o pináculo do processo penal e do processo civil, então o que dizer acerca do processo constitucional? Especificamente, quanto às ações ínsitas ao controle concentrado de constitucionalidade, quais sejam, a ação direta de inconstitucionalidade (por ação e omissão), a ação declaratória de constitucionalidade e a arguição de descumprimento de prefeito fundamental. Estaria o Supremo Tribunal Federal, ao realizar a Constituição por meios dessas ações, desonerado do seu dever de conduzir os casos pela higidez dos fatos e das provas a partir de quais é possível, após grave escrutínio hermenêutico, alcançar uma resposta que, para além de ser a correta (como previra Ronald Dworkin)13, seja a verdadeira? Ou seria a Suprema Corte, quando do exercício da jurisdição constitucional abstrata, um equivalente funcional da política, conduzida pela retórica, pela opinião e em cujas decisões habitam os elementos de um mero discurso? Se não há fatos, nem provas, nem racionalidade, nem integridade jurisprudencial, como reclamar a preservação do dever da verdade? Teriam suas decisões natureza mágica, oracular, religiosa ou mítica? Se uma Corte Constitucional se coloca na posição de dizer a verdade a partir da emoção, da retórica, da opinião, da força e mesmo da política, impondo suas decisões por meio de estocadas do poder, então toda a autoridade da qual ela deveria se revestir, e os caminhos os quais deveria percorrer - fatos, provas, discurso racional e justificação idônea -, já se perderam. Para Jacob Bazarian, "quando não se respeitam as leis ou princípios lógicos, o pensamento perde sua precisão, sua coerência e consequência, e torna-se incoerente e contraditório".14 Tempestades virão, podem acreditar. Esse quadro ganha relevo se lembrarmos que essas decisões são irrecorríveis, protegidas, portanto, contra ações rescisórias.15 Coberto de razão, Gianni Vattimo anota: "Onde há democracia não pode haver uma classe de detentores da verdade 'verdadeira' que exercitam diretamente o poder (os reis filósofos de Platão) ou que fornecem ao soberano as regras pra seu comportamento".16 A verdade há de ser elemento essencial do discurso jurídico dos juízes e juízas constitucionais, porque é dela que se alimenta a expectativa de uma jurisdição justa, que faz uso de parâmetros racionais para o desenvolvimento dos raciocínios condutores da decisão, tomados a partir de regras previamente estabelecidas, advindos, pelos meios previstos, de uma comunidade livre e igual. Essa decisão também obedece a um conjunto próprio da ritualística judicial, seja quanto ao procedimento, seja quanto ao processo, seja quanto aos múltiplos simbolismos que alimentam a distinção ontológica do Poder Judiciário quando comparado aos Poderes Legislativo e Executivo. A Justiça difere da política, bem como um juiz tem por papel algo diverso do que tem um legislador e uma decisão judicial não equivale a um discurso de um candidato num comício. É por essas e outras razões que a Suprema Corte precisa reafirmar seu compromisso de tomar decisões no âmbito da jurisdição constitucional abstrata, por meio da consideração dos fatos circunscritos ao caso e das evidências nos autos lançadas, fazendo uso de todo o aparato previsto em lei, para que a verdade da Constituição seja revelada não por monarcas ou oráculos, mas por um colegiado formado por brasileiros experientes, dotados de notável saber jurídico, com uma reputação ilibada e dispostos a encontrar a resposta do caso concreto. O processo constitucional não pode se converter num caminho para adivinhações, nem um documento da magnitude de uma decisão de uma Corte Suprema pode ser visto como mero engodo. Não podemos um dia ler um acórdão do STF e lembrarmos de Luís Fernando Veríssimo, quando este cunhou a seguinte frase: "Às vezes, a única coisa verdadeira num jornal é a data".  A ação direta de inconstitucionalidade - incluindo a por omissão - e a ação declaratória de constitucionalidade são regidas pela Lei nº 9.868/99, que, em seu art. 9º, § 1º, diz: "Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria".17 Não ignora, a lei, a presença de fatos. Tampouco sublima a necessidade de, em dados casos, haver esclarecimentos acerca da matéria ou de não serem bastantes as informações constantes dos autos. Em seguida, entrega a peritos ou pessoas com experiência e autoridade na matéria a oportunidade de emitirem parecer ou serem ouvidos em audiência pública.18 É a instrução do feito constitucional ocorrendo. O equivalente ao regimento interno no Tribunal Constitucional Federal da Alemanha traz, em seu tópico 2, regras procedimentais e, em seu capítulo 1, "regulações procedimentais gerais". O art. 26(1) do Regimento dispõe que "o Tribunal Constitucional Federal produzirá as provas necessárias ao estabelecimento da verdade. Pode, fora da sustentação oral (hearing), instruir um membro do Tribunal a fazê-lo ou solicitar a outro tribunal que o faça em relação a fatos e indivíduos específicos".19 A verdade importa. Quais as evidências? Quais os fatos? O que disseram os peritos? O que demonstraram as testemunhas? O que revelaram os experts? Se nada disso é necessário e uma decisão judicial nascerá após um ciclo de discussões em forma socrática, então o que há, de fato, são filósofos detentores do poder de dizer a verdade. Voltamos à Grécia arcaica. Isso, além de não ser republicano, é absolutamente deletério para a preservação da autoridade da qual se reveste uma Suprema Corte, que, muito mais do que oferecer demonstração de poder em forma bruta, necessita alimentar modos genuínos de exercício de autoridade perante o corpo social que sustenta a democracia.20   O mesmo ocorre quando suas decisões, para serem acatadas, começam a reclamar, com alguma frequência, forte aparato policial, ou o uso da força, ou, ainda pior, reafirmações persistentes de poder. Uma Suprema Corte não foi construída para que os jurisdicionados a temam. Pelo contrário. As Cortes Supremas se impõem pela autoridade que a sua deliberação racional anima até mesmo nas pessoas que não concordam com os resultados de tais deliberações. Quanto mais força tiver de impor a Corte para que as pessoas respeitem as suas decisões, mais fraca estará a sua autoridade. É preciso vindicar o incremento da qualidade do processo constitucional por meio do refinamento da instrução e a consequente aderência dessa instrução à decisão e à sua justificativa, reconhecendo-se a presença de fatos e provas e entendendo que a Suprema Corte tem um dever indeclinável com a verdade nas decisões que profere. Façamos o contrário do que fez Pilatos. Na jurisdição constitucional abstrata, perseveremos pela verdade sem lhe dar as costas. O começo é o fim. O fim é o começo. __________ 1 Agradeço a leitura antecipada dos colegas Rodrigo Barbosa e Ana Gabriela Pereira Matos, colegas de escritório, com quem dividi impressões a respeito do texto. 2 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 55. 3 Tradução de Urbano Cavelli de Wahrheitsprobleme im Verfassungsstaat. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008. 4 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 31. 5 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 63. 6 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 121. 7 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 48. 8 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 122. 9 Häberle, Peter. O problema da verdade no Estado Constitucional. Tradução de Urbano Cavelli. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2008, p. 33. 10 No original: "Artículo 180. I. La jurisdicción ordinaria se fundamenta en los principios procesales de gratuidad, publicidad, transparencia, oralidad, celeridad, probidad, honestidad, legalidad, eficacia, eficiencia, accesibilidad, inmediatez, verdad material, debido proceso e igualdad de las partes ante el juez." Disponível aqui. 11 "Article 121 (...) 2. Judicial proceedings shall ensure the establishment of truth". Disponível aqui. 12 Sobre o descobrimento da verdade, Martin Heidegger anota: "Para se ver que, de fato, na mesma sentença também se fala da verdade, basta apenas recordar, antes, a palavra grega para o que nós chamamos de verdade: a???e?a, a se traduzir adequadamente por descobrimento. Com isso, porém, não se ganha muito enquanto não nos transferirmos para toda a força significativa, e se nos tornar claro, então, que não se trata de esclarecer um significado qualquer de uma palavra qualquer. Sem dúvida, nós compreendemos provisoriamente o significado da palavra grega para verdade: desencoberto, não velado, não encoberto (...)." Heidegger, Martin. Ser e verdade: a questão fundamental da filosofia; da essência da verdade." Heidegger, Martin. Tradução Emmanuel Carneiro Leão. Revisão da tradução: Renato Kirchner. Petrópolis: Vozes; Bragança Paulista: Editora Universitária São Francisco, 2007 (Coleção Pensamento Humano), p. 110. 13 Toda a construção está erguida nas obras: Levando os Direitos a Sério. Trad. Nelson Boeira. São Paulo: Martins Fontes, 2002. (Coleção Direito e Justiça). Também em Uma questão de princípios. 2. ed. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2001. (Coleção Direito e Justiça). Por fim, em O Império do Direito. Trad. Jefferson Luiz Camargo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. (Coleção Direito e Justiça). 14 Bazarian, Jacob. O problema da verdade. São Paulo: Editora Alfa-Ômega, 1985, p. 117. 15 Lei nº 9.868/99: "Art. 26. A decisão que declara a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade da lei ou do ato normativo em ação direta ou em ação declaratória é irrecorrível, ressalvada a interposição de embargos declaratórios, não podendo, igualmente, ser objeto de ação rescisória." Lei nº 9.882/99: "Art. 12. A decisão que julgar procedente ou improcedente o pedido em argüição de descumprimento de preceito fundamental é irrecorrível, não podendo ser objeto de ação rescisória". 16 Vattimo, Gianni. Adeus à verdade. Tradução de João Batista Kreuch. Petrópolis, RJ: Vozes, 2016, p. 33. 17 A Lei nº 9.868/99, tratando da ação declaratória de constitucionalidade, dispõe: "Art. 20. § 1º Em caso de necessidade de esclarecimento de matéria ou circunstância de fato ou de notória insuficiência das informações existentes nos autos, poderá o relator requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão ou fixar data para, em audiência pública, ouvir depoimentos de pessoas com experiência e autoridade na matéria". A Lei nº 9.882/99, que regula a arguição de descumprimento de preceito fundamental, assevera, em seu art. 6º, § 1º, que, "se entender necessário, poderá o relator ouvir as partes nos processos que ensejaram a argüição, requisitar informações adicionais, designar perito ou comissão de peritos para que emita parecer sobre a questão, ou ainda, fixar data para declarações, em audiência pública, de pessoas com experiência e autoridade na matéria". 18 Nesse ponto, recomenda-se a leitura do artigo "Instrução probatória e funções da audiência pública na jurisdição do STF, de Paula Pessoa Pereira e Luiz Henrique Krassuski Fortes. 19 Eis a redação: "The Federal Constitutional Court shall take the evidence necessary to establish the truth. It may, outside of the oral hearing, instruct a member of the Court to do so or may request another court to do so in respect of specific facts and individuals". Disponível aqui. 20 A esse respeito escreveu Hannah Arendt: "Mas, se a diferenciação institucional americana entre o poder e autoridade possui traços nitidamente romanos, por outro lado seu conceito de autoridade é completamente diverso. Em Roma, a função da autoridade era política e consistia em dar conselhos, ao passo que na república americana a função de autoridade é jurídica e consiste na interpretação. O Supremo Tribunal deriva sua autoridade da Constituição como documento escrito, enquanto o Senado romano, os patres ou pais da república romana detinham autoridade porque representavam, ou melhor, reencarnavam os ancestrais, cuja única base de pretensão à autoridade no corpo político era exatamente o fato de o terem fundado, de sempre os 'pais fundadores'". Arendt, Hannah. Sobre a revolução. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2011, p. 258.
segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

Perspectivas para o STF em 2022

O ano de 2021 foi mais um, dentre vários, no qual os homens do poder supuseram possível emparedar o Supremo Tribunal. Enganaram-se novamente. Precisam aprender com a História. Franklin Delano Roosevelt é um ícone estadunidense. FDR salvou o país do buraco econômico da Grande Depressão com o seu New Deal; obteve, de forma inédita, quatro mandatos; e, por fim, ganhou a Segunda Guerra Mundial. Não é pouca coisa. Ao lado de George Washington e Abraham Lincoln, brilha na aurora dos maiores presidentes dos Estados Unidos. Em sua singular trajetória há, contudo, uma retumbante derrota: a tentativa de emparedar a Suprema Corte para governar alheio ao seu controle.  Numa série de decisões tomadas por apertada maioria (6 x 3 e 5 x 4) nos anos de 1935 e 1936, a Suprema Corte dos Estados Unidos reputou inconstitucionais leis que visavam recuperar a economia do país. Reeleito em 1936, o presidente Roosevelt enviou um projeto de lei ao Congresso no qual um juiz adicional poderia ser acrescentado para cada um que tivesse mais de 70 anos de idade.1 Com isso, aumentar-se-ia o tamanho da Suprema Corte, temporariamente, de nove para quinze juízes, permitindo que o Executivo nomeasse novos julgadores favoráveis a seus programas econômicos.2 "Na quinta-feira passada, descrevi o sistema de governo americano como um conjunto de três cavalos fornecido pela Constituição ao povo americano para arar suas terras. Os três animais são, naturalmente, os três poderes - o Legislativo, o Executivo e o Judiciário. Dois dos cavalos, o Congresso e o Executivo, trabalham hoje em sintonia, enquanto o terceiro insiste em puxar para o outro lado"3, afirmou FDR, em 9 de março de 1937, não numa live, mas em um de seus Fireside Chats, transmitidos ao vivo pelo rádio. A intenção de Roosevelt se revelou um fiasco. O Congresso dos Estados Unidos não embarcou na aventura. No propósito de emparedar a Suprema Corte, mesmo um homem da envergadura de um FDR, fracassou. É sábio ter alguma humildade para aprender com a lição da História.        Quanto ao Supremo Tribunal Federal, não é apenas um calendário de julgamentos que ele traz para 2022. Muitas peças mudarão de posição num tabuleiro no qual um sopro interno pode provocar, do lado de fora, um vendaval. O Ano Judiciário de 2022 se inicia tendo como presidente da Suprema Corte o ministro Luiz Fux. Terminará, todavia, com a ministra Rosa Weber ocupando esse assento. A "Corte Fux" deixará boa lembrança. Logo no seu início, a soltura do traficante André do Rap, por meio de uma liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio, foi cassada pelo Presidente. Ainda que tenha havido protesto do então decano, o ministro Luiz Fux não caiu em qualquer armadilha de confronto interno.4 Seguiu adiante. Bom para o Tribunal.    Houve também reações institucionais em momentos delicados. Em 2021, o presidente do STF anunciou o cancelamento do encontro que reuniria os chefes dos três Poderes, incluindo o presidente Jair Bolsonaro. "Nos últimos dias, o presidente da República tem reiterado ofensas e ataques de inverdades a integrantes desta Corte, em especial os ministros Luís Roberto de Barroso e Alexandre de Moraes. Quando se atinge um dos integrantes, se atinge a Corte por inteiro"5, registrou o ministro Luiz Fux, em sessão do STF transmitida ao vivo para todo o país. Há críticas, contudo, quanto ao excesso de decisões tomadas em sede de suspensões de liminares. A última, determinando o imediato cumprimento das penas aplicadas aos quatro condenados no caso da boate Kiss, gerou uma justa grita na comunidade jurídica. O Presidente acolheu o pedido do Ministério Público gaúcho na Suspensão de Liminar nº 1504. Não foi a primeira vez que presidentes do Supremo fazem um mais do que alargado uso das suspensões de liminares. Infelizmente, não deve ser a última. A partir de setembro, aquela cadeira postada no centro do Plenário será ocupada por uma nova liderança que chega após 45 anos de magistratura, incluindo 10 anos de STF, passagem pelo Tribunal Superior do Trabalho e as presidências do Tribunal Regional do Trabalho da 4ª Região e do Tribunal Superior Eleitoral. Rosa Maria Pires Weber, a juíza gaúcha de Porto Alegre, presidirá o STF.   Atual vice, a Ministra tem experiência, coragem e serenidade suficientes para fazer uma excelente presidência. Se alguma sugestão puder ser dada, deixa-se aqui a inspiração da abertura ofertada aos advogados e advogadas pelo então presidente Dias Toffoli. Presidência de porta fechada não é bom sinal e, em termos de abertura, o ministro Toffoli foi insuperável. Há mais mudanças. Em 2021, o Ano Judiciário foi aberto com a presença do ministro Marco Aurélio. Nesse ano, Sua Excelência não está mais lá. Foi sucedido pelo ministro André Mendonça, jurista com passagem na chefia da Advocacia-Geral da União e no Ministério da Justiça. Como será o seu gabinete? Como o Ministro se portará nas sessões do Plenário? Optará por concessões monocráticas de cautelares? Adotará, como regra, a colegialidade do Plenário Virtual? Receberá advogados e advogadas? Terá um gabinete aberto? Falará com a imprensa ou se portará de maneira mais reservada? É preciso esperar que o ano de 2022 cumpra o seu curso para que as perguntas acima passem a ser respondidas pelos fatos. Cada novo gabinete da Suprema Corte traz em si a sua própria dinâmica, mas também os seus mistérios. Vale aguardar, observar e, se preciso for, reivindicar.     Quem volta a atuar exclusivamente no Supremo Tribunal Federal é o ministro Luís Roberto Barroso. Dia 28 de fevereiro, o ministro Edson Fachin assumirá a presidência da Corte Eleitoral, permanecendo até agosto. O ministro Barroso esteve absolutamente envolvido com as eleições de 2020, mas também se viu empurrado para um inócuo debate acerca do retorno do voto impresso no Brasil. Agora, uma vez mais integralmente mergulhado na Suprema Corte a partir de fevereiro, o Ministro se preparará para a assunção da vice-presidência, que é o caminho antecedente para o mais marcante momento de toda a sua exitosa trajetória jurídica - a presidência do STF. Outra mudança acontecerá em agosto. O ministro Alexandre de Moraes, relator de polêmicos inquéritos no Supremo envolvendo o presidente da República e sua entourage, assumirá a presidência do TSE com a missão de conduzir as eleições de 2022. O seu gabinete na Suprema Corte é, hoje, o de menor acervo (811 processos).6 "Se houver repetição do que foi feito em 2018, o registro será cassado e as pessoas que assim fizerem irão para a cadeia por atentar contra as eleições e a democracia no Brasil", anotou o ministro Alexandre de Moraes, no recente julgamento do TSE sobre o disparo em massa de notícias falsas pela chapa "Bolsonaro-Mourão" na corrida eleitoral de 2018. A conferir.     O ano se inicia também com a ministra Cármen Lúcia compondo a Primeira Turma, presidida pelo ministro Dias Toffoli. Em seu lugar, na Segunda Turma, entra o ministro André Mendonça. A Segunda Turma é presidida pelo ministro Nunes Marques. A dança de cadeiras tem significado, especialmente para quem se vê, em determinados temas, estrangulado por placares apertados.   Além da mudança de peças nesse singular tabuleiro, há ainda a continuidade de práticas recentes, como as sessões híbridas de julgamento (com a possibilidade de patronos e julgadores se fazerem presentes online ou fisicamente) e uma grande quantidade de casos sendo julgados no Plenário Virtual.  Aliás, com a expansão do referido Plenário Virtual, o mérito de muitos recursos com repercussão geral pôde ser apreciado. Com isso, houve uma grande baixa no estoque. Hoje (06/01/2022), restam 185 temas com repercussão geral aguardando deliberação. Para se ter uma ideia, apenas em 2020 foi apreciado o mérito de 126 temas. Abaixo, um gráfico elaborado pelo próprio STF mostra a evolução.  Reconhecida a Repercussão Geral e Julgado o Mérito - Ano Atual7 O ano de 2021 terminou no STF com um acervo de 24.272 processos aguardando deliberação. Eles estão assim divididos: ARE: 9.918; RE: 3.826; Rcl: 2.842; HC: 2.737; ADI: 1.369; MS: 634; RHC: 615; ACO: 404; Pet: 370; ADPF: 309; e RMS: 188.8 Se separarmos por ramo do Direito, o cenário é o seguinte: Direito Administrativo e outras matérias de Direito Público: 9.630; Direito Processual Penal: 3.439; Direito Tributário: 2.693; Direito Processual Civil e do Trabalho: 2.145; Direito Penal: 1.916; Direito Civil: 1.239; Direito do Trabalho: 985; e Direito Previdenciário: 722.9 Abaixo, um gráfico ilustrativo do cenário. O Ano Judiciário de 2022 se inicia, portanto, com algo além de uma agenda de julgamentos no plenário presencial do Supremo Tribunal Federal. Mudança de composição, alteração da presidência e vice-presidência, retorno integral do ministro Luís Roberto Barroso (que preside o TSE) e partida do ministro Alexandre de Moraes para a grave missão de conduzir as eleições gerais de 2022. Essas são movimentações importantes que não podem passar despercebidas de um olhar atento. Em seguida há, como não pode deixar de ser, o calendário completo dos casos incluídos em pauta de julgamento presencial no Plenário do STF para todo o primeiro semestre de 2022. Muitos deles são oriundos do Plenário Virtual e dele foram retirados por pedidos de destaques feitos por ministros.  A esse respeito vale notar que, dia 3 de novembro de 2021, a partir de uma sugestão da ministra Cármen Lúcia, o presidente do STF, ministro Luiz Fux, adiantou que deve haver uma resolução da Suprema Corte disciplinando melhor a questão dos destaques no Plenário Virtual.10 Pela dinâmica atual, sempre que há um destaque, o caso vai ao Plenário Presencial para julgamento que se inicia do zero, ou seja, ainda que tenha o Ministro Relator e outros colegas votado, o destaque reclama, no Plenário Presencial, nova leitura de relatório, realização das sustentações orais, reapresentação do voto do Ministro Relator e retomada de todos os votos. Uma possibilidade aventada é haver algum período antecedente ao início do julgamento virtual para que o destaque seja feito.   O fim é o começo. O Ano Judiciário de 2022 se inicia formalmente dia 1º de fevereiro. Apenas formalmente. Em Brasília e, especialmente, na Praça dos Três Poderes, a Suprema Corte segue em plena atividade, com seus gabinetes repletos de trabalho preparando o percurso a ser trilhado ao longo do novo ano. A Corte persevera altiva e sem receio das armadilhas do poder, como deve ser. __________ 1 Schwartz, Bernard. A History of the Supreme Court. New York: Oxford University Press, 1993. p. 233. 2 O cenário é retratado por Roy Jenkins: "A maior derrota política de Roosevelt foi sua desajeitada tentativa, na primeira metade de 1937, de reformar (alguns diriam subjugar) a Suprema Corte dos Estados Unidos. Enviou mensagem ao congresso argumentando hipocritamente que a Suprema Corte não conseguia dar conta de suas tarefas e que uma administração eficiente exigia a designação de mais um juiz para cada juiz com setenta anos ou mais. Sua derrota foi rica em paradoxos. Primeiro, ocorreu logo depois da grande vitória em novembro anterior. Segundo, na batalha de cinco meses que se travou entre fevereiro e julho, Roosevelt, o mestre da política, cometeu erro após erro, enquanto a Corte de "cavalo e carroça", com seus juízes idosos e obscurantistas, jogou brilhantemente suas cartas defendendo-se. Em conseqüência, numa aliança com o Senado que nada tinha de inevitável, aniquilou a mais importante das primeiras propostas dos mais poderosos e recentemente presidente da história americana". Jenkins, Roy. Roosevelt. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2005, pp. 110-15. 3 Acemoglu, Daron. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza. Daron Acemoglu e James A. Robinson; tradução Cristiana Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, pp. 317-318. 4 Em outubro de 2020, o ministro Luiz Fux, presidente do STF, suspendeu os efeitos de decisão liminar proferida pelo ministro Marco Aurélio em favor do traficante André do Rap, apontado como líder do PCC - Primeiro Comando da Capital. A prisão foi decretada em maio de 2014, por ocasião da Operação Oversea, deflagrada pela PF. A liminar concedida pelo ministro Marco Aurélio se baseou no excesso de prazo. Ela foi cassada nos autos da SL nº 1.395. 5 Disponível aqui. 6 Dados disponíveis aqui. 7 Dados disponíveis aqui. 8 Dados disponíveis aqui. 9 Dados disponíveis aqui. 10 O Migalhas divulgou matéria completa a respeito da questão.
segunda-feira, 29 de novembro de 2021

E se fosse você? Questões da República brasileira

Minha vida jamais foi fácil por aqui. Saudada e respeitada em quase todo o mundo democrático, no Brasil costumo ser somente saudada. Respeitada, não. E se fosse você? Talvez seja porque o meu país não é fácil. Aqui, quanto mais elevado é o ideal, mais caro será o preço para alcançá-lo. Às vezes sequer é possível alcançar. Destronei imperadores, triunfei sobre ditadores, afugentei golpistas, duelei com coronéis, enfrentei caudilhos, confrontei caciques políticos, desmoralizei corruptos..., mas, em cada uma dessas batalhas, fui ferida e as cicatrizes não se fecharam tão rapidamente quanto eu gostaria. Algumas seguem abertas. Isso dói. Mesmo assim, mesmo sabendo dos vícios originários tão perpétuos que carregamos, o fato é que eu ainda estou aqui. Trago traumas e medos, mas, sim, eu estou aqui. Eles me negam, me excluem, me marginalizam..., mas eu sigo aqui. Eu, a República, não sou jovem. No Brasil, nasci em 1889, a fórceps, num quartinho clandestino, sem pai nem mãe. Os militares, anunciando o parto que me levaria à luz, o fizeram interferindo indevidamente na política. Mais de um século depois eles permanecem com esse vício. É como se fosse uma maldição que de tempos em tempos se repete, impedindo-me de me desenvolver plenamente. No fundo, não acreditam em mim, no meu potencial. Esse mau exemplo pariu filhos ruins. A cada nova geração lá estão eles: os golpistas, prontos para agirem jurando-me em vão. Mundo afora, graças a mim, monarquias sucumbiram, reis tombaram e o vínculo sanguíneo que elevava tiranos ao poder foi deixado para trás. Substituí coroas de ouro por assembleias populares. Eu ajudei a separar o Estado da Igreja, exigi controle das ações praticadas em meu nome e trouxe o povo para dentro da minha casa, para que ele me ajudasse a jamais perecer. Homens da filosofia, como Platão, escreveram sobre mim, povos como os gregos e os romanos se ajoelharam a meus pés. Se tanto eu fiz em proveito de todos, por que me querem tão mal no Brasil? E se fosse você? Sim, eu sei que o meu nome está escrito no caput do artigo 1º da Constituição de 1988: "República Federativa do Brasil". É um lugar de destaque. O Preâmbulo também me celebra. Dizem que a Constituição é minha, que o Presidente é meu, que a federação é minha, que o procurador-Geral é meu..., até um Conselho criaram para mim. Foram-me dados um idioma e símbolos oficiais. Tenho uma bandeira, um hino, armas e selo nacionais. Em minha proteção, a União pode intervir nos Estados e no Distrito Federal. Mas a essa mesma Constituição pela qual eu mais recentemente renasci, impuseram, por emendas, 112 mutilações. Mudaram o meu rosto, reconfiguraram o meu corpo, trocaram os meus órgãos, manipularam o meu DNA..., fizeram tudo o que puderam para que, em verdade, eu simplesmente deixasse de existir. Ou, pelo menos, deixasse de incomodar. Só não mudaram o meu caráter, porque isso, mesmo tentando, eles jamais conseguiriam. Tenho a natureza forte e meus adversários sabem disso. É por isso que eu, mesmo vilipendiada, ainda sigo aqui. Que digam: República, presente! Deram-me objetivos fundamentais. São eles: construir uma sociedade livre, justa e solidária; garantir o desenvolvimento nacional; erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais; e promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação. São nobres. Eu tento realizar todos eles, mas essa não é uma tarefa fácil.  E se fosse você? Me diga qual a liberdade, a justiça e a solidariedade que há numa sociedade que olha diariamente os seus irmãos dormindo ao relento, que acompanha crianças espalhadas pelos semáforos vendendo suas infâncias e que toma conhecimento, no almoço farto, que em seguida famílias estarão mergulhadas nos pântanos fétidos dos lixões buscando o que restou daquele almoço? Qual o desenvolvimento nacional que eu posso assegurar se ainda há tanta gente confundindo a minha filosofia de vida, que é zelar pela coisa pública, como sendo o mesmo que tornar o que é do povo algo que, em verdade, pertence a ninguém? Como falar de redução de desigualdades se cada vez mais poucos detêm tudo e muitos têm tão pouco? Se dizem aos meus meninos e às minhas meninas que basta ter talento, ser honesto e trabalhador para que o bom dinheiro aflore em seus bolsos, mas sem revelarem, eles, que essa profecia é vã, já que os assentos desse banquete prometido estão ocupados por estruturas predadoras da igualdade de oportunidades. E o que será de mim, a República, sem igualdade de chances de prosperidade entregue a todos? Como assegurar o bem de todos, sem preconceitos, se quando meus filhos negros disseram que precisavam de uma política pública imediata que lhes ajudasse a ter acesso a graus mais elevados de educação, gritaram contra eles? Se ao assistirem as mulheres suplicarem por armaduras adicionais de proteção para não continuarem sendo mortas pelos homens, gargalharam delas? Se ao ouvir irmãos e irmãs dizerem que não compete ao Estado dispor com quem eles devem se deitar, para quem entregarão os seus afetos, reagiram discriminando-os, perseguindo-os ou desprezando-os?      As coisas são difíceis por aqui. Em meu seio há estados da federação de economia pujante, como São Paulo, Paraná, Santa Catarina e Goiás, pelos quais nutrimos grande orgulho e que nos servem de inspiração. Acontece que, na vida republicana, propósitos em proveito do semelhante valem mais do que o PIB. Dinheiro não é tudo. Foram esses estados os últimos a colocarem suas defensorias públicas para funcionar, logo a instituição trazida pelos braços da Constituição de 1988 para assegurar que, numa República, a pobreza não seja impedimento a que as pessoas alimentem a esperança de ver a justiça se realizar por meio da resposta independente do Judiciário. Santo Ivo, homenageado frequentemente no meio jurídico, era um defensor dos necessitados perante os tribunais franceses. Para mim, um país onde os pobres são afugentados dos Tribunais não pode afirmar ser um lugar onde é possível acreditar na justiça. E, sem poder crer na justiça, o que restaria de mim? O que sobraria da República?    Não me tenham como pessimista. Eu sou consciente de que estou presente em grandes conquistas nesse país. Minhas queixas não são sobre isso. Eu, a República, sei que a Suprema Corte já falou em mim várias vezes. Ela disse que "o princípio republicano apresenta conteúdo contrário à prática do patrimonialismo na relação entre os agentes do Estado e a coisa pública" (ADI 4169, Rel. Min. Luiz Fux, DJe 07/11/2018). Afirmou também que eu "exijo alternância no Poder, não se admitindo a possibilidade de reeleições sucessivas para os mesmos cargos nas mesas diretoras dos órgãos legislativos, mas apenas uma única reeleição para o mandato subsequente" (ADI 6685, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 05/11/2021). Escreveu que eu repilo "a manutenção de expedientes ocultos no que concerne ao funcionamento da máquina estatal em suas mais diversas facetas" (ADI 5394, Rel. Min. Alexandre de Moraes, DJe 18/02/2019). Que bom saber que a minha Suprema Corte anda proferindo decisões animada pelos ideais por mim alimentados. Eu ajudo em tudo o que posso. Contudo, para que eu vá além, todos precisam me ouvir mais, me respeitar mais, me entender mais. E se fosse você? Se fosse você quem assistiu os Poderes Executivo, Legislativo e até Judiciário serem tomados pelos filhos de suas autoridades, empregados nas mais elevadas posições, graças a esse traço de hereditariedade que tão mal faz a mim? "Aos filhos, tudo". Logo diante de mim, que vim ao mundo para romper com isso. O nepotismo precisou ser derrubado de cima para baixo, a partir de uma ação conjunta entre o Conselho Nacional de Justiça e o Supremo Tribunal Federal, para que, então, essa gente procurasse corroer-me de outro modo, como seguem fazendo. Já imaginou se isso acontecesse com você? Refiro-me à corrupção, a levar o dinheiro público no próprio bolso, a guardar milhões em malas dentro de apartamentos, a correr nas calçadas das cidades com recursos dos contribuintes dentro de maletas ou a ser capaz de esconder dinheiro alheio nos mais absurdos lugares, incluindo o corpo humano, dando realidade à metáfora do chamado "dinheiro sujo". Já pensou nisso? Eu, a República, peço que eles tenham cuidado com a coisa pública. Eles respondem com funcionários fantasmas, com rachadinhas, com pensões vitalícias às filhas inuptas, com acumulações inconstitucionais, com incorporações acima do teto, com trens da alegria, com carreiras públicas precarizadas, com superfaturamento, com notas fiscais de reembolso fraudadas, com mensalão e com mensalinho, com instituições de controle capturadas, com corporativismo, com personalismos e com privilégios. Eles não ligam para mim, não respeitam a minha presença, não temem a minha autoridade. Como é possível ver nascer tanta raiva ao se entregar um cartão com algum tostão a um necessitado e tamanha negligência com os gastos com cartões corporativos por altas autoridades que de nada precisam? Como podem se incomodar tanto com um desabrigado que luta por um pedaço de terra, por um teto para descansar debaixo, e serem tão omissos com os muitos auxílios para moradia entregues aos que já ganham tanto?  E se fosse você? Se fosse você que tivesse assistido, como eu assisti, governadores entregarem a si, pelas mãos das leis por eles mesmos aprovadas, pensões vitalícias, como se reis e rainhas o fossem, mesmo sabendo, eles, que eu existo, que eu estou aqui? E se fosse você que pediu respeito e recebeu em resposta demandas por Palácios de Mármore, por carros pretos sem placas, por escoltas, batedores e sirenes, por apartamentos e casas funcionais, por retroativos e verbas futuras, pelo desfrute eterno de um poder cujo gozo eu criei para ser temporário? Será que você se sente tão triste quanto eu, ao ver pessoas usarem o meu Ministério Público para fazer política, ao usarem até mesmo o meu Poder Judiciário para fazer política? Não foi essa a missão que eu lhes conferi. O que houve? Você já se imaginou no meu lugar, assistindo o Congresso Nacional relutar em abrir as portas desse quarto tão escuro cuja placa na porta indica o nome "RP-9"? Nesse caso, tratando da chamada "emenda do relator", quando a ministra Rosa Weber proferiu a sua decisão ela disse que assim o fazia para manter vivos os meus ideais. Veja o que se escreveu: "Enquanto a disciplina normativa da execução das emendas individuais e de bancada (RP 6 e RP 7) orienta-se pelos postulados da transparência e da impessoalidade, o regramento pertinente às emendas do relator (RP 9) distancia-se desses ideais republicanos, tornando imperscrutável a identificação dos parlamentares requerentes e destinatários finais das despesas nelas previstas, em relação aos quais, por meio do identificador RP 9, recai o signo do mistério" (ADPFs 850, 851 e 854). Em sua decisão de 49 páginas, eu, a República, apareci 55 vezes. Quando a decisão foi submetida ao Pleno da Suprema Corte, por 8 x 2 ficou entendido que, sim, eu precisava ser respeitada, eu estava aqui há muito tempo e passa da hora dos homens do poder aceitarem o domínio da minha profissão de fé. Eles é que têm de se submeter a mim, não eu a eles. O Congresso Nacional aceitará essa determinação? Ou me afrontará? Eu sou a República. Estou presente 179 vezes na Constituição de 1988. Há mais de um século eu existo nesse país. Há muitas solenidades em minha homenagem, almoços e jantares são oferecidos a mim com boa frequência. Por ocasião da minha proclamação, até um feriado criaram sob a justificativa de que eu precisava ser saudada. Acontece que eu não quero mais ser apenas saudada. Quero ser respeitada.  Não almejo ir embora. Estou há muito tempo e pretendo permanecer. O problema é que a minha vida nunca foi fácil por aqui. E se fosse você? 
Somos feitos de histórias. E a história da ADI 6565, de relatoria do ministro Edson Fachin, ajuizada pelo Partido Verde perante o Supremo Tribunal Federal, precisa ser contada. O caso está pautado para julgamento virtual a partir do dia 1º de outubro. Trata da nomeação do professor mais votado na lista tríplice entregue, pelos campi das universidades federais, ao presidente da República, para nomeação no honroso cargo de reitor. Professores e reitores deram e seguem dando a vida por esse país. Em 1968, o reitor da UFRJ, Pedro Calmon, barrou policiais que tentavam invadir a Faculdade Nacional de Direito, no Centro da cidade do Rio. "Policial só entra na universidade se fizer vestibular", advertiu Calmon, com a extraordinária autoridade moral que tinha.   Outro episódio conhecido se deu com o saudoso Paulo Brossard, que foi ministro do STF e foi expulso da Universidade Federal do Rio Grande do Sul onde, em 1965, começou a lecionar, sem remuneração, tendo lá permanecido por sete anos.1 Ainda na Ditadura Militar, Sepúlveda Pertence, também ministro aposentado do STF, foi demitido da UnB. Pedro Calmon, Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence são personagens públicos que, no tema abordado pela coluna hoje, viveram a verdade e percorreram o caminho, construindo as muitas histórias que, juntas, ensejaram a constitucionalização, em 1988, da autonomia universitária no Brasil. É preciso honrar ideais tão elevados como esse.    Moisés Naím, em O Fim do Poder, anteviu tudo: "(...) aqueles que controlam o poder deparam-se cada vez com mais restrições ao que podem fazer com ele". E concluiu: "No século XXI, o poder é mais fácil de obter, mais difícil de utilizar e mais fácil de perder".2 O histórico legislativo disciplinador da nomeação dos reitores de universidades federais torna o diagnóstico de Naím profético, pois indica o curso de uma postura que se iniciou sem limitação do poder do presidente da República no processo de nomeação. Depois, com a lei 6.420/77, o art. 16 da lei 5.540/68 passou a estipular uma lista sêxtupla. Com a lei 9.192/95, reduziu-se ainda mais a discricionariedade. A lista passou a ser tríplice. Atualmente, na lei 11.892/2008, que institui a Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica, cria os Institutos Federais de Educação, Ciência e Tecnologia, sequer lista há.3 A trajetória prova a redução do espaço de discricionariedade do Presidente. Em verdade, a ADI 6565 não se volta ao poder do presidente da República. Visa, em seu conteúdo, manter as conquistas dos campi, do alicerce cívico de um país crente na educação. Não se dedica, ela, aos palácios, mas às cidades universitárias. Discute a realização, pelo Presidente, quando invocando o art. 84, II da Constituição, da autonomia universitária. A realização da Constituição, a partir da sua aplicação por quem tem competência para tal, se dá também pela intermediação legislativa, que, na espécie, nasce a partir do que se chamou "Reforma Universitária de 1968", com o advento da lei Federal 5.540/68, ora em discussão, com suas alterações. A Ditadura Militar nomeava os reitores autorizada pelo art. 16, I da lei Federal 5.540/68, com a redação dada pela lei Federal 6.420/77. Os anos foram esses: 1968 e 1977. No primeiro, nasceu o Ato Institucional nº 05. No outro, fechou-se o Congresso. O ministro Gilmar Mendes recorda que, em 1968, ocorreu "A invasão mais violenta" num campus universitário no país. "Os alunos protestavam contra a morte do estudante secundarista Edson Luis de Lima Souto, assassinado por policiais militares no Rio de Janeiro. Cerca de 3 mil alunos reuniram-se na praça localizada entre a Faculdade de Educação e a quadra de basquete. Esse foi o estopim para o decreto da prisão de sete universitários, entre eles, Honestino Guimarães"4, registrou o Ministro, referindo-se à UnB. O ministro Gilmar Mendes rememora ainda que, "em 6 de junho de 1977, tropas militares invadiram a UnB, prenderam estudantes e intimaram professores e funcionários".5 O Ministro traz a obra de Roberto Salmeron, A universidade interrompida: Brasília 1964-1965, na qual anota que, na Ditadura Militar, "os professores estavam fartos do clima de instabilidade que havia se instalado na Universidade". E prossegue com a citação: "'Chegara o momento em que devíamos escolher com lucidez entre somente duas alternativas: aceitar as interferências externas ou recusá-las', lembra. Cerca de 80% dos professores decidiram recusar. Em 18 de outubro a Universidade que acabara de nascer perdia a maior parte dos cérebros selecionados para construir a instituição de vanguarda idealizada por Darcy Ribeiro."6 O tempo cumpriu seu destino, 1988 chegou e, com ele, a constitucionalização da autonomia universitária aconteceu. Nesse particular, vale trazer trecho do ministro Edson Fachin, em voto na ADPF nº 548: "A autonomia da universidade é garantia constitucional máxima. Pétrea. Ela destina-se a impedir que o Estado substitua a própria universidade para indicar o que pode ou o que não pode ser debatido nesse ambiente. O que debater, como debater, quando debater são decisões que não estão sujeitas ao controle estatal prévio."7 A compreensão da autonomia universitária como sendo uma garantia institucional expressamente prevista na Constituição de 1988 existe para se preservar as instituições contra predadores antirrepublicanos. Para Paulo Bonavides, "a garantia institucional não pode deixar de ser a proteção que a Constituição confere a algumas instituições, cuja importância reconhece fundamental para a sociedade (...)".8 Ele recorda os juristas da República de Weimar, como Klaus Stern, que enxergam na garantia institucional "o reconhecimento de que determinadas instituições jurídicas devem ser resguardadas de uma supressão ou ofensa ao seu conteúdo essencial ou esfera medular, por parte do Estado, sobretudo do legislador".9 Instituição alguma pode ter o seu destino definido pelo apetite dos presidentes da República. Eles passam e as instituições permanecem. Daron Acemoglu e James Robinson sustentam que o sucesso ou o fracasso das nações depende da qualidade de suas instituições. "Se a distribuição de poder for estreita e irrestrita, as instituições políticas serão absolutistas", anotam, referindo-se às instituições extrativistas. "Em contrapartida, as instituições políticas promotoras de ampla distribuição de poder na sociedade e sujeitas às suas restrições são pluralistas. Em vez de ser investido em um único indivíduo ou grupo limitado, o poder político é depositado nas mãos de uma coalizão ampla ou uma pluralidade de grupos"10. É urgente reconhecer a eficácia do dispositivo constitucional que institui a autonomia universitária, capaz de preservar seu núcleo essencial contra invasões destituídas de interesse público por parte do presidente da República, que, num turning point, revogou a norma anteriormente aplicável à espécie - nomeação do mais votado da lista - e, sem fundamento, tampouco sem demonstrar estar esse novo comportamento a realizar melhor a autonomia universitária, passou a nomear os menos votados, aqueles que saíram derrotados dos campi. Para Paulo Bonavides, a "garantia institucional visa, em primeiro lugar, assegurar a permanência da instituição, embargando-lhe a eventual supressão ou mutilação e preservando invariavelmente o mínimo de substantividade ou essencialidade, a saber, aquele cerne que não deve ser atingido nem violado, porquanto se tal acontecesse, implicaria já o perecimento do ente protegido".11 Essa autonomia jamais se constituirá sob a forma de soberania. Mesmo reconhecendo-se a nulidade das nomeações do presidente Jair Bolsonaro que, sem qualquer fundamentação, quebraram a norma vigente que assegurava o mais votado na lista tríplice, as universidades seguem submetidas aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da moralidade, da publicidade e da eficiência (art. 37 da Constituição). Estão vinculadas aos comandos constitucionais dos servidores públicos e dos concursos públicos. Sujeitam-se às regras licitatórias de contratação, à atividade regulatória do Ministério da Educação, à atuação da CGU, do Congresso Nacional, do Tribunal de Contas da União e à feitura de convênios e ao estabelecimento de metas de gestão. Submetem-se à inclusão na lei orçamentária anual e no orçamento fiscal das entidades da Administração Indireta. Emprestar reconhecimento republicano ao resultado das eleições ocorridas no seio dos campi, em nada arrasta, para as universidades, o conceito de soberania. Apenas um país, à luz da Constituição, é soberano.12 Universidade alguma jamais será. Nessa discussão, a ADI 51 tem aparecido como precedente para o deslinde do debate, a partir da liderança do ministro Paulo Brossard, o que resultaria, na prática, num aval jurisprudencial para que o Presidente siga nomeando as lideranças das universidades federais como vem fazendo, promovendo vetos aos vitoriosos e premiando os derrotados. A história desse precedente também merece ser contada. Em 23/05/1989, foi ajuizada a ADI 51, pelo eminente Procurador-Geral Aristides Junqueira, cuja relatoria coube ao ministro Paulo Brossard. Questionava ato do Conselho Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Resolução nº 02/88). Dois dias depois, a cautelar foi concedida, num voto de uma página, diante da iminência das eleições na Universidade. A composição do Supremo era a seguinte: ministros Néri da Silveira - Presidente -, Aldir Passarinho, Francisco Rezek, Sydney Sanches, Octavio Galloti, Carlos Madeira, Célio Borja, Paulo Brossard e Sepúlveda Pertence. O art. 1º da Resolução dispunha: "O Reitor e o Vice-Reitor da UFRJ serão escolhidos em processo de eleição direta pelos docentes, servidões técnico-administrativos e estudantes". Eis o parágrafo único: "O processo eleitoral iniciar-se-á e encerrar-se-á no âmbito da UFRJ". Por sua vez, o art. 3º: "Os candidatos a Reitor e a Vice-Reitor vencedores da eleição serão empossados pelo Conselho Universitário".   A página 12 do acórdão do julgamento de mérito, de 25/10/1989, esclarece o que de fato estava em julgamento: "6. De forma contrária estabeleceu a resolução nº 2. Por ela o reitor e o vice-reitor são escolhidos com exclusão, total e absoluta, de qualquer participação do Presidente da República; são empossados pelo Conselho Universitário; a escolha não se fará de listas sêxtuplas, mas mediante pura e simples; o colégio eleitoral, previsto no art. 8º, de outro lado, não é o previsto na lei 6.420, artigo 16, I, e 1º." Ou seja, o presidente da República deixou de participar da nomeação dos reitores e vice-reitores. Todo o processo se esgotava na Universidade. Sequer lista havia. O ato, complexo, deixou de sê-lo. Tudo feito por ato interno da Universidade, em violação à lei de regência, que é a mesma ora questionada. Tanto que uma das inconstitucionalidades foi de natureza formal, por violação à reserva de lei. Anotou o relator, ministro Paulo Brossard: "a Universidade não podia e não pode revogar a lei federal, ao dispor de maneira diferente quanto à escolha da lista sêxtupla e a nomeação do Reitor, o que lhe escapa por inteiro de sua competência, por ser da União" (p. 17). O caso é absolutamente distinto da ADI nº 6565. O ministro Sepúlveda Pertence, mesmo seguindo o Relator, fez uma ressalva: "(...) Deixo ressalvado, entretanto, o exame mais profundo da questão e das implicações da autonomia universitária, constitucionalmente garantida, em relação ao poder presidencial de provimento dos cargos federais, em geral, e as leis vigentes sobre provimento das reitorias". Ou seja, transformar o julgamento da ADI 6565 numa oportunidade para ampliar o poder do presidente da República, quando, na verdade, o que se pediu foi a manutenção da autonomia universitária, é desconsiderar o princípio do pedido a ponto de apreciar o feito trazendo o art. 84, II da Constituição, isoladamente, para esse juízo, conferindo-lhe leitura capaz de dotar o Presidente da possibilidade de agir alheio aos fundamentos determinantes necessários ao controle dos seus atos. Seria, no alerta do ministro Gilmar Mendes, feito noutro caso, "uma esquisita compreensão do princípio de justiça, que daria ao postulante 'pedra ao invés de pão' (Stein statt Brot)".13 Em resumo, o art. 84, VI, que diz competir ao Presidente da República estruturar e organizar o funcionamento dos órgãos e das entidades vinculadas ao Poder Público federal, não existe, do ponto de vista hermenêutico, fora de uma leitura estruturante e republicana da Constituição. Por isso, o STF deve conferir interpretação conforme a Constituição aos dispositivos legais submetidos à sua jurisdição (art. 1º da lei Federal 9.192/95 e art. 1º do decreto Federal 1.916/96), para, mantendo o regramento do processo de formação das listas, anular, imediatamente, todas nomeações do atual presidente da República para os postos de reitor que não tenham recaído sobre os mais votados das listas, sendo esses imediatamente nomeados e determinando-se, para o futuro, a nomeação, exclusivamente, dos mais votados. __________ 1 Disponível aqui. 2 Naím, Moisés. O Fim do Poder: Como os novos e múltiplos poderes estão mudando o mundo e abalando os modelos tradicionais na política, nos negócios, nas igrejas e nas mídias. São Paulo: Leya, 2019, p. 49. 3 Segundo o art. 12, os Reitores serão nomeados pelo Presidente, para mandato de 4 anos, permitida uma recondução, após processo de consulta à comunidade escolar do respectivo Instituto Federal, atribuindo-se o peso de 1/3 para a manifestação do corpo docente, de 1/3 para a manifestação dos servidores técnico-administrativos e de 1/3 para a manifestação do corpo discente.    4 Voto do ministro Gilmar Mendes na ADPF nº 548 (DJe 09/06/2020). 5 Antônio Ramaiana, autor do livro UnB 1977: O Início do Fim. 6 Voto do ministro Gilmar Mendes na ADPF nº 548 (DJe 09/06/2020). 7 Visava a evitar e reparar lesão a preceitos fundamentais resultantes de atos do Poder Público tendentes a executar ou autorizar buscas e apreensões, assim como proibir o ingresso e interrupção de aulas, palestras, debates ou atos congêneres e promover a inquirição de docentes, discentes e de outros cidadãos que estejam em local definido como universidade pública ou privada. 8 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 26ª edição, 2011, p. 537. 9 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 26ª edição, 2011, p. 539. 10 Acemoglu, Daron. Por que as nações fracassam: as origens do poder, da prosperidade e da pobreza/Daron Acemoglu e James A. Robinson; tradução Cristiana Serra. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 85. 11 Bonavides, Paulo. Curso de Direito Constitucional. São Paulo: Malheiros Editores, 26ª edição, 2011, p. 542. 12 Segundo o inciso I do art. 1º da Constituição, um dos fundamentos da República é a "soberania". 13 Necessidade de Desenvolvimento de Novas Técnicas de Decisão: Possibilidade da Declaração de Inconstitucionalidade sem a Pronúncia de Nulidade no Direito Brasileiro, conferência Congresso Luso-Brasileiro de Direito Constitucional, Belo Horizonte, 04/12/1992, p. 22.
quarta-feira, 8 de setembro de 2021

Quem é o guardião da Constituição?

O presidente da República, Jair Bolsonaro, chamou para si a função de guardião da Constituição. Ao invocar o nome do povo, na verdade fala de si. Suas palavras, por ocasião do 7 de setembro, lembram o mandamento central do Livro Verde: "O poder deve ser inteiramente do povo". Foi a base do regime de Muammar Kadafi por quase quarenta anos, na Líbia. Numa democracia constitucional, o povo é o poder apenas se agir em conforme a Constituição. É, como lembra Peter Häberle, a substituição da velha ideia de "soberania popular" pelo conceito atual de "soberania da Constituição".1 A queixa do presidente se volta ao Supremo Tribunal Federal, aquele que é, segundo o caput do art. 102, o guardião da Constituição. Supremas Cortes não nasceram para enfraquecer democracias. Foi o contrário. A elas compete manter a pluralidade de regimes democráticos, o seu caráter tolerante e inclusivo. Também erra quem diz que democracia é "o governo da maioria" sem limites ou compromissos. Nem mesmo Aristóteles, no seu Política, assim o dizia. "Não se deve, como costumavam fazer certas pessoas, definir simplesmente a democracia como o governo em que a maioria domina"2, anotou o filósofo. Numa democracia constitucional, o povo governa, direta ou indiretamente, nos limites da Constituição. É esse o modelo adotado no Brasil e cravado na pedra fundamental da Constituição de 1988. Aharon Barak, que presidiu a Suprema Corte de Israel, afirmou que, se não protegermos a democracia, a democracia dificilmente nos protegerá.3 O mesmo vale para o Supremo Tribunal Federal.   Esses episódios de ataques, pelo presidente da República, à Suprema Corte, tem sido experimentado em outros países. Anne Applebaum lançou recentemente a obra "O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política".4 Ao rememorar a vitória apertada do partido Lei e Justiça, em 2015, na Polônia, ela recorda que o "novo governo violou a Constituição ao inadequadamente indicar novos juízes para o Tribunal Constitucional. Mais tarde, usou uma estratégia igualmente inconstitucional em uma tentativa de dominar a Suprema Corte e criar uma lei para punir juízes cujos vereditos contrariassem as políticas governamentais". Lembra ainda do jornalista inglês Christopher Caldwell, que produziu um artigo no Claremont Review elogiando o ataque de Viktor Órban, primeiro-ministro da Hungria, "às estruturas sociais neutras e ao campo de jogo nivelado", expressão considerada pela escritora "um eufemismo para tribunais independentes e estado de direito". A conclusão de Anne Applebaum é a seguinte: "não foi por acidente que juízes e tribunais se tornaram objeto de crítica, escrutínio e raiva em muitos outros lugares. Não pode haver neutralidade em um mundo polarizado, porque não pode haver instituições apartidárias ou apolíticas". Ou seja: há método nessa loucura. No caso brasileiro, o que se vê é uma tentativa de enfraquecer o modelo atual de Estado constitucional - cuja essência reside na atuação contramajoritária do Judiciário -, fortalecendo uma concepção de democracia popular segundo a qual, pelo "poder do povo", a Constituição passaria a dever obediência à vontade de multidões aglomeradas por aí, com seus discursos, gritos de guerra, cantos e marchas. O célebre debate entre Carl Schmitt e Hans Kelsen ajuda a entender. A proposta teórica de Carl Schmitt ganhou publicação inicial em 1929, sob o título O Tribunal Constitucional como guardião da Constituição. Em 1931, ele publica uma versão ampliada daquelas reflexões, denominada O guardião da Constituição. Hans Kelsen, no mesmo ano de 1931, divulga sua resposta e o faz por meio do texto intitulado Quem deve ser o guardião da Constituição? Para Schmitt, a Constituição é uma decisão consciente de uma unidade política concreta que define a forma e o modo de sua existência. Analisando a realidade vivida à época, pela Alemanha, sob a Constituição de Weimar, era contraditório para o jurista o fato das propostas de lei e projetos partirem do princípio de que um Tribunal do Estado deveria decidir, em um processo judicial, tanto litígios constitucionais quanto dúvidas e divergências de opinião acerca da constitucionalidade de leis do Reich.5 Para Schmitt, instituir, perante tal Constituição, um Tribunal Constitucional para divergências constitucionais e não lhe entregar um conceito de divergências constitucionais, ou seja, nenhuma outra delimitação de sua competência além de uma "definição vocabular totalmente vã, segundo a qual toda divergência acerca de uma disposição constitucional é uma divergência constitucional, significa entregar ao próprio tribunal a decisão sobre sua competência".6 É a partir desse ponto que Carl Schmitt inicia seu périplo na defesa do Füher como guardião da Constituição. Se a Constituição se baseia, como correspondente a uma concepção difundida no século XIX, em um contrato entre príncipe e povo, governo e representação do povo, toda parte contratual surge como guardiã "da parte constitucional que diz respeito a seus próprios direitos e poderes e tenderá a qualificar as determinações constitucionais vantajosas a suas reivindicações políticas como 'a' Constituição". O jurista entendia que guardiões da Constituição "não são todas as posições e pessoas que, ocasionalmente pela não aplicação de leis anticonstitucionais, possam contribuir para que a Constituição seja respeitada e não seja violado um interesse protegido constitucionalmente". Daí ele não considerar "os tribunais, mesmo quando exercerem o direito de exame judicial acessório e difuso, como guardiões da Constituição". Na sequência, fala do pouvoir neutre, lembrando Benjamin Constant. Schmitt sustentava que o guardião da Constituição tem que ser independente e político-partidariamente neutro.7 O presidente do Reich encontrar-se-ia no centro de todo um sistema de neutralidade e independência político-partidária. Assim, ao se criar um Tribunal como guardião da Constituição para apreciar questões e conflitos relativos à alta política o que se teria era uma politização que oneraria e colocaria em risco a justiça. Schmitt arremata: "Consoante o presente conteúdo da Constituição de Weimar, já existe um guardião da Constituição, a saber, o Presidente do Reich." A tese foi sustentada com base no art. 42 da Constituição de Weimar, segundo o qual o Presidente do Reich, por meio de seu juramento, "defenderá a Constituição". O comando se assemelha ao art. 78 da Constituição brasileira, que alude ao compromisso firmado pelo presidente da República, no ato de sua posse, de "manter, defender e cumprir a Constituição (...)". Para Schmitt, "o juramento político sobre a Constituição faz parte, segundo a tradição do direito constitucional alemão, da 'garantia da Constituição'" e o texto escrito do regulamento constitucional vigente qualifica o Presidente do Reich como guardião da Constituição. Logo, "o fato de o presidente do Reich ser o guardião da Constituição corresponde, porém, ao princípio democrático, sobre o qual se baseia a Constituição de Weimar."8 A visão final anunciada por Carl Schmitt foi profética e sombria: "A Constituição busca, em especial, dar à autoridade do presidente do Reich a possibilidade de se unir diretamente a essa vontade política da totalidade do povo alemão e agir, por meio disso, como guardião e defensor da unidade e totalidade constitucionais do povo alemão. A esperança de sucesso de tal tentativa é a base sobre a qual se fundam a existência e a continuidade do atual Estado alemão."9 Hans Kelsen pensava de outro modo. Defendia a possibilidade do exercício, por um corpo de juízes integrantes de um Tribunal e desprovidos de mandatos populares, do controle de constitucionalidade das leis aprovadas pela maioria popular.  Em alusão ao escrito de Schmitt, Kelsen diz que "o que mais admira, porém, é que o mesmo escrito, que pretende restaurar a doutrina de um dos mais antigos e experimentados ideólogos da monarquia constitucional - a doutrina do pouvoir neutre do monarca, de Benjamin Constant - a aplicá-la sem qualquer restrição ao chefe de Estado republicano, tenha como autor o professor de direito público na Berliner Handelshochschule, Carl Schmitt".10 Kelsen continua:  "É verdade que, no intuito de que o chefe de Estado apareça como o apropriado 'guardião da Constituição', Schmitt caracteriza o seu pouvoir neutre não como uma instância que está acima dos 'detentores de direitos de decisão e de influência política', ou como um 'terceiro mais alto', nem como 'senhor soberano do Estado', mas sim como um 'órgão justaposto', como um poder 'que não está acima, mas sim ao lado dos outros poderes constitucionais'. Ao mesmo tempo, porém, através de uma interpretação mais do que extensiva do art. 48, ele procura ampliar a competência do Presidente do Reich de maneira tal que este não escapa de tornar-se senhor soberano do Estado, alcançando uma posição de poder que não diminuiu pelo fato de Schmitt recusar-se a designá-la como 'ditadura' e que, em todo caso, segundo as expressões acima citadas, não é compatível com a função de um garante da Constituição."11 Kelsen previu tudo. Anotou, acima, que a proposta de Schmitt ampliaria a competência do "Presidente do Reich de maneira tal que este não escapa de tornar-se senhor soberano do Estado, alcançando uma posição de poder que não diminuiu pelo fato de Schmitt recusar-se a designá-la como 'ditadura' e que, em todo caso, segundo as expressões acima citadas, não é compatível com a função de um garante da Constituição".12 E conclui: "Declarar o Presidente do Reich como único guardião da Constituição contraria as mais claras disposições da Constituição do Reich."13 A história deu razão a Hans Kelsen. Dia 25 de outubro de 1932, o Tribunal do Estado alemão negou-se a definir os limites da atuação do Presidente e de seu Chanceler, deixando-os absolutamente livres para atuarem contra as instituições democráticas da República de Weimar. Hitler agiu sem restrições institucionais.   A ideia de controle do poder por meio do Judiciário e, em particular, de controle do chefe do Poder Executivo por uma Suprema Corte, é uma concepção vitoriosa. No Reino Unido, último bastião material - formalmente já não o era desde 2005 - da soberania do Parlamento, a Suprema Corte derrubou, recentemente, uma ordem da Rainha dada, a pedido do primeiro-ministro Boris Johnson, à Câmara dos Lordes, para suspender os trabalhos do Parlamento. A decisão unânime, lida pela juíza presidente Brenda Hale, qualificou a ordem como uma "folha em branco, porque a decisão era nula na origem".14 Se mesmo a Rainha está submetida às decisões da Suprema Corte, por qual razão o Capitão não estaria? A incredulidade dá razão a Peter Häberle, que enxerga com pesar que, em alguns países, esteja havendo um renascimento de Schmitt. Ele diz: "resulta incompreensível este renascimento, se tem em conta essa dupla faceta da pessoa e muitas das manifestações de Carl Schmitt durante o regime nazista."15 Há mais exemplos. Ficou conhecida como Corte de Warren a Suprema Corte dos Estados Unidos quando estava sob o comando do Chief Justice Earl Warren, de 1953 a 1969, quando o Tribunal avançou rumo à garantia de direitos até então negados aos estadunidenses mais vulneráveis da sociedade, notadamente a comunidade negra. Nesse período, militantes odiosos fizeram circular pelos estados americanos manifestos pedindo o impeachment de Warren. Adesivos eram afixados nos veículos. Em outubro de 1958, em São Francisco, foi divulgado o primeiro manifesto no qual estava estampado: "Earl Warren: Procurado para sofrer impeachment". Eis a acusação contra o presidente da Suprema Corte: "ele proferiu várias decisões compelindo brancos a se misturarem com negros nas escolas, nos prédios públicos, nos restaurantes e nos banheiros públicos". Ao final, o manifesto acusa Warren de impor uma tirania judicial sobre os cidadãos brancos. Argumentava-se que Warren era dócil com os delinquentes, libertando todos aqueles que lhe dirigiam habeas corpus na Suprema Corte.16 As falas do presidente da República, Jair Bolsonaro, acerca do Supremo Tribunal Federal são iliberais e afrontosas à independência judicial. Aliam-se à visão de mundo de Kadafi, com o seu Livro Verde, às iniciativas de Viktor Órban, primeiro-ministro da Hungria e, numa perspectiva hermenêutica, à concepção de Carl Schmitt. É tudo de mais atrasado que há em termos de jurisdição constitucional e proteção aos direitos fundamentais. A retórica incendiária precisa ser punida por meio do aparato institucional que a própria democracia brasileira ergueu. É bom que não se demorem tanto. __________ 1 Conversas Acadêmicas com Peter Häberle. Organizador Diego Valadés, traduzido do espanhol por Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 4. Entrevista de César Landa. 2 Aristóteles, A política. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 120. 3 The judge in a democracy. Princeton University Press, 2017, p. 226. 4 Traduzida no Brasil por Alessandra Borrunquer e publicada pela Record. 5 Schmitt, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 05. 6 Schmitt, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 73. 7 Schmitt, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 227. 8 Schmitt, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, p. 233. 9 Schmitt, Carl. O guardião da Constituição. Tradução de Geraldo de Carvalho; coordenação e supervisão de Luiz Moreira. Belo Horizonte: Del Rey, 2007, pp. 233-234. 10 Kelsen, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Especialmente o capítulo intitulado "Quem deve ser o guardião da Constituição?", p. 243. 11 Kelsen, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Especialmente o capítulo intitulado "Quem deve ser o guardião da Constituição?", p. 246. 12 Kelsen, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Especialmente o capítulo intitulado "Quem deve ser o guardião da Constituição?", pp. 257-258. 13 Kelsen, Hans. Jurisdição constitucional. São Paulo: Martins Fontes, 2007. Especialmente o capítulo intitulado "Quem deve ser o guardião da Constituição?", p. 287. 14 R (Miller) v The Prime Minister and Cherry v Advocate General for Scotland ([2019] UKSC 41), cuja decisão pode ser assistida nesse vídeo, e o inteiro teor acessado aqui. 15 Valadés, Diego (Org.). Conversas acadêmicas com Peter Häberle. Traduzido, do espanhol, por Carlos dos Santos Almeida. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 25. 16  Vale conferir o artigo assinado, no jornal The New York Times, pelo jornalista Alden Whitman, em 10/07/1974, em razão do falecimento de Earl Warren, intitulado "Earl Warren, 83: Morre aquele que liderou o topo da Suprema Corte num período de intensa mudança social". Disponível aqui.
Está submetida a julgamento virtual iniciado em 13/08/2021, a ação direta de inconstitucionalidade nº 6811, ajuizada pela Procuradoria-Geral da República, sob a relatoria do ministro Alexandre de Moraes.  A ação pede a declaração de inconstitucionalidade da expressão "e municípios", constante do art. 97, § 6º, da Constituição de Pernambuco, acrescido pelo art. 1º da EC nº 35/2013, que fixa subteto remuneratório único para os servidores públicos estaduais e municipais.1 O dispositivo, na referida redação, teria afrontado os artigos 18, caput, 29, V (autonomia dos municípios para dispor sobre a remuneração de seus agentes públicos), e 37, XI e § 12 (subsídio do prefeito como subteto remuneratório único em âmbito municipal), da Constituição Federal. O ministro Alexandre de Moraes, relator, aplicou ao caso as razões de decidir da ADI-MC nº 6221, ajuizada em face da EC nº 72/2018, que deu nova redação ao §2º do art. 39 da Constituição do Pará. No caso, a maioria concedeu parcialmente a cautelar, suspendendo a eficácia da expressão "e dos Municípios", constante do art. 39, § 2º, da Constituição do Pará, na redação dada pela EC nº 72/20182, afirmando-se que o teto remuneratório aplicável aos servidores municipais, excetuados os vereadores, é o subsídio do prefeito municipal. Vale rememorar o que escreveu, em seu voto, na anterior ADI nº 6221, o ministro Edson Fachin: "a própria Constituição da República expressamente estendeu aos Estados a possibilidade de estabelecer o subteto aos municípios do seu território. Essa previsão deriva da utilização no art. 37, §12, da expressão 'no seu âmbito', que, do contrário, seria redundante, e pela expressa exceção aos vereadores, que, do contrário, seria, senão paradoxal, inócua". Para o ministro Edson Fachin, "desvincula-se, assim, também o subsídio dos servidores municipais ao subsídio do prefeito (na forma do art. 37, XI), o qual naturalmente depende de influxos políticos, impondo-se, ainda, certa isonomia regional". O ministro Edson Fachin conclui: "se previu expressamente a exceção é porque a autorização abrange os demais servidores municipais". Logo, "a fixação do teto - e do subteto, portanto - não implica aumento de despesa, uma vez que a lei que fixa a remuneração persiste sendo de iniciativa do chefe do Poder". A exegese adequada reclamaria a desvinculação "do teto remuneratório aos subsídios de agentes políticos - governadores e prefeitos -, mitigando a permissividade advinda dessa vinculação". Todavia, para o ministro Alexandre de Morais, que liderou a maioria formada no caso, "a faculdade conferida aos estados para a regulação do teto aplicável a seus servidores não permite que a regulamentação editada com fundamento nesse permissivo venha a inovar no tratamento do teto dos servidores municipais". Isso porque o art. 37, XI, da Constituição "já estabelece um teto único para os servidores municipais, não havendo motivo para se cogitar da utilização do art. 37, § 12, para fixação de teto único diverso, pois essa previsão é direcionada apenas para servidores estaduais, esfera federativa na qual existem as alternativas de fixação de teto por poder ou de forma única". Logo, "o inciso XI define o teto único dos servidores municipais (subsídio de prefeito); e o § 12 excepciona desse teto os vereadores, sem permitir que os demais servidores municipais sejam submetidos a teto remuneratório diverso". Ficaram vencidos os ministros Edson Fachin, Cármen Lúcia, Luís Roberto Barroso, Luiz Fux e Marco Aurélio. O STF vem construindo, cautelosamente, algumas exceções constitucionalmente aceitáveis. Quando esse STF apreciou o pedido cautelar na ADI nº 3854 (DJe 29/06/2007), o douto relator, ministro Cezar Peluso, anotou: "seria distinção arbitrária, portanto em descompasso com o princípio da igualdade, estabelecer limites remuneratórios diferenciados para os membros das carreiras da magistratura federal e estadual, ante o caráter nacional do Poder Judiciário". (DJe 29/06/2007), Na oportunidade, o ministro Ricardo Lewandowski enfatizou o "caráter unitário e nacional da magistratura, o qual se mostra com muita clareza na medida em que ela está submetida a um regime único, definido nos arts. 93 a 96 da Constituição e, mais ainda, por ter ela uma lei orgânica nacional única". O STF deu intepretação conforme ao inciso XI e ao §12 do art. 37 da CF, no sentido de desconsiderar, para fins de fixação de teto da magistratura, a parte final desses dispositivos, que vinculavam o teto do Desembargador do TJ a 90,25% do subsídio do Ministro do STF.3 Posteriormente, no Tema nº 510, no RE nº 663.696 (Rel. Min. Luiz Fux, DJe 22/08/2019), constou: "2. O teto de remuneração fixado no texto constitucional teve como escopo, no que se refere ao thema decidendum, preservar as funções essenciais à Justiça de qualquer contingência política a que o Chefe do Poder Executivo está sujeito, razão que orientou a aproximação dessas carreiras do teto de remuneração previsto para o Judiciário". Para o STF, os Procuradores do Município "devem se submeter, no que concerne ao teto remuneratório, ao subsídio dos desembargadores dos Tribunais de Justiça estaduais, como impõe a parte final do art. 37, XI, da Constituição da República". A Suprema Corte anotou que "o texto constitucional não compele os Prefeitos a assegurarem aos Procuradores municipais vencimentos que superem o seu subsídio, porquanto a lei de subsídio dos procuradores é de iniciativa privativa do chefe do Poder Executivo municipal, ex vi do art. 61, §1º, II, c, da Carta Magna". Para o ministro Luiz Fux, "atrelar a remuneração dos advogados públicos municipais ao subsídio do Prefeito relega a carreira a um indesejável e iníquo desprestígio quando em cotejo com a advocacia pública dos Estados e da União. E não foi essa a intenção do constituinte ao redigir o art. 37, XI, da CRFB/88". Consta do RE nº 663.696: "o Prefeito é a autoridade com atribuição para avaliar politicamente, diante do cenário orçamentário e da sua gestão de recursos humanos, a conveniência de permitir que um Procurador do Município receba efetivamente mais do que o Chefe do Executivo municipal". E concluiu: "As premissas da presente conclusão não impõem que os procuradores municipais recebam o mesmo que um Desembargador estadual, e, nem mesmo, que tenham, necessariamente, subsídios superiores aos do Prefeito". Isso porque o Chefe do Executivo municipal está, apenas, autorizado a implementar, no seu respectivo âmbito, a mesma política remuneratória já adotada na esfera estadual, em que os vencimentos dos Procuradores dos Estados têm, como regra, superado o subsídio dos governadores".4 Na ADI nº 6257 (DJe 03/02/2020), ajuizada pelo PSD, questionou-se o art. 1º da EC nº 41/2003, a qual conferiu nova redação ao art. 37, XI, da Constituição Federal. O Partido explicou que, no Estado de São Paulo, a nova redação do aludido art. 37, XI, estava contando com interpretação segundo a qual a sua abrangência incluiria, no subteto que ela fixa, as Universidades Estaduais, fazendo com que os professores ativos e inativos das três universidades sofressem profunda redução de seus proventos. Na presidência do STF, o ministro Dias Toffoli, decidindo a cautelar, asseverou haver "risco de diminuição da remuneração de professores e pesquisadores das universidades públicas estaduais com a observância do subteto estabelecido pelo art. 37, XI, da CF/88, com a redação conferida pela EC nº 41/2003". E prosseguiu: "os professores que exercem as atividades de ensino e pesquisa nas universidades estaduais devem ser tratados em direito e obrigações de forma isonômica aos docentes vinculados às universidades federais. Essa é a percepção que me leva a entender que a interpretação constitucionalmente adequada do art. 37, XI, da Constituição Federal de 1988 deve contemplar também os docentes e pesquisadores das universidades estaduais". A conclusão foi a de que é necessário "interpretar o art. 37, XI, da Constituição Federal de 1988 a partir da totalidade dos comandos constitucionais, não sendo possível conferir tratamento discriminatório sem observância do princípio da igualdade".5 Professores, pesquisadores, magistrados estaduais e procuradores municipais são exemplos de servidores públicos ligados a um tipo de atividade que reclama, quanto à valorização, uma leitura nacional, incluindo os parâmetros de teto e subteto remuneratórios, em razão da qualificação que a própria Constituição Federal lhes deu.   Esse também é o caso dos auditores das administrações tributárias. Segundo o inciso XVIII do art. 37 da Constituição Federal: "a administração fazendária e seus servidores fiscais terão, dentro de suas áreas de competência e jurisdição, precedência sobre os demais setores administrativos, na forma da lei". O inciso XXII do mesmo art. 37 diz: "as administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, atividades essenciais ao funcionamento do Estado, exercidas por servidores de carreiras específicas, terão recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada, inclusive com o compartilhamento de cadastros e de informações fiscais, na forma da lei ou convênio". Tanto as da União, como as dos Estados, como a do Distrito Federal, como as administrações tributárias dos Municípios são igualmente reputadas, pela Constituição Federal, "atividades essenciais ao funcionamento do Estado". Ao dispor sobre os servidores, a Constituição afirma que se trata de carreiras específicas, que terão "recursos prioritários para a realização de suas atividades e atuarão de forma integrada". Esse prestígio constitucional conferido às administrações tributárias de todos os entes da federação se deve ao fato de que apenas por meio delas se realiza o tão fundamental "dever de pagar tributos", qualificado, pelo STF, quando do julgamento do RE nº 601.314 (DJe 16/09/2016, Tema nº 225), no qual o relator, ministro Edson Fachin, anotou haver um "dever de pagar tributos, constituinte no que se refere à comunidade política, à luz da finalidade precípua da tributação de realizar a igualdade em seu duplo compromisso, a autonomia individual e o autogoverno coletivo". Ou seja, os fundamentos os quais, no STF, resultaram na compreensão das carreiras dos professores, pesquisadores, magistrados e procuradores municipais, como demandantes de uma leitura exegética própria quanto à parte final do inciso XI do art. 37, está presente na leitura dogmática e teórica feita das administrações tributárias da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, é dizer, a ratio decidendi da ADI nº 3854 (magistrados), do RE nº 663.696 (Tema nº 510 - procuradores municipais), da ADI nº 6257 (professores e pesquisadores das universidades) é extensível às carreiras constantes do inciso XXII do art. 37 da Constituição Federal. É de fundamental importância que a Suprema Corte reconheça a distinção da ADI nº 6811 das razões de decidir da cautelar concedida na ADI nº 6221, vislumbrando, no cargo de auditor fiscal municipal, a natureza de carreira de Estado a contar com maior nível de independência vencimental quanto ao teto remuneratório do chefe do Poder Executivo, sob pena de sofrer graves prejuízos institucionais. Daí a necessidade de interpretação conforme à Constituição para excluí-los da declaração de inconstitucionalidade pleiteada pelo Procurador-Geral da República na ADI nº 6811. __________ 1 Comando impugnado: "Art. 97. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência, além dos relacionados nos arts. 37 e 38 da Constituição da República Federativa do Brasil e dos seguintes: (Redação alterada pelo art. 1º da EC n° 16/99.) (.) § 6º Para efeito do disposto no inciso XI e no § 12 do art. 37 da Constituição da República, fica fixado como limite da remuneração, subsídio, proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, no Estado de Pernambuco e municípios, abrangendo os Poderes Judiciário, Legislativo e Executivo, Ministério Público e Tribunal de Contas do Estado, o subsídio mensal dos desembargadores do Tribunal de Justiça do Estado de Pernambuco, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal dos ministros do Supremo Tribunal Federal, não se aplicando o disposto neste parágrafo aos subsídios dos deputados estaduais e vereadores. (Acrescido pelo art. 1º da EC nº 35/2013)." 2 "Art. 1.º O art. 39, §2.º da Constituição do Estado do Pará, passa a vigorar com a seguinte redação: Art.39. ... §2.º A remuneração e o subsídio dos ocupantes de cargos, funções e empregos públicos da administração direta, autárquica e fundacional, dos membros de qualquer dos Poderes do Estado e dos Municípios, dos agentes políticos e os proventos, pensões ou outra espécie remuneratória, percebidos cumulativamente ou não, incluídas as vantagens pessoais ou de qualquer outra natureza, não poderão exceder o subsídio mensal dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, limitado a noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal dos Ministros do Supremo Tribunal Federal, aplicável este limite aos Membros do Ministério Público, aos Procuradores e aos Defensores Públicos, excluindo-se o disposto neste parágrafo aos subsídios dos Deputados Estaduais e Vereadores." 3 Eis a ementa do julgado: "Remuneração. Limite ou teto remuneratório constitucional. Fixação diferenciada para os membros da magistratura federal e estadual. Inadmissibilidade. Caráter nacional do Poder Judiciário. Distinção arbitrária. Ofensa à regra constitucional da igualdade ou isonomia. Interpretação conforme dada ao art. 37, inc. XI, e § 12, da CF. Aparência de inconstitucionalidade do art. 2º da Resolução nº 13/2006 e do art. 1º, § único, da Resolução nº 14/2006, ambas do Conselho Nacional de Justiça. Ação direta de inconstitucionalidade. Liminar deferida. Voto vencido em parte." Vale dividir também a ementa do acórdão da ADI nº 4900, cuja redação do acórdão coube ao ministro Luís Roberto Barroso (DJe 20/04/2015): "(...) 1. No que respeita ao subteto dos servidores estaduais, a Constituição estabeleceu a possibilidade de o Estado optar entre: (i) a definição de um subteto por poder, hipótese em que o teto dos servidores da Justiça corresponderá ao subsídio dos Desembargadores do Tribunal de Justiça (art. 37, XI, CF, na redação da Emenda Constitucional 41/2003); e (ii) a definição de um subteto único, correspondente ao subsídio mensal dos Desembargadores do Tribunal de Justiça, para todo e qualquer servidor de qualquer poder, ficando de fora desse subteto apenas o subsídio dos Deputados (art. 37, § 12, CF, conforme redação da Emenda Constitucional 47/2005). 2. Inconstitucionalidade da desvinculação entre o subteto dos servidores da Justiça e o subsídio mensal dos Desembargadores do Tribunal de Justiça. Violação ao art. 37, XI e § 12, CF. 3. Incompatibilidade entre a opção pela definição de um subteto único, nos termos do art. Art. 37, § 12, CF, e definição de "subteto do subteto", em valor diferenciado e menor, para os servidores do Judiciário. Tratamento injustificadamente mais gravoso para esses servidores. Violação à isonomia. Ação direta a que se julga procedente." 4 A tese do Tema nº 510 ficou assim fixada: "A expressão 'Procuradores', contida na parte final do inciso XI do art. 37 da Constituição da República, compreende os Procuradores Municipais, uma vez que estes se inserem nas funções essenciais à Justiça, estando, portanto, submetidos ao teto de noventa inteiros e vinte e cinco centésimos por cento do subsídio mensal, em espécie, dos Ministros do Supremo Tribunal Federal". 5 O ministro Dias Toffoli deferiu a cautelar para dar interpretação conforme ao inciso XI do art. 37, da Constituição Federal, no tópico em que a norma estabelece subteto, para suspender qualquer interpretação e aplicação do subteto aos professores e pesquisadores das universidades estaduais, prevalecendo, assim, como teto único das universidades no país, os subsídios dos ministros do Supremo Tribunal Federal.
segunda-feira, 31 de maio de 2021

A jurisprudência da crise na educação

Na formação de precedentes pela Suprema Corte, a História tem papel relevante. Assim o diz Thomas Vesting, que a associa à "estabilidade decisória", capaz de fornecer "reflexão sobre a produção do direito, no sentido de uma análise da estrutura da normatividade jurídica".1 Daí o seu arremate: "não há interpretação fora da história".2 A exegese quanto ao texto, reclama atenção ao contexto. Já a História, essa é feita de muitas histórias. Na década de 1940, Gustavo Capanema, o ministro que mais tempo ficou naquele cargo (1934 a 1945), tinha a porta da sua sala aberta pelas mãos do poeta Carlos Drummond de Andrade, chefe de gabinete. Como membros da equipe estavam nomes como Mário de Andrade, Cândido Portinari, Manuel Bandeira, Heitor Vila-Lobos, Cecília Meireles, Lúcio Costa, Vinicius de Morais, Afonso Arinos de Melo Franco e Rodrigo Melo Franco de Andrade. Era esse o Ministério da Educação. Na Ditadura Militar, a pasta contou com figuras públicas como Pedro Aleixo. Após a Constituição de 1988, recebeu Marco Maciel, Paulo Renato Souza e Cristovam Buarque, dentre outras personalidades que legaram contribuições valiosas ao país. Buarque, a propósito, foi escolhido, em 1984, para a reitoria da UnB pela comunidade universitária, mas teve seu nome vetado pelo presidente João Figueiredo, que optou por outro. O escolhido enfrentou tamanha resistência que terminou renunciando dias depois. Ano seguinte, eleito uma vez mais, Buarque foi designado reitor pelo presidente José Sarney.3 Depois, elegeu-se governador do Distrito Federal e senador da República, tendo sido ministro da Educação, chegando a se candidatar a Presidente da República, não tendo sido eleito, mas realizando uma campanha cuja bandeira era a educação.      O ato de o presidente da República nomear o mais votado pela comunidade acadêmica passou a ser uma convenção constitucional, na dicção de Lucas Melo4, para quem "as convenções constitucionais se originam dos entes que participam do exercício do poder político; são soluções dadas a situações fáticas, de forma reiterada, com pressupostos idênticos ou de grandes similitudes. São, na verdade, regras de conduta criadas sem a respectiva previsão formal para a sua criação, logo são fontes-fatos do direito, da mesma forma que os costumes encontram respaldo no princípio da eficiência".5 Mas o tempo passou e tudo mudou. Uma crise permanente passou a ser a história. Como diz Konrad Hesse, "a Constituição jurídica está condicionada pela realidade histórica. Ela não pode ser separada da realidade concreta de seu tempo".6 Nada mais real.   Em 26/05/2020, o ministro Alexandre de Moraes, do STF, teve de determinar que a Polícia Federal tomasse o depoimento do então ministro da Educação, Abraham Weintraub, para que explicasse as declarações feitas numa reunião ministerial.7 O Ministro, no Palácio do Planalto, numa reunião liderada pelo Presidente, teria ameaçado os ministros do STF, com declarações consideradas gravíssimas, não atingindo apenas a honorabilidade dos integrantes da Corte, mas sendo uma ameaça ilegal à segurança dos ministros e ministras. Mês seguinte, a Suprema Corte, pelo seu Pleno, rejeitou o Habeas Corpus nº 186.296, em que o ministro da Justiça e Segurança Pública pedia a suspensão da oitiva ou a retirada do referido ex-ministro da Educação da relação de depoentes do Inquérito nº 4781, que apura a divulgação de notícias falsas, ofensas e ameaças a ministros do STF.8 Em julho, foi a vez de o ministro Celso de Mello remeter à Justiça Federal do Distrito Federal o INQ nº 4827, instaurado contra o mesmo ex-ministro da Educação, dessa vez para apurar a suposta prática do crime de racismo contra o povo chinês em publicação no Twitter.9 O inquérito foi instaurado a pedido da Procuradoria-Geral da República (PGR). Mesmo com a mudança na liderança da pasta, a judicialização da crise na educação persistiu. Em outubro, passou a tramitar no STF, sob a relatoria do ministro Dias Toffoli, a Petição nº 9209 (apensada à PET nº 9186), por meio da qual a Polícia Federal ficou encarregada de colher o depoimento do novo ministro, Milton Ribeiro, a respeito da entrevista em que teria proferido manifestações depreciativas à comunidade LGBTQ+. A diligência foi requerida pela Procuradoria-Geral da República, que vislumbrou, nas afirmações feitas em entrevista publicada no jornal O Estado de S. Paulo, em 24/09, infração penal prevista no art. 20 da Lei do Racismo (lei 7.716/89). "O adolescente que muitas vezes opta por andar no caminho do homossexualismo vêm, algumas vezes, de famílias desajustadas", afirmou o ministro da Educação. Em 12/07/2019, o Conselho Federal da OAB ajuizou a ADI nº 6186, questionando dispositivos do decreto 9.725/2019, da Presidência da República, que extinguem cargos em comissão e funções de confiança nas instituições federais de educação, em violação dos princípios da autonomia universitária e da reserva legal. Essas instituições foram as mais prejudicadas, com a extinção de 119 cargos de direção e 1.870 funções comissionadas de coordenação de cursos e, em 31/7, de mais 11.261 funções gratificadas. Em junho de 2020, foram ajuizadas as ADPFs nº 698, 699 e 700, de relatoria do ministro Gilmar Mendes10, nas quais partidos políticos questionaram a revogação, pelo ex-ministro da Educação, da Portaria Normativa nº 13/2016, que previa a adoção de políticas de inclusão de negros, pardos, indígenas e pessoas com deficiência nos programas de pós-graduação em universidades e institutos federais. A Portaria foi revogada.   No mesmo mês, o ministro Gilmar Mendes já havia tido de solicitar informações ao comandante do Colégio Militar de Brasília e ao advogado-geral da União em relação a notícias sobre o afastamento e à abertura de processo administrativo disciplinar contra um professor em razão de opiniões emitidas em sala de aula. A medida se deu na ADPF nº 689, em que o partido Rede Sustentabilidade apontou violações à liberdade de expressão e de cátedra.11 Em agosto, o STF, por maioria, declarou a inconstitucionalidade de leis sobre a Escola Livre e proibição de ensino de sexualidade, por entender ter havido violação à liberdade de ensinar e ao pluralismo de ideias. O precedente foi firmado nas ADIs nº 5537, 5580 e 6038 e nas ADPFs nº 461, 465 e 600, de relatoria do ministro Luís Roberto Barroso.12 No mesmo mês, o STF referendou a cautelar concedida pela ministra Cármen Lúcia na ADPF nº 722, para suspender qualquer ato do Ministério da Justiça e Segurança Pública que tivesse por objetivo produzir ou compartilhar informações sobre a vida pessoal, as escolhas pessoais e políticas e as práticas cívicas de cidadãos. As ações alcançavam, dentre outras pessoas, professores universitários.13 Em dezembro, o STF referendou a liminar deferida pelo ministro Dias Toffoli na ADI nº 6590, suspendendo o Decreto nº 10.502/2020, do Presidente, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida. A norma estabelecia políticas fragilizadoras da inclusão de alunos com deficiência, transtornos globais do desenvolvimento e altas habilidades ou superdotação na rede regular de ensino.14 O ano de 2020 acabou, 2021 chegou, mas a primavera não veio. O quadro de desinstitucionalização passou a se agravar, reclamando, no Supremo Tribunal Federal, intervenções cada vez mais constantes na área. A judicialização da crise na educação se intensificou. Em março desse ano, partidos políticos questionaram o fato de a Controladoria-Geral da União (CGU) ter imposto a dois professores da Universidade Federal de Pelotas o compromisso de não proferir "manifestações de desapreço" ao Presidente da República, no local de trabalho, pelo período mínimo de dois anos. A ADPF nº 800 foi distribuída ao ministro Ricardo Lewandowski, assim como a ADI nº 674415, com objeto semelhante.   Ainda em março, o STF encerrou o julgamento da ADI nº 6543 e impediu que o Ministério da Educação nomeie diretor interino de centros técnicos federais. A Suprema Corte enxergou, na iniciativa, afronta à autonomia das entidades de ensino, da gestão democrática do ensino público, da isonomia, da impessoalidade e da proporcionalidade.16 A relatora, ministra Cármen Lúcia, registrou: "Supervisão ministerial não se confunde com subordinação, menos ainda tem esvaziada a estrutura constitucional desenhada no sistema vigente garantidor da democracia nestes espaços de ensino". Em seguida, arrematou: "retirar delas a autonomia que atende os preceitos constitucionais por ato unilateral, pessoal e voluntarioso de um Ministro de Estado e esvaziar o direito da comunidade acadêmica de participar da gestão democrática da entidade contraria o princípio da autonomia previsto legalmente e que se fundamenta no princípio do pluralismo e da participação da comunidade na busca de realização dos fins a que ela se destina" (p. 12/13). O caso acima prova a reiteração do Poder Executivo nesse particular. O decreto 9.908/2019 permitiu "a designação de Diretor-Geral pro tempore de Centro Federal de Educação Tecnológica, de Escola Técnica Federal e de Escola Agrotécnica Federal, na hipótese de vacância do cargo". O STF o declarou inconstitucional, à luz da autonomia universitária e da gestão democrática. Depois, a Medida Provisória nº 979/2020 estabeleceu uma nova forma de designação de dirigentes pro tempore para as instituições federais de ensino durante a pandemia (Covid-19). O Congresso reputou a iniciativa inconstitucional, "devolvendo" a medida provisória, em nome da autonomia universitária (art. 207) e da gestão democrática (art. 206, VI). Quanto às consequências das ações insistentes do Executivo, a poeira já se deixa ver. A BBC chama de "Fuga de cérebros"17, a diáspora de cientistas, intelectuais e acadêmicos que deixam o país em busca de melhores condições de trabalho, rejuvenescendo a máxima: "Brasil, ame-o ou deixe-o!". O país perde seus cérebros e, a nação, os seus maiores talentos.   O quadro revela intensa judicialização de uma crise que se abateu na educação superior no país, a partir do Ministério da Educação, alcançando as universidades. A solução não pode ser outra que não seja ela, a Constituição. A esse respeito, inclusive, Konrad Hesse que desde há muito já alertava: "se também em tempos difíceis a Constituição lograr preservar a sua força normativa, então ela configura verdadeira força viva capaz de proteger a vida do Estado contra as desmedidas investidas do arbítrio. Não é, portanto, em tempos tranquilos e felizes que a Constituição normativa vê-se submetida à sua prova de força. Em verdade, esta prova dá-se nas situações de emergência, nos tempos de necessidade".18 O Supremo Tribunal Federal, guardião que é da Constituição, há de seguir zelando pelas garantias institucionais voltadas para a educação, notadamente a superior. Isso porque, a vida cívica, a formação política, a elevação intelectual e a consolidação científica de uma nação começam nas universidades. Nos Estados Unidos, o desmantelamento da segregação racial imposta pelas leis Jim Crow19 teve as universidades como um dos seus celeiros. Na África do Sul, a retirada da estátua que cultuava um supremacista branco no campus da Universidade da Cidade do Cabo acendeu a fagulha que se espalhou levantando uma pergunta fundamental: para quem uma nação democrática, diversa e inclusiva deve render homenagens?20 Uma greve dos estudantes nas universidades de Pequim resultou na reação autoritária do governo que culminou com o Massacre da Praça da Paz Celestial, em 1989. No Brasil, a política de cotas foi reputada constitucional pelo STF, por unanimidade, a partir de uma experiência da UnB.21 Em Israel, Albert Einstein e Sigmund Freud se deram as mãos para, depois do Holocausto (Shoah), ajudarem a construir, para todos, um novo amanhã. O primeiro passo foi a fundação, por eles, da Universidade Hebraica de Jerusalém.22 O Universo está nas universidades e o STF há de assegurar as bases constitucionais que conferem a essa essencial instituição todas as condições para cumprir os seus propósitos. Propósitos esses que, como demonstrado, não podem ser engolidos por essa profunda crise na educação que tem resultado na judicialização aqui explicitada. __________ 1 Apud, Abboud, Georges. Processo constitucional brasileiro. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 274. 2 Apud, Abboud, Georges. Processo constitucional brasilei... São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 278. 3 Ribeiro, Darcy (Abril de 1995). "1961 - 1995: a invenção da Universidade de Brasília" (PDF). Senado Federal. Márcia Quarti, Maria Letícia Correia e Elizabeth Dezouzart (2018). "BUARQUE, Cristovam". Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil. Fundação Getúlio Vargas. 4 Melo, Lucas Fonseca e. Normas constitucionais não escritas. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 211-239, abr./jun. 2020. DOI: 10.21056/aec.v20i80.1263. 5 Melo, Lucas Fonseca e. Normas constitucionais não escritas. A&C - Revista de Direito Administrativo & Constitucional, Belo Horizonte, ano 20, n. 80, p. 211-239, abr./jun. 2020. DOI: 10.21056/aec.v20i80.1263. 6 Hesse, Konrad.  Força Normativa da Constituição. Tradução: Gilmar Mendes. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre: 1991, p. 24. 7 A decisão no INQ nº 4781 se baseou no laudo da Polícia Federal produzido no âmbito do INQ nº 4831, de relatoria do ministro Celso de Mello. 8 HC nº 186.296, Rel. Min. Edson Fachin (DJe 08/07/2020): "(...) Não cabe pedido de habeas corpus originário para o Tribunal Pleno contra ato de Ministro ou outro órgão fracionário da Corte. 2. Não conhecimento do habeas corpus. Decisão O Tribunal, por maioria, não conheceu do habeas corpus, nos termos do voto do Relator, vencido o Ministro Marco Aurélio. Impedido o Ministro Alexandre de Moraes". 9 Em sua decisão, o ministro Celso de Mello reconheceu a cessação da competência do STF para processar e julgar o caso, pois, com a exoneração do cargo, o ex-ministro perdeu o foro por prorrogativa de função. 10 A Portaria Normativa nº 13/2016 foi revogada pela Portaria Normativa nº 545/2020, do MEC. 11 Na ADPF, a Rede sustenta que, segundo noticiado pela imprensa, o comandante do Colégio Militar de Brasília determinou o afastamento de um professor de Geografia e a instauração de um PAD para apurar suas manifestações durante uma aula para o nono ano do ensino fundamental. O professor, que é major da Polícia Militar (PM), teria dito aos alunos que a PM agiu com "dois pesos e duas medidas" na manifestação ocorrida em São Paulo no dia 31/05 que a situação "remete a um fascismo, que a gente não quer mais isso no mundo". 12 O STF, por maioria, julgou procedente o pedido para declarar inconstitucional a integralidade da Lei nº 7.800/2016 do Estado de Alagoas, nos termos do voto do Relator, vencido o ministro Marco Aurélio. 13 A ADPF nº 722, ajuizada pela Rede, questionou investigação sigilosa aberta pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública contra quem era identificado, pelo Estado, como integrantes do "movimento antifascismo". 14 O STF, por maioria, referendou a liminar para suspender a eficácia do Decreto nº 10.502/2020, nos termos do voto do relator, vencidos os ministros Marco Aurélio e Nunes Marques. O ministro Roberto Barroso acompanhou o Relator com ressalvas. 15 Ajuizada pelo partido Cidadania. 16 O STF, por maioria, julgou procedente o pedido para declarar a inconstitucionalidade do parágrafo único e do caput do art. 7º-A do decreto 4.877/2003, acrescentado pelo Decreto nº 9.908/2019, nos termos do voto da Ministra Relatora, vencido o ministro Nunes Marques, que julgava parcialmente procedente o pedido. Eis os comandos centrais do decreto 9.908/2019: "Art. 1º O Decreto nº 4.877, de 13 de novembro de 2003, passa a vigorar com as seguintes alterações: 'Art. 7º-A O Ministro de Estado da Educação poderá nomear Diretor-Geral pro tempore de Centro Federal de Educação Tecnológica, de Escola Técnica Federal e de Escola Agrotécnica Federal quando, por qualquer motivo, o cargo de Diretor-Geral estiver vago e não houver condições de provimento regular imediato. Parágrafo único.  O Diretor-Geral pro tempore será escolhido dentre os docentes que integram o Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal com, no mínimo, cinco anos de exercício em instituição federal de ensino.'" 17 Disponível aqui. 18 Hesse, Konrad.  Força Normativa da Constituição. Tradução: Gilmar Mendes. Sergio Antonio Fabris Editor. Porto Alegre: 1991, p. 24. 19 As leis Jim Crow foram leis locais que impunham a segregação racial no sul dos Estados Unidos. Há exemplos. Em 1963, o Alabama era o único estado cuja segregação racial, a despeito da decisão da Suprema Corte, era mantida. O governador George C. Wallace Jr proclamara que ficaria em frente da porta de qualquer escola do Alabama que tivesse de acabar com a segregação. "Eu digo: segregação agora, segregação amanhã, segregação para sempre", afirmava em seus discursos. Depois de resistir diante da Universidade, o Governador viu o General Henry Graham se aproximar e afirmar, sem alterar o tom de voz: "É meu grave dever pedir-lhe que se afaste do caminho para que sejam cumpridas as ordens do presidente dos Estados Unidos". O país era comandado por John Kennedy. O governador Wallace saiu da frente e os corajosos jovens James Hood e Vivian Malone se tornaram os dois primeiros negros a se matricularem na universidade do estado. Cf.: C. Vann Woodward. The Strange Career of Jim Crow: A Commemorative Edition. Oxford, 2001. 20 Disponível aqui. 21 ADPF nº 186, de relatoria do ministro Ricardo Lewandowski. 22 45 Disponível aqui.
segunda-feira, 5 de abril de 2021

É por ela que ainda estamos aqui

Que tão sedutora palavra é essa, cuja ausência na Constituição Federal de 1988 parece não ter sido notada e, ainda assim, os feiticeiros da política não deixam de invocá-la sempre que precisam encantar o eleitorado? A miúda palavrinha lustra discursos, entusiasma gabinetes e anima o grande auditório nacional. Ela habitou todas as Constituições que tivemos, até que, a de 1967, entregue por um Congresso sem opositores a mando de um presidente sem voto popular - o marechal Castello Branco -, atreveu-se a rifá-la do nosso duradouro convívio. Nação. Duas sílabas apenas. Pelo prazer de jurá-la a torto e a direito, presidentes se disfarçam de camponeses, se preciso for. Todos os que querem nos tornar súditos dos palácios e do poder justificam-se à exaustão: "Pela Nação! Pela Nação!". Mas onde está essa palavra na Constituição de 1988? Não está. Apenas o seu plural, nações, aparece, e num contexto outro, voltado à aspiração de estabelecer uma "comunidade latino-americana de nações". Nada mais. Não há "Nação brasileira". A Constituição Imperial de 1824 assim se anunciava: "O Imperio do Brazil é a associação Politica de todos os Cidadãos Brazileiros. Elles formam uma Nação livre (...)". Eis trecho do juramento do Imperador: "Juro observar, e fazer observar a Constituição Politica da Nação Brazileira (...)". "Nação" se repete dezessete vezes.   Em 1891, trocamos o Império pela República. A Constituição mudou, mas manteve a tradição: "A Nação brasileira adota como forma de Governo, sob o regime representativo, a República Federativa, proclamada a 15 de novembro de 1889 (...)". Passo seguinte, a Constituição de 1934 fundou "um regime democrático, que assegure à Nação a unidade, a liberdade, a justiça e o bem-estar social e econômico (...)", e repetiu o comando do art. 1º da Constituição anterior. Nem a "Polaca" ousou fazer de conta que a Nação não existe. Usou-a várias vezes, boa parte delas para o que o presidente Getúlio Vargas queria, é verdade. A Constituição de 1937 - a Polaca - alertava que a situação ideológica do Brasil naquele momento terminaria "colocando a Nação sob a funesta iminência da guerra civil". E concluiu: "Resolve assegurar à Nação a sua unidade, o respeito à sua honra e à sua independência, e ao povo brasileiro, sob um regime de paz política e social, as condições necessárias à sua segurança, ao seu bem-estar e à sua prosperidade, decretando a seguinte Constituição, que se cumprirá desde hoje em todo o País". Já a Constituição de 1946, cuidando da "lei que decretar o estado de sítio", se valeu da expressão "crimes contra a segurança da Nação ou das suas instituições políticas e sociais". Foi a única menção que fez.    Da Constituição do Império até a de 1967 são quase 150 anos. A Nação abria boa parte dessas Constituições. Jamais ficou de fora. Até que desapareceu. Removeram a palavra da nossa história constitucional. Como puderam? Ela já não constava do anteprojeto elaborado pela Comissão Especial de Juristas formada por Levi Carneiro, Orozimbo Nonato, Miguel Seabra Fagundes e Themístocles Brandão Cavalcanti. Seguiu de fora com a promulgação da Constituição de 1967 e permaneceu apagada na Emenda de 1969. O que temiam? A palavra ou o sentimento? Na Constituição de 1988, a Pátria está presente: as Forças Armadas destinam-se à "defesa da Pátria". República também: "são símbolos da República Federativa do Brasil a bandeira, o hino, as armas e o selo nacionais". No preâmbulo, estão os "representantes do povo brasileiro". "Território nacional" aparece dezenove vezes. A cabeça do art. 5º, por exemplo, traz "País". Mais à frente, diz que o "Estado promoverá, na forma da lei, a defesa do consumidor". Ou seja, tem Pátria, tem República, tem povo, tem Território nacional, tem País, tem Estado..., há de tudo, menos Nação. A Constituição manteve a palavra de fora, mas reconstituiu o seu significado. Como há formas institucionalizadas de cumprimento dos comandos constitucionais, esse conteúdo está vivo e livre, expressado em outras construções semânticas. Diz: "constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira". Nação é patrimônio cultural, mas é mais do que isso. São aqueles bens sentidos, mas difíceis de serem vistos ou tocados. São conhecidos e percebidos. Ainda assim, não é fácil explicá-los. De tão diversos e intangíveis que são, não cabem num rol. Por isso, são "imateriais, tomados individualmente ou em conjunto". O conceito é fluido, mas a fluidez de um conceito não prova que o fenômeno a ser conceituado não existe. Ele existe e é definitivo na conformação da nossa comunidade.    Há muito da Nação numa Festa Junina, na feijoada temperada pelo samba no sábado ou no churrasco em casa no domingo. Há farta Nação numa apresentação da Esquadrilha da Fumaça, no Desfile de 7 de setembro, num atendimento num posto médico do Sistema Único de Saúde ou no anúncio do resultado das eleições pelo Tribunal Superior Eleitoral. Há espetáculos desportivos agregadores, há festivais musicais que ilustram, com a arte, nossas dores, há livros mostrando o Brasil pelos nossos escritores e há filmes e novelas falando dos nossos amores. Há um país repleto de arte à disposição do mundo. Há a geografia, a língua, as referências nacionais e as datas oficiais. Há folclore, há nomes de pessoas, há festas populares, há histórias, há registros e memórias. São elementos formadores da Nação. Símbolos estatais que combinam heroísmo e graça também adornam essa ideia. Quando as Forças Aéreas transformam o céu num arco-íris repleto de cores, com as cambalhotas mágica da Esquadrilha da Fumaça, colocamos as crianças nos ombros, dançamos e aplaudimos. As Forças Armadas batem à porta dos nossos lares não para levar nossos meninos para guerras onde a única vencedora é a morte. Batem nos convidando a conhecer os fardados artistas de um céu azul infinito que, manobrando com perícia, imitam a Mãe Natureza pintando riscos coloridos no ar que pertence a todos nós. A fumaça deles não é ruína, não é destruição, não é morte. É arte e arte feita por pilotos e mecânicos. É claro que esses símbolos ornamentam a Nação. E não precisa ser estatal. Pelo contrário. Devem ser populares também. Quando um nordestino deixa para trás a vida conhecida que vivia para abraçar, num ambiente hostil, uma outra por ele desconhecida e, na partida, leva consigo um isopor com a última refeição preparada pelos seus, o que ele carrega, na verdade, é a liga invisível constitutiva da Nação, a base afetiva e identitária que o alimentará na solidão. Essas são "brasilidades". Por que os brasileiros, morando no exterior, tendo deixado voluntariamente o país, se entregam ao encanto dos nossos artistas que desfilam de live em live legando ao mundo nossas raízes? Por que procuram a comida brasileira em lugares onde reina a abundância gastronômica? Será que ali comem comida ou comem suas saudades? Por que se reúnem no domingo para exercitar a lembrança, fazer churrasco e beber cerveja? Por que, em sua intimidade, oram em língua portuguesa e dizem para seus companheiros e companheiras "eu te amo!", mantendo o pertencimento à língua oficial? Essas práticas mostram que o país pode ter ficado para trás, mas a Nação, não. Ela permanece viva neles. Nação não é apenas um bem, ainda que imaterial. É um valor. Valores existem e a Constituição não é indiferente a eles. Tanto que, no preâmbulo, chama de "valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos" os "direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça". Diz mais: "Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais". Indo adiante, "a lei estabelecerá incentivos para a produção e o conhecimento de bens e valores culturais". Por fim, compete à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios "proteger os documentos, as obras e outros bens de valor histórico, artístico e cultural". Em resumo: formação, incentivo e proteção dos nossos "valores culturais".   Como se vê, a Constituição de 1988 foi espalhando a Nação em seu texto. Torna inviolável "a liberdade de consciência e de crença", assegurando "o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias". Torna "livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença". Veda "toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística". Não há a palavra, mas há a essência. Trata-se de algo que integra todas as memórias construídas no feliz lazer ao redor dos nossos. Lazer tanto é um direito social como uma "necessidade vital básica". Nele nasce boa parte das nossas histórias. Somos feitos delas. Ao assegurar um lugar de destaque para algo que parece banal, a Constituição de 1988 realçou mais um dos elementos do espírito da Nação.    E quanto ao Brasil, que país somos? Beligerante ou pacífico? Da pólvora ou da diplomacia? Da bomba ou do diálogo? Da invasão ou da negociação? Da arma em punho ou da mão estendida? Da cura ou da ferida? Da morte ou da vida? Somos uma República de paz, que se vale, interna e externamente, da "solução pacífica dos conflitos" e "controvérsias"; que assegura o direito de todos reunirem-se, em locais abertos ao público, independentemente de autorização, desde que "pacificamente e sem armas"; que diz ser plena a liberdade de associação para fins lícitos, "vedada a de caráter paramilitar"; que qualifica como crime inafiançável e imprescritível "a ação de grupos armados, civis ou militares, contra a ordem constitucional e o Estado Democrático"; que veda "a utilização pelos partidos políticos de organização paramilitar"; e que condiciona a admissão de atividade nuclear em território nacional a "fins pacíficos e mediante aprovação do Congresso Nacional". Por isso, mais do que um país, somos uma Nação da paz.   E não se esqueçam: no Brasil, Nação é respeito à diferença. Segundo a Constituição de 1988, "o ensino da História do Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a formação do povo brasileiro". Em nossa penosa caminhada, muitas culturas e etnias deram às mãos em prol de um ideal comum, fazendo isso, a propósito, com indescritíveis sacrifícios. Ao estudarmos História, valorizaremos esse esforço resiliente, digno, corajoso e plural. Não bastasse, "a lei disporá sobre a fixação de datas comemorativas de alta significação para os diferentes segmentos étnicos nacionais". Diferença novamente. "O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional". Não há estranhos entre nós. Para cada "outro", deve haver uma casa, em nossa individualidade, para abrigá-lo em nossas relações humanas, porque o manancial infinito de possibilidades individuais é elevado quando reverbera coletivamente.  Há mais demonstrações de pertencimento como diferença. Apesar de o idioma oficial ser a língua portuguesa, e do ensino fundamental regular ser nela ministrado, é "assegurada às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas". Ou seja, sequer a língua é um tabu. Abrimos espaço para outras possibilidades. É reconhecido "aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens". Os índios não são hóspedes incômodos ou estranhos exóticos numa terra "colonizada" ou "descoberta". Não sejamos cínicos. Não houve descoberta, houve pilhagem. Eles são, historicamente, os donos da terra e a Constituição assim os reconhecem no espaço que tradicionalmente ocupam. Respeito à diferença uma vez mais. O outro sou eu.     Somos uma Nação cujo país qualifica como brasileiros natos os nascidos aqui, ainda que de pais estrangeiros, desde que estes não estejam a serviço de seu país; e os nascidos no estrangeiro, de pai brasileiro ou mãe brasileira, desde que qualquer deles esteja a serviço do Brasil. Sensível ao fato de que o rigor do Direito não pode intensificar a crueza da vida, tratamos de aprovar a Emenda Constitucional nº 54, de 2007, abraçando como nossos os nascidos no estrangeiro de pai brasileiro ou de mãe brasileira, "desde que sejam registrados em repartição brasileira competente" - uma grande inovação - ou venham a residir no Brasil e optem, em qualquer tempo, depois de atingida a maioridade, pela nacionalidade brasileira. Foi a forma de dizer que, em nossa Nação, nenhum brasileiro ou brasileira será deixado para trás.   Em 2020, quando muitos radicais em todo o mundo adoravam os demônios da xenofobia, nós, no Brasil, por meio de um julgamento unânime do Supremo Tribunal Federal, derrubamos o pedaço de uma lei excludente e reafirmarmos a crença includente que nos forma, ao fixarmos a tese nº 373, cujo trecho essencial diz: "vedada a expulsão de estrangeiros cujo filho brasileiro foi reconhecido ou adotado posteriormente ao fato ensejador do ato expulsório, uma vez comprovado estar a criança sob a guarda do estrangeiro e desde depender economicamente". Como poderíamos, sentindo o que sentimos pelos nossos filhos, não conferir dignidade e proteção aos filhos do outro, ainda que, esse outro, não seja um nacional?    Mas na Nação também é há tristezas. O que diz a Constituição sobre a possibilidade de haver algo de profundamente doloroso apto a gerar trauma e rejeição à própria ideia de Nação? Falo do tipo de experiência que enseja ojeriza a tudo o que lembre o país de origem, sua gente e costumes, por mais que esse país seja o seu.   A Constituição de 1988 trouxe algumas armaduras. Ela diz ser dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, "o direito à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão". Anteviu que, para aqueles que iniciam a caminhada, há muita sabotagem na trilha. Negligência. Discriminação. Exploração. Violência. Crueldade. Opressão. A proteção se inicia quando criança, mas não cessa quando adulto. Há a determinação geral de que "ninguém será submetido a tortura nem a tratamento desumano ou degradante". São blindagens contra horrores que podem se impor sobre nós. É opressor erguer um país que se comporte com os seus como uma espécie de festa esnobe, na qual aos ricos tudo é dado e aos pobres é servido apenas sofrimento. Isso corrompe o sentimento de Nação. A desigualdade persistente é uma predadora inveterada. Por isso, a Nação não pode reduzir o potencial de contribuição dos seus ao tamanho dos bolsos. Quem faz isso é o dinheiro. O dever dela é o de reconhecer, em cada um, o mesmo potencial cívico para, preservadas as individualidades, aglutinar a força capaz de criar a obra coletiva comum que será entregue às futuras gerações. "A lei reprimirá o abuso do poder econômico que vise à dominação dos mercados, à eliminação da concorrência e ao aumento arbitrário dos lucros", diz a Constituição de 1988. Dispõe ainda que "o mercado interno integra o patrimônio nacional e será incentivado de modo a viabilizar o desenvolvimento cultural e sócio-econômico, o bem-estar da população e a autonomia tecnológica do País, nos termos de lei federal". O país tem regras e propósitos que devem servir ao "bem comum", o qual não é a mesma coisa de "bem do Estado", assim como "qualidade de vida" não quer dizer "quantidade de bens", como bem advertiu Eduardo Galeano. Mesmo o sistema financeiro nacional tem, segundo a Constituição de 1988, o seu propósito: "promover o desenvolvimento equilibrado do País e a servir aos interesses da coletividade". Isso não quer dizer que seja esse o propósito dos bancos e dos banqueiros. Eles são livres para escolherem suas aspirações, mas esses atores, que formam a Nação, estão juridicamente submetidos às regras de um sistema que precisa funcionar bem e para todos, de modo a promover o desenvolvimento equilibrado do País, servindo ao interesse coletivo. Assim, como privar o país da sua humanidade pode resultar numa repulsa à Nação, numa ojeriza à nossa brasilidade, a Constituição de 1988 tenta evitar abismos, para que assim a Nação contemple memórias que mais elevem do que destruam. Há, por fim, a raiz histórica. A literatura diz que foi o presidente Franklin Delano Roosevelt quem sugeriu o nome "Nações Unidas" para o que hoje é a ONU. Ocorreu durante a visita de Winston Churchill a Washington, em dezembro de 1941. Churchill aceitou citando Lord Byron, que usou a expressão "Nações Unidas" no poema "Childe Harold's Pilgrimage", referindo-se aos Aliados na Batalha de Waterloo, em 1815. Para Roosevelt e Churchill, a palavra Nação deveria estar lá.    Foi um erro histórico Castello Branco - ou sua entourage -ter aquiescido ou patrocinado, em 1967, a retirada da palavra Nação da nossa trajetória constitucional. Ela sobrevive, nos une e dá sentido à nossa vida coletiva. Se esse acidente tiver sido planejado, miraram a palavra, querendo apagar o sentimento. Qualquer que tenha sido a intenção, fracassaram nisso também. A verdade é que a Nação tem sido alimentada por nós muito mais do que pelos governantes. É por ela que ainda estamos aqui.
Em 26 de fevereiro último, a premiada escritora, jornalista e historiadora Anne Applebaum, deu uma entrevista para Marcelo Marthe, nas Páginas Amarelas da Veja. Americana de 56 anos, tendo sido editora das revistas The Economist e The Spectator, ela foi apresentada como "estrela indisputada da intelectualidade conservadora". A coluna de hoje aborda a sua mais recente obra, "O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política", traduzida por Alessandra Borrunquer e publicada pela Record. O livro começa com Anne Applebaum narrando os bastidores de uma festa num sobrado da cidade polonesa de Chobielin, oferecida por ela e por seu marido, Radek Sikorski, então vice-ministro do Exterior de um governo de centro-direita na Polônia, na noite do dia 31 de dezembro de 1999, celebrando a chegada do novo milênio. O grupo de convidados poderia ser colocado "na categoria que os poloneses chamam de direita: conservadores, anticomunistas". Eram "liberais de livre mercado, liberais clássicos, talvez thatcheristas". Todos acreditavam "na democracia, no estado de direito, em freios e contrapesos em uma Polônia que era membro da Otan e estava a caminho de se filiar à União Europeia (EU), uma Polônia integrada à Europa moderna". Vinte anos se passam. Em agosto de 2019, o casal deu uma nova festa. Os convidados eram outros. Muitos daqueles amigos de 1999 não eram mais bem-vindos. Eles haviam se radicalizado em pelejas ideológicas infinitas, todas elas profundamente desestabilizadoras das crenças anteriores por um mundo mais democrático. A obra então se desenvolve na História e na Teria Política, com recortes geopolíticos certeiros e atuais. A coluna se concentrará nas conclusões da autora quanto aos riscos que a independência judicial corre no mundo. O passeio global tem início na experiência polonesa. Ao rememorar a vitória apertada do partido Lei e Justiça em 2015, na Polônia, a obra recorda que o "novo governo violou a Constituição ao inadequadamente indicar novos juízes para o Tribunal Constitucional. Mais tarde, usou uma estratégia igualmente inconstitucional em uma tentativa de dominar a Suprema Corte e criar uma lei para punir juízes cujos vereditos contrariassem as políticas governamentais". Uma vez no poder, o radicalismo ficou óbvio. "O objetivo das mudanças não era fazer com que o governo funcionasse melhor. Era torná-lo mais partidário, com os tribunais mais influenciáveis e obedientes ao partido", anota a jornalista. Tendo sido eleito com uma margem de votos que lhe permitia governar, mas não modificar a Constituição, o Lei e Justiça, a fim de justificar a desobediência às leis, "deixou de usar argumentos políticos comuns e começou a identificar inimigos existenciais". Daí o alerta da autora: os autoritários precisam "de pessoas que saibam usar uma sofisticada linguagem legal, capaz de afirmar que agir contra a Constituição ou distorcer as leis é a coisa certa a fazer". Para que um projeto autoritário de poder possa ser implementado numa nação, com adesão popular a ele, é preciso que pessoas que ficaram para trás, no modelo competitivo e aberto que a democracia plural erige, enxerguem, pelo oportunismo de suas ambições irrealizadas, uma possibilidade de ascensão num mundo indiferente à falta de talento ou preparo. Essas pessoas, ressentidas, buscam causas para darem sentido a megalomanias pessoais ou projetos abortados. Surgindo o líder autoritário disposto a convocá-las, são esses os soldados certos para as missões mais deletérias à própria democracia. Eles sempre existiram. A diferença é que, agora, estão no poder. A escritora alerta que o mais proeminente ex-comunista na política polonesa hoje é Stanislaw Piotrowicz, indicado do Lei e Justiça para o Tribunal Constitucional. "É, sem surpresa, grande inimigo da independência judiciária". Ou seja, para que o Poder Judiciário seja capturado, é preciso escolher as pessoas certas para a missão e, ao contrário de escondê-las, projetá-las, dando-lhes poder. Foi o caso de Piotrowicz. Desmoralizar o conjunto de institutos e instituições que dão sustentação ao estado de direito é um projeto que reclama método. Por isso, as Supremas Cortes, a Constituição e o Poder Judiciário costumam ser visados. Eles representam um escudo contra os excessos desse tipo de projeto iliberal, logo, precisam ruir ou, pelo menos, ser tão cotidianamente desmoralizados até que não haja mais qualquer adesão à sua autoridade. Anne Applebaum lembra do jornalista inglês Christopher Caldwell, que produziu um artigo no Claremont Review elogiando o ataque de Viktor Órban, primeiro-ministro da Hungria, "às estruturas sociais neutras e ao campo de jogo nivelado" -, expressão considerada, por ela, "um eufemismo para tribunais independentes e estado de direito". Além da Polônia, a obra discorre sobre o fenômeno Brexit: "vencer exigia passos sem precedentes. A Constituição tinha de ser levada ao limite", registra a jornalista. Em setembro de 2019, o primeiro-ministro Boris Johnson suspendeu o Parlamento inglês, "de modo inconstitucional", diz. Anne lembra que o manifesto do Partido Tory, escrito antes da campanha eleitoral de dezembro de 2019, continha pistas da vingança contra os freios e contrapesos da Constituição. Eis trecho: "Após o Brexit, precisaremos analisar também os aspectos mais amplos de nossa Constituição: o relacionamento entre governo, Parlamento e tribunais; o funcionamento da prerrogativa real; o papel da Câmara dos Lordes e o acesso à justiça para as pessoas comuns". Sobre a Espanha, aborda uma "controversa decisão judicial sobre um caso de estupro que levou centenas de milhares de mulheres às ruas em grandes e ruidosas manifestações, perturbando muitos católicos tradicionais". Em 2017, o governo regional catalão, fortemente controlado por separatistas, "decidiu realizar um referendo sobre a independência. O Tribunal Constitucional espanhol declarou o referendo ilegal". Controvérsias variadas, às vezes dirigidas aos tribunais, serviram de insumo para que o discurso político raivoso seduzisse populares contra as intervenções do Poder Judiciário. Nasceu o Vox, partido espanhol que, após patinar em eleições passadas, se coloca hoje como uma agremiação com representatividade parlamentar, disposto a perseverar com pautas incompatíveis com a base de uma democracia liberal.    Os Estados Unidos não poderiam ficar de fora do livro. No capítulo V, "Prairie fire", Anne Applebaum lembra que o republicano Ronald Reagan pediu que os americanos se unissem em torno não do sangue ou do solo, "mas da Constituição": "Enquanto lembrarmos de nossos primeiros princípios e acreditarmos em nós mesmos, o futuro sempre será nosso", exortou o então presidente. Ela anota que radicais do Weather Underground (Submundo do Tempo), em 1970, atiraram "coquetéis molotov na casa de um juiz nova-iorquino da Suprema Corte". Para a autora, "(...) a monotonia contrastante da burocracia e dos tribunais; tudo isso tem enervado a parte da população que prefere unidade e homogeneidade". Anne Applebaum destaca que quando dizemos coisas como "a Rússia é corrupta, mas todo mundo é", o que se faz é uma defesa da equivalência moral, "um argumento que mina a fé, a esperança e a crença de que podemos estar à altura da linguagem da Constituição". Nasce uma carta em branco para que se viole as leis. A obra segue com erudição - numa linguagem simples - e cosmopolitismo. Num dado momento, aparece Laura Ingraham, que fora assistente de Clarence Thomas, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, e era advogada de uma firma moderna. "Seu otimismo reaganista desapareceu e, lentamente, transformou-se no pessimismo apocalíptico partilhado por tantos outros", anota Anne, transcrevendo uma das tantas falas da advogada: "Os Estados Unidos estão condenados, a Europa está condenada, a civilização ocidental está condenada. A imigração, o politicamente correto, o transgenerismo, a cultura, o establishment, a esquerda e os democratas são responsáveis". A escritora questiona: "O político iliberal quer enfraquecer os tribunais a fim de obter mais poder para si mesmo, mas como persuade os eleitores a aceitarem essas mudanças?". Há muitas formas. O medo é uma delas. O ressentimento, outra.   Voltando-se para a realidade francesa, diz que o nacionalismo "A França para os franceses", de Marine Le Pen, se opõe à visão mais ampla de Emmanuel Macron sobre uma nação "republicana que ainda defende um conjunto de valores abstratos, entre eles a justiça imparcial e o estado de direito". Esses são os princípios regedores de qualquer democracia liberal no mundo, pouco importa qual a sua inclinação política. Apesar do cenário, ela não joga a toalha: "a Europa, os Estados Unidos e o mundo estão cheios de pessoas - urbanas e rurais, provincianas e cosmopolitas - com ideias criativas e interessantes sobre como viver em um mundo muito mais justo e mais aberto". Anne reconhece que "os freios e contrapesos das democracias constitucionais ocidentais jamais garantiram estabilidade", mas enfatiza que "eles sempre exigiram certa tolerância pela cacofonia e pelo caos, assim como certa disposição em reagir às pessoas que criam cacofonia e caos". A democracia reclama reação para que possa se manter viva.   A obra, todavia, é contundente em suas conclusões: "é possível que já estejamos vivendo o crepúsculo da democracia; que nossa civilização já esteja caminhando para a anarquia ou a tirania, como temiam os antigos filósofos e os fundadores americanos; que uma nova geração de clercs, os defensores de ideais iliberais ou autoritárias, cheguem ao poder no século XXI, assim como fizeram no século XX; e que suas visões de mundo, nascidas do ressentimento, da raiva ou de sonhos messiânicos, possam triunfar". Nesse particular, ela alerta sobre os efeitos desse tempo em relação ao Poder Judiciário: "não foi por acidente que juízes e tribunais se tornaram objeto de crítica, escrutínio e raiva em muitos outros lugares. Não pode haver neutralidade em um mundo polarizado, porque não pode haver instituições apartidárias ou apolíticas". A afirmação acima se aplica às relações humanas. Num mundo dividido entre facções raivosas, os moderados precisam ser machucados. São reputados sem opinião, sem posição, sem expressão. Pela sua lucidez e ausência de ódios empedernidos, nada têm a contribuir. Precisam ser subestimados, silenciados e, então, excluídos. Só os autoritários, se alimentando reciprocamente, devem ter voz nesse grande teatro barulhento. Mesmo porque, não é mais uma arena pública. É uma guerra.    O livro de Anne Applebaum faz uma profecia já realizada. Acurado intelectualmente e repleto de perspectivas sensatas, mostra que tudo pelo o que estamos passando já chegou em nossos telefones, em nossas redes sociais, em nosso ambiente de trabalho, em nossos lares e em nossas famílias. Não dá mais para ignorar. Há uma predisposição autoritária por parte de pessoas muito próximas, pessoas essas que, num outro momento, chegaram a celebrar as conquistas da democracia e de um pensamento ligado à liberdade, aos direitos e às instituições dedicadas à elevação da condição humana. Para que essa tempestade assombrosa varra do mapa a acepção de democracia liberal que conhecemos, a Constituição e o Poder Judiciário precisam ser feridos. Não se trata de corrigir excessos dos seus integrantes por meio dos órgãos criados para isso, tampouco de aperfeiçoar funcionamentos. O líder autoritário precisa tentar, repetidas vezes, envolver pessoalmente integrantes do Judiciário ou, pelo menos, exibi-los como aliados. Enquanto faz isso, usa o seu poder para, cotidianamente, questionar a autoridade judicial e desmoralizar a instituição. A mão que acena é a mesma que sabota. Com o registro pessoal das duas celebrações que ofereceu em momentos distintos da história política mundial - a primeira, em 1999, e a segunda, em 2019 - Anne Appleblaum mostra que há colegas, amigos e familiares que simplesmente escolheram um lado que não é o da democracia e que abraçarão todo tipo de pensamento simplista para justificar essa guinada existencial. Eles estão cada vez mais predispostos a uma postura autoritária e os arranjos normativos da democracia lhes deram um título de eleitor. Por outro lado, há também muita gente que, ilhada e sozinha, embarcou nesse barco, mas, olhando agora, não tem mais fôlego para negar os buracos no casco. Eram amigos e amigas enfastiados pelas disputas passadas que, exauridos, abraçariam qualquer convite que os tirasse dali. Essas pessoas hoje sentem-se perdidas. Devem voltar para o nosso convívio, ver resgatados os fios de amizade esgarçados e retomar a lucidez de antes para que, juntos, ajudem a encontrar soluções para o atoleiro no qual estamos. Se assim o for - e tudo leva a crer que é -, está na hora de convidarmos novas pessoas para as nossas casas, para as nossas festas e para as nossas vidas. Pessoas comprometidas com a democracia e com tudo o que de edificante e plural que ela abraça. A independência judicial e o estado de direito constituem pilares dessa crença. Essa é pelo menos uma das muitas lições de "O crepúsculo da democracia: como o autoritarismo seduz e as amizades são desfeitas em nome da política". Vale ler.
segunda-feira, 22 de fevereiro de 2021

Limitação territorial dos efeitos da sentença em ACP

O Supremo Tribunal Federal pautou, para quinta-feira, 25/2, em seu plenário, o recurso extraordinário nº 1.101.937, que veicula o Tema nº 1.075 da repercussão geral, de relatoria do ministro Alexandre de Moraes, qual seja, a discussão sobre a "constitucionalidade do art. 16 da lei 7.347/85, segundo o qual a sentença na ação civil pública fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator". O assunto é mais do que relevante. Em sua redação original, o art. 16 da lei 7.347/85 - Lei da Ação Civil Pública - determinava, de forma genérica, que a sentença civil proferida em ação civil pública operaria eficácia erga omnes. Isso, sem explicitar os limites territoriais do provimento jurisdicional prolatado: "Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, exceto se a ação for julgada improcedente por deficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova." O art. 2º da Medida Provisória nº 1570-5/97, convertida na lei 9.494/97, alterou a redação do dispositivo e explicitou que os efeitos da coisa julgada em sede de ação civil pública é erga omnes, mas nos limites territoriais do órgão prolator da sentença. Eis a redação: "Art. 16. A sentença civil fará coisa julgada erga omnes, nos limites da competência territorial do órgão prolator, exceto se o pedido for julgado improcedente por insuficiência de provas, hipótese em que qualquer legitimado poderá intentar outra ação com idêntico fundamento, valendo-se de nova prova." No STF, o ministro Marco Aurélio anotou, ao julgar a cautelar pleiteada na ação direta de inconstitucionalidade nº 1576, que a lei 9.494/97, ao promover a emenda aditiva ao art. 16 da lei 7.347/85, apenas explicitou a eficácia erga omnes da sentença proferida em sede de ação civil pública aos limites territoriais do órgão prolator da sentença. Eis trecho do acórdão nesse particular:  "A alteração do artigo 16 correu à conta da necessidade de explicitar-se a eficácia erga omnes da sentença proferida na ação civil pública. Entendo que o artigo 16 da lei 7.347, de 24 de julho de 1985, harmônico com o sistema Judiciário pátrio, jungia, mesmo na redação primitiva, a coisa julgada erga omnes da sentença civil à área de atuação do órgão que viesse a prolatá-la. A alusão à eficácia erga omnes sempre esteve ligada à ultrapassagem dos limites subjetivos da ação, tendo em conta até mesmo o interesse em jogo - difuso ou coletivo - não alcançando, portanto, situações concretas, quer sob o ângulo objetivo, quer subjetivo, notadas além das fronteiras fixadoras do juízo. Por isso, tenho a mudança de redação como pedagógica, a revelar o surgimento de efeitos erga omnes na área de atuação do Juízo e, portanto, o respeito à competência geográfica delimitada pelas leis de regência. Isso não implica esvaziamento da ação civil pública nem, tampouco, ingerência indevida do Poder Executivo no Judiciário. Indefiro a liminar".  Em 2006, a Corte Especial do Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o Recurso Especial nº 293.407 e seguindo posição de 2001 no Recurso Especial nº 253.589, concluiu não haver como, no âmbito do "microssistema processual das tutelas coletivas", estender-se a eficácia da sentença em ação civil pública para além dos limites territoriais em que prolatada.   De fato, não se coaduna com o juiz natural que um provimento jurisdicional emanado em uma determinada Circunscrição, Comarca ou Seção Judiciária irradie seus efeitos para além do limite territorial em que exarado. No REsp nº 293.407, por exemplo, o ministro Ruy Rosado registrou: "assim como não cabe centralizar em uma Vara de Brasília a competência para todas as ações civis públicas do país, pelos evidentes inconvenientes que disso decorreriam, também inadmissível que sentença com trânsito em julgado de pequena comarca do interior desse imenso Brasil possa produzir efeito sobre todo o território nacional". Com algumas oscilações, o STJ passou a sinalizar, em meados de 20091, que alteraria seu entendimento para afastar a limitação territorial imposta pela norma contida no art. 16 da Lei nº 7.347/85, prognóstico que veio se confirmar anos mais tarde com o recurso especial repetitivo n.º 1.243.887, de relatoria do ministro Luís Felipe Salomão. Ocorre que, quanto ao art. 16 da Lei nº 7.347/85, não se afigura constitucionalmente adequado ou funcional em termos de organização do Sistema de Justiça, que um magistrado de 1º grau de jurisdição, cujas competências são restritas ao âmbito de seu território ou mesmo um Tribunal, limitado pelas fronteiras com outras Regiões ou Estados, exerça sua jurisdição nacionalmente impondo obrigações a realidades absolutamente distintas entre si. Vale recordar o que anotou o ministro Néri da Silveira, na citada ADI nº 1576: "sempre entendi essa cláusula da eficácia erga omnes nos limites da competência do juiz. Creio que há um princípio maior concernente à definição da competência do juiz. O juiz só pode oficiar sobre matéria a respeito da qual é competente e dentro dos limites da sua jurisdição". Nessa mesma ação, registrou o ministro Nelson Jobim: "o que está dito é que a eficácia erga omnes da decisão é contra todos dentro do universo de competência territorial do juiz prolator. É evidente, senão estaríamos estendendo a competência de um juiz, em termos concretos, reais, fora do seu território de competência, o que é uma inversão total do critério da competência e da territorialidade". Logo, só há decisão, porque há um Juízo prévio fixado em um limite territorial. Seus provimentos só produzem efeitos onde ele possui jurisdição. Se assim não fosse, ter-se-ia, como já se têm, uma 'autofagia federativa', ocasionando-se prejuízos não apenas ao cidadão, mas aos mercados regulados que se desenvolvem em território nacional. E é sobre esses mercados regulados que os efeitos são mais perversos. Consoante o art. 22, IV da Constituição, compete privativamente à União legislar sobre telecomunicações. O art. 21, XI entrega à União a competência para "explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais". Realizando esses comandos, veio a lei 9.472/97 - Lei Geral de Telecomunicações -, dispondo "sobre a criação dos serviços de telecomunicações, a criação e funcionamento de um órgão regulador e outros aspectos institucionais", qual seja, a Anatel. Ocorre que, não raramente, provimentos jurisdicionais, a pretexto de corrigirem distorções em benefício de uma suposta tutela de direitos, acabam por desconsiderar a complexa regulação técnica feita pela Anatel e por todos os demais setores essenciais regulados. Cria-se verdadeiro dano reverso, com quebra de isonomia entre usuários distintos. Essa substituição da discricionariedade técnica do administrador por uma decisão judicial que, por sua 'capacidade institucional', não leva em conta fatores sistêmicos que fazem parte de uma escolha regulatória, se revela ainda mais gravoso com a expansão dos efeitos de uma ação civil pública para além dos limites territoriais do órgão prolator, pois cria-se dificuldade de (i) precificação de serviços públicos prestados e de estabelecimento de uma adequada contraprestação pecuniária que remunere a prestação do serviço de telecomunicações; (ii) de cumprimento de decisões judiciais que criam múltiplos, diversos e contraditórios cenários "regulatórios" para regiões completamente diferentes entre si, ocasionando não apenas danos ao arquétipo regulatório da Anatel, mas desigualdades entre os próprios usuários e consumidores ao se estender indistintamente regras criadas por decisões que refletem a realidade de um local a outro totalmente distinto; e (iii) de se estabelecer um marco normativo-regulatório seguro em razão da necessidade de a todo tempo e ao sabor de decisões contraditórias se adequarem regras que devem ser estáveis. Sensível a esses aspectos, é de fundamental importância que o Supremo Tribunal Federal, ao deliberar sobre o Tema nº 1.075 da repercussão geral, nessa quinta-feira, fixe a interpretação constitucionalmente aceitável do art. 16 da lei 7.347/85, vedando qualquer exegese que desconsidere a letra do comando para conferir-lhe uma ampliação para além dos limites do órgão prolator do pronunciamento. __________ 1 REsp nº 399.357/SP.
segunda-feira, 19 de outubro de 2020

A cor da liberdade

A editora Zahar publicou, em 2018, "A cor da liberdade: os anos de presidência", a continuidade da biografia de Nelson Mandela, Longa caminhada até a liberdade. "Tem como espinha dorsal as memórias que Mandela começou a escrever quando se preparou para deixar o cargo, mas não teve condições de terminar", consta da orelha do livro. O premiado escritor sul-africano Mandla Langa terminou a tarefa usando "o rascunho inacabado e as notas detalhadas que Mandela fez ao longo dos anos - além de um rico e inédito material de arquivo".   Com prólogo de Graça Machel, viúva de Madiba, o livro é estruturado a partir de uma Nota ao leitor, seguida do Prefácio, trazendo, então, o seguinte sumário: "1. O desafio da liberdade; 2. Negociando a democracia; 3. Eleições livres e idôneas; 4. Entrando no Palácio do Governo; 5. Unidade Nacional; 6. A presidência e a Constituição; 7. O Congresso; 8. Liderança tradicional e democracia; 9. Transformação do Estado; 10. Reconciliação; 11. Transformação social e econômica; 12. Negociando com os meios de comunicação; 13. Na África e no mundo; Epílogo". Com tradução de Denise Bottmann, trata-se de uma aventura de 470 páginas. Logo no início, ligando os pontos com o passado, há uma fala de Nelson Mandela em Longa caminhada para a liberdade: "A verdade é que ainda não somos livres, alcançamos apenas a liberdade de sermos livres, o direito de não sermos oprimidos. Demos não o passo final de nossa jornada, mas o primeiro numa estrada mais longa e ainda mais difícil". No prefácio, a nova África do Sul é contextualizada com as consequências traumáticas de um "nascimento difícil" (p. 15). Mandela é o "parteiro de um nascimento problemático" (p. 236). A obra mostra um líder com defeitos e contradições, mas apaixonado pelo seu país e que encontrou na luta contra o racismo a sua missão imortal. "Não era um santo, mas um pecador que continua a se esforçar", escreveu Mandla Langa (p. 378). A compreensão dos direitos fundamentais foi imortalizada num discurso em 20 de dezembro de 1997, na Conferência do partido, o Congresso Nacional Africano - CNA, quando Nelson Mandela falou: "O dia de hoje marca a realização de mais um salto naquela corrida de revezamento - que ainda continuará por muitas décadas" (p. 22). Segundo o livro, "tendo estudado longamente o inimigo e lido suas obras de história, jurisprudência, filosofia, língua e cultura, Mandela chegava à conclusão de que os brancos fatalmente descobriram que o racismo os prejudicava tanto quanto aos negros" (p. 24). Em entrevista a Oprah Winfrey, retratada no livro, Madiba disse: "nossa conversa com o inimigo foi resultado do domínio da razão sobre a emoção" (p. 285). A prisão amainou o espírito de Mandela. "Sobreviver no cárcere demandava enormes reservas de força mental - ele precisava se armar com o que fortalecesse sua estabilidade interior e abandonar tudo o que pudesse debilitá-la" (p. 235). Encarcerado, Madiba "aperfeiçoou aquela capacidade que, mais tarde, viria a ser um de seus pontos mais fortes: a de perceber que a pessoa diante dele, amiga ou inimiga, era um ser humano complexo, com personalidade multifacetada" (p. 31). Mandla Langa prossegue: "Ele sabia que precisava se livrar do peso do ressentimento" (p. 31). O autor diz que Mandela "via o encarceramento como uma oportunidade de conhecer a si mesmo" (p. 60). O arremate vem do próprio Madiba, que diz: "A cela lhe dá a oportunidade de examinar diariamente sua conduta, de vencer o que há de ruim e desenvolver o que há de bom em você" (p. 61). Ao sair da prisão Victor Verster, Nelson Mandela já havia dito a si mesmo que a missão de sua vida era "libertar oprimidos e opressores". O livro enfatiza o erro das hesitações em momentos raros de um chamamento histórico para as grandes missões humanistas que a jornada dos tempos costuma fazer. "Na versão nguni, as pessoas dizem: 'Sihamba nabahambayo', que em isiZulu significa simplesmente: 'Levamos conosco os que estão prontos para a viagem'. 'Ha e duma eyatsamaya' (quando o motor começa a funcionar, esse veículo vai partir), diz o refrão de uma cantiga tradicional em setswana - um conselho aos indecisos para andarem logo". Para Mandela, "era hora de entrar em movimento" (p. 58). Esse espírito de luta foi retratado pela viúva Graça Machel, no prólogo: "Possamos todos nós encontrar um local de descanso, mas nunca demorarmos demais na jornada a que fomos chamados" (p. 11).   Langa lembra que "um elemento importante na grandeza de Mandela era nunca tomar nada - nem ninguém - por definitivo" (p. 91). Enfatiza a convicção pessoal no sentido de jamais ser descortês com outro líder. "Os líderes, a seu ver, representavam um eleitorado. Qualquer grosseria com eles se convertia, portanto, numa afronta geral a seus seguidores" (p. 137). A personalidade cativante de Mandela permeia o livro. Ele "somava à inflexível praticidade uma cortesia de tipo europeu, que também esperava da parte de outros, sobretudo dos colegas" (p. 199). "Era afável, simpático e sorria muito" (p. 61). Seus predicados fizeram o congressista republicano Amory R. Houghton Jr., dos Estados Unidos, comentar: "Ele é o George Washington da África do Sul" (pp. 149/150). Mas esse jeito envolvente não o impedia de às vezes sair da linha em embates verbais com oponentes: "Não sou diplomata, pois passei meu tempo lutando com carcereiros. O que eu devia declarar?", disse certa feita (p. 205). Na cúpula da Organização da Unidade Africana (OUA), um mês após a sua posse como presidente da África do Sul, Nelson Mandela dividiu com o público essa linda construção retórica: "Se a liberdade era a coroa que os combatentes da libertação procuraram pôr na cabeça da mãe África, que o avanço, a felicidade, a prosperidade e o conforto de seus filhos sejam a joia da coroa" (p. 355). A obra traz detalhes do singular processo constituinte sul-africano. Recorda que o Termo de Entendimento assinado pelo CNA e pelo Partido Nacional, em 26 de novembro de 1992, abriu caminho para um processo de duas etapas; a primeira, um fórum pluripartidário de negociação que resultou em 34 princípios aprovados pelo governo do Partido Nacional como parte da Constituição interina. Dispunha sobre a eleição de um Congresso com representação proporcional dos partidos com base no voto universal, que operaria como uma Assembleia Constituinte, encarregada de elaborar o texto final. Caberia à Corte Constitucional, criada pela Constituição interina, certificar que o novo texto estava em conformidade com os 34 princípios antes de ser promulgado (p. 176). Enquanto o fórum pluripartidário negociava a Constituição interina, o texto da Constituição final foi elaborado pelos representantes dos cidadãos que compunham a Assembleia Constituinte em número proporcional aos votos recebidos por seus partidos na eleição de 1994. Houve "participação pública direta, inclusive propostas de cidadãos tanto por escrito quanto em forma oral, em fóruns nas vilas, cidades e comunidades" (p. 177). Em 8 de maio de 1996, a Assembleia Constituinte adotou o texto que o Comitê Constitucional do Congresso terminara de redigir de madrugada. Mandela o acolheu dizendo: "Os breves segundos em que a maioria dos ilustres membros assentiu silenciosamente à nova lei fundamental do país capturaram, num instante fugaz, os séculos de história que o povo sul-africano suportou em busca de um futuro melhor" (p. 182). Para o presidente, "ao fim e ao cabo, não devia haver ganhadores e perdedores", e sim "a África do Sul como um todo deve sair ganhadora" (p. 184). Disse ainda: "Todos os dias vou me deitar sentindo força e esperança, porque posso ver que estão surgindo novos líderes do pensamento, líderes que são a esperança do futuro" (p. 185). Voltando no tempo, a obra "A cor da liberdade" vai a 20 de abril de 1964, quando, no banco dos réus, no julgamento do caso Rivônia, diante de uma provável sentença de morte, Mandela disse ao Tribunal e ao mundo: "acalento o ideal de uma sociedade livre e democrática em que todos vivam juntos em harmonia e igualdade de oportunidades. É um ideal pelo qual espero viver e espero alcançar. Mas, se for necessário, é um ideal pelo qual estou preparado para morrer" (p. 169). Trinta anos depois, Mandela nomeou Arthur Chaskalson, integrante da equipe de defesa no julgamento e membro do Comitê Constitucional do CNA, para a presidência da Corte Constitucional. "Ele havia sido impedido pelo Estado do apartheid de exercer a advocacia em várias partes do país, mediante um bizantino conjunto de medidas" (p. 189). Na inauguração da Corte, em fevereiro de 1995, Mandela dividiu suas impressões sobre o constitucionalismo: "significa que nenhum cargo e nenhuma instituição podem ficar acima da lei. Os mais poderosos e os mais humildes da terra, todos, sem exceção, devem obediência ao mesmo documento, aos mesmos princípios. Não interessa se você é negro ou branco, homem ou mulher, jovem ou velho; se fala setswana ou africâner; se é rico ou pobre, se usa um carro novo e elegante ou anda a pé e descalço; se usa farda ou está preso numa cela. Todos nós temos certos direitos básicos, e esses direitos fundamentais estão expostos na Constituição" (pp. 186/187). Afirmou ainda que a Constituição "permite que as múltiplas vozes do povo sejam ouvidas de maneira organizada, articulada, dotada de sentido e orientada por princípios" (p. 187). O presidente Nelson Mandela lembrou que, no desenho institucional sul-africano pintado pela recente Constituição por ele gestada, existem "entidades institucionais que são comandadas por figuras públicas fortes e qualificadas, totalmente independentes do governo" (p. 190). São elas: o Protetor Público, o Diretor Nacional dos Processos Públicos, o Ouvidor-Geral, a Comissão de Direitos Humanos, a Comissão de Verdade e Reconciliação e a Corte Constitucional (p. 190). A obra lembra que "a Comissão de Verdade e Reconciliação (CVR), presidida pelo arcebispo Desmond Tutu, tornou-se o símbolo da nova África do Sul tal como o apartheid a simbolizara no regime antigo, ficando atrás apenas da nova Constituição. Para a comunidade internacional, foi uma vívida demonstração da corajosa missão da África do Sul em aprofundar a democracia" (p. 297). A reafirmação do princípio do "nunca mais" veio em seu Discurso à Nação, em 1997, quando disse: "Todos nós, como nação que acaba de encontrar a si mesma, partilhamos a vergonha perante a capacidade de seres humanos de qualquer raça ou grupo linguístico de serem desumanos com ouros seres humanos. Todos nós devemos participar do compromisso com uma África do Sul onde isso nunca mais se repetirá" (p. 304). Mas Mandela, que criou a Corte Constitucional, por mais de uma vez se viu às voltas com suas decisões. A primeira delas, quando exonerou sua ex-esposa, Winnie Mandela, do cargo de vice-ministra de Artes, Cultura, Ciência e Tecnologia. Pela Constituição, o presidente deveria consultar os dois vice-presidentes e os líderes de todos os partidos no gabinete. Ele não o fez. Então decidiu que "a demissão da sra. Mandela deve ser tratada como inválida em termos técnicos e de procedimento". Procedeu assim pelo compromisso de "agir dentro do espírito da Constituição, e ademais deseja poupar ao governo e à nação as incertezas que poderiam se seguir a uma prolongada ação judicial sobre essa questão" (p. 146). Outro episódio havia se dado antes mesma da redação da nova Constituição. Chegando o prazo final dos preparativos para as eleições locais, o Congresso adotou a Lei de Transição do Governo Local antes que a sua redação estivesse pronta. Para compensar, foi incluída uma cláusula conferindo ao presidente o poder de emenda à lei. Com o dispositivo, Mandela transferiu o controle sobre a composição dos comitês de demarcação do governo local do governo provincial para o governo nacional. Todavia, isso invalidou decisões tomadas pelo governador do Cabo Ocidental, Hernus Kriel, que levou a questão à Corte Constitucional. O tribunal deu ganho de causa para o governo provincial do Cabo Ocidental e concedeu ao Congresso o prazo de um mês para retificar a lei (p. 170). Uma hora depois da divulgação, pela Corte Constitucional, da decisão, o presidente Nelson Mandela aceitou publicamente a determinação: "Logo que fui informado da decisão, convoquei uma coletiva de imprensa e conclamei o público geral a respeitar a sentença da mais alta corte no país em assuntos constitucionais" (p. 171). E fechou: "devo enfatizar que a decisão do Tribunal Constitucional confirma que nossa nova democracia está lançando raízes sólidas e que ninguém está acima da lei" (p. 171). Há na obra uma passagem de Albie Sachs, indicado pelo presidente Nelson Mandela para a primeira composição da Corte Constitucional, onde ele recorda que Madiba, em maio de 1961, "estava na clandestinidade e tinha convocado uma greve geral. Declarando que a maioria do povo não fora consultada sobre a transformação da África do Sul numa República fora da Commonwealth (Comunidade das Nações), ele juntou ao apelo de paralização a reinvindicação de que se realizasse uma convenção nacional pra redigir uma nova Constituição". Mandla Langa então diz que, "trinta e cinco anos depois, a lei, antes cruel instrumento de exclusão e opressão, finalmente se transformava para servir a todos" (p. 191). O livro lembra que todas as províncias sul-africanas tinham suas histórias de desgraças. Dentre elas, Natal arcava com o maior peso da brutalidade. "Era ali que o Partido da Liberdade Inkatha, com o respaldo de agentes do Serviço Policial Sul Africano, travava guerra ao CNA e seus seguidores". Mandela foi duro com os partidários do Inkatha. Para ele, esses oponentes "ficam falando sobre o caráter sagrado da Constituição, mas, quando estavam no poder, ao mais leve pretexto intervinham na Constituição. (...) Agora nos passam sermões sobre o caráter sagrado da Constituição" (pp. 230/231). Duas semanas após a sua saída da prisão, Mandela discursou para 100 mil pessoas no Kings Park Stadium, na cidade de Durban. A obra retrata o evento como "um dos momentos memoráveis e purificadores para Mandela" (p. 40). "Peguem suas armas, suas facas e suas pangas e joguem no mar!", ordenou Madiba. "Entre a multidão, iniciou-se um som surdo e baixo de desaprovação, que foi crescendo e se transformou num coro de vaias". Mesmo assim, Mandela prosseguiu: "Fechem as fábricas de morte! Terminem já essa guerra!" (p. 41). A compreensão se aproximava de Martin Luther King Jr, que, ao receber o Prêmio Nobel da Paz, em 1964, dissera: "A violência como forma de alcançar a justiça racial é inviável e imoral", pontuando em seguida: "A violência é inviável, porque é uma espiral descendente que termina em destruição para todos" (pp. 55/56). Para além de perseverar pela paz, Mandela também tinha outras agendas e seu governa não as negligenciaria. Menos de um mês depois do início do governo, Mandela escreveu a seus ministros mostrando a urgência que atribuía à questão específica da nomeação de mulheres. Escreveu o presidente da África do Sul: "Nosso país alcançou o ponto em que se reconhece que a representação das mulheres é essencial para o êxito de nosso programa de construção de uma sociedade justa e equitativa. O governo precisa liderar esse processo dando provas visíveis da presença de mulheres em todos os níveis de governo. Assim, eu gostaria de lhes solicitar que deem prioridade à nomeação de mulheres para cargos nos departamentos do governo, no serviço público e nos comitês permanentes. Também gostaria de lembra-los de que os serviços a serem prestados pelos departamentos de vocês devem trazer melhorias às condições não só dos homens, mas também das mulheres" (p. 271). Ele conclamava todos a honrarem "as mulheres e as crianças de nosso país que estão expostas a todas as espécies de violência e abusos domésticos" (p. 337). Questão sensível foi o debate sobre o hino nacional. Antes da eleição de 1994, a solução combinada entre o CNA e o Partido Nacional no Conselho Executivo de Transição foi que se cantariam "Nkosi Sikelel' iAfrika (Deus abençoe a África) e "Die Stem van Suid-Afrika (O chamado da África do Sul), um depois do outro. "Assumindo a presidência, Nelson Mandela encarregou uma equipe de criar uma versão bem mais curta e menos canhestra, juntando elementos dos dois hinos" (p. 288).               O livro traz mensagens duras e muito críticas de Nelson Mandela dirigidas a seus próprios apoiadores em muitos momentos do seu mandado presidencial de 5 anos. Numa delas, ele adverte as futuras gerações dos perigos do poder: "A menos que sua organização política se conserve forte e com princípios, impondo igualmente rigorosa disciplina aos líderes e aos membros comuns (...), a tentação de abandonar os pobres e começar a cumular uma enorme riqueza para si mesmos se torna irresistível" (p. 30). Mandela via com decepção o comportamento de muitos líderes africanos à frente de seus países. Na prisão, ele anotou: "Eles passaram a crer que são líderes insubstituíveis. Nos casos em que a Constituição permite, tornam-se presidentes vitalícios. Naqueles casos em que a Constituição do país impõe limitações, geralmente emendam a Constituição para poderem se agarrar ao poder por toda a eternidade" (p. 30). As queixas de Mandela expostas no livro prosseguem: "os sintomas de nossa enfermidade espiritual são mais do que conhecidos. Incluem a extensão da corrupção no setor público e no setor privado, em que os cargos e postos de responsabilidade são tratados como oportunidades para o enriquecimento pessoal; a corrupção que vigora dentro de nosso sistema judiciário; a violência nas famílias e relações interpessoais, em especial o vergonhoso recorde de abusos contra mulheres e crianças; a extensão da evasão fiscal e a recusa em pagar pelos serviços utilizados" (p. 335). Eis aqui uma dura fala a trabalhadores que faziam uma greve geral no país: "Há pelo menos 5 milhões de pessoas desempregadas, que não sabem onde vão conseguir uma refeição durante o dia, não sabem onde vão dormir, não sabem como vestirão os filhos, como pagarão a escola. Este problema vocês é que têm de resolver. Ao fazerem greve, não olhem seus próprios interesses pessoais ou apenas os interesses do seu sindicato; vocês precisam adotar uma visão ampla. Precisam criar condições para que a iniciativa privada consiga realmente se expandir e absorver esses 5 milhões de desempregados. É sua tarefa. Vocês também precisam saber que, mesmo que tenhamos o direito de lutar por melhores condições de vida, não podemos nos precipitar; quanto maior o custo de produção, mais cortes de pessoal o empresariado quer fazer, e assim aumenta o exército de desempregados - tenham isso em mente" (p. 336). Numa passagem, Mandela exige equilíbrio entre liberdade e responsabilidade: "Está muito claro que há algo de errado numa sociedade em que se tende liberdade como alunos ou professores irem bêbados para a escola, os guardas expulsarem os diretores e nomearem seus amigos pra o comando das instituições, os grevistas recorrerem à violência e destruição das propriedades, os empresários torrarem dinheiro em ações judiciais somente para protelar a aplicação de leis que não lhes agradam, a evasão fiscal transformar os sonegadores em heróis das conversas de bar" (p. 336). Como presidente, Nelson Mandela encarnava a Constituição e todos os seus dispositivos, inclusive a seção 16, que garantia o direito à liberdade de expressão. Ele leu com grande interesse a decisão do juiz Edwin Cameron, ao tempo no Tribunal Superior de Recursos, no caso Holomisa v. Argus Newspapers Ltd., 1996 (2) S.A. 588 (W), no qual Cameron fez uma defesa intransigente da liberdade de expressão, de imprensa e de comunicação em questões que envolvessem atos ou ações de governos (p. 339). No discurso no Congresso do Instituto Internacional de Imprensa, em 1994, Madiba afirmou: "É apenas tal imprensa livre que pode moderar o apetite de qualquer governo em acumular poder em detrimento do cidadão. É apenas tal imprensa livre que pode ser o guardião vigilante do interesse público contra a tentação de abuso do poder por parte de seus detentores. É apenas tal imprensa livre que pode ter a capacidade de expor incessantemente os excessos e a corrupção por parte do governo, das autoridades do Estado e de outras instituições que detêm poder na sociedade" (p. 343). O presidente Nelson Mandela apelava aos parlamentares no sentido de que, "em seus diversos partidos, ajudassem mais a construir do que a destruir" (p. 174). Na última sessão parlamentar de 1999, afirmou: "é nas legislaturas que os instrumentos são criados para trazer uma vida melhor a todos" (p. 207). Em 1997, na Conferência Nacional do CNA, Mandela fez um balanço da sua jornada como presidente da nova África do Sul: "O mundo nos admira por nosso êxito como nação em nos elevarmos à altura dos desafios da nossa era. Tais desafios eram: evitar o pesadelo da guerra racial e dos derramamentos de sangue tão debilitantes e reconciliar nosso povo, tendo como base que nosso objetivo geral deve ser o de superarmos juntos a herança da pobreza, da divisão e da injustiça" (p. 382). Sua mensagem derradeira na obra é essa: "A longa caminhada continua!". É de fato longa a caminhada rumo à liberdade. E essa caminhada, assim como a venturosa jornada pela conquista de direitos fundamentais, há sempre de continuar. "A cor da liberdade: os anos de presidência" é uma linda obra. Escrita com refinamento, a partir de documentos oficiais fundamentais e dos próprios manuscritos de Nelson Mandela, o livro pontua os momentos mais relevantes de uma presidência que ocupou raro lugar na história contemporânea. Ela expõe a intimidade de um alinhamento de astros que dificilmente se repetirá diante dos nossos olhos. Vale cada página.
quarta-feira, 7 de outubro de 2020

A aposentadoria do ministro Celso de Mello

Essa é a última semana de deliberações do Supremo Tribunal Federal ainda com a presença do ministro Celso de Mello. A sessão de ontem da Segunda Turma da Corte, e a grande emoção que ela despertou em todos os seus integrantes, mostra um pouco do impacto que essa aposentadoria irá gerar no Tribunal. De todas as formas de homenagem ao ministro, e elas são muitas e merecidas, vou deixar aqui apenas uma pequena mostra das tantas virtudes do ministro Celso de Mello e o farei com um retrato das audiências que muitos advogados e advogadas tiveram ao longo desses mais de trinta anos com ele. No gabinete, há uma mesa redonda. É ali, ao redor de uma mesa sem cabeceiras, onde não há espaço para lugares fisicamente mais elevados que separem as pessoas em mais ou menos importantes, que o ministro ouvia as partes. Ao som de música clássica, as audiências eram eruditas, cosmopolitas, repletas de informações históricas, com um singular conhecimento da jurisprudência e, acima de tudo, uma absoluta compreensão do caso. Ao redor daquela mesa, as partes se sentiam acolhidas e estimuladas a falar, pois sabiam que seriam ouvidas por um julgador justo e disposto a compreender as múltiplas questões envolvidas nas controvérsias constitucionais. Sempre foram audiências longas, regadas a um café muito forte, num ambiente mergulhado em livros de todos os tipos. Junto à porta de saída havia um quadro com um registro antigo das "Arcadas", a faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, de onde o ministro Celso de Mello é oriundo. "Eu já lhe falei sobre como o ministro Moreira Alves ia dar aula?", o ministro Celso perguntava, dando início a um percurso histórico sobre os professores a quem mais admirava. A memória era prodigiosa e os relatos precisos fascinavam os ouvintes. Qualquer que fosse o caso e a matéria nele envolvida, em algum momento haveria uma deixa para que o assunto migrasse para a vindicação por direitos fundamentais. Nesse momento, em particular, em razão do meu trabalho, surgia a deixa para que o Direito à Felicidade aparecesse. "Você chegou a pesquisar as cartas de Thomas Jefferson?", perguntava o ministro, antes de emendar uma nova incursão fascinante, dessa vez sobre o founding father estadunidense. Era tanta informação, tanto detalhe histórico, que ali surgia uma nova frente de estudo, em questões de minutos, de improviso. Jamais houve limite intelectual ao ministro Celso de Mello, desde o tempo que era promotor de Justiça em Cândido Mota, no interior de São Paulo. "Celso Jurista", seus colegas o chamavam. Essa força intelectual foi cultivada pelos integrantes do seu gabinete. Um time de notáveis. Interpretando a Constituição, o ministro Celso não se limitou a medir a temperatura de um dia. Ele foi, usando uma metáfora deixada por Ruth Bader Ginsburg, mais sensível e sentiu o clima de toda uma era. De seus longos votos (com itálico, negrito e sublinhado), conquistas foram entregues às presentes e futuras gerações. Assim como as linhas retas e curvas que pelas colunas do arquiteto Oscar Niemeyer dão sustentação ao edifício-sede do Supremo Tribunal Federal, o decano combinou a certeza do Direito com as múltiplas possibilidades da Justiça. E fez história. A sua independência, o seu compromisso com o Supremo, a sua dedicação aos casos, o seu respeito pela advocacia, o time por ele formado para ao seu lado atuar no gabinete por ele liderado..., tudo isso fará muita falta com a sua aposentadoria. Quanto mais o tempo seguir a marcha, mais vivo será o legado do ministro Celso de Mello. Um homem que viveu a verdade e percorreu o caminho.