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Civilizalhas

Temas do Direito Civil.

Adriano Ferriani
quarta-feira, 1 de fevereiro de 2012

A hipoteca judiciária morreu?

Os civilistas e processualistas, de maneira geral, vêm afirmando que a hipoteca judiciária (ou judicial) perdeu sua importância. Será? A hipoteca, todos sabem, é modalidade de garantia. Por meio dela, um bem imóvel do devedor ou responsável fica vinculado ao cumprimento da obrigação. Tem, portanto, natureza acessória. Normalmente, a hipoteca nasce da vontade das partes, no âmbito de relações contratuais (hipoteca convencional). Há situações, menos comuns, que permitem o surgimento da hipoteca independentemente da vontade do devedor, porque a lei assim determina (hipoteca legal). O art. 1489 do CC arrola as suas principais hipóteses. A hipoteca legal é de pouca utilização prática. Além da hipoteca convencional e da legal, existe a hipoteca judiciária (ou judicial) que, na verdade, é uma subespécie da legal. O art. 466, caput, do CPC, sobre ela dispõe: "A sentença que condenar o réu no pagamento de uma prestação, consistente em dinheiro ou em coisa, valerá como título constitutivo de hipoteca judiciária, cuja inscrição será ordenada pelo juiz na forma prescrita na Lei de Registros Públicos". Isso quer dizer, a hipoteca judiciária, embora pouco utilizada, é um efeito secundário automático da sentença que condena o réu no pagamento de prestação (líquida ou ilíquida), mesmo antes de seu trânsito em julgado. O credor, vencedor, para ter acesso ao benefício depende da especialização da hipoteca, por meio da qual identifica precisamente o bem do devedor que sofrerá o ônus legal. A especialização da hipoteca é procedimento especial de jurisdição voluntária, disciplinado nos artigos 1205 a 1210 do CPC. Alguns juízes dispensam referido procedimento, acatando pedido simples feito nos próprios autos da ação condenatória. Feito o registro da hipoteca judiciária no cartório de registro de imóveis, o credor passa a ser titular de um direito real de garantia, com todos os seus atributos. Assim, o credor tem o direito de sequela (direito de poder perseguir o bem, ainda que seja transferida a sua titularidade), o direito de indivisibilidade da garantia (art. 1421 do CC), o direito de excussão do bem e o direito de preferência (ambos previstos no art. 1422, caput, do CC), caso haja insolvência ou falência do devedor. Os juristas, de maneira geral, sempre afirmaram que a hipoteca judiciária confere todas as prerrogativas dos direitos reais de garantia, menos a preferência. A afirmação era feita por causa da redação do revogado art. 824 do CC de 1916, que assim dispunha a respeito da hipoteca judiciária: "Art. 824. Compete ao exequente o direito de prosseguir na execução da sentença contra os adquirentes dos bens do condenado; mas, para ser oposto a terceiros, conforme valer, e sem importar preferência, depende de inscrição e especialização". Alguns autores a chamavam, por essa razão, de hipoteca anômala ou meia hipoteca. Referido artigo não foi repetido pelo Código Civil de 2002, que não disciplinou a hipoteca judicial. Não há mais em nenhum lugar esse "sem importar preferência". No entanto, os autores continuam repetindo a inexistência de preferência na hipoteca judiciária. Apesar de o CC vigente não ter regulamentado a hipoteca judiciária, o CPC a acolhe, no art. 466, caput, conforme referido. E o art. 466 está em pleno vigor em face do disposto no art. 2043 do Código Civil. Além disso, a Lei de Registros Públicos (art. 167, I, n. 2) também continua permitindo o registro de hipotecas judiciais. Embora muitos desencorajem a hipoteca judicial por causa do custo de registro e pela suposta desnecessidade, em face de tantos instrumentos atualmente disponíveis para ilidir e combater a fraude de execução, o direito de preferência pode, muitas vezes, justificar o seu requerimento. Basta lembrar do prestígio que os credores com garantia real têm na Lei de Falências e Recuperação Judicial e Extrajudicial (lei 11.101/05). Além disso, não havia mesmo razão para não se conceder preferência ao credor dessa modalidade de garantia. A hipoteca legal e a judiciária são autorizadas em casos especiais, somente aos credores que atendem requisitos bem delineados e, por isso, gozam de uma situação jurídica ímpar, a merecer maior proteção. Se a hipoteca convencional, que nasce exclusivamente da vontade das partes, independentemente da natureza do crédito, tem o benefício da preferência, por muito maior razão devem tê-lo os credores garantidos por hipoteca legal ou judicial. Assim, em face da revogação do art. 824 do CC de 1916, não se pode mais afirmar inexistir preferência na hipoteca judiciária. Além disso, o novo CPC, se aprovado, pode facilitar sobremaneira a inscrição da hipoteca judiciária. Atualmente, o parágrafo único do art. 466, prescreve que a sentença condenatória produz a hipoteca judiciária, mesmo nas condenações genéricas, ainda que pendente arresto de bens do devedor e também nas situações passíveis de execução provisória da sentença (vide seus três incisos). De acordo com o projeto do novo CPC, conforme alteração apresentada no relatório-geral do senador Valter Pereira, o seu art. 482, correspondente ao atual 466, prevê o acréscimo de mais um parágrafo, com a seguinte redação: "A hipoteca judiciária poderá ser realizada mediante apresentação de cópia da sentença perante o cartório de registro imobiliário, independentemente de ordem judicial".
Normalmente, os bens podem ser alienados, penhorados e, dependendo do regime de bens do casamento e da forma com que são adquiridos, também admitem comunicação entre os cônjuges. Assim, a presença de cláusulas de inalienabilidade, impenhorabilidade e incomunicabilidade representam situações excepcionais. Alienar é o mesmo que transferir o domínio. Alienação é uma expressão genérica. Quem vende, aliena a título oneroso, enquanto quem doa aliena a título gratuito. Há outras formas de alienação como a dação em pagamento, a permuta, etc. Um dos poderes do proprietário é o de disposição (art. 1228, caput, do CC), ou seja, o dono tem a prerrogativa de decidir, de acordo com a sua conveniência, se aliena ou não determinado bem de seu patrimônio. Assim, quando o assunto é "cláusula" de inalienabilidade é porque tal restrição nasce da vontade. O objetivo da cláusula é proteger o beneficiário, pois evita a dissipação do bem. A inalienabilidade decorrente da vontade somente pode ser imposta em atos de liberalidade (testamento ou doação), quando o testador ou doador assim determinam no testamento ou no instrumento de doação. Não se pode, portanto, estabelecer a inalienabilidade pura e simplesmente num contrato de compra e venda ou pelo próprio proprietário, exceção feita ao bem de família previsto no Código Civil (art. 1711 do CC). Se o donatário, ou o herdeiro, aceita a doação (ou herança) com referida restrição, deverá observá-la pelo período estabelecido na cláusula. No entanto, o testador não pode impor cláusula de inalienabilidade, assim como de impenhorabilidade e incomunicabilidade sobre os bens da legítima, exceto se houver justa causa (art. 1848, caput). Portanto, os herdeiros necessários (descendentes, ascendentes e cônjuge), em princípio, têm direito de receber a legítima (metade da herança) livre de qualquer espécie de restrição. Com relação ao restante da herança, o testador tem liberdade para impor as cláusulas restritivas mesmo que não haja justa causa para tanto. A justa causa não deve ser apenas alegada. É preciso que seja verdadeira. Por isso, após a morte do testador, pode surgir a discussão sobre a veracidade das assertivas feitas sobre um dos herdeiros, como por exemplo, o fato de ele ser de fato dissipador ou perdulário. Eventual capricho do testador não prevalece se a causa por ele alegada para fundamentar a cláusula restritiva for injusta. A cláusula de inalienabilidade pode ter tempo determinado ou ser vitalícia. Não pode ultrapassar a vida do herdeiro. O óbito do herdeiro automaticamente faz desaparecer a restrição. Havendo interesse do proprietário, desde que haja fundada razão, poderá pretender a substituição do gravame por outro bem de sua propriedade. Desde que seja de valor igual ou superior ao do bem a ser substituído. Para tanto, precisa de autorização judicial (art. 1911, parágrafo único, do CC). Tal sub-rogação de vínculo deve ser requerida por meio de procedimento especial de jurisdição voluntária, conforme arts. 1103 e 1112, II, do CPC. O juiz não deve apenas se preocupar com a avaliação dos bens para autorizar o pedido. Deve também atentar para a natureza dos bens. Há bens que perdem valor de forma significativa e com certa rapidez, como os automóveis. Não nos parece correto autorizar a sub-rogação de um bem de valor normalmente estável, como os imóveis, por outros que sabidamente perdem valor em curto espaço de tempo, seja pelo simples passar do tempo, seja pelo uso. Se um bem é inalienável, significa dizer que também é impenhorável e incomunicável, mesmo que essas duas últimas cláusulas sejam omitidas (art. 1911, caput, do CC). A impenhorabilidade, assim como a inalienabilidade, também pode resultar da lei (ex: art. 649 do CPC) ou da vontade. Havendo cláusula de impenhorabilidade ou de inalienabilidade, o bem será impenhorável por credores de qualquer natureza. Questão importante diz respeito aos frutos ou rendimentos dos bens impenhoráveis. Poderiam eles ser alcançados pelos credores? Normalmente, os bens acessórios seguem a sorte do principal. Nesse caso, no entanto, o art. 650 do CPC, com a redação dada pela lei 11.383 de 6/12/2006, admite a penhora de frutos e rendimentos de bens impenhoráveis, se não houver outros passíveis de penhora, exceto se destinados à satisfação de prestação alimentícia. Por fim, a cláusula de incomunicabilidade, que também decorre da inalienabilidade, impede que o bem entre na comunhão em razão de casamento, união estável ou união homoafetiva, independentemente do regime adotado para a união. Significa dizer, o bem integrará sempre o patrimônio particular do beneficiário. Os frutos advindos dos bens incomunicáveis comunicam-se entre os cônjuges no regime da comunhão parcial de bens (art. 1660, inciso V, do CC). O fato de um bem ser incomunicável não quer dizer que seja inalienável ou impenhorável. Apenas a inalienabilidade constitui cláusula que abrange as demais restrições. O inverso não é verdadeiro.
A lei 11.481, de 31 de maio de 2007, preocupada com a regularização fundiária, acrescentou mais dois incisos ao art. 1225 do CC. Referido artigo arrolava como direitos reais, em cada um de seus dez incisos, a propriedade, a superfície, as servidões, o usufruto, o uso, a habitação, o direito do promitente comprador de imóvel, o penhor, a hipoteca e a anticrese. Os dois incisos acrescentados, XI e XII, são reservados, respectivamente, à concessão especial para fins de moradia e à concessão de direito real de uso. O presente texto analisa, superficialmente, a concessão especial para fins de moradia. Apesar de a lei 11.481 ter incorporado o inciso XI ao art. 1225 do CC somente em 2007, o instituto já existe desde 2001. A ideia inicial do legislador era a de inseri-lo no ordenamento jurídico por meio do Estatuto da Cidade (lei 10.257/01), dentre os diversos mecanismos então criados para dar efetividade à função social das cidades e também à função social da propriedade. Tanto isso é verdade que a concessão especial para fins de moradia estava disciplinada nos artigos 10 a 15 do referido Estatuto. Porém, tais artigos foram vetados pelo Presidente da República. O veto presidencial ocorreu não por ser contrário ao mecanismo, mas sim por alguns aspectos do regramento contido no Estatuto da Cidade. Por essa razão, houve o comprometimento de apresentação de um texto para substituir a supressão feita, com as correções julgadas necessárias. E assim surgiu, logo em seguida, no mesmo ano, a MP 2.220, de 4 de setembro de 2001, que vige até hoje, por ser anterior à Emenda Constitucional 32, também de 2001. O caput do art. 1º da MP 2.220 contém a seguinte redação: "Aquele que, até 30 de junho de 2001, possuiu como seu, por cinco anos, ininterruptamente e sem oposição, até duzentos e cinquenta metros quadrados de imóvel público situado em área urbana, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, tem o direito à concessão de uso especial para fins de moradia em relação ao bem objeto da posse, desde que não seja proprietário ou concessionário, a qualquer título, de outro imóvel urbano ou rural". Trata-se, portanto, de uma espécie de usucapião que não acarreta a aquisição da propriedade, mas sim da "concessão de uso especial para fins de moradia". O pedido pode ser feito administrativamente pelo interessado e, nesse caso, a Administração Pública tem o prazo de doze meses para apreciá-lo, a contar da data do protocolo do requerimento. Havendo recusa (ou omissão) administrativa, o pedido pode ser feito judicialmente. Uma das razões expostas para justificar o veto presidencial aos artigos 15 a 20 do Estatuto da Cidade foi a falta de restrição de incidência do novo mecanismo a algumas categorias de imóveis públicos. A crítica era pertinente e adequada. Com a correção, passou a constituir prerrogativa do Poder Público assegurar o exercício do direito de concessão especial de uso em outro local quando o imóvel objeto de requerimento for: a) de uso comum do povo; b) destinado a projeto de urbanização; c) de interesse da defesa nacional, da preservação ambiental e da proteção dos ecossistemas naturais; d) reservado à construção de represas e obras congêneres; e) situado em via de comunicação. A prerrogativa não é a de poder ou não poder conferir o direito aos bens públicos que estão nessas condições. A esses bens, impõe-se o indeferimento do pedido como única medida. A prerrogativa consiste em poder conceder, ou não, o benefício ao requerente em outra localidade em que não haja qualquer espécie de restrição. Afinal, a moradia e a dignidade da pessoa desamparada são bens jurídicos que justificam o instituto. Da leitura dos artigos 1º e 2º da MP 2.220/2001, extraem-se os requisitos para a sua concessão: a) animus domini; b) o exercício contínuo da posse pelo prazo de cinco anos, concluídos até o dia 30 de junho de 2001; c) a ausência de oposição de quem tem legítimo interesse em se opor ao exercício da posse; d) a localização do imóvel em área urbana; e) a utilização do imóvel para a moradia própria do pretendente ou de sua família; f) a ausência de propriedade ou concessão (a qualquer título) de outro imóvel rural ou urbano e g) a ausência de reconhecimento do mesmo direito anteriormente. Com relação à área do imóvel, o art. 1º determina que não pode ser ela superior a duzentos e cinquenta metros quadrados para o pedido individual. Sendo superior, o possuidor individual não tem direito ao benefício. Porém, de acordo com o art. 2º, se tal área for superior ao limite referido, de 250 m2, e o imóvel for ocupado por população de baixa renda, também para moradia, e desde que observados os mesmos requisitos do art. 1º, não sendo possível identificar os terrenos ocupados por cada possuidor, a concessão poderá ser outorgada coletivamente. Há, portanto, correlação entre a concessão de uso especial para fins de moradia (artigos 1º e 2º da MP 2.220/2001) e as usucapiões previstas, respectivamente, nos artigos 9º e 10 do Estatuto da Cidade, incidentes, porém, sobre imóveis particulares. O aspecto mais preocupante dessa MP 2.220/2001 está no segundo requisito, acima apresentado, para a sua concessão. Somente os possuidores que exerceram posse por pelo menos cinco anos até o dia 30 de junho de 2001 têm direito ao benefício. A Constituição Federal, no art. 183, caput, que é o fundamento remoto para o instituto, não cria óbice dessa natureza. A propósito, o Estatuto da Cidade, na parte vetada, também não continha tal limitação. E essa foi outra razão para o veto presidencial. Parece-nos que a limitação temporal é inconstitucional porque a MP cria um requisito mais rígido que a própria CF e também porque fere o princípio da igualdade. Não há sentido algum em atribuir o benefício a quem tinha cinco anos de posse até 30 de junho de 2001 e não fazê-lo a quem, por exemplo, completou o prazo de cinco anos de posse em julho de 2001 ou mesmo em data posterior. Não se pode dar tratamento distinto a cidadãos que estão em posição fática idêntica. A situação do país não mudou. Os problemas fundiários que afligem o Brasil resultam de causas passadas e presentes. Nessa parte, as regras contidas no Estatuto da Cidade eram mais lógicas e razoáveis.
quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

A proibição do castigo aos menores

Em julho de 2010, o Poder Executivo encaminhou ao Congresso Nacional o PL 7.672 (clique aqui), para atender ao compromisso de adequar a legislação brasileira a uma Resolução da ONU. Tal PL propõe, em síntese, a alteração de alguns dispositivos do Estatuto da Criança e do Adolescente (lei 8.069/90), de forma a proibir a imposição de castigo corporal ou tratamento cruel à criança e ao adolescente. Na semana passada, a deputada Teresa Surita, Relatora da Comissão Especial designada para tanto, apresentou parecer propondo modificação para renumerar o artigo 18 do ECA e não o 17, inicialmente indicado, bem como endossando a constitucionalidade e absoluta conveniência do referido projeto de lei. De acordo com a última proposta, o art. 1º., que é o texto base do Projeto, propõe o acréscimo do art. 18-A no ECA, com a seguinte redação: "Art. 18-A. A criança e o adolescente têm o direito de serem educados e cuidados sem o uso de castigo corporal ou de tratamento cruel ou degradante, como formas de correção, disciplina, educação ou qualquer outro pretexto, pelos pais, pelos integrantes da família ampliada, pelos responsáveis, pelos agentes públicos executores de medidas socioeducativas ou por qualquer pessoa encarregada de cuidar, tratar, educar ou proteger". O assunto é extremamente delicado. De um lado, a lei visa à proteção física e psíquica do menor; de outro lado, representa interferência do Estado na esfera particular da família, para modular a educação sem qualquer espécie de castigo corporal. Os defensores da proposta apoiam-se fundamentalmente na dignidade da pessoa humana, no movimento internacional para a educação sem castigo e nos potenciais traumas que eventuais castigos podem gerar na formação da personalidade. De saída, observo que sou radicalmente contra a utilização de violência, de qualquer espécie, na árdua tarefa de educar. Sim, tenho filhos que requerem, em algumas circunstâncias, conduta mais enérgica. Educar não é apenas participar e estar ao lado do filho. Essencialmente, educar é orientar, impondo limites claros aos comportamentos inadequados. Apesar de a violência e a imposição de castigo funcionarem para a imposição de limites, as suas consequências podem mesmo ser desastrosas. Além dos possíveis traumas, toda criança se espelha em seus pais e, em grande parte, absorvem seus comportamentos como modelos de conduta. Assim, violência gera violência. A criança, sempre que estiver em situação de conflito ou contrariedade, fará aquilo que aprendeu em casa. Dias atrás, meu filho, de apenas 5 anos, depois de ter seu pé pisado sem querer pelo pai distraído, advertiu: "Papai, por favor, antes de ir trabalhar sente aqui no sofá, pois preciso ter uma conversinha séria com você". Embora ele ainda não tenha compreendido como eu gostaria que a autoridade tem mão única, o seu objetivo era o de me dar uma bronca e agiu como aprendeu na situação inversa. Se de um lado é claro que a violência e o castigo corporal não constituem a melhor solução para a educação ou punição do menor desobediente, de outro lado, a proposta legislativa provoca algumas indagações: constitui papel do Estado dizer como os pais devem educar seus filhos? A liberdade (dos pais), como direito fundamental, também não seria um dos alicerces da cidadania e da dignidade da pessoa humana? O Estado tem o papel de substituir o cidadão em suas escolhas? É importante lembrar da existência dos artigos 17 e 18 do ECA, ambos claros e bem redigidos à respeito de alguns dos direitos da criança e do adolescente. O primeiro diz que "o direito ao respeito consiste na inviolabilidade da integridade física, psíquica e moral da criança e do adolescente, abrangendo a preservação da imagem, da identidade, da autonomia, dos valores, ideias e crenças, dos espaços e objetos pessoais"; e o segundo: "É dever de todos velar pela dignidade da criança e do adolescente, pondo-os a salvo de qualquer tratamento desumano, violento, aterrorizante, vexatório ou constrangedor". Os exageros cometidos pelos pais na imposição de castigos, além de ilegais, podem ser tipificados como crimes. Por tudo isso, numa análise perfunctória, parece-nos que embora o objetivo da proposta seja nobre, eventual modificação legislativa será inócua. Os abusos continuarão existindo porque aquele que não atenta para os direitos básicos de seus filhos, que age com desamor, certamente não será inibido por legislação mais detalhada e precisa sobre como educar e impor limites a crianças e adolescentes. Além disso, lei nova não muda a personalidade, a forma de pensar e de se comportar de pessoa madura, no que se refere à educação de seus filhos. Aquele que na infância e adolescência sofreu alguma espécie de castigo corporal pode, por um lado, ser traumatizado, mas por outro lado também pode se considerar uma pessoa que deu certo com a educação que recebeu. E, se fizer parte desse segundo grupo, não descartará repetir os métodos educacionais experimentados no passado. Traumas decorrentes da (má) educação não são evitados por lei. Ninguém é criado numa redoma. Somos produtos de acertos e desacertos de nossos pais, de nossas escolas, enfim, dos eventos de nosso passado. Um pai ausente, relapso, pode ser pior do que o excessivamente rígido. E traumas podem surgir não somente de palmadas bem dadas. Brigas entre os pais podem traumatizar tanto quanto ou mais. A seguir nesse ritmo, daqui a pouco o legislador determinará que os pais devem fazer no mínimo cinco refeições semanais à mesa com seus filhos, porque isso também é bom para a formação da pessoa. É curioso notar que o parecer da deputada Teresa Surita foi apresentado na mesma semana (semana passada) em que o ministro do STF, José Antonio Dias Toffoli, foi entusiasticamente elogiado pela imprensa no julgamento, ainda não concluído, de caso em que é relator, versando sobre a classificação indicativa de programas de rádio e TV. Segundo ele, não compete ao Estado "substituir os pais na decisão sobre o que podem ou não os filhos assistirem". A voracidade para produzir leis, em alguns casos duvidosas, contrasta com a inércia injustificável do Poder Legislativo para legislar sobre situações inequivocamente relevantes, como a questão das relações homoafetivas e do aviso prévio proporcional, que demorou décadas para merecer atenção, apenas para citar dois exemplos. No segundo caso, a lei apenas surgiu em virtude do comportamento do STF; no primeiro, nem assim.
quarta-feira, 23 de novembro de 2011

A fraude de execução e a prova da má-fé

A súmula 375 do STJ, de 18 de março de 2009, tem o seguinte conteúdo: "O reconhecimento da fraude à execução depende do registro da penhora do bem alienado ou da prova de má-fé do terceiro adquirente". Anteontem, dia 21 de novembro, o site do STJ veiculou informação de que a 3ª turma reafirmava tal entendimento (clique aqui). O Código de Processo Civil vigente, no art. 593, não exige a prova da má-fé do adquirente para a caracterização da fraude de execução: "Art. 593. Considera-se em fraude de execução a alienação ou oneração de bens: I - quando sobre eles pender ação fundada em direito real; II - quando, ao tempo da alienação ou oneração, corria contra o devedor demanda capaz de reduzi-lo à insolvência; III - nos demais casos expressos em lei". A situação mais comum de fraude é a prevista no inciso II. Pelo seu teor, se corre demanda contra o devedor, capaz de reduzi-lo à insolvência, eventual alienação (ou oneração) de bens por ele praticada, nessas circunstâncias, é fraudulenta. Quando ocorre alienação de bens pelo devedor em estado de insolvência, há duas ordens de interesses em conflito: a primeira, do credor frustrado com a alienação e, a segunda, do terceiro adquirente. Não se pode conferir o mesmo bem jurídico a ambos. Ou a alienação é incólume e o terceiro não pode ser alcançado, ou a alienação é ineficaz em relação ao credor, para beneficiá-lo. Na segunda hipótese, resta ao adquirente apenas ação contra o devedor que, provavelmente, será inócua. Doutrina e jurisprudência, ao longo das últimas décadas, sensibilizaram-se diante de inúmeros casos em que a pessoa adquiria um determinado bem, normalmente imóvel, muitas vezes com bastante suor e sacrifício, e depois sucumbia sumariamente, por causa da inesperada declaração de fraude de execução, mesmo tendo tomado todos os cuidados considerados normais para a aquisição. Foi nesse contexto que, no final da década de 90 principalmente, começaram a surgir diversas decisões protegendo o terceiro adquirente de boa-fé, em detrimento do credor frustrado pela alienação dita fraudulenta. A súmula 375 do STJ, transcrita no início, confirma o entendimento que se firmou, enfatizando a necessidade da prova de má-fé do adquirente para a configuração da fraude, se não houver penhora registrada. E o Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, no art. 716, no mesmo sentido do entendimento que prevalece no STJ, mantém a fraude de execução dentre os seus institutos, porém, adverte para a necessidade da prova de má-fé do terceiro adquirente (clique aqui). Apesar da inequívoca necessidade de proteção do terceiro adquirente de boa-fé, a questão da demonstração da má-fé do adquirente preocupa. Esse ônus compete ao credor, que pode não ter elementos suficientes para provar a má-fé do terceiro, um completo desconhecido. Sobre isso, cabe indagar: a) aquele que adquire, dispensando as certidões, age necessariamente de má-fé? b) a ausência de boa-fé tem o mesmo efeito que a má-fé? c) ou existe uma zona intermediária entre a boa-fé e a má-fé? Os textos, tanto da súmula 375 quanto do Anteprojeto do Novo CPC, não parecem solucionar de maneira precisa a questão. A ausência de boa-fé do adquirente, objetivamente considerada, deveria ser suficiente para possibilitar a caracterização da fraude de execução. Não se pode proteger a conduta irresponsável daquele que compra sem tomar os cuidados mínimos para a aquisição, como investigar se o vendedor tem contra si ações ajuizadas. Tais informações podem ser obtidas por simples certidões e, em grande parte, pela internet. Há outro aspecto que merece reflexão. Será essa solução contemplada na referida súmula 375 do STJ e no Anteprojeto do Novo CPC não deveria diferenciar as aquisições onerosas das gratuitas? Explico: se o devedor de má-fé doa o bem a um descendente, ou mesmo a terceiro, o interesse desse terceiro não pode se sobrepor ao do credor frustrado. Entre preservar o acréscimo patrimonial, que caiu do céu, desse terceiro, e o interesse do credor, a lei deveria pender para o segundo, independentemente da boa-fé do terceiro se a aquisição for gratuita. Por fim, cabe observar o seguinte: a) o fato de não ser possível a caracterização de fraude de execução, não obsta que o credor se valha da ação pauliana, se preenchidos os seus requisitos, para atacar a alienação com fundamento na fraude contra credores, desde que o faça em até quatro anos a contar da data de celebração do negócio a ser atacado; b) o credor que ajuíza ação não pode, por sua vez, desconsiderar o comando previsto no art. 615-A do CPC (averbação premonitória), introduzido pela lei 11.382/06, uma importante ferramenta para gerar a presunção absoluta de fraude.
quarta-feira, 9 de novembro de 2011

O seguro de vida, o suicídio e o STJ

Em 1992, o STJ editou a súmula 61, com o seguinte teor: "O seguro de vida cobre o suicídio não premeditado". Antes disso, o STF já havia editado a súmula 105, que prescrevia: "Salvo se tiver havido premeditação, o suicídio do segurado no período contratual de carência não exime o segurador do pagamento do seguro". Vigia, nessa época, o Código Civil de 1916, que no artigo 1.440, possibilitava o seguro por morte involuntária, em contraposição à morte voluntária, assim considerado "o suicídio premeditado por pessoa em seu juízo". Daí a importância da averiguação da premeditação do suicídio. Depois, surgiu o Código Civil de 2002, trazendo em seu conteúdo dispositivo completamente distinto (art. 798, caput) para tratar do suicídio no contrato de seguro, a saber: "O beneficiário não tem direito ao capital estipulado quando o segurado se suicida nos primeiros dois anos de vigência inicial do contrato, ou da sua recondução depois de suspenso, observado o disposto no parágrafo único do artigo antecedente". A nova opção legislativa brasileira foi parecida com a italiana que, no art. 1.927 do Código Civil dispõe: "In caso di suicidio dell'assicurato, avvenuto prima che siano decorsi due anni dalla stipulazione del contratto, l'assicuratore non è tenuto al pagamento delle somme assicurate, salvo patto contrario". A França acolheu sistema não muito diverso. Assim, foi criada entre nós uma regra objetiva para afastar as infindáveis discussões que o tema suscitava na vigência da lei anterior. A partir da vigência do CC de 2002, a premeditação do suicídio passou a ser irrelevante. Se ocorrer no período de dois anos da contratação do seguro, não cabe indenização. A contrário senso, se ocorrer depois desse período, a seguradora tem a obrigação de indenizar. A regra é objetiva e cogente, não podendo a seguradora impor cláusula que afaste o seu dever de indenizar, com exceção dessa hipótese de suicídio cometido nos dois anos seguintes à celebração do contrato (art. 798, parágrafo único do CC). Embora as seguradoras preferissem não indenizar o suicídio em qualquer circunstância, independentemente do período transcorrido entre o ajuste contratual e a morte, a exemplo do que vale em Portugal, o prazo de dois anos pode inibir, ou ao menos postergar, eventual pretensão que tenha como suporte também a indenização. Isso é salutar porque pode desestimular o suicídio. Além disso, ganha-se tempo para tratar aquele que já não mais vislumbra razão para estar vivo. A objetividade do texto legal pode sugerir injustiça, pois a premeditação do suicídio perdeu espaço para dirimir controvérsias dessa natureza. Mas isso é legítimo. Há muitas outras situações no ordenamento jurídico em que prevalece o critério puramente objetivo, como a idade em que se atinge a maioridade, os prazos prescricionais e decadenciais, entre outros. Apesar disso, o STJ vem interpretando que prevalece a questão da premeditação e que, mesmo o suicídio cometido antes dos dois anos contados da sua contratação, acarreta para a seguradora o dever de indenizar, exceto se ela provar que o segurado agiu premeditadamente. Além de conferir à premeditação importância descabida em face do novo texto legal, desloca o ônus da prova para a seguradora. A interpretação do STJ parece equivocada. O suicida sofre de problema de saúde, como depressão, esquisofrenia, transtorno bipolar, dentre outros. A questão da "premeditação", ou seja, de celebrar o contrato já com a intenção de se matar, é muito frágil. O comportamento do suicida é muitas vezes oscilante, não havendo propriamente uma lógica normal naquilo que faz. Impor à seguradora o ônus de provar o plano, o ardil, é o mesmo que ignorar tudo isso. A "malícia" que pressupõe a própria morte para o plano ser "bem-sucedido" não pode ser tratada como a malícia do fraudador. Há desproporção violenta entre o evento morte (a própria morte) e o benefício de cunho indenizatório que ela pode gerar. Sem levar em consideração o texto legal (art. 798 do CC), que é bastante claro, o suicídio praticado por pessoa que tem seguro de vida pode ser analisado sob diversas perspectivas. Em primeiro lugar, o bem jurídico mais importante nessa situação é a vida do estipulante. Aquele que visa ao suicídio não está bem de saúde psíquica. Não se pode legalmente confortá-lo ao estabelecer a possibilidade de indenização aos beneficiários por ele contemplados, amenizando eventual peso de consciência que sua morte acarretaria. A lei deve, na medida do possível, desestimular o suicídio. E interpretação do STJ não contribui para isso. Em segundo lugar, deve-se investigar a situação do beneficiário do seguro, que não tem nada a ver com a morte e, normalmente, depende economicamente do suicida. Recusar o pagamento a ele não atinge diretamente o morto, obviamente, mas sim esse terceiro que muitas vezes não tem sequer como sobreviver sem a indenização. Em terceiro lugar, há de se verificar a situação da seguradora, que tem interesse em não pagar a indenização, porque a condição morte foi buscada propositadamente. E todos sabem, o CC contém regra geral que considera não verificada a condição levada a efeito maliciosamente, por aquele que é beneficiado pelo seu implemento (art. 129). A interpretação do STJ parece voltar mais a atenção para a proteção do beneficiário, em detrimento da seguradora. Porém, o equívoco dessa "justiça" decorre da despreocupação em relação à situação do próprio suicida, que sabedor da viabilidade jurídica de indenização, pode se sentir não propriamente estimulado, mas sim despreocupado com o aspecto econômico que sua morte pode gerar, em relação a seus entes queridos. Além disso, a liberdade de interpretação não é ilimitada. Com o devido respeito, decisões nesse sentido não decorrem do poder de interpretar. O STJ, assim agindo, extrapola os seus poderes porque exerce verdadeiro papel de legislador. A premeditação, diferentemente do Código Civil de 1916, não faz mais parte da fattispecie do artigo, devendo ser portanto solenemente ignorada. O juiz não pode ser tutor do legislador, criando o norte que entende mais correto e ignorando as opções legislativas adotadas regularmente. As "flexibilizações", de toda ordem, em que vêm incorrendo algumas decisões, criam o risco nefasto da insegurança jurídica e atenta violentamente contra a tripartição dos poderes. Rompe-se o sistema e ninguém mais sabe o que é certo e errado. O critério adotado pela lei, correto ou equivocado, é objetivo e apresenta diversas vantagens. A mais relevante delas é a de estimular o potencial suicida a permanecer vivo por dois anos, fato que pode contribuir favoravelmente para a mudança de seu destino.
quarta-feira, 19 de outubro de 2011

Casamento descartável

No México, a imprensa noticiou, há pouco tempo, tramitação de projeto de lei que visa a mudar o Código Civil mexicano, com a finalidade de criar casamentos renováveis a cada dois anos. A questão ainda está em discussão e os objetivos principais seriam os seguintes: desafogar o Poder Judiciário local, criar a possibilidade de estipulação prévia de eventual verba alimentícia devida aos filhos ou entre os cônjuges, determinar o tempo de duração da pensão, entre outros ajustes (clique aqui). Ideias desse tipo refletem menos a preocupação com o acúmulo de serviço do Judiciário e mais a mudança social pela qual vem passando o mundo inteiro. O consumismo e a superficialidade das relações humanas têm conquistado cada vez mais espaço na sociedade moderna. As pessoas são aquilo que consomem, os objetos que compram, os restaurantes que frequentam, os carros em que andam, o bairro onde moram, as viagens que fazem. Essas valem tanto pelo prazer que geram a seus protagonistas quanto pela imagem e impressão que causam no seu círculo social. Ser "bem sucedido" confere prestígio numa sociedade que valoriza o consumo; isso traz benefícios, diretos e indiretos. Daí a importância de ostentar prosperidade, ainda que aparente. Em suma, a obstinação pelo consumo desenfreado está transformando, lentamente, o modelo social vigente. Como consequência dessa modificação de valores e comportamentos, compram-se coisas supérfluas, descartam-se objetos em perfeito estado de funcionamento, apenas porque outros mais modernos são lançados. Normalmente, apresentando apenas novidades estéticas ou funções que nunca foram necessárias. Nas redes sociais, uma das preocupações de seus usuários é a de ter grande quantidade de amigos, ou "seguidores", informação sempre presente logo na primeira página dos sites. E essa referência é sempre pública. Não se pode omiti-la. Ter poucos amigos compromete. Pode passar a imagem de pessoa murcha, solitária, macambúzia. A afinidade entre os amigos virtuais é absolutamente irrelevante. Trata-se de uma dinâmica diferente de se relacionar. O mundo globalizado vem, aos poucos, uniformizando essa forma ostentosa, espetaculosa e exibicionista de viver. Os relacionamentos, não raras vezes, são pautados por interesses; os momentos simples e reconfortantes, de convivência com a família e com os (verdadeiros) amigos, de conversa desinteressada, de leitura, de relaxamento e de reflexão, tornaram-se cada vez mais escassos. Os períodos de lazer, quando há, são todos calculados como parte integrante dessa nova e complexa configuração da forma atribulada de viver. A internet encarrega-se de ocupar eventual tempo vago. No âmbito afetivo, o fenômeno é o mesmo. As relações duradouras, em alguns círculos, são vistas com certo preconceito, a revelar, em muitos casos, falta de coragem para mudanças, acomodação ou mesmo ausência de outras opções (melhores) para seus adeptos. O sociólogo polonês, Zygmunt Bauman, em seu livro "Amor líquido: sobre a fragilidade dos laços humanos", estabelece com destreza a correlação entre o consumismo, que se dá não para atender propriamente um desejo, mas sim um impulso, com as relações amorosas. Citando Catherine Jarvie, ele diz: "Uma relação de bolso bem sucedida, diz Jarvie, é doce e de curta duração. Podemos supor que seja doce porque tem curta duração, e que sua doçura se abrigue precisamente naquela reconfortante consciência de que você não precisa sair do seu caminho nem se desdobrar para mantê-la intacta por um tempo maior. De fato, você não precisa fazer nada para aproveitá-la. Uma 'relação de bolso' é a encarnação da instantaneidade e da disponibilidade". Por tudo isso, nada mais oportuno do que um casamento temporário, com data prefixada para acabar. Que só dure enquanto for bom, prazeroso, sem percalços e contratempos. Não se tem mais tempo, disposição e paciência para construir uma relação mais sólida, que enfrente e supere os seus desgastes naturais, com maturidade, companheirismo, criatividade e renovação. Imaginemos a conversa: - Amor, quanto tempo falta mesmo para o nosso casamento acabar? Eu não te aguento mais... A discussão sobre o casamento temporário, embora ocorra extramuros, choca. Choca porque enfraquece a família. É muito mais fácil "não renovar" o matrimônio do que tomar a iniciativa de um divórcio. Apesar disso, é possível que, se aplicada essa espécie de "casamento descartável", o tempo demonstre efeito exatamente contrário. A prerrogativa que uma das partes tem de não querer "renovar" o casamento por mais dois anos pode fazer com que ambos nutram melhor a relação. Por isso, o enfraquecimento jurídico do laço matrimonial pode ter efeito fortificador na afetividade. Embora a ideia pareça bizarra, a verdade é que não se pode mais sustentar um casamento se não existe afeto. Ninguém pode ser obrigado a suportar a companhia de outra pessoa porque fez a promessa de amor eterno. Ou porque tem filhos. Entender o contrário atenta com maior gravidade contra a harmonia da família, a integridade psíquica (e física) de seus membros e também contra a paz social. Não se deve mais, em face dos valores modernos, questionar quem é o culpado pelo rompimento de uma união afetiva. A falta de amor e de afeto não se conectam à culpa. Ninguém pode ser considerado culpado por deixar de amar. Eventual culpa pode haver na forma de se comportar em face do outro, desrespeitando, traindo, etc. Nesses casos, a culpa deve continuar sendo relevante, inclusive para possíveis efeitos indenizatórios. O desamor não pode acarretar indenização. Não se quer, com isso, dizer que a EC 66/2010 acabou com a discussão sobre a culpa na separação, tampouco que não existe mais separação no Direito brasileiro (a propósito, em nossa opinião, não é isso o que consta da referida EC, a despeito do que alguns renomados juristas vêm afirmando). As considerações são feitas apenas abstratamente. No Brasil, de certa forma, a facilitação do término do casamento já existe, em determinadas circunstâncias, com o divórcio extrajudicial. E as leis devem mesmo refletir o que se passa na sociedade. Por isso, em vez de analisá-las apenas para criticá-las, é importante refletir além delas, sobre o comportamento que temos adotados nos últimos tempos. E, nesse sentido, o egoísmo, a sede desmedida pelo êxito profissional, pela boa remuneração, pela aparência de altivez, que permite consumir ilimitadamente o descartável e desnecessário, precisam ser objetos de reflexão. José Renato Nalini, em janeiro de 2000, publicou na Revista de Direito Privado (DTR/2000/65), um artigo em que dizia: "O individualismo conduzido até às últimas consequências cerra as portas para o afeto desinteressado. Quanta vez as relações se estabelecem fundadas no interesse, na conveniência, nas vantagens de toda ordem, menos as ditadas pelo coração. A família precisa ser uma usina de amor. Toda a crise universal pode ser resumida à falta de amor. E este ingrediente é insubstituível na construção de seres equilibrados, bem posicionados na vida e suficientemente fortes para enfrentar as intempéries reservadas a todo vivente". Quanto aos aspectos técnicos da ideia mirabolante, parece que a solução alvitrada não gera qualquer benefício significativo. Discutir eventual pacto antenupcial para alterar o regime de bens do casamento já costuma ser um tormento. Não é difícil imaginar o que ocorreria se os casadouros tivessem que, antecipadamente, arbitrar o valor de eventual pensão alimentícia, guarda de filhos, etc. E o que for combinado pode não ser justo no momento do pagamento, porque as circunstâncias e o patrimônio frequentemente sofrem alterações. Além disso, haverá inúmeras situações em que os cônjuges continuarão juntos, porém sem renovar o casamento. Qual seria, nesse caso, o estado civil deles? Esses são apenas alguns dos diversos inconvenientes que podem ser apontados. Tudo indica, os verdadeiros problemas não serão solucionados. Conheço de algum lugar essa inquietação de tentar resolver todos os problemas editando lei nova...
quarta-feira, 28 de setembro de 2011

A venda do bem de família pode caracterizar fraude?

Recentemente, meu amigo Luiz Carlos, também advogado, perguntou minha opinião sobre a seguinte situação: um casal queria vender uma casa adquirida havia bastante tempo, sempre utilizada para a moradia, sendo portanto protegida pela impenhorabilidade destinada ao bem de família (lei 8.009/90). Porém, diversas ações de execução e de cobrança tramitavam contra tal casal. Em resumo, ele queria saber se poderia autorizar, como advogado, a compra do referido imóvel com alguma segurança, uma vez que, sendo bem de família por força da lei 8.009/90, a casa jamais poderia ser alcançada pelos credores então existentes. Logo, a sua venda não frustraria quaisquer credores. Antes de responder seguem algumas observações preliminares. Conforme expusemos no texto de 14/9/2011, os bens do devedor constituem garantia implícita a todo e qualquer credor, de acordo com o que preceitua o art. 591 do CPC. Por isso, aquele que esvazia o seu patrimônio com o objetivo de não pagar aquilo que deve comete fraude. Fraudar é frustrar a expectativa do credor. Logo, quem não frustra direito do credor, a contrário senso, não comete fraude. A conclusão é lógica e óbvia, mas merece sempre ser lembrada porque a análise da validade ou eficácia de uma alienação pode depender do subsequente comportamento do devedor, alienante. Aquele que, sendo devedor, vende um imóvel de R$ 500 mil por R$ 500 mil, não sofre nenhuma diminuição patrimonial. Óbvio. Ao contrário, em tese (e somente em tese) facilita a vida do credor porque é melhor que o devedor tenha dinheiro do que bem imóvel. Então, por que cargas d'água tal alienação pode ser considerada fraudulenta? A resposta é igualmente óbvia: porque o dinheiro "desaparece"; o imóvel não. Quem pode evitar o infortúnio do credor, em circunstâncias como essa, é o adquirente, que tem um leque enorme de alternativas para vasculhar a vida pregressa do vendedor, a começar pela matrícula do imóvel e pelas certidões, cíveis, de protesto, trabalhista, etc. Sem contar os sites dos tribunais e o próprio google. Se o devedor que aliena um imóvel, bem de família ou não, quita em seguida suas dívidas, não há fraude, evidentemente. Ressalva feita às situações excepcionais de premeditação do devedor, que já levaram o STJ a flexibilizar o requisito da anterioridade do crédito, conforme referido na Civilizalhas nº 8. O cenário acima exposto, de pagamento, em princípio não importa para o direito porque, se os credores são satisfeitos, não há discussão. Importa sim a situação de dívida não paga pelo devedor-alienante, ou quando não puder ser paga, dado o seu alto valor. O raciocínio sugerido pelo meu amigo Luiz Carlos tem lógica. Se o imóvel permanece com o devedor, sendo utilizado para a sua moradia, o interesse do credor sempre será afastado diante da alegação do bem de família. Logo, se ele vende sua casa a terceiro, transformando-a em dinheiro, em princípio não piora em nada a situação de seus credores. Mesmo que o dinheiro "desapareça" em seguida. Seguindo exatamente esse raciocínio, a 4ª Turma do STJ (REsp 976566/RS) já proclamou que "não há fraude à execução na alienação de bem impenhorável nos termos da lei 8.009/90 tendo em vista que o bem de família jamais será expropriado para satisfazer a execução, não tendo o exequente nenhum interesse jurídico em ter a venda considerada ineficaz". A 2ª Turma também já decidiu assim (REsp 846897/RS). A lei 8.009/90 blinda o imóvel residencial do devedor, que não perde a sua moradia pelo fato de não pagar suas dívidas, com as exceções feitas pelo art. 3º (dívida de alimentos, hipoteca, fiança em contrato de locação, etc). A proteção conferida ao devedor pela lei 8.009/90 é extremamente importante porque respeita a dignidade da pessoa humana e o direito à moradia, direitos firmemente assegurados pela Constituição Federal. No entanto, tal medida é excepcional. Excepcional porque sacrifica o credor. E o credor não é vilão, embora muitas vezes seja tratado como tal. É importante lembrar que os créditos podem nascer da vontade das partes, como um empréstimo feito por instituição financeira, mas também podem nascer de atos ilícitos praticados pelo devedor. E embora a lei não faça distinção, tanto o mutuante (que pode escolher entre emprestar e não emprestar) e a vítima de um dano decorrente de ato ilícito (que naturalmente não escolhe essa condição), estão na mesma situação em face do devedor que alega o bem de família. Prevalece o direito do solvens, ainda que do outro lado haja interesse igualmente relevante a ser tutelado. Porém, para que haja a concessão desse benefício de impenhorabilidade ao devedor, é necessário que ele, ou sua família, resida no imóvel. É o que está claro nos artigos 1º e 5º da referida lei 8.009/90. O bem de família, apesar de ser impenhorável, é alienável por vontade do devedor, diferentemente do bem de família do CC. Se o devedor vende seu imóvel é porque renuncia àquela moradia protegida por lei. Parece-nos essa a interpretação mais adequada em vista do caráter de excepcionalidade da lei. Mesmo que a sua intenção verdadeira não seja a de abrir mão do benefício. Mesmo que o seu objetivo seja adquirir outro imóvel residencial para morar, em outro bairro ou município por exemplo. A sua liberdade de movimentos negociais deve ser tolhida enquanto existe a dívida. Talvez, em circunstâncias excepcionais, fosse o caso de autorizar judicialmente essa sub-rogação de proteção, de um imóvel vendido para outro a ser comprado. Mas nunca o de assegurar a inexistência de fraude por alienação do bem de família, em face da sua impenhorabilidade. Isso porque a causa da proteção é a moradia. A partir do momento que o devedor não mora, o imóvel ou o produto de sua venda passa a ser penhorável. Há outros casos conhecidos de relativização desse pressuposto (moradia), por exemplo, quando o devedor não mora em seu imóvel porque o mantém alugado, mas prova que com a renda desse contrato paga o aluguel de sua moradia. Com o devido respeito, parece que esse seria outro caso de aplicação equivocada da lei. A flexibilização de algumas decisões do STJ quanto a esse assunto, embora inequivocamente vise à Justiça, fissura o principal requisito legal para a concessão desse benefício, que é a moradia de fato pelo devedor ou sua família. A prevalecer tal espécie de raciocínio, que estende a aplicação do bem de família sem que haja a efetiva moradia, seria o mesmo que reconhecer que cada cidadão tem o direito de ter blindado uma parte do seu patrimônio (independentemente da moradia), desde que prove que de alguma maneira isso contribua para a manutenção de seu lar. Exemplo: aquele que tem R$ 500 mil reais em aplicação bancária pode, pelo mesmíssimo raciocínio, pretender a impenhorabilidade do numerário se provar que os juros do investimento são destinados ao pagamento do aluguel de sua moradia. E como fica a súmula 375 do STJ, segundo a qual somente há fraude com o registro da penhora na matrícula do imóvel ou prova da má-fé do adquirente? Sobre ela, cabem duas apressadas considerações: 1) o registro da penhora na matrícula gera presunção absoluta de má-fé; 2) em que pesem diversas decisões em sentido contrário, aquele que adquire um bem de uma pessoa que tem diversas ações contra si ajuizadas, de fácil constatação por meio de certidões simples, não age com a diligência do homem médio. Ao contrário age com culpa grave e ausência da boa-fé objetiva, o que deve equivaler à má-fé para efeito de caracterização da fraude. Mesmo não havendo anotação na matrícula do imóvel. Tais reflexões, superficiais nesse espaço, visam não à crítica, mas servir de estímulo para nova análise em torno desses problemas antigos e de outros interesses a serem protegidos, tanto do devedor quanto do credor. Por isso tudo, Luiz Carlos, apesar de algumas decisões chancelarem compras feitas nessas condições, eu não compraria o bem.
No Brasil, diariamente brotam notícias sobre escândalos, corrupções, subornos, desvios de dinheiro público, enriquecimentos inexplicáveis, entre outras condutas ilícitas e antiéticas. As punições, escassas, não têm sido suficientes para intimidar os infratores. As atitudes desonestas parecem incrustadas na sociedade de maneira indissolúvel. Alguns até se gabam quando agem de forma a obter vantagens, ainda que à margem da ética e da moral, reforçando a ideia de que aqui, no Brasil, tudo é permitido. Em vez de reprovação, a astúcia, a malandragem e o "jeitinho brasileiro" fazem despertar, nos bastidores, certo louvor e até algum charme. A propósito do tema, difundiu-se entre nós uma lei, a Lei de Gérson, no sentido figurativo, para rotular esse tipo de comportamento, expressão originada em propaganda comercial feita na década de 70. Assim, não se pode esperar do cidadão comum conduta diversa, se muitos daqueles que deveriam dar o exemplo fazem exatamente o contrário do que recomendam a lei, a moral e os bons costumes. É exatamente nesse contexto que se enquadram as transferências fraudulentas de bens feitas para o patrimônio de terceiros. 1) Os bens do devedor constituem garantia implícita a todo e qualquer credor, nos termos do art. 591 do CPC. Por isso, aquele que esvazia o seu patrimônio com o objetivo de não pagar aquilo que deve comete fraude. O verbo "fraudar", proveniente do latim fraudare, significa, segundo os lexicógrafos, lesar, enganar, burlar, espoliar, iludir, frustrar. 2) Para combater tais atitudes praticadas pelos devedores, um dos instrumentos disponíveis ao credor frustrado é o da fraude contra credores, disciplinado nos artigos 158 a 165 do Código Civil. A fraude contra credores é um dos defeitos do negócio jurídico, ao lado do erro, dolo, coação, estado de perigo e lesão. Por meio de ação própria, desde que preenchidos os requisitos legais, o credor pode pretender a anulação do negócio praticado pelo devedor já insolvente ou por ele reduzido à insolvência. 3) O instituto é muito antigo. Advém do Direito Romano. A ação própria para a anulação é chamada de pauliana (actio pauliana), porque a sua criação é atribuída ao pretor Paulus, no Direito justinianeu. Deve ser ajuizada em quatro anos a contar da data do negócio fraudulento, sob pena de decadência (art. 178 do CC). 4) É importante observar que este tipo de vício ocorre tanto se o negócio realizado for verdadeiro quanto se for simulado, isto é, não verdadeiro. Se for simulado, poderá o negócio fraudulento ser atacado também sob esse fundamento, muito mais contundente e confortável ao credor, porque a consequência é mais grave. Enquanto os negócios fraudulentos são anuláveis, os negócios simulados são nulos de pleno direito. Assim, o credor não se sujeita ao prazo decadencial, relativamente exíguo, de quatro anos. 5) Sempre foi e continua sendo objeto de discussão o efeito da fraude contra credores. A lei diz que é anulação (art. 158, caput, do CC). Alguns juristas, principalmente os processualistas, insistem, não obstante o texto legal, que o efeito é o de ineficácia relativa. A questão é extremamente relevante, pois se o negócio jurídico é anulado, o bem transferido fraudulentamente retorna ao patrimônio do devedor. Como consequência, pode ser alcançado até mesmo por outros credores, ainda que posteriores à prática da fraude. Por outro lado, se o negócio fraudulento for considerado ineficaz, o bem não retorna ao patrimônio do devedor. O credor, vítima da fraude, e somente ele, pode alcançar referido bem nas mãos de terceiro, porque tal alienação lhe é ineficaz, ou seja, não produz efeitos em relação a ele. 6) Apesar da discussão sem fim sobre o correto efeito da fraude contra credores e muito embora o sistema da ineficácia apresente vantagens consideráveis, o Código Civil brasileiro, não só o vigente como o revogado, de Clóvis Beviláqua, acolheu o sistema da anulabilidade. A propósito do tema, enquanto tramitava perante o Congresso Nacional o então projeto do CC que atualmente vige, Moreira Alves, jurista responsável pela elaboração da Parte Geral, recebeu formalmente sugestão de alteração do regime de anulabilidade para ineficácia. Apesar do forte coro em prol da ineficácia, a proposta foi rejeitada pela Comissão Revisora, sob a explicação de que não haveria vantagem prática efetiva que justificasse a mudança da tradição. 7) Os requisitos para a configuração da fraude contra credores são diferentes para os negócios jurídicos onerosos e gratuitos. Se o negócio jurídico praticado pelo devedor for gratuito, isto é, gerar vantagens patrimoniais tão somente para o beneficiado, como ocorre na doação, o credor precisa apenas demonstrar o seu prejuízo (eventus damni) em decorrência do ato fraudulento. O eventus damni é o elemento objetivo da fraude e precisa sempre ser demonstrado, tanto nos negócios onerosos quanto nos gratuitos. Se não há prejuízo, o credor não tem sequer interesse de agir para a ação pauliana. A lei contenta-se apenas com esse requisito para os negócios gratuitos porque entre preservar o interesse daquele que recebeu algo sem contraprestação e o interesse do credor frustrado, naturalmente, a balança deve pender para o credor. 8) Porém, se o negócio jurídico praticado pelo devedor for oneroso, como compra e venda, aquele que comprou tem interesse jurídico mais relevante do que o donatário do exemplo anterior. O donatário, diferentemente do comprador, nada paga para se beneficiar do acréscimo. Logo, o interesse do adquirente passa a ser igualmente relevante se confrontado com o do credor baldado. Por essa razão, a lei exige um requisito a mais para autorizar a anulação do negócio em situações como essa. Isso porque, se o terceiro adquirente age de boa-fé, a alienação deve ser considerada hígida e inatacável. O art. 159 do CC prescreve, nesse sentido, o seguinte: "Serão igualmente anuláveis os contratos onerosos do devedor insolvente, quando a insolvência for notória, ou houver motivo para ser conhecida do outro contratante". Quer dizer, a lei exige a coparticipação, ou ao menos negligência, do comprador para que ele seja alcançado nos negócios onerosos, diferentemente dos negócios gratuitos. É o que a doutrina chama de scientia fraudis. 9) Os autores, de maneira geral, reportam-se ao requisito chamado de consilium fraudis para autorizar a anulação nos negócios onerosos. Esse requisito consiste na trama, no ardil, no concerto fraudulento engendrado pelo devedor e pelo terceiro. Decorreria, segundo os civilistas, da presunção de mancomunação entre devedor e adquirente, implícita no art. 159 do CC. No entanto, tal ponderação parece-nos totalmente irrelevante. O credor não tem, com o devido respeito aos juristas que sustentam o contrário, o ônus de demonstrar o consilium fraudis. Basta demonstrar a scientia fraudis, que deve ser analisada objetivamente, comparando o comportamento do adquirente com o do homem médio. Se houve trama ou não, se houve má-fé ou não, tudo isso passa a ser de pouca importância em face da presunção estabelecida pela insolvência "notória" ou pelo fato de haver motivos para a insolvência "ser conhecida do outro contratante". 10) Outro requisito da fraude contra credores, comum aos negócios gratuitos e onerosos, é o da anterioridade do crédito, consubstanciado no art. 158, § 2º, do CC, verbis: "Só os credores que já o eram ao tempo daqueles atos podem pleitear a anulação deles". De acordo com esse requisito, se não há dívida no momento da transferência, onerosa ou gratuita, não há fraude. 11) Referido requisito, da anterioridade do crédito, contido no art. 158 do Código Civil vigente, repete a regra contemplada no passado pelo Código Civil de 1916 (art. 106). Portanto, entre nós, o texto já tem quase cem anos. A fraude, no entanto, é dinâmica e rica. Os fraudadores sempre estão um passo à frente. A imaginação para as atitudes ardilosas é sempre muito fértil. Assim, tem sido notado, em circunstâncias bastante específicas, que algumas pessoas (físicas ou jurídicas) que podem antever o nascimento de dívidas, principalmente por causa da atividade que exercem ou mesmo por ilícitos, vêm transferindo seus bens a terceiros, antecipadamente à própria existência da dívida. Tudo com o objetivo de fulminar a possibilidade de serem alcançados com base na fraude, pela ausência do requisito da anterioridade do crédito. 12) Pela letra fria da lei, tais negócios seriam inatacáveis. Porém, decisões recentes têm flexibilizado esse requisito em circunstâncias especiais. O TJ/SP assim já procedeu. E o STJ chancelou a decisão no final do ano passado (clique aqui). 13) Há legislações de outros países, como o Código Civil Peruano (art. 195), que expressamente admitem a caracterização da fraude por atos anteriores à existência da própria dívida. No Brasil, não há previsão legal nesse sentido. Assim, embora esse tipo de interpretação extensiva cause, por um lado, certo incômodo, pela insegurança que pode gerar se mal aplicada, por outro lado constitui uma resposta rápida e eficiente às demandas originadas de comportamentos não expressamente previstos.
quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Bullying e responsabilidade civil

O verbo to bully, segundo o dicionário inglês Longman, tem dois significados similares, a saber: "1. to threaten to hurt someone or frighten them, especially someone smaller or weaker; 2. to put pressure on someone in order to make them do what you want". Traduzindo livremente, pratica bullying quem ameaça, fere, amedronta, intimida ou assusta outra pessoa, menor ou mais fraca. Há pressuposição de atos repetitivos para a caracterização do bullying. Do contrário, configura-se apenas um quick bullying ou uma violência isolada, como é o caso de uma briga. Essa espécie de investida é bastante comum entre crianças e adolescentes. O bullying tem potencial para gerar enormes danos em suas vítimas, principalmente em crianças, pela imaturidade e falta de desenvolvimento adequado para suportarem, ilesas, a violência (física ou moral). Segundo os psiquiatras, tal hostilidade pode causar estresse, ansiedade, fobias, enxaqueca, taquicardia, depressão, hiperatividade, entre outros malefícios. Em alguns países, o bullying já foi considerado causa de suicídio. No Brasil, há pouco tempo, em abril de 2011, o debate sobre o tema ganhou ainda mais destaque por causa da tragédia ocorrida em Realengo, Rio de Janeiro, quando um ex-aluno de uma escola assassinou covarde e brutalmente 12 crianças indefesas, sob a justificativa de que teria sido vítima de bullying na infância. O bullying é extremamente nocivo e gera responsabilidade civil, mesmo que praticado por menor, relativa ou absolutamente incapaz. Sobre o assunto, seguem algumas considerações. 1) De acordo com o que estabelece o art. 227, caput, da Constituição Federal, com redação dada pela EC nº 65, de 13.07.2010, é dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, entre outros, o direito à vida, à saúde, à dignidade, ao respeito, à liberdade, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Portanto, além dos efeitos civis, concernentes à reparação do dano, há comando constitucional para o Estado, a sociedade e a família agirem preventivamente, com o objetivo de preservação da criança, do adolescente e do jovem. Direitos similares são prescritos pelo art. 4º do Estatuto da Criança e do Adolescente. 2) A regra geral de responsabilidade civil determina que o causador do dano, sendo capaz, deve responder civilmente, com os seus próprios bens (art. 942, primeira parte, do CC). No entanto, em situações excepcionais, admite-se que terceiro seja alcançado para efeito reparatório. O art. 932 do CC é o principal artigo de responsabilidade civil por ato de terceiro, também conhecida por responsabilidade civil indireta. Preceitua o inciso I do referido artigo que são também responsáveis pela reparação civil "os pais pelos filhos menores que estiverem sob sua autoridade e em sua companhia". Portanto, os pais respondem civilmente pelos atos praticados por seus filhos menores, nos termos do art. 932, I, do CC. 3) O art. 932, em outro inciso (IV), prescreve que são também responsáveis "os donos de hotéis, hospedarias, casas ou estabelecimentos onde se albergue por dinheiro, mesmo para fins de educação, pelos seus hóspedes, moradores e educandos". Assim, a escola também pode ser responsabilizada pelos danos causados por menores que estejam sob sua custódia. 4) A responsabilidade civil dos "indiretamente responsáveis" é objetiva (art. 933 do CC). Vale dizer, mesmo que não haja culpa de sua parte, serão alcançados pela vítima. E o art. 942, parágrafo único, do CC impõe a solidariedade entre as pessoas designadas no art. 932. Quer isso dizer que a vítima pode cobrar a reparação do dano, na íntegra, de qualquer responsável, isolada ou conjuntamente. 5) E o menor? Pode ele responder com seus próprios bens pelos danos a que deu causa? Embora normalmente o menor não tenha bens em seu nome, há situações excepcionais que justificam a análise. E, nessa parte, o Código Civil de 2002 trouxe importante - e questionável - inovação. O art. 928 estabelece a responsabilidade subsidiária do incapaz, com certa complexidade, a saber: "O incapaz responde pelos prejuízos que causar, se as pessoas por ele responsáveis não tiverem obrigação de fazê-lo ou não dispuserem de meios suficientes". E o parágrafo único desse artigo dispõe que a indenização deve ser equitativa e não terá lugar se privar do necessário o incapaz ou as pessoas que dele dependem. O artigo é ruim e de difícil exequibilidade. A responsabilidade do incapaz deveria ser solidária. Não há razão para preservar o patrimônio do incapaz causador do dano e deixar a vítima dos prejuízos por ele causados em situação jurídica inferiorizada. Nesse sentido, a indenização não deveria ser por equidade e sim pela integralidade do prejuízo experimentado pela vítima. Também não deveria ser atribuído à vítima o incômodo ônus de identificar precisamente contra quem ele deve ajuizar a ação, ou seja, se o menor pode ou não responder em face das limitações impostas pelo art. 928 do CC. 6) Apesar dos inconvenientes apresentados pela redação do art. 928 do CC, a responsabilidade civil por bullying não é necessariamente afetada por referidos inconvenientes. Isso porque o bullying, praticado por menor (entre 12 e 18 anos), também é ato infracional, conforme preceitua o Estatuto da Criança e do Adolescente. De acordo com o art. 103 do ECA, "considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal". E o art. 116 do mesmo Estatuto estabelece que, "em se tratando de ato infracional com reflexos patrimoniais, a autoridade poderá determinar, se for o caso, que o adolescente restitua a coisa, promova o ressarcimento do dano, ou, por outra forma, compense o prejuízo da vítima". Portanto, os limites do art. 928 do CC não precisam ser observados se a responsabilidade civil advém de ato infracional com reflexo patrimonial. Poderia, nesse sentido, haver uma espécie de solidariedade entre o causador do dano e os seus pais. Normalmente, os atos infracionais que caracterizam bullying são lesões corporais, injúria, difamação, racismo etc. 7) De qualquer forma, os artigos acima referidos, mais o art. 186 do Código Civil, que dispõe sobre a responsabilidade civil subjetiva, merecem destaque na apreciação do tema objeto deste texto. O bullying é atitude covarde praticada, como se disse, normalmente por menores. Geralmente, o agressor não age só. Os pais dos agressores podem ser responsabilizados. A escola também, assim como o próprio menor, nos termos examinados. A lei, ao impor a responsabilidade objetiva dos indiretamente responsáveis e a ao estabelecer a solidariedade entre as pessoas designadas no art. 932 do CC, quer deixar a vítima em posição confortável para ter os danos que a atingem efetivamente reparados, sejam os de natureza material, sejam os de ordem estritamente moral. 8) A responsabilidade das escolas e demais estabelecimentos de ensino é incontestável. Quando os pais deixam seus filhos na escola, não têm mais sobre eles o comando enquanto lá permanecem. Os pais são proibidos de permanecer dentro do ambiente escolar. E não deve ser diferente. Logo, a escola tem o dever de manutenção da ordem e da integridade (física e psíquica) de seus alunos. Comprovado o bullying, não se abre à escola a oportunidade de provar a sua falta de culpa. A responsabilidade é objetiva. Nesse sentido já decidiu, acertadamente, a Décima Terceira Câmara do Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro, em março de 2011 (clique aqui). 9) Os pais, repita-se, também são responsáveis pelos atos nocivos, dessa natureza, causados por seus filhos menores. A difícil questão é a de saber se a responsabilidade dos pais coexiste com a da escola. Conforme examinado, os pais são responsáveis pelos filhos que estão "sob sua autoridade e em sua companhia". Há controvérsia na doutrina sobre a interpretação mais adequada para a expressão "autoridade e companhia". Segundo alguns autores, a coabitação seria o elemento para atender ao reclamo legal. Segundo outros, a delegação de vigilância com caráter de substituição seria suficiente para excluir a responsabilidade dos pais por faltar a tal "companhia". Entretanto, parece-nos que a vagueza do texto legal é sábia e o exame do caso concreto deve definir se a responsabilidade dos pais coexiste com a da escola nos casos de bullying praticado dentro do ambiente escolar. Muitas vezes, apesar de o agressor não estar na companhia de seus pais, os seus atos na escola decorrem de sua personalidade e educação (falta de). Por isso, em princípio, a vítima deve estar em condição confortável, podendo ajuizar ação contra a escola, contra os pais ou contra todos os responsáveis. 10) Nesse mesmo sentido, deve ser examinado o caso concreto para saber se a responsabilidade é de ambos os pais ou de apenas um deles. Clito Fornaciari Júnior, em recente artigo publicado no jornal Tribuna do Direito (nº 196, de agosto de 2011), intitulado "Responsabilidade por ilícito praticado por menor" analisa com propriedade o assunto. Segundo ele, alguns atos praticados pelo filho decorrem de atitude atribuível a somente um dos pais; outros não. 11) Os danos, por sua vez, podem ser patrimoniais e morais. Constituem danos patrimoniais todas as despesas feitas com médicos, tratamentos, terapias, remédios, entre outros. Os danos morais são ainda mais evidentes porque a violência no bullying traz sofrimento à vítima, dor e constrangimento. 12) Mais recentemente, o bullying tem sido feito por meio das redes sociais de relacionamento. Tal atitude é denominada de cyberbullying, palavra acrescentada na última edição do dicionário Oxford, que quer dizer a mesma coisa que bullying, porém, praticado virtualmente, ou seja, por meio da internet. Em face da disseminação mundial dessas redes de relacionamento e da significativa e surpreendente adesão dos brasileiros, o cyberbullying tem sido cada vez mais comum e danoso. É importante ressaltar que, nos casos de cyberbullying, a responsabilidade dos pais é patente, pois os acessos aos computadores por meio dos quais é praticada a violência virtual são feitos normalmente de dentro do próprio lar. E mesmo que não o fossem, os pais têm o dever de controlar seus filhos e educá-los a fim de evitar comportamentos danosos, como esse tipo de agressão e intimidação. 13) Ainda com relação ao cyberbullying, discute-se se haveria responsabilidade dos meios de comunicação utilizados para a propagação da ofensa, como sites, redes sociais, provedores etc. A lei não disciplina o assunto e as decisões têm variado bastante. Recentemente, conforme noticiado no Migalhas (clique aqui), semana passada, foi apresentado ao Congresso Nacional o projeto de lei denominado Marco Civil da Internet que prevê como princípio a "neutralidade da rede". De acordo com a proposta original, a ideia é a de excluir a responsabilidade dos provedores por postagens enviadas por terceiros. Assim, não haveria necessidade de controle prévio do conteúdo, respeitando a liberdade de expressão e a "natureza colaborativa da internet". Somente haveria responsabilidade em caso de descumprimento de ordem judicial determinando a eliminação do material postado. 14) O fato é que o problema do bullying, presencial ou digital, existente no mundo inteiro, precisa ser rigidamente combatido. É necessário que se dê a devida importância ao assunto, por pais, professores, diretores de escola, sociedade, Estado etc. Há algumas leis estaduais que procuram combater a prática, bem como diversos projetos de lei tramitando no Congresso Nacional sobre o assunto. Mas sem que seja dado o devido valor por todos aqueles que consideram o bullying como um processo natural e até saudável, ou reles brincadeiras de crianças, a tarefa será inglória. Espera-se que a conscientização da sociedade seja alcançada no menor tempo possível e que as questões técnicas sobre responsabilidade civil em casos como esses sejam esparsos e fiquem apenas para a história.
No condomínio edilício, cada condômino é proprietário simultaneamente de área exclusiva (unidade autônoma) e área comum. Toda unidade imobiliária de propriedade exclusiva tem, como parte indissociável, uma fração ideal no solo e nas outras partes comuns, identificada em forma decimal ou ordinária no instrumento de instituição do condomínio (art. 1331, § 3º do Código Civil). Para a manutenção da área comum, bem como para viabilizar o exercício do direito de propriedade em imóveis que estejam sob esse regime jurídico, cada condômino deve contribuir, mensalmente, com valor certo em dinheiro. O inadimplemento da verba condominial gera consequências diversas, algumas de entendimento pacífico; outras, controversas. 1) A primeira observação diz respeito à importância da arrecadação pelo condomínio. O montante mensalmente arrecadado destina-se à manutenção do condomínio, ou seja, possibilita o pagamento dos salários, e demais encargos trabalhistas, dos funcionários (porteiro, zelador, faxineiro, segurança etc), da conta de energia elétrica utilizada para o elevador e demais áreas comuns, da conta de água, do serviço normalmente contratado para a manutenção do elevador, da taxa de administração, entre outras. Assim, a falta de arrecadação, evidentemente, torna inviável a subsistência do condomínio. 2) Exatamente por essa razão, o débito de condomínio acompanha o bem e dele não se desvincula enquanto não houver quitação, ainda que haja transferência da titularidade do domínio a terceiro. O adquirente, nesse caso, responde pela dívida de seu antecessor, inclusive multas e juros (art. 1345 do CC), sob pena de sofrer a penhora e venda forçada do imóvel para responder pela dívida. Da mesma forma, se o imóvel é locado ou figura como objeto de direito real (ex: usufruto, superfície), mesmo que a obrigação seja do locatário, usufrutuário ou superficiário, havendo inadimplemento deles, em última instância, quem pode experimentar o prejuízo pela perda do bem, para responder pela dívida, na forma acima referida, é o proprietário. 3) Havendo inadimplemento, o valor será acrescido de correção monetária, multa, juros de mora e, se houver medida judicial, honorários de advogado. Com relação à correção monetária, o acréscimo visa apenas à atualização do valor e deve incidir a partir do vencimento da obrigação. 4) A multa está limitada a 2% (dois por cento). A Convenção de Condomínio pode apenas estabelecer percentual menor. O Código Civil de 2002 inovou nessa parte. Antes, sob a vigência da Lei 4.591/65, a multa poderia ser de até 20% (vinte por cento). A alteração, feita sob a justificativa de adequar tal punição aos padrões do direito privado, foi desastrada, nociva e injusta. Em primeiro lugar, não há no Código Civil nenhuma limitação de multa a 2% (dois por cento). Referido "padrão" não existe. Em segundo lugar, não se pode equiparar tal situação às relações de consumo. No condomínio edilício, se um condômino não paga a conta, a verba é necessariamente rateada entre os demais condôminos, todos inocentes e em situação jurídica idêntica. Se por um lado pode ser abusiva a multa de 20% (vinte por cento) àquele que atrasa apenas alguns dias, por outro lado é extremamente branda, e nesse sentido injusta, a aplicação de multa de apenas 2% (dois por cento) àquele que, sendo devedor contumaz e renitente, deixa de pagar a verba condominial por anos. A verba inadimplida necessariamente é rateada aos condôminos inocentes e desobrigados. Se o orçamento desses for curto, certamente terão de se valer de empréstimos em instituições financeiras para poder, num caso extremo, quitar a parte do inadimplente. E todos sabem, os juros mensais bancários, para empréstimos desses valores, são superiores aos dois por cento da multa. 5) Além da multa, o devedor inadimplente deve responder pelos juros de mora "convencionados ou, não sendo previstos, os de um por cento ao mês e multa de até dois por cento sobre o débito". Essa é a redação da parte final do parágrafo primeiro do art. 1336 do Código Civil. O dispositivo permite que os juros de mora sejam convencionados de forma diferente, mas, no silêncio da Convenção de Condomínio, serão de 1% (um por cento) ao mês. Os autores, de maneira geral, ensinam que não pode haver na Convenção do Condomínio estipulação de juros superiores a 1% ao mês (de acordo com os arts. 406 e 591 do CC). A Terceira Turma do Superior Tribunal de Justiça, no entanto, já decidiu, acertadamente, que os juros moratórios podem ser superiores àqueles previstos no Código Civil, desde que constem da Convenção de Condomínio (REsp 1002525, publicado em 22.09.2010). 6) Estratégia bastante comum, e legítima, utilizada pelos condomínios, é a de ajuizar medida judicial tão logo haja inadimplemento de um condômino. Com isso, além dos acréscimos acima referidos, sobre o valor da contribuição ainda incidem honorários de advogado (art. 20, § 3º, do CPC), entre 10% e 20%. 7) Os honorários de advogado pagos pelo condomínio também devem integrar a verba indenizatória, nos termos do art. 389 do CC, desde que demonstrados. Honorários de sucumbência (judiciais) não se confundem com os honorários contratuais. Esse tema, no entanto, tem sido objeto de intensas e acaloradas discussões, merecendo análise exclusiva, em outra oportunidade. 8) Em alguns Estados, como São Paulo e Rio de Janeiro, há leis permitindo o protesto dos boletos de cobrança de condomínio, com a consequente inserção do nome do inadimplente nos cadastros restritivos de crédito. Essa é outra consequência importante, imposta por algumas leis estaduais de eficácia e constitucionalidade questionáveis. 9) O condômino devedor não pode alegar impenhorabilidade do bem de família, com fundamento na Lei 8.009/90. 10) Se o imóvel é ocupado por outra pessoa que não o proprietário, em virtude de relação obrigacional (comodato, locação) ou em decorrência de direito real (usufruto, superfície) e o dever de pagar a contribuição for do ocupante, o seu inadimplemento pode gerar a resolução do contrato ou do direito real. Não fosse assim, o proprietário não teria nenhuma ferramenta para impedir a deterioração (jurídica) de seu bem. 11) A punição ao inadimplente deve ter natureza estritamente patrimonial. Não se pode, assim, considerar o comportamento do devedor, ainda que contumaz, como antissocial para efeito de aplicação da multa prevista no art. 1337, parágrafo único, do CC. 12) Da mesma forma, não se pode impor restrição de uso das áreas comuns, mesmo que de lazer, aos inadimplentes. Tampouco corte d'água. Diversos condomínios vêm procedendo dessa forma, em face da indignação que o inadimplemento gera numa comunidade pequena, sobretudo porque agrava de imediato a situação dos demais condôminos. Apesar de compreensíveis a ira e a repulsa que a situação enseja, a lei não confere esse direito. Ao contrário, não condiciona o exercício da propriedade à pontualidade no cumprimento das obrigações condominiais. O art. 1335, incisos I e II, atribui o direito de utilização pelo condômino tanto de sua propriedade exclusiva quanto das áreas comuns, sem qualquer espécie de restrição. Quando a lei quis restringir, assim o fez de forma expressa. O inciso III do mesmo artigo é a prova irrefutável disso. Para votar em assembleia, o condômino precisa estar quite. Para usar o imóvel (área privativa ou área comum), não há essa exigência. E qualquer restrição imposta pela Convenção de Condomínio, nesse sentido, parece-nos ilegal. No entanto, o Tribunal de Justiça de São Paulo já decidiu haver legalidade na Convenção de Condomínio quando a restrição não disser respeito a serviços essenciais. 13) Tal restrição de limitação de uso, ainda que conste da Convenção de Condomínio, parece atentar contra a dignidade da pessoa humana, comando de ordem constitucional e contra o direito de propriedade. De um lado, é extremamente aborrecedor o inadimplemento por um condômino, principalmente se for daqueles devedores contumazes, que agem de má-fé e visam tão somente a se beneficiar das brechas legais; por outro lado, nem todo inadimplente age de má-fé. Muitas vezes, a impossibilidade temporária, por fatores extraordinários, impõe a falta de pagamento como alternativa única. Seria muito mais nocivo dizer a uma criança, filha de um condômino inadimplente, que ela não pode usar a piscina porque o seu pai ou responsável não paga condomínio. Além disso tudo, a restrição não resolve a questão. E o fato de não haver a sua aplicação, não torna mais vulnerável a posição dos condôminos inocentes, porque como última alternativa, sempre estará a dívida garantida pela unidade imobiliária do inadimplente.
quarta-feira, 3 de agosto de 2011

Sexo pela internet e infidelidade conjugal

A revista Veja publicou, na semana passada (edição 2.227), interessante reportagem, com o seguinte título : "Clique, clique clique... E lá se vai a fidelidade conjugal". O texto informa que muita gente comprometida está fazendo sexo pela internet. Alguns números da pesquisa impressionam : 53% das pessoas entrevistadas praticam ou já praticaram algum tipo de ato de natureza sexual por meio da web e, segundo outra análise, feita com quase 600 pessoas, pelo instituto QualiBest, a pedido do referido hebdomadário, 41% delas já se relacionaram pela internet com alguém, "enquanto tinham outro na vida real". Tal questão vem ganhando cada vez mais importância por causa dos diversos mecanismos tecnológicos que, somados à internet, possibilitam sortidas formas de realização de fantasias sexuais com outras pessoas, do aconchego do lar e sem o conhecimento do outro consorte ou companheiro. Além disso, sites de relacionamentos exclusivos para pessoas casadas, que prometem sigilo e discrição, proliferam na rede e encorajam aqueles que buscam novas formas de relacionamento e prazer sexual. Esse cenário facilita aos irrequietos, incitados pela simples curiosidade ou pela libido incontida, a busca por novos tipos de relação, afetivas ou sexuais. O tema é analisado, de forma sucinta, sob o aspecto jurídico. 1) A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado (art. 226, caput, da CF). Por isso, é de interesse público a manutenção de sua saúde e integridade. O casamento é a forma mais comum de constituição de família. Como consequência, é de interesse público a conservação do casamento e demais formas de relações afetivas com vínculo jurídico, como se dá também com a união estável (incluindo-se a união entre pessoas do mesmo sexo). 2) A dignidade da pessoa humana constitui outro importante fundamento da Constituição Federal (art. 1º, inciso III). 3) Da conjunção das duas afirmações acima feitas, conclui-se que o ser humano deve ter os seus direitos fundamentais observados não só pelo Estado e pelos outros indivíduos, de maneira geral, mas também dentro do casamento, da união estável e das relações homoafetivas. Nesse sentido, a pessoa que vive com outra, no âmbito familiar, não pode ser exposta, não pode ser traída e não pode se sujeitar à infidelidade, ao desrespeito e a qualquer atitude desonrosa de seu consorte, que põe em risco a inteireza e a segurança da família, célula nuclear da sociedade. O casamento pressupõe a monogamia e o respeito recíproco. 4) A pessoa casada que desatende o dever de fidelidade comete ilícito civil. Há algum tempo, o adultério não é mais crime. O art. 240 do Código Penal, que tipificava o adultério como crime, foi revogado pela lei 11.106 de 28 de março de 2005. No entanto, continua sendo ilícito civil e enseja consequências dessa natureza ao infrator (art. 1573, inciso I, do Código Civil). 5) A infidelidade é expressão abrangente. O Código Civil não a define. Embora haja na doutrina certa controvérsia sobre o seu conceito, parece-nos que a infidelidade pode se configurar com relação sexual (infidelidade material) ou sem ela (infidelidade moral). Não é necessária a conjunção carnal. Portanto, pouco importa se há contato físico ou se a relação é apenas virtual. 6) A discussão em torno de saber se a investida, conversa, flerte ou sexo virtuais constituem ou não infidelidade parece inócua. Isso porque além da fidelidade, constitui dever conjugal o respeito e consideração recíprocos. Esse é um dever autônomo, que não está condicionado à fidelidade. O cônjuge que se relaciona afetiva ou sexualmente, pela internet, com outra pessoa, desrespeita o seu consorte e isso é suficiente para caracterizar conduta desconforme com o casamento e união estável. Portanto, ainda que não se considere, tecnicamente, a relação virtual como infidelidade (pela ausência de contato físico), isso não ameniza, em princípio, o grau da infração, no caso ao art. 1566, V, do Código Civil. Não há hierarquia nem predominância dos deveres conjugais uns sobre os outros. Todos eles devem ser observados para o bom andamento da relação conjugal e para a higidez da família. 7) A mesma observação vale para a união estável e para as uniões homoafetivas. O companheiro tem o mesmo dever de lealdade e respeito, conforme preconiza o art. 1724 do Código Civil. 8) A infidelidade ou a conduta desonrosa (que desrespeita o cônjuge) pode se dar em diversos graus e intensidade, tanto por meio do contato físico quanto virtualmente. A pessoa pode usar a internet, nesse sentido, apenas visitando sites pornográficos até interagir com outras pessoas, por conversas (em tempo real ou não) ou mesmo com a utilização de câmeras que possibilitam a troca simultânea, e em tempo real, de imagens. Em princípio, aquilo que constitui infração na "vida real", também o é se o procedimento for virtual. Quem flerta no trabalho, por exemplo, com troca de olhares, insinuações e carícias não age como pessoa comprometida e a conduta pode ser classificada de desonesta (conduta desonrosa), mesmo que não seja efetivada a relação sexual. Se o fenômeno ocorre pela internet, a "traição" não é de menor intensidade apenas por essa razão. 9) Pelo fato de os relacionamentos serem diferentes uns dos outros, a conduta tida como desrespeitosa, desonrosa ou infiel deve sempre ser analisada contextualmente, com as circunstâncias próprias da relação. Isso porque a conduta desonrosa ou infiel pressupõe culpa. E a análise da culpa deve ser feita observando-se a dinâmica do relacionamento. Há casais que têm relações mais abertas de parte a parte, seja pelo seu perfil, seja pela distância (long distance marriage). Aquilo que pode ser tido como conduta desonrosa para um casal, pode não ser para outro em face da permissividade recíproca que se outorgam os cônjuges ou companheiros. A questão da culpa por infidelidade ou por conduta desrespeitosa, desonrosa, parece estar intimamente ligada à desonestidade e à falta de consideração pelo sentimento alheio. Para exemplificar, podemos citar o simples namoro, que antecede qualquer espécie de relação afetiva mais séria. O namoro, diferentemente do casamento, da união estável e da união homoafetiva, não gera vínculo jurídico entre as partes. E já no namoro é possível perceber que a razão que gera o seu rompimento, quando motivado em conduta reprovável da outra parte, varia bastante. Ou seja, há pessoas, mais austeras, que terminam o namoro por tomarem ciência que o namorado, ou namorada, visitou site considerado libertino; outras pessoas toleram tal comportamento, mas não suportam a interatividade ou qualquer espécie de namorico virtual. As pessoas são diferentes. Algumas coisas são toleradas por muitos, outras não são admitidas por quase ninguém. Mas há aqueles comportamentos que estão numa zona intermediária, e precisam ser examinados à luz do contexto da relação, caso deles decorram discussões judiciais. Se no namoro é assim, por muito maior razão esse processo pode se dar numa situação em que já existe o vínculo (jurídico), decorrente do casamento ou da união estável. 10) Em face do exposto acima, apesar da flexibilidade do conceito de culpa em situações afetivas, em linhas gerais, parece que a interatividade seria um componente importante para caracterizar o avanço da fronteira entre o que é tolerável e o que desrespeita e justifica o término de uma relação, com as demais consequências de natureza civil. Se não há interatividade, por conversa, flerte, troca de imagens comprometedoras, em tempo real ou não, em princípio, não há conduta desonrosa ou infidelidade. Dependendo das circunstâncias e da dinâmica da relação, o simples acesso a site de conteúdo pornográfico pode caracterizar conduta desonrosa. No entanto, as infrações mais frequentes são aquelas viabilizadas pela câmera e pelos aplicativos que permitem a troca de mensagens instantaneamente. Nesses casos, mesmo não havendo possibilidade de contato físico, o grau de intimidade pode ser quase tão alto quanto, porque permite, além da conversa, o flerte, a prática de atos sexuais, como a masturbação (assistida ou compartilhada). 11) Conforme afirmado inicialmente, a infração aos deveres conjugais acarreta consequências de natureza civil. A primeira delas é o fim da relação conjugal ou da união estável, motivada pela falta cometida pelo cônjuge infiel ou desrespeitoso. A segunda consequência é a privação de alimentos que pode ser imposta ao cônjuge culpado, com a ressalva do parágrafo único do art. 1704 do Código Civil. Além dessas consequências, o cônjuge culpado, caso tenha assumido o sobrenome de seu consorte, pode ser compelido a retirá-lo do nome, com as ressalvas previstas nos três incisos do art. 1578 do Código Civil. Por fim, pode o culpado ser condenado a pagar indenização por danos, materiais e morais, decorrentes de sua atitude. 12) O fato de o infrator se valer do anonimato para a troca de mensagens pela internet ou não mostrar o rosto na troca de imagem, não é suficiente para descaracterizar a infração. Quando muito, pode servir apenas para ser considerado pelo juiz na valoração do dano moral. Isso porque a dor moral do cônjuge ou companheiro inocente pode ser considerada extraordinariamente maior se os fatos forem expostos publicamente ou em seu círculo de relações pessoais e profissionais.
quarta-feira, 20 de julho de 2011

A desistência da venda de imóvel locado

Conforme notícia veiculada pelo Migalhas, em 22 de junho de 2011, o Superior Tribunal de Justiça, recentemente, reconheceu ao locador o direito de desistência de venda de imóvel locado após regular oferta ao locatário, seguida de aceitação. Com isso, reformou decisão do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (REsp 1193992). Sobre o tema, seguem algumas considerações de caráter geral. 1) O contrato, uma vez celebrado, torna-se obrigatório para as partes. Não sendo personalíssimo, o contrato obriga, além das partes contratantes, também os seus herdeiros, em caso de óbito das partes originais. O princípio da obrigatoriedade (pacta sunt servanda) é um dos principais alicerces do Direito Contratual. 2) Tal princípio, no entanto, não é absoluto. Há situações que a própria lei admite a sua mitigação, como ocorre nas relações de consumo, nos casos de resolução do contrato por onerosidade excessiva (cláusula rebus sic stantibus), entre outras. 3) A regra, portanto, determina que o contrato faz lei entre os contratantes e, como tal, deve ser cumprido. Não é possível a desistência unilateral. Em circunstâncias especiais, dada a natureza de alguns contratos, a lei permite a resilição unilateral por uma das partes (ex: no mandato, o mandante pode a qualquer tempo revogar os poderes outorgados ao mandatário, independentemente de justificativa, porque a confiança, que é elemento subjetivo, pode a qualquer momento cessar). 4) A redação do art. 29 da lei 8.245/91 é a seguinte: "Ocorrendo aceitação da proposta, pelo locatário, a posterior desistência do negócio pelo locador acarreta, a este, responsabilidade pelos prejuízos ocasionados, inclusive lucros cessantes". Referido texto legal enseja a seguinte dúvida: o artigo visa apenas a ratificar a responsabilidade civil daquele que descumpre a palavra empenhada, conforme a regra geral de todos conhecida, ou cria o direito de desistência ao locador que oferta o imóvel locado à venda e tem a oferta aceita? A 3ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, no referido julgamento, entendeu que o artigo 29 da lei 8.245/91 confere ao locador o direito de desistência, porém, sem isentá-lo da responsabilidade civil decorrente de seu ato. Não nos parece ser essa a interpretação mais adequada. 5) A partir do momento em que o inquilino aceita a proposta formulada pelo locador, embora o contrato ainda não tenha sido formalmente celebrado (por ausência da escritura pública de venda e compra), todos os seus elementos já se encontram presentes e definidos (consenso, "res" e "pretium"). Isso porque o locador, ao conceder o direito de preferência ao inquilino, informa todos os dados necessários para a avaliação da proposta e concretização do negócio, tais como identificação precisa do objeto, preço, condições de pagamento. etc. Se o inquilino aceita, é porque aderiu por completo aos termos da proposta, não havendo espaço para ajustes que podem, eventualmente, justificar o refugo do locador. 6) Não existe absolutamente nenhuma razão para conferir o direito de desistência ao locador que oferta seu imóvel a venda e depois recua. Ainda que, de qualquer modo, lhe sejam impostas as consequências da responsabilidade civil. Isso vale para as situações em que não há locação e, por maior razão, se houver locação. Por maior razão porque, normalmente, a expectativa do locatário de comprar o imóvel locado é ainda maior do que a de um estranho. Tal expectativa pode se dar por diversas razões, principalmente as de ordem econômica, uma vez que o inquilino já tem a posse direta do imóvel que lhe é ofertado para compra. 7) Ninguém é obrigado a vender, ninguém é obrigado a ofertar. Mas uma vez feita a proposta e sendo ela aceita, não existe espaço para desistência, exceto se o contrário resultar dos termos dela ou das demais exceções previstas na lei. Do contrário, a proposta vincula o proponente. A recusa do locador em celebrar a escritura pode até fazer com que o locatário perca o interesse no negócio, por inúmeras razões. Mas a prerrogativa sobre a consequência do descumprimento da obrigação deve ser da parte inocente, no caso o inquilino. Portanto, o locatário deve escolher entre exigir o cumprimento do contrato ou conformar-se com a atitude do locador; em qualquer caso tendo direito às perdas e danos, desde que demonstrados. 8) Por razões externas, é possível que o inquilino não tenha, na prática, tal prerrogativa. Por exemplo, se o locador, após a oferta ao inquilino, vende o imóvel a terceiro, prevalece o interesse do terceiro adquirente, desde que ele esteja de boa-fé. O contrato, no Direito brasileiro não transfere o domínio. Apenas a tradição o faz. E a tradição de bens imóveis opera-se com o registro do título aquisitivo à margem da matrícula do imóvel. 9) O art. 29 da lei 8.245/91 apenas realça, como de resto o legislador o faz em tantas outras leis e artigos de lei, regra de caráter geral; no caso a de que o descumprimento do contrato ou da proposta gera o dever de reparar o dano. Mas não é só essa a consequência. 10) Tal interpretação, a nosso ver, encontra harmonia com os modernos princípios contratuais, tais como a boa-fé objetiva e a função social do contrato.
quarta-feira, 6 de julho de 2011

Usucapião por abandono do lar

No dia 17 de junho de 2011, foi publicada a lei 12.424/11, dispondo sobre o Programa Minha Casa, Minha Vida - PMCMV e a regularização fundiária de assentamentos localizados em áreas urbanas. Referida lei contém 13 artigos e entrou em vigor na data de sua publicação. O art. 9º dessa lei acrescentou ao Código Civil o art. 1.240-A, criando nova espécie de usucapião, com o seguinte teor: "Aquele que exercer, por dois anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250m² cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural". O parágrafo primeiro, do mesmo artigo, prescreve que "o direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez". O parágrafo segundo, por sua vez, foi vetado. O seu conteúdo era o seguinte: "No registro do título do direito previsto no caput, sendo o autor da ação judicialmente considerado hipossuficiente, sobre os emolumentos do registrador não incidirão e nem serão acrescidos a quaisquer títulos taxas, custas e contribuições para o Estado ou Distrito Federal, carteira de previdência, fundo de custeio de atos gratuitos, fundos especiais do Tribunal de Justiça, bem como de associação de classe, criados ou que venham a ser criados sob qualquer título ou denominação". A justificativa para o veto foi a de violação do pacto Federativo, porque o dispositivo interferiria na competência tributária dos Estados, extrapolando o disposto no § 2º do art. 236 da Constituição. Neste texto, apresentam-se algumas breves considerações sobre a nova, e estranha, espécie de usucapião. 1) São requisitos para essa nova espécie de usucapião: a) o imóvel deve ser urbano e de área não superior a 250m²; b) tal bem deve ser da propriedade de duas pessoas que sejam casadas ou vivam em união estável (incluindo-se as relações homoafetivas); c) o imóvel deve ser utilizado para a moradia do casal ou da família; d) uma das pessoas deve "abandonar o lar"; e) a posse do cônjuge ou companheiro que permanece no imóvel deve ser mansa e pacífica, ou seja, não pode haver oposição do cônjuge infrator; f) a posse deve ser exercida, pelo cônjuge inocente, por pelo menos dois anos, a partir do abandono do lar; g) o cônjuge abandonado não pode ser proprietário de outro imóvel, urbano ou rural nem pode ter sido beneficiado, em outra circunstância, com pedido sob o mesmo fundamento, mesmo que no âmbito de outra relação afetiva (art. 1.240-A, parágrafo primeiro, do Código Civil). 2) A surpresa inicial causada pelo art. 1.240-A do Código Civil está na utilização da expressão "posse direta". Isso porque o art. 1197 do Código Civil prescreve que "a posse direta, de pessoa que tem a coisa em seu poder, temporariamente, em virtude de direito pessoal, ou real, não anula a indireta, de quem aquela foi havida, podendo o possuidor direto defender a sua posse contra o indireto". Portanto, o desmembramento da posse em direta e indireta supõe relação jurídica nova, de direito pessoal (ex: locação e comodato) ou de direito real (ex: usufruto e superfície). A separação de fato do casal ou dos conviventes não gera tal desmembramento. E se tal desmembramento for criado contratualmente pelas partes no ato da separação de fato, jamais poderia o possuidor direto alegar usucapião contra o possuidor indireto. Nesse prisma, a utilização da expressão é inadequada. Por outro lado, se a interpretação fosse a de que o objetivo foi mesmo o de gerar um novo caso de "desmembramento da posse", a infelicidade do texto legal não seria aliviada. Pois, nesse caso, estar-se-ia permitindo a usucapião pelo possuidor direto contra o possuidor indireto. O desmembramento da posse (em posse direta e indireta) nunca autorizou a prevalência da posse direta sobre a indireta. O locatário, por exemplo, não adquire a propriedade do locador por usucapião. O mesmo ocorre com o comodatário em relação ao comodante, com o superficiário em relação ao proprietário concedente, etc. Verifica-se exatamente o contrário, ou seja, a supremacia da posse indireta sobre a direta, para efeito de usucapião. Por exemplo, se uma pessoa invade um imóvel e, em seguida, empresta ou loca tal bem, o comodatário, o locatário ou qualquer outro possuidor direto não usucape. Quem adquire a propriedade é o possuidor indireto (locador, comodante, etc.), se preenchidos os requisitos legais. 3) Tal afirmação assenta-se no principal requisito para qualquer espécie de usucapião, que é o animus domini. Somente usucape quem possui como dono. É o que se extrai das expressões "possuir como sua" ou "possuir como seu", contidas nos arts. 1.238, 1.239 e 1.240 do Código Civil, art. 9º do Estatuto da Cidade e art. 183, caput, da Constituição Federal. Parece-nos que a nova usucapião, pasme, prescinde desse requisito. Tanto isso é verdade que o novo texto de lei não faz absolutamente nenhuma menção ao animus domini, diferentemente dos demais artigos, acima referidos, que dispõem sobre as outras espécies de usucapião. 4) Exatamente por essa mesma razão (necessidade do animus domini), os civilistas, de maneira geral, sempre afirmaram, salvo situações excepcionalíssimas, que no condomínio tradicional, um condômino, de bem indivisível, não usucape a parte ideal do outro consorte, ainda que exerça com exclusividade a posse por bastante tempo. Falta-lhe o animus domini. Nesse sentido, o art. 1.324 do Código Civil dispõe que o condômino que administrar sem oposição dos outros presume-se representante comum. E não pode o representante usucapir o bem do representado. Tal lição deve ser revista em face do que estabelece o novo art. 1.240-A, pois o novo texto cria uma exceção. 5) Ainda quanto ao animus domini, é importante observar que o possuidor não transmuda o caráter de sua posse por mero ato volitivo. Ou seja, não se pode conceber, por exemplo, que o comodatário, por iniciativa própria, converta pela mera vontade o seu animus de comodatário em animus de proprietário. Da mesma forma, não se poderia, pela mesma razão, afirmar que o cônjuge "abandonado", a partir do abandono, passa a exercer posse como dono sobre a parte ideal de seu consorte. Quanto a isso, é importante lembrar que o vício da precariedade não se corrige com o decurso do tempo, diferentemente dos outros dois vícios da posse (violência e clandestinidade), conforme art. 1.208 do Código Civil. 6) Outra quebra de paradigma diz respeito ao exíguo prazo para a usucapião: apenas dois anos. Não havia no ordenamento jurídico absolutamente nenhum tipo de usucapião com prazo tão diminuto. O menor prazo, até então, era de cinco anos para bens imóveis. Com relação aos bens móveis, mesmo que o possuidor tenha justo título e boa-fé, não se usucape antes de três anos. 7) A Constituição Federal de 1988 estabelece o prazo de cinco anos para a usucapião de imóvel urbano (art. 183, caput). E o referido texto constitucional impõe como requisito a posse com ânimo de dono. 8) Não se nega que a usucapião seja um importante instrumento para dar efetividade à função social da propriedade, princípio de natureza constitucional (art. 5º, XXIII). De um lado prestigia o possuidor que exerce a posse e confere função social ao objeto da usucapião e, de outro lado, pune o proprietário relapso que menoscaba seu direito e não confere ao bem função social alguma. Porém, não se pode olvidar que a propriedade também é um direito protegido constitucionalmente (art. 5º, XXII). Nesse sentido, embora não se possa cogitar de inconstitucionalidade do novo art. 1.240-A (haja vista o art. 22, I da CF), não se ignora que referido texto cria punição muito mais severa ao proprietário do que aquelas previstas na própria Constituição Federal. E por meio de um mecanismo (usucapião) que inequivocamente não orna com a situação prevista, porque não se pode permitir usucapião por quem não exerce posse com ânimo de dono. 9) Além disso tudo, a lei 12.424/11, que introduziu no Código Civil o art. 1.240-A, destina-se a regular o Programa Minha Casa, Minha Vida e a questão fundiária de assentamentos, predominantemente ocupados por população de baixa renda. Não faz sentido que uma lei dessa natureza acrescente um artigo ao Código Civil, de caráter geral, alcançando qualquer tipo de imóvel urbano de até 250m². Em bairros nobres de cidades grandes, como São Paulo e Rio de Janeiro, não raras vezes apartamentos com essas características têm valores de até R$ 2.500.000,00. E a consequência seria a mesma: perda do imóvel pelo cônjuge que abandona o lar. A razão que justifica o propósito do legislador (regularização fundiária) não está presente nessas outras situações. 10) Não bastasse tudo isso, nota-se que a regra interfere energicamente na dissolução do casamento ou da união estável. A culpa de um cônjuge jamais autorizou a partilha de bens de forma desigual. Agora, a culpabilidade pelo "abandono do lar", somada à posse mansa e pacífica do cônjuge "abandonado", pelo período de apenas dois anos, confere ao cônjuge supostamente inocente a propriedade plena do imóvel em que reside. 11) A regra traz alguns possíveis inconvenientes também nessa seara, a saber: a) A verificação da culpa por "abandono do lar" nem sempre é de fácil e segura aferição. As relações afetivas, todas elas, são complexas e nem sempre a culpa é atribuível a apenas um dos cônjuges ou conviventes. Nem sempre há culpa. Às vezes, quem sai do lar é inocente e o culpado é quem fica. De qualquer forma, a culpa passa a ser, nesses casos, aspecto extremamente relevante, pois pode interferir no destino do bem imóvel utilizado, caso um dos cônjuges se ausente por dois anos. b) O segundo inconveniente está no fato de que muitas vezes o cônjuge ou companheiro que sai do lar, sem formalizar e sem pretender a venda do bem, assim o faz exatamente para, de alguma forma, amparar o outro cônjuge e os filhos comuns. A regra, tal como concebida, irá desestimular comportamentos dessa natureza porque pode suscitar a alegação de usucapião pelo cônjuge que permanecer no imóvel. Isso é nocivo. c) O terceiro inconveniente está no potencial aumento de demandas judiciais. Todo divórcio ou dissolução de união estável, que se dê nessas circunstâncias, pode gerar a correlata ação de usucapião. Não nos parece que a usucapião possa ser pretendida na ação de divórcio. A medida cautelar de separação de corpos terá majorada a sua importância. Não se pode sair do lar sem a devida autorização judicial. Tudo para evitar a caracterização do "abandono do lar". Se por um lado isso pode parecer conveniente, porque regulariza, ainda que provisoriamente, a situação do casal, por outro lado é nefasto. O ajuizamento da referida medida cautelar é seguido da ação de divórcio ou de separação, que na maior parte das vezes incita, potencializa e consolida o desentendimento do casal. As discussões sobre pensão alimentícia, guarda de filhos, divisão de bens são precipitadas e podem tornar irreversível a reconciliação. 12) As situações de abandono consumadas anteriormente, ou seja, antes de 17/6/2011, não podem ser alcançadas por essa lei. Aquele que abandonou o lar há mais de dois anos não será, em tais casos, automaticamente privado da propriedade. O termo a quo do prazo de dois anos será o início da vigência da lei 12.424/11. 13) Em conclusão, o novo art. 1.240-A nasceu com o nobre propósito de contribuir para a tentativa de regularização fundiária, principalmente nas habitações urbanas ocupadas por população de baixa renda. Porém, conforme diz o ditado popular, parece que o legislador "mirou no que viu e acertou no que não viu". Além de tecnicamente não ser uma solução adequada, por tudo o que se expôs, os efeitos colaterais que podem surgir sugerem não compensar os benefícios.
Recentemente, a imprensa mundial noticiou o inusitado caso de um geek chinês, de 17 anos, que vendeu um de seus rins para comprar um Ipad 2, o cobiçado tablet da Apple. Depois, arrependeu-se. Embora o episódio tenha ocorrido na China, examina-se tal situação, assim como a possibilidade de disposição do próprio corpo, à luz do Direito brasileiro. Evidentemente, contratos dessa natureza atentam contra o bom senso, contra a saúde, contra os bons costumes, a ética, a moral e também contra a lei. Abaixo, seguem algumas considerações sobre o tema. 1) No Brasil, é proibido o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes (art. 13 do Código Civil). Dispor é desfazer-se, é alienar, a título gratuito (doação) ou a título oneroso (compra e venda). A proteção da integridade física fundamenta-se na dignidade da pessoa humana e na inviolabilidade do direito à vida (art. 1º, inciso III e art. 5º, caput, da Constituição Federal). 2) A interpretação do referido art. 13 do Código Civil, a contrário senso, permite concluir que o ato de disposição que não acarreta diminuição permanente da integridade física e não atenta contra os bons costumes é permitido (ex: disposição de cabelo, unha, leite materno). 3) Se houver exigência médica, o ato de disposição também é admitido, como a extração de um órgão ou tecido comprometido com uma doença por exemplo, ou a necessidade de amputação de um membro. Nesses casos, é possível a disposição porque a vida e a saúde são, igualmente, os interesses protegidos. 4) O art. 13, parágrafo único, do Código Civil, prescreve que o ato de disposição é permitido para fins de transplante, na forma estabelecida em lei especial. Transplantar é transferir de uma parte para outra, do mesmo indivíduo, ou de uma pessoa (viva ou morta) para outra. 5) A lei 9.434/97, regulamentada pelo decreto 2.268/97, no art. 9º, caput (com redação dada pela lei 10.211, de 23/3/2001), permite à pessoa juridicamente capaz dispor, desde que gratuitamente, de tecidos, órgãos e partes do próprio corpo vivo, para fins terapêuticos ou para transplantes em cônjuge ou parentes consanguíneos até o quarto grau, ou em qualquer outra pessoa, mediante autorização judicial, dispensada esta em relação à medula óssea. A obrigatória gratuidade do ato de disposição visa à erradicação do comércio e tráfico de órgãos, problema grave que, hodiernamente, aflige diversos países. A regra tem origem na Constituição Federal (art. 199, § 4º), que veda todo tipo de comercialização de órgãos e tecidos humanos, inclusive sangue, para fins de transplante e transfusão. 6) O parágrafo terceiro, do mesmo artigo 9º, firma que somente é permitida a doação de órgãos duplos (ex: rins), de partes de órgãos (ex: fígado), tecidos ou partes do corpo (ex: pele, medula óssea) cuja retirada não impeça o organismo do doador de continuar vivendo sem risco para a sua integridade e não represente grave comprometimento de suas aptidões vitais e saúde mental e não cause mutilação ou deformação inaceitável, e corresponda a uma necessidade terapêutica comprovadamente indispensável à pessoa receptora. Portanto, uma pessoa não pode dispor de órgão fundamental à sua sobrevivência, como o coração, ainda que tal renúncia à vida seja para beneficiar um de seus filhos que padece de doença grave em estado terminal. 7) Em qualquer hipótese, a disposição, para efeito de transplante, deve ser gratuita e a qualquer tempo, antes de implementada, pode ser revogada (art. 5º, § 4º, da lei 9.434/97). Ou seja, não se aplicam os clássicos preceitos de execução específica do contrato. A possibilidade de arrependimento, antes de executada a doação, é ínsita a todos os contratos dessa natureza. 8) A doação de órgão duplo ou partes regeneráveis, bem como o transplante, não dependerão de autorização judicial se feitos entre cônjuges ou parentes consanguíneos até o quarto grau (exemplo de consanguíneo de quarto grau na linha colateral: primos; em linha reta é permitido até entre trisavô e trineto). Não havendo uma dessas relações entre doador e donatário, é imprescindível a autorização judicial (exceto para medula óssea). O objetivo da lei é claramente o de coibir a comercialização de órgãos, tal como ocorreu no episódio chinês que confere título ao presente texto. Por isso, o juiz deve ser extremamente cuidadoso ao analisar pedidos dessa natureza, investigando se a doação é realmente doação, motivada por razões altruísticas e de solidariedade. A falta de relação de parentesco ou de amizade íntima entre o doador e o donatário pode ser um indício de doação simulada. 9) Somente as pessoas que gozam da capacidade plena podem doar. Os incapazes com compatibilidade imunológica comprovada poderão fazer doação somente nos casos de transplante de medula óssea, porém, desde que sua saúde não seja posta em risco. Para tanto, basta a autorização dos pais ou, se o doador não os tiver, a anuência dos responsáveis legais somada à autorização judicial (art. 9º, § 6º da lei 9.434/97). 10) Questão polêmica diz respeito ao transexual. É transexual aquele que acredita firmemente pertencer a outro sexo. O seu corpo não condiz com a sua psique. É necessária a avaliação médica (psiquiátrica) do indivíduo para a verificação do propósito de eventual modificação de sexo. Sendo recomendada a modificação pela medicina, a cirurgia de transgenitalização deve ser efetivada. Embora tudo indique que o legislador não tenha refletido sobre essa questão especificamente, haja vista a redação do art. 13 do CC referir-se apenas a "exigência médica" e não "recomendação" ou "conveniência" médica, essa é a interpretação que deve prevalecer em respeito ao principal suporte em que estão assentados os direitos da personalidade, que é a dignidade da pessoa. Deve ser dada interpretação extensiva à expressão exigência médica porque o bem-estar, a saúde, a intimidade e a integridade psíquica são direitos da personalidade abrigados pela Constituição Federal. Eventual "mutilação do sexo", nessas circunstâncias, visa à adaptação e harmonização do sexo psicológico ao genital. 11) A doação de sangue também é um ato de disposição permitido porque não importa diminuição permanente. Evidente que ninguém pode doar todo o sangue que circula em seu corpo porque isso acarreta a morte. Com relação ao sangue, as regras são similares. A lei 10.205, de 21 de março de 2001, proíbe qualquer tipo de comercialização (art. 1º). Um dos princípios dessa lei é a proibição de remuneração do doador de sangue (art. 14, inciso III). No entanto, não se considera comercialização a cobrança de valores referentes a insumos, materiais, exames sorológicos, imunoematológicos e demais exames laboratoriais definidos pela legislação competente, realizados para a seleção do sangue, componentes ou derivados, bem como honorários por serviços médicos prestados na assistência aos pacientes e aos doadores (art. 2º, parágrafo único). 12) Por fim, para depois da morte, é válida, desde que com objetivo científico, ou altruístico, a disposição gratuita do próprio corpo, no todo ou em parte (art. 14 do Código Civil). Nesse caso, obviamente é permitida a doação de um órgão, ainda que ele não seja duplo ou regenerável. 13) Portanto, a atitude insana do chinês que trocou um de seus rins por um Ipad, examinada à luz do Direito brasileiro, contraria de forma inequívoca a lei. Trata-se de negócio jurídico nulo. Não obstante a nulidade, contratos dessa natureza não se sujeitam às consequências normais da nulidade porque não se pode fazer com que as partes retornem ao status quo ante.
quarta-feira, 8 de junho de 2011

Despejo de imóvel urbano por denúncia vazia

1) A locação de imóvel urbano é regida pela lei 8.245/91, aperfeiçoada pela lei 12.112/09. Diferentemente, a locação de coisas é regida pelo Código Civil. O regime jurídico de uma e outra espécie de locação é distinto. 2) Os contratos, de maneira geral, devem se extinguir com o cumprimento das obrigações neles previstas. Porém, em determinadas circunstâncias, a extinção ocorre sem o cumprimento, parcial ou total, de seu fim. Com a locação, que é espécie de contrato, verifica-se o mesmo fenômeno. São causas de extinção da locação, dentre outras: o inadimplemento de uma das partes, o perecimento do objeto, a desapropriação do imóvel locado, o distrato, etc. 3) Há 3 espécies de locação de imóvel urbano: a residencial, a não residencial e a de temporada. 4) Quando o locador de imóvel urbano pretende romper, unilateralmente, o vínculo locatício e, com isso, a retomada do imóvel, deve manifestar a sua vontade por meio da denúncia, que é uma espécie de notificação, dirigida ao locatário. Diz-se que a denúncia é cheia quando o locador justifica a sua pretensão de retomada do bem com uma das razões contidas na lei, no art. 47 da lei 8.245/91 (ex: uso próprio, falta de pagamento de aluguel, infração contratual, etc). Se não existir razão alguma para a retomada, a não ser a intenção, pura e simples, de reaver o bem locado, a denúncia é chamada de vazia, ou seja, imotivada, destituída de qualquer justificativa específica contida na lei. 5) Enquanto a locação vige por prazo determinado, o locador não pode pretender a retomada do imóvel por denúncia vazia, ainda que se disponha a pagar a multa contratual. E qualquer cláusula contratual que afaste essa regra é nula de pleno direito (art. 45 da lei 8.245/91). Também não é toda causa de "denúncia cheia" que autoriza a retomada do bem, enquanto o contrato vige por tempo determinado. Por exemplo, o locador não pode pretender o despejo para uso próprio nesse período, mas se a causa da pretensão for a falta de pagamento do aluguel (ou outra infração contratual praticada pelo locatário), o despejo é possível, observadas as regras da lei (ex: se a causa for a falta de pagamento, deve ser atribuído ao locatário o direito de purgar a mora). 6) Em algumas circunstâncias, mesmo quando o prazo do contrato se esgota, não pode o locador pretender a retomada do bem por denúncia vazia, o que, em princípio, pode parecer um contrassenso, mas não é. A lei 8.245/91 pressupõe a vulnerabilidade do locatário frente ao locador; por isso lhe confere maior proteção. 7) Sendo a locação para fins não residenciais, qualquer que seja o prazo estipulado no contrato, com o seu término, o locador pode requerer o imóvel por denúncia vazia. 8) O mesmo ocorre com a locação para temporada (que não pode ser ajustada por prazo superior a 90 dias). Terminado o prazo contratado, o locador pode reaver o bem imotivadamente. Apenas deve ficar atento para fazê-lo em até 30 dias após o término do prazo contratual, pois, se não o fizer, a locação para temporada prorroga-se compulsoriamente por prazo indeterminado e a denúncia vazia só poderá ser apresentada depois de 30 meses, a contar do início do contrato. 9) Sendo a locação residencial, a denúncia vazia somente tem cabimento se o contrato tiver sido ajustado por prazo igual ou superior a 30 meses, sempre ao fim de sua vigência. Mesmo que haja prorrogação por prazo indeterminado, a qualquer tempo o locador pode apresentar denúncia vazia, concedendo 30 dias ao locatário para proceder à desocupação do imóvel. Entretanto, se a locação for ajustada verbalmente, ou por escrito e com prazo inferior a 30 meses, o locador não poderá apresentar denúncia vazia com o término do contrato. Somente tem cabimento a denúncia cheia. Nesse caso, a denúncia vazia terá lugar apenas depois de 5 anos de vigência ininterrupta do contrato. A lei induz, com isso, o locador a celebrar locações residenciais com prazo igual ou superior a 30 meses (dirigismo contratual). 10) Há incongruência da lei, se comparada a locação para temporada que se prorroga por prazo indeterminado com a locação verbal ou a ajustada por prazo inferior a 30 meses. No primeiro caso, a lei permite o despejo por denúncia vazia após 30 meses; no segundo, apenas depois de 5 anos. 11) É importante atentar para a locação em que figura como locatária uma pessoa jurídica, porém, com o objetivo de destinar o imóvel a residência de seus sócios, gerentes, executivos, etc. Nesses casos, apesar de a locação ter, na realidade, fins residenciais, a lei as equipara às locações não residenciais (art. 55). Portanto, não é necessário que o contrato seja celebrado pelo prazo mínimo de 30 meses para o locador poder apresentar denúncia vazia, ao término de sua vigência. 12) Há situações excepcionais em que se permite, não ao locador mas sim àquele que o sucede, o despejo por denúncia vazia, mesmo quando o contrato vige por prazo determinado. É o caso do adquirente de imóvel locado (desde que não conste cláusula de vigência da locação em caso de venda e seja averbado na matrícula do imóvel). A mesma coisa ocorre com o usufruto e fideicomisso. Por exemplo, se a locação foi feita pelo usufrutuário, na qualidade de locador, com a extinção do usufruto, o nu-proprietário consolida a posse do bem em suas mãos e não é obrigado a suportar a locação celebrada pelo usufrutuário se a ela não anuiu. Tal consequência não se aplica no caso de morte do locador. Os seus sucessores devem respeitar a locação da mesma forma que o locador originário. 13) Por fim, nas locações que tenham como locatários hospitais, unidades sanitárias oficiais, asilos, estabelecimentos de saúde e de ensino autorizados e fiscalizados pelo poder público, entidades religiosas devidamente registradas, o locador jamais poderá apresentar denúncia vazia. Mesmo que o contrato esteja vigendo por prazo indeterminado por bastante tempo. Trata-se de situação que, de certa forma, engessa o locador e limita o direito de propriedade, em homenagem ao interesse coletivo e social que há nessas atividades desenvolvidas pelo locatário. Em tais casos, somente cabe denúncia cheia, de acordo com o que prescreve o art. 53 da lei 8.245/91.