A imprensa vem noticiando nos últimos dias a proposta do ex-senador Papaléo Paes (PSDB/AP) de tornar impenhorável o imóvel residencial do fiador de contrato de locação de bem imóvel urbano (PL 408/2008). Referido Projeto está pronto para ser votado na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado.
O objetivo é o de revogar o inciso VII do art. 3º da lei 8.009/90, de 29 de março de 1990, que trata do bem de família, criado pelo art. 82 da lei 8.245/91, de 18 de outubro de 1991, que regula a locação de imóvel urbano.
Há tempos vem sendo questionada a razoabilidade da norma jurídica que autoriza o locador a penhorar o imóvel residencial do fiador, em caso de inadimplemento do locatário. Se o próprio locatário, que é o verdadeiro devedor (schuld), está protegido pela impenhorabilidade de seu bem de família, não seria lógico conceber que o fiador, mero corresponsável (haftung), seja prejudicado com a perda de seu imóvel residencial, por uma dívida que, na essência, não lhe pertence (tanto que, tão logo a pague, pode regressar contra o locatário). Afinal, atua o fiador como simples garantidor.
Há alguns anos, o assunto já veio à tona sob outra roupagem. Questionou-se a constitucionalidade do art. 82 da lei 8245/91, em face da Emenda Constitucional 26, de 14 de fevereiro de 2000, que incluiu a moradia aos demais direitos sociais previstos no art. 6º. da CF.
O STF, no entanto, em 2006, afastou a pretendida inconstitucionalidade e considerou legítima a penhora do imóvel residencial de fiador de contrato de locação (RE 407.688 - rel. Min. Cezar Peluso).
Apesar da consistência dos argumentos desenvolvidos por notáveis juristas que sustentaram a inconstitucionalidade do art. 82 da lei 8245/91, o Supremo Tribunal Federal acertou. Isto porque constitui função do aplicador do direito conciliar, sempre que possível, as eventuais normas conflitantes. Carlos Maximiliano1 afirma, em clássica lição, que "não basta conhecer as regras aplicáveis para determinar o sentido e o alcance dos textos. Parece necessário reuni-las e, num todo harmônico, oferecê-las ao estudo em um encadeamento lógico".
O texto constitucional (art. 6º) tem o escopo de determinar uma linha de conduta ao Poder Público, ou seja, o Estado deve proporcionar moradia aos cidadãos que residem no Brasil. Ou, conforme ensinam Araujo e Nunes Júnior2, "(...) os direitos sociais, como os direitos fundamentais de segunda geração, são aqueles que reclamam do Estado um papel prestacional, de minoração das desigualdades sociais".
O artigo 6º da CF é, portanto, dirigido ao Estado. Não poderia mesmo servir de argumento jurídico para considerar inconstitucional um artigo de lei federal que permite em certos casos a penhora sobre o bem de família. Fosse aquela linha de raciocínio a mais adequada, todas as exceções previstas no artigo 3º da lei 8.009/90 seriam inconstitucionais, uma vez que a Constituição Federal garante o direito à moradia sem qualquer restrição. E tal conclusão seria irrealizável e absurda.
Agora, a questão é outra: convém alterar a lei para garantir o mesmo benefício de impenhorabilidade do bem de família ao fiador de contrato de locação?
Para responder a tal pergunta, são necessárias algumas considerações prévias.
Não resta dúvida de que possibilitar a penhora do imóvel do fiador é um contrassenso se o próprio locatário, que é o vero devedor, pode se valer do benefício da impenhorabilidade. Situações estranhas e injustas poderiam ocorrer, como o fato de o fiador poder perder sua residência por força da garantia fidejussória e, numa eventual ação de regresso contra o locatário, ser surpreendido pelo deferimento do benefício do bem de família em favor do devedor principal, que deu origem ao infortúnio do garantidor.
Porém, por outro lado, a alteração da lei não pode ser feita de modo a desprezar a análise socioeconômica sobre a conveniência ou não de modificação do regime atual e sobre as possíveis consequências que podem advir no mercado imobiliário. Antes de considerar os aspectos socioeconômicos, impõe-se uma breve análise jurídica.
2. Análise jurídica
Sob o aspecto jurídico, é sempre importante lembrar o óbvio. A lei vigente não retira a moradia de ninguém. Aquele que se torna fiador, o faz de livre e espontânea vontade para prestar auxílio a alguém. Ninguém é compelido a ser fiador. O fiador tem livre disposição de seu patrimônio e aquele que presta fiança o faz sabendo (ou devendo saber) que pode perder seus bens com o inadimplemento do afiançado, inclusive o imóvel residencial. A lei não descuida da relevância do tema, tanto que exige a outorga uxória ou autorização marital para que a fiança possa ser útil em relação ao credor.
Tanto o direito à moradia previsto no art. 6º da CF (como comando prestacional), quanto o benefício do bem de família não podem ser interpretados como normas que geram a inalienabilidade do bem. Assim fosse, o imóvel residencial não poderia ser hipotecado, porque a hipoteca representa uma possibilidade de alienação judicial, a ser promovida pelo credor insatisfeito.
A lei vigente permite a penhora do imóvel residencial do fiador, assim como permite seja ele hipotecado. A diferença, ou melhor, uma delas, é que a fiança tem validade e eficácia independentemente de qualquer registro, o que é bom se tivermos em conta que boa parcela dos cidadãos brasileiros é carente de recursos. Seria impróprio forçar a população a partir para garantias mais onerosas, como a hipoteca ou seguro fiança, com todos os custos adjacentes.
Além disso tudo, também não é demais lembrar que o imóvel utilizado para a moradia não deixa de ser alienável pelo só fato de o proprietário nele residir. Não fosse assim, o proprietário não poderia sequer vender o seu imóvel residencial, o que contraria flagrantemente um dos atributos inerentes ao direito de propriedade (poder de disposição). Logo, se o proprietário pode alienar e ficar sem moradia - e ninguém questiona isso - evidente que pode hipotecar ou prestar fiança e estar sujeito à perda da coisa. Se o fiador pode vender o bem para ajudar um eventual parente seu, afiançado, em má situação financeira, pode pela mesma razão prestar fiança (com risco de perda do bem) sem que isso seja uma afronta à Constituição ou mesmo à razoabilidade. Quem pode o mais que é alienar, pode o menos que é garantir com risco de perda, seja essa garantia real (como a hipoteca), seja pessoal (como a fiança).
Acrescente-se a tudo isso outra observação. A prevalecer a irrestrita proteção da moradia, o legislador deveria pensar, para manter a coerência, em defender a impenhorabilidade do bem de família também nas situações de hipoteca. O que também parece ser bastante inapropriado. O excesso de proteção costuma se voltar contra o próprio protegido.
Portanto, por todas estas razões, a conclusão é a de que, sob o aspecto jurídico não há qualquer aberração em se permitir a penhora do bem de família do fiador de contratos de locação de imóvel.
Mas outras questões devem ser analisadas para uma melhor percepção sobre a conveniência ou não da extensão do benefício de impenhorabilidade ao fiador.
3. Sugestões para diminuir o desconforto do fiador sem enfraquecer o locador
Não poucas vezes conheci pessoas esclarecidas que ignoravam a existência de regra que possibilita a penhora do imóvel do fiador em contrato de locação. Embora sob o aspecto jurídico isso não seja tão relevante (nemo ius ignorare censetur), sob o aspecto social a percepção não pode ser descartada, porque a presunção de que todos conhecem a lei não corresponde à realidade, haja vista que nem mesmo os profissionais do direito conseguem dar conta da série de leis que surgem dia após dia. E, diante da relevância do interesse em jogo (a moradia do fiador), poderia haver forma de solucionar o problema mediante modificação legislativa. Não a pretendida pelo Projeto 408/2008, mas sim para exigir, como requisito de validade da fiança, uma declaração do fiador prévia e por escrito, no próprio contrato ou fora dele, de que tem conhecimento da possibilidade de perda de sua moradia, caso o locatário não cumpra as obrigações assumidas no contrato de locação.
Outro argumento que poderia ser lançado em favor daqueles que defendem a aprovação do projeto de lei sob comento é o estado de absoluta vulnerabilidade do fiador. Normalmente o fiador toma conhecimento da existência do débito do locatário quando a dívida já atingiu a estratosfera. E, nessas circunstâncias, torna-se ainda mais difícil que ele efetue o pagamento sem dispor de algum bem de sua propriedade. E isso pode mesmo ser levado em consideração, principalmente se atentarmos para o fato de que na maior parte dos contratos de fiança, há um estado de proximidade tal entre fiador e afiançado, que tanto pode contribuir para que o devedor comunique o mais rápido o seu garantidor, como pode servir para que o devedor, por acanhamento ou constrangimento, omita o seu estado de inadimplência.
Se, numa hipótese, o devedor assumir a primeira conduta (acima referida), o problema para o fiador é de menor proporção pois o débito poderá ser por ele quitado sem deixar que os encargos moratórios inviabilizem o pagamento espontâneo. Evidentemente, se ele fiador tiver condições de assim proceder. Contudo, se noutra hipótese a conduta do locatário for a de omissão, realmente isso pode trazer consequências devastadoras para o patrimônio do fiador, que responderá pelo débito principal acrescido de todos os encargos.
Mas também para essa situação há antídoto sem necessidade de enfraquecer a posição do credor. Poderia ser pensada uma modificação da lei para que o fiador sempre fosse comunicado do inadimplemento dentro de um determinado período (ex: dois meses), sob pena de a garantia perder eficácia. Com isso, o fiador poderia quitar a obrigação e conhecer a real situação do afiançado antes de a dívida se tornar extraordinariamente alta por causa dos encargos.
4. Identificação do problema
Um dos alicerces do projeto de lei é irreparável. Do jeito que está, o ordenamento jurídico é injusto nessa parte. Constitui flagrante incongruência da lei vedar o benefício do bem de família ao fiador e conferi-lo ao locatário. O locatário é o devedor principal. Aliás, o contrato de fiança é um daqueles exemplos dado pelos doutrinadores de responsabilidade sem débito.
Tal incoerência de fato é o principal argumento que justifica a alteração legislativa. Não há nenhuma razão para permanecer a lei da forma como está. De acordo com o art. 823 do Código Civil, a fiança pode ser estipulada em valores inferiores aos da obrigação principal, e em condições menos onerosas, mas nunca poderá acontecer o inverso. Assim, a incongruência existente na lei 8.009/90 fere um dos princípios basilares do contrato de fiança, qual seja, o de que o fiador não pode ficar em situação mais gravosa, mais onerosa que o devedor principal.
Assim, se a desigualdade é nociva, há duas formas de repará-la: a primeira seria a de igualar a condição do fiador à do locatário (tal como propõe o Projeto); a segunda forma seria a equiparação do locatário ao fiador (permitir a penhora também de eventual imóvel do locatário). Qual é melhor?
5. Análise socioeconômica
Não há como negar a intenção altruística do Projeto de Lei. Mas alterações legislativas podem gerar muitas mudanças não previstas. E justamente por conta disto, deve haver ampla reflexão, pesquisa e responsabilidade para implementá-las. É necessário que se faça um amplo e profundo exame de quais consequências podem advir da modificação sugerida.
A fiança responde por significativa parcela das garantias firmadas nos contratos de locação no Brasil. Diferentemente de outras modalidades, ela não implica em custo algum para o inquilino.
O impacto no mercado locatício pode ser muito grande e prejudicial àqueles menos favorecidos economicamente. Isto porque, as classes mais baixas, que são as que mais dependem da locação para estabelecer sua moradia, têm dificuldade ou mesmo impossibilidade de proceder aos demais tipos de garantia previstos da Lei de Locações. Para o depósito, há de se ter dinheiro sobrando para tal fim, o que evidentemente não acontece. Com relação ao seguro-fiança também há enorme dificuldade de se obter essa espécie de garantia por conta não só do elevado custo como também do rigor das seguradoras para a aprovação do cadastro do locatário, que precisa demonstrar renda muitas vezes superior ao valor do aluguel que se quer contratar.
Caso o projeto de lei seja aprovado, os locadores, por sua vez, voltarão a proceder como procediam antes do surgimento do artigo 82 da Lei 8.245/91, ou seja, exigirão que o fiador tenha no mínimo dois imóveis, já que com relação a um deles poderá ser alegada a impenhorabilidade do bem de família.
Teme-se, com a mudança, duas consequências nefastas: a primeira, como se disse, seria extremamente prejudicial aos menos favorecidos que, diante da exigência do locador de fiador com no mínimo dois imóveis, ver-se-iam entre a cruz e a espada. Ou seja, para conseguirem a moradia, dependeriam de conhecer pessoas que preenchessem aquele requisito, o que também seria difícil porque normalmente as pessoas têm os seus relacionamentos mais íntimos (que dão origem à fiança) com outras pertencentes à mesma classe social.
Será que a alteração legislativa não prejudicará exatamente aqueles que dependem da locação para morar? É bem possível que o tiro saia pela culatra.
Outro temor pode ser apontado. A partir do momento que se retira uma garantia do locador e, considerando que parcela significativa de locadores é composta por investidores, a consequência a médio ou longo prazo poderia ser o desestímulo a essa modalidade de investimento. Com isso, diminuiria o número de imóveis para locação e, como corolário, poderia haver o aumento do aluguel pela conhecida lei da oferta e procura. Novamente o prejuízo seria dos menos favorecidos.
Não se quer defender interesse dos mais fortes ou dos investidores neste texto. O objetivo é apenas o de chamar a atenção para possíveis consequências que poderão interferir de forma negativa na sociedade.
Tudo indica que mais uma vez a conta pode ser paga pelos menos favorecidos, o que seria extremamente injusto.
Há ainda uma última observação que deve ser registrada. Será que a mudança sugerida pelo Projeto de Lei se justifica para proteger fiadores que perdem a sua moradia? Será correto legislar pela patologia, ou pela minoria dos casos? Ora, o comum é o fiel cumprimento das obrigações. O inadimplemento constitui exceção. Por isso remanesce a pergunta: será correto submeter todos aqueles que não têm imóvel próprio, e precisam alugar para morar, a situação mais gravosa por causa de uma lei que visa essencialmente à proteção de alguns poucos que são sacrificados para o equilíbrio do mercado de imóveis?
Se houver um projeto de lei, com a mesma finalidade, pautado em densos estudos sob as possíveis reações do mercado e possíveis efeitos colaterais que apontem a conveniência da mudança, sem prejudicar as classes mais necessitadas, evidente que alteração deve ser implementada. Mas não parece ser esse o caso.
Por isso, o objetivo é o de evitar que leis surjam por impulsos e imediatismo sem que se façam estudos sobre as consequências maléficas que delas podem advir.
Bibliografia
ARAUJO, Luiz Alberto David. NUNES JÚNIOR, Vidal Serrano. Curso de direito constitucional. São Paulo: Saraiva, 1998.
AZEVEDO, Álvaro Villaça. Bem de família: com comentários à lei 8.009/90. 3ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1996.
MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e aplicação do direito. 9a ed. Rio de Janeiro: Forense, 1979.
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1Carlos Maximiliano, Hermenêutica e aplicação do direito, p. 5.
2Luiz Alberto David Araujo e Vidal Serrano Nunes Júnior, Curso de direito constitucional, p. 133.