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Civil em pauta

Questões práticas cotidianas do Direito Civil, com precedentes recentes, teorias novas e teses úteis.

Flávio Tartuce e Carlos Eduardo Elias de Oliveira
Dando sequência à reflexão sobre a proposta de Reforma do CC especificamente em relação ao Direito Civil Digital iniciada no artigo anterior1, passamos agora a abordar a proteção de crianças e adolescentes nesse contexto. Neste segundo texto, exploraremos como a proposta de legislação civil visa garantir a segurança, a proteção de dados pessoais e o bem-estar de crianças e adolescentes na era digital. Com o avanço da tecnologia e a popularização da internet, crianças e adolescentes estão cada vez mais presentes no ambiente digital. É inequívoco que este público, devido à sua condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, está significativamente mais vulnerável aos riscos inerentes ao meio digital. Casos emblemáticos como o "Desafio do Apagão", um viral nas redes sociais onde pessoas induzem a própria asfixia até desmaiar. Essa prática perigosa resultou na morte de inúmeras crianças e adolescentes2, gerando, inclusive, ações contra as plataformas pelo fato do algoritmo "recomendar" tal desafio para infantes.3 Mesmo em cenários menos extremos, pesquisas científicas têm evidenciado que a exposição excessiva às telas compromete severamente o desenvolvimento físico, emocional e intelectual das novas gerações. Um dado alarmante revela que, pela primeira vez na história, observa-se uma redução no QI dos filhos em comparação aos pais4. Como alertam os especialistas, "o que impomos às nossas crianças é indesculpável. Sem dúvida, jamais na história da humanidade, uma tal experiência de embrutecimento cerebral foi realizada em tão larga escala." 5 Esse cenário traz à tona a necessidade urgente de garantir a proteção integral desse público vulnerável, assegurando seu melhor e superior interesse conforme estabelecido no Estatuto da Criança e do Adolescente6. É fundamental que o espaço virtual seja um ambiente seguro e saudável, promovendo o desenvolvimento e o bem-estar dos jovens usuários. O Anteprojeto de Reforma do CC dedica quatro artigos específicos no Capítulo VI, intitulado "A presença e a identidade de crianças e adolescentes no ambiente digital", que materializam e fortalecem os princípios da proteção integral e do melhor interesse, adaptando-os às especificidades do contexto digital. Vale ressaltar que o Anteprojeto propõe uma proteção mais abrangente e concreta que aquela estabelecida pela LGPD, considerada modesta em relação ao público infantojuvenil, uma vez que esta se concentra primordialmente nas questões de consentimento e controle de dados pessoais7.      Para operacionalizar esta proteção, o Anteprojeto estabelece responsabilidades específicas e bem delineadas aos provedores de serviços digitais. A primeira delas, denominada dever de verificação eficaz da idade, impõe aos provedores a obrigação de implementar sistemas confiáveis para verificação etária dos usuários, impedindo que crianças e adolescentes acessem conteúdos inapropriados para sua faixa etária.  Trata-se de ponto crucial para a proteção dos menores, uma vez que o acesso a conteúdo inadequado pode causar sérios impactos em seu desenvolvimento psicológico, emocional e social, colocando até mesmo em risco a sua vida e integridade corporal, como demonstrado acima. A exposição prematura a materiais impróprios, como violência explícita, conteúdo sexual ou discurso de ódio, pode resultar em traumas, ansiedade, comportamentos inadequados e uma compreensão distorcida da realidade.  A segunda responsabilidade consiste no dever de assegurar o controle parental efetivo, pelo qual os provedores precisam disponibilizar ferramentas eficazes que permitam aos pais e responsáveis limitar e monitorar adequadamente o acesso dos jovens a determinados conteúdos e funcionalidades no ambiente digital. Embora existam soluções disponíveis no mercado para este fim, frequentemente estas se mostram ineficientes, pouco intuitivas ou de difícil acesso e compreensão pelo público em geral. A imposição deste dever aos provedores, com ênfase em sua eficácia, representa um avanço significativo na proteção integral de crianças e adolescentes no meio digital. Esta obrigação reconhece o papel fundamental dos pais e responsáveis como primeiros guardiões do desenvolvimento saudável dos menores, fornecendo-lhes instrumentos adequados para exercer essa supervisão de forma efetiva no contexto tecnológico atual. Ao estabelecer padrões mínimos de qualidade e usabilidade para estas ferramentas de controle parental, garante-se que a proteção dos menores no ambiente digital não seja apenas uma responsabilidade teórica, mas uma realidade prática e acessível a todas as famílias. A terceira responsabilidade corresponde ao dever de assegurar a proteção dos dados pessoais de crianças e adolescentes, em estrita conformidade com a lei 13.709, de 14/8/18 LGPD - Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais. Embora tal dispositivo possa parecer redundante ou trivial à primeira vista, sua inclusão tem relevância jurídica significativa ao reafirmar expressamente a vigência e aplicabilidade das disposições da LGPD neste contexto específico. Esta reiteração normativa serve a múltiplos propósitos: reforça a importância da proteção de dados pessoais de menores como direito fundamental, evita potenciais interpretações que poderiam sugerir derrogação tácita das normas protetivas da LGPD, e estabelece uma ponte clara entre os diferentes marcos regulatórios que compõem o sistema de proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital. Assim, garante-se maior segurança jurídica e efetividade na tutela dos direitos dos menores, especialmente considerando sua particular vulnerabilidade no contexto do tratamento de dados pessoais em plataformas digitais. Por fim, foi estabelecido o dever de proteção por design, impondo que se deve proteger os direitos das crianças e adolescentes desde a concepção do ambiente digital, garantindo que, em todas as etapas-desenvolvimento, fornecimento, regulação, gestão de comunidades, comunicação e divulgação-o melhor e superior interesse dos jovens seja observado. Trata-se do reforço na proteção por design estabelecida pela LGPD8 e representa um avanço significativo na tutela dos direitos de crianças e adolescentes no ambiente digital, pois estabelece que a proteção deve ser considerada desde a concepção dos serviços e plataformas, e não apenas como uma adaptação posterior. Esta abordagem preventiva e estrutural garante que o melhor interesse dos jovens seja incorporado em todas as etapas do ciclo de vida dos serviços digitais - desde o desenvolvimento inicial, passando pelo fornecimento, regulação, gestão de comunidades, até a comunicação e divulgação. Tal princípio reconhece que a proteção efetiva não pode ser uma consideração secundária ou reativa, mas deve estar intrinsecamente integrada à própria arquitetura dos ambientes digitais.  Ao exigir que as plataformas considerem as necessidades e vulnerabilidades específicas dos usuários menores de idade desde o início, este dever promove uma mudança fundamental na forma como os serviços digitais são concebidos e implementados, priorizando a segurança e o desenvolvimento saudável das crianças e adolescentes. Esta abordagem proativa não apenas minimiza riscos potenciais, mas também cria um ambiente digital mais seguro e adequado, alinhando-se aos princípios fundamentais da proteção integral estabelecidos pelo Estatuto da Criança e do Adolescente e pela CF/88. E tal dever também é imposto claramente aos criadores de produtos e serviços ligados às tecnologias da informação e comunicação destinados a crianças e adolescentes, uma vez que devem ser concebidos com a garantia de sua proteção integral e a prevalência de seus interesses, o que especificado pelo anteprojeto com a enunciação dos seguintes deveres decorrentes:  Dever de consideração dos direitos e limites das crianças e adolescentes, já que desde a concepção e projeto até a execução, disponibilização e utilização, devem considerar as capacidades e limites das crianças e adolescentes, adotando por padrão opções que maximizem a proteção de sua privacidade e minimizem a coleta e utilização de dados pessoais. Dever de uso de  linguagem adequada, impondo a utilização de linguagem clara, concisa e compatível com a idade dos usuários, facilitando a compreensão e promovendo uma experiência positiva e educativa. Dever de privacidade e segurança, que consiste em assegurar a privacidade e a segurança das crianças e dos adolescentes, em conformidade com o Estatuto da Criança e do Adolescente, a CF/88 e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como a Convenção dos Direitos da Criança das Nações Unidas. Por fim, em uma disposição inovadora, o Anteprojeto proíbe expressamente a veiculação de publicidade em produtos ou serviços de tecnologia da informação destinados a crianças e adolescentes. Esta vedação abrange todas as formas de exibição de produtos ou serviços, incluindo plataformas gratuitas de compartilhamento de conteúdo e redes sociais. É importante ressaltar que o impacto da publicidade nas crianças já foi considerado pelo legislador brasileiro ao estabelecer9, no CDC, que se considera abusiva a publicidade que explora a deficiência de julgamento e experiência das crianças. Ao vedar a publicidade no ambiente digital, o anteprojeto vai além, reconhecendo as peculiaridades e os riscos específicos deste contexto tecnológico. Esta abordagem mais rigorosa se justifica pelas características próprias do meio digital, que potencializam os riscos da publicidade direcionada ao público infantil. No ambiente virtual, as técnicas publicitárias são mais sofisticadas e persuasivas, utilizando recursos interativos, personalização algorítmica e elementos lúdicos que tornam ainda mais difícil para as crianças distinguirem conteúdo comercial de entretenimento. Além disso, a exposição constante e a capacidade de coleta e processamento de dados comportamentais permitem estratégias de marketing altamente direcionadas e potencialmente mais manipuladoras. Portanto, a vedação total da publicidade direcionada a crianças no meio digital representa uma resposta proporcional e necessária para proteger efetivamente este público especialmente vulnerável das práticas comerciais predatórias que se desenvolveram no contexto das novas tecnologias.10 Diante disso, é correto afirmar que o Anteprojeto de Reforma do CC representa um marco significativo na proteção de crianças e adolescentes no ambiente digital, estabelecendo uma proposta de arcabouço normativo robusto e abrangente. As disposições demonstram uma compreensão aprofundada dos desafios contemporâneos e das vulnerabilidades específicas do público infantojuvenil no contexto digital. A implementação destes dispositivos, aliada aos mecanismos já existentes no ordenamento jurídico brasileiro, tem o potencial de criar um ambiente digital mais seguro e propício ao desenvolvimento saudável das novas gerações. Contudo, o sucesso desta iniciativa dependerá da criação de uma cultura de proteção de dados pessoais, da fiscalização adequada pelos órgãos competentes e da atuação firme do Poder Judiciário.  A proibição da publicidade direcionada ao público infantojuvenil e a imposição de deveres específicos aos provedores de serviços digitais demonstram uma postura assertiva do legislador na proteção dos interesses das crianças e adolescentes. Estas medidas, embora possam enfrentar resistência do mercado, são fundamentais para garantir que o ambiente digital não se torne um espaço de exploração comercial predatória deste público vulnerável. __________ 1 Disponível aqui. 2 Ver a respeito: Disponível aqui. Acesso em 16 out. 2024. 3 Ver a respeito: Disponível aqui. Acesso em 16 out. 2024. 4 Conforme: DESMURGET, Michel. A fábrica de cretinos digitais: os perigos das telas para nossas crianças. São Paulo: Vestígio, 2023.   5 Idem, p. 273. 6 BRASIL. Lei n. 8.069, de 13 de julho de 1990. Dispõe sobre a Estatuto da Criança e do Adolescente e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024. 7 Conforme se vê do art. 14 da LGPD. BRASIL. Lei n. 13.709, de 14 de agosto de 2018. Lei Geral de Proteção de Dados Pessoais (LGPD). Brasília, DF: Presidência da República, 2018. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024. 8 Estabelecido pelo art. 46, § 2º da LGPD, que assim dispõe:  Art. 46. Os agentes de tratamento devem adotar medidas de segurança, técnicas e administrativas aptas a proteger os dados pessoais de acessos não autorizados e de situações acidentais ou ilícitas de destruição, perda, alteração, comunicação ou qualquer forma de tratamento inadequado ou ilícito. (...). § 2º As medidas de que trata o caput deste artigo deverão ser observadas desde a fase de concepção do produto ou do serviço até a sua execução. 9 BRASIL. Lei n. 8.078, de 11 de setembro de 1990. Dispõe sobre a proteção do consumidor e dá outras providências. Brasília, DF: Presidência da República, 1990. Disponível aqui. Acesso em: 16 out. 2024. 10 Ver a respeito: ZUBOFF, Shoshana. A era do capitalismo de vigilância: a luta por um futuro humano na nova fronteira do poder. Tradução de George Schlesinger. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2020.
sexta-feira, 27 de setembro de 2024

A aurora do Direito Civil digital - Parte I

Dentre as inúmeras e importantíssimas inovações trazidas pelo anteprojeto de reforma do CC1, uma merece especial destaque: o tratamento jurídico do assim chamado "Direito Civil Digital", inserido no livro VI da proposta apresentada.   O texto é bastante abrangente e foi estruturado em dez capítulos. O Capítulo I estabelece as bases do Direito Civil Digital, incluindo princípios e fundamentos, com foco na proteção da dignidade, privacidade e propriedade no ambiente digital, bem como na promoção da inovação e acessibilidade. Capítulo II aborda os direitos das pessoas naturais e jurídicas no ambiente digital, enfatizando a proteção de dados, direitos de personalidade, liberdade de expressão e critérios para determinar a licitude dos atos digitais. O Capítulo III define e regulamenta as situações jurídicas digitais, estabelecendo direitos e deveres emergentes das interações digitais. O Capítulo IV assegura o direito a um ambiente digital seguro e transparente, destacando a importância de práticas de moderação de conteúdo que respeitem as liberdades individuais. O Capítulo V detalha o conceito de patrimônio digital, estabelecendo diretrizes para sua gestão e transmissão hereditária, além de abordar o tratamento de dados pessoais no contexto digital. O Capítulo VI foca na proteção integral de crianças e adolescentes no ambiente digital, exigindo medidas como verificação de idade e garantia de acesso a conteúdos apropriados. O Capítulo VII estipula diretrizes para o desenvolvimento e implementação de sistemas de inteligência artificial, enfatizando não-discriminação, transparência e responsabilidade civil. O Capítulo VIII aborda a validade e os princípios dos contratos celebrados digitalmente, assegurando que cumpram os mesmos requisitos legais dos contratos tradicionais. O Capítulo IX: Define as modalidades de assinaturas eletrônicas e estabelece os requisitos para sua validade e uso em documentos jurídicos. O Capítulo X estrutura normas para a realização de atos notariais eletrônicos, garantindo sua autenticidade, integridade e confidencialidade, legitimando legislativamente um importante provimento do CNJ surgido durante a pandemia. Na atualidade, a "digitalização da sociedade", decorrente da penetrabilidade das tecnologias digitais, em especial da internet, em praticamente todos os setores da existência humana, ressignificou a expressão "navegar é preciso". De fato, parcela considerável (e crescente) das atividades humanas depende do uso das tecnologias digitais, a ponto de tornar-se impossível pensar a forma de ser e viver atual sem sua utilização. De instrumento, como toda técnica, a internet se tornou o ambiente2, moldando, assim, as condições reais e concretas da existência humana. Luciano Floridi, a partir dessa constatação, cunhou o neologismo "onlife" para designar a forma de vida atual, em que a nova condição humana ocasionou a superação da barreira entre o virtual e o real. Na sua visão, a aceitação das tecnologias da informação e da comunicação pelas pessoas afeta radicalmente a condição humana, via transformação das interações das pessoas consigo mesmas, com os demais e com a natureza (tradução nossa)3.   Este novo paradigma altera consideravelmente as relações sociais e econômicas, criando uma dependência em relação ao tecnicismo digital que permeia praticamente todas as atividades humanas. Nesse contexto, as rápidas transformações econômicas e sociais possibilitadas pela internet permitiram um exercício mais efetivo de uma série de direitos fundamentais, especialmente aqueles ligados à liberdade. Contudo, como toda inovação tecnológica, a transformação digital é ambivalente, trazendo consigo inúmeros riscos a diversos direitos, riscos estes amplificados, primeiro, pelo desequilíbrio de poder entre os detentores das tecnologias digitais, os "Senhores da Informação"4,  e os usuários; segundo, pela penetrabilidade da internet, que, como ressaltado, atrai para o campo digital a maioria dos ambientes sociais5.  O direito, como "saber prático"6,  nessa conjuntura, necessita adaptar-se com o fito de criar instrumentos aptos a analisar e a compreender as transformações tecnológicas e, com isso, regular adequadamente as relações jurídicas decorrentes7. Em outras palavras, a ciência do direito, para servir à sociedade, deve ser sempre atualizada e altamente ligada ao desenvolvimento social, o que inclui - mas não se restringe - os avanços tecnológicos8 digitais. E, sendo o Direito Civil o ramo do Direito que regulamenta as relações cotidianas entre as pessoas, garantindo seus direitos e deveres nas relações privadas, tem urgência em voltar sua atenção, de forma bastante detida, para esse novo "ambiente" da experiência humana. Como dissemos em recente passagem, falando especificamente do tratamento dos dados pessoais mas que pode ser aplicado a totalidade da matéria, "trata-se de um encontro desafiador entre o novo e o velho, entre a era digital e os conceitos tradicionais do Direito Civil9."  Isso em razão de que se está diante de uma realidade complexa que o sistema jurídico enfrenta na atualidade. O encontro entre os conceitos tradicionais do Direito Civil e as inovações trazidas pela era digital representa um dos maiores desafios jurídicos da atualidade. Este embate entre o "velho" e o "novo" se manifesta em diversas áreas fundamentais do Direito Civil, exigindo uma profunda reflexão e adaptação dos princípios jurídicos estabelecidos. No âmbito da personalidade e capacidade jurídica, o ambiente digital introduz complexidades antes inimagináveis. A existência de identidades digitais e avatares questiona os limites tradicionais da personalidade, enquanto a persistência de perfis em redes sociais após a morte do usuário desafia as noções estabelecidas de capacidade jurídica. O caso emblemático da herança digital, onde familiares buscam acesso às contas online de entes falecidos, ilustra vividamente como o mundo virtual está redefinindo conceitos fundamentais do Direito Civil. A concepção tradicional de propriedade e bens também se vê desafiada pela realidade digital. A emergência de bens intangíveis, como criptomoedas e NFTs, questiona a aplicabilidade dos conceitos clássicos de propriedade. Além disso, a proteção da propriedade intelectual em ambientes virtuais, especialmente em relação a conteúdos gerados por usuários em plataformas digitais, apresenta desafios inéditos. A comercialização de terrenos virtuais em metaversos, por exemplo, exemplifica como o valor econômico e a noção de propriedade estão sendo redefinidos no contexto digital. No campo dos contratos, a revolução digital impõe uma revisão profunda dos princípios estabelecidos. A proliferação de contratos eletrônicos e a emergência de smart contracts baseados em blockchain desafiam as noções tradicionais de manifestação de vontade e formalização de acordos. A simples ação de clicar para aceitar os termos de uso de um aplicativo levanta questões complexas sobre a natureza do consentimento e a formação de vínculos contratuais no ambiente digital. A responsabilidade civil, por sua vez, enfrenta desafios sem precedentes na era digital. A atribuição de responsabilidade por danos causados por sistemas de inteligência artificial autônomos ou por conteúdos gerados por usuários em plataformas online desafia os fundamentos tradicionais da teoria da responsabilidade. O caso hipotético de um acidente causado por um veículo autônomo ilustra a complexidade de determinar a responsabilidade em um cenário onde a intervenção humana direta é minimizada. Por fim, a privacidade e a proteção de dados emergem como questões centrais no encontro entre o Direito Civil e o mundo digital. A coleta massiva de dados pessoais, o perfilamento algorítmico e o surgimento do direito ao esquecimento desafiam a concepção tradicional de privacidade como o simples "direito de ser deixado só". O uso generalizado de cookies e rastreadores online para criar perfis detalhados de consumidores exemplifica como as práticas digitais estão redefinindo os limites da privacidade e do consentimento10.  Este panorama de desafios evidencia que o encontro entre o Direito Civil tradicional e a era digital não é apenas um obstáculo a ser superado, mas uma oportunidade única de evolução jurídica. A tarefa que se impõe aos juristas, legisladores e à sociedade como um todo é a de reinterpretar criativamente os princípios fundamentais do Direito Civil. O objetivo é preservar os valores essenciais que têm guiado as relações privadas por séculos, adaptando-os simultaneamente às novas realidades tecnológicas. Este processo demanda um equilíbrio delicado entre a manutenção da segurança jurídica e a flexibilidade necessária para acomodar as rápidas e contínuas mudanças tecnológicas. Em última análise, o sucesso nessa empreitada garantirá que o Direito Civil continue a cumprir seu papel fundamental na regulação das relações privadas, mesmo em um mundo cada vez mais digitalizado. A adaptação do Direito Civil à era digital não é apenas uma necessidade prática, mas um imperativo para assegurar que a proteção dos direitos individuais permaneça relevante e eficaz no século XXI. Após mais de 30 anos de quase absoluta ausência de regulação do ambiente digital, período em que muitas foram as tensões e desafios, verifica-se no presente uma crescente regulação mundial, a exemplo da União Europeia e dos Estados Unidos. Neste cenário, a proposta de reforma do CC brasileiro mostra-se não apenas necessária, mas também oportuna. A inclusão do Direito Civil Digital no anteprojeto de reforma do CC representa um marco significativo na evolução do ordenamento jurídico brasileiro. Esta iniciativa reconhece a realidade "onlife" em que vivemos e busca estabelecer um equilíbrio entre a proteção dos direitos fundamentais e o fomento à inovação tecnológica. Ao abordar questões cruciais dessa nova realidade, o "novo" CC se propõe a ser um instrumento jurídico atual e eficaz, capaz de enfrentar os desafios da era digital. Desta forma, o Brasil se alinha às tendências internacionais de regulação do ambiente digital, fornecendo maior segurança jurídica para cidadãos e empresas, e promovendo um desenvolvimento tecnológico responsável e ético. Concluída esta breve análise propedêutica, os próximos artigos se dedicarão ao exame minucioso de algumas das principais inovações propostas pelo anteprojeto de reforma do CC no âmbito do Direito Civil Digital. Exploraremos em detalhes como essas mudanças buscam adaptar nosso ordenamento jurídico às complexidades da era digital.  ___________ 1 Disponível aqui. 2 Umberto Galimberti considera que a técnica, como um todo, se tornou o ambiente que cerca e constitui todos os indivíduos. Tal generalização não é indene de discussões. Contudo, parece não haver dúvida de que a internet exerce efetivamente esse papel. (GALIMBERTI, Umberto. Psiche e techne: o homem na idade da técnica. Tradução de José Maria de Almeida. São Paulo: Paulus, 2006. passim.). Em sentido próximo, Manuel Castells inicia seu livro A galáxia da internet afirmando que "[a] Internet é o tecido das nossas vidas" (CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 7). 3 FLORIDI, Luciano. The onlife manifesto: being human in a hyperconnected era. London: Springer, 2015. p. 2.  4 RODOTÀ, Stefano. A vida na sociedade da vigilância: a privacidade hoje. Tradução de Danilo Doneda e Luciana Cabral Doneda. Organização, seleção e apresentação de Maria Celina Bodin de Moraes. São Paulo: Renovar, 2008.  p. 68. 5 Acerca da ambivalência da internet, esclarece Manuel Castells que "[a] elasticidade da internet a torna particularmente suscetível a intensificar as tendências contraditórias presentes em nosso mundo. Nem utopia nem distopia, a internet é a expressão de nós mesmos através de um código de comunicação específico, que devemos compreender se quisermos mudar nossa realidade". CASTELLS, Manuel. A galáxia da internet: reflexões sobre a internet, os negócios e a sociedade. Tradução de Maria Luiza X. de A. Borges. Rio de Janeiro: Zahar, 2003. p. 11. 6 STRECK, Lenio Luiz. Verdade e consenso. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2017. p. 185-188. 7 Acerca da dificuldade de o direito acompanhar, na atualidade, a evolução tecnológica, colhe-se a seguinte passagem: "Os direitos humanos foram forjados no seio de sociedades em que as mudanças ocorreram de forma lenta e gradual, de modo que a ciência jurídica estivesse em condições de as acolher e as acomodar nos conceitos jurídicos correspondentes. Hoje, o grande desafio que se coloca aos operadores do direito e aos próprios cidadãos é o de dispor de categorias de análise e de compreensão desses novos fenómenos". PÉREZ LUÑO, Antonio Enrique. Los derechos humanos en la sociedad tecnológica. Madrid: Universitas, 2012a. p. 9. Tradução nossa. Texto original: "Los derechos humanos se forjaron en el seno de sociedades en las que los câmbios se producian de manera lenta y paulatina, por lo que la ciencia jurídica se hallaba em condiciones de poder assumirlos e alojarlos en los correspondientes conceptos jurídicos. Hoy, el gran reto que se plantea a los operadores del Derecho y a los propios ciudadanos reside em contar com unas categorias de análisis y de comprensión de esos nuevos fenómenos". (Ibid., p. 9). 8 SAARENPÄÄ, Ahti. Derechos digitales.  In: BAUZÁ REILLY, Marcelo (Directordir.). El derecho de las TIC en Iberoamérica. Montevideo, Uruguay: Ed. LLa Ley Uruguay, 2019. cap. 10, p. 291-326. p. 292. 9 BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024. 10 Ver a respeito: BUSATTA, Eduardo Luiz. Dados pessoais e reparação civil. Organização: Flávio Tartuce. Rio de Janeiro: Forense, 2024. 
Qual é a natureza jurídica da Comissão de Representantes, que é obrigatória no caso de incorporação imobiliária? A resposta é que a sua natureza jurídica é de sujeito de direito despersonalizado. Trataremos disso neste artigo. A teoria da personalidade jurídica tem de lidar com situações sui generis que não se encaixam perfeitamente no seu figurino. Cuida-se dos sujeitos de direito despersonalizado. Por conta disso, é equivocado dizer que somente quem tem personalidade jurídica pode ter direitos e deveres. De um lado, a personalidade jurídica é definida como a aptidão de ter direitos e deveres. As pessoas naturais e as pessoas jurídicas detêm personalidade jurídica. De outro lado, o ordenamento Aparecida, de modo excepcional, por imperativo prático-jurídico, viu-se forçado a admitir que determinadas massas patrimoniais ou aglomeração de pessoas possam ter direitos e deveres. É o caso, por exemplo, do espólio, que é uma massa patrimonial que, por razões prático-jurídicas, precisa ser reconhecida como sujeito de direito para, por exemplo, celebrar contratos, ser parte em ações judiciais etc. Com a morte da pessoa natural, o patrimônio desta é indivisível até a partilha entre os herdeiros (art. 1.791 do Código Civil - CC). Enquanto isso, há necessidade de "dar voz" a esse patrimônio, para que, até a concretização da partilha, ele possa praticar atos jurídicos estritamente necessários à conservação e à boa gestão dos objetos e das relações jurídicas do falecido. Por isso, o espólio pode ser parte em processos judiciais e em contratos, por exemplo. Há outros entes despersonalizados, como os fundos de investimento, a massa falida, o condomínio edilício1 etc. A diferença prática entre o sujeito de direito personalizado e o despersonalizado não é um exercício diletante de etiquetagem doutrinária. Gera repercussão prática, conforme já tivemos a oportunidade de detalhar em artigo intitulado "Entes Despersonalizados: Controvérsias jurídicas e lacunas legislativas".2 O sujeito de direito personalizado - que é aquele dotado de personalidade jurídica - sujeita-se a uma legalidade ampla no Direito Privado. Tudo lhe é permitido, salvo o proibido em lei. Por isso, uma pessoa natural ou uma pessoa jurídica têm aptidão para celebrar qualquer tipo de contrato e praticar qualquer outro ato jurídico. Já o sujeito de direito despersonalizado submete-se a uma legalidade estrita: Tudo lhe é vedado, salvo lei, costumes ou princípios. Esse é o motivo de um condomínio edilício não poder comprar imóveis em outras cidades para fins meramente especulativos, ainda que tenha contado com a unanimidade dos seus condôminos. Ele não tem aptidão de ter direitos e deveres sem conexão estritamente com a sua razão de ser. Condomínio edilício existe para garantir a coexistência dos condôminos, que estão unidos obrigatoriamente por conta do compartilhamento jurídico-arquitetônico das edificações.3 Isso protegeria os condôminos minoritários de um delírio da maioria em aprovar "taxas extras" altíssimas para levar o condomínio a fazer operações desconexas com a finalidade existencial do condomínio edilício, como comprar ações na Bolsa de Valores, "montar uma empresa" etc. Nesse contexto, entendemos que a Comissão de Representantes, apesar do laconismo legal, é um sujeito de direito despersonalizado. Ela, por lei, reúne todos os adquirentes de "imóveis na planta" ou, em palavras mais técnicas, todos os adquirentes de unidades autônomas em regime de incorporação imobiliária. A constituição da Comissão de Representantes é obrigatória no prazo de seis meses do registo da incorporação imobiliária. E será composta, no mínimo, por três membros escolhidos entre os adquirentes. A constituição dá-se por ata de assembleia devidamente registrada no Cartório de Títulos e Documentos (art. 50, caput e § 1º, lei 4.591/64). Como sujeito de direito despersonalizado, a Comissão de Representantes pode ser parte em atos jurídicos que tenham estrita conexão finalística com sua razão de ser. Mas é preciso tomar cuidado: A Comissão de Representantes atua como um síndico do condomínio protoedilício. O condomínio protoedilício é uma espécie de nascituro do futuro condomínio edilício e nasce com o registro da incorporação. Carlos E. Elias de Oliveira e Flávio Tartuce utilizaram essa expressão (condomínio protoedilício) para unificar doutrinariamente diversos nomes empregados pela legislação para se referir ao mesmo sujeito, como estes: Condomínio sobre as frações ideais (art. 32, § 15, da lei 4.591/64) e condomínio por frações autônomas (art. 213, § 10, da lei 6.015/73).4 O condomínio protoedilício também é um sujeito de direito despersonalizado. Diante disso, quando a lei 4.591/64 prevê direitos e deveres à Comissão de Representantes, ela, na verdade, está endereçando seus comandos ao condomínio protoedilício, que será operacionalizado pela Comissão de Representantes (que é o síndico desse tipo de condomínio). Houve certa atecnia da lei 4.591/64, pois ela, em alguns casos, menciona o síndico (no caso, a Comissão de Representantes) quando deveria ter citado o condomínio protoedilício. Essa atecnia, porém, é inofensiva, pois o importante é a tutela dos direitos dos adquirentes das unidades em regime de incorporação imobiliária. Em suma, entendemos que, como parte dos atos jurídicos devidos (como contratos, propositura de ações etc.), o condomínio protoedilício é que deverá figurar como parte, sob a representação da Comissão de Representantes. Sob essa ótica, citamos exemplos. Conforme a lei 4.591/64, a Comissão de Representantes tem direito de exigir do incorporador a entrega trimestral do andamento da obra e, no caso de haver patrimônio de afetação, dos extratos desse patrimônio (art. 31-D, IV e VI; e art. 43, I). Na verdade, a titularidade do direito aí é do condomínio protoedilício, que será representado pelo seu "síndico" (a Comissão de Representantes). Se o incorporador descumprir esse dever, o condomínio protoedilício poderia figurar como parte no polo ativo de uma ação judicial para exigir a entrega desses documentos: a Comissão de Representantes atuará apenas como representante do condomínio protoedilício. Também, à luz do texto legal, a Comissão de Representantes agirá nas hipóteses de destituição do incorporador, de assunção da condução das obras e em outras hipóteses similares (art. 31-F; art. 43; todos da lei 4.591/64). Na verdade, quem praticará os atos jurídicos é o condomínio protoedilício, representado pela Comissão de Representantes. Há momentos, porém, em que o legislador agiu com a mais adequada técnica. Por exemplo, de modo extremamente técnico, o art. 213, § 10, II, da lei 6.015/73 prevê que, em procedimentos de retificação imobiliária, será exigida a manifestação do condomínio protoedilício, representado pela Comissão de Representantes.5 Alertamos que, embora o art. 43, § 3º, II, "c", da lei 4.591/64 faça menção à obtenção do CNPJ pelo condomínio protoedilício por provocação da Comissão de Representantes após a destituição do incorporador, a lei não vedou qualquer obtenção de CNPJ anteriormente. Aliás, entendemos que é dever do Fisco fornecer o CNPJ ao condomínio protoedilício mesmo antes da destituição do incorporador, sempre que houver requerimento da Comissão de Representantes. Os atos infralegais da Receita Federal precisam ser atualizados nesse ponto. Na prática, porém, em grande parte dos casos, não há muita utilidade na obtenção do CNPJ. É que, antes da destituição do incorporador, o papel da Comissão de Representantes concentra-se em basicamente fiscalizar o incorporador e tutelar o direito de propriedade dos adquirentes (como no procedimento de retificação extrajudicial na forma do art. 213, § 10, II, da lei 6.015/73). O fato é que, mesmo CNPJ, o condomínio protoedilício pode figurar como parte em processos judiciais e em contratos. Afinal de contas, CNPJ não é um conceito de Direito Civil; não define quem pode ter direitos e deveres. CNPJ é apenas um número didático-fiscal, de natureza cadastral, para viabilizar a atividade de fiscalização tributária. Enfim, o condomínio protoedilício é um sujeito de direito despersonalizado; seu "síndico" é a Comissão de Representantes, que também é um sujeito de direito despersonalizado. Quanto à organização interna, a lei 4.591/64 dá liberdade aos adquirentes, que podem eleger um administrador para "assinar" em nome da Comissão de Representantes ou podem até exigir sempre a "assinatura concomitante" de todos os adquirentes na atuação da Comissão de Representantes. Deixaremos, porém, esse debate da organização para outro momento. __________ 1 Há quem sustente que o condomínio edilício é dotado de personalidade jurídica. Deixamos de aprofundar o tema aqui. 2 Disponível aqui. 3 Anotamos que, do ponto de vista prático, nada mudaria se, tal como sugere o Anteprojeto de Reforma do Código Civil, fosse expressamente reconhecida personalidade jurídica ao condomínio edilício com a proibição de que pratique atos alheios à sua finalidade existencial. O texto do Anteprojeto está disponível aqui. 4 OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de; TARTUCE, Flávio. Condomínio protoedilício e condomínio edilício: distinções à luz da lei 14.382/22 (Lei do SERP). Disponível aqui. Publicado em 23 de janeiro de 2023. 5 "Art. 213. (...) (...) § 10. Entendem-se como confrontantes os proprietários e titulares de outros direitos reais e aquisitivos sobre os imóveis contíguos, observado o seguinte: I - o condomínio geral, de que trata o Capítulo VI do Título III do Livro III da Parte Especial da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado por qualquer um dos condôminos; II - o condomínio edilício, de que tratam os arts. 1.331 a 1.358 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), será representado pelo síndico, e o condomínio por frações autônomas, de que trata o art. 32 da lei 4.591, de 16 de dezembro de 1964, pela comissão de representantes".
1. Introdução Este artigo discute o teto indenizatório no caso de responsabilidade civil por transporte aéreo internacional. Trata-se de tema relevante por ter sido fruto de harmonização jurídica entre os países signatários da Convenção de Montreal. O tema agitou intensamente a jurisprudência. Mas já podemos enxergar uma orientação estabilizada pelo Supremo Tribunal Federal (STF), a qual apontaremos neste artigo. Desde logo, cabe um alerta: não trataremos de transporte aéreo nacional, e sim de internacional. O transporte aéreo nacional está fora do âmbito normativo da Convenção de Montreal. Logo, o teto indenizatório abaixo abordado apenas se aplica a transporte aéreo internacional.  Passamos a aprofundar o tema. 2. Indenização em transporte áereo internacional de pessoas e de carga Em transporte aéreo internacional de pessoas e de carga, a indenização a ser paga pelo transportador sujeita-se ao teto previsto nos arts. 21 e 22 da Convenção de Montreal (decreto 5.910/2006), que sucedeu a Convenção de Varsóvia (Decreto nº 20.704/1931). Segundo o art. 22, itens "2" e "3", dessa Convenção, esse teto pode ser flexibilizado no caso de o dano ter recaído sobre a bagagem do passageiro ou sobre a carga transportada, desde que, no momento da entrega da coisa, tenha sido declarado expressamente o seu valor e tenha sido pago o acréscimo de preço eventualmente cobrado. Os valores dos tetos estão em Direito Especial de Saque (DES), cujo valor, em real, oscila. A conversão pode ser feita no site do Banco Central1. No caso de atraso de voo, o teto indenizatório é de 4.150 DES, o que, em julho de 2005, equivalia a cerca de R$ 31.000,00. Em transporte de bagagem, o limite indenizatório por avarias, perdas ou atrasos é de 1.000 DES, ou seja, cerca de R$ 7.000,00. Para morte ou lesão a passageiros, o teto é de 100.000 DES, ou seja, cerca de R$ 739.330,00. A ideia é, em voos internacionais, dar previsibilidade financeira ao transportador diante de um risco inerente à sua atividade, permitindo-lhe contratar seguro e repassar o gasto com o pagamento do prêmio desse seguro ao preço final cobrado do transportado. Se o cliente quiser uma indenização superior, cabe-lhe fazer a declaração do valor da coisa transportada e pagar eventual acréscimo de preço exigido pelo transportador. Esse acréscimo, na prática, será o repasse do custo adicional com a contratação de seguro. Trata-se de regra adotada pelos diversos países signatários da Convenção de Montreal. Trata-se de convenção importante para saúde financeira das empresas de transporte aéreo, ao permitir o adequado planejamento financeiro mediante a contratação de seguros e a correlata formação do preço final do serviço. Sem essa previsibilidade, as empresas de transporte aéreo ficariam sujeitas a uma situação de imprevisibilidade financeira diante dos diversos valores indenizatórios que poderiam ser arbitrados pelo Poder Judiciário de diferentes países, o que acabaria por inviabilizar a atividade econômico ou por estimular um aumento excessivo do preço do serviço de transporte. Alertamos que o entendimento acima também vale para transporte internacional aéreo de cargas, e não apenas de pessoas (STF, ED-ARE-ED-AgR-EDv-AgR-ED 1.372.360, Rel. Min. Carmén Lúcia, Rel. para Acórdão Min. Gilmar Mendes, DJe 13/06/2024). Assim, se uma empresa que contrata o transporte aéreo internacional de carga sem informar o valor dos bens transportados e consequentemente sem pagar eventual acréscimo de preço por conta do seguro não terá direito a indenização por dano material em importe superior ao teto da Convenção de Montreal. O art. 22, itens "2" e "3", dessa convenção só flexibiliza o teto indenizatório para a hipótese de haver essa declaração especial de valor dos bens e eventual pagamento do preço adicional do serviço2. O STF somente afasta o teto indenizatório supracitado em uma hipótese: indenização por dano moral. Isso, porque o art. 22 da Convenção de Montreal não faz qualquer menção aos danos morais. No caso de dano moral, aplicam-se as leis nacionais, inclusive o CDC (STF, Tema 210; RE 1.394.401/SP, Pleno e RE 636.331/RJ, Rel. Min. Gilmar Mendes, j. 25/05/2017). O texto constitucional dispõe expressamente sobre o tema (art. 178, caput, CF). Nesse sentido, o STF admitiu a condenação da empresa aérea Lufthansa ao pagamento de R$ 12.000,00 a título de indenização por dano moral causado pelo atraso de voo e extravio de bagagem em transporte aéreo internacional. Não aplicou o limite de valores das convenções internacionais supracitadas (STF, RE 1.394.401/SP, Pleno). O STJ segue a mesma linha (STJ, REsp 1842066/RS, 3ª Turma, Rel. Ministro Moura Ribeiro, DJe 15/06/2020). Embora o julgado acima lide com transporte de pessoas, entendemos que ele também abrange transporte aéreo internacional de cargas. Trata-se de hipótese pouco usual, pois o mais comum é que se fale em dano moral em transporte aéreo internacional de pessoas, em hipóteses de transtornos causados ao passageiro por danos a si ou à sua bagagem. Seja como for, teoricamente, seria possível discutir indenização por dano moral no caso de transporte internacional apenas de carga. Pense, por exemplo, no extravio de uma carga que consista no cadáver de um familiar. Entendemos que, mesmo no caso de transporte internacional de carga, o teto indenizatório da Convenção de Montreal não será aplicável para o dano moral pelos mesmos motivos já citados acima. Afinal, o dano moral não está no âmbito normativo dessa convenção, que só trata de dano material, conforme textualmente afirmado pelo Ministro Gilmar Mendes no seu voto no julgamento do supracitado RE 636.331. Nada impede, porém, que, em relações não consumeristas, as partes, por pacto expresso, imponham um limite de indenização por dano moral no caso de transporte de carga. Afinal de contas, não há motivos para considerar abusiva essa cláusula em transportes feitos por empresas, que, com a cláusula, alocarão os seus riscos. O art. 421-A do CC prestigia a alocação de riscos definida pelas partes. Todavia, em relações de consumo, cláusula que limite a indenização por dano moral deve ser considerada abusiva à luz do art. 51 do CDC, ainda mais por estarmos a tratar de direitos da personalidade. O risco de, por conta de um acidente aéreo, causar a morte ou a incapacidade física de uma pessoa não pode ser limitado por uma cláusula contratual imposta à parte mais vulnerável contratualmente, o consumidor. Cabe um alerta: tudo o que foi exposto acima estende-se contra a seguradora que se sub-rogou nos direitos do segurado que sofreu o dano. Afinal de contas, trata-se de sub-rogação: o direito é igual, mas sob outra titularidade. Suponha que uma empresa contrate o transporte de uma carga. Por cautela, essa empresa, pessoalmente, contrata um seguro para receber o valor integral no caso de extravio. Acontecendo o sinistro, a seguradora pagará à empresa a cobertura contratada e, assim, sub-rogar-se-á nos direitos indenizatórios dessa empresa contra o transportador. Com essa sub-rogação, a seguradora poderá exercer direito de regresso contra o transportador, pleiteando a indenização que seria devida ao segurado. Ora, nesse caso, o teto indenizatório da Convenção de Montreal será aplicado contra a seguradora nesse pleito regressivo. Nesse sentido, em um caso de transporte internacional aéreo de carga, o STF restringiu ao teto indenizatório da Convenção de Montreal o valor a ser pago por uma importante transportadora aérea3 a uma seguradora4 que havia se sub-rogado nos direitos do dono da mercadoria avariada. Na ação de regresso proposta contra a transportadora, a seguradora pleiteava o reembolso do valor de R$ 248.916,22, que ela havia pagado ao dono da mercadoria a título de cobertura securitária. Todavia, o STF endossou o entendimento do TJSP nesse caso e limitou esse reembolso ao teto indenizatório do art. 22, item "3", da Convenção de Montreal (STF, ED-ARE-ED-AgR-EDv-AgR-ED 1.372.360, Rel. Min. Carmén Lúcia, Rel. para Acórdão Min. Gilmar Mendes, DJe 13/06/2024; TJSP, Apelação 1103637-14.2018.8.26.0100, 13ª Câmara de Direito Privado, Rel. Des. Nelson Jorge Júnior, DJe 13/02/2020). 3. Conclusão A pacificação, pelo STF, do tema acerca do limite indenizatória da indenização em transporte aéreo internacional é salutar para dar previsibilidade a esse importante mercado. Na prática, as empresas de transporte aéreo internacional apenas terão de estar preparadas para situações mais excepcionais de indenização por dano moral, já que inexiste teto indenizatório para esse caso. Trata-se, porém, de um risco que já é internalizado pelas empresas. __________ 1 Disponível aqui. 2 Art. 22, item "2", da Convenção de Montreal: "2.  No transporte de bagagem, a responsabilidade do transportador em caso de destruição, perda, avaria ou atraso se limita a 1.000 Direitos Especiais de Saque por passageiro, a menos que o passageiro haja feito ao transportador, ao entregar-lhe a bagagem registrada, uma declaração especial de valor da entrega desta no lugar de destino, e tenha pago uma quantia suplementar, se for cabível. Neste caso, o transportador estará obrigado a pagar uma soma que não excederá o valor declarado, a menos que prove que este valor é superior ao valor real da entrega no lugar de destino." 3 O nome da transportadora era Cargolux Airlines Internacional S.A. 4 O nome da seguradora era Seguros Sura S/A.
1. Introdução Suponha uma ação de reconhecimento de união estável. Se o réu vem a falecer no curso da ação, indaga-se: Quem lhe deverá suceder, o espólio ou seus herdeiros? A resposta depende do rastreamento da relação de direito material, dada pelo Direito Civil, visto que a legitimidade processual ad causam é um reflexo. 2. Espólio não é necessariamente o sucessor processual no caso de morte da parte Em regra, o espólio sucede a parte que falece no curso do processo (arts. 110 e 313, § 2º, do CPC1). Isso, porque o espólio é o sujeito de direito despersonalizado que aglomera, em si, todos os direitos e deveres do falecido enquanto não sobrevier a partilha de bens (art. 1.791, parágrafo único, do Código Civil2). Há, porém, exceções. Há casos em, com a morte de uma parte, não necessariamente o espólio será o seu sucessor processual. Eventualmente, o sucessor processual tem de ser seus herdeiros pessoalmente ou até mesmo um terceiro que venha a ter-se tornado o titular do direito sub judice, e não o espólio. Isso, porque a legitimidade processual ad causam tem de espelhar os polos da relação de Direito Material envolvida. O que está em discussão após a morte da parte no curso do processo é saber quem passou a ter - na relação jurídica de Direito Material - a titularidade da res in judicium deducta. O próprio art. 110 do CPC dá respaldo para tal interpretação, ao mencionar que a sucessão processual pode dar-se pelos sucessores do falecido, e não apenas pelo espólio. Esses sucessores devem ser entendidos como as pessoas que passam a integrar a relação de direito material com o falecimento da parte. Em termos didáticos, pode-se dizer que a definição do sucessor processual no caso de morte da parte no curso do processo coincide com a identificação de quem teria legitimidade ad causam caso o feito supostamente tivesse sido ajuizado post mortem. 3. Critério para identificar legitimidade ad causam do espólio: O interesse comunitário do ecossistema sucessório O critério adequado para identificar a legitimidade ad causam do espólio para suceder processualmente o falecido em ações judiciais é a presença do que chamamos de interesse comunitário do ecossistema sucessório. O espólio não tem legitimidade ad causam quando o feito envolver interesse meramente individual de alguns herdeiros. Explica-se. O ecossistema sucessório é composto por todos os envolvidos na sucessão mortis causa, como credores, herdeiros, testamenteiro etc. Para a tutela do interesse comunitário deles, o ordenamento jurídico criou o espólio, um sujeito de direito despersonalizado incumbido de velar, com imparcialidade, por esse interesse comunitário. A estrutura do espólio é desenhada para esse fim. Por isso, o custeio das atividades do espólio é feito com dinheiro do próprio acervo hereditário, como gastos com honorários de advogados e peritos, custas judiciais, eventual pro labore devido ao inventariante etc. Não pode essa estrutura comunitária estar a serviço de interesse meramente pessoal de qualquer dos herdeiros. A energia do inventariante, o patrimônio do monte-mor e os demais elementos da estrutura do espólio não são para a tutela de interesses individuais dos herdeiros, e sim do interesse comunitário de todos os integrantes do ecossistema sucessório. O espólio atua com imparcialidade entre os integrantes do ecossistema sucessório, sem patrocinar o interesse meramente pessoal de nenhum deles: O espólio não é advogado pessoal de nenhum herdeiro. No ponto, de forma bem gráfica, basta lembrar que o inventariante não necessariamente será um herdeiro. Pode ser, por exemplo, um credor ou até mesmo um terceiro nomeado como inventariante dativo (arts. 75, § 1º, e 617 do CPC). Isso demonstra que o espólio tem razão de ser fundada na tutela imparcial do interesse comunitário do ecossistema sucessório. Por isso, não cabe ao espólio interferir nos eventuais litígios entre os herdeiros nem entre estes e outros potenciais herdeiros ou meeiros. Conflitos como esses restringem-se ao campo estritamente pessoal de cada herdeiro; não versam sobre o interesse comunitário do ecossistema sucessório. Aliás, soaria teratológico que os recursos e a energia do espólio fossem despendidos para proteger um grupo de herdeiros que sejam familiares do falecido e que não queiram reconhecer um terceiro como familiar. 4. Sucessão processual no caso de morte no curso de ações de estado Conforme já realçado, o espólio só sucede processualmente o falecido nas ações que cuidarem de questão de interesse comunitário do ecossistema sucessório. Assim, a título ilustrativo, ações meramente patrimoniais de que o falecido era parte, como eventual ação de indenização ou uma reclamação trabalhista, admitem a sucessão pelo espólio. Cuida-se aí de tutela do interesse comunitário do ecossistema sucessório em resguardar os itens do monte-mor. Já em se tratando de ações de estado, como uma ação de investigação de paternidade, o espólio não detém legitimidade ad causam para suceder processualmente o falecido. Isso, porque esses feitos veiculam interesses meramente pessoais dos herdeiros que são familiares do falecido, e não o interesse comunitário do ecossistema sucessório. Esses interesses individuais dos familiares do falecido são de ordem patrimonial e existencial. O interesse patrimonial é pelo fato de que o êxito na ação de estado poderá vir a aumentar o número de herdeiros ou a reduzir o monte-mor partilhável diante da existência de uma meação. Nessas hipóteses, o quinhão devido aos demais herdeiros quando da partilha será reduzido, o que denuncia a presença de um interesse patrimonial pessoal dos herdeiros na ação de estado. A entrada de novos herdeiros no ecossistema sucessório pode reduzir a fatia patrimonial devida aos demais herdeiros. O interesse existencial dos familiares diante das ações de estado que existiam contra o falecido relaciona-se com os direitos da personalidade deles. O sucesso na ação de estado poderá alterar a árvore familiar do falecido, com o ingresso de um novo membro da família. Essa mera alteração da composição da árvore genealógica já gera, por si só, impactos existenciais nos demais familiares herdeiros, que estarão vinculados existencialmente com o novo membro. Cuida-se de direito da personalidade dos familiares herdeiros. Igualmente, o bom termo da ação de estado poderá impactar direitos da personalidade do próprio falecido, com possibilidade, inclusive, de abalar negativamente aspectos existenciais dele, ao menos sob a ótica dos demais familiares. Pense, por exemplo, que, com a procedência da ação de investigação de paternidade, fique desmascarada a vida dupla que o autor da herança levava, ostentando, de um lado, a aparência de uma pessoa extremamente leal à sua esposa e vivendo, à furtiva, relacionamentos extraconjugais. Basta imaginar como a viúva se sentiria ao tomar ciência disso. O abalo reputacional aí poderia ir além do âmbito familiar e chegar a uma mancha reputacional social. Imagine, por exemplo, que o falecido era um importante político que edificara sua carreira dentro de uma agenda de defesa intransigente da família e da lealdade matrimonial. O sucesso da ação de investigação de paternidade poderia demolir, de vez, a reputação moralista do autor da herança. O espólio não desfruta de legitimidade ad causam para agir como advogado pessoal de cada herdeiro. Não é um leão de chácara a ser manipulado por herdeiros para combater a eventual entrada de novos integrantes do ecossistema sucessório ou para tutelar direitos da personalidade desses herdeiros.3 Em igual diapasão, retine a jurisprudência do STJ, que é assente no sentido de que os herdeiros familiares do falecido são partes legítimas para ações de investigação de paternidade post mortem, e não o espólio. Confira-se4: "3- Por se tratar de ação de estado e de natureza pessoal, a ação de investigação de paternidade em que o pretenso genitor biológico é pré-morto deve ser ajuizada somente em face dos herdeiros do falecido e não de seu espólio (...)." (STJ, REsp 1.667.576/PR, 3ª Turma, rel. ministra Nancy Andrighi, DJe 13/9/19) "1. A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que é essencial, sob pena de nulidade, a integração à lide, nas ações de investigação de paternidade, como litisconsorte necessário, do pai registral, ou de seus herdeiros, caso já falecido." (STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1.734.515/RN, 4ª Turma, rel. min. Raul Araújo, DJe 19/2/19) Idêntico raciocínio deve ser estendido às ações de reconhecimento ou dissolução de união estável existentes contra o falecido. A sucessão processual tem de recair sobre os herdeiros familiares, e não sobre o espólio, porque inexiste aí interesse comunitário do ecossistema sucessório. 5. Quais familiares devem suceder processualmente o falecido nas ações de estado? Os herdeiros familiares são as partes legítimas para suceder processualmente o falecido nas ações de estado. Indaga-se, porém: Que familiares devem ser considerados para tanto? Entendemos que devem ser levados em conta como parte legítima aqueles que, dentro da ordem de vocação sucessória de que trata o art. 1.829 do Código Civil, sejam os contemplados prioritariamente. Se o falecido tiver deixado viúvo e descendentes, eles serão os sucessores processuais do falecido nas ações de estado. Já na hipótese de o falecido não ter deixado filhos nem cônjuge como herdeiros, a legitimidade ad causam para as ações de estado deverá recair sobre os herdeiros colaterais prioritários na ordem de vocação hereditária. 6. Operacionalização processual para a convocação dos sucessores processuais nas ações de estado Do ponto de vista processual, quais são as particularidades processuais na sucessão processual do falecido nas ações de estado? No caso de morte do autor da ação, é dever dos seus próprios familiares pleitearem a sucessão processual, sob pena de eventual extinção do processo (arts. 110 e 313, § 2º, II, CPC5). Já no caso de morte da parte ré em uma ação de estado, o autor da ação deverá buscar identificar esses herdeiros familiares mediante busca de informações em eventual processo de inventário que venha a ser aberto. Lembre-se de que os herdeiros têm o dever jurídico de abrir o inventário no prazo de 2 meses (art. 611 do CPC). Em não havendo a abertura do inventário e não dispondo o autor da ação de documentos comprobatórios de quem são os herdeiros da falecida parte ré, entendemos viável a realização de citação por edital dos possíveis herdeiros por estes estarem em local desconhecido ao autor (art. 256, I, do CPC). Afinal de contas, a não abertura do inventário no prazo legal é um ilícito praticado pelos familiares, e uma das consequências de sua violação é estar sujeito a citações por edital em casos como o citado. O que não se pode admitir, jamais, é que o espólio seja considerado o sucessor processual em ações de estado, como a de reconhecimento ou dissolução de sociedade de união estável, tendo em vista que aí há a predominância de interesse individual e pessoal de cada herdeiro familiar. Não se ignora a existência de um precedente isolado de apenas uma das turmas do STJ admitindo que, no caso de haver apenas herdeiros colaterais, o espólio figurasse no polo passivo de uma ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato/união estável post mortem (STJ, REsp 1.759.652/SP, 3ª Turma, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 25/9/20). Esse julgado, todavia, nos parece muito pontual e isolado, inapto a contrapor-se à tese ora defendida. Em primeiro lugar, o caso concreto envolvia uma decisão do juiz de primeiro grau que determinou a emenda à inicial para a inclusão de parentes colaterais da falecida como litisconsortes necessários do espólio em uma ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem. Não se cuidava, portanto, de discussão de sucessão processual pela morte da parte ré em uma ação como essa. Em segundo lugar, o referido precedente é isolado, de apenas uma das turmas do STJ, refletindo uma posição que, a nosso sentir, nos parece precária e que não resistiria a novas reflexões da mesma turma do STJ. Em terceiro lugar, parece-nos que dificilmente o mesmo entendimento seria adotado pela outra Turma do STJ que julga questões de Direito Privado, pois é totalmente inadequado que a estrutura do espólio seja utilizada para o patrocínio de interesses meramente pessoais de herdeiros familiares, em vez de estar a serviço apenas de interesses comunitários do ecossistema sucessório. __________ 1 Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º. Disponível aqui. Art. 313. Suspende-se o processo: (...) (...) § 2º Não ajuizada ação de habilitação, ao tomar conhecimento da morte, o juiz determinará a suspensão do processo e observará o seguinte: I - falecido o réu, ordenará a intimação do autor para que promova a citação do respectivo espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, no prazo que designar, de no mínimo 2 (dois) e no máximo 6 (seis) meses; II - falecido o autor e sendo transmissível o direito em litígio, determinará a intimação de seu espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, pelos meios de divulgação que reputar mais adequados, para que manifestem interesse na sucessão processual e promovam a respectiva habilitação no prazo designado, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito. 2 Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio. 3 Sobre o tema, Conrado Paulino Rosa e o saudoso Cristiano Chaves de Farias dão igual lição em sua obra "Ações de Família na Prática", in verbis: "Por óbvio, somente se faz necessária a sucessão processual quando o óbito ocorre durante o andamento do procedimento. Em se tratando de propositura de ação que verse sobre interesse patrimonial (indenizatória, por exemplo), depois da morte do réu, a legitimidade é do seu espólio, devendo ser representado pelo inventariante, se já houver, ou, não havendo ainda, pelo administrador provisório. Se, contudo, a demanda disser respeito a interesses existenciais (como uma investigação de paternidade post mortem ou uma adoção póstuma), a legitimidade dos herdeiros, e não do espólio." 4 Além dos julgados supracitados, há estes: STJ, REsp 1466423/GO, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 02/03/2016; REsp: 1028503/MG, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 09/11/2010; REsp: 331842/AL, 3ª Turma, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 10/06/2002; REsp 120622/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 25/02/1998. 5 Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º. Disponível aqui. Art. 313. Suspende-se o processo: (...) (...) § 2º Não ajuizada ação de habilitação, ao tomar conhecimento da morte, o juiz determinará a suspensão do processo e observará o seguinte: I - falecido o réu, ordenará a intimação do autor para que promova a citação do respectivo espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, no prazo que designar, de no mínimo 2 (dois) e no máximo 6 (seis) meses; II - falecido o autor e sendo transmissível o direito em litígio, determinará a intimação de seu espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, pelos meios de divulgação que reputar mais adequados, para que manifestem interesse na sucessão processual e promovam a respectiva habilitação no prazo designado, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito.
A coluna Civil em Pauta, coordenada por mim e pelo professor Flávio Tartuce, estreia hoje. Seu objetivo é trazer conteúdos teóricos e práticos que sejam úteis à comunidade jurídica e aos cidadãos em matéria de Direito Civil. Não poderíamos inaugurar a Coluna sem tentar colaborar com os nossos irmãos do Rio Grande do Sul no enfrentamento de desafios jurídicos impostos às suas relações privadas. É que o Brasil inteiro segue estarrecido com a catástrofe natural que, ainda hoje, assola mais de quatrocentos e quarenta municípios do Rio Grande do Sul1. Inundações, causadas pelas chuvas e por outros fatores naturais, submergiram grande parte do Estado gaúcho, espalhando mortandade, destruições e devastação2. Inúmeras famílias perderam suas casas e estão atualmente em abrigos improvisados. A destruição alcançou plantações, animais, construções, veículos e outros. No momento em que é escrito este artigo, não há ainda estimativa cronológica para recuperação. O Aeroporto Salgado Filho, por exemplo, projeta que só conseguirá reabrir para funcionamento em setembro3. As águas seguem afogando diversos municípios gaúchos. O Governador do Rio Grande do Sul decretou estado de calamidade pública em todo o território desse gigante Estado da Federação. Trata-se do decreto estadual  57.596, de 1º de maio de 2024, que dispõe: Art. 1º Fica declarado estado de calamidade pública no território do Estado do Rio Grande do Sul, atingido pelos eventos climáticos de Chuvas Intensas, COBRADE 1.3.2.1.4, ocorridos no período de 24 de abril a 1º de maio de 2024. § 1º Os órgãos e as entidades da administração pública estadual, observadas suas competências, prestarão apoio à população nas áreas afetadas em decorrência dos eventos de que trata este Decreto, em articulação com a Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil. § 2º A situação de anormalidade declarada em âmbito estadual por este Decreto, não obsta o início ou o prosseguimento da declaração em âmbito local pelos Municípios, que poderão avaliadas e homologadas pelo Estado. Art. 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação e vigorará pelo prazo de 180 dias.  Em atos posteriores, o Governador do Rio Grande do Sul ratificou a declaração de calamidade pública (decretos estaduais 57.600, de 4 de maio de 2024; e 57.614, de 13 de maio de 2024). Esse cenário de catástrofe causará inúmeros problemas jurídicos nas relações privadas. Exporemos algumas diretrizes para servir de orientação aos nossos irmãos gaúchos na resolução desses problemas. Desde logo, lembre-se que esses impactos aproximam-se aos que perturbaram as relações privadas no ano de 2020 com a pandemia da Covid-19. À época, o risco praticamente letal de contaminação acarretou a paralisação de todo o País por força de medidas restritivas de circulação de pessoas. Diante da semelhança, deixamos uma diretriz jurídica para as relações jurídicas abaladas pela catástrofe natural gaúcha: a aplicação, por analogia, da Lei do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), a lei 14.010/20204. De fato, a analogia é uma forma de preenchimento de lacuna legal (art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Igualmente, são aplicáveis, mutatis mutandi, todas as ideias desenvolvidas nos diversos artigos jurídicos que foram publicados durante a pandemia da Covid-19, notadamente na Coluna Migalhas Contratuais (coordenada pelos Professores Angélica Carlini, Eroulths Cortiano Jr., Flávio Tartuce, José Fernando Simão, Marília Pedroso Xavier e Maurício Bunazar, integrantes da diretoria do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont)5. É preciso, porém, ter cautela: cada caso concreto tem de ser analisado de modo individualizado. Não se pode generalizar de modo indiscriminado. É preciso verificar em que medida a catástrofe gaúcha impactou efetivamente cada situação particular. Em alguns casos concretos, a catástrofe não gerou qualquer impacto efetivo e significativo. Pense, por exemplo, em um gaúcho, com farto patrimônio em saldo bancário e que more, de aluguel, em Porto Alegre. Suponha que ele tivesse o dever de pagar um boleto bancário de R$ 5.000,00 pela compra de uma geladeira. A inundação de sua casa, em nada, atingiu sua capacidade financeira para pagar esse boleto. No máximo, por conta da indisponibilidade dos serviços de internet e dos serviços bancários, seria possível justificar o seu atraso no pagamento, de modo a afastar a incidência de encargos moratórios. Afinal de contas, a mora do devedor pressupõe um atraso culposo no pagamento (arts. 394 e 396 do Código Civil - CC6). Diante disso, passamos a expor algumas reflexões específicas. Em primeiro lugar, entendemos que, em regra, por aplicação analógica do art. 3º da Lei do RJET7, os prazos prescricionais e decadenciais relativos a situações jurídicas envolvendo moradores das cidades atingidas pela catástrofe devem ser considerados suspensos desde 1º de maio de 2024 (data do supracitado Decreto estadual nº 57.596) até a data em que vier a cessar o estado de calamidade pública (conforme pertinente decreto estadual). Durante esse período, não é razoável punir o morador dos municípios atingidos pela catástrofe com a prescrição ou com a decadência, por absoluta falta de razoabilidade em exigir dele o exercício de seu direito. Se não é humanamente impossível, certamente será extremamente oneroso exigir que esse indivíduo que está lutando para sobreviver em meio à tragédia tenha de adotar condutas de cobrança de crédito ou de exercício de direitos. Acresça-se que o próprio Poder Judiciário gaúcho suspendeu prazos processuais diante do fechamento de diversas unidades jurisdicionais que estão submersas pelas águas da chuva e do rio Guaíba8. Essa regra, porém, pode ser excepcionada, se, no caso concreto, for verificado que o exercício do direito não se tornou demasiadamente oneroso nem inviável. Em segundo lugar, por incidência analógica do art. 10 da Lei do RJET9, também se devem considerar - em regra - suspensos os prazos de usucapião no mesmo interstício temporal. Há, porém, de admitir-se exceção a essa regra a depender do caso concreto, conforme já expusemos. Em terceiro lugar, por analogia aos arts. 15 e 16 da Lei do RJET10, não se deve - em regra - admitir prisão civil por inadimplemento de alimentos familiares nem considerar em marcha o prazo de dois meses previsto no art. 611 do Código de Processo Civil para a abertura de processos de inventários, ao menos enquanto perdurar o estado de calamidade pública na forma dos atos normativos do Governador do Estado do Rio Grande do Sul. Em quarto lugar, em matéria contratual, chamamos a atenção de todas as partes para a necessidade de agir com bom senso, sempre buscando um acordo razoável e distribuindo, entre si, os transtornos causados pela catástrofe natural. Afinal de contas, a postura colaboradora das partes de um contrato decorre da boa-fé objetiva. Todavia, na hipótese de não haver acordo, alguns institutos e regras jurídicas devem ser colocados à mesa para reflexão. De um lado, a impossibilidade fortuita superveniente da prestação deve ser levada em conta para permitir a resolução de determinados contratos sem dever de indenização, por força dos arts. 234, 235, 248, 250, 253 e 256 do CC11. Nesse ponto, é forçoso considerar a existência de regras especiais baseadas em similar lógica de justiça. Em locação, por exemplo, o perecimento fortuito da coisa ou a impossibilidade fortuita (ainda que temporária) de utilização da coisa pelo locatário deve ser considerada como uma justa causa para a resolução contratual ou, até mesmo, para a redução do aluguel, sem dever de indenização, conforme art. 567 do CC12. Pense, por exemplo, em pessoas que alugavam um apartamento que, atualmente, está totalmente submerso, sem qualquer viabilidade de utilização plena. De outro lado, a descaracterização da mora por impossibilidade superveniente de o devedor cumprir a obrigação é também ferramenta importante para, em vários casos concretos, afastar a incidência de encargos moratórios e outras consequências decorrentes da mora (arts. 396 e 399 do CC13). Por fim, a superveniência da catástrofe gaúcha pode ter abalado, no caso concreto, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e pode ter frustrado as legítimas expectativas das partes. Certamente, se as partes tivessem previsto que a tragédia sobreviria no curso do contrato, elas certamente teriam colocado cláusulas contratuais específicas. À falta de uma cláusula contratual expressa, o próprio ordenamento jurídico prevê regras supletivas, fruto da vontade presumível do homo medius, tudo conforme uma das lógicas de justiça que subjaz o Código Civil: o princípio da vontade presumível14. Desse modo, os juristas deverão avaliar cada caso concreto para verificar o cabimento da resolução, da revisão contratual ou do emprego de algum meio de defesa de qualquer das partes com base em alguma das seguintes figuras: a) teoria da imprevisão (arts. 317 e 478 do CC); b) doutrina da frustração do fim do contrato15; c) teoria da quebra da base objetiva do contrato, aplicável em relação de consumo, conforme art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor16; d) quebra antecipada do contrato17; e) exceção de inseguridade (art. 477 do CC18); f) exceção de contrato não cumprido (art. 476 do CC19). A propósito do tema, recomendamos aprofundado artigo do professor Flávio Tartuce tratando dos impactos da pandemia da Covid-19 nos contratos20. Esperamos que o bom senso, a boa-fé e a solidariedade presidam todas as relações privadas que foram impactadas pela catástrofe natural gaúcha, de modo que os sujeitos consigam resolver os problemas sem a necessidade de litígios judiciais ou arbitrais. O Direito, porém, disponibiliza esses diversos institutos para acudir situações emergenciais e de calamidade como essas. Trata-se de institutos testados e aprimorados em meio a diversas crises e catástrofes que já acometeram a humanidade ao longo da história. Como costuma dizer o professor Flávio Tartuce, nós, os civilistas, estamos entre os juristas mais antigos do Planeta, com milênios de desenvolvimento de institutos jurídicos que conseguem dar respostas aos problemas sociais atuais. __________ 1 Disponível aqui. 2 Em 12 de maio de 2024, havia a notícia de 145 mortes (Disponível aqui). 3 Disponivel aqui. 4 Em conjunto com o professor Pablo Stolze Gagliano, tivemos a oportunidade de comentar integralmente a Lei do RJET: (1) GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Comentários à Lei da Pandemia (lei 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise detalhada das questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. In: Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 25, n. 6190, 12 jun. 2020. Disponível aqui; (2) GAGLIANO, Pablo Stolze ; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Continuando os comentários à Lei da Pandemia (lei 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise dos novos artigos. Revista Jus NavigandiTeresina, ano 25, n. 6279, 9 set. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 15 mai. 2024. 5 Destacamos os artigos publicados a partir de 23 de março de 2020. Disponível aqui. 6 Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer. Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora. 7 Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. § 1º Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional. § 2º Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). 8 Sobre o tema: TJ-RS suspende prazos processuais e só analisa medidas urgentes. 9 Art. 10. Suspendem-se os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. 10 Art. 15. Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações. Art. 16. O prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020. Parágrafo único. O prazo de 12 (doze) meses do art. 611 do Código de Processo Civil , para que seja ultimado o processo de inventário e de partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. 11 Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos. Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu. Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos. Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar. Art. 253. Se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornada inexeqüível, subsistirá o débito quanto à outra. Art. 256. Se todas as prestações se tornarem impossíveis sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obrigação. 12 Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava. 13 Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora. Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada. 14 Sobre o princípio da vontade presumível, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O Princípio da Vontade Presumível no Direito Civil: fundamento e desdobramentos práticos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023 (Texto para Discussão nº 314). Disponível aqui. Publicado em 18 de janeiro de 2023. 15 José Fernando Simão faz aprofundada abordagem da necessidade de pensar na base do contrato, suscitando ideias que também atraem reflexões não apenas acerca da teoria da quebra da base do contrato, mas também da frustração do fim do contrato (SIMÃO, José Fernando Simão."O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Disponível aqui. Publicado em 3 de abril de 2020). Lembramos que a doutrina da frustração do fim do contrato foi desenvolvida na Inglaterra, ao passo que a teoria da quebra da base do contarto, na Alemanha. Ambas, porém, descendem da cláusula rebus sic standibus, conceito oriundo do direito romano, conforme lembra Reinhard Zimmermann (ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017). 16 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. 17 Sobre o tema, reportamo-nos a este artigo: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contrato e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Publicado em 17 de março de 2020. 18 Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la. 19 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. 20 TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Disponível aqui. Publicado em 27 de março de 2020.