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Civil em pauta

Questões práticas cotidianas do Direito Civil, com precedentes recentes, teorias novas e teses úteis.

Flávio Tartuce e Carlos Eduardo Elias de Oliveira
1. Introdução Suponha uma ação de reconhecimento de união estável. Se o réu vem a falecer no curso da ação, indaga-se: Quem lhe deverá suceder, o espólio ou seus herdeiros? A resposta depende do rastreamento da relação de direito material, dada pelo Direito Civil, visto que a legitimidade processual ad causam é um reflexo. 2. Espólio não é necessariamente o sucessor processual no caso de morte da parte Em regra, o espólio sucede a parte que falece no curso do processo (arts. 110 e 313, § 2º, do CPC1). Isso, porque o espólio é o sujeito de direito despersonalizado que aglomera, em si, todos os direitos e deveres do falecido enquanto não sobrevier a partilha de bens (art. 1.791, parágrafo único, do Código Civil2). Há, porém, exceções. Há casos em, com a morte de uma parte, não necessariamente o espólio será o seu sucessor processual. Eventualmente, o sucessor processual tem de ser seus herdeiros pessoalmente ou até mesmo um terceiro que venha a ter-se tornado o titular do direito sub judice, e não o espólio. Isso, porque a legitimidade processual ad causam tem de espelhar os polos da relação de Direito Material envolvida. O que está em discussão após a morte da parte no curso do processo é saber quem passou a ter - na relação jurídica de Direito Material - a titularidade da res in judicium deducta. O próprio art. 110 do CPC dá respaldo para tal interpretação, ao mencionar que a sucessão processual pode dar-se pelos sucessores do falecido, e não apenas pelo espólio. Esses sucessores devem ser entendidos como as pessoas que passam a integrar a relação de direito material com o falecimento da parte. Em termos didáticos, pode-se dizer que a definição do sucessor processual no caso de morte da parte no curso do processo coincide com a identificação de quem teria legitimidade ad causam caso o feito supostamente tivesse sido ajuizado post mortem. 3. Critério para identificar legitimidade ad causam do espólio: O interesse comunitário do ecossistema sucessório O critério adequado para identificar a legitimidade ad causam do espólio para suceder processualmente o falecido em ações judiciais é a presença do que chamamos de interesse comunitário do ecossistema sucessório. O espólio não tem legitimidade ad causam quando o feito envolver interesse meramente individual de alguns herdeiros. Explica-se. O ecossistema sucessório é composto por todos os envolvidos na sucessão mortis causa, como credores, herdeiros, testamenteiro etc. Para a tutela do interesse comunitário deles, o ordenamento jurídico criou o espólio, um sujeito de direito despersonalizado incumbido de velar, com imparcialidade, por esse interesse comunitário. A estrutura do espólio é desenhada para esse fim. Por isso, o custeio das atividades do espólio é feito com dinheiro do próprio acervo hereditário, como gastos com honorários de advogados e peritos, custas judiciais, eventual pro labore devido ao inventariante etc. Não pode essa estrutura comunitária estar a serviço de interesse meramente pessoal de qualquer dos herdeiros. A energia do inventariante, o patrimônio do monte-mor e os demais elementos da estrutura do espólio não são para a tutela de interesses individuais dos herdeiros, e sim do interesse comunitário de todos os integrantes do ecossistema sucessório. O espólio atua com imparcialidade entre os integrantes do ecossistema sucessório, sem patrocinar o interesse meramente pessoal de nenhum deles: O espólio não é advogado pessoal de nenhum herdeiro. No ponto, de forma bem gráfica, basta lembrar que o inventariante não necessariamente será um herdeiro. Pode ser, por exemplo, um credor ou até mesmo um terceiro nomeado como inventariante dativo (arts. 75, § 1º, e 617 do CPC). Isso demonstra que o espólio tem razão de ser fundada na tutela imparcial do interesse comunitário do ecossistema sucessório. Por isso, não cabe ao espólio interferir nos eventuais litígios entre os herdeiros nem entre estes e outros potenciais herdeiros ou meeiros. Conflitos como esses restringem-se ao campo estritamente pessoal de cada herdeiro; não versam sobre o interesse comunitário do ecossistema sucessório. Aliás, soaria teratológico que os recursos e a energia do espólio fossem despendidos para proteger um grupo de herdeiros que sejam familiares do falecido e que não queiram reconhecer um terceiro como familiar. 4. Sucessão processual no caso de morte no curso de ações de estado Conforme já realçado, o espólio só sucede processualmente o falecido nas ações que cuidarem de questão de interesse comunitário do ecossistema sucessório. Assim, a título ilustrativo, ações meramente patrimoniais de que o falecido era parte, como eventual ação de indenização ou uma reclamação trabalhista, admitem a sucessão pelo espólio. Cuida-se aí de tutela do interesse comunitário do ecossistema sucessório em resguardar os itens do monte-mor. Já em se tratando de ações de estado, como uma ação de investigação de paternidade, o espólio não detém legitimidade ad causam para suceder processualmente o falecido. Isso, porque esses feitos veiculam interesses meramente pessoais dos herdeiros que são familiares do falecido, e não o interesse comunitário do ecossistema sucessório. Esses interesses individuais dos familiares do falecido são de ordem patrimonial e existencial. O interesse patrimonial é pelo fato de que o êxito na ação de estado poderá vir a aumentar o número de herdeiros ou a reduzir o monte-mor partilhável diante da existência de uma meação. Nessas hipóteses, o quinhão devido aos demais herdeiros quando da partilha será reduzido, o que denuncia a presença de um interesse patrimonial pessoal dos herdeiros na ação de estado. A entrada de novos herdeiros no ecossistema sucessório pode reduzir a fatia patrimonial devida aos demais herdeiros. O interesse existencial dos familiares diante das ações de estado que existiam contra o falecido relaciona-se com os direitos da personalidade deles. O sucesso na ação de estado poderá alterar a árvore familiar do falecido, com o ingresso de um novo membro da família. Essa mera alteração da composição da árvore genealógica já gera, por si só, impactos existenciais nos demais familiares herdeiros, que estarão vinculados existencialmente com o novo membro. Cuida-se de direito da personalidade dos familiares herdeiros. Igualmente, o bom termo da ação de estado poderá impactar direitos da personalidade do próprio falecido, com possibilidade, inclusive, de abalar negativamente aspectos existenciais dele, ao menos sob a ótica dos demais familiares. Pense, por exemplo, que, com a procedência da ação de investigação de paternidade, fique desmascarada a vida dupla que o autor da herança levava, ostentando, de um lado, a aparência de uma pessoa extremamente leal à sua esposa e vivendo, à furtiva, relacionamentos extraconjugais. Basta imaginar como a viúva se sentiria ao tomar ciência disso. O abalo reputacional aí poderia ir além do âmbito familiar e chegar a uma mancha reputacional social. Imagine, por exemplo, que o falecido era um importante político que edificara sua carreira dentro de uma agenda de defesa intransigente da família e da lealdade matrimonial. O sucesso da ação de investigação de paternidade poderia demolir, de vez, a reputação moralista do autor da herança. O espólio não desfruta de legitimidade ad causam para agir como advogado pessoal de cada herdeiro. Não é um leão de chácara a ser manipulado por herdeiros para combater a eventual entrada de novos integrantes do ecossistema sucessório ou para tutelar direitos da personalidade desses herdeiros.3 Em igual diapasão, retine a jurisprudência do STJ, que é assente no sentido de que os herdeiros familiares do falecido são partes legítimas para ações de investigação de paternidade post mortem, e não o espólio. Confira-se4: "3- Por se tratar de ação de estado e de natureza pessoal, a ação de investigação de paternidade em que o pretenso genitor biológico é pré-morto deve ser ajuizada somente em face dos herdeiros do falecido e não de seu espólio (...)." (STJ, REsp 1.667.576/PR, 3ª Turma, rel. ministra Nancy Andrighi, DJe 13/9/19) "1. A jurisprudência desta Corte é pacífica no sentido de que é essencial, sob pena de nulidade, a integração à lide, nas ações de investigação de paternidade, como litisconsorte necessário, do pai registral, ou de seus herdeiros, caso já falecido." (STJ, AgInt nos EDcl no REsp 1.734.515/RN, 4ª Turma, rel. min. Raul Araújo, DJe 19/2/19) Idêntico raciocínio deve ser estendido às ações de reconhecimento ou dissolução de união estável existentes contra o falecido. A sucessão processual tem de recair sobre os herdeiros familiares, e não sobre o espólio, porque inexiste aí interesse comunitário do ecossistema sucessório. 5. Quais familiares devem suceder processualmente o falecido nas ações de estado? Os herdeiros familiares são as partes legítimas para suceder processualmente o falecido nas ações de estado. Indaga-se, porém: Que familiares devem ser considerados para tanto? Entendemos que devem ser levados em conta como parte legítima aqueles que, dentro da ordem de vocação sucessória de que trata o art. 1.829 do Código Civil, sejam os contemplados prioritariamente. Se o falecido tiver deixado viúvo e descendentes, eles serão os sucessores processuais do falecido nas ações de estado. Já na hipótese de o falecido não ter deixado filhos nem cônjuge como herdeiros, a legitimidade ad causam para as ações de estado deverá recair sobre os herdeiros colaterais prioritários na ordem de vocação hereditária. 6. Operacionalização processual para a convocação dos sucessores processuais nas ações de estado Do ponto de vista processual, quais são as particularidades processuais na sucessão processual do falecido nas ações de estado? No caso de morte do autor da ação, é dever dos seus próprios familiares pleitearem a sucessão processual, sob pena de eventual extinção do processo (arts. 110 e 313, § 2º, II, CPC5). Já no caso de morte da parte ré em uma ação de estado, o autor da ação deverá buscar identificar esses herdeiros familiares mediante busca de informações em eventual processo de inventário que venha a ser aberto. Lembre-se de que os herdeiros têm o dever jurídico de abrir o inventário no prazo de 2 meses (art. 611 do CPC). Em não havendo a abertura do inventário e não dispondo o autor da ação de documentos comprobatórios de quem são os herdeiros da falecida parte ré, entendemos viável a realização de citação por edital dos possíveis herdeiros por estes estarem em local desconhecido ao autor (art. 256, I, do CPC). Afinal de contas, a não abertura do inventário no prazo legal é um ilícito praticado pelos familiares, e uma das consequências de sua violação é estar sujeito a citações por edital em casos como o citado. O que não se pode admitir, jamais, é que o espólio seja considerado o sucessor processual em ações de estado, como a de reconhecimento ou dissolução de sociedade de união estável, tendo em vista que aí há a predominância de interesse individual e pessoal de cada herdeiro familiar. Não se ignora a existência de um precedente isolado de apenas uma das turmas do STJ admitindo que, no caso de haver apenas herdeiros colaterais, o espólio figurasse no polo passivo de uma ação de reconhecimento e dissolução de sociedade de fato/união estável post mortem (STJ, REsp 1.759.652/SP, 3ª Turma, rel. min. Paulo de Tarso Sanseverino, DJe de 25/9/20). Esse julgado, todavia, nos parece muito pontual e isolado, inapto a contrapor-se à tese ora defendida. Em primeiro lugar, o caso concreto envolvia uma decisão do juiz de primeiro grau que determinou a emenda à inicial para a inclusão de parentes colaterais da falecida como litisconsortes necessários do espólio em uma ação de reconhecimento e dissolução de união estável post mortem. Não se cuidava, portanto, de discussão de sucessão processual pela morte da parte ré em uma ação como essa. Em segundo lugar, o referido precedente é isolado, de apenas uma das turmas do STJ, refletindo uma posição que, a nosso sentir, nos parece precária e que não resistiria a novas reflexões da mesma turma do STJ. Em terceiro lugar, parece-nos que dificilmente o mesmo entendimento seria adotado pela outra Turma do STJ que julga questões de Direito Privado, pois é totalmente inadequado que a estrutura do espólio seja utilizada para o patrocínio de interesses meramente pessoais de herdeiros familiares, em vez de estar a serviço apenas de interesses comunitários do ecossistema sucessório. __________ 1 Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º. Disponível aqui. Art. 313. Suspende-se o processo: (...) (...) § 2º Não ajuizada ação de habilitação, ao tomar conhecimento da morte, o juiz determinará a suspensão do processo e observará o seguinte: I - falecido o réu, ordenará a intimação do autor para que promova a citação do respectivo espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, no prazo que designar, de no mínimo 2 (dois) e no máximo 6 (seis) meses; II - falecido o autor e sendo transmissível o direito em litígio, determinará a intimação de seu espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, pelos meios de divulgação que reputar mais adequados, para que manifestem interesse na sucessão processual e promovam a respectiva habilitação no prazo designado, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito. 2 Art. 1.791. A herança defere-se como um todo unitário, ainda que vários sejam os herdeiros. Parágrafo único. Até a partilha, o direito dos co-herdeiros, quanto à propriedade e posse da herança, será indivisível, e regular-se-á pelas normas relativas ao condomínio. 3 Sobre o tema, Conrado Paulino Rosa e o saudoso Cristiano Chaves de Farias dão igual lição em sua obra "Ações de Família na Prática", in verbis: "Por óbvio, somente se faz necessária a sucessão processual quando o óbito ocorre durante o andamento do procedimento. Em se tratando de propositura de ação que verse sobre interesse patrimonial (indenizatória, por exemplo), depois da morte do réu, a legitimidade é do seu espólio, devendo ser representado pelo inventariante, se já houver, ou, não havendo ainda, pelo administrador provisório. Se, contudo, a demanda disser respeito a interesses existenciais (como uma investigação de paternidade post mortem ou uma adoção póstuma), a legitimidade dos herdeiros, e não do espólio." 4 Além dos julgados supracitados, há estes: STJ, REsp 1466423/GO, 4ª Turma, Rel. Ministra Maria Isabel Gallotti, DJe 02/03/2016; REsp: 1028503/MG, 3ª Turma, Rel. Ministra Nancy Andrighi, DJe 09/11/2010; REsp: 331842/AL, 3ª Turma, Rel. Min. Antônio de Pádua Ribeiro, DJ 10/06/2002; REsp 120622/RS, 3ª Turma, Rel. Min. Waldemar Zveiter, DJ 25/02/1998. 5 Art. 110. Ocorrendo a morte de qualquer das partes, dar-se-á a sucessão pelo seu espólio ou pelos seus sucessores, observado o disposto no art. 313, §§ 1º e 2º. Disponível aqui. Art. 313. Suspende-se o processo: (...) (...) § 2º Não ajuizada ação de habilitação, ao tomar conhecimento da morte, o juiz determinará a suspensão do processo e observará o seguinte: I - falecido o réu, ordenará a intimação do autor para que promova a citação do respectivo espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, no prazo que designar, de no mínimo 2 (dois) e no máximo 6 (seis) meses; II - falecido o autor e sendo transmissível o direito em litígio, determinará a intimação de seu espólio, de quem for o sucessor ou, se for o caso, dos herdeiros, pelos meios de divulgação que reputar mais adequados, para que manifestem interesse na sucessão processual e promovam a respectiva habilitação no prazo designado, sob pena de extinção do processo sem resolução de mérito.
A coluna Civil em Pauta, coordenada por mim e pelo professor Flávio Tartuce, estreia hoje. Seu objetivo é trazer conteúdos teóricos e práticos que sejam úteis à comunidade jurídica e aos cidadãos em matéria de Direito Civil. Não poderíamos inaugurar a Coluna sem tentar colaborar com os nossos irmãos do Rio Grande do Sul no enfrentamento de desafios jurídicos impostos às suas relações privadas. É que o Brasil inteiro segue estarrecido com a catástrofe natural que, ainda hoje, assola mais de quatrocentos e quarenta municípios do Rio Grande do Sul1. Inundações, causadas pelas chuvas e por outros fatores naturais, submergiram grande parte do Estado gaúcho, espalhando mortandade, destruições e devastação2. Inúmeras famílias perderam suas casas e estão atualmente em abrigos improvisados. A destruição alcançou plantações, animais, construções, veículos e outros. No momento em que é escrito este artigo, não há ainda estimativa cronológica para recuperação. O Aeroporto Salgado Filho, por exemplo, projeta que só conseguirá reabrir para funcionamento em setembro3. As águas seguem afogando diversos municípios gaúchos. O Governador do Rio Grande do Sul decretou estado de calamidade pública em todo o território desse gigante Estado da Federação. Trata-se do decreto estadual  57.596, de 1º de maio de 2024, que dispõe: Art. 1º Fica declarado estado de calamidade pública no território do Estado do Rio Grande do Sul, atingido pelos eventos climáticos de Chuvas Intensas, COBRADE 1.3.2.1.4, ocorridos no período de 24 de abril a 1º de maio de 2024. § 1º Os órgãos e as entidades da administração pública estadual, observadas suas competências, prestarão apoio à população nas áreas afetadas em decorrência dos eventos de que trata este Decreto, em articulação com a Coordenadoria Estadual de Proteção e Defesa Civil. § 2º A situação de anormalidade declarada em âmbito estadual por este Decreto, não obsta o início ou o prosseguimento da declaração em âmbito local pelos Municípios, que poderão avaliadas e homologadas pelo Estado. Art. 2º Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação e vigorará pelo prazo de 180 dias.  Em atos posteriores, o Governador do Rio Grande do Sul ratificou a declaração de calamidade pública (decretos estaduais 57.600, de 4 de maio de 2024; e 57.614, de 13 de maio de 2024). Esse cenário de catástrofe causará inúmeros problemas jurídicos nas relações privadas. Exporemos algumas diretrizes para servir de orientação aos nossos irmãos gaúchos na resolução desses problemas. Desde logo, lembre-se que esses impactos aproximam-se aos que perturbaram as relações privadas no ano de 2020 com a pandemia da Covid-19. À época, o risco praticamente letal de contaminação acarretou a paralisação de todo o País por força de medidas restritivas de circulação de pessoas. Diante da semelhança, deixamos uma diretriz jurídica para as relações jurídicas abaladas pela catástrofe natural gaúcha: a aplicação, por analogia, da Lei do Regime Jurídico Emergencial e Transitório das relações jurídicas de Direito Privado (RJET), a lei 14.010/20204. De fato, a analogia é uma forma de preenchimento de lacuna legal (art. 4º da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). Igualmente, são aplicáveis, mutatis mutandi, todas as ideias desenvolvidas nos diversos artigos jurídicos que foram publicados durante a pandemia da Covid-19, notadamente na Coluna Migalhas Contratuais (coordenada pelos Professores Angélica Carlini, Eroulths Cortiano Jr., Flávio Tartuce, José Fernando Simão, Marília Pedroso Xavier e Maurício Bunazar, integrantes da diretoria do Instituto Brasileiro de Direito Contratual - IBDCont)5. É preciso, porém, ter cautela: cada caso concreto tem de ser analisado de modo individualizado. Não se pode generalizar de modo indiscriminado. É preciso verificar em que medida a catástrofe gaúcha impactou efetivamente cada situação particular. Em alguns casos concretos, a catástrofe não gerou qualquer impacto efetivo e significativo. Pense, por exemplo, em um gaúcho, com farto patrimônio em saldo bancário e que more, de aluguel, em Porto Alegre. Suponha que ele tivesse o dever de pagar um boleto bancário de R$ 5.000,00 pela compra de uma geladeira. A inundação de sua casa, em nada, atingiu sua capacidade financeira para pagar esse boleto. No máximo, por conta da indisponibilidade dos serviços de internet e dos serviços bancários, seria possível justificar o seu atraso no pagamento, de modo a afastar a incidência de encargos moratórios. Afinal de contas, a mora do devedor pressupõe um atraso culposo no pagamento (arts. 394 e 396 do Código Civil - CC6). Diante disso, passamos a expor algumas reflexões específicas. Em primeiro lugar, entendemos que, em regra, por aplicação analógica do art. 3º da Lei do RJET7, os prazos prescricionais e decadenciais relativos a situações jurídicas envolvendo moradores das cidades atingidas pela catástrofe devem ser considerados suspensos desde 1º de maio de 2024 (data do supracitado Decreto estadual nº 57.596) até a data em que vier a cessar o estado de calamidade pública (conforme pertinente decreto estadual). Durante esse período, não é razoável punir o morador dos municípios atingidos pela catástrofe com a prescrição ou com a decadência, por absoluta falta de razoabilidade em exigir dele o exercício de seu direito. Se não é humanamente impossível, certamente será extremamente oneroso exigir que esse indivíduo que está lutando para sobreviver em meio à tragédia tenha de adotar condutas de cobrança de crédito ou de exercício de direitos. Acresça-se que o próprio Poder Judiciário gaúcho suspendeu prazos processuais diante do fechamento de diversas unidades jurisdicionais que estão submersas pelas águas da chuva e do rio Guaíba8. Essa regra, porém, pode ser excepcionada, se, no caso concreto, for verificado que o exercício do direito não se tornou demasiadamente oneroso nem inviável. Em segundo lugar, por incidência analógica do art. 10 da Lei do RJET9, também se devem considerar - em regra - suspensos os prazos de usucapião no mesmo interstício temporal. Há, porém, de admitir-se exceção a essa regra a depender do caso concreto, conforme já expusemos. Em terceiro lugar, por analogia aos arts. 15 e 16 da Lei do RJET10, não se deve - em regra - admitir prisão civil por inadimplemento de alimentos familiares nem considerar em marcha o prazo de dois meses previsto no art. 611 do Código de Processo Civil para a abertura de processos de inventários, ao menos enquanto perdurar o estado de calamidade pública na forma dos atos normativos do Governador do Estado do Rio Grande do Sul. Em quarto lugar, em matéria contratual, chamamos a atenção de todas as partes para a necessidade de agir com bom senso, sempre buscando um acordo razoável e distribuindo, entre si, os transtornos causados pela catástrofe natural. Afinal de contas, a postura colaboradora das partes de um contrato decorre da boa-fé objetiva. Todavia, na hipótese de não haver acordo, alguns institutos e regras jurídicas devem ser colocados à mesa para reflexão. De um lado, a impossibilidade fortuita superveniente da prestação deve ser levada em conta para permitir a resolução de determinados contratos sem dever de indenização, por força dos arts. 234, 235, 248, 250, 253 e 256 do CC11. Nesse ponto, é forçoso considerar a existência de regras especiais baseadas em similar lógica de justiça. Em locação, por exemplo, o perecimento fortuito da coisa ou a impossibilidade fortuita (ainda que temporária) de utilização da coisa pelo locatário deve ser considerada como uma justa causa para a resolução contratual ou, até mesmo, para a redução do aluguel, sem dever de indenização, conforme art. 567 do CC12. Pense, por exemplo, em pessoas que alugavam um apartamento que, atualmente, está totalmente submerso, sem qualquer viabilidade de utilização plena. De outro lado, a descaracterização da mora por impossibilidade superveniente de o devedor cumprir a obrigação é também ferramenta importante para, em vários casos concretos, afastar a incidência de encargos moratórios e outras consequências decorrentes da mora (arts. 396 e 399 do CC13). Por fim, a superveniência da catástrofe gaúcha pode ter abalado, no caso concreto, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato e pode ter frustrado as legítimas expectativas das partes. Certamente, se as partes tivessem previsto que a tragédia sobreviria no curso do contrato, elas certamente teriam colocado cláusulas contratuais específicas. À falta de uma cláusula contratual expressa, o próprio ordenamento jurídico prevê regras supletivas, fruto da vontade presumível do homo medius, tudo conforme uma das lógicas de justiça que subjaz o Código Civil: o princípio da vontade presumível14. Desse modo, os juristas deverão avaliar cada caso concreto para verificar o cabimento da resolução, da revisão contratual ou do emprego de algum meio de defesa de qualquer das partes com base em alguma das seguintes figuras: a) teoria da imprevisão (arts. 317 e 478 do CC); b) doutrina da frustração do fim do contrato15; c) teoria da quebra da base objetiva do contrato, aplicável em relação de consumo, conforme art. 6º, V, do Código de Defesa do Consumidor16; d) quebra antecipada do contrato17; e) exceção de inseguridade (art. 477 do CC18); f) exceção de contrato não cumprido (art. 476 do CC19). A propósito do tema, recomendamos aprofundado artigo do professor Flávio Tartuce tratando dos impactos da pandemia da Covid-19 nos contratos20. Esperamos que o bom senso, a boa-fé e a solidariedade presidam todas as relações privadas que foram impactadas pela catástrofe natural gaúcha, de modo que os sujeitos consigam resolver os problemas sem a necessidade de litígios judiciais ou arbitrais. O Direito, porém, disponibiliza esses diversos institutos para acudir situações emergenciais e de calamidade como essas. Trata-se de institutos testados e aprimorados em meio a diversas crises e catástrofes que já acometeram a humanidade ao longo da história. Como costuma dizer o professor Flávio Tartuce, nós, os civilistas, estamos entre os juristas mais antigos do Planeta, com milênios de desenvolvimento de institutos jurídicos que conseguem dar respostas aos problemas sociais atuais. __________ 1 Disponível aqui. 2 Em 12 de maio de 2024, havia a notícia de 145 mortes (Disponível aqui). 3 Disponivel aqui. 4 Em conjunto com o professor Pablo Stolze Gagliano, tivemos a oportunidade de comentar integralmente a Lei do RJET: (1) GAGLIANO, Pablo Stolze; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Comentários à Lei da Pandemia (lei 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise detalhada das questões de Direito Civil e Direito Processual Civil. In: Revista Jus Navigandi, Teresina, ano 25, n. 6190, 12 jun. 2020. Disponível aqui; (2) GAGLIANO, Pablo Stolze ; OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias. Continuando os comentários à Lei da Pandemia (lei 14.010, de 10 de junho de 2020 - RJET).: Análise dos novos artigos. Revista Jus NavigandiTeresina, ano 25, n. 6279, 9 set. 2020. Disponível aqui. Acesso em: 15 mai. 2024. 5 Destacamos os artigos publicados a partir de 23 de março de 2020. Disponível aqui. 6 Art. 394. Considera-se em mora o devedor que não efetuar o pagamento e o credor que não quiser recebê-lo no tempo, lugar e forma que a lei ou a convenção estabelecer. Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora. 7 Art. 3º Os prazos prescricionais consideram-se impedidos ou suspensos, conforme o caso, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. § 1º Este artigo não se aplica enquanto perdurarem as hipóteses específicas de impedimento, suspensão e interrupção dos prazos prescricionais previstas no ordenamento jurídico nacional. § 2º Este artigo aplica-se à decadência, conforme ressalva prevista no art. 207 da lei 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil). 8 Sobre o tema: TJ-RS suspende prazos processuais e só analisa medidas urgentes. 9 Art. 10. Suspendem-se os prazos de aquisição para a propriedade imobiliária ou mobiliária, nas diversas espécies de usucapião, a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. 10 Art. 15. Até 30 de outubro de 2020, a prisão civil por dívida alimentícia, prevista no art. 528, § 3º e seguintes da lei 13.105, de 16 de março de 2015 (Código de Processo Civil), deverá ser cumprida exclusivamente sob a modalidade domiciliar, sem prejuízo da exigibilidade das respectivas obrigações. Art. 16. O prazo do art. 611 do Código de Processo Civil para sucessões abertas a partir de 1º de fevereiro de 2020 terá seu termo inicial dilatado para 30 de outubro de 2020. Parágrafo único. O prazo de 12 (doze) meses do art. 611 do Código de Processo Civil , para que seja ultimado o processo de inventário e de partilha, caso iniciado antes de 1º de fevereiro de 2020, ficará suspenso a partir da entrada em vigor desta Lei até 30 de outubro de 2020. 11 Art. 234. Se, no caso do artigo antecedente, a coisa se perder, sem culpa do devedor, antes da tradição, ou pendente a condição suspensiva, fica resolvida a obrigação para ambas as partes; se a perda resultar de culpa do devedor, responderá este pelo equivalente e mais perdas e danos. Art. 235. Deteriorada a coisa, não sendo o devedor culpado, poderá o credor resolver a obrigação, ou aceitar a coisa, abatido de seu preço o valor que perdeu. Art. 248. Se a prestação do fato tornar-se impossível sem culpa do devedor, resolver-se-á a obrigação; se por culpa dele, responderá por perdas e danos. Art. 250. Extingue-se a obrigação de não fazer, desde que, sem culpa do devedor, se lhe torne impossível abster-se do ato, que se obrigou a não praticar. Art. 253. Se uma das duas prestações não puder ser objeto de obrigação ou se tornada inexeqüível, subsistirá o débito quanto à outra. Art. 256. Se todas as prestações se tornarem impossíveis sem culpa do devedor, extinguir-se-á a obrigação. 12 Art. 567. Se, durante a locação, se deteriorar a coisa alugada, sem culpa do locatário, a este caberá pedir redução proporcional do aluguel, ou resolver o contrato, caso já não sirva a coisa para o fim a que se destinava. 13 Art. 396. Não havendo fato ou omissão imputável ao devedor, não incorre este em mora. Art. 399. O devedor em mora responde pela impossibilidade da prestação, embora essa impossibilidade resulte de caso fortuito ou de força maior, se estes ocorrerem durante o atraso; salvo se provar isenção de culpa, ou que o dano sobreviria ainda quando a obrigação fosse oportunamente desempenhada. 14 Sobre o princípio da vontade presumível, ver: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O Princípio da Vontade Presumível no Direito Civil: fundamento e desdobramentos práticos. Brasília: Núcleo de Estudos e Pesquisas/CONLEG/Senado, janeiro 2023 (Texto para Discussão nº 314). Disponível aqui. Publicado em 18 de janeiro de 2023. 15 José Fernando Simão faz aprofundada abordagem da necessidade de pensar na base do contrato, suscitando ideias que também atraem reflexões não apenas acerca da teoria da quebra da base do contrato, mas também da frustração do fim do contrato (SIMÃO, José Fernando Simão."O contrato nos tempos da covid-19". Esqueçam a força maior e pensem na base do negócio. Disponível aqui. Publicado em 3 de abril de 2020). Lembramos que a doutrina da frustração do fim do contrato foi desenvolvida na Inglaterra, ao passo que a teoria da quebra da base do contarto, na Alemanha. Ambas, porém, descendem da cláusula rebus sic standibus, conceito oriundo do direito romano, conforme lembra Reinhard Zimmermann (ZIMMERMANN, Reinhard. Derecho privado europeo. Buenos Aires/Argentina: Editora Astrea, 2017). 16 Art. 6º São direitos básicos do consumidor: (...) V - a modificação das cláusulas contratuais que estabeleçam prestações desproporcionais ou sua revisão em razão de fatos supervenientes que as tornem excessivamente onerosas. 17 Sobre o tema, reportamo-nos a este artigo: OLIVEIRA, Carlos Eduardo Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contrato e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Publicado em 17 de março de 2020. 18 Art. 477. Se, depois de concluído o contrato, sobrevier a uma das partes contratantes diminuição em seu patrimônio capaz de comprometer ou tornar duvidosa a prestação pela qual se obrigou, pode a outra recusar-se à prestação que lhe incumbe, até que aquela satisfaça a que lhe compete ou dê garantia bastante de satisfazê-la. 19 Art. 476. Nos contratos bilaterais, nenhum dos contratantes, antes de cumprida a sua obrigação, pode exigir o implemento da do outro. 20 TARTUCE, Flávio. O coronavírus e os contratos - Extinção, revisão e conservação - Boa-fé, bom senso e solidariedade. Disponível aqui. Publicado em 27 de março de 2020.