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Circus

Crônicas e reflexões.

Adauto Suannes
sexta-feira, 16 de março de 2007

Agressividade

Os jogadores cercam o juiz da partida de futebol e um deles lhe desfere uma cabeçada no rosto, pouco lhe importando que a cena esteja sendo registrada pela televisão, o que o fará ser suspenso por vários jogos. Jovens despejam tiros contra seus alvos, pouco lhes importando a vida alheia nem o risco que correm? Dá para explicar isso? Se nós nos dispusermos a estudar a origem e a motivação dos esportes, veremos que todos eles estão, invariavelmente, ligados a fatos naturais da vida do homem, sendo, quase sempre, resultado de uma sublimação daquela natural tendência para a prática de atos agressivos. Ou seja, a substituição de algo menos aceitável por algo mais aceitável socialmente. Seria cômodo ilustrar isso com o óbvio esporte do boxe, onde, sem subterfúgio algum, temos a briga entre dois homens. A correspondência entre a agressividade natural e a agressividade sublimada é evidente, até porque as normas de civilidade exigem que os punhos sejam cobertos por uma luva acolchoada, que se poderia indagar se são assim para proteger o rosto de quem apanha ou o punho de quem bate. Sintomaticamente, nos tempos pós-modernos as luvas estão sendo abolidas. O arremesso de lança, eufemicamente chamada dardo, considerado um dos jogos olímpicos, tanto quanto a disputa de arco e flecha e o tiro ao alvo não estão aí para nos indicar que o espírito do caçador, que se eternizou nas pinturas rupestres, continua dentro de cada um de nós? Que outra explicação se daria para esses enfadonhos esportes? E já que falamos em jogos olímpicos, qual a origem da mais clássica das provas olímpicas, a corrida da maratona? Segundo reza a lenda, após uma árdua batalha na região de Marathon, quando os persas acabaram desistindo de invadir a Grécia, no ano 490 a.C., o soldado Filípedes foi encarregado de avisar os seus compatriotas da vitória dos atenienses. Para isso, correu cerca de 36 quilômetros, para levar a boa-nova. Depois de fazer o feliz anúncio, morreu de exaustão. Aquela prova seria uma homenagem àquele herói grego e, portanto, recordação de uma batalha sangrenta. Lembrar para esquecer. Inúmeros esportes coletivos são disputados em torno de uma bola. E que é a bola senão a simbolização da cabeça do adversário? A vontade de chutar a cabeça do adversário é sublimada e, com isso, chuta-se uma representação dela. Mal comparando, é como se faz no dia de Judas. Verdade é que muitas vezes chuta-se também o adversário. Admira, pois, que os meios de comunicação reajam com tanta indignação diante da chamada violência nos estádios de futebol. Um pouco mais de atenção àquilo que ali é representado mostraria que não estamos diante de algo tão extraordinário assim. É campo de futebol como poderia ser campo de batalha. Campo cá e campo lá. Realmente, quando uma tribo pretendia partir para a guerra, a primeira preocupação era pintar o corpo com cores muito vivas, o que, evidentemente, também estava sendo providenciado pela tribo adversária. Para que isso? Para que, durante a refrega, o guerreiro não perdesse tempo tentando descobrir se a cabeça em que pretendia desferir o golpe de borduna pertencia a alguém de sua tribo ou da tribo adversária. Pela diferença de cor da tintura essa dúvida não teria mais razão de ser, ganhando-se tempo precioso e evitando-se o resultado do chamado fogo amigo. Eis a origem das cores das camisetas. Hoje, graças ao avanço da civilização - pelo menos é assim que se costuma referir à passagem da Humanidade dos estágios anteriores para o atual -, não mais temos tantas guerras de tribos (hipoteticamente falando, caro leitor, pois não sou tão ingênuo assim). Mas o homem conserva em si a natural agressividade, a necessidade de conquista, a força que o empurra para a luta. Que fazer com essa força? Sublimá-la. O que acontece nas disputas coletivas é precisamente isso: cada tribo veste um uniforme que distingue seus componentes dos componentes do outro time. Em lugar de lutar-se para conquistar a cabeça do adversário, ela já vem trazida pelo árbitro: a bola. E o juiz está ali para evitar que a agressividade se transforme em violência. E se isso não é bastante para convencer meu prezado leitor, responda: por que motivo, ao fim de um campeonato de futebol, o vencedor ganha uma taça? Trata-se, ainda uma vez, de uma cerimônia simbólica: originalmente, era na taça que os vencedores bebiam o sangue dos vencidos, para se apropriarem do espírito dos derrotados, da coragem por eles demonstrada na luta. Por vezes, em lugar de taça, o vencedor leva uma salva, uma bandeja de prata. Não se esqueça que foi numa bandeja de prata que a cabeça de João Batista foi ofertada por Herodes a Salomé. Aliás, na missa dos católicos se bebe sangue e se come carne, segundo nos diz o sacerdote. Se uma partida de futebol contém, como estamos convencidos de que contém, os mesmos ingredientes de uma guerra entre tribos, com as alterações introduzidas pela civilização, a agressividade que ali é descarregada é a mesma força natural, o empenho em vencer a morte, pois toda vitória é sempre, em síntese, um triunfo da vida contra a morte. Ora, enquanto a guerra está limitada pelas quatro linhas do campo de luta e sob o controle de um juiz, essa agressividade é geralmente contida pelos cartões amarelo e vermelho. Exagerarei se recordar que o de cor de sangue indica que o guerreiro está fora da luta, como se tivesse morrido? Esse simbolismo certamente não passou pela cabeça de quem escolheu essa cor para o cartão, mas que seguramente estava guardado em seu mundo inconsciente lá isso estava. Com o hábito de os torcedores usarem a mesma camisa do seu clube - isto é, também se prepararem para a guerra -, o confronto entre torcidas, agravado pela instituição das torcidas uniformizadas, como desdobramento da tribo, tornou-se inevitável. Agora não estamos mais diante de uma luta de onze contra onze, mas de um número incontável contra outro número incontável. Será de admirar que de uma guerra dessas surjam mortos e feridos? A violência, portanto, a nosso ver, nada mais é do que a agressividade mal administrada. Quando sabemos que todo ser vivo é dotado de agressividade, fundamental para a preservação do indivíduo e de sua espécie, temos duas alternativas para evitar que ela se torne violência: ou bem nos utilizamos das soluções radicais, como aquela proposta por Anthony Burguess, em seu livro, magistralmente filmado por Stanley Kubrick, ou bem tratamos de criar mecanismos de sublimação dessa agressividade, reeducando o ser humano, sem transformá-lo na laranja mecânica do livro. O marginal juvenil Mike Tyson tornou-se o campeão mundial de boxe Mike Tyson. O tipo de mega-cidades que permitimos que se fossem formando tornou-nos todos membros de um enorme formigueiro. Olhe um formigueiro e veja se consegue distinguir ali a formiga Dolores da formiga Anastácio. Veja a praça da Sé ou uma favela do Rio de Janeiro a partir de um helicóptero e não verá ali pessoas individualizáveis. Ali não vivem indivíduos, mas meros números estatísticos. Logo, não pode haver inter-relacionamento próprio de seres humanos, mas de meros insetos. Que diferença faz se, para manter a ordem, policiais disparem suas armas contra suspeitos, provocando a morte de alguém pelas fatídicas balas perdidas, da mesma forma que, para matar baratas, eu uso veneno que, por fatalidade, acaba sendo comido por meu cachorro? No fundo, é a mesma coisa. Morre o cão por fatalidade e por fatalidade morre a pessoa alheia ao tiroteio. Os administradores de nossa sociedade, no entanto, têm preferido tapar os olhos e os ouvidos para essa realidade. Qualquer um de nós sabe que deixar crianças ao abandono pedindo moedas junto a semáforos ou nos vendendo bugigangas é colaborar para que se tornem malandros. Reparem na carinha cínica que elas fazem quando nos pedem esmola. Permitir que jovens aprendam com os líderes criminais qual o padrão de conduta próprio de adultos, em lugar de lhes darmos algum modelo de convivência social, só pode levar à formação de novos líderes. Líderes de quê? Ocorre que quando aquelas crianças ou estes jovens resolvem praticar aquilo que permitimos que eles aprendessem nas ruas e no abandono, fala-se em diminuir a idade da imputabilidade penal, o que, em termos práticos, significa punirmos crianças e jovens pelo abandono a que os havíamos condenado. Baixemos para 16 anos a idade limite. Por que não 14 anos? Ou 12? É só questão de tempo. E apela-se para um argumento irrespondível: ou fazemos isso ou o medo nos manterá cada vez mais reféns dos criminosos, qualquer que seja a idade deles, com o onipresente risco das balas perdidas. Mutatis mutandis, é o mesmo que fazemos quando as formigas nos invadem o jardim ou os ratos e as baratas nos invadem a casa porque negligenciamos as regras de higienização. Não teria sido melhor que houvéssemos limpado melhor a casa? Do livro Violência no Esporte (autoria coletiva), aqui ampliado.
sexta-feira, 9 de março de 2007

Chaves

"Com um avião abarrotado de dólares, Bush pousa no Brasil nesta quinta-feira. Antes de desembarcar as verdinhas, vai perguntar a Lula, num tête-à-tête, qual é o grau de comprometimento com o general Chávez. Dependendo da resposta, manda descer a carga." (Migalhas, 5.3.07) Sinto dizer-lhes, mas gosto do Chaves. Não preciso dizer que não sou homem de pautar minhas ações a partir da opinião alheia. Creio que já deixei isso muito claro ao longo de minha vida, pergunte a quem não me conhece. Se a voz do povo fosse de fato a voz de Deus ninguém contestaria certas eleições, como ocorre amiúde. A do Fidel Castro, por exemplo, quase por unanimidade. Ou a do Putin. Para não falar na primeira vitória do George W., que contou com o valioso auxílio do irmão e da Suprema Corte, como sabeis muito bem, até porque friends are for things like that, como diz o pessoal do MPB-4. Aliás, o coleguinha Nélson Rodrigues não dizia que a unanimidade é burra? Pois como pode a voz de Deus ser sinônimo de burrice? E isso dito pelo Nelson, um temente a Deus daqueles? Jamais. No tempo em que ainda nem se falava muito em democracia, como hoje a entendemos, isto é, quem tem cargo público ou dinheiro usa e abusa desse poder impunemente, empregando filhos e amigos, dizia-se que a virtude está no meio, virtus in medio, muito embora essa primeira palavra aparecesse também no nome de uma pomada que aliviava a hemorróida de minha avó, o que me deixava meio desconfiado da frase, até porque eu ainda não era forte no latim, se é que algum dia o fui. Pelo sim e pelo não, quero essa virtus longe de mim, que não estou para ser objeto de desconfiança alheia. Pelo menos assim tão cedo. O que contraria o que ficara dito lá em cima, paciência, ubi homo ibi peccatum. Falava-se também que de gustibus et coloribus non disputandur, o que, em vernáculo, ficou expresso numa pergunta: se todos gostassem do vermelho, que seria do verde? Como verde era a cor do integralismo e vermelho era a dos comunas, a frase poderia ter uma conotação política, o que não estava na intenção do romano que a havia criado, se é que foi criada por algum romano. Melhor voltarmos ao latim. Como o Cícero teria dito, em pleno Senado romano, galerias repletas de patrícios e patricinhas, "não concordo com uma só das palavras que acabais de dizer, mas defenderei com minha vida o vosso direito de dizê-las." Ou não foi ele? Acho que estão abusando da minha nobreza! Já ouvi pessoas argumentarem longamente os motivos pelos quais gostavam de jiló. Ou de uísque. Ou de fumar. Ou de. E o faziam e fazem com tal veemência que parecia ou parece que seus argumentos iriam fazer do seu interlocutor um jilófago inveterado, ou um fumante semelhante ao Humphrey Bogart ou ao Albert Camus. Ainda se fosse uma dessas mesas-redondas de televisão, onde, com ar de PHs em MBA ou PhDs em PMD, não sei bem isso de siglas, vou consultar o presidente do Banco Central, jovens e menos jovens deitam falação sobre técnicas e táticas futebolísticas, vá lá. Mas tais discussões acaloradas por vezes envolvem assuntos menores como economia ou poluição ambiental, como se algum de nós que liga a TV estivesse interessado nisso. Sabemos todos que a economia é coisa muito séria para ficar nas mãos de economistas, tanto que o Joelmir não é economista e nem por isso deixa de deitar falação sobre. Já o filho dele, cuida de assunto mais importantes, o futebol. Logo, melhor ouvirmos os comentários do Neto, com aquele sotaque caipira e tudo, ou do Casagrande, ou do Raí, ou do Júnior, ou do Carlos Alberto, ou do Luizinho, ou do Baltazar ou de quem mais as emissoras de televisão resolvam trazer de lá do assento quase etéreo aonde subiste até o recesso de nosso lar para nos ensinar que a bola é redonda e que o atacante estava, de fato, com-ple-ta-men-te impedido, que bola na mão não é o mesmo que mão na bola, que dentro da área o goleiro é o rei, que a linha da área pertence à área, além de. Volto ao princípio. Isso de as pessoas censurarem quem se entusiasma pelo BBB, ou pelo programa do Datena, ou pelos eloqüentes silêncios do Sarney, ou os discursos do Gabeira é, quando menos, um atentado à democracia, pois, se a memória não me falha, está lá naquele que o Getúlio chamava carinhosamente de livrinho e que o doutor Ulisses, tempos depois, elevou à categoria de cidadã, que todos os que moram neste país têm direito a expressar sua opinião sobre todo e qualquer assunto. Fui claro? Todo e qualquer assunto, anote aí. Eis aonde eu queria chegar: ninguém pode ser punido, nem censurado, nem sofrer qualquer restrição à sua liberdade de ir, vir, ficar, entrar, sair, ir novamente e voltar novamente tantas vezes quantas lhe der na telha e sua deambulação compulsiva exigir pelo simples fato de haver manifestado seu pensamento, sua preferência, seu gosto pessoal, essa coisa tão difícil de termos hoje em dia, quando os meios de comunicação nos despejam, explícita ou liminarmente, todo tipo de condicionamento, o que torna a nossa liberdade de escolha quase uma falésia, como diria o outro, estou até parecendo o Saramago, vejam só, logo aquele comunista. Eu quero chegar ainda mais longe: defendamos todos o nosso direito individual de ligarmos a televisão no programa que bem entendermos, sem que nossa esposa ou nosso marido venham com argumentos os mais insustentáveis para quererem, explícita ou implicitamente, nos convencer de que a opinião dele, ou dela, deve ser a que deve imperar no sagrado recesso de nosso lar, tornando letra morta o postulado da liberdade de escolha que deve presidir a vida sadia de um casal unido pelo matrimônio, dito alhures tálamo conjugal, nome que não nos anima a coisa alguma, reconheço. E meu programa é o do Chaves. Pretendi hoje render homenagem ao Chaves, aquela figura trapalhona que, quando se pensa que está indo, está vindo, sempre a causar danos aos circunstantes, pondo os que lhe são próximos em situação de constrangimento, como o magérrimo senhor Madruga, que vez ou outra recebe uma paulada no queixo ou uma latada d'água no cocuruto. Ou a vítima da vez é o Quico, aquele simpático garoto que, a esta altura, já morreu de velhice. Um ator já avô e ainda com aquelas calças curtas fingindo-se de criança, como o Roberto Bolaños, nascido em 1929, e cujo tio era juiz de menores. Querem coisa mais pós-moderna do que isso? Isso, isso, isso, como diz ele. Direis que não fica bem a alguém com minha cultura e meu tirocínio confessar que não perco um capítulo do Chapolin Colorado, com seus truques mais velhos e canhestros do que os que faziam o Arrelia e seu sobrinho Pimentinha lá vão anos e mais anos. Direis, mais, que em tempos do humor enlatado da televisão, um dos quais tem na logomarca, despudoradamente, nada mais nada menos do que o desenho da folha da nossa velha e sempre nova cannabis sativa, aquele cenário da série do Chapolin, digno de um Bye, Bye Brasil, chega a doer nos olhos. Tá bom, mas não se irrite, como diria o seu alter ego. Pensando bem, há por esse mundo de Deus figuras bem mais ridículas do que aquelas, que, lamentavelmente, não se dão conta das ridicularias que cometem, com a agravante de nos fazerem chorar de ódio, em lugar de rir de sua canhestrice. E quando esses líderes mundiais dizem "Sigam-me os bons", imitando o Chapolin, é para seguir mesmo, ainda que a manada toda vá parar num brejão iraquiano daqueles. O Tony Blair e seu prestígio que o digam. E quando tudo dá errado, certamente o Grande Líder chapliniano pós-moderno dirá: "não contavam com a minha astúcia". Melhor ver os heterônimos do Roberto Gómez Bolaños.
sexta-feira, 2 de março de 2007

Froidianices

  "As aparências enganam/ aos que odeiam/ e aos que amam" (Tunai e Sérgio Natureza, na voz de Ellis Regina) Você está dormindo e sonha. Um bispo, sentado em seu trono, mitra na cabeça, exibe o báculo, ostensivamente. As senhoras presentes genufletem, respeitosamente, diante dele. Ao fundo, sobre a nave, o maestro empunha a batuta e, a um sinal do báculo, agita o instrumento, para êxtase dos presentes. É o casamento de um cadete. No corredor principal, colegas do noivo, frente a frente, descumprem a ordem latina dada por CRISTO a PEDRO - mitte gladio in vagina -. Ao reverso, tiram da bainha o espadim e cruzam-nos, dois a dois, formando um arco, sob o qual passarão os noivos. Que, certamente, terão muitos filhos. Fora, um canhão dispara salvas de tiro. As donzelas aplaudem, excitadíssimas. O povo, entretanto, munindo-se de pedaços de pau e cacetes, tenta penetrar no templo, que tem a porta ovalada. A guarda, vestida de branco, qual vestais, posta-se diante da porta, para impedir a violação do templo do amor. Com os fuzis nas mãos, os guardas calam neles as baionetas, em posição de combate. Frente a frente os grupos contendores, aparece o juiz da comarca, exibindo a vara, símbolo da jurisdição e do poder. O prefeito dirige-se ao microfone, que tem a cabeça como uma glande coberta de uma malha de aço. De microfone na mão, ele agita o dedo indicador. Dedo em riste, como se diz, ele ameaça castrar os presentes. Você acorda com um barulho. Um livro do velho Freud caíra da prateleira, com estardalhaço. Apalermado, meio sonolento, você vê o homem de barba branca e olhar maroto sair das páginas do alfarrábio. Soltando baforadas de fumo, ele lhe repete a lição que dera aos jovens na saída do teatro, em Viena: "Meu filho, por vezes, um charuto simboliza apenas um charuto". Você começa a lembrar-se de que na véspera estivera lendo algo sobre a simbologia freudiana. Báculo, batuta, lança, espadim, pau, cacete, vara, dedo em riste, microfone, canhão, fuzil, baioneta. Uma chuva de símbolos fálicos invadira seu sonho. Assustado, você vê sobre a mesa de trabalho a estátua de Têmis. Na mão direita ela traz o ainda presente falo da autoridade - vista sob o ponto de vista masculino -. Ela parece envergonhada de sua bissexualidade, e, por isso, cobre os olhos com uma venda, certamente temerosa de que a balança que ela traz na mão esquerda, representação óbvia da feminilidade, lhe mostre se o animus, representado pela espada, prevalece sobre a anima, ou vice-versa. Uma figura andrógina que não tem coragem de encarar-se, conclui você. Pensando bem, não foi o Freud o teu inspirador. Isso de anima e animus não era coisa do Sigismundo, mas do outro, que, aliás, não fumava charuto, mas cachimbo, símbolo feminino, com aquela abertura destinada a levar fumo, se a senhora me permite a grosseria.  
sexta-feira, 23 de fevereiro de 2007

Fofocas Reais

  O filme A Rainha (The Queen) é mais do que o desmentido do rodriguiano preceito sobre a burrice da unanimidade. Falo do Oscar para melhor atriz. Meryl Streep assume soberbamente todos os papéis que interpreta, mas nem por isso vamos dar-lhe um prêmio a cada encarnação que ela faça. Aquela garotinha que concorre à láurea de atriz secundária, por exemplo, não chega a ser uma atriz. Teve no filme pelo qual está sendo indicada o desempenho que tem toda criança orientada por um diretor sensível. Ela não passa de uma menina interpretando o papel de uma menina. Fosse assim e deveríamos sempre premiar um ator negro que interpretasse um negro. Ainda que fosse um Edson Arantes do Nascimento, mesmo sendo dirigido por um John Houston, entende? A Penélope Cruz eu incluiria como cantora. Mas vem um chato e me diz que aquilo foi dublagem. Pode? Quanto às demais concorrentes ao Oscar deste ano, quem são elas? Mas não é disso que eu queria falar. É de algo que me parece fundamental: um filme, dependendo do espectador, será menos do que a narrativa de uma história ou mais do que a narrativa de uma história, nunca apenas a narrativa de uma história. Repare que o diretor Stephen Frears, no final do filme esclarece que, muito embora haja no filme pessoas e fatos que correspondam a pessoas e fatos reais, com perdão do necessário trocadilho, nem tudo que aparece no filme corresponde ao que efetivamente aconteceu. Se não leu isso, volte ao cinema e preste atenção naqueles letreiros finais, para não dizer levianamente que estou mentindo. A caricatura feita ao Charles, por exemplo, é muito mais um exercício de sadismo do que uma preocupação em reconstituição histórica, se é que alguém pensará que o diretor estava interessado em reconstituição histórica quando se dispôs a fazer esse filme. Aquilo é uma irreverência digna de um filme do grupo Monty Python. Conheceu? Ou do Mister Bean, para sermos mais modernos. Quanto ao príncipe Phillip, eu sempre achei que aquele ator, além de criar porquinhos inteligentes ou ser policial corrupto, algum dia faria esse papel, para o qual havia nascido. Não deu outra. Claro que o filme não se refere ao real Phillip, mas a todos os maridos, essa instituição quase inútil, depois de inventada a inseminação artificial. Ou seja: o sexo sem filhos depois e os filhos sem sexo antes. Diga a verdade, não fosse o dinheiro do aluguel e da feira que seu marido traz para casa, teria ele outra utilidade, além de desligar a televisão do quarto? O problema é que inventaram o controle remoto. E como o inverno londrino tem de contrapeso o aquecimento elétrico, olha o marido te dando um beijo na testa e indo dormir no outro quarto. Só o príncipe sem sorte faz isso? O casal de caipiras Tony Blair e cafoníssima esposa não correspondem ao casal real, evidentemente, por mais comuns, no sentido político, que os verdadeiros sejam. Eles representam um casal de espectadores que está ali no escuro comendo pipoca e achando que aquilo tudo que está sendo exibido na tela é uma aula de história. Qualquer de nós. À medida que as cenas se vão sucedendo, vamos tomando conhecimento de que aquela velha rabugenta é muito mais do que apenas isso. Ela representa algo que os moderninhos deixaram no bolso da calça quando a levaram à lavanderia da esquina: a tradição. Fosse o Topol, no filme O Violinista no Telhado (A Fidler on de Roof) e teríamos como fundo musical o Tradition! Tradition! que ele lá interpretou magistralmente. Quando a esposa do personagem Tony declara, enciumada, que ele se havia apaixonado pela chefe dele, ela não está enganada. Não se trata de uma paixão erótica, mas muito mais do que isso: uma paixão invejosa. Dizem que um norte-americano foi visitar um amigo inglês e admirou-se do aspecto do gramado, aquele tapete verde que ele jamais havia visto nos EUA. Morrendo de inveja, permitiu-se perguntar: "Que devo fazer para conseguir um desses gramados em meu ranch?" Simples, muito simples. Plante grama da melhor qualidade em um terreno previamente bem adubado. Depois, você rega durante trezentos anos. O Tony do filme daria tudo para ter aquela postura que a personagem Elisabeth II nos exibe. Ela representa isso que a modernidade insiste em desprezar: a coerência. Se Diana estava divorciada do Príncipe Charles e, portanto, não mais pertencia à Família Real, qual o fundamento jurídico pelo qual se deveria dar a ela um enterro a que só os membros da Realeza têm direito? Nos demais países esse fundamento nada jurídico se chama demagogia. Certamente você jamais viu a real Elisabeth pegando no colo uma criancinha "do povo" e dar-lhe um beijo para ser registrado pelos fotógrafos previamente avisados. Bem por isso, a personagem corrige Tony, que a louva pela humildade demonstrada por ela. Aquilo não foi, de fato, ato de humildade, mas ato de humilhação. Uma simples concessão à ignorância da gentalha manipulada pela chamada mídia. Faltou dizer: eu os perdôo porque eles não sabem o que fazem. Em uma leitura superficial, o filme endeusa a personagem Diana. Que engano! Ele, na verdade, a reduz a sua verdadeira dimensão: uma simples pop star. Aquelas centenas, se não milhares, de buquês de flores não foram deixadas ali porque a morta era uma princesa ou uma rainha. Quando você for a Londres, não deixe de visitar aquela enorme loja de departamentos toda enfeitada com belíssimos motivos indianos. Ela pertence à família do noivo, vá lá a palavra, da falecida Diana. No primeiro patamar você levará um susto: lá está uma espécie de altar, onde alguns londrinos e outros não-londrinos se ajoelham e rezam como se estivessem na catedral de Nottinghamshire. A que santa foi erguido o tal altar? A Diana Frances Spencer, ela mesma. Reparando bem, ali você verá duas relíquias sagradas: as duas taças de champanhe usadas pelo casal de pombinhos na fatídica noite. A terceira taça, usada pelo motorista vezes e mais vezes na mesma ocasião, alguém teve o cuidado de esconder. Aquele altar é tão compreensível como seria um que se erguesse aos devotos de S. John Lennon. Elvis Presley não vende mais discos agora que está, digamos assim, menos vivo do que estava antes de sucumbir às drogas, pois, como sabemos todos, "Elvis não morreu"? E que fizeram os dois em benefício da humanidade para merecer tal entronização? A presença de Elton John no velório, alvo de uma oportuníssima gozação por parte do personagem Phillip, mostra isso: aquilo não era uma cerimônia religiosa, da mesma forma como o cortejo fúnebre era algo tão patriótico como o enterro da Norma Jean, aquela morena que se celebrizou posando nua para um calendário e depois preferiu ser loira e chamar-se Marylin Monroe, um brinquedo de osso e carne, bota carne nisso!, que tanto o priápico John Kennedy como seu irmão Robert utilizaram até a exaustão. Tudo pelo bem da pátria! Ou sua colega Grace Patrícia Kelly, que poderia ter sido, em lugar da outra, a intérprete do filme Nunca fui Santa (Bus Stop) e cujo passado jamais veio à tona para o povo monegasco, interessado em que o velho rei arranjasse logo uma prole, mesmo que fosse composta por filhas que se deixam engravidar por motoristas ou guarda-costas, para afastar de vez o risco de a França vir tomar-lhes aquele principado de brinquedo. Apurar quantos leitos ela havia esquentado antes de interpretar definitivamente o papel de rainha, que importância isso agora tem? Se nem a mulher do Gary Cooper levou isso muito a sério, por que nós haveríamos de? Volto ao filme: o olhar encantado do personagem Tony, nas cenas finais, é o retrato da reação que têm as pessoas acostumadas aos BBBs da vida quando entram pela primeira vez no Teatro Municipal, qualquer teatro municipal. Ou os que passam a tarde de domingo jogando a vida fora ao som da voz do Faustão e um belo dia, sabe-se lá por que cargas d'água, resolvem ver uma exibição do Cirque du Soleil, nem que seja em DVD. Essa pessoa nunca mais dará ao Faustão a importância que dava até a véspera. Ou se conformará definitivamente com a própria mediocridade, o que não é o caso do personagem Tony. Acho que se o filme fosse um pouco mais além do que aquele belo passeio pelo jardim, coisa mais própria de dois namorados, o personagem Tony se divorciaria daquela tagarela que ele tem em casa e que, como compete às esposas, manda o marido tirar os pratos da mesa depois do jantar. E ele diz que os vai lavar, mesmo sem ser mandado. Para encerrar, façamos um teste, para saber se a senhora tem razão ao criticar-me por tudo o que acabo de escrever. Imagine que o José Dirceu seja perdoado pelo Congresso Brasileiro, que lhe devolve os direitos políticos que lhe haviam sido cassados. Faça de conta que isso é um filme, sendo ele interpretado pelo José Wilker. Em seguida, ele é recebido no Palácio do Planalto, onde o presidente da República não só o abraça, como lhe sapeca um beijo em cada rosada bochecha, como no Volver, do Almodóvar. No dia seguinte, um ministro da nossa Corte Suprema requer aposentadoria, para ser nomeado em seguida ministro em uma Alta Corte Internacional qualquer, filme collorido que a senhora já assistiu no passado recente. Adivinhe quem vai ser nomeado para preencher aquela vaga aberta no STF? Ele mesmo. O senado aprecia longamente a indicação do doutor Zé Dirceu para ministro do Supremo Tribunal, com discursos e mais discursos louvando seu passado revolucionário, pulando-se aqueles pedaços em que ele viveu fora do Brasil, com a mesma cara, ou no sul do Brasil, com cara artificial. E outros pedaços que, tal como o passado da Grace Kelly, em nada contribuirão para o bem do país. E o nome dele é confirmado pelo Senado. Por unanimidade!  
sexta-feira, 16 de fevereiro de 2007

Tuiávii no Brasil

"O Papalágui precisa fazer leis assim e precisa ter quem lhe guarde os muitos meus que tem, para que aqueles que não têm nenhum ou têm pouco meu nada lhe tirem do seu meu. De fato, enquanto há muitos pegando muitas coisas para si há também muitos que nada têm nas mãos. Nem todos sabem os segredos, os sinais misteriosos com os quais se consegue ter muitas coisas: é necessário que se tenha uma coragem especial, que nem sempre se concilia com o que chamamos honra1." Caros irmãos e irmãs das muitas ilhas. Falo-vos hoje de minha viagem a outro continente, talvez maior ainda do que a Europa, de que lhes falei já no outro dia, pois lá fiquei por muitas e muitas luas. Chamam aquele continente de terra das árvores que produzem brasas. Verdade que o povo dali ama tanto essas árvores de pau vermelho que tem cortado quase todas, levando para casa na forma de mobília, assoalho ou mesmo de lenha para o fogão. Ali tive a oportunidade de conhecer como eles tratam quem não cumpre o dever de respeitar o meu dos outros. Os papaláguis2 de lá me explicaram, mas eu não entendi muita coisa, e lhes conto tudo tal como eu entendi. Talvez eu não tenha entendido direito. Aqui, quando algum de nós comete alguma falta, algum pecado, é levado perante um dos nossos homens mais experientes, que aprecia o caso e impõe ao pecador a penitência que acha suficiente para servir de exemplo a ele e aos demais da tribo. Caso decidido. Lá no país das árvores em brasa a coisa é um pouco mais complicada, talvez porque eles sejam mais civilizados do que nós. Vejam vocês que um pecador, lá, é levado pelos homens de roupa colorida perante um doutor da lei, que manda colocar o pecador em um lugar reservado, por luas e luas, para que ele reflita sobre o seu pecado. Passada a quarentena, o pecador geralmente confessa aquele pecado e muitos outros, muitíssimos mais. Então são ouvidas todas as pessoas que sabem alguma coisa sobre esses pecados. Depois disso, o doutor da lei escreve numa esteira de papel e eu pensei que estivesse terminado o julgamento do pecador. Vocês vão querer saber qual foi a penitência que foi imposta ao pecador. Eu lhes digo que aquele doutor da lei ou doutora, como às vezes ocorre, não impõe penitência nenhuma. Ele apenas manda esse monte de esteiras de papel para um segundo doutor ou doutora, geralmente mocinhos, tão moços que aqui em nossa tribo ainda estariam praticando para começar a caçar e a pescar ou bordar. Lá ele ou ela já é um doutor ou uma doutora da lei, e é quem vai examinar aquilo que o primeiro doutor da lei fez. Ele ouve novamente todas aquelas pessoas e impõe uma penitência provisória ao pecador. Embora ele ou ela sejam considerados doutores da lei, parece que ninguém confia naquilo que eles fazem, pois aquelas esteiras de papel, que já são muitas, não valem quase nada e vão ser agora enviadas para um pule nuu3 mais velho, que reexaminará tudo aquilo, pois parece que ninguém acredita naquilo que aquele doutor ou aquela doutora disseram. Se não acreditam nele ou nela, como é que eles são doutores da lei? Eu não sei lhes dizer, pois ninguém me explicou. Ou, se explicou, eu não entendi. Vocês pensam que agora o pecador vai receber a penitência que ele merece, não é? Pois ainda não vai. Esse doutor da lei mais velho, que é o terceiro, consulta outros doutores da lei, pois o caso é muito difícil para ser apreciado apenas por um doutor, mesmo sendo ele mais experiente do que aqueles outros de que lhes falei. Quer dizer: o doutor e a doutora da lei mais moços decidem sozinhos; já os doutores mais velhos e mais experientes devem decidir em conjunto. Quem entende Isso? Eu não entendo. Embora todos eles sejam pule nuu, é preciso que as esteiras sejam apresentadas a todos eles, mesmo que isso consuma muitas e muitas luas. Agora sim, vocês estão supondo, esse último pule nuu vai cuidar da penitência a ser imposta ao pecador. Pois digo que ainda não. Não se esqueçam de que eles são civilizados, e civilizado é papalágui mais cuidadoso do que os da tribo de Tiavéa. Nós somos ignorantes e queremos resolver tudo logo, bem depressa, para podermos voltar à nossa caça e nossa pesca. Nós só pensamos nisso. Eles, que são civilizados, pensam em outras coisas. É que os pule nuus mais experientes às vezes descobrem que o doutorzinho da lei não ouviu as pessoas que sabiam do caso com a atenção devida, anulam tudo e mandam refazer aquilo tudo. O monte de esteiras de papel volta para a primeira oca da justiça e as pessoas vão ser novamente ouvidas pelo doutor menos experiente, que nem por isso é punido pelos doutores mais velhos. É verdade que, com o passar do tempo, os fatos vão escapando pelos ouvidos da cabeça das pessoas, pois o espaço ali dentro é muito pequeno. Então aquilo que havia sido dito lá naquela primeira vez, bem longe no tempo, não combina direito com aquilo que está sendo dito agora. Vocês não devem desconhecer que essas pessoas que conhecem os fatos devem deixar aquilo que estão fazendo e ir à toca da justiça mais uma, duas, ou três vezes, pois um dia o pecador não foi trazido, no outro faltou esteira para nelas se escrever, na outra o pule nuu disse que estava com dor de barriga e ficou na rede ou nadando no grande lago, e, assim, as pessoas voltam à casa da justiça muitas e muitas vezes, o que elas fazem com muito prazer, pois sabem que são importantes. Mesmo não recebendo nada para ir lá, elas, mesmo assim, sempre voltam à casa da justiça. Se elas não fossem pessoas importantes, que fazem tudo isso com prejuízo para elas e seus familiares, não teriam sido chamadas para ir à oca da justiça. Entenderam? Antes de essas pessoas serem ouvidas, elas ficam de pé nos corredores da oca da justiça, sem comer nem beber nada durante horas, que é para que as idéias não se embaralhem. Algumas sentam-se de cócoras, o que não parece muito certo, pois sempre vem alguém fantasiado mandando que ele ou ela se levante já dali, o que ele ou ela obedece. Enquanto isso, na parede do corredor da oca os dois dedos da máquina de contar o tempo correm, correm e as pessoas ali vagando, nervosas como leão enjaulado, sem que ninguém se lembre delas, parece, pensando nas crianças que ficaram lá na ocara deles. Depois, elas são levadas para um quarto que sobe e desce, deslizam para fora da cabana da justiça, levando na mão uma pequena esteira, onde está dito que elas devem voltar dali tantas luas mais adiante, para serem ouvidas. E elas trazem a cara de descontentes. Depois que todas essas pessoas, que é como eles chamam os papaláguis, chegam a ser ouvidas, o que exige muitas e muitas luas, é que o caso vai ser decidido pelo pule nuu. Eu perguntei a um entendido porque tinha de ser tudo repetido e ele me explicou que o primeiro doutor da lei não deixa o pecador consultar um conselheiro. O que o primeiro doutor da lei fez tem de ser confirmado na presença do conselheiro do pecador do pule nuu. Se o segundo doutor da lei é que deixa o pecador consultar o seu conselheiro, como é que eu não vi o conselheiro junto do pecador quando este foi ouvido pelo segundo doutor da lei? É que nessa hora o conselheiro não poderia intervir, o que me parece que estava sendo modificado, como eles me disserem, mas o nome dele consta da esteira. E se ele não pode intervir, qual a diferença entre o interrogatório feito perante o primeiro doutor da lei daquele interrogatório feito perante o segundo doutor da lei? Eles não sabiam me explicar. Parece que um é mais doutor do que o outro. Mas eu fiquei sabendo que esse conselheiro deve estar presente quando o segundo doutor da lei ouve o proprietário do meu que foi levado pelo pecador. E também quando as pessoas que viram o cometimento do pecado vão ser ouvidas. Eu quis conhecer quem era o conselheiro que estava ali naquele momento, mas o papalágui que toma conta da porta da oca da justiça me disse que ele ainda não havia chegado, ele estava em outra oca da justiça, distante dali, e que mais tarde a esteira seria mostrada a ele e ele colocaria seu nome ali na esteira, como se tivesse estado presente. Ele confia muito no trabalho que foi feito na ausência dele. Então terminou tudo? vocês me perguntarão. O pecador agora irá para a falé pui pui4 ? Pois eu lhes digo que não. Ainda não, me disseram eles. Quando me disseram que tudo aquilo seria ainda examinado por um pule nuu mais experiente, lá mais longe, eu perguntei: então agora acabou? Ainda não. Aquele pule nuu experiente mandará a esteira de papel para um outro pule nuu, pois ele é ainda mais experiente do que aquele de antes. Agora terminou? Depende: se eles não estiverem de acordo, ainda será ouvido um segundo pule nuu bem mais velho, e um terceiro, e um quarto. Então agora terminou? Há ainda outra oca da justiça, mais longe ainda, do outro lado da grande praça, onde as esteiras costumam ser envidas e tudo aquilo recomeça, pois esses são pule nuu ainda mais velhos e mais experientes. Eu ia perguntar se aquilo tudo terá um fim algum dia e se o pecador ainda estará vivo quando tiver de ir para a falé pui pui, mas o meu orientador perdeu a paciência comigo, colocou-me de volta na grande gaivota de prata que brilha no azul lá de cima e me remeteu de volta para Samoa. "Selvagem estúpido", foi como ele me saudou lá do alto. Acho que sou mesmo, pois eles são civilizados e sabem o que fazem e o que dizem.   1 - "O Papalágui", comentários de Tuiávii, chefe da tribo Tiavéa nos mares do Sul, recolhidos por Erich Scheurmann, Editora Marco Zero, p. 56 2 - Homem branco 3 - Homem que decide 4 - Prisão
Se eu escrevesse para pessoas alheias às coisas jurídicas talvez eu devesse explicar que a hermenêutica é a ciência da interpretação, ao passo que a exegese é a interpretação propriamente dita. Ou seja, a arte da interpretação. Coisa que os comentaristas de futebol certamente ignoram. De fato, vejo nas mesas redondas da televisão, principalmente no começo da semana, homens e mulheres digladiando-se sobre aquilo de certo e de errado que o pobre do juiz fez no fim de semana, ao apitar este ou aquele jogo de futebol. Passam o mesmo lance vezes e vezes, sob vários ângulos, e concluem que o árbitro deve ser enforcado, pois seus erros influíram no resultado do jogo, como dizem os adeptos da pena máxima. Não passa pela cabeça de muitos deles que fazer um exame necroscópico é muito mais fácil do que realizar uma prognose probabilitária a partir de uma anamnese, como diria o Tostão. Certo dia o Cláudio Carsughi, um dos poucos comentaristas sensatos a participar de um desses programas, disse simplesmente isto: advogado erra, médico erra, mecânico de automóvel erra, só o juiz de futebol, que deve decidir lances em fração de segundos, quando erra é porque foi desonesto. Num desses programas um juiz de futebol aposentado costuma apresentar algum problema com várias alternativas, para ser respondido pelos espectadores e pelos profissionais da área que comparecem ao programa. Além de nunca jamais haver unanimidade nas respostas, alguns se permitem começar a resposta com um "acho que". Eles foram contratados sob o pressuposto de que entendem de futebol, as regras que regem uma partida de futebol talvez não cheguem a duas dúzias, e esses profissionais se limitando a tatear. Que diriam eles se um advogado criminalista dissesse "acho que corrupção é crime", "parece-me que", "suponho". O advogado estuda para dizer que isto é ou que isto não é. Quando muito ele pode expor interpretações diferentes dadas pelos mais doutos sobre tal tema, como com fingida modéstia dizem eles. Mas aí entra o tal apresentador com seu bordão conhecido: "a regra é clara". Nem o positivista mais ferrenho aceitaria isso hoje. Esse bolorento bordão remonta ao tempo em que a hermenêutica apresentava uma regra dizendo que cessat in claris interpretatio, o que mereceu críticas candentes do ministro Carlos Maximiliano há quase um século. Eu só posso dizer que uma regra é clara depois de interpretá-la, mesmo porque a exegese nada mais é do que isso: saber aquilo que a regra quer dizer. Depois de interpretar a lei, eu posso dizer: "esta lei não precisava de interpretação"? Eu só pude dizer isso depois de interpretar. Dá para entender, Juca? Claro que sim, máxime sendo filho de quem é. Essas frases feitas geralmente levam quem delas utiliza para o caminho do precipício. "Toda regra tem exceção" diria um desses comentaristas esportivos. Eu lhe diria que isso é, sem a menor dúvida, uma regra. Logo, ela terá alguma exceção. Logo, haverá regra sem exceção. Logo, aquela afirmação é uma bobagem. Aprendi isso não com o Vicente Ráo, mas com o Millôr Fernandes. Quando um advogado chato disse ao Ranulfo que toda pergunta pode ser respondida por um sim ou um não, o Ranulfo, depois de um minúsculo gole de cerveja, perguntou-lhe: "sua mãe ainda é prostituta? Sim ou não?" Tentemos, então, responder a algumas daquelas perguntas tendo em mente alguns princípios hermenêuticos. Bem, amigos, aí vão algumas delas: a) Pênalti contra o time A. Antes de o jogador do time B tocar na bola, um jogador do time A invade a área, o que é proibido. O jogador B, que não notou isso, bate a falta e a bola entra. O juiz anula o lance por causa da tal invasão. Agiu ele corretamente? b) Pênalti contra o time A. Antes de o jogador do time B tocar na bola, um jogador do time B invade a área, o que é proibido. O jogador B bate a falta e a bola passa por cima da trave. O juiz anula o lance por causa da invasão. Agiu corretamente? c) Pênalti contra o time A. O goleiro do time A é advertido pelo juiz de que deve permanecer sobre a linha que demarca o campo, sob o travessão. O goleiro, entretanto, afastando-se, fica além dessa linha. O jogador do time B bate a falta e a bola entra. O juiz anula o lance por causa da má posição do goleiro. Agiu corretamente? d) Jogo final de campeonato. Um dos times vence por 3 a zero. Chegando o segundo tempo, aos 43 minutos, o árbitro assinala à mesa que dará 2 minutos de prorrogação. Agiu corretamente? Uma regra não é fruto do capricho do legislador. Ou, pelo menos, devemos considerar que não o seja. Ela surge com alguma finalidade, em face da necessidade de disciplinar determinados comportamentos humanos, sejam eles considerados genericamente ("não matar") sejam eles considerados especificamente ("o advogado deve comportar-se com lealdade no processo"). Quando analisamos uma regra com os olhos nessa finalidade dizemos que estamos fazendo uma interpretação teleológica, como sabemos todos, mas os comentaristas não o sabem. Quando diz que o goleiro deve ficar sobre a linha de gol, o que a regra quer impedir é que ele, avançando campo adentro, diminua o espaço no qual o cobrador do pênalti poderá meter a bola, pela redução da visibilidade do atacante. Até uma criança sabe que será impossível fazer o gol na cobrança do pênalti se o goleiro estiver a um metro do cobrador. Se o goleiro resolver aumentar o campo visual do atacante, problema do goleiro e do respectivo time. Anular o gol será "beneficiar o infrator", como dizem eles, o que, em latim, se diria: nemo allegare turpidudinem suam potest". Lembra, Juca? Da mesma forma, se quem deu margem à nulidade do lance pertence ao time cujo atacante chutou a bola fora do gol, anular o lance subseqüente será, mais uma vez, "beneficiar o infrator". O mesmo se diga se, ao contrário, quem deu margem à tal nulidade foi o jogador do time que sofreu o gol de pênalti. Utile per inutile non vitiatur. Lembra? Quanto à prorrogação do jogo, ela tem uma finalidade: compensar as interrupções havidas, na suposição de que, não houvessem elas ocorrido, o resultado do jogo poderia ser outro. Só que a possibilidade de um time fazer três gols em dois minutos é materialmente impossível. Nemo tenetur ad impossibilia. Lembra? Por fim um caso real que mostra o grau de desconhecimento de assuntos jurídicos primários por parte desses profissionais do esporte. Fim de jogo, o famoso comentarista, autor de livros, DVDs e coisa e tal, dá as notas aos jogadores. A este dá nota 8, àquele dá nota 5,53 e, por fim, dá nota zero a um jogador, porque este foi expulso do jogo. "Verdade que a expulsão foi injusta, mas o meu princípio é esse: a jogador expulso, com ou sem fundamento, nota zero!" Como a nota é um padrão de mérito ou demérito, leva-se ao máximo o demérito do jogador, mesmo reconhecendo que o fato da expulsão não decorreu de culpa dele, mas a erro de terceiro. Nulla pona sine culpa. Lembra, Orlando Duarte? Um lembrete final: para quando o bandeirinha (hoje se diz "juiz auxiliar") deixa de marcar o impedimento que, nas circunstâncias não era claro, o princípio jurídico, que todo bandeirinha deveria conhecer, será: in dubio, pro ludo. E deixe a torcida chiar, já que ela não sabe latim. De acordo, Zé Trajano?
sexta-feira, 2 de fevereiro de 2007

Deontologia judicial

"Os jornais informam hoje que o CNJ começou a elaborar um código de ética para tentar evitar desvios de conduta dos magistrados. Um dos itens que seriam incluídos é a proibição de juízes receberem presentes das partes." (Migalhas, 5/1/2007) Já aposentado, fui visitar um juiz amigo em seu local de trabalho, no centro da cidade de São Paulo. Conversamos o que tínhamos para conversar e ele, gentilmente, me convidou para almoçar com o grupo de colegas que todas as sextas-feiras se reuniam numa churrascaria a cem metros do fórum João Mendes. Lá sou apresentado a vários magistrados, todos muito mais moços do que eu. Um último do grupo não era juiz, era perito judicial. Terminado o almoço, vem a conta e eu tiro a carteira do bolso, como seria de esperar. O tal perito espalma a mão direita. "Bem se vê que o senhor é novo no grupo. O único que tira a carteira aqui sou eu." Eu saí dali imaginando com que autoridade algum daqueles juízes divergiria de um laudo elaborado por aquele perito. Para que os advogados que ali também almoçavam haveriam de gastar dinheiro com designação de assistente técnico? Mais: como poderia um daqueles juízes arbitrar, imparcialmente, os honorários que seriam pagos ao mesmo perito? Em outras palavras: quem, de fato, estava pagando aquele almoço? Muitíssimos anos antes, eu havia chegado à nova comarca há pouco tempo e, logo antes do almoço, dois nipônicos tocaram a campainha de minha casa. Fui atender e eles me exibiram dois abacaxis, que haviam colhido na horta deles. Os abacaxis tinham uma especialidade: a casca era lisa e a coroa não tinha os tradicionais espinhos. Agradeci a gentileza, levei as frutas para dentro e fui almoçar. Terminada a refeição, segui para o fórum, onde, dentre outras audiências, havia uma especial. Era relativa a uma reclamação trabalhista. Reclamados: os dois nipônicos. Surpreso, chamei o advogado deles para o gabinete e narrei-lhe o que havia ocorrido antes do almoço. "Como será ridículo eu dar-me por suspeito por causa de dois abacaxis, o que, aliás, implicará a desmoralização de seus ingênuos clientes, sugiro que o senhor acerte com o reclamante e o promotor de justiça um acordo justo, de cujo conteúdo eu não quero tomar o mais remoto conhecimento. Fui claro?" De outra feita, indo visitar um juiz que eu mal conhecia e que morava numa bela casa, achou ele ser necessário me explicar que a casa de materiais de construção da comarca lhe fornecera, a preço de custo, tudo o que ele havia empregado na obra. Eu até pensei perguntar-lhe o que levaria um comerciante a abrir mão de seu justo lucro para beneficiar uma autoridade pública, mas me acovardei e preferi mudar de assunto. E houve aquele outro juiz que, vivendo maritalmente com uma senhora, nomeava sua companheira para fazer todas as perícias que ele, dentro de seu superior entendimento, achava necessárias. Chamado ao Conselho de Magistratura para explicar-se, defendeu-se informando que eles não eram parentes nem casados entre si. Foi posto em disponibilidade, o que certamente diminuiu a renda familiar deles dois. Mês de agosto, volta das férias. A mesa dos juízes costumava estar atulhada de autos de processo, os tais que não tramitam nas férias. Naquele específico início de agosto, o juiz titular estava indignadíssimo, pois o colega que assumira os trabalhos durante o mês de julho não havia dado uma única sentença, limitando-se a assinar os despachos preparados pelo cartório. Mais experiente e mais ingênuo, faço-lhe a natural observação: "Em seu lugar eu representaria ao Conselho Superior da Magistratura, dando conta do que ocorreu." Ele, menos ingênuo e mais covarde: "E eu lá sou louco? Não sei quem é o padrinho dele!" Outro caso: nós ambos éramos juízes substitutos. Ele foi designado para uma comarca, cujo chefe político tinha um escritório de advocacia bastante conceituado. Era homem influente e chegou a ocupar vários cargos públicos. Um dos advogados do tal escritório tinha aproximadamente a mesma idade do meu colega de magistratura, sendo natural que se formasse entre eles uma camaradagem. Quando aquele juiz se inscreveu para promoção, o tal camarada advogado prontificou-se a levá-lo ao escritório do advogado-político, ao qual apresentou o candidato a promoção: "Este é aquele juiz que nos concedeu aquele habeas corpus relativo a fulano de tal." Por fim este: havia na comarca uma Casa do Menor, cujo presidente de honra era o juiz de menores, como então se dizia, isto é, um dos juízes, de competência cumulativa, respondia pela Vara de Menores. O verdadeiro presidente da tal Casa do Menor era um empresário, dono de uma revendedora de automóveis, a qual, como é habitual, vendia carros pelo consórcio. Deu-se que dezoito consorciados, por motivos lá deles, contrataram uma dupla de advogados para acionar a tal revendedora, que não estaria cumprindo suas obrigações. Eles entraram com uma ação, pedindo uma tutela antecipada, que foi indeferida pelo juiz a que, por coincidência, havia sido distribuída a causa. Coincidência porque ele era ninguém mais ninguém menos do que o tal presidente honorário da entidade presidida pelo tal empresário contra o qual era movida a tal ação. Empresário que, dias antes, aparecera sorrindo em foto divulgada pelo jornal local, ao entregar ao tal juiz de menores um carro para a tal entidade presidida, de certa forma, por ambos. Os advogados suscitaram a suspeição do juiz, anexando à petição a página do jornal com a tal fotografia e o sorriso de ambos. Fosse você o juiz e recebesse o ofício do Tribunal, requisitando informações sobre aquilo, que você faria? Pois o tal juiz representou imediatamente ao promotor público da comarca, o qual, também imediatamente, ofereceu denúncia contra os dois advogados e contra os dezoito clientes da dupla, atribuindo aos vinte réus o cometimento dos famosos crimes contra a honra alheia. Denúncia que foi imediatamente recebida pelo colega do tal juiz de menores. Impetrado habeas corpus, com liminar rejeitada, sobreveio o acórdão, que considerou que o meio escolhido sabidamente não se presta a um exame aprofundado das provas, nos termos de iterativa jurisprudência. Ou seja, para verificar se os clientes respondem pelos desmandos de seu advogado, na esfera criminal, é preciso exame aprofundado das provas, meu caro Damásio Evangelista de Jesus. O solerte advogado deixou transitar em julgado o incrível acórdão do TACrim e impetrou outro HC junto ao Superior Tribunal de Justiça, obtendo liminar que mandou parar tudo aquilo. Dia do julgamento, lá está o impetrante para sustentar oralmente as razões da impetração. Entusiasmado, começa seu discurso dizendo que se sentia vexado por aquela teratologia jurídica estar ocorrendo em São Paulo. Ainda se fosse num desses rincões de nosso país ... O relator, em voto curto e grosso, diz o que até as crianças sabem: o cliente não responde criminalmente pelos desmandos do seu advogado. Quanto ao advogado, ao exercer o direito de suscitar o impedimento do juiz, ele não está a cometer crime algum, máxime se a alegação estiver acompanhada de prova documental. Ordem concedida unanimemente. Encerrado o julgamento? Encerrado nada. O ministro William Paterson, que concordara com o relator, pede ao advogado que aguarde um instante, ao mesmo tempo em que determina às taquígrafas que vão tomar um cafezinho, não precisam anotar o que eu vou dizer. "Ilustre advogado", começa ele, "ouvi com atenção sua brilhante oração e concordei plenamente com seus argumentos. Quero, porém, fazer uma pequena e modesta observação. Eu sou do rincão da Bahia, pois nasci em Amargosa. Meu colega aqui do lado também é dos rincões do Brasil, pois nasceu em Cobrobó das Antas. E posso assegurar-lhe que em nossos rincões nós jamais vimos um absurdo desses." Eu me limitei a dizer "Touché!", todos rimos e eu voltei para São Paulo com mais essa no meu currículo. Se você coleciona teratologias jurídicas ou costuma jogar no bicho, anote aí o número de registro 199900847520, relator Ministro Vicente Leal.  
sexta-feira, 26 de janeiro de 2007

Comédia e Tragédia

"O cinema pode ser pensado como uma faca de dois gumes: pode trazer à luz questões relevantes e suas implicações, positivas e/ou negativas, ou reforçar e cimentar estigmas e estereótipos com o perigo de que sejam reproduzidos e perpetuados". Ariane Lopes Messias Havia naquele tempo o Atenas Futebol Clube, que só tinha craques. O trio Sócrates, Platão e Aristóteles era dez, como diriam os peripatéticos de hoje. Discutiam coisas aparentemente irrelevantes, como se as idéias vieram antes das coisas ou se, ao contrário, as coisas só surgiram depois das idéias. E coisas profundas, como o significado da vida. Tempos depois apareceu um novo time, o Doutores da Igreja Futebol e Regatas. Uma dupla de área se destacou: Agostinho e Tomás de Aquino. Já naquele tempo a África produzia craques. Começaram por batizar seus colegas atenienses, sabidamente ateus. Depois, deram uma cristianizada nos dribles e nas pedaladas dos gregos. Em seguida mudaram o nome da brincadeira: sai Filosofia e entra Teologia, como anunciou o locutor. Talvez porque eu tenha começado a debruçar-me sobre os livros muito cedo, alguns temas de que cuida a filosofia me acompanham desde que me conheço por gente. Meu pai, leitor do Juó Bananére, bem que me advertia, inutilmente, que la filosofia é uma schienza tale senza la quale il mondo vá tale e quale. Um desses temas é precisamente o enigma da vida e da morte. Morre-se, e daí ? Eu poderia demorar-me em explicar isso, mas deixo para outra ocasião, para não me desviar daquilo que eu desejei escrever hoje. O que quero dizer é que fui ver um filme que os jornais e revistas dizem tratar-se de uma comédia. Seu nome é "Mais estranho do que a Ficção" (Stranger than Fiction). Como todos nós que ali estávamos havíamos lido que aquilo era uma comédia, toca rir das situações insólitas que vão aparecendo na tela, não nos impressionando a cara séria do personagem principal, um excelente ator saído da televisão, que, na verdade, não achava a menor graça em nada do que estava acontecendo. À medida que o filme se vai desenrolando, eu vou ficando inquieto na cadeira, vendo nele uma profundidade que não havia lido em nenhum comentário feito pelos entendidos. Aquilo é tão comédia como a Divina Comédia do Dante Alighieri. Ou a Comédia Humana, do Honoré de Balzac. Ou as comédias que eram escritas pelos teatrólogos gregos e que não tinham o propósito de fazer rir, mas, bem ao contrário, de fazer o espectador refletir sobre a vida, o que, quase sempre, leva ao choro. Não é a toa que comédien, para os franceses, não é aquele que faz rir, mas simplesmente aquele que interpreta um papel no teatro. Traduzir comédien por comediante é cair na cilada dos falsos cognatos. Comédien é apenas e tão somente o ator. Considerando que "a luz negra de um destino cruel ilumina este teatro sem cor, onde eu vou desempenhando o papel de palhaço do amor", como cantou o Nélson Cavaquinho, comediante somos todos nós, que vamos desempenhando nosso papel nesse palco mal iluminado. Palhaços ou coisa pior. Pois o filme cuida exatamente disso: a discussão filosófica entre livre arbítrio e predestinação ou fatalismo, o que, de início, me fez lembrar de um romance do Eça, qual deles ?, no qual, a folhas tantas, dois personagens, tarde da noite, ficam a discutir exatamente sobre isso. "O que tem de acontecer tem força", diz um deles, "não adiante lutar contra. É resignar-se". Nisso eles percebem que o último ônibus vai encostando no ponto de parada, onde ficará por alguns meros segundos. Talvez nem pare, se não houver passageiro para ser recolhido. E lá vão os dois aprendizes de filósofos a correr para pegar o ônibus, porque, se deixarem por conta do destino, talvez tenham de ir a pé para casa. Primo panis, deinde philosophari. Primeiro matemos a fome, depois vamos falar de filosofia, como se dizia quando se amarrava cachorro com lingüiça, um pouco antes dos tempos do Onça, apelido de um prefeito do Rio de Janeiro, fique sabendo a senhora, cujo nome era Luiz Vahia, brabo como ele só, como me ensinou o mesmo pai. Quando o protagonista do filme, comendo biscoitos feitos pela moça, começa a retornar à vida, eu não poderia deixar de lembrar das madeleines, graças às quais o Marcel Proust avançava em sua busca do tempo perdido. Quantas daquelas pessoas que assistiam ao filme teriam percebido isso ? Levantem o braço os que sim. E lá está Franz Kafka, pois o filme é eminentemente kafkiano, com o personagem sendo envolvido por uma história sem pé nem cabeça, uma história que está além de seu entendimento; e também Samuel Beckett, pois todos nós, tal como o personagem do filme, sempre estamos esperando Godot, o autor do roteiro de nossas vidas, que gostaríamos de encontrar em algum endereço; e, igualmente, as Parcas, não três mas duas, que, lá do alto, manipulam os cordéis que movimentam o personagem à revelia dele. Diante daquelas pessoas sentadas naquele escuro a ver meras imagens projetadas em um lençol branco, não pude deixar de lembrar-me do Platão. Repare que os expectadores de um filme não olham para trás, tal como os que o filósofo grego havia postado acorrentados a olhar apenas para a parede do fundo da caverna e as sombras que lá apareciam. Se os espectadores de cinema olhassem o que se passa lá atrás, veriam que tudo aquilo ali na sua frente é pura ilusão. A começar pelo fato de se cuidar de uma série de fotografias que, exibidas em alta velocidade, isto é, 24 delas por segundo, dão a ilusão do movimento. Isso pouco nos importa. A verdade não nos interessa. Se fôssemos à cabina de projeção, veríamos que o operador atira um facho de luz sobre uma fotografia impressa em celulóide e a sombra colorida disso é que aparece lá na tela. Não era exatamente isso que dizia o Platão no Livro VII do seu República ? Você prefere ver cada animal passando entre a fogueira e a parede da caverna ou prefere ficar apenas com as sombras inexpressivas deles ? A platéia é composta de pessoas que, em sua maioria, são incapazes de ver naquela narrativa aparentemente divertida a profundidade enorme que ali se contém, até porque ali se fala da morte. Seria coincidência que o crítico literário fosse, ao mesmo tempo, treinador de natação ? E que, a certa altura, resolve mergulhar na água ? Que sentido teria a escolha dessa impensável profissão alternativa para aquele personagem ? Cartas à redação. A sutileza do roteirista e do diretor pode ser medida por uma cena emblemática: o personagem masculino entrega à moça por quem está interessado alguns saquinhos de farinha, que em inglês se denomina flour. É essa uma palavra homófona de outra palavra inglesa, flower. Isto é, ambas têm a mesma pronúncia. E a sutileza vai mais longe: a flor é o órgão sexual da planta. Há naquele gesto todo um discurso, que a quase totalidade dos espectadores não tem condição de perceber: o som da palavra farinha é, na verdade, uma referência à flor, que, na verdade, é a expressão de um desejo sexual. Se essa flor se chamasse orquídea, a insinuação não poderia ser mais clara: orquídea quer dizer pequeno testículo. Sutil, não ? A história contada no filme apresenta dois finais distintos. Qual deles você prefere ? Conforme a escolha, você se identificará como fatalista ou como adepto do livre arbítrio. Aliás, o segundo final pode ter uma leitura religiosa, se me permite a lembrança: se você implorar a Deus e praticar atos de caridade, talvez o Criador da tua história resolva alterar o seu final. Alguns chamam isso de esperança. Così è, se vi pare, diria mestre Luigi Pirandello.
sexta-feira, 19 de janeiro de 2007

Filho do Juiz (O)

  "Aviso: esta crônica contém ironia explícita."(Luis Fernando Veríssimo) Hoje meu pai voltará para casa. Depois de tantos anos ausente, retornará ao nosso convívio. Parece que o feitiço terminou. Foi aqui que tudo começou. Foi por aquela estrada pedregosa que o feiticeiro veio, empurrado pelo populacho ululante. Caiu por duas vezes ao fazer aquela curva, sendo consolado por uma sirigaita, que parecia ser sua amante. E mais ali adiante foi que lhe deram fim, o merecido fim, no alto daquele outeiro. O Morro das Caveiras. Só o nome me traz arrepios. Um merecido fim, realmente. Tenho nos olhos ainda as cenas, como se tivessem acorrido ontem. Parece que estou vendo a soldadesca tirar a roupa do feiticeiro, preparando-se para a execução. Era um prisioneiro altivo, com ar arrogante, como se fosse inocente. Um farsante completo. De onde viera? Com certeza dos infernos, onde aprendera a arte da dissimulação e do embuste. E a agitação social que ele ia provocando, com suas palavras insidiosas, com o pretexto de defender os pobres e injustiçados? E sua desconsideração para com as leis e as autoridades legalmente constituídas? A lei e a ordem, preceitos máximos insculpidos em nosso coração, sendo ultrajados. E nós deveríamos ficar silentes? Onde iria parar tudo isso se meu pai não tivesse dado um basta? Esse nacionalismo zelotense inconseqüente, xenófobo, jogando nosso povo contra nossos fiéis aliados, os nossos colonizadores? Permitamos isso e estaremos acabados. Agora parece que estou vendo erguerem-no na trave. Vejo-o lá no alto, olhando-nos, como se nos interrogasse. Ou nos julgasse. "Tenho sede", resmungou o condenado, do alto da trave. "Como diz, ó bruxo?", perguntou-lhe um dos soldados mais divertidos. "Queres água? Pois terás a água e a oportunidade de repetires uma das tuas mágicas preferidas." Saindo dali, o risonho soldado dirigiu-se a um dos rapazes, deu-lhe uns trocados e, com sua autoridade, mandou-o comprar do vinho mais vagabundo. "Veja que seja o pior", recomendou enfaticamente. Dentro de pouco tempo, voltou o rapaz com o vinagre. O soldado embebeu nele uma peça de tecido imunda e, com a lança levou o pano embebido aos lábios do condenado. "Dizem que transformas água em vinho. Quero ver-te transformar agora vinho em água". E ria e ria. Bem que o bruxo mereceu. Que lhe fizera meu pai? Acaso foi injusto ou grosseiro com ele? Deixou de ouvi-lo? Impediu-o de defender-se? Nada disso. Muito pelo contrário, quando o trouxeram preso, meu pai ainda lhe deu oportunidade para retratar-se, assegurando-lhe o sagrado direito de defesa. "Quer dizer que tens poderes sobrenaturais? Curas? Levitas? Fazes cegos verem e cochos andarem? Julga-nos idiotas?" A resposta que o prisioneiro lhe deu bem que merecia uns dentes arrancados. Ou a própria língua. Pelos menos uma bofetada. Nem isso meu pai lhe deu. E quem o condenou à morte? Acaso foi meu pai? Não. Digo que não e não. Foram seus amigos, os aprendizes de feiticeiro. Eles é que decretaram, com seu silêncio, a morte do seu tão falado mestre. Com efeito, quando meu pai consultou o povo sobre o destino dos prisioneiros, os amigos do outro criminoso estavam lá, no meio da ralé. Sem temor, levados pela admiração a seu líder, eles orientavam o povo a preferi-lo ao bruxo. Um criminoso comum não interfere no juízo das pessoas. Leva-lhes a vida, ou a fortuna. Mas nenhum desses criminosos provoca comoção social. O homicida não mexe com nosso comodismo diante da vida, nossa prudente passividade diante da autoridade corrupta. Um criminoso comum tem seu preço. Basta que paguemos o preço, tolerando sua convivência conosco, como fazemos com os políticos, ou afastando-o do convívio das pessoas por tempo suficiente, para termos paz. Já um fanático, não. Esse tem um poder mágico diabólico. Com uma fala mansa, um jeito de aparência inofensiva, ele introduz no coração dos homens a semente da cizânia, da desconfiança. Leva filhos a encararem os pais, sem respeito nem temor. Leva súditos a questionarem ordens, a duvidarem da seriedade dos governantes. Pois os amigos do bruxo silenciaram. Talvez no fundo nem eles acreditassem em seu mestre. Se acreditavam, onde estavam se não ouvi uma só vez o nome dele ser pronunciado na multidão. E foi meu pai quem o condenou, então? Claro que não. Foi o povo, foram os jurados, pois vivemos em uma democracia. E foram os amigos dele, que silenciaram, admitindo sua culpa, quando deveriam lutar por ele. Tanto que meu pai publicamente lavou as mãos, para isentar-se de culpa. E foi aí que o feitiço aconteceu. À medida que o bruxo era levado para o local da execução, as mãos de meu pai foram apresentando umas manchas muito estranhas. Alaranjadas a princípio, foram-se tornando vermelhas em poucas horas. E aquelas manchas vermelhas, cor de sangue, visíveis a distância, passaram a incomodar meu pai terrivelmente. Inicialmente ele procurou não dar muita importância a elas. Mas a preocupação de lavá-las a toda hora foi-se convertendo paulatinamente em mania. Logo, era autêntica obsessão compulsiva. Uma compulsão diabólica. E até parece que quanto mais ele as lavava, mais viva ficava aquela cor. De nada adiantaram os ungüentos, nem os banhos. E meu pai não suportou esse peso. Sem dormir nem comer, gesticulando e andando sempre pela casa, tornou-se outra pessoa, como possuído por um espírito imundo. Interná-lo tornou-se necessário, até mesmo para evitar que consumasse o suicídio, tantas vezes tentado. Agora ele volta do sanatório, onde nossos melhores médicos após tantos anos de insistência, parece haverem conseguido tirar de suas mãos as manchas e de sua cabeça a loucura. Dizem por aí que foi um médico amigo e seguidor do bruxo quem o curou. Bruxaria cura-se bruxaria. Um tal Lucas, médico de homens e de almas, como dizem. Não creio, porém. Quem acreditaria que um homem tão competente, como deve ser esse médico, acreditaria nas mentiras e promessas absurdas feitas por um feiticeiro vulgar?    
sexta-feira, 12 de janeiro de 2007

Esperança

E aí, quais são tuas expectativas para 2007? O Millõr Fernandes já solucionou o problema dele: neste ano não vai ler jornal, nem revista, nem ver noticiário de televisão. Sendo ele o famoso filósofo do Méier, certamente sabe o que dizem seus colegas: aquilo que você não conhece não existe. Um de meus temores quando escrevo é que, pelo fato de usar, por vezes, certos argumentos com ênfase excessiva, acabe dando ao leitor jovem uma visão amarga da vida, que, no limite, significa desesperança. Muitos confundem ter esperança com ser otimista. A diferença, porém, entre o otimista e o pessimista é mínima: o primeiro acha que se morre porque se havia nascido; o segundo acha que nascemos para depois morrermos. Já o realista simplesmente dirá que tudo tem início e fim. Nenhum dos três nega o fato óbvio: a cada dia estamos mais longe do berço e mais próximos da sepultura. Você discorda disso? A quem me cobra por isso, transmito uma mensagem enviada por uma amiga, pela Internet, na qual ela recorda que, há alguns anos, nas olimpíadas especiais de Seattle, também chamadas de Paraolimpíadas, nove participantes, todos com deficiência mental e/ou física, alinharam-se para a largada da corrida dos cem metros rasos. Ao sinal, todos partiram, não exatamente em disparada, mas com vontade de dar o melhor de si, terminar a corrida e ganhar a prova. Todos, exceto um garoto, que, logo no início da caminhada, tropeçou no piso, caiu rolando e começou a chorar. Os outros concorrentes, tomando conhecimento do incidente, fizeram o que pessoas "normais" certamente não fariam: diminuíram o passo e olharam para trás. Vendo o garoto no chão, pararam e voltaram todos eles até onde ele estava caído. Todos eles! Uma das meninas, com Síndrome de Down, ajoelhou-se, deu um beijo no garoto e disse: "Pronto, agora vai sarar". E todos os nove competidores deram-se os braços e andaram juntos até a linha de chegada. Você chorou com isso? Eu também. Outros chamarão isso de pieguice. Rótulos. Eu prefiro registrar que a Internet serve para algo mais do que ser usada para os desocupados nos enviarem piadinhas calhordas. Ou obscenidades. As pessoas que viram a cena repetem essa história até hoje. Por quê? Certamente porque, lá no fundo, nós sabemos que o que deveria importar nesta vida, mais do que ganhar sozinho algum prêmio, é ajudar os outros a vencer, mesmo que isso signifique diminuir o passo e mudar de curso. Uma mudança de rumo voluntária e consciente, que substitua a vida desumana que tantas vezes nos parece haver sido imposta "pelas circunstâncias", quando abrimos mão de valores que nos são fundamentais para mantermos aquela que nos parece a rota adequada e da qual não deveríamos jamais abdicar. Por algo que não se pode chamar de coincidência, necessitando de ir a dois consultórios médicos diferentes num breve período, lá encontrei duas revistas diferentes com a mesma matéria de capa: a procura da felicidade. Em ambas são entrevistadas pessoas comuns, mas também pessoas especiais, como são os psicólogos e os psiquiatras. A tônica é sempre a mesma: a vida que a sociedade contemporânea está produzindo é fonte de stress e, no limite, alguma forma de desequilíbrio mental. Cedo ou tarde pagamos um preço elevado por cedermos a isso que se chama "vida moderna". E o resultado é a sensação de vazio existencial. Isso poderia ser diferente? Sei que não é fácil fazer alguma coisa quando se vê (e se vê isso cada vez mais) pessoas abrindo sacos de lixo à procura sabe-se lá de quê. A cena nos causa engulhos e nos sentimos impotentes diante de dramas como esse. Ou vemos pessoas saudáveis que, em lugar de estarem assaltando ou vendendo drogas, como tantas outras, limitam-se a recolher latas vazias e sacos de papel, que venderão por preços irrisórios. Alguém reconhece a difícil opção que essas pessoas fazem? Cada um de nós teria, certamente, casos e mais casos para contar a respeito disso. O que importa, creio, é que não podemos mais permitir que em nome de um absurdo progresso (que, em nosso país, ainda privilegia tão poucos) as desigualdades sociais aumentem de forma galopante, atingindo-nos fundo, ainda que indiretamente, pois somos beneficiários diretos desse sistema injusto. Você não? Que nos fique, pelo menos, o direito de nos indignarmos e tentarmos, a todo custo, manter a esperança em dias melhores. Esperança, essa plantinha teimosa que insiste em nascer nas impensáveis rachaduras do duro cimento das ruas. E que, por vezes, nos faz fazermos coisas que contrariam o pensamento vigente. Essa imagem da plantinha foi apresentada por mim no discurso de encerramento do VI Encontro de Tribunais de Alçada ocorrido em Belo Horizonte em 1982, causando um impacto que eu não poderia esperar. Até o Sydney Sanches se utilizou dela depois, sem me pagar direitos autorais. Muita gente se lembra mais disso do que da tese que apresentei, em nome do TACRim, a qual, aliás, não tinha nada de extraordinário. Foi aprovada e virou lei 20 anos depois menos por sua novidade e mais pela acomodação daqueles que diziam estudar o processo penal. Você certamente terá algo semelhante a contar. Talvez não o faça por temer a crítica dos que o achariam "exibido". Você pauta sua vida pela opinião alheia? Se o besouro ouvisse os cientistas, não teria tentado voar, pois, anatomicamente, isso é impossível. Como não sabe ler, ele consegue voar! Vou mais longe: nos últimos dias do ano que passou, vi uma orquestra sendo regida por um maestro de longos cabelos brancos, que não trazia batuta na mão. Olhando bem aquelas mãos crispadas, reconheci ali o ex-pianista João Carlos Martins. Você sabe a história desse homem? Pianista aplaudido no mundo inteiro, um dos maiores que o mundo já produziu, ele sofreu inúmeros acidentes que culminaram por comprometer-lhe os movimentos da mão direita. Uma queda num jogo de futebol, uma operação e um assalto quando ainda convalescia. Cirurgias e tratamentos diversos que não serviram para muito. A mão direita estava perdida. Ele, então, passou a tocar piano apenas com a mão esquerda. Chegou a lançar um disco com áreas escritas apenas para aquela mão. A insistência dele e o tamanho do esforço causaram-lhe um novo drama: perdeu também o movimento da mão esquerda, graças a um tumor que ali se alojou. Certamente muitos de nós chegariam à conclusão de que a música era em sua vida um capítulo encerrado. Seja feita a vontade de Deus! É partir para outra. Pois ele, levando em conta seu capital acumulado ao longo de tantos anos, que é o seu profundo conhecimento musical, não entregou os pontos. Resolveu tomar aulas de regência, aos 63 anos de idade, e trocou o teclado do piano pelo pedestal da regência, dando-nos um tocante exemplo de vida. Neste início de ano fez sua primeira regência no Carnegie Hall, Nova Iorque, onde tantas vezes já se havia apresentado como pianista, um dos mais completos intérpretes de Bach que o mundo já produziu. Aliás, há um DVD que merece ser visto: Martins' Passion, que é a narrativa da paixão, no sentido de calvário, desse homem extraordinário, que, entre outras coisas, deu aula de música a internos da Febem, coisa que muito juiz e promotor poderia ter feito e nunca se lembrou de fazer. Se estiver desanimado ou se achar que 2007 será igual aos demais anos que tanto nos decepcionaram, chame os amigos e ponha o DVD pra rodar. Garanto que não vai decepcionar-se.
sexta-feira, 5 de janeiro de 2007

Balanços

A vida seria bem melhor se nós só nos lembrássemos de coisas futuras. Isso de lembrar coisa passada, além de não servir para nada, acaba por nos dar uma nostalgia, um banzo, que não leva a lugar nenhum. A experiência é um farol que colocamos no último vagão do trem, para nos mostrar o caminho percorrido, pois o a percorrer está lá na frente, aguardando nossa coragem para traçá-lo. ¡No hay caminos!, como dizia o poeta filósofo. Hoje, por exemplo, acordei lembrando-me do tempo em que, nos fins de ano, as lojinhas colavam na porta cerrada uma folha de papel dizendo "fechado para balanço". Eu lia aquilo e me vinha à mente aquela corda cujas duas pontas se amarravam lá em cima, num galho forte de árvore. Cá embaixo, naquela curva feita pela corda, nós púnhamos um pedaço de madeira. Sentávamos ali, apoiando-nos nas duas metades da corda, que segurávamos uma com cada uma das mãos. E era só contar com a boa vontade de alguém para nos dar o primeiro empurrão para a frente, que o resto ficava por conta da lei da gravidade e a conseqüente atração dos corpos, como nos havia explicado a professora de ciências naturais ainda outro dia. O que também explicava os possíveis tombos. Meu pai, consultado a respeito daquela preocupação dos comerciantes com a corda dobrada e o pedaço de madeira, levou-me a uma dessas lojinhas, cujo dono era seu amigo. Lá estava o homem debruçado sobre um livro enorme, tendo um lápis na mão. Os empregados da loja contavam porcas e parafusos, informando o resultado parcial ao homem, que ao fim do dia somaria isto e diminuiria aquilo, para saber se o ano foi bom ou ruim. Balanço, então, era aquilo? Outro dia a Diana e a Umiliana me disseram que já passaram por experiência semelhante quando a sobrinha, dona de loja de armarinhos em Boituva, aproveitaram a presença das tias e as puseram a empacotar em saquinhos as miçangas que haviam comprado por atacado na 25 de março, o que elas fizeram em pagamento da estadia. Quando me tornei juiz, aquela imagem me veio à lembrança ao receber as instruções para realizar o necessário balanço anual do movimento de processos. Isso, naquele tempo distante, se chamava "correição geral anual", algo que, ao que me parece, não existe mais, tanto quanto a caneta de pena removível, que se molhava no tinteiro a todo instante, para que meu pai desenhasse aquela letra bonita dele. No dia aprazado, lembrando-me do lojista amigo de meu pai, determinei ao escrivão que me trouxesse o livro de registro de feitos. Ali, como na lojinha de porcas e parafusos, havia data de entrada da mercadoria e data de sua saída, que, no caso do meu balanço, era a data em que os autos haviam entrado no cartório e a data em que haviam sido enviados para o arquivo, pois, naquele tempo, as ações costumavam chegar ao fim, diferentemente do que ocorre hoje. O tal livro que me foi exibido compreendia os últimos cinco anos e eu, entre curioso e responsável, vim examinando lançamento por lançamento, desde a primeira página, para espanto do escrivão. Lá pelas tantas havia mercadoria a ser conferida. "Por que este processo ainda está em andamento?" O escrivão ensaiava alguma resposta e eu lhe determinava que me apresentasse incontinenti o recalcitrante. Um desses processos era uma ação penal privada, que havia permanecido em alguma prateleira sob uma grossa camada de poeira por alguns anos, tempo suficiente para que a punibilidade do querelado se extinguisse. E os inúmeros juízes que por ali haviam passado não haviam visto aquilo. Para quem tinha, até ali, a imagem que eu tinha do Judiciário, aquilo era algo incompreensível. Hoje não me espantaria tanto. Com o tempo fui descobrindo que aquilo tudo, nas demais comarcas, era um faz-de-conta. O escrivão, cujos atos deveriam ser fiscalizados pelo juiz corregedor, era quem apunha, nos autos que ele mesmo, como fiscalizado, escolhia, o carimbo de "vistos em correição", que o juiz assinava sem voltar uma única folha dos autos que, para todos os efeitos, estavam por ele sendo "correcionados". Parava-se todo o serviço do cartório para aquela brincadeira de crianças. O Delegado Titular de um distrito policial da capital sujeito à minha atividade correcional, Juiz distrital do Ipiranga que eu era, homem com mais de 40 anos de serviços prestados como delegado, confessou que em todo aquele tempo jamais vira alguém fazer correição com o livro de registro de feitos na sua frente. Eu exigia que o doutor Galeano me apresentasse os três livros fundamentais: registro de B.O., registro de inquéritos policiais e o chamado "livro de cotas", que se refere aos autos que retornaram do fórum com alguma cota do promotor. Registrado o boletim de ocorrência, deve a ele seguir-se o registro da portaria que dará início ao inquérito policial. A certa altura, os autos do inquérito serão enviados a Juízo, o que será registrado naquele livro como "baixa". Retornando depois os autos à delegacia, a entrada agora será registrada no tal livro de cotas. Tudo muito simples. Durante 40 anos nunca haviam exigido daquele delegado que fizesse este cálculo matemático simples: duzentos inquéritos policiais instaurados menos oitenta inquéritos policiais enviados ao fórum corresponde a cento e vinte inquéritos em andamento na delegacia. "Eu quero ver esses cento e vinte inquéritos". Simples, não? Hoje, graças à computação, tudo isso não tem mais sentido. Basta o homem da lojinha de porcas e parafusos apertar um botão e lá está no monitor o número de peças compradas, o número de peças vendidas e o estoque existente. Aperta outro botão e o próprio computador se encarrega de providenciar a atualização do estoque, oficiando ao fabricante. Tudo em questão de minutos. Nos cartórios também deve ser assim. Não posso afirmar porque estou fora disso há algum tempo. O juiz das execuções criminais, por exemplo: ele aperta um botão, e zap!, lá está no monitor o número de réus presos, as penas respectivas e a data do vencimento de cada uma delas, algo que os juízes têm o dever de conhecer porque a eles incumbe (ao menos no meu tempo era assim) zelar pela liberdade dos seres humanos. Custos libertatis, lembra? Aperta outro botão e lá está a indicação dos presos que deverão ser postos em liberdade no dia de hoje. Aperta um terceiro botão e, zaz!, o computador expede os alvarás de soltura a serem cumpridos naquele dia. Talvez um quarto botão desperte o oficial de justiça de seu sono profundo para que ele entregue os tais alvarás a seus destinatários naquele mesmo dia. Acho que é assim. Se não for, fica aí a sugestão. Até sugiro que esse programa de expedição automática de "revisão de estoque" tenha um nome, a ser conhecido por uma sigla: PCC. Ou seja, Programa de Controle de Condenações. Que tal?
quinta-feira, 28 de dezembro de 2006

É Natal

  "Tocam sinos/ pequeninos/ sinos de Belém/ já nasceu/ Deus menino/ para o nosso bem" (Versão nativa do Jingle bells) O fato de o Natal ser celebrado no mesmo dia em que teria nascido Jesus de Nazaré é apenas uma coincidência, pois um fato nada tem a ver com o outro. Aliás, se nem o ano exato em que Jesus nasceu nós sabemos, que dizer de dia e mês? São comemorações inteiramente distintas, que a malícia de alguns religiosos e a esperteza dos comerciantes fizeram coincidir, como se uma coisa estivesse ligada a outra. Imagino o que aconteceria se a seleção brasileira de futebol tivesse ganho algum campeonato mundial no dia 25 de dezembro. Certamente muitos padres diriam que aí está uma prova definitiva de que Deus é brasileiro! E tome manjedoura adornada com o auri-verde pendão de minha pátria. Meu querido Eduardo Galeano nos lembra que o local onde Jesus teria nascido era e é um deserto semi-árido, onde jamais caiu um só floco de neve. E, no entanto, fomos ensinados desde criança a comemorar esse nascimento enfeitando pinheirinhos com flocos de algodão, imitação caseira da garoa consolidada pelo frio que teria caído sobre a famosa manjedoura. O que é a História, escrita pelos interesseiros! Ele poderia ter dito também que a cor da roupa do Papai Noel, dito lá no alto do continente Santa Claus, foi imposta pela Coca Cola, "patrocinadora oficial do Natal", para que, assim como a criança mija pavlovianamente quando você abre a torneira do banheiro, nós também nos lembraríamos daquele refrigerante quando víssemos o velhinho de barbas brancas descendo pela chaminé de nossa tropical casa. Chaminé? E ele poderia ter acrescentado que o velhinho, que no Chile é chamado Viejito Pascuero, teria sido inspirado em São Nicolau, um bispo nórdico que gostava tanto de criança (Epa!) que costumava distribuir brinquedos entre elas no fim do ano. Isso pouco tinha a ver com o nascimento de Jesus, tanto que na Itália os brinquedos são (ou eram, antes da influência dos neo-colonizadores, pais da famosa aqua nera del'imperialismo, como diz o Armando, acima citada) distribuídos no dia de Reis, em falsa lembrança ao fato da visita dos magos à manjedoura, a que se refere a tradição cristã, algo que na Bahia é chamado de sincretismo religioso e aqui nem sei se merece o nome. Como isso chegou aos publicitários norte-americanos, que, juntando o útil ao agradável, acabaram contaminando uma data religiosa, é coisa para não admirar. O fato é que Saint Nicholas, Saint Nick, Father Christmas, Kris Kringle, Santy ou Jolly Old Elf tornou-se Santa Claus, uma corruptela do nome do tal bispo: Sinterklaas, uma síntese de Sint Nicolaas. Em inglês, Saint Nicholas. O fato é que, no espírito do show-business natalino, um shopping center de São Paulo, desses que promovem periódicos sales, com mercadorias em off, e que não usam o sistema delivery, contratou rapazes e moças, fantasiou-os como príncipes, princesas, fadas, gnomos e elfos, espalhando-os pelos pisos do edifício, forçando a construção de um "ar natalino". Dois deles passam por mim e se dirigem a um grupo de moças, que eles saúdam alegremente. Elas, com o ar aborrecido de quem havia sido interrompido quando cuidava de assunto importante, recuam, deixando-os passar por elas, sem nada dizerem. Eles apressam o passo, dirigindo-se sabe-se lá a quem ou aonde. Mais adiante, ouço uma saudação às minhas costas: "Olá! Como vai?" Viro-me, pensando dar de cara com o Luiz Flávio, que, tendo morado na Espanha por alguns meses, ainda nos pergunta, com sotaque da Universidade Complutense, "¿Que tallllll?", mesmo quando não estamos em alguma assambléa. Não era ele. Era um "príncipe", saudando uma garota de uns cinco anos, que, na companhia dos pais, olhava, muito assustada, para o moço fantasiado. Os pais não mostravam o menor entusiasmo pela presença de Sua Alteza, que permanece com meio sorriso no rosto, enquanto o trio se afasta, sério. Desço alguns lances de escada e agora é uma fada e sua acompanhante, ambas devidamente paramentadas, que tentam arrancar um sorriso do japonesinho que se esconde entre as pernas dos pais. Os japoneses limitam-se a conservar a expressão que têm todos os japoneses. Reparo que por ali pessoas vão e vêm, com o mesmo aspecto que têm as pessoas que vão e vêm pelo viaduto do Chá durante os dias da semana. Ou pela rua Direita. Saio do shopping com a sensação de que os contos de fadas não estão com nada. Ainda se fosse a "Liga da Justiça"... Essa, certamente, como diria um de meus netos, é dez. À noite, eu e minha mulher vamos a um determinado restaurante, no bairro dos jardins, onde se realizará uma "festa de confraternização" patrocinada por uma entidade a que pertencemos. É uma casa minúscula, cujo proprietário aproveitou todos os espaços para colocar mesas e cadeiras, só sobrou o teto e parte das paredes. Quando a pessoa sentada às suas costas vai levantar-se, a cadeira dele esbarra na tua, exigindo que você comprima a barriga contra a mesa para que o vizinho possa sair. Estivesse ali o Malheiros Filho ... Os grupinhos vão-se acomodando como dá, ocupando as separadas mesas. Um sinalzinho de mão ou um beijinho enviado com dois dedos sobre os lábios é a saudação dos que se conhecem. Cada um se serve junto a um balcão situado em ponto estratégico da casa, algo nada diferente do "por quilo" da semana. Com o passar do tempo, alguém se levanta, ergue e balança o braço direito, dando um lento giro no corpo, em sinal de que se está retirando. É um ritual que faria orgasmar um Roberto da Matta. O ritual se repete de tempos em tempos, até que uns poucos nos reunimos na calçada, em frente ao restaurante, onde cada um paga pelo estacionamento do seu carro, que fica ali aguardando, com aquele ar de quem fica aguardando automóvel nos demais dias do ano. Ali, um casal, desenxabido, pergunta pela confraternização que iria haver. "Já houve", diz alguém, sarcástico, às nossas costas. O ar cansado dos que esperam o manobrista trazer o automóvel não deixa dúvida quanto a isso: aquilo foi apenas mais um cumprimento de ritual, mais um compromisso como tantos que nos haviam ocupado durante o ano prestes a findar-se. Uma senhora suspira e comenta que ainda lhe falta cumprir um derradeiro ritual: preparar a ceia de fim de ano, recepcionando "aquele bando" que devorará em menos de 10 minutos o que ela levou horas para preparar. E mais uma vez eles se levantarão da mesa sem uma palavra de elogio ou de agradecimento. "Nem a tirar a mesa eles ajudam", suspira ela. Penso ouvir lá longe algum anjo tocando harpa. Reconheço a música: djingo bél. E noto que a harpa, como certos uísques, é paraguaia, tocada pelo Luiz Bordón.
sexta-feira, 22 de dezembro de 2006

Tomé

"Quando se aproximaram de Jerusalém e chegaram a Betfagé, junto do monte das Oliveiras, enviou Jesus dois discípulos, dizendo-lhes: Ide àquela aldeia que está lá adiante e logo achareis uma jumentinha presa e com ela um jumentinho; desatai-a e trazei-mos"( Mt 21, 1-2 ) Eu tinha um cavalo chamado Tomé. Comia da alfafa, do arroz e feijão. Bebia cerveja, também guaraná. As flores amava, os prados corria, o ar respirava, com muita alegria. Meu bom cavalinho, chamado Tomé, também galopava, na ponta do pé. Plect, plect, plect, plé. O dia nascendo, o sol bocejando e o bravo Tomé de há muito trotando. Tomé trabalhava, trabalhava e trabalhava. Meu pai, um leiteiro, inda madrugadinha, saía p'las ruas, com disposição. Mortinho de sono, papai na boléia balança pra lá, balança pra cá, ao trote miúdo do meu cavalim. Sabido, ensinado, Tomé dispensava ordens e mandos. Casa da Eulália, da Vera ou Rosinha, parava o cavalo, bem junto ao portão. Meu pai acordava, descia bem presto, pegava a garrafa e cumpria a missão. Vai dia, vem dia; sai mês, entra mês; os anos passando, meu pai mais Tomé seu leite entregando. A neve do tempo - se diz na poesia - pintava o cabelo do nosso leiteiro. Tal como se o leite quisesse marcá-lo de um modo especial pra que se lembrassem, agora e no sempre, o que de lembrar carecia mais não. Feliz ele era, ali se dizia, entrega seu leite com sastifação. Um dia na vila aparece um pastor. Parece afobado, tarveis preocupado, buscando, indagando, quem sabe lá o quê? Encontra meu pai, conversam bastante. Pondera um de cá; insiste um de lá. E eu só na janela, de longe espiando, mirando lá fora, sem nada entender. O homem - parece - termina a conversa. A mão no chapéu, sorriso na boca, despede-se humilde. Meu pai entra logo. Eu corro pra ele, me atiro em seus braços. Costume já velho, que a gente mantinha, quando ele voltava, saudade era eterna. - Senta fio, mode proseá. O ar era grave, a gente sentia. Olhava pra o chão, então pra parede. Meu peito sentindo o ar rarear. - Coisa grave, pai? - Pense não. Escute premero, adespois entristeça, se caso. Cheguei-me e sentei, fiado na fala, no rosto, nos gestos do pai que eu amava, amigo que era, certeza eu só tinha que tudo, por certo, melhor sairia, possível devera, no modo de ser. - Diz que a léguas, coisa longe, tem um homem, bom de fato, carecendo de um jumento, pra mode entrar na cidade, no cumprir de uma promessa. Campearam pelas vilas, procuraram nos atalhos, removeram céus e terras, e jumento não acharam. Tomé, seu cavalim ... Mais não disse. Carecia. Mãos cruzadas, rosto baixo. Eu quis falar coisa alguma. Não saiu. Imagens ficaram bailando nos olhos, lágrimas soltas corriam na cara. Ficamos parados, ali dois amigos, sem falar nem saber que dizer. - Se é promessa, pai, que se cumpra. Quem somos nós diante de Deus? Deus dá - louvado seja! - Deus leva - louvado seja! Tudo é dEle, nada é nosso. Não foi isso que o sor me ensinou nesses tempos todos? Então por que o choro? Meu pai ergueu o rosto e uma luz vinha lá da cara dele. Os olhos pareciam duas pedras preciosas, turmalindas brilhando, brilhando. Trocamos abraço longo, sentido, sem dizer palavra. Nem não carecia. Dia seguinte, manhãzinha, veio o moço buscar o Tomé. Levou. - É promessa, menino. - Que se cumpra! Cumpriu-se. No dia marcado, fui assistir a entrada do forasteiro na cidade. Tomé vinha todo enfeitado com flores nos arrelhos. Trazia a cabeça altiva, empinada. A pelugem branca até brilhava de tão limpa. À sua passagem, as pessoas atiravam flores no chão, que ele pisava com raro garbo. Folhas de palmeiras eram acenadas pra o Tomé, que balançava a cabeça, agradecido. Dava gosto ver sua alegria. Até parecia que ele se havia preparado a vida toda praquele momento. Um momento de glória, de consagração. Tomé foi-se com o moço da promessa. Vez em quando, tardinha, no repousar do sol, olhando o céu, parece que as nuvens formam a cara do meu cavalinho. Ele me sorri satisfeito. Conversamos longamente, até o sol se pôr de fato. Maluquice a minha. Então já se viu cavalo entrar no céu?   1 - Do livro Cristo, hoje, Editora Loyola (esgotado)
sexta-feira, 15 de dezembro de 2006

Cultura

"Os antropólogos sabem de fato o que é cultura, mas divergem na maneira de exteriorizar esse conhecimento." (George Peter Murdock) Vejo num programa de televisão brasileiro, num desses inúmeros debates inconclusivos, que mais parecem programa da TV francesa, várias pessoas buscando conceituar cultura. "Cultura é o nosso futebol", "cultura é o candomblé", "cinema é cultura", "grafite é cultura", confundindo definição com exemplos. Dou minha contribuição ao debate, trazendo também eu alguns exemplos, com os quais também fujo a uma tentativa de definir. Em uma lojinha de um shopping, freqüentado por pessoas da chamada classe média alta, o que quer que isso signifique, compro alguns artigos de papelaria, que somam R$ 21,00. Entrego uma nota de R$ 50,00 à balconista, uma mocinha mulata, condição que me impressiona positivamente, pois também sou avesso a toda forma de discriminação entre pessoas, embora seja avesso à demagógica política das cotas, que, em nome de enfrentar um problema, acaba criando outro, como é a natural marginalização das pessoas "menas dotadas" em face de seus colegas, os "mais dotados", isto é, aqueles que ingressaram na faculdade pela porta da frente. Os que ganharam o jogo no campo, e não na secretaria. Aliás, já está comprovado que quase metade dos alunos admitidos por força das tais cotas no ano passado não concluíram nem mesmo o primeiro semestre escolar na faculdade. Alguém está realmente interessado em estudar as causas dessa previsível evasão? Isso é problema do Ministério da Cultura ou do Ministério da Educação? Ainda agora o IBGE nos informa que nunca tantos alunos freqüentaram a escola como agora. Algo acima de 90% do número máximo ideal. Mas, em compensação, nunca os professores estiveram tão despreparados para dar a esses alunos algo que os faça conseguir não só ler um texto como interpretá-lo. Qual o grau de cultura que deve ter um professor? Por exemplo, você tem idéia de quantos titulares lecionam efetivamente na Faculdade de Direito da USP, em lugar de enviarem em seu lugar "assistentes" ou que outro nome lhes dêem para darem aulas em seu lugar? Quem os fiscaliza, se as Universidades são "autônomas"? Que será que o mais recente ex-diretor tem a dizer sobre isso? Pois volto à tal balconista. Ela pegou da calculadora, para saber quanto me deveria retornar de troco. Provoco a moça construtivamente, em uma linguagem que ela certamente entenderá: "Você sabia que o cérebro é um músculo e que um músculo, se não for utilizado, atrofia?" Ela se limita a sacudir ambos os ombros para cima e para baixo. Será que ela sabe o que quer dizer atrofiar? Não me dou por vencido: "se o teu cérebro está precisando de calculadora agora, imagine quando você tiver minha idade!". Ela me olha com ar sério: "Nun tô nem aí!" Deixar de utilizar o corpo para utilizar um aparelho eletrônico em substituição significa avanço cultural? Uma amiga me conta que, indo ao cabeleireiro, foi informada pela "profissional" que não havia água morna. Ela, muito contrariada, aceitou ter a cabeça lavada com água fria. Depois do atendimento, a cliente foi, revoltada, procurar a gerente, a quem reclamou daquela desatenção, para espanto da senhora que, dirigindo-se à sala de banho, mostrou que eram duas as torneiras, uma com a letra "F" e outra com a letra "Q". Bastava que a moça abrisse também a outra torneira, aquela com a letra "Q", para que fluísse a água morna, decorrente da somatória de ambas. Ao que justificou a tal "profissional", candidamente: "mas ninguém tinha me avisado que aquele Q significava quente". Talvez ela esperasse que houvesse ali uma terceira torneira, com a letra "M". O preparo adequado de profissionais é da competência de qual das mais de três dezenas de Ministérios que temos hoje em dia? Vou à lanchonete de um supermercado de pomposo nome francês. Vejo ali uns docinhos. É dietético? A mocinha me olha sem dizer nada. É diet? E ela ali muda só me admirando. Vo-cê sa-be se es-te do-ce é pa-ra di-a-bé-ti-cos? "Sei não", diz ela. Vem um rapaz e lhe indica os doces que eu procurava, mais à direita. Claro que o fato de elas serem mulatas é apenas um dado a mais do problema, sugerindo que pessoas mal preparadas estão sendo empregadas em funções onde lhes pagam salário mínimo, como lhes pagariam em qualquer atividade braçal. Fossem loiras ou nisseis e possivelmente agissem da mesma forma, pois a regra, atualmente, é contratar pessoas com a mais baixa escolaridade possível, mesmo quando a função a ser desempenhada exija algum discernimento que essas pessoas, culturalmente mais simples, não possuem. Entretanto, no momento em que tanto se fala em integração social (o que quer que isso signifique), o fato de se tratar de alguém que, em nossa tradição, por força de sua cor, está marginalizada dos benefícios culturais, não pode deixar de impressionar quem, como eu, espera que haja, também por parte dos marginalizados, um empenho nessa integração. Se eles (maioria? minoria?) não estão nem aí, como forçá-los a algo que não lhes diz respeito, como é a participação nos benefícios culturais que a sociedade deve proporcionar a todos os seus membros? Por que estudar, se podem desempenhar funções "mais importantes" sem ter preparo algum para isso? Para que formar-se se não há mercado de emprego para essa multidão que as inúmeras faculdades despejam na rua anualmente aos magotes? Freqüento uma gráfica de excelente aspecto, com serviços indicados em inglês. De um dia para outro os empregados foram substituídos por novatos, que não têm a menor idéia de como aquilo funciona. Em nome de redução de custos, motivada pela concorrência, o cliente deve ter paciência com serviços mal-feitos, pois os recém-contratados estão "em fase de experiência", diz-me o gerente. Experiência à custa de quem precisa do serviço e à custa do material que é desperdiçado. Há alguma autoridade no país interessada no aperfeiçoamento da mão-de-obra? Coincidentemente, dias antes, um amigo, que dirige uma faculdade de Direito, informara-me que as universidades particulares estão dispensando professores com titulação de doutor, pois o Ministério da Educação resolveu dispensar as universidades da obrigação de terem no corpo docente número mínimo de doutores, como ocorria até agora. Muitos dos que faziam doutorado estão desistindo do projeto de aperfeiçoamento, para não perderem as classes em que lecionam, informa-me o mesmo amigo, pois, como doutores, teriam direito a salário maior. Além do mais, como o número de professores com mestrado também deve obedecer apenas a uma cota mínima, as universidades estão contratando recém-formados, sem titulação alguma, para desemburrecerem (o termo foi utilizado pelo meu amigo, homem, por sinal, com PhD em algum MBA no Exterior). "Que adianta dar pérolas a porcos?" filosofa ele. O chamado Ministério da Cultura, nos últimos quatro anos, notabilizou-se pelos shows dados por seu titular nos quatro cantos do mundo. Aparentemente, a cultura afro-brasileira merecia ali prioridade absoluta. Indo-se ao site respectivo aprende-se que "a cultura é um patrimônio simbólico que pertence a todos. Ao longo da história, certas manifestações culturais foram subjugadas, consideradas menores. No Brasil as culturas populares foram vistas como 'exóticas' e ficaram emparedadas em certos (pre) conceitos. O Plano Nacional de Cultura pretende atuar esse (sic) campo intangível. 'Não quer dizer que se pretende planejar a produção cultural, mas definir os mecanismos de manejo das políticas públicas em prol da diversidade cultural", esclarece o coordenador executivo do PNC. Diz mais o homem: "A cultura tira da vulnerabilidade social várias pessoas que ganham seu sustento com atividades nessa área. Ela também fornece a oportunidade de protagonismo e o sentimento de identidade aos indivíduos. O PNC é um projeto de nação. A idéia é que ele se (sic) represente a sociedade, e não algum governo. Por isso, o Plano é formulado a partir da articulação de um conjunto de atores culturais, que debatem em vários espaços públicos as metas do projeto e pretendem torná-lo uma lei." No site do Ministério da Cultura, onde se fala em valorização das "culturas populares", temos um texto pernóstico, com duas construções de frases pelo menos discutíveis à luz da regência verbal normalmente em uso em nosso país, propondo-se a esclarecer o que, depois dele, tornou-se mais obscuro. Que é mesmo cultura?  
sexta-feira, 8 de dezembro de 2006

Urbanidade. Quem se Lembra?

"A justiça brasileira está tomada por uma doença grave e, ao que parece, contagiosa." (Migalhas, 28/8/2006) Eu sou do tempo em que. E lá vem alguma comparação entre isto e aquilo (claro, sempre dizendo que aquilo era melhor do que isto). "Naquele tempo juiz não pisava no tapete vermelho quando por ele passava um desembargador", assegurava o desembargador Hildebrando Dantas de Freitas a um grupo de juízes que com ele conversávamos exatamente sobre o tapete vermelho do sexto andar do Tribunal de Justiça de São Paulo, coisa de uns trinta anos passados. Ou mais. Coisa de gente velha, direis. Ou que está envelhecendo, na melhor das hipóteses. Nas aulas de Direito Administrativo aprendia-se que é dever de todo funcionário público (hoje se fala em "agente do serviço público", como se, mudando o título da pessoa que ali atua, o serviço melhorasse) tratar as pessoas que o procuram com urbanidade. Que é ser urbano? E o professor citava os clássicos, dizendo que a vivência na cidade (urbe) deixava as pessoas mais afáveis, mais civilizadas, mais educadas. Uma palavra politicamente incorreta, diríamos hoje, pois ofende os moradores da zona rural. Além de tudo uma palavra injusta, pois a cortesia ainda é uma característica dos interioranos, enquanto os da capital não respondem nem a cumprimento quando nós, os mais antigos, dizemos um bom dia ao entrar no elevador. Pois deu-se que o estagiário ("solicitador acadêmico", dizia-se naquela época) atuava no XI de Agosto, o nosso HC do Largo de São Francisco. Era um caso incrível: o juiz titular, por descuido, aplicou à causa uma lei já revogada, negando, com base nela, o que havia sido solicitado. Agravou o "advogado", requerendo que fosse aplicado ao caso a lei correta. O juiz auxiliar (diga-se, a bem da verdade, recém-chegado do interior, onde, aliás, nascera), dando pelo equívoco, aplicou ao caso a lei nova. Mas negou, com base nela, o que havia sido solicitado. Ou seja: não reformou coisa nenhuma. O pobre estagiário ficou em palpos de aranha: seu recurso havia sido acolhido mas não havia sido acolhido. Que fazer? Procurou o juiz, famoso por seu vasto bigode e pelo modo pouco cortês como atendia aos advogados (atributo que o solicitador ainda desconhecia). Apresentou-se humildemente e tentou obter alguma orientação. "Trata-se de uma hipótese interessante que...", balbuciou o futuro advogado, como que se dirigindo a um professor, que supunha fossem todos os juízes. "Nós aqui não lidamos com hipóteses", sentenciou o magistrado, que mais não disse nem lhe foi perguntado, pois o estagiário rodou nos calcanhares e dali escafedeu-se. Aprendera a dura lição. Muitos lustros depois, o eterno estagiário, agora voltando a advogar, já com cabelos brancos e quarenta anos de formado, em audiência, levanta-se para conferir na tela do monitor do computador se o juiz ditara corretamente um depoimento (na verdade, ele omitira texto importante ao ditar à escrevente o que dissera a testemunha). O juiz repreende severamente o grisalho advogado, "ensinando-o" que ninguém ali se levanta sem sua licença. Fundamentar tal censura nem pensar. Os cabelos negros do juiz, talvez reflexo da severa toga, davam-lhe o direito de desconsiderar, por um nada, os cabelos brancos do outrora colega de profissão. Um bate-boca desnecessário ao fim do qual os ânimos restariam exaltados, para espanto do cliente e sem proveito nenhum para ninguém. Nova lição a ser aprendida, como diria a Dra. Renata Maria Gomara. O mesmo advogado, de outra feita, entra na sala da audiência e estende a mão para a juíza em comarca do interior, com um "boa tarde, Excelência". "Boa tarde" é a resposta dela, sem tirar os olhos dos autos, que lia com aparente atenção. "Eu sou de São Paulo e ...", diz ele, querendo dizer que não conhecia as idiossincrasias daquela comarca e desejava conhecê-las. Ela o interrompe, sem levantar os olhos: "Eu também sou!" O sempre estagiário, que havia lido alhures que no Itamarati se ensina aos futuros diplomatas que somente se deve estender o braço para responder a um cumprimento, lição que o tempo o fizera esquecer, recolhe a mão e o rejeitado afeto do sorriso do rosto. Sempre é tempo de se aprender algo. Aprender a ser grosseiro? Durante a tal audiência, a memória vagueia, talvez para fugir do incômodo causado pela descabida indelicadeza, e vai até Araraquara, onde fora juiz substituto e onde a fama de um loirinho bom de bola ainda corria pelo fórum muito tempo depois de ele haver dali saído, para vir para a Capital estudar. Aqui, o loirinho de cabelos cacheados mostrou que também era bom datilógrafo, tornando-se escrevente (em rigoroso concurso, é claro, como era regra "naquele tempo", quando Q.I. queria dizer "quociente de inteligência", e não "quem indica", como ocorre hoje). E bom também no estudo. Formou-se em Direito e, vencido o necessário prazo de experiência nas lides forenses (naquele tempo isso era pra valer), prestou concurso e ingressou na Magistratura. Novinho ainda (não tão novo como os de hoje, que são de outros tempos), veio auxiliar na comarca da Capital. O antigo escrevente estava presente no datilógrafo expedito que, mangas de camisa, naquele calor de janeiro, batia um texto a máquina, talvez um despacho, ou mesmo uma sentença. Entra o advogado, cara de turco (ele ainda carrega seu corpanzil pelo fórum João Mendes até hoje e confirmará a história, se o desejar, valendo seu silêncio como admissão de anuência), com a petição na mão, vê a cadeira do juiz vazia e, evidentemente, procurando uma informação, dirige-se ao datilógrafo: "Escute aqui, meu rapaz, você é novo aqui, não é?" O datilógrafo responde balançando a cabeça afirmativamente. E continua a datilografar. "É oficial de justiça?" O datilógrafo balança a cabeça, dando resposta negativa. E continua a escrever. "Então você é escrevente?". Novo meneio de cabeça em resposta negativa, sem interrupção do tec-tec do teclado. O advogado, já impaciente: "Mas então vai me dizer que já é escrivão, moço desse jeito?". Ainda uma vez uma silente resposta negativa. "Então quer dizer que você, quer dizer, o senhor é ..." E o Sydney (seguramente não haverá outro com dois "y" no nome em nenhum lugar do mundo, pelo que me dispenso de incluir o sobrenome do agora ex-Ministro do STF), com um sorriso de orelha a orelha, voltando-se para o estático causídico: "Vamos ver o que temos nessa petição, doutor". E ambos riram muito, e riem até hoje, relembrando o fato, nas raras vezes em que se encontram em São Paulo, onde o ex-loirinho agora vive, em seu otio cum dignitate.
quinta-feira, 30 de novembro de 2006

Experiência do Rio (A)

"A verdade é que apenas Deus pode conhecer Deus." (Joseph Campbell) Os hinduístas não se atrevem a definir Deus, ao contrário do que ocorre com os cristãos, menos cerimoniosos, menos humildes, mais atrevidos e mais racionais. Falar d'Ele diretamente nem pensar, tudo são imagens, parábolas e coisas assim, como o caso de alguém que perguntasse ao sábio que é a Lua? e tudo o que o sábio fizesse fosse estender seu dedo indicador dele sábio ali diante dos nossos olhos curiosos, que lhes vêem os pêlos do sobredito dedo, seu tarso mais o metatarso, a unha e sua eventual sujidade, coberta ou não por providencial esmalte sangüíneo ou de cor outra mais atrevida, mas a Lua mesmo, nada! Que é da Lua, mestre? E o dedo continua a apontar e o sábio diz: vai e vê. E quando nós olhamos adiante do dedo que nos indica o caminho, lá está uma foice sem cabo que se vai esvaindo até ficar o nada lunar no céu de nossa indagação ignorante. Que é da Lua, mestre? Vai e vê. Mas se não vejo nada? Aguarde pacientemente, que ela lhe ressuscitará. Primeira idéia: crer é ver a Lua que não está lá. E olha eu agora mirando o rio ali defronte, riacho heraclitano que se atravessa a vau e onde o sol despeja aqueles ouros lá dele e nós sem saber qual a cor do rio nem o sabor do rio a não ser atravessando, com as águas batendo-nos nas magras canelas, meio e modo de conhecer Deus. Quer conhecer Deus? diz-nos o sábio, banhe-se nele. E agora que vadeaste de cá para lá, certamente pensas que conheces o rio. Conheces nada!, que as águas então vadeadas não mais estão ali, senão lá mais embaixo, cem ou duzentos metros, talvez quilômetro, sendo atravessada agora por outras pernas, talvez de nossos netos, que também pensarão que já experimentaram suficientemente Deus, tanto quanto nossos tios e avós que cruzaram o sempre rio lá perto do seu nascedouro tempo faz. E se vadeares de lá para cá descobrirás que tuas canelas, já enriquecidas e satisfeitas da experiência anterior do rio, talvez não se abram à nova experiência que é experimentar esse novo rio, pois as águas agora são outras, não vê que aquelas antigas já lá estão longe? Sem falar que o rio não são só águas, senão que peixes muitos, dúzias e dúzias, e mais aquelas pedrinhas, mais de centena, talvez milhar, que o passar do rio, no rio e através do rio e a decorrente experiência que elas assim façam vai delas aparando as arestas do egoísmo e da irritação, da indiferença e da impaciência, e lá vão elas se casando umas com as outras, roliças de virtudes e paciência, respeitando o modo de ser uma das outras, na convivência que se supõe decorrer da harmonia grávida de virtudes. E se pensares que a experiência humana do rio se faz apenas com as canelas, pobre de ti! Repara na apalpação das pedrinhas que teus pés fazem quando vais e quando vens. Sentes cada pedra? Sabes o tamanho de cada uma? Sua cor? Sua forma? Sabes nada! Saberás acaso quais as pedras que pisaste quando foste e quais as que estás a pisar agora que retornas na nova experiência do rio? Certamente não. E não é só com a sola dos pés e as canelas anuecidas que se experimenta o rio, senão que também com a bunda, atente para isso. Quem te garante que teus pés não escorregarão nessas idas e vindas e quando vês estás lá estatelado no meio daquele corguinho que é o rio mas não é todo o rio? E tuas nádegas lanhadas te ensinarão coisas do rio que nem o frescor da água na canela, nem o confundir-se ele com a cor da poeira dourada que o sol lhe derrama, nem o cheiro bom da água não lhe haviam ainda proporcionado a você. E aquilo ali é rio mas não é todo o rio. É rio porque ali há água, mas não há toda a água; há peixes, mas não há todos os peixes; há pedregulhos, mas não são todos os possíveis pedregulhos que ali estão naquele trecho que tuas canelas e teu corpo todo experimentaram na vadeagem e na revadeagem, nas idas e vindas a vau que é tua pálida experiência do rio. E como juntar todos os peixes, e toda a água, e todos os pedregulhos para que saibas como é efetivamente o rio? Como ver ao mesmo tempo o nascimento do rio, seu caminhar por leitos planos e pedregosos, ora calmos ora cascateiros, límpidas aqui sujas ali suas águas, sua espuma e sua planície, e o seu findar, quando se finda? Quanto mais subas ao espaço para buscar essa visão de pássaro, mais longe estarás do rio e tudo o que verás será sempre um pálida imagem do rio em sua inteireza. Uma fotografia, sem vida nem cheiro, quase uma caricatura. E haverá quem diga que aquilo é um rio! Que inocência! Pensa em tuas pernas jovens e fortes a pisar firme o chão daquele solo líquido que tua experiência agora perfura, tal como já fizeste um dia outrora. Será o pisar de hoje tão forte como o foi o de ontem? Será a correnteza de hoje menos calma do que era a de ontem? E como ficarás quando o titubeio da incerteza te atrasar os passos, por não teres reparado que as pernas já não são as mesmas, e, de fato, não no são, nem as águas já não são as mesmas, como de fato também não são? És o mesmo mas não és mais o mesmo; mesmas são as águas mas as mesmas águas já não são as mesmas; repete-se a mesma experiência que já não é a mesma experiência. Tudo tão velho e conhecido, mas, também, tão novo e desconhecido ainda. Segunda idéia: a experiência de Deus é a travessia diária, sem saber se o atrevimento do afoito ou a fragilidade das pernas não fará daquela a derradeira travessia, a travessia que não se completará. E tropeçarás, como todos um dia tropeçamos; e cairás e serás envolvido pelas águas; e talvez te levantes e retomes a caminhada, para concluir mais esta travessia. Ou talvez não seja mais o caso de te levantares. E como os peixes e os pedregulhos, te confundirás com as águas, que te levarão e farão do destino delas o teu destino. E o rio que agora caminha é apenas rio, embora nele estejam os peixes, os pedregulhos e estejas também ali tu, tudo indistinto. E o rio chegará ao seu fim que não será propriamente um fim, mas um despejar-se num rio muito maior, oceânico e eterno. E agora que chegamos, onde estão os peixes? Quais as pedras que se acamaram? Que é feito do rio? Onde estás tu?   Do Livro Praça da Fé, ainda inédito.
sexta-feira, 24 de novembro de 2006

Telefonema

Ouvi certa ocasião um palhaço, desses que se apresentam em teatro sem a cara pintada nem nariz vermelho e se denominam humoristas, perguntar ao auditório se alguém ali sabia quem havia inventado o primeiro telefone. Primeiro? As pessoas, de modo geral, numa hora dessas fazem uma cara de gente inteligente, superior, imagine só perguntar uma banalidade dessas a alguém como eu!, que, por sinal. Em suma: não sabem a resposta. E ele dizia que o autor da proeza havia sido o Alexander Graham Bell, famoso inventor nascido em, e que também. Sendo que o primeiro a receber um telefonema foi ninguém menos do que o pai do Pedro de Alcântara Francisco Antônio João Carlos Xavier de Paula Miguel Rafael Joaquim José Gonzaga Pascoal Cipriano Serafim de Bragança e Bourbon. Alguém ali sabia de quem ele estava falando? Agora as caras ficaram mais inteligentes ainda, pois, qual o brasileiro que sabe que o popular D. Pedro I tinha um nome que mais parecia lista de chamada de jardim de infância? Eis o que ele queria dizer: D. Pedro II foi um dos primeiros na História a ser importunado por uma chamada telefônica. D. Pedro II vocês sabem quem foi, pois não? Era aquele velhinho que parecia avô do pai dele. E que tinha uma filha, a Bebel, mocinha travessa, que ele deixava tomando conta da casa quando ia dar suas voltas pela Europa, muito antes de o Juscelino ser chamado de cruzamento de locutor de rádio com aeromoça, tanto viajava o homem, dono de uma voz maviosa, falo do velho Jusça, com a qual cantava as senhoras todas que se dispunham a acompanhá-lo na próxima contradança, pé-de-valsa famoso que era, como então se dizia. Eles ainda não conheciam o Lula, evidentemente. Pois o D. Pedro barbudo foi o antecessor deles todos. E deu-se que, numa de suas sortidas literárias, pois ele era amigo do famoso fulano, do célebre sicrano e por aí vai, todos morando na Europa, a Bebel resolveu receber em audiência uns donos de escravos que foram levar-lhe um pleito dos mais justos: "criança trabalha, ilustre princesa?" Claro que não, disse ela, ponderada que era. "Velho trabalha?" Igualmente não, respondeu ela, mais ponderada ainda do que a Branca de Neve. "Pois, então? Por que é que eu, que sou o dono do escravo saudável que trabalha, da escrava saudável que também trabalha e ainda faz hora extra na minha cama, tenho de estar pagando comida para as crianças e os velhos que não me retribuem com nada aquilo que gasto com eles? E olha que ainda admito que eles durmam no estábulo, com os outros animais, desde que não os importunem com seu ronco, é claro, sem cobrar aluguel por isso, ilustre princesa." A moça, que era a encarnação da ponderação, resolveu, em vista disso, dispensar os velhos e as futuras crianças de morarem na casa dos donos de escravos. Pronto: estavam inventadas as favelas do Rio de Janeiro! E isso se chamou Lei Áurea, não como homenagem a alguma cozinheira imperial, como se poderia pensar, mas porque os donos de escravos puderam, graças a isso, aumentar suas reservas auríferas, o popular l'argent, como lhe chamava o culto pai da mencionada princesa, francófilo dos mais fanáticos. Dinheiro, bufunfa, grana diríamos nós, pobres mortais. Pois o tal palhaço, depois dessa proveitosa aula de História, fazia nova pergunta: e quem foi que inventou o segundo telefone? As pessoas, cada vez mais inteligentes, se entreolhavam: segundo? Claro, dizia ele. Se não fosse inventado o segundo telefone, como é que o Graham Bell iria saber que o primeiro funcionava? (Aplausos!) Pois era de um telefonema que eu queria lhes falar. Atendo a tal chamada telefônica dizendo o convencional "Pronto!". E logo me dou conta de que jamais alguém me explicou porque se deve dizer "Pronto!", com ponto de exclamação e tudo. Nem por que motivo do outro lado alguém deve dizer "Alô!", também com a mesma e necessária exclamação, além de inicial maiúscula como aquela. Em Portugal, como sabeis, o que lá se diz é: "Está lá?". E o de cá certamente responde: "Acabei de sair, pá!" Podia ser pior. O Albert, por exemplo, que estava na Alemanha, telefona à esposa, que é juíza no Brasil. Atende a "secretária do lar", como lhe chama a dona da casa, mulher finíssima, incapaz de melindrar a moça com o popular "empregada doméstica", onde já se viu? "Chame o Constança que eu prrecisa falar co a ela", diz ele, naquele sotaque de quem mora no Brasil somente há dezoito anos. "Momentinho". E a Zenóbia vai até o cabeleireiro, três ou quatro quadras adiante, dizer à patroa que o patrão. Falemos do meu telefonema passivo, antes que a página se acabe. Mania de tergiversar! Logo eu, que nem sei bem o que isso quer dizer! Atendo com a atenção costumeira e a pessoa do outro lado me vem com aquela pergunta que 78% das pessoas costumam fazer em momentos tais, segundo o Datafolha: "Adivinha quem está falando?" E eu respondo da maneira mais lógica que me ocorre: "Do lado de lá ou do lado de cá?" Ele se ofende: "Do lado de cá, é lógico!" E eu aí tenho condições de finalmente dar a resposta correta: "É você. Acertei?" Era o meu filho, que me queria dizer que estava naquele preciso momento atravessando a rue não sei de quê. Rue? "Pois é, velhão. Estou aqui com a Flávia passando uns dias no Marine National Park, estivemos na baía Lazare, visitando o musée Devoud's e agora estamos indo almoçar na Île Round." Acho que meu filho endoideceu. Você não ia passar as férias na Bahia? "Aquilo gorou, velhão, e resolvemos vir para as Îles Seychelles. Estamos em Mahe. Eme a agá e. Mahe, sacou?" Sento-me no primeiro banco de jardim que encontro para tentar concatenar as idéias, dispensando as pernas de andar, pois deveria movimentá-las uma depois da outra, coisa que me ocuparia grande parte do cérebro, de que eu preciso todo neste momento solene. Essas crianças! "Amanhã vamos para Praslin, velhão." Mas isso é nome de cidade ou de remédio, filho? Eis aonde eu queria chegar. O Graham Bell, que deveria ter ficado restrito ao sino que tinha no nome, me resolve inventar um meio de comunicação que, em tese, serviria para fazer as pessoas se comunicarem melhor. E que ocorreu? Exatamente o contrário, a chamada reversão de expectativa: você fica sabendo que seu filho está do outro lado do mundo não porque ele te avisou com um mês de antecedência que iria para lá, tempo mais do que suficiente para você abrir o mapa-múndi e ficar sabendo onde aquele pestinha vai se meter desta vez. Nada disso. Você nem tem tempo de ficar preocupado, pois sabe-se lá se ele não estará novamente circulando todo fagueiro, como da outra vez, pelas montanhas do Tibé, com ar rarefeito e tudo, pisando gelo que, com aquele sol forte do meio dia, logo logo virará água e ele há de se esborrachar lá embaixo, no meio daquelas pedras, está vendo aqueles pedregulhinhos lá no fundo do vale? pois é disso que eu estou falando. Se ele despencar daqui de cima, não morre na queda, morre de fome durante o percurso até o fundo do vale. E eu aqui no Brasil sem poder fazer nada, nem mesmo dar-lhe os inúteis conselhos que todo pai deve dar a seu filho, mesmo sabendo que ele, sabiamente, levará isso à conta de preocupação de gente que não tem mais nada que fazer. Gente velha é assim mesmo! Pois agora me toca terminar mais cedo esta caminhada, procurar na Internet um mapa-múndi eletrônico que me mostre qual o tamanho da preocupação que tenho de ter desta vez. Filhos, melhor não tê-los, dizia o poeta. Se os tiver, que não usem telefone celular, completo eu, suspirando.
sexta-feira, 17 de novembro de 2006

Isonomia

  "A igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, observando, porém, a medida dessa desigualdade." (Rui Barbosa, omitindo que o autor da frase foi Aristóteles) Naquele tempo a frase era esta: "Dura lex, sed lex; no cabelo só gumex". Não sei onde andará o tal gumex, que era um pozinho que se comprava na farmácia, misturava-se um líquido que não me lembro mais qual seria, e tínhamos uma geléia que nos tornava as muitas melenas à prova de brisa, ventos e tornados. Poderíamos ser levados por um furacão, mas o cabelo continuava tão penteado como o do Charles Gardès e sua elegância portenha, que o fez rebatizar-se Carlos Gardel. A voz poderia até mudar, mas os cabelos ... Deixemos o pó mágico de lado e pensemos no começo da frase: ainda que seja dura a lei, sendo ela lei, que se cumpra! Fiat justitia, perat mundus! O coleguinha francês Paul Magnaud foi duramente criticado por muitos estudiosos da deontologia da Magistratura, especialmente num país situado do outro lado do Atlântico, pois as decisões dele deliravam do texto legal. E se a moda pega? Quer mudar a lei? Vá ser legislador, como hoje diria o Clodovil. O fato é que a Corte de Château-Thierry reuniu-se no dia 4 de março de 1898, sob a presidência de ninguém menos do que o juiz Paul Magnaud, para julgar uma mãe de família que havia sido acusada de furto. Furto de quê? De um relógio Cartier? De um vestido da Maison Chanel? Duma gravata Hermès? Nada disso, minha senhora. Furto de um pão, um mísero pão, tal como seu conterrâneo Jean Valjean, a acreditarmos no Victor Hugo. A jovem Louise Ménard, inicialmente, lamenta profundamente que tenha sido levada a cometer esse nefando crime, aquela cínica. Claro que o fato de ela ter um filho de dois anos não justifica o seu gesto, nem o fato de estar já há algum tempo procurando trabalho, sem êxito. Ela não recebe, uma vez por semana, dois quilos de pão e um naco de carne, suficiente para matar a fome dela, de seu filho e de sua mãe? Se ela e a mãe preferem destinar a comida e as poucas gotas de leite ao filho, problema delas. O padeiro Pierre é que não tem nada a ver com isso. Era esse o argumento do Ministério Público francês, que lá tem nome de assoalho, como sabemos. Que diz o famigerado juiz Magnaud? Que é lamentável que em uma sociedade que se diz bem organizada uma mãe de família somente possa matar a fome de seu filhinho se infringir a lei. Em tal caso, "o juiz pode e deve interpretar as inflexíveis prescrições da lei de modo humanitário", diz o atrevido Magnaud. Considerando que a fome é capaz de levar de qualquer ser humano uma parte de seu livre arbítrio, bem como a noção de bem e de mal; Considerando que um ato normalmente repreensível perde muito de seu caráter fraudulento quando aquele que o comete atuou movido pela necessidade de se alimentar, que é uma exigência da natureza para que o organismo funcione a contento; Considerando que a intenção fraudulenta é ainda mais atenuada diante da tortura que representa a longa privação de alimento, especialmente quando se cuida de uma mãe que tem um filho para criar; Considerando que as características de uma apreensão fraudulenta e voluntariamente perpetrada não estão presentes na conduta atribuída a Louise Ménard, que até se ofereceu para trabalhar na padaria de M. Pierre; Considerando que certos estados patológicos, notamment l'état de grossesse, têm permitido absolver, como irresponsáveis, os autores de furtos praticados sem necessidade; Um momento, M. Magnaud. Grossesse? Que diabo é isso? E ele me explica. "Nós, franceses, temos certas frescuras. Se eu digo que estou diante de uma femme grosse eu estou dizendo uma coisa; se eu digo que estou diante de uma grosse femme eu estarei dizendo outra. Num caso, estarei diante de uma mulher gorda; no outro, diante de uma mulher grávida? Avez-vous compris?" Prosseguindo, se em caso de perturbação de gravidez, que, no limite, conduz ao infanticídio, temos atenuação da responsabilidade penal, essa irresponsabilidade deve, com mais razão, ser admitida em favor daqueles que atuam sob o impulso da fome. Em conseqüência disso, concluiu le bon juge Magnaud, esta Corte rejeita a acusação feita contra Louise Ménard. Pensei nisso, acreditem se puderem, ao ler a relação dos deputados mais votados no Estado de São Paulo. Um deles é um deputado que há quatro anos mantém na Avenida Nove de Julho, impunemente, propaganda ilegal com sua expressão severa e a mensagem subliminar: não se esqueçam de mim! E o princípio da isonomia, eminentes membros do parquet eleitoral, como fica? Como se diz na Itália, la legge è uguale per quasi tutti! "Cuma?", diria aquele bacharel em Direito cearense que preferiu ficar longe dos trapalhões que infestam os fóruns, preferindo a seriedade do circo. E passemos para o mesmo programa, como diziam o Lauro Borges e o Castro Barbosa, em sua impagável PRK 30, que pode ser ouvida hoje graças a um oportuno livro que se faz acompanhar de um CD, travessura do Paulo Perdigão. Digo-vos que somente resolvi, por motivos meus, habilitar-me como motorista ("tirar carta", como se diz em São Paulo, para o prazer de cariocas e gaúchos, que já nos cobram isso de chamarmos sinaleira de trânsito de "farol") quando juiz de terceira entrância. Procurei o delegado de Polícia local, que, gozador como era, indagou-me: "E se eu te reprovar? Que vai acontecer comigo?" Uma das provas consistia em escrever um texto que ele me ditaria, o que enfrentei sem muita dificuldade, conseguindo, assim, disfarçar meu notório analfabetismo. Anos mais tarde, meu filho pretendeu passar um mês na Inglaterra. Felizmente contei com a compreensão de um comissário de menores que autorizou meu filho a sair do país. Eu que, como juiz de família e de menores, fazia e acontecia com os filhos dos outros não era, pela lei, competente para definir se meu filho deveria ou não estudar inglês na Inglaterra. Pode? E cá estou eu novamente diante do meu gumex. Pretendendo renovar minha "carta" de motorista, devo sentar-me num banquinho desconfortável para responder a umas tantas questões que me fará sei lá quem do outro lado do computador. Uma das séries de perguntas diz respeito a "direção defensiva", nome idiota para designar algo sobre o qual, segundo é lícito presumir, alguém que já foi juiz criminal por tantos anos deve ter alguma noção. Outra série diz com "primeiros socorros". Eu fico a imaginar o meu amigo Paulo Frange, médico e vereador em São Paulo, sendo reprovado numa prova dessas. Ou meu outro amigo, o Lídio Granato, que, mesmo sendo professor na Faculdade de Medicina, deve demonstrar a sei lá quem que conhece alguma coisa de primeiros socorros. Ou o professor Maurício Abrão. Ou o Adib Jatene. Aliás, uma das questões quer saber se trafegar na contramão é falta grave ou gravíssima. A irrelevância da resposta mostra o tamanho da cabeça de quem a colocou no teste. Ou haverá quem consulte o Código Penal para conhecer o tamanho da pena antes de resolver praticar determinado crime? Basta saber que tal conduta é crime, como basta saber que não se deve trafegar na contra-mão. A natureza da falta não é problema meu, é do Detran. Ce n'est pas un pays sérieux, madame, diria certamente o meu querido Paul Magnaud.  
sexta-feira, 10 de novembro de 2006

Rótulos

  "No hay para qué tomar venganza de nadie, pues no es de buenos cristianos tomarla de los agravios; cuanto más que yo acabaré con mi asno que ponga su ofensa en las manos de mi voluntad; la cual es de vivir pacíficamente los días que los cielos me dieren de vida." (Sancho Panza, in Don Quijote de la Mancha, II parte, capítulo 11) Você já ouviu falar em Gerson de Oliveira Nunes? Não? E se eu lhe disser que ele foi autor de uma recomendação famosa, na qual aconselhava as pessoas a agirem sem escrúpulos? "Devemos levar vantagem em tudo", eis o bordão de uma propaganda de cigarro, que ficou conhecida como "lei de Gerson". Veja aquele comercial e descobrirá que ele nunca se referiu à falta de escrúpulos. Mas o rótulo ficou. Certo político paulista é tido e havido como corrupto há muitas décadas, desde que ingressou na política pagando as dívidas de jogo de um conhecido revolucionário. Acaba se ser eleito deputado federal, mesmo porque o Ministério Público jamais conseguiu demonstrar que ele mereça o rótulo. Em compensação, temos o caso da velhinha que morava em uma choupana. Dessas a que cantor de bossa nova, equilibrando-se num banquinho e dedilhando o violão, tece loas, falando da maravilha de morar na favela, "mais parece o céu no chão". Tudo isso cantado sob o ar condicionado do bar de um hotel cinco estrelas a pessoas que não entendem o idioma. Pois nossa velhinha tinha sua casinha limpa e bem arrumada na favela de Heliópolis, entre o Ipiranga e São Caetano do Sul. Era ela uma das cem mil pessoas que habitam o local, segundo os mais recentes dados do IBGE. Como recebia com freqüência a visita de baratas e ratos, tinha lá os remédios destinados a eles. Por que utilizar o genérico rótulo de "remédios" para designar aquilo é algo que deveria ser perguntado a ela, não a mim. O que sei é que lá estava a prateleira com os venenos guardados em local estratégico, a cavaleiro de crianças curiosas. Deu-se que sua filha precisou dormir na casa de família onde trabalhava e os dois netos vieram passar a noite com a avó. Uma das crianças estava muito gripada e a zelosa mãe trouxera o providencial xarope de mel e agrião. Que a prestimosa velha guardou em local onde estaria a salvo da curiosidade dos guris: precisamente na prateleira dos venenos. E lá quedaram distantes e seguros. À noite o gripado acordou sacudindo-se de tosse, sem poder dormir nem deixando o irmão, já irritado por isso, dormir. A avó, meio sonolenta ainda, entre a tosse de um e os reclamos do outro, dirigiu-se à prateleira, pegou um dos frascos e serviu uma dose do líquido à criança. Que jamais acordou daquele sono, para desespero da velha. Pois apareceu um Promotor de Justiça entendendo que a velha semi-analfabeta se havia portado com indesculpável negligência, ao não colocar em cada frasco o rótulo que o distinguiria dos demais, coisa comezinha, que o dever de cautela impunha nas circunstâncias concretas. Citou autores de nomes complicados e pespegou-lhe ele um rótulo naquela mulher: criminosa. Instava que fosse punida, para escarmento de todas as avós tão descuidadas quanto ela, argumentou, enfático, em sua peça pouco literária. E houve também Juiz de Direito que, ao cabo de audiências e questionamentos, condenou a ré pela morte do neto, eliminado dela o rótulo jurídico que uma vida de sacrifícios lhe granjeara: primária. Condenação que veio a ser reformada pelo Tribunal, dito segunda instância, ao argumento de que, certamente, a pena que a consciência vinha aplicando à infeliz avó era muito mais severa do que qualquer pena humana que se lhe pudesse aplicar. E tome rótulo: infelicitas facti. Atitude que, certamente, para muitos juristas, adeptos da law and order, seria chamada de leniente. Ou que seria censurada por algum psiquiatra, auto-rotulado freudiano, junguiano, lacaniano ou que outro nome haja, sob a premissa de que nada amaina mais a consciência do culpado do que ter sua culpa oficialmente reconhecida por autoridade competente, representante de Deus onisciente e justo na Terra. Condená-la seria contribuir para que ela afastasse da memória aquela desgraça. E ele também traria nomes complicados para designar sua tese. Ainda bem que a antileniência judiciária tem produzido casos que os jornais e os noticiários da televisão nos atiram no rosto, direis. Ora é um pai de família que é preso, sem direito a fiança, por haver abatido uma árvore, gesto que contribui mais para o efeito estufa do que as indústrias poluentes do hemisfério norte do globo terrestre como sabe qualquer mortal e só não sabem os sonhadores que se põem a assinar tratados para diminuição de atividades industriais, como se isso fosse possível. Ou aquele outro cidadão que teve o mesmo destino porque trouxe para o seu barraco uma ave cuja espécie está em vias de extinção. Se é para ser extinto que sejam as crianças famintas, não a preciosa ave ou a valiosa árvore, que criança é muito mais fácil de reproduzir. A morte de um tatu, disseram os jornais, exigiu que se formasse um Tribunal do Júri, para que a comunidade se manifestasse sobre a lesividade de tal conduta, lá vão alguns anos. Pessoas mortas em assalto não justificam o que a superioridade de um tatu exige: a participação popular em julgamento de tão relevante monta. Estamos, já se vê, diante de algo que pertence ao que o Ministro Marco Aurélio certa feita chegou a rotular, à falta de nome mais palatável, de terrorismo penal. E que outros preferem candidamente rotular de tolerância zero. Fez, pois que pague. E dão a isso também um rótulo: fazer justiça. Eu, que não sou melhor do que ninguém, também já tive a honra de ser rotulado. Se escrevi sobre a união estável de homossexuais, por que não me rotular de gay? Ou termo equivalente, porém chulo? Se me interessei pelos desafortunados sociais, por que não me qualificar de comunista? Coisa certamente de quem não conhece o comunismo. Inda agora brindam-me com um novo rótulo: anti-semita. Vejamos isso. John Gray, em seu Cachorros de Palha, que pessoas com tendência suicida não devem ler, lembra-nos que desde 1950 ocorreram mais de 30 genocídios em todo o mundo, citando, especificamente, Bangladesh, Camboja e Ruanda. "Entre 1917 e 1959, mais de 60.000.000 (sessenta milhões) de pessoas foram mortas na União Soviética. Esses assassinatos em massa não eram ocultados: eram uma política pública". Nada a estranhar, diz ele, pois "o genocídio é tão humano quanto a arte e a prece". Você concorda com isso? Concorda com esses números? Se algum estudioso resolver questionar esses fatos e esses números, será justo pespegar-lhe um rótulo, dizendo-o anti- qualquer coisa? Numa discussão entre adultos, nós combatemos os argumentos, não o argumentador. Isso quando se tem argumento para apresentar. Carl Gustav Jung, de quem não sou digno de limpar os cachimbos, expressou sua mágoa em ser chamado anti-semita, coisa que ele jamais foi. Deirdre Bair, na excelente biografia que dele escreveu, registra vários episódios desses que tanto desgostaram o mestre. O advogado Vladimir Rosenbaun, um dos protagonistas de uma dessas lamentáveis leviandades, lealmente reconheceu, anos mais tarde, que estava equivocado, "imbuído de uma hipertrofia de desconfiança da qual um judeu dificilmente se livra". São palavras da biógrafa. Se duvidar, vá ao tomo II da biografia do grande humanista suíço e veja no índice quantas páginas ela dedica ao tema anti-semitismo. Tudo o que posso dizer é que, no meu caso, um rótulo equivocado desses, que me coloca no mesmo escaninho do mestre suíço, só me enche de um baita orgulho.  
sexta-feira, 3 de novembro de 2006

Jogo

  "O processo é um jogo, em que, como em todos os jogos, o resultado depende da habilidade dos jogadores. Mas estes não podem trapacear." (Piero Calamandrei) Encontro o Candinho e vou logo reclamando. Tenho perdido causas que eu deveria ganhar e tenho ganho causas que deveriam ser perdidas. Que se passa, mestre? Ele ri aquele riso de quem está de bem com a vida. De quem sabe das coisas. "Você está perdendo a parte melhor da advocacia: seu aspecto lúdico. O processo é como você jogar um dado. Você não pode antecipar que número vai dar. Tudo o que sabemos é que nunca dará nem zero nem um número superior a seis." Isso me reporta ao caso do advogado que havia sido condenado por haver-se apropriado da indenização que havia levantado em nome do cliente. Anos se passaram e ele só devolveu o dinheiro depois de ser compelido a isso judicialmente. Processado criminalmente, foi-lhe aplicada pena severa. Procurou-me e eu aceitei apelar, para tentar diminuir a merecida reprimenda. Como faço habitualmente, enviei memorial aos membros da turma julgadora e lá fui sustentar oralmente a ingrata tese da inocência do homem. Falou em seguida, como de praxe, o Procurador de Justiça, por sinal meu amigo, que reduziu minha pobre argumentação a pó. O relator lê o seu voto, evidentemente não escrito por ele, sem aludir ao debate que não havia ouvido. Para meu espanto, propõe a absolvição do apelante. O revisor, que evidentemente não havia lido os autos, limita-se a um "acompanho". Eu não sabia onde enfiar a cara. Quando o terceiro juiz fez um gesto, concordando com seus colegas, saí da sala, envergonhado, e fui consolar meu amigo. "Você não viu nada. Já houve coisa pior aqui." Coerentemente, até hoje o tal cliente não me pagou a parcela final dos meus honorários. De outra feita, deu-se o inverso. O rapaz estava preso, acusado de tráfico de drogas. Os pais e o advogado procuraram-me para apelar da decisão. Recusei, pois há determinados crimes que me causam repugnância. O tráfico de drogas é um deles. O colega, homem ponderado, limitou-se a dizer: "se o senhor ler os autos, pegará a causa". Dito e feito. Eram poucas folhas, nas quais fiquei sabendo que um outro rapaz, ao ser preso com um pacote de cocaína, declarara que aquilo não lhe pertencia. O verdadeiro dono era aquele cujo nome estava no cartão que entregou à polícia. O rapaz do cartão foi preso e negou a co-autoria, mesmo depois de "trabalhado" pelos investigadores, como eles eufemicamente dizem. Ambos foram denunciados e o portador da droga admitiu, em Juízo, que havia mentido a respeito da co-autoria. Como tinha no bolso o cartão com o nome e endereço de seu amigo, entregou-o à polícia, para não ser mais molestado. O juiz não aceitou a retratação, condenando a ambos, com base única e exclusivamente na imputação que havia sido feita na fase policial, comprovada pelo documento de folhas, o tal cartão. Acredite que foi. Fiz a apelação demonstrando que aquilo era simplesmente um absurdo, porque o devido processo penal isto, porque os direitos humanos aquilo. E fui sustentar oralmente, como de hábito. O presidente da sessão, como é praxe, entregou os autos ao Procurador de Justiça ali presente. Por mero acaso, consultei o relógio exatamente nesse momento. Quando o Procurador devolveu os autos ao Presidente da sessão, consultei novamente o relógio. Comecei a sustentação oral dizendo que havia nos autos três manifestações do Ministério Público: as alegações finais, as contra-razões de apelação e o parecer da Procuradoria Geral da Justiça. Para ler essas três peças o Procurador ali presente não precisaria gastar os 23 minutos que havia gasto examinando folha por folha dos autos. Se ele assim agiu, foi porque não se havia conformado com as manifestações de seus colegas. "E eu estou certo de que nada achou que incrimine meu cliente", perorei, enfático. Não deu outra. O Procurador reconheceu que tudo o que havia contra aquele apelante era o tal cartão, o que o fez recordar um fato que declarou ser verdadeiro. Quando da revolução de 64, dizia-se que certo costureiro havia sido preso porque seu nome constava da agenda de uma terrorista que havia sido presa antes dele. "Terrorista não freqüenta salão de beleza. Logo, ele também deve ser terrorista". Tal era o caso daqueles autos, pelo que opinava o Procurador de Justiça pela absolvição do apelante, dada a ausência absoluta de prova de autoria e por não mais estarmos, felizmente, nos dias negros da redentora, concluiu. O relator leu o voto em que mantinha a sentença por seus jurídicos e adequados fundamentos, sem refutar qualquer argumento da apelação, nem do parecer ministerial. O mesmo fez o revisor. O terceiro juiz, como de praxe, pediu vista dos autos. "Sempre terei nova chance nos Embargos Infringentes" imaginei, crédulo. Na sessão seguinte, o terceiro juiz deu seu voto, que os de língua inglesa, apropriadamente, chamam de opinion. "Acompanho a douta maioria" foi tudo o que ele disse. Pensei que o teto do tribunal fosse cair sobre minha cabeça. Lembrei-me de outro mestre, Manoel Pedro Pimentel, que, segundo se dizia, havia morrido de um colapso, devido a um incrível voto que havia ouvido depois de uma sustentação oral. Fora para casa indisposto e não resistiu à emoção. "Só me faltava dar a esses cretinos essa satisfação" foi o pensamento que me animou a ir dali ao Incor, fazer um checape. Uma pastilha sublingual devolveu-me às condições necessárias à minha sobrevivência. Descansei no dia seguinte e tudo voltou ao normal. Isso tudo me veio à mente quando vi o resultado do "julgamento popular", como diz o constitucionalista gaúcho Tarso Genro, que acabava de absolver Luis Inácio da Silva das acusações que a imprensa lhe vinha fazendo há tanto tempo, baseada em documentos que os juízes costumam classificar de "farta messe". Convencer, à custa de 1 bilhão de reais, o governador de um Estado a mudar o rumo de seu apoio político, revivendo os bons tempos do mensalão, que nome terá? "Verdade que ainda teremos os recursos de que fala o Ministro Marco Aurélio de Mello e, portanto, a palavra final de nossos Tribunais Superiores, momento único em que se tem por concluído um tal julgamento", diz-me enfático um inconsolável anti-lullista, quase a repetir o Diogo Mainardi. "Confiamos em nossos juízes!" como disse o constitucionalista gaúcho, empregando duas palavras que merecem Embargos Declaratórios. Que quer dizer, nas circunstâncias, "confiar"? E que quer dizer, nas mesmíssimas circunstâncias, esse "nossos"? Lembro-lhe então julgamentos políticos célebres. O do Fernando Collor, por exemplo, quando o Supremo Tribunal desconheceu um instituto que qualquer estudante de Direito conhece de sobra: a conversão do julgamento em diligência. Ou o julgamento do José Sarney, que conseguiu assumir a vaga deixada por um Presidente da República que ainda não havia sido empossado. Se o falecido não havia tomado posse do cargo, como poderia transmitir o que jamais estivera em sua posse? Ou o caso do Café Filho, legítimo sucessor do Presidente suicida, que, havendo-se licenciado para cuidar da saúde, falo do sobrevivente, não mais conseguiu reassumir, por imposição dos "interesses nacionais", patrocinados com êxito pelas Forças Armadas, mesmo depois de o mesmíssimo sobrevivente bater às portas do Supremo Tribunal Federal. Se conselho valesse alguma coisa, ninguém daria. Entretanto, achei oportuno recomendar-lhe que fizesse uma novena para São Cândido. "Por que São Cândido?" Deve ser o padroeiro dos jogos processuais!
sexta-feira, 27 de outubro de 2006

Frases

  "... que seja infinito enquanto dure."(Marcus Vinicius de Melo Moraes) Há bons poetas, bons contistas, bons romancistas e bons frasistas, que os franceses chamam de phraseurs, o que também significa tagarelas, a mostrar que isso não foi inventado pelo Millôr Fernandes, o soi disant filósofo do Méier, que também se intitula um escritor sem estilo. Quem conhece sua biografia sabe que isso é apenas uma boutade, para continuarmos a homenagear a França. Ele poderia repetir o Paulo Autran: "Ensaiei anos a fio até conseguir ser espontâneo no palco". Se é verdade que mais valem duas abelhas voando do que uma em minha mão, também mais vale uma frase razoável em minha cabeça do que duas boas frases em cabeça alheia. Eis o princípio que preside esse ramo que é menos da literatura e mais do atrevimento literário. Quando eu disse "dize-me com quem andas e eu lhe direi quem és" houve quem me corrigisse, pois não é isso o que o ditado diz. "Ditado" é o nome que se costuma dar a algumas dessas frases, que valem mais para mostrar a criatividade do autor do que pela verdade que encerram. "Do prato à boca, lá se vai a sopa", como diria algum candidato depois de abertas as urnas. Quando alguém diz que "nem tudo o que reluz é ouro" eu replico: em compensação, nem tudo que não reluz não é ouro. E daí? "Quem tudo quer, tudo perde" foi o conselho que a mãe do Bill Gates deu ao filho. Grosseiro como ele só, ele limitou-se a dizer-lhe que "a conselhos loucos, ouvidos moucos", inventou a Microsoft e deu no que deu. Eu queria ver a cara da velha sábia hoje. Há juízes que condenam até a mãe, sob o argumento de que dura lex, sed lex. Outros são capazes de absolver até mesmo um desafeto, dizendo que summum jus, summa injuria, o que mostra que há latins para todos os gostos. "Jura novit Curia" é uma mentira deslavada que qualquer advogado já comprovou a mais não poder. O que nos leva ao mestre Millôr: "a verdade é uma só: todos mentem!" É verdade que "quando um não quer dois não brigam"? E se esse um for o árbitro da luta? Sabendo que "Deus ajuda a quem cedo madruga", o madrugador, que havia perdido a carteira, descobre que quem a encontrou foi um preguiçoso que passou pelo mesmo local muito depois dele. Fatalmente ele indagará: quem está ajudando a quem?"Quem canta, seus males espanta"? ou "Quem canta seus males, espanta"? Nunca uma vírgula valeu tanto! Há frases que pedem complementação. "Água mole em pedra dura tanto bate até que fura, ou apenas espalha gotas pra todo lado". "Dê-me um ponto de apoio, uma alavanca e um bom salário e eu moverei o mundo". "Chuva miúda não mata ninguém, a menos que esse alguém escorregue na calçada molhada, caia e bata a cabeça no chão". "Um raio não cai duas vezes no mesmo local, a não ser que esse local seja um pára-raios". "Quem cospe pra cima, lhe cai na cara, a menos que o cuspidor tenha o bom senso de não ficar ali". "Jogo é jogo, treino é treino, bola é bola, grama é grama, chuteira é chuteira". Os melhores veiculadores de frases são os pára-choques de caminhão. Ou seus pára-lamas. O que nos permite saber que "mulher e estrada são iguais: quanto mais curvas, mais perigosas". "Passa o dia na cerca, não me dá o menor prazer, mas eu como para que meu vizinho não coma. Estou falando do xuxu." "Conduzido por mim, guiado por Deus e xingado por quem eu fechar". "Se casamento fosse bom não precisava de testemunha". "Na minha casa me espera uma loira gostosa." "Sogra é que nem cerveja: boa mesmo só estando gelada em cima da mesa." Eu mesmo cheguei a escrever um livro com essas gracinhas, que denominei Livro das Sínteses. Ali pus coisas como "Quem nasceu primeiro? O ovo ou a tartaruga?". "Sibéria: o clima não compensa". "Eu, pobre de mãos; tu, rica de seios". Lá pelas tantas, eu disse que o importante não é tanto saberem se eu acredito em Deus; importante é Ele acreditar em mim. Minha vaidade pela autoria durou até o dia em que dei com essa frase, escrita quase literalmente, num livro do Mário Quintana, autor de pérolas como "a esperança é um urubu pintado de verde", livro que ele havia publicado muito antes de eu inventar isso. O que apenas me confirma aquilo que diz o Ontõe Gago, ou, se não foi ele, algum conterrâneo dele, talvez o Zé Preá: "indéia é ca nem pássaro: avoou, quem pegar é dele!" Pior que esses plágios involuntários é tentar lembrar quem foi mesmo que disse esta ou aquela frase. Por exemplo: Uma voz feminina pergunta languidamente: "Vai doer, doutor?" Como a porta do consultório dentário está fechada, a que cena isso corresponderia, na sua imaginação? "Tire já a mão daí!" é algo que está sendo dito por alguém do sexo feminino. É a mãe mandando o filho tirar o dedo do nariz ou a secretária não gostando das intimidades pretendidas por seu chefe? "Não conheço esse homem!" foi dita por Pedro Barjonas, ao ser indagado por uma serviçal se conhecia Jesus, ou foi dita pelo Lula quando prenderam mais um membro de seu estafe? "Vim, vi e venci" foi coisa do Júlio César ou foi o Alckmin saindo da convenção do PSDB? "Você pode enganar a todos por algum tempo; enganar a alguns por todo o tempo; mas não poderá jamais enganar a todos por todo o tempo" foi dita pelo George Washington a um dos seus ministros, ou pelo Cristóvão Buarque quando foi demitido por telefone do Ministério da Educação? "A sorte está lançada!". Esta é fácil. É do Presidente candidato depois que resolveu não ir ao debate na TV. Errado? Foi o mesmo Caio Júlio César, ao dispor-se a ir! "Não concordo nada com o que dizes, mas defenderei com minha vida o teu direito de dizê-lo". Isso foi coisa do Voltaire ou do Márcio Thomaz Bastos? "Só lamento deixar este governo antes desse rato!". A frase foi dita pelo Danton, referindo-se ao Robespierre, que acabava de mandá-lo para a guilhotina, ou seu autor foi o Zé Dirceu?  
sexta-feira, 20 de outubro de 2006

Chic Buarque

"Saudade é o revés de um parto/ saudade é arrumar o quarto/ de um filho que já morreu" (Francisco Buarque de Hollanda) Eu seria pouco original se começasse uma crônica sobre o Chico dizendo que esse moço tá diferente. Pudera, tomando kir no Les Deux Magots e lendo Baudrillard a bordo do Bateau Mouche até eu. Eu nem precisaria morar na Ille de Saint Louis, ali onde só os chiques e novaes, como a minha amiga Noca, compram apartamentos. Ser esquerdista na França até o Sartre, meus caros. Vinhos excelentes, comida boa, companheira compreensiva com tuas puladas de cerca. Que mais queres? E, além disso, quando calha, o dia todo no Roland Garros, vendo o Nadal ajeitar as meias antes de sacar, ou aplaudir o Federer ganhar mais uma partida de tênis, com aquela fleugma suíça. O único problema do Sartre foi que bateu um ar nele durante um certo jogo e cada olho ficou fixado num dos jogadores. Ele conseguia, a partir daí, assistir a uma partida de tênis vendo os dois jogadores ao mesmo tempo, sem ter de estar movendo a cabeça daqui pra lá, de lá pra cá, como nós, pobres mortais. Un oil sur le chat, l'autre sur le poisson, como diria o Chico, agora metido a falar francês. Songes et mensonges, sei de longe e sei de cor. Quando ele canta "acorda, acorda, acorda" ele talvez esteja querendo dizer "d'accord, d'accord, d'accord", depende de quem ouve. Dizia-se que ele era o maior letrista que o Brasil já produziu. Suas definições de saudade são, simplesmente, irretocáveis. Falo agora do Chico, é claro. Quando, porém, não tinha o Edu Lobo ou o Tom Jobim na cozinha, suas músicas eram enfadonhas. Pois ele levou a crítica a tal extremo que hoje compõe umas quase dodecafonias que nem ele mesmo consegue decorar. "Confesso que a primeira vez que cantei esta música estranhei muito", diz ele ao fim de uma delas, coisa assim de um John Cage, no seu mais recente e badalado show. O show que ele apresenta nem é francês, é britânico, de tão sóbrio. Ao fim das músicas, palmas, muitas palmas, como se tivéssemos acabado de ouvir a Kiri Te Kanawa cantando Messa di Requiem, do Verdi. Ou o Bocelli interpretando o Nessum Dorma. Lá pelas tantas ele repete aqueles requebros desajeitados que ele já havia apresentado em shows anteriores com o falecido mestre Marçal, uma espécie assim de passo de gafieira para japonês ver. A falta de jeito para a coisa continua a mesma. Morrendo o Marçal, bota-se ali outro mangueirense e o contraste está feito. Ebony and ivory, com se fossem nossos Paul McCartney e Michael Jackson. O príncipe Charles samba melhor. O antigo agitador de massas, que chamava revolução de carnaval e mandava os militares calarem a boca valendo-se de uma homofonia, deu lugar a um tranqüilo avô de três ou quatro netos, alguns deles composições do Carlinhos Brown. O rosto triste, de alguém que talvez esteja pensando "qual, este país não tem mesmo jeito!", aquele fiapo de voz anasalada de sempre, barriga nenhuma e um par de orelhas que aumentaram de tamanho devido ao rigoroso regime alimentar, "seulement caviar et champagne, monsierur Chico?", está ali no palco, vendendo saúde. Sou, confessadamente, uma das milhares, talvez milhões, de viúvas do nosso carioca, como era conhecido na rua Maria Antonia, lá se vão muitas decepções, inconformado com essa besteira de ele querer falar em Benjamins e outras cidades visíveis. Quem não cantou o "quem sabe faz a hora não espera acontecer", como fez o Abílio Neto, não sabe a efervescência que era aquilo, no tempo em que ser de esquerda era algo um pouco mais do que se chamar Zagallo. Os teóricos diziam, e nós acreditávamos, que o socialismo era o filho bastardo do capitalismo. Pois não é que o filho acabou parindo um pai ainda pior do que ele! Está aí a família Bush que não me deixa mentir: o atual Bush é aquela cara que algum conhecedor da teoria do Lombroso classificaria de. O pai dele o Michael Moore já mostrou quem foi naquele filme em que. E o pai de um a avô do outro? Gente finíssima! Prescott Bush robbed Geronimo's tomb and brought his skull and bones to Yale, diz sua biografia, orgulho do neto, certamente. Violar túmulo de um herói indígena para exibir os ossos como troféu de guerra. Só mesmo um Bush! O bisavô do homem acho que comia criancinha, mesmo sem ser padre. Agora, falando sério, eu preferia não falar. Ou dizer, como o Chico, alô, liberdade, levanta, lava o rosto, fica em pé; como é, liberdade? Vou ter que requentar o teu café? Quem de nós, os eternos quixotes, não está de acordo em que se deve sonhar mais um sonho impossível; lutar, quando é fácil ceder; vencer o inimigo invencível; negar quando a regra é vender? Melhor que copiá-lo será, porém, plagiá-lo. Querem homenagem maior do que o plágio? O lado comercial da Maria da Graça Meneguel certamente fica comovido quando ela topa com a utilização do seu conhecido apelido sendo utilizado por donos de bares e toca contratar advogados e doutoras Dalilas para fazer o moço mudar de apelido. Xuxa, no Brasil, só ela! diz, toda imperial. Mas, lá no fundo, é aquela vaidade que vem à tona. A mesma que eu senti quando uma nossa ex-empregada doméstica nos veio mostrar seu Adautinho, uma graça de garoto, em cuja produção, aliás, eu em nada contribuí. Pois aí vai o plágio que ofereço ao Chico, a quem rendo as homenagens que ele merece, até porque já murcharam tua festa, pá, mas, certamente, esqueceram uma semente nalgum canto do jardim: "Andou só por andar, como se fosse autômato. Num banco de jardim, permaneceu estático. Pensar, já não pensava. O pensamento, errático, voava, além de si, como de um ser sonâmbulo, que traz atrás de si como visões oníricas. Chorou gotas de dor tendo um sabor insípido; co'a manga da camisa recolheu as lágrimas; sentiu dentro de si um mal-estar famélico, a cara transmudou-se num rostinho angélico e foi pro barracão, pra tapear as vísceras. Sonhou matar a fome, então, nuns seios túrgidos. No catre remendado ele se achou um príncipe: por manto de arminho ele vestiu a túnica, que fora do seu pai, quando servira o Exército, morrera e lhe deixara como herança única. Buzinas na avenida ressoaram lúgubres: do sonho não voltou porque morrera eufórico. No rosto inda se via um como riso cínico, no gesto inda se via uma postura cívica. Viveu só por viver, como se fosse autômato. Sonhou sonhos de cor, tendo visões angélicas. No catre remendado o pensamento errático voava além si, pra tapear as vísceras. Pensar, já não pensava, pois morrera eufórico. Morreu como viveu: permaneceu estático. Num banco de jardim ele se achara um príncipe. Passara pela vida como fosse sândalo: aos golpes da miséria sucumbira impávido. Morreu só por morrer, como se fosse errático."
sexta-feira, 13 de outubro de 2006

Românticos

  "O poeta é um fingidor. Finge tão completamente, que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente." (Fernando Pessoa) O Francepiro vive a reclamar que as editoras não se interessam pela publicação de livros de novos autores, logo ele que deu a um de seus livros um nome invejável: "Do amor e outras fraudes". Um achado! Pois tenho uma notícia alvissareira para dar-lhe meu caro Francisco, para oficializar a oportuna palavra que ouvi dias destes, híbrido que me não parece de má origem. Coisa que o nosso colega Guimarães Rosa certamente avalizaria. Conheci numa dessas feiras de livros, que eu e você costumamos freqüentar, a simpática proprietária de uma editora sediada no Rio de Janeiro. Num casamento de egípcio e latim, escolheu ela o nome da novel empresa, que você encontrará na Internet, com uma relação de livros de poesia editados por eles. Sim, meu caro Fran: poesia! O site nos informa que Íbis era a ave cuja cabeça encimava o corpo do deus Thot, criador do alfabeto e padroeiro da literatura. Nosso padroeiro, portanto. Como o site não indica o endereço eletrônico do departamento de distribuição dos livros, sou informado pela direção que eles apenas editam o livro. Distribuição serão outros mil e quinhentos. Isso, porém, não constituirá obstáculo capaz de desanimá-lo, se eu bem o conheço. Tive uma tia que vendia Yakult. Ela saía pelas ruas de seu bairro, com um carrinho de feira, carregando aqueles frasconetes de lactobacilos, que é como aquilo se qualificava, se não me falha a já falível memória. Tocava a campainha da casa e repetia o mesmo refrão, dias e dias. "Vende muito disso, tia?" Ela, com seu sotaque italianado, dizia alguma coisa que eu mal compreendia, talvez palavrão, e continuava a cantarolar alguma música do Carlo Gardel, como ela pronunciava, talvez fosse ele algum cantor italiano, e não o francês Charles Gardès. O produto era fabricado pelos japoneses, segundo ela me explicava, e tinha tais e quais efeitos, que eu, menino ainda, não entendia muito bem. O que sei é que os japoneses, com essa mania de imitar os norte-americanos, acabaram acabando com o ganha-pão da minha tia Nena, pois em lugar de o seu produto ser vendido um a um de casa em casa, passou a ser exposto, em pacotes de dúzia, nas geladeiras dos supermercados. ¡Siglo veinte, cambalache problemático y febril! Sou também do tempo do "Ding, dong. Avon chama!" Lembra? Pergunte à tua mãe. Era um Yakult preocupado com a parte de fora do corpo. O rádio e a televisão incipiente nos pediam que fôssemos atenciosos para com a "moça do Avon". Se ela apertar a campainha de tua casa, mande a moça entrar, sirva um copo d'água, um cafezinho e, se possível, compre o produto que ela está vendendo. Era o reverso da história: os norte-americanos agora a adotar o sistema nipônico de vender de porta em porta. Imagino isso hoje, quando os porteiros do prédio são orientados a conferir as individuais datiloscópicas de quem nos procura, se haveria como servir água ou cafezinho à tal moça. Vá a gente saber se aquilo não é coisa do PCC.Outra invenção dos norte-americanos era a venda de umas panelas de plástico, se posso dizer assim, também oferecidas de casa em casa. Criava-se no bairro uma espécie de irmandade do bem e as senhoras, geralmente tão desocupadas enquanto os maridos davam duro no chamado trabalho e enquanto a televisão não se tornasse a coisa insuportável que se tornou, passariam a fazer algo de útil, que lhes proporcionaria algum trocado para o batom ou o rouge, se é que a senhorita que me lê sabe do que estou falando. Havia um curso preparatório que deveria ser uma autêntica lavagem cerebral, tal era a modificação operada nas que o freqüentavam. Você ia a uma missa de sétimo dia e lá estava uma amiga pronta a conversar sobre o tal produto, falando, baixinho é claro, das maravilhas da tal quinquilharia. Se você se encontrasse com ela na feira, ou na padaria, ou na quitanda, era tiro e queda: a tal vendedora parecia esses moços neo-convertidos que, de Bíblia na mão, vêm nos teus calcanhares com o refrão "convertei-vos!". Pois os vendedores das tais panelas de plástico tinham esse mesmo tipo de comportamento. Descobri que o chefe deles utilizava do mesmo sistema de avaliação e incentivo utilizado pela turma do A.A.: à medida que você atingisse um número de vendas por mês, recebia um bottom de outra cor. E todos eles se cruzando com seus invejáveis bottons coloridos na lapela, como se vender panelas de plástico fosse tão meritório como livrar-se do álcool. Pois hoje não mais nos propõem vendermos lactobacilos, meu caro Francepiro, nem panelas de plástico, nem creme anti-rugas. O que a modernidade nos propõe é que saiamos por aí, a empurrar carrinho de feira pelas calçadas arrebentadas que temos em nossa infeliz cidade, desviando-nos dos cocôs de vários tamanhos e formas que os cachorrinhos de madames e cavalheiros se encarregam de espalhar por todo canto dia e noite, a oferecermos, de porta em porta, nossos livros de poesia. Sonhador que sou, vejo meu prezado amigo a oferecer o produto falando naquele bocal que nos aguarda na parede das casas. Tenho aqui um "lânguidas lágrimas de serena face/ que jorrais suaves por meu rosto gasto..." Ou então tenho um mais alegre: "cômodos lazeres/ placidez ebúrnea/ cômodos prazeres/ sensatez ausente ..." Aliás, ia me esquecendo, o site da mesma editora nos recorda que Íbis era um dos muitos falsos nomes de que se valia o nosso tímido colega Fernando Pessoa, este sendo o apelido quando enviava cartas de amor à sua amada Ofélia Queiroz. Lembrança mais do que oportuna, pois o nosso Fernando António Nogueira Pessoa, que se escondia sob vários disfarces, como Alberto Caieiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e Bernardo Soares, o do Livro do Desassossego, também tinham lá seus problemas para distribuir seus poéticos livros. Consta que nossa colega Cecília Meireles, tendo ido a Portugal, para proferir conferências na Universidade de Coimbra, desejou conhecer o poeta de quem tinha se tornado admiradora e que talvez precisasse de uma mãozinha brasileira. Marcou um encontro com os heterônomos todos, que se daria ao meio-dia na praça onde hoje lá está ele sentado, mesmos óculos, mesmo chapéu, mesma gravata e mesmo terno, agora tudo isso brônzeo. Ela esperou até as duas da tarde, tempo mais do que suficiente para que o Fernando reunisse todos eles e lá fossem todos. Cansada de esperar, Cecília voltou ao hotel e ali encontrou um exemplar do livro Mensagem e um recado do poeta: não havia comparecido porque, consultando os astros, soubera que os signos dela não combinavam com o de nenhum dos seus heterônomos. E os astros tinham toda razão: não houve mais encontro algum, mesmo porque no ano seguinte o Fernando Pessoa faleceu. E, se isso te consola, meu caro Francisco César, só em 1982 foi publicada a edição definitiva do Livro do Desassossego, que o nosso colega lusitano havia escrito durante a vida, é claro, que se findou, como sabeis, em 1935, quando nascias.
sexta-feira, 6 de outubro de 2006

Bárbaros

"Enquanto a religião prescreve o amor fraterno nas relações entre os indivíduos e os grupos, o espetáculo atual mais se assemelha a um campo de batalha do que a uma orquestra." (Albert Einstein, 1951) Na minha distante juventude, a palavra bárbaro era elogio. Alguns até esmerilhavam, usando um pretenso superlativo: "tua irmã é tártara!" Não sei se hoje ainda se usa a palavra esmerilhar, mas tártaro está mais para problema dentário do que para elogio à beleza da irmã de alguém, vaga lembrança de Gengis Khan e suas conquistas. Lembra? Até foi feito um filme sobre ele, que tinha como intérprete ninguém menos do que o John Wayne, aquele que nasceu sobre um cavalo e sempre andava com as pernas abertas. Era comum também naqueles tempos ouvirmos a mãe, referindo-se ao filho, dizer toda orgulhosa à vizinha: "esse menino é o terror das meninas!" Terror! Ela queria dizer que o rapaz gozava de muito prestígio entre as garotas. Meus netos talvez falem em azarar, verbo que eu não sei bem o que significa. Azarados, para mim, foram aqueles japoneses que resolveram estar em Hiroshima e Nagasaki quando os civilizados norte-americanos resolveram treinar tiro-ao-alvo usando seus Littles Boys, com suas 12.500 toneladas de TNT. No livro em que agradecemos ao Alberto Silva Franco tudo o que ele tem feito pela cultura jurídica brasileira, editado pela RT, há um capítulo em que o autor apresenta alguns lances da emocionante biografia do George W. Bush, coisa para ser interpretada pelo mesmo John Wayne, que, aliás, se orgulhava de suas convicções políticas, talvez daí o seu interesse na interpretação tanto do Gengis Khan, que, segundo diziam, por onde passava nem mato crescia, quanto dos boinas verdes, aqueles simpáticos rapazes que, em nome da civilização ocidental, despejaram napalm no Vietnã e que deixaram minas enterradas quando de lá saíram, matando civis anos e anos depois de oficialmente terminada a guerra, como se diz no tal capítulo do tal livro. Pois ali se fala em "Barbárie e Civilização", incluindo-se a opinião do pensador esquerdista de origem judaica Noam Chomsky: "Os EUA estão oficialmente comprometidos com o que é chamado de ações de guerra de baixa intensidade. Essa é a doutrina oficial. Se alguém lesse as definições padrão de conflito de baixa intensidade e as comparasse com as de terrorismo, em qualquer manual do exército ou no U.S. Code, repararia que são praticamente iguais." Quando estiver numa roda de amigos, pergunte ali quem sabe quem foram os vikings. Dez entre dez dos que levantarem a mão dirão que eram uns bárbaros escandinavos, que, hábeis navegadores, chegavam com seus barcos silenciosos e saqueavam as cidades abordadas por eles, retirando-se antes que as beatas locais dissessem "ai, Jesus!". Será que eles saberão que os vikings criaram a primeira república em toda a Europa, quando conquistaram a Islândia? Será que eles sabem que os bárbaros vikings chegaram à América mais de 500 anos antes dos civilizados espanhóis? Os mesmos espanhóis que dizimaram as civilizações maia, asteca e inca, mais avançadas, em certos temas, do que os europeus? Os vikings se impressionaram tanto pela civilização existente do lado de cá do mundo que certo chefão deles enviou o filho para fazer uma espécie de MBA na Inglaterra. O tal filho de lá voltou tão impressionado com o que viu que modificou a história da Escandinávia. "Isso de Tor com um martelo que vai até a cabeça do inimigo e depois volta à mão dele como se fosse bumerangue não está com nada, velho" deve ter dito Olav a seu pai. "O deus Odin com um cavalo de oito patas? Onde nós estávamos com a cabeça? Jesus Cristo é dez!" teria dito ele, mostrando a camiseta por baixo da armadura, como fazem alguns jogadores de futebol hoje. O chefão Harald Grenske só ouvindo os descabidos comentários do filhote, isso por volta do ano 1.000 d.C. Pois não é que o Harald morre e o Olav assume o comando de tudo aquilo? Pois lá está ele, embora rei, de espada na mão, a perguntar a cada um que encontra na rua: "Acreditas em Jesus Cristo?" No que o entrevistado vacilava ou ganhava tempo com um "hein?", era degolado. Converteu mais gente do que esses pastores da televisão com sua falinha melosa. Pois esse civilizado degolador de incréus é o padroeiro da Noruega e santo canonizado pela Santa Sé. Alguns anos depois, o civilizado povo alemão resolveu aprimorar a raça. Nada de negros, nem ciganos, nem aleijados. Isso depõe contra a raça ariana. "E vamos incluir na lista também os judeus", disse o líder deles. Claro que não foram os alemães que fizeram isso, mas alguns deles, uns lunáticos, que, em nome do nacionalismo, provocaram de um grande cientista judeu, Albert Einstein, não sei se o leitor conhece um notório pacifista, estas palavras de ódio: "Os alemães, como povo inteiro, são responsáveis por esses assassinatos em massa e devem ser punidos como povo, se existe Justiça na Terra." Recorde-se que ele nasceu em Ulm, uma cidadezinha situada no sul da Alemanha. A família de Einstein era tão pouco ortodoxa que ele acabou se recusando a fazer o bar mitzvah, coisa que não tinha para ele qualquer sentido, além de ter estudado em um colégio católico, onde certo padre lhe mostrou a diferença entre os bárbaros judeus e os civilizados cristãos, ao exibir à classe um enorme prego, dizendo: "Foi com isto que os judeus pregaram Jesus numa cruz." Os olhos de toda a classe se despejaram sobre ele, que talvez tenha respondido a muda indagação: "Tudo o que posso dizer é que eu não havia ainda nascido naquele tempo." Pois nos últimos cinqüenta anos muitos judeus tentaram convencer o mundo de que no holocausto nazista só morreram judeus. Eu, pelo menos, não me lembro de ter visto algum cigano, algum negro ou algum gay na lista do Schindler. Tudo isso está indo agora por água abaixo, em face da conduta de meia dúzia de nazistas que resolveram devolver o sofrimento que seus antepassados conheceram na Alemanha hitlerista. Se o Einstein fosse libanês, certamente diria: "os judeus merecem o inferno!" Mas o Hesbollah é um bando de terroristas!, havereis de dizer. Passo, então, a outro assunto. Ou ao mesmo assunto, dependendo de como se queira considerar isso, pois, à maneira de Esopo e de La Fontaine, pode-se falar de lobos e cordeiros e deixar à imaginação do leitor identificar quem é um e quem é outro. Problema de quem lê não de quem escreve. Imagine que seu vizinho tenha no quintal uns cachorros que latem dia e noite, atormentando tua vida e a de teus familiares. Um terror! Você leva o problema ao tal vizinho que, ou porque não quer, ou porque não pode, não o elimina (falo do problema, não do cão). E os cães continuam a ladrar e a latir noite e dia. Um dia você perde a paciência, compra um galão de gasolina e atira todo o líquido sobre a casa do tal vizinho. Não contente com isso, você arremessa em seguida sobre a mesma casa uma tocha, o que, previsivelmente, provoca um incêndio. Pronto, o problema está resolvido, dirá você. Pausa. Que será que o teu psicoterapeuta diria desse teu comportamento? E tua mulher? E teus amigos? E tua consciência? Você já leu alguma coisa sobre war casualties, que você, naturalmente, traduzirá, pro domo sua, como dizem os advogados, por "meras casualidades" provocadas pela guerra, aqueles efeitos imprevisíveis que toda guerra acaba produzindo. O sentido, porém, não é esse, meu caro. Casualty pode significar, de fato, mera casualidade, mas quando vem acompanhada da palavra war significa simplesmente, na linguagem militar, "baixa". A expressão war casualties refere-se ao número de mortos e feridos provocados por uma guerra. Você dizer que o fato de a mulher do teu vizinho agora apresentar queimaduras de primeiro grau, provocadas pelo incêndio da casa, foi mera casualidade, coisa que você não desejava quando jogou a gasolina e nela ateou fogo, pode ser útil à tua boa consciência. Talvez até o sacerdote amigo te absolva depois de te mandar rezar meia dúzia de Ave-Marias. Mas, que dirão a isso os demais vizinhos, sabedores de que têm por ali alguém tão irresponsável como você? Tão odiento? Tão desprezível? Tão psicopata? E as crianças que morreram esmagadas quando ruiu o teto da varanda onde elas brincavam? War casualties, dirá você, cheio de empáfia. E, em último caso, culpará os cachorros. "Se eles não tivessem começado isso tudo..." De agora em diante, como você se sentirá quando sair à rua e notar nos olhos dos que te olham aquele misto de ódio e de desprezo, por terem ao lado deles alguém tão abominável? Você conseguirá conviver com isso? Ou acabará por levantar os muros do teu quintal, cada vez mais altos, para viver ali cercado de teu ódio, alheio à dor alheia? Talvez um dia você resolva contratar o Steven Spielberg ou o Roman Polanski para mostrar ao mundo todo como foram terríveis aqueles tempos em que você e sua família tiveram de conviver com os latidos incessantes dos malditos cachorros do vizinho. Sobre o que aconteceu com a família dos vizinhos, evidentemente, eles nada dirão no filme, pois isso não vem ao caso. O pior é que os tais cachorros continuarão a latir, ameaçando pessoas no mundo todo. E teus filhos e teus netos pagarão por aquilo que você fez.
sexta-feira, 29 de setembro de 2006

Pátria

  "Não verás país nenhum como este: imita na grandeza a terra em que nasceste!"(Olavo Brás Martins dos Guimarães Bilac) Cacá Diegues é alguém que conhece o país onde nasceu e onde vive. Seu filme Bye, Bye Brasil é um registro crítico de um Brasil que muitos brasileiros preferem não conhecer. Quando você vê o cenário de um Jardineiro Fiel, filme que narra uma história que se passa quase toda na África, não por acaso dirigido por outro brasileiro, você fica impressionado ao descobrir que do outro lado do Atlântico há um segundo Brasil. Aliás, quem já esteve no Congo ou em Angola, que correspondem àquele pedaço de terra que o mar e o tempo retiraram da Bahia, nota que até mesmo as palmeiras de lá se parecem com as palmeiras de cá. A areia das praias, os negros e a pobreza são os mesmos. Veja o filme, se não viu, e confirme isso. Ninguém imagina que o fato de um filme mostrar o que esses dois filmes denunciam implicará a imediata tomada de consciência de que as coisas, cá e lá, podem e devem ser diferentes. Essa mudança da cultura não se faz de um dia para outro. Mas isso acaba acontecendo, para o bem ou para o mal. Se você vê a chuva cair no chão, você imagina que um habitante do Lácio também via a chuva caindo no chão? Pois ele via. Só que a chuva ele chamava de pluvia e o chão ele chamava de planus. O fenômeno atmosférico é o mesmo, mas o pl dos latinos se transformou no ch da língua portuguesa. Quem fez isso? Quanto tempo foi necessário para isso ser feito? Por que foi feito? A História, como o ônibus do Cacá Diegues, é algo que vai construindo o seu caminho e sendo reparado à medida que avança à procura dele. Pense na dificuldade de trocar os pneus com o ônibus em movimento antes de dizer que "isso não tem mais jeito". É fácil? Quando você reclamar que a fila no banco ou para entrar no cinema está muito comprida, lembre-se de que na China não há fila. As pessoas chegam lá na frente para serem atendidas a golpes de cotoveladas. Pergunte à Maria Helena, que queria comer um hambúrguer de carne de cachorro em Beijing, que é como eles, ignorantes que são, chamam a cidade de Pequim. Mulheres, velhos e crianças são derrotados nessa disputa, o que está perfeitamente de acordo com uma cultura em que a companheira jamais anda de braço dado com o marido, mas pelo menos um metro lá atrás. No livro O Livreiro de Cabul, que está esgotado nas livrarias, a jornalista norueguesa Asne Seierstad informa, a quem interessar, o que é ser mulher nos países islâmicos. Elas são vendidas e compradas como uma cabra ou uma porca. Imagine o impacto disso para quem vive na Noruega, um país onde o sexo fraco é o masculino. Você acha que no Brasil isso é muito diferente? Pergunte às mulheres que "fizeram concessões" para obter certos empregos ou serem promovidas e elas lhe contarão coisas interessantes. O famoso "teste do sofá", no qual as candidatas a um emprego na televisão deveriam (ou ainda devem?) passar, não é folclore. Quando Mary Quant inventou a mini-saia, foi imitada no mundo todo. Em que ano se deu isso? Pergunte aí à tua mãe. Pois do lado de lá da cortina de ferro essa moda indecente penetrou, levada certamente por agentes capitalistas, que pretendiam, com isso, destruir os valores morais dos soviéticos. Coisa da CIA. Felizmente, o primeiro ministro Nikita Kruchev, sempre alerta, fez condenar à morte dois costureiros que se atreveram a tentar implantar a nova e inadmissível moda, que nem por isso deixou de ser ali adotada algum tempo depois. As pessoas quiseram, as pessoas fizeram. Quando a modelo brasileira Rose Di Primo, acho que ainda está viva, inventou, por mero acaso, o biquíni, foi aquele escândalo. O presidente Jânio Quadros, que, atendendo a pedido da escritora Adelaide Carraro, havia proibido a briga de galo, pois ela, que escrevia livros eróticos que nossos pais não permitiam que as filhas lessem, tinha muita pena dos bichinhos, talvez atendendo a pedido de outra fã, certamente de corpo menos aplaudível do que o da modelo, não deu para proibir também o uso daquela peça indecente? Duvida? Estou exagerando? Pois procure aí na sua biblioteca o decreto número 51.009, de 22 de julho de 1961, e veja o que ele diz. É nessas idas e vindas que se constrói o que, ao fim de algum tempo, se chama cultura. É claro que cultura é muito mais do que isso, mas isso está nela incluído. Comecei com o Cacá e termino voltando a ele. Qual será o maior amor do mundo? A julgar pelo mais recente filme do Diegues, poderemos pensar que é o amor materno, como diz o Contardo Calligaris. Mas, quem é a mãe, no filme? Em nossa linguagem comum, falamos em "pátria mãe", expressão aparentemente contraditória, pois, originalmente, pátria é o local onde estão enterrados os nossos antepassados do sexo masculino, os nossos patres. Disse o Fernando Pessoa, no Livro do Desassossego: "Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente, mas odeio, com ódio verdadeiro, quem não sabe syntaxe, não quem escreve em orthographia simplificada, mas a página mal escripta, a syntaxe errada, como gente em que se bata, a orthographia sem ípsilon, como escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a orthographia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a fala da transliteração greco-romana veste-ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha". O Caetano se apropriou da idéia: Eu não tenho pátria, tenho mátria e quero frátria. Voltando ao filme, a moralização do Brasil, que os Nikitas de 1964 tentaram fazer, levou um pensador a desraizar-se de seu solo natal, buscando na ciência a explicação para o paradoxo da vida. Deu no que deu com ele e conosco. Ali está aquilo que já lemos em certo poema: "dos filhos deste solo és mãe gentil, pátria amada". Conhece? Eu disse lá em cima que as palavras, como as pessoas e as nações, são coisa viva. Formidável é um adjetivo que abre sorriso na cara mais séria. Quem não gostaria de ser assim chamado? Saber que é bonita, inteligente, boa praça, bacana, nota dez, pedra noventa e tantos outros sinônimos que a palavra comporta? Para os romanos, porém, formido era aquele espantalho que nós pomos no milharal para afugentar os passarinhos. Formidável para eles era algo que metia medo, que espantava, que afugentava. Quando as pessoas (= o povo) resolveram mudar o sentido da palavra, ninguém segurou. Se digo que minha sogra é uma mulher formidável eu estou dizendo exatamente isso: ela é um exemplo de ser humano, pese-lhe embora o Alzheimer. Que tal se fizéssemos hoje o mesmo que os nossos ascendentes fizeram outrora? Se pegássemos o nosso formidável país e o transformássemos em um país formidável? O sentido da palavra lá e cá fica por tua conta.
sexta-feira, 22 de setembro de 2006

Cidadania

"Se, como é infelizmente o caso de nossa época, a moral evangélica parece evaporada, a condição de seu renascimento não residiria nesta redescoberta de suas raízes naturais? Será que não quisemos, até agora, fazer cristãos onde não se tinha ainda conseguido fazer homens? O resultado não é dos mais brilhantes: não temos mais nem homens nem cristãos". (Paul Eugène Charbonneau) Temos todos a convicção de que a escolha dos governantes seja algo de grande importância. Os nomes dos nossos partidos não dizem muito e sua ideologia diz menos ainda. E a biografia dos candidatos é, de modo geral, de desanimar. Como proceder? Houve tempo em que os governantes tinham contato direto com o Criador, que lhes transmitia as regras a serem impostas aos súditos. Hamurabi e Moisés foram alguns que se valeram desse contato direto. Coisa muito mais fácil do que isso de democracia, que o Churchil disse ser a pior forma de governo, mas ainda não haviam encontrado outra melhor. Democracy is the worst form of government, except for all those other forms that have been tried from time to time. O rei Henrique VIII, porém, colocou em dúvida a certeza de que os soberanos tivessem sangue azul, ao mandar decapitar em público suas incômodas esposas. E olhe o sangue vermelho escorrendo quando a cabeça da executada foi separada do corpo. Muitos filósofos têm chamado a atenção para um fato preocupante, que não surgiu ontem. Enquanto na primeira metade do século passado os intelectuais discutiam a respeito da natureza de Deus, neste século a questão não está em acreditar ou em não acreditar. O que predomina é uma indiferença, é o "tanto faz quanto tanto fez". Para Hans Küng isso tem muito a ver com a crise de valores que permeia o mundo todo, pois "não existe ação moral, humana, incondicionalmente obrigatória, nem uma ética também incondicionalmente obrigatória, sem religião". O argumento é discutível, pois pode levar ao entendimento inverso: basta haver religião para que esses tais valores sejam observados. Basta verificar que um Estado comprometido com a religião, como Israel, teve no Líbano uma conduta que muitos equiparam à "limpeza étnica" pretendida pelo nazismo. Aliás, o próprio padre Küng arrola as atrocidades cometidas em nome do cristianismo ao longo da História, muitas delas voltadas contra os judeus. Dizer que matar crianças e produzir a maior poluição que o Mediterrâneo já conheceu se justificava pela necessidade de executar os terroristas do Hesbollah é invocar o Mein Kampf. Sem falar nas mais de 100.000 minas de fragmentação, proibidas pelas convenções internacionais, que foram ocultadas no território libanês e que explodirão nos próximos meses e anos, matando pessoas absolutamente alheias às divergências entre os dois Estados. Na África e no Cambodja ainda morre gente por causa desse encontro macabro. Quando Albert Einstein declarou que não acreditava em um Deus pessoal, pois seu Deus era de outra espécie, a cosmic God, caiu o céu sobre sua cabeça, pois já morava nos Estados Unidos, onde até mesmo os ateus confessos são obrigados a jurar sobre a Bíblia, quando vão depor em Juízo, ou a ler nas notas de dólares que in God we trust. Coisas da democracia capitalista, certamente. "Todos têm o direito de acreditar naquilo em que eu acredito", como deve ter dito o W. Bush aos muçulmanos. Um dos que lhe caiu de santo porrete na cabeça do Einstein foi o conceituado Cardeal Fulton Sheen, autor de livros como A Vida de Cristo, que fez pilhéria: "acho que o Deus dele tem um s a mais". Os cardeais norte-americanos, aliás, são mestres em comicidade, como se viu quando acobertaram um número inimaginável de colegas pedófilos, pois puni-los acabaria levando a Igreja à bancarrota, tais as indenizações que as famílias exigiriam em Juízo. Não é para rir? Eu poderia citar o padre jesuíta e teólogo Teilhard de Chardin e sua irrespondível afirmação de que a religião deve acompanhar as descobertas científicas e rever os conceitos que ela havia formulado quando tais descobertas ainda não haviam sido feitas. Só uma criança acreditaria que Deus fazia bonecos de barro, disse ele, curto e grosso. Prefiro, porém, ficar com outro padre, também teólogo, e ainda vivo. Hans Küng passou por maus bocados quando, a exemplo do nosso Leonardo Boff, resolveu dizer que seus superiores hierárquicos demonstram, por sua conduta, acreditar pouco em Jesus Cristo e sua mensagem de paz e tolerância. Não posso acreditar, diz ele, que Jesus, que advertiu os fariseus por causa da carga insuportável que estavam a lançar sobre os ombros das pessoas, declarasse hoje ser pecado mortal a utilização de todos os meios anticoncepcionais artificiais. Nem imaginar que Ele, que convidava para sua mesa justamente os que haviam falhado, proibisse para sempre o acesso à Sua mesa a todos os divorciados que voltassem a casar. Quer mais? O padre Küng tampouco consegue supor que Jesus, que constantemente se fazia acompanhar de mulheres, que cuidavam de sua manutenção, e cujos apóstolos, com exceção de Paulo, eram todos casados e assim permaneceram durante seu ministério, proibisse hoje aos homens ordenados o casamento e proibisse a todas as mulheres a ordenação. O homem não tem papas na língua, se me permitem o trocadilho. Na célebre pintura feita por Michelângelo Buonarrotti na Capela Sistina, por determinação de seu carrasco, o papa Júlio II, Deus veste um camisolão, tem barba e cabelos brancos e toca seu indicador no indicador do primeiro homem, feito de barro, como sabemos. Considerando que o papa era um tirano, que havia escravizado o artista até que este erigisse na Praça São Pedro uma tumba faraônica que lembrasse para sempre o nome daquele Sumo Pontífice, torna-se claro que aquela figura antropomórfica contava com o apoio papal. Além de antropomórfica (isto é, Deus tem cabeça, tronco e membros, como se fosse humano), a figura de Deus ainda é, para muitos, antropopática, isto é, sente, pensa e age como se fosse humano. Küng, homenageando nossa inteligência, nos adverte que, em realidade, é impossível falarmos de uma entidade tão superior, a não ser utilizando nossa linguagem humana. "Desse Deus e a esse Deus nós, certamente, só poderemos falar utilizando conceitos, imagens e idéias figuradas, códigos e símbolos." É ele o Deus bíblico, "que pode ser percebido sob uma nova visão do mundo, segundo Copérnico, Galileu e Darwin". Quem diria? Fico aqui a imaginar o que pensaria quem não conhece o jogo de tênis se visse a certa altura de uma partida, um dos jogadores segurar duas bolinhas amarelas e levantá-las, mostrando-as ao adversário. Que quer dizer isso? Que ele agora vai usar bolinhas? Mas eles vinham jogando com bolinhas até ali! Que vai usar agora bolinhas amarelas? Mas as bolinhas com que vinham jogando eram amarelas. Mistério! Subamos alguns degraus. Alberto Einstein ensinou-nos que E=Mc2. No mundo todo há certamente pessoas que sabem o que isso significa e a relevância disso para a ciência e para o mundo. Eu, no entanto, não tenho a menor idéia daquilo que está por trás dessa famosa fórmula. Você é capaz de me explicar o que se contém nela? Cartas para a redação. Eu poderia subir alguns muitos degraus e tentar mostrar se acredito num Deus pessoal ou num Deus cósmico. Mas, e daí? "Tanto faz como tanto fez" dirá o leitor. "Não estou nem aí", dirão outros. Note que essa frase é empregada por muitos também quando falamos em eleição de governantes. Pensar dói. A questão, como diz Küng, não está em discutir conceitos. Qualquer um de nós afirmaria o que ele afirmou em seu livro Por que ainda ser cristão hoje?, de que me vali para estas reflexões: "Não deixo absolutamente de reconhecer o fracasso histórico do cristianismo". Nem por isso ele deixa de propor que continuemos a cristianizar a sociedade em que vivemos. O desafio é: será possível salvar o nosso planeta sem fazermos da religião algo mais concreto, mais "terreno", algo menos preocupado com conceitos e mais comprometido com ações tendentes a fazer imporem-se aqueles valores que nossa inteligência, limitada que seja, concorda serem atributos desse Criador de tudo? O também perseguido frei Leonardo Boff segue esse mesmo caminho, tanto que escreveu um livro chamado Ecologia - Grito da Terra, Grito dos pobres. Será possível escolhermos governantes que pensem menos em si e mais no serviço que os aguarda, no respeito à dignidade humana, na luta contra todo tipo de opressão, num projeto de um Poder Judiciário minimamente eficiente, em programas que estimulem a solidariedade e a cidadania? Eu creio que sim. Se meu testemunho vale alguma coisa, eu posso dizer: por incrível que possa parecer, isso tudo já foi pior do que é hoje. Não é de hoje que político furta, nem é de hoje que muito juiz merece algema e xadrez. E se alguma coisa melhorou, é porque pessoas não ficaram reclamando na escuridão porque a lâmpada se apagou. Elas preferiram acender um palito de fósforo.
sexta-feira, 15 de setembro de 2006

Velhice

Separação obrigatória de Bens "A Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado vai votar, em decisão terminativa, o projeto que permite às pessoas maiores de 60 anos a livre decisão sobre o regime de bens no casamento. O projeto revoga um inciso do Código Civil que impede esse procedimento." (Migalhas, 7/8/2006) Falo do Carl Gustav Jung tão freqüentemente que algumas pessoas já danam a censurar-me. Ainda agora acabo de comprar o primeiro volume da aplaudida biografia escrita pela Deirdre Bair, esse o incrível e indecorável nome da moça. Cuida-se de "uma obra imensa, repleta de rigorosa pesquisa histórica, sobre uma vida cheia de coragem, criatividade, decepção, sofrimento e glória", diz o Carlos Byington, pai da cantora Olívia e um dos grandes psicoterapeutas junguianos do Brasil, na contracapa do livro. Tenho eu culpa se o homem era um sábio e, como diz a Maria Helena, altamente prospectivo? Pois está lá num depoimento à Aniela Jaffé, sua ex-paciente e depois renomada colega, um desabafo dado por ele quando já octogenário: "Eu já estou conformado em ser um póstumo de mim mesmo". Ele, de certa forma, antecipava aquilo que o Ângelo Bonetti, excelente violinista de Araraquara, me dizia quando eu lá judicava: "Meu caro doutor, acho que está na hora de eu morrer. Passei a vida toda envolto pela música, desde criança. Toco meu violino todos os dias, desde que me conheço por gente. Bach, Vivaldi, até Paganini. Quando ligo a televisão, porém, eles exibem uns moleques fazendo um barulho dos infernos dizendo que aquilo é música. E eles são aplaudidos. Só morrendo!" Vejam se o Jung não é eterno: "It is difficult to be old in these days" desabafou ele numa carta a um amigo. E ele tinha ainda apenas 65 anos de idade! Imaginem como foram os 20 anos que ele ainda iria viver. Norberto Bobbio, outra de minhas paixões, fala da própria velhice. Mas, que é velhice? "Aqueles que escreveram obras sobre a velhice, a começar por Cícero, tinham por volta de sessenta anos. Hoje, um sexagenário está velho apenas no sentido burocrático, porque chegou à idade em que geralmente tem direito a uma pensão. Já o octogenário, salvo exceções, era considerado um velho decrépito, de quem não valia a pena se ocupar. Hoje, ao contrário, a velhice, não burocrática, mas fisiológica, começa quando nos aproximamos dos oitenta que, afinal, é a idade média da vida". Serão essas palavras válidas em nosso país? Eu não tinha mais de 50 anos quando, parando o carro junto a um semáforo, fui abordado por um negrão forte, cujo rosto indicava não ter mais de 16 anos, porém com um corpo de lutador de boxe. Rosto grave, ele me estende a mão direita com a palma para cima. Não sou avesso a diálogos junto aos cruzamentos, ao contrário do que me aconselham os medrosos de plantão. Baixo o vidro da janela e lhe pergunto o que ele pretende, como se eu não soubesse. "Dinhêro!" responde ele com uma economia de palavras sintomática. Baixa em mim o educador que sempre fui. "Você, com essa saúde, com esse corpanzil que poderia ser útil com uma enxada na mão, vagabundeando por aí?" Ele me olha com dois punhais nos olhos. Eu insisto. "Você não tem medo da polícia?" Ele mostra uns dentes alvos. "Poliça! Poliça! Pra que que tem adevogado?" Ulalá! O rapaz tem experiência na área jurídica. Respondo-lhe, ingênuo: "Claro que sei. Eu também sou advogado". Ele faz uma cara de espanto: "Quem? O senhor? Velhão desse jeito?" Logo que atingi a idade da razão fui com a Maria Helena e a Thais ver uma exposição no MASP. Pedi três entradas à bilheteira. "Três não, duas", disse a Thais, com toda sinceridade, própria de sua delicada e veraz pessoa, dentista recém-formada que se dedica a pacientes especiais. "Ele não paga", esclarece, como se eu fosse um de seus pacientes. Confesso que aquilo foi um banho de imersão num lago escandinavo. Eu ainda não me dera conta de que havia transposto o cabo da Boa Esperança. Levei alguns dias para superar o trauma que aquela fedelha me havia produzido com sua frase cruel, embora verdadeira. "Que tal se puséssemos sobre a crueza da verdade o manto diáfano da fantasia, como queria o poeta?" Devo confessar, porém, que não vejo a hora de chegar aos 70 anos. Só mais um ano e já poderei contar com a prescrição etária. Como se sabe, os menores de 21 anos e os maiores de 70 são tratados pela lei penal brasileira como se fossem semi-imputáveis, quase incapazes de saber a relevância dos atos que praticam, incapazes de distinguir o que é privado daquilo que deve permanecer público. Praticar crimes todos nós praticamos, mas chegando a setuagenário eu terei mais motivos para praticá-los, com a prescrição correndo pela metade. Talvez até eu me candidate a algum cargo eletivo. Do modo como funciona o Judiciário, eu com minha lucidez, um mandato eletivo na mão e os benefícios dos prazos prescricionais pela metade acho que nos próximos anos abrirei, finalmente, a tão sonhada conta na Suíça. Ou numa dessas ilhas cujo roteiro de viagem pode ser obtido nas páginas policiais dos jornais. Entretanto, se bem conheço minha sina, estou certo de que, até o ano próximo, esse benfazejo dispositivo legal, pelo qual esperei por todos esses anos de uma quase insuportável honestidade, deverá ser revogado, tanto quanto aquele que logo mais me permitirá fazer dos meus inúmeros bens o que eu bem desejar, sem ter antecipados remorsos pela decepção que isso causará aos filhos na hora da partilha que se seguirá ao lançamento de minhas cinzas nos fjords escandinavos, como consta de minha solene declaração de última vontade. Paciência! Melhor isso do que nada.
sexta-feira, 8 de setembro de 2006

Evangelhos apócrifos

Dizem que, além dos quatro Evangelhos que todos conhecemos, que são os oficiais, ditos sincrônicos, há outros mais, ditos apócrifos, nome antipático para o que melhor se qualificaria de oficioso, alguns dos quais contam algumas historinhas sobre a infância de Jesus. Como aquela que narra o hábito que ele tinha de fazer passarinhos de barro, que ia colocando ali, ao lado dele, um ao lado do outro. Quando se cansava, ele, entre um bocejo e outro, dava um sopro sobre eles e as avezinhas saíam voando em bando. Meu pai nos contava o dia em que, indo pregar em outra freguesia, Jesus levou consigo o amigo Pedro, recomendando que este trouxesse no embornal um frango assado, determinando ao cabeçudo amigo que só abrisse o matulão quando chegassem ao destino. O Pedro, porém, com fome, enfiou a mão na cesta e arrancou do frango uma das pernas, que comeu discretamente. Quando se sentaram para comer e o Mestre descobriu que faltava uma perna ao frango, repreendem o discípulo. "Mas esta é uma ave de uma perna só", justificou ele. Prosseguiram viagem e, lá adiante, havia umas aves pernaltas, fazendo a sesta sobre apenas uma das pernas, a outra guardada debaixo da asa, talvez jaburu. O Pedro não perdeu a oportunidade. "Veja Mestre, ali está a ave de que lhe falei". O Mestre correu até elas, espantando-as, e elas se puseram a correr, mostrando agora as duas pernas. O Pedro não se fez de achado: "Eita home bão pra fazê milagre, sô!" Que importância terá o fato de não termos prova da veracidade desses míni-contos? Vi certa vez uma ilustração em que o menino Jesus, de camisolão ocidental até os pés, rosto branco como um escandinavo e cabelos arianos loiros caindo pelos ombros, está numa oficina muito bem aparelhada, ajudando o pai carpinteiro. Já o Zé Saramago, com a liberdade que sua genialidade poética lhe permite, descreve uma refeição na gruta do casal: José, de cócoras, prato amparado na mão esquerda, com a mão direita fazendo as trouxinhas de comida que leva sucessivamente à boca. No canto escuro, Maria espia, de pé, encostada na parede, aguardando sua vez de almoçar, talvez coçando as costas. Sei de algumas pessoas freqüentadoras de missa que não foram além dessa página. Acho que todos temos o direito de sonhar e, sonhando, construirmos o mundo que gostaríamos de ter. Ou imaginando, no sonho, como o mundo talvez pudesse até ser muito pior do que já é, consolo dos inconsoláveis. Daí os sonhos de que nós acordamos alegres e aqueles de que acordamos ofegantes, coração disparado, mas felizes por voltarmos a este mundo caótico, menos terrível do que aquele que havíamos construído no sonho recentemente sonhado. Sonhamos o sonho de que necessitamos, dizem alguns estudiosos dessas coisas do inconsciente, esse porão mal iluminado amontoado de lembranças passadas e futuras. "Nunca será mais escuro do que a meia-noite" disse eu à Artemísia certa ocasião, procurando acalmar os temores dela, analista responsável, diante de minha ocasional depressão e aonde pode chegar um deprimido. "Isso não vale para o porão do inconsciente", disse-me ela, recomendando cautela quando avançar por esses corredores escuros. Há os que aí se perdem e não encontram mais a porta da saída. Tenho dado tratos no juízo para tentar descobrir o que levaria Deus a humanizar-se no seio da família de um carpinteiro. Se nem uma folha de árvore, se nem um dos cabelos masculinos despede-se da vida sem autorização divina, claro está que o Espírito Santo haveria de ter algo em mente quando, podendo escolher a casa de um político ou de um comerciante para aí botar o ovo da futura Humanidade, resolveu deixá-la naquela gruta do Saramago. Fiquemos com a primeira hipótese. José, na sala de visitas, recebe correligionários, com os quais discute verbas para a aquisição de mulas e camelos, com os quais poderão ser atendidos doentes residentes em sítios mais distantes. E também as verbas para a aquisição e distribuição de merendas às crianças das favelas locais. "Nossa comissão nesse negócio será de tanto", diz um dos recém-chegados. Jesus, pelo vão da porta, espia ansioso, a cara do pai. Não. Melhor pensarmos na segunda hipótese. O pai de Jesus é um rico comerciante de tecidos. As belas roupas do filho, que vive passeando pelos arredores da cidade, entrando em casebres e limpando, com a manga de suas belas roupas, o ranho das crianças que encontra, são como os macacões dos corredores de fórmula um. Quem vê a roupa dele sabe que o fabricante é o José, aquele um que. Um dia, o jovem Jesus é repreendido pelo pai, pois não deve andar por esses lugares de má fama. "Eu já não lhe comprei título de clube de golfe? Então, que história é essa de andar com más companhias por lugares ermos? Vá dar uma volta de jet-ski, meu filho." Além do mais, o que haverão de dizer as freqüentadoras daquela Daslu nazarena vendo os tecidos exclusivos ali vendidos, importados graças a facilidades fiscais obtidas junto ao Senado romano, sendo empregados para limpar as sujeiras dessa gente periférica? O filho teria um acesso de santa ira, como aquela que mais tarde ele viria a ter na escadaria do templo, tiraria a roupa, jogaria no chão, e sentenciaria, solene: "Eu não preciso dessa merda para ser feliz!" E sairia à rua nu, catando pedras para restaurar uma capelinha do bairro periférico que está a merecer algum reparo físico. Talvez que ali as crianças aprendam a ler e escrever, sonha ele. Fico, porém, com a hipótese oficial. O menino Jesus está ali pendurando portas em batentes. Enquanto o corpo trabalha, a mente não descansa. "E pensar que a casa de meu Pai tem muito mais portas do que temos aqui!" resmunga ele, enquanto tira o suor do rosto com a manga da longa túnica. "Disse alguma coisa, filho? O barulho da serra não me deixa ouvir." Ou então passando a bonequinha de pano embebida em verniz sobre os desenhos da madeira, que ele acaricia. "E pensar que ainda ontem isto era uma árvore!" Vejo-o empolgado por essa idéia. Ele pára o que estava fazendo, volta-se para uma assistência de fiéis imaginários, e se põe a discorrer. "A semente morre e temos a árvore; a árvore morre e temos sua presença entre nós por gerações e gerações, sempre pronta a servir, como cadeira, como mesa, como. E vós? Sois semente? Sois árvore? Pois eu vos convido a serdes árvores eternizadas na utilidade que emprestardes à vossa vida. A cadeira não existe para si. A mesa não existe para si. E vós, a quem serve a vossa existência?" José, muito compreensivo, aproxima-se dele, passa a mão nos cabelos negros encaracolados do filho. "Vá brincar um pouco, filho. O tempo das coisas sérias pode esperar". Estas reflexões foram inspiradas por um belo moço, rosto de apóstolo de filme bíblico, olhos verdes, e que sabe passar a mão em esculturas e os olhos em pinturas e desenhos, e emocionar-se com isso. Compartilha meu carinho pelas orquídeas. Ele me diz que estudou teologia, imaginando que esse verbo, com esse complemento, admite pretérito perfeito. Hoje ele constrói móveis de madeira, sem imaginar que uma coisa decorreu da outra.
sexta-feira, 1 de setembro de 2006

Corruptelas

Ela é de uma delicadeza ímpar, falando baixinho, com um leve sotaque ribeirãopretano. Quando recebo seus bilhetes eletrônicos, até sinto perfume de rosas emanar deles. E fico a imaginar a Ariane catando no dicionário palavras aveludadas, assim como quem escolhe bombons na vitrina da Cristallo ou da Kopenhagen, para enfeitar os seus bilhetes. Digo-lhe que Ariadne era filha do rei Minos, de Creta, moça prendada, que era dada ao tricotamento, produzindo belíssimas rendas com o fio de seda produzido por ela mesma, olha que economia! Fazia redes maravilhosas, que esticava entre os galhos de árvores, para que, em noite orvalhada, os raios de luar, assoprando sobre elas, as transformassem em rendados de cristal. Embora fosse cretense, ela apaixonou-se por Teseu, filho de Egeu, rei de Atenas, cidade inimiga daquela governada por seu pai. Os atenienses, naquela época, estavam sujeitos ao rei Minos, que exigia que todos os anos eles enviassem sete rapazes e sete moças para serem sacrificados, em honra ao Minotauro, que os devorava um a um. O animal morava no labirinto, que era um complicado edifício do qual quem ali entrasse não conseguiria mais encontrar a saída. Fora construído por Dédalo, o Niemeyer da época, que, por sua vez, era pai do famoso Ícaro, nome que a moribunda Varig escolheu para com ele batizar a sua revista de bordo. Dédalo e o filho haviam ficado presos no interior da construção inventada pelo pai e, para dali saírem, o pai, mais inventivo que um Zé Preá, colou, com cera derretida, nele e no filho, número enorme de penas, que formaram asas. Voaram com elas dali para fora, salvando-se. Foi quando o filho, empolgado, passou a voar cada vez mais alto, até aproximar-se do Sol. Não deu outra: a cera, que havia solidificado, voltou a derreter e o rapaz só não se esborrachou lá embaixo porque caiu no mar. Veja a sorte do atrevido moço. Esse mito vai ser depois reproduzido na história de Lúcifer, um anjo que, tentando equiparar-se a Deus, voou muito alto: "Eu subirei ao céu, acima das estrelas de Deus exaltarei o meu trono, e no monte da congregação me assentarei, aos lados do norte. Subirei sobre as alturas das nuvens, e serei semelhante ao Altíssimo". Pois também ele queimou as asas, desabou lá de cima e se tornou conhecido como Satã ou Diabo, inimigo de Deus. É o que nos conta Isaías. Voltemos, porém, à nossa heroína. Deu-se que Atenas, em certa ocasião, enviou, para satisfação do apetite brutal do Minotauro, dentre os rapazes, ninguém menos do que Teseu. Ariadne teceu um fio de seda (os cientistas dizem que o fio de seda produzido pelas aranhas, denominação que deriva do nome da nossa heroína, é proporcionalmente três vezes mais forte do que um fio de aço), cuja ponta enrolou na cintura do seu amado. À medida que ele caminhava pelos corredores do labirinto, ela encompridava o tal fio. Quando Teseu deu de frente com o Minotauro, aquela cabeça de touro e um corpo de Schwarzenegger, passou-o pelo fio da espada, decapitando-o. Voltar foi mas fácil do que vencer o Corinthians: foi só ir recolhendo o fio de seda e acabar preso na teia da amada. "Mas eu não sou Ariadne; sou Ariane", diz minha missivista, modesta. Ocorreu aí, minha princesa, aquilo que os gramáticos chamam de corruptela, palavra horrorosa para indicar uma doença que ataca certas palavras. Nem o nome da mãe de Nosso Senhor escapou dessa catapora gramatical: de Miriam, tornou-se Maria. E eu mesmo me incluo no rol dos por ela atingidos, ainda que indiretamente. O Silvinho que trago no nome ("certamente o pai dele não sabia que ele iria crescer tanto" comentou o filho do Cláudio José Santoro quando o pai lhe disse meu nome completo) era Cerviño na Galícia, Espanha. Vindo para cá um deles, aqui produziu filhos e netos, um dos quais se deu conta de que o nome se referia a um animal delicado que, dentre outros atributos, possui um par de chifres em forma de galhos secos de árvore. À medida que o tempo passa, esses galhos crescem para cima e se multiplicam para os lados, como ocorre com certos maridos. Tal animal também é conhecido por veado. Antes que em nossa família todos os homens fossem Veadinhos (houve alguns, de fato, mas poucos), surgiu a providencial corruptela, graças à qual nós, a geração futura, em lugar de sermos equiparados àquele comprometedor animal, somos confundidos com os jogadores daquela seleção de futebol que apenas fez turismo pelos campos de futebol da Alemanha: Ronaldinho I, Ronaldinho II, Robinho, Adrianinho, Parreirinha, Zagallinho...
sexta-feira, 25 de agosto de 2006

Barco à deriva

"La historia del fútbol es un triste viaje del placer al deber. A medida que el deporte se ha hecho industria, ha ido desterrando la belleza que nace de la alegría de jugar porque sí" (Eduardo Galeano) Jung, quando tinha minha idade, dizia que é muito duro ser um velho nos dias de hoje. Se vivesse no Brasil e gostasse de futebol certamente ele diria: "It is harder to be a Corinthians Football Team's fanatic". Ou, dito de outro modo: es muy difícil hoy dia ser un hincha del club de Carlitos Tevez, muchacho. Nascido em 1910, o timão, que os almofadinhas chamam, depreciativamente, de time do povo, atravessa o momento mais difícil de sua vida quase centenária. O time da Marginal, como dizem alguns detratores, para fazerem chiste com o local da sede do clube, conhece atualmente momentos tormentosos. E a palavra tormenta vai muito bem no caso. Time ambíguo até mesmo no apelido, que, para muitos, indica o aumentativo da palavra time. Entretanto, veja bem o distintivo. Que se vê ali? Dois remos, uma âncora e uma bóia salva-vidas. Dois remos e uma âncora no brasão de um time de futebol? Curioso é que o conjunto desses três elementos indica precisamente um timão, que é o nome que leva aquele objeto com que o capitão acerta o rumo do barco, por sinal, um tanto sem rumo ultimamente. Essa era, pelo menos, a intenção do seu autor, o pintor Francisco Rebollo Gonsales, que, por sinal, foi jogador do time, de 1921 a 1927. É o que está num depoimento dado pela filha dele ao Museu da Imagem e do Som. Em 1913 havia na Liga Paulista de Futebol, criada por clubes dissidentes da Liga Paulista de Football, apenas três clubes inscritos: Americano, Germânia e Internacional, que eram considerados os três mosqueteiros. Como os mosqueteiros do Alexandre Dumas eram quatro, aceitou-se a inscrição do D'Artagnan, único a permanecer até hoje, conservando o apelido. O Germânia desligou-se do futebol e deu origem ao Esporte Clube Pinheiros que ainda existe, ali perto do Shopping Iguatemi; o Internacional, ao fim de várias fusões, tornou-se o São Paulo Futebol Clube, que, depois de viver no varzeano bairro do Canindé, mudou-se para local mais chique, o Morumbi. Já o Americano recebeu tal nome por haver sido fundado por membros do Colégio Mackenzie. A Universidade aí está, mas o time não durou muito. A aversão dos norte-americanos pelo soccer vem de longe! O Corinthians, quando fundado por meia dúzia de operários, era para ser chamado Santos Dumont ou mesmo Novo Castelo, este em homenagem ao New Castle, da Inglaterra. O nome escolhido também foi uma homenagem a um clube inglês, sendo que o brasão atual é a estilização daquele criado por Rebolo, no início dos anos 20. Durante muito tempo foi, de fato, como consta de seu hino, "o time mais brasileiro", pois, xenofobamente, só aceitava jogadores nascidos no Brasil. Ou só africanos, como zoavam os palestrinos. A lembrança dos inesquecíveis Cláudio e Luizinho, duas de suas glórias, desmente a fama que os adversários espalhavam. Houve, de fato, o Baltazar, o Oreco, o Zé Maria e tantos outros não-brancos, da mesma forma como o São Paulo, com sua fama de elitista, não deixou de contratar jogadores por causa da cor da pele. O Zizinho que o diga. Em São Paulo jamais houve o que, durante algum tempo, ocorreu no Rio de Janeiro: os jogadores só entravam na sede do clube pela porta dos fundos, nem que se chamasse Friedenreich. Até porque, embora tendo por pai um loiríssimo alemão, tinha por mãe uma lavadeira mulata. Já o temperamental Heleno de Freitas, esse tinha até direito a casamento no Copacabana Palace e contar com o mesmo alfaiate do Getúlio Vargas, branco que era. Pois o nosso Corinthians aí está singrando um mar de abrolhos, às vésperas de completar o centenário. E brigando com o Flamengo, outro time do povo, para ver quem escapa do vergonhoso rebaixamento para a segunda divisão, algo impensável para muitos. Dia desses, a torcida se pôs a vaiar os jogadores: "mercenários, mercenários, mercenários". Dizem as más línguas que o Carlitos Tevez, pouco afeito à língua do país onde joga, se teria admirado, com aqueles bugalhos lá dele: "¿ cómo pueden decir que soy carpintero si no se usar ni un martillo, ni un serrucho, ni clavar un clavo ?"